נחום מנדל

Transcrição

נחום מנדל
Nahum Mandel
Testemunho de um sonho
(Brasil, 1935-1948)
2009
239
Testemenho de um Sonho
(Brasil – 1935-1948)
Copyright © Nahum Mandel (2009)
ISBN 978-965-90889-5-6
Todos os direitos reservados
Permitido copiar até 5 linhas, citando da origem.
Reprodução de textos maiores e de fotos exigem
autorização do Autor.
Kiburz Gaash, ISRAEL
2009
2
Dedico este livro
a meus companheiros de sonho.
Uns o realizaram, outros não.
Entretanto, todos vivem
em minha memória e no meu coração.
N.M
3
Agradecimentos
Graças às caprichosas revisões de meu
primo Arnaldo Mandel e de meus amigos
Etel Sara Wengier e Norberto Freund, o
português deste livro é legível.
Merecido beijo à minha esposa e
companheira Shoshana, pela esmerada
revisão ortográfica final.
N.M.
4
Prefácio
Historia é o que os historiadores escrevem.
O que não está escrito na História – naõ aconteceu!
(Nahum Mandel, "Autobiosophia"[1])
Martin Lutero King disse "eu tenho um sonho". Também
eu fui um sonhador, e creio que ainda sou. Grande parte
de meus sonhos, realizei: o relato deste livro, além de
meu tesemunho pessoal, reflete a minha geração, que
presenciou os dois eventos mais dramáticos da Histótia
dos judeus na época moderna – o Holocausto e a
declaração do Estado de Israel.
Estatisticamente são raros os que se dão ao trabalho de
documentar e escrever memórias do que presenciaram
ao longo de suas vidas. Me incluo nesta minoria. Desde
meus catorze anos, coleciono todos papeizinhos que
dizem respeito a meus passos e desta maneira escrevi 6
livros, dos quais publiquei 4[2]. Este será o quinto.
Este livro não é uma monografia, nem pretende ser um
documento histórico-acadêmico. Que importância isto
tem? Em minha opinião nenhum historiador é imparcial,
uma vez que para redigir a História que ele relata,
seleciona dentre os documentos que dispõe os que
obedecem aos seus critérios. Cada um puxa a brasa para
sua sardinha...
Na Antiguidade, faraós e monarcas mantinham escrivãos
a fim de perpetuarem seus feitos e biografias. Raros
líderes, como Júlio César, escreveram por si suas
memórias. Na época moderna Lénin, Winston Churchill,
Charles De Gaulle, David Ben Gurion. Moshe Sharet,
Henry Kíssinger, Bill Clinton e outros estadistas
5
anotaram suas atuações e os acontecimentos em diários,
publicados posteriormente. Atualmente, não somente
estadistas escrevem memórias – também o Zé povinho.
Se todo historiador escreve a "sua" História, também eu
quero escrever a minha.
Quem sou eu para escrever "historia"? Um
escrevinhador grafo-maníaco, alguém que sem ser
escritor, gosta de escrever... Não anotei o decorrer do
que presenciei e aqui descrevo, de forma que neste livro
relato apenas o que me lembro, testemunhei ou tenho
informação fidedigna. Dou minha palavra de honra que
envidarei esforços em ser honesto e me referirei somente
ao que me recordo perfeitamente, fatos documentados
no meu arquivo pessoal ou que escrevi há 30 anos em
meu livro "Mischak Ieladim?".
Costumo comparar a narração de acontecimentos aos
relatos do acidente de um carro – dependem de onde se
encontrava quem o relata. Neste meu livro, fui o
motorista na maior parte das narrativas; noutros, apenas
estive dentro do carro: em outros, presenciei o acidente
de fora do carro, e finalmente: certos relatos (figuram
geralmente com letras menores) resultam de pesquisas
que efetuei, as vezes anos depois de terem acontecido.
No entanto, mesmo tendo uma recordação lúcida do
passado, lapsos de memória podem ocorrer: encontrei no
meu arquivo particular cartas datadas de 1945 do
Hashomer Hatzair de São Paulo, onde está impresso o
endereço de sua sede – Rua Paula Sousa 193 – e por
mais que me esforce, nem sequer faço a mínima idéia de
onde fica tal rua... (Já a localizei pela Google. NM)
*
6
Estou consciente que me expresso com certa verve
satírica (jamais sarcástica!). Me dou o direito de gozar
um pouco de minhas vivências do passado – afinal das
contas, no que me aguarda o futuro não vejo nada
engraçado...
Se alguém aproveitar o conteúdo deste relato, me
sentirei compensado pelo trabalho que nele investi.
N.M.
Kibutz Gaash, 30/7/2009
[1]
1) "Autobiosophy" , livro em inglês de Nahum Mandel,
sumário em 18 capítulos de meus pensamentos de judeu
agnóstico, publicado em Londres pela editora Minerva-Press
(2001). Segunda edição - Tel-Aviv (2007).
[2]
Os demais livros, todos em hebraico, foram publicados em
Tel-Aviv:
2) "Mischak Ieladim?" (Brinquedo de crianças? – 2003),
biografia ate 1951.
3) "Em seu kibutz não foi profeta" (2007), continuação do
livro anterior. Edição ultra-restrita, não à venda.
4) "Construa sua casa" (2008), conselhos práticos para
quem pretende construir casa, desprovido de
experiência anterior. Durante sessenta anos minha
profissão foi o planejamento e construção de casas.
7
Índice
Capítulo 1 – Cronologia, 9
Capítulo 2 – O cenário: o bairro Bom Retiro, 13
Capítulo 3 – Meu tio Urtzi, 20
Capítulo 4 – Os "Shomer"es de São Paulo, 31
Capítulo 5 – O Departamento Juvenil, 51
Capítulo 6 – O Hashomer Hatzair, 82
Capítulo 7 – Hashomer Hatzair no Brasil, 116
Capítulo 8 – Avalanche de shlichim (emissários), 130
Capítulo 9 – Ressurgimento do Hashomer no Rio, 145
Capítulo 10 – Depois da moshavá, 458
Capítulo 11 – 1948 – grandes acontecimentos, 179
Capítulo 12 – Final holywoodiano, 202
Apêndice
Atualização de nomes e sobrenomes, 234
Glossário dos termos hebraicos. 255
8
Capítulo 1 – Cronologia
27-4-1927. Nasci em Luck, província Wohlyn da
Polônia, cidade atualmente pertencente à Ucrâiína, que
mudou seu nome para Lutzk.
1929. Nasce minha irmã Rosa e
algumas semanas depois nosso pai
Mojsze Lejb Mandel (ele sempre
assinou desta maneira, em polonês)
emigrou ao Brasil com o irmão
Shaique (aportuguesou para Isaías), a
fim de melhorarem a condição de
vida.
1930. Minha mãe Mirl (Maria no Brasil, Miriam em
Israel) recebe de papai carta
de chamada (com passagem
de navio, naturalmente) e
ruma com seus dois
rebentos em direção ao
Brasil.
1933. Urtzi (Uron) Mandel recebe chamada e passagem
de seus irmãos no Brasil, e se junta a eles.
1935. Os três irmãos chamam
seus pais, meus avós, Malka e
Avrum (Abraão) Mandel, que
partem ao Brasil com as filhas –
Dintze (Dina), Guita e Branca.
9
Os irmãos continuam a mandar cartas de chamadas e
passagens para parentes, mas somente Niúma Berger,
sobrinho de vovó Malka, aproveitou esta oportunidade.
Os demais parentes (os que não fugiram para a União
Soviética) terminaram seus dias em uma vala-comum nas
redondezas da cidade, fuzilados pelos nazistas.
1935. Urtzi vem morar com os
pais em São Paulo. Pertencia
na Polônia ao movimento
juvenil judaico Hashomer
Hatzair, e junto com amigos
sionistas como ele próprio
fundam o "Shomer", que
funncionou por cerca de três
anos, até que o DOPS o
fechou.
1937. Meus pais se mudam para São Paulo, para
viverem próximos a seus
pais, meus avós, após
terem residido em Matão
(1930), Gália (1931-2),
Taquaritinga (1933-6) e
no ano de 1937 nas
cidades de Araraquara,
São Carlos, Sorocaba,
Campinas e finalmente atingimos a meta – São Paulo.
Minhas tribulações de "judeu errante" terminaram em
Israel ao chegar em 1951 no kibutz Gaash, onde me fixei
e ao que tudo indica, algum dia nele descansarei
eternamente em berço esplêndido, perto dos túmulos de
meus pais...
10
1939. Participo das atividades que aconteciam aos
domingos de tarde na Escola Renascença (Hatechiá, em
hebraico). Não sei como começaram, nem por que
terminaram.
1940.
Minha
Bar-Mitzvá,
data
comemorada no quintal da casa de meus
avós, com um almoço festivo de 200
convidados.
1943. Começo a freqüentar reuniões
semanais de jovens judeus que se reuniam
no Centro Hebreu Brasileiro, que em 1944
passou a ser o seu Departamento Juvenil, do qual fui
eleito por aclamação Presidente-fundador (era este o
título que recebi...).
1944. Realiza-se uma moshavá, acampamento de férias,
em uma fazenda em Desvio
Ribas (Paraná). A diretoria do
Centro financiou a minha
participação e mais de dois
chaverim (companheiros) do
Departamento.
1945. Abandono o Departamento
para fundar com mais dois amigos
(Amnon Yampolski e Moisés
Stroich) e meu tio Urtzi o
Hashomer Hatzair em São Paulo,
11
onde recebi o cargo de mazkir (secretário-técnico) da
Moatzá (a direção central).
25 de Dezembro de 1945, às 10 horas da manhã, no
teatro da sede social do Clube Macabi. é fundado
oficialmente o Hashomer Hatzair do Brasil.
18.7.1948. Meu casamento com a
"Suzana
da
Bahia",
Suzana
(Shoshana em Israel) Spilberg. Em
menos de uma semana partimos,
como voluntários ao Exército de
Defesa de Israel na Guerra de
Libertação, para a nossa lua-de-mel em Israel.
*
Este é o sumário do que relato neste livro.
Como exposto no Prefácio, esta narrativa, sem ser
tradução de meu livro em hebraico "Mischak Ieladim??"
(Brinquedo de Crianças?), é nele baseada. Friso de novo,
insistentemente, que sendo minhas memórias, abordo
nele somente o que se refere às atividades sionistas no
Brasil nas quais participei, ou delas tive notícias
fidedignas. Evitarei me referir a fatos que não se
enquadram nestes parâmetros.
*
Não posso evitar o uso do palavreado portuguêshebraizado que usávamos em nossa vida sionista
quotidiana. Para facilitar aos leitores a compreensão das
palavras hebraicas que desconhecem, acrescento um
glossário no final do livro.
12
Capítulo 2 – O cenário: o bairro Bom Retiro
A nossa casa
Quando nos radicamos em São Paulo, onde fomos
morar? Logicamente no Bom Retiro, o bairro dos
judeus! Nossa casa ficava no final da Rua José Paulino,
no meio do trecho entre a Rua Júlio Conceição e as ruas
Tenente Pena e Areal. Lógico por dois motivos: para
estar próximos de meus avós, que residiam na Rua da
Graça 450, e porque, como se dizia à boca pequena, o
Bom Retiro gozava da preferência dos imigrantes –
judeus, italianos e portugueses – devido a proximidade
da Estação da Luz, pela qual eles, os imigrantes,
chegavam à "Cidade da garoa".
A nossa casa era estreita e comprida, com um corredor
externo cimentado, ao longo do prédio.
Na frente, um salão ocupava metade da casa, e depois
vinha o quarto de meus pais, o quarto que eu partilhava
com minha irmã (até meu casamento dormimos sempre
no mesmo quarto), sala de jantar, cozinha e no final um
quintalzinho com um quartinho dividido em duas partes;
uma servia de depósito e dispensa, e a outra, para a
instalação sanitária. Para chegar ao "banheiro" desde o
salão na entrada, onde papai montou a loja e a oficina de
pulôveres, era necessário atravessar todos os quartos, de
um a outro, ou percorrer o corredor externo sem telhado.
Depois das moradias anteriores, para mim a casa era um
palácio.
*
Lembro-me da Farmácia D´Amato em frente de nossa
13
casa, e ao seu lado a confeitaria-padaria de uma família
italiana, cuja filha Artemisa era a melhor amiga de
infância de minha irmã.
Ocupando a esquina com a Rua Júlio Conceição, ficava
o grande Empório Pimentel português.
No sobrado vizinho morava a família Goberstein. A filha
mais velha Marta foi amiga íntima de minha irmã. Sua
vinda a Israel não interrompeu o contato entre elas, que
se corresponderam por cartas até o falecimento de
Marta.
Por falar em minha irmã Rosinha, como era chamada,
não posso deixar de comentar: eu era um menino
caseiro, não tinha amigos, não ia à casa de ninguém e
nenhum menino vinha à minha. Nem me lembro de ter
algum dia entrado na casa de algum aluno de minha
classe da escola. Estava sempre ocupado com meus
pensamentos e invenções. Em sumo, um sonhador!
Rosinha, ao contrário de mim, passava o dia inteiro na
rua, brincando com a molecada. Era a melhor jogadora
de futebol "bola de pano" do quarteirão. Pequena e
danadinha, ninguém podia com ela, a única menina no
time e quem marcava a maioria dos gols. Capitã do
quadro, sem ela não havia jogo na nossa vizinhança.
Em resumo, tivemos uma infância maravilhosa. Cada
um à sua maneira.
A casa de meus avós
A casa de meus avós, na Rua da Graça 450, tinha uma
sala bem espaçosa na entrada, vários quartos pequenos,
14
cozinha e um quintal enorme (aos meus olhos), que vovô
transformou em um pomar maravilhoso.
No centro, vovô plantou um
abacateiro que se desenvolveu em
uma árvore frondosa, carregada de
frutos. Na parte de trás, um pequeno
vinhedo, que lhe fornecia as uvas
necessárias para o preparo do vinho
que
consumia
ou
precisava,
especialmente para o Seder Pesach.
Uma delicia!
Foi nesse quintal que festejaram minha bar-mitzva. Por
ser o neto primogênito, a festança foi a maior que
aconteceu até então em nossa família; nem os
casamentos de minhas tias foram tão pomposas. Foi
servido um almoço para mais de 200 convidados:
guifilte-fish, sopa de galinha com macarrão, kreplech de
batatas. A sobremesa: compota de ameixas e shtrudel de
maçã. Menú idish classico, tudo preparado por Mamãe e
Vovó.
*
A casa de meus avós representou um papel importante
em minha vida. Gostava muita de freqüentá-la, para
brincar no quintal, trepar no abacateiro e assistir as
sessões do "parlamento".
Como consta no capítulo "Cronologia", meu tio Urtzi
morava na casa de meus avós, o último a morar com
eles, pois as filhas à medida que se casavam, voavam
para seus próprios ninhos. Havia um inquilino, Natan
Bar, jovem imigrante da Polônia, que ocupava um
15
quartinho sem janelas, que alugou. Meus avós o
hospedaram mais por consideração (não tinha parentes
no Brasil) do que pelo aluguel. Era tratado como
membro da família e como tal ele se comportava.
Em meados da década de 1960, Natan e sua esposa me
apareceram no kibutz Gaash. Vieram viver perto de uma
filha em Natânia.
Natan não se adaptou ao país e regressou ao Brasil.
Urtzi e o trio de amigos com quem conviveu dezenas de
anos - Noach Feiguelman, Itzik (Isaac) Ostrowski e
Emilio Blay – se encontravam quase que diariamente à
noitinha na casa de meus avós, para analisar e solucionar
os problemas do mundo, com a participação ativa de
meu avô... Devo salientar que os debates eram em idish,
a língua-franca em nossa família. Meus avós e minha
mãe jamais aprenderam o português e meu pai falava
um português de gringo.
Fato admirável: jamais ouvi os "parlamentares" se
referirem à Eretz-Israel, apesar de todos serem sionistas
fervorosos ligados ao Hashomer Hatzair. Estranho! De
comentários sobre judeus na Europa me lembro somente
após a conquista da Polônia por Hitler, em 1939.
Lembro-me perfeitamente como acompanhavam o
desenrolar da Guerra Civil Espanhola. Eu não sabia
nomes de jogadores de futebol (imaginem só!), nem de
artistas de cinema, mas estava familiarizado com os
nomes de Franco, La Passionária, Leon Blum e outros
personagens da política internacional da época.
Meu avô Avrum era uma pessoa muito interessante (para
mim, pelo menos). Muito religioso, ia diariamente a
todas as rezas no shil (sinagoga), que ficava no sobrado
16
da casa na esquina das ruas da Graça e Correa dos
Santos (hoje Rua Lubavich).
Vovô não era fanático. Muito pelo contrário, era
simpático e calmo – verdadeiro humanista. Passava
horas lendo jornais em idish. Baixinho, com barba negra
curta bem aparada. Quando jovem sofreu um acidente e
ficou aleijado. Mancava, apoiado em uma bengala.
Meu avô constituia um manancial inesgotável de
historietas, lendas e fábulas judaicas. Jamais esqueço
seus contos sobre Hershele Ostropoler (figura
proeminente do humor judaico, equivalente a Nassera´Din, Til Eulenspigel e Barão de Munchausen), de
Baal Shem Tov e da Hagadá (a parte não legalista do
Talmud, contendo entre outros assuntos inúmeras
lendas).
A casa em frente
Um belo dia, aos meus onze anos, meu tio Utzi me levou
a uma casa bem em frente da casa de meus avós. Casa
bem simples, de fachada como as de todas da
vizinhança. Nada de especial.
Na entrada, uma saleta e vários quartos ao longo de um
corredor – não sei quantos, porque nunca fui além do
primeiro cômodo, com umas dez cadeiras dispostas em
círculo. Não me recordo da presença de outros móveis.
Meu tio me indicou uma cadeira desocupada e me sentei
ao lado de outras crianças, de idades aproximadas à
minha. Um adulto, que chamavam de menahel
(dirigente, em hebraico), dirigia a sessão – sichá
(conversação em hebraico). Este adulto, Noach
Feiguelman, era um dos frequentadores assíduos do
17
"parlamento" do vovô, o que me fez com que me
sentisse mais a vontade.
A atividade do grupo, inteiramente em idish, era
realizada como um ritual: no começo se cantava – "Az
der Rebe Elimelech is guevoren zeir freilich...",
"Reisele", "Tumba-la-laika...", "Bin ich mir a chuletzl" e
outras canções em idish. A canção "Zei vi di
shterendlech zei blishtshen, zei blinken... (Veja como as
estrelinhas brilham, piscam...)" eu não conhecia
anteriormente e gostei muito dela. Penso que das
canções que cantávamos era a única revolucionária,
inspirada em ideais socialistas.
Depois de cinco ou seis canções vinham as brincadeiras
de salão: palavra complicada que se sussurava no ouvido
do vizinho e o ultimo da fila revelava o que ouviu, em
geral palavra diferente da inicial. Era muito gozado.
Os "jogos de Kim" entusiasmavam o pessoal. Por
exemplo, o menahel colocava vários objetos no chão e
após observados durante um minuto, eram cobertos com
jornal e cada um escrevia em papelzinho a lista dos
objetos que lembrava. Outro exemplo: alguém dizia o
nome de um país. O vizinho o repetia e acrescentava
outro, e assim por diante, até que ninguém mais fosse
capaz de continuar. A variedade de jogos era grande.
Por fim vinha o conto: Noach lia uma história de um
livro em idish, geralmente de Yehuda Leib Peretz –
como a famosa "Três Prendas" – e orientava o debate
sobre o assunto.
De vez em quando saíamos aos Domingos a um
piquenique (que chamavam haflagá - excursão) a
Tremembé, Horto Florestal ou Interlagos. Eu apreciava a
18
viagem no trenzinho da Cantareira. Sair ao campo era
para mim uma vivência emocionante. Cada um trazia
sua merenda, mas todas eram misturadas para a refeição
coletiva. Eu achava esse procedimento natural e justo.
Eu aguardava com ansiedade estes encontros, os únicos
com amigos de minha idade.
Certa tarde, fui para a sichá e deparei a porta da casa
entreaberta e todos os quartos completamente vazios,
sem cadeiras e sem nada. Meninos da vizinhança me
informaram que vieram uns homens com um caminhão e
carregaram tudo que havia na casa.
Muitos anos se passaram até que eu soubesse que foi o
DOPS que "fechou o negócio" e confiscou tudo,
inclusive os menahelim. Depois de intenso interrogatório
foram libertados, após serem advertidos da proibição de
mais de três pessoas se reunirem sem a autorização
prévia da Polícia. Assim terminou o primeiro "Shomer"
em São Paulo.
Houve tentativas de ressuscitá-lo, o que aconteceu
finalmente no ano de 1945, com a democratização do
Brasil, no final da Segunda Guerra Mundial.
19
1936 – Chegamos a São Paulo. Î
Capítulo 3 – Meu tio Urtzi
Decidi dedicar este capítulo ao meu tio Urtzi z"l (z"l acrônimo hebraico de "seja abençoada sua memória ",
usado pelo judeus após nomes de falecidos). Ele merece!
Ele merece pela influência que exerceu em minha
trajetória ao Hashomer Hatzair, à Eretz-Israel e ao
kibutz. Não sei se devo agradecer-lhe ou lamentar por
isso – por sua causa desisti de meus estudos de
engenharia na Escola Politécnica e renunciei a uma
carreira de sucesso profissional e econômico, a exemplo
dos colegas judeus de minha classe no ginásio... O fato
está consumado e em nenhum momento me arrependo
do meu caminho!
Urtzi (Uron Mandel) nasceu em 1914 na minha cidade
natal Luck. Não sei a que grau de instrução alcançou,
além do "cheider" (escola primária tradicional de judeus
na Europa Oriental). Imagino que não tinha frequentado
o ginásio, pois seus pais, meus avós, não possuíam
recursos para tal. Contou-me que aos 12 anos ingressou
no Hashomer Hatzair, movimento juvenil sionistasocialista que brotou na Europa nas vésperas da Primeira
Guerra Mundial, influenciado pelo escotismo de BadenPowell, o socialismo dos movimentos revolucionários
Naródnaya Vólia (Rússia) e Wandervogel (Alemanha) e
optou pelo Sionismo como solução política para o
problema judeu. A identificação de Urtzi com os ideais
shômricos foi absoluta e não se separou deles até o
último momento de sua vida.
Em 1933 se juntou à hachshará (campo de preparação
agrícola para o kibutz em Eretz-Israel) El-Al e como não
20
tinha chance de conseguir em tempo razoável "certificat"
para "fazer aliá" (ascender – emigrar para Palestina) e
como seus pais e irmãs se preparavam para vir ao Brasil,
recebeu do movimento licença oficial por escrito de
viajar temporariamente ao Brasil – documento com o
selo do Keren Hashomer e o carimbo do símbolo do
Hashomer Hatzair, assinada por Aaron
Fucs. Urtzi guardava cuidadosamente
esse papelzinho, sua maior relíquia,
junto com sua carteira de identidade.
Aaron Fucs, menahel de Urtzi, foi
um dos fundadores do Hashomer
Hatzair em Luck, Mais tarde tornouse Aaron Efrat, um dos principais
dirigentes do movimento e do
Partido Mapam em Israel, membro da Knesset e líder da
Histadrut ha´Ovdim. Eu o conheci quando cheguei a
Israel e ele era mazkir (secretário) de seu kibutz Ein
Hashofet. Trinta anos depois, submeti à sua opinião um
copidesque de "Mischak Ieladim?", como fiz com a
maioria das pessoa as quais me referi no livro, e ele por
própria iniciativa escreveu o prefácio que publiquei.
Outra preciosidade para Urtzi era o distintivo de boguer
(veterano. a categoria adulta do Hashomer Hatzair), que
recebeu no dia 10-011933,. em Varsóvia,
com o número 3579.
Emblema em formato
de flor-de-lis ladeada
de louros, com o lema
"Chazak
v´Ematz"
("Força e coragem",
saudação bíblica com
21
que Moisés elege a Josué. filho de Nun), tudo sobre um
fundo veludo vermelho.
Urtzi ostentava o distintivo na lapela em todas as
ocasiões festivas que participava. do
movimento e da coletividade judaica. Ao
chegar ao Brasil morava em Bariri. Urtzi
prendeu seu emblema orgulhosamente
na lapela da camisa, mas teve que retirálo, pois os goim (não judeus) o julgaram
agente da Polícia Secreta...
*
Qual era a qualidade predominante em Urtzi? Sem
titubear nem pestanejar, eu responderia imediatamente
"fidelidade incondicional aos amigos".
Um exemplo, que testemunhei de perto, foram as
relações entre Urtzi e Isaac Takser, amigos desde o
movimento na Polônia. Quando em 1945 reorganizamos
o movimento em São Paulo, Urtzi me aconselhou a
convencer a Takser a colaborar conosco, apesar de que
naquela época ele estava completamente desligado do
grupo dos antigos shomrim. Takser acabou participando
na Moatzá (conselho, em hebraico – como inicialmente
denominamos a direção do movimento) e rapidamente se
tornou sua autoridade ideológica. Nas reuniões da
Moatzá Takser não perdia nenhuma oportunidade de
"cutucar" tudo que Urtzi dizia e em inúmeras de nossas
conversas em particular (como secretário - com "s"
minúsculo - da direção, eu me consultava com ele
frequentemente), Takser sempre se referia a Urtzi como
"o seu tio", com certo sarcasmo. Por outro lado, nunca
ouvi de Urtzi uma única palavra de desprezo à respeito
22
de Takser.
Takser foi ativo no Partido Mapam de São Paulo, mas
devido a seu temperamento caprichoso acabou brigando
com todo o mundo. Quando faleceu, Urtzi foi o único
membro do Mapam a comparecer a seu enterro. Urtzi não
sabia o que era rancor ou vingança. Ingenuidade? Talvez.
Bondade vem sempre entrelaçada com ingenuidade.
Certa vez, meu pai bronqueou com Urtzi, seu irmão mais
jovem, "porque não pensa em se casar e se preocupar
com o futuro, ao invés de perder tempo com amigos e
kule-gesheften (em idish negócios da kehilá,
coletividade)". Urtzi se ofendeu e durante anos não
falou com Papai. Entretanto, jamais percebi em nossas
inúmeras conversas a menor hostilidade ou zanga a meu
pai. Urtzi tinha seus orgulhos e vaidades, mas nada
contra ninguém.
*
Quando organizamos em São Paulo o primeiro garin
aliá (grupo que emigra para Israel). Urtzi foi o único dos
antigos shomrim ligados ao movimento que levou a sério
a hagshamá atzmit (auto-realização, emigração para
Israel – mandamento-máximo no Hashomer Hatzair).
Aderiu ao grupo e encaminhou-se ao Kibutz Ruchama,
onde viviam seus chaverim (companheiros) de Luck. Eu
e minha Shoshana vivemos em Ruchama de 1948 a 1951
(relato o evento em minhas memórias em hebraico).
Urtzi foi muito bem recebido pelos seus antigos
chaverim e se tornou o pivô em todos os encontros
sociais deles. Ele vinha "armado" do seu inseparável
bandolim e animava as festinhas, arrastando com seu
entusiasmo contagiante todos a cantar.
23
Urtzi trabalhou em Ruchama com Aaron Charnash
(pessoa fascinante, por
duas vezes shaliach em
São
Paulo)
na
plantação, irrigação e
transporte de forragem
e alfafa para os
estábulos das vacas.
Tarefa fatigante e de
muita responsabilidade,
que Urtzi cumpria com
orgulho.
Em uma de minhas conversas costumeiras com Yossef,
o secretário de Ruchama, falei das qualidades
excepcionais
de Urtzi como empreendedor e
organizador, e lhe aconselhei que o nomeassem
representante da fábrica de escovas do kibutz, ou pelo
menos como o encarregado das compras do kibutz. Em
minha opinião, uma pessoa como Urtzi estava sendo
desperdiçada mo kibutz. Tudo indica que não o
convenci, e Ruchama não sabe o que perdeu.
Yossef Shamir, secretário de Ruchama, foi companheiro
de Mordechai Anielevich (o comandante da Revolta do
Gueto de Varsóvia em 1943) na última Hanagá Rashit
(Direção Central) do Hashomer Hatzair na Polônia.
Intelectual e filósofo, a autoridade máxima em marxismo
da tnuá (movimento), autor do livro "Materialismodialético" e conferencista sobre marxismo no seminário
ideológico de Guivat Haviva.
Pessoa interessante, com quem tive grande amizade,
apesar da diferença de idades.
Em troca Urtzi foi designado para ser motorista do
24
caminhão do kibutz, função que desempenhou com
dedicação e eficiência.
Tenho a impressão que o Urtzi era querido e respeitado
no kibutz, entretanto não souberam avaliar suas
qualidades.
Uma noite, em que Urtzi foi shomer-laila (guardanoturno), ele ouviu uns ruídos estranhos, correu até o
chadar haóchel (refeitório) e bateu insistentemente com
o martelo no tubo de ferro pendurado na entrada. Num
piscar de olhos se reuniram a seu redor quase todos os
membros do kibutz – a maioria dos homens, armados de
espingardas. Urtzi disse que ouviu ruídos suspeitos. O
responsável pela segurança elogiou sua vigilância e o
aconselhou a não acionar o alarme por causa de ruídos.
Pela manhã, encontraram no depósito do estábulo restos
de pita (pão árabe) e outros vestígios de estranhos que
ali comeram, e descobriram um rombo na cerca de
arame farpado que rodeava o kibutz. Armas e outros
utensílios foram roubados de armários localizados nas
varandas das casas do kibutz. Na época, feddayim,
terroristas árabes, invadiam habitações com o intuito de
assassinar judeus. Ninguém caçoou mais do Urtzi.
*
Quando veio à Israel, Urtzi deixou uma namorada em
São Paulo, Freida (Frida) Roitman, que não concordou
em separar-se da família. Em 1952 Urtzi voltou ao
Brasil para se casar com ela. Frida foi uma esposa e mãe
dedicada. A caçula deles é a Mônica, mulher simpática,
mãe de dois filhos, e o primogênito, Arnaldo Mandel,
professor de matemática na USP, herdou as boas
qualidades do pai e com seus estudos completou o que a
25
ele faltava: a instrução! Urtzi não teve possibilidades de
estudar e não aprendeu português em faculdade, e nem
sequer em ginásio, o que não o impedia do uso frequente
de palavras "difíceis", cujo significado exato suspeito
que não conhecia. Parafraseando o ditado "Deus escreve
reto com linhas tortas", eu diria que Urtzi falava certo
com português errado...
Dai em diante não testemunhei pessoalmente as sua
atividades, porém seus feitos estão registrados nos anais
da coletividade judaica de São Paulo.
*
Não seria eu a pessoa mais indicada para avaliar meu tio
Urtzi, pois jamais seria objetivo, devido à minha empatia
por ele. Urtzi foi meu tio dileto e antes de mais nada, um
amigo.
Antes de escrever este capítulo folheei em meu arquivo
pessoal a documentação na pasta dos recortes de jornais
e cópias das cartas que me mandava.
Ao invés de caracterizar sua personalidade, transcrevo a
seguir trechos de artigos, publicados por ocasião de seu
sexagésimo e octogésimo aniversários, ou proferidos na
homenagem póstuma que a coletividade judaica de São
Paulo lhe promoveu. Ao contrário do que geralmente
acontece nestas oportunidades, não são exageros!
Trechos escolhidos
"Com o incrível e sempre sorridente Uron, jovem em
seus ativos 86 anos até o último momento, vai embora
um pedaço e um personagem riquíssimo da História do
Judaísmo brasileiro e em geral, da cultura idish, da qual
Urtzi era umbilicalmente ligado, e do sionismo
progressista brasileiro e israelense", Sylvio Band
26
"Ao fazer 80 anos, dirigentes comunitários, autoridades,
e principalmente amigos, comemoraram mais um
aniversário de Uron. Várias homenagens foram
prestadas a ele, e músicos de projeção da comunidade
fizeram o show.
Mas quem é este senhor baixinho, de fala rápida e
energética, que conquistou e ainda conquista um lugar
de tanto destaque na comunidade?", trecho de longo
artigo "Os 80 anos do jovem Uron" de Cindy Wilk,
revista A Hebraica nº 341, Set. 1984.
"É dentro dele mesmo que Uron encontra esta energia",
Rodolfo Konder. Secretário municipal de cultura. (Na
mesma revista)
"Uron Mandel na comunidade é mais conhecido do que
27
Pelé", Leon Feffer, consul-honorário de Israel no Brasil.
(Na mesma revista)
"Esta é a quarta vez que Uron completa 20 anos",
Salomão Schwartzman, diretor da Manchete. (Na mesma
revista)
"... diretor de um dos mais importantes departamentos da
Associação Brasileira A Hebraica, e também como
idealizador da única universidade popular dedicada ao
cultivo da língua idish", Felícia Najman, Rezenha
Judaica , 60-9-1971.
"... quando entrei no Salão Adolpho Bloch para
participar da festa da comunidade em homenagem ao
grande líder e amigo Uron Mandel, foi como se entrasse
num livro de História da comunidade judaica paulista.",
Nissim Hamaoui, Semana Judaica, Dezembro 2000.
Currículo de vida
A transcrição do currículo dos 86 anos da vida de Uron
Mandel, preencheria muitas páginas. Contentar-me-ei
com o registro de alguns marcos significativos:
1926. Ingressa no Hashomer Hatzair em Luck.
1930. Nomeado madrich (monitor) de 60 jovens entre 9
a 12 anos. Parte deles incorporaram o kibutz Messilot.
28
1932. Ingressa na hachshará (campo de preparação para
o kibutz em Eretz-Israel) "El-Al". Um ano mais tarde se
junta ao Brasil aos irmãos, com licença do movimento.
1935 – Um dos fundadores e principais ativistas do
primeiro Hashomer Hatzai em São Paulo.
29
1944. Participou da organização da segunda moshavá no
Brasil, realizada na fazenda do sr. Vaingart.
1945. Presidente do "Wohliner Farein". Diretor do
grêmio Renascença no Clube Macabi. Um dos
fundadores em São Paulo do Hashomer Hatzair do
Brasil.
1948. Único adulto do Hashomer Hatzair de São Paulo
no garin-aliá (grupo para imigrar a Israel). Ele se dirigiu
ao kibutz Ruchama, de companheiros seus de Luck.
1952. Volta ao Brasil para se casar com Freida (Frida)
Roitman e retorna ao ativismo no Keren Hayessod,
Keren Kayemet le´Israel e Mapam de São Paulo.
1965. Diretor-superintendente do jornal Al-Hamishmar
do Brasil, responsável pelo seu financiamento.
1968. Fundador e "Reitor" (como era denominado pelos
amigos) da Universidade Popular da Língua Idish, na
Associação Brasileira "A Hebraica" de São Paulo. Para
as aulas dominicais que semanalmente ocorriam no
clube, chegou a trazer conferencistas especiais dos
Estados Unidos. Um dos conferencistas que mobilizou
foi o renomado idishista Meir Kucinski.
1972. Nomeado Secretário do Mapam em São Paulo, e
mais tarde de todo o Brasil, foi por duas vezes enviado
como representante do partido a Congressos Sionistas
em Jerusalém.
30
16-3-1990. Urtzi enviuvou de Frida, sua esposa e
companheira da vida.
10-10-2001. Urtzi (Uron Mandel) falece repentinamente,
justo quando se preparava para outra visita à Israel.
Deixou dois filhos, Arnaldo e Mônica, e dois netos,
Marcos e André Veitman.
Creio que é suficiente para ter imagem de sua atuação.
*
A Urtzi se aplicaria a famosa frase de Yehuda Halevy
(1075–1141), o poeta da "Era de Ouro" dos judeus da
Espanha, "estou no Ocidente e meu coração, no
Oriente."
31
Capítulo 4 – Fases do "Shomer" de São Paulo
O "Shomer" de 1935
No item "A casa em frente" do capítulo 2 relato as
recordações, até hoje gravadas fortemente em minha
memória, das minhas vivências na organização juvenil
judaica para a qual meu tio Urtzi me trouxe em 1937.
Somente após muitos anos fiquei sabendo que se tratava
da sede do movimento sionista "Hashomer Hatzair de
São Paulo".
Eu gostava muito de frequentar as reuniões monitoradas
em idish por Noach Foiguelman, cantar as canções,
participar dos jogos, ouvir historietas e acompanhar os
debates por elas provocadas e finalmente, as haflagot
(excursões) ao campo. Era para mim evidente que se
tratava de atividade judaica, mas não fazia a menor idéia
de seus objetivos ideológicos. Não me recordo de ter
ouvido nas reuniões as palavras "socialismo",
"sionismo", "Eretz Israel" ou "Hashomer Hatzair".
Conjeturo hoje que minha kvutzá era jovem demais e
que os grupos mais idosos sim abordavam temas
ideológicos e políticos.
Frequentei as reuniões durante uns dois meses, até que –
como já relatei – veio o DOPS e acabou com tudo.
De minhas investigações posteriores fiquei sabendo que
o "Shomer", como chamávamos a organização (recordome que usávava a expressão "vou ao Shomer"), começou
a funcionar em 1935, exatamente com a vinda de meu
tio Urtzi à São Paulo da cidade de Bariri, onde morava
com o irmão Shaique, que tinha ali uma lojinha de
armarinhos, na única rua comercial da cidadezinha.
32
Não sei dizer se a iniciativa foi do Urtzi, mas ele foi sem
dúvida um dos fundadores e principais ativistas. Não
tenho conhecimento do que sucedeu, além do que Urtzi
me contou e o que se pode deduzir das poucas
fotografias que me deu. Relatarei dois episódios.
O primeiro, que Urtzi me contou dramaticamente: em
1936(?) aconteceu em São Paulo, no que viria a se tornar
o Parque de Ibirapuera, Jamboree Internacional de
Escoteiros, com acampamentos de delegações de quase
todo o mundo. Até da longinqua Austrália compareceu
uma tropa de escoteiros.
Ao anoitecer, as delegações apresentaram danças e
canções folclóricas de seus países. Em seu turno, o
Hashomer Hatzair acendeu uma fogueira no centro do
terreiro e dançaram em volta uma hora (dança de roda
folclórica judaica – cada um com as mãos pousadas nos
ombros dos dois vizinhos), "Arum der faier zingen mir
líder...", canção em idish que constituía então uma
espécie de hino do movimento. O entusiasmo e a alegria
33
da dança frenética foi de um sucesso contagiante –
escoteiros de outros países acabaram aderindo...
Verdadeira apoteose!
O segundo episódio, que conheço por experiência
própria, estava ligado a uma personalidade brasileira
especial: o Chefe Theodomiro. Suponho que os bogrim o
conheceram no Jamboree. Em uma fotografia de 1936
do meu arquivo ele aparece com shomrim em um
acampamento escoteiro no Horto Florestal.
1.Chefe Theodomiro (prof. Theodomiro Monteiro de Amaral)– 2. Doli Sobol - 3. Isaac
Takser – 4. Sara (Takser) – 6. Emilio Blay – 7. Isaac Ostrovski – 8. Noé Feiguelman –
10. Uron Mandel – 12. José Sendacz
O Chefe de Escoteiros Theodomiro, prof. Theodomiro
Monteiro do Amaral, desenvolveu sólida amizade com
os dirigentes do Hashomer e como veremos
oportunamente, foi de valioso préstimo.
34
Como dissemos, o Hashomer Hatzair de 1935 teve suas
atividades bruscamente encerradas e seus monitores,
depois de presos, foram admoestados a evitar encontros
de mais de três pessoas, o que não os impediu de tentar
em diversas ocasiões ressuscitar o "Shomer" sob
formatos que não transgrediam as restrições policiais.
35
*** Publiquei todas as fotos que tenho do Shomer de 1935, devido ao valor
histórico delas.
Em 1937 o Presidente Getúlio Vargas implantou no
Brasil o "Estado Novo", cópia do regime ditatorial de
Salazar em Portugal. Todas as instituições judaicas, e
estrangeiras em geral, viram-se forçadas a camuflar suas
atividades, então proibidas pela lei. O Keren Hayessod, o
Keren Kayemet e a Agência Judaica se ocultaram baixo
o rótulo de "Centro Hebreu Brasileiro".
O "Shomer" de 1939
Em 1939, não sei por iniciativa de quem e como,
surgiram aos domingos de manhã atividades sociais de
jovens na escola judaica-brasileira "Renascença" (em
36
hebraico "Hatechiá").
Quando comecei a cursar o quarto ano do Grupo Escolar
Marechal Deodoro, fui convidado por um amigo "para
ir ao Shomer" e assim comecei a frequentar essas
reuniões. Minha recordação do que ali acontecia é
nebulosa, nem sequer me recordo quem eram os
monitores. Porém me lembro perfeitamente que foi
organizada uma bandinha de tambores e instrumentos de
sopro (pertencentes à escola) e fui designado para tocar
um tamborim, com duas varetinhas de madeira. Minha
função era marcar o compasso para à bandinha,
repicando intermitentemente "tam! tam-tararam-tamtararam-tam-tararam tam tam!".
*
Está na hora de esclarecer porque frequntei o grupo
escolar com idade tão avançada – quase 12 anos.
Quando vivíamos em Matão, no noroeste do Estado,
meu pai me inscreveu aos seis anos no grupo escolar.
Logo em meu primeiro dia de aula, devido a
circunstâncias um pouco desagradáveis (comichões
impertinentes na barriga, sem que eu soubesse o que
fazer para evitar "fazer nas calças"), pulei no intervalo a
cerca do pátio do recreio e fugi para casa, para meu
piniquinho (não havia rede de esgotos na cidadezinha).
A trauma deste acontecimento foi tão forte, que me
recusei durante dois anos a ir à escola. Somente quando
passamos a residir em Taquaritinga, e eu um analfabetão
de 9 anos, fui sozinho, por minha própria iniciativa, livre
e espontânea vontade, inscrever-me no Grupo Escolar da
cidade.
Como o ano letivo estava para terminar, frequentei a
37
classe do primeiro ano apenas dois meses, o suficiente
para aprender o abecê e começar a ler.
No fim do ano iniciamos uma longa trajetória em
direção a São Paulo, passando a morar curtos períodos
em Araraquara, São Carlos, Sorocaba e Campinas.
Porque meus pais resolveram mudar-se para a capital?
Meu pai queria muito morar na vizinhança de seus pais,
meus avós, mas minha irmã Rosinha que forneceu o
motivo decisivo da resolução..
*
Um dia apareceu um padre em nossa casa a fim de pedir
a mamãe que nossa Rosinha de seis anos participasse
como anjinho – vestida toda de branco, uma coroínha
por cima da cabeça e duas asinhas nas costas – na
procissão
não-me-lembro-de-que-santo.
Mamãe
respondeu em seu português quebrado que ela
lamentava, mas não poderia permitir, por sermos de
outra religião.
Rosinha botou a boca no mundo, num berreiro que
atingia os céus e mamãe a tranquilizou à custo,
explicando-lhe com ternura, em idish, sermos judeus e
judeu não vai para "igreja" (palavra que disse em
português) de goim. "Então me leve para a igreja dos
yiden!", exigiu minha irmã com veemência incomum
para uma criança de sua idade.
Depois deste incidente, meus pais resolveram mudar
para São Paulo, a fim de proporcionar educação judaica
aos filhos. Em Taquaritinga havia somente mais uma
única família judia, inteiramente assimilada – somente
cheguei a ouvir o pai falar idish. Os dois filhos e a mãe
não sabiam. Vai ver que ela era goiá (não judia).
38
Em São Paulo me inscreveram na escola judaica
"Talmud Torá", na Rua dos Tocantins (hoje Rua
Talmud-Torá). Descobri então que os judeus tinham
além do idish outra língua – o hebraico.
Eu sentava em uma carteira, no mesmo banquinho com
Bernardo Goldsvaig, amigo meu desde então, sobre
quem ainda contarei. Em hebraico já estavam na letra
"samech" da cartilha que estudávamos – sis (pássaro),
sus (cavalo). Não me lembro como aprendi as letras
anteriores, mas cheguei até a última letra do alfabeto
hebraico "tav", na lição "Tamar ve´atamarim" (Tamar e
as tâmaras).
Em uma das aulas cochilei debruçado sobre a carteira. O
"moire" (professor, versão idish de "moré" em hebraico),
um moço de capa preta, chapéu Charlie Chaplin e
barbichinha pontuda, me despertou com uma chapada
estridente no cangote (a verdade seja dita: não doeu
nada). Estupefato e chocado, me levantei do banco, e
sem dizer uma palavra fugi para casa, para não mais
voltar... A segunda e última vez que fugi da escola.
Mais um ano se passou e lá vou eu novamente, sozinho,
me inscrever na escola próxima à nossa casa – Grupo
Escolar Marechal Deodoro, casarão de dois andares,
ocupando quase um quarteirão na Rua dos Italianos.
Uma das primeiras escolas primárias municipais em São
Paulo, construída no inicio do século XX, no estilo
clássico dos prédios municipais da época.
Os alunos entravam na escola pelo portão na Rua
Anháia, que conduzia ao pátio de recreio, um terreiro
enorme. Ao ouvir a campainha, os alunos se ordenavam
de acordo com suas classes em lugares previamente
39
marcados, em colunas paralelas de dois, como em uma
parada militar, voltados para um mastro, no qual se
hasteava o pendão nacional, na presença dos professores
e o Diretor da escola. Cantávamos o Hino Nacional ou o
Hino à Bandeira, ou ambos, e em seguida desfilávamos
dois a dois alunos, uma classe atrás da outra, até
entrarmos nas correspondentes salas de aulas.
Quem era o Diretor? O nosso já conhecido prof.
Theodomiro Monteiro do Amaral. Eu não o conhecia
anteriormente, e somente bem mais tarde vim a saber de
suas ligações com o escotismo e o Hashomer Hatzair.
Quando o Shomer de 1939 funcionava no Renascença,
ele o registrou como se fosse uma tropa de escoteiros em
formação que ele estava organizando e de vez em
quando até comparecia às peulot (atividades) para
observar, sem jamais ter-se intrometido ou proferido
sequer uma observação. Tenho a impressão de que tinha
conhecimento das finalidades do Hashomer Hauzair e
simpatizava com elas.
Não sei quando chegou ao cargo de Diretor do Grupo
Escolar Marechal Deodoro. Sei apenas que introduziu na
escola
uma
verdadeira
reforma
educacional,
determinando com seu exemplo pessoal o modelo do
bom relacionamento com os alunos; comportamento
este que os professores imitaram. Pessoa austera e
carismática, que falava com calma e voz aveludada, mas
de uma autoridade indiscutível. Eficiente, elegante,
delicado, se dirigia aos alunos, que eram crianças, como
"o senhor", "a senhora". Professores e alunos o
admiravam e respeitavam.
Nas vésperas do Dia do Descobrimento do Brasil (21 de
40
Abril), o prof. Theodomiro convidou todas as escolas do
Bom Retiro a participar na comemoração da data a se
realizar no terreiro da escola. Também a Escola
Renascença foi convidada e eu, o tocador do tamborim
na banda, me encontrei num dilema difícil.
Em um dos horários de recreio vi o prof. Theodomiro
passeando pelo terreiro, como de costume, para observar
os alunos brincando. Não sei de onde eu – menino
pequeno, magricela e encabulado até as vísceras –
peguei a coragem de me dirigir a ele.
"Professor Theodomiro, o senhor me dá licença de fazerlhe uma pergunta?". Minha voz soou fininha como a de
uma menininha e por dentro eu tremia feito uma vara
verde.
"Com prazer: pergunte", respondeu. com um sorriso
fascinante que desfez meu temor e me fez sentir à
vontade, cheio de confiança em mim mesmo. Recuperei
minha voz natural e lhe expliquei meu conflito: sinto
obrigação de comparecer à comemoração em companhia
de meus companheiros de classe, porém eu frequento um
clubinho que se reúne aos domingos na Escola
Renascença e lá toco tamborim na banda. Na classe
ninguém perceberá minha ausência, mas na banda sou
imprescindível, pois a mim cabe dar o ritmo da banda e
o passo do desfile.
O Diretor, com um sorriso compreensível e amistoso,
deu o seu consentimento e me desejou sucesso no
tamborinar.
*
No dia da comemoração os alunos da Escola
Renascença, todos de camisa branca e saia ou calça
41
azuis, saíram em desfile bem organizado, da escola na
Rua dos Bandeirantes, atravessaram a Rua Ribeiro de
Lima e percorreram toda a rua principal do bairro, a
famosa José Paulino, até entrarem pelo portão da Rua
Anhaia no terreiro do grupo escolar. Durante todo o
trajeto caminhei atrás da baliza, menina ágil que abria a
marcha saltitando em passinhos coreografados na frente
da banda e agitando energicamente um bastão. Em
seguida desfilava a banda e o restante da escola. Apesar
de ser a manhã de dia feriado, o barulheira da banda
atraiu à rua judeus e demais moradores do bairro, que
aplaudiam ritmicamente o nosso desfile, que julgo ter
sido a primeira e última demonstração cívica escolar
judaica nas ruas de São Paulo.
Eu, empanturrado de orgulhoso, marchei como
soldadinho de chumbo, repicando fortemente "tam! tamtararam-tam-tararam-tam-tararam tam tam!".
*
Estudamos no quarto ano primário com o professor Luiz
Braga. Se não me engano, o único professor do sexo
masculino na escola. Mulato baixinho de cabelos
grisalhos encarapinhados, tipo patriarcal, querido pelos
alunos. Ele costumava registrar em fichas pessoais para
cada aluno as notas obtidas nas aulas e nas provas. No
fim do mes distribuía as fichas aos alunos, para que as
examinassem.
Em Abril, o professor Braga anunciou solenemente o
nome do aluno que havia se distinguido no mês:
António.
Verifiquei minha ficha e percebi que havia um erro na
soma da coluna do mes. Ergui a mão para chamar a
42
atenção do professor, levantei-me, me encaminhei ate
ele e estendendo-lhe a ficha disse que achava ter
ocorrido erro na soma. O professor pegou a ficha para
conferir os dados.
"O sr. Nochum tem razão", falou dirigindo-se à classe,
"Houve um engano no cálculo e pelo jeito ele é o aluno
de distinção do mês. Meus parabéns!", proferiu em voz
alta e me devolveu sorridente a ficha corrigida.
De volta à minha carteira, que ficava na última fila, ao
passar ao lado de Antônio, com quem mantinha muita
amizade, dei-lhe uma piscadela de peralta, sem nenhuma
intenção especial.
Para quê, meu Deus? O professor deve ter reparado
nisso, pois imediatamente se pôs em pé e me repreendeu
violentamente. Entre outras pérolas de sua catalinária me
acusou de ser "um estrangeiro ingrato, que prefere
desfilar com seus patrícios e não com seus colegas de
classe, brasileiros legítimos", etcétera etccétera
etccétera... Não mencionou nenhuma vez sequer a
palavra "judeu" ou semelhante, mas foi o discurso mais
anti-semita que ouvi no Brasil.
Profundamente ofendido, levantei-me com a ficha na
mão, me aproximei da mesa do professor e a joguei com
desprezo sobre ela, declarando com a voz mais resoluta
de que era capaz "renuncio às suas distinções!". Voltei
para me sentar na minha carteira, de braços cruzados,
cerrando meus lábios com zanga.
*
O professor não teve tempo de reagir, devido ao toque
do sinal redentor anunciando o intervalo. Os alunos se
levantaram e correram ao recreio no terreiro. O professor
43
saiu da classe.
No pátio, o servente da classe me procurou. Pessoa
magra, calada, muito humilde e servil, que ficava
sentada no canto na sala de aula para manter o silencio e
a disciplina na aula. "O Dr. Diretor pediu para o senhor
comparecer ao seu escritório".
Não sabia o que pensar, mas fui atrás do servente, que
me conduziu ao segundo andar, onde jamais estive nem
anterior nem posteriormente, até o escritório do prof.
Theodomiro.
A porta estava semi-aberta e eu fiquei parado no umbral.
Ao ver-me, o Diretor se levantou, aproximou-se de mim
e me encaminhou à cadeira em frente à sua poltrona,
pousando a mão gentilmente em meu ombro. Perante tal
gesto de gentileza, perdi meus receios e me senti à
vontade.
"Senhor Nochum (no ginásio mudei meu nome para
Nahum), porque o senhor se recusou a receber a
distinção do mês da classe?"
Relatei o ocorrido com minha ficha, o discurso do
professor e conclui que não necessitava de honrarias de
um anti-semita. Finalizei observando "espero que o
senhor se recorda da licença que me concedeu para
desfilar com a minha banda...".
O prof. Theodomiro me ouviu atenciosamente sem
proferir uma palavra.
"Senhor Nochum, de mim o senhor aceita uma
presentinho?", e antes que eu pudesse responder
ofereceu-me um livrinho de capa dura – cartinha de
historietas para crianças.
44
"Eu aconselho ao senhor ler o conto que sinalei com um
papelzinho", disse e se levantou para me acompanhar até
a porta, pousando novamente a mão em meu ombro e me
aproximando a ele. Me senti no sétimo céu.
*
Na primeira página, com letras miudinhas arredondadas
bem legíveis, estava escrito "A Nochum Mandel, o aluno
de distinção em sua classe no mês de Abril", assinado:
"prof. Theodomiro Monteiro do Amaral, Diretor do
Grupo Escolar Marechal Deodoro, São Paulo" e a data.
Este livrinho é o livro mas valioso que possuo.
*
Em casa li o conto marcado com o papelzinho:
O pobre e o rico
Pobre em um vilarejo na Europa, encontrando-se em
situação financeira precária, lembrou-se de um amigo de
escola que era muito rico e resolveu pedir sua ajuda, um
empréstimo. Ele se dirigiu à casa do amigo, verdadeiro
palácio, e bateu na porta.
A porta se abriu e apareceu o amigo, que sem o convidar
a entrar lhe perguntou com rispidez o que queria. O
pobre, coitado, não pôde nem responder, porque o ricaço
o mandou embora, e quando ele se afastou, lhe atirou
uma pedra a fim de afugentá-lo.
Sem recursos para se sustentar, o pobre homem imigrou
para a América, e ali seu destino mudou. Teve sucesso e
se tornou riquíssimo.
Os anos foram passando e o novo magnata, afetado por
nostalgia de seu vilarejo natal, decidiu visitá-lo. Os
habitantes lhe prepararam uma recepção pomposa, na
esperança que o "filho pródigo" tão abastado contribuísse
de sua fortuna ao local.
Todo o mundo compareceu à estação, a começar pelo
45
Prefeito, o padre da paróquia e a Banda do Corpo de
Bombeiros. O visitante percorreu a multidão com os
olhos e não deparando com seu antigo amigo ricaço,
indagou por ele.
"Está na prisão", e lhe contaram que se complicou nos
negócios, perdeu a fortuna, e tentou desfalcar o banco.
Acabou na calabouço.
"Posso vê-lo?". "Pois não!" e o Prefeito em pessoa o
levou até a prisão, que não ficava longe.
O nosso visitante-magnata encontrou o antigo colega rico
de escola no canto de uma cela em penumbra, com barba
por fazer, em vestes miseráveis, deitado de bruços em
um catre, todo acabrunhado.
O visitante tirou uma pedra de um saquinho que portava
pendurado ao pescoço e a colocou no chão.
"Toda a vida guardei esta pedra para lhe jogar de volta e
agora que poderia fazê-lo, tenho pena de você".
*
Em minha primeira visita ao Brasil, depois de viver em
Israel 27 anos, não podia deixar de visitar o Grupo
Escolar em que estudei. Encontrei tudo como deixei – o
mesmo casarão e enorme terreiro. Como era intervalo de
recreio, estava repleto de crianças brincando com bolas,
pulando corda e jogando pedrinhas – exatamente como
no meu tempo. Até as professoras tagarelando nos
corredores me pareciam as mesmas. Apenas não
encontrei o prof. Theodomiro. Perguntei por ele à
Diretora, que me recebeu atenciosamente, e fui por ela
informado que ele estava internado em um asilo de
velhos, com amnésia, sem reconhecer a ninguém. Ela
estava disposta a me dar o endereço. Recusei. Preferi
recorda-me dele como o conheci em minha juventude –
educador probo, personalidade imponente, mitológica,
46
que hoje chamaria de "Janós Korczak brasileiro".
O professor Theodomiro Monteiro do Amaral (19001981) era muito conhecido, não só por suas atividades
normais no magistério oficial, mas, principalmente pela
sua atuação em favor do escotismo nas escolas.
Diplomado em 1920 pela antiga Escola Normal da Praça
da República, alem de diretor do Marechal Deodoro foi
diretor de outros grupos escolares. Foi promovido a
inspetor escolar e eleito vereador à Câmara Municipal de
São Paulo.
Diplomado pelo curso de chefes da antiga Associação
Brasileira de Escoteiros, veio a ocupar posições de alto
destaque na direção do escotismo bandeirante"
(Informações recolhidas da Google. NM).
Outros acontecimentos em 1939
Creio que o acontecimento mais marcante que presenciei
em 1939 foi o quando voltava certo dia para casa do
grupo escolar: a rua José Paulino estava um reboliço de
mulheres nuas, e soldados e civis abraçando-as e rindo.
Um Carnaval surrealista! As lojas estavam cerradas e
tive que entrar em casa pelo corredor do quintal.
Havia necessidade de erradicar o bas-fond (a Rua dos
Tibiriçás) na vizinhança do Viaduto do Chá e do Teatro
Municipal, a fim de construir a Avenida Anhangabaú. O
Interventor do Estado Adhemar de Barros e o Prefeito da
cidade Prestes Maia decidiram que o local mais
apropriado para abrigar as mulheres-da-vida que
habitavam aquele antro de perdição (policiais e soldados
ali entravam somente como clientes) era o Bom Retiro, o
bairro dos judeus.
As ruas Itaboca (hoje Prof. Cesare Lombroso) e Aimorés,
paralelas a José Paulino, foram as escolhidas para essa
47
finalidade, e em uma madrugada, sem aviso prévio aos
residentes e muito menos às prostitutas, elas foram
levadas em camburões, muitas delas nuas, e atiradas ali.
A cena dantesca que presenciei visava obrigar os
moradores destas ruas a evacuar suas residências.
*
No início os judeus tinham receio da invasão diária todas
as tardes de milhares de homens e soldados para
frequentar "a zona do confinamento", mas aos poucos
acabaram se acostumando. Em se tratando de adaptação,
não há como os judeus...
Encontrei minha mãe apavorada. Ela correu ao meu
encontro, me abraçou e me introduziu em casa.
"O que está acontecendo?", perguntei.
"Prostitutkes...", nunca ouvi antes tal palavra e perguntei
a mamãe o que ela queria dizer.
A nossa conversa continuou na sala de jantar, sentados
ao lado da mesa. Mamãe me explicou sem muitos
rodeios o que era uma "prostitutke", palavra que
pronunciava como se fosse segredo. Entre nós, desde
pequenino eu conhecia a palavra "puta", da expressão
muito usada entre a molecada "vai para a puta que o
pariu", o que não quer dizer que entendia o significado
das duas palavra que começam com "p". Depois da
explicação elucidativa de Mamãe compreendi melhor
como a "cegonha" nos trouxe ao mundo. Vai ver que eu
era mesmo um menino caseiro e ingênuo.
Mamãe fez uma dissertação sobre doenças venéreas e
me preveniu contra elas. Falou de moral e pureza sexual.
Não senti em sua voz o mínimo pudor ou
constrangimento. Foi a primeira, última e única lição de
educação sexual que recebi em casa, porque sexo e
48
pornografia eram tabu nas conversações da família.
Foi esta também a primeira vez que minha mãe falou
sobre as pobres jovens judias que eram convencidas a vir
"trabalhar na América", sem que elas tivessem a menor
ideia de qual era o "trabalho" – a prostituição. Nunca vi
minha mãe tão comovida como quando falou deste
assunto e me contou que havia uma organização judia, a
"Migdal", que importava estas infelizes da Europa para o
continente americano, para vendê-las aos bordéis.
Pela Google fiquei sabendo das "polacas", como eram
chamadas as prostitutas judias, e da organização "Zvi
Migdal", sindicato de cafetões judeus com sedes em
Nova Iorque, Buenos Aires e Varsóvia, que se ocupava
desde os fins do século 19 com o tráfico de jovens judias.
Esta máfia foi dissolvida apenas em 1939.
Li sobre o tema reportagens de pesquisadores modernos,
também brasileiros. A primeira leva de sessenta e sete
"meretrizes estrangeiras" desembarcou no porto do Rio
de Janeiro em 1867, e outras 37 seguiram para Argentina,
(Dados baseados em artigo de Beatriz Kushnir, historiadora judia,
diretora do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro e autora de Baile de
Máscaras).
Como eram afastadas da coletividade judaica, fundaram
Associações Israelitas de Beneficência (as primeiras
organizações judaicas de auxílio mútuo no Brasil), suas
próprias sinagogas e seus próprios cemitérios: o
Cemitério Israelita de Inhaúma no Rio (em 1906) e o
Cemitério Israelita de Santana, em São Paulo (nos
meados da década de 1920).
O episódio das "polacas" é uma das páginas mais
deprimentes e vergonhosas da história judia (Que
fizeram as coletividades judaicas por essas jovens, além
de excomungá-las?). Somente nos últimos anos a
49
investigação séria do assunto despertou a atenção da
coletividade.
*
Minha Shoshana ("Suzana Spilberg, a "Suzana da
Bahia") me contou que de mocinha foi com amigas
"fazer campanha" (arrecadar contribuições) para o Keren
Kayemet em casas de familias judias. Elas bateram na
porta de uma senhora judia bem abastada, a julgar pelo
palacete em que morava, que as recebeu com muita
simpatia, as ouviu com atenção e contribuiu com uma
soma considerável.
Quando Suzana relatou ao seus pais o seu sucesso
econômico, eles ficaram horrorizados e a preveniram
para que nunca mais entrasse na casa desta cafetina...
O "Shomer" de 1942
Entre os documentos que Urtzi me mandou encontrei
referências à tentativa de reativar reuniões do Hashomer
Hatzair na Escola Renascença, apesar da proibição
vigente de atividades "estrangeiras" deste tipo. Urtzi
descreve em um de seus relatórios que o professor
Vainer, diretor da escola, lhe disse "se vocês têm
coragem, eu lhes dou permissão". Pessoalmente não sei
nada deste acontecimento, além do que li no relatório.
Não sei se o Hashomer Hatzair chegou a atuar na escola,
como e por quanto tempo.
Lembro-me apenas de que se organizou então um
seminário para formar professores de hebraico. A
maioria dos alunos era constituída de diplomados pela
Escola "Luiz Fleitlich", que falavam correntemente o
hebraico.
50
A Escola Israelita-Brasileira Luiz Fleitlich, fundada em
1937 no bairro de Brás, bairro com muitos residentes
judeus, era concorrente da Renascença, e tirou dela vários
professores, entre eles o muito reputado professor
Shoichet. O prédio foi demolido nos meados da década
de 1970, a fim de dar lugar a uma estação do metrô.
O único contato que tive pessoalmente com o seminário
(eu não falava o hebraico) de que me recordo claramente
foi participar como convidado (não me lembro como,
por quem e porque) a uma aula de gramática da língua
idish que Elias Lipiner deu (até me
lembro do tema: "a concordância de
gêneros no idish"). Dissertação muito
interessante e bem exposta que me
abismou, pois não imaginava que esta
língua tivesse gramática.
O Elias Lipiner, rapaz ruivo, muito instruído, era
emigrante da Bessarábia e.lecionava no seminário.
Mudou-se para o Rio de Janeiro, onde foi Diretor de
"AONDE VAMOS?", revista judia em português.
Formou-se em Direito e veio viver em Israel, onde abriu
um escritório de advocacia nos moldes do que tinha em
São Paulo, que se especializou no trato de causas
jurídicas de brasileiros residentes em Israel. Pelo Google
tomei conhecimento de uma série de livros que escreveu
sobre os judeus no Brasil e assuntos relacionados.
51
Capítulo 5 – O Departamento Juvenil
O grupo de Noé
Em meados de 1943 Noach Feiguelman me convidou a
participar nas reuniões matinais de jovens
aproximadamente de minha idade, 16 anos, que
acontecia semanalmente na sede do Centro Hebreu
Brasileiro, em um sobrado nas proximidades do Cinema
Lux, no começo da Rua José Paulino, a principal rua
comercial do bairro Bom Retiro. Na primeira vez que
compareci fiquei conhecendo Benjamim Raicher, Pola
Szwartztuch, Samuel Oksman, Chana Iloz e mais um
jovem, de quem não me recordo, talvez por não ter
continuado a frequentar as reuniões.
Ao contrário de mim, que morava no Bom Retiro e a
única língua que conhecia além do português era o idish,
eles vinham do bairro de Brás, eram alunos da Escola
Luiz Fleitlich, falavam o hebraico correntemente e
tinham vasto conhecimento de assuntos judaicos.
Durante os meses subsequentes éramos um grupo de seis
jovens orientados por um adulto, Noach Feiguelman.
Antes de prosseguir minha narrativa, permitem-me
apresentar seus figurantes.
• Noach Feiguelman, loirinho magro, de estatura
mediana e aparência atlética, sempre me impressionou
muito: um sorrisinho discreto jamais abandonava sua
face e era dono de uma fala afável - jamais o ouvi
levantar a voz ou fazer algum movimento brusco. Era
a calma personificada, com carisma inato. Apesar de
ter sido educado na Polônia no movimento juvenil
sionista Gordônia, no Brasil se tornou desde 1935
ativista no Hashomer Hatzair. Sua caraterística mais
52
notável era a pontualidade, não somente em ralação ao
tempo (jamais atrasava), e sim na mais ampla extensão
da palavra.
Para mim era um ídolo, o modelo mais representativo
de escoteiro e shomer. Homem de honra e de palavra.
Se Urtzi foi quem me encaminhou ao Hashomer
Hatzair, a Eretz-Israel e ao kibutz, Noach foi para
mim, depois de minha mãe, quem me imbuíu as
concepções humanistas e morais que me acompanham
até hoje. Quanto à minha indoutrinação ideológica,
socialista e sionista, a devo a Isaac Takser, a quem me
referirei.
*
Em 1950 Noach fez alyiá à Israel Foi ao kibutz
Ruchama, com sua mulher Chana (Chantse) e duas
filhinhas. Ttrabalhou na carpintaria, profissão que
aprendeu na hachshará na Polônia, e parecia ser o
homem mais feliz do mundo, que realizou todos seus
sonhos. Mas (sempre tem um "mas" desmanchaprazeres!), Chana não se adaptou à vida kibutziana e
obrigou a família a voltar ao Brasil.
*
Quando depois de 27 anos em Israel, visitei com minha
Shoshana pela primeira vez o Brasil, encontrei o Noach
em sua lojinha de armarinhos na Santa Ifigênia. Ele nos
recebeu efusivamente, mais de repente entristeceu e
sentou-se em banquinho, todo deprimido. Acomodei-me
a seu lado e conversamos. Ele me falou de sua nostalgia
à Israel e da saudade que tinha de Ruchama, "onde viveu
o ano mais feliz de sua vida". Ele me confessou que sua
única aspiração na vida era voltar a Israel, ao kibutz e à
53
carpintaria. Não voltou...
• Benjamin Raicher, todo rechonchudo, dono de um
charme todo especial, que o salientava no grupo. Foi
um dos fundadores do movimento juvenil sionista
"Dror" em São Paulo. Veio a Israel, ao kibutz Bror
Chail, onde preencheu as funções mais centrais do
kibutz, mas o abandonou (se não me engano, devido a
problemas de saúde). Trabalhou em Tel-Aviv na
Olivetti, da qual foi representante no Brasil durante
muitos anos. Era casado com Chana, filha do Rabino
Tzikinovski, do Rio de Janeiro.
• Pola Szwartztuch, sobrinha de Noach, loira alta e
esbelta, culta e simpática – a beldade dentre as jovens
que conheci – se afiliou ao Hashomer Harzair e foi
enviada a participar no primeiro Curso de Madrichim
(instrutores) que o Departamento da Juventude da
Agencia Judaica organizou em Jerusalém. Foi uma das
primeiras madrichot de tzofot e ativista saliente no
ken. A única mulher na primeira Moatza (direção).
Não se incorporou em nosso primeiro garin aliá como
era de esperar, por motivos familiares.
• Samuel Oksman, já o conhecia mais ou menos de
antes, por ser filho de amigos de meus pais. Gordinho
bonachão, com quem eu me dava muito bem. Quando
terminou o Seminário de Professores de Hebraico na
Escola Renascença, partiu para lecionar o hebraico em
Recife. Desde então eu não soube mais dele.
• Chana Iloz, de belas feições espanholas, bem
54
acentuadas, era de origem sefaradita. A primeira que
conheci desta etnia, da qual jamais havia ouvido antes.
Muito instruída e introspectiva, veio morar em Petach
Tikva, mas não consegui localizá-la, apesar do contato
que minha irmã tinha com ela.
Devo esclarecer que conhecia judeus poloneses, russos,
"litvikes" (da Lituânia), rumenos e "bessaraber" (da
Bessarábia, sem fazer ideia onde ficava). Havia também
"galitsianer", provindos de Galícia, Encontrei no meu
atlas a Galícia na Espanha, mas aprendi nas aulas de
português que quem nasce lá é galego. Só em Israel
descobri a Galícia dos galitzianer, ao sudeste da fronteira
da Polónia..
Dos "hungaricher" (da Hungria) fiquei sabendo quando
minha tia Guita se casou com um judeu nascido em
Budapest, minha tia Dintze se casou com "rumenisher"
(da Rumania) e quando minha tia Branca se casou com
um judeu da Alemanha fiquei sabendo que existem
judeus "iekes", que mantêm em São Paulo uma
congregação muito bem estabelecida, a CIP
(Congregação Israelita-Paulista). Assim que graças aos
casamentos de minhas tias aprendi etnologia judaica.
A palavra "judeu" tem em português uma conexão pejorativa (judiar), e
muitos judeus preferiam defenir-se como "israelitas", ou "hebreus", termo
mais conceituado. Eu sempre me defini (com orgulho!) como "judeu".
Mamãe me contava que em Luck havia uma sinagoga
especial de uma colônia de judeus – caraítas – que não
eram propriamente judeus. Nunca encontrei um caraíta
no Brasil.
Sefaradim (Sefaraditas), judeus oriúndos da Espanha,
teimanim do Yemen, Bnei-Brit da India, falashim da
Etiópia, parsim do Irã, marroquinos e dai por diante, tive
amplo conhecimento deles somente em Israel. E tem
mais: em minha opinião, o povo judeu é o povo mais
miscigenado do mundo, o que explica sua evolução
genética.
55
• Finalmente, eu mesmo, Nahum Mandel, que ficarão
conhecendo melhor ao decorrer deste livro.
*
As reuniões de nosso grupo transcorriam mais ou menos
nos mesmos moldes das sichot (conversações) no
"shomer" que participei na casa em frente da moradia de
meus avós na Rua da Graça, com a diferença que desta
vez as dissertações e os debates tomavam a maior parte
do tempo. Os temas estavam sempre relacionados a
Eretz-Israel. Tratava-se de um grupo sionista por
excelência.
*
Nesta época comecei a colecionar selos usados, e
economizava cada tostão que obtinha para comprá-los
em uma lojinha filatélica de um sírio-libanês na Rua
Mauá, além da Estação da Sorocabana. Qual não foi
minha surpresa quando um dia me deparei com dois
selos da Palestina(E"I): um com a Torre de David e o
outro, a Tumba de Rachel. Desta forma fiquei sabendo
que Eretz-Israel não ficava no céu, como o Gan-Eden
(Jardim de Eden).
Meus pais eram judeus tradicionais, com forte lastro,
entretanto não me parece que eram sionistas. Em casa
somente se referiam à Eretz-Israel bíblica e antes dos
meados de 1946 nunca se falou de Palestina.
As reuniões do grupo de Noé (nome de Noach em
português) me revelaram um mundo desconhecido, o
judaísmo. Sendo o único participante do grupo que não
sabia hebraico e desconhecendo a maioria dos temas que
abordavam, eu ficava calado, absorvendo cada palavra
que se falava.
56
Entre os presentes que ganhei na comemoração do meu
bar-mitzvá, destacou-se o livro Flavius Josefus de Lion
Feuchtwanger. Nunca li um livro com tanto interesse,
curiosidade e avidez. Até então eu sabia a respeito dos
judeus apenas os contos bíblicos e as narrativas que meu
avô me contava. Conhecia a versão dos cristãos católicos
de Jesus Cristo: como Judas Iscariotes o denunciou e os
judeus convenceram Pilatos a crucificá-lo. Aqui
terminava minha História dos Judeus, para recomeçar
com os pogroms na Rússia Czarista.
Meu pai falava frequentemente do Processo Beilis, que
ocorreu na Rússia de 1911 em Kiev (hoje Ucrâina).
Menachem Mendel Beilis foi acusado de matar um
menino de 12 anos para usar seu sangue na fabricação de
matzot (pão ázimo de Pessach).
Ele foi defendido pelo famoso advogado alemão, dr.
Gruzemberg, que obteve sua absolvição depois de três
anos de prisão e graças a isso o seu nome ficou registrado
em uma rua em Tel-Aviv.
Papai tinha 13 anos quando começou o julgamento, e ele
acompanhou empolgado o noticiário. Papai nunca
esqueceu nenhum detalhe e até quando velho, se referia
ao processo.
Método de estudo
Eu estava agoniado com a deficiência de meu
conhecimento do judaísmo, em comparação aos outros
chaverim (companheiros) do grupo. Senti-me impelido a
preencher a lacuna e foi daí que desenvolvi um método
autodidático de aprendizagem, constituído de um
sistema de pesquisa que se adiantava por mais de meio
57
século os links empregados na Internet pela Google e a
Wikipédia. Se eu tivesse então patenteado minha
invenção e garantido o registro do copyright, hoje estaria
rico como Bill Gates.
Era trabalho fatigante, mas muito simples. Em uma
caderneta de bolso anotei lista de palavras que conhecia
correlacionadas ao judaísmo: Bíblia, Jerusalém, pogrom,
Paraíso, Deus, Sábado, rabino, sinagoga e assim por
diante. Comecei a frequentar quase que diariamente a
Biblioteca Municipal de São Paulo, a fim de obter
informações sobre estas palavras. Enciclopédias não
havia necessidade de encomendar, como de praxe aos
outros livros em geral, pois estavam disponíveis na sala
de leitura. Eu procurava pela mesa mais próxima da
estante que abrigava os vinte ou mais volumes da
Grande Enciclopédia Larousse em português. Cada vez
pegava um volume para consultar a palavra que me
interessava, e marcava na minha caderneta toda palavra
nova (para mim) que encontrava no item, que poderia
me servir de link para nova pesquisa. Assim cheguei
às cruzadas, Inquisição, Maimônides (Rambam),
Yehuda Halevy, Ibn Gabirol, Rashi, Avicena, Cabalá,
Nabucodonossor, Saadia a'Gaon e mais, e mais...
Eu costumava frequentar a casa de meu grande amigo
José Waldemar Kochen a fim de ler o "Tesouro da
Juventude", também com uns 20 volumes, arrumadinhos
em uma pequena estante destinada somente a eles, ao
lado da cabeceira da cama. Creio que acabei lendo todos
os volumes, e me tornei uma enciclopédia ambulante,
com vastos conhecimentos, que diria universais.
Eu lia então em velocidade vertiginosa. Tenho a
58
impressão que dos 11 aos 21 anos consegui ler uns 90%
de tudo que li em toda minha vida, sendo os restantes
10% geralmente livros técnicos. Romances e livros de
ficção li relativamente poucos.
Tornei-me de ignorante de temas judaicos em
conhecedor abalizado. No ambiente que frequentava era
considerado um dos mais autorizados e conceituados.
Kvutzá A.D.Gordon
Como disse, no início éramos seis e assim continuamos
a atuar durante uns meses. Aos poucos se foram
incorporando novos frequentadores. O crescimento
dramático do grupo ocorreu quando convenci os amigos
de minha irmã na gafieira do Salomão a aderir ao grupo.
Eu tinha amigos somente no Ginásio do Estado e todos
eram judeus. Fiz amizades com alguns alunos goim da
minha classe, que não se estenderam além do ginásio.
Minha irmã, ao contrário de mim, era super-sociável.
Tinha amizades em todo Bom Retiro, tanto judeus como
goim.
Uns dos círculos de suas amizades era a gafieira do
Salomão, na Rua Silva Pinto, perto da Rua Três Rios.
Salomão Charach e sua irmã Beti transformaram um
porão sem iluminação elétrica em gafieira. Arranjaram
um gramofone (toca-discos manual) bem primitivo,
discos, e a turma vinha dançar danças de salão: sambas,
rumbas, congas, maxixes, valsas, marchinhas, foxtrotes.
Minha irmã Rosinha conseguiu me levar para lá, e de
vez em quando continuei a frequentar o local. Foi lá que
conheci a Maria Hudler, menina ruiva, dinâmica,
59
inteligente, sensual. Sempre a considerei a moça mais
intelectual que conheci no Brasil e uma grande amizade
se despertou entre nós. Foi ela quem me
ensinou a dançar e geralmente era minha
parceira em bailes. Não me recordo de
ter dançado com outras, mas não diria
que foi minha namorada; naquela época
eu não tinha cabeça para essas coisas,
Por curiosidade, a primeira música que aprendi a dançar
com a Maria: "Amor, amor, amor / nasció de ti / nasció
de mì/ de la esperanza"...
Para registro protocolar, eis os nomes dos que
frequentavam a gafieira do Salomão, alem dele e sua
irmã Beti. Isaac Murachovski, Max Kianovski, Baruch
Goldsvaig, Poty (Adolfo Blecher), Boris Berezin, Jayme
Volich, e as vezes o Américo Plut e eu (nos últimos
tempos). De moças me recordo: minha irmã Rosinha, a
Beti Charach, Clara Murashovski, Dora Griner, Sônia
Dreizenstok, Riva Shepshelevich, e de outras três, cujos
nomes não me recordo. A Maria Hudler começou a
aparecer na mesma época que eu.
Com a adesão do pessoal da gafieira, o nosso grupo de
Noé (Noach em português) dobrou. Era uma turma
danada da fuzarca e Noach com sua paciência de santo
conseguiu domá-los a se comportar durante os debates
de nossas reuniões.
Ao atingirmos o número de 30 participantes, Noach
achou chegada a hora de dar um nome ao nosso grupo.
Concordamos com ele. Noach propôs "Kvutzat
A.D.Gordon" e ninguém se opôs. Não era para menos,
pois o Noach apesar de jamais se impor, não tinha
60
necessidade de fazê-lo, pois suas posturas eram sempre
acatadas.
O nome que escolheu não nos deve surpreender, pois
como já disse, ele se educou no movimento Gordônia.
Noach comprou um livro de capa dura e páginas brancas
sem linhas, destinado a dedicatórias. Ele propôs que o
livro ficasse à disposição dos membros do grupo que
quisessem escrever seus pensamentos ou observações
relacionadas com a atuação do grupo.
Noach, sabendo de minha inclinação ao desenho, me
pediu ilustrar a capa e a primeira página e formulou em
uma folha de papel os textos, em hebraico.
Eu levei muito a sério o seu pedido e caprichei na tarefa.
Na capa desenhei "Kvutzá A.D.Gordon". Digo desenhei
porque não sabia escrever em hebraico, e copiei as letras
do machzor (livro de rezas), presente de meu avô no
meu bar-mitzva. Na primeira página copiei o título,
desenhei um chalutz arando um campo, e ao lado, em
três linhas desenhei "Am echad, safá achat, moledet
achat" (um povo, uma língua, uma pátria).
Este lema me impressionou. Atualmente ele não me
agrada – me cheira "Deus, Pátria e Família" do fascismo
de Mussolini.
O Departamento
O Centro Hebreu Brasileiro onde nos reuníamos mudouse para um prédio de vários andares (me parece que 4)
na Rua Prates, perto da esquina com a Rua José Paulino,
bem em frente do Jardim da Luz. A Direção do Centro
concordou que continuássemos a nos reunir em sua nova
61
sede e até colocou à nossa disposição um andar inteiro –
salão enorme e dois quartos – com a condição de
elegermos uma diretoria e que em suas reuniões
participasse como assistente, sem direito de voto, um
membro da direção do Centro, o professor de hebraico
Citman. Achamos razoáveis estas exigências e as
aceitamos.
Na reunião eleitoral, com a participação de todos os
membros, todo mundo falou e deu propostas. Não houve
votação. Eu fui aclamado como Presidente-fundador
(este foi o título que me foi conferido...) e para a
Diretoria foram designados além de Noach, Abraão
Zajdens e Henrique Rosset, membros novos no grupo.
Não me recordo de quem mais. Acredito que a Pola.
Quase que imediatamente após as eleições Noach se
casou e deixou de vir ao Departamento. Também o
Benjamin Raicher, dos participntes mais salientes do
grupo, ausentou-se sem dar nenhuma satisfação. Soube
mais tarde que foi um dos fundadores do Dror em São
Paulo.
Por um lado o grupo cresceu vertiginosamente. Em
menos de meio ano chegou a contar 120 membros, de
idades entre 17 a 20 anos. Por outro lado esquecemos o
nome de "Kvutzat A.D.Gordon" e passamos a nos
chamar "Departamento Juvenil do Centro Hebreu
Brasileiro", ou simplesmente "O Departamento".
Não se tratava apenas de mudança de nomes – houve
afastamento dos conceitos do sionismo. Continuamos a
ser um agrupamento judaico, com simpatia moderada
pelo sionismo, mas deixamos de ser um clube sionista.
62
1944 - Departamentp Juvenil Centro Hebreu-Brasileiro de São Paulo, em Horto Florestal.
1. José Waldemar Kochen – 2.Nahum Mandel – 3.Tobias Gross – 4.Sonia Dreizenstok –
5.Michel Lando – 6.Adolfo (Potí) Blecher – 7.Salomao Charach – 8.Boris Berezin – 9.Henrique
Bobrow – 10.Abrão Hudler – 11.Bernardo Goldsvaug – 12.David Kandler – 13.David Kopernik 14.
Moisés Milner – 15. Rosa Mandel – 16.Luiz Schechtman – 17. Clara Morashovski – 18. ????? – 19.
????? – 20. Dora Griner – 21. Betty Charach – 22. ????? – 23.Pola Szvartztuch – 24.David
Szvartztuch – 25.Max Kianoski – 26. Abraão Zaidens – 27,
1944 - Departamentp Juvenil Centro Hebreu-Brasileiro de São Paulo, em Horto Florestal.
1.Isaac Morashovski - 2.Waldemar Sister - 3.Miriam (Nicha) Vilenski 4.Naftali Czeresnia - 5.Pola
Schvarztuch - 6.Max Kianovski - 9.Michel Lando - 10.Nahum Mandel - 11.Henrique Bobrow 15.Oswaldo Kowes - 16.Boris Berezin - 17.Clara Morashovski - 18.Rut - 19.Dora Griner 20.Salomao Charach - 21.Israel Wasserman - 23.Sonia Dreizenstok - 24.Bernardo Goldsvaig 25.Rosa Mandel - 26.Adolfo Blecher (Puti) - 27. Betty - 31.Riva Shepshelevich - 32. Clara
Ossenholz
63
Para fins de registro histórico, eis alguns nomes de
membros do Departamento (não se assustem, não me
lembro de todos os 120...), além dos já citados, inclusive
a turma da gafieira do Salomão: Abraão Zajdens.
Henrique Bobrow, David Kandel, Luiz Schechtman,
Boris Berezin, as irmãs Averbuch, David Szwartztuch
(irmão da Pola), Maria Huler e seu primos e Malvina
Hudler. Miriam (Nicha) Vilenski e seu irmão José,
Osvaldo Kowes, Michel Lando, os irmãos Marcos e
Levy Raisman, os irmãos Snicovski, Efraim Fucs, e bem
mais tarde seu irmão mais velho Itzchak Fucs, e muitos
outros...
Alem da simples vontade dos jovens de se encontrar,
creio que houve dois fatores que contribuíram ao
sucesso do Departamento.
O primeiro foi indubitavelmente a Biblioteca e o
segundo. o time de futebol no Clube Macabi de São
Paulo.
64
A Biblioteca
A minha primeira iniciativa no Departamento foi
organizar uma biblioteca, doando 70 livros meus. O meu
amigo Oswaldo Kowes fez o mesmo.
Antes de narrar como consegui meus livros, pois eu
jamais comprei um livro no Brasil, a não ser um ou
outro, geralmente usados, que necessitava aos estudos no
ginásio, gostaria de escrever algumas palavras sobre
Oswaldo.
Eu o conheci no cursinho preparatório para o ginásio, do
dr. Rodolfo Schraiber. Desde que entramos no Ginásio
do Estado (Pedro II), estudamos durante 7 anos sempre
na mesma classe, tanto no ginasial e como no científico.
Oswaldo frequentava a minha casa e mamãe o apreciava
muito, pois era muito atencioso com ela. Bastava ele
chegar e ela se apressava à cozinha, a fim de preparar
algo para servi-lo, seja um café com bolos, ou uma
refeição.
Quando meus pais moravam em Ness-Siona, em Israel. e
Oswaldo (Asher Covesh em Israel) vinha visitar um
parente seu nesta cidade, dava as vezes um pulinho até a
casa deles, e em diversas ocasiões os convidou a passar
férias em seu kibutz Kfar Szold, no extremo norte do
país, depois de Kiriat Shmoná. Meus pais aceitaram o
convite várias vezes e foram acolhidos com carinho.
Bem! Em São Paulo a Rádio Eldorado (irradiadora das
famosas "horas de saudade", música do folclore
brasileiro, em geral valsas e chorinhos dos bons tempos)
havia de segunda a sexta-feira às tardes um programa
semanal apresentado por Cid Franco; telenovela policial
em capítulos diários e no final se perguntava "quem foi o
65
assassino?". Os ouvintes que concorriam deviam mandar
resposta acompanhada de um saquinho vazio de café
Jardim. Como este café era muito popular, eu e Oswaldo
não tínhamos nenhuma dificuldade de juntar entre
vizinhos e parentes, cada um de nós, uns 10 saquinhos
por semana, e mandávamos com cada um o nome de
outro personagem da novela, mesmo não suspeitando
qual era a solução. Desta forma não havia semana em
que não ganhássemos prêmios, livros da "Série
Amarela" (de Agatha Christie, Edgar Allan Poe e outros
livros policiais) ou da série "Terramarear" (livros de
aventuras de Tarzan, de Emilio Salgari, Karl May, Jules
Verne, Kipling, Stevenson, Mark Twain e outros).
Cid Franco (1904-1971), advogado, poeta e político, foi
deputado em três legislaturas pelo Partido Socialista
Brasileiro, tendo sido cassado em 1964. Publicou
diversos livros de poesia e um dicionário em 3 volumes
de expressões populares brasileiras. Após seu falecimento
deram seu nome a uma escola municipal.
Oswaldo e eu o ficamos conhecendo quando vínhamos
receber os livros que ganhávamos em seu programa
policial e éramos recebidos como velhos clientes.
Certa vez Cid Franco me convidou a participar em outro
programa radiofônico de que era o locutor – competição
de perguntas – e fui premiado com um corte de casimira
azul-marinho. Meus pais mandaram confeccionar dele o
terno de gala, que usei em minha formatura, no meu
casamento e outras ocasiões festivas, durante uns
cinquenta anos...
Colecionei tantos livros que papai teve que comprar uma
estante para livros e como não havia lugar no quarto que
eu compartilhava com minha irmã (tínhamos o mesmo
quarto até que me casei) ela foi colocada na sala de
66
jantar, pois não havia em casa sala de visitas.
O exemplo que Oswaldo e eu demos induziu outros
membros do Departamento a doar livros (não em
quantidade como a nossa) e a biblioteca foi se
avolumando, tornando-se concorrida e conceituada –
quase todos os membros emprestavam livros dela para
ler em casa. Como não pagávamos aluguel e
praticamente não tínhamos despesas, as mensalidades –
"maschotche" (solecismo de "mas-chodshi", taxa
mensal) – que os membros pagavam eram encaminhadas
quase que integralmente para a compra de livros novos,
mais sérios, geralmente romances em voga.
O time de futebol
O segundo fator de atração ao Departamento, como dito,
era o time de futebol. No Departamento havia rapazes
que se distinguiam como jogadores de futebol e não me
recordo como o Departamento chegou a um acordo com
o Clube Macabi: o Departamento forneceria jogadores
de futebol para Juvenil Macabi e o clube, de sua vez,
permitiria entrada grátis aos membros do Departamento
ao campo desportivo do Macabi, na margem do Rio
Tietê.
O Clube Macabi designou dois treinadores para o nosso
time, o Juvenil Macabi, e um deles, Roth, atleta judeu
de origem húngara, pessoa e desportista excelente,
contribuiu para elevar o nível do time.
O Departamento aproveitava o campo do Macabi para
outras atividades, alem do futebol
67
Também eu jogava futebol, como suplente, que tinha
oportunidade de jogar geralmente nos treinos, pois então
havia necessidade de formar dois times. Eu corria atrás
da bola feito louco, mas não me lembro ter alguma vez
marcado um único gol sequer... Se alguma vez invejei
minha irmã Rosinha, foi como jogador de futebol.
Gols nunca marquei e em compensação voltava para
casa marcado de "gols" – pernas inchadas de manchas
roxas, que eu entregava aos cuidados dedicados de
minha mãe, especialista em aplicar compressas e
autoridade máxima em medicamentos caseiros.
68
As noitadas de Sábado
Diariamente, das 20:00 ás 22:30, vinham chaverim ao
Departamento, para pegar livros emprestados ou
simplesmente para se encontrar e conversar. Aos
sábados o salão ficava repleto, geralmente para
conferências. Costumávamos convidar intelectuais
judeus para dissertar em português ou em idish sobre
assuntos de suas especialidades: Idel Becker (professor
de espanhol), o professor de hebraico Karolinski, o
idishista Meir Kucisnki, o dr. Marcos Kaufman, e
outros.
Sempre que passava por São Paulo uma personalidade
judia do exterior, procurávamos convidá-lo para proferir
uma palestra. Assim tivemos oportunidade de ouvir o
famoso jornalista judeu-americano B.Z. Goldberg, genro
de Shalom Aleichem, e o editor do jornal idishamericano "Forward", que nos dissertaram sobre os
judeus nos Estados Unidos.
Os shlichim de instituições judaicas não deixavam de
conferenciar no Departamento: Yuris /(Mapai, shaliach
da Histadrut), Rabino Mordechai Nurok (líder mundial
do partido "Mizrachi"), Jacob Helman (líder veterano do
"Poalei Sion"), Mibashan (argentino, delegado dos
Fundos sionistas), Margulis ("Sionim Klaliim"), dr. TorSinai (do "World Jewish Congress"), Chaim Finkelstein
(Diretor da Escola "Shalom Aleichem" de Buenos Aires
e depois personalidade acadêmica em Jerusalém) e
outras personalidades.
Não posso deixar de referir-me a Yuris. Não o conheci
pessoalmente e nem havia ouvido falar dele, até que
presenciei uma conferência sua que proferiu no Círculo
Israelita de São Paulo. Um homenzinho franzinho que
69
com sua fala impecável de idish, tornou o palco
pequeno... Durante 2 horas dissertou sobre "Shabetai
Tzvi e o Messianismo", a oratória mais impressionante
que ouvi sobre o tema, alem do espectáculo solo de
Moris (Maurice) Schwartz, um dos maiores artistas
dramáticos do teatro judaico.
A.S.Yuris nasceu na Galícia (então Áustria). Escritor e
jornalista, poliglota que falava correntemente alemão,
polonês, ukraniano, inglês e outras línguas (inclusive o
português), sabia grego e latim clássicos, e naturalmente
dominava o idish com perfeição.
No Arquivo Trabalhista "Pinchas Lavon" em Tel-Aviv
examinei o seu acervo literário e fiquei abismado com a
quantidade de material que encontrei. Inacreditável o que
o homem realizou..
Um dos primeiros shlichim (emissarios) profissionais do
movimento sionista e o primeiro pensionário dela. Atuou
na Polônia, Alemanha, Bélgica, Estados Unidos,
Cânadá,.. Em 1923 chegou à Argentina, depois de servir
em quase todos os paises sul-americanos (México, Cuba,
Uruguai, Colômbia e Chile). Ao Brasil chegou em 1927 e
foi em 1931 o candidato da Lista dos Partidos
Trabalhistas Sionistas do Brasil ao 17º Congresso
Sionista (não sei se foi eleito).
Episódio interessante: encontrei entre seus papéis no
arquivo jornal em português com ampla reportagem e
fotos, de um comício sionista pró-Keren Kayemet que
ocorreu em 13/12/1927 em Porto Alegre, com a presença
de representantes do governo brasileiro e os cônsules da
Inglaterra, Uruguai e Argentina, Depois que tocaram os
Hino Nacional do Brasil e os hinos da Inglaterra,
Argentina, Uruguai e a Hatikva (o "Hino dos Judeus"),
Yuris proferiu um discurso em prol da campanha para a
compra de terras na Palestina para colonização de judeus.
*
Para encerrar o episódio de Yuris, não há como uma
70
anedota:
Em um circo, um brutamontes espremeu um limão e
colocou o bagaço em um prato. O mestre-de-cerimônias
anunciou que quem extrair mais uma gota, receberá um
prêmio. Muitos espectadores tentaram, mas "niente"...
Um homenzinho pede licença para tentar, segura o limão
expremido com o polegar e o indicador, aperta, e "pic"...
cai uma gota. Aplausos e gritaria.
Quem era o herói? Um emissário do Keren Kayemet - o
nosso Yuris!
(Para quem não pescou a piada: Yuris conseguia sempre espremer
mais uma "gota" dos contribuintes para o Keren Kayemet).
Júri Simulado
Mamãe gostava de me contar o episódio do júri
simulado de seu irmão Yoel Perel, o único dos 10 irmãos
que terminou universidade e que pertenceu na juventude
à "tropa marítima" do Hashomer Hatzair de Luck
("navegavam" de canoa no Rio Stier...). Ele organizou
no salão de cinema da cidade um júri simulado sobre "A
mulher", que se prolongou durante três noitadas. Todos
os bilhetes foram vendidos e o salão ficou mais do que
repleto. O veredicto: "di froi is umshildik" (a mulher é
inocente, em idish).
Quando havia visitas em casa e mamãe usava com
gravidade esta expressão; nós, seus filhos, os únicos a
entender a que se referia, ríamos à beça.
Inspirado nesta narrativa, organizei no Departamento um
júri simulado sobre "A Assimilação", com juiz, jurados,
promotores. advogados e testemunhas. Foi uma das
iniciativas do Departamento que mais repercussão teve.
Prolongou-se até as 2 horas da madrugada, com o salão
71
repleto como nunca. Como ninguém concordou em
defender a assimilação, eu me encarreguei de ser seu
advogado.
Levei meu papel a sério e me preparei condignamente.
Entre o mais li na Biblioteca Municipal "Os Protocolos
dos Sábios de Sion" em português e artigos anti-semitas
de jornais integralistas. Como testemunhas a promotoria
e eu, a advocacia, interrogamos o professor Idel Becker
e o dr. Marcos Kaufman.
No final os jurados concluíram que a "assimilação" é
culpada, e a condenaram, De todas as atuações em
minha vida, creio que esta derrota foi o único fracasso
que recebi com satisfação.
A primeira Moshavá Sionista
Não tenho dúvidas que o acontecimento mais importante
em que participei na juventude foi a Primeira Moshavá
Sionista do Brasil, que se realizou no Paraná na fazendo
de Salomão Guelman, em Desvio Ribas (estacionamento
de trem para o abastecimento de água), entre Ponta
Grossa e Curitiba,.
Não sei de quem foi a iniciativa. Entre os documentos de
meu tio Urtzi encontrei que a Diretoria do Centro
Hebreu Brasileiro, da qual ele era membro, colaborou no
empreendimento. Ela se propôs a financiar 3
participantes de nosso Departamento. Luiz Shechtman,
Michel Lando e eu nos prontificamos.
A moshavá foi monitorizada pelos professores de
hebraico Henrique Yussim e Jacob Hocherman.
• Henrique Yussim, professor de hebraico, pessoa
72
simpática, muito culta e letrada –
filósofo e humanista – o mais
ilustrado entre os professores de
hebraico que conheci. Lecionou no
Seminário de Professores de
Hebraico da Escola Renascença e
depois Diretor do Colégio Hebreu
Brasileiro no Rio de Janeiro.
Abandonou o ensino para se dedicar à editoria de
livros, porém conhecimento de livros e negociação de
livros nem sempre combinam – os seus negócios
editoriais foram água a baixo...
Já casado, Yussim fez alyiá à Israel (onde se tornou Zvi
Yatom) e veio parar no kibutz Mefalsim, no Neguev. Ele
tentou novamente a editoria de livros. Sem abandonar o
kibutz, abriu uma livraria em Holon e fez algumas
viagens ao Brasil. Parece que não foi tão bem sucedido
nos negócios, e se voluntarizou a lecionar em BeerSheva, onde dissertou para grupos de adultos.
• Jacob Hocherman, também professor de hebraico, na
Escola Luiz Fleitlich. Ele substituiu
por certo tempo o Noach como
instrutor do Departamento e foi outro
que se mudou ao Rio de Janeiro, onde
se casou. Acabaram vivendo em
Haifa, Israel, onde chegou a ser
diretor de ginásio.
Na única vez que o visitei, em São
Paulo, morava em um quarto
alugado, com livros espalhados por todos os cantos.
Para conversarmos, tive que enveredar entre eles para
finalmente me sentar na cama, pois as cadeiras
73
estavam abarrotadas de livros.
Eu o achava um tipo um pouco extravagante, contudo
o admirava por seus conhecimentos de judaísmo.
A fazenda ficava a cerca de 6 quilômetros do
estacionamento. De São Paulo vieram Manuel Szterling,
aluno da Politécnica, e Ary Blaustein, filho do líder
sionista Maurício Blaustein, ambos pelo menos 5 anos
mais idosos do que nós três do Departamento (tínhamos
cerca de 17 anos).
Do Rio, além dos madrichim (monitores) Yussim e
Hocherman, vieram Miriam Halfim, Tita Cohen e Saul
(de nossa idade), e as moças mais idosas Penina e
Rosinha Cohen, Suzana Schmeltzinguer Rosa Faingold,
Ana Malogolovkin, Lea Davidovich e Sima. De
Curitiba veio o Benjamim Schechtman. Na última
semana uma turma de moças de São Paulo e de Curitiba
aderiu ao grupo.
Na fazenda havia somente uma casa de madeira, e a sala
maior serviu de refeitório e sala de aulas. A cozinha com
74
fogão a lenha ficava em uma varanda fora da casa; água
tínhamos de bombear manualmente de um poço para um
barril, elevado sobre um andaime de madeira.
Não me lembro se havia instalações sanitárias (não
tínhamos problemas – o Brasil é grande!).
Pela manhã nos
dividíamos em três
grupos: designados
ao trato da casa e ao
preparo
das
refeições;
outro
grupo ia até o sítio
dos empregados da
fazenda para ajudar
o capataz "seu"
Juca na fabricação
de queijos (deliciosos!), e finalmente, os demais iam
trabalhar num bosque, na procura de mudas de
eucaliptos a fim de replantá-las em um campo
previamente arado e preparado.
Depois do almoço e de breve descanso, assistíamos as
75
aulas de Palestinografia (geografia e história de Eretz
Israel) de Yussim e Hocherman, e à noitinha, canções
idish e hebraicas e Yussim nos lia em idish, em
continuação, o livro de Shalom Ash "A canção do
Emek", sobre a criação de um kibutz.
Sábados e domingos éramos livres, o os aproveitávamos
para nos banhar no Rio Tibaji da vizinhança.
Realizamos dois passeios a formações geológicas únicas
no Brasil.: ao Lago Dourado, a pé, e à Vila Velha
levamos conosco o "seu" Juca com a carroça.
Eu e Titã no Lago Dourado
76
A água do Lago Dourado provém de um lençol aquático
subterrâneo, resultante das chuvas caidas em uma
planície enorme, que escoam em um poço natural de
grandes proporções, distante uns quilómetros do lago.
Não pude avaliar a profundidade do poço, devido às
paredes cobertas por espessas vegetações e arbustos,
estranhos à vizinhança. Além de difícil, era perigoso
aproximar-se da borda
77
1944, Vila Velha. Passeio na Primeira Moshavá Sionista do Brasil no Paraná.
A Vila Velha é uma elevação rochosa de 18 quilômetros
quadrados, que a erosão de chuvas e ventos de milhares
ou milhões de anos conferiu o aspeto de uma aldeia de
trogloditas, com ruas, cavernas e rochedos que lembram
78
animais e figuras mitologicas.. Impressionante! Não
ousamos enveredar pelo interior, por receio de cobras..
*
Atualmente o governo criou ali o Parque Estadual deVila
Velha, atracão turística obrigatória para os passeantes de
ônibus para as quedas de Iguaçú.
Em minha opinião os caminhos e os estacionamentos
asfaltados estragaram o esplendor da natureza virgem.
Apenas 3 semanas durou a moshavá, uma das vivências
mais significativas que vivi e que influiu no meu futuro.
Foi nela que me tornei sionista de verdade – nela
começou meu sonho por Eretz Israel.
A Segunda Moshavá Sionista
O ímpeto da moshavá no Departamento foi
extraordinário. Os nossos entusiásticos relatórios
emocionaram o pessoal e a Diretoria do Centro Hebreu
Brasileiro nomeou uma comissão para procurar nas
vizinhanças da cidade uma fazenda que fosse adequada
para a segunda moshavá, que deveria ocorrer nas
próximas férias escolares.
79
Foi escolhida a Fazenda do Sol, pertencente ao sr.
Vaingort, com quem a comissão assinou um contrato.
Eis o teor do contrato, de acordo com a cópia no meu
arquivo:
"São Paulo, 15 de Novembro de 1944.
4º Reunião da Comissão Organizadora da Moshavá
Declaração
Os abaixo assinados, que se reuniram na sede do Centro
Hebreu Brasileiro de S. Paulo, a pedido do sr. Vaingort, a
fim de discutir o assunto referente à moshavá em
organização, chegaram ao acordo abaixo reproduzido:
FICA estipulado que ........ (algumas palavras ilegíveis. NM)
obrigam a trabalhar 4 horas por dia (exceto aos sábados e
domingos) de acordo com as indicações a serem dados
pelas pessoas competentes da fazenda. O sr. Vaingort
pagará à razão de Cr$1.50 (um cruzeiro e cinquenta
centavos) de remuneração por hora de trabalho, e além do
pagamento compromete-se a fornecer verduras em
abundância, peixes na medida do possível e 8 a 10 litros
de leite diários, bem como frutos da fazenda à vontade.
Subentende-se que seja cumprida rigorosamente a
condição básica de caráter chalutziano da moshavá de
acordo
aos
regulamentos
da
COMISSÃO
ORGANIZADORA DA MOSHAVÁ. Os fundos
necessários para a aquisição do gêneros alimentícios
serão solicitados em empréstimo do CENTRO HEBREUBASILEIRO DE SÃO PAULO.
Havendo déficit na manutenção da moshavá, o sr.
Maurício Blaustein assume a responsabilidade por ele."
Até aqui o texto exato do original, Em seguida, a
assinatura de sr. Vaingort (apenas o sobrenome é
legivel), e depois mais oito, dos quais consegui decifrar:
Samuel Charchavski, ??ski, Manuel Szterling, Paulo
80
Feldman, Abraão Zajdens, Naum Mandel e Uron
Mandel.
Zajdens e eu (que então escrevia meu nome Naum, sem
"h") éramos representantes do Departamento Juvenil e
os demais, do Centro Hebreu Brasileiro.
*
Por parte dos participantes do Rio, meus parceiros na
direção da moshavá foram Giogio Segré e Jacob
Hershenhut.
Havia na fazenda um depósito vazio enorme, com chão
de terra socada e aberturas espaçosas (sem janelas) nas
paredes, que abrigava com facilidade as atividades que
ali se realizavam com aproximadamente 100
participantes, metade de São Paulo e a outra do Rio.
Recordo-me
perfeitamente
do
programa
do
encerramento. Entre as demais apresentações que houve,
encenei três pequenas peças humorísticas. Eu gostava
de encenar pecinhas teatrais, mas jamais consegui
representar em palco – me atrapalho, gaguejo ou
esqueço o texto. Este o motivo pelo qual evito de
81
pronunciar discursos. Também nesse ponto minha irmã
Rosinha era diferente: ela representava com naturalidade
e participou em vários atos desta noitada. Rosinha foi a
mais jovem das participantes na moshavá.
Interessante: tenho em geral recordação bem lúcida dos
eventos que presenciei no passado,
mas desta moshavá, de que fui um dos
organizadores e dirigentes, em muitos
pormenores estou em black-out... Não
consigo recordar-me quem foram os
monitores,
conferencistas,
onde
comíamos nossas refeições, onde
dormíamos
e
que
trabalhos
executávamos... Nada! Apenas sei que
a moshavá foi um sucesso absoluto.
1.
82
Capítulo 6 – Do Departamento ao Hashomer Hatzair
Primeiros passos
Como Presidente, eu me dedicava de corpo e alma ao
Departamento e quase diariamente ali estava de plantão
das 20:00 às 22:00 horas, pois sempre tinha tarefas a
cumprir, como varrer o salão e arrumar as cadeiras. Duas
vezes por semana eu me ausentava, a fim de frequentar
as aulas do Curso de Gráfica Prática no "Liceu de Artes
e Ofícios Prudente de Morais", na Avenida Tiradentes.
Na realidade as aulas do curso de três anos eram de três
vezes por semana, mas eu comparecia somente duas,
após convencer o servente da classe a marcar-me
presente em todas as aulas, pois quem tinha mais de 25%
de ausências não era
permitido
a
prestar
exames. Mesmo assim,
como
contei
na
"Cronologia", terminei o
curso com distinção e
ganhei uma medalha.
Como Presidente, me cumpria programar as noitadas de
sábado e convocar a reunião da diretoria do
Departamento.
A diretoria se reunia semanalmente para tratar de tudo e
de todos, sempre com a presença imprescindível do
professor Citman, calado e retraído. Jamais participava
nos debates. Creio que cumpria fielmente seu cargo de
prestar contas de nossas reuniões à Diretoria do Centro.
Entre os novos participantes no Departamento se
destacaram os irmãos Marcos e Levy Raizman. Fiz logo
83
amizade com o mais idoso, Marcos, que era de minha
idade, e foi ele que me aconselhou a editar um boletim e
se prontificou a convencer seu pai, Isaac Raizman, dono
de uma pequena tipografia ao lado de nossa sede, a
imprimi-lo.
Entusiasmados pela idéia, redigimos um boletim de
informações das atividades do Departamento, uma única
página, e fomos conversar com o sr. Raizman, que
concordou em imprimir gratuitamente 100 exemplares.
O sr. Raizman era o dono da tipografia, que
ocupava um pequeno quarto repleto de
caixas com letras de chumbo, de varios
tamanhos e estilos. Ele compunha
manualmente as matrizes para imprimir na
impressora manual que ali havia.
Isaac Raizman era professor na escola judia em
Porto Alegre, Rio Grande do Sul, a Escola "Ber Borochov", da
qual foi um dos fundadores e diretor-pedagógico. Desavenças
ideológicas o levaram a mudar-se ao Rio de Janeiro.
Trabalhou como professor, "klinteltchik" (vendedor à
prestação, ocupação tradicional dos imigrantes judeus no
Brasil), jornalista idish e condutor de bonde.
Em 1929 Raizman abriu em São Paulo a sua já mencionada
tipografia. foi um precursor na pesquisa do passado dos judeus
no Brasil e publicou História dos Israelitas no Brasil em 1935
em idish, e a versão em português em 1937.
Em 1946 foi morar nos Estados Unidos e em 1967 veio residir
em Safed, Israel.
Em uma de minhas visitas em Safed, entrei na rua das galeria
de arte no "Museu da Imprensa em Israel", e quem lá
encontro? O sr. Isaac Raizman em pessoa – diretor do museu.
O primeiro exemplar do boletim, distribuído aos
membros e pessoas relacionadas ao Departamento, foi
84
um sucesso. O jornalzinho, com as colaborações que
recebeu, foi-se avolumando. O sr. Raizman, que
geralmente imprimia convites de casamento, programas
de cinema e cartões de visita, explicou-nos que sem
linotipo não tinha graça imprimir boletins...
A solução foi continuar a publicação do boletim no
mimeógrafo do Centro. Compramos um pacote de
estênceis e alguns estiletes, e eu aprendi como gravar.
Máquinas de escrever não faltavam no escritório do
Centro. Começamos a publicar boletins de 4 a 6 páginas,
que eu editava, digitava, ilustrava, imprimia e divulgava.
Edição e publicação foram ocupações que sempre me
proporcionaram enorme satisfação.
*
O Departamento e meu cargo de Presidente eram minhas
maiores preocupações e certamente contribuíram ao
abaixamento do nível das notas no ginásio. Eu não era
dos piores alunos da classe – me distinguia em
Português, Matemática, História e Desenho, mas nas
matérias restantes passava "raspando".
Foi quando o Centro recebeu da Argentina um caixote
de livros em espanhol sobre judaísmo: "Keren Kayemet
L´Israel" de Nissim Elnecavé, "História do Povo de
Israel" de Cecil B. Roth, "Autoemancipação" de Leon
Pinsker, "Roma e Jerusalém" de Moshe Hess,
"Paradoxos" de Max Nordau e muitos outros de que não
me recordo. Um tesouro incomensurável! . No Brasil
não havia livros em português desse tipo. Convencemos
a Diretoria do Centro a adquirir os livros e cedê-los à
biblioteca do Departamento. Com eles, a biblioteca
subiu de degrau, inaugurando a divisão de "Judaica".
85
Com toda minha modéstia, alego que li (melhor dito,
"devorei" de um trago) todos eles. O livro de Cecil Roth
abalou a minha imaginação, pois preencheu minha
lacuna de quase dois mil anos da história do povo judeu.
Só em Israel, quando li em hebraico os cinco volumes da
Historia do Povo Judeu de Simon Dubnov comecei a
adquirir visão global da história dos judeus.
À medida que o Departamento foi saindo dos trilhos do
sionismo, eu ia me sentindo descontente dele. Minha
cultura sionista e formação ideológica almejavam algo
mais concreto. Meu conhecimentos sobre sionismo, as
narrativas de meu tio Urtzi sobre o Hashomer Hatzair e
a nostalgia das peulot (atividades) das reuniões sionistas
intensificaram o meu interesse e a motivação pelo
chalutzianismo e intensificaram a nostalgia de EretzIsrael..
Natálio Berman
No meu cargo de "jornalista" do boletim do
Departamento soube que se encontrava de passagem em
São Paulo o chileno Natálio Berman, o primeiro senador
judeu na América do Sul. Resolvi entrevistá-lo para o
boletim e convidá-lo que viesse conferenciar no
Departamento. Conversei com Urtzi,
que conseguiu marcar um encontro
com Berman e assim fomos nós dois
uma manhã ao seu apartamento no
Hotel Ypiranga, no Parque de
Anhangabaú.
O Senador Natálio Berman era um
homem pequeno e magro. Começamos a conversa em
espanhol, mas rapidamente deslizamos ao idish, que ele
86
falava com uma perfeição de fazer inveja. Conversa vai,
conversa vem, e Urtzi mencionou algo sobre o
Hashomer Hatzair, o que não é de se estranhar, em se
tratando de Urtzi. Berman observou que apesar de não
ser sionista, mantinha relações muito estreitas com
"Kedma", o Hashomer Hatzair no Chile, e não poupou
elogios.
Estimulado por esta demonstração de simpatia,
perguntei-lhe se poderia comunicar-me com o Hashomer
Hatzair no estrangeiro, pois eu estava muito interessado
em obter material explicativo sobre o movimento.
"Com muito prazer!" e anotou meu endereço.
Recebi do dr. Mordechai Kaufman, médico chileno do
kibutz Ramot Menashé e psicólogo do Seminário dos
Kibutzim em Tel-Aviv, um bilhete com as seguintes
informações:
"Natálio Berman veio ao Chile muito jovem e jamais foi
do Hashomer Hatzair. Era socialista, militante em
sindicatos profissionais judeus.
Berman foi eleito o primeiro senador judeu na América
da Sul pela lista do Partido Comunista Chileno, mas
guardou zelosamente a sua independência ideológica.
Apesar de longe do sionismo, era muito perto de
"Kedma", o movimento do Hashomer Hatzair no Chile."
*
Natalio Berman (1908-1957) nasceu en Odessa, Russia, e
em 1914 viajou com os pais a Chile, onde recebeu a
cidadania chilena. Formou-se médico-cirurgião na
Faculdade de Medicina de Chile, e exerceu sua profissão
como professor em vários institutos e fundou a
Policlínica Pública Israelita.
Militou no Partido Socialista do Chile, do qual foi um
87
dos fundadores, Retirou-se dele para fundar o Partido
Socialista de Trabalhadores. Em 1940 se tornou
comunista, o primeiro judeu sul-americano eleito
Senador. Acabou sendo expulso do partido.
Como membro da Comissão Permanente de Assistência
Médico-Social e outras conissões do Senado foi autor de
vários projetos legislativos.
Muito ativo no setor judaico, viajou por todos os países
da América do sul como represntante do Congresso
Judeu Mundial. Representeu as comunidades judias sulamericanas no famoso Congresso de Atlanta (USA), onde
foi nomeado um dos presidentes. Diretor honorário das
principais instituições judias do Chile. Escreveu novelas
e ensaios.
Currículo de vida impressionanta para uma vida tão curta.
(dados recolhidos pelo Google)
Não passou nem um mês e recebi um pacote enviado por
Dorothy Nacht, a secretária do Hashomer Hatzair dos
Estados Unidos, com o livro Deep Furrows (Sulcos
Profundos) de Avraham Ben-Shalom, revistas Hashomer
Hatzair Niv ha´Boguer, e volumosos programas
educacionais para as diversas shichavot do movimento.
Mais um mês, veio pacote semelhante de "Kedma" do
Chile e em seguida, do Hashomer Hatzair da Argentina.
Tenho a impressão que decorei tudo.
Com este material, acabei me identificando com a metas
do movimento e resolví que se deveria fundar no Brasil
o Hashomer Hatzair.
Tentei propagar minhas ideias entre meus amigos mais
próximos no Departamento, e encontrei parceiros em
Amnon Yampolski e Moshe Strauch. Os rumores de que
eu estava inclinando-me ao Hashomer Hatzair chegou
aos ouvidos da Diretoria do Centro, na maioria ativistas
88
do Mapai e Sionistas-Gerais, e o representante deles na
diretoria no Departamento, o professor Citman, falou
pela primeira vez em uma reunião: "Já que completou
um ano que o Nahum é Presidente-fundador, chegou o
tempo de se eleger democraticamente uma Diretoria
normal". Ninguém se opôs.
Duas listas concorreram às eleições, uma encabeçada
por Abraão Zajdens e Henrique Rosset, a segunda por
mim e Marcos Raizman. A primeira venceu por pequena
diferença, porém venceu. Na verdade o resultado foi
justo, pois refletia a tendência não-sionista da grande
maioria do Departamento, enquanto eu era um convicto
do sionismo militante.
Zajdens, muito amigo, me convidou a participar na nova
diretoria, "devido à minha experiência". Não recusei.
Em
conversa
com
Zajdens,
propus
que
transformássemos o Departamento em espécie de
organização-teto dos movimentos juvenis que se
estavam organizando em São Paulo: o Dror, o Betar, o
Bnei-Akiva e o Hashomer Hatzair que eu pretendia
organizar. Quem não tinha linha política definida
pertenceria socialmente ao Departamento, sem se ligar a
nenhum grupo.
Fui convidado a comparecer perante a diretoria do
Centro para expor meu programa, e vim com Zajdens.
Minha proposta foi refutada sem nenhum debate e me
acusaram de querer transformar o Departamento em
Hashomer Hatzair.
Recebi de Henrique Rosset carta me comunicando que
"devido a sua atividade subversiva" a diretoria do
Departamento resolveu expulsar-me e "revogar seus
89
privilégios de Presidente-fundador".
Não respondi à carta e nunca mais meus pés pisaram no
Departamento. Ao me encontrar com o Rosset e o
Zajdens, continuamos a nos tratar como se nada tivesse
acontecido, e não falávamos nada sobre o Departamento.
Não sei o seu paradeiro.
*
Uma vez que me senti inteiramente livre de minhas
obrigações com o Departamento, convidei o Amnon
Yampolski e Moshe Strauch a virem à minha casa e
passamos horas e noites estudando o material do
Hashomer Hatzair que estava em minhas mãos. Pedi o
auxilio de meu tio Urtzi, que ficou entusiasmado com a
idéia de reviver o movimento que amava.
Como estávamos cônscios que nos depararíamos com
uma oposição fortíssima dos mapainikim e tzionimhaklaliim (membros de dois partidos políticos sionistas,
Mapai e Sionistas Gerais). resolvemos agir na surdina,
até acumular certa significância.
Amnon se prontificou a organizar grupos de jovens na
Escola Luiz Fleitlich, o Moshe Strauch na Escola
Renascença e Urtzi se encarregou de reunir um grupo de
jovens que conhecia em sua vizinhança. Eu me
encarreguei da administração técnica, correspondência
com os movimentos externos (USA, Argentina e Chile, e
cidades no Brasil, à medida que nelas surgissem o
movimento) e principalmente da tradução ao português
do material educacional que estava a nosso dispor.
O Amnon juntou uma kvutzá (grupo) de tzofim
(categoria de escoteiros, 14-15 anos) no bairro de Brás,
todos falando correntemente o hebraico. Amnon e eu
90
nos encontrávamos quase que diariamente; creio que nos
entendíamos perfeitamente e cooperamos sinceramente.
Moshé Strauch reuniu uns 40 alunos de 9 a 11 anos do
Renascença, que se encontravam aos domingos para
cantar (marchando em círculo no terreiro) e jogar jogos
sociais.
Urtzi juntou para peulot (atividades) em idish, uns 7 ou 8
tzofim (14-15 anos), que não sabiam hebraico. Ele deu a
sua kvutzá o nome de Bar-núfia, cujo significado nunca
decifrei, e nem ouvi explicação razoável do Urtzi. Mais
tarde, quando Urtzi teve notícia que um de seus
madrichim em Luck morreu como partisan, resolveu
homenageá-lo, e mudou o nome da kvutzá para "Zvi
Atlas". Ao chegar a Israel em 1948, Urtzi descobriu que
Zvi Atlas estava vivinho da silva, morava em Haifa,
onde era um dos dirigentes do partido Mapam... O
falecido Zvi Atlas partisan era seu primo homônimo.
Quando Urtzi começou a ter dificuldades em dirigir a
kvutzá, devido ao idish, eu me tornei o seu menahel.
Levei o cargo muito a sério e me preparava
cuidadosamente às sichot, anotando num caderneta de
bolso, pinkas-menahel (agenda de instrutor) ainda em
minha posse, o seder aiom (ordem do dia) do que devia
fazer na reunião, e acrescentando depois quem
compareceu e o que nela aconteceu.
Continuei por pouco tempo, uns 3 meses, pois quando
Samuel Kleiman aderiu ao movimento, eu lhe passei a
kvutzá.
Os jovens desta e de outras kvutzot contemporâneas, eram
ótimos madrichim (monitores) e shomrim convictos, que
91
foram educados no movimente desde crianças. Foram à
hachshará, "fizeram aliá", e incorporaram os kibutzim
Negba e Gat.
Não tenho explicação porque quase todos acabaram
abandonando estes kibuzim, seja para passar a outros, ir
estabelecer-se em cidades de Israel ou (a maioria)
regressar ao Brasil. O Kibutz Artzi (a federação dos
kibutzim do Hashomer Hatzair) jamais realizou (e penso
que não o fará no futuro) uma pesquisa séria para
desvendar os motivos do fracasso de vários kibutzim na
absorção de centenas dos melhores potenciais ideológicos
chalutzianos sul-americanos.
Se tenho algum ressentimento contra a direção do Kibutz
Artzi, é este!
No começo também eu me ocupei em monitorizar
grupos que tentamos organizar-se, em Vila Mariana,
Cambuci e Casa Verde, mas com o crescimento do ken
tive que largar estas ocupações para dedicar-me
inteiramente às minha funções na mazkirut
(secretariado): correspondência, tradução do material
ideológico e educacional que recebíamos, elaboração de
programas educacionais e a publicação de manuais
educacionais, revistas e livros, que descreverei em outro
capítulo. Pola, Amnon e Takser me auxiliavam nas
traduções do e ao hebraico.
O Urtzi convocou seus amigos clássicos, Noach
Feiguelman, Isasc Ostroswki, Emilio Blay e Paulo
Feldman a cooperar no movimento, não em atividade
educacional com chanichim (aprendizes, os jovens), mas
na organização geral e financeira. Uron me aconselhou a
convidar duas pessoas que foram ativos no antigo
Hashomer de 1935: José Sendacz e Issac Takser.
92
José Sendacz morava bem perto de minha casa e eu o
conhecia de vista. Ele me recebeu cordialmente e me
convidou ao seu escritório. Depois que lhe expliquei a
finalidade de minha visita, ele disse "os anos que estive
no Hashomer Hatzair foram as vivências mais belas de
minha vida, e sinto muita saudade daqueles tempos".
Esta introdução me deixou com a pulga atrás da orelha,
desconfiado. O "mas" desmancha-prazeres veio em
seguida, "lamento, mas tudo isso pertence ao passado,
Não tenho mais nada a ver com o sionismo, sou
atualmente militante progressista ("progressista", judeu
que sem pertencer ao Partido Comunista, se identificava
com ele e o apoiava sem restrições).
Despedimo-nos, cordialmente e não me ocorreu outra
oportunidade de conversar com ele.
Seguro em minhas mãos o livro "Um Homem do Mundo"
que a família publicou em memória de Sendacz e folhei
suas páginas, que contém parte do seu grande acervo
literário: versos em idish acompanhados de tradução ao
93
português, e também de artigos que publicou e discursos
que pronunciou. Não escondo a emoção que senti ao lêlos.
José Aron Sendacz (1918-1984) nasceu em Varsóvia,
Polônia e chegou ao Brasil (com eu) em 1930. E ainda
como eu, veio morar no Bom Retiro e cursou o primário
no Grupo Escolar Marechal Deodoro. Em 1935 foi um
dos fundadores e secretário do Hashomer Hatzair em São
Paulo, que foi fechado dois anos mais tarde pela DOPS.
Noaequivo de Guivat Havica encontrei sópias das atas
que redigiym en hebraico! Tornou-se um dos líderes do
movimento "progressista" (judeus idishistas e prócomunistas).
Idishista de corpo e alma, poeta, escritor e orador,
Sendacz foi ativista em instituições progressista,
colaborou no jornal que publicavam e atuou como diretor
pedagógico da língua idish na escola Shalom Aleichem.
Como o livro o denomina: um homem do mundo.
*
Na última conferencia que proferiu, Sendacz fez as
contas com a União Soviética, pela destruição da cultura
idish no pais com o fuzilamento em 12 de Agosto de
1952 de seus principais expoentes – escritores, poetas e
cientistas. Um a um trouxe à tona os nomes e feitos de
plêiade de personalidades judias que o mundo perdeu. É
impressionante o seu conhecimento da cultura idish e a
forma dramática como a apresenta no discurso, que
encerra citando o poema Herdeiros de Stalin de Yevgeny
Yevtochenko "...enquanto na Terra houver herdeiros de
Stalin / Terei a impressão / Stalin ainda está no
Mausoléu...".
Sendacz desiludi-se dos partidos comunistas e da União
Soviética, mas jamais renegou suas convicções
socialistas e humanistas, e as reiterou até seu último
momento. Eu diria que ele, mesmo tendo abandonado o
Hashomer Hatzair, é um exemplo de fidelidade aos
94
valores morais e humanos que nele absorveu – "shomer
uma vez, shomer para sempre!".
*
Isaac Takser tinha duas lojas de móveis, localizadas
mais além da Estação Sorocabana, Eu
não o conhecia de antes e me foi
difícil localizá-lo. Urtzi o definia
como "uma potência ideológica" e
jamais me revelou o motivo pelo qual
ele se isolou completamente dos
demais
ex-shomrim
(assim
apelidamos
os
adultos
que
pertenceram no passado ao Hashomer). Fato é que Urtzi
não concordou de nenhuma forma em ir convidá-lo e
confiou a mim esta tarefa.
Apresentei-me ao Takser em uma de suas lojas e lhe
expliquei o meu objetivo. Ele retrucou "gentilmente"
"você está desperdiçando nosso tempo, não tenho
nenhum interesse!".
Como não havia clientes na loja e ele não me mandou
embora, apenas ficou calado recostado atrás da
escrivaninha, eu, sentado na cadeira em sua frente,
comecei a contar-lhe o que já conseguimos realizar e
como nossas kvutzot estavam funcionando. Takser ouviu
em silêncio, e continuei minha argumentação de que ele
com sua experiência e conselhos, seria um ajuda
importante. Evitando ampliar a fala sobre os exshomrim, contei-lhe que o Urtzi foi quem me
recomendou a comunicar-me com ele.
No final, ele se abrandou e me disse que devido
obrigações familiares não poderia vir ao ken
95
(movimento, séde), mas se eu vier me aconselhar com
ele, procurará ajudar.
Esta foi a primeira das inúmeras conversações que
mantivemos e devo confessar que não me recordo de
uma única vez dele atender um cliente enquanto eu
estava presente. Mandava o empregado, e ele ficava
inteiramente à minha disposição.
Takser era uma pessoa muito difícil, caprichosa e
autoritária, que não aceitava opinião alheia. Não admitia
que duvidassem dele. No entanto, na minha opinião, no
que diz respeito ao sionismo, ao socialismo e ao
judaísmo em geral, era mais ilustrado do que os demais
ex-shomrim. Falava e lia o hebraico correntemente. Era
capaz de citar os principais dirigentes do Hashomer
Hatzair – Meir Yáari, Jacob Chazan, Eliezer Peri,
Mordechai Oren, e outros – de 20 anos atrás – como se
fossem seus amigos íntimos. Comparecia às reuniões
com sua "Bíblia de Sinai", o livro "Sefer ha´Shomrim"
(Livro dos shomrm), compilação de artigos de líderes do
Hashomer Hatzair, publicado em hebraico em Varsóvia,
no ano 1934. Certamente não estava atualizado com o
que acontecia no movimento e no Kibutz Artzi (a
confederação dos kibutzim do Hashomer Hatzair), pois
não tínhamos então meios de contato com eles. Era
como se o tempo tivesse parado na primeira metade da
década de 1930. Contudo, para mim Takser constituía
uma fonte importante de informações. Aprendi como
lidar com ele e jamais discutimos, Eu admirava a sua
habilidade analítica de ver as coisas e ele me tratava com
amizade e respeito – espécie de simbiose que
funcionava...
96
No final de vários encontros Takser assentiu em aderir à
direção do movimento, mas unicamente a uma Moatzá
(Conselho), pois não aceitava uma Hanagá (a direção
clássica do movimento), por dois motivos: primeiro, em
sua opinião nós os jovens ainda não estamos
suficientemente maduros para tal entidade e segundo,
ex-shomrim como ele, casado e negociante, não
deveriam pertencer à Hanagá.
Não julgamos conveniente discutir por nomenclatura e
aceitamos as condições de Takser – criamos uma
Moatzá para dirigir o movimento em São Paulo. Outra
condição, as reuniões da Moatzá se realizariam em sua
casa, porque ele por motivos familiares (casado, com
dois filhos pequenos) não podia se ausentar de casa
depois do trabalho.
Concordamos novamente, pois assim ele estaria sempre
presente nas reuniões...
A Moatzá
A Moatzá era formada por Isaac Takser, Uron (Urtzi)
Mandel, Paulo (o chamávamos de Pipe) Feldman,
Amnon Yampolski. Pola Szwartztuch era a única mulher
na Moatzá . Eu era o secretário-técnico, que preparava o
seder haiom (ordem do dia), dirigia as reuniões e
mantinha o livro de atas e a correspondência.
A Moatzá não tinha Presidente ou coisa semelhante.
Cada um tinha sua função. Takser era a autoridade
ideológica, Urtzi, o tesoureiro, que se encarregava de
fornecer todas as necessidades financeiras do
movimento – tinha uma habilidade virtuosa de obter o
dinheiro que o movimento necessitava.
Quando Samuel Kleiman aderiu ao movimento, ele foi
97
incluído na Moatzá. Era o responsável pelas kvutzot do
Bom Retiro, enquanto que Amnon era do Brás. Como
Pola viajou para Palestina a fim de participar no Curso
de Madrichim (instrutores) que o Departamento da
Juventude da Sochnut Haihudit (Agencia Judaica)
organizou em Jerusalém, Blima Plonka, madrichá do
movimento em São Paulo, ficou a única mulher da
Moatzá . Hoje concluo que éramos uma direção
machista.
Noach se recusou a participar na Moatzá , mas acabou
vindo esporádicamente a suas reuniões,.
Não me lembro porque Moshe não participou, pois
sendo um dos primeiros shomrim e principais
madrichim, deveria. Somente bem mais tarde, quando
Pipe abandonou, Moshe o substituiu.
As reuniões se realizavam em ordem inalterável.
Primeiro eu lia em voz alta o que eu tinha registrado da
reunião anterior no "Livro das Atas": data, lugar da
reunião, lista dos presentes, ordem do dia, resumo
brevíssimo do que cada um disse, encerrando com as
resoluções. Em respeito à leitura da ata anterior, Takser
não sabia de compromissos – sem a leitura e a unânime
confirmação da ata anterior, não se iniciava nova sessão!
Devo observar que antes do primeiro encontro com
Amnon e Moshé em minha casa, comprei um livro de
atas de tamanho fólio, muito volumoso, que chamávamos
de "Livro Azul" devido à sua capa dura de cor azul
marinho. Eu descrevia nele todos os acontecimentos no
movimento e ele se tornou o livro de atas da Moatzá e o
registro mais detalhado e fidedigno do que se passou
desde o começo no Hashomer Hatzair em São Paulo.
Quando parti para Israel em 1948, passei o Livro Azul às
98
mãos de Bernardo Goldsvaig, que me substituiu no cargo,
porque o livro ainda tinha uma quantidade enorme de
páginas não usadas. Ele procedeu da mesma forma ao
terminar o cargo de responsável pelo Ken São Paulo.
Ao escrever as minhas memórias no livro "Mischak
Ieladim?", procurei em vão o Livro Azul. Ninguém podia
me informar o seu paradeiro.
Na nossa primeira visita ao Brasil, em 1975, procurei
Israel Bogushwal, que foi o rosh haken (Chefe do
movimento) em São Paulo na década de 1960, Ele me
contou que quando os generais implantaram a ditadura
militar em 1964, o DOPS (Departamento de Ordem
Política e Social) empreendia buscas repentinas nas
organizações estrangeiras, e temendo que documentação
comprometedora do Hashomer Hatzair caísse em suas
mãos, Maurício queimou toda a papelada que havia na
secretaria, inclusive o Livro Azul.
No Rio de Janeiro o enredo foi diferente. No prédio onde
se encontrava o ken trabalhavam o zelador Cláudio e sua
mulher, encarregada da limpeza.
Cláudio, como era chamado Laudino Barbazan Pontes,
um anarquista na Guerra Civil Espanhola que se refugiou
no Brasil quando Franco tomou o poder, era muito ligado
ao pessoal do Hashomer Hatzair, a ponto de aprender e
usar todas as expressões hebraicas que estavam em voga
no palavreado dos shomrim. Quando percebeu que a
DOPS estava investigando as instituições judias nas
imediações, cavou no quintal uma vala e enterrou um
armário metálico com todos os documentos do Hashomer
Hatzair. Hoje eles estão depositados no Arquivo de
Guivat Haviva.
Quando Cláudio se aposentou, a Organização Sionista o
presenteou com um passeio a Israel, em apreço à sua
dedicação. Antigos shomrim cariocas que vivem em
kibutzim o hospedaram e passearam com ele pelo país. Eu
o conheci quando de visita em Gaash.
99
A segunda fase do "ritual" invariável: eu apresentava a
lista dos itens a serem tratados na reunião e os presentes
propunham itens a acrescentar, ou mudança da ordem.
Importante salientar que todas as resoluções deviam ser
aceitas unanimemente. Não me recordo de resoluções
tomadas por maioria. A gente discutia até "sair fumaça
da chaminé", quer dizer: que todos concordassem. O
"consenso", palavra muito em voga nas reuniões,
constituia um pricípio sagrado.
Admiro-me hoje como apesar das divergências e das
discussões, chegávamos bem rápido ao consenso
almejado. Em geral, Urtzi e Takser tinham opinião
opostas, e ai entrava em cena o papel que desempenhava
Noach, o mediador e pacificador, que com seu sorriso e
calma encontrava um ponto de concordância entre os
extremos. Desta forma, o barco navegava...
A terceira fase: eu lia o item de turno de acordo com a
ordem pré-estabelecida e dava a palavra a quem queria
se expressar, e ia marcando num papelzinho os que me
sinalavam para pedir a palavra. A ordem dos itens e dos
inscritos era sagrada, e meu cargo era cuidar para que
fosse seguida ao pé da letra. Devo salientar que as
gritarias eram raríssimas, e que geralmente nos
comportávamos como se estivéssemos na Câmara dos
Lordes em Londres.
Cada item terminava com a definição exata e unânime
da resolução.
A reunião que começava às 20:00, geralmente terminava
à meia-noite e os jovens viajávamos frequentemente
desde a casa de Takser, depois da Estação Sorocabana,
até ao Brás, comer pizza no restaurante "Gigeto". Para a
100
reunião eu ia a pé, mas voltava no carro de Samuel.
Blima Plonka, que se casou com o Samuel, e atualmente
é minha vizinha, me revelou que o automóvel pertencia
ao pai dela e o Samuel vinha as tardes pegar as chaves do
carro. As famílias deles eram vizinhas e muito amigas.
Sara, mulher do Takser, pequena e de óculos, era uma
"shomeret" fervorosa, e sem ser membro oficial
participava as vezes nas reuniões. Nós a acatávamos
porque era muito positiva e moderada, a única capaz de
colocar o marido no lugar.
*
Não me recordo em que circunstâncias entramos em
contato com a direção do movimento na Polônia, que se
organizou em Lodz depois da Segunda Guerra Mundial.
Recebemos dela alguns exemplares de revistas em
hebraico e do jornal "Mosty" em polonês. O redator era
Mark Gefen, que mais tarde foi em Tel-Aviv o redatorchefe do diário Al-Hamishmar, o órgão do Kibutz Artzi e
do Partido Mapam.
Ao tomar conhecimento de que eles tinham carência de
roupas, organizamos uma campanha em nosso ken a fim
de juntar um caixão de roupas para jovens e crianças
(roupas em bom estado, como se fossem novas) e o
despachamos à Polônia por navio. Depois de dois meses
recebemos confirmação de que receberam o caixão.
O Seminário
O movimento cresceu rapidamente e kvutzot novas
foram se organizando, geralmente de tzofim-tzeirim (de
13 a 15 anos) e os madrichim deles eram os tzofim de
Amnon, Samuel e Blima. Pequeno número de bogrim
mantinha, a muito custo, o movimento. Devíamos
101
prementemente ampliar o grupo de bogrim, e assim
surgiu a ideia do seminário de "hitrachavut" (expansão).
Estávamos em época de férias e resolvemos convidar
amigos para um seminário ideológico do Hashomer
Hatzair. Urtzi, muito relacionado com a diretoria do
Clube Macabi, obteve licença de usar a sede social do
clube para as reuniões. Durante uma semana nos
reuníamos diariamente depois do almoço, e
compareciam além de todos os bogrim, convidados
como Benjamim Raicher, Samuel Oksman, Chaim
Bulka, Bernardo Goldsvaig, Riva Shepshelevich, Hinda
Naiberg, Bernardo Cimering e outros, de quem não me
recordo.
Eu preparava a introdução do tema e em seguida vinham
os debates, muito animados. Lá pelas 16:00 aparecia o
Takser e ele tomava a batuta e concluía o tema, da forma
abalizada e autoritária.
De que falamos? De tudo que se pode imaginar
relacionado com a ideologia do Hashomer Hatzair:
sionismo, chalutzianismo, socialismo, marxismo,
materialismo-dialético, o kibutz, a fraternidade e a
igualdade, os Dez Mandamentos do Hashomer Hatzair.
Do ponto de vista intelectual e ideológico o seminário
foi um sucesso. Admiro retrospectivamente o nível e
seriedade dos debates, que contribuíram para a
consolidação da ideologia de nossos bogrim (a começar
de mim mesmo), porém os resultados práticos foram
minguados. Somente Riva, Bulka, Hinda e mais um ou
outro jovem se incorporaram ao movimento.
Bernardo Goldsvaig, amigo meu desde o tempo do
Talmud-Torá, informou-me que se identificava com o
102
Hashomer Hatzair, mas não podia aderir efetivamente
ao movimento, pois estava muito ocupado com sua
preparação para ingressar na Faculdade de Odontologia.
Eu o admirava como desportista – dedicava-se à atlética.
Samuel Oksman, como já relatei, foi a Recife lecionar o
hebraico.
Benjamin Raicher, a quem também já me referi, pessoa
carismática que eu respeitava muito pelos seus
conhecimentos de hebraico e judaísmo, compareceu a
todas as reuniões. Depois do seminário, ele me revelou
que veio por curiosidade de conhecer o Hashomer
Hatzair, porém já tinha um caminho decidido: ele já era
um dos dirigentes do Dror-Mapai em São Paulo (foi
quando fiquei sabendo disso).
Bernardo Cimering surgiu de Santos, e não me recordo
como o conheci. Rapaz sério e resoluto, dizia-se
borochovista e costumava citar pensamentos de Ber
Borochov. Foi muito ativo no seminário e veio até em
casa a fim de me comunicar suas conclusões. Tivemos
uma conversa amigável bem longa e concluiu que a
ideologia do Hashomer Hatzair era muito interessante,
mas não lhe convinha. Ele almejava ser um dos líderes
do sionismo, como David Ben Gurion, e o Hashomer
Hatzair não era trampolim para suas aspirações.
Ingressou no Dror-Mapai.
Justo quando estava saindo do meu quarto, Bernardo
deparou com meu pai. Eu os apresentei e Bernardo disse
ao meu pai "o seu filho é um rapaz bom e admirável,
mas não nasceu para líder". Eu me senti ofendido, mas
hoje concordo plenamente com ele...
103
Bernardo Cimering, hoje Dov Tzamir, líder do Dror no
Brasil e membro do kibutz Bror-Chail desde 1960,
realizou quase todos seus sonhos. Desempenhou os
cargos mais centrais de seu kibutz (mazkir por três vezes),
chefiou a direção mundial do Dror-Mapai, foi Secretário
do Ichud Hakibutzim (a antiga federação dos kibutzim do
Mapai).
Graduado em Ciências Políticas e História Judaica pela
Universidade Hebraica de Jerusalém, e Doutorato em
Estudos Estratégicos pela Universidade de Harvard, nos
Estados Unidos.
Foi assessor do Presidente Itzchak Rabin e chegou a ser
candidato a deputado na Knesset (Parlamento de Israel).
Currículo de vida de se prezar.
A lishká
No começo os bogrim se reuniam em minha casa. No
meu quarto havia duas camas (uma de minha irmã, a
outra minha) e no meio do quarto uma escrivaninha bem
larga com três gavetas: uma de minha irmã, uma minha,
e a terceira era a secretaria do Hashomer Hatzair.
Na Rua da Graça não havia nenhum prédio de mais de
dois andares e as casas, na maioria térreas, de moradia.
Em 1945 construíram um prédio de 4 andares, com
salões para alugar. Urtzi mobilizou a sua turma de exshomrim e eles alugaram o 4º andar para o Hashomer
Hatzair. O contrato por um ano foi assinado também por
Samuel Kleiman, o único boger com tal direito.
A nossa lishká, no último andar, era o menor salão do
prédio, com uns 6 metros de largura, mas bem fundo,
com dois quartos ao lado da escadaria. Um deles servia
para peula de kvutzá , uma de cada vez, e nela só haviam
cadeiras. A outra estava reservada para a mazkirut
104
(secretariado), tinha uma escrivaninha bem grande,
várias cadeiras e um armário, para os documentos,
livros. brochuras educacionais, bandeiras e outros
apetrechos. Tínhamos uma máquina Remington de
escrever.
A lishká estava aberta o dia todo, pois os chanichim
vinham passar ali o tempo livre deles, O salão era
suficiente grande para festas e mifkadim (ordem unida)
de todo o Ken, ordenado em sentido, cada kvutzá com o
seu madrich, que anunciava o nome da kvutzá e o
número dos chanichim presentes. O rosh hamifkad (o
chefe da ceremônia) anotava os números e depois de
calcular quantos presentes haviam, proclamava o
resultado em voz alta e aí vinha a vez dos hinos: Hatikva
(hino do movimento sionista e atualmente o hino
nacional de Israel), Techezakna (da Histadrut), Anu
Olim vesharim (do Hashomer Hatzair) e, às vezes, o
105
Hino dos Partisans Judeus "Al-nah tomar hinê darki
hacharona" (Não diga: este é o meu último caminho).
Depois de toda essa cantoria começava a peulá
propriamente dita: danças de hora, "iuhlalá" e outras.
Em seguida, algum programa coletivo ou cada kvutzá se
reunia com seu madrich em seu cantinho, Eventos de
todo o ken aconteciam em ocasiões de festas ou
comemorações, ou para recepção de visita importante.
Quando alugamos a nossa lishká não sabíamos que o
Betar alugara o segundo andar do mesmo prédio.
Aconteceu um acordo não escrito, armistício nãodeclarado entre o Hashomer Hatzair e o Betar – nada de
encrencas e discussões no prédio e nas vizinhanças. Para
chegar à lishká, devíamos passar pela entrada do Betar
(a escadaria até aí era comum aos betarim e shomrim),
mas nunca soube que houve um atrito ou choque entre
eles.
Eu tinha muitos conhecidos do Betar e quando nos
encontramos, não discutíamos politica. Só uma única
vez me lembro de um choque e briga entre nós, que
descreverei no episódio do Capitão Kolitz.
Como já contei anteriormente, um dos meus melhores
amigos no ginásio, senão o melhor, era Oswaldo Kowes.
Antes de eu começar a me interessar pelo Hashomer
Hatzair e ainda pertencia ao Departamento, ele me
apareceu em casa com um livro volumoso em espanhol
de Zeev Zabotinski, a fim de convencer-me a aderir ao
Betar. Bastou uma folheada no livro para devolvê-lo,
dizendo que não me interessava. Justo li um trecho
atacando ferozmente a Histadrut, e isto me bastou.
106
Durante os 7 anos que estudei no ginásio frequentamos
sempre na mesma classe, e como os alunos se sentavam
por ordem alfabética, sempre estávamos próximos.
Apesar de jamais termos discutido, desde que ele
ingressou no Betar e eu no Hashomer, paramos de
conversar. Nos comportávamos no ginásio, como nas
proximidades do prédio da lishká, como se não nos
conhecêssemos.
Este comportamento não impediu que certo dia Oswaldo
viesse me contar que um grupo do Betar entrou em
acordo com o comandante de um navio cargueiro de que
os levaria até a Itália e em troca eles lavariam o convés e
prestariam outros pequenos serviços. Na Itália a Agência
Judaica se encarregaria de transport9a-los a Eretz-Israel.
Oswaldo perguntou-me se eu estava interessado em vir
com eles, sem nenhum compromisso com o Betar. Ele
me afirmou que o grupo concordava em me levar.
Respondi que pensaria no assunto, mas antes de me
resolver, soube que um dos pais descobriu a trama e a
denunciou à Polícia. O comandante do navio foi
advertido a não embarcar clandestinos e assim terminou
a tentativa de ir a Eretz-Israel.
Em 1948, soube que Oswaldo e seus companheiros do
Betar viajaram, como nosso grupo, para a Itália, e foram
se apresentar aos representantes da Haganá em Milão
como voluntários de Tzahal.
Quando o nosso grupo veio ao acampamento-depósito
da Sochnut em Kurdani, perto de Haifa, procurar nossas
malas, que estavam jogadas no terreiro entre centenas de
malas de imigrantes como nós, qual não foi minha
surpresa em deparar com Oswaldo e seus companheiros
107
procurando as malas deles.
Um único momento de hesitação e
nos abraçamos efusivamente, Toda as
desavenças do passado esvaeceram
como se jamais tivessem acontecido.
A nossa amizade retornou-se intensa
até hoje, com a diferença que nos
últimos anos nos encontramos pelo
telefone. A idade..., a idade...
Como já disse, Oswaldo é atualmente
Asher Covesh, chaver do kibutz Kfar Szold.
Olim da Agentina
De todas as correspondências que eu mantinha, a mais
intensa era com o Hashomer Hatzair da Argentina.
Tinha contato com Chaim Kopelov, hoje meu vizinho
em Gaash.
Certa vez me mandou três livros em espanhol, que me
recomendou ler: A tragédia biológica da mulher de
Nemilow, a novela Facundo de Sarmientos e o ensaio O
Homem Medíocre de José Ingenieros.
Em Novembro de 1945 recebemos um telegrama da
Argentina comunicando que 3 olim (os que ascendem a
Eretz-Israel), os primeiros do Hashomer Hatzair da
Argentina – Chaim Kopelov, Arié Slotzki e Mordechai
Wainerman – viajavam no navio "Cabo de Hornos", que
deveria aportar no Rio de Janeiro durante um dia.
A Moatzá resolveu mandar Urtzi, Amnon e eu ao Rio
para nos encontrarmos com eles. Além dos olim do
Hashomer havia olim do Dror e do Hanoar Hatzioni, e
todos foram recebidos por jovens sionistas cariocas.
108
Nós estávamos no porto quando chegaram e com Abrão
Levandovsky como cicerone fomos passear pela cidade.
À noite todos os olim se encontraram na Biblioteca
Bialik com jovens sionistas do Rio.
Nós passamos a noite hospedados em casas de famílias
109
judias. Meyer Camenietzki me levou para dormir em sua
casa, mas passamos a noite inteira conversando. Ele
pertencia a um grupo de jovens simpatizantes do
Hashomer Hatzair, rapaz muito inteligente e com vastos
conhecimentos do socialismo e do marxismo. A
conversa animada continuou noite a dentro.
De manhã, Meyer me acompanhou ao aeroporto, de
onde voamos de volta para São Paulo. Tornamo-nos
amigos e continuamos a trocar idéias por
correspondência e pelo telefone, até quando ele saiu do
movimento, o que relatarei oportunamente.
O Hashomer Hatzair do Rio
O contato com os três olim da Argentina foi a mola
propulsora para fundação do Hashomer Hatzair no Rio
de Janeiro. Entre os primeiros se encontrava Pinchas
(Pini) Derechinsky, que pertenceu ao movimento na
Polônia. Eu o conheci no porto, e me deu a impressão de
shomer convicto, cheio de nostalgia ao movimento, mas
não me parecia capaz de líderar.
Além de Meyer e Levandovsky, não conheci os
fundadores do Ken, mas soubemos que se tratava de
uma turma de mais de 20, muitos deles alunos de
universidade e em geral mais idosos do que os bogrim
de São Paulo.
Com a nossa vinda ao Rio se estabeleceram os laços
entre as duas organizações, o Ken de São Paulo e do
Rio. Nós lhes remetíamos cópias do material
educacional que possuíamos e dos programas que
preparávamos para nossos madrichim (instrutores).
Mantínhamos constante contato por correspondência,
mas não estávamos a par do que acontecia no ken deles.
110
Neste interim veio ao Brasil o shaliach (emissário)
Natan Bistritzky, designado ao Rio, mas passou umas
duas semanas em São Paulo.
Natan Bistritzky
Natan Bistritzky, famoso poeta e escritor hebraico, era
shaliach (emissário) do Keren Kayemet que passou por
vários paises sul-americanos. Não sei definir exatamente
qual era sua função, mas teve um sucesso extraordinário
em suas conferências, que atraiam enorme público. Em
São Paulo, o Teatro Municipal estava superlotado
quando se apresentou ali. Era um orador muito teatral,
diria espetacular (de "espetáculo").
Até a democratização do Brasil no ano de 1945, no final
da Segunda Guerra Mundial, era necessário licença da
policia política para qualquer atividade pública. Mesmo
em espectáculos inocentes de cinema e jogos de futebol
um "olho" espreitava...
Na época da ditadura de Getúlio os shlichim
trabalhavam na penumbra em contato apenas com os
dirigentes da coletividade e a custo davam conferências
em "palcos" reservados, como o nosso Departamento
Juvenil e clubes judaicos.
Natan Bistritzky foi o primeiro shaliach a atrair
multidões.
Takser ficou muito emocionado com a vinda de
Bistricky e nos contou que ele foi nas vésperas da
Primeira Guerra Mundial um dos fundadores do
Hashomer Hatzair na Polônia, e em 1922 editou a
compilação "Kehilateinu".
Em 1920, 26 chalutzim do Hashomer Hatzair da Galícia
e de Vilna, chegados a Palestia, foram trabalhar em
111
Betânia Elit, fazenda experimental da ICA nas
proximidades do lago Kineret, onde sonhavam realizar os
ideais radicais de "cultura juvenil" r de "consertar o
mundo, o homem e a sociedade". O já famoso escritor
Bistritzky foi convidado, para escrever um livro sobre o
que pensavam e discutiam, e para esse fim conviveu com
eles por certo tempo. "Kehilatenu" (Nossa Coletividade)
relata as discussões de como transformar sonho utópico
em realidade. O livro transformou Betânia Elit em mito
nacional comparável a Tel-Chai e serviu de inspiração a
Yoshua Sobel em sua peça teatral "A vigésima noite", que
obteve sucesso extraordinário.
Outras obras de Bistritzky: versão hebraica de Don
Quixote de Cervantes, Iamim uleiltot (Dias e noites) em
4 volumes. Noite de Jerusalém, Jesus Nazareno.
*
Depois da primeira conferência pública de Bistritzky,
Takser, Urtzi, Amnon e eu fomos ao
hotel em que estava hospedado
convidá-lo a se encontrar com os
bogrim do Hashomer Hatzair. Ele
aceitou o convite com prazer, mas
frisou que sendo funcionário do
Keren Kayemet podia dedicar-se ao
Hashomer Hatzair somente depois do
trabalho, e acrescentou que ainda aquela noite gostaria
de se encontrar conosco fora da cidade, pois sentia
saudades das noitadas shômricas no campo, dos seus
bons tempos no movimento.
Mobilizamos todos os veículos dos ex-shomrim, mais o
de Samuel Kleiman, e viajamos como sardinhas todo o
cortejo de shomrim para o campo do Macabi, nas
margens do Rio Tietê.
112
Acendemos uma fogueira e nos sentamos em volta.
Noite de estrelas, muito romântica... Bistritzky, dotado
de uma voz muito potente. cantou conosco com muita
devoção "Arum der faier zinguem mir líder" (Ao redor
do fogo cantamos canções). Nos o acompanhamos e
esgotamos nosso repertório, em idish e hebraico.
Terminada a cantoria, nos calamos. Aguardamos
impacientes a palavra de Bistritzky, que cerrou os olhos
e se calou sem se mover. como se estivesse meditando.
Não sabíamos se estava dormindo ou não, e continuamos
aguardando, em silêncio,...
De repente Bistritzky começou a cantar em espanhol, em
surdina; "Amor, amor, amor / nasció de ti / nasció de mí/
de la esperanza..." e foi de "crescendo" até "altíssimo".
Prosseguiu com "La última noche que pasé contigo /
quisiera olvidarla pero no he podido".
Ao terminar, se levantou e declarou "Agora posso voltar
ao hotel".
Abismados e desapontados, nos levantamos...
No caminho de volta, Bistristzki, que viajava no carro de
Takser, comprometeu-se a realizar um seminário de três
noitadas sobre o Hashomer Hatzair.
*
Em nossa séde de então, a minha casa, não havia espaço
para todos os participantes do seminário, todos os exshomrim e bogrim. Obtivemos permissão de realizá-lo
na Escola Renascença e lá nos reuníamos às 22:00, a
espera de Bistritzky, que Takser trazia do hotel em que
estava hospedado.
No começo tínhamos que cantar, pois como era possível
113
uma reunião de shomrim sem o "Anu olim" e etcétera...
Desta vez Bistritzky não adormeceu e nos dissertou, nas
três reuniões sobre a História do Hashomer Hatzair,
desde o comecinho em 1913 até a fundação do Kibutz
Artzi no kibutz Merchávia, em 1927.
Confesso que presenciamos um espetáculo dramático e
empolgante. Bistritzky era um orador de estirpe! Falava
com ênfases e realces, como se estivesse perante um
auditório de mil assistentes. Naquela epoca eu não tinha
gravador, e portanto anotei suas dissertações palavra por
palavra. Lamento profundamente não encontrar estes
apontamentos, documentação preciosa em minha
opinião. Eu já sabia mais ou menos tudo que contou,
porém não encontro superlativo para definir a forma
virtuosa com que expôs e analisou os acontecimentos.
*
Para dar uma ideia dos "espetáculos" de Bistritzky,
tentarei descrever uma delas:
O Teatro Municipal, estava ultra-super-lotado. Com a
entrada de Bistritzky ao palco o público o recebia
cantando entusiasticamente "Leben zol Bistritzky mit zain
hora" ("Viva o Bistritzky com sua hora", dança
israelense) e ele acompanhava com sua voz potente,
dando compasso com palmas.
Em seguida parava no centro do palco, esperando que
houvesse silencio absoluto. "Um copo de leite", pedia
com delicadeza e lhe serviam um copo de leite preparado
de antemão. Ele o bebia lentamente, e o público, em
silencio...
"Shomrim, chazak!", proclamava em voz alta e todos os
bogrim presentes no teatro gritavam "Chazak Veematz!".
Proclamação e resposta, três vezes, como de praxe no
movimento. Em seguida cantava "Anu olim ve sharim, al
114
charavot ufgarim" ("ascendemos e cantamos, sobre
escombros e cadáveres"), hino do Hashomer Hatzair, que
lembra as palavras da Internacional "destruiremos o
mundo velho e construiremos sobre os escombros um
mundo novo", tradução livre). Os shomrim presentes se
levantavam em posição de sentido, e o público acabou
participando nestas cerimônias.
Aí Bistritzky iniciava sua dissertação, de até duas horas,
que hipnotizava os ouvintes, e a terminava com a
"Hatikva", que o publico cantava com entusiasmo.
*
Além do seminário, a maior contribuição de Bistritzky
ao Hashomer Hatzair em São Paulo foi a nossa
legitimação na coletividade judaica da cidade. Ele
forçou as instituições sionistas a reconhecer o Hashomer
como fato consumado e a Organização Sionista, o Keren
Kayemet e o Keren Haiessod tiveram que aceitar nossos
representantes em suas diretorias. O Urtzi, que antes
figurava nelas em caráter pessoal, tornou-se o nosso
representante oficial nestas instituições.
Convém
salientar
que
mesmo
antes
deste
reconhecimento, o Hashomer Hatzair obtinha mais de
50% das contribuições arrecadadas para o Keren
Kayemet pelos movimentos juvenis da cidade.
Bistritzky pavimentou o caminho para a fundação oficial
do Hashomer Hatzair no Brasil.
1945 – Com meus paiis
no pomar de Vovô
115
Capítulo 7 - Hashomer Hatzair no Brasil
A fundação oficial
Nossa posição na coletividade sionista em São Paulo
estava consolidada. O Hashomer Hatzair estava
representado por Urtzi nas principais instituições
sionistas da cidade, os nossos kenim no Bom Retiro e
Brás estavam se ampliando e funcionando como relógio
suiço. Chegara a hora de sair do anonimato e fincar pé,
fundar oficialmente o Hashomer Hatzair em um ato
representativo.
Urtzi não teve dificuldade de obter o salão de teatro do
Clube Macabi, e às 10 horas da manhã do dia 25 de
Dezembro de 1945 ele ficou repleto de ex-bogrim e
bogrim, simpatizantes do movimento, pais de nossos
chanichim e convidados da coletividade sionista da
cidade.
Eu, como desenhista-gráfico e decorador-amador, me
encarreguei de enfeitar o palco bem grande. As moças
prepararam a bandeira do ken: bordaram em um pano
vermelho o emblema do Hashomer (flor-de-liz com os
louros ao lado e o lema "Chazak Veematz") e em cima, o
título "Hashomer Hatzair do Brasil", tudo em hebraico.
Desenhei o emblema em uma cartolina branca e em
baixo, em português, em duas linhas, "Hashomer
Hatzair" e "BRASIL", e o coloquei no meio da parte
superior do cenário; como era pequeno demais, coloquei
um mapa de Eretz-Israel que emprestei do Keren
Kayemet. Também peguei emprestado pôsters de Bialik,
Ushiskin e Sokolov, que não sei o que tinham a ver com
nosso movimento, mas eram os únicos que lá havia.
Consegui do Macabi uma bandeira enorme do Brasil,
116
que penduramos do lado esquerdo, e a bandeira azul e
branca sionista (com um Escudo de David pequeno no
canto). Cobrimos a mesa comprida ao longo de quase
todo o palco com lençóis e pendurei nele lemas em
hebraico que desenhei em folhas de cartolina, como
"shomer paam, shomer lanetzach", (uma vez shomer,
shomer para sempre). Todo este cenário e as pessoas
figurantes foram imortalizados por Viotti, o fotógrafo
mais conceituado do Bom Retiro e na coletividade.
No centro da mesa estavam Paulo Feldman e Uron
Mandel e ao lado deles eu – Nahum Mandel – e Amnon
Yampolsky, representando o ken de São Paulo e do
outro lado Moshe Glat, do Rio, que veio com mais dois
bogrim do Rio. Além de nós, estavam presentes
representantes das mais importantes instituições
Sionistas: Vitório Camerini, Corinaldi, Jacob Lerner,
Maurício Blausteim,
Marcos Frankental. Como
117
representante do Centro Hebreu Brasileiro ali estava o
nosso já conhecido professor Citman. Atrás de todos
estava em nome de si mesmo Niúma Berger, primo de
Urtzi.
Urtzi dirigiu a sessão. Como era de praxe, cantamos a
Hatikva e Anu Olim, e Paulo Feldman dirigiu ao público
algumas palavras em idish e proclamou festivamente a
fundação do "Movimento Juvenil Sionista-Socialista
Hashomer Hatzair do Brasil". Aclamou "Chazak!" e os
shomrim bradaram "Chazak Veematz!", três vezes.
Amnon, nosso orador, congratulou o acontecimento,
primeiro em algumas frases em português, para passar
como era de seu costume a um hebraico com as
consoantes guturais bem acentuadas, como falam os
judeus orientais em Israel (sua mãe nasceu em EretzIsrael, descendendo de várias gerações de origem
oriental). Não sei precisar quantos pessoas entenderam o
que disse, mais foi fortemente aplaudido.
Alguns dos representantes também proferiram
congratulações, em português e idish.
Finalmente Isaac Takser, que poucos dos presentes
conheciam, subiu ao palco para dissertar em idish seu
discurso programático – sua estréia como líder do
Hashomer Hatzair.
Expôs uma resenha da história e da ideologia da
Hashomer Hatzair, falou sobre a "mered haben" (revolta
do filho, concepção sionista que os filhos não devem
seguir o caminho de Diáspora dos pais), não se esqueceu
do socialismo e do marxismo, de um mundo melhor e
mais justo que almejávamos. Em suma, em uma hora em
ponto abordou todos os aspectos da ideologia shômrica,
118
utilizando de lembrete um papelzinho pequenino com a
lista dos itens a abordar. Novamente, não sou capaz de
calcular quantos ouvintes convenceu com sua
argumentação analítica e detalhada.
Pode-se concluir que a cerimônia foi um ato histórico –
perante os pincipais líderes sionistas da cidade, o
Hashomer Hatzair do Brasil estava oficialmente
fundado.
*
À noite a Moatzá se reuniu na casa de Takser, com a
presença dos três delegados do Rio de Janeiro.
Moisés Glat relatou sobre o Hashomer Hatzair no Rio
de Janeiro. Gabou-se da shichvá (camada) de bogrim
(faixa de maiores de 18 anos), mais numerosa e mais
intelectual do que a de São Paulo, e descreveu
minuciosamente as suas atividades. Contou que eram
dotados de alta preparação política e de como,
conscientes da luta contra o capitalismo e o
imperialismo, participavam ativamente na campanha
eleitoral do Partido Comunista.
Aqui despertou uma discussão acerada sobre o
posicionamento político dos membros do Hashomer.
Takser principalmente foi o porta-voz da posição de que
o Hashomer Hatzair devia ocupar-se unicamente da
hagshamá-atzmit (auto-realização) das metas do
movimento.
O debate foi prolongado e "quente", mas não convenceu
o Glat.
*
119
Discussão com os Comunistas
O processo de democratização no Brasil depois da
Segunda Guerra Mundial provocou uma metamorfose no
cenário político do país.
Foi permitida a organização de partidos políticos, o
Brasil estabeleceu relações diplomáticas com a União
Soviética e o Partido Comunista foi reconhecido como
legal. Luiz Carlos Prestes, o legendário líder comunista,
foi solto da prisão e tornou-se o superstar da política
brasileira. Multidões afluiam aos comícios e "sabatinas"
dos dirigentes comunistas, que ocorriam em praças
públicas.
Células comunistas brotaram por todos os cantos como
cogumelos depois da chuva, e a campanha de
alfabetização que patrocinaram, atraíram homens e
mulheres de todas as idades, que vinham a aprender a ler
e escrever com os estudantes de universidades que se
prontificaram a ensinar.
As bancas de jornais vendiam por uma ninharia revistas
e livros (geralmente impressos em papel jornal) da
literatura comunista clássica: o "Manifesto Comunista"
e livros de Marx, Engels, Lenin, Stalin, Plekhanov,
Lassale e muitos outros. Também Trotzki e Bakunin.
Tenho impressão que li de tudo.
Nada como uma boa piada para se fazer idéia do que se
passava. Um jornalista, entrevistando a um camponês que
se tornou um comunista fervoroso, perguntou: "O senhor
é ateu?". A resposta imediata: "Sou, graças a Deus!".
Em tal ambiente não é de estranhar que muitos de nossos
jovens judeus estavam ofuscados pela "aurora do novo
mundo".
120
*
Minha principal controvérsia com amigos judeus do
ginásio inclinados ao Partido Comunista, sem pertencer
a ele (eu os apelidava de "comunistas de salão"), dizia
respeito ao sionismo e à doutrina de Theodor Herzl, que
em resumo defendia a tese que somente a criação de um
Estado Judeu solucionaria o problema do povo judeu.
Os meus contendores pró-comunistas alegavam que o
sionismo é um desperdício de tempo e de energia, pois
com a implantação do comunismo no mundo, a
libertação de todos os povos do jugo do capitalismo e do
imperialismo, automaticamente resolveria o problema do
povo judeu,
Em vista do que aconteceu na União Soviética, penso
atualmente que talvez eles tinham razão: se Stalin
continuasse a viver mais alguns anos, ele "resolveria" o
problema do povo judeu com mais eficácia do que Hitler
em sua "solução final". Não faltou muito para que a
assimilação vermelha tivesse melhor resultados do que
os crematórios.
Outra alegação comum, com palavreado do marxismohistórico-materialísta-dialéctico: somente ação da classe
proletária poderia redimir o mundo da exploração
econômica e da discriminação étnica e social.
Fator como o vínculo sentimental do povo judeu com
Eretz-Israel não tinha para eles o mínimo significado.
De acordo com eles, na História da Humanidade
somente as classes eram relevantes – ações de
indivíduos não influíam. Eu alegava o contrário, que
também classes e massas agem sob influência de líderes,
de indivíduos. Como exemplo citei Moisés. Jesús Cristo,
121
Buda, Maomé, que criaram religiões que mudaram o
curso da História, e acrescentei os nomes do grandes
conquistadores, Alexandre Magno, Gengis Khan, e
mesmo Hitler.
Que rumo tomaria a História se Júlio Cesar tivesse
resolvido não atravessar o Rubicon e se o general Junot
com suas tropas tivesse chegado a tempo a Waterloo e
Napoleão tivesse vencido a batalha (a biografia que
Stefan Zweig escreveu de Junot foi então lançada no
Brasil, com grande divulgação).
Para usar as armas deles, comecei a citar trechos de
Plekhanov sobre a influência de personalidades.
Lembro-me de que contei a fábula de como por causa de
um prego que caiu da ferradura de um cavalo, o
cavaleiro não chegou a tempo de entregar a mensagem e
devido a isso o general perdeu a batalha que mudou o
destino da humanidade. Para mim a Historia não era
apenas uma luta de classes. Era algo bem mais
sofisticado.
Meus
contendores
marxistas
retrucaram
que
independentemente das personagens individuais, a
História teria o mesmo rumo, e eu então os chamei de
"devotos do determinismo divino".
*
A convicção que conduta pessoal, como a dos chalutzim
que estabeleceram kibutzim em Eretz-Israel, influía no
destino do povo judeu, foi que me levou a largar os
estudos nas vésperas de ingressar na universidade,
abandonar a família e me alistar como voluntário ao
Exército de Defesa do novo país em plena Guerra de
Libertação de Israel (1948) – a guerra mais difícil e
122
decisiva dos judeus nos tempos modernos. Não obstante
os desapontamentos e frustrações que defrontei, essa
convicção, que até para mim me parece bombástica, me
manteve no kibutz e em Israel até hoje.
A questão do papel do indivíduo na História sempre me
empolgou. Quando editei a brochura "Nos bosques e nos
guetos" (me referirei a ela oportunamente) citei o que
escreveu Moshé Furmanski, um dos fundadores do kibutz
Ein Hashofet, morto em defesa de seu kibutz:
"Há quem lamenta sermos numericamente poucos.
Realmente, temos que crescer e avolumar, pois não
vemos nenhuma vantagem em nossa limitação.
Entretanto, como movimento chalutziano revolucionário,
devemos nos relacionar diferentemente aos números: dos
quinhentos Biluim (movimento sionista no século 19) que
vieram a Eretz-Israel, apenas 16 ficaram – eles que
fizeram a História. Milhões de judeus foram trucidados
na Europa e como foi ínfimo em relação a eles os que
combateram, como no Gueto de Varsóvia, mas eles
fizeram História". (tradução livre do inglês)
*
O mais acalorado dos amigos com quem eu costumava
discutir era Victor Nussenbaum, fervoroso anticapitalista que depois de se formar em medicina, foi
aplicar assistência médica nos Estados Unidos, e não na
União Soviética, como era de se esperar.
Os comunistas não obtiveram nas eleições os resultados
que esperavam. Conseguiram eleger senadores e
deputados, porém em número bem longe de suas
expectativas, e nem sequer desconfiavam da reação
iminente que estava na moita para dar o bote: acabar com
o festival e caçar os comunistas como se fossem bichos.
Isto aconteceu com o golpe dos generais que se
apossaram do poder nos meados da década de 1960,
123
quando eu já vivia em Israel.
*
O famoso discurso de Nikita Khrushchev no Vigésimo
Congresso do Partido Comunista na União Soviética
denunciando os horrores da ditadura stalinista abalou os
alicerces ideológicos dos "progressistas" judeus no Brasil
e eu soube que quando explodiu a Guerra de Yom Kipur
(1973) e a existência de Israel estava em perigo (as
primeiras notícias irradiadas pelas estações de rádio
comunicaram que Tel-Aviv foi arrasada pela aviação
egípcia), os nossos "progressistas" correram para as
sinagogas para jejuar e rezar pelo destino de Israel...
Fechamento do Hashomer no Rio
Dirigentes sionistas paulistas que retornaram do Rio de
Janeiro se queixaram conosco que o Hashomer Hatzair
no Rio de Janeiro não passava de uma célula camuflada
do Partido Comunista e que seus membros se ocupavam
em distribuir panfletos do Partido pelas ruas e. de
madrugada, pintar paredes com lemas comunistas.
Os rumores eram insistentes e não sabíamos como
reagir. De uma carta que recebemos em 8/3/46 de
Alberto Adoni, o secretário do Hashomer Hatzair no Rio
de Janeiro, soubemos das ótimas relações que o pessoal
carioca mantinha com Bistritzky, e resolvemos apelar à
sua ajuda para elucidar o assunto. Ele propôs realizar um
kinus (conferência) de bogrim das duas cidades e se
prontificou a dirigi-lo, com a condição de ser aceito
como a única autoridade e que suas decisões seriam
acatadas sem discussão. Afinal de contas ele era (assim
se apresentava...) na América do Sul o representante
pessoal de Meir Yáari, o líder indiscutível do Hashomer
124
Hatzair.
Nós concordamos. Adoni, com quem conversei pelo
telefone, também. E no dia marcado fomos ao Rio de
Janeiro, Isaac Takser, Paulo Feldman, Uron Mandel,
Amnon Yampolski, eu e outros bogrim (não me recordo
exatamente de todos) .
Nos encontramos com os bogrim cariocas (não consigo
recordar-me do local). Calculo que eram uns 30 jovens,
dos quais eu conhecia somente Meyer Camenietzki,
Pinchas Derechinski e Moisés Glat.
Chegamos antes do meio-dia, mas não fomos almoçar,
pois prepararam um bufê com uma chaleira de café e
uma quantidade enorme de sanduíches.
Bistritzky apareceu logo no começo da reunião e
imediatamente tomou em suas mãos as rédeas, ou
melhor dito, o leme, e dirigiu a "carruagem", ou "navio",
como um piloto experimentado em enfrentrar
tempestades.
Começou declarando que se encontrava na reunião como
representante pessoal de Meir Yáari, o líder máximo do
Hashomer Hatzair, e como tal seria o único árbitro das
desavenças que surgissem nos debates. Em seguida fez
uma resenha magistral em uma hora do que nos
dissertou no seminário ideológico em São Paulo durante
três noitadas.
Não descrevo, o que já deve ser evidente, a cantoria –
postulado sine-qua-non de toda atividade shômrica:
Hatikva, Anu Olim, e mais algumas canções – para
"esquentar o cano" (tradução literal de uma espressão
israelense, que não conheço equivalente em português),
e voltamos diretamente à vaca fria que nos trouxe ao Rio
125
– os rumores que o Hashomer Hatzair do Rio estava
envolvido em atividades comunistas.
Como não anotei o desenvolvimento do debate, não
posso citar com responsabilidade o que cada um disse,
além de informar que muitos presentes tomaram a
palavra a fim expor os seus posicionamentos. A maioria
dos participantes do Rio repetiram na discussão, com
leves nuances, o que Moisés Glat alegou na reunião na
casa de Takser, que sendo um movimento socialista, não
podíamos esquivar-nos do que se passava no mundo.
Não bastava sonhar com um mundo melhor,
precisávamos agir neste sentido, e como brasileiros e
marxistas tínhamos a obrigação de contribuir na luta do
Partido Comunista Brasileiro contra a opressão do
imperialismo capitalista americano. Não podíamos ficar
alheios ao destino do país em que vivemos.
Do nosso lado, a delegação de São Paulo defendeu a tese
de que o Hashomer Hatzair era antes de mais nada um
movimento sionista, que visava criar kibutzim em EretzIsrael (então Palestina sob mandato inglês). Era este o
nosso caminho para realizar a ideologia socialista.
Contávamos em nossas fileiras muitos jovens e crianças
e não podíamos nos arriscar a nos complicar na política
brasileira. O Brasil estava realmente em uma situação de
euforia democrática pós-guerra mundial, mas quem nos
garantia que não acontecesse uma reviravolta e que as
forças reacionárias em hibernação assumissem o poder
no país e voltassem a perseguir os comunistas e seus
simpatizantes.
Afirmamos que devíamos ser fiéis ao nossos ideais e
neles concentrar as nossas atividades. O Hashomer
126
Hatzair era constituído de kenim (plural de ken – ninho,
em hebraico - como era denominado a nossa unidade
organizacional, paralela à "tribo" dos escoteiros") e não
de células comunistas.
O debate foi se esquentando e à meia-noite Bistritzky o
interrompeu, propôs continuá-lo de manhã às 8:00 horas,
levantou-se e se retirou. A maior parte dos presentes não
abandonaram o salão – passaram a noite dormindo
sentados nas cadeiras.
Bem às 8 horas da manhã, Bistritzky retornou e os
debates recomeçaram. Ele os dirigiu, sem intervir.
Deixou todo o mundo falar, e se manteve calado.
*
Quando começou a anoitecer, Bistritzky deu paradeiro
às discussões e proferiu seu veredicto: membros do
Hashomer Hatzair que quiserem influir na política
interna do pais poderiam fazê-lo votando nas eleições, se
tiverem direito a votar. O Hashomer Hatzair tinha suas
finalidades e quem quisesse pertencer ao movimento
comprometia-se a dedicar-se única e inteiramente a elas.
Ele falou novamente da importância da hagshamá-atzmit
(auto-realização) dos objetivos shômricos.
Para encerrar, deu uma espécie de ultimato: cada um dos
bogrim cariocas deveria resolver por si o que quer –
pertencer ao Hashomer Harzair ou não. "Não se dança
em dois casamentos ao mesmo tempo"
(tradução de um ditado idish).
Ele pediu que não respondessem na hora
– que fossem para casa, meditassem bem
no assunto e depois decidissem.
Somente Pinchas Derechinski declarou
127
imediatamente que ele é antes de mais nada shomer e
sionista. Os demais preferiram se calar.
Nesta mesma noite, de madrugada, a delegação de São
Paulo voôu (voltou de avião!) para casa,
*
Soubemos por telefonemas que o ken do Rio de Janeiro
deixara de funcionar. Os principais membros do ken não
estavam dispostos a receber nenhum ultimato e deixaram
de comparecer. Pinchas, o declarado shomer convicto,
não era apto de dirigir o ken.
Soubemos que vários bogrim optaram pelo Partido
Comunista, e que na realidade já eram anteriormente
membros militantes dele. Entre eles, o Meyer
Camenietzki. Lamentei muitíssimo a sua perda.
Meyer Caminietzki era militante no Partido Comunista
do Brasil e chegou à posição elevada de Presidente do
Comitê Universitário do partido. Quando aconteceu a
reviravolta no cenário político brasileiro, o fechamento
do Partido, a cassação dos deputados e senadores
comunistas, muitos comunistas foram presos ou
simplesmente friamente assassinados.
Meyer se refugiou, como outros companheiros, no
interior do Brasil.
Em Minas Gerais Meyer conheceu e se casou com a filha
de um dirigente do Comité Central do Partido Comunista,
Armando Ziller, deputado estadual constituinte em 1945,
que foi cassado e caçado e se exilou na Tchecoslováquia.
Por ocasião da revelação dos horrores da ditadura
stalinista por Khrushchev, Meyer rasgou sua carteira de
membro do Partido Comunista. Terminou o curso de
medicina, formando-se em cardiologia. Em 1957 nasceu
seu filho primogênito, Eduardo, músico brasileiro e judeu
128
convicto, que na sua visita em minha casa em Gaash em
2008, me forneceu dados que eu desconhecia sobre seu
pai.
Desavenças famíliares terminaram em divórcio e Meyer
se casou pela segunda vez. Uma doença degenerativa
causou sua morte prematura.
*
Pola Szwartztuch viajou ao Rio a fim de participar em
um acontecimento famíliar e na reunião da Moatzá a
encarregamos de investigar o que ali estava acontecendo
com nossos shomrim.
Ao voltar, Pola trouxe consigo uma
caixa de cartão que recebeu do exsecretário do ex-ken, Alberto Adoni,
contendo cartas e outros documentos do
Hashomer Hatzair do Rio. Adoni foi
muito correto e entregou à Pola todo o
material pertencente ao Hashomer que
estava em suas mãos, inclusive o livro
de atas da hanhalá (direção), um envelope com dinheiro
e o livro de contas.
Alberto Adoni (se não me engano, de origem sefaradita)
o conheci na reunião com Bistritzky no Rio, a única vez
que nos encontramos. Impressionei-me bem dele, pela
postura e modo de falar, muito maduros para sua idade
(devia ter uns 21 anos). Devia ser muito instruído.
Alberto contou a Pola que se sentia identificado com o
Hashomer Hatzair, especialmente pela sua posição em
relação aos árabes (almejava a criação na Palestina de um
país binacional, judeu-árabe) e a luta do movimento
129
sionista contra o mandato inglês na Palestina, luta que
gozava de muita popularidade e simpatia nos meios
comunistas, que viam nela uma ação anti-imperialista.
Entretanto, concordando ser impossível pertencer
simultaneamente ao Hashomer e ao Partido Comunista,
ele optou por este útimo. Adoni revelou a Pola que
dirigia um comitê comunista em Niterói.
1940 – O ultimo dia no Grup o Escolar Marechal Deodoro
1947 – O útimo dia no Ginásio do Estado
130
Capítulo 8 – Avalanche de shlichim (emissários)
Bistritzky não foi na época o único shaliach (enviado)
de instituções judaicas, sionistas e não-sionistas, que
atuou no Brasil. Mesmo no tempo da ditadura getuliana
e da Segunda Guerra Mundial vinham shlichim, seja da
Argentina ou dos Estados Unidos. Quando escrevi sobre
o "Departamento", citei diversos deles. Nem todos tive a
honra de conhecer (como Natan Gross-Zimerman, que
foi o fundador do Dror em várias cidades do Brasil) e
peço desculpas àqueles de que nem cheguei a ouvir
falar.
A respeito de Yuris, que serviu mais de 20 anos no Rio
de Janeiro e de quem presenciei uma única conferência,
dei-me o trabalho de investigar no Arquivo Trabalhista
"Pinchas Lavon" em Tel Aviv e anotar resumo dos meus
achados.
Com a democratização depois de 1945, o Brasil tornouse um verdadeiro paraíso que atraiu uma avalanche de
shlichim de todos os lados e partidos, que afluiram para
empreender campanhas para seus empregadores.
Em seguida recordações de shlichim que conheci e cuja
atuação e influência na coletividade tiveram de certa
forma repercussão em minha vida. Volto a sublinhar que
apenas me referirei às minhas experiências pessoais, e de
antemão apresento minhas desculpas aos que se sentirem
esquecidos.
Emissários e mais emissários...
Que eu saiba, no período da ditadura getuliana vinham
131
frequentemente da Argentina, e às vezes dos Estados
Unidos, shlichim (emissários sionistas) para organizar
campanhas monetárias. Eles mantinham contato com os
dirigentes da coletividade e raramente compareciam
perante o público, devido às restrições políticas vigentes.
Ben Tzion Margolit (United Jewish Relief Appeal),
Abraham Mibashan (do partido Poalei Zion – Mapai), S.
Margushis (Joint Distribution Committee), Jacob
Helman (líder do Poalei Zion-Mapai), dr. Arie
Tartákover (World Jewish Congress) e dr. Naftali
Tortchiner (Tor-Sinai, da Universidade de Jerusalém),
Chaim Finkelshtein (diretor da Escola Shalom Aleichem
em Buenos Aires), os conheci quando proferiram
conferências no Departamento Juvenil.
Léo Hálperin e Natan Gross-Zímermen, que atuaram
longos períodos pelas paragens brasileiras, não cheguei
a conhecer.
Rachel Sefaradi-Yarden
Naqueles dias passou pelo Brasil, como um cometa, uma
shlichá, a única do sexo feminino que conheci, a sra.
Rachel Sefaradi-Yarden.
A Sra. Yarden, secretária para os países sul-americanos
do "World Commitee for Palestine" da Agência Judáica,
tipo misto de matrona romana e mãe judia-polonesa,
elegante, calma e bem-cuidada, foi uma inovação no
cenário da coletividade judaica: não a ouvi proferir
conferências, nem a vi em comícios de propaganda
sionista para arrecadar dinheiro, como era de praxe entre
os demais shlichim.
Como já relatei, no tempo das restrições ditatoriais o
shaliach mantinha contato somente com os dirigentes
132
locais. De 1945 em diante Bistritzky, e outros shlichim
sobre quem escreverei oportunamente, atraíram
multidões, mas geralmente sempre o mesmo público de
judeus.
A Sra. Yarden foi a primeira, e a única de meu tempo,
que transmitiu a mensagem do sionismo além deste
círculo. Não sei como conseguiu enveredar nas
principais cidades do Brasil pelos meios intelectuais
brasileiros e interessar professores, estadistas, artistas e
outras personalidades importantes e famosas não-judias
pelas metas do sionismo, a ponto de organizá-los em
Comitês Pró-Instituto Weizman. Basta citar um deles,
Osvaldo Euclides de Sousa Aranha (1894-1960),
político e diplomata brasileiro
que
desempenhou
cargos
importantes
em
governos
brasileiros, entre eles Ministro de
Relações Exteriores. Nomeado
embaixador nos Estados Unidos
tornou-se amigo do Presidente
Roosevelt
e
admirador
da
democracia americana, e como tal
pressionou Getúlio Vargas a tomar posição a favor dos
Aliados na guerra contra o nazismo.
Em Janeiro do 1942, Osvaldo Aranha presidiu a
Conferência do Rio, em que o Brasil e todos os países
americanos decidiram romper relações com os países do
Eixo, menos a Argentina e o Chile, que o fariam
posteriormente.
Em 1947, sendo chefe da delegação brasileira na recémcriada Organização das Nações Unidas (ONU), presidiu
133
a II Assembléia Geral da ONU e desempenhou papel
importante na votação pela partilha da Palestina e sua
atuação lhe rendeu eterna gratidão dos judeus e sionistas.
Uma rua em Tel-Aviv porta o seu nome.
*
Não posso deixar de me referir a um episódio que me
impressionou muito. Apesar de que quando menino não
entendia nada de comunismo, a figura legendária de Luiz
Carlos Prestes, o Cavaleiro da Esperança, e a marcha da
Coluna Prestes incendiaram minha imaginação. A
história de Olga Benário Prestes, sua companheira, me
comoveu – ela foi deportada à Alemanha (apesar de estar
grávida no sétimo mês e a lei brasileira não permitir a
entrega de um nacional a um poder estrangeiro), onde por
ser judia e comunista, sofreu durante 6 anos em vários
campos de concentração antes de ser morta em uma
câmara de gás em 1942.
Estranhei muito ao ler na biografia "Olga" de Fernando
Moraes o texto da carta da mãe de Oswaldo Aranha
pedindo-lhe não aprovar, por motivo humanitários, a
deportação de Olga, o que não o impediu de assinar o ato
de deportaçao. Esta conduta contradiz a descrição usual
de Oswaldo Aranha como combatente contra as
ideologias integralistas e fascistas.
*
Sempre fui, e ainda sou, admirador e amante do povo
brasileiro e de sua língua portuguesa. Devo minhas
convicções humanistas aos 20 anos em que vivi e me
eduquei no Brasil. Não consigo conciliar meu conceito
arraigado do povo brasileiro com a brutalidade que
descobri quando pesquisei a História do Brasil. Não me
refiro somente às torturas no périodo da ditadura dos
generais, mas às atrococidades no decorrer de todas as
guerras e repressões a rebeldias – às orelhas que os
soldados traziam para receber recompensas monetárias;
134
às decapitações e às mutilações de cadáveres... Para mim
a exposição em museu das cabeças de Lampião, Maria
Bonita, e outros cangaceiros, é uma barbaridade
desumana. Talvez esse comportamento seja herança da
Inquisição.
Não garanto que é verdade, mas ouvi contar que a
Gestapo mandou ao Brasil uma delegação de
especialistas em torturas e eles regressaram alegando que
não tinham o que ensinar aos brasileiros, e sim aprender
deles...
O Brasil que conheci e venero não é esse!
*
A Dna. Leocádia, mãe de Prestes, viajou para a
Alemanha e conseguiu receber em suas mãos o bebê que
a Olga teve, menina que recebeu o nome de Anita, levoua ao México, onde a educou.
Li um manifesto de intelectuais brasileiros apoiando os
"heróicos combatentes palestinos" que explodem bombas
em concentrações civis em Israel, como bares e
restaurantes, e repreendendo os "assassinos israelenses"
que matam crianças que se encontravam em casa de
moradia de onde palestinos atiraram mísseis a cidades
israelenses.
Fiquei chocado quando vi entre os assinantes do
manifesto o nome da Dra. de História Anita Prestes, filha
de uma judia trucidada no Holocausto e descendente pelo
lado materno do povo judeu – de acordo com o judaísmo
ela é judia, professora de História que repudia, ou ignora,
a história de metade de seus antecedentes.
Eu não deveria estranhar, conhecendo os rumores de que
Torquemada, Hitler e outros algozes tinham bisavós
judias...
*
A Sra. Yarden agiu no Brasil também em prol da "EretzIsrael Trabalhista". Ela realizou muito no Brasil, mas eu
135
a saliento por um motivo especial: como relatei em
capítulo anterior, em nossos primeiros passos deparamos
com antagonismo e hostilidade por parte dos dirigentes
sionistas. Na verdade a posição deles em relação a nós
era ambivalente: de um lado faziam tudo para impedir
nosso funcionamento, mas de outro não escondiam sua
admiração pela nossa atividade educacional em prol do
judaísmo e do sionismo.
Muitos pais estavam felizes que seus filhos em vez de
perambular pelas ruas curtiam um ambiente judeu, com
danças e músicas judaicas, e de normas morais elevadas.
Mas quando os filhos começaram a se interessar demais
por Eretz-Israel e pelo kibutz (colônia judia coletiva na
Palestina), a panela virou...
A Sra. Yarden, mesmo sendo partidária do "Poalei
Sion", Mapai, expressou em muitas ocasiões sua
simpatia ao Hashomer Hatzair, fato que nos ajudou a
entrosar na sociedade judaica.
*
Rabino Mordechai Nurok
O Rabino Nurok se encontra neste
capítulo devido a uma anedota, que relato
em seguida
Rabino Dr. Mordechai Nurok (1879-1962) – líder do
movimento e partido religioso sionista Mizrachi, oriundo
da Letônia, onde foi deputado desde o Primeiro até o
Quarto "Saiem" (parlamento) como representante da
coletividade judaíca, organizador do "World Jewish
Congress" nos Estados Unidos; membro da Knesset (o
136
parlamento em Israel) de 1949 a 1962; Ministro do
Serviço Postal em Israel (1952).
Como contei em um capítulo anterior, meu avô
costumava frequentar todas as rezas no pequeno shil
(sinagoga, em idish) no segundo andar de uma casa de
moradia na esquina da Rua da Graça com a Rua Corrêa
dos Santos (hoje Rua Lubavich).
Sempre que o Rabino Nurok vinha a São Paulo ele
costumava comparecer às preces neste shil de vovô.
Certa vez, nas vésperas das eleições do primeiro
Congresso Sionista depois da Segunda Guerra Mundial,
ele explicou aos presentes a importância de os religiosos
votarem pelo Mizrachi. Alguns dos presente, apontaram
ao meu avô e denunciaram em voz alta "ele vota para o
Hashomer Hatzair".
"Shá-shá-shá, idn (exclamação idish para acalmar). Não
caçoem dele: no local mais sagrado do Templo em
Jerusalém, em que somente rosh ha´cohanim (sacerdotemor do Templo) entrava apenas uma vez por ano, os
trabalhadores que cuidavam de sua manutenção podiam
entrar diariamente. Os chaverim (membros) do
Hashomer Hatzair, podem ser leigos e não-crentes, mas
eles estabelecem kibutzim (colônias coletivas) que
cuidam das fronteiras de Eretz-Israel".
Capitão Zvi Kolitz
O aparecimento do Capitão Zvi Kolitz, shaliach do
Keren Tel-'Chai dos revisionistas (dissidentes direitistas
da Organização Sionista), fez um furor em São Paulo,
especialmente entre as mulheres. Homem bonitão e
excelente orador, entusiasmava seus ouvintes com sua
oratória inflamada sobre a luta de Etzel e Lechi
137
(organizações terroristas que não
aceitavam as diretrizes da Organização
Sionista) contra o Mandato Inglês na
Palestina
Em uma de suas dissertações alguém lhe
perguntou o que pensava do Hashomer
Hatzair. A sua resposta, muito
diplomática, "eles estabeleceram kibutzim nas fronteiras
de Eretz-Israel e são muito dedicados ao sionismo. Para
fazer ideia das adversidades que enfrentavam: um de
seus kibutzim, Shaar Hagolan, na fronteira nas
proximidades do Rio Jordão, estava cercado de bandos
de árabes e a situação era tão crítica que tiveram que
fabricar sapatos para suas crianças usando pergaminho
de um Sefer-Torá (Livro da Bíblia, escrito à mão em
rolo de pergaminho). Os senhores devem entender, eles
se encontravam em situação realmente crítica".
Kolitz continuou a dissertação com a maior
naturalidade, como se nada houvesse acontecido, mas
aconteceu. A notícia de que um kibutz do Hashomer
Hatzair tinha fabricado sapatos com pergaminhos de
Sefer-Torá explodiu na coletividade como fogo no paiol
e a revoltou contra nós. Jamais nos defrontamos com tal
animosidade.
Convocamos reunião urgente da Moatzá para decidir que
atitude tomar. Resolvemos mandar um telegrama ao
Rabinato em Jerusalém pedindo informação sobre o
caso.
Em menos de uma semana recebemos telegrama
assinado pelo Rabino-Mor Hertzog (pai de Chaim
Hertzog, mais tarde Presidente de Israel) e Rabino
138
Maimon (fundador do movimento Mizrachi, então
membro da Diretoria da Agência Judaica), as duas
maiores autoridades religiosas judaicas da época,
refutando todos estes rumores a respeito de Shaar
Hagolan, a partir do simples fato de que em nenhum
kibutz do Hashomer Hatzair havia Sefer-Torá.
Munidos deste documento, um número de bogrim e exshomrim fomos a uma conferência de Kolitz no Círculo
Israelita. O salão estava repleto e o orador repetiu os
seus temas de sempre com o mesmo ímpeto de sempre.
Quando terminou, Urtzi perguntou em voz alta o que
aconteceu em Shaar Hagolan. Kolitz "comeu a isca" e
repetiu sua versão anterior, explicando que devíamos
entender a situação extrema em que o kibutz se
encontrava.
Foi o que bastou. Empunhando o telegrama em mão
erguida, Urtzi subiu ao estrado onde Kolitz estava,
sacou o microfone de sua mão e leu em hebraico com
tradução simultânea ao idish o texto do telegrama,
dirigiu-se a Kolitz e gritou em sua cara "charlatão,
mentiroso, caluniador".
Difícil descrever a continuação. Uma bagunça. Cadeiras
por todos os lados. Kolitz desapareceu. O público se
dissolveu em disparada. O salão vazio ficou como que
depois de um terremoto.
A Diretoria do Círculo Israelita exigiu que o Hashomer
Hatzair a indenizasse pelos prejuízos, mas ficou por isso
mesmo. A maioria da Diretoria nos deu razão.
Imediatamente mandamos uma circular a todas as
instituições sionistas no Brasil relatando a calúnia, com
cópia do telegrama.
139
Kolitz não conseguiu mais se apresentar em nenhum
lugar, pois imediatamente lhe perguntavam o que tinha
acontecido com os sapatos de Shaar Hagolan.
Assim terminou sua carreira de shaliach no Brasil.
Antes de relatar este episódio em meu livro "Mischak
Ieladim?", fui informar-me sobre Kolitz no arquivo de
Beit Jabotinski, a "fortaleza" do movimento revisionista
na Rua King George, em Tel-Aviv. Para minha surpresa,
fui muito bem atendido, apesar de ter-me identificado
como membro de um kibutz do Hashomer Hatzair.
Colocaram à minha disposição tudo que pedi, inclusive a
correspondência brasileira com a Netzivut HaRashit
(Comando Central do Betar) da época. Encontrei
relatórios referentes a Kolitz em São Paulo, mas nenhuma
palavra ao que aconteceu no Círculo Israelita e à história
dos sapatos.
Os arquivistas foram muito gentis comigo e me deram
permissão de copiar no copiador deles tudo que me
interessasse.
*
Eis alguns dados que consegui obter sobre Kolitz:
Zvi Kolitz (1912-2002) nasceu na Lituânia. Em 1936
viajou para a Itália e estudou na Universidade de
Florença e na Escola Marítima de Civita Vecchia (daí sua
patente de Capitão). Imigrou a Eretz-Israel, onde foi ativo
no movimento revisionista e publicou um livro em louvor
de Mussolini e a ideologia fascista, foi membro da Etzel,
serviu como voluntário no Exército Ingles e foi shaliach
do Congresso Judaico na América do Sul.
Em Buenos Aires publicou trecho de um testamento que
foi encontrado em uma garrafa entre os destroços do
gueto de Varsóvia – "Yossef Rakover conversa com
140
Deus" – que obteve grande repercussão no mundo
literário judeu, porém ficou revelado que foi ele quem o
escreveu. Ele mesmo reivindicou mais tarde esse direito e
teve dificuldades de provar... (já foi provado!.NM)
Casou-se com uma mexicana e foi morar no México.
Passou a residir nos Estados Unidos.
Em 1956 fundou uma companhia cinematográfica que
produziu o primeiro filme israelense de longa metragem
que teve sucesso internacional, "A colina 24 não
responde". Produziu peças teatrais na Broadway e foi
professor na Yeshiva University.
Além do arquivo do Beit Jabotinski,
tentei obter documentação sobre
calúnias ao movimento kibutziano e
viajei para esse fim a Jerusalém, para
ver o que poderia encontrar no arquivo
do Rabinato Central, localizado no
Heichal Shlomó (Palácio de Salomão).
Fui muito bem atendido pelo secretário
do Rabinato. Ele se interessou pelo assunto e me
informou que tinha ouvido rumores de calúnias que
houve contra kibutzim, mas não sabia detalhes, pois
aconteceram quando era muito jovem, muito antes de
quando começara sua atual função. Ele não acreditava
que no relativamente novo arquivo do Rabinato
encontraria alguma referência. Quanto à documentação
do Rabino Hertzog, não constava no arquivo, pois se
encontrava nas mãos da família.
Ele me aconselhou a procurar o Rabino Jacob Goldman,
que foi o secretário do Rabino Hertzog, e me forneceu o
seu endereço.
Bati na porta de sua moradia em um prédio de
141
apartamentos e uma vizinha me informou que após o
falecimento de sua esposa, o rabino Goldman passou a
morar em um asilo de velhos, Beit Sara, no caminho
para Hebron.
Obtive o endereço de Beit Sara, um instituto muito
conhecido, localizado em um edifício enorme e de
grande luxo, todo revestido de mármore branco. Não me
foi fácil entrar no bem guardado prédio. Somente depois
que o guardião conseguiu comunicar-se pelo telefone
com o rabino e ele concordou a me receber, um guarda
me conduziu ao seu apartamento. Este procedimento
levou mais de uma hora...
Fui gentilmente recebido. O Rabino Goldman, bem
velho, mas muito lúcido e de porte elegante, falava com
pronúncia acentuadamente americana. Ele me contou
que foi secretário do Rabino Hertzog durante muitos
anos, mas que na Segunda Guerra Mundial se alistou
como voluntário à Brigada Judaica do Exército Inglês,
onde serviu em função paralela a capelão. Ele soube dos
rumores sobre as calúnias, mas não estava então em
Eretz-Israel – contudo prometeu-me investigar o caso e
me relatar por carta o que conseguisse obter.
Realmente recebi em Setembro de 1984 a seguinte carta,
datada de 18 Elul Tashmad (calendário hebraico):
"Quanto ao telegrama – não sei nada a respeito.
No ano de 1943, com meu alistamento ao exército
inglês, demiti-me de meu cargo de secretário pessoal do
Rabino-mor z"l (acrônimo hebraico de "abençoada seja
sua memória").
Eu me recordo que nessa época acusaram membros de
kibutzim do Hashomer Htzair de ter matado lebres sobre
142
pergaminhos de Sefer Torá (Bíblia) e os mancharam de
sangue.
O rabino Shazuri z"l – então o secretário geral do
Rabinato Central – foi encarregado de investigar o caso
e ele chegou à conclusão de que não passava de uma
calúnia.
O Rabino Shazuri me revelou que duas personalidades
tentaram convencê-lo a confirmar a calúnia por "gdolá
aveirá l´shmá" (não sei como traduzir esta importante
regra talmúdica, que significa, mais ou menos, que é
permitido mentir para finalidades justas, como salvar a
vida de alguém), mas ele se recusou a aceitar a proposta
deles".
Telefonei ao Rabino Goldman para agradecer-lhe sua
atenção e ao lhe perguntar quem foram estas "duas
personalidades", ele retrucou que a única informação
que podia me fornecer é que eles não pertenciam à ala
direita.
Yossef Tchornitzky
Yosef Tchornitzky, shaliach do Keren HaYessod, a
réplica do Mapai a Kolitz, era uma pessoa elegante e
atlética impressionante (parecia na minha opinão com o
Tarzan de Johnny Weissmuller), com cabelos loiros
compridos puxados para trás. Tinha voz possante de
barítono e continuou a tradição de Bistritzky de cantar
antes de dissertar e o público o acompanhava. Trouxe ao
Brasil duas canções israelenses que se tornaram
famosíssimas:
"Zemer
Zemer
Lach"
e
a
internacionalmente conhecida "Hava Naguila".
Tchornitzky, ªthe right man in the right place, in the
143
right time" teve um sucesso fora do comum; atraía
multidões. Sua atitude em relação a nosso movimento
era ambivalente. Ele nos admirava e não estava disposto
a renunciar à presença de nossos chaverim em suas
conferências. Nós éramos uma espécie de claque que
cantava e dançava com entusiasmo e animávamos os
seus "espetáculos". Além disso, éramos entre a
juventude sionista os maiores arrecadadores de
contribuições para sua campanha.
Por outro lado tentou impedir o nosso desenvolvimento.
Não direta e frontalmente, mas com sua propaganda
contra a "politização" da juventude sionista e sua
atividade obsessiva de juntar toda a juventude sionista
em uma única organização unificada, que naturalmente
seria orientada pelo Mapai.
A pressão dele e de outros dirigentes sionistas da
coletividade de nos dissolver dentro da Unificada não
tiveram resultados. Estávamos decididos em seguir
nosso camimho.
*
Queixamo-nos perante a Hanagá Elioná (a suprema
direção do Hashomer em Eretz-Israel) contra esta
pressão de Tchornitzky e na resposta Adam Rand cita
carta que recebeu de Leib Yafe, o diretor do Keren
Hayessod: "Fiquei surpreso com sua carta, pois sabemos
que o sr. Tchornitzky, como todos nossos shlichim, não
se intromete em questões de partidos. Esperamos a vinda
do sr. Tchornitzky a Eretz-Israel na próxima semana,
conversaremos com ele sobre o assunto e voltarei a lhe
escrever".
*
144
Não sei dizer se Leib Yafe cumpriu sua promessa, mas
Tchornitzky veio mais duas vezes ao Brasil a fim de
dirigir campanhas para o Keren Hayessod, sem alcançar
o mesmo sucesso do que na primeira vez, porém foi
muito correto com o Hashomer Hatzair.
Por falar na Unificada devo salientar que em 1945 o
shaliach do Keren Kayemet que residia em Buenos
Aires, Léo Hálperin, vinha frequentemente ao Rio de
Janeiro. Não o conheci pessoalmente, mas no arquivo do
Departamento da Juventude da Agência Judaica em
Jerusalém encontrei cartas suas denunciando que
elementos "esquerdistas" estavam organizando grupos
sionistas (insinuação clara ao Hashomer Hatzair) e
propondo a ideia de organização de uma "Unificada", que
somente ela seria reconhecida pela Organização Sionista.
Hálperin reprovava o "separatismo" do Hashomer
Hatzair e sua "politização" e afirma que somente o
ingresso dos membros do Hashomer Hatzair na
Unificada garantiria a ligação deles ao sionismo. Em
carta datada de 9/1/1946 ele prometia fazer tudo que
estivesse ao seu alcance para afastar os membros do
Hashomer de seu caminho errado.
A reposta do dr. Ben-Shalom, o poderoso diretor do
Departamento da Juventude da Agência Judaica"
(22/3/1946).:
"... tenho a impressão que a forma que está sendo
organizada a aliança da juventude (quer dizer, a
Unificada. NM) afasta-se do princípio de participação
pessoal e talvez seja este o perigo da desintegração e da
divisão que o senhor descreve em sua carta".
Creio que as cartas de Hálperin se referem às atividades
pró-comunistas a que me referi em capítulo anterior.
145
Capítulo 9 – Ressurgimento do Hashomer no Rio
Nos esforçamos em manter contato telefônico com os
chaverim do Rio, especialmente com Pinchas, que nos
informou sobre a Juvenil Unificada, sob o patrocínio da
Organização Sionista: dos oito membros de sua nova
diretoria seis pertenciam ao Hashomer que se
desmantelou, entre eles o Diretor, Samuel Schultz.
Fizemos o possível para ressuscitar o ken – em vão.
Estabelecemos contato, por correspondência, com Zvi
Gandelsman, que não conhecíamos pessoalmente e a
quem era enviado o material que publicávamos. Ele me
escreveu reconhecendo que os rumos do ken carioca no
passado tinham sido um erro e que em conjunto com
outros chaverim estavam tentando reorganizar o
Hashomer Hatzair, desta vez não no sistema de
"células" como antes, mas nos moldes de kvutzot
(grupos) de várias faixas de etárias, a exemplo de São
Paulo. Eles estavam formando 7 kvutzot no Ginásio
Hebreu Brasileiro, e conseguiram reunir uma shichvá
("camada") de 20 bogrim (faixa acima de 18 anos).
Como vários chaverim (companheiro) desta faixa etária
ainda estavam indecisos, resolveram, inspirados pelos
movimentos chileno e uruguaio, organizar-se como
"Kedma", espécie de formação pré-shômrica.
Takser recebeu carta (2/1/1946) de um amigo do Rio de
Janeiro, Mendele Turnovski, professor de hebraico no
Ginásio Hebreu Brasileiro, pedindo que lhe enviasse
material sobre o Hashomer Hatzair, especialmente os
"Dez Mandamentos do shomer", para um grupo que
estava organizando no ginásio.
146
Takser lhe mandou um pacote de publicações e quis
saber quem eram estes jovens. Era exatamente o mesmo
grupo com que tínhamos contato. Quando souberam que
Turnovski pertenceu ao Hashomer Hatzair na Polônia,
pediram o seu auxílio, e ele, sem saber das relações do
grupo conosco, se comunicou por iniciativa própria com
Takser...
Moshavot no Brasil
Aproveitamos o nosso contato com a turma do Rio para
convidá-los a participar da primeira moshavá do
Hashomer Hatzair em São Paulo que estávamos
organizando.
*
Participei da primeira moshavá sionista no Paraná em
1944 e da primeira moshavá que o Centro realizou nas
férias de verão de 1946 (a qual descrevi no capítulo 4).
O Centro organizou no ano seguinte a segunda moshavá
no mesmo local da anterior, na fazenda do sr.Vaingort.
Também ela com mais de 100 participantes entre São
Paulo e Rio de Janeiro. Soube que foi um grande
sucesso.
O comum entre essas três moshavot foi a idade dos
participantes, que variava entre os 17 e 22 anos, e que
nem todos eram simpatizantes sionistas. Apenas judeus.
*
As moshavot do Hashomer Hatzair se diferenciavam em
vários aspectos. Em primeiro lugar a faixa etária dos
participantes ia de 9 a 20 anos. Em segundo lugar, a
moshavá era organizada de acordo com as kvutzot, cada
147
kvutzá com seu madrich ou madrichá, monitores. As
kvutzot em idade de ginásio vinham por todo período da
moshavá (planejado para um mês) e os alunos de grupo
escolar apenas por uma semana.
Finalmente, a nossa moshavá tinha caráter distintamente
sionista e basea-se t ambém em tzofiut (escotismo).
Conseguimos arranjar uma fazenda nas imediações da
estrada de ferro da Cantareira.
Do Rio de Janeiro
vieram Jorge (Zvi)
Gandelsman,
sua
sobrinha Zina Fishman
e Jacob Steinberg, que
foi o enfermeiro da
moshavá... Uma semana depois veio Abraão
Levandovski. De São Paulo participou quase todo o ken,
mais de 50 shomrim e shomrot.
Na fazenda havia somente uma única casa pequena, com
um quarto e varanda. O quarto, com um fogão de lenha
construído de tijolos, servia de dispensa e cozinha, e a
varanda, de refeitório, mas a maioria dos participantes
comiam sentados na relva, Ao lado da casa, em um
terreno que foi capinado, montamos dispostas em
circunferência nossas barracas, que podiam abrigar 3 a 4
catres de lona. Entre as barracas, no terreiro circular,
havia espaço suficiente para o mifkad que realizávamos
diariamente, em frente a dois mastros, um da bandeira
azul-e-branco sionista e o outro da bandeira vermelha do
Hashomer Hatzair.
O nosso único trabalho consistia na preparação das
refeições e na manutenção do acampamento. Os que não
148
eram designados para tais serviços se ocupavam na
maior parte do tempo em atividades de escotismo,
excursões pelas vizinhanças ou reuniões das kvutzot para
sichot (conversações, sobre temas sionistas e
shômricos).
Ao anoitecer acendíamos uma fogueira no centro do
terreiro e nos sentávamos ao seu redor, para cantar e
dançar hora. As canções mais requisitadas eram "Arum
dem faier zinguem mir líder" (em volta do fogo
cantamos canções), em idish, e "Ma tov u´má naim
shevet achim gam ichad" (Quão bom e quão suave é que
os irmãos vivam em união), em hebraico (Salmos,
1133:1).
*
Certa vez quando ainda estávamos ocupados na
organização da moshavá e dedicávamos muito de nossa
atenção em prever e ordenar os detalhes, Moshé Strauch
apareceu em minha casa e me disse "como é possível
uma moshavá sem uma canção, sem um hino?".
Concordei com ele: "que tal tentarmos compor uma
canção?".
Moshé gostava muito de cantar, e sua canção predileta
era "Meal pisgat Har a´Tzofim...". Ao chegar a
"Yerushaláim", sua voz muito potente ascendia aos céus
e nos causava um frêmito. Fomos até o piano de minha
irmã e nos sentamos no banquinho. Eu não estudava
piano, mas aprendi um pouco por mim mesmo, com
notas e tudo; aprendi solfejo nas aulas de música do
ginásio. Moshé, que falava o hebraico correntemente
(ele nasceu em Eretz-Israel), compôs a letra e eu
dedilhei os teclados a procura de uma melodia. Eu
149
costumava desde criança improvisar assobios, mas no
dia seguinte não me lembrava mais de minhas "obras
musicais" (a única que jamais esqueci é o "fufu-fi-fuuu"
que desde que nos casamos eu assobio para chamar
minha Shoshana). Fomos modificando palavras da letra
e notas da música até que chegamos a algo que nos
satisfez. Desta forma, em meia hora, compomos o "Hino
da Moshavá". Desta vez anotei as notas:
Tradução livre: "Vamos à Shomria / Lá é nosso lugar /
Cantemos e nos regozijemos / e tudo esqueceremos".
Trinta anos mais tarde, em um encontro (Kenes) de
brasileiros do Hashomer Hatzair no Kibutz Guivat-Oz, o
coral do kibutz cantou canções nostálgicas do movimento
brasileiro, e interpretaram com entusiasmo o "Hino da
Moshavá".
Somente Moshé e eu sabíamos como ele foi criado.
*
150
Como disse, preparávamos as refeições em um fogão a
lenha no único cômodo da casinha. Não diria que a
comida era de um hotel de 5 estrelas, mas o pessoal
lambia os beiços com os pratos que nossas bogrot
preparavam. Frutas e legumes havia a beça. Não
faltavam mantimentos e como não havia eletricidade na
fazenda comprávamos diariamente no vilarejo próxima
os produtos para cozinhar.
No quarto que servia de cozinha havia somente uma
janela bem pequena e não sei por que motivo um dia o
151
quarto se encheu de uma fumaça negra e espessa. Não
havia incêndio, mas a fumaça era sufocante e
intolerável. Todos fugiram do quarto com olhos
lacrimejantes, não podendo ninguém se aproximar.
Não sei que loucura me deu, nem donde peguei um
enxadão e a escada em que subi. Com golpes na parte
superior da parede quebrei tijolos até romper uma
abertura enorme que extraiu a fumaça do quarto como se
fosse uma chaminé.
O cozinha ficou "habitável" e as moças voltaram para
preparar a comida, mas as paredes, antes levemente
amareladas, ficaram negras como piche.
Foi exatamente neste momento emocionante que nos
apareceu o dono da fazenda para ver como "vão as
coisas". Prefiro deixar a continuação do relato para outra
ocasião.
*
Tudo estava indo às mil maravilhas. Cooperação, ordem
e obediência absolutas, e uma disciplina fora do comum
para jovens destas idades. Mas depois da bonança vem a
tempestade (perdoem-me os puristas por inverter o
ditado): um por um o pessoal começou a queixar-se de
dores de barriga e surgiram outros motivos de
preocupação: manchinhas no corpo, barriga inchada,
febre e outros sintomas de alguma doença que se abateu
sobre todos, inclusive o enfermeiro.
Procuramos um médico e em toda a redondeza havia
somente um único, o doutor Sontag. Ficamos sabendo
que era um judeu refugiado da Alemanha nazista, que
veio morar naquele fim-do-mundo perto de São Paulo
porque não conseguira revalidar o seu diploma de
152
médico, e ali exercia livremente sua profissão, com tal
eficiência a ponto de se tornar persona grata em toda a
vizinhança.
153
Ele nos tratou com carinho e dedicação, e se recusou a
receber qualquer honorário. Diagnosticou que
contraímos uma intoxicação intestinal devido à água que
bebíamos do único poço da fazenda. Jogamos cal dentro
do poço e fomos terminantemente proibidos de usar sua
água. Para beber, cozinhar e nos lavar, tivemos que
trazer água em um barril, de poços de vizinhos,.
O médico nos garantiu que não corríamos nenhum risco
e receitou alguns purgativos e outros medicamentos, que
nos forneceu gratuitamente. Realmente, fomos aos
poucos nos recuperando e a vida retornou aos trilhos.
No domingo os pais vieram visitar seus filhos e, mesmo
com nossa melhora evidente, ficaram horrorizados e os
levaram para casa, e assim terminou a moshavá, sem
nenhuma cerimônia festiva de encerramento, como
estávamos planejando.
Conclusão: a primeira moshavá do Hashomer Hatzair de
154
São Paulo foi do ponto de vista médico um fracasso,
pela inexistência de saneamento básico, porém um
estupendo sucesso em todos os outros sentidos, mesmo
tendo terminado uns dias antes da agenda préestabelecida.
Quem participou nesta moshavá jamais a esquecerá.
O escotismo do Hashomer
O Hashomer Hatzair se baseia sobre três pilares: o
Sionismo, o Socialismo e o Escotismo (tzofiut), que foi
por onde começou na Galícia na década de 1910.
As faixa de 11 a 17 anos de idade, tzofim (escoteiros), se
subdivide em tzofim-tzeirim (escoteiros jovens), ate os
14 anos, e os mais idosos, tzofim-bogrim (escoteiros
veteranos).
A faixa dos menores de 11 anos chamávamos de kovshim
(conquistadores), ligados ao tema da conquista da Terra
de Canaã pelos judeus comandados por Josué da Bíblia,
Yeshua ben Nun.
Quando ficamos sabendo da luta dos partisans contra os
nazistas, mudamos a denominação desta faixa para "bnei
ha´yaar", filhos do bosque.
Tzofiut (escotismo) era a principal atividade dos tzofimtzeirim e à medida que iam tornando-se mais velhos era
gradualmente substituída por educação sionista, sendo o
socialismo a ultima fase.
A aprendizagem de nossos monitores em escotismo se
baseava inicialmente no Guia de Escoteiros de Baden
Pawell. Inspirados em nossas relações com o Chefe
Theodomiro resolvemos inscrever bogrim em um curso
de Chefes de Escoteiros da Associação Brasileira de
Escoteiros em São Paulo, visando várias vantagens:
155
Chefe de Escoteiro diplomado pelo curso tinha o direito
de formar uma tropa de escoteiros, e vimos nesta
possibilidade um meio de legalizar oficialmente o
Hashomer Hatzair em São Paulo, Além disso, os
participantes do curso tinham a oportunidade de treinar
nas ótimas instalações escáuticas do curso. O principal:
aprenderiam bem o escotismo, afim de o ensinar no
movimento.
Moshé Strauch e Samuel Kleiman se inscreveram no
curso, que completaram com distinção e receberam
assim diploma de Chefe de Escoteiros, que lhs confiria
autorização de formar e dirigir tropas de escoteiros.
Shlomo Takser, Chaim Bulka e vários tzofim-bogrim
aproveitaram a participação de Samuel e Moshé no
curso para vir treinar frequentemente atividades
escáuticas sob a orientação deles nas instalações da
escola.
*
Munidos dos diplomas, Moshé e Samuel foram à sede da
156
Associação de Escoteiros do Brasil em São Paulo
encontrar-se com o comandante da organização. Eu os
acompanhei.
Fomos recebidos com muita atenção. O comandante era
um coronel aposentado do Exército, de cabelos
grisalhos, feições de indígena, de fala muito calma e
delicada, enfim uma pessoa simpática.
Ele cumprimentou a Samuel e Moshé pelas altas
distinções que alcançaram no curso. "Sentimos orgulho
de escoteiros como vocês".
Animados com tal demonstração de simpatia, contamos
ao comandante que pretendíamos organizar tropas de
escoteiros nas escolas Renascença e Luiz Fleittlich e que
esperávamos contar com sua cooperação.
O comandante nos ouviu pacientemente e sem retrucar
uma palavra tirou da gaveta uns manuais do Hashomer
Hatzair em espanhol e os colocou na mesa em nossa
frente. Ficamos estupefatos, sem saber como reagir.
"Sei bem o que vocês são e pretendem fazer. Lamento
muito, mas não posso permitir tropas de escoteiros que
pregam ideologia comunista e a criação de colônias
comunistas na Palestina. Não pretendo denunciá-los à
Polícia porque sou um grande admirador do povo judeu
e apoiador entusiasta de causa judaica, mas vocês não
podem usar a nossa cobertura".
Explicamos ao comandante que não tínhamos nada a ver
com o Partido Comunista nem com sua ideologia, que
as colônias a que ele se referia eram aldeias coletivas,
pregavam a igualdade dos seres humanos, a ajuda
mútua, mas não tinham nenhuma ligação com nenhum
partido comunista. Ele disse que nos entendia, mas tropa
157
de escoteiros brasileira não pode ter nenhuma conexão
organizacional com entidades estrangeiros.
Terminou a audiência. O comandante nos acompanhou
até a porta e nos despedimos gentilmente; recebemos
abraços amistosos.
Avanhandava
Voltamos atordoados. Não sabíamos o que pensar, e
tentamos analisar os acontecimentos. Como na fábula "a
raposa e as uvas" (o que não está ao alcance, está podre)
chegamos à conclusão que foi até melhor não nos termos
registrado como tropa de escoteiros: para que
comprometer-nos? Foi então que nos lembramos que
havíamos dado os manuais que o comandante nos
mostrou à direção da tropa Avanhandava de escoteiros
judeus da CIP.
AAssociação Escoteira Avanhandava, a tropa de
escoteiros da CIP (Congregação Israelita Paulista), foi
fundada em 1938, o quarto grupo escoteiro do Estado de
São Paulo.
Judeus alemães que fugiram da Alemanha nazista e se
estabeleceram no Brasil, encontraram um país com um
governo de cunho ditatorial. A proibição de encontros em
grandes grupos era uma situação bastante difícil para
estrangeiros com uma cultura, história e religião comum.
Especialmente para os jovens.
O escotismo funcionou então como uma camuflagem, a
única maneira pela qual seus encontros seriam
desvinculados do estado de estrangeiros ou judeus. Com
a total proibição de utilização de nomes estrangeiros,
surge do tupi-guarani a Avanhandava, que significa
"homens de todas as raças".
*
Como relatei em capítulo anterior, um de nossos
158
problemas no ken de São Paulo era a enorme
desproporção entre o número de bogrim (faixa de 17 e
22 anos) e o número dos demais membros, que chegou
em dois anos a 500...
Já me referi ao seminário ideológico. Outro passo que
demos foi procurar relacionar-nos com o Avanhandava.
Não posso precisar exatamente o que queríamos
conseguir. Contamos a eles que chaverim nossos
estavam participando curso de Chefes de Escoteiros e
lhes propusemos cooperação no terreno que tínhamos
em comum – o escotismo. Parece–me que também
tentamos aproximá-los ao sionismo.
Falhamos. Eles não estavam interessados – não houve
outros encontros. Entretanto eles ficaram com os
manuais educacionais que lhes mostramos.
159
Capítulo 10 - Depois da moshavá
As consequências mais marcantes da moshavá: em São
Paulo, a lishká se tornou uma verdadeira colméia de
jovens, e não tínhamos monitores suficientes para
organizá-los. No Rio de Janeiro, Jorge Gandelsman e
seus companheiros da moshavá realizaram uma
verdadeira revolução educacional e organizacional,
adaptando o ken aos moldes clássicos do movimento.
Pelos relatórios que recebemos soubemos do sucesso
que o ken teve em juntar novamente uma shichvá grande
de bogrim, entre eles o arquiteto David Reznik, o
professor de hebraico Jacob Felberg, Akiba Shechtman
(secretário do ken), Moisés Glat (único que já conhecia).
Diria que havia começado um período de progresso,
harmonia e cooperação entre os movimentos de São
Paulo e Rio de Janeiro.
*
Hans, filho do dr. Sontag, que aparecia de vez em
quando na moshavá, o vi em nossa lishká.
Wolf Kucinski, filho do notável professor e escritor idish
Meir Kucinski, que morava em Tucuruvi, um município
bem atrasadinho nas proximidades da nossa moshavá,
vinha a ela de cavalo e carroça e se ligou à kvutzá de
Samuel Kleiman. Atualmente meu vizinho, contou-me as
tragédias que aconteceram a Hans,
A mãe de Hans morreu atropelada por carro guiado pelo
pai. Hans ligou-se por um tempo ao Hashomer Hatzair,
mas não foi aceito à hachshará e passou ao Dror. Foi
membro do Kibutz Bror Chail, onde se casou. O
matrimônio não deu certo, se divorciou, foi morar em
Ashdod e trabalhou como estivador no porto. Morreu em
um acidente no cais.
160
*
Depois da moshavá entramos em um período de intenso
florescimento. Não conseguimos dar conta do fluxo de
jovens que nos procuravam. O nosso problema era que
não conseguimos ampliar a faixa acima de 17 anos, e a
falta de monitores para as kvutzot. Já me referi que
surgiram grupos em Vila Mariana, Cambuci e Casa
Verde, que se esvaneceram por falta de monitores.
Estabelecemos também contatos intensos com jovens
judeus em Recife, Belo Horizonte, Salvador da Bahia e
Curitiba.
Recife
O meu primeiro contato com jovens de Recife ocorreu
quando ainda era presidente do Departamento Juvenil.
Conheci então José Machman, que veio de visita a São
Paulo. Fizemos amizade e mantivemos correspondência
regular enquanto estávamos no Brasil. Foi uma amizade
bem estranha, pois tínhamos posicionamentos antípodas,
quer dizer, diametralmente opostos. Ele era ultradireitista, de ideias extremistas, e me escrevia cartas
inflamadas contra a "apatia" das instituições sionistas na
luta contra o Mandato Inglês na Palestina. Ele se dirigia
a mim como se eu fosse o responsável pelo movimento
sionista. Eu continuei a responder as suas cartas, não por
pirraça, mas porque realmente simpatizei com ele.
Sei que veio a Israel e foi residir nos territórios
ocupados, como era de se esperar. Não consegui
localizá-lo quando escrevi meu primeiro livro na década
de 1970, pois deve ter hebraizado seu sobrenome, já que
não encontrei "Yossef Machman" no lista telefônica.
Uma sobrinha sua, com que ultimamente por acaso fiz
161
contato pela Internet, me informou que ele faleceu.
Lembro dele neste livro não somente devido à nossa
exótica correspondência, mas porque ele intermediou
nosso relacionamento com o grupo de jovens que
fundaram o Hashomer Hatzair em Recife.
Outros recifenses que conheci na ocasião foram Rachel
Burstein e Ary Rushanski.
Rachel Burstein, moça elegante e bonita, que conheci nas
casa de meus vizinhos Raizman, interessou-se pelo
Hashomer Hatzair, e ao voltar a Recife ligou-se ao grupo
que fundou o ken. Casou-se na hachshará com David
Reznik, do Rio de Janeiro, que eu conhecia de nome, mas
no Brasil não cheguei a conhecê-lo. Anteciparam a vinda
a Israel e ingressaram ao Kibutz Ein Hashofet. Hoje
vivem em Jerusalém.
David Reznik, foi membro da segunda Hanagá Rashit, e
como arquiteto trabalhou com Óscar
Niemayer e fez uma carreira brilhante. Entre
outros projetos planejou em Brasília a
embaixada israelense e em Israel várias
faculdades da Universidade Hebraica de
Jerusalém em Har Hatzofim (Monte Scopus),
o monumento Yad Kenedy e a Universidade
dos Mórmons. Reznik foi laureado com
muitas honrarias, como o título de Yakir
Yerushaláim (persona dileta de Jerusalém) e o Prêmio de
Israel.
Ary Rushanski veio para a 2º moshavá do Departamento
Juvenil, de que eu fui um dos organizadores, mas não
cheguei a participar nela porque abandonei o
Departamento e estava ocupado em organizar o
Hashomer Hatzair. Ary esteve em minha casa e após
um breve concerto em nosso piano ficamos
conversando. Ele se interessou muito pelo Hashomer
162
Hatzair e ao voltar a Recife foi um de seus fundadores.
Ao passar pela Bahia conheceu a Shoshana Spilberg e a
estimulou a organizar o Hashomer Hatzair na cidade.
Ary esteve na hachshará e veio com o grupo ao kibutz
Maabarot, com a intenção de se juntarem depois ao kibutz
Gaash, mas voltou ao Brasil e formou-se em odontologia.
Acabou regressando com a família a Israel, para viver e
praticar sua profissão na cidade.
*
Quando o ken de Recife se estabeleceu,
nomearam Mordechai Raichel para rosh
a´ken (chefe do ken), e passei a me
corresponder com ele.
Mordechai Raichel se encontrava em Recife
por conta dos estudos. Quando estávamos
organizando em 1948 o primeiro garin aliá
(grupo de imigração) a Israel, ele era sério
candidato ao grupo, mas devido ao falecimento
repentino de seu pai teve que ir a Belém dirigir os
163
negócios da família. Casou-se com Laura Abitibol;
tiveram uma filha, Genia; teve sucesso nos negócios, e
posteriormente veio com a mulher e a filha para Gaash,
onde desempenhou vários cargos. Grande amigo meu,
conversa vai, conversa vem, descobrimos que nos
conhecíamos de meninos na Escola Renascença, quando
eu tocava tamborim na banda. Faleceu prematuramente.
Belo Horizonte
Também Batia Patlajan, ativista na
juventude judaica de Belo Horizonte,
conheci nos meus tempos de
Departamento Juvenil.
No final de 1947, Batia deu o meu
endereço a Samuel (Shaya) Cernizon,
que fez um giro pelo sul do continente,
e ao passar por São Paulo hospedou-se
em minha casa por três dias. Ele se
interessou muito pela ideologia do
Hashomer Hatzair e eu lhe dei
endereços de meus correspondentes em
Curitiba, Montevidéu, Buenos Aires e
Santiago do Chile.
De volta para sua casa mandou-me relatório minucioso
de sua viagem contando que os meus endereços lhe foram
úteis, pois todos o acolheram amistosamente e o
hospedaram. Ele visitou as hachsharot na Argentina e
Uruguai e resolveu fundar um ken do Hashomer Hatzair
em Belo Horizonte.
164
Bahia
Como já contei, Ary Rushanski de volta da mochavá do
Departamento passou pela Bahia, onde permaneceu tres
dias em casa de uma tia. Ele conheceu Suzana Spilberg e
lhe contou sobre o Hashomer Hatzair. A Shoshana, que
tinha organizado em sua volta garotos de 12-13 anos e
estava madura para a ideologia do Hashomer, se
entusiamou pela ideia e recebeu de Ary o meu endereço.
Suzana me escreveu pedindo material. Eu lhe mandei
vários pacotes e mantive com ela correspondência
assídua.
Abraão Levandovski ao ser desembarcado na Bahia do
navio em que viajava clandestino em direção a Eretz
Israel (Palestina), conheceu a Suzana e lhe relatou sobre
a moshavá em que participou em São Paulo.
Suzana veio participar na segunda moshavá do
Hashomer Hatairem São Paulo, com Clarinha Cherker e
165
os irmãos Efraim e Edith Schraiber. Ao voltarem a
Bahia, fundaram o ken do Hashomer Hatzair na cidade.
A comunidade judaica da Bahia apoiou as atividades do
ken e até ajudou financeiramente.
Curitiba
O Hashomer Hatzair de Curitiba constituía-se de uma
única pessoa: Jacob Schüssel. Não me recordo como ele
se ligou a nós. Ele se definia como sendo o Hashomer
Hatzair de Curitiba. Schüssel, da idade de Takser,
pertenceu ao movimento na Polônia. Ele conseguia
assinantes para o "Al Hamishmar", jornal mensal em
idish publicado pelo Mapam em Tel-Aviv, vendia livros
e revistas que publicávamos, interessava-se pelas nossas
atividades e contribuía ao Keren Hashomer. Participou
em encontros de bogrim de todo o país, que se
realizaram em São Paulo e no Rio de Janeiro.
166
Soube por um sobrinho (outra descoberta pela Internet)
que em 1967 emigrou a Israel, residiu em Haifa, onde
faleceu em 1979. Quando escrevi minhas memórias em
hebraico o procurei, mas não consegui encontrá-lo. Bem
mais tarde soube que já tinha falecido.
Shlichim do Hashomer
Depois que conseguimos nos introduzir nas instituições
sionistas de São Paulo, que aceitaram representantes
nossos em suas diretorias, mandamos em hebraico ao
Dr. Ben-Shalom, diretor do Departamento da Juventude
na Agência Judaica em Jerusalém, uma carta (1/4/1946)
longa e com detalhadas explicações sobre nossa
situação: apesar de sermos o maior movimento da
juventude sionista no Brasil e que no primeiro seminário
de professores de hebraico em São Paulo, 14 dos 17
participantes pertenciam ao Hashomer Hatzair, éramos
os únicos que não receberam shlichim para nos orientar.
A resposta que recebemos, datada de 7/7/1946:
"Quanto aos shlichim, desejamos informá-los que eles
são designados não por suas ligações partidárias, e sim
por sua formação geral, seu ajuste pessoal ao cargo: a
organização e a educação hebraica e chalutziana da
juventude sionista, de todos as tendências e
ramificações. Quanto ao Brasil, selecionamos um
candidato e pedimos às instituições no Rio de Janeiro
que lhe providenciassem o visto e como não recebemos
resposta, ele foi enviado a uma missão urgente na
Europa".
Shlomo e Ilana Perla
Nossa correspondência com a Hanhaga Eliona (a
direção central do movimento internacional), localizada
167
no kibutz Merchávia, em Israel, era demorada, porém
contínua. Amnon e Takser traduziam as cartas que
vinham em hebraico e Amnon vertia para o hebraico o
que eu redigia em português.
Pedimos à Hanhagá Eliona que enviassem um shaliach.
Expomos as excelentes probabilidades que tínhamos
para ampliar o movimento no Brasil, se recebermos o
apoio adequado e relatamos as nossas dificuldades em
manter sozinhos o movimento. Eles nos aconselharam a
entrar em contato com Shlomo e Ilana Perla, os shlichim
centrais do movimento para a América do Sul, que
estavam em vias de terminar sua missão na Argentina,
depois de uma longa permanência nesse país, antecedida
por uma temporada no Chile.
Shlomo e Ilana eram para nós figuras lendárias, pois
estávamos informados do que realizaram no Chile e na
Argentina, entre o mais, a fundação de hachsharot
(fazendas de preparação para a vida no kibutz em EretzIsrael).
Escrevemos a eles pedindo que em seu caminho de volta
a Israel e ao kibutz Kfar Menachem levassem em
consideração a possibilidade de passarem algumas
semanas conosco, a fim de nos aconselhar e orientar,
especialmente na organização de uma hachshará no
Brasil.
*
Shlomo se revelou um psiquiatra que sabe ouvir calado.
Não nos aconselhou nada. Pessoa quieta, diferente do
que imaginávamos. A única coisa que estava disposto a
fazer por nós foi prometer interferir nas instâncias do
movimento em Israel para apressar urgentemente um
168
shaliach . Não concordou sequer em encontrar-se com a
nossa Moatzá ou comparecer a um mifkad em nossa
lishká. Estava exhausto.
Ilana concordou em ministrar uma conferência pública
sobre a educação coletiva no kibutz, que se realizou no
Círculo Israelita. Ela descreveu com uma voz delicada e
meiga a vida das crianças naquele ambiente social,
respondeu a inúmeras perguntas e conquistou a simpatia
do numeroso público presente.
Ficaram apenas dois dias em São Paulo, e quase não
saíram do hotel. Ficamos desiludidos, mas os
entendemos e não nos queixamos.
Nos Bosques e nos Guetos
Nos princípios de 1946 recebi uma considerável
quantidade de material informativo sobre os levantes
contra os nazistas nos guetos e nos bosques da Polônia e
me ocorreu publicar uma revista sobre o assunto, que era
praticamente desconhecido no Brasil. Todos se
entusiasmaram com a ideia e eu me encarreguei de sua
edição.
Urtzi se prontificou a tratar da parte
financeira. Coletou entre seus
amigos o dinheiro necessário para a
publicação e obteve de Klabin,
judeu proeminente da indústria
brasileira de papel, a matéria prima
necessária à impressão.
Chamamos a revista de "Nos
Bosque e nos Guetos" e publicamos
2000 exemplares, que enviamos para o Rio, Recife, Belo
169
Horizonte, Bahia e Curitiba.
Vendemos mais da metade da
edição no ato público "Contra o
Livro Branco de Bevin-Atlee" no
Estádio de Pacaembú, na maior
concentração de judeus que até
então houvera em São Paulo –
calcula-se em mais de 10.000.
Vendemos as revistas em dois
tempos e lamentamos não termos
impresso mais alguns milhares.
Esta publicação relatava pela
primeira vez detalhes dos
Levantes nos Guetos de Varsóvia, Vilna e Bialistock.
Pela primeira vez no Brasil a revista citava os nomes de
Mordechai Anilevitz, Arié Kaplan, Aba Kovner, Chaika
Grosman e muitos outros partizans e combatentes contra
os nazistas. Até então tínhamos ouvido somente sobre os
campos de concentração e crematórios. O Holocausto
somente tomou verdadeiras proporções na consciência
dos judeus no decorrer do julgamento de Eichmann em
Jerusalém (1961).
*
Outro furo jornalístico da revista foi a publicação do
"Hino dos Partizans" em idish e hebraico (com tradução
livre minha ao português), acompanhado de notas. Esta
canção se espalhou por todas as coletividades judaicas
no Brasil, hino que se cantava de pé, como o Hatikva
(hino sionista que se tornou o Hino Nacional de Israel).
Com o dinheiro que a revista rendeu, compramos o
mimeógrafo Edison no qual imprimimos os manuais e
170
boletins que publicamos e antecipamos um ano de
aluguel de nossa lishká na Rua da Graça.
O nosso endereço continuou a ser a caixa postal que
pertencia a Takser, A chave ficava comigo e eu ia
diariamente ao correio.
Editora Shomria
O extraordinário sucesso, jornalístico e financeiro, da
nossa primeira publicação inflamou nossa imaginação, e
a Moatzá resolveu fundar uma editora, que a
denominamos "Editorial Shomria" e seu logótipo
comercial era o emblema do Hashomer Hatzair.
Urtzi se encarregou novamente da parte financeira e eu
da parte editorial. Comecei a procurar manuscritos de
livros que pudéssemos publicar, pois não tínhamos
recursos para pagar copyright.
Por esses dias ondas de terrorismo da Lechi e da Etzel,
milícias secretas dissidentes da Organização Sionista,
entusiasmaram as populações judaicas. A política do
governo inglês de Atlee e Bevin contra a imigração de
judeus à Palestina revoltava todos os judeus, que
estavam atormentados com o Holocausto. Era difícil
enfrentar a onda chauvinista dos judeus. Até os
"progressistas" apoiavam os atos de terror contra o
"imperialismo britânico".
Foi quando caiu em minhas mãos o manuscrito
datilografado em espanhol "Contra o Terror na
Palestina" de David Ben-Zacai, que analisa as origens do
terrorismo e das organizações secretas judias,
explicando porque as instituições sionistas oficiais
combatiam tais organizações, e condenando a prática do
terrorismo.
171
Resolvemos que deveríamos publicar este livro em
português. Quem cala, consente, diz o ditado. Não
podíamos nos calar.
Urtzi novamente conseguiu gratuitamente de Klabin o
papel necessário. Eu entreguei o manuscrito ao dr. Idel
Becker, que era meu professor de espanhol no ginásio,
para o traduzir ao português. Não me recordo se lhe
pagamos pela tradução. Talvez uma importância
irrelevante.
Desenhei a capa e pedi a um amigo de classe no ginásio,
Jorge Cury (filho de sírio-libaneses), que era desenhista,
para dar um retoque profissional ao desenho.
Publicamos 3.000 exemplares! Justamente no
lançamento do livro os terroristas explodiram o hotel
"King David", sede do quartel-general do Mandato
Britânico em Jerusalém, que deixou os judeus de São
Paulo eufóricos: "Demos" um golpe nos ingleses, e de
nada adiantou explicar que a maior parte dos 70 mortos
que ali trabalhavam eram funcionários judeus
pertencentes à Haganá (a organização de defesa sionista
que, com a declaração do Estado de Israel, se
transformou no Exército de Defesa de Israel).
Conseguimos vender cerca de 300 exemplares – nem
metade das famílias dos nossos shomrim no Brasil
compraram o livro... As livrarias se recusaram a vender
os livros "para não ser taxadas de anti-semitas".
Do ponto de vista financeiro o livro não foi um fracasso,
pois o papel e a tradução nada nos custou, mas não sei
como conseguiram livrar-se das centenas de pacotes de
livros que ficaram encalhados na lishká.
172
Rumo ao Neguev
Eu não desisti de minhas aspirações editoriais. Ainda
estava ocupado e preocupado com a divulgação e venda
de nosso livro contra o terror, e ideias não cessavam de
me ocorrer à mente.
As instituições sionistas resolveram que a campanha
pró-Keren Kayemet do ano 1947 se realizaria sob o
lema "Nachalat Brasil b´Israel" (Terreno do Brasil em
Israel), implicando que o fruto da campanha seria
empregado para comprar terras na Palestina que
levariam o nome do Brasil. Para tal finalidade o Keren
Kayemet mandou um shaliach especial para organizar a
campanha – Yossef Krelemboim.
Yossef Krelemboim (1912-1991), que hebraizou o
sobrenome para Almogui, nasceu na Polónia. Chegou a
Eretz-Israel em 1930. Em 1937 tornou-se o braço direito
de Aba Khushi, o legendário Prefeito de Haifa. Em 1941
servindo no exercito inglês, caiu prisioneiro dos nazistas,
tornando-se o porta-voz de mais 1500 soldados israelitas
no campo de prisioneiros na Silésia.
Sua carreira política: secretário do comitê operário de
Haifa, secretário-geral do partido Mapai, prefeito de
Haifa, presidente da Histadrut (Sindicato dos Operários
de Israel) e da Agência Judaica, ministro no governo.
Krelemboim impôs às actividades da Organização
Sionista ritmo e eficiência desconhecidos no Brasil. O
primeiro a chegar ao escritório e o último a sair,
administrava a campanha como se a mesma fosse uma
ação militar.
*
Recebi naquela ocasião diversas publicações, em
173
hebraico, espanhol, inglês e francês (?!), sobre as 11
colônias que foram "levantadas" simultaneamente em
uma única noite no Neguev. Segundo a legislação
inglesa, baseada na lei otomana em vigor, casas com
telhados não podiam ser demolidas, e daí durante a noite
foram montadas casas, torres e paliçadas pré-fabricados.
Quando a polícia inglesa chegou tudo estava construído
e habitado.
Com tais publicações nas mãos me apresentei à diretoria
do Keren Kayemet, acompanhado de Urtzi, que ali era
nosso representante, e propus editar uma revista
dedicada à campanha divulgando reportagens ilustradas
da façanha das 11 colônias. A revista, de sociedade entre
o Hashomer Hatzair e o Keren Kayemet, seria dedicada
à campanha do Nachalat Brasil, com uma única página
informativa sobre o Hashomer Hatzair.
A Diretoria aceitou a sugestão, com a condição de que
os artigos a serem publicados, fossem sujeitos à
aprovação prévia de dois
membros por ela designados.
*
Intitulei a revista "Rumo ao
Neguev" e me dediquei à
tradução
dos
artigos
que
selecionei. A tradução do
hebraico me foi ditada por Pola.
Aproveitei minha amizade com
um amigo do ginásio, filho de um
dos diretores do "Diário Oficial",
órgão governamental do Estado de São Paulo, imprensa
das mais modernas da cidade, para que imprimisse a
174
revista. O preço saiu uma bagatela e a impressão de alto
nível.
Yossef Krelemboim, o shaliach especial
para a campanha, veio a São Paulo por
alguns dias, e eu o entrevistei para a
revista. Eu lhe traduzi oralmente o que
escrevi, recebi seu OK e retrato seu; para
ilustrar o artigo, que foi entregue à
impressão na última hora.
Quando já vivia em Israel, tive que ir certa ocasião para o
porto de Haifa, e bem em frente ao portão de entrada
deparei com Krelemboim, então o plenipotenciário
Yossef Almogui manda-chuva da cidade. Ele me
reconheceu, chamou-me pelo sobrenome, Mandel, e me
abraçou. Fiquei abismado! Tantos anos haviam passado e
ele se lembrou de mim... – apenas nos encontramos duas
vezes, quando o entrevistei e quando lhe trouxe um
exemplar da revista. Que memória extraordinária!
Depois de todas as revisões que fiz e de ter assinado a
prova autorizando sua publicação, me pediram o nome
do editor, sem o qual não poderiam publicar a revista.
Esta exigência inesperada me colocou em uma "sinuca".
Como me saio desta? De acordo com a lei, toda
publicação deveria levar o nome do Editor, maior de
idade (de 21 anos!) e brasileiro nato. Eu tinha apenas 20,
estrangeiro ainda não naturalizado. Nem sequer tinha
carteira de identidade.
No Hashomer Hatzair somente Emilio Blay era
brasileiro nato maior de idade, mas não consentiu que
usássemos seu nome, e quando apelei ao Keren
Kayemet, retrucaram "Esse é seu problema".
Por falta de alternativa, dei o meu nome e, para minha
175
surpreza, não me pediram nenhum documento!
Meu pai sempre criticou essa minha "modestia": "você se
dedica dia e noite, e o que tem disso? Nada! Niguem
sequer sabe que é trabalho seu". Desde esta revista assino
meu nome completo em todo trabalho de minha autoria.
Deixei de ser um anônimo.
*
Levei exemplares da revista para a diretoria do Keren
Kayemet e pedi o dinheiro para retirá-las, quando me dei
contas de outra "sinuca": a página informativa passou
raspando (os censores confirmaram o acordo), mas na
contra-capa havia uma letra "shin", símbolo do Mapam
para as eleições do Congresso Sionista, e a revista foi
vetada. Exigiram que a capa fosse substituída.
Devo uma explicação: usei para a capa um poster em
hebraico do Mapam para as tais eleições, da qual
eliminei as referências ao partido. Os lemas clamando
pela colonização agrícola de Eretz-Israel e a ilustração
eram coerentes às metas da campanha. Não dei
importância à letra "shin" isolada no canto e justamente
foi ela, como se diz em hebraico, "a palha que quebrou
as costas do camelo".
Quem salvou a situação foi Urtzi, que propôs que o
Hashomer Hatzair arcasse com todos os custos – a
revista seria nossa contribuição à campanha.
Foi um gesto acertado – Urtzi não teve dificuldade em
pagar a dívida (o preço era muito camarada e o papel
grátis) – vendemos facilmente 3000 exemplares e como
todo o ingresso arrecadado ficou inteiramente para nós,
foi um ótimo negócio. Contudo não sinto orgulho pela
falha.
176
Pessoalmente, a revista teve para mim uma importância
toda especial: pela primeira e única vez no Brasil meu
nome apareceu publicamente como Editor de uma
publicação. Em todas as outras publicações que editei,
assinava "Nahum" com letrinhas miudinhas em um canto
da capa. Além de mim, duvido que mais alguém reparava
nisso.
História da Haganá
Urtzi depositou o dinheiro no banco e novamente a
situação financeira do Hashomer melhorou. Muito!
Estimulado pelo sucesso, empenhei-me na procura de
material para nova revista ou novo livro. Foi quando
recebi do Departamento Sul-americano da Hanagá
Elioná em Israel dois manuscritos em espanhol
datilografados em papel de carta aérea: "A Nossa
Plataforma" de Ber Borochov (seu manifesto
programático do sionismo socialista), e a famosa
proposta de Mordechai Bentov, "Estado Bi-Nacional
como solução do conflito árabe-judeu na Palestina". Ao
mesmo tempo chegou às minhas mãos um manuscrito
em francês, "A História da Haganá" de Eliahu Golomb,
um dos líderes da Haganá.
Na Moatzá, após longo debate, prós e contras,
resolvemos publicar a história da Haganá, pois
achávamos que depois do fracasso do "contra" o
terrorismo, o certo seria imprimir simpatia "a favor" da
Haganá.
Encomendei a tradução do francês ao português a um
conhecido meu, Moisés Rovner, um jovem poliglota,
professor de línguas clássicas (latim e grego) na
177
Faculdade de Filosofia.
Não posso precisar quantos exemplares
vendemos. A edição nos foi entregue
uma semana antes de nossa partida a
Israel e desconheço o que se passou no
movimento desta data em diante.
Yechiel Harari
A Hanagá Elioná nos comunicou que
Yechiel Harari, do kibutz Ein-Shemer,
tinha sido designado para shaliach
central para a América Latina e era
com ele que deveríamos nos
comunicar. Harari se encontrava nos
Estados Unidos à espera de visto para a
Argentina. Takser já ouvira falar dele,
em seu sobrenome anterior Grimberg,
como shaliach "profissional" que serviu em muitos
paises. Trocamos cartas e até lhe conseguimos um visto
para visitar o Brasil, mas ele se recusou a vir – apenas
Buenos Aires o interessava.
Os meses foram passando e exatamente quando
recebemos a notícia que Israel Ziman, do kibutz Maanit,
estava para chegar ao Brasil como nosso shaliach,
recebemos carta de Harari informando sua vinda ao
Brasil com a mulher e uma filha, em caminho a
Montevidéu, para onde conseguiu visto de turista e sua
intenção era continuar de lá para a Buenos Aires.
Harari e Ziman chegaram juntos. Eram tipos
completamente distintos. Ziman nos deu a impressão de
178
um intelectual, comedido, pessoa de poucas palavras e
eu diria encabulado. Harari, ao contrario, tinha uma
personalidade forte, carismática e autoritária. Falava
com voz alta, como se estivesse dando ordens a um
batalhão.
Harari esteve uma semana no Rio e outra em São Paulo.
Mal pisou nas terras paulistanas, a primeira frase que
ouvimos dele é que devíamos reorganizar o movimento
no Brasil nos moldes clássicos do movimento mundial.
Em outras palavras, eleger uma Hanagá Rachit (direção
central) para dirigir o movimento no Brasil. Nossa
opinião era de que por enquanto não deveríamos
processar modificações estruturais drásticas no
movimento, devido às desproporções e relacionamento
delicado entre São Paulo e Rio de Janeiro. Em Recife,
Belo Horizonte e Bahia estávamos dando os primeiros
passos. Achávamos que quando Ziman se entrosasse em
seu cargo, ele empreenderia o necessário para
"normalizar" a situação.
Nós dissemos o que dissemos e Harari fez o que fez:
convocou uma convenção de bogrim em São Paulo para
eleger a Hanagá Rashit. Veio uma pequena delegação
do Rio de Janeiro, dentre eles Zvi Gandelsman e Samuel
Schultz. De São Paulo estiveram presentes todos os
bogrim. De Curitiba veio Jacob Schüssel, e assim o
conheci pessoalmente.
Harari abriu a reunião indo diretamente ao assunto:
pediu nomes dos candidatos para a Hanagá Rashit.
Como era de esperar, o consenso era que a sede deveria
ser em São Paulo, pelos mais variados motivos
apresentados, inclusive pelos cariocas.
179
Urtzi e Takser se recusaram a participar, mas não
tiveram remédio. Harari os obrigou. Urtzi era o
tesoureiro-financista do movimento e não havia
candidato para substitui-lo, e Takser o ideólogo
imprescindível.
Eu fui escolhido para secretário-técnico da Hanagá e
Ziman como o Diretor. Samuel Kleiman e Blima
Plonka, que deveriam ser candidatos certos, não foram
eleitos por motivo que explicarei em seguida. Amnon,
Moshé e os outros bogrim estavam ocupados demais
com seus cargos e não foram eleitos.
Do Rio deveriam ser eleitos dois chaverim, mas eles
apresentaram 3 candidatos, Zvi Gandelsman, Samuel
Schultz e Jacob Felberg (que eu não conhecia), e ficou
resolvido que os três ingressariam. Com a formação da
Hanagá Rashit, Harari considerou terminada sua missão
no Brasil.
*
O que aconteceu com a Samuel e a Blima? Muito
simples: eles moravam em casas vizinhas desde crianças
e suas famílias, se davam bem. Uns meses antes da
vinda de Harari eles comunicaram à Moatzá que
resolveram se casar. Takser, nosso ideólogo, fez um
escândalo – não se casam no movimento. Somente se
forem para a hachshará, no Uruguai ou Argentina.
Resultado – Blima e Samuel abandonaram o movimento.
Eu fique com a Kvutzá de Samuel, e não me lembro
quem cuidou da Kvutzá da Blima.
A kvutzá, apesar de eu a ter monitorado antes de a
entregar a Samuel, não me recebeu de braços abertos.
Estavam muito apegados a ele, e em uma ocasião que
180
nos encontramos, Samuel me revelou que a kvutza
costumava vir à sua casa. Eu lhe disse que não via
nenhum mal nisso, e que por mim poderiam continuar a
se encontrar com ele. A Moatzá concordou comigo.
Quando Harari e Ziman vieram, Samuel e Blima
voltaram ao movimento, graças ao trabalho de
convencimento de Ziman.
181
Capítulo 11 – 1948 – grandes acontecimentos
Meus estudos
Desde a mais tenra idade, quis ser arquiteto "quando
ficar grande". Nem tanto de residências, mas de pontes e
de cidades, em suma de urbanismo, mesmo não
conhecendo esta palavra.
Em 1948 me inscrevi no primeiro curso de urbanismo
que foi estabelecido em São Paulo e que estava para ser
inaugurado (se não me engano se trata da FAU,
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de São Paulo).
Contrataram professores da Itália, mas o curso não
chegou a funcionar. Somente quando já estava em Israel
recebi de meu pai carta com o comunicado de que o
ensino iria começar e devido ao atraso de meio ano os 6
candidatos que se inscreveram tinham sido aceitos sem
exames. Se eu tivesse recebido esse aviso antes de me
casar e de vir a Israel, não sei hoje como teria me
decidido então, caso tivesse que escolher entre o
Hashomer Hatzair e o Urbanismo... Nunca me arrependi
do caminho que escolhi, mas não ter estudado
arquitetura foi para mim uma perda irreparável! Tenho a
impressão de que o imperativo do movimento de que
seus membros renunciassem à formação universitária foi
um grande erro. Hoje, a agricultura e os trabalhos
manuais "b'rosh ilerishoná – hayadaim" ("Antes de tudo
– as mãos", o lema de Meir Yàari) cederam em Israel a
primazia às ciências e à alta-tecnologia, e os kibutzim
que não souberam em tempo acertar o passo com este
desenvolvimento se encontram em má situação.
Terminei todos os exames no ginásio e de madureza
(hoje supletivo) com notas suficientes para me diplomar
182
honradamente. As atividades no Hashomer Hatzair e no
trabalho (consegui um emprego parcial – 4 horas diárias
– como desenhista em um escritório de arquitetos) não
me deixavam folga suficiente para os estudos, pois além
do ginásio, como já relatei, estudava gráfica em curso
noturno.
Em uma das matérias deveria prestar exames exatamente
no dia de Yom Kipur. Eu nunca fui religioso, mas em
nosso Ginásio do Estado não haviam aulas nos feriados
católicos, e eu fui um dos dirigentes da comissão de
alunos judeus que foi pedir ao diretor do ginásio para
que não fossem realizadas provas no dia sagrado aos
judeus. Ele recusou, mas concordou que os judeus que
não comparecessem neste dia às provas, os fariam na
segunda época, sem perder o direito a uma "segunda
época" especial, caso fossem reprovados.
A maior parte dos judeus preferiu não adiar o exame a
fim de não perder a data de inscrição na universidade, no
caso de terem que prestar exame de segunda época. Eu,
homem de princípios, não compareci à prova.
Para mim o exame que me aguardava na segunda época
era decisivo, pois se falhasse nele não poderia me
inscrever na universidade, e a alternativa, conseguir o
certificado para ir a Eretz-Israel parecia-me um objetivo
inatingível (estávamos em fins de 1947).
Exatamente quando estávamos em meio dos
preparativos para a segunda moshavá do Hashomer
Hatzair, me apareceram Harari e Ziman e me botaram
na Hanagá Rashit. E como desgraças sempre vêm
acompanhadas, o arquiteto para quem trabalhava me
comunicou que estavam satisfeitos com meu trabalho,
183
mas que não poderiam disponibilizar uma prancha de
desenho para um desenhista em tempo parcial, de forma
que se eu não concordasse em trabalhar 8 horas diárias,
estava despedido. O salário que recebia não dava para
me sustentar sem que eu dependesse de meus pais, mas
era uma ajuda muito importante para um rapaz de 20
anos.
Tive uma conversa pessoal séria com Harari a fim de
explicar-lhe minha situação. Caso eu não continuasse os
estudos, deveria abandonar a casa de meus pais e não
teria como me sustentar. A solução seria ir para a
hachshrá do Uruguai ou da Argentina. Harari não
concordou de nenhuma forma, pois em sua opinião eu
deveria dedicar-me à Hanagá Rashit. Ele não se opunha
que eu continuasse os estudos, com a condição de que
eles não afetassem os meus cargos no movimento.
"Neste caso, preciso preparar-me para minha segunda
época, e se fico em São Paulo não consigo fazê-lo com a
moshavá na mente". Concluímos que eu pegaria uma
semana de férias fora da cidade.
A segunda moshavá
Como Harari ainda não tinha conseguido visto para a
Argentina, propusemos que ele ficasse um ou dois meses
em São Paulo para ajudar-nos a por em funcionamento a
nova Hanagá Rashit. Ele achou preferível viajar a
Montevidéu, acreditando que de lá lhe seria mais fácil
chegar a Buenos Aires.
Na primeira reunião da Hanagá Rashit, Harari exigiu
que doássemos para o Keren Hashomer o dinheiro que
tínhamos no banco. Recusamos, alegando que ele estava
destinado ao financiamento da moshavá.
184
Harari viajou com a mulher e a filha para Montevidéu e
ficamos sabendo que ele levou todo nosso dinheiro...
Deu um escândalo na nova Hanagá Rashit. Takser quase
devorou o nosso tesoureiro – o pobre Urtzi se defendeu
alegando que Harari lhe deu em nome da Hanagá Elioná
uma pekudá (ordem) de entregar a ele o dinheiro, para o
Keren Hashomer, e que ele, Urtzi, não podia recusar.
Harari passou vários anos em Buenos Aires como o
shaliach central para a América do Sul. De volta ao
kibutz Ein Shemer foi fundador e o diretor pedagógico do
Seminário de Guivat Haviva. Retomamos nosso contato
quando o Departamento de Construção do Kibutz Artzi,
onde trabalhei durante doze anos, me designou cono o
responsável pelas suas construções em Guivat Haviva.
Harari se dedicava a colecionar documentação sobre o
Hashomer Hatzair nos países sul-americanos, afim de
publicar monografias históricas. Não sei o quanto
conseguiu realizar de seu plano, pois já sofria da doença
que o levou ao túmulo.
Ele me pediu para escrever um depoimento sobre o
Hashomer Hatzair de São Paulo, e me mostrou as
páginas que recebeu de Jacob Felberg sobre o Rio.
Respondi-lhe que não tinha interesse em escrever artigos
informativos, mas lhe confessei que há muito tempo
alimentava a ideia de escrever minhas memórias, e nelas
o Hashomer Hatzair do Brasil teria o espaço que teve em
minha vida. Harari disse que era uma boa ideia,
conquanto que eu o fizesse rapidamente, porque "eu não
tenho muito tempo". Toda vez que nos encontrávamos
me perguntava, "nu (indagação em idish)? Já está
escrevendo?".
Quando comecei a escrever, foi como um furúnculo
maduro que explode: terminei o meu livro de memórias
"Mischak Ieladim??" em uma semana, quando fui
shomer-laila (guarda-noturno) na casa-das-crianças. Me
185
levou mais 10 anos para redigi-lo até ficar, em minha
opinião, pronto para ser impresso.
Mostrei o manuscrito a Harari, que chegou a le-lo
inteiramente, manifestou sua satisfação e prometeu
ajudar-me em sua publicação, o que não pôde cumprir –
sua doença foi mais rápida.
Ele se queicou que o que escrevi dele era injusto e que
ele se explicaria por escrito. Realmente recebi uma carta
detalhada, datada de 15/12/1983, justificando o seu
procedimento em São Paulo, tanto à Hanagá Harashit
quanto ao dinheiro que levou para o Keren Hashomer.
Devido ao meu respeito à sua perdonalidade, citarei um
trecho: "Não recebi salário do movimento (central). Era
costume naqueles tempos que o shaliach fosse sustentado
pelos movimentos locais em que atuava. Leve em
consideração que em todos os anos de atividades nos
diversos países em que servi não recebi um tostão sequer
de Israel ou de outra origem. O shaliach devia se
sustentar às custas do movimento local, e daí o sistema
da Polônia – o Keren Hashomer – que financiava as
atividades do movimento e os shlichim. De Eretz-Israel
recebi apenas as passagens das viagens e em todo país
que chegava, organizava campanha para o Keren
Hashomer, e visto que as possibilidades limitadas, em
nenhuma de minhas missões (e este é meu orgulho!) pude
passear pelo país, gozar de teatros, fazer compras,
etcétera. Em São Paulo, por exemplo, não conheci a
cidade, não estive em nenhum cinema ou museu. Em
poucas palavras: não saí do gueto..."
*
Ficamos sem nenhum dinheiro. E como disse
anteriormente, desgraças não vêm sozinhas. O nosso
shaliach, Ziman, sofreu um derrame cerebral e no
hospital nos informaram que seu estado era muito grave.
Sabíamos que ele era sobrinho do Rabino Aba Hilel
186
Silver, dirigente máximo do sionismo americano. Urtzi
comunicou-se com ele por telefone, e o tio tratou para
que Ziman fosse transportado aos Estados Unidos e ali
hospitalizado.
Israel Ziman ficou hospitalizado meio ano e voltou ao seu
kibutz, Maanit. Tentei anos mais tarde investigar o que
aconteceu com sua volta, mas não consegui resposta
satisfatória. Fato é que abandonou o kibutz e foi residir
em Jerusalém, onde se casou e trabalhou no
Departamente de Procura de Parentes, da Agência
Judaica.
A partida repentina de Ziman foi um golpe para nós,
pois entre outras tarefas ele estava encarregado de
preparar com Amnon o programa de atividades da
moshavá, enquanto que Samuel Kleiman era o
responsável pela administração e Shlomo Takser pela
parte financeira.
Amnon encontrou-se comigo e resolvemos preparar a
programação para os primeiros dias. Comunicamo-nos
com o pessoal do Rio a fim de pedir que os dirigentes
cariocas da moshavá viessem imediatamente a São
Paulo, para coordenarmos sua organização. Vieram
Moisés Glat e Samuel Schultz, que se encontraram com
Takser em sua loja e combinaram de reunir a noite em
sua casa todos os responsáveis pela moshavá.
*
Às 20:00 lá estávamos os membros da Hanagá Rashit
(Urtzi, Takser, Noach e eu). Convidamos todos os
bogrim encarregados de organizar a moshavá, mas
somente Amnon e Moshé Strauch apareceram.
Telefonamos para o Samuel, que nos informou que
estavam em sua casa ocupados com preparativos
187
técnicos e que viríam mais tarde. Takser era de opinião
que se a comissão preparatória não precisava da ajuda da
Hanagá, deveríamos confiar nela. Urzi ficou ofendido e
avisou que como não sabia de nada do que estava
acontecendo, não assumiria nenhuma responsabilidade
financeira por déficits eventuais.
Chegaram às 23:00. Foi uma reunião muito difícil.
Samuel e Shlomo, os responsáveis pela organização da
moshavá declararam que uma vez que eles eram os
responsáveis, a Hanagá Rashit não precisaria "fiscalizálos". Essa atitude me pareceu estranha, pois não me
parecia que alguém tivesse tal intenção, e achava que
éramos responsáveis por tudo que acontecia no
movimento. Takser achou que enquanto tudo
funcionasse corretamente, não teríamos motivos para
intervir.
Outra complicação: a delegação carioca devia trazer
consigo sua parte na verba do financiamento da moshavá
e eles nos informaram que ainda não tinham terminado a
campanha que estavam realizando para arrecadar o
dinheiro. Shlomo Takser efetuou, com suas economias
pessoais, as compras de mantimentos e alugou tendas e
catres para dormir.
Glat afirmou que quando viessem os chanichim trariam
consigo a quota que devem contribuir. Também
comunicou que na última semana da moshavá viria um
grupo de 20 a 30 chanichim entre 10 a 12 anos. Nós
fomos contrários a isso alegando que na moshavá não
haveria condições para alojá-los, pois não havia
suficiente verba para mais tendas, catres e alimentos.
Como eles não concordaram em abrir mão desta
188
exigência, o assunto ficou para ser resolvido mais tarde,
de acordo com as circunstâncias.
Apesar das discussões, a reunião terminou de madrugada
em uma atmosfera muito otimista e amistosa.
*
Schultz permaneceu em São Paulo por mais um dia para
auxiliar na compra dos mantimentos. Glat voltou ao Rio
pela manhã. Eu o acompanhei ao aeroporto e tivemos
bastante tempo para esclarecer detalhes. Voltei para casa
otimista e bem animado com a conversa amigável que
mantivemos. Enganei-me redondamente!
*
Alugamos por um mês uma fazenda próxima a Campo
Limpo, estação isolada antes de Jundiai.
Na fazenda havia uma única habitação de tijolos, e um
terreno capinado, destinado à montagem da tendas. Dois
dias antes do início marcado para a moshavá, Shlomo
Takser e Moshe Strauch viajaram num caminhão
carregado com as tendas, os catres e os mantimentos, e
Samuel Kleiman, com um grupo de tzofim-bogrimm,
partiram para a fazenda a fim de montar as tendas e
preparar a recepção dos participantes. Uma vez
descarregado, o caminhão viria à estação para
transportar suas bagagens.
Tudo bem planificado, mas como diz o ditado "o homem
põe e Deus dispõe..."
*
Fomos com todos os veículos que conseguimos
mobilizar à estação Central de São Paulo esperar os
participantes que deveriam chegar do Rio de Janeiro.
189
Com exceção da Companhia Inglesa dos trens de Santos
a Campinas, que funcionava pontualmente como os
relógios da torre da Estação da Luz, todas as demais
companhias funcionavam que era um "Deus nos acuda".
Sabia-se (mais ou menos) quando o trem partia, mas
quando chegava era outra história... O nosso trem do Rio
chegou a noite com um atraso de apenas 8 horas e sob
uma chuva torrencial.
O transporte do pessoal, mais mortos do que vivos por
conta da viagem, foi um empreendimento digno da
evacuação de Dunquerque.
A lishká, repeta de chanichim que esperavam por
aqueles que deveriam hospedar em suas casas, parecia
mercado persa. Muitos dos recém chegados se sentaram
nas escadarias, esperando serem levados para jantar e
dormir.
Uma mocinha sentada na escada chamou minha atenção.
Me disseram que era a Suzana da Bahia, com quem eu
mantinha
correspondência,
sem
a
conhecer
pessoalmente. Chamei a Regina Goldstein e lhe pedi que
a levasse para sua casa, pois ela me parecia muito
cansada. Foi o único caso que tratei pessoalmente –
todos os demais tiveram que esperar seus turnos. Como
verão oportunamente, se tratava de um "dedo de Deus"...
*
Na manhã seguinte o dia melhorou. Em São Paulo, em
dias de sol homem prevenido anda de guarda-chuva.
Ocupamos um vagão inteiro do trem e a viagem foi um
carnaval shômrico – canções e risadas; esgotamos todo
o nosso repertório de canções em hebraico e idish.
A nossa estação era ao todo uma plataforma de concreto
190
sob telhado de telhas. Todo mundo se sentou no chão
para aguardar o caminhão que deveria estar à nossa
espera, e depois de umas duas horas, como tardava a vir,
dois tzofim correram até a fazenda para verificar o que
acontecia. Voltaram para informar que o caminhão com
as tendas e os mantimentos ainda não tinha chegado.
Como começou a escurecer, resolvemos camihar à
fazenda carregando as malas na mão. Fomos andando
como uma caravana de camelos, cada um com sua mala,
que não tinham rodinhas com as de hoje. Coitadinhos
dos que trouxeram enxoval!
No início foi engraçado. Todos muito animados,
cantando em voz alta. Uma caravana cantante. E aí
aconteceu o que deveria acontecer: um pingo de água,
outro pingo, e mais outro... e os deuses abriram os céus
sobre nós. Não digo que caiu uma tempestade, mas deu
para nos molhar como pintinhos. Amontoamos as malas
debaixo de uma árvore, como se isso adiantasse para
alguma coisa, e saímos em disparada. Salve-se-quempuder!
Não posso explicar como no único quarto da casa
entraram uns 80 jovens, molhados dos pés à cabeça, e se
sentaram no chão, um ao lado do outro. Não havia
espaço para se deitar.
A direção da moshavá se reuniu em volta da mesa na
cozinha, na qual estava acesa uma lãmpada de querosene
(naquela fazenda ainda não tinham inventado a
eletricidade!).
Debatemos todos os aspetos possíveis da situação: o que
fazer com chuva e sem chuva, com caminhão e sem
caminhão, e dai por diante. A única possibilidade que
191
ninguém suscitou foi o cancelamento da moshavá e
voltar para casa.
O pai de Benjamin Casoy, um de nossos tzofim, homem
idoso e um dos patronos de nosso movimento. se
ofereceu a acompanhar o primeiro dia da moshavá. Ele
não participou da reunião; ferveu água em um aquecedor
de querozene, preparou café e o serviu aos jovens que
estavam sentados arrepiados.
Por questão de justiça, registro aqui outro pai, de Meir
Meller, que foi um patrono muito dedicado ao ken e se
tornou membro importante no Mapam da cidade.
Terminada a reunião, seus participantes se arrumaram na
cozinha, cada um como podia – uns deitados na mesa,
outros no chão. Encontrei ali dois catres que os que
chegaram antes trouxeram. Montei um deles e chamei o
sr. Casoy, para que fosse dormir nela. Quando o abri o
segundo reparei que um dos pés estava quebrado. Com
uma vassoura e um banquinho consegui esticar a lona e
já ia me repousar quando resolvi dar uma volta para
verificar se estava tudo em ordem..
Tomei a lâmpada de querosene e fui dar uma volta. Todo
mundo estava dormindo, sentados no chão, as costas de
um apoiados nas de outro. O cansaço venceu a roupa
molhada.
De uns dos cantos do quarto ouvi um ruido estranho, um
tênuo ranger de dentes bem baixinho; me aproximei com
cuidado de não pisar em alguém, para verificar o que
estava acontecendo.
Uma mocinha toda encaracolada tremendo de frio.
Reconheci a Suzana da Bahia. Dei-lhe a mão e lhe disse
"venha comigo". Ela aceitou: levei-a ate o catre que
192
preparei para mim. Ela se deitou e a cobri com uma
cobertor fino que encontrei.
Comecei a procurar um lugar para mim e acabei
deitando-me ao seu lado. Ela se moveu para me ceder
lugar. Foi quando reparei que seus sapatos estavam
enlamados e encharcados de água. Levantei-me, tirei-lhe
os sapatos, embrulhei seus pés descalços com um jornal
que encontrei e voltei a me deitar a seu lado.
Adormecemos – sono de justos...
*
Amanheceu um dia maravilhoso! O sol... pena que não
tenho vocação para poeta e não sei compor frases
bonitas que descrevam o atmosfera que nos envolveu.
Parecia um formigueiro de jovens correndo para lá e
para cá, e em um piscar de olhos o acampamento das
tendas estava montado, com mastros para as bandeiras e
tudo o mais, pronto para o mifkad matinal.
Estava me esquecendo – o caminhão com as tendas e os
mantimentos chegou de madrugada. Bufando e rugindo,
mas chegou... Tudo que poderia acontecer a um
calhambeque, aconteceu. Teve que ser rebocado a uma
garagem e durante dois dias todos seus mecânicos
suaram para o colocar em andamento. Aí estava ele, já
descarregado, orgulhoso de si mesmo, e viajou com um
grupo de rapazes para trazer as malas que deixamos no
caminho. Não há necessidade de descrever em que
estado chegaram, mas chegaram todas.
A refeição matinal consistia de café com leite e
biscoitos, que tomamos sentados na relva. Reunião da
direção da moshavá, desta vez curta e direta, e tudo
começou a funcionar como uma máquina bem
193
lubrificada.
Nunca vi tanto entusiasmo e jovialidade. Desta vez
depois da tempestade veio mesmo a bonança,
exatamente como escrito no figurino.
Procurei com os olhos a Suzana, mas reparei que estava
se esquivando de me encontrar e respeitei sua atitude.
Creio que ficou encabulada com os acontecimentos da
véspera.
*
Depois do almoço (a comida estava supimpa, ou o
apetite às alturas!) o sr. Casoy e eu nos caminhamos em
direção à estação para voltar para casa, muito satisfeitos
e otimistas.
Ao nos aproximarmos do portão, Suzana veio correndo
com uma carta para seus pais, me pediu para despachá-la
e me recomendou que cuidasse de lhe mandar as cartas a
ela endereçadas. Disse-lhe que não precisava se
preocupar e aproveitei para combinarmos um encontro
depois da moshavá. Nada de malícias – era para
conversarmos sobre o ken da Bahia. O fato de
acabarmos nos casando não tem nada a ver com esse
194
encontro.
*
Viajei para a cidade de Marília, na região de Araraquara,
onde viviam tios meus, que eram abastados e me
receberam como a um rei. Durante uma semana vivi
uma vidinha pacata e sossegada, mimado, cercado de
carinho, empenhado nos meus livros de estudo, que
largava somente para ir todas as noites assistir filmes
antigos no cinema da cidade. Meus tios tinham um
balcão reservado para a família.
*
De volta para casa e nos últimos preparativos para a
minha segunda época de exame, me aparece o Amnon
pálido e abatido.
Ele, o nosso orador oficial cujas palavras jorravam de
sua boca como de uma fonte inesgotável, me contou
gaguejando que coisas terríveis estavam acorrendo na
moshavá. Moisés Glat fumava como uma pipa e
distribuía cigarros aos jovens, induzindo-os a fumar – "a
proibição de fumar é um mandamento anacrônico do
antigo movimento na Polônia". Além disso os incitava
contra a direção "caduca" de São Paulo.
Amnon contou que quando estava dissertando a seus
chanichim (discípulos) sobre "materialismo-histórico",
Glat apareceu e não o deixou continuar, chamando-o de
impostor e mentiroso. Amnon estava abalado e me deu
para ler as apontamentos que preparou do que pretendia
dissertar. Li e não encontrei nada de errado.
Telefonamos para o Takser e mal dissemos "alô", ele nos
torpedeou com histórias do que se passava na moshavá,
que seu irmão Shlomo, que se encontrava na loja, lhe
195
contou. Ficamos de nos reunir à noite em sua casa.
*
Estávamos Takser, Urtzi, Noach, Amnon, Shlomo e eu.
Shlomo queixou-se que o pessoal do Rio não havia
trazido o dinheiro prometido e que todas as suas
economias haviam se acabado. A situação financeira da
moshavá estava crítica. Urtzi disse que não tínhamos
dinheiro no banco e que de qualquer maneira não estava
disposto a ajudar, depois que o afastaram dizendo que
não precisavam dele.
Resolvemos viajar no dia seguinte para a moshavá para
tratar dos problemas in loco.
*
Chegamos à moshavá com o carro de Takser. Urtzi e
Noach não vieram. Imediatamente nos encontramos com
toda a direção da moshavá. Glat veio com um cigarro na
boca. Takser lhe pediu que o apagasse, pois não se fuma
no Hashomer Hatzair. Glat retrucou que fumava deste
os 14 anos e não via motivo para mudar seus hábitos. O
volume da discussão foi subindo e Takser a interrompeu,
pois não ficava bem discutir na presença dos
participantes jovens da moshavá. Voltamos para São
Paulo.
*
À noite nos reunimos novamente na casa de Takser,
inclusive Schultz que voltou conosco. Sendo membro da
Hanagá Rashit, Takser exigiu dele que viesse para a
reunião.
Schultz comunicou que Zvi Gandelsman estava para vir
com o grupo de tzofim-tzerim (de 10 a 12 anos) e Takser
196
telefonou imediatamente para ele, afim de que não
viessem, pois a moshavá não tinha meios de recebê-los.
Resolvemos mandar, por intermédio de Schultz uma
carta para a direção da moshavá exigindo a expulsão
imediata de Glat, caso contrário nós romperíamos nosso
contato.
A resposta que recebemos após dois dias: eles não
aceitam ultimatos. A moshavá, por falta de mantimentos,
terminou uma semana antes da data prevista, Zvi
Gandelsman veio com o grupo de jovens sem se
comunicar conosco, e eles passaram lá um dia somente...
Com a segunda moshavá aconteceu o mesmo do que
com a primeira: terminou antes da data estipulada, mas
do ponto de vista emocional foi uma vivência
extraordinária e inesquecível.
197
Depois da moshavá
O ken do Rio de Janeiro com a volta dos participantes da
moshavá teve um desenvolvimento fantástico.
Em São Paulo nossa lishká, exatamente na época em que
suas atividades deveriam estar no apogeu, ficou deserta,
desolada. Eu estava inteiramente fora de mim, sem saber
o que fazer.
Meu consolo foi Suzana cumprir seu compromisso de
nos encontrarmos. Ela me telefonou da casa de Regina e
fui buscá-la para almoçar em minha casa. Minha mãe
preparou uma refeição toda especial, pois afinal das
contas era a primeira vez que eu convidava uma moça
para almoçar em nossa casa.
Depois da refeição saímos para passear pelo centro da
cidade e ao mesmo tempo conversar sobre as atividades
passadas e futuras do ken da Bahia.
Na praça da República havia uma novidade: japoneses
abriram uma venda de sorvetes que eram preparados na
hora, num aparelho manual onde colocavam dois
biscoitinhos e entre eles, as camadas dos sorvetes
escolhidos. Uma pressão no aparelho e saía uma cassata,
que embrulhavam em papel brilhante. Comprei uma para
Suzana e descobri então o seu fraco – sorvete.
"Você não compra sorvete para si?"
"Não. Não gosto de sorvetes". A verdade era que a
minha situação financeira não me permitia tal luxo...
Continuamos a passear e conversar sobre nossos
assuntos ideológicos, sem sequer suspeitar que seis
meses mais tarde nos casaríamos.
*
198
Eu estava inteiramente desorientado, sem trabalhar, sem
estudar, sem saber o que fazer. Prestei o exame que me
faltava e consegui passar (com nota 6!). Inscrevi-me na
nova faculdade de urbanismo, mas ela não começou a
funcionar. Minha vida se transformou em um enorme
vazio.
Rosa Levinson, a namorada de Amnon, voltou de uma
viagem ao Uruguai, entusiasmada com a visita que fez à
hachshará. Mandamos uma carta a Harari relatando o
que estava acontecendo em São Paulo e pedimos que
viesse imediatamente por algumas semanas para
estabilizar a situação. Também escrevemos que Amnon,
Rosa e eu estávamos planejando a ingressar na
hachshará uruguaia.
Como resposta recebemos uma carta em espanhol de Uri
Triyer, "secretário de Harari", comunicando-nos que
estavam prontos a receber na hachshará todo boguer do
Brasil, menos Amnon Yampolski e Nahum Mandel, pois
devido a instruções específicas de Harari eles deveriam
atuar no movimento brasileiro pelo menos mais um ano
e que cópias destas instruções tinham sido mandadas aos
movimento na Argentina e no Chile.
Harari não veio, mas recebemos em seu nome outra
carta de Triyer, propondo dividir o movimento brasileiro
em dois galilim (setores); o do norte (Recife, Salvador,
Belo Horizonte e Rio de Janeiro) sob orientação do Rio
e o do sul (São Paulo e Curitiba), sob orientação de São
Paulo. Havia, no entanto, uma única condição: a direção
do Rio deveria comprometer-se a mandar-lhe
mensalmente a devida contribuição ao Keren Hashomer.
A resposta que mandei foi talvez a carta mais agressiva e
199
rancorosa que escrevi: não havia nenhuma necessidade
de cisão do movimento. De nossa parte não nos
opúnhamos que a Hanagá Rashit passasse inteiramente
ao Rio, pois não víamos como continuar nela. Expressei
grande desgosto por sua manipulação monetária.
Reativação do Ken de São Paulo
Um belo dia, um mês depois do encerramento da
moshavá, Amnon apareceu em minha casa acompanhado
de três tzofim-bogrim: seu irmão Daniel e os irmãos Wili
e Mois Bessak. Eles vieram desculpar-se de seu
comportamento na moshavá com Takser, Urtzi, Amnon
e eu e me pediram retornar ao meu cargo. Para mostrar
o quanto estavam arrependidos me entregaram um maço
das cartas que receberam de Glat durante vários meses.
Bastou-me uma olhada para ver que os incitava contra os
ex-shomrim caducos, que não tinham o que fazer no
movimento, e acusando Amnon e Nahum de serem
"impostores, charlatões e mentirosos". Num gesto
cavalheiresco, do qual me arrependo, me recusei a pegar
as cartas.
Não podia recusar o chamado, e com a nossa volta, de
Amnon e minha, à lishka, como pelo toque de uma
varinha de condão, ficou novamente repleta. Também
Takser e Urtzi se apaziguaram e até organizaram uma
campanha entre os companheiros ex-shomrim para
ajudar ao Shlomo a recuperar-se do desfalque financeiro
pelo qual passou.
Akiba Shechtman, o secretário do ken do Rio continuou
a se comunicar comigo e me mandar cópias das atas das
reuniões da Hanagá Mekomit (direção local), donde
200
ficamos sabendo que Gandelsman e Schultz, que depois
da moshavá ficaram em São Paulo dois dias para ajudar
a ativar o ken, e Iura Bergman, que ficou uma semana
mais, ao voltar ao Rio informaram à Hanagá local que o
ken de São Paulo havia sucumbido.
A circular nº 2
Por mais que pensasse, não podia atinar com o que havia
acontecido na moshavá. O Glat representou o ken do Rio
na fundação do movimento e tínhamos a impressão de
que era um dos principais dirigentes do mesmo no Rio,
de forma que seu comportamento nos era estranho. Na
moshavá também participaram Schultz, Reznik, Felberg,
Iura Bergman e outros bogrim do Rio, o que ainda nos
deixou mais confusos.
Quando a nova Hanagá Rashit começou a atuar resolvi
editar uma circular mensal sobre as atividades do
movimente a ser distribuída às hanagot locais, a Yechiel
Harari, à Argentina, Uruguai e Chile, e ao Departamento
Latino-Americano Hanagá Elioná. Foi o que fiz com o
circular nº1.
Apesar do meu afastamento do ken, continuei mantendo
contato com Akiba Shechtman, tanto por cartas como
por telefone e em um
relatório que recebemos
informava sobre a resolução deles de solicitar ao
professor Turnovski que viesse a São Paulo para se
encontrar com seu amigo Isaac Takser a fim verificar o
que poderia ser feito para reavivar o Ken de São Paulo.
Aconselhavam também "afastar" da direção o Amnon e
o Nahum. Nunca soube em que pecamos.
Redigi então a circular nº 2, na qual relato em
pormenores a crise que houve na moshavá, porém em
201
segunda leitura resolvi mandar somente a cópia para o
Akiba, para verificar a reação. As cópias restantes ainda
estão comigo, em meu arquivo.
Turnovski realmente veio hospedar-se na casa de Takser
e organizamos em sua honra um mifkad de todos os
shomrim, inclusive o grupo de ex-shomrim.
A lishka mal conseguia abrigar todos os presentes e o
mifkad foi impressionante: todos se camisas brancas,
saias e calças azuis, lenços nos pescoços (azuis, verdes e
vermelhos, de acordo com a shichvá).
Turnovski não pôde conter sua emoção e cumprimentou
o mifkad dizendo que sua impressão era de estar no ken
de Varsóvia dos bons tempos.
A noite, na casa de Takser, nos encontramos com ele
todos os bogrim e ex-shomrim. Ele explicou que sua
visita a Takser era em caráter particular. A conversa
transcorreu amistosamente e ninguém comentou o que
sabíamos das atas que tínhamos recebido (que ele veio
em missão...). A única frase "estranha" que ouvimos dele
foi que se sentia como Balaão.
Na Biblia (Num 22:5) Balak, rei de Moab, contratou o
feticeiro Balaão para amaldiçoar os hebreus que estavam
acampados em seu território. Graças à interferência de
anjos de Deus, Balaão, ao em vez de amaldiçoar os
hebreus, os abençoou.
*
Recebemos de Akiba cópia das atas da reunião seguinte.
Entre outros itens constava a leitura da minha circular
nº2 e o relato de Turnovski informando que em seu
parecer o ken de São Paulo estava funcionando na
melhor das ordens.
202
Outro item: Jacob Felberg, que participou da moshavá,
exigiu a expulsão de Glat, devido ao seu
comportamento.
Como
resolveram
dar
outra
oportunidade ao Glat, Felberg (membro da Hanagá
Rashit), se demitiu em protesto de todos seus cargos.
Jacob Felberg viveu em Gaash, mas eu jamais conversei
com ele sobre os acontecimentos na moshavá. Sempre
admirei os seus dotes intelectuais (era profundo
conhecedor do Tanach e de literatura em geral, e foi
professor no kibutz), mas eu evitava me encontrar com
ele porque, devido a motivos que desconheço, não perdia
ocasião de me ofender. Em certa ocasião, alguns meses
antes de seu falecimento, novamente se dirigiu a mim
grosseiramente. Não reagi. Mais tarde encontrei na minha
caixa postal carta sua, na qual me escreve que julga que
desta vez passou dos limites, que não pode explicar
porque sempre me tratou da forma como fazia e se
arrependia. Pediu-me que o perdoasse. Depois desta
reconciliação nosso relacionamento mudou para melhor,
mas fiquei "confiando desconfiando". Devo salientar que
publicou no boletim do kibutz críticas muito interessantes
e favoráveis a dois de meus livros.
Quanto a Glat. Veio ao kibutz Maabarot com o primeiro
grupo da hachshará, mas voltou logo ao Brasil, onde fez
carreira de assessoria financeira. Nos encontramos várias
vezes, tanto em Israel como no Brasil (em minha visita de
1974 – ele veio falar comigo e eu o ignorei, me recusei a
responder). Ele se queixou com Urtzi que eu lhe guardo
rancor devido a "brincadeiras de crianças" (daí o título de
meu primeiro livro de memórias em hebraico).
No ano passado (2007) Glat, de visita em Gaash, me
encontrou casualmente e me extendeu a mão. Desta vez
aceitei e assim nos reconcialiamos. Depois de sessenta
anos, não esqueço nem perdôo, mas não posso alimentar
ressentimentos – o meu passado não foi para mim
nenhuma brincadeira, mas passou...
203
Akiba e eu continuamos a nos corresponder e em várias
ocasiões conversamos por telefone. Jamais nos refermos
ao que se passou na moshavá.
1948 – Mifkas na lishká do Hashmer Hatzair. Em São
Paulo
1948 – Desfile do Hashomer Hatzair no campo do Macabi
204
Capítulo 12 – Final holywoodiano
Declaração do Estado de Israel
O ken voltou aos eixos e a declaração do Estado de
Israel influiu na intensidade das atividades do
movimento. A coletividade estava em euforia, os judeus
ergueram as cabeças e organizaram um gigantesco
comício no Estádio do Pacaembu. O nosso ken
compareceu como guarda-de-honra em frente ao palco,
de "uniforme completo" (camisas brancas, calças e saias
azuis, lenços coloridos no pescoço, e empunhando
bandeiras nacionais, a do Brasil e de Israel).
1948 – Pacaembú. Em frente ao palco no comício comemorando a declaração do Estado de Israel.
*
Todas as kvutzot estavam muito ativas, e recebemos
novamente pedidos de jovens judeus de Vila Mariana
para que fossamos organizá-los como ken do
movimento. Encontrei-me com eles algumas vezes, mas
205
fracassamos, por falta de madrichim.
Os nossos bogrim começaram a ponderar sobre a
possibilidade de organizar uma hachshará no Brasil,
Samuel, Blima, Amnon, Moshe e eu tínhamos mais de
20 anos de idade. Cada um de nós, por razões pessoais,
nos encontrávamos num beco sem saída e vimos na
hachshará a única solução.
Mobilização de voluntários
Abraão Levandovski havia tentado no ano anterior
viajar como clandestino para Eretz-Israel, mas foi
descoberto e desembarcado em Salvador.
Levandovski não desistiu e tentou novamente, sem
sucesso, mas finalmente alcançou seu intento, e aderiu
aos shomrim sul-americanos que se encontravam em
Negba, que fundaram mais tarde o kibutz Gaash.
Levandovski não foi o único do Rio de Janeiro a ir à
Eretz-Israel. Achim Waldman, sem ter sido
anteriormente membro do Hashomer
Hatzair, aderiu a Negba.
Achim Waldman hebraizou o nome para Chaim
Yáari. Quando cheguei a Negba em 1948 o
encontrei de prontidão como observador no topo
da torre dágua e eu soube que mesmo durante os
bombardeios mais acerados e pesados contra o
kibutz, que arrasaram todas as casas e deixaram a torre de
concreto esburacada de projetis, Chaim não abandonou
seu posto
Chaim, muito sério e correto, foi contabilista de Gaash e
faleceu prematuramemte.
*
206
Com a Declaração do Estado de Israel em 14 de Maio
de 1948, 6 países árabes o invadiram e deflagraram a
Guerra da Independência, a mais violenta e grave das
guerras que o país enfrentou. Em proporção à sua
população, o país sofreu nela o maior número de perdas
de todas as guerras em que combateu.
Eu estava ocupado com minhas publicações, com o livro
História da Haganá de Eliahu Golomb, quando fomos
informados de que a representação da Haganá em São
Paulo, comitê que se organizou com a Guerra de
Independência de Israel, estava mobilizando voluntários
para o novo exército de Israel.
Em reunião dos bogrim comentamos que o alistamento
na Machal (acrônimo hebraico de "voluntários do
exterior") nos permetiria realizar o sonho de ir a Israel.
*
Blima, Samuel, Amnon, Rosa Levinson, Shlomo
Takser, Hinda Naiberg, eu e minha irmã Rosinha (não
participou no debate), saímos a uma haflagá (excurção)
noturna em Interlagos. Montamos tendas, nos banhamos
no lago, e ao anoitecer acendemos uma fogueira e nos
sentamos ao seu redor. Como de costume começamos a
reunião cantando algumas canções, mas a nossa
conversa passou de imediato para o alistamento na
Machal – sim ou não. Estávamos de acordo que
agiríamos coletivamente.
O debate foi muito sério e demorado. Prós e contras se
alternavam, analisados com seriedade. Estávamos
cônscios de que nosso alistamento deixaria o ken de São
Paulo desprovido de bogrim, mas seguros de que os
tzofim-bogrim, ótimos madrichim, estavam maduros o
207
suficiente para nos substituir.
A decisão unânime: nos alistaremos!
*
Resolvemos nos organizar como garin-aliá (grupo de
emigração) coletivo, juntando os recursos financeirus em
caixa comum. Escrevi a Harari comunicando-lhe nossas
decisões.
Os acontecimentos começaram a rolar como uma bola
de neve: a reconciliação com o ken do Rio, uma onda de
casamentos, viagens para a expansão do movimento,
eleição de nova Hanagá Rashit e partida a Israel.
Reconciliação
No Rio de Janeiro, sem nenhum contanto conosco
Samuel Schultz e Zvi Gandelsman também se alistaram
na Machal. Neste ínterim, chegou ao Rio de Janeiro um
208
novo shaliach para a campanha do Keren Kayemet,
Shmuel Drori, e soubemos que era membro do kibutz
Shaar Haamakim, do Hashomer Hatzair. Pedimos a
Harari que nos informasse a seu respeito,
pois
pretendíamos pedir-lhe que interferisse no sentido de
reatar o relacionamento entre os kenim de Rio de Janeiro
e São Paulo – ou talvez ele, Harari, viesse com esse
intuito.
Antes de Harari nos responder de que se tratava de um
pessoa de toda a confiança, Akiva nos escreveu
entusiasmado a seu respeito e pediu que fossemos nos
encontrar com ele em seu hotel e se encarregou de que a
direção do Rio comparecesse a essa reunião.
*
De São Paulo fomos Isaac Takser, Urtzi e eu, e do Rio
Gandelsman, Schultz, Felberg (os três da Hanagá
Rashit) e Akiba Shechtman, secretário do ken.
Shmuel Drori, de olhos meigos e face
arredondada irradiando bondade e
calma, e ao mesmo tempo carisma e
decisão, revelou-se uma pessoa que
sabia como lidar com conflitos. Em
sua presença não se levantava a voz e
sob sua orientação a conversação
transcorreu amistosamente. Ficou
resolvido
convocar
um
Kinus
(convenção) no Rio de Janeiro para eleger uma nova
Hanagá Rashit, pois quase todos seus atuais membros se
alistaram para a Machal. Drori pediu que todos os
alistados adiassem por duas semanas a partida, afim de
participarem no Kinus. Prometemos tentar o adiamento.
209
Voltamos a São Paulo e conseguimos da companhia de
navegação adiar as passagens por duas semanas.
Soubemos que Schultz e Gandelsman não adiaram e
partiram antes do Kinus. Gandelsman viajou com uma
sobrinha Sônia, que não pertencia ao movimento, e era
irmã de Zina Fishman, participante de nossa primeira
moshavá e muito ativa no movimento.
Kinus no Rio de Janeiro
Comunicamo-nos com os kenim de Recife, Salvador,
Belo Horizonte e Curitiba a fim de que mandassem
delegações para o Kinus. Takser propôs que todas as
delegações apresentassem relatórios por escrito de suas
atividades. Ainda por sugestão do Takser me incumbi de
redigir sob sua orientação o relatório da Hanagá Rashit,
que deveria ser impresso no mimeógrafo, a fim de ser
enviado aos kenim antes do Kinus. Encontramo-nos para
210
programar os itens a serem abordados e eu comecei a
escrevê-los, mas por motivos que relatarei não pude
terminar e o esboço ficou inacabado em meu arquivo.
*
Não pude participar do Kinus, mas soube que
transcorreu com sucesso.
Vieram delegações de todos os kenim. De Curitiba veio
todo o ken em peso – Jacob Schüssel.
Encontrei no Arquivo de Guivat Haviva cópias dos
relatórios de Recife e Belo Horizonte e cópia das atas
com as resoluções do Kinus, assinadas por Mordechai
Blanche como dirigente do Kinus, Uron Mandel (em
nome da Hanagá Rashit demitente) e os delegados dos
kenim.
A revelação da convenção foi seu dirigente,
Mordechai Blanche, que conheci quando
estive no Rio, mas com quem não tive
oportunidade de conversar.
Mordechai Blanche era um rapaz competente e
carismático. Líder e orador nato. Estudante de
medicina que abandonou os estudos para se dedicar ao
Hashomer Hatzair. Devia vir a Gaash com o primeiro
grupo da hachshará, mas devido a um defeito físico
congênito teve que adiar a viagem até que no kibutz
houvessem condições (residência) para ele. Em 1954 veio
a Gaash, casado com Edith, de Porto Alegre, e conseguiu
se impor como um dos principais dirigentes do kibutz, do
qual foi duas vezes secretário. Foi shaliach no Brasil e
depois nomeado chefe da Hanagá Rashit do Hashomer
Hatzair em Israel. Foi ativo no partido Mapam e eleito
para sua comissão política. Em 1972 o nomearam
membro da presidência do Congresso Sionista Mundial.
211
Aos trinta anos recebeu uma bolsa de estudos e terminou
cursos de sociologia e filosofia na Universidade de TelAviv e em 1977 completou com distinção doutorado na
Universidade de Lund, na Suécia. Foi professor no
Departamento de Filosofia Universidade de Tel-Aviv e
na Faculdade de Estudos Interdisciplináres da
Universidade de Haifa em Oranim (instituto educacional
do movimento kibutziano). Publicou 3 livros.
Currículo de vida impressionante para uma pessoa que
morreu prematuramente aos 48 anos.
Bernardo Goldsvaig foi nomeado rosh a´ken de São
Paulo e ele me substituiu em todos os meus cargos.
Bernardo Goldsvaig, estudante de odontologia, que eu
interessei pelo movimento, era meu
amigo desde os 9 anos de idade, dos
tempos da escola Talmud-Torá.
Depois de assumir a direção do ken
de São Paulo teve que abandonar os
estudos exatamente ao passar para o
terceiro ano (o útimo a fim de se
graduar). Participou na hachshará, e
veio casado com Sônia Dreizenstok
para Gaash. Obteve bolsa de estudos afim de terminar
os estudos no Brasil e se formar médico odontólogo. De
volta a Gaash, divorciou-se, abandonou o kibutz e
casou-se novamente, com Rachel, que conheceu no
kibutz Beit Gobrin, onde trabalhava. Enquanto sua
esposa vivia, residiam em Beer Sheva, onde praticou
sua profissão. Quando ela faleceu, aposentou-se e veio
morar em Hadera. Continuamos amigos próximos (mais
de 70 anos!).
212
213
Onda de casamentos
Com a declaração de nosso garin-aliá, ocorreram dois
acontecimentos: onda de casamentos de participantes do
garin e pedidos de pessoas que não pertenciam ao
movimento para viajar conosco.
Primeiramente casaram-se os casais Samuel Kleiman e
Blima Plonka, Amnon e Rosa Levinson. Moshe Strauch
estava ligado a Olga Cassef desde a nossa primeira
moshavá. Ela ainda não pertencia à shichva de bogrim,
mas resolveram casar-se. Outro casal que se formou de
última hora foi Riva Shepshelevitch e Jaime Bulka, que
também se casaram. E a surpresa foi o casamento de
Hinda Naiberg com Ela.
1948 – Novos casais: (da esq.) Jaime e Riva Bulka, Samuel e Blima Kleiman,
Amono e Roso Yampolski
Ela Melman, rapaz pelos trinta anos de idade,
sobrevivente do Holocausto, aparecia de vez em quando
em nossa lishká dizendo-se boguer do Hashomer
Hatzair polonês. Não teve tempo de se ligar ao nosso
movimento, mas fez amizade com a Hinda, casaram-se e
aderiu ao garin.
Além de mim e Shlomo Takser, que pertencíamos ao
214
garin desde o começo, aderiram a ele Rosa Trainin, do
ken do Brás e Aminadav Berenstein de Recife, que
estudava agronomia em Campinas.
Das diversas solicitações de pessoas pedindo para viajar
conosco concordamos em aceitar Victor Wayn, capitão
judeu das forças blindadas do exército brasileiro, seu
irmão Moisés, de nossa idade, e Casimir (Caju)
Angeltzik, tanquista do Exército Vermelho na Segunda
Guerra Mundial e sua esposa Maria.
Como já informei, de todos os ex-bogrim somente Uron
Mandel se juntou ao garin.
Também quero me casar...
A onda de casamentos despertou pela primeira vez em
mim o a ideia de me casar, pois sempre estive ocupado
demais para cogitar nisto. Sempre fui do tipo caseiro,
muito ligado à família e confesso que fiquei um pouco
receoso de ter de repente que enfrentar sozinho a vida.
Ponderei a possibilidade de me casar – a questão era
apenas com quem?
Eu conhecia moças com quem simpatizava e tinha
amizade, mas jamais as considerei candidatas sequer
para namoro. Conversei sobre o assunto com minha
irmã, pois éramos confidentes, e elaboramos uma
listazinha de prováveis candidatas... A primeira era
certamente Maria Hudler, que eu considerava minha
melhor amiga, mas cheguei à conclusão de que não
tínhamos possibilidades de nos casar e o fator mais
decisivo: ela era filha única e tratava de sua mãe muito
doente. Não me parecia que ela estaria disposta a viajar
comigo. A eliminação das demais candidatas da lista foi
até mais fácil. Não poderia imaginar como minha esposa
215
nenhuma das moças que conhecia em São Paulo.
Foi quando me recordei da Suzana da Bahia e pensei
com meus botões – ela me agradava.
Eu estava pensando em como agir quando me apareceu
em casa o Aminadav Berenstein, a quem conheci em
Campinas em uma conferência que ali proferi no Dia do
Holocausto.
Como já contei, a retórica nunca figurou entre minhas
qualidades – eu estava acostumado a dissertar para uma
kvutzá de 6 a 7 shomrim, mas falar perante um público
eram outros quatrocentos... Não sei donde tomei a
coragem em aceitar o convite que um conhecido de
Campinas me fez e lá me fui eu com o coração nas
mãos...
O salão da coletividade judaica onde proferi a
confêrencia estava repleto. Assunto do que falar não me
faltava, pois tinha terminado de editar "Nos bosque e nos
guetos" e simplesmente fiz uma resenha do que publiquei
no livro. O que contei era completa novidade para os
ouvintes, especialmente a revolta do gueto de Varsóvia.
Foi a primeira vez que me dirigia a um público, que me
ouviu em silêncio absoluto, emocionado. Também eu
fiquei envolvido pela atmosfera pesada. Ao me
apresentar contei que pertencia ao Hashomer Hatzair, o
mesmo movimento de Mordechai Anilevitch, que foi o
comandante da revolta dos judeus no gueto de Varsóvia,
e que eu pertencia a um grupo que estava para viajar para
Israel como voluntários da Machal.
Depois da conferência, Aminadav (Ami) Berenstein –
veio perguntar-me se poderia se juntar ao nosso grupo.
Eu o convidei a vir a minha casa para conversarmos
sobre o assunto. Desde então, Ami se hospedou várias
vezes em minha casa.
Depois que travamos melhor conhecimento, Ami aderiu
216
ao nosso grupo, e a sua atual visita a minha casa era de
passagem a Recife, para onde viajava a fim de se
despedir da família.
Não sei como aconteceu que lhe revelei que pensava
pedir a Suzana da Bahia em casamento e nem sabia se
ela estava livre, se tinha um namorado ou noivo. Ami
me disse que poderia verificar o assunto com sua irmã
adotiva, Calé, que conhecia e se correspondia com a
Suzana e certamente saberia destes detalhes.
No dia seguinte recebi telegrama de Recife com apenas
três palavras "Tudo azul Ami". No mesmo instante
mandei uma carta aérea para a Suzana contando sobre o
garin-aliá que organizamos, que eu gostei dela, e
perguntando sem rodeios se estava disposta a se casar e
viajar comigo a um kibutz em Israel. Pedi resposta
imediata.
*
Neste meio tempo, entre os casamentos e o Kinus no
Rio, ficou resolvido aproveitar o impacto que a nossa
aliá a Israel causou, para promover o Hashomer Hatzair
em diversas cidades onde tínhamos contato com jovens
sionistas. Bogrim nossos visitaram Santos, Curitiba e
Porto Alegre. Amnon e eu viajamos para Belo
Horizonte.
Batia Patlajan nos hospedou em sua casa e nos levou a
uma reunião de jovens judeus que convocou em um
clube. Estiveram presentes uns 30 jovens de 18 a 22
anos de idade. Falamos de sionismo e do Hashomer
Hatzair e o debate que despertamos foi animado. Saímos
com a impressão de que a maioria deles estavam
fortemente influenciados pelo Partido Comunista e
217
negavam o sionismo.
No dia seguinte Batia e Samuel Cernizon nos levaram
para passear pela cidade e à Pampulha. À noitinha
reuniuram-se na casa de Batia uns 10 jovens do dia
anterior, que estavam inclinados ao Hashomer Hatzair.
A conversação foi muito intensa, com a participação
ativa de todos os presentes e nem reparamos que já eram
altas horas da madrugada. Batia trouxe cobertores, os
estendeu pelo chão, quase todos nos deitamos neles e
adormecemos.
Pela manhã Amnon e eu voltamos para casa.
*
Em casa me esperava uma carta: a resposta concisa de
Suzana. Ela levou muito a sério o que lhe escrevi. Ela
simpatizava comigo, mas não poderia dizer que estava
apaixonada ou coisa semelhante, pois mal me conhecia
pessoalmente. Suzana sonhava vir a um kibutz em Israel,
mas nem podia considerar minha proposta, pois seria
impossível casar-se em uma semana.
Resolvi provar-lhe que era possível, mas como fazê-lo se
eu não tinha nem um tostão furado no bolso? Eu não
queria pedir dinheiro a meus pais, que estavam muito
magoados comigo. Contei meu impasse a Amnon (afinal
de contas era amigo meu próximo) e, sem que lhe
pedisse, me trouxe passagens ida-e-volta de avião para a
Bahia.
Sem pensar como iria devolver-lhe o empréstimo,
arrumei a maleta com algumas roupas e viajei à Bahia,
dizendo a meus pais que em missão do Hashomer
Hatzair. Somente minha irmã estava a par da verdade.
218
Peripécias de meu casamento
Sábado, 4 horas da tarde, casa da Suzana na Rua do
Bângala. Dei umas pancadinhas na porta e passados uns
minutos ela se abriu, e um homem simpático, magrinho
e careca perguntou o que eu desejava. "Sou de São
Paulo, amigo de Suzana, e vim falar com ela". O homem
empalideceu, mas convidou-me a entrar. Subimos as
escadas e no salão chamou por Suzana. Ela veio de seu
quarto e se surpreendeu quando me viu, mas se
controlou e me deu a mão.
Soube depois que teve uma discussão com os pais – ela
queria viajar para o Kinus no Rio e eles recusaram, pois
na opinião deles devia preparar-se para os exames do
ginásio.
Ficamos sabendo mais tarde, que a mãe de Suzana, sem
que ela soubesse, leu a carta que lhe mandei e seus pais
resolveram impedir que fosse ao Kinus para evitar que se
encontrasse comigo.
Moral da história: se a mãe da Suzana não tivesse lido a
carta dirigida à Suzana, ela teria viajado ao Kinus do Rio
de Janeiro e eu não a encontraria em casa. A mãe de
Suzana leu a carta, Suzana ficou em casa, eu a encontrei e
a continuação, em seguida...
*
Informei aos pais da Suzana que tinha vindo por alguns
dias em missão do Hashomer Hatzair, orientar na
organização do ken. Eles disseram à Suzana que
cuidasse de me alojar na casa de um de seus amigos –
recusei terminantemente: "posso dormir na sofá deste
salão".
*
219
Saí com Suzana para dar uma voltinha e ela convocou
os jovens ligados ao Hashomer Hatzair ao local das
reuniões. Eu me encontrei com eles, contei sobre o
grupo que viajaria a Israel e continuamos com perguntas
e respostas. E foi o primeiro dia...
*
Domingo. Suzana me guiou pela cidade; a Baixa do
Sapateiro, a Praça do Pelourinho, a Casa de Jorge
Amado, o Elevador Lacerda, o Mercado Modelo.
Conversamos o tempo todo, sem chegar a nenhuma
conclusão.
Depois do jantar, viajamos de ônibus para passear na
Praia da Barra. Nas proximidades do Forte da Barra, a
Suzana me contou que exatamente naquele lugar o seu
pai pediu a mão de sua mãe. Eu, instintivamente, peguei
a mão dela, fitei firmemente em seu olhos e lhe
perguntei (creio que devo ter sido muito teatral) "se foi
assim, também lhe pergunto neste lugar: você concorda
em se casar e vir comigo a Israel?". Um momento de
silêncio. "Sim!". Dei-lhe um beijo.
Daí em diante a nossa conversa tomou outro rumo –
como deveríamos proceder para obter o consentimento
dos pais de Suzana. Propus que no dia seguinte
falássemos com eles. Suzana me advertiu de que sua
mãe era muito supersticiosa e que em uma segunda-feira
jamais tomaria um passo tão importante – concordar
com o casamento de sua filha. Retruquei que podíamos
deixar a resolução para terça-feira, que é na semana o
dia da sorte dos judeus, mas deveríamos começar no dia
seguinte as negociações, pois não tínhamos muito tempo
disponível. Concordamos.
220
*
Segunda-feira. Durante o dia passeamos novamente pela
cidade e conversamos sobre o que deveríamos proceder.
No jantar, estavam presentes. além de Suzana, seus pais
e eu, as suas duas irmãs, Sara e Miriam.
A atmosfera estava muito carregada. Comemos em
silêncio. Tenho a impressão que Suzana avisou aos pais
o que estava prestes a acontecer, o que era de todo
desnecessário, pois eles já sabiam.
Terminamos a refeição e Miriam, a irmã mais nova, de 9
anos, colocou os cotovelos na mesa e as mãos no queixo
e me fitou intensamente por longo tempo. Suzana lhe
observou "não fica bem olhar assim para uma pessoa".
"Mas ele tem olhos tão bonitos...".
Sorri, e me confortei com o pensamento de que com um
pouco de boa vontade é possível de encontrar algo de
bonito mesmo em um magricela dentuço como eu era
(no kibutz passei por uma intervenção cirúrgica na
mandíbula, para me endireitar o maxilar).
Os pais ordenaram as meninas que se retirassem para
seus quartos e ficamos sentados ao redor da mesa os
quatro protagonistas do drama que ia se desenrolar.
Lá pelas 20:30 iniciei a negociação "revelando" que
Suzana e eu pretendíamos nos casar e viajar para Israel.
Eles retrucaram que mal me conheciam e além disso a
Suzana deveria terminar o vestibular e me propuseram
que eu fosse morar em Salvador por um ano e depois
resolveriamos. É claro que recusamos e continuamos a
debater o assunto – eles no deles e nós no nosso – sem
chegarmos a nenhum acordo.
221
Justo à meia-noite o relógio-cuco do salão começou a
badalar. Quebrei o silêncio que se estabeleceu dirigindome aos pais "eu lhes peço a mão de Suzana". O pai de
Suzana se levantou e perguntou a Suzana "Como é de
nossa tradição, 'chamemos a donzela e perguntemos-lhe
(frase bíblica, Gen 24:57)'. Suzana, você quer casar-se
com Nahum?". "Sim!". "Então Mazal Tov e B´Shaá
Tová! (Que seja com boa sorte e em boa hora, bênçãos
tradicionais em hebraico)".
*
Os pais de Suzana passaram a me tratar como a um
filho. Daí em diante a mãe tomou as rédeas em sua mãos
e dirigiu tudo. Como a Suzana precisaria ir comigo a São
Paulo a fim de preparar os papéis para a viagem (ela não
tinha passaporte e nem sequer carteira de identidade), a
mãe resolveu que deveríamos nos casar primeiramente
no civil, e para isso convinha esperar por Aarão, o seu
irmão, pois ele arrumaria tudo. Ela se encarregou de
preparar o casamento e o enxoval da Suzana. Ficou
resolvido que para o vestido de noiva a costureira
tomaria medidas com a Sara, irmã 5 anos mais jovem
que a Suzana, mas com as mesmas medidas
(aproximadamente),
Suzana foi comigo comunicar o nosso noivado para
amigos e parentes. Não sei que ventos espalharam a
notícia sensacional que Suzana ia se casar; no caminho
apareceram de todos os lados conhecidos de Suzana que
a abraçavam e beijavam. desejando-nos Mazal Tov!
Fiquei admirado com sua popularidade; tive a impressão
de que toda a cidade a conhecia.
*
222
O tio da Suzana, Aarão Helfgot, caixeiro-viajante,
apareceu à noitinha. Ele se revelou um verdadeiro
"macher" ("fazedor" em idish, que sabe mexer os
pauzinhos), conhecia a todos e todos eram seus amigos.
Ele me levou à casa de um Juiz de Paz, um palacete
grande e luxuoso. Pelas luzes e pela gente que ali havia,
parecia alguma festança, mas quando o juiz soube pelo
empregado que o "seu" Aarão queria lhe falar, veio
pessoalmente abrir-nos o portão, nos convidou ao seu
escritório e nos acompanhou cordialmente.
O tio Aarão explicou ao juiz que eu havia recebido uma
bolsa de estudos para a Itália e desejava que minha
noiva, a sua sobrinha, viesse comigo, mas os pais dela só
concordavam se nos casássemos, e que faltavam apenas
duas semanas até a viagem. Mostrei-lhe a minhas
passagens do navio.
O juiz disse o que se faria necessário para a realização
do casamento: publicação no Diário Oficial anunciando
nosso casamento, atestado emitido por cartório que os
pais de Suzana concordavam com o casamento (aos 18
anos era menor de idade. Maior de idade devia ter 21
anos) e testemunhas de que os contraentes eram
solteiros.
Saímos correndo para a redação do Diário Oficial, e o tio
mexeu novamente com os pauzinhos (conhecia alguém
da redação) e o aviso foi inserido na edição da manhã.
*
Quarta-feira, 10 horas da manhã. Suzana e eu, com o
nosso cortejo – os pais, tios, amigos íntimos e as
testemunhas (nenhuma delas me conhecia) – nos
apresentamos no fórum perante o Juiz de Paz, sentado
223
em assento elevado. Ao seu lado, o escrivão e o oficial
do Registro Civil, e atrás deles, ao lado do pendão
nacional, o Presidente da República General Eurico
Gaspar Dutra em pessoa, de pé, em tamanho natural, em
um quadro a óleo.
Terminada a cerimônia oficial, recebemos um atestado
provisório do casamento, pois a edição do certificado no
Registro Civil demoraria mais dois dias.
Do tribunal viajamos todo o cortejo ao aeroporto, para o
avião que nos levaria a São Paulo. As passagens, o nosso
tio "arranja-tudo" providenciou de antemão. .
*
Quinta-feira. Por intermédio do tio Urtzi contratamos os
serviços de Antônio, o "macher" do Bom Retiro,
corretor especializado em papéis oficiais. Entregamos a
ele o atestado de nascimento, fotografias de Suzana e o
nosso atestado de casamento, para ele tirar a carteira de
identidade e o passaporte de Suzana com o sobrenome
Mandel. Obtivemos da Comissão da Haganá a soma
para comprar a passagem de navio para a Itália.
Meus pais viajaram para a Bahia afim de conhecer os
pais de Suzana. Minha irmã ficou em casa, pois meu pai
não estava em condições de lhe comprar as passagens.
*
Sexta-feira. Compramos finalmente a passagem para o
navio e viajamos de trem para o Rio de Janeiro, onde
chegamos às 6 horas da tarde. Como devíamos viajar à
Bahia às 4 horas da madrugada, fomos procurar um
hotel na vizinhança do aeroporto. Na portaria do hotel
surgiu um problema: além da passagem para o avião,
não tínhamos nenhum documento da Suzana e o nosso
224
atestado de casamento estava na delegacia em São
Paulo. O funcionário ficou desconfiado que Suzana
estivesse fugindo de casa comigo e estava para telefonar
para a polícia. Não sei como nos livramos desta.
Resolvemos não procurar parentes ou conhecidos, pois
não queríamos nos afastar do aeroporto. Tomamos um
ônibus circular e ficamos dando voltas pela cidade, até
que à meia-noite o ônibus parou na estação e tivemos
que descer.
Fomos até a praia e nos sentamos num banco, mas logo
apareceu um guarda e nos mandou rodar. Proibido
passar a noite no banco. Explicamos que deveríamos
esperar ate as 4 da madrugada pelo avião à Bahia.
Perguntou se éramos baianos, A Suzana respondeu que
era. "Em que rua você mora?". "Rua da Bângala".
Um enorme sorriso se expalhou por seu rosto e faltou
somente ele nos beijar. Tornou-se nosso grande amigo.
Também ele era baiano e sua família morava na Rua da
Bângala. Minha boa estrelinha estava funcionando.
"Venham comigo" e fomos até o aeroporto, que estava
perto. Ele entrou no escritório da VASP, a companhia
em que viajaríamos, e convenceu o encarregado a
permitir que descansássemos no seu carro. De cansaço,
adormecemos no carro, e se não tivessem vindo nos
acordar, perderíamos o vôo.
*
Sábado. Chegamos para o almoço. A mãe de Suzana nos
informou que estava tudo pronto para o casamento e a
levou para a costureira, que arrematou os últimos
retoques no seu vestido de noiva. Este vestido serviu em
Israel para sua irmã Sara quando se casou e outras
225
noivas da família.
O tio Aarão me levou a um barbeiro para aparar os
cabelos. Meus pais já se encontravam na Bahia e
trouxeram com eles o meu "terno oficial", o que me
costuraram com o corte de casimira azul-marinho que
ganhei no concurso de rádio e que usei também na
formatura e outros eventos, por mais de cinquenta anos.
Domingo, 18 de Julho de 1948. A noite fomos ao salão.
Creio que toda a coletividade judaica de Salvador estava
presente, pois também quem não foi convidado veio por
conta própria. A mãe de Suzana dirigiu com maestria o
espetáculo, "como deve ser", O jantar, com cardápio
tradicional idish de acordo com de suas instruções, foi
servido sob a sua rigorosa orientação.
Todos os shomrim vieram de camisa brancas, saias e
calças compridas azul-marinho e se comportaram como
guarda de honra.
226
Depois do casamento a família e os amigos íntimos
vieram à casa dos pais de Suzana e lotaram o salão.
Todos nos felicitaram. Os Helfgots, irmãos da mãe de
Suzana, são todos oradores natos: não falam –
227
discursam. O tio José, idishista e "progressista" antisionista (terminou emigrando a Israel) pronunciou em
idish um discurso inflamado. Também Bóris Tabacof,
primo de segundo grau de Suzana, então comunista
militante (mais tarde Secretário de Fazenda da Bahia,
financista e superintendente de bancos, figura de proa na
sociedade judaica de São Paulo) nos desejou sucesso em
nosso caminho, apesar de não concordar com ele.
Pediram-me para dizer umas palavras. Disse que como
não era orador, contaria uma lenda: um rei tinha três
filhos e mandou-os procurar pelo mundo o que é de mais
importante na vida. O primeiro voltou milionário – o
dinheiro é o mais importante, pois com ele se pode
comprar tudo. O segundo voltou laureado de títulos e
mais títulos acadêmicos – a sabedoria é a mais
importante, pois com ela se alcança o que o dinheiro não
consegue. Por fim apareceu o terceiro filho: "vim apenas
228
de visita, porque ainda não encontrei o importante para
mim. Amanhã voltarei a procurar".
Concluí que Suzana e eu não sabíamos o que nos
aguardava em nosso caminho, mas jamais desistiríamos
de procurar... realizar nossos ideais".
De regresso a São Paulo
Domingo. Logo de manhã fomos ao aeroporto,
acompanhados pela família. Não sei a razão, mas não
havia nenhum avião de passageiros disponível para o sul
do país. O único avião para o Rio de Janeiro
transportava nordestinos ao trabalho nas fazendas de
café.
Não podíamos adiar a viagem e o tio Aharão "deu um
jeitinho" para que fôssemos naquele avião. Me parece
que era um avião de carga da Segunda Guerra Mundial,
sem portas nem assentos; com aberturas duas enormes,
uma de cada lado. Os nordestinos, famílias com
crianças, estavam sentados no chão, sobre colchões. Eles
nos fizeram um lugar ao lado de uma das aberturas, eu
me deitei bem na beirada, com a Suzana ao meu lado.
Ela me abraçou durante todo o voo, para que eu não
caísse. O noso abraço mais demorado...
A maior parte da viagem foi para nós um verdadeiro
prazer – curtimos a paisagem que se descortinava ao
nosso lado. Na região de Cabo Frio o avião começou a
se jogar como se atacado de convulsões epilépticas.
Houve um verdadeiro pânico entre os passageiros, que
se agarraram uns aos outros para não deslisarem para
fora do avião. Questão de alguns minutos, mas o
suficiente para nos virar as tripas. O importante que
aterrisamos sãos e salvos, vivos! Para São Paulo
229
prosseguimos de trem – mais lento, mas mais seguro.
*
Segunda-feira. Fomos com o Antônio à delegacia
receber a carteira de identidade e o passaporte da
Suzana. O delegado, muito gentil, entregou à Suzana a
carteira e o passaporte, depois dela assinar alguns
papéis. Antônio entregou um envelope ao delegado, que
o colocou sem abrir na gaveta, observando "não é para
mim – é para cobrir as despesas".
Tirar carteira de identidade e passaporte levaria
normalmente pelo menos um mês, mas com um pouco
de "graxa", o aparelho administrativo brasileiro funciona
melhor.
*
À tarde fomos carimbar o visto no passaporte no
Consulado Italiano. Chegamos depois do horário do
expediente, mas o Amnon conhecia uma das secretárias
e ela nos atendeu na sala de espera. Contamos a história
da bolsa de estudos, lhe demos o passaporte e ela o
devolveu em menos de meia hora com o visto assinado e
carimbado. Na saída Amnon se despediu dela, em
hebraico, e ela nos disse em português "espero que
defendam bem a pátria de minhas filhas". Somente então
Amnon nos revelou que ela serviu muitos anos no
consulado italiano em Jerusalém e que sabia de nossos
planos.
*
Terça-feira. Nada especial aconteceu, além dos inúmeros
parentes e amigos que vieram se despedir.
*
Quarta-feira, Em frente de nossa lishká estava
230
estacionado um onibus e colocamos nossas malas no
bagageiro. Suzana pegou lugar bem na frente, como
costuma fazer até hoje em dia quando saímos a
excursões de ônibus. A rua estava abarrotada de amigos
e parentes que vieram para se despedir de nós. Muitos
deles nos acompanharam até o porto de Santos e alguns
até o Rio de Janeiro.
Eu estava ao lado de Suzana, sentado todo pensativo e
ensimesmado, quando Maria Hudler entra correndo no
ônibus, me abraça e beija, chorando. Fiquei perplexo,
surpreso, encabulado, sem jeito. Não trocamos uma
palavra, apenas nos abraçamos. Achava estranho que
durante os três dias que estivemos em São Paulo, e
minha casa estava sempre com amigos que vieram
despedir-se de mim. Maria nem havia dado sinal de vida.
Perguntei a minha irmã, sua amiga íntima, o que havia
com ela, e não soube me dizer.
Em 1974, quando visitei São Paulo com Shoshana, pela
primeira vez desde que partimos, a Maria nos convidou a
jantar em sua casa. Estava casada com o médico
anestesista Dr, Salvador Cromberg, com quatro filhos
(conhecí dois, muito simpáticos).
Depois da refeição toca a campaínha e apareceu uma
senhora bem avolumada, que não reconheci. "É a Pola",
me sussurou Maria. Soube que recebia tratamento de
cortisona. Ainda era loura e bela.
Novamente toca compainha e entra outro amigo meu do
passado, e outro, e outro, e em poucos minutos o salão se
repletou de uns trinta ou mais amigos que pertenceram ao
Departamento Juvenil nos tempos de 1945. Tratava-se de
uma surpresa que a Maria me preparou. Ela era psicóloga
do Ministério de Educação e como tinha em seu poder o
fichário dos membros do Departamento do nosso tempo,
mobilizou suas secretárias para localizá-los pela lista
231
telefônica e convidá-los a virem ao encontro. O
interessante é que muitos deles não se viam há mais de
20 anos, apesar de morarem na mesma cidade.
Vivência emocionante, até altas horas da magrugada.
*
No cais do porto de Santos, uma multidão enorme de
amigos e parentes vieram nos acompanhar até a partida
do navio. Os estivadores pensavam que algum bispo
estava para viajar.
Parentes e amigos subiram ao navio; Suzana e eu
estávamos todo o tempo rodeados de parentes. O meu tio
Zalmen Zaterka veio desde Marília e quando me abraçou
senti que me enfiou algo no bolso. Desde que eu era
criança, ele, o meu tio rico, costumava meter umas
moedas em meu bolso quando me abraçava – o único de
meus tios que sempre me presenteava com dinheiro.
Entendi que ele, como de costume, me deixou uma
232
"lembrancinha". Desta vez se tratava de uma soma bem
séria, o suficiente para que eu pudesse devolver o
empréstimo que Amnon me havia feito e ainda
contribuir com uma soma considerável para nossa caixa
coletiva.
Eu esteva tão ocupado que somente quando os alto
falantes pediram para os acompanhantes descerem do
navio reparei que não vi meu pai. Desci correndo para as
docas, afim de procurá-lo. Encontrei-o escondido atrás
de um monte de sacos, chorando – a primeira e única
vez em minha vida que vi meu pai chorar. Tentei
acalmá-lo, mas ele se recusou a me responder. Estava
amargurado com minha partida, eu o abracei e lhe disse
que acreditava que bem em breve nos reveríamos, em
Israel. Ele se acalmou e nos despedimos, e desta vez fui
eu quem chorei.
Fui o último passageiro que subi ao convés. Partimos.
A longa viagem a Israel
A viagem até Gênova
durou um mês, em
dois camarotes para
imigrantes – um para
os homens, outro para
as mulheres.
Não era de esperar que
voluntários da Machal
fossem alojados em
cabinas da primeira
classe.
Pequeno detalhe, um
pouco impróprio para
233
recém-casados.
Entretanto, o vinho italiano no almoço – excelente...
Em Gênova nos hospedaram na Via de Gasperi 27,
mansão da Agência Judaica, famoso campo de passagem
de sobreviventes do Holocausto em direção a Israel. Nos
hospedaram em salões enormes, com dezenas de camas
dispostas em dois andares. Calculo que havia mais de
100 em cada salão.
Recolheram os nossos passaportes e nos proibiram de
sair da mansão. Mas brasileiros sempre se dão um
jeitinho e escapamos duas vezes: uma, para visitar o
famoso cemitério Campo Santo Staglieno da cidade,
exposição impressionante de estátuas mortuárias de
mármore branco.
Na segunda vez, saímos para experimentar a pizza
234
italiana em um restaurante no Liddo, uma colina donde a
cidade se esparrama em panorama maravilhoso. A vista
noturna era empolgante, mas a pizza intragável.
Passadas duas semanas, veio uma caravana de ônibus
que transportou todos os estacionados na mansão a outro
campo de passagem da Agência Judaica, em Nápoles.
Ao anoitecer novamente fomos levados para o sul da
Itália, a um local na vizinhança de Bari, espécie de cais
– Grota Ferrata – onde "Aviônia" nos aguardava.
"Aviônia" era um navio pesqueiro que a Agência Judaica
comprou e foi adaptado para o transporte clandestino de
judeus a Israel.
Antes da declaração do Estado de Israel o Mandato
Inglês, de acordo com o Livro Branco de Atlee-Bevin,
impedia a entrada dos sobreviventes do Holocausto em
Eretz-Israel (a história do navio "Exodus" é bem
conhecida, e houve outros, como o navio "Patria", que
afundou – afundado?! – com os passageiros). Durante a
Guerra de Independência, forças das Nações Unidas não
permitiam a entrada ao país de homens em idade militar,
de forma que o uso de navios clandestinos continuou.
O que queria dizer adaptar navio pesqueiro para o
transporte de emigrantes? Divisão do bojo do navio em
sete andares com estrados de madeira sem colchões,
sobre os quais dormíamos, situação que deveria ter
despertado lembranças terríveis aos maapilim
("imigrantes" ilegais a Israel) da Europa.
Nas bordas do convés construíram rampas de madeira,
salientes sobre o mar, com repartições de 1x1.50 metros
– armaduras de madeira revestidas de juta. Os que
estavam dentro, não viam o que se passava fora, mas os
de fora vislumbravam as silhuetas fazendo suas
235
necessidades no buraco do chão, diretamente ao mar.
Sete dias vagamos mil e duzentas pessoas pelo mar em
calmaria, num calor sufocante, em uma casca de noz
(desculpe – um campo de concentração flutuante!).
Além de nosso grupo, havia mais outros 50 chalutzim no
navio, e fomos incumbidos da distribuição de água e da
comida, e encarregados de manter a ordem no navio,
tarefa nada fácil, e em se tratando de homens, mulheres
e crianças sobreviventes de campos de exterminio.
Não havia no convés lugar para todos os passageiros – a
água e a comida eram os únicos meios de obrigar parte
dos passageiros permanecer no bojo do navio. A
distribuição era feita na proa para uma fila interminável;
cada um, depois de receber a sua ração, devia descer ao
bojo do barco e caminhar até a popa para poder regressar
ao convés. Vários giros por dia eram necessários para
saciar a sede e receber algo para comer. Ninguém
parava, todo mundo dando voltas. Moto perpétuo.
No primeiro dia ainda recebemos alguma comida, mas
236
nos demais seis dias de navegação tivemos que nos
contentar com uma sopa que não sei como era preparada
e biscoitos secos à vontade. Até hoje tenho repulso a
esse tipo de bolachas secas.
A tripulação do navio consistia de 8 italianos e 4
israelenses. O nosso comandante, Dan Ben-Amotz, se
tornou famoso como poeta, escritor e ator de televisão e
cinema. Lonas estendidas entre os mastros sombreavam
parte do convés e o pobre do comandante explodia seus
pulmões no megafone, implorando em idish aos
passageiros não se concentrarem no mesmo lado do
navio (onde havia sombra), para o barco não emborcar.
Como posso explicar aos netos, que com facilidade estão
prontos a trocar Israel pela Alemanha, Austrália e outros
países, o que tivemos que enfrentar a fim de virmos a
Israel?
*
31.8.1948. "Haifa, Haifa". Todo o mundo corre para ver
o contorno dos montes Carmel que começava a surgir no
horizonte. Ainda em alto-mar apareceram balsas
enormes rebocadas por lanchas e desembarcaram os
homens em idade militar no rio Kishon, a fim de evitar
que as forças da ONU os exilassem nas prisões de Atlit.
237
Chegamos à Terra Prometida!
Fim
238
Epílogo
Aqui termina a minha fase sionista referente ao Brasil, e
começa a fase em Israel – mais de 60 anos passaram e
ela ainda não terminou.
*
"Tornar-se um povo como todos os povos" tem seus
aspetos deprimentes, mas Israel ultrapassa atualmente a
tudo que sonhei ou poderia ter imaginado,.
Honra ao Mérito
Camera Baby-Brown 6x9cmm, que recebi
de presente em 1940 na minha bar-mitzva,
fotografou a maioria das fotos neste livro.
Viotti, do bairro Bom Retiro em São Paulo,
o fotografo "oficial" da comunidade judia
da cidade, fotografou as celebrações.
As fotos do "Shomer de São Paulo" de
1935 me foram cedidas pelo meu tio Uron
Mandel z"l.
239
In Memoriam (nesta foto, o único ainda vivo sou eu)
240
Apêndice: Antes e Depois ..
Lista parcial das pessoas neste livro que mudaram o nome ou o sobrenome em
Israel, ou devido a casamento. Não aparecem na lista mudamnças de que não
tenho conhecimento. (NM)
Amnon Yampolski – Amnon Yam
Batia Patlajan – Batia Cernizon
Bela Rezeznik – Bela Kohane
Blima Plonka – Blima Kleiman
Branca Mandel – Branca Arenstein
Daniel Yampolski – Daniel Yam
Dina Mandel – Dina Ostroski
Dora Griner – Dora Bobrow
Ester Guinzuk – Ester Kleinhendler
Eva Schweidson – Eva Melamed
Guita Mandel – Guita Belz
Hinda Najberg – Hinda Melman
Lea Davidovich – Lea Lerner
Maria Hudler – Maria Hudler Cromberg
Miriam (Nicha) Vilenski – Miriam Fucs
Miriam Halfin – Miriam Ostfeld
Olga Cassef – Zahava Stroich
Oswaldo (Usher) Kowes – Asher Kovesh
Pérola Achterman – Pérola Kohane
Raquel Burstein – Rachel Reznik
Riva Shepshelevich – Riva Bulka
Rosa Levinson – Shoshana Rosemberg
Rosa Mandel – Varda Aran
Sônia Dreizenstok – Sônia Balaban
Sônia Fishman – Sônia Kalina
Sulamita Debarendiner – SulamitaTabacof
Suzana Schmeltinger – Shoshana Maimon
Suzana Spilberg – Shoshana Mandel
Tita Cohen – Tikvá Sobol
Zilda Wengier – Zilda Zysman
Ziina Fishman – Zina Viner
241
Glossário
A significação dos termos hebraicos (em letras inclinadas, itálicas) neste
glossário se refere ao sentido empregado neste livro, como eram usados nas
conversções quotidianas em português da juventude sionista.
Nomes Próprios
Agência Judaica. Organização
junta todas as contribuições
voluntária do povo judeu
para a construção de EretzIsrael.
pró-Eretz Israel e Estado de
Israel.
Keren
Kayemet
le´Israel,
Betar, a juventude sionista
Fundo Nacional de Israel
adepta a Jabotinski.
destinado
a
angariar
dinheiro
para
comprar
terras
Dror (liberdade), movimento
na
Palestina
para
a
juvenil ligado ao Partido
colonização
judica
Trabalhista
em
Israel
(Mapai).
knesset, o parlamento de Israel
Eretz-Israel (Terra de Israel), Machal, acrônimo em hebraico
termo histórico que designa o
de "voluntários do exterior"
território do antigo Reino dos
ao exército de Israel na
judeus, onde foi estabelecido
Guerra de Libertação de
o Estado de Israel
1948.
Haganá (defesa), organização Mapai, Partido Trabalhsta em
militar
da
Organização
Eretz- Israel e Israel, atual
Sionista para defender as
Partido Avodá
povoações judias de Eretz- Mapam, o Partido fundado
Israel; com a proclamação
pelo Hashomer Hatzair,
do Estado de Israel se
atual Partido Meretz.
transformou no seu exército.
Poalei Sion (Trabalhadores de
Hashomer-Hatzair, vide pg. 20.
Sião), Partido sionista que
Histadrut
ha´Ovdim,
a
se tornou o Partido Mapai.
Federação
Geral
dos Sionismo, movimento com o
trabalhadores de Israel
propósito de fundar na
Keren Hashomer, Fundo para Palestina um Estado para os
angariar dinheiro para o judeus.
Hashomer Hatzair
Keren Hayessod, Fundo que
242
Os itens abaixo são em geral substantivos masculinos singulares, que são
desprovidos de sufixos. Com poucas exceções os sufixos são: s.f. -á, -eret:
pl.m -im; pl.f. –ot. Para a compreensão dos textos, confio na presença de
espírito e na intuição do leitor.
Nomes Comuns
haflagá, excursão, piquenique
do Hashomer Hatzair em
cada cidade.
alyiá (=ascenção); fazer alyiá,
imigrar para Israel.
hanagá
rashit
(Direção
Central)
do
Hashomer
bar-mitzva, cerimônia religiosa
Hatzair
no
país.
de
jovens
judeus
ao
completar 13 anos.
hanhalá (direção)
chalutz, pioneiro sionista
idish, a lingua iídiche, oriunda
do alemão antigo com
hagshamá,
realização
dos
palavras hebraicas, falada
ditames
do
Hashomer
pelos judeus da Europa
Hatzair
Central e Oriental. kinus
boguer (adulto), faixa etária
(convenção)
acima de 17 anos no
ken (ninho), termo paralelo a
Hashomer Hatzair
"tribo" dos escoteiros; rosh
chalutz, pioneiro
haken (chefe do ken)
chaver, companheiro, membro
kibutz, colonia coletiva em
Chazak v´Ematz" ("Força e
Israel
coragem", saudação bíblica),
Lema e saudação do kvutzá (grupo), unidade de 6 a
10 membros do Hashomer
Hashomer Hatzair.
Htzair, com monitor.
gói, não judeu
lishká, a sede do ken.
hachshará
(campo
de
preparação para o kibutz em machzor. livro em hebraico de
rezas judaicas
Eretz-Israel
hanagá
elioná
(Direção madrich, instrutor, monitor
Superior) do Hashomer mazkir, secretário; mazkirut,
secretariado
Hatzair mundial.
hanagá mekomit (Direção local) menael, dirigente, monitor
239
mifkd, ordem unida
moetzá, conselho diretor
moshavá, acampamento de
férias
olé, imigrante a Eretz-Israel
e ao Estado de Israel
peulá, atividade
rosh (=cabeça), chefe
seder Pesach, a ceia da
Páscoa judaica
shaliach, emissário, enviado
shil (sinagoga, em idish)
shomer (guardião), membro
do Hashomer Hatzair,
sichá (conversação)
shichvá (camada),
faixa
etária
no
Hashomer
Hatzair
tnuá, movimento
z"l - acrônimo hebraico de
"seja
abençoada
sua
memória"
240

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