Terra de boêmios

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Terra de boêmios
Reportagem
Tchecas
Terra de
boêmios
Conheça as peculiaridades das cervejas tchecas e saiba por
que este é o povo que mais aprecia a bebida no mundo!
A boemia ficou conhecida em terras tupiniquins como um costume de
um grupo de intelectuais que viviam livremente pela noite e passavam
horas em bares, bebendo e divertindo-se.Apesar de poder ser também um
termo pejorativo, pois o boêmio é considerado um vadio, que passa a noite na farra e o dia em casa, a curar a ressaca, este estilo de vida já foi tema
de canções e poesias que enalteciam o homem que deixou de lado a vida
boêmia pregressa ao encontrar um amor. Na Europa, a Boêmia é a região
ocidental da RepúblicaTcheca.A fama de beberrões dos “nossos” boêmios
veio de lá. Se prestarmos um pouquinho mais de atenção nas características dos tchecos, poderemos estender ainda mais esta relação. Quer ver só?
Texto Juliana Crem Fotos Evelyn Müller e Divulgação
26 | guia da cerveja 2009 | BEBA COM MODERAÇÃo
Evelyn Müller
Para os tchecos, beber cerveja
é um orgulho nacional!
Paixão nacional
Os tchecos em geral – e não apenas os boêmios – são completamente apaixonados por cerveja! E não é só da boca para
fora, não. Eles bebem com fervor: anualmente, são consumidos cerca de 160 litros de bebida per capita, o que eleva o país
ao primeiro lugar no consumo mundial de birras! “O desperdício de cerveja é um pecado tão grave quanto queimar livros!”,
enfatiza Milan Ballik, chef tcheco que coordenou o Festival
Gastronômico promovido pelo Consulado Geral da República
Tcheca na capital paulista em outubro de 2008.
As bebidas de mesmo estilo, mas feitas em outras cidades,
são Lagers. Eduardo Barbosa Curzel, estudante da capital paranaense, passou 11 meses estudando no país e enfatiza que bebeu
muita cerveja por lá: “Dificilmente você caminha pela cidade
sem achar pelo menos um bar por quadra. Cada um tem uma
placa luminosa com a marca da cerveja que vende, o que torna
ainda mais fácil encontrá-los. Tem muitas cervejas mesmo na
República Tcheca. Devo ter experimentado mais de 25 marcas
diferentes, já que praticamente toda cidade de porte médio tem
pelo menos uma cervejaria. O melhor de tudo é que todas, sem
exceção, são muito boas”. Além disso, ele afirma que é muito
raro encontrar um tcheco que não beba cerveja. “É orgulho
nacional”, destaca.
Tanta devoção à bebida, que é consumida, em especial, durante as refeições, rendeu até mesmo a criação do estilo mais famoso em todo o mundo: a Pilsen, que surgiu na cidade de Pilsner
no século XIX. Uma curiosidade, inclusive, é que as cervejas só
podem ser chamadas de Pilsen se forem feitas na cidade de Pilsner.
“É até engraçado, mas a cidade de‘Pilsen’ fica na Boêmia e, aqui
no Brasil, temos uma marca chamada Bohemia, que é Pilsen”,
brinca Curzel.
Patrícia Akemi Kezuka, autônoma, e seu esposo, Carlos
Kezuka, administrador de empresas, viajaram para o país em
dezembro de 2001 para conhecerem dois tios de Patrícia, que
tem ascendência tcheca. Eles contam que provaram vários tipos
de birras por lá: “não tinha como não experimentar! Além disso, a fama de melhor cerveja do mundo é justa!A Pilsner Urquell,
a Budvar e a Gambrinus foram as que mais chamaram nossa
atenção”, contam.
Diferentemente do que ocorre no Brasil, onde o consumo
aumenta vertiginosamente nas estações mais quentes, não há
altos e baixos na República Tcheca. “Há variações no tipo da
bebida. As Lagers de 10°C são substituídas pelas de 12°C no
inverno, além de haver mais cervejas escuras e meio-escuras
sendo bebericadas nesta época do ano. Mas posso afirmar que
isso é irrelevante, pois o consumidor do meu país é fiel a uma
marca e a prefere às demais ao longo de todo o ano”, brinca o
chef tcheco, que afirma já ter experimentado cervejas com sabor
de mel, urtiga, café, banana, ópio e “defumadas”.
Cervejarias
ARepúblicaTchecaéumpaíscomumahistóriamuitorica.Secular,
ela foi parte do império Austro-Húngaro e resquícios deste período
se fazem presentes em sua culinária e cultura. Em 1918, o país se
uniu à vizinha Eslováquia, surgindo assim aTchecoeslováquia, nação
de regime comunista, que durou até 1993, quando ocorreu a separação. Em 1991, com o fim da União Soviética e do comunismo,
diversas cervejarias começaram a aparecer pelo território tcheco.
Atualmente a indústria cervejeira ocupa lugar de importância
na economia da nação. Dados da Associação de Cervejarias e
Produtores de Malte do país informam que em 2007 foram produzidos 20 milhões de hectolitros de cerveja, o que coloca a pátria
em 16º lugar no ranking de produtores mundiais.Isso corresponde
a 1,13% de toda a cerveja feita no mundo. Só para ter uma idéia,
o Brasil ocupa o quarto lugar neste ranking, com 10,34 bilhões
de hectolitros/ano. Há 48 cervejarias industriais no país e 60 mini
e microcervejarias. “A mais antiga é a U Fleku, de 1499, que continua em funcionamento!”, destaca Kamil Pilatík, membro do
Consulado Geral da RepúblicaTcheca e um dos responsáveis pela
organização do festival de sua pátria.
De toda a birra fabricada no país em 2007, 82% foi consumida internamente e 18% foi exportada. As nações que mais compramopreciosolíquidotchecosãoAlemanha,EslováquiaeInglaterra.
Mas o Brasil não fica de fora, tanto que já contamos com marcas
diferentes no nosso portifólio, como a 1795, Pilsner Urquell,
Budvar e Primátor!
guia da cerveja 2009 | 27
O lúpulo
Háquatrovariedades principais de lúpulo naRepúblicaTcheca:
Saaz, Sládek, Premiant e Agnus. Cada uma confere características próprias à bebida, mas nem todas têm uma produção tão
boa, já que o clima afeta diretamente o cultivo. Até por isso,
o Saaz é o mais comum e 80% do total é destinado à exportação! “Lúpulo pode ser de sabor ou de aroma. Os tchecos são
de aroma e, por isso, são caros para importar”, explica a mestre-cervejeira Cilene Saorin. Este ingrediente é também o responsável pelo sabor amargo da cerveja: “amargor é costume.
É naturalrejeitarmostudo que éamargo,mas conforme crescemos, nosso palato amadurece, somos introduzidos aos alimentos com este sabor e passamosaapreciá-lo.Quandoalguém
começa a tomar cerveja, a primeira reação é perguntar ao pai
como ele pode gostar de algo tão amargo – que foi o que
aconteceu comigo.Daíacostumae,depois de umano,estábebendo mais que o pai”, brinca Cilene. Na cidade de Zatec, há um
museu dedicado à planta, que fica na Mostecka, 2.580.
Cerveja em números
“Os tchecos são tradicionalistas e não gostam de inovar”, assegura Pilatík. Prova disso é que 98,5% de toda a produção cervejeira do país é de bebidas do tipo Pilsen – sendo 95% destas,
Lagers ou Drought Lagers. “As Lagers são tradicionais no país.
Nas terras vizinhas, há uma cultura ortodoxa de produção de
cervejas, em especial das Lagers, que são de baixa fermentação,
feitas com malte, lúpulo e leveduras que não são muito atuantes”, explica Cilene Saorin, mestre-cervejeira e beer sommelier,
de São Paulo, SP. Ao todo, 500 rótulos de cervejas são fabricados na pátria, embora algumas sejam sazonais. Destes, 23 são
birras sem álcool ou especiais.
Embora a produção de cervejas especiais tenha decrescido constantemente na RepúblicaTcheca nos últimos anos,ela corresponde
a 16% das birras produzidas nas cervejarias industriais e 47% das
micro e minicervejarias. “São elas que ajudam estas pequenas
empresas a sobreviver”,lembra Pilatík.Por outro lado,as não alcoólicas têm crescido 50% anualmente.
Multisabores
A Boêmia tem cervejas ligeiras e delicadas, com notas aromáticas sutis.“As notas vindas do malte podem ser diferentes, intensas ou não, dependendo do rótulo, que lembram caramelo, pão
e biscoito. Do lúpulo, encontramos vertentes florais, cítricas e
amargor intenso. Notas frutadas, resultantes da fermentação, são
raras, mas podem aparecer”, aponta Cilene. Brilhantes, as birras
têm cor amarelo-ouro mais claro ou âmbar, com mínimo de turvação e, normalmente, com densa espuma.
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“Elas são mais fortes, mais encorpadas. Se compararmos com
as brasileiras, as nossas são fracas e aguadas”, brinca Curzel.
Feitas para serem apreciadas durante as refeições, as cervejas
tchecas combinam perfeitamente com os pratos típicos da nação.
“Na maioria das vezes as harmonizamos com pratos gordurosos e
pouco temperados, como o gulash. Há também diversos pratos
frios exclusivamente feitos para acompanhar a bebida, como o
queijo de cerveja, o ‘homem afogado’ (lingüiça salmourada com
cebola, vinagre e temperos) ou uma variedade ácida de peixes”,
ensina Ballik. Patrícia e Carlos experimentaram alguns pratos típicos em sua visita às terras tchecas: “Nos surpreendemos com o
bramborove platsky, que é um tipo de panqueca frita de batata ralada com alho,o klobaska (salsichão) e o koleno (joelho de porco defumado), servido na rua com pão preto, três tipos de mostarda e
cerveja, claro!”, descrevem.
“Uma regra básica é: pratos delicados, com cervejas delicadas
e pratos robustos com cervejas robustas”, ensina Cilene, que afirma que as cervejas provenientes do país pedem pratos ligeiramente
gordurosos, queijos frescos ou com mofo branco ou saladas.
Temperatura
Ballik e Cilene são enfáticos ao afirmar que degustar uma cerveja tcheca “estupidamente gelada” é um “crime”, já que a baixa
temperatura esconde os predicados da bebida,como aroma e sabor.
“Ao ingerir uma cerveja geladíssima, estão bebendo, de fato, apenas o líquido e, se trocássemos a marca da cerveja ao longo do
consumo, provavelmente ninguém reconheceria a diferença. Já a
bebida quente ‘tem gosto de urina de um camelo muito velho e
doente’ (emprestei isso da literatura de Gerald Durell)”, brinca
Ballik, que indica como temperatura ideal algo entre 5°C e 7°C.
Patrícia e Carlos, no entanto, lembram que notaram a diferença
na temperatura da bebida: “no começo, estranhamos o hábito de
tomarem a bebida em temperatura ambiente, que para nós brasileiros é um horror, mas depois achamos até gostoso”.
Combinação ideal
Uma bela paisagem e uma cerveja deliciosa. Quer combinação melhor? E a República Tcheca apresenta os dois predicados: cartões postais lindíssimos e bebidas inigualáveis. “Estar
em Praga é ter a sensação de estar no meio de um presépio em
plena época natalina!”, derrete-se Patrícia. Seu esposo complementa: “a comida é saborosa e adoramos o preço das cervejas: eram baratíssimas! As canecas têm capacidade para 750 ml
e custam cerca de US$ 2”. O estudante paranaense concorda:
“a vantagem é que todos os lugares têm chopes. As garrafas são
adquiridas somente em mercados. Quando você pede uma cerveja no bar, automaticamente trazem um copo com meio litro
da Gambrinus, como se fosse um padrão. Isso só não acontece
nos bares que não têm essa marca, que é a mais popular no país.
Sensações
Museu da Cerveja!
A importância da cerveja para os tchecos é tanta que há
até museus dedicados ao assunto. O Museu da Cerveja, por
exemplo, é da mesma empresa que fabrica a primeira cerveja do
tipo pilsen do mundo, a Pilsner Urquell, da Prazdroj, e fica
A beer sommelier Cilene Saorin provou algumas cervejas provenientes da República Tcheca, à venda no Brasil, e nos auxilia
a identificar as percepções que elas nos causam, lembrando
que “degustar é algo muito sutil”. Prepare todos os sentidos e
entregue-se, sem culpa, aos prazeres de cada loira.
em um prédio que remete aos tempos medievais. Ali é possível
aprender mais sobre a história da cerveja, além de conhecer
Czechvar, da cidade de Budweis
diversos objetos relacionados à bebida, de diversas marcas,
“Brilhante, de cor amarelo-dourada e espuma densa, tem
notas marcantes de malte, que lembram pão e biscoito.
O amargor é persistente. É uma bebida seca – é pouco
doce – e com toques cítricos e de maçã verde, que vêm
do lúpulo”, avalia a profissional, que resume a sensação
como “refrescante!”. A graduação alcoólica é de 5%.
locais, etc. Quem visita este ponto turístico, se for maior de
18 anos, pode degustar 300 ml de cerveja. “Na fábrica, que fica
ao lado, tomei a cerveja que ainda não está totalmente pronta. Foi a melhor birra que já tomei na minha vida!”, suspira
Curzel. Grupos de até dez pessoas podem fazer a visitação
acompanhados por guias que falam sete idiomas: tcheco,
inglês, alemão, russo, francês, espanhol e polonês. O museu
1795, da cidade de Budweis
abre diariamente, das 10 às 18 horas de abril a dezembro e das
Outra cerveja brilhante, esta tem cor amarelo-ouro e
espuma densa. “Ela apresenta notas marcantes de malte, que lembram caramelo. O amargor é fino e persistente, em equilíbrio com certa doçura e toques
florais de lúpulo. É altamente refrescante!”, explica
Cilene. O teor alcoólico é de 4,7%.
10 às 17 horas de janeiro a março. É preciso reservar a visita
pelo e-mail [email protected].
Starobrno, da cidade de Brno
Fotos Divulgação
Brilhante, esta birra de cor âmbar tem espuma generosa!
“As notas de malte lembram pão e o amargor é persistente. É uma cerveja seca com vertente aromática cítrica
e condimentada do lúpulo. Diria que é leve e refrescante”, detalha a beer sommelier. O teor alcoólico é de 4,7%.
Meio litro de cerveja tcheca custa cerca de CZK 18, o que equivale a R$ 2”, compara.
O casal recomenda aos turistas que conheçam a cidade de
Cesky Krumlov, a 100 km de Praga, onde fica a cervejaria
Eggenberg, que pode ser visitada. “Outro lugar que vale muito a pena conhecer é o U Vladare, um restaurante muito antigo, que era uma cocheira medieval e conserva as características daquela época até hoje! Tomar cerveja naquela atmosfera é
incrível! E os acompanhamentos são de tirar o fôlego: nozes,
picles, queijos...” suspira o casal, que destaca ainda que os pubs
no centro da capital tcheca são pontos de encontro de cervejeiros. “Outra coisa que todo turista deve fazer é tomar uma
cerveja na Karluv Most, a ponte de Praga”, indicam, apaixonados pelo país.
Primátor Premium, da cidade de Náchod
“Esta é uma empresa mais arrojada, que se arrisca a
preparar outros tipos de cervejas”, orienta Cilene.
Brilhante e com cor amarelo-ouro, é outra cerveja ligeira e refrescante, “com notas de malte que lembram
pão, certa acidez e citricidade e suave amargor”, assegura a profissional. O teor alcoólico é de 5%.
Primátor Exkluziv 16%,
da cidade de Náchod
Cilene explica logo de cara que esta é uma birra composta pelas quatro matérias-primas básicas (água, lúpulo, malte e leveduras) e açúcares fermentecíveis, que são
adicionados na produção do mosto. “Por isso, é mais
alcoólica”, justifica. Brilhante e com cor de âmbar, “tem
notas de malte com residual de doçura marcante e suaveamargor.Leveedeliberadamentealcoólica,temtoques
frutados, sobretudo de banana”, conclui a mestre-cervejeira. A graduação alcoólica da birra é de 7,5%.
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