Secretaria da Cultura Plano Municipal de Cultura de Sorocaba

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Secretaria da Cultura Plano Municipal de Cultura de Sorocaba
Secretaria da Cultura
Plano Municipal de Cultura de Sorocaba – Mapeamento Cultural
O cinema em Sorocaba.
Cineasta Joel Yemaji
cineasta e professor de cinema. Dirigiu, em Sorocaba e região, Cafundó (1986), O espectador que o cinema esqueceu (19891990), A ira (2000-2004), A outra margem (1999), O riso: o amor é mais forte que a morte (2000). É também autor de Impressões
para Clara (1998), Flores para os mortos (2000), Um grão de claridade: no percurso de Osman Lins (2010), Cartas de Ourinhos
(2014), entre outros filmes. (São Paulo, outubro de 2015).
Meu primeiro contato com um núcleo cultural e cinematográfico em Sorocaba foi por volta de
1986, quando realizava Cafundó, documentário de 45 min sobre comunidade de descendentes
africanos – que, na época, cultivava o dialeto e valores de seus antepassados – situada a 20 km da
cidade, nas proximidades de Salto de Pirapora. Sorocaba era a cidade mais próxima que oferecia
condições técnicas e culturais para apoio logístico e pude contar, na ocasião, com a solidariedade
do Jornal O Cruzeiro do Sul, através do jornalista, dramaturgo e crítico de cinema, Gai Sang, ao lado
de Edmeia Pereira, atriz e professora de teatro. Fomentadores de um cineclube local – o Cinebando
Cineclube – ao lado de grupo de amantes do cinema, do teatro e da literatura, apoiaram-me na
empreitada. Foi pelo Cineclube que pude exibir o filme, em pré-estreia, em 14 de março de 1987,
com apoio da Prefeitura Municipal de Sorocaba e da Secretaria Municipal da Educação e Cultura-SP.
A Prefeitura, generosamente, ofereceu transporte aos membros da comunidade para que
pudessem estar presentes à sessão, uma vez que, em seu lugar de origem, não havia condições
técnicas para a projeção.
No debate, após a exibição, tomei contato com o Sr. Waldemar Iglésias Fernandes, funcionário da
biblioteca municipal da cidade, ex-ferroviário, escritor de contos populares e que, sem ter se
casado, havia 55 anos, ia cotidianamente ao cinema. Ao descobrir nesse senhor o espírito de um
amante do cinema, especialmente o cinema das décadas de 40 e 50, dono de vasta coleção de
cartazes e fotografias de filmes da época, além de cartas de correspondência que mantinha com
então agentes publicitários de atrizes de Hollywood (Bete Davis, por exemplo), realizei com ele e
pequena equipe de amigos, alguns, agora, da própria cidade (Gai Sang, entre eles), meu filme
seguinte, dedicado ao espectador de cinema: O espectador que o cinema esqueceu (1989-1990).
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Acho que esses dois trabalhos, um dos quais, importante para mim, como aprendizado do cinema
enquanto linguagem do homem (Cafundó, 1986) foram, em muito, fortalecidos pela generosidade,
apoio e amizade encontrados no grupo de cinéfilos, poetas, músicos e atores da cidade. Sorocaba
era uma cidade bastante rica enquanto nela existia uma juventude potencial com sede de
conhecimento, cultura e arte, talento e disposição para o trabalho criativo e voltado para a
coletividade, abertura para o mundo. Essa descoberta foi aprofundada através de um pequeno
curso de História do Cinema Brasileiro que desenvolvi, promovido, inicialmente, também pelo
mesmo Cinebando Cineclube. O interesse demonstrado, pelos alunos, por filmes como O dragão da
maldade contra o santo guerreiro, Glauber Rocha, 1968, revelava que, em pleno andamento do
processo de globalização no país, havia ainda, da parte da juventude, compreensão de linguagens
específicas de nossas raízes populares, abertura para modos de representação que não apenas os
cultivados pelo naturalismo esquemático das nossas telenovelas ou dos maneirismos vindos de
Hollywood. Havia, da parte deles, anseio por conteúdos mais consistentes, por poesia, paixão,
resgate da emoção e do senso do coletivo. Agradeço até hoje a confiança que em mim
depositaram, a todos esses queridos alunos e amigos que pude conhecer na cidade.
Quis minha boa fortuna que, posteriormente, no decorrer dos anos 90, fosse convidado pela
Secretaria do Estado da Cultura, através da figura de Manuel Ribeiro Rodrigues, então diretor da
Oficina Regional Grande Otelo, para realizar uma oficina de Roteiro Cinematográfico com o objetivo
de incentivar a cultura cinematográfica na região, através da fomentação de conteúdos voltados à
comunidade local. Os participantes que, novamente, encontrei (alguns, desta vez, já conhecidos) –
assim como em diversos cursos que ministrei na cidade nos anos posteriores (pela mesma
Secretaria e, recentemente, pelo Sesc-Sorocaba)– foram dos de mentalidade as mais abertas,
interessadas, fundadas já em determinado saber e vivência pessoal, com abertura para novos
conhecimentos, de singularidades genuínas. Equivalentes a eles, talvez, os de Fortaleza, no Ceará.
Eram conhecedores, alguns bons de escrita e, para minha surpresa inicial, amavam e respeitavam
cineastas como Andrei Tarkovski, Bela Tarr, Kielowski, Glauber, Bergman, Antonioni, isto, numa
época em que obras de tais autores não eram tão acessíveis ou despertavam menosprezo entre os
jovens já então condicionados pela cultura do cinema publicitário e de entretenimento, como em
São Paulo. O curso de roteiro gerou a possibilidade de empreendermos, com esses novos alunos,
através da mesma Oficina Regional Grande Otelo, Secretaria do Estado da Cultura de SP, uma
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oficina prática de realização cinematográfica, onde produzimos, com profissionais e participantes,
um novo filme, A ira (rodado por volta de 1999/2000 e concluído em 2002). A Ira ganhou prêmio de
melhor fotografia de curta-metragem em 35mm, concedido pela ABC (Associação Brasileira de
Cinematografia). Maturidade dos participantes, senso de se trabalhar em equipe, fundamental no
processo de realização cinematográfica, dedicação dos técnicos da própria Oficina Regional Grande
Otelo, que tudo faziam por paixão e amor ao cinema, consciência do profissionalismo sem
afetação: em Sorocaba, era possível se exercer o espírito da criação cinematográfica no que tem de
essencial, o cinema como construção de um imaginário coletivo, voltado para o homem e cultivo do
espírito, na problematização dos valores e busca de um equilíbrio maior para nossas vidas.
Outros cursos se seguiram e, ainda na Oficina Grande Otelo, promoveu-se encontros de estudos
sobre o cinema, mesas de debates sobre temas contemporâneos como as novas tecnologias,
estudos de literatura que geraram mais um filme em sistema digital, A outra margem (1999),
intercâmbio entre as áreas (Cinema, teatro, dança, poesia, artes plásticas) sobre um tema comum –
o riso - , com a produção de mais um vídeo: O riso: o amor é mais forte que a morte (2000).
Dos grupos, sei que bons profissionais vicejaram: Ricardo Cardoso Camargo, José Ferreira Neto,
Eduardo Gomes, Edcarlos Oliveira, Elnite Turkiewicz, Romeu Domingues, Beth Pinn, Nina Wiziach,
Simone Mom, Mei Ling, Maurício Amaral Reis, Marinês, entre outros, além do amigo de sempre e
também realizador, Marcelo Domingues, hoje, secretário de cultura em Votorantim. Com Marcelo,
senti afinidade de olhar, a tal ponto que voltamos a realizar novos trabalhos em conjunto:
fotografou e montou os já mencionados A outra margem e O riso: o amor é mais forte que a morte,
além de Um grão de claridade: no percurso de Osman Lins, 2010, SP.
Sorocaba tem a vantagem de, próximo à capital, - (o que permite acesso às fontes de informações
oriundas dos grande centros) -, permitir-se também certa autonomia de identidade, pois seus
habitantes sabem ainda preservar e zelar por valores e temperamento que lhes são caros,
característicos às comunidades do interior, tais sejam: amor e orgulho das origens, respeito à
memória dos antepassados, cultivo à cordialidade, ao senso de humor, respeito à alteridade. Tais
sentimentos conseguem superar vícios e ranços do provincianismo na medida em que existem cada
vez mais jovens antenados pelas formas do conhecimento sensível ( tais sejam a música, o teatro,
as artes plásticas, a dança, a literatura, a poesia, o cinema ) que saibam filtrar, de modo crítico, as
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informações que lhes chegam pelos canais oficiais de difusão cultural, comercial e publicitária,
buscando através das redes sociais proporcionadas pelas novas tecnologias eletrônicas e digitais, os
novos modos de linguagem, de representação, de imaginário, que tenham mais a haver com suas
existências, vivências, inquietudes e procura. Talvez, as possibilidades abertas por estas novas
tecnologias, auxiliadas por um trabalho de formação importante que sempre houve na região, quer
sustentada pelos órgãos do Estado – via, no caso, por exemplo, a Secretaria do Estado da Cultura
através da Oficina Cultural Regional Grande Otelo ou incentivados pela própria Secretaria de
Cultura Municipal – ou através de entidades particulares, como o Sesc-Sorocaba, o Senac, - ou
grupos independentes – como o outrora Cinebando Cineclube – além de agentes culturais
importantes na Região, como é hoje o próprio Marcelo Domingues, ou o jornalista Djalma Luiz
Benetti, ou Werinton Kermes (também fotógrafo e cineasta) – tudo isso tenha contribuído para a
proliferação de tantos grupos de teatro, de músicos, de profissionais do audiovisual (cinema, vídeo
e tv), que garantam um quadro de profissionais de nível que possam gerar o imaginário e o caldo
cultural necessário à afirmação de uma identidade própria (regional e nacional) diante de um
mundo de certa forma corroído por valores que se tornam insustentáveis na preservação da
felicidade do homem.
Retomo aqui a paixão que pude testemunhar nos então técnicos da Oficina Regional Grande Otelo
no final dos anos 90/2000, Álvaro Mestre Ramos, Werinton Kermes, Claudemir de Jesus Rosa,
Márcia Mah, Marinês, coordenados por Manuel Ribeiro Rodrigues, todos de dedicação integral ao
investimento na cultura da região: movidos pelo sentimento, mais que pelos interesses pessoais.
Relembro a força criativa e generosidade de Carlos Roberto Mantovani e sua doação à construção
de um teatro local. E dos inúmeros videomakers que encontrei. Onde conseguiam ter acesso às
informações, às obras de autores tão genuínos que já sabiam degustar e fruir com prazer? Via
Internet, via uma pequena locadora alternativa cujo proprietário era apaixonado por cinema, via
troca entre os amigos. A disposição de espírito, a abertura e generosidade ao outro, ao contrário da
arrogância do saber encontrável na capital, propicia um grau de maturidade que pode gerar,
futuramente, valores de maior integridade em nossa formação.
São tais núcleos de cultura da cidade, a intensa proliferação desses grupos de teatro (atores e
atrizes) que sempre foi uma constância de força local, os núcleos de produtores de audiovisual
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(realizadores de vídeo e cinema digital) com diretores e técnicos que já se destacam na
comunidade, os profissionais de dança, música, artistas plásticos que nela existem, que devem ser
preservados e estimulados. Na confluência do cinema, podem gerar uma nova força cultural na
região (Votorantim, Salto, Itu), através dos festivais e circuitos de exibição oficiais e alternativos, na
construção de nosso imaginário, para além do provincianismo, que possa se constituir como
possibilidade e alternativa no mundo de valores corrompidos e adulterados gerados por uma falsa
consciência de desenvolvimento. Mais que tudo, interessa à nação sobreviver e Sorocaba tem uma
rica juventude a ser cultivada e mobilizada na construção de tais possibilidades.