O Albergue Espanhol de diversidades linguísticas

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O Albergue Espanhol de diversidades linguísticas
O Albergue Espanhol de diversidades linguísticas
L’Auberge espagnole, traduzido como “O Albergue espanhol” no Brasil, é um
filme franco-espanhol escrito e dirigido por Cédric Klapisch e lançado em 2002.
No elenco estão atores conhecidos e desconhecidos do público, entre eles
Andrey Tautou, Romain Duris, Judith Godrèche e Kelly Reilly. A título de
curiosidade, uma sequencia do filme foi lançada em 2005, no original como
“Les Poupées russes”, (Bonecas Russas, em português), com o mesmo
personagem principal cinco anos depois da primeira ação.
Acredito ter assistido ao filme pela primeira vez perto da época de seu
lançamento. Ao vê-lo no cronograma da ACIEPE Direitos Humanos e Cinema,
fiquei bastante empolgada com a ideia de revê-lo. Minha surpresa foi que o
enredo, hoje, me pareceu bastante raso, embora as questões despertadas pelo
filme mais profundas do que há quase 10 anos.
A sinopse pode ser resumida da seguinte forma: Xavier (Romain Duris) é um
jovem francês que precisa da fluência em espanhol e um certificado em
economia para conseguir uma vaga em um dito “ótimo emprego”, arranjado por
um amigo de sua família. Para isso, Xavier decide entrar no Programa
Erasmus, famoso por viabilizar o intercambio entre alunos do ensino superior
entre os estados membros da União Europeia e estados associados. Após
alguns percalços com a burocracia, Xavier parte para a Espanha, deixando
mãe e namorada para trás.
Lá chegando, bastante perdido e confuso, Xavier se aloja provisoriamente na
casa de um casal recém-casado que conhecera no aeroporto. Buscando outro
lugar para morar, acaba por chegar ao “albergue espanhol” que dá título ao
filme, uma república onde moram, inicialmente, outros cinco estudantes,
também integrantes do Erasmus. São eles: Wendy (Kelly Reilly), inglesa;
Soledad (Cristina Brondo),espanhola; Lars (Christian Pagh), dinamarquês;
Alessandro (Federico D´Anna), italiano e Tobias (Barnaby Metschurat), alemão.
Xavier é aceito como novo integrante da república e logo depois sua amiga
belga, Isabelle (Cecile De France) entra para o time. Como não seria de se
espantar, Xavier e todos esses jovens passam por diversas transformações e
crescimentos, partilhando experiências e bons momentos.
As questões trazidas pelo filme, para além das experiências amorosas e
sentimentais dos personagens, são várias. Uma delas diz respeito a linguagem
enquanto algo carregado de simbolismos, hierarquias e poder. Foi sob o viés
linguístico que o filme foi analisado e debatido durante a ACIEPE. Procurarei
seguir nesta resenha um pouco da estrutura de discussão que foi realizada em
aula, partindo da situação espanhola para chegar ao Brasil.
A Espanha tem como língua oficial o castellano, e como “co-oficial” o basco, o
catalão, o galego, o asturiano, aragonês e aranês. Muitas das regiões onde as
línguas acima ocorrem não possuem o castellano enquanto língua primária. A
região da Catalhuna, presente no filme, tem como capital a famosa Barcelona,
destino dos estudantes do Programa Erasmus do filme.
Muito embora o catalão fosse (seja) a língua falada pelos que vivem naquela
região, aparentemente nenhum dos alunos do Erasmus têm conhecimento
suficiente sobre a língua. Há uma cena em que Isabelle, estudante belga, pede
ao professor que lecione em castellano, pois ela e outros alunos não
conseguem entender o que estava sendo dito. O professor se recusa, dizendo
que compreende o que ela está sugerindo, mas que eles estão na Catalunha,
que a maioria dos alunos são catalões e é um direito garantido o de falar em
catalão.
Durante a discussão do filme na ACIEPE, foi pontuada a questão sobre o
quanto o Programa Erasmus deixa de respeitar as minorias linguísticas, uma
vez que, em tese, é exigido o conhecimento básico da língua do país para onde
o estudante pretende ir. No caso espanhol, a Universidade está localizada em
Barcelona, região onde a língua oficialmente falada é o catalão, e desse modo,
talvez o conhecimento básico da língua catalã que deveria ser priorizado, e não
o castellano.
Na república onde os estudantes moram no filme, a língua “universalizante” é o
inglês, muito embora com o passar do tempo o castellano seja mais utilizado,
talvez porque passa a ser apropriado pelos alunos estrangeiros. Há um
personagem, irmão da estudante inglesa, que vai à Barcelona para passar
alguns dias com a irmã, e que encarna os preconceitos e esteriótipos típicos,
não só linguísticos, mas culturais, que estão presentes o tempo todo no nosso
dia-a-dia. Lendo algumas críticas do filme, me deparei com a sugestão de que
os países reunidos no “albergue espanhol” sejam uma tentativa do autor de
retratar a União Européia. Talvez seja, e talvez não coincidentemente, seja a
personagem desse jovem inglês a que tenha tantas dificuldades em lidar de
maneira sensível com as diferenças culturais, pois não só ele foi naturalizado
desde cedo com a “língua universalizante” que é a língua inglesa, mas também
é cidadão de um país bastante conservador no cenário europeu. Se o filme
fosse feito com estudantes brasileiros, talvez o personagem inglês fosse um
paulistano que ri do modo como os nordestinos ou mineiros falam o português,
que de maneira nenhuma deveria ser entendido enquanto algo duro, único e
imutável.
O Brasil, para além das diversidades regionais e culturais, tem o português
enquanto única língua oficial, mas possui mais de 180 línguas indígenas
(consideradas “nacionais”) e mais de 30 línguas “de imigração”. A necessidade
de aprender e utilizar o português muitas vezes é posta pelos próprios
indígenas, pois é uma maneira de se garantir o acesso a certas instâncias
oficiais ou institucionais e desse modo, garantir alguns direitos.
Há proposta, já em prática em cursos de algumas Universidades públicas
brasileiras, de que aulas do ensino superior devem ser ministradas em inglês,
sem tradução. O objetivo seria o de “enriquecer o currículo dos alunos e
prepará-los para o mercado de trabalho.” Talvez a primeira questão a ser feita
é a de quais alunos esses professores e defensores da proposta estão falando.
Parece-me que medidas como essa caminham na contramão das ações
inclusivas que estão sendo postas em práticas atualmente no Brasil. Se um
aluno brasileiro questionar esse professor para que dê aulas em português, em
uma universidade pública brasileira, tem este o direito de se negar?

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