Velhos Contos

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Velhos Contos
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Velhos Contos
Veja
Réstias da Minha Guerra
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Um salto a Couchel
Aprumo acima de tudo
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Finais do Verão de 1938, talvez 1939, altura das colheitas…
Um amplo espaço a toda largura da propriedade separava a habitação das terras de cultivo. De um
extremo ao outro eram a adega, o eirado, as arrecadações, as casas das alfaias, as capoeiras, o jardim; a dois passos da porta da casa ficava o poço do engenho, (fundíssimo mas com um muro em
volta), o lavadouro mesmo ao lado, num alpendre, num recanto deste abundavam as barricas de
calda bordalesa, as celhas, produtos e ferramentas de lavoura. Era a cabeceira da Quinta.
Na azáfama do trabalho deixaram-me por ali. Três, quatro anos… Quando regressaram uns minutos
depois encontraram-me de pé, no meio de uma celha, firme e hirto, com água pelo pescoço.
Deus andava por ali perto!!!
Aniceto Carvalho
Contou-me a Senhora Delfina
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Não sei se pelo casamento do meu tio Zé, boda em casa do meu avô.
Talvez nos meus três, quatro anos.
Dois automóveis tinham vindo da vila (Vila Nova de Poiares) para levar os convidados á cerimónia na
Igreja Matriz e voltar a trazê-los a Couchel.
Os carros eram da transportadora Armando Ferreira & Irmão, proprietária da carreira PoiaresCoimbra-Poiares, de Vila Nova de Poiares.
Tudo primos e gente conhecida.
O Armando Ferreira, o mais velho dos dois irmãos, tinha dois filhos, dois rapazes pouco mais que
adolescentes, com o sangue a ferver na ponta dos dedos para se agarrarem ao volante… Sabe-se lá
com que choradeiras do filho e condescendência do pai, um deles guiava o carro onde eu ia.
Tudo corria bem… Passageiros a bordo, ao dar a volta para o regresso a Poiares, o jovem condutor
deixou o carro sair do alcatrão, uma das rodas afundou na valeta do pomar da Natividade.
Vergado ao peso da responsabilidade e ao receio das consequências pelo incidente o rapaz estava
desfeito, nem queria pensar que o pai viesse a saber que ele tinha perdido o controlo do automóvel.
Num instante todos estavam na estrada.
Importante: Não havia estragos, o carro voltou ao alcatrão. Com a garantia que o Armando Ferreira
jamais saberia o que ali sucedera, o moço pegou no volante, feliz, retomou a viagem.
Quem conduzia o carro no regresso era o próprio Armando Ferreira.
Chegou ao cruzamento da Tapada de Vale de Vaz, entrou na calçada para Couchel, fez marcha atrás,
realinhou na Estrada da Beira em sentido contrário, encostou para deixar sair os passageiros.
Eu estava na parte de trás do carro. Na azáfama e na euforia da cerimónia quem é que ia ligar importância àqueles dez reis de gente comprimidos entre adultos no assento?
Ninguém. Só que, talvez porque tudo aquilo me fosse estranho, sem que alguém tenha dado por isso,
não me tinha escapado uma pitada do desassossego anterior, nem da aflição porque tinha passado o
jovem condutor. Saltei no banco, atirei alto e bom som:
- Agora deixem o carro cair outra vez na barroca!!!
O Armando Ferreira saltou como uma mola atrás do volante… Virou-se para trás.
“O que é que ele disse?”
A algazarra a disfarçar estoirou num tumulto… Eu acabava de ficar amarfanhado no fundo do carro
com tudo quanto eram sapatos, saias, xailes e cestos por cima para ficar sossegado.
Aniceto Carvalho
Liberdade e crescimento
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Tem-se um fogareiro de assar sardinhas, faz-se-lhe passar por cima das brasas incandescentes uma
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corrente de ar… para simplificar, canaliza-se o gás que sai do outro lado para fazer funcionar um
motor de combustão interna. É o “gás de ar”, o genericamente conhecido “gasogénio”, quase na totalidade utilizado como combustível durante a Segunda Guerra Mundial a substituir a gasolina nos
veículos automóveis.
(Se em vez de “ar atmosférico” se fizer passar sobre o carvão “vapor de água” obtém-se “gás de
água”… e o resultado do poder calorífico é substancialmente superior. Elementar!… não é?)
Finais do conflito, por certo. O carvão vegetal artesanal ainda estava no seu máximo de procura, eu
já manejava uma enxada.
Nove ou dez anos de idade… 1944 ou 1945.
E talvez porque o meu pai tenha pensado que fazer carvão era um bom negócio foi falar com um carvoeiro a Val de Aires, uma povoação a dois passos da Estrada da Beira, pouco depois e logo a seguir
à Ponte Velha.
Seria por isso, penso eu. O meu pai não precisava de comprar carvão, tinha lenha com fartura, não
tenho ideia alguma de o ver carregar no regresso qualquer saco ou fosse o que fosse.
Fui com o meu pai. Nada de especial. Mas cá para mim, até hoje, o meu pai foi a Val de Aires tirar
uma “nova oportunidade” de carvoeiro.
Contudo: Se alguma vez o meu pai pensou em fazer carvão, rápido o terá esquecido... O carvoeiro de
Val de Aires parecia um tição, o meu pai nem deve ter pensado mais no assunto.
A mim, contudo, tudo aquilo me deve ter parecido engraçado e sugestivo.
Não demorou muito tempo. Meia dúzia de dias depois não restava um palmo do olival entre a casa
onde nós vivíamos e a do Natividade que não fumegasse de fornos de carvão.
À minha medida, evidentemente… mas nem por isso menos perfeitos do que os que tinha visto em
Val de Aires. E funcionavam: A minha mãe chegou a realizar uns tostões com aquilo.
Só havia uma explicação, acho eu: Além do que tinha visto, nem uma palavra do homem para o meu
pai me tinha passado ao lado.
Fiz, fiz e fiz, fartei-me de fazer. Nem uma palavra de admoestação, de ralho, de censura… Nem do
meu pai, nem de ninguém.
Quando me cansei, acabou.
Do que aqui vai escrito só uma palavrinha:
A isto chamava-se liberdade!!!
Aniceto Carvalho
Um serão na província
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Por certo pelo ambiente acolhedor, os serões em casa do meu avô eram bastante concorridos.
As visitas mais comuns eram a senhora Marquinhas, e a irmã, a senhora Delfina, que viviam quase
em frente; o Ti Adelino do Alpendre, antigo combatente da Primeira Guerra, que morava a umas dezenas metros aparecia de vez em quando; de tempos a tempos, de fora do lugar, apareciam lá por
casa o Casimiro do Alqueve e o velho Cristo de Val de Vaz.
O velho Cristo era “filósofo”... Claro, depois de ter percorrido uma a uma todas as adegas de Couchel.
Pelo fim do serão, após uma notável tese sobre o esverdeado do vidro do copo, a cor da erva e o paladar do vinho, desandava estrada abaixo, pela quelha da Fonte das Tortas; com a mulher atrás, a
rezar à Santa Bárbara, ele, à frente, a exortar o deus dos trovões para lhe alumiar o caminho.
O Casimiro do Alqueve terminava o mesmo itinerário do “filósofo” com demolidoras aparições sobre
lobisomens e almas do outro mundo; tão “autênticas”, que nem eu, na altura com bem menos de dez
anos, acreditava numa só palavra.
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O Casimiro do Alqueve, assim chamado por viver numa povoação com aquele nome, nos arredores de
Foz de Arouce, no concelho da Lousã, era um aldeão genuíno, alto e seco, não sei se mais ou menos
destemido do que apregoava.
Uma noite medonha, de Inverno. O Casimiro do Alqueve meteu os pés ao caminho. Nada demais.
Eram cerca de dez quilómetros de vento a uivar nas árvores, de trovoada e relâmpagos pelas encostas. Desceu a ladeira de Couchel, entrou na estrada da Beira, atravessou a Ponte Velha. Virou para
estrada de Foz de Arouce, apanhou o atalho, retomou o macadame no cimo do planalto da Pegada:
um ermo longe de tudo, entre pinheiros, onde, em plena luz do dia, para além do cemitério, mais
abaixo, não havia mais nada.
Um clarão na noite deixou na retina do caminhante a silhueta dos ciprestes, uma réstia de muro
branco, a enorme copa do pinheiro manso defronte da porta do cemitério.
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O Casimiro do Alqueve tinha de passar por ali: entre o pinhal e o muro da necrópole. Tinha ali passado vezes sem conta. Os vivos é que não eram de fiar, dos mortos não tinha medo.
Alta e mais negra que a noite, a cabeça à altura da ramada do pinheiro, uma sombra surgia das
trevas, estava encostada ao muro do cemitério. O “homenzarrão” deu dois passos.
- O Senhor dá-me lume, por favor?
O Casimiro do Alqueve puxou do isqueiro; bateu a pederneira. Um pequeno lampejo de brasa despontou na ponta do pavio, durante um momento faiscou no meio da escuridão.
Soou um “muito obrigado”; a “visão” tinha desaparecido.
O Casimiro guardou o isqueiro; retomou o caminho.
Aquilo era uma enormidade do tamanho do mundo... mas alguém tinha lá estado para ver?
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Disseram-me mais tarde que o Ti Adelino era gaseado.
Nada disso. O Ti Adelino simplesmente tinha vivido uma vida inteira em apenas três anos. Rebentava
pelas costuras. Para um homem que precisava de deitar cá para fora as provações das trincheiras
francesas, viver na aldeia escondida no interior da Beira, era, de facto, um fardo muito pesado.
A senhora Marquinhas, a comadre dos meus avós, e a irmã, a senhora Delfina, eram as duas praticamente da casa, estavam lá todos os dias; mas o Ti Adelino do Alpendre, como outros vizinhos do
meu avô, era uma visita mais esporádica.
O Ti Adelino tinha aparecido logo depois da ceia, como se chamava ao jantar na minha terra; vinha
passar um bocado, acabara por sentar em redor da lareira a tagarelar.
O Ti Adelino tinha estado na guerra... E falava francês, uma coisa extraordinária!... Ao que parecia descobri depois – não havia já ninguém nas aldeias em redor que suportasse ouvir as histórias do
velho combatente. Mas eu não sabia.
Eu não sabia que toda a gente entrava em pânico, a desviar a conversa, mal o Ti Adelino abria a boca
à primeira palavra sobre o seu passado de combatente. Soava o alarme: toda a gente disparava em
todas as direcções. Sem hipótese de relembrar os velhos tempos, o Ti Adelino baqueava.
Sentado no meu canto, eu ouvia; dava palpites… quando e se me deixavam.
Houve uma distracção nas fileiras: O antigo soldado da Primeira Grande Guerra tinha furado o cerco;
eu acabava de apanhar no ar uma palavra de francês.
Foi um desassossego: A minha madrinha Dora atirou à pressa uma velha rivalidade de escola que eu
sustentava com o José António Catrapeiro, o meu avô lembrou-se que “tinha achado um ninho de
melro em Vale do Forno”; a senhora Marquinhas, em desespero, bateu com a mão na testa: “Tinha-se
esquecido de dizer que a Lurdinhas – a sua neta, uma miúda da minha idade que toda gente achava à
minha medida - estava quase a chegar para passar umas férias em Couchel.
Nada adiantou: Eu estava na guerra, a aprender francês; o Ti Adelino tinha o interlocutor porque
esperava há anos... A noite era toda nossa.
Foi uma batalha: Bombardeamentos, combates corpo a corpo, sangue, esventramentos; depois, em
francês, gritos de guerra, vozes de comando, ordens... Uma noite tenebrosa.
Em volta, o silêncio. Ninguém dizia uma palavra.
O barril de pólvora estava pronto a explodir. Radiante, o velho veterano começou a guardar a artilharia. Com um sorriso de orelha a orelha, retirou-se.
Eu enfrentei a turba sedenta de sangue. Foi o massacre. Não obstante os meus vigorosos protestos de
inocência, pouco me faltou para acabar num naco de carne picada.
Aniceto Carvalho
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As cuecas pretas da Arminda
Naquele tempo, por volta da metade dos anos 40, bem antes e depois, todo o bocado onde fosse possível plantar uma couve ou semear uma batata era aproveitado na minha terra.
A zona sempre foi bastante limitada de recursos agrícolas.
Cá em baixo, no vale, nas margens da Ribeira de Vila Chã, nem tanto, as culturas eram de regadio
sofrível, mas lá em cima, no planalto de Couchel, cá para mim uma ancestral fortaleza natural de
atalaia às avoengas da Estrada da Beira, salvo dois ou três casos de poços profundos com minas, boa
parte das leiras não tinham um pingo de água no Verão.
Uma dessas leiras era do meu avô: Um rectângulo de torrões ressequidos em ligeira inclinação
do Cabeço para a quelha da Avessada, que dava grão de bico e tremoços para azotar a terra em poisio, e cereal de segunda qualidade, centeio, cevada e aveia na época mais fértil.
Melhor ou pior, era a altura da ceifa. As ceifeiras eram a minha tia Dora, minha madrinha, uma
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Velhos Contos
rapariga de 23 anos, um torrão de açúcar na época, e a Arminda, uma mocetona peituda com a mesma idade, que transpirava hormonas, e umas pernas que pareciam duas colunas jónicas.
Eu andava por ali. Se as duas moças me davam corda, o que era normal, não era de esperar que eu
fosse rezar na Capela da Eira dos Santinhos. Tinha os meus oito ou nove anos, não era cego, o meu
avô dava uma ajudinha a completar o ramalhete.
A Dora olhou para o lado, fez sinal à Arminda, a Arminda olhou para baixo, apanhou-me esparramado de costas no chão com os olhos cravados lá no alto mesmo no meio das pernas dela. Não fui tão
rápido como pensava, fui atropelado por um combóio de mercadorias, só parei de rebolar nas Paúlas,
cerca de um quilómetro depois, a dois passos da Ponte Velha.
Sacudi as parganas, fiquei pronto para outra.
Mas um enigma perdurou no tempo: Até hoje nunca cheguei a descobrir se o que eu vi eram as cuecas
pretas da Arminda.
Aniceto Carvalho
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Cocas, bruxas e lobisomens
A COCA é um bicho muito ruim, que antigamente, por este país fora, fazia maldades às criancinhas
que não queriam comer a sopa toda.
Com algumas aparições excepcionais, como na Festa do Corpo de Deus, em Monção, parece que o
bichinho está em fase de extinção.
Quem era muito bom a apanhar COCAS, antigamente, era o S. Jorge.
Mas isso foi lá para os lados da Líbia, no tempo do imperador Diocleciano.
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Uma das atracções da minha parvónia, quando eu era pequeno, era uma burguesa lá do sítio, que no
tempo em que os miúdos como eu nunca tinham a barriga cheia, corria lugar abaixo e lugar acima
com um panal pela cabeça e um prato na mão, a fazer de COCA, atrás de um sacaninha merdoso a
ziguezaguear de um lado para o outro.
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Uma vez durante um serão tenebroso de fantasmas e almas do outro mundo desafiaram-me a ir à
arrecadação da lenha sozinho, ali a uns vinte metros da cozinha. Petrificado, a tremer... mas fui.
Pelo caminho, pelo sim pelo não, meti duas pedras no bolso.
Alguém foi pelo outro lado para se empoleirar no monte de lenha. Lá estava a COCA a fazer-me moafas. Levou duas pedradas em cima... Raspei-me dali a deitar fumo pelos calcanhares.
Mas segundo me pareceu, a "COCA" também não saiu daquela muito bem vista.
Aniceto Carvalho
A Casa das Fontainhas
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Embora talvez por dias, tenho ainda uma vaga ideia de ter visto a Casa das Fontainhas habitada por
herdeiros da propriedade.
Com memória bem viva, no entanto, estive algumas vezes lá dentro, garantidamente ainda antes dos
dez anos, desafiado pelo Silvino, mais novo do que eu talvez uns dois anos, na altura aí com uns sete
ou oito anos de idade, filho do caseiro da altura, o António de Val do Forno.
Na Casa das Fontainhas tinham soado os nomes do Padre Francisco Ferreira de Carvalho, Doutor em
Cânones e Lente na Universidade de Coimbra, de Alberto Ferreira Pinto Basto de Carvalho, de Caetano
Ferreira de Carvalho… gente proeminente na região.
(Que eu saiba, só muito longinquamente algum destes Ferreira de Carvalho terá alguma coisa a ver
com a minha família).
A lei dos anos, no entanto, é implacável… e, embora com um passado de algum esplendor na segunda metade do século anterior, no princípio dos anos 40 do Século XX a Casa das Fontainhas estava em avançada degradação, em condições de precária habitabilidade.
Restava-lhe o soalho esburacado, indícios de floreados no estuque do tecto, um piano quase aos bocados que, contudo, lembro-me, ainda se fazia ouvir pelas dependências do casarão.
Por certo a viver de pergaminhos, mas sem dinheiro para as obras, com ligações familiares à Casa da
Abraveia, o remanescente da família das Fontainhas deixou Couchel para trás.
É então que pelo final da Guerra aparece em Couchel um tal doutor Tomás que tem ligações por casamento à Casa da Abraveia que vem pôr a Casa das Fontainhas a brilhar.
Obras grandes numa povoação pequena dão nas vistas… E fica então a saber-se que o doutor Tomás
é irmão do doutor Sanches da Gama, médico em Vila Nova de Poiares, e que, graças ao conflito mun4
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dial, se já era rico, ficou a deitar dinheiro pelas costuras.
O doutor Tomás trazia um reluzente automóvel azul-escuro, ou preto, que nunca mais acabava. BUICK
EIGHT… estava lá escrito.
E aqui entro eu:
Tudo naquele automóvel era demasiado grande para não me extasiar.
Com a ladeira molhada veio o dia em que nem todo o esplendor do luxuoso Buick o salvou de alapar
no último troço da subida, a mais íngreme, antes de chegar à casa do meu avô.
Como sempre, quando a moderna tecnologia emperra, nada é melhor e mais eficiente que o recurso
aos processos ancestrais.
O meu avô tinha a solução: E assim, um fascinante último modelo de Buick chegou a Couchel rebocado
por uma junta de bois.
Eu estava lá… “tirei o retracto” ao carro, do pormenor ao conjunto.
Tinha de fazer uma coisa daquelas. E fiz.
Tempos depois estava de partida da terra.
Guardei a obra e os “instrumentos de trabalho” numa caixa de sapatos, recomendei para quem quis
ouvir lá de casa:
- Não mexam nisto, sobretudo tenham muito cuidado em não estragar nada, que quando eu voltar
quero apreciar o que fiz!!!
Cinco anos mais tarde, regressei à terra.
Cheguei, corri a casa do meu avô, saltei ao “relicário”. Nem sombras. A minha avó tinha dado tudo a
uns primos meus da Venda Nova.
Fiquei desolado, a milímetros do desespero.
As prioridades eram outras… Atirei para trás das costas… como se pode ver, no entanto, nunca
mais me esqueceu.
Aniceto Carvalho
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O Zé Povinho na Lua
O António do Cabeço tinha parecenças com o Zé Povinho. Ou vice-versa.
Mas não com o Zé Povinho do Bordalo Pinheiro que nem eu nem o meu avô sabíamos quem era. Este
Zé Povinho tinha sido mandado de penitência para a Lua com um molho de silvas às costas por Deus,
que o tinha apanhado de roçadoira em punho a roçar silvas ao Domingo.
E se o meu avô o dizia, é porque era verdade.
Pareceu-me bem: Era bem mais divertido vestir a fatiota domingueira e dar uma passeata pelos arredores aos ninhos e aos tortulhos na Quelha do Valezinho do que passar o dia a trabalhar em Dia
Santo de Guarda.
Além do mais era pecado.
Um senão: Apesar dos esforços eu não conseguia ver o Zé Povinho na Lua.
- Porque não tens olhado com atenção – disse o meu avô. – Ou então, se calhar, porque não seja a
melhor altura dele aparecer.
Foi então que num final de tarde de Verão, num habitual “antes das sopas” à porta do meu avô, uma
silhueta cambaleante se destacou na ladeira, perto do sítio onde começava a vereda para a Fonte das
Tortas.
No fim de um dia de labuta num bocado de terra ao lado do Chão da Fonte, o António do Cabeço regressava a casa. Ultrapassou o bueiro que logo a seguir ali atravessava a estrada, vergado sob vários molhos de vides, com um ofegante e sumido “boa tarde” continuou ladeira acima.
A conversa esmoreceu, retomou a vitalidade no serão “depois das sopas”… E continuava, já um manto de prata cobria a região, sem que alguém mostrasse alguma vontade de se recolher da brisa refrescante que corria.
Foi então que eu vi claramente o Zé Povinho na Lua com um molho de silvas às costas... tal e qual
como o António do Cabeço um pouco antes.
E ainda lá anda, consta, setenta anos depois.
Aniceto Carvalho
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Do que eles gostavam
Pois é. Eu também conheço uma terrinha com cerca de trinta casas entre as quais meia dúzia delas
eram burguesas. Os burgueses velhos morreram todos pelos meados do Século XX, e os descendentes
deles zarparam para outras paragens, ou não estiveram para se chatear com aquilo...
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Velhos Contos
Como consequência disso e do exemplo, da antiga população da terriola ficaram lá dois ou três a
usufruir dos bons ares da montanha.
Passou outra geração, o lugar está a beira de ser uma terra fantasma.
Confiram: As grades da minha Escola
Mas não é por isto que alguns “patriotas” têm lutado nem que seja a estoirar subterraneamente com
o poder económico do país?
Estamos quase lá: Todos pobrezinhos... Com um problema acrescido: Em vias dos pobrezinhos não
terem a quem pedir esmola...
Não gostaram?... Acredito
Aniceto Carvalho
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O “Bacalhau sueco”
A Hermínia era a prova do que fazem os cuidados que uma rapariga, (um rapaz), uma mulher, (um
homem), deve ter na sua apresentação; e provava também, e prova hoje, que não era, nem é em absoluto o meio nem o grau de riqueza ou de pobreza que fazia, ou faz, a diferença.
Não. É o desleixo e a falta de brio.
E isso chega muito bem para arrasar a vida de uma pessoa.
O meio era o mesmo, as posses semelhantes; a minha madrinha era o “Açúcar em ponto” lá da zona;
as outras tinham epítetos razoáveis que não melindravam ninguém, a pobre da Hermínia era o “Bacalhau sueco”.
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Eu também tive esse problema: Era no tempo dos galãs de Hollywood, dos Clark Cable, dos Montegomery Clift, Kirk Douglas, etc., etc., etc…
Quando cheguei à idade de me olhar ao espelho descobri que não tinha qualquer hipótese. Fiz o que
se deve fazer: Dei a volta.
Como a Aeronáutica Militar Portuguesa tinha na altura a farda mais bonita de todas as forças armadas do mundo, que não se confundia com bombeiros, nem com polícias, nem com marujos… e o cabo
mecânico tinha um uniforme igualzinho ao do general... fui para a aviação.
Nem fazem ideia da quantidade de gente que eu enganei...
Houve até uma que se enfeitiçou com a minha farda para sempre.
Aniceto Carvalho
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O padre e a torneira
Couchel – Vila Nova de Poiares – pelos finais da Segunda Guerra.
Contou a Senhora Marquinhas num serão em casa do meu avô.
O padre lá da aldeia, rapaz novo e bem apessoado, malandreco quanto baste, queria dar a volta à
filha do cidadão local.
A rapariga foi dizer ao pai.
O pai da jovem organizou um almoço. Em vez de uma garrafa de vinho para todos, mandou pôr na
mesa uma garrafinha para cada conviva.
Já o almoço ia adiantado o pai da moça perguntou ao padre:
- Então senhor prior, que tal a pinga?
- Bom... – respondeu o pároco... – mas parece ter um gostinho.
O pai da rapariga esclareceu:
- Pois olhe, senhor padre, que esse precioso néctar é exactamente do mesmo pipo onde o senhor queria meter a torneira.
Aniceto Carvalho
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O Arado e a Aiveca (clic no link)
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Velhos Contos
Guardemos na nossa memória tantos homens comuns deste país que, com o seu esforço e suor, tanto
contribuíram para o construir e engrandecer.
Aniceto Carvalho
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Pulhas – Antiga tradição (clic no link)
(Um artigo da Junta de Freguesia de Pampilhosa da Serra)
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A mala de viagem da Ti Maria
A Ti Maria do Alpendre, mãe do Alberto “Mascarenhas”, o meu maior amigo da altura, estava a
recolher as ovelhas ao fim da tarde.
(“Mascarenhas”, achava a minha tia Alcina, era sinónimo de artolas).
Entendendo ser ainda cedo para recolher, um dos borregos decidiu moer o juízo à proprietária antes
de entrar a porta do curral.
A Tia Maria do Alpendre, uma mulher pequena e franzina, pouco mais que pele e osso, perdeu as
estribeiras: Enfiou os dedos na lã do lombo do cordeiro, transportou-o como se fosse uma mala para
dentro do curral.
Eu vi, é certo… Não liguei. Tenho a certeza absoluta de não ter sido eu a dar com a língua nos dentes. Mas alguém foi.
No Carnaval que se seguiu não houve monte, outeiro ou cume em redor onde o irreflectido gesto da
pobre da Maria do Alpendre de transformar um borrego em mala de viagem não fosse esventrado
com toda sonoridade por quilómetros e quilómetros para quem queria ouvir.
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Este episódio terá sido uma das últimas sessões de “pulhas” na minha terra… logo depois, próximo
do final da Segunda Guerra, a antiga tradição foi simplesmente proibida e deixou de se ouvir nos
outeiros da região.
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Em 2014, ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, a Rádio -Televisão portuguesa promove espectáculos com
o sacrifício de animais para diversão.
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Por muito rafeiras que as “pulhas” fossem eram infinitamente menos poluentes socialmente
do que a maioria dos programas de televisão e o reles ambiente de algazarra política da
actualidade.
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Uma das últimas sessões de “pulhas” na minha terra, de que eu me lembre, senão a última, tinha a
participação de um "ovelheiro" chamado Luís, pastor transumante da Serra da Estrela, um gajo
enorme e bexigoso, que usava um barrete preto com borla, um cajado do tamanho de um poste, que
guardava as ovelhas num redil num pomar amanhado pelo meu pai.
Lembro-me: Uma dessas últimas sessões de “pulhas” acabou num arraial de porrada tão grande lá
para a Chã que até os riachos fumegavam.
Aniceto Carvalho
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Sopa com torresmos
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A minha avó paterna fazia uma sopa com couve esfarrapada, feijão vermelho, farinha de milho, não
sei com que temperos nem com que mais.
Muito boa, lembro-me bem, juro. Hortaliça do quintal.
A minha avó tinha quase 65 anos, já não via bem, mas não usava óculos… e por isso, apareciam de
vez em quando umas coisitas a boiar no prato que pareciam mesmo os bichinhos como o que a imagem de cima mostra.
O meu avô dizia que eram torresmos. Fosse como fosse, foi com sopas dessas, ou mais ou menos, que
eu aguentei firme os tempos da Segunda Guerra Mundial, que me criei e fiquei peitudo… E já lá vão
mais de 70 anos.
Aniceto Carvalho
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Estás a perceber, ó artolas?
Conversava com uma doutora, contou que se tinha divorciado há cinco anos, com a mesma convicção
de quem não acredita numa palavra do que está a dizer, adiantou-me que quando as coisas começam
a correr mal é o melhor que se deve fazer… continuou que tinha um miúdo com nove anos, prosseguiu, explicou depois que "o rapaz estava a ficar parvo".
Ou seja: O miúdo ficou sem a imagem do pai aos quatro anos... aos nove talvez esteja a ficar parvo
por isso, é bem possível que aos vinte esteja numa cura de droga ou na cadeia.
Tudo bem. Esta é a teoria televisiva, e por isso a de todo mundo pouco atento que encaixa tudo o que
diz essa gente, porque, simplesmente pensar dá muito trabalho, e o que mais interessa realmente é a
lei do menor esforço.
Graças a Deus que tenho quase 80 anos
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Dois meses antes de ingressar na Força Aérea, eu andava lá por Vila Nova de Gaia, numa terra chamada Palmeira, na Estrada Nacional, à saída de Santo Ovídio, no início da subida para os Carvalhos.
O casal de comerciantes onde eu era empregado, (boa gente), eram de Foz de Arouce, próximo da
minha terra.
Tinham uma miúda gorduchinha de 15 anos. Eu tinha dezassete.
Um dia ficámos os dois sozinhos em casa. Encostado à ombreira do portão, virado para os Carvalhos, eu estava, por certo, às voltas com aviões, ela tagarelava ao meu lado, eu respondia de circunstância.
Às tantas ela saltou na maior das canduras:
- Se um dia eu fizesse alguma das minhas, os meus pais não tinham lata de me dizer nada... o meu
pai também engravidou a minha mãe, que era filha do patrão, e depois teve de casar com ela.
(Estás a perceber ou queres que te explique, ó artolas?).
A “voar” pelas alturas, a conversa da miúda passou-me ao lado... mas, como se pode ver, o exemplo
vem sempre de cima.
Aniceto Carvalho
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A tasca do ti Hipólito
O ti Hipólito era ferrador em Val de Vaz. Herdara a arte do pai.
Entretanto, numa terra com pouco gado auxiliar da agricultura, pelos meados do Século XX o trabalho na profissão começou a escassear.
Na casa dos seus cinquenta e tal anos de idade, portanto ainda bastante novo na altura, o Ti Hipólito
montou uma venda na casa de habitação, quase em frente do tronco, do outro lado da estrada da
Beira.
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Seguindo à risca a filosofia do pitrolino da região, que este aprendera do galego em Lisboa, de “nunca dizer ao freguês que não tinha”, o Ti Hipólito tinha tudo, do carrinho de linhas, ao livro de mortalhas, ao motor do Boeing 747 que só voaria dali a bem mais de dez anos.
O Ti Hipólito podia não ter o artigo… Acontecia. Porém, de Val de Vaz a Hong Kong toda a gente
sabia que o teria no dia seguinte.
O João do Chão da Vinha tinha cerca de dez anos de Lisboa. Era um gajo inquieto, cheio de truques,
estava na terra a passar uns tempos.
- Olha que eu sou de Alfama… Ouviste? – repetia ele a quem o aturava.
De “Alfama”, como qualquer provinciano parolo enxertado em “alfacinha”, na terra a fazer flores,
decidiu sacanear o juízo o Ti Hipólito:
- Ouvi dizer que o Ti Hipólito tem tudo…
- Vão-se arranjando umas coisitas…
- E tem podela?
O João do Chão da Vinha tinha acabado a Quarta Classe na Escola Primária de Val de Vaz, o Ti Hipólito conhecia-o muito bem.
- Hoje eu não tenho… mas amanhã cá estará.
- Óptimo… - disse o João. - Amanhã cá estou.
O Ti Hipólito perguntou por todo o lado, telefonou, mandou espiões, vasculhou todo o concelho de
Vila Nova de Poiares e arredores…
Ninguém sabia o que era podela.
Desesperado, com medo que a venda perdesse a fama tão arduamente conquistada, o Ti Hipólito foi
para casa. Claramente debilitado do esforço físico e mental, bebeu uns copos, comeu uma brutal feijoada.
Foi quando altas horas lhe deu uma tremenda caganeira.
Chovia torrencialmente, o Ti Hipólito não arriscou ir ao quintal.
Guardou a “encomenda” no forno ainda bem quente da fornada anterior.
De manhã deitaria aquilo fora.
De manhã, no entanto, um embrulho quente, rijo e seco em papel de jornal fez-lhe saltar uma ideia
deslumbrante:
Moeu tudo, fez pacotinhos, correu a abrir a venda.
Pouco depois do almoço lá estava o João do Chão da Vinha com três amigos da mesma laia para gozar o pratinho com o antigo ferrador.
- Conseguiu a minha encomenda, Ti Hipólito?
- Está aqui, João… Podes provar à vontade.
- OK… dê cá. - Meteu uma colherada na boca:
- Mas isto é merda, Ti Hipólito!!!
- Não é merda, não, João… é podela
Aniceto Carvalho

Um buraco no saleiro
Por volta dos meus 15/16 anos, em 1950/51, ou coisa assim.
Éramos uns cinco ou seis num Terraplane, um daqueles carros antigos que levavam três passageiros atrás, fora da cabina. (Rumble seat).
Depois de uma prova de água-pé na Dona Maria, uma povoação nas proximidades de Caneças, regressámos a Queluz.
(Eu não bebia... vinhos e aguardentes não me seduziam).
Para quem não conhece, a Estrada das Águas Livres, desde que bifurca para Queluz da estrada Caneças-Belas, até à ponte de Carenque, na Elias Garcia, Lisboa-Sintra, serpenteia ao
lado da Ribeira de Carenque, esta lá bem em baixo, a uns 10 ou 15 metros de fundura.
Estrada de maquedame, é claro, pouco mais que terra batida... mas sempre a abrir, a águapé de 13 graus. Mais zig-zag, menos zig-zag, nada de especial, no entanto.
Já não sei se com petisco a acompanhar, se apenas com mais uns copos para rebater, o "sarau" continuou em casa do meu padrinho.
O carro era do meu padrinho, ele é que guiava... ele é que era o maior e tinha as brilhantes
ideias de ter duas amantes que eu tinha de separar quando se engalfinhavam à porrada uma
9
Velhos Contos
na outra; ele é que resolvia ir esgotar a água-pé à Dona Maria ou ir às putas a Badajoz.
Mas também se portava bem: Fui com ele à inauguração do cinema São Jorge ver a estreia
do Frei Luís de Sousa, algumas vezes abancar à lorde ao Caramão da Ajuda, a um BenficaSporting no Estádio Nacional numa final da Taça de Portugal, a uma festa de arromba na
Casa Regional de Vila Nova de Poiares em Lisboa, etc.
Um dos presentes no festival de água-pe era o Januário, um taberneiro com barriga a condizer, que morava ali a poucos metros. O Januário e o meu padrinho disputavam qual dos dois
estava mais bêbedo. De repente, no meio dos vapores, por paródia, está claro, o meu padrinho saca da FN 6,35, encosta o cano da arma à barriga do outro.
O taberneiro levantou a camisa, mostrou o umbigo em todo o esplendor:
- Pode atirar, seu Tito!... eu perdoo-lhe a morte... pode atirar!...
- Se você me custasse só 100 escudos, mandava-o já desta para melhor.
Desviou a pistola, apontou a um pequeno saleiro do tamanho de um punho do outro lado da
cozinha a uns 3 ou 4 metros... Pum!...
E não é que o gajo fez mesmo um buraco no saleiro?
Aniceto Carvalho

Força Aérea Portuguesa - Anos de ouro (1)
Se calhar, será tão legítimo situar os antecedentes da Força Aérea Portuguesa no primeiro voo em
elém em 1909 por Armand Zipfel, como na criação das primeiras escolas de aviação em 1914. Na
minha modesta opinião, todavia, se qualquer destes eventos são sinais do desenvolvimento da aviação em Portugal, quiçá na origem remota da Força Aérea Portguesa, não me parecem ter relação
imediata com a sua constituição em 1952.
Tanto quanto sei, em 1952, quer a Aeronáutica Militar quer a Aviação Naval estavam bem organizadas: Com o rigor económico da época, o "desperdício" em duas armas com o mesmo fim, provavelmente, não era assim tão relevante... os dividendos políticos da rivalidade entre as duas aviações,
eram, por certo, bem mais importantes. Além do mais, se havia que criar uma Força Aérea autónoma
e devidamente estruturada, esse tempo tinha passado: A criação da RAF, da USAF, da Luftwaffe e
outras, tinha sido há séculos.
Os motivos eram outros: Para sermos breves, o problema eram a "Guerra Fria", a conquista de zonas
de influência, o vertiginoso alastramento dos movimentos independentistas em África. Mais ano menos ano chegariam aos territórios portugueses... era preciso estar preparado. E uma força aérea não
se prepara em seis meses: Um avião custa milhões, um piloto ou um mecânico, as duas especialidades chave em aviação, levam anos a tirar o melhor rendimento do material disponível.
Digam o que disserem, critiquem o que quiserem no antigo regime... mas a constituição e a reorganização da Força Aérea Portuguesa em 1952, foi duma visão extraordinária a mais dez anos de distância dos primeiros acontecimentos na África portuguesa.
Embora na altura tudo isso me passasse ao lado, para um outro espectador mais atento não era preciso estar por dentro dos segredos das altas esferas para perceber que algo de maior alcance estava a
ocorrer que uma simples remodelação na aviação militar: As duas armas estavam razoavelmente
servidas de instalações... a ser apenas a unificação da Aviação Militar com a Aviação Naval, não
seriam necessárias tantas e novas edificações.
A Base Aérea 3, em Tancos, estava praticamente deserta de aviões... a estrear uma série de modernos edifícios, era agora uma escola de recrutas. Com a inauguração dos novos alojamentos para alunos especialistas em princípios de 1953, em vez da meia dúzia de formandos dos anos anteriores,
Sintra albergava agora duas centenas, com dois cursos de cem, desfasados de seis meses, a funcionar
em simultâneo. No final de 1953, na Base Aérea 6, acabavam de ser estreados dois edifícios prontos
a receber 300 especialistas... outros mais continuavam em construção na unidade.
São Jacinto era a escola de pilotagem básica; em Sintra, os Harvards e os Hurricanes em instrução
avançada descolavam uns atrás dos outros. O treino operacional dos pilotos e dos restantes especialistas fazia-se na Ota, com Thunderbolts, Spitfires e Hurricanes; com Helldivers, no Montijo, com
Skymasters, nos Açores.
Os efectivos aumentavam, iam ganhando experiência. E cada dia chegavam mais, e também novos
aviões. Com a criação do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas, e da Polícia Aérea, no decorrer de
1956 só faltava escrever nas paredes o que estava para chegar. Na Base Aérea 2, na Ota, e na Base
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Velhos Contos
Aérea 5, em Monte Real, cintilava em cada uma o prateado de cento e tal aviões de jacto: F-84, F-86,
T-33 e T-37. No Montijo, uma placa de estacionamento com o tamanho de mais de dois campos de
futebol contíguos, estava ladeada com duas filas de PV-2 e P2V-5, da torre de controlo, num dos
extremos, ao outro, a 150 metros. As manobras com os aviões, tripulações e pessoal técnico das unidades operacionais ocorriam por todo o lado. As tripulações dos quadrimotores Skymasters, da Base
Aérea 4, nos Açores, treinavam em viagens ao Continente e em busca e salvamento no Atlântico... a
seu tempo iriam mostrar o que sabiam em viagens de milhares de quilómetros, a atravessar as tempestades tropicais nocturnas do Golfo da Guiné. O Exercício "Himba", de divulgação da Força Aérea
Portuguesa em África, em 1959, não foi apenas isso... na realidade, foi mais um virar de página, o
culminar dum ciclo e o início doutro.
Aniceto Carvalho
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Força Aérea Portuguesa - Anos de ouro (2)
Nunca será demais lembrar aos actuais jovens portugueses que os pais e os avós deles que pelo país
deram o melhor que tinham de si, andam a ser covardemente enxovalhados há mais de 30 anos, em
comparação com quem, e por quem, nem para lhes limpar as botas serviria.
E deixar bem claro que com governantes destes, não há nenhum país no mundo que mereça uma gota
de generosidade da sua juventude.
Como facilmente se pode constatar desde a antiga literatura de banda desenhada até ao actual cinema americano, o combatente dos Estados Unidos é sempre o maior; o antagonista é o bombo da festa.
Terminada a guerra, a América pode não perder tempo a estabelecer relações amigáveis com o Japão,
com a Coreia do Norte ou com o Vietname; mas que um borra-botas qualquer, que passou o conflito a
coçar o rabo pelas esquinas, se atreva a denegrir o seu militar em favor do antigo inimigo, isso só
acontece em países moribundos, sem um pingo de dignidade na defesa dos mais elementares valores
nacionais.
Isto não é só bonito: Se existem forças armas, é porque a eventualidade da sua utilização está sempre no horizonte... Manter a chama acesa, é uma prova de inteligência.
Ao antigo combatente pouco importa se a guerra que travou foi ou não justa. Isso não é da sua conta.
O que lhe interessa é que quaisquer que tenham sido as razões que o levaram a combater, até podia
ter dado a vida pelo país. E isso é que importa; é o que em certos países deveria merecer toda atenção de quem comanda os destinos dum povo. Castrar uma geração de combatentes do seu orgulho de
terem defendido a pátria é uma traição nacional; é muito pior que a fuga dum contingente militar
para as hostes inimigas.
Não estou a falar de dinheiro; e a eventualidade da guerra é vida dos militares profissionais. Mas
para quem esbanja milhões com delinquentes, drogados e com subsídios a quem nunca mexeu uma
palha pelo país, não era nada do outro mundo atribuir a todos os outros antigos combatentes uma
regalia simbólica, que pelo menos lhes mostrasse alguma gratidão.
Um pouco de respeito, pelo menos, já seria o suficiente... mas os antigos combatentes portugueses
nem essa atenção têm merecido. Tudo quanto o povo português sabe, e com ele a actual geração de
jovens, é que o combatente do Ultramar foi um assassino de mulheres e crianças, que saiu de África
com o rabo entre as pernas sem honra nem glória.
Se calhar, os actuais jovens militares portugueses, nem pensam nisto; mas deviam saber que os pais
deles, que lutaram no Ultramar, andam a ser achincalhados há quase trinta anos, em comparação
com quem, e por quem, na realidade, nem para lhes engraxar as botas tinha qualquer préstimo; que
andam agora por aí em "missões de paz", a defender as costas de quem não lhes diz nada, de outros
que há duas dúzias de anos retractavam grotescamente os antecessores nas paredes das antigas
cidades portuguesas de África.
Por agora está tudo bem, "somos todos velhos amigos"... Mas se um dia destes o caldo se entornar como parece querer entrar em ebulição a qualquer momento - não faltarão por aí "analistas e comentadores" nas rádios e nas televisões a enaltecer os catorze anos de guerra no Ultramar como o maior
feito dos portugueses desde o tempo das descobertas.
Aniceto Carvalho
Mar da Palha
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11
Velhos Contos
Nota: Embora não se
consiga perceber na foto,
este aqui, ao lado do avião, sou eu, o autor deste
texto, em pose, naturalmente; a entrada para a
cabina era do lado esquerdo do aparelho.
Tínhamos chegado no
dia anterior ao então
Centro de Aviação Sacadura Cabral. Primeiro dia de Dezembro de 1953. Era feriado. No dia
seguinte iríamos ter a oportunidade de mostrar o que tínhamos
aprendido no ano de curso na Escola Militar de Aeronáutica.
Foi a primeira vez que o vi. Logo à entrada, mal acabara de ultrapassar a porta do hangar: Azul-marinho pesado, fosco, a dar ideia
de empinado na roda de cauda, as asas dobradas por cima da fuselagem, o motor lá em cima, enorme, parecia inacessível.
Não era um avião bonito. Grande, robusto, desajeitado, o Helldiver
era, no entanto, um verdadeiro avião de guerra. E eu, embora com
18 anos era militar de carreira. O Helldiver estava a fascinar-me.
Lembro-me de pensar: “O avião que eu gostava de trabalhar”.
Sem saber porquê, mas sem ser pelo número de ordem, nem pela
classificação no curso, minutos depois tinha sido um dos indigitados a receber as primeiras luzes no pesado bombardeiro.
A esquadra tinha cerca de 20 Helldiveres, dos quais uma boa parte
voava todos os dias, com um ou dois normalmente em manutenção.
Comigo, com mais três pequenos “sábios” como eu acabadinhos de
sair do curso, dois furriéis ex-cabos da Aviação Naval, e o 2º. sargento Pinho a chefiar, o “staff” da manutenção dos Helldiveres ficou completo.
No papel, claro. Quando os furriéis repararam que já tinham quem
fizesse o trabalho por eles nunca mais ninguém os viu… de nada
adiantou ao sargento esganiçar-se em cima da asa a chamar por
eles. Não havia nada a fazer. Tínhamos de aprender… E depressa.
O Pinho era um “artista”, levava-nos onde queria: Ensinava-nos
como se fazia, virava as costas, regressava depois a verificar se tudo estava feito como ele tinha mandado. Liberdade, responsabilidade. Resultou. Meses depois éramos nós que púnhamos os aviões na
rua, e… o máximo!... que lhes fazíamos o ponto fixo após a inspecção. Pelo meio, paródia, claro… até na hora de trabalho: Tudo valia
a pena por um voo no lugar de trás do Helldiver a rapar praia fora
ou a visitar a família na parvónia.
Em finais de 1956 os Helldiveres regressaram a Aveiro de onde tinham saído quatro antes. Nós partimos para outra.
Aniceto Carvalho
12
Velhos Contos
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Um dia inesquecível.
7 de Julho de 1954, um dia como
qualquer outro. Tinha as minhas
obrigações. Não estava nos meus
planos alterar a rotina.
Deixou de ser. O Laudem Macedo
corria ao meu encontro, atirou
que o primeiro-tenente Rodrigues
andava à procura de um "gajo"
que fosse de Aveiro.
Eu conhecia o oficial.
Calculei para mim: "Sou da região
de Coimbra... para o primeirotenente Rodrigues, não deve fazer
grande diferença", concluí. Não
me enganei. Dei uma palavrinha ao chefe da manutenção, minutos depois estava no ar.
Com 19 anos acabados de fazer, no máximo do sonho de jovem aviador, ir à terra de avião
era uma coisa que ultrapassava tudo o que de melhor me podia acontecer. Sabia que o meu
avô, o homem que me tinha criado, estava muito doente... mas que a minha irmã fizesse 18
anos nesse dia, nem me passava pela cabeça.
Fixar datas de anos nunca foi o meu forte. Toda a gente que me conhece sabe disso.
A minha irmã tinha acabado de receber duas cartas de parabéns dos nossos dois irmãos
mais novos a seguir a nós, do Carlos e do Alcides... estava a reprovar e a lamentar o meu
"lendário esquecimento":
- Como sempre, só o Aniceto nunca se lembra dos anos de ninguém.
O meu pai ouviu roncar um motor de avião a ecoar nas encostas.
- Vem aí - disse ele. - Estavas a dizer mal dele, ele aí está.
Era sim senhor. Sem dia nem hora marcada, assim, de surpresa, sem mais nem menos.
E afinal, aquela história da monotonia dos pilotos da antiga Aviação Naval, era conversa.
Não é fácil deixar por aqui escrito o que é a emoção de dizer adeus à família a 500 quilómetros por hora, de dentro de um barril azul escuro fosco com asas, de seis toneladas, a rasar a
meia dúzia de metros os telhados das casas. Uma, duas, três, várias vezes... um verdadeiro
festival aeronáutico.
Talvez não diga nada a ninguém. Compreende-se. Certas passagens da vida é preciso tê-las
vivido. “Vale mais experimentá-lo que julga-lo”.
(Um olhar por cima do ombro. Não foi ontem, no Século XXI. Foi em 1954, numa povoação do
concelho de Vila Nova de Poiares, na estrada da Beira, a pouco mais de meia dúzia de quilómetros da Beira Alta).
Aniceto Carvalho
13
Velhos Contos
Força Aérea Portuguesa - Anos de ouro (3)
Uma notável proeza de armas
Com 89.000 quilómetros quadrados de superfície, Portugal é seis vezes mais pequeno que a
Espanha; os três territórios em África, onde este pequeno país ibérico sustentou uma guerra
de 14 anos, são, em conjunto, mais de vinte vezes maiores: com uma superfície tão grande
como a Espanha, a França, a Alemanha, a Itália e a Grã-Bretanha juntas.
Esse enorme espaço territorial, todavia, não é apenas delimitado entre si por fronteiras políticas ou por acidentes geográficos: A Guiné, com aproximadamente um terço da área de Portugal, dista de Lisboa 3.400 quilómetros; Luanda, a capital de Angola, 7.300, e a Beira, no
centro de Moçambique, 10.300, mais de duas vezes de Lisboa a Moscovo.
Veja as distâncias no Mundo entre as várias possessões.
Em 1974, o escudo era uma moeda credível e estável; tudo o que comprava era à vista. As
"engenharias financeiras" de ficar dependente da utilização de material de guerra a crédito,
só pode acontecer num país de rastos, que já nem em sua casa tem qualquer poder.
Quantos dias ficaríamos hoje numa parcela de território nacional sublevado?
Se as populações autóctones dos territórios portugueses ultramarinos viviam então muito
melhor do que actualmente, e se Portugal tem mais 27% de pobres trinta anos depois, não
fui eu que inventei: são coisas que se ouvem e vêm todos os dias, e as estatísticas dizem.
Não é preciso ser doutor: Basta comparar o desenvolvimento de Portugal, incluindo o dos
territórios ultramarinos nos 25 anos anteriores a 1974, com o verificado no último quarto de
século, sem guerra e com dois milhões de contos a entrar todos os dias no país.
Denegrir o antecessor, todavia, é a velha técnica do incompetente para se valorizar aos olhos
do incauto. E pelos vistos, tem resultado. Nem vale a pena conjecturar no que fariam em
circunstâncias semelhantes. Mas quando as actuais proeminências desaparecerem da face da
terra, a história se encarregará de repor a verdade: Deles, por mais que se esforcem a pendurar retractos, com toda a certeza, nunca mais ninguém ouvirá falar.
Aniceto Carvalho
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Força Aérea Portuguesa - Anos de ouro (4)
Atente nos números do quadro seguinte
ANO
AERONAVES
EFECTIVOS
1958
1971
2010
350
700
50 (a)
2.500
17.500
8.000
(a) Por excesso.
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Em primeiro lugar, tendo em conta as exigências técnicas das aeronaves da época, atente nos números da primeira coluna em contraste com a terceira; em segundo, depois de ler o que atrás ficou dito,
considere os efectivos das três colunas.
Os números da coluna referente a 1971, que talvez pareçam exorbitantes, têm explicação fácil: Militares especializados, a milhares de quilómetros, não se substituem como entre departamentos da
mesma unidade a umas centenas de metros. São necessários milhares de efectivos de reserva e em
preparação para substituir os que terminam as comissões ou passam à disponibilidade. Além disso,
deve contar-se com os milhares de homens, em apoio logístico, nos Transportes Aéreos Militares, na
segurança dos muitos aeródromos de manobra espalhados pelos territórios em guerra... sem esquecer as tropas pára-quedistas - que na altura faziam parte da Força Aérea Portuguesa.
Aniceto Carvalho

Enquanto o comum do cidadão continuar distraído com “Apitos Dourados”, “faces ocultas”, “freeports”, com a interminável desconfiança que nunca se prova, etc., etc., não precisa de saber que os
actuais 50% de PIB no peso do aparelho do Estado, eram apenas de 17% no auge da Guerra do
Ultramar, com todas as suas colossais despesas inerentes.
14
Velhos Contos
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Força Aérea Portuguesa - Anos de ouro (5)
Um olhar por cima do ombro
Base Aérea 6 1953 a 1961
Se a chuva daquela manhã do primeiro dia de Dezembro de 1953 tivesse o mesmo efeito no nosso
futuro que se dizia ter nos casamentos, então a nossa chegada ao Centro de Aviação Sacadura Cabral
não podia ser de melhor presságio. Chovia se Deus a dava.
Não foi bem assim… mas que bom seria se hoje, 50 anos depois, metade dos jovens portugueses
vivesse como nós nessa década distante.
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Não obstante os quatro meses após a constituição formal da Força Aérea Portuguesa, eu ingressei na
Aeronáutica Militar. Fiz o curso de mecânico de avião na Escola Militar de Aeronáutica, creio que só
vários meses depois, senão anos, já no Montijo, é que a interiorização da Aeronáutica Militar se
começou a dissipar e dar lugar à Força Aérea Portuguesa.
O capitão-de-fragata Francisco Ferrer Caeiro, segundo comandante da unidade, recebeu-nos com toda
a pompa. Calculou que com 18 anos nós íamos fazer das nossas – e não se enganou - começou a desbobinar recados, acabou por dizer para não descontarmos nada do pior que dele tínhamos ouvido.
Já sabíamos. Mas quando ele disse que se calhar nós nem tomávamos banho “lá na magala”, achámos que o Ferrer estava a exagerar: “Javardos”, ainda vá que não vá... mas, “lá na magala”? Aí
parou! Agora estava a “ofender”. A “ofender” a Aeronáutica Militar, evidentemente, porque, pelos
vistos, nem ele parecia saber que a Força Aérea Portuguesa tinha sido criada uns meses antes.
Sabia, mas não queria saber. Para o capitão-de-fragata Ferrer Caeiro, desde que não tocassem na
Aviação da Marinha, até podiam criar uma dúzia de Forças Aéreas que isso pouco lhe importava.
Assim como nós: Sabíamos que o comandante não brincava em serviço, mas não quisemos saber.
Mesmo quando ele deixou claro que qualquer negligência no edifício que acabávamos de estrear nos
sairia bem caro, devíamos estar a assobiar para o lado. Não ligámos.
Demorou cerca de uma semana: Alguém foi fazer um giro de exploração à mata da Casa Branca, no
regresso, à falta de melhor, carregou com ele uma sacada de pinhões. Empanturrou-se, findo o lauto
banquete deixou os restos, pinhas e cascas, espalhados pela camarata.
Ninguém viu para o chamar à atenção… ou, se viu, também não ligou.
Na manhã seguinte, na azáfama da correria entre o levantar e a entrada ao serviço, também ninguém reparou no monte de lixo no corredor.
O cabo Lami, um velho marujo alto e empertigado, de estômago saliente que parecia ter engolido
uma abóbora inteira com pevides e tudo, era o responsável pela camarata. A dois dias da reforma,
há muito tempo que o homem tinha perdido a pachorra de lidar com rapazes mais novos que os próprios filhos. Mandou limpar o estrago, correu direitinho ao gabinete do comandante.
O Ferrer queria que o culpado se acusasse. (Se calhar, como eu próprio o constatei uns tempos mais
tarde, nem acontecia nada). Mas o culpado nem buliu. O comandante chamou um a um ao gabinete.
No fim dos 36 interrogatórios, ninguém tinha visto, nem sabia de nada.
O Ferrer esgotou a paciência: “Ficam todos detidos até nova ordem!”
Pior: Nós que até ali, apesar de “magalas”, éramos mecânicos de avião, tivemos de pegar na vassoura e passar a varrer a camarata. Estávamos esclarecidos.
O comandante, todavia, estava com dúvidas: Não conseguira dobrar os “magalas”… mas, por outra,
perante a amostra, considerou: “Para rapazotes de 18 anos até nem está nada mal”.
Passaram-se duas semanas, chegou a véspera do Natal.
Posto o problema, o comandante condescendeu:
- Está certo… Como toda a gente, vai metade pelo Natal, a outra metade pelo Ano Novo. - A terminar, atirou bem claro: - Após o regresso do Ano Novo, a detenção continua até nova ordem.
E continuou, de facto. E a reclusão continuou… Mas lá pelos últimos dias de Janeiro, até o todo poderoso senhor dos domínios do Nar da Palha se cansou: Finalmente podíamos desopilar.
A clausura, no entanto, não fazia tanta diferença como isso: Estávamos a repor o prémio que tínhamos recebido no curso, e, como a unidade do Montijo não estava preparada para nos distribuir fardamento adequado, o melhor que obtínhamos na indumentária, era com a velha e coçada farda quase
nos limites depois de um ano de tarimba.
Não foi um drama, no entanto: Se as motivações para devaneios fora da porta de armas não eram
por aí além, num período crucial de integração e aprendizagem, para extravasar energias bastava
15
Velhos Contos
umas caneladas uns aos outros com uma bola pelo meio a disfarçar, e uns mergulhos no Tejo aos
primeiros raios de Sol de Janeiro com um frio de rachar.
A Força Aérea Portuguesa, no entretanto, era uma realidade. Mas quem sabia disso eram os furriéis,
antigos cabos da Aviação Naval. Eles é que tinham ingressado na Força Aérea, a Aeronáutica Militar
pouco ou nada lhes dizia. Os antigos marujos, todavia, lidavam connosco todos os dias, o bastante
para a imagem da nossa arma de coração se começar diluir…
Mas devagar. Mesmo cerca de dois anos depois, com algumas alterações introduzidas ao novo plano
de uniformes da Força Aérea, a nova arma continuava a não ser festejada entre nós. Isto, no entanto,
pouco interessava aos antigos cabos da Aviação Naval. Chegava-lhes bem terem de diluir as próprias
mazelas da sua “traição à Marinha” e do ingresso na Força Aérea. E não estava a ser fácil. O posto
de furriel não existia na Marinha, e à maioria dos sargentos da Armada, ninguém conseguia meter
na cabeça que o furriel era um sargento como eles, com todas as regalias e benefícios da classe.
Furriel, em si mesmo, já é um posto chato. Embora sargento para todos os efeitos, se entra de mansinho na classe, cheira a cabo, se tenta impor-se, aqui d'el rei que está a levantar a crista.
Porque o cabo especialista da Aeronáutica Militar já tinha uns pares de anos de tarimba quando
chegava ao posto seguinte, a adaptação à classe de sargentos era rápida… os antigos cabos da Armada, contudo, tinham cometido um pecado mortal: Aquela história de terem trocado a Armada pela
Força Aérea era difícil de engolir. “Que diabo, ninguém troca uma arma com o prestígio e a tradição
da Marinha de Guerra Portuguesa, que forma à direita de todas as armadas do mundo, por qualquer
outra, por mais atractiva que pareça!” Era o que pensava o comandante Ferrer e os oficiais superiores
aviadores da Aviação Naval… não exactamente todos os sargentos, muito menos os furriéis, nem
tão-pouco os expectantes oficiais subalternos e primeiros-tenentes.
Os primeiros, no entanto, mais que os oficiais, estavam divididos: Entre a lealdade à Marinha, o
estatuto do posto, o receio das consequências, e a incerteza na nova arma, sem saber para que lado
cair, ficaram quietos. E quietos ficaram os oficiais subalternos e os primeiros-tenentes: Eram jovens,
no início de promissoras carreiras, deixaram correr as coisas.
Bem pouco disto dizia grande coisa aos antigos cabos da Aviação Naval: a maioria deles, jovens, com
quadros restritos, com poucas hipóteses de chegarem a sargentos antes do fim do Século, ingressar
na Força Aérea era um risco que valia a pena. “Traidores à Marinha” ou não - como lhes chamava o
Ferrer - fizeram o que tinham a fazer. Claro que os cabos da marinha ganhavam tanto ou até mais
que um sargento da Aeronáutica Militar. Mas era só isso. As regalias de sargento, a progressão na
carreira e a posição na hierarquia, contavam… E contavam muito.
Chegavam PV-2 dos Estados Unidos, 1954 corria tranquilo. Com uma unidade operacional a comandar, tripulações e uma data de gente a treinar, o Ferrer foi esquecendo a “traição” dos marujos.
E assim entrei nos 19 anos. Um veterano, no entanto: Tinha três meses e meio na manutenção dos
Helldiveres. Uma eternidade! Lembrava-me, todavia, da primeira impressão do avião: Azul-marinho
pesado, fosco, a dar ideia de empinado na roda de cauda, as asas dobradas por cima da fuselagem, o
motor lá em cima, enorme, parecia inacessível.
Grande, robusto e desajeitado, o Helldiver tinha-me fascinado desde o primeiro minuto. Era um avião
de guerra… “o tipo de aparelho que eu gostaria de trabalhar” - lembrava-me de ter pensado.
Sem saber porquê, mas sem ser pelo número de ordem, nem pela classificação, minutos depois era
um dos indigitados a receber as primeiras luzes no pesado bombardeiro de mergulho.
A esquadra tinha 20 Helldiveres, dos quais uma boa parte voava todos os dias, com um ou dois normalmente em manutenção. Comigo, com mais três pequenos “sábios” como eu acabadinhos de sair do
curso - o Leopoldino, o “Luiginho” e o Maciel -, dois furriéis ex-cabos da Aviação Naval - o Touguinha
e o Júlio -, e o segundo-sargento Pinho a chefiar, a manutenção dos Helldiveres ficou completa.
No papel. Quando os dois furriéis viram que já tinham quem fizesse o trabalho por eles nunca mais
ninguém os viu… de nada adiantou ao sargento esganiçar-se em cima da asa a chamar por eles.
Não havia nada a fazer. Tínhamos de aprender… E depressa.
O Pinho era um “artista”, levava-nos onde queria: Ensinava-nos como se fazia, virava as costas,
regressava depois a verificar se tudo estava feito como ele tinha mandado. Liberdade, responsabilidade. Resultou. Meses depois éramos nós que púnhamos os aviões na rua, e… o máximo!... que lhes
fazíamos o ponto fixo após a inspecção.
O Pinho era um bom chefe, nós fazíamos por isso. Se as coisas corriam bem - e corriam normalmente
- também não fazia mal nenhum temperar o dia a dia com um pouco de paródia, ou passar duas horas no lugar de trás do Helldiver a rapar praia fora ou a visitar a família na parvónia.
Mas dos 53 que tinham acabado o curso, nós éramos 49 que estávamos na Base Aérea 6... e desses,
16
Velhos Contos
eu era apenas um dos 4 na manutenção dos Helldiveres. Os outros andavam por lá nos Beechcraft,
nos Widgeon, nos Harvard, nos PV-2, nas primeiras linhas.
Sucediam-se os cursos dos aparelhos americanos que iam chegando. Na camarata, fora das horas de
serviço, por entre espessas nuvens de fumo de cigarro, acesas e intermináveis discussões. Técnicas,
evidentemente: Sistemas hidráulicos, de trânsfuga, de anti-gêlo, de hélices… ah, claro, nos intervalos, miúdas, miúdas, miúdas.
Às vezes horas inteiras seguidas a dizer mal de tudo e todos… conversa, para desenfastiar. Toda a
gente sabia que salvo uma ou outra excepção as razões de queixa não eram por aí além. Havia até já
alguns à beira de serem largados como segundos-mecânicos de voo.
A hora era do PV-2. A função operacional de avião de patrulha marítimo do Helldiver tinha terminado. Os equipamentos de radar foram ficando de lado, ou foram retirados, o Helldiver era de agora em
diante um avião de treino avançado. Os botes e os coletes insufláveis recolheram à secção de equipamentos ou foram para as tripulações dos PV-2, as maiores massas de água que o Helldiver passou a
sobrevoar eram as praias no Verão e o Mar da Palha nas aterragens e descolagens. Fora isso, conforme iam chegando cabos e sargentos pilotos, saídos dos cursos ou vindos de outras unidades, e os
aviadores navais experimentavam as potencialidades dos novos bimotores, cerca de uma dúzia de
Helldiveres corria o país de Norte a Sul, todos os dias, de manhã e de tarde.
Os meses passavam, mais um ano ficava para trás. Os antigos cabos da Armada eram agora sargentos; os sargentos da Aviação Naval, que dois anos antes vacilavam entre a lealdade à Marinha e a
nova arma, movimentavam-se agora como se tivessem saído da Escola Militar de Aeronáutica; e até
os segundos e primeiros-tenentes de então, agora capitães, já fardavam de azul cinza.
Com uma unidade operacional em velocidade de cruzeiro, uma placa de estacionamento com cerca de
30 bombardeiros bimotores, e outra com aproximadamente o mesmo número de outros aparelhos, o
comandante Ferrer não tinha muito tempo para se preocupar com ninharias.
A onda tinha passado. Onda que, afinal, nem chegara a ser maior que esteira de espuma do barco do
Montijo. Ao tempo que as poucas diferenças tinham sido ultrapassadas ou esquecidas!... Ninguém
tinha tempo nem pachorra para quezílias. A operacionalidade da unidade era bastante para manter
toda a gente a remar para o mesmo lado… sem, contudo, deixar de nos dar todo o espaço do mundo
para viver a vida no que os nossos vinte e poucos anos tinham de melhor.
Compreendia-se. Na base do Montijo, o cabo e o sargento pertenciam à tripulação do capitão ou do
major, o primeiro-sargento esgrimia trunfos diariamente na manutenção para ter aviões no ar a
tempo e horas com segurança, a hierarquia era pouco mais que superficial, mais aceite que imposta.
O sargento da tripulação era o “traidor à Marinha” de uns anos atrás, o segundo-mecânico de bordo
era o cabíssimo imberbe, de farda às tiras, que, “se calhar nem tomava banho lá na magala”.
Tinha de dar no que deu.
Finais de 1956. Os Helldiveres foram para Aveiro, de onde tinham vindo quatro anos antes.
Eu fui para a manutenção dos PV-2.
Como era perito em limpar porcaria dos trens de aterragem, em retirar blindagens, e até a beneficiar
velas de ignição, não me foi muito difícil a adaptação. Para aumentar os meus conhecimentos, entregaram-me uns manuais de instrução, mandaram-me tirar o MTU do PV-2.
De repente, sem que eu chegasse a saber porquê, o curso acabou.
Depois duma consulta a quem sabia francês por ali, nos primeiros meses de 57 o 1º. sargento Bragança e o 2º. sargento Alegria partiram para França a tirar um curso de helicópteros. Não liguei.
Eu não falava francês, helicópteros não me diziam nada.
Dias depois perguntaram quem queria ir para os helicópteros. Achei que aprender por aprender, já
agora aproveitava para ver como era aquilo. Andava por ali ao Deus dará, mandaram-me com o
Vilela para o hangar Norte, o hangar das tripulações e da primeira linha dos PV-2.
Que a caranguejola não tinha jeito nenhum de coisa que andava no ar, já eu tinha reparado, mas que
viesse empandeirar com quase tudo o que eu tinha aprendido, é que me deixou a falar sozinho. Tinha
coisas boas: A linguagem era acessível, tinha tudo à mostra, e era asseada… não tinha nada a ver
com os quilos de jorra, vapores de gasolina e petróleo que eu estava farto de engolir.
Chamava-se Alouette II. O Mesnard, um técnico francês da Sud-Aviation, era o instrutor… com o
Bragança e o Alegria a tradutores e instrutores-adjuntos, no fim de Julho fomos diplomados.
Acabámos o curso, começou a guerra.
Tinham-nos atribuído um pequeno anexo ao canto do hangar, começou a constar que íamos ficar adstritos, e naturalmente subordinados a uma das esquadras de PV-2 já existentes. Ficámos atentos.
Se formar mais uma esquadra com um só helicóptero fazia rir um bocado, o Bragança não achava
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Velhos Contos
graça nenhuma. Entendia que não tínhamos de ficar debaixo das ordens de quem não percebia nada
de helicópteros, que já tínhamos chefes e comandantes que chegavam.
Começou a movimentar-se, disparou em todas as direcções. O alferes Queiroz apoiava… no entanto,
a patente de oficial subalterno não lhe dava grande margem para se movimentar.
O Bragança acabou por ganhar em todas as frentes. Excepto num ponto: Queria Esquadra “Independente” de Helicópteros… o comandante disse que “Esquadra de Helicópteros” chegava muito bem.
Chegaram mais dois helicópteros em Janeiro.
Apanhei o vírus, só quinze anos mais tarde me voltei a ver livre das asas rotativas.
Cada vez mais PV-2 rolavam para cá e para lá, estavam no ar ou em exercícios no estrangeiro.
Promovido ao posto imediato, o comandante Ferrer assumiu o comando da Base Aérea 6, o capitãode-mar-e-guerra Cardoso de Oliveira deixou a unidade da Península do Montijo.
Um suspiro de alívio varreu as cercanias: O Ferrer estava em todo o lado e ia todas… mas agora, a
exemplo do antecessor, que mal tínhamos visto em três anos, ninguém acreditava que continuasse a
andar por ali de bicicleta a aparecer de repente onde menos era esperado.
Era o que nós pensávamos…não necessariamente o que aconteceu.
Quando o tenente-coronel Frutuoso apareceu a substituir o Ferrer como segundo-comandante ficámos
de orelha no ar. Nosso velho conhecido da recruta em Tancos, o tenente-coronel Frutuoso era um caso
complicado de deslindar. Com ele não se sabia bem com que contar. Mas também não fez diferença.
A mão firme continuou a ser a do Ferrer, o Frutuoso estava apenas a seguir-lhe as pisadas.
Enquanto decorriam campeonatos desportivos entre unidades, treino de tripulações, e exercícios com
outras forças aéreas e navais europeias, os motivos que tinham levado à organização da Força Aérea
Portuguesa em Forças Aeroterrestres e Forças Aeronavais tinham chegado ao fim. Terá sido uma situação transitória, eventualmente mais de adaptação à nova realidade do pessoal das duas armas.
Fossem lá quais fossem as razões, terá sido a outros níveis, que não o dia-a-dia da Base Aérea 6.
Para mim, pelo menos, ao que me parecia, eu nunca tinha reparado que a unidade do Montijo era
uma base aeronaval. Lembrava-me isso sim, dos tempos do hangar marítimo, da manutenção e dos
Helldiveres, dos sargentos da extinta Aviação Naval com a farda azul da Marinha… mas isso tinha
sido há uns anos atrás, quase tinha passado à história.
O comando do capitão-de-mar-e-guerra Francisco Ferrer Caeiro na Base Aérea 6 estava a chegar ao
fim. Em apoteose, claro: Mais ou menos com o final do “Stand by para o fly off”, um teste de avaliação à prontidão de tripulações, o coronel Frutuoso assumiu o comando da unidade.
A unidade entrava em alerta duas ou três vezes por semana. Sem aviso, aleatoriamente. Chegava o
dia do exercício, as tripulações escalonadas eram avisadas que estavam em “stand by para o fly off”.
A ordem era de deixar tudo o que se estava a fazer, e chegar ao avião por qualquer meio que se apanhasse à mão ao primeiro toque da sirene, que podia ser dali a cinco minutos ou três horas depois.
Tocava a sirene, era a correria. Jeeps carregados, tractores, bicicletas e pessoal a correr chegava de
todo o lado ao estacionamento.
Os helicópteros também participavam. Tínhamos um piloto e um mecânico de prevenção.
Deixávamos o Alouette pronto à porta do hangar, recolhíamos à secção, a fazer o que sempre fazíamos na circunstância: Se nos dias normais já pouco havia que fazer, no dia do “stand by para o fly
off” “estávamos de alerta”… não bulíamos uma palha.
Ao primeiro zunido da sirene, como se o helicóptero estivesse a dezenas de quilómetros, saíamos
disparados porta fora, alguns breves minutos depois estávamos no ar. Atravessávamos a península,
o braço de rio para a zona de treino, dez minutos depois, abríamos o envelope da “missão secreta”...
Invariavelmente, voltávamos para trás, vínhamos aterrar.
Quando o coronel Frutuoso assumiu o comando, toda a máquina estava bem afinada e lubrificada.
As coisas começaram a mudar em 1959 com o exercício Himba.
Previsto ou não, em finais de 1960 estávamos prontos para sustentar uma guerra de 14 anos em três
frentes, em territórios do tamanho de quase metade da Europa, a 3.500, 6.000 e 10.500 quilómetros,
com meios aéreos tão limitados que mandariam para casa alguns valentões senhores do mundo ao
fim de oito dias de conflito.
Aniceto Carvalho


Jangadas de cortiça
Montijo, anos 50. Galeras, carroças e faluas
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Velhos Contos
Era o nosso primeiro Inverno na base do Montijo. Tínhamos ali chegado no dia primeiro de Dezembro
de 1953. Poucos dias depois, uma falua do Montijo carregada de aglomerado negro de cortiça com
destino a Lisboa pegou fogo ao passar nas imediações entre a unidade e o Lavradio.
Encalhou, salvou-se a tripulação, mas o resto ardeu quase tudo.
(O aglomerado negro de cortiça é fabricado em blocos de 100x50x30 de aresta. Colocados uns sobre
os outros, desde que haja fricção entre eles, pegam fogo com a maior das facilidades).
Foi o que aconteceu com os balanços do Mar da Palha.
Ardeu quase tudo. Ficaram por ali junto ao hangar marítimo, blocos e blocos de aglomerado negro…
quase intactos, meio chamuscados, que flutuavam que era uma beleza. Foi uma festa. Durante dias
foi um ver se te avias de gente encavalitada em cima daquilo, a navegar em todas as direcções.
Ninguém sabia nadar. Mas isso também não tinha importância.
Alguns houve que foram quase ao Montijo – penso que chegaram mesmo à vila - na subida da maré,
e regressaram com a maré a descer. Eu, e mais dois ou três, no seguimento dos nossos maiores, fomos por ali fora… numa aventura histórica, descobrimos a Ilha do Rato.
Nem Ferrer, nem oficial de dia, nem nada.
Como é que no meio de tão grande irresponsabilidade e falta de tino não morreram afogados pelo
19
Velhos Contos
menos meia dúzia naqueles poucos dias, é que é um enigma que ainda hoje está por desvendar.

A Base Aérea do Mar da Palha
Embora não se consiga perceber na
foto, este aqui, ao lado do avião,
sou eu, autor do site "Aviação Portuguesa". Aqui em pose, naturalmente; a entrada para a cabina era
do lado esquerdo do aparelho.
Tínhamos chegado no dia anterior
ao então Centro de Aviação Sacadura Cabral. Primeiro dia de Dezembro de 1953. Era feriado. Nos dias
a seguir poderíamos mostrar quanto tínhamos aprendido no curso na
Escola Militar de Aeronáutica.
Foi a primeira vez que o vi. Logo à entrada, mal acabara de ultrapassar a porta do hangar: Azulmarinho pesado, fosco, a dar ideia de empinado na roda de cauda, as asas dobradas por cima da
fuselagem, o motor lá em cima, enorme, parecia inacessível.
Não era um avião bonito. Grande, robusto, desajeitado, o Helldiver era, no entanto, um verdadeiro
avião de guerra. E eu, embora com 18 anos era militar de carreira. O Helldiver estava a fascinar-me.
Lembro-me de ter pensado: “O tipo de aparelho que eu gostaria de trabalhar”.
Sem saber porquê, mas sem ser pelo número de ordem, nem pela classificação, minutos depois tinha
sido um dos indigitados a receber as primeiras luzes no pesado bombardeiro de mergulho.
A esquadra tinha cerca de 20 Helldiveres, dos quais uma boa parte voava todos os dias, com um ou
dois normalmente em manutenção. Comigo, com mais três pequenos “sábios” como eu acabadinhos
de sair do curso, dois furriéis ex-cabos da Aviação Naval, e o 2º. sargento Pinho a chefiar, a manutenção dos Helldiveres ficou completo. Mesmo assim, no papel, claro. Quando os dois furriéis repararam que já tinham quem fizesse o trabalho por eles nunca mais ninguém os viu… de nada adiantou
ao sargento esganiçar-se em cima da asa a chamar por eles.
Não havia nada a fazer. Tínhamos de aprender… E depressa.
O Pinho era um “artista”, levava-nos onde queria: Ensinava-nos como se fazia, virava as costas,
regressava depois a verificar se tudo estava feito como ele tinha mandado. Liberdade, responsabilidade. Meses depois éramos nós que púnhamos os aviões na rua, e … o máximo!... que lhes fazíamos
o ponto fixo após a inspecção. Pelo meio, paródia, claro… até n hora de trabalho: Tudo valia a pena
por um voo no lugar de trás do Helldiver a rapar praia fora ou a visitar a família na parvónia.
Em finais de 1956 os Helldiveres regressaram a Aveiro de onde tinham saído quatro anos antes.
Nós partimos para outra.
Aniceto Carvalho
O sabor da adrenalina

Nós íamos fazer um voo de navegação. O piloto era o Pombo, um furriel que ingressara comigo há
cerca de três anos na Força Aérea. Embora viesse a constar posteriormente nos registos como mecânico tripulante, no caso, no lugar de trás do Helldiver, eu ia como "saco de batatas": para dar um passeio de avião e ver lá de cima como eram as coisas cá em baixo... se viesse a dar praia, para dizer
adeus às miúdas em fato de banho.
Tanto quanto eu sabia e me interessava saber, no "papel" o voo era uma monótona viagem de navegação, lá para os três mil pés pelo Alentejo fora... Bom, isso era o que constava do plano de voo,
porquanto, o que fatalmente viria a acontecer, é que com os sargentos pilotos mais ou menos da
minha idade ia ser um voo a "rapar", com umas picadas aqui e ali para descontrair. O normal era
uma descolagem muito certinha, subir até à altitude conveniente, e aí, logo que fora das vistas da
unidade, nem os coelhos ficavam com as orelhas em segurança se as empinassem demasiado. Refastelei-me, fechei a cobertura da cabina, fui olhando as casas do Montijo a ficarem para trás, por baixo
da asa do avião. Estávamos a ganhar altura... mais uns minutos, começaríamos a descer de novo.
O piloto doutro Helldiver que esvoaçava nas imediações, chamou o nosso avião. Tinha ouvido os procedimentos da nossa descolagem, resolvera acompanhar-nos.
- Vou contigo! - disse ele. Depois adiantou: - Andava por aqui a dar uma volta... Não preparei a via20
Velhos Contos
gem, não trago cartas nem nada. Faz tu a navegação... vou contigo.
Era um segundo-tenente da recém extinta Aviação Naval que eu conhecia bastante bem, creio que
chegado à Base Aérea 6 pouco depois de mim, talvez aí ano e meio antes... Um daqueles oficiais para
quem os militares são, antes de tudo homens, que sem deixar de lidar com os subordinados com a
maior lisura e à vontade, nem o mais indisciplinado dos subalternos se atreve a ter uma palavra ou
gesto menos conveniente.
Agora, no entanto, não era bem vindo... Vinha estragar a minha voatana de rambóia. Aquela alteração não estava nos meus planos. Afundei-me frustado na cadeira, enterrei o bivaque até aos olhos,
preparei-me para deixar passar o tempo. Mas dormir não era o mais apropriado. Mesmo com um
olho fechado e outro aberto era sempre melhor continuar atento. Um avião não encosta à beira da
estrada, e o Helldiver, apesar de na minha pouca experiência me merecer toda a confiança, não deixava de ser um só motor a puxar oito toneladas de metal. Sempre me pareceu bastante mais sensato
enfrentar o medo de frente do que a ideia de acordar morto.
Passámos umas terras que eu mais ou menos conhecia, tentava identificar o castelo que deslizava por
baixo da asa. Se não conseguisse lá chegar, ia perguntar ao piloto.
Pareceu-me sentir o avião estremecer, o roncar do Wright Cyclone aos solavancos.
- Tenho o motor a parar, senhor tenente!...
A voz angustiada do piloto deve-me ter feito saltar os olhos das órbitas. Senti os cabelos das fontes a
eriçarem como alfinetes, todo o meu corpo estremeceu num arrepio.
- Vê lá o passo do hélice, o selector da gasolina!... - recomendou o outro piloto.
- Não sei, senhor tenente... Já tenho o avião "a boiar" - respondeu o furriel.
A "B-O-I-A-R"?!... Em linguagem aeronáutica?!... Então está bem... Desapertei os cintos de segurança. "Raios me partam se fico cá dentro", consegui raciocinar. Deitei a mão ao manípulo, comecei a
fazer deslizar a cobertura da cabina.
Eu não fazia a menor ideia do que seria saltar de pára-quedas. As vagas instruções do curso já lá
iam, e "teorias de alojamento", na camarata, em que se exemplificava com saltos da cama para o
chão, era cá em baixo, de meio metro... Lá no alto, sair dum avião a mil e tal metros de altitude e a
300 quilómetros por hora, a conversa mudava de figura.
Ouvi o motor dar um ronco medonho, senti o avião saltar em frente, fui espalmado contra a cadeira.
A selecção da gasolina acabava de ser restabelecida, estávamos de novo a voar em segurança. Recostei-me exausto, voltei a apertar os cintos, fechei a cobertura.
- Então pá... Que diabo se passou aí à frente? - A voz saiu-me trémula, quase irreconhecível.
- Éh pá!... Nem me lembrou que ias aí atrás!... - respondeu.
Não fiquei muito surpreendido: Nos escassos segundos anteriores, o piloto tinha tido muito mais com
que se preocupar. A dois metros de equipamentos, sem uma réstia de luz entre nós, quase o podia ver
lá na frente a respirar fundo e a limpar o suor da testa.
O piloto do outro avião é hoje o General António da Silva Cardoso, uma lenda de integridade para
quem o conheceu, o autor de "Angola - Anatomia de uma Tragédia". Por certo, ele não o saberá...
mas, não fora a sua providencial decisão de nos acompanhar, não é de excluir que o autor destas
linhas tivesse acabado no meio dum monte de destroços há 46 anos nos arredores de Montemor-oNovo. É que uma paragem do motor do Helldiver a rasar a copa das árvores, não daria com certeza
para ficar por ali a "BOIAR".
Aniceto Carvalho

Como nós éramos
Toda a gente sabia que não era permitido os mecânicos rebocarem aviões. Mas isso era o que estava
determinado; porque, quando era preciso, era raro o sargento que esperava pelo tractorista para
desenrascar o serviço: Pegava no tractor e ia por ali fora. A partir daí, qual era o cabo que ia chatear
um sargento porque era preciso levar um avião para a placa de estacionamento ou desta para o hangar, se muitas vezes nem sargentos havia por perto?
Os sargentos geralmente iam almoçar à primeira mesa. Saiam para almoçar às onze e meia; no entanto, como não fazia bem à digestão regressar logo ao hangar ao fim da exígua hora para o almoço,
ficavam a descontrair pelo bar num joguinho ou na cavaqueira, regressavam sempre duas horas depois, em geral e nas calmas, só no final da segunda mesa.
Os cabos eram mais comedidos. Evitavam dar tanto nas vistas. Fosse pelo que fosse, alguns até gostavam mais de ir almoçar depois de regressarem os da primeira mesa; de preferência, com um qualquer pretexto de última hora, até mesmo um pouco mais tarde, desde que isso fosse possível. E expli21
Velhos Contos
cavam: Pelo menos, com um pouco de habilidade, não só ficavam livres da chatice da formatura,
como ainda, sem a apertada hora da primeira mesa, sempre dava mais uns minutos de ripanço, antes
de chegar ao hangar tarde e a más horas.
Naquele dia também não foi diferente: Como tinha resolvido só ir almoçar à segunda mesa, aproveitei para rebocar um Helldiver para a manutenção no horário da primeira.
Para rebocar um avião com segurança, dentro das normas, além do tractorista, eram precisos quatro
mecânicos: Um na ponta de cada asa, outro na cauda, outro aos travões. Cinco homens para meter um
avião no hangar, nada mais!... Só que na hora do almoço não havia tractorista no hangar, na esquadra não tinham ficado quatro cabos, nem três. Nem sargentos. Então porque não aproveitar numa
corridinha desportiva pela placa de estacionamento fora?
Saltei para cima do tractor, arrastei comigo o Luis, o único que tinha ficado por ali. Depois de três
corridas com prego a fundo, à "alucinante" velocidade de uns trinta quilómetros por hora, acabei por
estacionar o "bólide" em frente do avião. Encaixei os dois grampos da lança de reboque nos olhais
das rodas, saltei de novo para cima do tractor.
- Tu vais aos travões!... Hoje quem reboca o avião sou eu!... - decidi com o Luís Mendes.
Naquele dia eu é que era o condutor. Enquanto ele segurava os dois tubos, manobrei o tractor de
marcha atrás, ajustei o local de engate no olhal da lança de reboque. "É de mestre, à primeira",
pensei, com o dedo na pálpebra do olho, para o outro, a trepar pela asa acima. Esperei que o outro
se sentasse na cabina, que accionasse a bomba hidráulica para carregar o acumulador dos travões,
aguardei o sinal para avançar.
"Deixemos de brincadeiras, agora é a sério", voltei a pensar. Medi o percurso até ao extremo oposto
do hangar, esperei ver sair da cabina a mão do Luís com o polegar empinado.
Com os poucos aviões arrumados na berma, o espaço era mais que suficiente. Era preciso cuidado;
mas agora com seis toneladas atreladas, quem é se metia em velocidades? Além disso estava farto de
rebocar os Helldiver. Engrenei a primeira, arranquei sem solavancos, contornei a entrada da placa;
sem perder de vista a distância entre o avião e a coluna central entre os dois portões, levei o tractor
paralelo ao comprimento do hangar. Não podia ser ali nem acolá, nem dois metros à frente nem um
atrás. Tinha de ser ali. Guinei o volante, num arco apertado de quase noventa graus para a direita,
deixei a cauda do Helldiver exactamente na posição de começar a recuar. "Perfeito", disse para mim
mesmo. Com as asas dobradas em cima, dos lados não havia problema... Na cauda também não:
Sempre era melhor ter lá um homem, no entanto, o espaço era suficiente; dava muito bem para fechar o portão depois do avião arrumado.
Pois dava; nem era preciso ter recuado mais aqueles fatídicos centímetros... Nem bater com o leme de
profundidade no avião de trás. Puxei o travão com toda a força, saltei do assento como uma mola,
corri ao local do embate. Fiquei petrificado: O bordo de fuga do leme estava amolgado, a cércea posterior tinha partido, todo o revestimento empolado, à primeira vista sem possível reparação. O Luís
acabava de saltar da cabina, estava ao meu lado; com o olhar fixo, não dizia nada, nem reagia.
- Salta para a cabina! - gritei. - Vamos pôr o avião lá fora outra vez.
Em dois segundos o Luís estava aos travões. Deixei as precauções para melhor oportunidade. Arranquei com as rodas do tractor a patinar, atravessei a placa em sentido contrário a todo o gás, estacionei o avião no mesmo sítio donde tinha saído minutos antes.
- Vai buscar uma caixa da ferramenta! - mandei, assumindo a situação, sem me lembrar do que o
outro podia pensar. - Eu vou buscar dois gajos para mudarmos isto. - Corri pela placa fora, voltei
para trás de repente, recomendei: - Depois, procura ali, naqueles aviões da sucata qual é o leme que
está em melhor estado para substituir este.
O Luís percebeu por fim toda aquela azáfama para trás e para diante.
Corri ao refeitório, apanhei dois camaradas de curso a entrar para o almoço. Eram da primeira linha.
Tanto fazia. Nem pestanejaram, o almoço ficava para outro dia, para quando calhasse.
- Temos de mudar aquilo, antes que chegue alguém ao hangar. O Luís anda a procurar nos aviões da
Coreia um leme que se aproveite... Já está tudo preparado.
Os “aviões da Coreia” eram uns velhos SB2C-4, um modelo anterior de Helldiver, ao que se dizia,
sobreviventes da guerra naquele país do continente asiático. Verdade ou não, uns vinte deles tinham
vindo parar à Base Aérea 6; estavam para ali, ao lado do hangar, à intempérie, tal e qual como tinham sido descarregados, com erva a chegar às asas, sem que alguém mexesse uma palha ou se
preocupasse minimamente com aquele monte de sucata. Muito danificados, para pouco serviam.
Como os "nossos" Helldiver não eram muito exigentes, nem faltavam os sobressalentes, era muito
raro recorrer aos estafados aviões. Mas o caso agora era diferente: É que substituir um acessório
22
Velhos Contos
requeria a requisição do chefe, a aprovação e o conhecimento duma data de gente. Tinha de ter uma
explicação: Como é que bateu, porque é que bateu... Podia até nem ser nada, mas quem o garantia?
"Não, assim é melhor; bem trabalhado ninguém precisava de saber", pensei eu.
- Desmontar não custa nada. - Peguei na ferramenta, arrastei o Luís.
Quando regressei, pouco depois, os outros dois acabavam de retirar a peça sinistrada. Com o leme
debaixo do braço, corri a colocá-lo no lugar do que retirara antes.
- Põe-no só no sítio... Não percas tempo com isso! - gritou-me o Neto.
Eu sabia; nem era preciso avisar. Enfiei o leme no eixo, nem olhei para trás.
Não era um trabalho complicado. Mas era um leme... afinal uma peça fundamental para controlar o
avião no ar: A diferença entre a vida e morte de um de nós ou de qualquer um ou dois de centenas
doutros, podia depender de um parafuso mal apertado, de um tirante indevidamente ligado.
O Neto achou que não fazia ali nada. Já tinha posto todos os cuidados na sua inspecção; nós que nos
amanhássemos a esmiuçar ao pormenor a vistoria final.
Regressou logo depois com um pequeno balde, com pouco mais de um litro de uma mistura viscosa de
óleo com petróleo. Mergulhou um trapo no balde; com gestos largos, até onde chegava o braço, começou a "envernizar" a superfície superior do revestimento do leme.
- Está demasiado brilhante - comentei. - Dá muito nas vistas.
Limpei um bocado da área já "envernizada" com um pano seco; para melhor comparar aquela com o
leme do lado contrário, afastei-me. Todos demos um parecer:
- Fica perfeito... - concordámos. - Nem se nota. - Retomei a tarefa.
Tínhamos ainda muito tempo para a segunda mesa. Fomos todos almoçar.
- Arrumamos depois o avião. Dizemos que não tínhamos tractorista, que só estávamos os dois no
hangar, que me deu uma caganeira... Qualquer coisa... Isso agora não interessa.
Ninguém perguntou nada, ninguém estranhou nada; ninguém falou mais no assunto.
Aniceto Carvalho
Serra do Carvalho - 1955

Dia 01 de Julho de 1955.
Segundo Aniversário da Força Aérea Portuguesa.
Para mim era um domingo um pouco mais festivo.
Também ia seguir para a Ota, como mecânico de um Helldiver, para participar nos festejos.
Com a saída marcada para as 10:00 horas, tinham passado as 11:00, acabou por chegar a hora de
almoço sem termos ordens para avançar.
Quando soube do desastre, já trágico em si mesmo, o acidente ainda me tocava mais de perto: Tinha
sido no meu concelho, perto da minha terra. Uns tempos antes tinha andado a esvoaçar de Helldiver
não muito longe dali, por cima da casa dos meus pais.
Era uma esquadrilha de doze aviões F-84. Tinham descolado da Base Aérea 2, faziam um voo festivo
pela região centro. Estava bom tempo. Com excepção de algumas serras mais ou menos "tapadas"
aqui e ali, a região de Coimbra estava com boa visibilidade. Não era um voo a "rapar", contudo,
dadas as circunstâncias, também não era muito alto.
Para o comandante da formação, aquilo não passava de nuvens baixas a sobrevoar os montes... Não
lhe passou pela cabeça que a serra do Carvalho podia estar por ali escondida.
Uma formação daquelas voa em escada: Os primeiros quatro, da frente, vão mais altos, os segundos,
logo atrás, mais baixos, os terceiros, atrás dos segundos, mais baixos ainda.
Os primeiros quatro passaram à justa, sem o saber, a roçar a ponta dos pinheiros do cume da serra...
Os outros oito já não passaram para o lado do concelho de Coimbra.
Morreram do acidente os seguintes pilotos:
Tenente António Albino Rocha Mós, de 26 anos, de Lisboa;
Alferes Henrique Ferreira Pinto Howell, de 25 anos, de Leça de Palmeira;
Alferes Alfredo Fernandes Ventura Pinto, de 25 anos, de I.ageosa, Tondela;
Alferes José Nobre Guerreiro Bispo, de 25 anos, de Odemira;
Sargento Fernando da Silva Santos, de 25 anos, de Tomar;
Furriel Diniz Lopes Alves Martins, de 24 anos, de Rossio ao Sul do Tejo;
Furriel António Carvalho, de 24 anos, de Cabeceiras de Basto, residente em Maceira-Lis;
Furriel Danilo Martins da Fonseca, de 21 anos, de Lisboa.
Aniceto Carvalho
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23
Velhos Contos
A namorada do Zé
Nós vínhamos do Algarve, provavelmente, de visitar a namorada do Assunção.
Quando, lá para os lados de Sagres, o piloto me avisou que a potência do motor mal conseguia manter o avião no ar, não fiquei muito tranquilo... Se alguns minutos naquelas condições já eram muito
tempo, mais de uma hora do Algarve ao Montijo a saltar de praia em praia, na expectativa de aterrar de barriga na areia da próxima, era bastante mais complicado.
Não era bem daquilo que eu gostava.
Eu tinha visto como tinha ficado um Helldiver depois duma aterragem forçada no lodo entre a Ilha do
Rato e o Lavradio: Ficar encarcerado e enfeixado entre ferros e chapas retorcidas no lugar de trás
dum avião partido pelo meio, não era uma imagem muito animadora.
A voar um pouco mais altos que a copa das árvores da costa, passar da Tróia por cima da Serra da
Arrábida, nem valia a pena pensar nisso. Depois dum calafrio para recuperar a velocidade de sustentação após uma tentativa de ganhar alguma altitude, o Assunção resolveu contornar o obstáculo.
A cidade da foz do Sado tinha ganho de repente quilómetros intermináveis... Muito devagar, devagarinho, deslizava como um caracol ao nosso lado. Até à aterragem, na Base Aérea 6, foi uma eternidade... mas o velho Helldiver era um amigo fiel, nunca deixava de nos trazer para casa.
Aniceto Carvalho
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Uma vindima ao luar
Nos primeiros meses, quando o destacamento da marinha colocado na Base Aérea 6 nos confundia
com soldados da "magala", não se pode dizer que morrêssemos de amores pelos marujos. Isso porém, já tinha passado há muito. A maioria, embora especialistas da marinha, eram profissionais e
militares de carreira, alguns deles praças graduados, muito mais velhos, casados e pais de filhos,
que se estavam já marimbando para rivalidades militares ou coisas assim. Por isso, tanto pelo respeito que a idade deles nos incutia, como por não encontrarmos eco do nosso ressentimento, em vez
de levar o amuo por ali diante, acabámos em confraternização, nalguns casos até em amizade.
Se algum resquício perdurava, o "Sarilhos" pôs em definitivo uma pedra sobre o assunto:
O "Sarilhos" era duma povoação com o mesmo nome, a dois passos do Montijo. Porque era o condutor do autocarro, porque era um "gajo porreiríssimo", o "Sarilhos" terá sido talvez o primeiro dos
marujos a criar uma amizade com o pessoal da aviação que nunca mais se dissipou.
Uma vez fazendo parte da mesma gente, como qualquer especialista que tivesse a mais extravagante
das ideias, o "Sarilhos" nunca estava por muito longe… E depois, com aquele noite escaldante do
final do Verão, quem é que tinha vontade de ir para a cama às dez horas?
Saíram do clube de especialistas, atravessaram a placa de estacionamento, depois a pista, saltaram
dois ou três valados, avançaram mais um bocado e, vamos a elas: Com abundância, à "ganância",
até deitar por fora. Mas era preciso levar reservas... E não tinham a noite toda: O cabo de armamento, o Rufino, um alentejano negro como um tição, começou "enfardar" para dentro da camisa...
- Malandros, a roubar as uvas ao homem!... - saltou uma voz no meio da noite.
O cabo estava aterrado. Sem saber como, saído não se sabia de onde, via quase a seu lado um vulto,
dois canos duma caçadeira apontados na sua direcção. Com a situação aparentemente controlada, o
guarda foi-se aproximando. Parou a escassos dois metros.
- Ah!... Vocês são da base!... - disse ele. Procurou reconhecer os militares, atentou melhor no mais
alto dos dois: - E você é o "Sarilhos"... Eu conheço-o bem...
Vendo-se apanhado, o "Sarilhos" não se deu por vencido. Ali mesmo ao lado, razoavelmente identificável ao luar, viu a camisa azul do cabo especialista. Estava ali a salvação...
- Ó homem, tenha calma!.. E vire lá isso para outro lado... Não é o que você está a pensar!
Sem esperar por aquilo, o guarda foi por sua vez apanhado de surpresa. Ficou alguns momentos
indeciso, sem saber o que fazer. Por fim, resolveu-se a baixar a arma.
Mais confortável agora, sem os dois buracos a olharem para ele, o "Sarilhos" continuou:
- O nosso alferes anda a fazer um estudo, aqui no enfiamento da pista - disse ele, atirando com um
"alferes" para a frente, a impressionar, sem se lembrar que naquela direcção não havia pista nenhuma. - E eu venho com ele, como ajudante, para transportar o material.
O homenzinho não viu material nenhum; aquilo estava a parecer-lhe história. No entanto, como tinha
reconhecido o "Sarilhos", fez de contas que aceitava a explicação...
Logo na manhã seguinte, estava no gabinete do "Faísca" a relatar o sucedido:
- Um deles era um marinheiro, o "Sarilhos", Senhor Comandante... O outro era um alferes.
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Velhos Contos
- Então ó "Sarilhos", e quem era esse alferes? - perguntava o "Faísca", horas mais tarde, depois de
concluir que não valia a pena dar à história uma grande importância.
- Não era nenhum alferes, Senhor Comandante... - dizia o "Sarilhos", sem lhe ocorrer qualquer coisa
de jeito para responder. - Era um cabo especialista... Isso foi confusão do homem.
Fosse qual fosse a farda que o "Sarilhos" vestisse, não havia ninguém que não gostasse dele na unidade. O comandante não era excepção. Passou-lhe o pequeno correctivo, disse-lhe que precisava doutro homem de serviço à central por duas noites, mandou-o embora.
O "Sarilhos" era condutor-auto, percebia tanto de centrais eléctricas como de física nuclear. Nem
pestanejou. Estava cansado de saber que o comandante também sabia disso.
Aniceto Carvalho
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A última tourada
Foi no lançamento do "Lavalar", o percursor dos detergentes em Portugal.
Meados da década de cinquenta, salvo e erro, em 1956.
A campanha ao novo produto incluía como principal atracção, um concurso de candidatos a artistas,
no Rádio Clube Português, na Parede, onde, os que se julgavam capazes iam mostrar os dotes.
Foram lá mostrar as habilidades o sargento Américo Gonçalves - que até era vocalista num conjunto
do Samouco - o sargento João Graça, e o Herculano*, um colega cabo mecânico de outro curso.
Achava o Herculano que eu cantava umas coisas... por forças que também lá devia lá ir. Eu resisti.
Mesmo quando ele me acenou com "montes de miúdas", pensando melhor no assunto, concluí que
cantar no chuveiro ou para o gravador do Pina, era uma coisa, mas que dar barraquinha para uma
plateia, era outra, que não estava nos meus planos.
O Américo tinha jeito, chegou ao fim; o João Graça cantou umas estrofes; o Herculano, com a "Vaquinha Salomé", levou com o gongo mal abriu a boca.
Embora sem os trejeitos e maneios do princípio do século XXI, a vida artística, não era, por certo, o
que um pai mais desejaria para um filho há cinquenta anos atrás.
No meio militar, pelo menos na Força Aérea, ninguém ligava, naturalmente, se, como o Américo, um
ou outro brincava aos artistas... levar as coisas a sério, no entanto, era diferente: não faltavam logo
os comentários e as piadas pouco convenientes pelas esquinas. Era uma cambada...
O regresso do Herculano ao convívio da camarata foi o delírio. Como a fugaz incursão do rapaz pela
ribalta não sugeria nada de menos apropriado, nem era de bom tom entrar por caminhos mais melindrosos, nada melhor que fazer derivar a experiência para uma modalidade de cariz diferente.
O "Zé Balas" - José Vicente - descobriu que "Vaquinha Salomé" assentava como uma luva no Herculano... A partir dali, cada vez que lhe dava na bolha, atirava dois saltos à frente do moço, espetavalhe os dois indicadores nas costas, corria aos ziguezagues pelo corredor fora.
Como o Herculano fechava os olhos, juntamente com mais dois ou três, o Zé Balas começou a fazer-lhe
umas pegas de caras, que podiam ser de cernelha no dia seguinte, que, em geral, acabavam num
monte de gente espalhada ao comprido no alojamento.
Eu comecei a alternar com o Zé Balas: Calçava as minhas botas mexicanas, fazia uma dobra de meio
palmo nas calças, atravessava o bivaque na cabeça, passava emproado pelo Herculano com o capote
militar debaixo do braço. Batia o pé, fazia uns cites, uns "voltaretes", depois de uns "capotazos",
afastava-me a arrastar a "capa", a bater o tacão, a olhar por cima do ombro. Palmas, gritos, olés...
Uma coisa séria. Duma vez até saí em ombros, em triunfo, com toda a camarata a aplaudir.
Depois evoluímos para uma actividade mais nacional, para a corrida à portuguesa: Eu saltava para
os ombros do Zé Balas, enganchava as pernas nas costas dele, pegava num toco de vassoura, galopava a "cravar uns ferros" no Herculano. Era uma vida arriscada; o perigo espreitava.
Veio o dia em que o Herculano não estava pelos ajustes: Atirou com o Zé Balas de pantanas, eu bati
contra a parede... caí lá de cima como um saco de batatas, acabei estatelado na tijoleira.
Levantei-me sabe Deus como, saí dali com um sorriso amarelo a contar os ossos.
A época taurina acabou nesse mesmo dia.
(*) Herculano é nome fictício.
Aniceto Carvalho
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Acidente com um Beechcraft
O Cândido Mendes andava a estudar. Já tinha tirado o segundo ano. Não obstante os titânicos esforços que fizera desde os primeiros tempos dos Helldivers, não me conseguira convencer a deixar as
minhas "prioridades" para o acompanhar.
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Velhos Contos
"Além disso", justificava eu, sem justificar coisa nenhuma: "Tu tens tempo para isso, vocês não fazem nada na Esquadra Mista". Isto era verdade, mas não totalmente: A falta de coragem para sacrificar um bocado da minha liberdade e boa vai ela em qualquer coisa de proveitoso é que era a razão
principal.
De facto, a esquadra mista quase parecia um aeroclube: Os Beechcraft, o Expeditor, que também era
uma espécie de executivo, o Widgeon e os T-6, eram aviões de treino e transporte. Por assim dizer,
eram para as horas vagas; para os pilotos fazerem horas ou manterem a performance antes de serem
colocados em esquadras operacionais.
A esquadra não tinha pilotos distribuídos: Voavam nos aviões os furriéis e os sargentos para descontrair em voos desportivos a recordar os "velhos tempos" do Harvard, os comandantes da unidade nas
rápidas deslocações aos estados maiores, os oficiais em transporte de ou para outras unidades, normalmente em treino próprio ou de outros pilotos.
Os mecânicos, os cabos claro, em geral, não tinham muito que fazer. Os aviões ficavam sempre preparados para voo do dia anterior; o resto do dia era a habitual rotina: Abastecimentos, inspecções
entre voos, a reparar uma ou outra avaria ligeira, um ou outro a estudar, a maioria de papo para o
ar, refastelados ou a ouvir música dentro dos aviões.
Por qualquer razão fora do nosso alcance, mesmo para a época, o comandante da esquadra parecia
ter atingido o posto de capitão demasiado tarde. De tipo atlético, alto e meio calvo, na casa dos quarenta, o oficial aparentava estar precocemente envelhecido.
A sua maneira de lidar com os subalternos era a imagem do que todos idealizavam num oficial da
aviação militar. Eu conhecia-o há três anos, do tempo dos Helldivers. A uma negligência minha na
preparação da cabina do avião em que ia voar, tinha-me atirado à maneira de admoestação: "Qualquer dia começo a actuar como o pessoal da marinha".
Embora salvo algumas excepções não fossem severos em excesso, os oficiais da marinha, de facto,
também não eram muito tolerantes. O capitão Fernandes sabia-o; não aprovava os métodos deles. Eu
percebi a mensagem: Nem era preciso acrescentar mais nada.
- Vem aí o capitão Fernandes!... - avisou o cabo. Correu os olhos pelo interior do avião, certificou-se
que toda a gente tinha ficado a postos. - E vai voar!... - acrescentou.
Ao lado da porta, à entrada, o cabo Mendes pousou o livro na cadeira do lado. O outro mecânico
saltou dum dos dois últimos lugares como uma mola. Em dois segundos estavam os dois do lado de
fora, ao lado da fuselagem, a disfarçar que estavam ocupados. Não era o caso do comandante de
esquadra os apanhar sentados no Beechcraft: O capitão sabia que andavam a estudar. Mas não ficava bem; era uma questão de aprumo e respeito.
O aspirante que acompanhava o piloto era um engenheiro aeronáutico que tinha chegado há pouco
tempo à Base Aérea 6. Era um indivíduo robusto, quase quadrado, de andar desengonçado, que mais
parecia um jogador de rugby. Não só porque não tinha planta nenhuma de militar, mas porque, de
facto, as regras normais castrenses tinham para ele pouco menos do que nenhum significado, se pensava seguir a carreira na Força Aérea, pelo menos à primeira vista, pouca gente lhe detectaria algum
jeito para envergar uma farda.
Na aviação, andar de avião, era normal. Ele era um técnico do ramo, naturalmente, ia também voar.
Para os dois cabos, a autorização era uma formalidade: Se eram os mecânicos do avião, e havia lugares vagos, mais dois homens a bordo não fazia diferença nenhuma.
A aviação, em particular a pilotagem, era uma coisa que entusiasmava o engenheiro. Para lhe deixar
fazer o gosto ao dedo e avaliar a destreza, o piloto andava a treinar com ele umas voltas de pista em
aterragens e descolagens dentro do circuito da base.
O sargento Serras era mecânico numa esquadra de PV-2 na primeira linha. Tinha vindo trazer um
avião à manutenção; esperava transporte para o regresso:
Com o trém em baixo, o Beechcraft acabava de descrever mais um circuito. Estava no final da perpendicular à linha de descida, iniciava a volta para o enfiamento da pista.
Era uma manobra corriqueira, repetida dezenas de vezes por dia; mas o graduado não tinha mais
nada para lhe chamar a atenção: Viu o avião inclinar bruscamente de nariz; o rugido de dois motores
à máxima potência estrondeou por cima da ilha do Rato...
Eu estava a "veranear" na Lagoa de Albufeira. Com o tenente Queiroz a dar instrução a outro piloto,
se eu nada fazia a bordo do helicóptero, tinha ficado no chão logo à chegada.
Andava por ali às voltas à beira da laguna, a fazer tempo, à espera que o treino acabasse.
Normalmente ficávamos na margem Norte: Tinha mais e melhor espaço para a aterragem; um renque
de árvores raquíticas, a uma vintena de metros, entre um declive de pinheiros e uma espécie de ínsua
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Velhos Contos
à beira da água até dava para passar pelas brasas. Deixar-me dormir, todavia, não era muito do
meu estilo: Eu preferia ficar por ali a espiolhar, a dar voltas à praia, às vezes até pelo meio dos pinheiros.
Mais ou menos atento à evolução do treino, surpreendeu-me ver o voo terminar bruscamente; estranhei tanta celeridade quando o helicóptero aterrou de seguida para me recolher.
Os dois pilotos vinham apreensivos, sabiam os detalhes.
Quem pilotava era o instrutor. Após a descolagem, o Assunção virou-se para trás: Tinha caído um
avião da base, um Beechcraft, ao lado da ilha do Rato. Ao meu olhar perscrutador, acenou a cabeça
afirmativamente. Sim, tinham morrido todos; não havia sobreviventes.
Não era a primeira vez que eu via acidentes fatais. Nos meus vinte e três anos tinha no meu rol a
visão de quatro mortes violentas: uma por afogamento, na minha terra, um corpo destroçado por um
combóio na estação de Queluz, o "encontro" com dois homens enforcados. Logo em Sintra, durante o
curso, tinha visto um T-6 a ser consumido em chamas com os dois pilotos lá dentro sem que alguém
pudesse fazer alguma coisa. Nos meus seis anos na arma tinham sido vários os acidentes mortais;
mas não na Base Aérea 6.
Das outras unidades eu não conhecia pessoalmente os sinistrados... Era uma fatalidade que acontecia
na aviação. Agora, porém, bulia mais de perto comigo: Eram quatro homens da minha unidade, com
quem eu lidava todos os dias, dois dos quais eram meus colegas de curso, com os quais convivia as
24 horas do dia, tomava o pequeno almoço e jantava há mais se seis anos. Agora via os destroços
dum avião espalhados ao cimo da água; lobrigava dois corpos a boiar no meio deles. Não adiantava
nada ficar por ali às voltas... fomos aterrar.
O "nosso" helicóptero não estava equipado para a situação; era preciso descolar com um dos que
tinha o guincho instalado. O Bragança tinha ignorado a restrição imposta aos mecânicos de helicópteros: Um dos outros dois Alouette estava pronto a levantar voo.
O tenente Queiroz saltou do lugar à minha frente; atravessou a correr uns metros da placa de estacionamento, tomou os comandos do helicóptero. Com as rodas da frente coladas ao chão, descolou a
"rapar" pelo meio das duas filas de aviões, à frente da torre de controlo.
Quando regressou pouco depois, trazia um corpo humano mutilado suspenso na extremidade do cabo
do guincho. Embora disforme e retalhado, estava inteiro; nós reconhecemo-lo facilmente: O Moreira
era um dos meus colegas de curso que seguia no avião.
No resgate seguinte o motor do guincho avariou; o cabo de aço ficou totalmente distendido, sem poder subir ou descer. Na confusão da pressa, alguém tinha enrolado os últimos metros no que restava
dum corpo humano feito em tiras e membros decepados.
Eu e o Vilela éramos os mecânicos dos Alouette: os dois mais novos e menos graduados. Os restantes
elementos da esquadra tinham desaparecido: aquilo era forte demais. Tínhamos de ser nós a desfazer aquele novelo do meio de vísceras e carne despedaçada.
Durante dois dias não consegui aguentar nada no estômago. Soube depois que os outros dois corpos
tinham ficado igualmente mutilados. Mas eu não vi; não me fez o mesmo efeito.
Não me faltaram ocasiões no futuro para presenciar outras cenas tanto ou até mais macabras. Mas
as circunstâncias eram outras. O que me revoltava na ocasião não tinha muito a ver com a morte de
amigos que conviviam comigo diariamente quase há uma dezena de anos: Por mais que então me
indignasse com as atrocidades dos futuros libertadores africanos, pelo menos já não me revolvia as
entranhas. Contra isso, tinha ficado imunizado.
Aniceto Carvalho
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Vem cá de helicóptero
Uma das coisas que um mecânico de avião gosta - ou gostava – era voar ao lado do piloto… Como
num carro, ao lado do condutor. Mas também por outra razão: Para ver os ponteiros a mexer nos
instrumentos, com a certeza de que tudo está a correr bem.
O tenente Queiroz era o comandante da “esquadra” de helicópteros, mas também voava em bimotores. Se ele ia voar de Beechcraft, e eu podia ir com ele, bastava-me dar um lamiré ao Bragança.
Parece que andava fazer ILS, ou uma coisa qualquer dessas em redor da base. Depois cansou-se.
Meteu pela costa abaixo, lá para os lados de Sagres voltou para trás. Sem ser demasiado monótono,
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Velhos Contos
pelo menos de helicóptero, tanto quanto eu sabia, o tenente Queiroz era um piloto do tipo "certinho":
brincadeiras na praia ou aterragens aqui e ali, não havia nada para ninguém. Como oficial e comandante de esquadra, tinha de dar o exemplo.
Um pouco a Sul de Setúbal, por cima da praia, admirei-me de o ver baixar o avião. Cá em baixo,
umas miúdas em fato de banho saltavam na areia. Contra as minhas expectativas, vi o avião dar uma
volta... a seguir, ainda mais baixo, passar mesmo ao lado das raparigas.
Vem cá de helicópero!" - consegui ler, escrito com algas na areia.
O tenente Queiroz riu-se sorrateiramente. "Ai o velhaco", pensei eu. "Piloto certinho, hem!..."
Mal saltei do avião corri à sala dos pilotos. Encontrei o Assunção.
- Ai o velhaco, a mijar fora do penico!... - disse o sargento piloto, já com o colorido dos fatos de banho a brilhar nas pupilas. Pensou um pouco, a seguir adiantou: - Prepara um helicóptero para logo à
tarde... agora vamos lá nós confraternizar com as pequenas.
E fomos mesmo. Demos uma volta a observar o terreno; para evitar olhares indiscretos do ar, fomos
aterrar numa clareira, no meio do pinhal, a uns cinquenta metros da praia.
Não era muito habitual; mas daí a dizer que o Artouste nunca falhava no arranque, também não era
bem assim: Por vezes, começava a mastigar na marcha lenta, não andava nem desandava, deixava
toda a gente pregada no chão.
O Zé estava indeciso. Com o dedo no protector, olhava para mim, não sabia se devia ou não desligar
o interruptor.
Que desculpa arranjaria se o motor não pegasse depois? Que tinha aterrado de emergência, por desconfiar de uma avaria? Que coincidência!... Logo ali, na praia, fora da zona de treino, ao lado de um
grupo de miúdas em fato de banho!...
- Achas que "esta coisa" pega depois? - perguntou ele.
Que raio!... E deixávamos o helicóptero sozinho, com motor a trabalhar?...
- Talvez pegue... - respondi, sem convicção. - Seja o que Deus quiser... deve pegar...
Ele deslocou o interruptor para baixo. O silvo do Artouste começou a extinguir-se; menos de um minuto depois o motor estava parado. "Seja o Deus quiser", pensámos.
Atravessámos uns metros de mata, descemos à praia... Regressar à base com os depósitos cheios
depois de duas horas de voo era uma coisa que acontecia de vez em quando nos helicópteros.
O Cuequinhas
A minha vida decorria calma e feliz nos princípios de 1959, na Base Aérea 6, quando um camarada
de outra camarata me presenteou com uma caixa de sapatos, no fundo da qual buliam umas coisinhas pequeninas e pretas.
Eram bichos-da-seda, explicou ele.
- Bichos-da-seda? - protestei. - Um bicho-da-seda é uma lagarta do tamanho de um dedo... Isto são
cagadelas de um bicho qualquer... Só que mexem.
- Tudo o que nasce, nasce pequenino – filosofou o meu interlocutor.
O meu frágil coração vacilou. Dali à amoreira, na Casa Branca, eram dois quilómetros; com o regresso, eram quatro. Mas que importância tinha isso por uma boa acção?...
Trouxe duas folhinhas, das mais tenras. Devia chegar aí para uma semana. Aquelas ínfimas criaturas
nem comeriam. Era só um descargo de consciência.
Na manhã seguinte deitaria aquilo fora. Fechei a caixa, guardei-a no armário.
Fiquei banzado. Aqueles seres microscópicos, que, “se calhar nem comiam”, nem as nervuras das
folhas tinham deixado.
“É o que faz a fome...”, pensei eu. “Com dose reforçada, deve passar”. Mas não passou. Umas semanas depois eram três caixas, logo a seguir, todo o espaço que restava no armário tinha desaparecido.
Tive de tomar medidas.
A esquadra tinha mudado de instalações. Com as recomendações do costume, fomos estrear um anexo
no outro extremo do hangar, uma secção ampla, bem arejada, decorada a rigor com tudo o que de
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Velhos Contos
melhor nos deixaram surripiar das secções vizinhas. Na antiga secção ficaram os consumíveis, o material de manutenção.
Exposto o drama ao Bragança, ele concluiu que “não tinha jeito nenhum deixar morrer à fome os
bichinhos”... Esclareceu: “Desde que sejas tu a dar-lhes de comer, também não faz diferença um
caixote a mais ou menos na secção”.
Eu tinha feito mal os cálculos: Tinha-me escapado que os “bichinhos” aumentavam aí umas mil vezes
de tamanho, que o que me parecera ser uma centena de minúsculas pontas de alfinete ondulantes,
eram, afinal, milhares de máquinas trituradoras, para as quais, um saco de folhas de amoreira por
dia nem sequer passava duma dieta frugal.
Como a “obrigação” começava a ultrapassar os meus limites, tomei uma iniciativa:
- O melhor era meter a bicharada numa caixa mais pequena e pendurá-la num galho da amoreira...
pelo menos, lá, podiam empanturrar-se à vontade.
O Vilela que nunca ligara importância nenhuma àquilo, nem com um simples olhar de esguelha, pôsse ao alto. Por certo, porque não queria perder o hilariante espectáculo de me ver todas as manhãs
de saca às costas, sentenciou:
- Não senhor!... Isso é uma barbaridade... Os infelizes vão sucumbir todos à intempérie... os que
sobreviverem, serão comidos pelos pássaros.
Todos concordaram. Já agora, queriam ver a “fábrica da seda” em laboração. O sargento Rosa considerou uma almoçarada com o produto final da produção.
A Primavera veio em meu auxílio na forma de três novelos de penugem negra que encontrei nos pequenos pinheiros mansos próximo da Casa Branca. Criar melros a partir duma semana antes de saírem do ninho era o que eu melhor sabia fazer: Bastava apontar-lhe ao bico um naco de pão embebido
em água e deixar-lho cair na goela escancarada.
Para que não me complicassem a vida a procurá-los nos inúmeros esconderijos da secção, instalei-os
numa gaiola feita dum caixote, mostrei-lhes a abundância que fervilhava.
Não me pareceram muito estimulados. Bichos-da-seda, pelos vistos, não era dieta que apreciassem.
Os meus anos de vida militar, todavia, falaram mais alto: Eu também comia o que me davam… As
iguarias tinham de ficar para melhores tempos.
Nestas coisas da natureza, porém, seja qual for a espécie, nem todos têm o mesmo arcaboiço: Um
deles, o “caga no ninho”, foi-se abaixo em poucos dias; o segundo, ainda resistiu uma temporada…
por fim, desistiu de viver; o mais resistente dos três tinha “estômago” de militar… aguentava tudo.
Quando os trituradores de folhas de amoreira decidiram a amodorrar, já o meu precioso auxiliar
esvoaçava por todo o lado quando eu tomava as devidas precauções. Estava na altura de o recompensar dos sacrifícios passados: Melhorei-lhe o “palacete”, comprei-lhe umas caixas de ração apropriada, levei-o para as novas instalações.
Chamámos-lhe “Cuequinhas”: em “honra” de um castiço cabo especialista que, já em plena época do
“slip” – que era muito mais aconchegadinho e dava outro sainete – ainda desfilava na camarata com
umas velhas cuecas da tropa de pano cru que lhe chegavam a meio das canelas escanzeladas.
O “Cuequinhas” passou a ser a mascote.
Ensinaram-me a seguir que devia meter os casulos em água a ferver antes das borboletas saírem.
Assim fiz. Levei no entanto tão à risca os ensinamentos que uns dias mais tarde até nos distantes
gabinetes do comando havia borboletas atracadas umas às outras.
- Pelo menos tiveram um fim de vida feliz – observou o Vilela com um brilho nos olhos.
Como era de esperar, toda a gente concordou.
O sargento Rosa teve de adiar a perspectiva da almoçarada para melhor ocasião.
A uma distracção na secção, o “Cuequinhas” fugiu em meados de 60. Entrou na primeira janela que
encontrou aberta: na oficina de pintura. O António pintor tomou conta dele com todo o desvelo. Morreu de velhice, ao que parece feliz, próximo dos finais de 64, um pouco antes do meu regresso da
primeira comissão de serviço no Ultramar.
Aniceto Carvalho
Exercício "Himba" - 1959
O Maior Acidente da Força Aérea Portuguesa
Em perda de vidas humanas (29) o maior
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Velhos Contos
acidente da Força Aérea Portuguesa
Aniceto Carvalho
Vale mais ter sorte que boa aparência...
Era a inauguração da Base Aérea 5, em Monte Real, no dia 4 de Outobro de 1959. Como era habitual
na altura, nem a "festa" tinha brilho nenhum se nós lá não fossemos mostrar as habilidades com os
helicópteros.
Eu era o mecânico do Alouette II presente... todavia, porque pelos vistos mais ninguém queria fazer
de "macaquinho", tive de ser eu a fazer umas piruetas no "trapézio". Não era coisa que me afectasse
por aí além: Com 24 anos, pouco me importava andar por ali pendurado... No Sikorsky, claro.
(Naquele tempo, com aparelhos que exigiam várias vezes mais manutenção que os actuais, bastava
um mecânico por helicóptero em destacamento - nada raras as vezes um mecânico para mais de um
aparelho).
Para cirandar dum lado para o outro, tudo bem, o Alouette era o melhor... mas para andar por ali
pendurado no guincho do helicóptero francês que ninguém sabia se ia enrolar ou desenrolar sem
mais nem menos, o melhor era não arriscar. A mim ainda não tinha calhado, mas ao Vilela, que era
um bocado mais arriscado, já tinha levado uns valentes sustos. Por fim, concluído que o guincho do
Alouette II não dava nenhuma confiança, o melhor foi acabar com a brincadeira antes que fosse tarde.
O Sikorsky UH-19 era um helicóptero com motor de pistão. Em capacidade de manobra, nem pouco
mais ou menos se aproximava do Alouette, mas o guincho, não metia medo a ninguém.
Preparava o Alouette para voo, ia treinar no UH-19: Com o helicóptero a pairar a uns vinte metros do
chão, içavam-me na ponta de um cabo de aço, de cima de um escadote, puxavam-me para dentro da
cabina, davam uma volta pela unidade, tentavam acertar comigo no mesmo sítio. Às vezes acertavam.
O piloto era o capitão Gouveia, há pouco chegado à BA6. Só o conheci de o ver voar umas vezes no
Sikorsky... depois disso, creio nunca mais o ter voltado a ver. O furriel Nazaré estava há pouco tempo
nos helicópteros. Embora piloto de Alouette, neste caso estava a voar como co-piloto do capitão. O
sargento Rosa, mecânico do Sikorsky, era o operador do guincho: fornecia as indicações aos dois
pilotos, fazia-me subir ou descer quando as posições entre o helicóptero e o escadote estavam finalmente coincidentes.
Tínhamos treinado, tudo parecia em perfeita ordem. Descolámos meia hora antes, a espalhar panfletos do evento, para dar tempo às outras demonstrações, ficámos a dar umas voltas pelos arredores.
No Sikorsky, a cabina dos pilotos era separada do compartimento dos passageiros: num plano superior, á frente.Tudo quanto se via da cabina de trás para o exterior, era pelas quatro pequenas janelas
laterais... Ou pela porta deslizante do lado direito, quando aberta, o que era o caso, para atirar os
panfletos.
O sargento Rosa já tinha feito a parte dele... estava sentado no banco corrido do lado esquerdo do
helicóptero, de frente para a porta; eu tinha acabado de fazer esvoaçar a última mão cheia de papeis...
Fui projectado para a frente, bati contra o separador entre as duas cabinas, andei por ali aos tombos,
por uma unha negra não saí disparado pela porta fora. Ramos e caruma voavam por todo o lado.
Tínhamos chocado com a ponta dum pinheiro. O helicóptero estava desgovernado, oscilava a um lado
e ao outro, ia cair a qualquer momento. Saltou em mais uns tantos solavancos, finalmente empinado
num quick-stop mal definido, acabou por afundar num terreno lavrado logo a seguir.
Não aterrou. Isso não era possível: O trem da frente estava partido, com uma das rodas metidas para
dentro da blindagem... Contudo, com a parte frontal desfeita, o motor parecia não ter sido atingido:
não havia sinais de fugas de óleo ou combustível, nenhuma anomalia era indicada nos instrumentos.
Continuava a trabalhar como se nada tivesse acontecido. Do mal o menos.
Antes que surgissem imprevistos, regressámos à base.
Uns caixotes a substituir o trem danificado foi o melhor que arranjamos para pôr o helicóptero em
cima. Vimos depois que também tínhamos batido com a ponta das pás do rotor de cauda em qualquer
lado...
Tinha sido só de raspão!... Afinal por uns curtos dois ou três centímetros, ainda almoçaríamos nesse
dia.
30
Velhos Contos
Enfim, vale mais ter sorte que boa aparência.
Aniceto Carvalho
Parecia mesmo champanhe
Às vezes saíamos mesmo das marcas.
Mais coisa menos coisa, a Penalva ficava dentro da zona de treino: uma terriola logo a seguir à Moita, para Palmela, a dois passos de Coina. Uma região rica de agricultura.
Mais por paródia, claro está, que por necessidade, cerca de uma dezena de quilómetros em qualquer
direcção, era por ali que nós andávamos aos melões, às melancias, às uvas, a tudo o que aparecesse,
conforme a época.
Nada de más interpretações, porém: Nós não roubávamos nada a ninguém; isso é que podia ter efeitos desastrosos... as pessoas é que se pelavam para nos encherem o helicóptero, só pelo prazer de
ver a máquina de perto.
O pai do Sanz passava lá as férias, os fins de semana, parece que também os dias de folga, numa
propriedade, não sei se dele próprio, se alugada, se como uma espécie de feitor.
Fosse como fosse, era ele que tomava conta daquilo.
Era um homem de pouca robustez, de cor macilenta, como o Sanz, a indiciar doença latente, da qual,
como também o filho mais tarde, viria morrer ainda relativamente novo.
A visita do Sanz tinha a ver com o São Martinho; coincidia com a matança dum porco, com a prova da
água pé.
O filho do anfitrião não tinha descorado os pormenores:
O Assunção, o piloto e seu grande amigo, era o convidado de honra; o Vilela e eu, como ele próprio,
cabos especialistas da esquadra, também não podíamos ser ignorados.
Tresandava a carne assada na brasa... ao absorver o aroma das árvores de fruto em redor, quase
caíamos de costas, ainda mal tínhamos acabado de sair do helicóptero.
O Sanz deve ter telefonado antes de sairmos.
Um tambor de cinquenta litros cortado ao meio de alto a baixo, fumegava à entrada dum telheiro;
uma grelha de febras pingava no lençol incandescente. Chamas de um azul metálico emergiam através dos nacos de carne; o crepitar no assador era um tormento, fazia-nos revirar os olhos.
- É para “fazer boca” – disse o anfitrião, quando o filho nos estendeu três malgas de água-pé a fervilhar. Colocou um prato de febras na mesa, exibiu duas chouriças. - Ponho-as já no grelhador, ou
ficam para depois?... Que lhes parece?
O Vilela acenou com a cabeça. O Sanz respondeu que não se perdia nada, que era melhor, para adiantar serviço.
O piloto, com as mãos ocupadas com uma febra e um bocado de pão, detectou um queijo de Azeitão,
ao lado, uma travessa com fatias de presunto. Que fazer? Saboreou um gole de água-pé, fez um ahhh
prolongado, considerou a possibilidade de “atacar” as febras com queijo, depois com presunto, a
seguir com chouriça, talvez os quatro ao mesmo tempo.
As chouriças chiavam e inchavam no grelhador.
Chamei a atenção do pai do Sanz para o “perigo”.
- Foram picadas – respondeu ele. – Não há problema.
Entre dois dedos de conversa, “passa aí uma fitinha desse presunto”, “deita aí mais um gole”, o
Vilela levou-me à entrada da porta, para constatar à claridade o “rosé” da quarta tigela que tinha
acabado de encher. Com o Sol da tarde a reflectir na superfície do líquido, declarou:
- Isto é uma preciosidade!... – Contemplou as bolhinhas na parede do recipiente, passou-o por baixo
do nariz, absorveu deliciado o aroma gasoso. – É melhor que champanhe.
Como eu nunca tinha bebido champanhe, e sabia que ele também não, fiquei com a impressão que a
comparação era um bocado excessiva. O Vilela prosseguiu:
- Com um petisco destes, assim no campo, era capaz de beber um almude disto numa tarde.
- Estás a exagerar, claro... ainda só bebeste três malgas...
O Vilela interpretou-me erradamente; apontou-me o descomunal nariz adunco como uma pistola.
- Estás maluco, ou quê?... – atirou. - Isto não faz mal nenhum a ninguém. Sou capaz de beber litros
de água-pé e ficar tal e qual. É como quem bebe um clister... mija-se e pronto.
31
Velhos Contos
Deu meia volta, andou dois passos, cambaleou ligeiramente na penumbra. Virou-se para trás, empertigado.
- Quando um gajo sai de repente do Sol para a sombra, até parece que fica bêbado.
Que não a comer – que até cerca dos quarenta nunca deixei os meus créditos por mãos alheias - a
beber nunca passei de um amador. De facto, apesar da meia dúzia de experiências a meia nau, nunca
dei um passo para ir beber um copo. Beber só por beber, então, sem um petisco nem nada, ainda
hoje estou para saber qual é o gosto dum copo de vinho ou aguardente a meio da manhã ou da tarde.
Na visita a Penalva, no entanto, era diferente. Com o chão a ameaçar fugir-me debaixo dos pés após
a terceira tigela, mas ainda em condições de saber que a “preciosidade” não era, afinal, tão inofensiva como o Vilela dizia, comecei a equacionar que também ia sair dali a voar naquele helicóptero, que
teria de fazer qualquer coisa quanto antes: É que eu nunca iria com o piloto bêbado... mas por outro
lado, não só criaria uma discórdia logo à partida, como depois, corresse o voo bem ou mal, nem com
a minha consciência ficava de bem.
O Assunção estava entre as dez e as onze. Controlado, ao que parecia. Ter de o chamar a atenção era
uma decisão que não me agradava... no entanto, por causa dum copo a mais, era também a vida dele
que podia estar em perigo.
Achei que o devia fazer... se ele levasse a mal, paciência.
Olhei o relógio, fiz-lhe saber que tínhamos cerca de meia hora para chegar à base dentro do horário
de serviço.
Como ele não me “sacudiu”, como eu julgava, adiantei-lhe com cautela que, não só por ser o mais
graduado, mas porque era o piloto, era ele o responsável.
Não foi preciso lembrar-lho duas vezes: Meteu a última rodela de chouriça na boca, engoliu o que
restava na malga, por um pouco nem se despedia. Quando os outros dois chegaram ao helicóptero eu
estava sentado ao lado dele, atrás do duplo comando: Pelo sim pelo não, se as coisas degenerasse,
talvez eu conseguisse pôr o “estojo” inteiro no chão.
Até parecia que o Sanz tinha previsto todos os pormenores: O espaço era amplo; uma colisão nas
árvores numa descolagem mais tremida não era muito provável.
Embora bem aviados, segundo me pareceu, a pilotagem do Zé foi impecável... ... mas o pai do Sanz
devia estar tão bem tratado que nem lhe passou pela cabeça que poderia muito bem ser a última vez
que via o filho com vida.
Chegar à base com o depósito cheio depois de duas horas de voo, acontecia, por vezes... mas como é
que nós chegámos inteiros naquele dia, ainda está por desvendar.
Aniceto Carvalho
Um festival em Braga
Nós andávamos numa fona; o Alouette era para tudo: Para transportar altas patentes, para festivais
por aqui e ali, às vezes até para coisas mais sérias; para içar uma antena no cimo duma torre, ou em
busca e salvamento na costa.
Como já tinha acontecido com o nosso chefe, os festivais nem sempre eram do nosso agrado. Em geral, como o helicóptero era sempre a atracção, éramos também sempre nós a fechar as exibições,
quando toda a assistência já estava farta daquilo e começava a enrolar a trouxa para regressar casa.
Depois, tínhamos de preparar o helicóptero: Abastecer, fazer a inspecção, pô-lo em condições de poder ser utilizado logo a seguir se fosse preciso. Como éramos os últimos a chegar ao banquete de
encerramento, a maior parte das vezes, petisco, nem vê-lo... já não havia mais nada para mastigar.
O piloto ficava em geral com o mecânico; dava uma mãozinha, ajudava no que podia, mas mesmo
assim, eram poucas as vezes que conseguíamos chegar a tempo da comezaina.
No festival de Braga não foi diferente; largos tempos depois da festa, já ninguém esperavam os dois
aviadores famintos.
O Vilela disse que eram do helicóptero. Não detectou reacção nenhuma, perguntou se havia alguma
coisa para comer.
32
Velhos Contos
O sargento-ajudante Rego de Sousa estava atrás dele, à entrada da porta da copa. Não quis interferir, deixou que fosse o cabo a resolver a situação.
O empregado parecia um peixe fora de água: abria e fechava a boca... abanou a cabeça lentamente.
Um breve lampejo percorreu a sala, iluminou a cara do cabo: as rechonchudas coxas coradas dum
peru adejavam como duas bandeiras através da profusão de panelas e tachos.
O Vilela deu dois passos em frente, começou a transpor a porta. Voltou atrás, retirou um jornal debaixo do braço do piloto; “disfarçadamente, absorto nas notícias”, começou a percorrer o compartimento. Num rápido segundo - quando o empregado trocava umas palavras com o graduado - deixou
cair o jornal estendido em cima duma mesa ao lado.
Quando regressou, logo a seguir, trazia um volumoso embrulho bem seguro debaixo do braço.
- Nem o viram voar!... - disse ele, já na rua, a mostrar uma coxa tostada do troféu ao graduado.
- Mas é claro que viram - respondeu o piloto. - Não tiveram foi tempo nem lata para reagir.
Com mais seis ou sete anos que o subordinado, o sargento-ajudante era do tempo em que os pilotos
destacados em Espinho vinham de Hurricane até à Ota para passar o fim-de-semana com a família no
Sul. Também vinha de praça, há muito tempo que deixara de se espantar com o que um cabo especialista era capaz de tirar da cartola.
Deixou-se levar por duas ou três ruas, quando reparou, estava a subir as escadas duma casa de putas
da cidade.
Não fez objecções; deixou o comando das operações nas mãos do subordinado.
O cabo nunca tinha estado naquele sítio. Nem em Braga. Mas isso não interessava: Com o Vilela era
tão espontâneo e natural conhecer toda a gente em dez minutos, como passar uma manhã na cama
depois duma noitada. Numa casa daquelas, então, nem era necessário tanto tempo: O Vilela tinha
chegado; era como se ali tivesse vivido toda a vida.
Foi um festim. Satisfeitos consigo próprios e com o mundo em geral, saíram duas horas depois a
arrotar moderadamente.
O sargento-ajudante, particularmente exuberante, trazia o boné ao contrário, com a pala virada para
trás. Parecia disparidade a mais... se calhar nem tinha reparado. Pelo sim pelo não, o subordinado
chamou-lhe a atenção.
- Qual quê!... Respondeu o piloto, a conter um arroto. - Eu hoje pertenço à marinha, não sou da aviação!...
O Vilela correu os olhos em redor; meteu as mãos nos bolsos, começou a assobiar baixinho pela rua
abaixo.
۩
Como sucedera com o Bragança, a novidade de andar por todo o lado, também já me tinha passado.
Salvo nas curtas viagens, com regresso logo a seguir, as que obrigavam a ficar fora, em geral no
Norte do país, eram uma estopada.
Ou era o transporte de altas patentes para reuniões ao mais nível, em que quase nem podíamos pestanejar; ou então, eram longas viagens, com horas e horas de espera aqui e ali, que no fim, quando
regressávamos, muitas das vezes nem fazíamos ideia do que tínhamos andado a fazer.
33
Velhos Contos
Na tropa, claro, quando “a coisa não cheira”, há sempre um “mais maçarico” que vai a todas: no
caso, era o furriel Nazaré, o piloto, e os mecânicos, os cabos Vilela ou o Aniceto.
De vez em quando ainda dava direito a “petisco” com as figuras gradas da terra que não tinham
acesso a essas reuniões, mas a maior parte das vezes, com meia dúzia de tostões no bolso tínhamos
de nos governar como podíamos.
Eu já detestava aquilo; mas quando apareciam personalidades para “dar uma voltinha”, ia aos arames. Dava trabalho extra; e, no meu entender, levar a esposa do oficial a laurear a pevide, se não
era uma obrigação do piloto, também não me agradava ter de preparar o aparelho para sua excelência.
Eu estava farto de Lamego, a mais de duas horas de zac zac zac do Montijo, com o fim de semana a
dois dias.
Parece que era proibido passear civis em aparelhos militares. O coronel, o maior lá do sítio, no entanto, insistia.
Sem saber o que fazer, o Nazaré vacilava: Não queria prevaricar disciplinarmente, nem ser desagradável.
Eu resolvi o assunto: Passei uma inspecção pormenorizada ao rotor de cauda, dei o helicóptero como
inoperativo.
Quando o Sikorsky chegou duas horas depois com outras pás de substituição para o rotor de cauda do
Alouette, já o séquito de sua excelência tinha deixado o local a lamentar a falta de sorte da dama e a
oportunidade perdida.
Mostrei ao Bragança a anomalia – realmente existente, porém perfeitamente controlada - omiti,
evidentemente, o que não me interessava relatar. Toda a gente concordou: tinha agido muito bem.
Por um pouco ia levando um louvor.
AVIAÇÃO PORTUGUESA
De "Aviadores em Terra"
Livro do autor do site
O acidente aconteceu aproximadamente como o descrito. Está, contudo, romanciado. Os nomes e as
funções dos personagens são da minha imaginação e inteira responsabilidade.
No espaço de três meses, depois dumas manobras no Mediterrâneo, a tripulação do capitão Gameiro
tinha partido para Angola. Tinha regressado há pouco tempo.
Após os habituais dias de descanso, sem novos exercícios em perspectiva, estava de volta à rotina dos
treinos diários. Andava a fazer treino de voo nocturno, com aterragens e descolagens; o circuito do
costume, em redor da base, um pouco mais largo, pela região a norte da capital. Um voo normal, a
baixa altitude. Não tinha qualquer interesse, nem o treino o exigia, subir muito alto, para logo a
seguir ter de descer para os níveis recomendados aos procedimentos de aterragem. Um panal de
neblina outonal cobria a zona montanhosa a Oeste de Vila Franca. Durante quilómetros, não se via
uma luz tremular no exterior. Na realidade, estavam a voar só por instrumentos, dentro dum túnel
de nevoeiro compacto, sem um palmo de visibilidade para fora da cabina.
34
Velhos Contos
Daniel estava a substituir o primeiro mecânico: ocupava o banco retráctil entre as duas cadeiras dos
pilotos. O sargento Serrão, o primeiro mecânico, estava lá para trás. Ficara a falar com o navegador,
o tenente Saraiva, atrás do posto de pilotagem; depois, eclipsara-se, devia estar a passar pelas brasas, talvez na cadeira vazia do habitáculo do radar.
O lugar do radiotelegrafista era a meio do avião; mas o cabo Aníbal tinha mais que fazer: ocupado
com as comunicações, não fazia nenhuma ideia do que se passava no exterior.
Na obscuridade da cabina, com os olhos postos na ténue luminosidade dos instrumentos, o segundo
piloto, o sargento Capelo, teve um pressentimento: Parecía-lhe que o avião estava a voar demasiado
baixo. Pelo sim pelo não, guardou a opinião para si... O comandante de bordo, o capitão Gameiro
sabia o que estava a fazer...
O comandante foi informado do acidente pouco depois. Recomendou ao oficial de dia para se esclarecer melhor, para o voltar a comunicar logo que estivesse em posse de todos os detalhes. Quando chegou ao Hospital da Estrela sabia que o capitão tinha morrido, que o cabo radiotelegrafista estava a
salvo apesar de ter sido cuspido com o embate... Que havia quatro feridos graves.
- Sou o comandante da unidade do avião acidentado - disse ele, à chegada. - Gostaria de falar com o
responsável clínico do serviço onde se encontram os meus homens.
O médico apareceu pouco depois. O comandante dispensou as formalidades.
- Fale-me em linguagem que eu perceba, por favor. - Os dois sargentos ficaram muito queimados...
mas não parecem correr perigo de vida... O oficial é um caso muito grave, ainda não sabemos... Um
dos cabos ficou praticamente ileso, aparentemente nem fracturas tem... está nas observações. - O
médico suspendeu-se.
- E o outro cabo?... - perguntou o comandante.
O médico abanou a cabeça lentamente.
- Poucas queimaduras... no entanto... - Fez um trejeito de quem não acredita em milagres.
O punho do "Flecha" caiu na tampa do balcão ao lado. Não podia fazer mais nada...
Aniceto Carvalho
AVIAÇÃO PORTUGUESA
Acidente do Alouette II: Aeródromo Base 1, 1960
Apesar de permanecer basicamente inalterado na sua longevidade de quarenta e tal anos, pelo menos os três primeiros Alouette II adquiridos pela Força Aérea Portuguesa em 1957 e princípios de
1958, não estavam totalmente isentos de alguns defeitos. Ao contrário do que seria razoável, com o
passar do tempo, passámos mesmo a ter mais medo deles no chão que no ar. Não obstante um ou
dois arremedos durante o curso do que o "efeito solo" podia causar, quase desligámos do assunto
com a rápida a intervenção do técnico da fábrica. Desligámos, mas não esquecemos. Salvo os de rodas, que só de tempos a tempos ameaçavam fazer das suas, o outro, logo que um dos patins não
estivesse uniformemente assente no chão, começava logo a "dançar o twist", ainda mal as pás do
rotor tinham iniciado as primeiras voltas. E era perigoso: A não serem tomadas medidas rápidas e
drásticas, tudo poderia terminar num desastre.
Tanto quanto julgo saber, se o problema da triangulação no rotor principal não estava solucionado,
então parecia muito bem disfarçado no H-19. Pelo menos, segundo tive a oportunidade de observar, o
Sikorsky não aparentava ter essa deficiência técnica.
Salvo outras soluções mais avançadas, o ângulo entre as pás de um helicóptero não pode ser rigorosamente fixo em voo: Há diferenças de velocidade na perferia do disco, choques e turbulências aerodinâmicas, no caso do Alouette alteram constantemente a equidistância de 120 graus entre as três
pás... Com os constantes impactos nas pás, sem um dispositivo que superasse a vibração daí resul35
Velhos Contos
tante, se fosse possível voar nessas condições, o efeito seria o mesmo que conduzir um carro sem
pneus nem amortecedores numa calçada.
Por isso é que as pás dos helicópteros têm "amortedores de resistência ao avanço".
Seria impensável que a Sud-Aviation lançasse comercialmente o helicóptero mais avançado da época,
sem lhe aplicar um acessório elementar, todavia básico, sabendo que com isso, poderia, inclusive,
comprometer todo um investimento de milhões. Não seria o caso: No entanto, aqueles amortecedores
de origem nos três primeiros Alouette II da Força Aérea Portuguesa estavam bem longe da qualidade
técnica do helicóptero.
Eram constituídos por seis discos de bronze, alternados com seis de aço, que rodavam sobre si mesmos, cujo atrito de fricção entre eles era atenuado por uma massa lubrificante especial. A regulação
do conjunto era meticuloso: O aperto só podia ser feito com chave dinamómetro, a margem de tolerância era quase nula. De pouco valia. Por mais esforços que se fizessem, nem por isso os resultados
eram muito compensadores.
Os Alouette II - pelo menos os nossos - também não tinham os comandos de voo assistidos: Cada
vibração no rotor principal era transmitida às mãos do piloto como um coice de uma arma de fogo.
Porque a regulação dos amortecedores nos dava um trabalhão sem que os resultados correspondessem, enquanto íamos apanhando uns sustos, reclamávamos através do chefe de manutenção a aquisição do novo equipamento. Para não ser posteriormente responsabilizado por negligência, ele fez o
que tinha a fazer: Não adiantou muito, mas, pelo menos, quando as coisas aqueceram, livrou-se da
responsabilidade.
Em Portugal, como é sabido, há uma instituição que emperra tudo; que inclusive, mesmo depois de
causar um avultado prejuízo, permite que uma quantidade de gente sacuda a água do capote e não
seja responsabilizada por nada. Em Portugal, para a aquisição de um equipamento de milhões, não é
preciso o parecer do técnico qualificado que o conhece ou vai trabalhar nele; depende muito mais de
outros "critérios": Se podem envolver muitas "coisas", nem sempre têm a ver com as características
ou qualidade da compra.
Por outro lado, desde que decidido nas altas esferas, não há nenhuma dificuldade em adquirir um
"mono" qualquer por um avultado preço, ainda que depois ninguém saiba muito bem para quê nem
para o que serve. Se for um parafuso recomendado, um elementar acessório ou uma simples ferramenta, isso já é diferente. O técnico tem de se remediar; intensifica as inspecções, adia por meses e
meses: Em último caso, se mesmo necessário, arranja uma alavanca, põe-lhe um peso no extremo,
faz uma chave dinamómetro.
Entre a requisição e a chegada o equipamento demora uma eternidade. Graças a não se sabe o quê,
às vezes ainda chega a tempo. Outras chega tarde demais.
O piloto estava nos Alouette II há cerca de um ano. Embora já com largas horas de voo no helicóptero,
talvez por causa do susto que apanhara um ano antes em Monte Real, não era um fervoroso admirador do aparelho. Eu já tinha voado com ele por todo o lado; inclusive, até tínhamos tido também dois
ou três sérios arremedos de "efeito solo". Todavia, dessas vezes, eu estava ao lado dele: Antes que
as coisas tivessem aquecido, bastara-me esticar o braço e puxar para trás o manipulo do combustível.
Mas agora eu não estava lá.
Embora soubéssemos que o Alouette não gostava de pousar os patins em pavimentos duros, não era a
primeira vez que aterrávamos na parte militar do Aeroporto de Lisboa, no Aeródromo Base 1, no Figo
Maduro. Tínhamos ido levar o comandante à Portela.
Para lhe entregar uma pasta, mais ou menos a uns dez metros, saí também. Era só isso; eu regressaria num segundo, nem valia a pena reduzir o motor.
O comandante não era de fiar, mas a sua estranha expressão não era comigo: Tinha os olhos esbugalhados, parecia impotente como quem quer fazer alguma e não pode. Eu voltei-me. O meu primeiro
impulso foi correr para o helicóptero. Não pude. Parei paralisado a dois passos do círculo descrito
pela ponta das pás: Com aquelas facas de cinco metros de comprido a passarem por mim a setecentos
quilómetros por hora, se desse mais um passo ficaria cortado em fatias como um bocado de fiambre.
Gritei ao piloto, berrei quanto pude para ele desligar o motor. Não adiantou. O piloto tinha bloqueado: Com as duas mãos agarradas à alavanca do comando, não esboçava nenhuma reacção; nem lhe
passava pela cabeça estender a mão esquerda à manete do gás. Parecia um boneco de trapos arrastado numa cabriolada infernal. Ninguém se podia aproximar.
O Alouette levantava a meio metro do chão, volteava sobre si mesmo, balanceava a um e ao outro
lado, caía virado em sentido contrário. As pás zumbiam a dois palmos do asfalto, no segundo seguin36
Velhos Contos
te subiam às alturas. Ninguém arredava pé... Se uma delas se soltasse, não é difícil de imaginar a
tragédia.
Eu nunca tinha visto nem nunca mais voltei a ver nada que se parecesse tanto com um cavalo de rodeio com um espinho cravado por baixo da sela. O helicóptero desfazia-se aos poucos: Começou a
arder; o motor saltou dos apoios, caiu inerte no chão. Desequilibradas, mas já sem impulsão as pás
começaram a parar. O monte de sucata que restava não tinha qualquer aproveitamento possível. Era
uma vez um Alouette II... Paz à sua alma. O piloto estava apenas um bocado abalado... tinha sido só
mais um susto.
Se não me engano, nem foi preciso esperar um mês pelos novos amortecedores de resistência ao
avanço. E, milagre dos milagres!... Com a mesma remessa recebemos dois conjuntos de servocomandos completos. Enfim, para quê comentários?
Trabalhei ainda mais dez anos em Alouette: Ao que sei, nunca mais o mesmo fenómeno aerodinâmico
voltou a repetir-se no helicóptero francês.
Aniceto Carvalho
Página Principal
Força Aérea Portuguesa
Na Guerra do Ultramar
Terceira Página
Chegada a Luanda
A minha chegada à capital de Angola não foi propriamente a dum provinciano que saía pela primeira
vez da santa terrinha. De facto, nem eu era já o aldeão do interior, nem Luanda era uma cidade para
merecer assim tanto a minha atenção. Eu não estava de passeio nem em turismo; a disposição para
perder tempo a apreciar a paisagem também não era por ai além. O meu destino era outro:
No entroncamento de duas das principais vias de comunicação que atravessavam o planalto do Uíge,
a cerca de 250 quilómetros a Nordeste de Luanda e a 25 de Carmona, a capital do distrito, Negage
era uma terra como milhares de aldeias em Portugal, tanto na dimensão como na planta. Atravessada por uma das estradas, a rua principal, com cerca de 500 metros alcatroados da entrada à saída,
tinha uma outra paralela à primeira num plano inferior, duas pequenas perpendiculares àquelas
constituíam todo traçado urbanístico da povoação.
A arquitectura das casas era peculiar: Como num cenário de filmes de cowboys, quase todas eram
construídas numa base a cerca de um metro de altura, com um varandim na parte da frente e um
corrimão na periferia a separar o edifício da rua.
O Negage estava em estado de sítio. A parte superior das paredes na periferia dos telhados estavam
protegidos por sacos de terra, salvo nas casas desabitadas, todas as portas e janelas estavam barricadas, prontas a ser ocupadas ao mais pequeno sinal de perigo.
Armados até aos dentes, de barbas descomunais, os civis carregavam consigo verdadeiros arsenais
de guerra: De cartucheiras cruzadas no peito, como guerrilheiros mexicanos, a punhais de meio metro
à cintura ou metidos nos canos das botas, nada era demais para defender anos de árduo trabalho ou
a vida das mãos dos energúmenos à solta.
Não se tratava de nenhum cenário para impressionar, era mesmo a sério. A atmosfera era sufocante;
pressentia-se qualquer coisa no ar, toda a gente trazia os nervos à flor da pele. A calma era tão frágil, que uma pequena negligência poderia provocar uma catástrofe. Não era motivo para menos: Os
terroristas não andavam muito longe daquela zona, a povoação tinha estado a uma unha negra de
ser atacada pouco antes da minha chegada.
O primeiro-sargento Alegria e o cabo Rosendo, remanescentes da "gloriosa" esquadra de helicópteros da Base Aérea 6, tinham chegado uns dias antes. Conduziram-me a um enorme casarão, no gaveto da rua principal com uma das transversais, disseram-me que aquilo era um hotel para o pessoal
do Aeródromo Base 3, que era onde ficaríamos instalados.
37
Velhos Contos
Tanto um como outro eram pouco dados a dramatizações excessivas; falámos de tudo menos de guerra. Se não estavam a viver nenhum conto das Mil e Uma Noites, também não se mostravam desanimados. O sargento Rodrigues, "Prim" para os amigos, mecânico do meu curso entretanto noutra
especialidade, por outro lado, chegado há mais tempo, tinha horrores para contar: A qualquer momento, seríamos todos apanhados como ratos.
Há quem pretenda comparar o clima dos planaltos em África na estação seca com a Primavera, em
Portugal. Não há nada de mais errado. Se naqueles os ventos mais fortes mal fariam girar as velas
dum moínho, e as bátegas de água raramente acontecem, qualquer camisola de algodão por cima da
camisa é suficiente para fazer face a uma noite mais fresca. Isto não tem nada a ver com temporais
de Fevereiro ou Março no Ocidente da Península Ibérica, nem pouco mais ou menos com os casacos de
gola levantada dalgumas noites dos meses seguintes. Fosse, no entanto, pelo agradável do clima, ou
porque as emoções para o primeiro dia chegavam, a verdade é que duas horas depois dum jantar que
me soube a pouco, mal tive tempo de apagar a luz quando caí na cama.
Não era a primeira vez que eu aterrava num campo de terra batida, que via nuvens de pó e detritos a
esvoaçar à volta do helicóptero. Mas agora eu não estava num Alouette, nem no campo de futebol
duma terra do interior da Beira Alta... o que eu via na frente, ao que sabia, era o Aeródromo Base 3,
a maior unidade da Força Aérea Portuguesa a Norte de Luanda. Ou antes, seria; porque, pelo menos
em meados de Agosto de 1961, era um enorme espaço de terra batida, onde, com a rotação dum
hélice esvoaçavam turbilhões de terra vermelha.
Para além de duas ou três estruturas do tipo pré-fabricado, mais ou menos em construção, do hangar
vislumbravam-se os pilares em pé, creio que mais um ou dois esqueletos eriçados do que viriam a ser
outras futuras instalações. Logo à entrada da base, ao lado da pista, sobressaía uma construção algo
peculiar. Uma barraca tosca, edificada de troncos e bocados de madeira de contentores, sobre a qual
se elevava uma espécie de atalaia: Era a torre de controlo de tráfego aéreo. Aquele era o edifício do
comando; ao mesmo tempo clube, sala de briefing e convívio. Creio que os restantes serviços funcionavam provisoriamente numa das estruturas no outro topo da pista de aterragem. A manutenção
entre voos fazia-se entre remoinhos de poeira cada vez que um avião se preparava para descolar.
Os homens andavam quase todos de fato macaco caqui, de mecânico, mais leve e prático, que disfarçava bastante melhor a cor de tijolo que se agarrava a tudo. Os pilotos traziam coldres à cintura,
umas vezes a bambolear nas pernas, outras, como no Far West, até se davam ao luxo de os amarrar
com uma fitinha à volta da coxa. Ao pessoal de terra tinha sido distribuída a FBP: uma espécie de
pistola-metralhadora de fabrico português que despejava balas para todo o lado menos para o sítio
onde se queria acertar.
Era engraçado como toda aquela gente se tinha adaptado. Depois de anos a fio na boa vai ela sem
preocupações, parecia que nunca tinham conhecido outra vida. Não foi novidade alguma encontrar ali
velhos conhecidos. Alguns eram procedentes da Base Aérea 6, que durante anos tínhamos palmilhado
os mesmos caminhos à beira do Mar da Palha. Eram os mesmos janotas que ainda há dois ou três
meses passavam horas à frente do espelho a aparar o bigode; que refilavam por dá cá aquela palha
a todas as refeições, que agora as engoliam à mistura com golfadas de barro, com toda a satisfação e
naturalidade, sem um pestanejo nem sinal de desagrado.
É duvidoso que alguma das "elegantes" que por aí pululam ficasse uma hora em Negage; e todavia,
ao contrário do que seria razoável encontrar, nem todas as mulheres tinham abandonado a povoação.
A do tenente-coronel Soares de Moura, comandante do aeródromo, era uma delas. Mas havia mais:
Se calhar a do administrador, não sei se mais alguma das "altas esferas"; não faltavam porém as
"obstinadas" do costume, as que preferem viver as provações ao lado dos maridos que saber o que se
está a passar a muitos quilómetros de distância. Eram as nossas referências. Pelo menos era reconfortante supor que as coisas não estariam assim tão más quando as víamos no cinema. Nem todas
estavam em Negage apenas para acompanhar os maridos. A presença da esposa do comandante, por
exemplo, tinha uma importância muito maior: Um oficial superior, de certo bem informado, não arriscaria pôr em perigo a vida da própria mulher se não tivesse a certeza daquilo que estava a fazer.
Não seria bem assim; mas era o que nós víamos, era o que realmente contava.
Aniceto Carvalho
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Velhos Contos
Chegada ao Negage: 8Ago61
No entroncamento de duas das principais vias de comunicação que atravessavam o planalto do Uíge,
a cerca de 250 quilómetros a Nordeste de Luanda e a 25 de Carmona, a capital do distrito, Negage
era uma terra como milhares de aldeias em Portugal, tanto na dimensão como na planta.
Atravessada por uma das estradas, a rua principal, com cerca de 500 metros alcatroados da entrada
à saída, tinha uma outra paralela à primeira num plano inferior; duas perpendiculares àquelas constituíam todo traçado da povoação.
A arquitectura das casas era peculiar: Como num cenário de filmes de cowboys, quase todas eram
construídas numa base a cerca de um metro de altura, com um varandim na parte da frente e um
corrimão na periferia a separar o edifício da rua.
O Negage estava em “estado de sítio”. A parte superior das paredes na periferia dos telhados estavam protegidos por sacos de terra, todas as portas e janelas barricadas, prontas a ser ocupadas ao
mais pequeno sinal de perigo.
Armados até aos dentes, de barbas descomunais, os civis carregavam consigo verdadeiros arsenais
de guerra: De cartucheiras cruzadas no peito, como guerrilheiros mexicanos, a punhais de meio metro
à cintura ou metidos nos canos das botas, nada era demais para defender anos de árduo trabalho ou
a vida das mãos dos energúmenos à solta.
Não se tratava de nenhum cenário; ali era mesmo a sério.
A atmosfera era sufocante; pressentia-se qualquer coisa no ar, toda a gente trazia os nervos à flor da
pele. A calma era tão frágil, que qualquer descuido poderia provocar uma catástrofe. Não era motivo
para menos: Os turras não andavam por muito longe da zona, a povoação tinha estado a uma unha
negra de ser atacada pouco antes da minha chegada.
O sargento Alegria e o furriel Rosendo, remanescentes da "gloriosa" esquadra de helicópteros da
Base Aérea 6, tinham chegado uns dias antes. Conduziram-me a um enorme casarão, no gaveto da
rua principal com uma das transversais, disseram-me que aquilo era um hotel para o pessoal do
Aeródromo Base 3, que era onde ficaríamos instalados.
Tanto um como outro eram pouco dados a dramatizações excessivas; falámos de tudo menos de guerra. Se não estavam a viver nenhum conto das Mil e Uma Noites, também não se mostravam desanimados. O sargento Rodrigues, o "Prim", para os amigos, um mecânico do meu curso entretanto noutra especialidade, por outro lado, chegada há mais tempo, tinha horrores de pôr os cabelos em pé: “A
qualquer momento, seríamos todos apanhados como ratos”.
Com uma perspectiva daquelas, a minha moral subiu em flecha.
Não era a primeira vez que eu aterrava num campo de terra batida, que via nuvens de detritos em
rodopio à volta do helicóptero. Mas agora eu não estava no Alouette, nem no campo de futebol duma
terra do interior da Beira Alta... o que eu via na frente, ao que sabia, era o Aeródromo Base 3, a
maior unidade da Força Aérea Portuguesa a Norte de Luanda. Ou antes, seria; porque, pelo menos no
início de Agosto de 1961, era um enorme espaço de terra batida, onde, com a rotação dum hélice
esvoaçavam turbilhões de terra vermelha.
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Velhos Contos
Para além de duas ou três estruturas do tipo pré-fabricado, mais ou menos em construção, do hangar
vislumbravam-se os pilares em pé, creio que mais um ou dois esqueletos eriçados do que viriam a ser
outras futuras instalações.
Logo à entrada da base, ao lado da pista, sobressaía uma construção algo peculiar. Uma barraca
tosca, edificada de troncos e bocados de madeira de contentores, sobre a qual se elevava uma espécie
de atalaia: Era a torre de controlo de tráfego aéreo. Aquele era o edifício do comando; ao mesmo
tempo clube, sala de briefing e convívio.
Creio que os restantes serviços funcionavam provisoriamente numa das estruturas no outro topo da
pista de aterragem. A manutenção entre voos fazia-se entre remoinhos de poeira cada vez que um
avião se preparava para descolar.
Os homens andavam quase todos de fato-macaco caqui, de mecânico, mais leve e prático, que disfarçava bastante melhor a cor de tijolo que se agarrava a tudo. Os pilotos traziam coldres à cintura,
umas vezes a bambolear nas pernas, outras, como no FarWest, até se davam ao luxo de os amarrar
com uma fitinha à volta da coxa. Ao pessoal de terra tinha sido distribuída a FBP: uma espécie de
pistola-metralhadora de fabrico português, que despejava balas para todo o lado menos para o sítio
onde se queria acertar.
Engraçado como toda aquela gente se tinha adaptado.
Depois de anos a fio na boa-vai-ela sem preocupações, parecia que nunca tinham conhecido outra
vida.
Não foi novidade alguma encontrar ali velhos conhecidos.
Alguns eram procedentes da Base Aérea 6, que durante anos tinham palmilhado comigo os carreiros
do Seixalinho. Eram os mesmos janotas que ainda há dois ou três meses passavam horas à frente do
espelho a aparar o bigode; que refilavam por dá cá aquela palha a todas as refeições, que agora as
engoliam à mistura com golfadas de barro, com toda a naturalidade, sem um pestanejo nem sinal de
desagrado.
É duvidoso que alguma das “elegantes” que por aí pululam ficasse uma hora em Negage; e todavia,
ao contrário do que parecia normal encontrar ali, nem todas as mulheres tinham abandonado a povoação. A do tenente-coronel Soares de Moura, comandante do aeródromo, era uma delas. Mas havia
mais: Por certo a do administrador, não sei se mais das "altas esferas"; naturalmente, as "obstinadas" do costume, as que preferem viver as provações ao lado dos maridos do que saber o que se
passa a milhares de quilómetros.
Pelo menos era reconfortante supor que as coisas não estariam assim tão más quando as víamos no
cinema.
Nem todas estavam em Negage apenas para acompanhar os maridos. A presença da esposa do comandante, por exemplo, tinha uma importância muito maior: Um oficial superior, por certo bem informado, não arriscaria a vida da própria mulher se não tivesse a certeza daquilo que estava a fazer.
Não sei se seria bem assim; mas era o que todos os homens viam – militares ou não - era o que realmente contava.
Há quem pretenda comparar o clima dos planaltos em África na estação seca com a Primavera, em
Portugal. Não há nada de mais errado. Se naqueles, os ventos mais fortes mal fariam girar as velas
dum moinho, e as bátegas de água raramente acontecem, qualquer camisola de algodão por cima da
camisa é suficiente para fazer face a uma noite mais fresca. Isto não tem nada a ver com temporais
de Fevereiro ou Março no Ocidente da Península Ibérica, nem pouco mais ou menos com os casacos de
gola levantada dalgumas noites dos meses seguintes. Fosse no entanto pelo agradável do clima, ou
porque as emoções para o primeiro dia chegavam, a verdade é que duas horas depois dum jantar que
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Velhos Contos
me soube a pouco, mal tive tempo de apagar a luz quando caí na cama como um cepo. Nem dei pelo
passar daquela primeira noite.
۩
No dia seguinte, apareceu o Pontes, um primeiro-sargento mecânico, oriundo da extinta Aviação
Naval, que eu conhecia desde os finais de 53 na base do Montijo. Era um daqueles graduados que
lidava com os subordinados como se todos tivessem o mesmo posto. Entre nós não havia nenhuma
formalidade, mas agora, comigo na mesma na mesma classe, como se sempre o tivesse feito, tratoume por tu assim que me descobriu. Visivelmente transtornado, arrastou-me para um local mais abrigado, começou a bombardear-me com o que de mais terrífico podia haver, com tudo o que de pior me
viria a acontecer naquelas paragens. De mortes terríveis a doenças sinistras, ninguém escapava naquele triturador de vidas humanas.
Fitou-me, mediu o meu metro e sessenta e cinco, torceu o nariz aos meus mal pesados 60 quilos.
Concluiu imediatamente: Eu era um homem morto. Dali às quatro tábuas era um caso arrumado.
- Olha como eu estou!... - Começou ele. Deu umas tossidelas, escarrou para o lado, apontou a bola de
saliva no pó vermelho. - Vês?... É sangue... Estou nas últimas... Como estes infelizes, também tenho
os dias contados.
Nem aquilo era sangue, nem o Pontes estava doente. O que ele tinha era largos milhares de quilómetros de casa e uma data de meses longe da família.
Foi a minha vez de intervir, achei que não o devia deixar sem a minha opinião. Perguntei-lhe há
quanto tempo não saía do Negage, quando é que pensava ir de férias. Já passava de seis meses; que
estava a fazer contas de ir de licença dali a dois. Mas duvidava muito que lá chegasse; com aquele
mortífero pó a infiltrar-se nos pulmões, já não acreditava.
Embora um pouco atarracado, o sargento era um tipo robusto; à primeira vista não me parecia estar
assim tão doente. Pelo menos eu ainda não tinha ouvido dizer nada daquilo, nem sequer que a região fosse tão doentia. Pelo contrário, se exceptuadas as vagas de terra pelo ar, que pouco tinham a
ver com as características atmosféricas locais, mas mais com a quantidade de obras militares em
curso, o clima do Negage não me pareceu muito mau. No entanto, o Pontes era mais velho do que eu
aí uns dez anos. Mais por respeito que por outra razão, para lhe dizer o que pensava sem lhe ferir a
susceptibilidade, tive de utilizar o melhor do meu tacto.
- Porque não pede você uns dias ao comandante e vai até Luanda? - Comecei eu, sem perder o velho
hábito, nem dar importância ao tratamento por tu que ele me dera. - Diz que precisa de ir a um médico… vai até à praia, passeia por lá um bocado... Enfim, vai desanuviar.
O Pontes olhou para mim, pareceu-me um pouco desconfiado. Viu que a ideia não era a de escarnecer
da doença dele, mas sim dar uma ajuda. Pensou um pouco, não levou muito tempo a perceber onde
eu queria chegar.
Deu-me uma palmada no ombro:
- És um bom sacana – respondeu. – O que tu sabes, já a mim me esqueceu… mas não deixas de ter
razão... É disso mesmo que estou a precisar.
O que eu conhecia de Luanda tinha sido de passagem. Na verdade, nem tivera tempo para dar uma
vista de olhos pela cidade. Mas também não era preciso. Quase nem necessitava sair do Montijo para
ter uma ideia do que iria encontrar: Desde o Exercício Himba, em 1959, que já não se falava de outra
coisa. Claro, os temas do costume: Se havia miúdas com fartura, se davam bola, se havia cabarés,
coisas assim... A guerra não interessava, isso via-se depois.
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Velhos Contos
Luanda era uma cidade na retaguarda da guerra: Era lá que estavam os quartéis-generais, era por lá
que passavam os militares no princípio e no fim das comissões, era em Luanda que se retemperavam
as forças depois de meses de isolamento a centenas de quilómetros da cidade mais próxima. Como
outras cidades nas mesmas circunstâncias, o que não faltavam na cidade de Luanda eram locais de
diversão, onde e como passar uns dias da melhor maneira.
Foi o que fez o primeiro-sargento Pontes. Apareceu-me na Base Aérea 9 cerca de quinze dias mais
tarde. Já estava em Luanda há três dias, tinha ido à unidade tratar de um banal assunto de rotina,
“aproveitara para visitar o pessoal dos helicópteros”. Estava radiante da vida, quase parecia outro.
Nem parecia o mesmo Pontes que eu encontrara em Negage a seguir à minha chegada. Pelos vistos
estava a dar-se muito bem com o “ar da praia”.
۩
Reatei a anterior convivência com o sargento Alegria e com o Rosendo, como ninguém nos queria a
trabalhar por meia dúzia de dias nos aviões, nem nós estávamos interessados nisso com o pensamento nos helicópteros a chegar a qualquer momento, fiquei por ali a “veranear”, na cavaqueira, na tal
estrutura que era ao mesmo tempo clube, sala de briefing e convívio, na parte da manhã, de tarde, a
olhar para as horas, com uma ou duas cervejas a intervalar.
Com o bege do uniforme ainda imaculado, como os “veteranos”, também já traziam o lencinho de
seda azul ao pescoço para protecção do colarinho da camisa. O adereço não fazia parte do regulamento de uniformes; contudo, na Força Aérea, em campanha, se era prático e assentava bem com a
farda, nem as altas patentes desdenhavam de usar.
Não me admirei de encontrar os meus parceiros de “esquadra” pouco expansivos. Contudo, eles eram
mesmo assim. Reservados: Comparados comigo, por exemplo, pareciam ser muito mais velhos do que
eram na verdade. Era necessário algo de muito especial para aderirem a uma brincadeira, seria quase um acontecimento entrarem com entusiasmo numa paródia entre colegas. O Alegria era cerca de
oito anos mais velho, mas o Rosendo, apesar de ser da minha incorporação, parecia nunca ter passado pela irreverência dos vinte anos.
Nada disto, todavia, afectava minimamente o nosso relacionamento. Tínhamos simplesmente maneiras de ser diferentes, nada mais. Cada um era como era. Como cada um ultrapassava o marasmo é
que era pessoal: Permanecer o dia inteiro no “bar”, sem nada que fazer, a maior parte do tempo a
deambular sem rumo nem paragem certos à espera de ordens... por um ou dois dias estava bem, mas
por semanas, assim inactivo, não era bem o meu estilo.
۩
Aos meses que eu ouvia falar de Mucaba!... Do ataque dos terroristas à povoação, da maneira como
os habitantes tinham sido salvos da chacina, até como a tripulação de um PV-2 fizera a horda assassina debandar no último instante. Eu tinha de conhecer a terra.
Eu já conhecia o tenente Silva e Castro. Lembrava-me de ter visto aparecer discretamente na Base
Aérea 6, partira para Angola quase tão depressa como chegara. Com o pouco tempo que permanecera
no Montijo tinha dado bem para ver que se não era oficial de lhe pesarem muito os galões, também
não tinha a presunção de ser um super piloto.
Logo que o encontrei, não esperei outra oportunidade. Como ia um outro piloto, o tenente Ramos,
tomei a cabina de trás, no banco que o DO-27 tinha ao lado da porta. Foi uma viagem curta, nem terá
chegado a meia hora.
No cimo de um planalto, praticamente no centro da região do Uíge, Mucaba era uma povoação pequena. Essencialmente de fazendeiros de café, quanto muito, teria talvez aí uma dezena de habitações. Na verdade, não era mais que uma fileira de casas ao lado uma pista terraplenada para aviões
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Velhos Contos
ligeiros. Esta, com uma inclinação acentuada para o topo mais distante das casas, terminava abruptamente no cimo de um barranco debruçado para um vale.
Foi esta a primeira vez de muitas mais que aterrei em pistas destas em África, que enfim pude constatar e comparar “in loco“ o que eram a abnegação e destreza dos nossos soldados do ar com as tão
apregoadas “heróicas façanhas” de outros pilotos noutras guerras.
Eu era um “turista” em Mucaba. O que quer que fosse que os dois oficiais lá tinham ido fazer, o assunto não me dizia respeito. Quando os pilotos se afastaram, fiquei por ali, aproveitei para dar uma
vista de olhos à paisagem. Falei com alguns habitantes, mostraram-me a igreja onde se tinham entrincheirado na noite do ataque, indicaram-me uma bomba quase intacta, que não tinha rebentado.
Tinha sido uma pena!... Pois tinha caído quase no meio da chusma. Também me pareceu. Para além
do duro golpe nas hostes terroristas, sempre ficavam umas centenas a menos de assassinos para
matar militares portugueses. Quem me havia então de dizer, que já sem a presença de brancos para
descarregar o ódio e as frustrações de pretos, eles próprios se chacinariam uns aos outros durante
anos e anos depois da guerra colonial!...
Se não era da minha conta o que os oficiais tinham ido fazer a Mucaba, também não achei muito
importante fazer perguntas. Mesmo sendo a primeira vez que via um, só me apercebi do que se estava a passar quando os vi regressar ao avião com um nativo preso, no meio de dois cipaios nativos.
Percebi que o preto ia connosco para Negage. Fiquei atento.
Era óbvio que o turra iria na cabina de trás... Mas aí também eu ia. De certo que não era aquela a
experiência que eu imaginara; a perspectiva não me agradou mesmo nada.
O negro era um tipo pequenino, subdesenvolvido, já bastante envelhecido, não devia ter mais de um
metro e meio. Era bem claro que “se a fome fosse música nem uma orquestra sinfónica lhe ganhava”.
Estava com as mãos amarradas atrás das costas, até para mim, que na verdade não sou nenhum
atlas, qualquer sopro mais forte atirá-lo-ia de pantanas. Isso, no entanto, não queria dizer nada: Era
um terrorista. Eu sabia lá o que seria capaz de fazer aquele indivíduo, se ao ver-se encurralado na
cabina, entrasse em paranóia durante o voo.
Tomei o meu lugar para o regresso.
Com as pernas dobradas por baixo do corpo, o sacripanta ia sentado no chão, encostado ao outro
lado, mesmo à minha frente. Praticamente sem poder mexer um dedo, o perigo não seria muito
grande… contudo, eu estava desarmado, a companhia não era de modo algum a mais tranquilizadora.
Chamei a atenção dos dois pilotos lá na frente, fiz-lhes notar os receios que me assaltavam. O tenente
Silva e Castro estava ocupado em pôr o motor a trabalhar, era ele que ia levar o avião. O tenente
Ramos olhou para trás. Oscilou a mão esquerda entre as duas cadeiras, a serenar-me, com o braço
direito cruzado à altura do peito, mostrou-me de relance por cima do ombro esquerdo a ponta do
cano duma Walter.
“Assim é melhor”, pensei eu. Mas isso foi o que eu pensei; não necessariamente o que senti nos trinta minutos imediatos.
Pelo sim pelo não, não fosse o diabo tecê-las, pelo menos naquele voo, não seria a paisagem que
distrairia a minha atenção. Até à aterragem em Negage, nem só por um segundo me atrevi a tirar os
olhos de cima do homenzinho.
Se aquela posição era incómoda, o problema não era meu.
O que eu estava era cheio de medo, capaz de ter uma reacção disparatada se alguma coisa bulisse no
compartimento. Com os nervos à flor da pele como quem espera um qualquer imprevisto, estava todavia longe dos meus cálculos que o homem precisasse de se acomodar. Saltei no assento como uma
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Velhos Contos
mola quando o vi distender uma perna. Sem a menor ideia do que faria se a intenção dele fosse
agressiva, com um gesto rápido fi-lo colar à posição anterior.
Fosse lá o que fosse que ele tenha pensado, devo ter sido bem convincente... Pelo menos, nos últimos
quinze minutos do percurso, creio que nem sequer voltou a pestanejar.
۩
Uns dias mais tarde, o Silvestre, um furriel piloto que eu também conhecia de Tancos, perguntou-me
se eu queria ir com ele. Tinha de ir a alguns aeródromos de manobra dependentes do aeródromo do
Negage… adiantou que não lhe apetecia ir por ali fora uma data de horas sozinho.
Mas claro que queria; nem era preciso repetir. Farto de vaguear sem destino estava eu… o que eu de
facto queria era começar a fazer qualquer coisa, nem que fosse apenas para conhecer novas terras em
África e passear.
Foi a segunda vez que voei no DO-27. Como desde logo me pareceu, e depois confirmei com o passar
dos anos, o Dornier era extremamente seguro. Acho que foi a partir daí, talvez por isso mesmo, que
me saltou pela primeira vez um pensamento que nunca mais me largou nos anos de guerra seguintes.
Eu não tinha medo de voar. Conhecia em geral as capacidades dos aviões, a não ser por qualquer
“habilidade” ou numa manobra mal calculada, há muito tempo que tinha perdido o medo de morrer
duma queda. O que me passou a assustar era ter de aterrar com o “estojo” inteiro no meio dos turras.
Pelo que conhecia do helicóptero, então, não havia melhor tipo de aeronave para pensar assim do
que o Alouette.
۩
Embora as miúdas e outras coisas do género estivessem agora fora de questão, convencido há mais
de seis meses que pelo menos dois anos de Planalto do Uíge ninguém me tiraria logo que pusesse os
pés no Negage, eu tinha de saber o mais possível sobre o meu destino.
O cabo especialista, controlador de tráfego aéreo era de lá.
Terminado o curso há pouco tempo, estava na Base Aérea 6 de passagem, esperava embarque para
regressar à terra como militar da Força Aérea. Era um moço extrovertido, que inspirava simpatia;
não foi necessário nenhum esforço para ficar a par do que ele tinha deixado uns anos antes.
No Negage, apareceu-me pouco depois da minha chegada. Se tinha ou não a família lá, não o cheguei
a saber; contudo, mesmo com o aparato que obviamente tinha encontrado à chegada, não parecia
particularmente afectado.
Deixava bem claro que gostava daquilo. Que ele gostasse do Negage era normal, teria ali nascido.
Ninguém deixa de gostar da sua terra por umas árvores a menos ou pelo desmoronar de um morro;
no caso, os sacos de terra nos beirais dos telhados, só podiam aumentar esse sentimento.
Mas e eu? O que era que me fazia gostar daquilo?
Espraiava o olhar pelos milhares de hectares de colinas verdejantes em redor do aeródromo, só via
terra e mais terra à espera de quem lhe deitasse a mão, como numa revista que há muitos anos me
passara pela frente, até já me imaginava rodeado de milhares de cabeças de gado.
Dois ou três anos mais novo que eu, o controlador, no entanto, não estava pela primeira vez no Negage. Não era uma criança, nem estava a gozar comigo.
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Velhos Contos
- Não há nada mais fácil – disse ele. – Então agora, é o que mais há por aí... Até propriedades já
feitas, prontas a serem aproveitadas.
Dias depois deixei o Negage. O meu futuro como fazendeiro no Uíge, tinha morrido na minha imaginação tão depressa como tinha nascido.
Chitado - 10 de Novembro de 1961
Acidente fatal no Chitado - avião Dakota
O Dakota passou por cima da pista a baixa altitude.
Não ia aterrar. Levava os motores na potência de cruzeiro, o trem recolhido e bloqueado. No final da
pista iniciou uma volta pranchada de quase 90º para a esquerda, em sentido contrário. A meio da
volta, a ponta da asa bateu numa árvore que sobressaía das outras cerca de 15 metros. O avião rodou sobre si mesmo, ficou em voo invertido, caiu a seguir, com a cabine ao contrário.
Incendiou-se imediatamente.
O voo era uma viagem de estudo de oficiais superiores ao Sul do território de Angola.
Entre eles o Segundo Comandante da Segunda Região Aérea.
A baixa altitude seria para avaliar melhor as condições no terreno.
O comandante do aparelho terá menosprezado a temperatura do ar, 40º.C - o que terá feito o aparelho perder altitude na volta - e a turbulência resultante da hora, cerca do meio dia.
A tripulação era constituída pelo Cap. Pil. Nav. Francisco Fernandes de Cravalho, comandante de
bordo; Ten. Pil. Nav. José Manuel Boavida Chagas; Alf. Pil. Av. Mil. Arnaldo Luzia da Silva; 1º. Sar.
Rad. Teleg. Domingos de Oliveira Neiva; 2º. Sar. MMA António Rodrigues; 1º. Cabo MMA Manuel
Freire Martins.
Além dos tripulantes, pereceram no acidente:
Gen. Carlos Miguel Lopes da Silva Freire, Comandante da 3ª. Região Militar; Brig. Pil. Av. José da
Silva Correia, Segundo Comandante da 2ª. Região Aérea; TCor. CMM João Manuel de Oliveira Marques, e o filho , civil, João Manuel de Oliveira Marques; TCor. Art. João Horta de Galvão Ferreira;
TCor. Inf. José Eugénio Borges; TCor. Eng. Luís Jorge Tedeschi Seabra; Maj. CEM Carlos Mota de Oliveira; Maj. CEM Jesofete Monteiro de Figueiredo; Cap. Inf. António André Dias Pombo e Costa; e ainda os civis, Frederico de Vilhena Luís Serrano, secretário do Governador do distrito da Huila; e fotógrafo Maia, de Sá da Bandeira.
O relato da peritagem e das testemunhas do acidente. Eu não vi. Assisti às cerimónias fúnebres e à
partida das dezoito urnas na Base Aérea 9 para a Metrópole.
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Velhos Contos
"Bordo ataque" Major-general PilAv José Duarte Krus Abecasis
Vítimas mortais: dois Oficiais Generais
– General Carlos Silva Freire, Comandante Militar de Angola;
– Brigadeiro José Silva Correia, 2º Comandante da 2ª Região Aérea;
– Oficiais dos Estados Maiores respectivos, Sargentos e cabos da tripulação.
– Total – 18 mortos.
Comandante do avião – Capitão Francisco Fernandes de Carvalho;
Co piloto – Tenente Chagas.
Segundo as conclusões do inquérito da Secção de Segurança de Voo.
- Responsável principal: O Co piloto.
- Co responsáveis: Comandante do avião.
- Comandante do Grupo Operacional da Base Aérea Nº 9 – Luanda.
Juízo ampliativo:
O co piloto executou manobra de volta apertada em voo rasante, no limite da velocidade, provocando
uma perda, sem recurso, por não dispor de altura suficiente para retomar o controlo, percutindo com
o solo.
O Comandante do Avião pelo erro gravíssimo de confiar a pilotagem a um co piloto inexperiente,
retirando se para a cabine de passageiros, em fase crítica de um voo de reconhecimento táctico.
O Comandante do Grupo Operacional da Base Aérea Nº 9, ao nomear a tripulação para uma missão
de extrema responsabilidade. Ainda que o 1º Piloto tivesse a maior qualificação (aceito que não disporia de melhor na Base) com centenas de horas em comando de “DAKOTA”, a inexperiência do co
piloto tornava proibitiva tal nomeação.
NOTA TÉCNICA
O avião “C 47 DAKOTA”, devido a particularidades do perfil aerodinâmico das pontas das asas, perdia subitamente a sustentação em manobras de volta apertada, perto da velocidade de perda. Esta
condição era, por vezes, negligenciada na instrução de voo a pilotos, omitindo as demonstrações
compulsórias, em altitude de segurança. (acima de 1 500 metros).
Aniceto Carvalho
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Um primeiro calafrio na Guerra
Quando o tenente Silva e Castro apareceu por ali a receber instrução nos helicópteros, se não era
nada de admirar, pelo menos parecia um pouco invulgar que tivesse sido transferido para Luanda pelas minhas contas - com mais de metade da comissão de serviço por cumprir no Negage.
Creio que também não estava colocado na Base Aérea 9, mas sim na Segunda Região Aérea. Cá por
mim, o tenente Silva e Castro tinha um “padrinho”... ou então, porque além de piloto tinha outras
capacidades, é provável que estivesse destacado nalguma secção especial: Devia ter a ver com uma
máquina fotográfica que trazia sempre pendurada no ombro.
O tenente Silva e Castro não tinha grande “estilo” de aviador. Se alguma coisa o motivava, não parecia ser pilotar aviões; deixava a ideia que andava naquilo porque calhava.
Nós já nos conhecíamos. Tínhamos contactado por alto na Base Aérea 6; fora com ele que fizera a
minha estreia a voar na zona de guerra. Disse que vinha para voar em helicóptero, começou a receber
treino com o Rego de Sousa.
Passadas umas semanas, calhou-me a mim fazer o primeiro voo operacional com ele. Apesar das
boas horas de voo que tinha em Alouette, mais por falta de interesse que de oportunidade, se alguma
vez tinha agarrado numa alavanca de comando, quase nem tinha chegado para lhe sentir o peso.
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Velhos Contos
Tinha voado com todos os pilotos de helicópteros no Montijo desde 1957; conhecia-lhes os pontos
fracos, a destreza, não precisava de muito tempo a voar ao lado dum novo piloto de helicópteros para
ficar mais ou menos tranquilo.
Do pouco que um mecânico supõe saber da perícia dum piloto, do tenente Silva e Castro nos helicópteros, eu não sabia nada. Do que voara com ele em Alouette, tinha sido durante os treinos, com o instrutor ao lado, não tinha dado para ver muito... e uma elementar apreciação, ainda assim pessoal,
só se adquire depois de muitas horas e alguns arrepios.
O oficial, porém, não me deu motivos para conjecturar: Naquele seu primeiro voo “a doer” de helicóptero, quase me parecia que o piloto tinha nascido sentado num Alouette.
É o que resulta da avaliação dum leigo: 40 anos mais tarde, para um outro piloto da mesma altura –
este reconhecidamente um dos melhores - a minha apreciação das capacidades do oficial não mereceu
uma apreciação muito entusiástica.
Apesar de pouco mais ter voado que as horas de instrução, o tenente Silva e Castro pilotava o
Alouette como o meu avô pendurava o casaco no ombro: com naturalidade, como se nunca tivesse
feito mais nada na vida.
Íamos para o Toto, onde ficaríamos de prontidão a uma companhia do exército que operava na zona
do Loge.
Quando não saíamos de Luanda já com a missão já determinada, o normal era estacionar num dos
aeródromos da zona, dali aguardar ordens para o que desse e viesse.
Mais ou menos a meia hora do destino, o oficial começou a ficar curioso. Corria os olhos pelo horizonte, parecia procurar alguma coisa na distância, à frente do helicóptero.
Para mim aquilo era tudo igual; não passava de uma imensidão de capim crestado, retalhada de
extensos tufos florestais, onde apenas se adivinhava vida humana pelas espirais de fumo que brotavam entre a copa das árvores. Nada daquilo tinha a ver com a experiência que eu tinha de Portugal;
com a maioria das terras a poucos quilómetros umas das outras, quando não confinavam mesmo
entre si, como acontecia com frequência na região a sul de Lisboa.
Se nada me dizia aquela vastidão, o piloto sabia onde estava. Perguntou-me se eu sabia de uma
emboscada a um jipão, uns dias antes. Apontou-me para a frente, à direita.
Sabia. Desastres daqueles sabiam-se quase sempre.
- Está ali!... – Mostrou-me o monte de ferro chamuscado.
Debruçou-se para a frente, deu um aperto na fixação da alavanca do cíclico; segurou-a depois com a
mão esquerda, com a direita quis abrir o estojo da máquina fotográfica.
- Pegue aí nisso! – disse ele, de repente, largando o comando, sem se certificar nem olhar para o meu
lado.
Como se pilotar helicópteros fosse para mim uma coisa banal, nem se preocupou a perguntar-me se
eu percebia alguma coisa daquilo, se alguma vez tinha tentado manter uma máquina daquelas pelo
menos dois minutos a direito.
Dois minutos, vá lá, talvez... se não fossem muito compridos, enquanto não fosse obrigado a corrigir a estabilidade.
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Velhos Contos
Essa não era a preocupação do piloto, no entanto: Importante era enquadrar na objectiva a amálgama de chapas calcinadas lá em baixo; não se o helicóptero estava a voar a direito, se ia de lado, ou
se eu conseguia mais ou menos manter o rumo.
A tarefa nem era muito difícil: Bastava manter o “fissel” alinhado com a direcção, aguentar a linha
do horizonte sempre à mesma altura e paralela com a transversal, fixar uma referência na distância,
não se deixar desviar desse rumo.
“Elementar, meu caro Watson!...” - como diria o Sharlock Holmes. Ou como às vezes me dizia o Rego
de Sousa: “Pilotar é fácil... é só descolar, controlar isto no ar e aterrar.”
Com as devidas proporções, já se vê, à falta de melhor exemplo, a situação fazia-me lembrar as minhas primeiras pedaladas em duas rodas: Quanto mais força fazia no guiador para fugir da parede,
mais a bicicleta se inclinava para acabar por lhe bater mesmo em cheio.
Pelo menos em pleno voo, um avião não cai assim sem mais nem menos, só por uma manobra mal
feita ou por voar um bocado desequilibrado. Não é nada agradável, pode mesmo provocar um desconforto dos diabos; mas fora disso, se todos os aviões caíssem por esse motivo, se calhar não seriam
muitos os que descolavam mais de uma vez.
Nesse aspecto, o helicóptero nem tem comparação: Se não o deixarem bater com as pás dos rotores,
só uma descomunal estupidez ou imprudência é capaz de o atirar ao chão.
Eu sabia disso. De todos os pilotos com quem tinha voado, o Rego de Sousa era um perito em demonstrar até onde podia chegar a capacidade de manobra do helicóptero.
Mas isso era nas mãos dele; nas minhas, a conversa mudava de figura. Foi só quando dei por mim
quase a gritar por socorro que o piloto finalmente olhou na minha direcção.
Com a máquina fotográfica na mão direita, pousou a esquerda na alavanca de comando. Riu-se da
minha atrapalhação, estabilizou o aparelho, continuou a olhar para o exterior.
Não estivemos muito tempo no aeródromo do destino. Tinha acabado de reabastecer, de passar a
inspecção entre voos, recebemos ordem para descolar de novo.
Um pelotão do exército em missão de reconhecimento estava em dificuldades: Depois de dois dias de
patrulha sem problemas de maior, já no caminho de regresso ao quartel, no colonato do Loge, acabava de ter o mais inesperado e indesejável dos encontros. Partimos de imediato à sua procura.
A dificuldade foi conseguir localizar os homens. Ao fim de quase duas horas, com o ponteiro do indicador de combustível a baixar a cada instante, comecei a não gostar nada de continuar por ali às
voltas, a imaginar o que aconteceria se tivéssemos de aterrar com o depósito esgotado.
Se a ideia não me estava a seduzir por aí além, também não me pareceu que o piloto estivesse muito
mais confiante.
A zona parecia ter algumas semelhanças com uma boa parte da paisagem alentejana... até no que
parecia ser um monte, isolado no meio da vastidão da terra de ninguém.
Numa eira a escassos metros da casa, o homem empunhava uma gadanha; como o faziam milhares
em Portugal há centenas de anos, separava a palha do cereal. Aquilo era um quadro surrealista,
ultrapassava a imaginação mais fértil.
Eu podia supor tudo, nunca na vida encontrar ali um homem branco a centenas de quilómetros nos
confins da África, naquele ermo de mil perigos, a tratar a seara como qualquer camponês numa várzea do Ribatejo ou numa encosta do Douro. Como era possível uma coisa daquelas?... Valeria a pena
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Velhos Contos
arriscar assim a própria vida por um bocado de terra vermelha?... Que mais poderia prender ali
aquele homem?...
Mesmo com algumas dúvidas, afinal o tenente Silva e Castro sabia melhor do que eu onde nos encontrávamos. Disse-me que não devíamos estar longe; que por ali algures devia haver um aquartelamento onde podíamos abastecer... Pelo sim pelo não, o melhor era aterrar, e pedir informações.
Achou que a minha interpretação lhe deixaria dúvidas, que o poderia até induzir em erro, deixou o
motor em marcha lenta, foi ele próprio a falar com o camponês.
- Por aqui não há nada, está tudo calmo - disse o homem.
Espetou a ferramenta na palha, apoiou o antebraço no extremo do cabo. Falava pausadamente, com
toda a tranquilidade de quem estava pouco preocupado com os acontecimentos. Se havia guerra, para
ele isso era muito longe dali, não tinha nada a ver com aquela região. Estendeu o braço, indicou-nos
a direcção, enfatizou alguns acidentes geográficos que nos conduziriam ao local do aquartelamento.
“Era perto, nem devia chegar a cem quilómetros”, finalizou ele.
Eu nem tinha a noção que o Congo Português, a região do Quanza Norte mais sacrificada pelo terrorismo, tinha, só por si, uma superfície igual ou maior que Portugal.
Ainda mal ambientado àquele novo mundo, nem me ocorria que enquanto na Metrópole podia sobrevoar centenas de terras numa hora, em África, o mais comum era não encontrar uma só casa no mesmo espaço de tempo.
Em Angola, “era perto”, tanto podia querer significar uma légua como meia dúzia de centenas de
quilómetros.
Como pude verificar com o tempo, custava tanto a um fazendeiro de Angola andar trezentos quilómetros de jipe por picadas e mata para chegar a Luanda, como a um agricultor da Malveira levar uma
carrada de batatas à Praça da Ribeira.
Não foi muito difícil localizar o “ali perto” do agricultor: Chegámos lá em pouco mais de um quarto
de hora.
Reabastecemos, uma rápida vista de olhos ao aparelho, pouco depois da descolagem localizámos o
objectivo.
Estacionado no cimo do morro, o pelotão aguardava a nossa chegada. Com mortos e feridos não era
fácil continuar.
Os soldados já tinham formado o círculo de segurança para o helicóptero aterrar; o local para o fazer
não era dos piores.
Não foi preciso chegar ao chão para me aperceber do que se passava: que aquilo era a sério, que
estava na guerra.
Eu devia estar na Lua: Pelo menos podia ter tido o bom senso de observar ao piloto que desligar o
motor naquelas condições não era uma ideia muito brilhante. Não senhor.
Como se tivesse chegado ao areal de Tróia ou ao campo de futebol do Sporting de Lamego, limitarame a seguir o oficial... Nem por um só momento me passou pela cabeça a monumental carga de trabalhos que podia acontecer se o aparelho se negasse a trabalhar quando quiséssemos sair dali.
O tenente Silva e Castro estava de pé, ao lado da cabina do Alouette. Acabava de trocar umas palavras com o comandante do pelotão, com a mão apoiada no arco da porta, parecia assistir à azáfama
como se estivesse a presenciar a rodagem de um filme. Eu tinha ficado encostado à estrutura da cau49
Velhos Contos
da, a cerca de três metros, logo a seguir ao motor. Acabava também de fazer a inspecção de rotina ao
helicóptero.
Apesar de talvez não ver aquilo com os mesmos olhos do piloto, não era fácil ficar indiferente ao que
via nas centenas de metros em redor. Não era um cenário bonito.
Não era nada interessante ver hectares e hectares seguidos de terra queimada, restos de chamas a
brotar aqui e ali, colunas de fumo a emergir do que parecia ser, daquela distância, apenas montículos de carvão dispersos pelas colinas.
- São turras a arder - adiantou-me um dos militares.
Tinham sido emboscados já várias vezes naquele dia; a partir daquele “maldito capim” com dois
metros de altura. Para desalojar os turras, tinham-se visto forçados a deitar-lhe fogo... por azar,
dois dos militares, já atingidos gravemente, também tinham sido apanhados nas chamas.
Eu não tinha dado por nada. Se tinha havido tiros, tinham-me passado despercebidos. O reboliço
saltou de repente.
- Estão a atacar!... estão a atacar!... – gritava-se em redor.
A seguir, o matraquear de armas automáticas; toda a gente atirava para a linha de água, no fundo
do declive.
O terrorista insinuara-se por ali; tinha aproveitado a confusão da aterragem do helicóptero. Tinha
deslizado pela vegetação não atingida pelo fogo; atirou umas rajadas na nossa direcção, não perdeu
tempo a cavar dali para fora.
Eu não tive medo. Fiquei simplesmente estático; não me atirei ao chão, não arredei um pé de onde
estava. Não por valentia: Estava simplesmente paralisado; sem reacção, incapacitado para o mais
elementar acto de protecção ou autodefesa.
Ao turra, de pouco lhe estava a valer a camuflagem no sopé da colina. O ondear nos arbustos não
deixava dúvidas. A vertente parecia varrida por lufadas de vento: O capim fervilhava de agitação;
emergia uma cabeça, o cano duma arma metros adiante, a seguir mais um disparo. Era uma questão
de tempo; talvez pouco mais que alguns segundos.
- Apanhámo-lo! Apanhámo-lo!... Apanhámos o filho da puta!...
Pouco daquilo me parecia com uma guerra. Não obstante o que já ouvira contar, pelo menos não era
bem assim que eu imaginava. Por mais asqueroso que seja dizer isto, eu acabava de assistir a uma
“caçada”. A “presa” era um homem, não um javali; contudo, como numa batida, nem os processos
utilizados nem o resultado final tinham sido diferentes.
Não era a primeira vez que eu via mortos à minha frente. Há muito que eu estava imunizado à vista
de cadáveres de morte violenta, até de corpos humanos aos bocados. O que nunca tinha visto era
nenhum carbonizado. Isso, todavia, ainda era o menos: Transportar dali dois mortos naquele estado
em helicóptero é que não se afigurava ser uma tarefa muito fácil.
As macas do Alouette II eram acondicionadas dentro de dois invólucros, colocados no exterior, um de
cada lado, assentes nas travessas dos patins, tão bem adaptados, que praticamente faziam um todo
com a estrutura do helicóptero.
Não davam muito boa imagem: Eram constituídos por uma caixa oblonga, aerodinâmica e em forma
de sarcófago; tinham uma cobertura de lona dos pés à altura do peito, a parte superior era protegida
por uma redoma de vidro acrílico.
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Velhos Contos
Tirando a transparência, comparar aquilo com um caixão não era muito despropositado; por outro
lado, segundo diziam os que já o tinham experimentado, excluindo o motivo, naturalmente, também
não era muito mau viajar ali deitado.
O problema, contudo, agora era novo: Como acondicionar um cadáver de membros retesados abertos
numa cápsula, onde apenas sobravam alguns centímetros de espaço ao corpo de um homem em estado normal?
As práticas anteriores não me tinham dado tanto estofo.
Embora o acidente do Beechcraft no Montijo já me tivesse dado alguma, agora era diferente: Não
tinha a quem recorrer, apesar de todos os truques para conseguir fechar a cobertura. A tarefa era
árdua, não me estava a correr da melhor maneira: Tão depressa eu acabava de fixar a lona de um
dos lados, logo do outro saltava um braço no ar como uma mola.
Estava complicado; eu não dava conta do recado.
- Dá-me licença, meu furriel?
Era um soldado, ao meu lado. Não esperou a minha resposta: Deitou a mão a um pulso calcinado.
Como se fosse um galho ressequido, com um estalido, sem cerimónia, torceu o braço para dentro da
correia que cingia o corpo à maca. Repetiu a operação mais duas vezes, começou a esfregar as mãos
nas calças do camuflado. Sacudiu-as para o lado.
- O que é preciso é não ter nojo, meu furriel - filosofou ele.
Retomei a tarefa... consegui afivelar a cobertura da maca.
Uma longa noite
Os helicópteros iam para Negage, no planalto do Uíge, o centro do terrorismo, onde, de facto, de
acordo com os acontecimentos, pareciam ser mais necessários. Pelo menos era do que eu pensava
saber quando embarquei para o Ultramar... E a razão porque eu tinha estado destacado uns dias no
Aeródromo Base 3. Mas não foram.
O tenente Rego de Sousa era da "velha Guarda", vinha de cabo piloto, do tempo logo a seguir aos
finais da Segunda Guerra; conhecia - e se calhar tratava por tu - uma boa parte dos oficiais superiores que na altura comandavam a Segunda Região Aérea. Cá para mim - com a importância do peso da
veterania - os seus argumentos devem ter sido retumbantes:
Os helicópteros ficaram para sempre na Base Aérea 9.
Para dar assistência ao Alouette II que se encontrava destacado em Cabinda, era a mim que calhava
passar uma temporada no território. O piloto era o Assunção, um velho conhecido do tempo dos Helldivers, no Montijo.
(Pelos anos 55 ou 56, uma das suas "diversões", era mergulhar o bombardeiro pela Serra da Arrábida abaixo para sair a rapar a praia; a outra, era visitar a namorada ao Algarve, às vezes, acompanhar a volta a Portugal em bicicleta. Por umas duas vezes, porque o motor tinha resolvido asnear,
pouco faltou para ficarmos pelo caminho).
Logo a seguir ao Rego de Sousa, dos sargentos, o Assunção tinha sido dos primeiros pilotos a voar
de Alouette II na Base Aérea 6. Durante três anos tínhamos andado por todo o lado... até aos me51
Velhos Contos
lões, nas terras das redondezas, durante a manhã, que íamos depois comer, na parte da tarde, refastelados nas margens da Lagoa de Albufeira.
E lá íamos nós por cima do Maiombe, a transportar três engenheiros, creio que para Buco-Zau ou
Miconge, bastante perto da fronteira Norte do território do enclave de Cabinda. Assunção ligou-me
através da interfonia.
- Não estás a ouvir uma chiadeira na embraiagem?... - perguntou ele.
Eu ia distraído, a ver a paisagem, se calhar a conjecturar onde é que ele ia "pôr o estojo" se o "fogareiro" lá atrás lhe desse para fazer das suas. Adiantei qualquer coisa sem nenhuma convicção. Logo a
seguir aterrámos no destacamento militar de Belize. Passei uma inspecção minuciosa ao helicóptero,
como ver através do tambor para o interior da embraiagem me ultrapassava, concluí que me parecia
tudo normal. O Zé concordou...
- Mas a chiadeira vem dali. - Apontou o acessório rotativo, entre o motor e a roda livre.
- Ali dentro, nem o Papa pode mexer... Só na fábrica - sentenciei.
Que o piloto não ia sair dali com o aparelho a voar naquele dia já eu calculava, mas que estivesse a
engendrar a luminosa ideia de atravessar o Maiombe por estrada, só duma cabeça prodigiosa.
- Mas para quê?... Se vamos chegar a Cabinda altas horas da madrugada?
- Vou arranjar um transporte - resolveu ele a auscultar o entardecer. Atirou um "volto já", regressou
passados uns minutos com um jipe. Além do condutor, trazia com ele um soldado de escolta armado
de G-3.
Os nossos passageiros não tinham perdido tempo: Tinham desaparecido noutro jipe pelo Maiombe
dentro. Protegi o helicóptero com o que tinha à mão, um quarto de hora mais tarde seguíamos na
peugada dos três técnicos.
A tarde tinha caído. Se ainda não era noite fechada, não demorou muito a acender as luzes do jipe
depois de entrar na floresta. Tudo bem, não era nada do outro mundo... Devíamos chegar a Cabinda
por volta da meia-noite. Cerca duma hora depois, de repente, sem enxergar um palmo em redor,
ficámos paralisados, a tentar ver a cara uns dos outros: Tínhamos ficado sem luzes, reduzidos à chama do isqueiro do Zé em pleno coração do Maiombe.
- Não fumem... não façam barulho - recomendou o sargento-ajudante.
Com excepção duns recontros próximo da fronteira já há uns tempos, ao que constava, não havia
terrorismo no enclave. Pois sim. Mas isso era o que se dizia. Para quatro gatos pingados dentro dum
jipe na total escuridão e no meio do desconhecido, a conversa era diferente.
- Não passámos à pouco por uma tabuleta, num cruzamento? - perguntou o piloto.
- Passámos sim, meu ajudante - respondeu o condutor. - Era a estrada para a Chiaca.
O soldado explicou que havia lá um quartel, adiantou qual era a unidade lá estacionada.
- Veja lá se os farolins de trás funcionam... Óptimo... funcionam. Você é capaz de levar o jipe de marcha-atrás até lá? - E acrescentou: - Quando estiver cansado, diga-me... eu guio, se for preciso.
Pelos vistos, devia ser comum na unidade os carros entrarem na porta de armas de marcha-atrás às
tantas da noite. Ninguém ligou nenhuma. Se eu não soubesse já do que os militares são capazes
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Velhos Contos
mesmo em campanha se o comando abranda, era capaz de pensar que a Chiaca era um campo de
férias. Mas não era. Embora com a guerrilha mais controlada que no Norte de Angola, não eram
despropositadas algumas precauções.
Eu alimentava uma esperança: Não me parecia que um sargento largasse um serão tranquilo para
reparar uma avaria àquela hora da noite. Enganei-me. "Era o mínimo que ele podia fazer pelos amigos da Força Aérea". Ia explodindo quando vi o sorja ligar as luzes, anunciar com um largo sorriso
que podíamos seguir viagem. Rosnei um dos mais violentos impropérios do meu vocabulário, com um
furioso pontapé na carroçaria entrei no jipe. Arrancámos. O primeiro-sargento correu atrás de nós.
Entregou ao piloto um bocado de cabo eléctrico desfiado.
- É melhor levar isto... - recomendou. Apontou a lanterna à caixa dos fusíveis, retirou um deles e
explicou: - O fusível é este. Se voltar a fundir, basta colocar de novo mais três destes fios. Não ponha
mais de três... Isso pode "rebentar" de vez com as lâmpadas dos faróis... Se puser menos, o mais
certo é não aguentarem mais de dois minutos.
Parecia não ser preciso. Fartámo-nos de galgar quilómetros sem recorrer aos ensinamentos do sargento. Foi esse o problema: É que agora, se sabíamos estar a dezenas de quilómetros de qualquer
lado, não fazíamos a menor ideia de onde nos encontrávamos. Tínhamos a mezinha, todavia: O Assunção tirou o isqueiro. Estendeu-o ao condutor, disse-lhe para o acender escondido por baixo do
volante, em segundos reparou o fusível. Se aguentasse tanto como o anterior... Não durou nem dez
minutos; os seguintes nem isso. Os filamentos que restavam começaram a fundir a cada volta das
rodas. Esgotados os últimos recursos, acabámos parados na escuridão. Com o pressentimento de que
ao passar por uma aldeia indígena, num cruzamento antes, tínhamos entrado na estrada errada, um
dos soldados teve a luminosa ideia de alvitrar que estávamos a dois passos da fronteira do Congo.
Andámos um bocado em marcha-atrás, parámos à entrada da aldeia.
- Vocês já ouviram falar de problemas por aqui? - perguntou o piloto.
Os dois soldados disseram que não. Não tinham tido nenhum problema no território... pelo menos
não sabiam de nada por ali... Só há uns tempos, na fronteira Norte.
- Vamos lá perguntar então onde estamos - resolveu o Assunção.
Tirou a Walter do coldre, os dois soldados seguiram-no de arma aperrada. Sem saber o que faria com
aquilo, preparei a FBP. Batemos à porta duma palhota, um dos soldados chamou o morador por um
genérico da língua nativa.
Fiquei abismado. O ancião de cabelos brancos que abriu a porta era um europeu sem tirar nem pôr.
Exceptuando a cor da pele, nada nele parecia ter a ver com as feições da generalidade dos autóctones
africanos. Segurava um lampião como o que eu vira centenas de vezes na mão do meu avô; talvez
sugestionado por isso, a última coisa que me ocorreria encontrar em África era alguém com tantas
parecenças com o homem que me tinha criado.
Compreendia e falava um pouco de português, o bastante para nos entendermos.
Sim, estávamos muito perto da fronteira, compreendemos. Entre mais umas palavras soltas, percebemos também que não estávamos em perigo... Podíamos enfim respirar fundo, talvez descansar um
pouco até ao amanhecer. Quando lhe sugerimos que se fosse deitar, recusou, deu a entender que
ficaria ali a alumiar-nos o resto da noite. E ficou. Ao que parecia, estava a apreciar a nossa presença.
Uma boa hora mais tarde indicou uma direcção, pronunciou umas palavras. Um dos soldados arranhava o dialecto do território:
- Está a dizer que vêm aí carros - traduziu ele.
53
Velhos Contos
Nós não ouvíamos nada. Por mais que apurássemos os sentidos, tudo quanto detectávamos era o
restolhar nocturno da floresta. Quisemos saber se ele era capaz de nos adiantar mais alguma coisa.
Calámo-nos todos, ninguém bulia uma palha; deixámos ao ancião a tarefa de auscultar a noite. Eram
muitos carros, traduziu o soldado, de novo.
- Sim... Diz que vão passar por aqui - adiantou, depois da explicação do autóctone.
Era uma coluna militar, concluímos com grande satisfação. Agora era apenas uma questão de esperar
um pouco mais. Era a minha primeira experiência com os efeitos da poluição sonora: O que nós só
ouvimos quase uma hora depois, conseguia aquele homem escutar, até com pormenores, a dezenas
de quilómetros de distância.
Vislumbrei na penumbra dos faróis uma série de soldados a saltarem da viatura, um outro saía da
cabina na nossa direcção. Era o comandante da coluna. Perguntou o que estávamos ali fazer, dirigiuse para mim e para o piloto:
- Mas vocês são positivamente doidos!... Sabem onde estão?... - perguntou o alferes.
Esqueceu os dois soldados. Eles não tinham nada a ver com aquilo, tinham-se limitado a cumprir
ordens. Se havia responsáveis naquilo, só podiam ser o sargento-ajudante e o sargento magrinho da
FBP. Era verdade: Eu acompanhara o piloto porque queria, ninguém me tinha obrigado... Se calhar,
era também o que ele faria.
O alferes voltou à carga. Centrou a atenção no mais graduado:
- Meu caro amigo, você esteve a milímetros de meter este pessoal numa alhada levada dos diabos...
Embora não se conheçam acções da guerrilha por aqui, o gajo que vos autorizou a fazer esta viagem
deve estar doido varrido. - Pôs a mão no ombro do Assunção. - Foi uma sorte do caraças você não
poder continuar o caminho... mais uma meia dúzia de quilómetros por aquela estrada, vocês entravam direitinhos pelo Congo dentro.
Regressámos na coluna à Chiaca. O resto da noite passámo-la a procurar dormir em "cadeirões" de
aduelas de barril. Talvez o conseguíssemos... Não fosse a "serenata" que um bode nos dedicou toda
a madrugada.
Depois do suplício, os primeiros raios do dia foram uma bênção. Contudo, com 27 anos na altura,
minutos depois estava pronto para outra. Aquela longa noite, no entanto, ficou para sempre. É que os
"apertos" de momento passam com o tempo, mas horas a fio com o credo na boca, são outra coisa...
Às vezes demoram a esquecer.
Aniceto Carvalho
Carlos Mendes – FAVA
O civil que andava por ali a treinar em helicóptero, não era, por certo, o piloto que o Rego de Sousa
mais precisava: Era funcionário administrativo, e um dos mais conhecidos pilotos particulares de
avião em Angola.
Conceituado piloto, impulsionador na criação da FAVA - Forças Aéreas Voluntárias de Angola - de
relevantes serviços à Aviação Militar aquando dos graves acontecimentos do princípio de 61, nem o
mais ingrato dos comandos poderia ficar indiferente a um pedido seu: Se o Carlos Mendes queria um
curso de piloto de helicóptero, era o mínimo que a Força Aérea Portuguesa lhe podia dar.
O Carlos Mendes morava na Vila Alice, numa rua de vivendas entre a estrada de Catete e a avenida
principal, mesmo por trás do prédio onde eu habitava.
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Velhos Contos
Tinha um carro muito em voga na altura em Luanda. Um Saab: um automóvel de formato um tanto
estranho, ao que se dizia, talhado para bater em África.
Eu ia com ele muitas vezes.
Fanático das coisas do ar, o Carlos Mendes tinha uma página semanal inteira sobre aviação no maior
jornal de Luanda. Porque o conhecia pessoalmente e porque o assunto me interessava em particular,
o que mais me intrigava era a superior sabedoria do administrativo em assuntos aeronáuticos.
O homem era um tratado!... Para quem andava há dez anos na aviação e até nem se julgava muito
destituído, a bagagem do meu vizinho fazia-me parecer um zero na matéria.
O Carlos Mendes, embora de excelente trato, até amigo, era também um bocado mais velho do que
eu... para satisfazer a minha curiosidade sem lhe dar a entender que duvidada dos seus conhecimentos, precisava de ser cauteloso.
- Não tenho bagagem nenhuma – disse ele. – Os meus conhecimentos aeronáuticos não vão muito
além das noções básicas para obter o curso de pilotagem.
- Ter uma página de aviação num jornal todas as semanas não é propriamente tarefa de um leigo insisti. – Eu que nem sou dos mais distraídos, e ando nisto há dez anos, nunca ouvi falar da maior
parte dos assuntos que você aborda.
O Carlos Mendes riu-se para o meu lado, parecia certificar-se da espontaneidade das minhas palavras.
- Não é nada de mais... – explicou ele. - Compro umas revistas, selecciono os temas, compilo tudo,
entrego no jornal para publicar. – Adiantou: - Com o que se gasta em material e trabalho, nem dá
para o petróleo... É só carolice.
Quem me havia de dizer então que para dissertar sobre aeronaves espaciais na televisão, nem é preciso saber como funciona uma roda de amolador!...
A passagem do Carlos Mendes pelos helicópteros, foi breve. Não tinha nada a ver com a carência de
pilotos para as necessidades do Rego de Sousa.
Desapareceu logo a seguir. Talvez porque tenha enveredado pela carreira de piloto noutra cidade,
como me chegou a confidenciar, se não estou em erro, nunca mais o voltei a ver.
Aniceto Carvalho
Aviação Portuguesa
Profecia a 40 anos
Ainda era muito checa em África, corria o ano de 1966, era um domingo, estava sentado na esplanada do Zé do Galo Verde em Gondola, (próximo de Vila Pery), quando para meu espanto, vejo estacionar ali mesmo nas minhas bochechas um carro enorme ao estilo USA, com matrícula estrangeira, não
me recordo a marca desse rabo-de-peixe, podia ser Pontiac, Buick ou Chevrolet, mas era vermelho e
descapotável.
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Velhos Contos
De dentro, saiu um indivíduo cinquentão, de fato-macaco sujo de óleo, um trapo pendurado no bolso
de trás e com a desenvoltura e desembaraço de quem andava com pressa.
Entrou, foi buscar uma cerveja ao balcão, regressou à esplanada com o copo e a garrafa do tipo "bazuca" nas mãos, mirou as mesas todas vazias, viu-me ali sentado sozinho, decidiu dirigir-se a mim e
pediu para se sentar à minha mesa, logo de seguida o empregado apareceu com um dos apetitosos
pratos de petisco de carne, com molho picante e outro com pedaços de pão à boa maneira moçambicana.
A minha desconfiança em relação ao intruso na minha mesa, tocou os alarmes da minha consciência,
fiquei sisudo e de pé atrás, o homem até tinha um português estrangeirado, tinha que ter cuidados
com aquele "mangusso".
Quis saber quem eu era, na medida que também ele estava por ali fazia pouco tempo, informou-me
que era recém chegado e que estava como electricista na “farm” do alemão na Maforga, ali bem perto, não fazendo tenção de por ali permanecer muito tempo, apenas o tempo suficiente de arranjar
dinheiro para seguir até à África do Sul.
Disse-lhe, ser um recém iniciado nas lides africanas, estava também por ali até que outro melhor
futuro me sorrisse.
Ao ouvir as minhas intenções, esticou-se para trás na cadeira, estendeu as pernas, e disse-me:
- Olhe, tome muita atenção ao que lhe vou agora dizer, um branco em África, só deve possuir coisas
com asas, com rodas ou com pegas… - Com os braços, fez o gesto de pegar em malas. Depressa chamou o criado, para pedir uma rodada e mais petisco, decidiu continuar: - Estou aqui vindo fugido da
Zâmbia, estive lá dois anos, mas por ser branco e português iam-me prender, antes estive em Angola
três anos depois de ter fugido do Congo, passei pelo Zaire três anos, sou Eng.º. Electromecânico e
tenho semeado mulatos por esses cantos todos desta África, que tanto amo. - Depois de um pequeno
intervalo para mais uma "bazuca", voltou a falar: - Já tive fortunas por três vezes, esta é a quarta
vez que estou pobre, apenas me resta aquilo… - Apontou para o descapotável vermelho de rabo-depeixe.
As "bazucas", iam-no fazendo lembrar que estava na diáspora, tinha tirado o curso no Porto, era de
Massarelos e por causa de uma gaja que emprenhou, tinha viajado de barco para Pointe-Noire no
Congo, onde fez uma grande empresa de electromecânica, mas as africanas, a cor branca e a recusa
de corromper os polícias, o racismo e as traições de alguns dos seus empregados, a ausência de justiça no continente deitaram tudo a perder.
Conseguir fugir foi uma sorte.
Isto tudo porquê?
É que eu, menosprezei o conselho daquele homem, “um branco em África, só deve possuir coisas com
asas, com rodas ou com pegas”.
Mais tarde, em conversa com o Zé do Galo Verde, soube que ele já tinha seguido para a África do Sul,
ao encontro de uma ex-namorada australiana, que o esperava para o acolher na cidade do Cabo.
Toda a sua narrativa era verdadeira, tinha de facto sido muito rico à custa do seu trabalho, mas a
"maldição africana", tinha-lhe tirado o que com o seu trabalho tinha amealhado.
FA
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Velhos Contos
Força Aérea Portuguesa
O sargento-ajudante Escudeiro
Um bonito "cavalo de pau"
Embora nunca se recusasse, o Alegria não era um particular entusiasta a deixar o sossego da unidade
para ir aqui ou ali desde que alguém pudesse resolver a situação por ele. Isso para mim não tinha
nenhum problema. Pular num avião para ir resolver uma pane no norte ou no outro extremo do território, era o que eu fazia com mais agrado: Ia passear, ver novas coisas, ao fim e ao cabo ia desanuviar. Desta vez, porém, não foi esse o caso; o Alouette tinha atingido as horas da revisão: Em vez de
gastar oito horas na deslocação dum aparelho a Vila Cabral, alguém achou mais conveniente prescindir do helicóptero por um dia, e fazer a inspecção no local do destacamento.
Preparei todo material de maneira que nada faltasse para a revisão, para melhor segurança chamei
o Alegria para me dar uma ajuda a conferir o equipamento.
- Parece que está tudo - disse ele, a dar uma última vista de olhos.
O piloto era o Escudeiro. Já nos conhecíamos. Tínhamos lidado de perto em Luanda, onde ele era
segundo piloto de Nordatlas. Um pouco mais novo do que eu, talvez dois ou três anos, em Moçambique era já sargento-ajudante. Como a maioria dos pilotos, ligava tanto às insígnias que trazia nos
ombros como à camisola que trazia vestida. Como também a maioria dos pilotos daquela idade, se
alguma vez tivera a presunção de ser um "ente superior" - o que era muito duvidoso no Escudeiro também isso lhe tinha passado. Já o conhecera assim em Angola, cinco ou seis anos antes: Calmo,
ponderado, o tipo perfeito do piloto tranquilo.
O percurso de helicóptero, por Nova Freixo, também era um estirão. Mas era melhor: Íamos praticamente todo o caminho pela linha férrea, com excepção de uns vinte minutos antes de chegar a Vila
Cabral não havia turras por baixo. Desta vez, no entanto, de DO, não seria bem assim. Era uma hora
para Oeste, até Nampula, outra para Norte, até Marrupa, depois mais para Norte, quase até à fronteira da Tanzânia, tínhamos ainda pela frente mais uma hora bem puxada até Mecula. Vila Cabral
ficava outra vez para Oeste. Até lá chegar, eram mais duas horas de serras sem um destaque no horizonte, sem um indício de povoação, nem uma coluna de fumo na distância. Para mim era tudo igual.
Tanto podia estar 50 quilómetros sobre o país inimigo a Norte, como 20 a Sul por cima dum vespeiro
de turras. Não obstante uma ou duas situações passadas que poderiam ter abalado a minha confiança nos conhecimentos de navegação de alguns pilotos, eu não tinha dúvidas que qualquer deles sabia
mais daquilo a dormir do que eu acordado.
O Escudeiro não era dos que me fariam vacilar. Mesmo que não o conhecesse, só "pelo andar da carruagem" não tinha nenhuma razão para desconfiar. Isso nota-se bem: Basta o piloto começar a olhar
com insistência para baixo, a perscrutar à esquerda e à direita, para qualquer tripulante um pouco
experiente saber que ele está a "apanhar bonés", à procura de qualquer coisa para se orientar. Mas
não era o caso. Até às imediações do Lago Niassa, bastava-me acreditar que o motor se "comportava
bem", que nenhum tubo rebentava, nem nenhum fio se soltava com a vibração.
Aterrar em Vila Cabral não representava qualquer dificuldade. A pista era pavimentada, tinha as
dimensões suficientes, para o pequeno DO até um terço chegava. Se calhar foi até por isso que o Escu57
Velhos Contos
deiro pôs o avião no chão sem qualquer preocupação, como se aterrar não passasse apenas do final
da viagem.
Não foi uma coisa bonita de se ver. Já no fim da aterragem, o avião guinou bruscamente para a esquerda, com uma asa em baixo a outra em cima, ficou virado ao contrário na pista. para onde acabava de aterrar.
Eu devia estar branco como cal, sem gota de sangue. O Escudeiro nem por isso. Pelo menos não aparentava. Mas estava "pior que estragado". Rolou até à berma da pista, puxou o travão de estacionamento. Recostou-se na cadeira, passou os braços por trás da cabeça, fechou os olhos, pareceu meditar.
- Foi um bonito "cavalo de pau"... - articulei eu, por fim, a querer desanuviar.
O Escudeiro estava furioso. Desabafou:
- Odeio que isto me aconteça - disse ele. Abriu a janela para cima da cabina, afrouxou os travões.
- Acontece aos melhores - reflecti em voz alta. - Quem anda à chuva, molha-se...
Mal sabia eu que uns meses depois as coisas não lhe sairiam tão bem...
Aniceto Carvalho
Segunda Página
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O sargento-ajudante Escudeiro
A última viagem
O Aeródromo de Mueda, bem no centro do planalto Maconde, em Cabo Delgado, em Moçambique, não
era lugar que se cheirasse. De vez em quando era bambardeado. Alguém tinha de lá estar, no entanto... e eu, que não era filho de nenhum barão, volta e meia lá me calhava também uma vista de olhos
pela paisagem.
Desta vez tinha lá ido preparar um Alouette III - atingido num ataque de morteiro ao aeródromo - de
modo a poder ser transportado num Nord para as Oficinas Gerais de Material Aeronáutico em Lourenço Marques.
O helicóptero só podia voltar a voar depois de uma boa reparação, mas o Auster, também atingido,
com uns remendos de tela e uma boa vistoria feitos no local ficava como novo.
O Auster não me dizia respeito. A supervisão do trabalho seria do tenente Quirino, que seguira comigo para Mueda, com o material necessário; a reparação seria feita pelo Quintela, um cabo mecânico
já com razoável experiência, diligente e de reconhecida capacidade.
(Seria promovido a furriel nesse mesmo dia).
Eu conhecia o Escudeiro desde 1963, de Angola, como 2º. sargento e co-piloto de Nordatlas. Entretanto, cinco anos depois, como sargento-ajudante, estava a voar em monomotores de hélice no Aeródromo Base 5. Tempos antes, num voo de Nacala para Vila Cabral, tínhamos os dois apanhado um arrepio com o DO-27 atravessado na pista, na aterragem.
(Chamam àquilo "cavalo de pau").
Tinha sido apenas um calorzinho... nada que não acontecesse uma vez por outra.
Terminada a reparação do Auster, no voo de experiência, no entanto, as coisas não acabaram assim
tão bem para o Escudeiro e para o Quintela.
58
Velhos Contos
Carregado o helicóptero, todo o espaço disponível na cauda do Nord era para arrumar as urnas. Eu
também ia no avião. Mas o único espaço livre era junto destas, isolado de tudo, com uns decímetros
quadrados para pôr os pés. Cadeira ou banco para me sentar, nem pouco mais ou menos. Tive de
pensar depressa: Ou viajava com os caixões e ia dormir a casa, ou ficava mais uns dias em Mueda. Só
o pensei uma vez.
Fui dormir a casa... Mas a viagem não foi uma experiência lá muito interessante.
Aniceto Carvalho
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Aviação Portuguesa
Com uma veia artística (1968)
Eu tinha uma veia artística. Só que eu não sabia. Acho que era mais empresário do espectáculo. Tinha-me ficado desde que eu era pequeno, quando o meu pai atirava dois foguetes ao ar, contratava
um tocador nas redondezas, e punha toda a gente lá da terra a esfregar toucinho uma noite inteira
num salão lá de casa.
Mas isso tinha sido quase há trinta anos.
Agora, em 1968, eu reparava helicópteros. Estava na guerra, em Moçambique, em Nacala… se alguém vinha ter comigo nunca era para me dar nada.
Não estranhei quando capitão Brito atravessou o hangar na minha direcção.
Éramos velhos conhecidos. Tínhamos pertencido à Esquadra 94, em Angola, agora, o capitão Brito era
o comandante dos helicópteros no Aeródromo Base 5. Tínhamos iniciado a comissão quase ao mesmo
tempo. Conhecíamo-nos há anos.
Aproximou-se mais do sítio onde eu estava, apresentou-me um indivíduo simplório, com cerca de
cinquenta anos, que parecia mais baixo do que era por ser gordo, com a barriga a bambolear entre
as abas do casaco.
- Este senhor é artista de variedades... - começou o oficial. - Detectou incertezas na minha cara,
apressou-se a esclarecer: - Vai dar um espectáculo para toda a unidade, o mínimo que podemos fazer, é proporcionar-lhe as melhores condições.
Explicou que "tínhamos" de lhe fazer um palco. Pareceu-me razoável... não achei de jeito nenhum
fazer o homem actuar empoleirado em cima duma bancada.
- Mas eu, meu capitão?!... – saltei de surpresa. - Eu nunca na vida vi um palco, nem em fotografia…
não faço a menor ideia como se faz uma coisa dessas.
- Não tem importância - serenou o capitão. - Este senhor sabe como essas coisas se fazem. O Aniceto
vai só arranjar os materiais e seguir as suas instruções.
Pronto, o capitão é que sabia. Ele é que tinha estudado...
59
Velhos Contos
Mas se sabia das minhas habilidades para de bocados de sucata fazer jipes que até andavam e tudo,
nem lhe devia passar pela cabeça que outra das minhas aptidões era montar palcos, desde que o meu
pai cedera uma vez um telheiro para uma actuação de robertos quando eu era pequeno.
Nem a ele, nem a mim próprio, nem a ninguém.
A apresentação do homem era confrangedora: Eu estava a perder o meu rico tempo. Começou a azáfama na busca de materiais pela unidade. Uma lástima: Os pertences de homem pareciam resumir-se
a um saco de plástico, roto, que, a cada passo, ou perdia o aparelho de barbear, o pincel, logo a
seguir tudo duma só vez.
"Se isto é um artista, vou ali e já venho", pensei.
O problema não era fazer um palco... isso era o menos. Para quê e para quem é que eu não conseguia atinar. O homem, todavia, era afável, de trato impecável.
A obra lá ia andando. A certa altura mandou fazer dois degraus contíguos em frente do palco… saltou lá do alto com os mais de 90 quilos em cima e explicou:
- Estes degraus têm de ficar bem firmes.... - Repetiu o salto e concluiu: - Eu vou-lhe saltar em cima,
assim, mais de cem vezes durante o espectáculo.
Eu pensei: "Se este monte de banhas subir e descer aquelas escadas meia dúzia de vezes, eu vou
candidatar-me a astronauta".
Acompanhou a obra, ensinou, dois dias depois tinha um palco como queria.
Já agora, eu queria ver o que ia sair dali.
No dia do espectáculo, como coisas daquelas eram um achado em Nacala, metade do hangar estava
ocupado. Fiquei banzado quando ele apareceu: Não era o mesmo, a mudança era total. A barriga
tinha desaparecido, a fatiota tinha sido substituída por um fraque, todo ele brilhava de elegância dos
pés à cabeça.
Bom, o homem não deu um espectáculo... ele era um espectáculo.
Com um décimo das vezes, se lá chegasse, eu teria estoirado... ele levou duas horas a subir e a descer
continuamente do palco sem descansar.
Era o Orlando Dantés, ao que sei, um dos melhores artistas portugueses em ilusionismo e hipnotismo.
Infelizmente, parece, com muito menos sorte na vida.
۩
Depois disto, durante 1968, fazer palcos em Nacala, era comigo. Os cabíssimos que me acompanhavam é que começaram a mostrar pouca compreensão pelas minhas capacidades: Às vezes refilavam
um pouco, mas nunca passou disso.
۩
O mágico que se seguiu era um nojo. Nem uma amostra do Orlando Dantés.
Chamou um voluntário ao palco, fixou-o, fez-lhe uns passes de hipnotismo durante um ror de tempo… julgou o militar hipnotizado, deu-lhe um pequeno empurrão no peito... O soldado atirou o pé
para trás automaticamente.
60
Velhos Contos
Foi uma gargalhada geral. O moço estava hipnotizado... mas pouco.
۩
A seguir veio uma revista com o Carlos Coelho, a Helena Tavares e o Octávio de Matos, na altura um
moço da idade da maioria dos mais jovens militares.
۩
O ano acabou com uma brilhante festa de Natal interpretada por "artistas" do Aeródromo Base 5 e
do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas 32.
Mesmo com barbas mal disfarçadas e cabelos nas pernas como agulhas por baixo dos vestidos, nem
por isso deixou de ser um espectáculo muito melhor do que muitos que hoje aparecem por aí nas
televisões.
Aniceto Ferreira de Carvalho
AVIAÇÃO PORTUGUESA
Aterragem forçada de Alouette III no Fundão, 1969
Claro que muitos mecânicos voaram muito mais que eu: Os dos Transportes Aéreos Militares, os que
andavam nos plurimotores bombardeiros e de carga... Mas, em monomotores, particularmente em
helicóptero, tenho sérias dúvidas se terão chegado a meia dúzia, ou mesmo alguém, a fazer tantas ou
mais horas de voo do que eu.
Também não foram muitos os acidentes nas minhas esquadras; ainda assim, além dalguns sustos,
nunca me aconteceu nada de grave. Vale mais ter sorte que boa aparência.
Tinham pernoitado na estação de radar, no cume da Serra da Estrela. Embora a carga de neve pouco
tivesse a ver com isso, de manhã foi um bocado complicado pôr o motor helicóptero a trabalhar.
O piloto era novato, com pouca experiência, a fazer horas. O mecânico não; já tinha estado em Angola e em Moçambique... pelo menos tinha obrigação de não se deixar sugestionar. Descolaram a "rapar" o planalto para o lado do Fundão. Num segundo, como quem salta da varanda dum arranhacéus para o espaço, a nesga de terreno desapareceu por baixo do helicóptero, da redoma de vidro
suspensa no ar surgiu um fosso de 2000 metros de vazio, de escarpas e casas minúsculas nas profundezas. Sem base de apoio, o zumbido metálico do Artouste propagou-se na imensidão, deixou de
ecoar na cabina.
Nem se lembraram de olhar os instrumentos: "O motor do helicóptero tinha parado!...".
Embora com alguns estragos, acabaram por aterrar num campo de futebol no sopé da serra.
Deixemos as razões da aterragem, esqueçamos a peritagem posterior.
Não obstante a tarimba que devia ter, contrariando todas as recomendações, ainda com as pás em
movimento o mecânico foi o primeiro a fugir do helicóptero: Levou com uma nas costas, foi parar a
dez metros. Teve sorte. Esteve só uns dias no hospital em observações. A pá já estava a rodar devagar, não o tinha apanhado pela cabeça.
Aniceto Carvalho
61
Velhos Contos
Página Principal
Voar com o Prazeres
(Para quem o conheceu ou conhece).
Voar com o Prazeres era engraçado... era sempre uma aventura mesmo que não houvesse aventura
nenhuma. Um simples e corriqueiro voo de Tripacer de Tete para o Songo era um festival.
۩
Terminada na Beira a montagem dos cinco helicópteros recebidos dos Estados Unidos, eu tinha acabado de chegar a Tete com o último 47.
Fui à casa de banho, quando regressei tinha um JetRanger à porta do hangar a trabalhar pronto para
sair, o Prazeres à minha espera.
- Vamos para a Chicoa... o Aniceto vem comigo - disse ele.
Fim de tarde… a noite a cair no horizonte. Eu nunca tinha estado na Chicoa, sabia apenas que era
mais de uma hora de voo.
Pensei: “Onde é que este maduro irá a esta hora?”
O Prazeres tinha feito uns voos no Texas, tinha trazido os três helicópteros da Beira, com meia dúzia
de horas era o maior em JetRanger.
Voar ao encontro de condições meteorológicas desconhecidas a uma hora de voo, ao cair da noite,
com um piloto e um mecânico sem experiência operacional no aparelho, que mais era preciso para um
possível arrepio?
Logo se veria.
À passagem pelo Songo, ainda com umas réstias de claridade por cima dos montes à distância, era
noite. Logo a seguir, ultrapassadas as instalações da ZANCO, as primeiras gotas de água a bater nos
vidros... pelo fogo de artifício mais à frente adivinhava-se festa rija. E lá estava o arraial: Ventos
cruzados, ascendentes, descendentes, nuvens negras, bátegas de chuva, relâmpagos por todo o lado a
rasgar a borrasca, a iluminar as fragas.
Nada de pânico, nem medo. Apenas atenção e olhos bem abertos. A habitual descontracção do Prazeres era agora concentração e mão firme.
Um bocadinho puxado. Noite escura, uma tempestade, um helicóptero ligeiro limitado de instrumentos de voo e a condições atmosféricas adversas... por baixo, montes e vales, escarpas a pique, a garganta da futura barragem escancarada, lá no fundo o Zambeze em turbilhão.
Servo-comandos, claro. Sem esse precioso auxiliar dos comandos de voo, foi por uma unha negra que,
por muito menos, não fiquei no Mar da Palha uns onze ou doze anos antes num dos primeiros
Alouette II.
62
Velhos Contos
A voar com o Prazeres fiquei vacinado. Percebi desde essa altura que nada faria cair um helicóptero
ou avião nas suas mãos.
Mas ainda não tinha acabado.
Chegámos à Chicoa, aterrámos no meio do aquartelamento militar ali estacionado, com umas luzes
amarelas fraquinhas a iluminar.
O Prazeres conhecia bem aquilo.
Fiz o que tinha fazer, pouco depois encontrei-me com o Prazeres.
- Partimos o fio de telefone do acampamento... aterrámos-lhe com os patins mesmo em cima - disse
ele com a maior tranquilidade.
Não liguei nenhuma.
Nem sequer me passou pela cabeça na altura que se tivéssemos pousado uns metros mais à frente
certamente teríamos ficado por ali a apanhar bonés com o fio do telefone enrolado no rotor de cauda.
É assim... Alguns malham logo à primeira.
Aniceto Carvalho
De Tete ao Fingué
Edificado no cimo de uma pequena colina debruçada sobre o Zambeze, o Aeroclube de Tete era um dos
poucos locais aprazíveis na cidade. Em geral, era lá que nós íamos apanhar um bocado de fresco e
dar à língua, dar um mergulho na piscina, por vezes até dar ao pé quando havia baile. No fim de
contas, aquele espaço de lazer era mais dos nossos serviços que da cidade: Tinha sido construído pelo
Gabinete do Plano do Zambeze, a pista e o hangar eram os nossos, eram dos nossos Serviços de Aviação os pilotos instrutores e os mecânicos que faziam a manutenção dos aviões.
Por isso é que nós éramos todos sócios sem pagar um tostão de quota.
Não era de admirar ver o chefe dos serviços galgar a meia dúzia de degraus em duas passadas; ele
andava sempre apressado. A não ser que fosse fazer alguma recomendação para o dia seguinte, que
poderia ele querer do pessoal dos aviões às dez horas da noite? “Negócios do Prazeres”, pensei eu,
sem me dar ao incómodo de conjecturar mais sobre assunto. Uma emergência?...
Fui pôr a mulher e o filho em casa, dez minutos depois estava no hangar.
63
Velhos Contos
Com um avião ou um helicóptero nas mãos, se lhe pediam uma missão impossível, o Prazeres talvez
pensasse duas vezes; porém, ir buscar um doente grave, a duas horas de voo a montante de Tete às
dez horas da noite, podia ser de gente doida, mas não era impossível. O Oliveira Marques, era um
piloto tranquilo; “tratava” um avião como o meu avô punha uma enxada ao ombro. Perscrutou a
noite, como se estivesse à procura do Cruzeiro do Sul: Acrescentou que com uma noite mais escura era
um bocado difícil... Mas assim, com aquele luar... Enfim, fazia-se.
A minha função era pôr o Piper Navajo em condições para o voo; não me competia dar palpites sobre
coisas que não me diziam respeito. Embora a minha presença a bordo fosse tão necessária como um
saco de batatas, acabei também por me deixar contagiar com a aventura. Que diabo, se eu já tinha
atravessado de helicóptero com o Prazeres a garganta de Cabora Bassa, ao anoitecer, no meio duma
borrasca dos diabos, porque não havia também de participar naquilo?...
Deixem-me no entanto adiantar: Voar de noite, em África, num avião ligeiro, não tem nada a ver com
uma viagem, de dia, de Lisboa a Coimbra, por exemplo. Na época, pelo menos nos nossos serviços, as
nossas aeronaves eram limitados em equipamento: Com “ajudas rádio” que não ultrapassavam o
indispensável, não era muito fácil fazer navegação sem referências do solo. Para mais, enquanto em
Portugal, de noite, dificilmente se voam mais de cinco minutos sem avistar uma povoação iluminada,
em África as coisas são diferentes: Após o anoitecer, seja qual for o rumo ou a região, raramente se
voa menos de uma hora até avistar o tremular duma luz no meio da escuridão.
Seguimos o reflexo da Lua no Zambeze, quase uma hora depois passámos por cima do planalto do
Songo. No princípio de 1972, a Hidroeléctrica de Cabora Bassa ainda estava muito longe de fornecer
os primeiros watts de energia; contudo, nem o bairro dos Serviços de Fiscalização do Gabinete, nem o
do consórcio responsável pela obra tinham dificuldades de iluminação: Era uma pequena cidade; com
bom tempo não era difícil descobri-la a um quarto de hora de distância. A partir dali o Zambeze voltava a espraiar. Serpenteava para montante até ao Fingué, desaparecia pouco depois na fronteira da
Zâmbia. Nós não íamos até lá: O destino era o Zumbo, mais de outra meia hora de voo; um dos mais
distantes acampamentos do Gabinete, à beira do rio, em território moçambicano,
Não era preciso seguir o leito do rio: Para quem conhecia o percurso, bastava nunca perder de vista o
espelho do luar no curso de água. A melindrosa parte final estava bem acautelada: Qualquer dos dois
pilotos conhecia a pista a palmos; desde que a sinalização permitisse uma visibilidade razoável, não
eram de prever contratempos na chegada. Com as luzes de três Land Rover dispostas ao longo da
faixa de aterragem, uns candeeiros e o farol do avião, tudo correu sem sobressaltos.
Duas horas depois o nosso “passageiro” dava entrada no hospital de Tete.
Ah, é verdade... Só um pequeno pormenor: Era uma parturiente quase no estertor da morte. Mas não
era funcionária do Gabinete do Plano do Zambeze. Nessa altura, os acampamentos a montante de
Cabora Bassa já não eram os locais mais seguros para forasteiras. Não era branca, não era a mulher
do chefe, nem do soba lá do sítio... Era “simplesmente uma mulherzinha vulgar”, apenas uma mulher
duma aldeia indígena próxima; que, pelas mesmas razões que qualquer outra em Lisboa ou Londres,
estava prestes a dar a alma ao Criador se não fosse socorrida a tempo.
Se é que fazem mesmo alguma coisa, segundo parece ninguém sabe ao certo o que fazem todas essas
associações disto e daquilo que por aí abundam; no entanto, enquanto em Portugal ainda hoje se
morre por falta de assistência, os colonialistas, “às vezes”, tinham coisas destas.
Isto é a realidade da vida, é acção, é fazer, de facto, alguma coisa de palpável por alguém; não tem
rigorosamente nada a ver com conversa balofa de gente bem nutrida do jet set em frente das câmaras
de televisão, nem com lágrimas de crocodilo ao telefone em gabinetes climatizados.
Aniceto Ferreira de Carvalho
64
Velhos Contos
Acidente do Jetranger: Tete, 1972
>
Embora com a mesma categoria e performance, lançado nos finais dos anos 60, tanto na operacionalidade como na simplicidade de manutenção, o Jetranger, não se comparava ao Alouette II. Suscitava,
contudo, um senão: As chumaceiras do veio ao rotor de cauda eram de um novo material autolubrificado.
Para quem vinha do Alouette - mecânicos e pilotos - aquelas chumaceiras do veio ao rotor de cauda
sem lubrificação, eram uma dor decabeça.
Claro que tudo aquilo é estudado ao pormenor e ensaiado; só sai da fábrica depois de devidamente
aprovado pelas autoridades técnicas competentes. Mas isso é o que se aprende nas aulas... a outra,
bem diferente, é atravessar a garganta de Cabora Bassa com a espuma do Zambeze lá em baixo, a
dezenas de metros.
A melhor maneira de ultrapassar o medo é localizar a sua causa; em aviação é conhecer bem a máquina. Se uma luz a piscar altera os nervos de alguns pilotos, para outros, mesmo a brilhar no máximo, é preciso apontar-lha. Em qualquer dos casos, se o mecânico ao lado conhece bem o aparelho,
não há problema... caso contrário, é bem possível que acabem os dois num monte de chapas e ferros
retorcidos.
O piloto pertencia ao primeiro tipo: Dos que regressam à pista de origem com o ponteiro de um manómetro a oscilar a poucos minutos do destino, mesmo que mais nada a bordo indique qualquer
anomalia.
Eu já tinha voado com ele centenas de vezes, inclusive, há cerca de nove anos, em Angola. Nessa
altura, já com sete de Alouette eu conhecia o helicóptero como poucos, mas agora, depois de mais uns
anos de prática e dois de dedicação ao Jetranger, se eu dizia "vamos embora", ninguém levantava a
mínima dúvida.
O mecânico pode não fazer nada a bordo, mas o grau de confiança que inspira ao piloto pode ser
crucial numa anomalia a bordo pouco definida.
Barulhos a bordo do helicóptero é uma coisa corriqueira. Podem vir de todo o lado: Duma brusca
rajada de vento, dum fecho mal ajustado, duma ave desnorteada pelo zumbir da turbina e pela rotação do rotor contra a blindagem. O ruído tanto pode ser uma pancada seca sem localização precisa,
como um batimento repetido na fuselagem ou no rotor principal, como uma aparente alteração no
som do motor ao descolar dum planalto para cima dum vale com 2000 metros de profundidade.
Foi um baque na parte de trás do helicóptero... Um "estoiro" - explicaram eles depois.
O piloto sofria do "síndroma dos apoios do veio ao rotor de cauda"; o mecânico, pior: Estava muito
longe de se sentir confortável a voar num JetRanger.
- Partiu o veio do rotor de cauda!... - gritou o mecânico espavorido.
O piloto devia saber que "o veio de transmissão ao rotor de cauda nunca parte"... mas que, mesmo
que suceda tal - o que nunca aconteceu - em velocidade de translação, o estabilizador vertical atenua
a tendência do helicóptero de rodar sobre si mesmo; e que, no pior dos casos, ainda que essa remota
eventualidade tivesse acontecido, devia também saber que o helicóptero teria guinado instantaneamente de lado, muito antes do mecânico reagir e ter tido tempo para dizer a primeira palavra. Podia
ter esperado pela reacção do aparelho: Verificar se a estabilidade se mantinha, se o rotor de cauda
obdecia ao comando dos pedais... só então tomar as devidas providências para aterrar conforme a
avaria e a altitude.
(Assisti a uma avaria muito mais grave, de um Bell 47, a rodopiar à descolagem... e no entanto,
bastou ao piloto pôr o colectivo em baixo para o helicóptero aterrar imediatamente sem nenhum
problema).
65
Velhos Contos
Mas nem pensou duas vezes: Ao grito do mecânico atirou com o helicóptero para o chão como uma
pedra.
Foi um verdadeiro milagre: Dos cinco a bordo ninguém se aleijou.
O helicóptero ficou totalmente destruído... não ficou uma peça inteira. No entanto, a caixa de transmissão principal, o mastro e o cubo do rotor principal estavam lá: Tão solidamente agarrados aos
restos fumegantes da estrutura, como se fossem uma só peça.
Mas isto somos nós a falar, aqui, à frente do computador: No ar, a 200 quilómetros por hora, a meia
dúzia de metros da copa das árvores, as coisas não são assim tão simples.
Aniceto Carvalho
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Estava escrito
No meu modesto saber, de quem conheceu este aparelho como as próprias mãos, por certo o melhor
helicóptero do mundo na categoria.
O Silvestre atravessava o Zambeze, na zona do Nhauluiro.
Cinco pessoas a bordo, máxima velocidade de cruzeiro, a rapar a copa das árvores, um pouco mais
dos 200 quilómetros por hora.
Parece ouvir-se um tiro, o piloto sente que fica sem colectivo. Não sabe que tem uma bala encravada
entre o manga do colectivo e o mastro do rotor principal… depressa se apercebe, no entanto, que
está sem poder controlar a velocidade.
À velocidade que vem, assim tem de continuar… Ninguém pode mexer um dedo.
A uma hora de voo de "casa", o Silvestre resolve que em vez de forçar as coisas e arriscar ficar em
cacos pelo caminho, o melhor é tentar chegar a Tete... e depois, logo se verá...
Tudo a postos em Tete. Conferenciam os técnicos, decide-se:
"Vens rio abaixo, entras na pista a rapar, cortas o motor, o helicóptero cairá sem sustentação".
Elementar, como se vê... aqui sentado à frente do computador.
A 200 quilómetros por hora e sem um dos principais comandos de voo, no entanto, a coisa fica bem
mais complicada. Mas o Silvestre é que sabe. Ele é que tem os comandos nas mãos:
Encolhe-se na primeira tentativa... e na segunda... e na terceira...
O Silvestre não pode manobrar o helicóptero… no máximo, e sempre em velocidade, resta-lhe subir a
evitar os obstáculos mais altos, recomeçar tudo numa volta larga e nova tentativa.
E aí vem ele: Aponta á pista a meio do rio, passa por nós a meia dúzia de palmos do chão a arrastar
um remoinho de terra e detritos.
Ninguém acredita em milagres… Nem ninguém quer tão pouco pensar no que fatalmente vai acontecer no segundo seguinte.
É agora!!! De repente qualquer coisa se passa depois do meio da pista: O aparelho empina-se num
quick stop, aterra à porta do hangar.
Saltámos para os carros. Afinal há milagres!!!
O mecânico, o Fialho, no lugar de trás, perde as estribeiras... Sujeito a abreviar o inevitável, deita as
duas mãos à alavanca do passo colectivo… dá-lhe dois safanões, solta a manga do mastro, o Silvestre aterra a seguir como se acabasse de chegar de um voo de recreio.
Que se saiba, nunca tinha acontecido… Ninguém fazia a menor ideia de como pôr um helicóptero a
salvo no chão naquelas condições.
39 anos depois não me consta que tal tenha acontecido nalgum lado.
Mas se aconteceu, é muito duvidoso que tenha sobrado alguém para contar como foi:
Animado da inércia da velocidade, (cerca de 2000 quilos a 200 quilómetros/hora), com as pás do
rotor principal no máximo de passo de cruzeiro, o helicóptero perde muito mais depressa sustentação
66
Velhos Contos
do que velocidade… meia dúzia de voltas depois do motor parado, o aparelho bate com os patins no
chão a mais de 100 quilómetros hora, totalmente desgovernado, sem que o piloto tenha qualquer
hipótese de fazer seja o que for. O resto pode adivinhar-se.
Nunca mais se falou disso. Passou, está passado... Mas foi por uma unha negra não vimos acontecer
o inferno mesmo à frente dos olhos.
Aniceto Carvalho
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Estava escrito
Era pela segunda das razões que eu, o Silvestre, todos os pilotos e mecânicos do Gabinete do Plano
do Zambeze, tínhamos resolvido sair da Força Aérea.
O Silvestre já tinha passado por duas situações complicadas:
Tinha aterrado de emergência no Nhauluiro, com uma avaria no regulador; com mais quatro a bordo,
passara a milímetros dum acidente terrível, depois de ficar com os comandos de voo do helicóptero
bloqueados por um tiro, ao atravessar o Zambeze quase no mesmo local.
A sorte, no entanto, não dura sempre.
O centro estratégico dos serviços, a montante de Tete, era no planalto do Songo, a dois passos da
barragem de Cabora Bassa. Nós tínhamos lá um helicóptero quase permanentemente: Para prestar
assistência aos acampamentos na zona da futura albufeira, para transportar pessoal, materiais e
mantimentos.
Daquela vez calhara-me a mim e ao Silvestre. Não só porque as coisas estavam a ficar feias com os
turras a atirar aos nossos aviões, mas porque estava de malas aviadas para a transportadora aérea
do território, eu estava a fazer uma das últimas missões - senão a última - ao serviço do Gabinete do
Plano do Zambeze.
Logo no dia da chegada ao planalto, depois de um ou dois voos corriqueiros na zona da albufeira, no
fim do serviço, ao anoitecer - lembro-me como se fosse hoje - disse para o piloto:
- A partir de hoje, desde que a minha presença a bordo seja dispensável, não voo mais.
Sem que o soubesse no momento, pouco depois recebemos ordem de seguir para o Daque às cinco
horas da manhã. Não era nada fora do normal. Depois de cerca de meia hora até ao destino, como de
costume, eram dois ou três voos de rotina: Transportar algum engenheiro a inspeccionar os trabalhos, levar um ou outro equipamento de ou para outro acampamento, embora pouco provável, às
vezes, até passar o dia sem fazer nada. De qualquer modo, pelo menos a viagem eu tinha de a fazer:
Nos voos locais eu podia ficar em terra, o helicóptero voltava a aterrar no mesmo sítio, mas nas deslocações para fora alguém tinha de lhe prestar assistência técnica... E o mecânico que lá estava era
eu.
Das coisas boas dos nossos serviços, as refeições nos acampamentos eram um prodígio. Não pela
abundância; mas pela variedade e engenho do pessoal. Fosse qual fosse o acampamento, os petiscos
mais imaginativos deixavam sempre o visitante de olhos arregalados.
Nessa manhã, no Daque, não foi diferente. Levantámo-nos da mesa satisfeitos, cada um foi a sua
vida.
O helicóptero não precisava de cuidados especiais: Estava abastecido desde o Songo, para mais de
duas horas de voo; a inspecção já eu lha tinha feito, logo ao aterrar, ainda antes de tomar o pequeno
almoço.
Quando o Silvestre e os três passageiros chegaram era só por o motor a trabalhar. Isso já não era
comigo. Assistir aos preparativos da descolagem é que me dizia respeito.
- Então, o Aniceto não vem connosco? - ouvi o Capitão Riquito perguntar.
Acenei que não. Lembrando-se da nossa conversa do dia anterior, o Silvestre completou:
- Não, o Aniceto não se mete nestas vidas.
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Velhos Contos
Dez minutos depois o Silvestre estava morto: Perante o olhar atónito dos outros três, uma nuvem de
sangue explodira na cabina, o piloto tombara para cima do manche. Uma rajada tinha-lhe arrancado
a jugular.
Embora ninguém acreditasse na altura, menos de um ano depois encontrei o capitão Riquito em Lourenço Marques. Coxeava um bocado, agarrado a uma bengala... "Estava quase bom", respondeu ele,
bem disposto.
Perguntei-lhe pelo engenheiro da CODAM, também sinistrado no mesmo acidente.
- Ah, esse... Está de perfeita saúde... Ainda está melhor do que eu.
Fiquei pasmado. Eu vira-o quase às tiras. Do outro passageiro, o alferes comandante do destacamento no Daque, não precisava de lhe perguntar: Eu tinha-o visto morrer pouco depois do acidente.
Aniceto Carvalho
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Aviação Portuguesa
Ver para crer
O edifício que nós habitávamos na Beira, desde Dezembro de 1972, era conhecido na cidade, talvez
em todo o Moçambique, pelo nome do proprietário, um oficial da Força Aérea. Com nove andares, de
cinco apartamentos cada, estabelecimentos comerciais no piso inferior, e no último as arrecadações, o
equipamento e os alojamento dos empregados, construído com esmero e bem localizado, era seguramente um dos edifícios mais bonitos e funcionais da costa Oriental da África.
Com a frente para a Sarmento Rodrigues, uma larga avenida de duas vias separadas por um canal de
saneamento básico, de vez em quando regado pela praia mar, ficava no gaveto do cruzamento com
uma comprida e arborizada rua, que da zona ia dar quase ao centro da cidade.
Nós morávamos no último andar, no apartamento do centro. Dali via-se tudo: Da Praça da Índia até à
Manga, para a frente; para trás, da Ponta Gea à baixa da cidade.
Com alguma razão chamavam à zona do Matacuane a cidade universitária: No gaveto oposto ao
“nosso” prédio ficava a escola primária; por trás desta, aí a quinhentos metros, a escola técnica, e
ainda por trás desta, mas mais para a esquerda, a dois passos da avenida, o instituto industrial.
Talvez uns cem metros da esquina posterior esquerda do prédio, na rua para a baixa, ficava o Liceu
Pero de Anaia, e em frente deste, aí a outros quinhentos metros, depois das habitações e um descampado, na Avenida Príncipe da Beira, que também cruzava com a Avenida Sarmento Rodrigues, ficava
o ciclo preparatório Baltazar Rebelo de Sousa. Com excepção da escola primária e do instituto industrial, do género similar ao pré-fabricado, muito em uso em Portugal depois do 25 de Abril, os outros,
eram três edifícios imponentes, de dois pisos; como todas as escolas secundárias construídas na época, modernos e bem equipados.
Do ciclo preparatório ao instituto industrial, seguindo primeiro a Avenida Príncipe da Beira até ao
cruzamento, depois a Avenida Sarnento Rodrigues, seria um quilómetro, talvez mais.
Devido ao rápido anoitecer no Hemisfério Sul, pelos finais do ano lectivo as aulas do segundo período
diário acabavam já com as luzes acesas. Na época não havia delinquência nem droga; a irreverência
daquela juventude não justificava quaisquer medidas especiais, a presença de autoridades não tinha
ali nenhum cabimento. Era uma algazarra; um espectáculo de movimento, um mar de gente, do ciclo
ao liceu, deste ao instituto. A fila de autocarros – grátis, convém dizer - seguia o mesmo percurso:
Começava à porta do ciclo preparatório, na Príncipe da Beira, passava à nossa porta até ao instituto,
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Velhos Contos
dava a volta, descia pela faixa contrária da Avenida Sarmento Rodrigues. Eram dezenas. Os utentes
eram alunos dos arredores, da Manga, e de mais longe; os da cidade não precisavam.
Tal como para destruir não é preciso muito tempo, também não são precisas muitas palavras para
descrever o que aconteceu depois: No ano lectivo seguinte, de 1975/1976, os autocarros eram apenas
uma recordação do passado recente: Os pais dos alunos de fora da cidade, não tiveram grande escolha; deixaram de mandar os filhos à escola. O movimento do Matacuane tinha morrido.
Nós também tivemos de abandonar o prédio. Começou a ser cansativo subir os nove andares pela
escada, as faltas de água eram constantes. Mas isso ainda era o menos: O fumo que saía da queima
dos tacos do chão nos pisos inferiores é que nos causava as maiores dores de cabeça.
Tempos depois, passámos por lá perto. Parámos para meter gasolina numa bomba da zona que não
sabíamos estar já abandonada. Como ninguém aparecia, saímos do carro, fomos indagar. Fugimos
dali espavoridos, com os cabelos em pé, quase a vomitar a entranhas: Era uma retrete ao ar livre.
Uma noite para esquecer
O episódio que se segue foi vivido pela minha mulher palavra por palavra. Eu limitei-me a pô-lo no
papel, a emprestar-lhe a minha assinatura. Para quem viveu na cidade da Beira, o prédio em questão
é fácil de identificar; os nomes das pessoas foram alterados, são da minha responsabilidade.
O edifício que nós habitávamos na Beira desde o princípio de 1973, era conhecido na cidade, talvez
em quase todo o Moçambique, pelo nome de um oficial superior da Força Aérea: Com nove andares de
cinco apartamentos cada, construído com esmero e bem localizado, pelo menos até ser nacionalizado,
era seguramente um dos edifícios mais bonitos e funcionais da costa Oriental da África.
Nós morávamos precisamente no 9º. andar. Por cima, além do depósito de água, das arrecadações e
dos tanques para lavar roupa, ficavam os alojamentos dos empregados do imóvel.
No nosso andar, duas portas a seguir, num dos extremos do corredor, morava o casal Santos: Ele um
comerciante de origem africana, quase negro, uns bons dez anos mais velho que nós, que vivia de
umas cantinas que tinha espalhadas pelos arredores. Como o filho mais novo, um atleta de vinte e
poucos anos já tinha casado na altura, só a mulher, a D. Marieta, e a filha, uma mocetona, quase tão
atlética como o irmão, constituíam toda a sua família.
Sem andarmos sempre uns em casa dos outros, sempre nos demos bastante bem.
Como funcionário da companhia aérea local, naquela noite o meu marido estava de serviço.
Como de costume, eu estava em casa com o meu filho. Não porque fosse perigoso; mas com a habitabilidade do edifício a degradar-se de dia para dia, não era de estranhar que estivesse acordada até
às tantas, que ficasse um pouco alerta quando o meu marido ia trabalhar.
Estranhei o barulho. Que seria aquilo às três horas da manhã? Fui à varanda. Na rua, no passeio em
frente, um polícia andava de um para o outro lado; não se via mais ninguém, nada indicava o mais
pequeno movimento suspeito. E contudo o barulho continuava; parecia vir do mesmo andar. Não, não
era de nenhum dos dois apartamentos contíguos ao nosso; há muito tempo que não morava ninguém
nem dum lado nem do outro. Escutei mais atentamente. Era na casa da D. Marieta.
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Velhos Contos
Não havia dúvida que se tratava de uma aflição. Depois de uma rápida vista de olhos ao quarto onde
dormia o meu filho, saí porta fora, corri o corredor, certifiquei-me que havia de facto coisa grave na
casa dos nossos vizinhos. Eu estava em camisa de dormir, a indumentária menos adequada para sair
de casa àquela hora. Mas isso era apenas um pormenor; na circunstância não era muito importante.
Bati à porta com toda a força, perguntei o que se passava.
- D. Maria Helena, chame o seu marido!... - gritou a voz aflita da rapariga.
- O meu marido não está em casa!... - respondi eu do lado de fora da porta.
- Chame homens, chame a polícia!... - bradaram as duas mulheres.
Sem saber o que se passava, mas apavorada, desci a escada, procurei auxílio. Mas qual auxílio, a
uma hora daquelas!... Não encontrei ninguém, voltei para cima. Alguma coisa bastante grave estava
a acontecer ali. Voltei a insistir do corredor para que me abrissem a porta.
- O ladrão fugiu agora para a sua casa, D. Maria Helena!... - gritaram as duas mulheres.
Fiquei sem pinga de sangue no corpo. Se até ali eu procurara auxiliar alguém sem saber o que se
passava, agora era diferente: Era o meu próprio filho que estava em perigo; não podia perder um
instante, tinha de agir com a máxima rapidez, com todas as forças que tinha. Entrei em casa como um
furacão, arranquei o machado da carne da prateleira da cozinha, num segundo percorri o interior, fui
direita ao quarto onde o meu filho dormia. Mas na minha casa nada tinha acontecido, estava tudo
bem. Graças a Deus!... Levantei as mãos aos Céus... Porque, fora de mim como eu estava, fosse lá
quem fosse que eu encontrasse, dificilmente sairia dali inteiro com toda certeza.
Com o machado em riste, desci uma vez mais as escadas. Com o pesado clima que se vivia na altura,
toda a gente dormia com um olho aberto e outro fechado. Por natural precaução, alertados pelo tumulto, dois dos remanescentes moradores do prédio vieram ao meu encontro.
Mas como entrar numa casa trancada por dentro, onde, segundo tudo indicava, ninguém estava em
condições de poder abrir a porta? Era cada vez mais urgente uma solução. Um dos homens trepou nas
costas duma cadeira, meteu o corpo pela bandeira da porta. Bem agarrado pelos pés, todo dobrado
para o lado de dentro, destrancou a porta. Entrámos de roldão.
O quadro que se nos deparou não era o mais divertido: A dona da casa cirandava de um para o outro
lado, aos gritos, sem saber o que fazer; e, enquanto a filha martelava uma frigideira de ferro na
cabeça dum dos guardas do prédio, mantinha este o velho Santos imobilizado, sem se poder mexer,
tendo-o bem agarrado pelo sexo. O “velho” desfalecia a cada minuto.
Totalmente nu, untado de um líquido oleoso, todo o corpo do negro escorria sangue. Dizia-se que os
africanos negros usavam esta técnica para roubar, para poderem fugir mais facilmente.
Um dos homens que me tinha acompanhado, empunhava o meu machado. Caminhou bruscamente na
sua direcção; parecia querer completar a obra, dar cabo da vida do rapaz.
O moço tinha caído em si: Tapou a zona genital com as mão, voltou-se para mim:
- Senhora, eu vai morrer!... - disse ele, com tristeza, fazendo-me também sentir pena dele.
Eu saltei para o homem do machado; arranquei-lhe das mãos o temível objecto.
- Não vai nada! - disse eu. Dirigi-me a um dos presentes: - Chame a polícia!... As autoridades tomarão as necessárias disposições. A partir de agora, nada mais é da nossa conta.
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Velhos Contos
E morreu, coitado. Disse-se depois que ele tinha fugido do jipe da polícia. Talvez sim; contudo, tanto
quanto sei, a polícia da altura era muito pior que a pior polícia da era colonialista.
Depois disto um mistério subsistiu: Como é que o rapaz tinha entrado naquela casa?
Que descera da parte de cima pelo exterior do prédio, disse-se depois; que conseguira passar da casa
ao nosso lado - vazia na altura - duma varanda para a outra, afirmava-se também.
Mas como era possível acreditar que um homem todo untado tivesse tido a loucura de descer de um
10º. para um 9º. piso, ou tenha saltado entre dois andares pelo exterior do prédio, sem ter entre os
dois apartamentos a mais pequena saliência para se poder agarrar?
É que me ficara gravada uma das última frases do moço: “Foi a menina que me chamou”, tinha ele
dito perante a polícia, na agonia de ir preso. Não era muito fácil de acreditar que a rapariga tivesse
caído nessa esparrela: Ela era uma “mulatona” vistosa, ele não passava de um pobre de Cristo,
guarda do prédio. Além do mais, “mulata com preto não grudam”. Mas às vezes...
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