01 - Memórias Literárias - JOSÉ RODRIGUES LOUZÃ
Transcrição
01 - Memórias Literárias - JOSÉ RODRIGUES LOUZÃ
Memórias sociedade brasileira de médicos escritores literárias JOSÉ RODRIGUES LOUZÃ em prosa e verso 01 Memórias literárias Escritor da SOBRAMES São Paulo José Rodrigues Louzã nasceu no dia 1º de janeiro de 1929, em São Paulo. É filho do dr. Mario Rodrigues Louzã e de Jéssia Macuco Louzã. Estudou até o 3º ano primário no colégio Elvira Brandão e depois concluiu ginásio e científico no Colégio São Luiz. Desde criança quis seguir a carreira do pai e bem jovem ingressou na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), onde se formou em 1952. Iniciou sua vida profissional no Hospital São José do Brás, onde manteve seu consultório e realizou cirurgias até 2005, especializando-se em ginecologia e cirurgia. Em 1954 concluiu o curso de administração hospitalar na antiga Faculdade de Higiene, hoje, Faculdade de Saúde Pública. José Rodrigues Louzã foi médico assistente administrativo no Instituto de Reabilitação, no período de 1954 até 1978. O Instituto de Reabilitação era autarquia, criado com o apoio do Comitê de Reabilitação da OMS /ONU . 2 José Rodrigues Louzã Ao perder o apoio da ONU, passou a ser Instituto Nacional de Reabilitação da FMUSP (atual Divisão de Medicina de Reabilitação). Nessa época foram criados os cursos de fisioterapia e terapia ocupacional em nível universitário na USP. Em 1960, a convite da Organização Mundial da Saúde, participou de um curso sobre reabilitação, na cidade do México. Implantou os cursos de fisioterapia e terapia ocupacional na Universidade de São Carlos, onde foi professor durante alguns anos. José Rodrigues Louzã foi médico do Instituto Oscar Freire da FMUSP e presidiu a Academia de Medicina de São Paulo no biênio 1991-1992. Tem inúmeros trabalhos científicos publicados na Revista Paulista de Medicina; Revista Paulista de Hospitais; Revista Brasileira de Reabilitação; Carisma; e Revista Cultura e Saúde. Participou dos livros “Grande Escritores de São Paulo”, “Florilégio Poético” volume II, “Todas as Formas de Amar”, “O Beijo”, “O Amor na Literatura”, “O Sonho”, “Escrevendo Mulheres”, antologias literárias da Editora Casa do Novo Autor. É membro fundador da SOGM Poetas (RS) e membro titular da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores – Regional de São Paulo (Sobrames – SP) desde 1991. 3 Memórias literárias Participou como coautor de diversas antologias e coletâneas dessa entidade, sendo também colaborador da Revista Brasileira de Médicos Escritores (RBME), publicação da Sobrames Nacional, além do jornal “O Bandeirante”, publicação da regional paulista. José Rodrigues Louzã faleceu em 27 de janeiro de 2015. 4 José Rodrigues Louzã Alvorecer! Clareia o dia muito lentamente... Pássaros pouco a pouco a se agitar... Ouvimos o sabiá alegre a trinar, os canários a dobrar jovialmente, os bem-te-vis, muito alto a assobiar, e as maitacas em bando a chilrear. Todos eles começando a voar nas árvores, jubilosos, a cantar. Música de aves ao alvorecer. Mesmo nas cidades em que vivemos, com tão pouco verde na natureza, ainda conseguem nos oferecer e com elas, felizes convivemos a saudar o amanhecer com beleza! 5 Memórias literárias Um amor platônico Durante algumas décadas utilizei o automóvel para me locomover de um bairro para outro, a fim de poder chegar aos vários locais onde exercia minhas atividades profissionais. Assim, durante muitos anos passei pelas mesmas ruas e avenidas e tive a oportunidade de acompanhar o crescimento vertiginoso de São Paulo. Vi ruas estreitas, sem calçamento, transformarem-se em grandes avenidas asfaltadas. Vi grandes viadutos nascerem e atravessarem vales, unindo pontos da cidade que pareciam inacessíveis. Vi bairros operários serem ocupados por gigantescos arranha-céus – enormes pilares de concreto – sem o calor das pequeninas casas que foram substituindo. Vi favelas nascerem tímidas, rapidamente crescerem e também, num instante, desaparecerem ocupadas pelos diversos e sempre insuficientes projetos habitacionais. Acompanhei, como alguém que passa e observa, pessoas irem enriquecendo – carros novos na garagem – e também outras aos poucos empobrecendo. Negócios irem prosperando, acrescidos de novas portas e outros melancolicamente encerrarem suas atividades. Passei a fazer compras durante o meu percurso: o jornal, as revistas. Aproveitava quando havia tempo, para tomar um lanche, sempre em locais pelos quais passava e onde era permitida, por alguns momentos, a parada do meu carro. Precisava aproveitar os poucos minutos gastos no trânsito ensandecedor da nossa capital! Nesta rotina, durante tanto tempo, muitas coisas curiosas, estranhas, engraçadas e por que não também românticas, me aconteceram. Uma delas voltou-me recentemente à memória... e vou lhes contar como. 6 José Rodrigues Louzã Numa bonita tarde de primavera, como estava com o horário mais folgado, alterei um pouco a minha rotina, tomando outras ruas. Era uma forma de me distrair e conhecer melhor o bairro. Entrei em um loteamento novo, com árvores recentemente plantadas nas calçadas e muitas casas em construção. Fui passando com calma, observando os edifícios novos, já terminados. Residências típicas de classe média, de operários qualificados, de chefes de seção, a maioria delas bem cuidadas, com um pequeno jardim. Algumas delas com hortaliças e especiarias plantadas e outras com jardins floridos. Foi então que subitamente vi, defronte a uma delas, passeando na calçada - e trazendo na coleira um saltitante Cocker Spaniel preto - uma garota bonita que chamou minha atenção. Deveria ter seus dezoito ou vinte anos. Trajava uma roupa esporte, clara e simples, cabelos compridos, castanhos, presos em um “rabo-de-cavalo” ; olhos claros, brilhantes; pele morena; caminhar airoso; nem magra, nem gorda, mas bastante elegante. Irradiava juventude, beleza e alegria. Fixei meu olhar nela durante os poucos momentos em que passava lentamente pela rua, enquanto ela brincava com o seu cachorro. Não sei se ela notou a insistência com que eu a observava. Mas eu guardei a imagem da jovem bonita que me impressionou e que por alguns instantes iluminou a minha tarde. Uns dias depois, não sei porque, resolvi passar pela mesma rua, na esperança de vê-la uma vez mais. Fui surpreendido pelo fato de encontrá-la novamente. Brincava com seu cachorro no jardim de sua casa. Quase parei o carro para poder observá-la bem. De fato, a minha primeira impressão tinha sido real, ela era linda e encantadora, com seus longos cabelos soltos, emoldurando um rosto delicado. Olhei-a insistentemente e ela reparou no meu olhar e também fitou-me brevemente. 7 Memórias literárias Procurei então, sempre que podia, demorar mais alguns minutos para chegar ao serviço e passar na porta de sua casa. Talvez em função do horário – fim de tarde – ela frequentemente estava ou no jardim ou na calçada, quase sempre com o cãozinho. Eu passava com o carro, parando e a fitava fixa e insistentemente. Aos poucos ela passou a corresponder ao meu olhar. Depois começou a sorrir alegremente para mim. Assim ficamos bastante tempo, nesta brincadeira – quase um namoro. Mais ou menos uma ou duas vezes por semana escolhia o trajeto que permitia cruzar pela sua casa e quase sempre lá estava ela, e nossos olhares se encontravam e sorríamos...e só. O que será que ela pensava de mim? E eu o que pretendia? Será que aquela linda menina se imaginava uma Cinderela do século vinte, esperando o seu príncipe encantado que em sua carruagem vinha vê-la às escondidas, de vez em quando, procurando-a com seu olhar apaixonado? E eu, o que pensava, o que pretendia, vindo à sua porta, mais ou menos uma vez por semana e irregularmente, apenas para vê-la, sem nunca ter sequer parado o carro, sem nunca ter sequer tentado trocar com ela uma só e única palavra? Será que sabia que o seu olhar, ao corresponder, sorrindo ao meu, acendia uma fogueira em meu coração? Porém a vida toma os rumos mais diversos, eu mudei meu local de trabalho...outro bairro...outra direção...novos caminhos e novos itinerários a seguir. Não passei mais naquela rua, que fora por algum tempo meu encanto. Ficou-me apenas a lembrança, daquela linda menina morena que havia trazido um pouco de ilusão a algumas de minhas tardes e durante um breve período! Esqueci-me dela! 8 José Rodrigues Louzã Passaram-se muitos anos, até que um dia voltei novamente a passar, mais ou menos no mesmo horário – fim de tarde – pela rua que eu já tinha esquecido. São Paulo muda muito, mas alguns bairros mantêm-se com a mesma aparência por décadas. Era este o caso. As árvores estavam muito maiores e faziam bastante sombra. A maioria das ruas estava asfaltada, mas seguramente era esta a rua. Procurei a casa, passando devagar e subitamente senti um calafrio. Avistei a residência e no jardim uma menina, brincando com um cachorro...só depois de alguns momentos, em que parei o carro sob o impacto daquela imagem é que me lembrei que já se haviam passado quinze ou vinte anos. Era a mesma casa, mas noutro tempo...duas décadas depois... outro cãozinho. Este era um Poodle... e outra menina e outra realidade! Senti por uns instantes as mesmas sensações do passado... e comecei a pensar... Que teria acontecido com a minha Cinderela? Teria sido feliz como eu o fui durante todos estes anos? Será que ainda estava morando no mesmo lugar? É claro que estas perguntas ficaram sem resposta...Foram porém motivo de recordação, de lembrança e de saudade de um tempo que já passara! Despertaram também na minha memória os sonhos felizes e inocentes de um amor platônico vivido na minha juventude! 9 Memórias literárias Marulho Tarde... mesmo quando longe da praia ouvia-se o ruído calmo do mar, sentia-se dos sapos o coaxar, notava-se o silêncio da baía. Esta quietude só era quebrada pelo constante gorjear dos pássaros com seus formosos garganteares claros, a alegrar das árvores a florada. Veio o progresso, a civilização, as áreas livres foram sendo tomadas. Casas, edifícios, muito barulho Tirando-nos os sons e a visão da praia... agora só vemos fachadas, e do mar nem se percebe o marulho. 10 José Rodrigues Louzã Soneto triste Está muito triste, hoje, o meu soneto! A mesma fachada, a mesma doceira na rua, olhei a menina faceira, e ouvi novamente os sons do coreto. Parei frente ao prédio onde as minhas férias eu passava com filhos e parentes. Recordei-me dos amigos ausentes, dos jantares, dos chopes, das pilhérias, das prazenteiras noitadas de sábado, brincando com os de nossa amizade. Passa o tempo... A vida, de dedo em riste, aponta o caminho que está traçado. E eu recordei... E veio uma saudade... E o meu soneto ficou triste... 11 Memórias literárias Depois do trabalho Entardecer de inverno. Estou voltando do serviço para casa, a pé, como faço todos os dias. Ainda são seis horas da tarde mas já é quase noite fechada. As luzes das ruas estão se acendendo e desenham na paisagem – eu estou no alto de um morro – o mapa do bairro. Está um frio não muito intenso, mas corre um vento úmido e cortante que me leva a apertar o casaco contra o peito. Apesar da temperatura a noite é clara, a lua já apareceu e as estrelas começam a surgir, pontilhando o céu como pirilampos. Já estava assim de manhã bem cedo, quando saí de casa para vir ao trabalho, numa tecelagem onde ganho o meu sustento há mais de dez anos. Não é um emprego brilhante. Bastante serviço, o horário é puxado – eu faço duas horas-extras por dia – mas os colegas de trabalho são bons e não me queixo dos patrões. Dá para ir vivendo, razoavelmente, com o que ganho. Hoje, infelizmente, não foi um dia bom para mim. A noite toda passamos acordados, eu e minha mulher – o nosso filhinho teve muita febre. Quando saí de casa pedi a ela que se encarregasse de levá-lo ao médico. No meu serviço também tive dificuldades. Os teares não estavam muito bem e os fios arrebentavam constantemente, levando-me a correr de um lado para outro a emendá-los e a controlar a qualidade e a produção do setor sob meus cuidados. 12 José Rodrigues Louzã Pedi para falar com o médico a respeito do meu filho. Ele me disse para ter paciência e aguardar o que seu colega iria dizer, mas provavelmente era apenas uma “virose” tão comum em crianças com a idade dele, no início do inverno. Porém a sua imagem, muito jururu, quando saí, não me deixava um instante. A lembrança da minha família – mulher e filho – fezme recordar de como há uns dez anos tudo começou, ali bem perto. Também era frio – noite de junho – festa de Santo Antônio, organizada pelo clube dos operários da firma em que trabalho e que diziam era sempre animada. Não havia ninguém que me acompanhasse, mas também não tinha nada para fazer em casa, portanto resolvi ir. Arranjei um velho chapéu de palha e enfeitei-o, pintei um bigode - que mais tarde deixei crescer de verdade - e fui, como mais um caipira, para tomar quentão e dançar um pouco. Logo na entrada havia um grupo de moças, batendo papo, entre as quais estava uma que eu conhecia de vista. Cumprimentei-a e às outras e ficamos um pouco na prosa. A nossa turminha aos poucos se dispersou. Os pares se formavam para ir dançar. Quando percebemos, restava somente eu e uma das mocinhas, que como eu, não tinha companhia e também viera sozinha para a festa. Convidei-a para entrar e dar uma espiada melhor nos divertimentos que os organizadores tinham preparado: as comidas, os jogos que distribuíam prendas, os sorteios, as danças, a quadrilha que ia começar, o pau de sebo e a fogueira que ardia, muito alta, no meio do pátio, aquecendo o ambiente. Ela era uma menina muito bonita, um pouco mais baixa do que eu, cabelos aloirados, olhos claros, um nariz levemente 13 Memórias literárias arrebitado, pernas bem torneadas, enfim as curvas certas, no lugar certo e acima de tudo tinha uma voz e uma conversa agradáveis e um sorriso encantador. Era um pouco tímida, mas à medida que fomos visitando a área toda do clube e conhecendo os brinquedos, pudemos jogar alguns jogos – eu ganhei um ursinho, no tiro ao alvo, que lhe ofereci e chegamos ao local do baile. Convidei-a para dançar. Ela a princípio recusou, mas com um pouquinho de insistência, aceitou. Foi um prazer sentí-la em meus braços e dançamos um bom tempo. Fiquei sabendo que seu nome era Maria, que morava numa rua do bairro, ali bem perto do clube e era auxiliar de escritório, numa loja na cidade. Cedo, logo após o escurecer, ela precisou ir para casa. Exigência dos seus pais, que tinham sido categóricos: - “Não volte muito tarde”. Insisti para que ficasse um pouco mais, mas ela argumentou que depois não teria licença para outras saídas à noite. Eu lhe disse - “Que pena, mas tudo bem, então a festa também terminou para mim. Posso acompanhar você até perto de sua casa. Assim nós ainda conversamos um pouquinho mais. Você concorda que nós marquemos um encontro outro dia? Hoje ele foi tão agradável. Que tal na festa de São Pedro, que é daqui a pouco mais de uma semana, aqui mesmo e neste mesmo horário... Conto com você” - “Ótimo, também gostei muito destes momentos que passamos juntos ...até lá”. Voltei para casa muito alegre e feliz. Uma festa que eu imaginava fosse ser muito chata, tinha se transformado numa ocasião deliciosa. Conhecera uma garota bonita, um pouco 14 José Rodrigues Louzã tímida, mas com uma prosa inteligente e agradável e que parecia ter simpatizado comigo. Será que concordaria em ser minha namorada? Passei do dia de santo Antônio em diante com o coração amargurado, pensando na próxima festa e com a dúvida: virá ou não virá ao nosso encontro? Era uma grande preocupação... quando se tem apenas vinte anos... Passaram-se os dias e eu contava as horas, os dias e os minutos, à medida que a festa de São Pedro se aproximava. A ocasião chegou e eu vesti a minha roupa melhor, coloquei camisa e gravata, me arrumei bem. Queria impressioná-la. Fui para o clube, bem antes da hora. E fiquei sofrendo com a espera. Pouco antes do horário que havíamos combinado vi-a chegando. Ela também tinha se embelezado, cabelo bem arrumado, discretamente pintada e vestindo uma saia e blusa e um casaquinho por cima. Estava encantadora. “- Boa tarde. Estava com medo que você não viesse. Como você está linda”. “- Boa tarde. Claro, se eu pudesse, viria mesmo. Achei você muito simpático e um bom companheiro para uma festa”. Fomos entrando e logo começamos a dançar. Era muito agradável tê-la, novamente em meus braços. À medida que continuávamos a dançar, fui estreitando-a mais em meus braços, fui correspondido, e até o fim da noite estávamos com os nossos rostos colados. É claro, conversamos muito e ficamos nos conhecendo um pouco melhor – quais as nossas preferências, cinemas, festas, encontros com os amigos, como eram nossas famílias, onde morávamos. Na hora da despedida trocamos nossos números de telefone para podermos conversar e acertar outros encontros. 15 Memórias literárias Foi uma tarde deliciosa e combinamos que, em outra ocasião em que tivéssemos uma folga, iríamos ao cinema. Assim passamos vários meses nos encontrando, às vezes para ir ao cinema, para dançar nos bailes do clube ou simplesmente para darmos uma volta. Eu telefonava sempre e já nos sentíamos namorados. Eu a acompanhava, às vezes até sua casa e fiquei conhecendo a sua família. Ela sempre foi muito tímida e reservada e apesar de carinhosa, nunca tínhamos ido além de abraços e de passearmos de mão dada. Combinamos ir um dia com alguns amigos, passear na Praia Grande. Combinei com dois casais de namorados, amigos e companheiros nossos de festas e um domingo fomos para a Praia Grande. Nenhum de nós tinha carro, então fomos de Metrô até a estação Jabaquara e no terminal rodoviário para o litoral tomamos o ônibus do Expresso Brasileiro, com destino à Praia Grande. O passeio foi muito bonito, a manhã estava clara e a Serra do Mar toda florida, principalmente de Manacás da serra, com flores de cores diversas e muito coloridas. Chegamos ao redor de dez horas, pois havíamos saído de casa de madrugada. O dia quente e ensolarado convidava a um banho de mar. Arranjamos um lugar para vestirmos os maiôs, brincamos e andamos na areia macia da praia e fomos para o mar, de mãos dadas. Na água eu a segurava para que não caísse, abracei-a e beijei-a, ela correspondeu. Não saímos da praia para almoçar, comemos ali mesmo, uns sanduíches, tomamos uns refrigerantes e assim passamos o dia. Ficamos na praia até às cinco horas, quando voltamos para São Paulo. Fora um dia maravilhoso. A companhia dos amigos, muito gostosa, e para nós que tivemos o mar azul e violento como testemunha dos nossos primeiros beijos de amor, foi um dia inesquecível. 16 José Rodrigues Louzã Assim continuamos o namoro e depois o nosso noivado. As duas famílias já se conheciam e foi possível fazer uma reunião simples, mas muito agradável, para comemorá-lo. Com o passar do tempo, com os compromissos assumidos, aumentei a minha dedicação no serviço e fui sendo promovido. Pude comprar um Fusca e adquirir uma casa, aquela onde hoje moramos. Casamo-nos numa igreja do bairro, fizemos um almoço, apenas para os mais íntimos e, lá pelas quatro horas, saímos no nosso carrinho, muito felizes, para Santos, para uma semana de lua de mel. Fizemos uma extravagância: fomos para um dos melhores hotéis da praia e num quarto de frente para o mar – que vista maravilhosa se tinha da nossa janela! Lembrar o nosso casamento e a viagem de núpcias é sempre muito bom, e também recordar o passeio que fizemos. Além do hotel que curtimos muito, é evidente, fizemos com o nosso carrinho, algumas excursões próximas e fomos conhecer alguns locais de Santos. Na cidade fomos ao Aquário Municipal, em frente ao mar, na Ponta da praia, onde há cerca de uma centena de espécies aquáticas e é muito curioso, conhecer os peixes vivos – ver como nadam com elegância. Alguns pinguins, vestindo as suas casacas, pareciam estar em trajes de gala para nos receber. Um urso marinho também estava todo agitado, nadando de um lado para o outro, sem parar. Relativamente perto, também na Ponta da Praia há o Museu da Pesca, com miniaturas de barcos de pesca, de várias origens, grandes peixes empalhados e o esqueleto de uma enorme baleia, de mais de vinte metros. No centro fica o Monte Serrat local onde há uma igreja Nossa Sra. do Monte Serrat – de 1609, e à qual se chega com um 17 Memórias literárias “bondinho” funicular. De lá se tem uma vista bonita de toda a cidade e do porto santista. No lado oposto da praia, em outro município – São Vicente – fica o Horto Municipal e na cidade fica o Orquidário Municipal. Muito curioso o mercado de peixe, com uma fartura e variedade de produtos marinhos. Ele fica em frente ao local de onde saem as balsas que fazem a travessia do canal, para o Guarujá, que é um outro município. Um dia fomos passear lá, conhecer e tomar banho nas suas bonitas praias e visitar o forte da Barra. Grande, edificado em 1584, ao qual se tem acesso de barco, partindo de Santos ou pela estrada Santa Cruz, partindo do Guarujá. Essa fortaleza, onde se passaram muitas aventuras e tragédias e ocorreram curiosos fatos da nossa história, é uma relíquia. Vinha assim pensando e recordando dias felizes, quando me voltou a lembrança do meu filho doente – como estaria?... Não tinha conseguido falar com minha casa e estava, de fato, muito preocupado. Fora bom ter relembrado o nosso romance, pois passou mais depressa o tempo que sempre ando a pé, do serviço para casa e quando percebi já estava a poucas quadras do meu destino. Assustei-me quando vi a casa às escuras...que teria acontecido? Entrei e vi no quarto de meu filho uma luz muito fraca acesa. Fiquei aterrado, mas Maria me ouviu chegar, veio ao meu encontro depressa, sorrindo e dizendo: “Não se preocupe, o médico disse que não é nada grave, é só uma amidalite. Medicou-o e disse para deixá-lo descansar”. Abraçou-me, beijou-me e também fiquei aliviado das minhas preocupações. Mais uma vez recordei-me do nosso romance, tão simples e banal, mas tão belo.Tanto amor, dedicação e carinho, transformaram o sonho que começou numa noite de Santo Antonio, em uma realidade muito feliz. 18 José Rodrigues Louzã Uma carta Quatro amigos ao redor de uma mesa bem alegres e jogando valentemente. As cartas na mão e um jogo pendente. Estão a jogar com muita frieza, é preciso ser assim no pôquer. Já discutiram todos os problemas, resolveram os mais complexos teoremas. As paixões, os amores e a mulher foram abordados com muito ardor. Mas voltando ao jogo. Dadas as cartas, perguntaram-me quantas, por favor? Tão somente uma carta, estando nela meu sonho... Não posso voltar atrás... Minha ilusão numa carta singela! 19 Memórias literárias A tempestade Meio dia, as nuvens escurecem o céu. O vento, cada vez mais forte, arranca as árvores do seu suporte. Começa a chover os raios se abatem com a violência dos trovões que rugem, e apavoram a todos pela rua. Aumenta a chuva que não se atenua e não permite que escape ninguém... Pouco a pouco ela vai diminuindo. A tormenta e os relâmpagos passam. No céu, lentas, as nuvens vão sumindo e o sol, indolente, volta a brilhar. E as cores fortes do ocaso pintam o firmamento, de novo a clarear. . 20 José Rodrigues Louzã Esperança A vida - alcova cheia de surpresas, Algumas muito boas, outras não. Pode nos recordar doce paixão ou trazer então infindas tristezas com momentos bons ou desagradáveis. Ocasiões em que ela nos é triste, sempre nos recebendo de arma em riste. Temos que aproveitar os agradáveis instantes que ela pode oferecer. Lembrar sempre com bastante pujança que a tristeza não vai nos abater. Rogar e com muita perseverança por um amanhã de feliz viver. Que nunca nos deserte a esperança ! 21 Memórias literárias As porteiras do Brás Uma das lembranças da minha infância que sempre permaneceu muito viva – talvez por ter acompanhado de perto o grande progresso porque passou a zona leste – foi a das porteiras do Brás. Na segunda metade do século XIX São Paulo assumiu uma posição de destaque no cenário nacional. O avanço da cultura cafeeira nas terras roxas, o solo ideal para o plantio do café, trouxe a necessidade de se providenciar transporte para nosso principal produto agrícola. Assim, entre 1862 e 1867, por um consórcio inglês, que tinha como um dos maiores acionistas o Barão de Mauá (Irineu Evangelista de Souza – 1813 a 1889) foi construída a S.P.R. – São Paulo Railway – a Inglesa, como era popularmente chamada. Esta estrada de ferro atravessava a cidade de São Paulo, separando a zona leste por porteiras, em alguns dos pontos em que havia cruzamentos por ruas. Dois destes cruzamentos ficaram na memória de São Paulo e na minha: o cruzamento da via férrea com a rua do Gasômetro e com a Av. Rangel Pestana, onde porteiras se fechavam toda a vez que passava um trem. Já em 1912, jornais levantavam o problema da interrupção do trânsito na Av. Rangel Pestana, várias vezes por dia e em muitas ocasiões por mais de 10 minutos – quando o trem que passava era cargueiro, e seguia a sua viagem, muito lento. Eu era pequeno e minha família morava além das porteiras, o que queria dizer que toda a vez que se ia para a cidade precisávamos cruzá-las na ida e na volta e eu torcia para 22 José Rodrigues Louzã encontrarmos as porteiras fechadas ou tocando a campainha para avisar que iam fechar, pois assim podia ver de perto os trens. Enquanto os adultos resmungavam e reclamavam a perda de tempo, eu me imaginava como “maquinista” daqueles trens, manobrando-os para frente e para trás apitando e pedindo passagem. Às vezes as composições eram muito longas – para desespero dos adultos e para minha alegria – um trem de carga muito extenso ou um comboio manobrando para mudança de linha, e então a composição ia e vinha bem vagarosa. Os trens cargueiros eram muito variados, desde os vagões abertos e descobertos a fechados, com a carga que precisava ser protegida das intempéries, ou vagões para o transporte de gado, cobertos, mas bem ventilados, com os animais em pé. Outras vezes longas composições só com carros tanques para o transporte de gasolina, ou óleo diesel, os carros trazendo os logotipos das importadoras – Texaco, Esso, etc. Em outras ocasiões trens de passageiros ou o rápido para Santos, uma moderna composição de três vagões, o Cometa, que eu admirava muito. E foi assim por muitos anos... Nós mudamos de bairro, fomos morar do outro lado das porteiras, o que nos facilitava, a mim e à minha irmã para ir ao colégio, mas papai continuou trabalhando no mesmo lugar – para lá das porteiras – e ele continuou a enfrentar o mesmo problema. Somente em 1948 – eu já estava entrando para a Universidade – a prefeitura “criou vergonha”, construiu e inaugurou o viaduto do Gasômetro, o que facilitou e amenizou bastante o trânsito – via largo da Concórdia e rua do Gasômetro. 23 Memórias literárias Vinte anos depois, apenas em 1968, é que foi construído o viaduto na Av. Rangel Pestana, que recebeu o nome de Viaduto Alberto Marino – homenagem ao autor da música “Rapaziada do Brás”. Nascido no Brás (1902 – 1967), descendente de italianos, foi regente, compositor, violonista e professor. A letra da bonita valsa foi posteriormente escrita – 1960 – por seu filho Alberto Marino Junior. “Lembrar, deixe-me lembrar meus tempos de rapaz, no Brás”. Finalmente foi aberta, por volta de 1960 e sendo construída e inaugurada aos poucos – um trecho e depois o seguinte – a Radial Leste. Ficou, assim, definitivamente superado o problema que acompanhei desde a minha infância e juventude, mas que eu ainda recordo com a saudade e a nostalgia das dificuldades, dos tempos das porteiras abrindo e fechando e dos trens que eu via passar... 24 José Rodrigues Louzã Paraíso perdido O paraíso está sempre escondido, passamos toda a vida a procurá-lo mas é muito difícil encontrá-lo e ele para nós parece perdido! Paraíso, por que fazes assim? Por que na vida nunca te alcançamos? Por que nunca obtemos o que almejamos? Por que esta procura eterna, sem fim? Procurei-te muito, em casas e lares em escolas e hospitais, a esmo, em toda religião e toda grei, procurei-te por todos os lugares, mas estavas, só, dentro de mim mesmo, “paraíso perdido que eu achei!” * *O verso em itálico é de Guilherme de Almeida, do livro “Poesia Vária” - As chaves de ouro 25 Memórias literárias Castelo de areia Dia de verão! O sol muito brilhante! O garoto vai à praia brincar. Quer um castelo de areia plantar, que seja um porto para o navegante. Lança-se à obra com dedicação, surgem torres, fossos, pontes, muralha, canhões para a defesa com metralha. Mas nada vence do mar a ação, que aos poucos abate o frágil castelo. Triste, ele ouve as estrelinhas do mar que estão a lhe dizer: “Jovem! coragem... refaça com amor. Seja mais belo e maior... trabalhe sem se queixar.” Num devaneio, criou nova imagem! 26 José Rodrigues Louzã Na porta da escola Foi numa tarde quente de verão. Despreocupados, jovens estudantes desciam a Rua Augusta, elegantes. Irão ver as alunas no portão da escola por onde devem passar. É a mesma rotina de todo o dia. As meninas com grande simpatia, ansiosas, estão a nos esperar. Vi-te: os olhos verdes e brilhantes, fixos nos meus... irradiando paixão. Nesse dia cálido de verão os olhares se cruzaram... distantes. Desde então - minha vida - meu olhar ficou, para sempre, a te acompanhar! 27 Memórias literárias Os meus quadros Noite muito fria. Após o jantar, Atentei para os quadros pendurados. Notei que eles trazem muitos recados. Recostei-me na sala a meditar... Perguntei-me – que mistério se esconde, Se disfarça, por trás de cada tela? Para onde irá aquela branca vela? A bela pintura não me responde. Indaguei ao mar. Que pensaria o pintor Ao retratar-te assim tão forte e violento? Seria uma queixa triste de amor? Porque ás vezes, mostras tanto ardor? Sei apenas que todo este seu lamento Representa do artista o seu clamor. 28 José Rodrigues Louzã Árvore amiga Ela assinalava, da casa em frente. com sua altura, a nossa moradia. Braços abertos, solene guia e amiga, ouvinte do adolescente. que à tarde recostado na escada, conversa com a velha araucária, contando sua tristeza e alegria e os belos sonhos da sua jornada. Os estudos e lições eu narrava, chorava meus amores, à mercê do chuvisco, a ouvir o sabiá. Agora que tanto tempo passou que saudades eu sinto de você amigo – pinheiro do Paraná. 29 Memórias literárias A vida Nossa infância é uma brincadeira constante: jogos, festas, sonhos, aventuras sem par. As preocupações vão chegando devagar e ocupam toda a nossa vida de estudante. Depois a mocidade com os seus amores, suas obrigações, prazeres e alegrias, seus desenganos, desamores, fantasias... Rapidamente nos dominam os temores da velhice, que se aproxima de mansinho. Tristes, com ela seguimos nosso caminho enquanto recordamos as coisas passadas. Sentimos então que o tempo passa veloz. Ate que um dia, igualando todos nos, cai o pano final das pálpebras fechadas*. (* O verso em itálico é de Guilherme de Almeida, em “As chaves de ouro”, no livro Poesia Vária.) 30 José Rodrigues Louzã Anoitecer na mata Na bela paisagem vislumbra-se a serra. E ao cruzar lindo trecho da mata o encanto do mistério arrebata. O sol triste despede-se da terra enquanto pouco a pouco o poente vai tingindo o céu de vários tons rosa. E sombras, devagar, na nebulosa Enfeitam toda a paisagem dormente. Há riqueza nas flores dos arvoredos ipês rosa e amarelos, roxos manacás, E na penumbra dançam as palmeiras. A lua desponta atrás dos rochedos revelando à noite que chega fugaz o encanto das matas brasileiras! 31 Memórias literárias Memórias literárias da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores Fascículos virtuais com seleção de textos de autores da Sociedade Brasileira de Médicos Escritores - SOBRAMES Rumo Editorial Produções e Edições Ltda. Email: [email protected] Editor: Marcos Gimenes Salun Direitos autorais exclusivos de seus autores. DISTRIBUIÇÃO GRATUÍTA - Permitida a divulgação e reprodução sem fins lucrativos e desde que citada a fonte e autoria. 32