Produto Leonilde Medeiros
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MARCO JURÍDICO-NORMATIVO PARA O DESENVOLVIMENTO RURAL COM ENFOQUE TERRITORIAL Produto 3 Levantamento, revisão e sistematização bibliográfica da literatura nacional LEONILDE SERVOLO DE MEDEIROS MARCELO MINÁ DIAS dezembro de 2008 O presente documento constitui o Produto 3 do Eixo Temático “Marco jurídico normativo para o desenvolvimento rural com enfoque territorial”, referente à consultoria contratada pelo Instituto Interamericano de Cooperação para a Agricultura (IICA) junto ao Observatório de Políticas Públicas para a Agricultura (OPPA), vinculado ao Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (CPDA/UFRRJ). Seu objetivo é, a partir de um amplo levantamento bibliográfico, da leitura e da sistematização das referências encontradas, assinalar alguns temas recorrentes na literatura e buscar pistas para refletir sobre os marcos jurídicos que se relacionam com o desenvolvimento territorial no Brasil. Tendo em vista que não há literatura específica sobre o tema, o propósito é o de verificar, na produção recente sobre desenvolvimento territorial, as referências relacionadas a marcos legais, para organizá-las a partir de questões específicas, que emergem quer das referências internacionais, quer de temas apontados pela bibliografia nacional. O texto está organizado nas seguintes partes: uma introdução geral que situa a problemática do eixo, em especial no que se refere ao significado político dos marcos jurídicos. Na seqüência, apresentamos algumas considerações sobre a forma como a literatura tem tratado o tema do território. Na parte seguinte, é tratado o contexto histórico em que surgiram os marcos legais de desenvolvimento territorial rural no país. Numa quarta parte, discutimos o que é mencionado como sendo os marcos fundamentais já existentes e seu contexto, não a partir de 2 um levantamento geral da legislação, mas, como já apontado anteriormente, tomando como ponto de partida o que os autores que tem se voltado para discussões sobre o desenvolvimento territorial rural têm apontado (ou deixam entrever) como sendo relevante. A seguir, a partir da análise feita no item anterior, indicamos os passos de continuidade do trabalho. 1. Introdução Um dos temas cruciais para a reflexão sobre os caminhos possíveis de uma política de desenvolvimento territorial é a inevitável tensão que se gera entre a implantação dessa política e os marcos legais/institucionais já existentes, entre outras razões, porque parte deles traz consigo as marcas de um padrão de desenvolvimento excludente quer do ponto de vista econômico, quer do social e político, e que reflete conflitos sociais agudos. Considerando que o Direito é um sistema de princípios e regras de conduta socialmente aceitos e legitimados e que garantem a previsibilidade às ações sociais, é fundamental, mesmo que de forma breve, refletir sobre o que significam os marcos jurídicos e não tomá-los como um a priori desistoricizado. Como aponta Pierucci (1998), discutir a legitimidade do ordenamento político nos quadros do moderno Estado constitucional e da democracia política implica também tratar do processo de secularização e, portanto, de racionalização da vida moderna. De acordo com Weber (1998, p. 509), um dos traços característicos do Direito moderno é a criação de preceitos gerais, marcados pela sistematização e formalização, aspecto desconhecido no direito primitivo. Em função disso, são abandonadas velhas formas procedimentais do antigo direito, que passam a ser desvalorizadas e consideradas como práticas irracionais, incertas, incoerentes, arbitrárias, presas à sacralidade da tradição. O padrão de legitimação muda ao mesmo tempo em que ocorrem transformações substanciais na sociedade. O sistema jurídico acompanha essas mudanças e se transforma, por um processo de objetivação e impessoalização, numa espécie de máquina técnico-racional. Separa-se o legislador da lei (Luhmann, 1983) e é aos poucos constituído todo um aparato próprio, com regras especiais que caminha na direção de buscar garantir a despersonalização e a racionalização. Como aponta Weber (1998, p. 516), o juiz, ao julgar questões que lhe são apresentadas, coloca em ação uma regra geral, objetiva, o que contrasta com as decisões “reveladas”, por meios mágicos. Com isso filtra normas, seleciona, fazendo com que a positividade do Direito seja sempre atualizada por decisões, novas escolhas, que não são arbitrárias, mas se explicam dentro de um campo delimitado pelos preceitos gerais 3 reconhecidos. Essas normas têm como contrapartida um direito subjetivo, que, para Weber (1998, p. 532), corresponde a expectativas de ação e possibilidade de previsões. Se a lei expressa relações de força, também precisa ser universal e legítima, ou seja, gerar parâmetros que marcam seus próprios limites. Podemos, aqui, nos apropriar das reflexões de Claus Offe sobre o Estado capitalista (Offe, 1984), quando o autor discute os mecanismos de seletividade próprios às instituições políticas. De acordo com esse autor, uma determinada questão pode ser ignorada pelo Estado até um determinado momento. Assumida como objeto de intervenção, a ação sobre ela não se dá necessariamente nos parâmetros em que a questão está posta, mas por meio de filtros, que constituem a seletividade própria do Estado e que faz com que os temas que emergem na sociedade sejam absorvidos, transformados em leis, em políticas públicas, mas a partir de parâmetros desejáveis/possíveis pela lógica das instituições existentes (e não somente a partir do conteúdo subjacente às demandas). Ou seja, as instituições (entre elas, o corpo jurídico-legal) encarnam determinadas possibilidades e determinados limites que só podem ser entendidos, entre outros parâmetros, na relação entre as instituições estatais e a sociedade. Tanto na perspectiva de Weber como na de Luhmann, as leis, não sendo mais consideradas sagradas nem dadas, podem ser modificadas, reformuladas e até mesmo substituídas. No entanto, o Direito representa uma forma de coação e é tanto poder como autoridade, ou seja, qualquer mudança nas normas implica em reconstrução da legitimidade necessária para sua operação. A progressiva complexificação da sociedade moderna e do Direito tem conseqüências importantes, na medida em que passam a existir limitações à possibilidade de conhecimento das normas pelo indivíduo. Pierucci (1998), retomando algumas dimensões da sociologia jurídica de Weber, afirma que a esse processo corresponde a escolarização sistemática dos juristas em Faculdades de Direito, noutras palavras, o treinamento no modo teórico-dedutivo de pensar, recebido em escolas superiores voltadas para o ensino do Direito, contribuindo para incrementar e sofisticar as qualidades lógico-formais do Direito moderno. Para Bourdieu (1989), os intérpretes do Direito estão integrados a um corpo singular, cujas marcas são a disciplina, a retórica da neutralidade, a disputa entre formuladores de direito (os “teóricos”) e os seus intérpretes (os “práticos”), o monopólio da construção jurídica. Bourdieu afirma ainda que é próprio ao campo jurídico transformar conflitos irreconciliáveis em permutas reguladas, de forma a gerar soluções socialmente reconhecidas como “imparciais”. Assim, evidencia-se a dimensão simbólica do Direito: a legitimidade esconde 4 a arbitrariedade que é própria do campo. Ou, como aponta Bancaud (1989), o trabalho da magistratura apaga os interesses sociais que presidem a elaboração das normas jurídicas. Um aspecto que também merece reflexão em termos dos significados da lei é pensar como ela, codificando relações, de alguma forma tem um papel importante na sua consolidação, afirmação e mesmo criação, na medida em que define critérios e regras de inclusão e exclusão e também de marcos por meio dos quais as relações sociais devem operar. Na perspectiva de Bourdieu (1989), o Direito é a forma por excelência do poder simbólico de nomeação, capaz de criar as coisas nomeadas, em particular grupos. Ao mesmo tempo em que o faz, naturaliza, cria uma doxa (Bourdieu, 1989, p. 249), mas também expressa o reconhecimento de grupos sociais e de demandas que, em determinados contextos, passam a ser incontestáveis. Seu questionamento pode estar até vigente no campo das relações sociais, mas, de alguma forma, cai no terreno do socialmente indizível. Um exemplo disso é o caso da função social da propriedade que, embora negado no cotidiano (inclusive no plano dos julgamentos legais), não é mais passível de negação como princípio geral de justiça. Ou seja, a disputa é transferida para um “caso a caso”, onde se procura afirmar indicadores de que a função social é cumprida, mas não negar que a função social deve ser obedecida. Alguns estudos apontam as múltiplas dimensões dessa legitimidade e mostram como existe a possibilidade de apropriação diferencial das normas legais por determinados grupos sociais que podem produzir uma leitura das leis existentes como base para fundamentar suas demandas. Assim, se existe a lei, há possibilidades também leituras diferenciadas da lei, constituindo-a num campo permanente de conflito. Um autor que chama a atenção para esse aspecto é o historiador inglês Edward Thompson. Ao analisar a chamada Lei Negra inglesa, Thompson (1987) abre uma vertente importante para as preocupações que regem este texto. Estudando um momento em que a lei geral começa a sobrepor às leis locais, o autor alerta para o fato de que, na Inglaterra do final do século XVIII, “as relações de classe eram expressas, não de qualquer maneira que se quisesse, mas através das formas da lei; e a lei, como outras instituições que, de tempos em tempos, podem ser vistas como mediação (e mascaramento) das relações de classe existentes (como a Igreja ou os meios de comunicação), tem suas características próprias, sua própria história e lógica de desenvolvimento independentes” (Thompson, 1987, p. 353, grifos no original). Mais adiante, o autor argumenta que “as formas e a retórica da lei adquirem uma identidade distinta que, às vezes, inibem o poder e oferecem alguma proteção aos destituídos de poder [...] a lei 5 não foi apenas imposta de cima sobre os homens: tem sido um meio onde outros conflitos sociais têm se travado” (Thompson, 1987, p. 358). Essa idéia nos parece particularmente fértil para pensarmos nos conflitos existentes entre uma normatividade que se esboça e todo um conjunto de aparatos legais existentes. Considerar estas teorias sobre o Direito e a institucionalização e funcionamento das regras jurídicas é importante para compreender como a perspectiva de um “desenvolvimento territorial” supõe determinadas concepções do que seja território, por conseguinte, determinadas possibilidades de delimitação desses espaços e de demarcação dos modos de ação e interação entre o público e o privado. Elas têm poder de criar uma realidade territorial, demarcada pelo arcabouço legal e pelas instituições pré-existentes, mas não por elas totalmente determinado. Por outro lado, enunciar a possibilidade de uma institucionalização legal de uma abordagem territorial, implica a enunciação de uma nova realidade, novas regras sociais que, para existir, precisam garantir para si uma legitimação e produção de identificações. É neste sentido que, para a análise que propomos, torna-se importante averiguar os modos por meio dos quais a abordagem territorial do desenvolvimento vem sendo tratada por parte da literatura que a elege como foco de suas atenções. 2. A abordagem territorial: algumas possibilidades de interpretação Neste tópico, nossa intenção é averiguar de que modo determinadas representações sociais sobre o “território” se expressam na forma de normatividade jurídica, que rege direta ou indiretamente e/ou orienta ações sociais e políticas. Buscamos também averiguar como elas influenciam o desenho institucional e a implementação de políticas públicas de promoção do desenvolvimento rural. Mais especificamente, a partir de um recorte da literatura acadêmica sobre desenvolvimento territorial e políticas públicas, queremos compreender as relações estabelecidas entre a temática do desenvolvimento com enfoque territorial e os arranjos ou marcos jurídicos instituídos na implementação de políticas. Trata-se de uma abordagem exploratória, de caráter ensaístico, buscando produzir inferências e, principalmente, novas questões que guiem futuros estudos. Partimos do pressuposto de que tanto as leis quanto as políticas públicas, ao se constituírem como discursos que buscam normatizar práticas, embutem - e também elaboram representações sobre os espaços de sua jurisdição, alcance ou influência. Seja para repartir as superfícies, estabelecer fronteiras e campos de regulação; seja para conferir foco e orientação à sua intervenção ou realizar seus planos, buscando enfrentar as disparidades sociais e organizar 6 a ação coletiva, o Estado e o aparato jurídico que lhe corresponde definem e delimitam os espaços, atribuindo significados às localidades ou aos territórios. Esta capacidade de construção de representações sociais sobre o espaço não é, obviamente, uma exclusividade do Estado.1 Os espaços também são objetos da construção de sentidos e apropriação por parte dos atores que neles vivem, uma vez que as práticas cotidianas, territorialmente localizadas, relacionadas à vida social, à política e ao trabalho, estabelecem interações inevitáveis com normas estabelecidas pela legislação (Santos, 2007). Da mesma forma, reproduzem rotinas e princípios costumeiros, não necessariamente codificados como lei, mas vividos como costume (Thompson, 1998). É neste sentido que podemos afirmar que tanto a legislação vigente - produto de determinadas vontades políticas que assumem caráter normativo - quanto a ação reflexiva daqueles vivem cotidianamente nos espaços afetam e moldam os territórios. As leis que regem um Estado nacional, por exemplo, estabelecem recortes territoriais para a ação do próprio Estado (por meio de suas políticas públicas), da iniciativa privada e da sociedade que se organiza em ações coletivas. Esta repartição também significa estabelecer limites e possibilidades de ação para aqueles que, no território, estão sob influência das normas estabelecidas. Assim, podemos afirmar que a legislação tem uma dimensão geográfica, principalmente quando elabora uma representação que serve de fundamento à delimitação e à normatização de práticas territoriais, moldando possibilidades de ação (Magdaleno, 2005). Este é um argumento importante de parte da literatura acadêmica que elege como objeto de problematização as relações entre os territórios e a política, à qual nos reportaremos a seguir. A partir dos pressupostos apresentados anteriormente, podemos afirmar que a ação política é “territorializada”, ou seja, ela ocorre em dado espaço e relacionada a normas socialmente compartilhadas, que se expressam sob a forma de “ordem geral obrigatória”, geralmente na forma de lei, buscando manter previsibilidade às ações do homem na sociedade. Cumpre lembrar que essa ordenação se sobrepõe a ordenações anteriores, às vezes de caráter local, mas não necessariamente as extingue. São regras que se superpõem em territórios distintos, um legal, outro correspondendo a regras da vida social anteriormente definidas localmente e legitimadas por grupos específicos. Isso se relaciona ao fato de que o movimento 1 Neste trabalho adotamos uma distinção entre as categorias “Estado” e “governo”. Apropriamo-nos da síntese feita por feita por Höfling (2001, p. 31) que afirma: “(...) é possível considerar o Estado como o conjunto de instituições permanentes, como órgãos legislativos, tribunais, exército e outras que não formam um bloco monolítico necessariamente, que possibilitam a ação do governo; e Governo, como o conjunto de programas e projetos que parte da sociedade (políticos, técnicos, organismos da sociedade civil e outros) propõe para a sociedade como um todo, configurando-se a orientação política de um determinado governo que assume e desempenha as funções de Estado por um determinado período”. 7 de territorialização dos espaços de atuação e interação não é, obviamente, exclusivo do Estado e de seu aparato jurídico de suporte. Todos os agentes sociais intervêm na realidade a partir de certo ordenamento normativo, estabelecendo relações diversas (que podem ir da complementaridade ao conflito) com as demais territorializações historicamente construídas. Portanto, estabelecem-se nas sociedades ordens espaciais ou espaços regulados de possibilidades de ação e de interação, envolvendo distintos atores que ocupam física e politicamente determinado território. A noção de “territorialização” (Haesbaert, 2004), discutida a seguir, nos será útil para problematizar e qualificar as ações públicas (mais especificamente as ações desencadeadas por uma política pública) que ocorrem sob influência e condicionamento de marcos jurídicos incidentes sobre determinado território. Ao colocarmos em questão uma política de desenvolvimento territorial, interessa-nos identificar a representação social do espaço que esta política elabora para, num segundo movimento, descobrir os modos e meios que a política a desenha e busca colocar em prática para construir acordos comuns e uma dinâmica de interação a respeito de um projeto político de desenvolvimento. Este projeto é sugerido à agenda dos diversos atores sociais que, nas localidades focadas pela política, intervêm a partir de programas e/ou projetos próprios, configurando ambientes pluralistas e competitivos, porém marcados por relações de poder que determinam posições diferenciadas aos que participam das lutas travadas. Por outro lado, este projeto também pode se constituir como fruto do impulso de movimentos sociais, que, no entanto, é filtrado e tem suas dimensões selecionadas no aparato estatal, não a partir de “vontades”, mas das disputas políticas e dos marcos estruturais/institucionais do próprio Estado. Neste cenário de interações, parece estar em jogo a capacidade de a intervenção pública estabelecer novas possibilidades de ação e interação - ou de “territorialização” - para uma dada diversidade de atores sociais envolvidos pelo desenho e pela focalização desta política.2 Esta questão relaciona-se a outra, referida aos vínculos estabelecidos entre os marcos jurídicos existentes e o tipo de territorialização de ações incentivado ou recomendado pela política. Até que ponto a institucionalização induzida e/ou criada pela política corresponde (ou está articulada) a um arcabouço jurídico existente? Caso não corresponda, a que tipos de ações A idéia de “jogo” remete às escolhas estratégicas que têm que ser feitas pelos atores sociais em suas interações em busca da realização de projetos. Obviamente, as “regras do jogo” representam oportunidades e limites ou constrangimentos a estas ações. 2 8 e interações alternativas vincula-se a política para que tenha condições de forjar novas “territorialidades” que, por sua vez, impulsionem a criação de novos arcabouços jurídicos que lhe confira legitimidade e capacidade de provocar mudanças? Ensaiar respostas a estas questões requer o diálogo com referenciais teóricos sobre as relações entre legislação, território e política. Neste sentido, o conceito de “territorialização” nos parece importante. Este conceito remete à idéia de uma ação política (mas não necessariamente estatal) cuja intenção, manifesta ou não, é estabelecer certas normas ou institucionalidades compartilhadas por determinados grupos para orientar práticas sociais sobre um determinado espaço. As “práticas sociais” podem envolver desde ações coletivas pontuais ou específicas até a noção, mais abrangente, de “projetos políticos”. A noção de projeto é importante para entendermos os significados que são atribuídos às ações e suas interações decorrentes. Como explica Castoriadis, o projeto “é o elemento da práxis, é uma intenção de transformação do real, que contem uma representação do sentido da transformação” (1992, p. 17). Para Dagnino (2004, p. 98), o termo projeto político, designa “os conjuntos de crenças, interesses, concepções de mundo, representações do que deve ser a vida em sociedade, que orientam a ação política dos diferentes sujeitos”, estabelecendo um “vínculo indissolúvel” entre cultura e política. A autora chama a atenção para a importância de recuperar essa noção, na medida em que ela permite superar visões homogeneizadoras tanto do Estado como da sociedade civil e o reconhecimento de sua diversidade interna como base para pensar suas relações (idem, ibidem). Para compreendermos a complexidade dos processos de territorialização é fundamental analisarmos os projetos que orientam a ação dos grupos que, uma vez organizados, agem para superar uma dada situação presente, uma realidade que, a partir de um diagnóstico elaborado, deve ser mudada. Para distinguir o território do espaço social, é necessário compreender a ação dos “sujeitos que efetivamente exercem poder, que de fato controlam esse(s) espaço(s) e, conseqüentemente, os processos sociais que o(s) compõe(m)” (Haesbaert, 2005, p. 6775). Neste sentido, os processos de territorialização podem produzir vários territórios em um mesmo espaço. A distinção entre os territórios ocorreria “de acordo com os sujeitos que os constroem, sejam eles indivíduos, grupos sociais, o Estado, empresas, instituições como a Igreja etc.” (idem, ibidem). Esta concepção nos conduz à noção de “territorialidade”, ou seja, a existência simbólica de uma pluralidade de territórios, que transcendem o território físico e que interagem em um mesmo espaço. A territorialidade é a qualidade atribuída à diversidade de territorializações possíveis e as virtuais interações estabelecidas entre elas. Implica existência de uma pluralidade de espaços de exercício de poder e também a uma pluralidade de jurisdições, que podem ser 9 parcialmente complementares ou se sobrepor conflituosamente. Robert Sack a define como “(...) uma estratégia espacial para atingir, influenciar ou controlar recursos e pessoas, pelo controle de uma área e, como estratégia, a territorialidade pode ser ativada ou desativada” (Sack, 1986, p.1). Estas concepções nos remetem às relações estabelecidas, nos territórios, entre as diversas territorialidades historicamente construídas, que passam a interagir sob impulso de novos recortes produzidos, por exemplo, a partir da ação do Estado, que busca, por meio de uma políticas públicas específicas, direcionar e normatizar processos de promoção do desenvolvimento. Para implementar seu projeto, o Estado lança-se, por conta de suas limitações e pela necessidade de tornar legítima sua intervenção, à interação com diversos agentes que, em territórios transformados em espaços para realização de seus próprios projetos, cooperam, competem com ou simplesmente rejeitam a interação proposta, de acordo com as recompensas e sanções colocadas em cena. Ao tornar determinado espaço um território para implementação de uma política social de investimentos públicos, o Ministério do Desenvolvimento Agrário, por exemplo, está ativando, ao mesmo tempo, um processo de territorialização (definindo regras, normas e institucionalidades desejadas) e também a possibilidade de instituição de “territorialidades”, que se sobrepõem e interagem com outras já constituídas. Ou seja, trata-se um recurso (e de um “capital”) estratégico disponibilizado aos atores envolvidos pela política, que delimita fronteiras que, por sua vez, afetam o acesso da população local aos recursos e aos supostos benefícios da ação pública “territorial”. Em ambos os casos, estabelece-se um tipo de jurisdição a ser exercida pelo Estado, por meio das agências que operacionalizam a política e pela pluralidade de atores que vivem e atuam no território, aos quais o próprio Estado delega poder relativo para realizar a governança dos recursos disponíveis e alocados. De acordo com Magdaleno (2005t), o que está em jogo nos processos de territorialização é a delimitação de possibilidades de ação para os diversos atores que compartilham física e politicamente determinados espaços. A territorialização envolve, portanto, a produção de uma representação do espaço e um movimento de apropriação do mesmo para a realização de um determinado projeto social ou político. As próprias normas estabelecidas pela legislação vigente implicam distintas territorializações. Estas estabelecem modos de divisão do espaço (escalas nacional, regional e local) e possibilidades de organização dos “campos operatórios dos diferentes atores sociais” (Magdaleno, 2005, p. 115). Ou seja, os processos de territorialização conduzem à produção de distintas territorialidades e, assim, possibilitam modos específicos ou particulares de produção de regras, normas ou instituições que buscam 10 estabelecer poderes, reger ou regular, em determinado espaço, a ação individual e/ou coletiva a partir de princípios orientados por um dado projeto social. Haesbaert (2005, p. 6778) apresenta quatro grandes fins ou objetivos dos processos de territorialização, acumulados e distintamente valorizados ao longo do tempo: a) Abrigo físico, fonte de recursos naturais ou meio de produção; b) Identificação e simbolização de grupos através de referentes espaciais (a começar pela própria fronteira); c) Disciplinarização ou controle por meio do espaço (fortalecimento do indivíduo por meio de espaços também individualizados); d) Construção e controle de conexões e redes (fluxos, principalmente fluxos de pessoas, mercadorias e informações). É importante reiterar que o Estado produz e torna legítimo - por meio de uma ordem jurídica - um conjunto de regras obrigatórias que, como afirmamos anteriormente, são relacionadas à manutenção dos “interesses comuns”, à ordem geral que mantém (ou busca manter) determinado status quo. Há, portanto, certa hierarquização dos processos de territorialização e construção de territorialidades. Nem todos estes processos, no entanto, como já assinalado, são decorrência da ação do Estado, mas é ele que tem a primazia de apropriação e controle sobre o espaço nacional, independentemente ou de modo relacional aos processos de territorialização desencadeados pela diversidade de atores e de projetos sociais que o compõe. Mais do que apropriação e controle, o Estado torna-se também mediador das relações entre os locais e as redes globais que buscam transpor fronteiras para realizar projetos econômicos e políticos. Neste sentido, estão dadas, de certa forma, as possibilidades e os limites às interações (complementares ou conflituosas) entre as “jurisdições” da pluralidade de territórios que existem em um mesmo espaço. Estamos, portanto, lidando com um campo político ou campo de poder, no qual agentes interagem e se posicionam, disputando objetos relacionados à capacidade de significar práticas ou ações políticas e, de certa forma, exercer poder. Entretanto, é o Estado que detém maior capacidade (capital) para “impor” regras ao jogo e definir “campos operatórios das 11 ações”3. O Estado, portanto, tem uma posição privilegiada para o exercício do poder (Bourdieu, 2005).4 Para Haesbaert (2005), o território está imerso em relações de dominação e/ou de apropriação. As relações de dominação, que assumem caráter jurídico e político, tornam o território “funcional”, governável ou “preparado” à intervenção burocrática. As relações de apropriação o tornam “simbólico”, como resultado de ações de identificação ou construção de identidades políticas, que relacionam o “ser” ao “lugar”, e de atribuições de significados. Para este autor, o território se desdobra em um continuum, que vai “da dominação político-simbólica ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva e/ou ‘cultural simbólica’”. Temos, assim, a noção de “espaço socialmente construído”. O território é, portanto, o espaço territorializado por meio de processos “de apropriação (que começa pela apropriação da própria natureza) e dominação (mais característica da sociedade capitalista moderna)”. Deste modo, “todo território é ao mesmo tempo e obrigatoriamente, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar ‘funções’ quanto para produzir ‘significados’” (Haesbaert, 2005, p. 6775). O Estado brasileiro, a partir de seus textos constitucionais, produz ao menos duas acepções distintas sobre o “território”. Magdaleno (2005) analisou os textos das Constituições republicanas (de 1891 a 1988), buscando entender “a forma e o grau de inserção do conceito de território no pensamento político brasileiro” e seu modo de apropriação nos textos constitucionais em termos de “recortes territoriais para a ação” (p. 115), o que implica modos diversos de territorialização da política. De sua análise resulta a identificação de duas grandes dimensões presentes nos textos constitucionais acerca do conceito de território. Uma, denominada de “formal”, que representa o território físico (ou “funcional”, nos termos de Haesbaert), que demarca o Estado nacional, suas divisões subnacionais e a hierarquização dos poderes constituídos (União, estados e/ou municípios), marcando a soberania da União como agente político regulador deste território formal. Nesta vertente, o território, representado como “localidade”, “aparece como meio de construir e tratar problemas de organização” (Bourdin, 3 Bourdin fala sobre a existência de “contextos de ação”, constituídos como “configurações locais construídas por atores” para “organizar suas relações com o mundo” (Bourdin, 2001, p. 13). Para Bourdieu, “o Estado é resultado de um processo de concentração de diferentes tipos de capital, capital de força física ou de instrumentos de coerção (exército, polícia), capital econômico, capital cultural, ou melhor, de informação, capital simbólico, propriamente estatal, que permite ao Estado exercer um poder sobre os diversos campos e sobre os diferentes tipos específicos de capital, especialmente sobre as taxas de câmbio entre eles (e, concomitantemente, sobre as relações de força entre seus detentores)” (Bourdieu, 2005, p. 99). 4 12 2001, p. 52). Outra dimensão é a que concebe o território de modo menos formal e mais dinâmico, dialogando com a idéia de “territórios plurais” ou “multiterritorialidades” de Haesbaert. Nas Constituições brasileiras, segundo Magdaleno, (...) guardadas as particularidades de cada uma delas, emergem territórios muitas vezes superpostos, com limites tênues, alvos de disputas acirradas, sujeitos a mudanças permitidas por simples alterações nos textos constitucionais, os quais, a princípio, se mostram como elementos-chave na definição dos limites da ação de cada um dos entes federados, ou seja, de cada um dos agentes sociais aqui estudados (Magdaleno, 2005, p.129). Destas concepções derivam normas que implicam duas possibilidades históricas de territorialização da política, incluindo a distribuição, entre entes territoriais, de poderes e de condições de práticas, de influência ou de controle sobre determinada porção do espaço. A primeira delas esteve vigente até a década de 1980 e tinha por marca o caráter centralizador das ações públicas, com o Governo Federal detendo a quase exclusividade e domínio das competências tributárias. Decorre deste padrão uma representação do território como referência espacial para a colonização, delimitação e defesa de suas fronteiras. Para tanto, firmou-se a necessidade de concentração dos investimentos produtivos, fundamentados na expansão metropolitana e na industrialização dos processos de produção nas cidades e espaços rurais. Desta concepção desdobram-se leis, normas e regulamentos públicos que possibilitaram, no sentido de disponibilizar recursos públicos, a territorialização de diversos projetos de cunho desenvolvimentista (Haesbaert, 1997). Esta concepção muda substancialmente na Constituição de 1988, que estabelece uma descentralização das competências (entre elas as tributárias) entre os entes federados, alargando as possibilidades de ação das unidades subnacionais. De acordo com Magdaleno (2005), o território passa a ser concebido de maneira mais dinâmica, momento em que a dimensão local passa a ser representada como uma espécie de substrato à participação política e à expressão de demandas historicamente sufocadas. O arranjo normativo produzido ampliou em certa medida os campos operatórios, abrindo possibilidades principalmente à ação territorialmente localizada. O município, por exemplo, emerge com maior poder relativo deste processo, inclusive com determinadas competências tributárias que o capitalizam para se posicionar mais favoravelmente no campo de relações de poder dos processos de territorialização. Afonso (2004) afirma que em 2003 os municípios detinham 16% dos recursos 13 tributários nacionais.5 Obviamente, como destaca Souza (2004), a distribuição destes recursos obedece ao padrão de desigualdades socioeconômicas e demográficas que historicamente caracterizam o país. Os municípios da região Sudeste, por exemplo, têm uma receita tributária per capita média de R$ 115, enquanto na região Norte esta mesma receita média não ultrapassa R$ 30.6 Outro componente deste campo são as organizações de movimentos sociais, as organizações sindicais e as não-governamentais (conhecidas genericamente como ONGs). Estas organizações se fortalecem ao longo do processo de democratização política por meio de acesso a capitais e recursos (monetários e simbólicos) que, em grande medida, passavam à margem dos canais públicos oficiais. Suas capacidades de ação dependiam da construção de redes de cooperação e solidariedade que vinculavam agências internacionais de cooperação para o desenvolvimento, governos estrangeiros e organizações eclesiásticas. Sua ação, assim capitalizada, contribuiu para fomentar a participação política e a re-significar a ação política local. Por este veio, capilarizaram-se ações coletivas e percepções compartilhadas sobre organização política e promoção do desenvolvimento, bem como concepções diferenciadas sobre o que é desenvolvimento, possibilitando a instituição de novas e complexas territorialidades (redes que se tecem em torno de temas como organização sindical alternativa, educação popular, combate à pobreza, ações culturais diversas etc.). A partir desta diversidade, os territórios estatais formais ou mais tradicionais (ou “territórios-zona”) passam a conviver com “novos circuitos de poder que desenham complexas territorialidades, em geral na forma de territórios-rede” (Haesbaert, 2005, p. 6780). É o caso, por exemplo, do processo de construção das tecnologias agropecuárias alternativas que, em dado momento, articulou capitais diversos entre agências multilaterais de cooperação ao desenvolvimento, segmentos acadêmicos, setores progressistas da Igreja Católica e movimentos sindicais em ações de re-significação do desenvolvimento rural, fundamentados em uma lógica de construção de redes territoriais de ação. 5 É importante destacar que este processo de empoderamento dos municípios tem ao menos dois movimentos: aquele desencadeado pelas forças políticas que durante o processo constituinte fizeram valer as demandas locais em termos de mudanças nas relações de força e poder entre os entes federados; e o movimento que ocorreu no final dos anos 1990, quando “novas políticas voltadas à municipalização foram adotadas”, desta vez tendo como origem o próprio governo federal. “Estas políticas transformaram os governos locais nos principais provedores dos serviços universais de saúde e educação fundamental” (Souza, 2004, p.27). Em Souza (2004) encontramos uma análise aprofundada, qualificando a compreensão acerca das dimensões e alcance dos processos de descentralização e municipalização desencadeados no final dos anos 1980 6 14 É desta forma que os processos de territorialização tornam-se mais complexos. Territorialidades mais tradicionais, que buscam a demarcação de fronteiras físicas para exercício de autoridade e controle, passam a ter que dialogar com territorialidades mais dinâmicas, por vezes relacionadas a redes que transcendem os ambientes localizados. O próprio lugar, como argumenta Giddens (1996), deixa de ser meramente o cenário físico da “atividade social situada geograficamente” para tornar-se um ambiente de relação (intersubjetiva) entre diversas localidades, relativizando, dentre outras coisas, a noção de distância. Bourdin, referindo-se a análises francesas sobre processos de urbanização, afirma que está em construção uma mudança significativa nas percepções sobre os processos de territorialização: (...) o território não provém mais de um esforço a priori de organização, a partir de modelos claros e de referências adquiridas, esforço a priori traduzido no fato de todos se anteciparem com as mesmas ferramentas e as mesmas referências (mas, evidentemente não com os mesmos interesses), mas provém de uma agregação de fenômenos duplamente heterogêneos (pois eles vêm do exterior e não de muitas relações entre eles) o que não exclui de modo algum que se articulem em seguida entre si a posteriori. (Bourdin, 2001, p. 65, grifos no original). No contexto de aumento das interdependências globais, os Estados nacionais passam a mediar esta primazia com as demandas externas, cada vez mais poderosas. Os processos de globalização tornam as fronteiras nacionais flexíveis, criam novos processos de territorialização e/ou desterritorialização, deslocando as economias de “uma inscrição no sistema Estados-nação para novas formas de organização que o transcederiam”, acentuando o papel dos “mecanismos de mercado” (Acselrad, 2006, p. 13). Os Estados nacionais tenderam a “navegar no sistema financeiro global e adaptar suas políticas, em primeiro lugar, às exigências e conjunturas deste sistema” (Offe, 1999, p. 151). A crescente percepção da falência da “ideologia da globalização” como solução aos problemas da ausência ou insuficiência de desenvolvimento (Sunkel, 1999), reforçada pela eclosão da grave e recente crise financeira global, vem trazendo ao centro dos debates o papel a ser assumido pelos Estados nacional no fortalecimento de iniciativas e ações locais que se contrapunham. No contexto inaugurado nos anos 1980, a “questão territorial” foi re-significada pelo reconhecimento da desigualdade social gerada por um tipo de ação estatal que representava o território como espaço técnico para avanço de uma determinada visão de modernização capitalista, logo a seguir associada à necessidade de integração a circuitos financeiros globalizados. A “questão regional” elaborada a partir desta perspectiva perde força e apelo político. Ao mesmo tempo se reconhece que o amplo processo de modernização gerou 15 uma heterogeneidade de manifestações do fenômeno da desigualdade social, cuja expressão mais evidente seria a incidência de pobreza7, resultado da combinação de múltiplos vetores de exclusão que se articulam e interagem no âmbito local (portanto, territorial), de forma diferenciada, se reforçando mutuamente. Esta percepção da relação entre território e incidência de pobreza, veiculada por diversas organizações internacionais de apoio a projetos de desenvolvimento, inclusive o Banco Mundial, passou a demandar do Estado e da sociedade civil estratégias de ação moldadas a partir das necessidades segmentadas, particulares e até, em certos casos, referidas às pessoas e famílias. Estratégias que fossem flexíveis e sensíveis para captar “especificidades locais” e ofertar respostas aos problemas identificados. Esta representação do problema da desigualdade social e de sua face mais visível, a pobreza, contribuiu para desencadear uma infinidade de ações múltiplas e concomitantes de “combate à pobreza” e “inclusão social”. O município, o território e o local foram alçados à condição de locus privilegiado das ações públicas e privadas. Nesta concepção, os problemas localizados demandam, pois, soluções territorializadas, para, contraditoriamente, atuar sobre causas que são mais profundas e complexas e que, quase sempre, transcendem os espaços locais (Acselrad, 2006). Resulta deste processo um mosaico de ações - que conformam territorialidades – sobrepostas, que buscam enfrentar os problemas sociais que afloram localmente, geralmente com recursos e capacidades diversas e, de forma bastante recorrente, a partir de intervenções desarticuladas. De acordo com Bronzo (2007, p. 91), deste cenário emergem três questões para o desenho de políticas públicas que elegem como foco a questão da “inclusão social”: (a) a centralidade do território, “seja como elemento de diagnóstico e focalização, seja como objeto de intervenção”; (b) a noção de “infra-estrutura social”, “que combina a noção de território com a de comunidade”; e (c) “a atenção necessária a formas flexíveis de provisão de serviços”. A abordagem territorial do combate à pobreza supõe estratégias de intervenção sobre espaços que 7 A noção de pobreza é fortemente associada à de território e de região. Ela serve ao recorte de zonas, bairros, periferias, favelas, assentamentos, áreas invadidas etc., que podem se tornar alvo da intervenção pública. Assim, a noção de pobreza serve à classificação e ao planejamento da ação estatal. Os pobres são os grupos sociais que ora estão abaixo de uma linha econômica de rendimentos, comparativamente a outros grupos, conformando uma noção econômica da pobreza; ora estão à margem do bem-estar social, com acesso restrito ou sem acesso à serviços públicos de saúde, sem capacidade de exercício pleno do direito à educação e, novamente, em situação de precariedade de renda. No primeiro caso, a Linha de Pobreza é o indicador econômico utilizada para classificar os pobres; no segundo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) cumpre esta tarefa. Em ambos os casos, os pobres, assim definidos, são estereótipos, produto de uma classificação que os aliena de suas historicidades. 16 possuem “grau de homogeneidade suficiente para permitir ações focalizadas nas problemáticas do público-alvo” (Bronzo, 2007, p. 99). Qualquer que seja a abordagem escolhida é recorrente a idéia de território como produto de relações de poder (incluindo relações de força e violência). Uma vez instituídos, os territórios configuram espaços físicos e simbólicos para o exercício deste poder por meio das interações sociais estabelecidas. Estas interações ocorrem em áreas delimitadas para a intervenção pública. Nestes cenários, o Estado detém o poder de divisão e classificação do espaço (Bourdieu, 1989). As leis, as políticas públicas e autoridade e legitimidade que lhes são conferidas, permite-lhe instituir espaços diferenciados uns dos outros e sobre eles incidem poderes específicos e, conseqüentemente, possibilidades distintas de interação, conferidas e demarcadas ou limitadas pelas normas, instituições, regras ou leis criadas para regular a realidade social. É assim que uma área onde há forte incidência de pobreza torna-se, para a intenção política de promover desenvolvimento, um “território”, ou seja, passa a existir como tal e como lugar de intervenção; passa a ser objeto da instituição de normas que viabilizarão o projeto político de mudança embutido na intervenção. Torna-se também uma espécie de “unidade”. Não sem razão, os territórios instituídos nascem de um conhecimento produzido para afirmar sua unidade e por extensão sua identidade territorial, seja ela cultural, econômica ou física. Esta unidade construída e, às vezes, imposta é a base para normatizar interações necessárias para a realização de determinados projetos políticos. Em decorrência da necessidade de produção de um espaço unificado a partir de características comuns, toda intervenção, portanto, é um ato interessado em fazer valer visões e divisões que nem sempre correspondem àquelas construídas historicamente por aqueles que vivem no lugar. Os conflitos, muitas vezes, decorrem das relações de poder assimétricas que decorrem destes pressupostos da intervenção pública. Para o desenho de políticas públicas de promoção do desenvolvimento, os territórios surgem como áreas delimitadas, lugares de incidência do “não desenvolvimento” ou da pobreza. Tornam-se, por esta característica, espaços legítimos da intervenção pública para promover mudanças. Sabe-se, no entanto, que o Estado, quando intervém, devido às suas limitações infraestruturais e de legitimação, depende de colaboração, cooperação, apoio, parcerias, isto é, depende da construção de um conjunto de relações que tornem seu projeto político de mudança localmente executável e também legítimo. Estas configurações dependem da mobilização de agentes locais que, como vimos anteriormente, também buscam realizar, localmente, seus próprios projetos. Estão dados, nestes contextos, os contornos da construção de territorializações e territorialidades a partir de relações de poder. 17 3. Territórios e políticas públicas: diretrizes da política de desenvolvimento territorial rural A incorporação da abordagem territorial como caminho para a formulação de políticas públicas e, portanto, de intervenções sobre realidades/situações que se quer modificar é bastante recente. Ela vem implicando em uma resignificação de fenômenos que vêm ocorrendo no mundo rural8. Não se trata de pensá-lo apenas do ponto de vista da produção, mas como espaço de vida social, dando relevo às dimensões sociais e culturais presentes num determinado espaço. Sob essa perspectiva, abordagens territoriais do desenvolvimento implicam considerar variados aspectos que constituem territórios que, por definição, são marcados pela singularidade, o que não significa pensar em isolamento ou em abandono da relação local/global, mas sim afirmar que o local não é mera reprodução do global, mas, pelo contrário, reafirma suas particularidades por força mesmo da globalização. 3.1 Políticas públicas, marcos analíticos e a dimensão jurídico-legal De acordo com Peter Evans, as políticas públicas que focam o desenvolvimento a partir de uma perspectiva social tornam estratégica, em seu desenho, a constituição de instituições locais que sejam capazes de fortalecer mecanismos de governança (Evans, 2003). Estas idéias situam-se no contexto atual de revisão das teorias de desenvolvimento, buscando dar conta das novas e complexas territorialidades formadas com o aumento das capacidades locais para formular e publicizar suas demandas perante o Estado. Na leitura de Bourdin: “As redes de atores se diversificam e o sistema político-administrativo se fragmenta, até à incoerência. A ação pública se torna ineficaz quando ela se reduz à produção e à aplicação de normas jurídicas. Diante destas dificuldades, os Estados procuram técnicas mais refinadas de governo (...) Isso é acompanhado de um enfraquecimento do Estado governamental, em proveito de outras autoridades estatais (a justiça, as autoridades independentes), das coletividades territoriais e de componentes da sociedade civil” (Bourdin, 2001, p. 137). Para os objetivos deste trabalho, entendemos por política pública o conjunto de planos e programas de ação governamental destinado à intervenção na sociedade e à realização de 8 Mais adiante, discutiremos um pouco o próprio uso desse termo e suas implicações. 18 projetos políticos. Trata-se de um processo complexo de definição, elaboração e implantação de estratégias de ação por parte dos governos, no qual se verifica a identificação e seleção de determinados problemas sociais que, na visão dos gestores públicos, merecem ou devem ser enfrentados. Como argumenta Souza (2006, p. 26), as políticas públicas são o estágio em que os governos “(...) traduzem seus propósitos e plataformas eleitorais em programas e ações que produzirão resultados ou mudanças no mundo real”. É importante insistir no fato de que essa “tradução” não é simples, nem automática. Para além do processo de seleção acima mencionado, a tradução das plataformas em ação é mediada pela necessidade de acordos com os poderes Legislativo e Judiciário, seja por meio da criação de novas regulamentações, seja pela necessidade de buscar saídas para as tensões entre a vontade do governante e a institucionalidade jurídica existente. Obviamente, as políticas públicas não surgem apenas da identificação e seleção de problemas e da “vontade política” dos governantes. 9 Elas também têm por base, por um lado, a capacidade de organização e pressão da sociedade, que pode colocar questões na esfera pública e lutar para que elas sejam reconhecidas como problemas, passíveis de intervenção. Por outro, elas encontram, como já apontado, os filtros inerentes à ossatura do Estado (Offe, 1984), entre eles, “preceitos constitucionais” que orientam suas formulações. Como explica Silva (1997), uma constituição não regula direta ou indiretamente determinados interesses, mas define princípios a serem cumpridos pelos órgãos estatais por meio de programas de ação que visam à realização dos fins sociais do Estado. Estes princípios estão consolidados nas “normas constitucionais”. Os direitos sociais, por exemplo, são tratados pelas “normas programáticas”, tipo de norma constitucional que não tem aplicabilidade direta ou indireta (são, portanto, de “inaplicabilidade direta”, pois não estabelecem sanções ao seu descumprimento, servindo tão somente de orientação ao governante para elaborar e implementar políticas públicas). As normas programáticas descrevem princípios que devem nortear a finalidade do Poder Público, mas também, é importante ressaltar, representam obrigações do Estado. De acordo com Bobbio (1989, p. 134), “(...) qualquer norma constitucional subtende força normativa, expressando obrigação de deveres”. Os preceitos constitucionais, expressos em normas programáticas, 9 Sob essa perspectiva, a expressão “vontade política”, bastante usada nos discursos políticos, precisa ser vista com alguns cuidados, uma vez que essa “vontade” sempre encontra algumas dificuldades objetivas, contornáveis ou não. 19 dependem, portanto, da complexa relação entre Poder Público e demandas sociais10, para serem regulamentados e promovidos por meio da implantação de políticas públicas. Dependem ainda, em diversas circunstâncias, da interpretação feita pela magistratura da pertinência ou não de determinadas leituras dos princípios constitucionais, remetendo à discussão da dinâmica inerente aos princípios legais. Esta é a relação essencial entre as leis e as políticas públicas. Devemos destacar que a política pública não configura uma norma nem um ato jurídico, embora deva, obrigatoriamente, estabelecer relações com os arranjos jurídicos instituídos e, em diversos momentos, impulsionar alterações nas normas vigentes e criação de novas normas. Desta forma, estas políticas buscam articular a heterogeneidade das normas e atos jurídicos existentes para se tornarem operacionalizáveis. Neste sentido, as políticas públicas são estratégias que viabilizam e orientam a intervenção do Estado (Offe, 1984). Na prática, elas assumem a forma de planos, programas ou projetos de ação governamental (Comparato, 1997), que geralmente contêm um diagnóstico sobre determinado problema que representa seu foco e uma proposta para solucioná-lo. Representam, portanto, uma visão sobre o problema e uma proposição para enfrentá-lo. Além disso, têm caráter seletivo, por escolher determinados problemas e preterir outros. Por isso, longe de representar consensos, as políticas públicas são arenas de disputas sobre a definição de problemas sociais e projetos políticos que elaboram alternativas de intervenção sobre os mesmos (Faria, 2003), de forma a tentar mudar o curso de processos considerados indesejáveis. Idéias e interesses dissonantes geram disputas sobre a prerrogativa de orientar a ação dos governos, configurando a autonomia relativa destes na definição de suas próprias estratégias de ação. Assim, o papel do governo na definição, formulação e implementação de políticas públicas torna-se uma questão a ser compreendida em cada caso (Souza, 2006). É importante afirmar que as políticas públicas, compreendidas como ações públicas, são realizadas tanto por diferentes órgãos ou organismos governamentais quanto por organizações ou entidades privadas. Gera-se, a partir deste fato, um problema de coordenação e de articulação de ações que são desencadeadas pela implementação das políticas. Entre a diversidade de políticas públicas existente e as ações dos agentes que as executam há sobreposições, complementaridades e conflitos entre os distintos objetivos, temas, focos, É sempre bom lembrar que, quando nos referimos a demandas sociais, estamos considerando não somente as organizações de trabalhadores, mas também associações patronais e profissionais dos mais diferentes tipos, que representam uma enorme diversidade de interesses. Também podem ser nelas abrangidas organizações não governamentais que, muitas vezes, funcionam como mediadoras das demandas de determinados grupos sociais, incapazes de constituir sua própria representação política. 10 20 população beneficiada, arranjos operacionais forjados, jurisdições etc. Os arranjos de formulação e implementação nem sempre são coordenados e apresentam articulação, gerando problemas de pulverização e fragmentação das ações. Souza apresenta-nos uma síntese sobre as diversas vertentes teóricas que buscam caracterizar e definir as políticas públicas como categoria analítica da ação do Estado. Os elementos principais elencados pela autora, acerca da diversidade de definições e modelos, são os seguintes: a) “A política pública permite distinguir entre o que o governo pretende fazer e o que, de fato, faz; b) A política pública envolve vários atores e níveis de decisão, embora seja materializada através dos governos, e não necessariamente se restringe a participantes formais, já que os informais são também importantes; c) A política pública é abrangente e não se limita a leis e regras; d) A política pública é uma ação intencional, com objetivos a serem alcançados; e) A política pública, embora tenha impactos no curto prazo, é uma política de longo prazo.” (Souza, 2006, p. 36) Um dos instrumentos administrativos utilizados para minimizar os efeitos não desejados da complexidade de fatores que envolvem o processo de elaboração e execução de políticas públicas é estabelecer, juridicamente, as características e as finalidades do órgão e da unidade gestora do programa que realiza objetivos de uma política pública. 3.2 O contexto das políticas de desenvolvimento territorial no Brasil Schneider (2004) chama a atenção para o fato de que, nos anos 90, o território emerge como nova unidade de referência para a atuação do Estado e a regulação das políticas públicas. Segundo o autor, “Trata-se, na verdade, de uma tentativa de resposta do Estado, entendido como instituição jurídico-social, às fortes críticas a que vinha sendo submetido, sobretudo tendo em vista a ineficácia e a ineficiência de suas ações, seu alto custo para a sociedade e a permanência das mazelas sociais mais graves como a pobreza, o desemprego, a violência, etc. Neste cenário, ganham destaque iniciativas como a descentralização das políticas públicas; a valorização da participação dos atores da sociedade civil, especialmente ONGs e os próprios beneficiários; a redefinição do papel das instituições; e cresce a importância das esferas infranacionais do poder público, notadamente as prefeituras locais e os atores da sociedade civil. Contudo, para acionar e tornar efetivas as relações do 21 Estado central com esses organismos locais, tornou-se necessário forjar uma nova unidade de referência, que passou a ser o território e, conseqüentemente, as ações de intervenção decorrentes deste deslocamento passaram a se denominar desenvolvimento territorial.” (Schneider, 2004, p. 102/103) As políticas de desenvolvimento com enfoque territorial, que começaram a ser implementadas a partir da segunda metade dos anos 1990 no Brasil, compartilham alguns pressupostos e princípios. Dentre estes, se encontra a preocupação com a delimitação do espaço de intervenção dada pela necessidade de combate à pobreza ou pelas demandas de inclusão social. Um fundamento importante à repartição territorial é a percepção de que o território é dotado de recursos e ativos específicos, cuja valorização deve ser vinculada à ação localizada daqueles que se relacionam diretamente com estes recursos e ativos, de modo a organizar intervenções localmente apropriadas (Schmidt et al., 2003). Outro pressuposto comum é a necessidade de adequação destas políticas às demandas do público beneficiário e a criação de institucionalidades participativas para flexibilizar a provisão de serviços públicos. Qual desenho institucional é comumente elaborado pelas políticas públicas de desenvolvimento com enfoque territorial? No caso brasileiro, quais alternativas vêm sendo experimentadas? Em busca de respostas a esta questão nossa análise volta-se a seguir à política de desenvolvimento territorial formulada pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário. Partindo da discussão anteriormente apresentada, o objetivo é caracterizar esta política, identificando suas representações sobre “território”, seu desenho operativo e as relações que propõe estabelecer com os marcos jurídicos existentes. Trabalharemos esta caracterização por meio da análise de textos oficiais e de alguns textos acadêmicos que a avaliaram. A literatura especializada indica que há ao menos três grandes segmentos de políticas públicas: (a) as políticas econômicas (cambial, financeira e tributária); (b) as políticas sociais (educação, saúde e previdência); e (c) as políticas territoriais (meio ambiente, urbanização, regionalização e transportes). Para cada uma delas, num país como o nosso, há distintas agências responsáveis (ministérios, secretarias e outros organismos). No caso da política de desenvolvimento territorial, o órgão do Governo Federal responsável é o Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e uma das unidades gestoras de programas relacionados ao tema é a Secretaria de Desenvolvimento Territorial (SDT/MDA). Esta secretaria foi criada pelo Decreto nº 5.033 de 05 de abril de 2004 (Brasil, 2004), que aprovou a Estrutura Regimental do Ministério do Desenvolvimento Agrário. De acordo com este decreto, a SDT/MDA é uma “unidade jurisdicionada”, subordinada e parte integrante do MDA, à qual compete: 22 I. “Formular, coordenar e implementar a estratégia nacional de desenvolvimento territorial rural e coordenar, mediar e negociar sua implementação; II. ncentivar e fomentar programas e projetos territoriais de desenvolvimento rural; III. ncentivar a estruturação, capacitação e sinergia da rede formada a partir dos órgãos colegiados, especialmente os conselhos onde estejam representando o conjunto dos atores sociais que participam da formulação, análise e acompanhamento das políticas públicas voltadas ao desenvolvimento rural sustentável; IV. Coordenar a mediação e negociação dos programas sob a responsabilidade da Secretaria junto a entidades que desenvolvem ações relacionadas com o desenvolvimento territorial rural; V. Manter permanente negociação com movimentos sociais, Governos Estaduais e Municipais e com outras instituições públicas e civis, com vistas à consolidação das políticas e ações voltadas para o desenvolvimento territorial rural; VI. Negociar, no âmbito do Ministério, o atendimento das demandas relacionadas com o desenvolvimento territorial rural; VII. Assistir e secretariar o CONDRAF; VIII. Negociar a aplicação de recursos para o desenvolvimento territorial rural alocados em outros Ministérios; IX. Negociar com os agentes operadores a efetivação de contratos de repasse de recursos da União destinados às ações de infra-estrutura, fortalecimento das organizações associativas nos territórios, comercialização, planos de desenvolvimento territorial rural e educação/capacitação; X. Acompanhar, supervisionar, fiscalizar e gerir a operacionalização de contratos e convênios voltados às ações de infra-estrutura, com Estados e Municípios; e XI. Apoiar as ações das Secretarias-Executivas Estaduais do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar - PRONAF e dos Conselhos Estaduais de Desenvolvimento Sustentável - CEDRS ou de outras instâncias colegiadas, no que couber”. É em relação a estes itens que deve se balizar sua ação, por meio dos programas de políticas públicas sob sua responsabilidade de gestão. No mesmo decreto (nº 5.033 de 05 de abril de 2004), estas competências são estendidas às relações com as unidades subordinadas da SDT/MDA e com outras unidades gestoras de políticas públicas, por meio do que foi designado como “Departamento de Ações de Desenvolvimento Territorial” da própria Secretaria, composto pelas Coordenações Gerais de Apoio à Infra-estrutura, de Desenvolvimento Humano, de Apoio a Organizações Associativas e de Apoio a Negócios e Comércio Territorial. Há ainda uma estrutura de assessoria e uma Coordenação-Geral de Apoio a Órgãos Colegiados. A este departamento compete: I. Coordenar as ações das unidades a ele subordinadas; II. Apoiar a construção e gestão de planos territoriais de desenvolvimento rural sustentável; III. Articular com outros órgãos a implementação, de forma integrada, das políticas públicas voltadas para o desenvolvimento territorial rural; IV. Negociar a aplicação de recursos para o desenvolvimento territorial alocados em outros órgãos setoriais do Governo Federal; 23 V. Articular com os agentes operadores a efetivação de contratos e convênios; VI. Acompanhar, supervisionar, fiscalizar e gerir a operacionalização de contratos e convênios com Estados, Municípios e organizações da sociedade civil; e VII. Apoiar as ações das Secretarias-Executivas dos Conselhos Estaduais de Desenvolvimento Sustentável - CEDRS ou de outras instâncias colegiadas, na elaboração e gestão de planos territoriais de desenvolvimento rural sustentável. Por meio da Portaria nº 52 do Ministério do Desenvolvimento Agrário, de 16 de julho de 2004, agregaram-se outras competências relacionadas ao Projeto de Desenvolvimento Sustentável para os Assentamentos de Reforma Agrária na Região no Semi-Árido do Nordeste (Projeto Dom Helder Câmara), que também é uma unidade gestora da política de desenvolvimento territorial e seus programas. São elas: I. Exercer a coordenação-geral do Projeto; II. Articular com os órgãos e entidades da Administração Pública Federal, Estadual e Municipal visando garantir o caráter interinstitucional do Projeto; III. Realizar todos os procedimentos administrativos necessários para a execução do Projeto; IV. Indicar responsáveis para atuar como Ordenador de despesas e Gestor Financeiro da Unidade Gestora 490006 (Projeto Dom Helder Câmara). Esta legislação configura os limites de competência e de atuação da SDT/MDA. Esta é a sua jurisdição, do modo como vimos empregando o termo neste trabalho, buscando significar o campo de atuação (ou “campo operatório”) e de influência de um determinado ator sobre as ações e interação sociais das quais participa. Ao ser-lhe atribuída a competência de formular, coordenar e articular a estratégia nacional de desenvolvimento territorial rural, a SDT/MDA é alçada ao campo das ações e interações sociais do conjunto complexo e diverso de agentes que lidam com o tema e que também têm competências legalmente estabelecidas. Estas atribuições também projetam a ação da Secretaria em campos de ação normatizados, sob a influência e jurisdição de uma diversidade de atores que operacionalizam, localmente, os marcos jurídicos que regem a vida em sociedade. Um destes campos é o que estabelece a competência da SDT/MDA para negociar a efetivação de contratos de repasse de recursos da União destinados “às ações de infraestrutura, fortalecimento das organizações associativas nos territórios, comercialização, planos de desenvolvimento territorial rural e educação/capacitação” (Brasil, 2004). O repasse de recursos é um tipo de operação que aciona diversos atores e normas estabelecidas. Mais adiante analisaremos mais detidamente as implicações desta atribuição de competências. 24 Além do seu conteúdo formal, que geralmente é pouco divulgado e conhecido, uma política pública também é um discurso elaborado em documentos ou textos que apresentam aos gestores públicos, aos profissionais que a implementam e ao público em geral as estratégias escolhidas, os conceitos e princípios estabelecidos, os objetivos definidos, bem como uma determinada leitura e compreensão da questão em pauta, de suas origens e das possibilidades de intervenção. Os documentos das políticas públicas representam importante fonte de pesquisa para compreensão da sua sociogênese, da leitura da realidade adotada, da justificativa para a definição ou delimitação do problema e da elaboração da estratégia de implementação proposta. Nestes documentos geralmente há uma elaboração mais detida sobre o desenho institucional e as estratégias de implementação elaboradas. No caso aqui analisado, tomaremos como documentos de referência os textos de orientação da política de desenvolvimento territorial elaborados pela Secretaria de Desenvolvimento Territorial do Ministério do Desenvolvimento Agrário.11 O foco da análise será investigar as relações entre desenho institucional da política e arranjos jurídicos existentes. A SDT/MDA elaborou e gerencia dois programas da política pública de desenvolvimento territorial, constantes dos Planos Plurianuais de Investimentos do Governo Federal12, respectivamente o “Programa Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais” (2004-2007) e o “Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável de Territórios Rurais” (2008-2011). Os textos de orientação, anteriormente referidos, objetivam dar suporte à implementação destes dois programas. É nestes textos que se elabora um discurso sobre as intenções da política e seus fundamentos. Neles a SDT/MDA se atribui a seguinte missão: “(...) apoiar a organização e fortalecimento institucional dos atores sociais locais na gestão participativa do desenvolvimento sustentável dos territórios rurais e promover a implementação e integração de políticas públicas” (Brasil, 2005, p. 3). A SDT/MDA define seu foco de ação como os espaços rurais - “territórios” - que apresentam maior “demanda social”, isto é, maior incidência de agricultores familiares. São Entre 2003 e 2007 a SDT/MDA elaborou uma série de documentos que objetivam difundir conceitos, consolidar seus objetivos e métodos e fornecer orientação e apoio ao corpo técnico e aos parceiros envolvidos na implementação da política. Estes documentos, referenciados no final deste relatório, são base para a análise elaborada a seguir. 11 Previsto na Constituição Federal, o Plano Plurianual é regulamentado pelo Decreto 2.829, de 29 de outubro de 1998. O Plano estabelece as medidas, gastos e objetivos que orientam ao Governo Federal ao longo de um período de quatro anos. É aprovado por lei quadrienal. Sua vigência prolonga-se do segundo ano de um mandato presidencial até o final do primeiro ano do mandato seguinte. 12 25 considerados incluídos neste grupo comunidades indígenas, quilombolas, pescadores e extrativistas artesanais, famílias assentadas em projetos de reforma agrária “(...) ou grupos de trabalhadores rurais que postulam acesso à terra, mobilizados ou não” (BRASIL, 2005a, p. 3)13, relacionando a política às estratégias de combate à pobreza, à exclusão e às desigualdades sociais. Define-se também, desta forma, o público preferencial a ser envolvido pelas ações. As ações decorrentes da política são qualificadas como “estratégias de apoio ao desenvolvimento sustentável dos territórios rurais”, cujo objetivo geral declarado é “promover e apoiar iniciativas das institucionalidades representativas dos territórios rurais” (p. 7). A concepção da política, portanto, busca demarcar e relacionar um público específico de agricultores, definindo-o, aparentemente, por meio de suas “institucionalidades representativas”, o espaço físico em que estes atores interagem, suas iniciativas em relação às ações públicas de promoção do desenvolvimento (relacionadas à participação, organização política e ações de gestão da própria política). Chama a atenção uma aparente contradição no discurso. Embora a demanda social que define a escolha dos “territórios prioritários” fale sobre grupos sociais “mobilizados ou não”, o objetivo da política afirma a promoção e o apoio às “iniciativas das institucionalidades representativas dos territórios rurais”, ou seja, parece haver uma opção preferencial pelos grupos sociais organizados, aqueles que conseguem institucionalizar suas iniciativas e demandas. Esta percepção é reforçada quando se menciona a “promoção e o apoio” voltados “especialmente” aos atores “que atuam na representação dos agricultores familiares, dos assentados de reforma agrária e de populações tradicionais” (p. 7). Na maneira pela qual é expressa sua perspectiva de intervenção, a política parece criar recortes complementares: um público específico e qualificado que vive em um determinado espaço no qual interage preferencialmente a partir de organizações que representam certo campo da organização sociopolítica da agricultura familiar. Com relação ao público foco da política, no discurso elaborado pela SDT/MDA “(...) cada território encerra uma diversidade de atores e de interesses, alguns deles conflitantes, outros não, além de outras características próprias, que o distinguem dos demais (Brasil, 2005a, p. 267)”. As realidades, portanto, são específicas e demandam, pois, intervenções também específicas. Neste sentido, compreende-se que os atores dos territórios “(...) se relacionam Na seqüência do texto utilizaremos preferencialmente esta referência para analisar o conteúdo do desenho institucional da política de desenvolvimento territorial. Portanto, para evitar a repetição da referência, indicaremos apenas a página da citação utilizada. É oportuno citar que concepção da SDT/MDA é tributária de uma reflexão cuja origem está no meio acadêmico, em especial nas contribuições de Ricardo Abramovay. 13 26 interna e externamente por meio de processos específicos, onde se pode distinguir um ou mais elementos que indicam identidade e coesão social, cultural e territorial” (p. 34). A coesão e a “identidade territorial” são tidas como resultados de: “(...) formas específicas de interação social, da capacidade dos indivíduos, das empresas, das instituições e das organizações locais em promover ligações dinâmicas, propícias a valorizar seus conhecimentos, suas tradições e a confiança que foram capazes de construir ao longo da história” (p. 3). É importante ressaltar que o discurso elaborado nos documentos de orientação da SDT/MDA ora afirma que os territórios têm uma identidade própria e específica, “construída ao longo da história”, fato que os fez, inclusive, ser escolhidos como foco da intervenção da política; ora fala sobre a necessidade de criação e afirmação de uma identidade territorial por meio da intervenção pública. Podemos inferir que a existência de certa identidade vinculada ao espaço geográfico seja um dos critérios e/ou pontos de partida para a seleção e instituição do território e para ação pública. Esta ação torna-se necessária para promover a interação entre as distintas capacidades presentes nos territórios, que dependem de uma “visão integradora de espaços”, parecendo ser uma atribuição da ação pública desenhada, como pressuposto e como estratégia, na política de desenvolvimento territorial. Imagina-se, portanto, que a coesão e a identidade territorial dependem, para a sua afirmação (ou mesmo criação), de uma ação pública que lhes dê sentido e orientação, criando condições para a mobilização dos agentes locais “em torno de uma visão de futuro, de um diagnóstico de suas potencialidades e constrangimentos, e dos meios para perseguir um projeto próprio de desenvolvimento sustentável” (p. 8). O território torna-se um foco de intervenção porque nele há uma “identidade” ou “atributos” gerados por uma suposta característica intrínseca das localidades, o fato de combinar “(...) a proximidade social, que favorece a solidariedade e a cooperação, com a diversidade de atores sociais” (p. 30). Neste sentido, a noção de “capital social”14 é frequentemente utilizada para compor o argumento sobre a necessidade de mobilização do conjunto das relações (pessoais, sociais e institucionais) em torno de um determinado fim. No discurso elaborado, Nos textos da SDT, o termo tem uma definição expressa e é “(...) entendido como o conjunto de relações (pessoais, sociais, institucionais) que podem ser mobilizadas pelas pessoas, organizações e movimentos visando a um determinado fim, o capital social tem na sua raiz processos que são, a um só tempo, baseados e geradores de confiança, reciprocidade e cooperação. Implica a habilidade de pessoas e grupos em estabelecerem relações duradouras, obter recursos financeiros, materiais, cognitivos e empreender ações com a finalidade de reduzir custos das transações por meio da associação, da administração, da compra e da venda conjuntas, do uso compartilhado de bens, da obtenção e difusão de informações” (Brasil, 2005a, p. 9). 14 27 mobilizar o capital social disponível nos territórios conduziria à conformação de uma identidade territorial. Dados os desafios da proposta, as noções e “articulação” e “gestão compartilhada” (ou “gestão social”) são essenciais ao desenho da política. Aos atores sociais do território atribui-se a responsabilidade não apenas do envolvimento nos espaços de consulta e deliberação instituídos, mas também: “(...) no conjunto de iniciativas que vão desde a mobilização desses agentes e fatores locais até à implementação e avaliação das ações planejadas, passando pelas etapas de diagnóstico, de elaboração de planos, de negociação das políticas e projetos” (p. 10). É neste sentido que a “gestão social” da política de desenvolvimento territorial é concebida por meio da atribuição de responsabilidades aos atores locais de modo a gerar comprometimentos pessoais e coletivos e “aderência” ou apropriação da política ao “cotidiano das pessoas, das instituições, das economias locais” (p. 9). Alguns autores destacam ser esta uma de suas principais inovações, ou seja, propor uma mudança no padrão histórico e convencional de implementação de políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil, geralmente fundadas na lógica do planejamento descendente, centralizado, com pouco espaço à participação e deliberação local. A pretensão é “(...) que as forças sociais dos territórios desempenhem, em processos concentrados de organização dos fatores locais, o mesmo papel de destaque que elas têm na vida real destes espaços” (p. 3). Esta qualidade das “forças sociais” do território não é assumida como pré-existente, mas como algo a ser construído ao longo do processo e a depender das características do território e que se relacionam fundamentalmente com as sinergias que possam ser despertadas no público alvo da política. Os processos de gestão social, na perspectiva da SDT, precisam, para tanto, se apoiar no capital social dos territórios, nos laços de identidade, de confiança e de colaboração que há entre as forças locais. E, onde isso é frágil ou não existe, é preciso criar espaços e condições para gerar o aprendizado e o esforço de identificação de complementaridades capazes de por em diálogo os diferentes agentes, fazer confluir suas perspectivas individuais, tatear e construir convergências onde há isolamento e fragmentação, formar esse capital social, enfim (p. 10). O capital social e os processos de gestão que o têm como base teriam, basicamente, dois tipos de institucionalidades de suporte: os “arranjos institucionais”, que surgiriam do esforço de articulação e complementaridade da diversidade de ações dos atores territoriais; e os arranjos institucionais mais estáveis e burocratizados, que seriam os fóruns ou espaços 28 institucionalizados para concertação de interesses e projetos nem sempre convergentes em torno de objetivos comuns definidos pela política. No discurso elaborado destaca-se a necessidade de trabalhar para que “(...) a fragmentação e a pulverização inicialmente existentes dêem origem a um projeto coeso, mas diversificado, baseado nos ganhos mútuos aos diferentes grupos sociais” (p. 11). Por fim, a política pública de desenvolvimento territorial depende da construção de estratégias de articulação para dar conta da diversidade de atores, projetos, propostas, políticas públicas, tipos e modos de intervenção presentes nos territórios etc. Para este desafio a SDT/MDA propõe o planejamento ascendente, sugerindo a criação de um instrumento a ser gerido pelas institucionalidades territoriais. O Plano Territorial de Desenvolvimento Rural Sustentável (PTDRS) seria, para o território, o principal instrumento orientador das articulações e comprometimentos necessários. Para o ambiente mais amplo, que extrapola as relações criadas no colegiado territorial, a SDT/MDA se atribui a tarefa de formular “acordos de cooperação”, ofertando aos potenciais parceiros: “(...) oportunidades de incrementar a eficácia das políticas e iniciativas por eles desenhadas através da qualificação propiciada pelas formas de gestão social instaladas nos territórios (...) a oportunidade de territorializar políticas públicas dentro de processos ordenados e ordenadores” (p. 13). Os atributos territoriais, uma vez valorizados e apropriados à política, conduziriam a uma melhor articulação dos serviços públicos presentes nos territórios, a uma melhor organização do acesso aos mercados internos e, imagina-se, ao compartilhamento de uma “identidade cultural”, base para a “coesão social e territorial” (p. 30). A criação deste ambiente favorável levaria ao “estabelecimento de iniciativas voltadas para o desenvolvimento” (p. 8). Para alcançar estes objetivos, o desenho institucional da política prevê uma estratégia de implantação que ocorreria em ciclos (com a duração total de 15 anos) a partir das seguintes ações processuais, definidas no Programa Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Territórios Rurais (Pronat): (a) mobilização e capacitação de atores sociais, gestores públicos e agentes de desenvolvimento (por meio de reuniões de trabalho, geralmente designadas como “oficinas”); (b) criação de uma instituição territorial de caráter colegiado para gerir a política; (c) elaboração do PTDRS; e (d) apoio logístico às institucionalidades territoriais criadas pelo Programa e àquelas que já existiam e passam a se relacionar com a implementação da política. O objetivo declarado do Programa é promover o planejamento, a implementação e a auto-gestão do processo de desenvolvimento sustentável dos territórios rurais e o fortalecimento e a dinamização da sua economia. Para realizar este objetivo, a SDT/MDA executa, a partir do 29 Pronat, seu principal programa, cinco ações estratégicas: (a) elaboração dos PTDRS; (b) capacitação de atores, gestores e agentes para o desenvolvimento territorial; (c) gestão e administração do Programa; (d) assistência técnica e financeira a Projetos de Infra-estrutura e Serviços nos Territórios; e (e) remuneração das instituições financeiras públicas que operacionalizam ações do Programa executadas por meio de contratos de repasse por instituições públicas federais. A ação de apoio à infra-estrutura e serviços nos territórios rurais substituiu o Pronaf Infraestrutura e Serviços Municipais. Trata-se de uma linha de financiamento que opera com recursos não reembolsáveis à União, que podem ser acessados por organismos públicos e, em certos casos, também por instituições não governamentais. Esta breve descrição do desenho da política permite-nos perceber que a ação da SDT/MDA se espraia por diversos campos de interação e embates para implementar os objetivos do Pronat. Todos estes campos são relacionados a marcos jurídicos específicos. É importante ressaltar que a política de desenvolvimento territorial não cria normas ou atos jurídicos. Antes, ela deve obedecer às normas estabelecidas. No entanto, o MDA e a SDT têm competência legal, como “unidades jurisdicionadas”, para estabelecer normas, regulamentos e critérios que regulem o funcionamento de sua ação e a implementação da política, desde que este ordenamento criado subordine-se às leis que lhes são superiores. Neste sentido, o campo de ação da SDT/MDA, embora seja bastante amplo nos termos de sua formulação, é marcadamente limitado quanto às competências que lhes são atribuídas por lei. Ao analisarmos as competências estabelecidas pelo Decreto nº 5.033 de 05 de abril de 2004 (BRASIL, 2004), percebemos que estas atribuições, em sua maioria, dizem respeito a relações que podem e devem ser estabelecidas pela Secretaria com outros órgãos ou instâncias públicas, organizações de movimentos sociais, entidades parceiras executoras de projetos, entes federativos (governos estaduais e municipais), órgãos colegiados etc. Cabe à SDT/MDA, principalmente, a tarefa de executar programas que dependem, essencialmente, do estabelecimento de parcerias para que possam acontecer. A Secretaria desenvolve, basicamente, atividades de coordenação e articulação relacionadas à política pública, desempenhando também importante papel na produção e sistematização de informações sobre os territórios rurais apoiados pela política. As atividades de execução direta restringem-se, portanto, à administração da própria secretaria e à Secretaria do Conselho Nacional de Desenvolvimento Rural Sustentável (Condraf). As atividades de articulação política começam com o próprio processo de seleção e criação dos territórios, que envolve negociações com governos estaduais e municipais. Nos 30 primeiros anos de implantação da política, devido à mudança de regras para o acesso aos recursos do Pronaf Infra-estrutura e Serviços Municipais, as prefeituras disputavam participação nos territórios para garantir acesso a recursos. As mudanças constantes na composição dos territórios levaram a SDT/MDA a estabelecer normas específicas por meio de uma portaria em julho de 2005. Os governos estaduais são essenciais à execução da estratégia, visto que os Conselhos Estaduais de Desenvolvimento Rural Sustentável (CEDRS) são os responsáveis legais pela aprovação da criação de territórios e deliberam, por exemplo, sobre a inclusão ou exclusão de municípios nos territórios já existentes. É também nos CEDRS que tramitam os projetos territoriais vinculados ao Pronat15, aqueles que buscam apoiar ações voltadas à dinamização das economias territoriais, ao fortalecimento das redes sociais de cooperação e ao fortalecimento dos mecanismos de gestão social. Estes conselhos também são espaço para negociar com entidades públicas estaduais e organizações da sociedade civil. Muitas destas entidades e organizações têm representação nos colegiados territoriais e suas ações, em muitos casos, interagem com os projetos e ações que têm origem nos territórios. O trabalho de articulação política também envolve a celebração de acordos formais e convênios, que envolvem a Caixa Econômica Federal e que são necessários às transferências de recursos públicos do Orçamento Geral da União a entidades públicas ou privadas para execução das ações territoriais previstas nos projetos financiados pelo Pronat. Embora homologados pelos CEDRS, os contratos/convênios são formalizados com os governos municipais, não importando se formalmente compõem ou não o território. O projeto territorial, ao considerar que determinado município, mesmo fora do território, é estratégico para a o desenvolvimento do projeto, pode incluí-lo como executor. Também podem ser viabilizados convênios com os governos estaduais para implementar ações nos municípios de determinado território. Da mesma forma, as ações de custeio prevêem contratos/convênios com organizações não-governamentais. Além dos colegiados territoriais e dos CEDRS, as delegacias estaduais do MDA têm atribuições específicas estabelecidas por portarias ministeriais. Estas atribuições incluem a análise dos projetos elaborados e o acompanhamento dos trâmites necessários à sua aprovação. A análise técnica dos projetos inclui a constatação da obediência à Lei de Diretrizes Somente os projetos territoriais oriundos de emendas parlamentares, cuja destinação é indicada pelo parlamentar, não são objeto de discussão dos colegiados e de homologação pelos CEDRS. 15 31 Orçamentárias (LDO), que estabelece os critérios para contrapartidas e para transferências voluntárias. Este campo normativo tem na Caixa Econômica Federal seu agente operador. Suas responsabilidades legais incluem a celebração de contratos de repasse, a execução financeira dos recursos e a análise e aprovação de contas. A relação entre a Caixa e a SDT/MDA é legalmente fundamentada em um Acordo de Cooperação, em um Contrato de Prestação de Serviços e em uma série de Diretrizes Operacionais do próprio MDA. Esta relação, ao envolver governos estaduais, municipais e organizações sociais, tem por base legal a Lei de Diretrizes Orçamentárias, a lei de Responsabilidade Fiscal, as Instruções Normativas da Secretaria do Tesouro Nacional e as Resoluções do MDA. A realização dos projetos territoriais envolve, portanto, um ambiente de interações extremamente normatizado e referido a marcos jurídicos bastante complexos e de difícil articulação. A institucionalização induzida e/ou criada pela SDT/MDA busca articular-se a uma variedade de arcabouços jurídicos, por sua vez referidos a temas, focos e instâncias de poder variadas. Em busca da instituição de novas territorialidades para o desenvolvimento dos espaços rurais, a SDT/MDA se apóia em um “ente”, o território, que não tem representatividade legal. Nem o território nem sua institucionalidade, o Colegiado Territorial, por exemplo, têm legitimidade formal para celebrar contratos ou executar verbas públicas. Esta capacidade depende de acordos (formais e informais) a serem construídos com governos locais e estaduais. No desenho da política assume função essencial a figura do “articulador territorial”, aquele sobre o qual se projeta a competência ou a habilidade para tornar os processos de mobilização e ação dos agentes presentes no território coerentes com as orientações da política. A capacidade que a ação pública, concretizada por meio do desenho da política de desenvolvimento territorial implementada pela SDT/MDA, tem de estabelecer novas territorializações calcadas em um projeto político de promoção do desenvolvimento é, portanto, referida, principalmente, à capacidade de articulação política e construção de consensos e legitimidade entre a diversidade de atores e de outros projetos sociais que existem nos territórios. O arcabouço jurídico existente, ao mesmo tempo em que oferece limites a ação pública para implementar a política, abre a possibilidade de participação de entidades e organizações da sociedade civil na execução de recursos públicos, resolvendo, em parte, os limites infraestruturais da intervenção estatal. Ao mesmo tempo em que abre brechas à viabilização de um projeto político de desenvolvimento que se fundamenta em demandas históricas de setores 32 organizados da agricultura de base familiar, continua a limitar transformações estruturais mais amplas, favorecendo (e por vezes incentivando) a permanência de desigualdades sociais que emperram as iniciativas em prol de mudanças. 4. Marcos jurídicos intervenientes na política territorial: uma discussão a partir da literatura A literatura brasileira que discute o desenvolvimento territorial não tem dado muita atenção à dimensão jurídico-legal do tema. A preocupação dominante tem sido, por um lado, a de insistir na abordagem territorial como forma de superar a setorial, e, por outro, a de abordar as institucionalidades envolvidas. O resultado tem sido uma contribuição substancial ao debate. Para os objetivos do presente relatório, no entanto, torna-se necessário verificar como essa literatura vem apontando, mesmo que tangencialmente, tanto questões referentes a marcos jurídicos legais existentes, quanto mencionando a necessidade de criá-los. Parte significativa dos textos com que trabalhamos tem um caráter fortemente normativo. Escritos por alguns dos mais notáveis cientistas sociais brasileiros, apresentados em congressos científicos, publicados em importantes periódicos, eles derivam de uma reflexão que tem como ponto de partida a defesa da proposta de desenvolvimento territorial (mesmo que críticos à forma como ela vem efetivamente se desenvolvendo). São, em grande parte, trabalhos derivados de consultorias para o governo federal ou resultados de pesquisas financiadas por entidades que tem feito do desenvolvimento territorial um tema central em suas discussões, ou seja, são reflexões ligadas a um processo de intervenção sobre o social. Com essa observação queremos indicar que muitos textos trabalhados têm “a prioris” que precisam ser considerados: trata-se de mostrar as vantagens (e/ou os problemas) de uma abordagem dessa natureza, buscando, muitas vezes, chamar a atenção para possíveis correções de rumo da política territorial que vem sendo adotada. Outros textos que abordamos centram-se na discussão sobre a emergência de uma nova ruralidade, ligada à reconfiguração do rural no mundo contemporâneo e que impõe a aproximação com o conceito de território. 16 A partir da leitura de uma grande quantidade de textos (vide bibliografia, ao final do presente relatório), optamos não por apontar linhas que aproximam ou separam autores, mas A Geografia tem produzido uma profunda e fértil discussão sobre o conceito de território. Alguns aspectos dela foram incorporados em parte anterior do presente relatório. O debate também se faz no interior da antropologia e da sociologia. Nosso interesse aqui não é retomar a discussão teórica sobre território, mas mostrar como a abordagem sobre o desenvolvimento territorial, como política pública, tem sido tratada. 16 33 sim selecionar temas que emergem de sua leitura e que nos parecem cruciais para discutir os marcos jurídicos que tensionam as possibilidades de políticas de desenvolvimento territorial. Foram os seguintes os temas levantados: a delimitação do que é rural; participação política; a descentralização e o lugar dos municípios; a pulverização das ações territoriais. Ao final, apresentamos alguns silêncios da literatura sobre questões que consideramos cruciais na perspectiva de políticas de desenvolvimento. 4.1 A delimitação do que é o rural Um dos aspectos sobre o qual se tem repetidamente chamado a atenção e que, na verdade, se constitui como um pressuposto das políticas de desenvolvimento territorial é a necessidade de rever o conceito de rural com que se trabalha no Brasil. Do ponto de vista da indicação de marcos legais que suportam essa definição, um dos autores que mais tem se dedicado a produzir reflexões é José Eli da Veiga. O autor chama a atenção para o fato de que “a vigente definição de ‘cidade’ funda-se em legislação ainda do Estado Novo (Decreto-Lei 311, de 1938), que transformou em ‘cidades’” todas as sedes municipais existentes, independentemente de suas características estruturais e funcionais .... “da noite para o dia, ínfimos povoados, ou simples vilarejos, viraram cidades por norma que continua em vigor, apesar de todas as posteriores evoluções institucionais.” (Veiga, 2001, p. 1). Essa legislação estadonovista relaciona-se a um contexto de um acelerado processo de centralização de decisões no governo federal e manteve-se ao longo dos anos. É possível dizer que ela igualou (na forma) os municípios como entes federativos, ao mesmo tempo em que produziu uma disputa, no interior deles, entre o que considerar rural ou não, tendo em vista possibilidades de arrecadação de impostos, ampliação da malha urbana, crescimento da especulação imobiliária etc. Ainda segundo Veiga, em 1991, o IBGE passou fazer uma distinção entre “áreas urbanizadas”, “não urbanizadas” e “áreas urbanas isoladas” (entendidas como as que estavam separadas da sede municipal ou distrital por área rural ou outro limite legal). Criou também quatro tipos de aglomerados rurais (extensão urbana, povoado, núcleo e outros aglomerados), que visando estabelecer critérios de classificação mais apurados, que permitissem conhecer melhor as dimensões da ruralidade brasileira. No entanto, insiste o autor, “em vez de amenizar, a nova classificação reforça a concepção de que as fronteiras entre as áreas rurais e urbanas são infra-municipais. Reforça a 34 convenção de que são urbanas todas as sedes municipais (cidades), sedes distritais (vilas) e áreas isoladas assim definidas pelas Câmaras Municipais, independentemente de qualquer outro critério geográfico, de caráter estrutural ou funcional.” (Veiga, 200, p. 3). Este tipo de critério infla as taxas de urbanização, pois, como mostra Veiga, “transforma em urbanos muitos dos que vivem em espaços de natureza pouco artificializada, só porque residem em alguma sede municipal ou distrital” (Veiga, 2001, p. 4) e tem profundas influências sobre as concepções sobre o que deve ser o “desenvolvimento” e sobre o lugar do rural na nossa sociedade. Este espaço passa a ser visto como residual, condenado a desaparecer (ou, a se reduzir bastante, tanto em termos de população, como de atividade econômica), portanto as políticas voltadas para sua dinamização deixam de ser relevantes. Quando muito, cabem políticas sociais, destinadas a amparar a população empobrecida. Bastante influenciado pela literatura européia e pela política da OCDE que define o rural e o urbano a partir de outros critérios, relacionados às dimensões da população das regiões, o autor indaga “Será razoável que no início do século 21 se considere ‘cidade’ um aglomerado de menos de 20 mil pessoas?”. A partir da análise de uma série de dados de pesquisa, o autor defende a necessidade de uma nova visão da configuração territorial do País, uma vez que, segundo ele, “a visão normativa herdada do Estado Novo não pode continuar a ser uma camisa de força para o diagnóstico de macro-tendências do desenvolvimento. O que reforça a necessidade de que se rejeite qualquer tipo de zoneamento baseado em critérios meramente setoriais.” (Veiga 2001, p. 19). Na seqüência, o autor defende a celebração de “Contratos Territoriais de Desenvolvimento”, baseados em articulações intermunicipais microrregionais e os governos estaduais e o federal. Embora Veiga não explore a natureza desses contratos, do ponto de vista do presente estudo caberia indagar quais as bases legais que facilitariam/permitiriam tal arranjo institucional. Na mesma linha de argumentação, mas buscando entender como foi possível esse movimento que leva à desqualificação do rural, Favareto (2006: 13) afirma que “há uma associação nos quadros de referência de cientistas, da burocracia governamental, das elites, entre a idéia de que o desenvolvimento é um atributo do urbano e a decorrente associação do rural à pobreza. Numa espécie de versão da profecia que se cumpre por si mesma, esta visão influencia a formação de um campo de questões que se tornam legítimas ou ilegítimas. Esta 35 dinâmica não é, contudo, autônoma. A crítica às origens agrárias como uma das raízes dos males das ex-colônias, a ideologia do progresso, a rápida industrialização de países como os aqui tomados como exemplo, a constituição de portadores destes diagnósticos e dos processos sociais que lhes consubstanciam são fatores que se combinaram para criar uma illusio, no sentido dado por Bourdieu: uma adesão imediata à necessidade de um campo, no caso de vários campos, para os quais a idéia de urbanização crescente e irreversível é a doxa fundamental. Ela é, nas palavras do sociólogo francês, a condição indiscutida da discussão, é aquela que, a título de crença fundamental, é posta ao abrigo da própria discussão. Sempre segundo Bourdieu, a illusio não é da ordem dos princípios explícitos, de teses que se debate e se defende, mas sim da ação, da rotina, das coisas que se fazem”. Para Favareto, que se aproxima bastante das conclusões de Veiga, um dos principais dilemas da ação do Estado nas suas tentativas de promover o desenvolvimento rural é esse lugar institucional da idéia de rural, de ruralidade, determinado pela concepção do destino urbano do progresso social. O caráter tido como residual do rural e sua associação automática à idéia de pobreza e de atraso restringem de partida as possibilidades de investimentos científicos, políticos e econômicos, o que contribui para gerar um ciclo onde esta posição marginal é sempre reforçada, seja simbolicamente, seja materialmente. Chama a atenção o fato de que esse illusio, apontado por Favareto, não afeta somente as possibilidades de políticas públicas. Ele se espraia pela sociedade e é um critério importante de classificação social, que marca as concepções de mundo de todos os cidadãos. Pensando em termos da eficácia legal dessa percepção, poder-se-ia busca-la na própria delimitação que a legislação produz em termos de organização sindical. Temos um sindicato de trabalhadores rurais, de base profissional (também herança varguista) que, por exemplo, historicamente teve dificuldades de lidar com pessoas que trabalham no “meio rural”, mas que vivem nas áreas “urbanas” (em especial o caso dos assalariados temporários), trabalhadores com experiências urbanas que deixam de ser considerados como “vocacionados” para o “meio rural”, trabalhadores que conjugam trabalhos agrícolas com “urbanos” etc. Da mesma forma, critérios de seleção de populações para receberem determinados direitos (acesso à terra) também partem de um corte que supõe que a “vocação agrícola” só existe em quem vive no “meio rural”. É essa mesma concepção que leva a que os padrões curriculares das escolas se voltem fundamentalmente para os valores “urbanos”, uma vez que o “rural” aparece como atraso. Um dos resultados dignos de análise desse tipo de concepção é a nucleação escolar, que obriga 36 as crianças a longos deslocamentos para poder ter acesso à educação.17 Pode-se ainda buscar exemplos da eficácia dessa leitura do rural na própria estrutura ministerial atual, onde temos um Ministério das Cidades, um Ministério da Agricultura e um Ministério do Desenvolvimento Agrário. O primeiro deles, por definição, exclui temas relacionados à ruralidade de sua órbita; o segundo volta-se principalmente para a dimensão produtiva e comercial, em especial da produção em maior escala; e finalmente, o MDA, tem sob sua alçada a agricultura familiar, nas suas diferentes formas. Alguns autores com que trabalhamos procuram enfatizar a dimensão histórica da constituição das categorias rural e urbano. É o caso de Maria de Nazareth Wanderley. A partir das reflexões dessa autora, é possível afirmar que tem se trabalhado como uma leitura ahistórica e reificada do rural, reforçada tanto pela delimitação administrativa, como apontado por Veiga (2001), quer pela associação do rural à pobreza de que nos fala Favareto (2006). Buscando resgatar a historicidade da categoria a partir de um instigante exercício analítico da obra de historiadores e sociólogos, em especial franceses, Wanderley afirma que, no mundo contemporâneo, “o espaço local é, por excelência, o lugar da convergência entre o rural e o urbano, no qual, as particularidades de cada um não são anuladas; ao contrário, são a fonte da integração e da cooperação, tanto quanto da afirmação dos interesses específicos dos diversos atores sociais em confronto. O que resulta desta aproximação é a configuração de uma rede de relações recíprocas, em múltiplos planos que, sob muitos aspectos, reitera e viabiliza as particularidades” (Wanderley, 2000, p. 118). Ainda segundo Wanderley (2000), está em curso, no entanto, a constituição de uma nova visão do rural. Essa visão envolve uma nova concepção das atividades produtivas, especialmente daquelas ligadas à agropecuária, e uma igualmente nova percepção do “rural” como patrimônio a ser usufruído e a ser preservado. Para tanto, pesam novos temas que emergem, como, por exemplo, a crise ambiental. Fazendo suas as questões do sociólogo francês Marcel Jollivet, a autora chama atenção para o que considera a questão fundamental nos dias de hoje: quem assumirá esta nova visão do rural? Quem a promoverá? Ou seja, que atores poderão difundir ou serem porta-vozes dessas mudanças? Sob essa perspectiva, é importante mencionar os esforços para a criação de uma política de educação do campo que, no entanto, ainda está por merecer uma análise rigorosa dos seus pressupostos, uma vez que, no esforço de valorização e positivização do “campo”, talvez, possa estar reproduzindo, às avessas, a segmentação que aqui está sendo posta em questão. Tendo em vista os limites deste trabalho, não investigamos esse debate, mas, sem dúvida ele terá que ser recuperado. 17 37 Uma resposta possível a essa questão pode ser buscada nas políticas públicas e sua enorme capacidade de moldar realidades sociais. Indícios de uma releitura do rural encontramse na incorporação da abordagem territorial. No entanto, como pode ser depreendido da leitura dos diferentes autores que utilizamos, estamos frente a um processo de inovação que se enfrenta com a resistência da solidez de certas visões de mundo, profundamente arraigadas e que se cristalizaram no aparato estatal por meio de leis, medidas administrativas, instituições. A cada momento elas reproduzem uma visão de rural fortemente marcada pela oposição com o urbano e pela identificação com o atraso a ser eliminado a partir de políticas modernizadoras. Trata-se, pois, de enfrentar o desafio de um exercício de “invenção” (ou reinvenção) de tradições (Hobsbawn, 1984), dando um novo sentido a práticas sociais e culturais em processo de extinção, muitas vezes abandonadas ou recusadas pelas próprias populações como algo que as liga ao atraso e, portanto, inferioriza socialmente. Sob essa perspectiva podemos dizer que a concepção de rural (e de desenvolvimento rural) está, como não poderia deixar de ser, em disputa por forças bastante diferenciadas, envolvendo atores com capacidade política (ou seja, com possibilidades de impor visões de mundo) também bastante diferenciada. Delimitar territórios, com ênfase na presença de agricultores de base familiar é, antes de mais nada, delimitar espaços de disputa com a visão produtivista do campo. Para além da crítica a uma visão, onde o que importa é o da expansão de monoculturas ou de atividades que atribuam ao espaço outros destinos que não aquele desejado pelas populações que o habitam,18 há que se considerar também a disputa com uma visão que vê no rural somente um espaço de produção (mesmo que de agricultores familiares), onde o que importa é o agrícola, dando pouca atenção às dimensões ambientais, culturais etc. De toda forma, trata-se de uma disputa que, apesar da capacidade da lei de criar novas realidades, não se dá apenas no domínio da lei, mas se espraia pela sociedade. 4.2 A importância da participação social e política A valorização da participação social nas decisões referentes às políticas públicas, tanto no que se refere à sua implementação como à sua gestão, emerge nos anos 1980, no caso brasileiro em função do impulso produzido pelas lutas pela democratização e pela força que É possível exemplificar essas disputas com os fatos que envolvem a Base de Alcântara, envolvendo a concorrências entre áreas para experiências espaciais e áreas asseguradas aos remanescentes de quilombos. 18 38 diferentes movimentos sociais adquirem nesse processo.19 A Constituição de 1988 refletiu esse debate e essa pressão. A participação das populações envolvidas talvez seja um dos temas mais fortemente presentes nos marcos reguladores de diversas políticas públicas brasileiras após esse novo marco jurídico. Em todos os municípios proliferam conselhos (saúde, educação, desenvolvimento, etc), cujo objetivo é conformar espaços de debate e concertação, que ampliem a participação popular e as possibilidades de gestão democrática das políticas públicas. O tema da participação não somnete com base em instituições formais, mas também a que se revela na própria luta social, é também recorrente nos debates sobre desenvolvimento rural e alguns autores têm apontado para a importância dos movimentos sociais para a institucionalização de algumas políticas. Um exemplo é o estudo de Abramovay et al. (2006b), a partir de cinco estudos de caso na América Latina. Nele, os autores afirmam que os movimentos sociais contribuíram de forma decisiva para a criação de um ambiente institucional no qual a luta contra a pobreza e exclusão foram centrais. Segundo eles, “a) Los movimientos contribuyen para la ampliación de la esfera pública de la vida social, lo que en un ambiente de clientelismo y patrimonialismo tan fuertes como el que marca las regiones interioranas de América Latina es muy importante. b) Ellos introducen temas nuevos que no forman parte de la vida social de las regiones en las que actúan, que van desde el acceso de las mujeres al crédito (al interior del PRONAF, en Brasil, por ejemplo) hasta la importancia de la participación popular en las nuevas oportunidades de explotación del turismo ecológico, en el Sur de México. c) Los movimientos sociales son un elemento decisivo para la democratización del proceso de toma de decisiones: son ellos los que animan y dan vida a nuevas estructuras de participación social en la gestión pública, marca decisiva de la vida social de toda América Latina, a partir de mediados de los años 1980, sobre todo en las políticas sociales. d) Al transformar ciertas reivindicaciones tópicas y localizadas en derechos, os movimientos transforman la propia matriz de las relaciones sociales: es lo que ocurre con el sentimiento de respeto sentido por las poblaciones indígenas como uno de los principales resultados de sus luchas en Ecuador (Ospina et al., 2006). Lo mismo se puede decir del reconocimiento público de que las poblaciones afrodescendientes tienen derechos sobre las tierras en las que viven (Schattan et al., 2006) o de que el agricultor familiar puede entrar al banco con la frente alta (Abramovay et al., 2006). e) Se puede decir que los movimientos sociales son elementos indispensables para que poblaciones hasta entonces excluidas se conviertan en protagonistas, É preciso lembrar que a onda “participacionista” e os debates sobre descentralização do poder foram recorrentes em diversas partes do mundo. 19 39 actores de la vida social, lo que trae consecuencias políticas decisivas para la organización de los territorios y, por ende, para su proceso de desarrollo” (Abramovay et al., 2006b, p. 7, grifos dos autores). As possibilidades desse protagonismo foram garantidas não só pela força dos movimentos sociais e pela capacidade que tiveram de influir nas instituições políticas, no desenho das políticas públicas, de forma a garantir espaços de participação institucionalizados. Sob essa perspectiva, é chave o entendimento da maneira como essa participação, recorrentemente afirmada na literatura, se inscreve na Constituição de 1988 e como se faz presente em diversas esferas políticas. Com efeito, afirmar que a Carta Magna ampliou espaços de participação implica em analisar como essa institucionalização se expressa em normatizações que consolidam/cristalizam determinadas relações sociais. Ao mesmo tempo, é importante alertar para o fato de que as formas de normalização não são neutras. Elas expressam relações de força e não podem ser vistas de maneira simplista, uma vez que a arquitetura legal de um país não é linear e, por vezes, as intenções de alguns programas enfrentam obstáculos, decorrentes da estrutura legal existente e de modos de fazer política, e que são difíceis de transpor. Temos que nos indagar ainda sobre o que a retórica em torno do tema encobre em termos da possibilidade de participação. Os conselhos, que se tornaram a estrutura chave desse processo de compartilhamento de decisões, têm sido bastante analisados na literatura sobre desenvolvimento rural. Antes de apresentarmos algumas das visões apresentadas por autores que tratam do tema, é importante retomar a reflexão de Bourdieu (1989) sobre representação política. Nela aparece uma questão central que guiará nossa reflexão: a participação na política exige capital político e tempo livre. Dessa perspectiva, os setores chamados a participar dos conselhos, pela sua própria natureza (segmentos que vivem de seu trabalho), apresentam limites intrínsecos à participação, não diretamente relacionados à dimensão estritamente legal, mas à condição social dos conselheiros. Quais as possibilidades objetivas dos atores em termos de tempo para investir em processos participativos? De que incentivos dispõem? O que supõem que podem obter com esta participação? Estão preparados para a participação, no sentido de ter um acúmulo que lhes permita intervir eficazmente, a seu favor, nas regras da política? Evidentemente, proliferaram os cursos de capacitação. Mas há que saber/indagar como esses cursos são levados a termo, em que medida potencializam a experiência dos agentes. Há que considerar que o aprendizado da participação, se tem em cursos momentos de reflexão e 40 sistematização, depende sobretudo da própria experiência dos agentes, acumulada nas próprias disputas políticas. No cerne do debate sobre a participação coloca-se ainda o tema da representação: os conselhos são representativos dos diferentes segmentos da sociedade local? A quem os conselheiros efetivamente representam? Mesmo considerando que os conselhos possam ser um espaço para melhorar a capacidade de intervenção dos “subalternos”, fica a questão de quais os mecanismos de garantia de participação de segmentos invisíveis, cuja entrada nesses espaços pode implicar em disputas por recursos (sempre escassos). Há ainda que pensar na relação entre demandas locais e mais gerais, tendo em vista a forte tendência de que os grupos em situações de carência procuram trazer benefícios para seu local, para sua “base” de representação. A literatura aponta como as preocupações mais gerais muitas vezes estão distantes do cotidiano ou das necessidades imediatas dos agentes. Todos esses elementos nos levam a pensar em como o processo de participação é complexo e envolve um enorme esforço de gestão das diferentes perspectivas envolvidas, bem como do entendimento dos canais por onde passa o aprendizado dos agentes. No que se refere ao Condraf e Codeter, por exemplo, como apontam Rocha e Filippi (s/d: p. 14), há orientações explícitas no sentido de que se deve considerar a pluralidade, envolvendo a representação das categorias por meio das diferentes organizações existentes (associações, sindicatos, cooperativas, etc). Da mesma forma, devem estar presentes nesses conselhos as diferentes concepções de desenvolvimento rural existentes, bem como a diversidade, ou seja, neles devem estar presentes as diferentes identidades presentes no espaço social (jovens, mulheres, quilombolas, agricultores familiares ligados à diferentes comunidades e/ou arranjos produtivos, pequenos empreendedores, etc). Resta saber, até onde essas diretrizes se traduzem em efetiva participação e, mais uma vez, em quem pode efetivamente participar. Em diversas avaliações disponíveis sobre a participação das políticas de desenvolvimento rural, fica evidente que entre a intenção da ampliação da participação e sua realidade, vai uma grande distância. Diversos autores (Abramovay, 2003; Schneider et alli, 2004; Favareto e Demarco, 2004) chamam a atenção para o fato de que, mesmo com a obrigatoriedade de paridade entre órgãos de governo e representantes da sociedade civil na composição dos conselhos, o poder efetivo sobre os projetos se concentrava, na maioria dos municípios, nas mãos dos prefeitos. Com base em uma ampla pesquisa sobre o tema, Abramovay et al. (2006a) chamam a atenção para as diferenças de poder no interior dos 41 colegiados - que se expressam na maior capacidade de prefeitos ou de algumas lideranças em se apropriar dos projetos. Os autores constatam uma distribuição desigual das habilidades sociais e relacionais. Na pesquisa realizada, apontam que “Segundo relato de técnicos da SDT, os prefeitos conseguem cada vez mais “furar” os processos participativos dos colegiados para ter acesso aos recursos do Pronaf Infra-estrutura por meio de emendas parlamentares. Em 2005, metade do valor total dos projetos foi contratada através de emendas, o que mostra bem o quanto a lógica supostamente participativa encobre a prática clientelista de transferência de recursos públicos. Prefeitos bem relacionados com deputados federais não despendem tempo e recursos nas diversas reuniões de que as organizações sociais - na sua grande maioria sem outros meios ou articulações precisam participar para poder interferir ou ter acesso aos recursos públicos federais” (Abramovay et al, 2006a, p. 15). Ainda segundo os autores citados, a criação de colegiados territoriais restringiu o poder dos prefeitos, que passou a ser dividido com ONGs e movimentos sociais, mas não resultou em novas estratégias. Isso se deve em muito ao que eles chamam de “vícios de origem”, da falta de proposta estratégica de desenvolvimento que reposicione o lugar do rural e que, na visão dos autores, inclua os diferentes atores e não apenas os ligados à agricultura familiar. Ou seja, alguns dos limites não estão necessariamente ligados aos marcos legais, mas sim a fatores que levam à cultura política brasileira, à forma como o rural tem sido pensado, à capacidade dos atores de organizar projetos políticos, no sentido em que nos fala Dagnino (2004). O tema crucial parece ser o dos setores habilitados a participar dos conselhos e até onde esses organismos podem e deve ser inclusivos. Segundo Abramovay et al. 2006a, essa representatividade é limitada: eles incorporam a diversidade de forças sociais ligadas ao que poderíamos grosso modo chamar de “classes subalternas”, mas neles não estão presentes, por exemplo, os setores empresariais. Sob essa perspectiva, a paridade é a paridade existente é entre os representantes dos agricultores familiares e o Estado. Segundo os autores citados, no caso das políticas de desenvolvimento territorial da SDT, há contradições advindas da forma como se dá a participação: “por um lado, muitos dos interesses dos agricultores familiares encontram-se aí representados por meio de suas organizações formais. Por outro, porém, esta representação não é nem de longe suficiente para estimular o surgimento de projetos voltados à valorização dos recursos específicos das regiões rurais. Ao contrário, a lógica de representação da política não estimula a aparição de organizações que se voltam para a inovação e a aprendizagem. Sua base setorial opõe-se objetivamente a sua ambição supostamente territorial e confina suas ações a um conjunto de pequenos projetos em que suas organizações representativas participam, mas cujo impacto é irrisório. Mais que isso: o 42 desenvolvimento rural brasileiro contemporâneo não está assentado numa opção estratégica capaz de agregar energias de amplos setores sociais e de um conjunto consistente de atores governamentais, privados, profissionais e associativos. Esta é a raiz de uma lógica de funcionamento por pequenos projetos cuja relevância é ínfima” (Abramovay et al: 2006:20). Segundo a leitura acima, caberia abrir possibilidades legais para agregar nos conselhos os mais diferentes segmentos, em especial os portadores de maior capacidade inovativa e maior dinamismo, ou seja, retomando os termos de Bourdieu, os detentores de capital cultural. Muitos se opõem a essa perspectiva mais includente, alertando para os riscos de que, justamente pela sua maior capitalização e tendo em vista as formas de relação historicamente dominantes na sociedade brasileira, estes segmentos acabariam controlando os conselhos, trazendo as políticas para o seu campo de interesses e produzindo novas formas de exclusão dos agricultores familiares. Como falar em desenvolvimento implica pensar sempre em qual seria sua direção e quais seriam seus beneficiários diretos, é fundamental ter em conta quem elabora os projetos de desenvolvimento e partir de que ponto de vista. Cazella (2006) aponta uma dimensão dos processos participativos fundamental para se pensar seus limites, mas numa perspectiva oposta à apontada por Abramovay et al (2006a) e central para a nossa reflexão. O autor trabalha com a hipótese de que as instituições promotoras do desenvolvimento rural, as ONGs e os movimentos social e sindical “concentram suas ações de forma prioritária nas categorias de agricultores familiares classificados como de maior renda e de renda média (...). As duas outras categorias (renda baixa e quase sem renda), que totalizam, respectivamente, quase 830 milhões (17%) e dois milhões (39,5%) de agricultores familiares brasileiros, constituem o grupo social que Graziano da Silva (1999) denomina, propriadamente, de ‘sem sem”: sem renda, terra, educação, saúde, ONG, sindicato, movimento social (Cazella, 2006, p. 226/227). Ou seja, as operações formais de desenvolvimento rural e as políticas públicas que as sustentavam não estão incorporando uma parcela importante das populações que aparecem, em tese, como seu “público alvo”. Sayago (2007) também aponta algumas fragilidades dos Conselhos, dentre elas o fato de que eles foram criados muito mais para atender as exigências legais do repasse de verbas e definição de seu uso do que para se constituir em espaços de reflexão sobre as problemáticas e potencialidades locais. Segundo a autora, nos municípios rurais pobres e com baixa densidade populacional, pouco se conseguiu impulsionar transformações locais. Outro aspecto apontado 43 por ela é que os conselhos mostram fragilidade na articulação com outras institucionalidades e com atores fundamentais para o desenvolvimento rural territorial, caracterizando o processo de descentralização como não democrático, centralizador, e, em alguns casos, como legitimador das relações de poder já existentes. Há outras preocupações ainda que emanam da literatura a respeito da participação nos conselhos e dos conselhos no desenho das políticas de desenvolvimento. Beduschi e Abramovay, por exemplo, mostram que os conselhos, que impõem que os recursos tenham seu uso submetido a instâncias colegiadas, também têm uma “função setorial específica de elaboração de reivindicações e controle na execução de seu atendimento. São mediadores entre recursos federais voltados a uma finalidade pré-determinada e as populações beneficiadas” (Beduschi e Abramovay, 2003: 17). Desse ponto de vista, pode-se dizer que eles funcionam como instâncias importantes de elaboração de demandas, embora, como assinalado acima, muitas vezes voltadas para aspectos pontuais e que não implicam necessariamente (segundo Abramovay et al, 2006a, nunca implicam) em ações capazes de impulsionar processo de desenvolvimento. Todas essas análises convergem para que se possa falar em uma forte tensão no desenho da política, principalmente na arquitetura dos mecanismos pelos quais ocorreriam processos de governança. Alguns dos estudos analisados nos permitem falar em que a possibilidade de gestão social das políticas, prevista na definição dos conselhos, é prejudicada tanto pela focalização e setorialização da política (que restringe a noção de desenvolvimento e de rural), quanto pela falta de previsão de constituição dos espaços para exercício de governança (colegiados). 4.3 O lugar dos municípios na política de desenvolvimento territorial Quando se discute participação é preciso ter em vista que ela vem se dando, no geral, a partir da unidade administrativa básica, o município. Cabe, pois indagar, o que significa a passagem de município a território do ponto de vista institucional legal? Que institucionalidades estão sendo criadas para permitir essa passagem? Quais os limites antepostos pelo fato de que, no Brasil, o município, não só por efeito legal, mas por uma longa tradição administrativa e política é, de fato, a unidade mínima de planejamento, manuseio de recursos etc. Na literatura com que trabalhamos, o tema aparece com força. Como adverte Sabourin (2007, p. 734), referindo-se à abordagem territorial do desenvolvimento: 44 “(...) com a nova abordagem, as escolhas em matéria de equipamentos coletivos dependem do Conselho Territorial e não mais dos Conselhos Municipais de Desenvolvimento Rural (CMDR), acusados de não terem poder de decisão ou de serem facilmente manipulados pelos prefeitos. Mas a perda de poder dos executivos municipais não significa, portanto, que os agricultores familiares vão obter mais poder no novo conselho intermunicipal, pois tudo depende da capacidade das suas organizações em se mobilizarem e se coordenarem, para terem peso nas decisões e para adquirirem as competências para construir projetos comuns”. O autor chama a atenção, no entanto, para o fato de que essas iniciativas prefiguram um novo campo de experimentação no Brasil, em termos de interação entre a ação coletiva das populações rurais e a ação pública do Estado nas suas diversas escalas. Abramovay et al (2006a, p. 16) apresentam uma visão bem menos otimista dos Conselhos Territoriais. Para esses autores, há diversos problemas no desenho da política, advindos da ausência de uma estrutura institucional para os colegiados territoriais, o que “reduz o seu poder de coordenação das políticas, de definição sobre a alocação dos recursos e de monitoramento dos projetos”. Segundo eles, “os colegiados definem os projetos a serem implementados no território, mas a contratação, pelas amarras legais do repasse dos recursos públicos, é formalizada por prefeituras, que não são comprometidas a prestar contas dos projetos e nem mesmo a implementar os projetos, ou seja, ainda que o processo decisório agora se dê a partir de uma articulação intermunicipal, a execução dos projetos ocorre com recorte municipal e depende de uma correlação de forças que é específica dessa configuração social, diferente daquela presente nos colegiados”. Esses autores advertem que se trata de uma grande diferença em relação aos Grupos de Ação Local do Programa Leader, às organizações irlandesas e à direção dos processos locais da política rural norte-americana, uma vez que, nessas experiências, as organizações respondem pela realização dos projetos em que se envolvem e são avaliadas diretamente por isso (Abramovay et al, p. 16). O que se constata é que os territórios não conseguem exercer pressão ou construir acordos que tornem os seus projetos demandas públicas mais amplas. Como já lembrado por Abramovay, os projetos são quase sempre demandas de segmentos específicos que estão presentes nos colegiados territoriais. Por isso, no geral eles nascem frágeis e nem mesmo o Colegiado cobra, fiscaliza e consegue implementa-los. Dessa forma, a responsabilização das prefeituras não pode mascarar problemas referentes à própria estrutura dos colegiados 45 territoriais que, além de carregarem consigo toda a dificuldade de tornar efetiva a participação dos segmentos envolvidos, também enfrenta o fato de terem que “inventar” a prática de uma nova forma de fazer política, cuja institucionalidade é nova para todos atores envolvidos. Como já apontamos, toda a estrutura institucional é baseada no município, inclusive em grande parte das redes associativas, em especial as sindicais. Guanziroli trata do tema, insistindo na chave da relação participação e espaço municipal. Segundo esse autor: “vários fatores concorrem para que a descentralização não cumpra suas promessas de promoção do desenvolvimento local: a) a descentralização repassou responsabilidades para os municípios, mas não os meios necessários para dar conta delas; b) a descentralização por si só não alterou as relações de poder no município e a forma autoritária e clientelista como muitas prefeituras ainda hoje são governadas. Com isso, as possibilidades de participação da população, em particular dos grupos mais marginalizados, continuaram muito reduzidas” (Guanzirolli, 2006, p. 7). No entanto, é Sabourin quem toca mais diretamente num tema que nos parece crucial: a partir de que critérios é definido o território e qual a participação das populações locais nessa definição de território e na das políticas a eles conveniente, chamando a atenção para as dificuldades decorrentes da própria forma como as decisões são tomadas. Segundo ele, “os contornos e a definição da maioria dos territórios apoiados foram propostos pelo MDA em Brasília, mas decididos pelos Conselhos de Desenvolvimento Rural e pelos governos dos Estados e dos municípios em relação com alguns interlocutores locais, geralmente a partir de considerações políticas ou sindicais. A população interessada não foi consultada e, em muitos casos, ela ignora ainda até a existência do território ou do projeto de território após alguns anos. De fato, o processo de territorialização está sendo contrariado ao mesmo tempo pela concepção de pequenos projetos locais e pela natureza do sistema federal, em particular pelos canais de financiamento e de implementação das infraestruturas e equipamentos, que só podem passar pelos Estados ou municípios. O investimento previsto pelo MDA para acompanhar a construção de processos de identidade territorial é, louvável, mas continuará, sem dúvida, tendo de enfrentar esses problemas estruturais” (Sabourin, 2007, p. 730). Há que se chamar ainda a atenção para o fato de que não há praticamente interlocução com a esfera estadual sobre a política territorial, o que implica em dificuldades de articulação política sobre um projeto dessa natureza. Os CEDRS, quando existem nos estados, homologam territórios e projetos territoriais, mas, por exemplo, não têm assento nos Codeter. Originários do 46 Pronaf, eles tendem a reproduzir um habitus institucional referido à lógica dos projetos, municipalizados, setoriais etc. Apesar da lógica municipalizante que parece presidir a política de desenvolvimento territorial, criando contradições no seu interior, cabe a pergunta se a condição para superar o que é apresentado como “problema” para os autores, seria uma mudança legal que desse poder a territórios para, por exemplo, contratar recursos públicos e executar projetos com autonomia em relação aos municípios. O desenho da política aponta claramente para a habilidade essencial projetada para os colegiados (e, portanto, para os territórios): articular projetos e interesses distintos; promover concertação e gestão social. Esse fato leva-nos à necessidade de investigar os consórcios municipais para entender melhor sua operação. A comparação permitiria talvez relacionar melhor limites legais e estruturas institucionais, de forma a ter elementos para identificar as razões de alguns impasses nas políticas territoriais. 4.4 A pulverização das ações governamentais e a multiplicidade de territórios Para além das tensões existentes entre territórios e municípios, o tema do desenvolvimento territorial entrou na agenda governamental, mas não houve esforço de unificação de ações. São múltiplos os territórios demarcados, dependendo da ênfase de cada Ministério. Esse fato acaba gerando tensões, uma vez que os territórios tendem a ser muito mais um espaço de gestão de políticas do que unidades demarcadas pela presença de uma identidade. No que se refere ao desenvolvimento rural, há diversas estruturas responsáveis por políticas públicas, o que faz com que haja uma fragmentação: Ministério da Agricultura, do Desenvolvimento Agrário, da Integração Nacional, da Educação, da Saúde, do Meio-Ambiente, cada um deles com uma compreensão do que é desenvolvimento e do que é rural. Muitas vezes, trata-se de visões antagônicas, como é vislumbrado, por exemplo, se fizermos uma comparação entre as propostas do Ministério da Agricultura e no do Meio Ambiente. Em outros casos, há públicos distintos para a ação dos ministérios, mas essa distinção é tensa e questionada (caso do MDA e MAPA). Isso não é sem conseqüências para ações territoriais de um ou outro ministério, uma vez que podem gerar políticas de direções opostas. Favareto (2006, p. 14) aponta que “os ministérios da Agricultura e do Desenvolvimento Agrário, aqueles mais diretamente reportados ao espaço rural, têm como seus principais programas, iniciativas de caráter eminentemente setorial, respectivamente as políticas para o agronegócio e para a agricultura familiar. O Ministério do Desenvolvimento Agrário tem também sob sua responsabilidade um recém criado Programa 47 Territorial (Pronat), originário do desmembramento da linha infra-estrutura e serviços do Pronaf, ao passo que a principal política territorial do governo federal se encontra na alçada do Ministério da Integração Nacional e seu programa voltado para as mesorregiões.” Abramovay et al (2006a, p. 12) vão além e afirmam que as ações dos mais importantes ministérios que se relacionam com o interior do País ignoram inteiramente a própria existência dos colegiados territoriais. Os autores concluem que, menos que um problema relacionado às dificuldades de relações entre agências de governo, há uma questão em torno do lugar que se atribui às regiões rurais no desenvolvimento do país. O exemplo mais evidente dessa ausência de horizonte estratégico é, para os autores, “a separação entre o Ministério das Cidades e o Ministério do Desenvolvimento Agrário e a permanência das sedes dos pequenos municípios sob o âmbito do Ministério das Cidades”. Segundo a interpretação que desenvolvem, a política territorial desenvolvida no âmbito do MDA se volta “muito mais à intenção de fortalecer a agricultura familiar do que ao desenvolvimento do meio rural. Reproduz assim o traço essencial da política da qual teve a intenção de distinguir-se – e que vigorou até 2003 - só que, agora, numa escala que vai além do município. E sua capacidade de promover o fortalecimento da agricultura familiar é muito limitada pela pulverização dos recursos com que trabalha. Sua capacidade de contribuir à criação do ambiente no qual as populações rurais possam ampliar suas oportunidades de reprodução social é nula, pois esta preocupação encontra-se fora de seu horizonte estratégico.” (Abramovay et al, 2006a, p. 12). Rocha e Filippi (s/d) destacam ainda um tema relacionado à articulação vertical das políticas de desenvolvimento territorial Segundo eles, na visão governamental não há hierarquias estabelecidas entre os diversos níveis de colegiados de desenvolvimento rural sustentável. Dessa forma, as relações entre o Condraf, os Colegiados Estaduais, os Conselhos Municipais e as Comissões de Implantação das Ações Territoriais e/ou Conselhos de Desenvolvimento Territorial ocorrem principalmente por meio de articulações políticas. Os aspectos apontados pela literatura nos remetem, mais uma vez, ao desenho das políticas, que parece não supor a articulação entre elas. A política da SDT, como já apontado em outro momento do presente texto, supõe essa articulação, mas não especifica a forma e os instrumentos para viabilizá-la. De alguma forma, ela parece ficar à mercê da “vontade política” dos atores, sem instrumentos efetivos para implementa-las. Mais recentemente, a criação dos “territórios da cidadania” parece ser uma iniciativa que se propõe a essa articulação. Partindo dos territórios delineados pela SDT, supõe que eles 48 sejam o locus de articulação de uma série de políticas públicas, pertencentes à alçada de uma grande quantidade de ministérios. Como se trata de um programa novo, ainda em fase de implementação, não conseguimos localizar análises de seus resultados de forma a que eles pudessem ser incorporados ao presente relatório. No entanto, parece haver nele também um viés centralista, no qual os conselhos apenas cumpririam o papel de legitimar decisões dos ministérios. 4.5 Desenvolvimento territorial e agricultura familiar: alguns silêncios Os territórios de ação do MDA têm como um de seus critérios definidores a presença da agricultura familiar. A própria origem da política territorial relaciona-se a um diagnóstico sobre as insuficiências do Pronaf Infraestrutura e à busca de mecanismos institucionais para superá-las. Para pensar o tema, é importante fazer algumas breves considerações sobre o protagonismo do que vem se chamando agricultura familiar e que ganha corpo nos anos 1980/90, no bojo de uma discussão que envolve temas como projetos de desenvolvimento e o lugar dos agricultores nele. As lutas desses segmentos foram o móvel central para eles saíssem da invisibilidade a que foram condenados ao longo da história do Brasil e ganhassem espaço político e reconhecimento. O ideal de um modelo de desenvolvimento com base na agricultura familiar emerge, já no final dos anos 80, em especial das lutas sindicais, talvez fruto de uma emulação positiva com o crescimento das lutas por terra, do MST e a capacidade desta organização de obter desapropriações, algumas políticas de apoio aos assentados (entre elas o Procera) e, já em meados dos anos 1990, políticas especiais de educação, como é o caso do Pronera. É das lutas dos agricultores familiares, em especial das grandes mobilizações configuradas nos Gritos da Terra, que emerge a lei que é um marco na história do segmento: o Pronaf, em suas diferentes modalidades e, mais recentemente, a lei da agricultura familiar que reconhece a categoria, dando-lhe enquadramento profissional. A política de desenvolvimento territorial tem por base a agricultura familiar realmente existente, seja ela na forma de agricultores proprietários seja os que tiveram acesso à terra em razão das ações das políticas de assentamento do governo federal, quilombolas, pescadores etc. A literatura trata exaustivamente desse aspecto, mas, ao que nos parece, sempre tendo por referência setores mais consolidados e dinâmicos, como muito bem acentuado por Cazella 49 (2006). No entanto, nos textos a que tivemos acesso, há um silêncio em torno de dois temas que nos parecem centrais: os setores não organizados do meio rural e a questão fundiária. No que se refere aos setores não ou pouco organizados, é necessário lembrar que uma política voltada estritamente para o segmento da agricultura familiar existente não pode desconhecer o fato de que, em muitos lugares, ela sobrevive à sombra e à margem dos grandes empreendimentos agropecuários. Evidentemente a convivência entre eles até pode parecer relativamente harmoniosa, na medida em que podem não estar disputando terras, mão de obra etc, mas ela estará sempre condenada a um lugar secundário e a dificuldades de organização. Essas mesmas dificuldades estão presentes em áreas extremamente pauperizadas, onde a reprodução da família depende da constante migração de alguns de seus membros para trabalhar em outros locais, por vezes por um tempo bastante longo. É muito difícil imaginar que em condições de profunda desagregação social, acossada pela mobilidade constante de seus membros, as comunidades afetadas possam se organizar para reivindicar políticas e participar de associações, comissões, conselhos etc. Em situações como essa, possivelmente suas necessidades e anseios acabam não sendo ouvidos, mantendo faixas de invisibilidade importantes. Frente a esse quadro, coloca-se o desafio de pensar se (e em que situações) mudanças e/ou construção de novos marcos legais poderiam afetar positivamente a inserção desses segmentos, que muitos chamam de setor “periférico” da agricultura familiar.20 O outro ponto sobre o qual há um silêncio a bibliografia é em torno da dimensão fundiária das políticas territoriais de desenvolvimento rural. Possivelmente, bastante influenciados pela literatura européia, onde esse tema não aparece como questão central, ou ainda com o olhar totalmente voltado para os agricultores familiares consolidados ou em consolidação, todos os autores que percorremos não se detêm sobre o assunto. Ora, se a agricultura familiar for bem sucedida, se os territórios onde ela se concentra forem espaços efetivos de desenvolvimento, é possível prever que se gerará uma demanda por terra a longo prazo. Essa possibilidade não descarta o fato de que os filhos dos agricultores vão se dirigir para outras profissões que possam emergir no território, em função do próprio dinamismo que ele venha a adquirir. Mas, como a literatura tem mostrado sobejamente, a alternativa do acesso à No desdobramento futuro deste relatório vamos analisar várias leis, entre elas a que institui o Pronaf. No entanto, é bastante conhecida a categorização de agricultores que a precedeu e orientou. Referimo-nos à divisão dos agricultores familiares em consolidados, em consolidação e periféricos. O Pronaf se dirigiu, desde sua origem para a faixa intermediária, buscando apoiá-la. No que se refere aos periféricos, atualizam a “profecia que se cumpre”, uma vez que, considerados como periféricos, não recebem apoio de algumas políticas o que os mantém como tal e mesmo acelera a migração, a desestruturação familiar, cultural etc. 20 50 terra está bloqueada, dadas as opções políticas de proteção à concentração fundiária e aos limites legais existentes para desapropriação. Da mesma forma, uma das possibilidades de impulsionar os chamados periféricos é garantir-lhes acesso à terra e condições para que se consolidem enquanto agricultores. Ao que tudo indica, a política territorial se coloca como uma política de dinamização de territórios rurais, mas a partir de uma estrutura dada. Há um silêncio sobre uma política ativa de intervenção sobre o território por meio de ações fundiárias que possam potencializar a agricultura familiar (um silêncio que foi constatado em algumas experiências internacionais, como é o caso da política territorial mexicana, apresentada no relatório anterior). 5. Considerações finais Neste texto nos detivemos na análise da literatura brasileira, tentando buscar nela pistas para pensar o que são atualmente os marcos legais que, de alguma forma, interferem nas possibilidades de uma política territorial. Como apontado, há poucas referências diretas a esse aspecto nos textos consultados, mas há temas interessantes suscitados nas análises. Um dos raros autores que tocam diretamente na questão dos marcos legais são Abramovay et al (2006a). Eles afirmam que a legislação brasileira oferece poucas opções de institucionalização de articulações territoriais e se restringem às organizações que integram exclusivamente órgãos públicos. As principais são os consórcios públicos21, as regiões integradas de desenvolvimento22 e as regiões metropolitanas. São pistas a serem seguidas, no desdobramento do presente relatório. Para além disso, é importante, a partir da análise de experiências concretas, por meio de estudos de caso, buscar se ater mais particularmente em como os agentes sociais diretamente envolvidos na política territorial percebem, no cotidiano, possíveis limites jurídico-legais. De acordo com os autores, os Consórcios Públicos “são associações públicas ou pessoas jurídicas de direito público ou privado e sem fins econômicos, formadas por entes federativos de diferentes níveis, com os quais a União pode firmar convênios ou contratos de qualquer natureza. A União também poderá celebrar convênios com os consórcios públicos com o objetivo de viabilizar a descentralização e a prestação de políticas públicas em escalas adequadas. Os consórcios públicos estão sujeitos à fiscalização contábil, operacional e patrimonial pelo Tribunal de Contas”. 21 Ainda segundo os autores citados, as regiões integradas de desenvolvimento são criadas por lei federal e visam a articulação da ação administrativa da União, dos Estados e dos municípios de uma região. As RIDEs são coordenadas por conselhos administrativos formados por representantes do governo federal, dos estados e municípios que integram a região. Os recursos para o financiamento das RIDE podem ser oriundos do orçamento da União, dos estados e dos municípios, de fundos constitucionais, de financiamentos de instituições financeiras públicas, de operações de crédito externas ou de recursos de instituições internacionais. 22 51 Ao mesmo tempo, será importante uma análise cuidadosa de alguns instrumentos legais que, desde logo, mostram-se, a partir do mapeamento bibliográfico que fizemos, cruciais para as políticas de desenvolvimento territorial. Entre eles, mencionamos: a) a constituição de 1988, no que se refere a abertura para políticas territoriais, participação social, poderes e atribuições municipais; b) a legislação fundiária, iniciando pelo Estatuto da Terra, mas atentando para as mudanças por ele sofridas ao longo dos anos (em especial a lei agrária de 1993), de forma a mapear as possibilidades que ela ainda oferece para a ampliação das possibilidades da agricultura familiar; c) os efeitos práticos, em termos de legislação sindical, associativa, de cooperativas etc da definição de rural que domina a compreensão dos processos sociais; d) a legislação referente à agricultura familiar, desde o Pronaf, até a lei da agricultura familiar; e) normatizações do Ministério do Desenvolvimento Agrário e da SDT; f) resoluções do Condraf; g) indicações dos Fóruns de Desenvolvimento Rural Sustententável; h) os marcos jurídicos que incidem sobre a participação dos municípios na execução de recursos do Pronat: Lei de Diretrizes Orçamentárias, Lei de Responsabilidade Fiscal etc. i) os marcos jurídicos que regulamentam as relações do Estado com Organizações Sociais. j) As normas que institucionalizam a educação do campo. Finalmente, gostaríamos de fazer alguns comentários sobre as possibilidades de comparação com experiências internacionais. Elas são ricas e desejáveis, mas gostaríamos de enfatizar que, pelo menos até este momento de nosso trabalho, torna-se impraticável comparar marcos jurídicos em si mesmos. Considerando que as leis expressam determinadas relações de poder, cristalizam situações e, de alguma forma, têm um poder de performar realidades, é possível afirmar que, mais do que comparar marcos jurídicos, seria o caso de comparar tradições legais e, principalmente, a forma e os contextos em que determinadas relações sociais, determinados anseios de mudança assumiram um formato legal e, dentro das tradições de seus países, como esses anseios foram equacionados. 52 Sob essa perspectiva, o desdobramento do trabalho aponta mais para um esboço de sociogênese dos marcos legais de que dispomos, de forma a ter elementos para pensar uma história social e política das questões que deram origem ao seu aparecimento. 53 BIBLIOGRAFIA Abramovay, Ricardo, Schroder, Mônica e Magalhães, Reginaldo (2006a). O processo de constituição dos territórios rurais. Fipe e MDA/SDT. 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