Experimentações estético-políticas

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Experimentações estético-políticas
1
Experimentações estético-políticas:
do corpo condenado ao corpo liberado, a vida como matéria ética
Ana Godoy 1
Joana Ferraz, Juliana Ferreira, Jussara Belchior 2
Um dos investimentos mais caros a sociedade de controle talvez seja
a apatia, o sossego, a certeza por meio das quais se intenta constituir
corpos perfeitos e saudáveis, responsáveis e auto-controlados modelando e
edulcorando, desta forma, a existência, bem como subjetividades que lhe
sejam correspondentes. Neste sentido, propor uma experimentação
estético-política
remete,
sobretudo,
a
invenção
de
percursos
de
pensamento e vida, remete, portanto, a conexões inesperadas entre estilos
e autores diversos em proveito da transfiguração e invenção de modos de
existência, de subjetividades que afirmam a resistência como movimento da
vida.
Tal tarefa torna-se tanto mais árdua quanto mais se evidencia que
problematizar o corpo na sociedade de controle implica confrontar o
investimento permanente em modulações e modelações subjetivas que
permitem, contemporaneamente atribuir à imagem, seja ela qual for, a
potencialidade da informação 3 , e a imobilidade constante com a qual ela
seduz a partir daquilo que no movimento ela mesma denega: o risco. É a
isso que se refere o poema de Juarroz quando diz que “qualquer movimento
mata algo. Mata o lugar que se abandona, o gesto, a posição irrepetível,
algum organismo anônimo, um sinal, um olhar, um amor que voltava, uma
presença ou o seu contrário, a vida sempre de algum outro, a própria vida
sem os outros, estar aqui é mover-se, estar aqui é matar algo (…)” 4 .
Denegar o risco é esvaziar a mobilidade, o movimento do acontecimento; é
dizer que morrer é o acontecimento que nunca pode se dar e que, portanto,
1
Doutora em Ciências Políticas (PUC-SP) e pós-doutoranda na Faculdade de Educação da
UNICAMP - bolsista FAPESP.
2
Bailarinas e pesquisadoras formadas em Comunicação das Artes do Corpo pela PUC-SP.
3
Cf. Rosemary Segurado em “Projeto genôma humano e as novas tecnologias de
informação”.
4
Roberto Juarroz, poema 66 da Décima Poesia Vertical, p. 162-63.
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a vida se reduz ao fato da morte, fato contra o qual se investe desinvestindo
o movimento da vida que, ao desenhar oscilações, ganha agilidade,
densidade e porosidade pelos ilimitados arranjos e conexões que propicia.
Disse
Deleuze,
certa
vez,
que
“somos
oscilações
e
seres
5
ondulatórios” , somos movimento incessante e exprimimo-nos em infinitas
oscilações através das quais as potências se singularizam. Nesse sentido,
nosso corpo empírico apresentar-se-ia como ponto transitório de um
movimento vital que o atravessa e constitui exprimindo-se, a um só tempo,
como um “inventar-se” e como invenção de mundos. Desta perspectiva, o
corpo empírico é, sobretudo, “matéria fluente onde nenhum ponto de
ancoragem ou centro de referências seriam imputáveis” 6 . É sobre isto que
nos fala o poema de Roberto Juarroz ao convidar-nos a pensar e
experimentar esta névoa de vibrações e partículas cuja imagem é o próprio
movimento. No entanto, há toda uma política que, por meio dos muitos
saberes e poderes e de suas múltiplas aplicabilidades, investe na
representação do corpo como rígido e passivo, como objeto a ser
constantemente prospectado, reformado e restaurado em proveito da
conservação de uma forma que fará redundar aquela do Estado, pois não há
política de Estado que prescinda de políticas de subjetivação. Uma tal
representação do corpo converge com a sua apresentação como corpo feliz,
saudável e em forma, cuja gestualidade concorda imediatamente com as
funções que ele deve desempenhar. Pensaríamos: eis aí corpos e
subjetividades conformes às exigências do mundo, pois a política implicada
é aquela que leva a acreditar, e a precisar acreditar, num aperfeiçoamento
constante da forma afastando da experimentação das forças no mundo.
Posto isso, ainda que se experimente a incessante variação do mundo e sua
velocidade de transformação, o desconforto emerge sob a forma da ameaça,
do medo, do risco de perceber-se eliminado ou suprimido, de modo que a
potência de invenção é convocada não para resistir ao intolerável, mas para
tornar todos e cada um mais tolerantes e adequados, isto é, felizes e
saudáveis.
5
Cf. Richard Pinhas em “De Nietzsche ao Techno (manifesto pelas máquinas-pensamento
vindouras, para G. Deleuze e J.P. Manganaro)”.
6
Gilles Deleuze em Cinema 1 – A imagem-movimento, p. 78.
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Estar em forma é ser ágil na conquista de uma forma que possa ser
reconhecida como “a melhor”, é portanto, estar conforme às imagensprodutos que se consome de maneira a poder ser identificado a eles e assim
garantir sua participação no mundo.
Trata-se do corpo, mas do corpo imobilizado, investigado, descrito,
analisado e decodificado. Corpo anatômico, biomecânico, biotecnólogico e
de todo modo corpo adequado. E então, corpo suspenso, atravessado,
acoplado. Corpo obsoleto, mutilado, desprezado, mortificado. Trata-se
também, do corpo estimulante, estimulado. Corpo planejado. Corpo
impermeável, eternamente jovem. Corpo controlável, informacional,
perfeito. Corpo-prisão, confiante e confiável, corpo competente, seguro e
tolerante. Corpo enclausurado, embalado, feliz, saudável, universal: corpo
concesual, este que redunda no corpo democrático e participativo. Trata-se,
enfim do corpo condenado: normal, morno e impotente, o corpo ideal.
Aquele que desfila na TV e na Internet, que está estampado nas revistas,
mas também está belamente acondicionado em potes de 50 gramas, em
drágeas e tubos nacionais e importados. São corpos suaves, perfumados,
saborosos análogos as margarinas e as barras de cereais, mas são também
gestos e ações corretas. Estão em todos os lugares e devem comparecer ao
espelho, a balança, ao médico, ao terapeuta.
Deste modo, a política do corpo é sobretudo investimento político
sobre o corpo em proveito de uma saúde tão mais essencial porquanto ela
não difere do mercado saudável e de indivíduos saudáveis: todos
desprovidos de ambigüidades, todos fluidos e transparentes. Já não se trata
mais do corpo do qual se extrai energia, mas do corpo que consome e que
pode ser consumido, corpo-produto e como tal deve ser administrado e
gerido.
A
boa
gestão
dos
corpos,
no
entanto,
diz
respeito,
contemporaneamente, à gestão dos riscos expressos na combinação entre
hereditariedade e bons hábitos. O corpo próprio, solo da identidade, aquele
tão
caro
à
modernidade,
desmaterializa-se
em
fatores
de
risco,
virtualidades de adoecer e morrer, acessíveis somente a equipamentos cada
vez mais sofisticados e refinados que o prospectam em busca de inimigos:
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“é preciso estar seguro contra o outro e contra o lugar de onde ele vem” 7 ,
seja ele o bandido ou o vírus. O outro toma a forma dos desregramentos
vários do corpo e da alma, dos desvios de regimes, sejam eles alimentares,
sexuais ou morais, internos ou externos ao corpo, toma a forma de crimes
de toda a ordem, formas de uma anti-natureza insuportável e proliferante
que pode solapar a saúde, a felicidade e a produtividade.
Este corpo é aquele que não pode morrer e por isso mesmo já não
pode viver. Impotente, ainda assim este corpo ao qual se está habituado, é
um corpo intensivo de potência, pois ainda que aprisionado e silenciado, ele
insiste no corpo dado exigindo um outro olhar, uma outra escuta, uma outra
política capaz de desmanchar os saberes e práticas 8 que nos incitam a
percebê-lo somente pelo viés das técnicas e tecnologias que o estabilizam e
conformam, e não pelo viés da sua potência para resistir.
É a isto que se refere David Lapujade, na esteira de Deleuze e
sobretudo de Beckett, ao definir o corpo como aquele que não agüenta
mais. Como afirma Pelbart em “O corpo do informe”, ele não agüenta mais
tudo aquilo que o coage por fora e por dentro. A coação exterior do corpo
desde tempos imemoriais, tal como descrita por Nietzsche em Para a
genealogia da moral, é o civilizatório adestramento progressivo do animal
homem, a ferro e fogo, que resultou na forma homem que conhecemos.
Foucault foi quem melhor descreveu a modelagem do corpo moderno, sua
docilização por meio das tecnologias disciplinares 9 , tecnologias estas que,
na contemporaneidade das sociedades de controle, articulam-se com
aquelas que possibilitam o aperfeiçoamento de corpos, dados de saída como
sãos. O corpo não agüenta mais precisamente a disciplina e o adestramento,
seja como finalidade seja como meio de aperfeiçoamento.
Tais tecnologias investem simultaneamente na imobilização e na
liberação constante de sua potência de invenção como capital rentável na
produção de “territórios-padrão para configurar os tipos de subjetividade
7
8
9
Edson Passetti em “Sociedade de controle e anarquia”, p. 280.
José Gil em “O corpo paradoxal”, p.145.
Peter Pál Pelbart em “O corpo do informe”, p. 71-72.
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adequadas para cada nova esfera” 10 de mercado. O corpo é aprisionado em
e para subjetividades pré fabricadas.
Esse processo de homogeinização exprime-se na busca por territórios
e relações seguras e imóveis, sem risco. O que está pressuposta nesta busca
é uma relação majoritariamente sedentária em que as referências devem
permanecer fixas. Assim o corpo aprisionado em subjetividades padrão
remete a territórios existenciais standards cuja promessa é a garantia não
só de estabilidade e segurança num mundo cada vez mais instável e
inseguro, mas garantia contra todo risco e morte possíveis. Neste tipo de
territorialidade as finalidades e utilidades, os significados precisos,
corroboram a funcionalidade de cada componente, mantendo o corpo cego e
surdo aos processos ou a potência vital que o engendra. Em busca de mais
segurança
e
certezas,
somente
obtidas
a
custa
de
constantes
aperfeiçoamentos e re-formas, acaba-se protegido da própria vida.
A vida perfeita, sem riscos, sem mortes é patrocinada por uma
política de Estado que investe em imperfeição, previsibilidade e mortes de
toda espécie, e uma política de subjetivação pautada em modelos de
“longevidade do corpo, da alma, da materialidade e da riqueza” 11 aos quais
deve-se estar encaixado sob pena de imputar-lhe a obsolescência, a pobreza
ou a degeneração, ameaça constante que o espreita. Ameaça que exige,
portanto, mais segurança, renovando o jogo das tolerâncias.
As prospecções se multiplicam, detectando boas condições de um
lado e ameaças possíveis de outro, engendrando sistemas mais eficientes de
compensação na busca por um equilíbrio incerto. Confiança e incerteza
permeiam as relações com tudo e com todos, e o outro arrasta consigo toda
a imprevisibilidade frente a qual interpõem-se renovadas previsões e
precisões, legais e tecnológicas, que permitem a mera administração e
satisfação de necessidades como expressão da impotência interiorizada,
ingredientes da receita para a felicidade estampada nos noticiários, nas
embalagens, nas vitrines, nas bulas, nas imagens-sonho que os meios de
comunicação despejam.
10
11
Suely Rolnik em “O ocaso da vítima”, p. 213.
Edson Passetti em “Sociedade de controle e anarquia”, p. 265.
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No entanto, mesmo quando se acredita ter encontrado a mais
completa e apaziguadora imobilidade, ela está sempre escapando em algum
movimento, desmanchando os contornos de uma forma, de um modo de
existência que, longe de tornar mais seguros e felizes, ameaça de dentro na
medida em que bloqueia o acesso àquilo que em cada um incita a invenção
de modos de existência singulares capazes de resistir a proliferação de
subjetividades para consumo.
Mesmo na mais profunda imobilidade e impotência, o corpo é
continuamente atravessado por intensidades; o que interessa e faz diferença
é como nos relacionamos com elas, se transformamo-as em referências
fixas, se as significamos, hierarquizamos, domesticamos ou se as deixamos
movimentar-se livremente em proveito de liberações tanto mais políticas
quanto mais potentes para inventar outros modos de sentir e pensar em
relação aos quais, o repouso, a tranqüilidade, serão ditos apenas como
“uma imagem demasiado vasta daquilo que se move.” 12
Parece ser nesta direção que a bailarina e coreógrafa Pina Bausch nos
convida a pensar o movimento ou ainda que ela introduz o próprio
movimento no pensamento. Não exclusivamente como movimento do corpo,
mas como movimento no corpo. Nesse sentido, faz-se necessário matar o
corpo amestrado, acomodado e anestesiado, aquele que embora individual é
produzido coletivamente, liberando-o, deste modo, dos automatismos que
se lhe imputam sob a forma da constante repetição do mesmo; “para tomálo naquilo que lhe é mais próprio: sua dor no encontro com a exterioridade,
sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo” 13 .
O procedimento de Pina Bausch, ricamente comentado por diversos
autores 14 , vale-se precisamente da repetição para romper com os
automatismos que revestem os gestos/emoções de modo a abrir este “corpo
que não agüenta mais” para novas possibilidades de experimentação de si
mesmo. É o movimento que desautomatiza não só o corpo do bailarino, com
suas reações e sensações esperadas, desmanchando um território existencial
constituído, mas também aqueles que o vêem ao colocá-los em relação com
12
13
José Gil em Movimento total – O corpo e a Dança , p.13.
Peter Pál Pelbart em “O corpo do informe”, p. 72.
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aquilo que, no corpo de cada um, exprime a um só tempo a violência
civilizatória imposta pelas políticas de subjetivação modelares e as camadas
de emoções e sensações cujos movimentos ameaçam romper com os
modelos.
Longe de conservar, portanto longe de garantir o Mesmo, a repetição
em Pina Bausch exprime-se como “movimento capaz de selecionar, de
expulsar, de criar, de destruir assim como de produzir, e não fazer retornar
o Mesmo” 15 sobre o qual se fundam os modelos como garantia de
semelhança e identidade.
Em suas coreografias cada elemento do cenário, do figurino, as
músicas, os gestos, as falas tornam-se meios para se experimentar as
intensidades que povoam os corpos, mas também para desnudar as
sedimentações, coagulações e significações que o sujeitam reduzindo-o à
sua funcionalidade orgânica.
As montagens de Pina Bausch não convidam a encontrar padrões,
mensagens ou modelos sobre o qual possamos nos apoiar. Somos engajados,
juntamente com ela e os bailarinos, num processo cuja efetividade é a
ruptura ativa no interior de tecidos estruturados. Em suas coreografias, Pina
Bausch jamais deixa o cenário intocado; antes, “elege o lugar privilegiado
do dançarino sobre as ruínas da cena” 16 . Algo se passa, e esse algo não esta
confinado aos materiais dos quais ela se vale, mas remete àquilo que ela
investe para deles extrair uma tensão que nos lança em direção a um futuro
não dimensionável. É deste modo que os processos de individuação e
singularização exprimem o movimento da vida como embate, como impulso
vital. É a vida que está em cena e talvez por isso Pina Bausch esteja sempre
mais interessada no que move as pessoas, do que como elas fazem isso.
Na perspectiva de Pina Bausch, a dança e, portanto, a vida - porque é
dela que se trata -, só acontecem quando perdemos nossas referências,
quando ficamos “pasmos e perplexos, sem saber para onde ir” 17 , quando um
território, uma paisagem são destruídos para dar passagem as intensidades.
14
Dentre outros Ciane Fernandes em Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e
transformação e Leonetta Bentivoglio em O teatro de Pina Bausch.
15
Gilles Deleuze em Diferença e repetição, p. 36.
16
Adrian Cangi em “Fulgores de la deformación”, pp. 15-16.
17
Pina Bausch em “Dance, senão estamos perdidos”, p.11.
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O que é a dança, a vida, senão esse corpo intensivo, matéria não formada,
que se define por eixos e vetores, tendências dinâmicas, movimento, uma
cartografia do desconhecido, do pressentido? O que é o mundo senão fluxos
de intensidades que estão sempre presentes, forças invisíveis que a arte vai
tornar sensíveis?
Inventar
uma
linguagem
com
palavras,
com
imagens,
com
movimentos, estados de ânimo que faça pressentir este algo que está
sempre presente, esse corpo intensivo que insiste nos corpos empíricos, é o
problema que Pina Baush se coloca e nos coloca, mas é também o problema
do fotógrafo Sinval Garcia em cujas imagens pressente-se esse algo que se
agita, essa dança molecular do invisível, cuja imagem é o próprio
movimento.
O conjunto de dezessete imagens que compõem a exposição
Paisagens In-visíveis de Sinval Garcia, são antes os rastros, os resíduos de
movimento que afirmam a processualidade da vida. São traços de luz,
fulgurações. Sinval Garcia, assim como Pina Bausch, promovem a tensão e a
passagem entre o presente da realidade habitual, construída por meio dos
sistemas dominantes de subjetivação, em que o gesto é a repetição de um
adestramento que a cada vez torna mais rijos seus contornos, e as
exigências subterrâneas e invisíveis “que arruinam a realidade estabelecida
e mostram um outro presente que, pelo gesto, inaugura já um outro
futuro.” 18
As encenações de Pina Bausch e as imagens de Sinval Garcia
apresentam-se,
embora
de
modo
diferente,
como
paisagens
de
esquecimento em que toda a memória deságua, pois sem o esquecimento, a
potência de invenção, a própria processualidade da vida estaria bloqueada,
e as paisagens e os corpos seriam sempre retocados, para melhor espelhar.
É preciso constantemente esquecer. Se em Pina Bausch tal esquecimento
remete à des-subjetivação do movimento que, por meio da repetição é
liberado dos automatismos que o condenam a forma do identitário, em
Sinval Garcia o esquecimento remete às virtualidades que coexistem com o
18
Jose Gil em Movimento total – O corpo e a Dança, p. 209.
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movimento atual, sempre invisíveis e disponíveis lançando-nos em direção
ao por vir.
Em
ambos,
a
forma
em
seu
desaparecimento,
em
seu
desmanchamento afirmam a potência de invenção como força plástica que
libera a vida nas formas que a constrangem e a coagem, pois remetem ao
que já está sempre aí: o corpo intensivo. Pois é ele que, de todo modo,
resiste, e é com ele que se inventa os modos de resistir.
As montagens de Pina Bausch e a imagens de Sinval Garcia nunca
deixam de falar de política, porque trata-se, antes de mais nada, de
inventar para resistir, em recusar-se a se identificar a qualquer coisa –
inclusive a si mesmo -, e resistir para continuar inventando, precisamente
porque a potência de invenção investe todas as dimensões da vida e a arte
não se restringe mais a uma esfera da atividade humana.
Ainda assim, poderia parecer inusitada esta aproximação entre as
coreografias de Pina Bausch e as paisagens invisíveis de Sinval Garcia, no
entanto a forte presença dos elementos – terra, água etc. – nos trabalhos da
coreógrafa, como meios pelos quais o corpo experimenta o encontro com as
intensidades que o atravessam, indicam que a produção de rostos sobre o
corpo e de paisagens sobre a Terra estão sempre em redundância uns com os
outros, deste modo a produção de subjetividades padrão supõem um mundo
homogêneo e é por meio desta produção, que se promove a “abolição
organizada do corpo e das coordenadas corporais” 19 - com as quais
inventamos a nós mesmos e ao mundo -, saltando-se da dimensão orgânica
dos corpos para aquelas de significância e subjetivação.
É sobre esta dimensão que incidem as políticas de subjetivação
condenando os corpos a uma existência permanentemente reificada pelas
subjetividades modelares constantemente mobilizadas a exercer sua
identidade com o todo tendendo, deste modo, a conservar um dado estado
de coisas, desmobilizando o caráter processual da existência pelo medo e
pela incerteza que o outro – essa proliferação sem nome – suscita.
O eufórico ganhador e o invejoso culpado são as polaridades
esganiçadas que compõem os dispositivos de controle e o que deve ser
19
Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs, v.III, p. 49.
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controlado dando-se a ver e ouvir nas “dicas” do bem-viver e do mal a ser
aniquilado em infindáveis exercícios de nomeação, de significação que
preenchem corpos polidos e subjetividades esvaziadas. No entanto, uma
coisa nomeada está prestes a morrer, pois na medida em que é nomeada é
tirada da situação de processo. Porque ela é algo, torna-se uma intensidade
estagnada numa significação, uma referência fixa. Quando Pina Bausch fala
desse algo pressentido, ela chama atenção para o quanto é difícil torná-lo
visível, de como é preciso ter cuidado ao nomeá-lo, pois “se forem
nomeados muito rápido, com palavras, desaparecem ou tornam-se
banais.” 20 Esse cuidado se deve ao fato de que uma palavra vem sempre
rodeada de valores, significados históricos, traz consigo uma rede inteira de
relações, um modo de se relacionar com o mundo, um modo de se referir a
esse mundo. O que está suposto aqui é uma gramaticalidade que se explicita
como domesticação e contenção do movimento.
A
palavra
define
imagens,
sentimentos
e
emoções,
define
movimentos e relações, e por fim define suas verdades. Cada vez que se
age, sente, etc… atos e emoções vem acompanhados das palavras e das
verdades que os definem. Nesse sentido, a necessidade de palavras claras,
justas, que digam tudo, precisas ao extremo, recobre uma obsessão por
certezas e verdades sempre mais verdadeiras levando ao ressecamento não
só das palavras, mas sobretudo da vida. Pois, quanto mais precisas e claras,
mais objetivas, funcionais elas se tornam.
Já dizia Artaud “…idéias claras são idéias mortas e acabadas” 21 ,
servem para sustentar a ilusão apaziguadora de um mundo “seguro”, um
mundo imóvel -
visto que as palavras paralisam o movimento -
pretendendo-se, desta maneira, evitar qualquer tipo de perigo ou risco. O
mundo que se cria hoje é um mundo de idéias mortas.
No entanto, é também sobre a dimensão de significância e
subjetivação,
referida
anteriormente,
que
se
inventam
resistências
liberando o corpo, abrindo-o para que se experimente o turbilhão que nele
se agita de modo a torná-lo o meio pelo qual nunca se termina de apropriarse de si e do mundo como invenção. Por mais que se pretenda definitiva
20
Pina Bausch em “Dance senão estamos Perdidos”, p.11.
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“uma palavra vem sempre rodeada de emoções não definidas, de tecidos
esfiapados de afectos, de esboços de movimentos corporais, de vibrações
mudas de espaço. Forma-se uma atmosfera não- verbal que rodeia toda a
linguagem.” 22 Ou seja, uma atmosfera de forças que transbordam da
palavra em gestos, sons, gritos e silêncio. É o indizível da linguagem, o
inactuável do gesto, o sem nome de toda nomeação, o impensável do
pensamento. 23
Trata-se daquilo que quereríamos dizer, mas não conseguimos, pois
escapa à palavra, e então se prolonga em outra coisa. O movimento está
sempre no limiar da fala e esta por sua vez no limiar do movimento, uma
vez que os gestos se desdobram em falas, em gritos, ou até mesmo em
outros gestos. Então, gestos se desdobram em falas, que se prolongam em
gestos, que se prolongam em gritos, que se desdobram em imagens, que se
desdobram em falas, que transbordam sons, num fluxo molecular que abre
ao ilimitado dos sentidos e relações.
O que Pina Bausch traz em sua dança-teatro, o que Sinval Garcia
experimenta, e finalmente o que Artaud propõe e afirma, não se reduz a um
trânsito entre linguagens, pois é sobretudo a afirmação de uma porosidade
do corpo e da subjetividade, abertura por meio da qual extraímos “a
matéria que convém ao corpo que se quer edificar” 24 em ressonância com os
modos de subjetivação singulares que o exprimem.
A arte aparece nesse movimento em que a matéria não formada
exprime-se como movimento vital comparável a um braço erguido que torna
a cair, um gesto criador que se desfaz, que atravessa e desorganiza as
significações que imobilizam a vida em sua processualidade, que rompe as
estratificações que a aprisionam, os gestos que a fixam e o pensamento que
a justifica, lançando-nos, na respiração do mundo.
Porque a arte é vida, como afirma Nietzsche, ela atravessa todas as
dimensões da atividade humana, e se ela consiste na invenção de si e do
mundo com o qual nos tornarmos, ela é potência vital cuja intensificação
21
A. Artaud em O Teatro e seu Duplo, p. 40.
José Gil em Movimento Total – O corpo e a Dança, p. 218.
23
Tais concepções estão presentes nas análises desenvolvidas por Blanchot, José Gil e por
Gilles Deleuze.
24
José Gil em Movimento Total– O corpo e a Dança, p. 75.
22
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não é outra coisa senão fazer da própria vida uma obra de arte tensionando
limites.
Nesta perspectiva, a passagem do corpo condenado ao corpo liberado
implica tomar a vida como matéria ética, isto é, em transformá-la em
material expressivo para experimentar sua força, sua intensidade, sua
expansão. Neste instante, subjetividades e corpos se desmancham em
movimentos, pondo em jogo, a um só tempo, a vida como invenção e a
invenção de resistências que a afirmam.
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ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148
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