Experimentações estético-políticas
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Experimentações estético-políticas
1 Experimentações estético-políticas: do corpo condenado ao corpo liberado, a vida como matéria ética Ana Godoy 1 Joana Ferraz, Juliana Ferreira, Jussara Belchior 2 Um dos investimentos mais caros a sociedade de controle talvez seja a apatia, o sossego, a certeza por meio das quais se intenta constituir corpos perfeitos e saudáveis, responsáveis e auto-controlados modelando e edulcorando, desta forma, a existência, bem como subjetividades que lhe sejam correspondentes. Neste sentido, propor uma experimentação estético-política remete, sobretudo, a invenção de percursos de pensamento e vida, remete, portanto, a conexões inesperadas entre estilos e autores diversos em proveito da transfiguração e invenção de modos de existência, de subjetividades que afirmam a resistência como movimento da vida. Tal tarefa torna-se tanto mais árdua quanto mais se evidencia que problematizar o corpo na sociedade de controle implica confrontar o investimento permanente em modulações e modelações subjetivas que permitem, contemporaneamente atribuir à imagem, seja ela qual for, a potencialidade da informação 3 , e a imobilidade constante com a qual ela seduz a partir daquilo que no movimento ela mesma denega: o risco. É a isso que se refere o poema de Juarroz quando diz que “qualquer movimento mata algo. Mata o lugar que se abandona, o gesto, a posição irrepetível, algum organismo anônimo, um sinal, um olhar, um amor que voltava, uma presença ou o seu contrário, a vida sempre de algum outro, a própria vida sem os outros, estar aqui é mover-se, estar aqui é matar algo (…)” 4 . Denegar o risco é esvaziar a mobilidade, o movimento do acontecimento; é dizer que morrer é o acontecimento que nunca pode se dar e que, portanto, 1 Doutora em Ciências Políticas (PUC-SP) e pós-doutoranda na Faculdade de Educação da UNICAMP - bolsista FAPESP. 2 Bailarinas e pesquisadoras formadas em Comunicação das Artes do Corpo pela PUC-SP. 3 Cf. Rosemary Segurado em “Projeto genôma humano e as novas tecnologias de informação”. 4 Roberto Juarroz, poema 66 da Décima Poesia Vertical, p. 162-63. ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 2 a vida se reduz ao fato da morte, fato contra o qual se investe desinvestindo o movimento da vida que, ao desenhar oscilações, ganha agilidade, densidade e porosidade pelos ilimitados arranjos e conexões que propicia. Disse Deleuze, certa vez, que “somos oscilações e seres 5 ondulatórios” , somos movimento incessante e exprimimo-nos em infinitas oscilações através das quais as potências se singularizam. Nesse sentido, nosso corpo empírico apresentar-se-ia como ponto transitório de um movimento vital que o atravessa e constitui exprimindo-se, a um só tempo, como um “inventar-se” e como invenção de mundos. Desta perspectiva, o corpo empírico é, sobretudo, “matéria fluente onde nenhum ponto de ancoragem ou centro de referências seriam imputáveis” 6 . É sobre isto que nos fala o poema de Roberto Juarroz ao convidar-nos a pensar e experimentar esta névoa de vibrações e partículas cuja imagem é o próprio movimento. No entanto, há toda uma política que, por meio dos muitos saberes e poderes e de suas múltiplas aplicabilidades, investe na representação do corpo como rígido e passivo, como objeto a ser constantemente prospectado, reformado e restaurado em proveito da conservação de uma forma que fará redundar aquela do Estado, pois não há política de Estado que prescinda de políticas de subjetivação. Uma tal representação do corpo converge com a sua apresentação como corpo feliz, saudável e em forma, cuja gestualidade concorda imediatamente com as funções que ele deve desempenhar. Pensaríamos: eis aí corpos e subjetividades conformes às exigências do mundo, pois a política implicada é aquela que leva a acreditar, e a precisar acreditar, num aperfeiçoamento constante da forma afastando da experimentação das forças no mundo. Posto isso, ainda que se experimente a incessante variação do mundo e sua velocidade de transformação, o desconforto emerge sob a forma da ameaça, do medo, do risco de perceber-se eliminado ou suprimido, de modo que a potência de invenção é convocada não para resistir ao intolerável, mas para tornar todos e cada um mais tolerantes e adequados, isto é, felizes e saudáveis. 5 Cf. Richard Pinhas em “De Nietzsche ao Techno (manifesto pelas máquinas-pensamento vindouras, para G. Deleuze e J.P. Manganaro)”. 6 Gilles Deleuze em Cinema 1 – A imagem-movimento, p. 78. ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 3 Estar em forma é ser ágil na conquista de uma forma que possa ser reconhecida como “a melhor”, é portanto, estar conforme às imagensprodutos que se consome de maneira a poder ser identificado a eles e assim garantir sua participação no mundo. Trata-se do corpo, mas do corpo imobilizado, investigado, descrito, analisado e decodificado. Corpo anatômico, biomecânico, biotecnólogico e de todo modo corpo adequado. E então, corpo suspenso, atravessado, acoplado. Corpo obsoleto, mutilado, desprezado, mortificado. Trata-se também, do corpo estimulante, estimulado. Corpo planejado. Corpo impermeável, eternamente jovem. Corpo controlável, informacional, perfeito. Corpo-prisão, confiante e confiável, corpo competente, seguro e tolerante. Corpo enclausurado, embalado, feliz, saudável, universal: corpo concesual, este que redunda no corpo democrático e participativo. Trata-se, enfim do corpo condenado: normal, morno e impotente, o corpo ideal. Aquele que desfila na TV e na Internet, que está estampado nas revistas, mas também está belamente acondicionado em potes de 50 gramas, em drágeas e tubos nacionais e importados. São corpos suaves, perfumados, saborosos análogos as margarinas e as barras de cereais, mas são também gestos e ações corretas. Estão em todos os lugares e devem comparecer ao espelho, a balança, ao médico, ao terapeuta. Deste modo, a política do corpo é sobretudo investimento político sobre o corpo em proveito de uma saúde tão mais essencial porquanto ela não difere do mercado saudável e de indivíduos saudáveis: todos desprovidos de ambigüidades, todos fluidos e transparentes. Já não se trata mais do corpo do qual se extrai energia, mas do corpo que consome e que pode ser consumido, corpo-produto e como tal deve ser administrado e gerido. A boa gestão dos corpos, no entanto, diz respeito, contemporaneamente, à gestão dos riscos expressos na combinação entre hereditariedade e bons hábitos. O corpo próprio, solo da identidade, aquele tão caro à modernidade, desmaterializa-se em fatores de risco, virtualidades de adoecer e morrer, acessíveis somente a equipamentos cada vez mais sofisticados e refinados que o prospectam em busca de inimigos: ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 4 “é preciso estar seguro contra o outro e contra o lugar de onde ele vem” 7 , seja ele o bandido ou o vírus. O outro toma a forma dos desregramentos vários do corpo e da alma, dos desvios de regimes, sejam eles alimentares, sexuais ou morais, internos ou externos ao corpo, toma a forma de crimes de toda a ordem, formas de uma anti-natureza insuportável e proliferante que pode solapar a saúde, a felicidade e a produtividade. Este corpo é aquele que não pode morrer e por isso mesmo já não pode viver. Impotente, ainda assim este corpo ao qual se está habituado, é um corpo intensivo de potência, pois ainda que aprisionado e silenciado, ele insiste no corpo dado exigindo um outro olhar, uma outra escuta, uma outra política capaz de desmanchar os saberes e práticas 8 que nos incitam a percebê-lo somente pelo viés das técnicas e tecnologias que o estabilizam e conformam, e não pelo viés da sua potência para resistir. É a isto que se refere David Lapujade, na esteira de Deleuze e sobretudo de Beckett, ao definir o corpo como aquele que não agüenta mais. Como afirma Pelbart em “O corpo do informe”, ele não agüenta mais tudo aquilo que o coage por fora e por dentro. A coação exterior do corpo desde tempos imemoriais, tal como descrita por Nietzsche em Para a genealogia da moral, é o civilizatório adestramento progressivo do animal homem, a ferro e fogo, que resultou na forma homem que conhecemos. Foucault foi quem melhor descreveu a modelagem do corpo moderno, sua docilização por meio das tecnologias disciplinares 9 , tecnologias estas que, na contemporaneidade das sociedades de controle, articulam-se com aquelas que possibilitam o aperfeiçoamento de corpos, dados de saída como sãos. O corpo não agüenta mais precisamente a disciplina e o adestramento, seja como finalidade seja como meio de aperfeiçoamento. Tais tecnologias investem simultaneamente na imobilização e na liberação constante de sua potência de invenção como capital rentável na produção de “territórios-padrão para configurar os tipos de subjetividade 7 8 9 Edson Passetti em “Sociedade de controle e anarquia”, p. 280. José Gil em “O corpo paradoxal”, p.145. Peter Pál Pelbart em “O corpo do informe”, p. 71-72. ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 5 adequadas para cada nova esfera” 10 de mercado. O corpo é aprisionado em e para subjetividades pré fabricadas. Esse processo de homogeinização exprime-se na busca por territórios e relações seguras e imóveis, sem risco. O que está pressuposta nesta busca é uma relação majoritariamente sedentária em que as referências devem permanecer fixas. Assim o corpo aprisionado em subjetividades padrão remete a territórios existenciais standards cuja promessa é a garantia não só de estabilidade e segurança num mundo cada vez mais instável e inseguro, mas garantia contra todo risco e morte possíveis. Neste tipo de territorialidade as finalidades e utilidades, os significados precisos, corroboram a funcionalidade de cada componente, mantendo o corpo cego e surdo aos processos ou a potência vital que o engendra. Em busca de mais segurança e certezas, somente obtidas a custa de constantes aperfeiçoamentos e re-formas, acaba-se protegido da própria vida. A vida perfeita, sem riscos, sem mortes é patrocinada por uma política de Estado que investe em imperfeição, previsibilidade e mortes de toda espécie, e uma política de subjetivação pautada em modelos de “longevidade do corpo, da alma, da materialidade e da riqueza” 11 aos quais deve-se estar encaixado sob pena de imputar-lhe a obsolescência, a pobreza ou a degeneração, ameaça constante que o espreita. Ameaça que exige, portanto, mais segurança, renovando o jogo das tolerâncias. As prospecções se multiplicam, detectando boas condições de um lado e ameaças possíveis de outro, engendrando sistemas mais eficientes de compensação na busca por um equilíbrio incerto. Confiança e incerteza permeiam as relações com tudo e com todos, e o outro arrasta consigo toda a imprevisibilidade frente a qual interpõem-se renovadas previsões e precisões, legais e tecnológicas, que permitem a mera administração e satisfação de necessidades como expressão da impotência interiorizada, ingredientes da receita para a felicidade estampada nos noticiários, nas embalagens, nas vitrines, nas bulas, nas imagens-sonho que os meios de comunicação despejam. 10 11 Suely Rolnik em “O ocaso da vítima”, p. 213. Edson Passetti em “Sociedade de controle e anarquia”, p. 265. ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 6 No entanto, mesmo quando se acredita ter encontrado a mais completa e apaziguadora imobilidade, ela está sempre escapando em algum movimento, desmanchando os contornos de uma forma, de um modo de existência que, longe de tornar mais seguros e felizes, ameaça de dentro na medida em que bloqueia o acesso àquilo que em cada um incita a invenção de modos de existência singulares capazes de resistir a proliferação de subjetividades para consumo. Mesmo na mais profunda imobilidade e impotência, o corpo é continuamente atravessado por intensidades; o que interessa e faz diferença é como nos relacionamos com elas, se transformamo-as em referências fixas, se as significamos, hierarquizamos, domesticamos ou se as deixamos movimentar-se livremente em proveito de liberações tanto mais políticas quanto mais potentes para inventar outros modos de sentir e pensar em relação aos quais, o repouso, a tranqüilidade, serão ditos apenas como “uma imagem demasiado vasta daquilo que se move.” 12 Parece ser nesta direção que a bailarina e coreógrafa Pina Bausch nos convida a pensar o movimento ou ainda que ela introduz o próprio movimento no pensamento. Não exclusivamente como movimento do corpo, mas como movimento no corpo. Nesse sentido, faz-se necessário matar o corpo amestrado, acomodado e anestesiado, aquele que embora individual é produzido coletivamente, liberando-o, deste modo, dos automatismos que se lhe imputam sob a forma da constante repetição do mesmo; “para tomálo naquilo que lhe é mais próprio: sua dor no encontro com a exterioridade, sua condição de corpo afetado pelas forças do mundo” 13 . O procedimento de Pina Bausch, ricamente comentado por diversos autores 14 , vale-se precisamente da repetição para romper com os automatismos que revestem os gestos/emoções de modo a abrir este “corpo que não agüenta mais” para novas possibilidades de experimentação de si mesmo. É o movimento que desautomatiza não só o corpo do bailarino, com suas reações e sensações esperadas, desmanchando um território existencial constituído, mas também aqueles que o vêem ao colocá-los em relação com 12 13 José Gil em Movimento total – O corpo e a Dança , p.13. Peter Pál Pelbart em “O corpo do informe”, p. 72. ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 7 aquilo que, no corpo de cada um, exprime a um só tempo a violência civilizatória imposta pelas políticas de subjetivação modelares e as camadas de emoções e sensações cujos movimentos ameaçam romper com os modelos. Longe de conservar, portanto longe de garantir o Mesmo, a repetição em Pina Bausch exprime-se como “movimento capaz de selecionar, de expulsar, de criar, de destruir assim como de produzir, e não fazer retornar o Mesmo” 15 sobre o qual se fundam os modelos como garantia de semelhança e identidade. Em suas coreografias cada elemento do cenário, do figurino, as músicas, os gestos, as falas tornam-se meios para se experimentar as intensidades que povoam os corpos, mas também para desnudar as sedimentações, coagulações e significações que o sujeitam reduzindo-o à sua funcionalidade orgânica. As montagens de Pina Bausch não convidam a encontrar padrões, mensagens ou modelos sobre o qual possamos nos apoiar. Somos engajados, juntamente com ela e os bailarinos, num processo cuja efetividade é a ruptura ativa no interior de tecidos estruturados. Em suas coreografias, Pina Bausch jamais deixa o cenário intocado; antes, “elege o lugar privilegiado do dançarino sobre as ruínas da cena” 16 . Algo se passa, e esse algo não esta confinado aos materiais dos quais ela se vale, mas remete àquilo que ela investe para deles extrair uma tensão que nos lança em direção a um futuro não dimensionável. É deste modo que os processos de individuação e singularização exprimem o movimento da vida como embate, como impulso vital. É a vida que está em cena e talvez por isso Pina Bausch esteja sempre mais interessada no que move as pessoas, do que como elas fazem isso. Na perspectiva de Pina Bausch, a dança e, portanto, a vida - porque é dela que se trata -, só acontecem quando perdemos nossas referências, quando ficamos “pasmos e perplexos, sem saber para onde ir” 17 , quando um território, uma paisagem são destruídos para dar passagem as intensidades. 14 Dentre outros Ciane Fernandes em Pina Bausch e o Wuppertal dança-teatro: repetição e transformação e Leonetta Bentivoglio em O teatro de Pina Bausch. 15 Gilles Deleuze em Diferença e repetição, p. 36. 16 Adrian Cangi em “Fulgores de la deformación”, pp. 15-16. 17 Pina Bausch em “Dance, senão estamos perdidos”, p.11. ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 8 O que é a dança, a vida, senão esse corpo intensivo, matéria não formada, que se define por eixos e vetores, tendências dinâmicas, movimento, uma cartografia do desconhecido, do pressentido? O que é o mundo senão fluxos de intensidades que estão sempre presentes, forças invisíveis que a arte vai tornar sensíveis? Inventar uma linguagem com palavras, com imagens, com movimentos, estados de ânimo que faça pressentir este algo que está sempre presente, esse corpo intensivo que insiste nos corpos empíricos, é o problema que Pina Baush se coloca e nos coloca, mas é também o problema do fotógrafo Sinval Garcia em cujas imagens pressente-se esse algo que se agita, essa dança molecular do invisível, cuja imagem é o próprio movimento. O conjunto de dezessete imagens que compõem a exposição Paisagens In-visíveis de Sinval Garcia, são antes os rastros, os resíduos de movimento que afirmam a processualidade da vida. São traços de luz, fulgurações. Sinval Garcia, assim como Pina Bausch, promovem a tensão e a passagem entre o presente da realidade habitual, construída por meio dos sistemas dominantes de subjetivação, em que o gesto é a repetição de um adestramento que a cada vez torna mais rijos seus contornos, e as exigências subterrâneas e invisíveis “que arruinam a realidade estabelecida e mostram um outro presente que, pelo gesto, inaugura já um outro futuro.” 18 As encenações de Pina Bausch e as imagens de Sinval Garcia apresentam-se, embora de modo diferente, como paisagens de esquecimento em que toda a memória deságua, pois sem o esquecimento, a potência de invenção, a própria processualidade da vida estaria bloqueada, e as paisagens e os corpos seriam sempre retocados, para melhor espelhar. É preciso constantemente esquecer. Se em Pina Bausch tal esquecimento remete à des-subjetivação do movimento que, por meio da repetição é liberado dos automatismos que o condenam a forma do identitário, em Sinval Garcia o esquecimento remete às virtualidades que coexistem com o 18 Jose Gil em Movimento total – O corpo e a Dança, p. 209. ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 9 movimento atual, sempre invisíveis e disponíveis lançando-nos em direção ao por vir. Em ambos, a forma em seu desaparecimento, em seu desmanchamento afirmam a potência de invenção como força plástica que libera a vida nas formas que a constrangem e a coagem, pois remetem ao que já está sempre aí: o corpo intensivo. Pois é ele que, de todo modo, resiste, e é com ele que se inventa os modos de resistir. As montagens de Pina Bausch e a imagens de Sinval Garcia nunca deixam de falar de política, porque trata-se, antes de mais nada, de inventar para resistir, em recusar-se a se identificar a qualquer coisa – inclusive a si mesmo -, e resistir para continuar inventando, precisamente porque a potência de invenção investe todas as dimensões da vida e a arte não se restringe mais a uma esfera da atividade humana. Ainda assim, poderia parecer inusitada esta aproximação entre as coreografias de Pina Bausch e as paisagens invisíveis de Sinval Garcia, no entanto a forte presença dos elementos – terra, água etc. – nos trabalhos da coreógrafa, como meios pelos quais o corpo experimenta o encontro com as intensidades que o atravessam, indicam que a produção de rostos sobre o corpo e de paisagens sobre a Terra estão sempre em redundância uns com os outros, deste modo a produção de subjetividades padrão supõem um mundo homogêneo e é por meio desta produção, que se promove a “abolição organizada do corpo e das coordenadas corporais” 19 - com as quais inventamos a nós mesmos e ao mundo -, saltando-se da dimensão orgânica dos corpos para aquelas de significância e subjetivação. É sobre esta dimensão que incidem as políticas de subjetivação condenando os corpos a uma existência permanentemente reificada pelas subjetividades modelares constantemente mobilizadas a exercer sua identidade com o todo tendendo, deste modo, a conservar um dado estado de coisas, desmobilizando o caráter processual da existência pelo medo e pela incerteza que o outro – essa proliferação sem nome – suscita. O eufórico ganhador e o invejoso culpado são as polaridades esganiçadas que compõem os dispositivos de controle e o que deve ser 19 Gilles Deleuze e Félix Guattari em Mil Platôs, v.III, p. 49. ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 10 controlado dando-se a ver e ouvir nas “dicas” do bem-viver e do mal a ser aniquilado em infindáveis exercícios de nomeação, de significação que preenchem corpos polidos e subjetividades esvaziadas. No entanto, uma coisa nomeada está prestes a morrer, pois na medida em que é nomeada é tirada da situação de processo. Porque ela é algo, torna-se uma intensidade estagnada numa significação, uma referência fixa. Quando Pina Bausch fala desse algo pressentido, ela chama atenção para o quanto é difícil torná-lo visível, de como é preciso ter cuidado ao nomeá-lo, pois “se forem nomeados muito rápido, com palavras, desaparecem ou tornam-se banais.” 20 Esse cuidado se deve ao fato de que uma palavra vem sempre rodeada de valores, significados históricos, traz consigo uma rede inteira de relações, um modo de se relacionar com o mundo, um modo de se referir a esse mundo. O que está suposto aqui é uma gramaticalidade que se explicita como domesticação e contenção do movimento. A palavra define imagens, sentimentos e emoções, define movimentos e relações, e por fim define suas verdades. Cada vez que se age, sente, etc… atos e emoções vem acompanhados das palavras e das verdades que os definem. Nesse sentido, a necessidade de palavras claras, justas, que digam tudo, precisas ao extremo, recobre uma obsessão por certezas e verdades sempre mais verdadeiras levando ao ressecamento não só das palavras, mas sobretudo da vida. Pois, quanto mais precisas e claras, mais objetivas, funcionais elas se tornam. Já dizia Artaud “…idéias claras são idéias mortas e acabadas” 21 , servem para sustentar a ilusão apaziguadora de um mundo “seguro”, um mundo imóvel - visto que as palavras paralisam o movimento - pretendendo-se, desta maneira, evitar qualquer tipo de perigo ou risco. O mundo que se cria hoje é um mundo de idéias mortas. No entanto, é também sobre a dimensão de significância e subjetivação, referida anteriormente, que se inventam resistências liberando o corpo, abrindo-o para que se experimente o turbilhão que nele se agita de modo a torná-lo o meio pelo qual nunca se termina de apropriarse de si e do mundo como invenção. Por mais que se pretenda definitiva 20 Pina Bausch em “Dance senão estamos Perdidos”, p.11. ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 11 “uma palavra vem sempre rodeada de emoções não definidas, de tecidos esfiapados de afectos, de esboços de movimentos corporais, de vibrações mudas de espaço. Forma-se uma atmosfera não- verbal que rodeia toda a linguagem.” 22 Ou seja, uma atmosfera de forças que transbordam da palavra em gestos, sons, gritos e silêncio. É o indizível da linguagem, o inactuável do gesto, o sem nome de toda nomeação, o impensável do pensamento. 23 Trata-se daquilo que quereríamos dizer, mas não conseguimos, pois escapa à palavra, e então se prolonga em outra coisa. O movimento está sempre no limiar da fala e esta por sua vez no limiar do movimento, uma vez que os gestos se desdobram em falas, em gritos, ou até mesmo em outros gestos. Então, gestos se desdobram em falas, que se prolongam em gestos, que se prolongam em gritos, que se desdobram em imagens, que se desdobram em falas, que transbordam sons, num fluxo molecular que abre ao ilimitado dos sentidos e relações. O que Pina Bausch traz em sua dança-teatro, o que Sinval Garcia experimenta, e finalmente o que Artaud propõe e afirma, não se reduz a um trânsito entre linguagens, pois é sobretudo a afirmação de uma porosidade do corpo e da subjetividade, abertura por meio da qual extraímos “a matéria que convém ao corpo que se quer edificar” 24 em ressonância com os modos de subjetivação singulares que o exprimem. A arte aparece nesse movimento em que a matéria não formada exprime-se como movimento vital comparável a um braço erguido que torna a cair, um gesto criador que se desfaz, que atravessa e desorganiza as significações que imobilizam a vida em sua processualidade, que rompe as estratificações que a aprisionam, os gestos que a fixam e o pensamento que a justifica, lançando-nos, na respiração do mundo. Porque a arte é vida, como afirma Nietzsche, ela atravessa todas as dimensões da atividade humana, e se ela consiste na invenção de si e do mundo com o qual nos tornarmos, ela é potência vital cuja intensificação 21 A. Artaud em O Teatro e seu Duplo, p. 40. José Gil em Movimento Total – O corpo e a Dança, p. 218. 23 Tais concepções estão presentes nas análises desenvolvidas por Blanchot, José Gil e por Gilles Deleuze. 24 José Gil em Movimento Total– O corpo e a Dança, p. 75. 22 ALEGRAR nº04 - 2007 - ISSN 18085148 www.alegrar.com.br 12 não é outra coisa senão fazer da própria vida uma obra de arte tensionando limites. Nesta perspectiva, a passagem do corpo condenado ao corpo liberado implica tomar a vida como matéria ética, isto é, em transformá-la em material expressivo para experimentar sua força, sua intensidade, sua expansão. Neste instante, subjetividades e corpos se desmancham em movimentos, pondo em jogo, a um só tempo, a vida como invenção e a invenção de resistências que a afirmam. Bibliografia ARTAUD, Antonin – O teatro e seu duplo (trad.: Teixeira Coelho). São Paulo: Martins Fontes, 1999. BENTIVOGLIO, Leonetta – O teatro de Pina Bausch. Lisboa: Acarte, 1994. 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