O IMENSO ERRO DE JESUS CRISTO

Transcrição

O IMENSO ERRO DE JESUS CRISTO
O IMENSO ERRO DE JESUS CRISTO
1.
O meu nome é Pedro Ludgero. Tenho 41 anos de idade no ano 2013 depois de
Cristo. Sou de raça branca e pertenço ao sexo masculino. Sou português e vivo numa
das maiores cidades de Portugal (no Ocidente, portanto). Pertenço à classe média. A
minha educação teve uma componente católica não muito intensa. Não adiro à moral
sexual tradicional. Tenho estudos universitários. Profissionalmente, estou ligado ao
ramo da educação. Ainda que não reconhecido criticamente, sou escritor e cineasta.
Leio muito. Do ponto de vista político, sinto-me próximo das ideologias de esquerda,
mas voto em branco há mais de dez anos. Do ponto de vista religioso, reconheço-me
sob a designação genérica do agnosticismo.
2.
O presente ensaio é o resultado de uma leitura atenta dos quatro Evangelhos
canónicos, os que estão compilados no Novo Testamento da Bíblia, sem recurso a
qualquer comentário sobre esses textos ou a qualquer leitura sobre a dimensão histórica
dos eventos por eles narrados. A edição utilizada foi a da Difusora Bíblica dos
Franciscanos Capuchinhos, na revisão do ano de 2003.
3.
A Bíblia é um conjunto de textos. Os Evangelhos, que dela fazem parte, são
relatos da vida exemplar de um suposto personagem histórico, Jesus Cristo, escritos
bastante tempo após a sua morte, mas presumivelmente devedores da autoridade de
testemunhas oculares desses eventos, cujos saberes se encontrariam disseminados na
cultura de determinadas comunidades. Jesus Cristo, como Sócrates antes dele, não teria
ele próprio produzido nenhum escrito, o que desde logo gera em nós alguma
desconfiança quanto ao que podemos saber ao certo sobre o sentido da mensagem que
ele quis oralmente partilhar (quem conta um conto, acrescenta um ponto).
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Uma grande parte da humanidade toma os textos bíblicos por objetos sagrados.
Ora, são os próprios intelectuais cristãos que, quando honestos, assinalam a dimensão
literária desses textos. Enquanto produtos da linguagem e do artifício literário, os
Evangelhos não fogem às características que se podem encontrar em todas as outras
obras que, nesse aspeto, são suas congéneres.
Escritos numa época da literatura em que, após a descoberta das grandes
metáforas fundadoras da civilização (como aquela que confunde a morte com o sono), a
prática da alegoria tomou a dianteira enquanto expressão das verdades comunitárias (o
mais das vezes não muito conscientes), o próprio protagonista desses Evangelhos
assume que, para poder ser entendido por um público que se pretende universal, tem de
recorrer à técnica da parábola (o que, de certo modo, o torna um antepassado da cultura
de massas). Esta funcionalidade didática não será conforme aos usos mais sofisticados
dos vários tipos de alegorização (basta pensar na didática outra que se desprende da
leitura do “Dom Quixote de la Mancha”), mas deixa-nos no espírito a suspeição de que
talvez todo o relato evangélico tenha características figuradas, e de modo algum
realistas (o que não lhe retira mérito literário, nem intelectual, e muito menos religioso!
– não foram os Evangelhos que nos tornaram agnóstico).
O génio alegórico é aliás muito mais exuberante nestes textos do que a prática
pontual da metáfora (só muitos séculos mais tarde se investiu experimentalmente neste
instrumento de retórica). Note-se que, quando Cristo compara o seu corpo a um templo
(João), não se podem daí extrair mais consequências doutrinárias do que quando o
mesmo personagem proclama “Se a vista ou a mão forem origem de pecado, mais vale
arrancá-las e lançá-las fora, pois é melhor perder um dos órgãos do que todo o corpo
ser lançado à Geena.” (Mateus). É tão improvável que Cristo esteja, neste momento do
seu discurso, a referir-se literalmente à automutilação, como improvável é que
entendesse o corpo como um antro de castidade inviolável (o que é, desde logo, uma
leitura abusiva da metáfora em questão). Se Cristo era filho de um deus muito criativo,
não era ele próprio um criador metafórico muito original (talvez esses genes, dizemo-lo
sem qualquer ironia, tenham passado mais generosamente para o Espírito Santo).
Os Evangelhos são de tal modo alegóricos que chegam a perder subtileza: Cristo
termina a sua carreira narrativa com uma crucificação no Lugar do Crânio (o Gólgota),
rodeado por um ladrão bom e um ladrão mau… A legibilidade figurada destes achados é
tão grosseira que poderia figurar na série do Harry Potter (e basta pensar, só para termos
um sabor de contraste, na dificuldade que ainda hoje sentimos para interpretarmos de
forma inequívoca o olhar de Orfeu para Eurídice à saída do Hades).
O verdadeiro homem de fé, aquele que vive a sua religião como um combate
duro e difícil, sabe que a realidade quando contaminada pela graça divina nunca toma
este aspeto de paradigma de professor primário. Seria, por isso, mais honesto e mais
recompensador que todos nós (crentes, ateus e agnósticos) considerássemos que os
Evangelhos são textos. Exercícios de linguagem figurada. Literatura criticável.
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Foi a plena assunção dessa dimensão alegórica que permitiu a Pier Paolo
Pasolini fazer o seu autorretrato cinematográfico através de uma encenação do
“Evangelho segundo Mateus”, com uma tal fidelidade ao discurso crístico que
conseguiu reinventar-lhe, para o século XX, todo o seu potencial polémico.
4.
Os cristãos são uma comunidade peculiar de leitores destes textos.
O “Evangelho segundo João” é bastante diferente dos seus congéneres sinóticos.
Enquanto estes parecem de facto derivar de uma psicologia coletiva não muito
consciente, o texto de João, muito mais bem escrito, o último a ser publicado e aquele
que foi colocado no último lugar da série (o lugar de destaque, portanto), parece ser
obra de um autor determinado em controlar a liberdade que esse gesto de leitura pudesse
eventualmente ter (afirmamos isto sem qualquer sentido de teoria da conspiração; os
meandros da história escrevem-se a si mesmos, naquele tipo de conjugação de
imponderáveis que tanto terá sugestionado o cristão Tolstói).
Note-se como, em João, o Discurso do Pão do Céu assume a função técnica de
afinar o sentido do episódio da multiplicação dos pães que os outros evangelistas
também narram (o mesmo João fala ainda do pão ensopado de Judas Iscariotes). O
autor do texto não deixa que a gestão literária dessa isotopia tenha outra eloquência que
não seja a da doutrina que prescreve que o espírito é uma dimensão mais poderosa e
infinitamente mais relevante do que qualquer matéria. O Cristo de João é, aliás, um
homem mais impaciente, constantemente a exigir a fé na sua essência messiânica sob
pena de queda nos abismos da culpa.
O “Evangelho segundo João” é uma espécie de moral da história, aposta no fim
da tentativa e erro que as outras narrativas foram esboçando. Ora, nós consideramo-nos
um leitor livre, liberto até das intenções conscientes de qualquer autor textual. E,
voltamos a afirmar, não foram os Evangelhos que nos impediram a fé ou que nos
embargaram o ateísmo.
5.
As lendas são, como os sonhos, lugares mentais de transmutação não-consciente
das inquietações que assolam o povo que as engendra.
Apesar da doutrina de João, é difícil não ver, no milagre da multiplicação dos
pães, a relativa ausência de conforto que toda a população não privilegiada dessa época
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deveria sentir no que tocava às expectativas de sobrevivência. Note-se que o pão é
objeto de especial bênção por Cristo, e talvez só numa sociedade muito anterior ao
consumismo pós-industrial pudesse o alimento ser objeto deste tipo de narrativa
consagradora.
Numa época em que o alimento não seria um dado adquirido e em que a
medicina ainda não tinha encontrado um nível aceitável de eficácia (em todo o caso, o
homem nunca tem a vida simplificada e autossuficiente dos lírios do campo…), é
natural que as preocupações descambassem em imaginação mágica. Cristo é o grande
Médico sonhado pela humanidade, o grande Super-Herói, até (e, sim, acreditamos que a
banda desenhada que efabula em torno de Batmans e Spidermans é uma degeneração
laica e pop deste traço algo histérico da criatividade da nossa espécie). Por contraste, o
deserto era tomado como morada do Diabo, pois que mais haveria a esperar de uma
geografia que não permitia nenhuma sobrevivência, nenhuma cidade?
O problema maior de todas as épocas sempre foi, contudo, a incapacidade
filosófica de o ser humano aceitar a sua perecibilidade (ele que, entre todos os outros
seres vivos, detém o exclusivo dessa perceção). A crucificação no Lugar do Crânio é ao
mesmo tempo o justificar dessa incapacidade (o cérebro, contido na caveira, produz
uma atividade espiritual de tão grande porte, de tal modo cancerígena, que extravasa a
inconsciência da sua funcionalidade biológica, algo que não acontece na vida de mais
nenhum órgão do corpo) e o grito de revolta que ela engendra.
Tal neurose andará certamente associada à imaginação escatológica, à decisiva
festa da morte prevista para o fim dos tempos, mas a fantasia apocalíptica de algum
modo colide com a reivindicação mais séria que Cristo faz de um caráter não ostensivo
para o seu anunciado Reino do Céu. Será por isso mais justo notar que, na primeira
grande narrativa do Novo Testamento, a morte (pelo menos a morte do Messias) adquire
uma tripla valorização positiva: enquanto desígnio calculado, a sua hora não é aleatória;
é uma morte imbuída de uma função cósmico-épica (redimir os pecados de toda a
Humanidade); e é resolvida em ressurreição e ascensão, num passe de mágica tão
escapista quanto uma fantasia da Hollywood clássica, e que foi duramente criticado por
um empedernido metafísico como Antonin Artaud.
Se estas conclusões se revelam, contudo, evidentes, temos outras propostas mais
delicadas a colocar sobre a mesa: por que é que os rituais de purificação corporal
frequentemente descritos não hão de ser sintomas fantasiosos de uma higiene que não
primava pela constância quotidiana (e que seria então vivida com caráter, se não festivo,
pelo menos excecional)?; e toda a obsessão pelo perdão que ocupa os textos
evangélicos, não poderá ser um tique nervoso que revela o clima de terror de um povo
dominado, demasiado dependente do capricho dos polegares imperiais no imenso circo
da sua vida (pepla à parte – recorremos a linguagem figurada)?
A narrativa filial dos Evangelhos é também profundamente eloquente quanto às
estruturas ancestrais de pensamento sobre o tema da família. O modelo de gestação
mítica que, a partir de um Deus ausente e de uma fêmea Virgem, faz surgir um Filho
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que é divindade incarnada, não deixa nenhuma ponta de fora. À mulher, é-lhe retirada a
única vantagem que um macho não pode usurpar: a conceção biológica (Maria concebe
por gesto divino). Por outro lado, a identificação plena de Cristo com a vontade do Pai
garante, com força de desígnio sobrenatural, tanto o patriarcado quanto o respeito pela
tradição. A verdade, contudo, é que, se sairmos deste espírito de maldisposto
desconstrucionismo, verificamos que a condição de um Messias presente enquanto filho
permite que ele se possa reclamar, sem que alguma vez o verbalize, de uma espécie de
imemorial inconsciente genealógico que lhe abre as portas intelectuais daquilo que
sempre esteve em causa desde o início dos tempos. Como se vê, a alegoria tem uma
inteligência própria mas sem agenda: ela revela, não escolhe.
A sofisticação do texto é inesgotável. Um Deus omnipotente e demiurgo só
poderia surgir no mundo como um Filho de si mesmo (um produto da sua criatividade) e
não em toda a sua inteireza – coerência da alegoria. Ao mesmo tempo, um Pai só
consegue fazer-se visível através da gestação de um Filho: haverá maneira mais
requintada de se fazer miticamente a defesa da sobrevivência da espécie por via da
reprodução – pragmatismo da alegoria?
E por que não supor que o modelo temporal das estações do ano, radicalmente
determinante na vida produtiva, emocional e cultural da humanidade, com um verão
festivo a coroar um longo padecimento de transitória morte natural, por que não supor
que esse modelo esteja na base de todas as nossas construções, factuais ou imaginárias,
que pressupõem uma enorme beatitude após um enorme martírio (construções essas que
tendem a desvalorizar o elemento de eterno retorno)? Haverá uma grande diferença
entre o esquema mental que informa o desejo de conquista de um diferido Reino do Céu
(pelo menos na sua aceção mais flagrante) daquele que subjaz ao modelo jurídico de
trabalho que premeia o consentimento de uma relativa escravatura anual a troco de uma
libertação solar e orgíaca em férias tropicais (mesmo quando esse calendário não
coincide com o calendário das ditas estações)? Não nos esqueçamos que tanto a Páscoa
judaica como a Páscoa cristã adotaram a mesma data de uma festa pagã que celebrava a
transição primaveril… Do trabalho de parto até à disciplina de um dia de Ramadão, a
humanidade confunde gestas reais e gestas de espírito, cálices que não pode controlar e
cálices que inventa.
E o dia e a noite, não serão eles a base pré-eletricidade do imaginário do Bem e
do Mal (veja-se como ainda hoje a noite mantém a sua aura de ausência de virtude
enquanto principal horário consignado ao divertimento)? A dor e o prazer, não serão
eles a erótica primária que um Kama Sutra de hipérbole metafísica transformou em
visões do Paraíso e do Inferno?
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6.
Será fácil reconhecer ainda, nos Evangelhos, determinados tópicos da cultura
antiga (mas agora já não propriamente arcaica), tópicos esses que conhecemos da
mundividência grega mas que, mesmo sem termos o conhecimento do exato alcance da
influência helénica sobre os povos em análise, não nos impede de pelo menos
referirmos a coincidência.
É o caso das estruturas trágicas do fatalismo (o Novo Testamento relata o
cumprimento escrupuloso de uma escritura que lhe é anterior) e da anagnórise, na
belíssima variação da dificuldade de reconhecer um homem ressuscitado. Mas também
algum impreciso saber socrático (“Perdoa-lhes, Pai, pois eles só fazem o mal porque não
sabem o que fazem”) e platónico (a constante defesa da necessidade de se passar da
aparência do material à essência do espiritual – dar o dinheiro aos pobres para se
conquistar um tesouro no Céu).
7.
Nem todos os povos imaginam os seus entes supremos em moradas celestiais.
Os índios Bororo, por exemplo, são mais inclinados a imaginar deuses perfeitos por
baixo da terra e a deixar as alturas para divindades mais consentâneas com a
irregularidade humana. Mas se o dado não é universal, ele será porventura maioritário.
A Bíblia também segue e persegue uma poética do Céu (e da Luz). Muitos
autores sentem-se obrigados a optar por poéticas contrárias a esta para lutarem contra o
processo de atribuição de realidade a delírios metafóricos que lhe está no cerne, ou
então para defenderem uma vivência religiosa menos pueril.
Uma poética é o conjunto de lugares mentais a que um indivíduo ou um povo
sempre regressam. A Bíblia construiu a sua própria rede de imaginário fascinante: para
além do céu e da luz, há que referir também o gosto pela fantasia catastrofista (ainda
hoje, os filmes de entretenimento pressupõem que, num fim de mundo qualquer, só os
eleitos se salvarão), a estética da multidão e a sua conformidade com o encanto pela
figura do mestre (Jesus Christ Superstar!), uma espécie de dedicação terna e infantil
aos… pets feéricos, chamemos-lhes assim (o anjo é uma variação desse tema; outros
contextos elegeram as ninfas, os elfos, os duendes, as fadas, etc.)… A lista é pobre,
meramente exemplificativa, e apenas pretende assinalar que todas as civilizações têm as
suas próprias obsessões poéticas. O problema é que os textos ditos sagrados não
oferecem uma lucidez suficientemente livre para evitar que se confundam preferências
sensuais com realidades metafísicas. Imagine-se, só para medir o absurdo, que um leitor
contemporâneo de lírica clássica acreditava mesmo que os cabelos das amadas dos
poetas eram literalmente feitos de ouro…
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Neste contexto de uma beleza específica, a figura de Cristo parece-nos
francamente pouco simpática. É um ser sem sentido de humor, sem vida sexual, sem
boémia (repare-se que outros deuses não foram representados assim…), depositando a
sua maior riqueza enquanto personagem credível no âmbito da flutuação de
temperamento: ele hesita constantemente entre a paz e o fogo, entre o amor e a lei, entre
a discrição e o orgulho. Presumimos que esta caracterização romanesca seja uma arma
de retórica, uma opção de estilo sabiamente composta para convencer os fiéis do futuro.
A sisudez, a castidade global, a proximidade das lágrimas: é toda uma maquinaria
literária destinada a induzir uma fé igualmente sisuda e que de modo algum conseguirá
revelar a inteireza do eventual personagem histórico que tenha perturbado as gentes
daquele tempo. A verdade é que resultou tão bem que a sexualidade, por exemplo,
perdeu os foros divinos de outras mundividências… Veja-se, aliás, como esta absoluta
ausência de dança da matéria verbal dos Evangelhos (terá sido isso que assustou
Nietzsche?) é de tempos a tempos contornada por novas estratégias de retórica: que
divertido foi ver cardeais a participarem num flash mob tropical sob a batuta do Papa
Francisco, mediaticamente incensado como grande comunicador…
Cristo, impôs-se, isso é evidente, como modelo a imitar. Mas serão muito menos
os que lhe imitam a santidade do que aqueles que perseguem, por vezes nos contextos
mais antitéticos, a sua mitologia de mártir (mitologia que, a crermos nos Evangelhos, o
próprio Cristo terá incutido nos seus Apóstolos). A vontade de mostrar uma obra
avassaladora e inédita, a desordem que essa obra de um putativo bem supremo tende a
provocar (a blasfémia contra os lugares comuns), o arriscar a própria vida por uma
causa, a falta de fé que o profeta encontra nos que lhe são mais próximos, a crença na
genialidade (sabemos que tal consciência não tem o mesmo sentido que lhe dariam,
muito depois, os românticos; mas os Evangelhos insistem na diferença entre a
intelectualidade de Cristo e os estudos que ele poderia ter verosimilmente adquirido
enquanto filho de um carpinteiro), o desejo de uma fama hiperbólica iniciada contudo
na mais profunda ocultação de si mesmo, a ressurreição mítica após uma morte
inglória… Quantos artistas, pensadores, militantes, revolucionários e até Cinderelas não
se podem reclamar deste modelo? Quantos homens não se sentiram já assim traídos pelo
povo de quem eles são, afinal, reis, mas reis desacreditados? Cristo acabou por se
instituir como o maior modelo de mártir destinado à glória póstuma, e essa fantasia tem
aquecido os corações de muitos imbecis e de muitos homens genuinamente
surpreendidos pela resposta abrupta do mundo à candura das suas intenções.
Não é este aspeto do personagem que nos pode interessar.
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8.
O protagonista dos Evangelhos foi um acontecimento ético.
Cristo não inventou leis morais. Nem mesmo o célebre mandamento do amor
terá sido uma originalidade sua. A legitimação que ele fez da lei tradicional consignada
no Antigo Testamento dever-se-á provavelmente ao facto de ele a ter reconhecido como
intuitivamente válida (ainda válida, diríamos nós) para a comunidade a quem se dirigia.
Do ponto de vista teórico, os Mandamentos continham os elementos necessários para
garantir a paz social (todas as sociedades tentam acautelar essa estabilidade das
maneiras mais diversas e imaginativas – as leituras de antropologia aproximam-se do
verdadeiro gozo da aventura…). Se o Messias ressurgisse nos dias de hoje, talvez
preterisse parte da rudeza do legado de Moisés a favor do imperativo categórico de Kant
ou da Declaração Universal dos Direitos do Homem: com toda a certeza se inseriria na
cultura moral específica do povo e do tempo que vinha visitar.
Ao mesmo tempo, Cristo separou a esfera de César da esfera de Deus, o que
quer dizer que não tinha a pretensão de sugerir um sistema político específico. A leitura
do cristianismo como um marxismo sagrado, se de certo modo nos deu o já citado filme
de Pasolini, revela-se portanto algo fantasiosa. Ainda por cima, o pressuposto que Cristo
a dada altura defende de que a humanidade sempre terá os pobres consigo, tem de fazer
arrepiar toda a matéria capilar de um utopista que se preze (embora esse passo do texto
possa ser lido como um momento de fraqueza humana do personagem; ele surge quando
Cristo aceita ser ungido com óleos caros na medida em que, ao contrário do que
acontecerá com os ditos pobres, a sua presença sobre a Terra será de curta duração).
Cristo não era um Doutor da Lei, mas um moralista processual (num sentido
diverso do que esta palavra tem no Direito). Ele veio simplesmente dizer aos seus
semelhantes que estes deveriam obedecer àquilo que, numa lei, é mandamento divino, e
não à mera autoridade que dela formalmente se desprende. Em Marcos, há um cego que
descreve o Homem como sendo uma árvore a andar, ou seja, como um conjunto de
raízes ambulantes, uma tradição que, a cada momento da vida ética de um indivíduo e
de uma comunidade, tem de revelar o fundamento que a produziu (o que nela é divino) e
de ser reinterpretada de acordo com a situação específica. O importante na lei é o seu
espírito: ela já está estabelecida, é só preciso aprender a escutá-la em profundidade. De
outro modo, a tradição é vazia.
O escândalo que ele provocou ao curar enfermos ao sábado, quando nesse dia a
medicina estava expressamente proibida aos judeus, é por ele mesmo justificado: o
homem fez-se para o sábado ou o sábado fez-se para o homem? Cristo vem por isso pôr
em causa todo um conjunto de instituições estagnadas (é muito divertido ler as notas da
Bíblia dos Capuchinhos, nas quais os editores se esforçam por minimizar esta dimensão
incómoda, nomeadamente tudo aquilo que nela é escancarado desprezo pela riqueza
material…).
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Cristo pôs em causa, desde logo, a noção de tribunal (que juiz, ainda hoje, tantos
séculos após a “Oresteia”, pode lançar a primeira pedra?), formulando um
entendimento de aplicação da justiça muito mais intimista (o que é preciso é que quem
proporcionou um sofrimento ao seu semelhante tome real consciência da negatividade
dessa violência) e ao mesmo tempo centrado na tentativa contínua de reintegração do
prevaricador na sociedade. A punição, nas mãos do Messias, é destinada não a quem
pecou mas a quem não perdoa o pecador. Em todo o percurso evangélico se reivindica
que perdoar é uma prerrogativa divina, o que talvez queira apenas dizer que esse é o
gesto mais sublime que um homem pode executar. O tom simultaneamente piedoso e
arrogante desta formulação é datado (ainda que possa ser traduzido para linguagem mais
adequada à sensibilidade contemporânea, como tentámos fazer com a primeira frase
deste parágrafo). E reconheça-se o quão difícil é, hoje, conjeturar a oferta de uma
(contínua) segunda oportunidade a responsáveis por genocídio ou crime organizado.
Mas Cristo, ao propor uma forma de justiça mais espiritual do que institucional (essa
justiça que decide quem acederá ao Reino do Céu), não pode ser reduzido a um
procrastinador da felicidade. Na verdade, ele toca num ponto deveras polémico, ao
indagar se, perante as valorizações morais da sua sociedade, os postos de julgador e de
julgado estariam convenientemente atribuídos. E essa dúvida, política, permanece
absolutamente atual.
Em consequência, é lançada uma ofensiva contra as ideias feitas de poder e de
sucesso. Cristo clarifica que a posição de um homem na hierarquia social não se
confunde com a sua valia ética. Ou o sucesso é espiritual, ou não tem qualquer
relevância. Aqueles que uma comunidade considera os seus últimos, não o são na
verdade. A proposta é bela mas, como é sustentada por um imaginário de reparaçãoapós-a-morte (ai! o martírio…) e não prevê uma restruturação política adequada, não
possui grande eficácia: a maior parte dos cristãos (essa comunidade de leitores) são
acérrimos defensores de uma sociedade com classes sócio-económicas, onde se
perpetua neste mundo o erro de critério na medição do valor de cada indivíduo que foi
denunciado pelo Messias. Para cúmulo, o desprezo que este manifestava pelo homem
que pretende ser socialmente reconhecido como moralmente sadio caiu num total saco
roto da história.
Quando Cristo lavou os pés aos discípulos, ele mostrou como o verdadeiro poder
é o poder de não o usar (já o Papa Francisco, ao repetir o gesto, presumimos que com a
maior das boas intenções, protagonizou uma mudança de estratégia propagandística por
parte do Vaticano). Curiosamente, logo após o seu nascimento, o conteúdo semântico da
palavra rei não foi percebido por Herodes, o que originou o célebre massacre dos
inocentes. Cristo foi rei porque a sua coroa era de espinhos (e não apesar de). É toda
uma nova dinastia que começa, uma dinastia com outro sentido. Os modelos de
monarca que hoje são considerados consensuais, como Mahatma Ghandi ou Nelson
Mandela, parecem ter compreendido essa estrutura de dádiva pessoal que deveria estar
na base de todo o exercício de soberania. São absolutas exceções (e, apesar de não
serem santos, qualificam-se para a mitologia do mártir).
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Com todo este ideário processual, o protagonista dos Evangelhos tinha que
recolocar a ética sob a égide da universalidade. Não sabemos se a formulação do
imperativo categórico kantiano (age somente segundo uma máxima por meio da qual
possas querer ao mesmo tempo que ela se torne lei universal) teria sido possível sem o
exemplo prévio deste moralista espontâneo (a prática do amarás o teu próximo como a
ti mesmo). Contra a noção de um povo eleito (pela história, pela genealogia, pela classe,
pela própria prática de um culto), a Boa Nova inventa o seu próprio povo, um povo de
convertidos, de homens e mulheres que decidem aceitar tal mensagem. O Reino do Céu
passa a ser extensível a toda a humanidade (o próximo é todo e qualquer homem), tudo
dependendo da forma como cada indivíduo gere a sua sinceridade para consigo
mesmo tanto no que toca à moral, como em termos de entrega à fé (abordaremos este
requisito num capítulo posterior). Se o Pai da humanidade é um deus não biológico, isso
é porque a família cristã resulta de uma escolha intelectual que se deve sobrepor a
todos os dados que, por via genealógica ou social, tentem consignar um lugar préconcebido a cada um dos seus membros na estrutura e no devir do mundo.
Teria Cristo tanto nojo pelo jogo político, que erradamente o considerou um
dado secundário perante o seu desespero moral? Ou teria brilhantemente intuído que
nenhum sistema político consegue ser funcional sem que os seus destinatários se
comportem de modo profundamente ético? Se o cristianismo alguma vez fosse aplicado
na Terra, diluir-se-ia para sempre a necessidade de uma maquinaria política? Não
sabemos, porque esta teoria pragmática nunca chegou à prática em comunidades
complexas.
9.
A sociedade que produziu os textos evangélicos não era completamente ingénua.
No íntimo dos homens que a compunham ter-se-ia já desenvolvido um conjunto de
convicções que o mais comum desses homens talvez não conseguisse ainda formular de
forma consciente: a convicção de que, neste mundo em que vivemos, a justiça
verdadeira, aquela que de facto repararia o sofrimento até ele se mudar em algo
positivo, é uma miragem; a convicção também de que a generosidade, o perdão genuíno
ou a felicidade são acontecimentos de tal modo raros que, quando ocorrem, parecem
exibir grosseiramente uma etiqueta onde está escrito: made in heaven.
Nesse contexto de lucidez no armário, e supondo que algo de facto ocorreu
nesse momento em que a história tinha o peso-leveza adequado para receber a
ocorrência, a aparição de um homem desconcertante em absoluto, incapaz do mínimo
lugar-comum moral na sua relação com o outro, campeão da arte de nunca marginalizar,
praticante incorrupto de uma luta sem violência física, defensor contra todo o cinismo
da ideia de que a ética é mais importante do que a própria sobrevivência (algo que ecoa
no filme “O gebo e a sombra”, a resposta crística com que Manoel de Oliveira impõe o
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seu lugar de exceção no panorama de reações à crise económica europeia de que este
ensaio é contemporâneo), ignorante da hybris com que todo o ser humano se tenta
apoderar da sua salvação pessoal, essa aparição tinha de produzir espanto e escândalo.
A facilidade olímpica com que Cristo seguia um caminho moral cuja imensa dificuldade
era, para todos, evidente, terá parecido francamente inexplicável.
Voltamos às características culturais da civilização que recebeu este golpe na
adolescência da sua lucidez: ela estava tão distante de um primitivismo que
possibilitasse uma comunhão com o mundo de índole rigorosamente mágica, como
ainda nem poderia imaginar a que alturas filosóficas e científicas iria a racionalidade
alçar o homem moderno (alturas de dúvida e conhecimento). Nos Evangelhos ainda se
fala do trovão como sendo a voz de Deus, uma candura que nos faz lembrar a Grécia
mítica (e não a filosófica), ou as crenças dos povos africanos e índios que os
colonizadores europeus tentaram esmagar. Ao mesmo tempo, é claro que o nível de
evolução jurídica, política, técnica, militar ou comercial do mundo hebraico sob o jugo
romano implicava com toda a certeza um certo coeficiente de modernidade conceptual
nas relações entre os membros da comunidade e na relação de cada indivíduo consigo
mesmo.
Com mais ou menos História, há aqui, portanto, uma espécie de nó inextricável
em torno da palavra acreditar. A perfeição moral de Cristo, ou aquilo que por perfeição
foi tomado, só poderia ser um milagre. É, aliás, muito estimulante entender os milagres
que os Evangelhos relatam como sendo puras alegorizações do caráter excecional do
personagem em causa. A linguagem figurada terá sido, contudo, tomada à letra pelos
primeiros cristãos: assim como os antigos gostavam de justificar o inexplicável
maremoto com a fúria do deus Poseidon, também um comportamento ético inexplicável
teve de ser compreendido como um sinal de divindade. Tornado personagem de
fantasia, Cristo é um cadinho literário onde se misturou a fama de uma beleza moral
com a expectativa ancestral de um desafio às frustrantes evidências do mundo físico.
A seriedade convicta mas ainda imatura da sociedade que acolheu este mistério
(seja qual for o seu teor histórico) terá sido responsável pelas duas atitudes que ele
gerou. Foi a seriedade dos judeus que os impediu de acreditar que Cristo era o evento
messiânico previsto nos velhos textos da sua religião (é como se, de algum modo,
pudessem ser detentores do ceticismo contemporâneo mas sem abandonarem a
esperança de uma futura encenação mais justa da promessa arcaica desses textos). Foi,
contudo, uma seriedade equivalente que levou aqueles que tiveram fé na qualidade
divina do personagem a um acolhimento culturalmente histérico desse pretenso facto.
Perante um deus como Poseidon, perante Zeus/Júpiter violando mulheres sob a forma
de touro e de cisne, perante a própria espetacularidade violenta do duríssimo Antigo
Testamento, ou seja, perante todas estas divindades passadas cheias de humor, sexo,
boémia, agressividade e capricho (cheias de humanidade, portanto), Cristo terá parecido
the real thing, uma revelação esteticamente urdida para ser acolhida como a maior das
revelações, para todos os tempos e lugares. O escândalo foi simétrico: como acreditar
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que um homem, um homem como nós, possa ser o filho de Deus? versus como
permanecer o mesmo depois de se acreditar que um homem é de facto o filho de Deus?
A frase mais bela, justa e sintética sobre a amplitude desse escândalo é a própria
Bíblia que a fornece na voz de João Batista: “És tu aquele que há de vir?” A lenda de
Cristo terá sido uma reação desesperada da cultura à marcha com que a racionalidade
ameaçava abater a faculdade de acreditar? O Evangelho de João, cujo lugar de destaque
já pudemos descrever, centra quase todo seu poder retórico neste desejo nervoso de
conservação da vocação da fé a todo o custo. Para um agnóstico, o estatuto sobrenatural
da personagem Cristo é um assunto muito menos atrativo do que o mistério histórico
que terá levado à produção destes textos absolutamente únicos que o que têm de sagrado
é a sua defesa intransigente de uma cultura de fé.
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O homem já não podia exercer a sua faculdade de crença em torno de um
imaginário infantil. Mas o imaginário que os Evangelhos propõem, ainda que sisudo,
também não é adulto. Poderemos contudo extrair um conceito maduro de fé a partir
destes textos?
Há, na verdade, duas conjugações intemporais do ato de acreditar ao longo das
narrativas de Mateus, Marcos, Lucas e João. Por um lado, defende-se a crença no ser
humano. É claro que o Messias reivindica ser filho de Deus, mas por que razão insiste
em ser tratado como o Filho do Homem? Se reservarmos para o personagem (como, de
resto, também ele reservou) uma linguagem de índole alegórica, não poderia estar ele a
defender que todo o Homem tem a dignidade de um filho de Deus? Não será todo o
Homem precioso ao ponto de dever ser ungido com perfume caro, ao ponto de dever ser
celebrado em textos de maravilha? Não devemos considerar que todo e cada Homem é o
Homem por que afinal esperávamos? Quando Pilatos exibe o Cristo aprisionado perante
a multidão de incrédulos em fúria e pronuncia a celebérrima frase “Eis o Homem!”, não
será a sua lucidez que indiretamente exclama: “Eis a grandeza a que o humano poderia
ambicionar e olhem até que paroxismos de aviltação ele é de facto transportado!”?
Em paralelo com esta forma de fé (suficientemente ambígua e contraditória para
que muitos cristãos entendam a humanidade como uma mácula congénita que urge
corrigir por imitação de um Cristo excecional), os Evangelhos celebram a fé na Palavra.
Do magnífico início do texto de João até ao episódio de Mateus em que um centurião,
sentindo-se indigno da presença do Messias na sua casa, lhe pede uma só palavra para
que o seu servo doente seja curado, passando pela mudez transitória do pai de João
Batista por causa da sua incredulidade (cena narrada por Lucas), a poética evangelista
está orientada para um entendimento do verbo como instância do possível (tanto a
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oração como a profecia são precisamente entendimentos arcaicos dessa instância
característica da poesia).
A esterilidade de Isabel, a virgindade de Maria, a morte de Cristo na cruz: o
facto de todas essas contrariedades vitais serem no texto ultrapassadas por ações de
índole mágica não devem cegar-nos para a figuração de uma apologia das possibilidades
do intelecto. Cristo morreu no Lugar do Crânio, morreu pela ideia de que todo o homem
pode reconstruir os dados da sua vida por via do espírito (pode nascer do espírito),
morreu para tirar os pecados do mundo, ou seja, para deixar o Bem como
possibilidade verosímil.
Regressemos aos milagres. Se eles são (como já defendemos) indícios dos
sonhos antropológicos mais profundos e invariáveis (abundância, cura, triunfo sobre a
morte) e alegorias do estatuto excecional do protagonista dos Evangelhos, eles são
também tomadas de posição ideológica sobre o poder da Palavra. Não precisamos de os
entender a partir da sua ganga mágica, pois eles têm em si um coeficiente de expectativa
revolucionária demasiado polémico para os deixarmos entregues a uma brincadeira de
carochinhas. É o próprio João que diz que alguns discípulos acabaram por abandonar
Cristo por acharem as suas palavras insuportáveis…
Para Cristo, salvar o mundo seria tão fácil quanto semear, porque a salvação
dependeria apenas da fé. Ora, quando ele realizou os seus milagres, suavizadores da
infelicidade de centenas de seres humanos, os poderosos do seu tempo só conseguiram
acreditar que tais obras tinham o Diabo como autor. A traição é, aliás, a grande pedrade-toque dos Evangelhos (pobre Judas Iscariotes, historicamente condenado a não ter a
sua segunda oportunidade…). Toda esta narrativa é exemplar na exata medida em que é
reveladora da desconfiança endémica que cada homem tem de outro homem. A
ressurreição do personagem e sua posterior ascensão parecem um happy end de filme,
um desenlace imposto por um produtor com medo da reação do espetador à lucidez a
que essa narrativa teve de honestamente chegar.
E, contudo, a mensagem de Cristo continua a gritar aos nossos ouvidos. A falta
de fé é o grande e quase único pecado previsto pela Boa Nova do Messias (note-se
como, apesar da sintonia com a moral sexual do seu tempo, ele defende que esse é um
pecado muito maior do que aqueles que se praticavam em Sodoma e Gomorra): nenhum
homem será perdoado por blasfemar contra o espírito.
Acreditar equivale a ter em si a potência de Deus.
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11.
Ao filho de Deus, não basta parecê-lo, é preciso sê-lo. Mais precisamente, todo o
episódio da Paixão coroado pela paródia do “Rei dos Judeus” parece indicar que ao
filho de Deus nem sequer é preciso parecê-lo, basta sê-lo. Cristo foi, portanto, um dos
inventores do coração.
É célebre o seu asco pela hipocrisia. Se, em termos das estruturas sancionatórias
de uma sociedade, seria um pouco perigoso que os pensamentos imorais fossem
sentenciados no mesmo plano das ações imorais (pensamentos maus todos temos, as
nossas decisões éticas só podem exercer um verdadeiro controlo sobre as ações), é
difícil não nos sentirmos solidário com o desprezo de Cristo pela boa conduta quando
esta se exerce separada da sua íntima aquiescência. É preciso muita vaidade para se
tentar ser santo (como dizia Milan Kundera), mas o certo é que, em certas condições
trágicas de vida, um gesto de generosidade pode de facto corresponder a uma fugaz e
dilacerante bondade interior. Tal perfeição, todavia, revela-se muito mais excecional do
que normativa.
Cristo foi errático na retórica da sua definição de um Reino do Céu. Tanto lhe
gabava o caráter não ostensivo como cedia à tentação da linguagem apocalíptica (que
parece algo deslocada na estética dos Evangelhos). Para quem estava tão apaixonado
pela boa-fé do comportamento moral, o recurso ao efeito preventivo e paternalista da
fantasia de um Julgamento no fim dos tempos não terá sido um passo contraditório (e
até um pouco garoto)? Estaria Cristo demasiado desesperado, ou estaria demasiado
imerso em alguns aspetos da cultura do seu povo e do seu tempo? Onde acaba a
coerência rutilante do personagem destes textos e começa a intervenção ideológica de
quem lhes deu forma escrita? Onde acaba Sócrates e começa Platão?
Preferimos o Cristo menos fantasista e pensador mais claro que descreve o
coração quase-não-consciente (o Espírito Santo) como instrumento regulador do
cumprimento da Lei ética, como substituto definitivo da grosseria instituída do tribunal.
Mas tão difícil é de compreender este rigor do íntimo, esta sinceridade de criança ou de
semente eternas e eternamente disponíveis, este afinal trabalho de divindade, de tal
modo ele quase parece uma das Ideias às quais o acesso pensado nos está em grande
parte interdito (segundo a reflexão de Kant), que pode facilmente ser configurado como
um estar perto do Reino do Céu, do Reino de Deus. O Paraíso, ou seja, as mil e uma
formas como o outro se pode ir tornando um objeto destinado mais ao afeto do que à
disputa, seria assim o lugar mais simples e mais complexo do coração (sendo o Inferno
nada mais que a expulsão absoluta do amor). O Homem estaria investido com uma
possibilidade singular de vida em comum, completamente estranha aos esquemas de
sobrevivência gregária do restante mundo animal.
Palavras doces (em demasia?) e, como dissemos, mais aptas aos momentos de
exceção do que a um quotidiano antropologicamente verosímil.
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12.
Sim, uma assunção universal da fé, fé no amor e fé no Homem, seria a chave
inequívoca e pragmática da salvação do mundo. Ora, a fé é uma das virtudes mais raras
do ser humano (muito mais rara do que a generosidade ou a tolerância, por exemplo), e
também uma das virtudes de mais curta duração (basta pensar na pressa com que os
movimentos revolucionários são contrariados pelos seus próprios agentes). Aqueles
cristãos sérios que compreenderam a dureza exemplar do percurso que abraçaram, já só
a podem conceber como valor herético. Pois, enquanto instrumento histórico-político, a
fé encontra-se hoje completamente… desacreditada.
Quanto à ética segundo Jesus Cristo, ela é o conjunto de propostas de um
intuitivo, algumas brilhantes, mas outras tão ambíguas, tão desastradas, que podem dar
azo às leituras mais perigosas. Inseridas num texto de estrutura mítico-simbólica, escrito
muito tempo após a sua formulação, essas propostas estarão certamente misturadas com
todo o tipo de imprecisões, fantasias e até anedotas. Em todo o caso, a história humana é
fértil em pensadores éticos, alguns dos quais muito mais rigorosos e passados a escrito
com muito mais autoridade do que o célebre homem nascido em Belém.
Também como personagem, Cristo não nos parece tão comovente quanto o
desenrascado Ulisses, o solitário Próspero ou o ensandecido Dom Quixote, nenhum
deles reivindicando divindade mas todos praticantes exímios de uma imaginação que
não deixa que a porta do futuro se feche por completo.
No topo do problema, Cristo cometeu um imenso erro retórico ao sublinhar em
demasia a sua vontade de ser seguido. Da pedra fundadora de Pedro, resultou uma nova
instituição, a Igreja, e resultou um culto organizado em constante crescendo, de tal
modo relevante na história dos últimos dois mil anos que é quase lícito desejar que ele
possua algum fundamento para que o delírio civilizacional não tenha sido uma anedota
de proporções épicas.
Enquanto instituição, falta à Igreja a presença literal e viva de Cristo para lhe dar
alimento humanizado e continuamente polémico. A Igreja, que já foi uma temível
caçadora de fiéis (ao contrário do pescador que a fundou), que se cristalizou num
mastodonte moralmente reacionário no qual é muito difícil reconhecer a provocação
inicial de Cristo, a Igreja está colada a cuspe com a verborreia daqueles homens
presunçosos através dos quais se supôs que o Paráclito teria continuado a elaborar a
mensagem crística. Em matéria de tagarelice de Espírito Santo, preferimos, contudo, as
teologias de Johann Sebastian Bach ou de Olivier Messiaen, cujos teores de leitura não
têm nenhum grau de concretização conceptual e por isso só sabem agir sobre o amor e
não sobre a ideologia do amor. Os crimes da instituição são sobejamente conhecidos e
as suas virtudes (como a caridade) não se revelam nada consensuais.
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Os cristãos raramente tentam imitar Cristo – mas quem pode, na verdade,
caminhar sobre as águas? Em todo o caso, esse clube de leitores nunca conseguiu
assimilar a índole específica da salvação do Messias do texto (exatamente como os seus
coetâneos), e isso pode verificar-se na permanência contemporânea das crendices mais
pueris ou nesse negócio íntimo de súplicas e promessas que fez, da oração, uma
espiritualidade de mercado. Se uma parte do nosso mundo conta o tempo histórico a
partir do binómio a.c./d.c., a maneira mais correta de o traduzir será “antes ou depois de
(uma nova maneira de o Homem se relacionar com) a crença”. Devotados a um
sobrenatural de pacotilha, os cristãos são apenas exuberantes anacronismos intelectuais,
e nas suas fileiras há tantos filhos da puta como nas fileiras dos judeus, dos islâmicos,
dos agnósticos, dos ateus, dos marxistas ou dos indiferentes. Sublinhe-se que o
Holocausto ocorreu d.c.
É certo que os grandes mitos foram escritos pelas próprias mãos dos deuses. Os
Evangelhos, contudo, já contêm demasiada intromissão de literatura humana para que
os possamos habitar como os homens primeiros habitavam as suas magias. É preciso
neles distinguir o que é alegoria e o que é ideologia.
A única evidência que temos de Deus é o seu absoluto e perpétuo ABANDONO.
Quanto ao seu Filho, a sua carne na Terra, ele teria sido muito mais sagaz e generoso se
tivesse feito um apelo mais claro à fé numa outra coisa que não a sua própria pessoa.
Assim como podemos hoje pensar em Filomela quando escutamos um rouxinol, ou
como podemos pensar num homem genesíaco quando contemplamos o caroço no
pescoço de um rapaz, Cristo poderia ter-se limitado a ser lembrado sempre que abrimos
um pedaço de pão. Bastaria como eucaristia.