Miolo Paschoal Lemme 1

Transcrição

Miolo Paschoal Lemme 1
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Paschoal Lemme
Memórias de um Educador
Volume 1
Infância, Adolescência, Mocidade
Volume 2
Formação Profissional e Opção Política
Volume 3
Estudos de Educação e Perfis de Educadores
Volume 4
Estudos de Educação, Participação em Conferências
e Congressos. Documentos
Volume 5
Estudos de Educação e Destaques
da Correspondência
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
PASCHOAL LEMME
MEMÓRIAS DE UM
EDUCADOR
Infância, Adolescência, Mocidade
Volume 1
2ª edição
Apresentação de Jader de Medeiros Britto
Prefácio de Antônio Houaiss
Brasília-DF
2004
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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COORDENADORA-GERAL DE LINHA EDITORIAL E PUBLICAÇÕES
Patrícia Barcelos
COORDENADORA DE PRODUÇÃO EDITORIAL
Rosa dos Anjos Oliveira
COORDENADOR DE PROGRAMAÇÃO VISUAL
F. Secchin
EDITOR EXECUTIVO
Jair Santana Moraes
REVISÃO
José B. Santos
Vilson F. Ramos
NORMALIZAÇÃO
Regina Helena Azevedo de Mello
PROJETO GRÁFICO/CAPA/DIAGRAMAÇÃO/ARTE-FINAL
Marcos Hartwich
FOTOS DA CAPA E DO FRONTISPÍCIO
Paschoal Lemme, 1988 e 1939, respectivamente.
TIRAGEM
1.000 exemplares
EDITORIA
Inep/MEC - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo 1, 4º Andar, Sala 418
CEP 70047-900 - Brasília-DF - Brasil
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DISTRIBUIÇÃO
Inep - Coordenação de Divulgação Institucional
Esplanada dos Ministérios, Bloco L, Anexo 2, 4º Andar, Sala 414
CEP 70047-900 - Brasília-DF - Brasil
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http://www.inep.gov.br/pesquisa/publicacoes
Lemme, Paschoal, 1904-1997
Memórias de um educador / Paschoal Lemme. – 2. ed. – Brasília: Inep, 2004.
5 v. : il.
Conteúdo: v. 1. Infância, adolescência, mocidade – v. 2. Vida de família, formação profissional, opção
política – v. 3. Estudos de educação e perfis de educadores – v. 4. Estudos de educação, participação em
conferências e congressos, documentos – v. 5. Estudos de educação e destaques da correspondência.
1. Lemme, Paschoal, 1904-1997 - Biografia. 2. Escola pública. 3. Educação de adultos. 4. Lemme,
Paschoal, 1904-1997 - Correspondência. 5. Azevedo, Fernando - Correspondência. I Título.
CDU 92:37.011.31(81)
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Em memória de meus pais:
Antônio Lemme
(Consenza, Calábria, Itália, 1874 – Rio de Janeiro, Brasil, 1946) e
Maria do Nascimento Paes
(Vizeu, Portugal, 1881) – Rio de Janeiro, Brasil, 1968),
brasileiros de coração e de direito que,
vencendo enormes dificuldades,
souberam criar e educar doze outros
para uma vida de trabalho, estudo
e pensamento social avançado.
Recordação carinhosa de:
Teófilo Moreira da Costa,
mestre, incomparável que me fez professor.
À Carolina,
que me vem suportando, com paciência
e dedicação inigualáveis,
há mais de meio século de vida em comum,
com algumas alegrias e muitas decepções e sofrimentos.
Para os 5 filhos e os 11 netos (até agora),
que assim saberão, um pouco, quem
foi esse pai e avô, para que não o
julguem com excessiva severidade
nem com indulgência demasiada.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Sou homem e nada que é humano me é indiferente.
TERÊNCIO
Sou o que sou, como qualquer pessoa: um indivíduo de
cunho próprio, diferente dos outros, com uma história em
que se encadeiam tendências e impulsos ancestrais; uma
história de sonhos, desejos e de experiências próprias, sendo
eu a soma de tudo isso.
CHARLES CHAPLIN. História da Minha Vida
As palavras não conseguem expressar os pensamentos com
precisão; de imediato as coisas se tornam diferentes,
distorcidas, tolas.
HERMANN HESSE. Viagem ao Oriente
[...] graças te sejam dadas, nobre Shakespeare, que podes
dizer todas as coisas, absolutamente todas, tais quais elas
são!
SORËN KIERKERGAARD. Temor e Tremor
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Os filósofos, em geral, desejam o controle das emoções...
Estou convencido de que tudo o que passa pela mente do
homem, não importa quão trivial ou idiota, não importa
quão terrível, às vezes, tem sempre algum valor. Em outras
palavras: retire as emoções de um ser humano e ele será
transformado em vegetal.
ISAAC BESHEVIG SINGER
Prêmio Nobel de Literatura de 1978
Na escola da vida não há férias.
(Inscrição no pára-choque de um caminhão, colhida por
Jorge Amado)
E olhei para todas as obras que fizeram minhas mãos, bem
como para o trabalho que eu, trabalhando, tinha feito, e eis
que tudo era vaidade e aflição do espírito e que proveito
algum havia debaixo do sol.
Eclesiastes, 2,11
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AGRADECIMENTOS
Hesitações de várias naturezas fizeram com que
adiasse por vários anos a publicação destas Memórias. A
principal, talvez, tenha sido o sentimento pessimista
inveterado, que sempre me dominou, da inutilidade e da
desimportância de tudo o que faço ou escrevo.
Resolvendo por fim publicá-las, devo muitos
agradecimentos a parentes e amigos que fizeram críticas e sugestões depois de terem tido a paciência de ler
as primeiras versões do texto e que me estimularam
para que afinal me revestisse da necessária coragem e
modéstia para divulgá-las.
Minha gratidão vai, porém, em primeiro lugar, para
minha neta Lúcia Helena Lemme Weiss que, com sua insistência, não me deixou desistir da publicação, convencendo-me de que o livro poderia ter, ao menos, alguma
utilidade para um melhor conhecimento da época em que
viveu o avô e as pessoas com quem conviveu. E auxilioume bastante também nas medidas práticas para preparar
a edição. Meu reconhecimento também à minha outra
neta, Cláudia Calmon Lemme que, interessada na leitura,
fez minuciosa correção dos erros que encontrou no texto.
Agradeço igualmente a Verena Alberti, profissional competente, que aceitou a espinhosa tarefa de rever
o texto, fazendo excelentes sugestões para melhorar a
redação em vários trechos e preparando os originais de
acordo com as normas exigidas para a publicação.
Paschoal Lemme
Rio de Janeiro, novembro de 1983
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
SUMÁRIO
Apresentação da 2ª edição ................................................... 15
Prefácio da 1ª edição .............................................................. 19
Explicação? .................................................................................. 23
Capítulo I
O chalé da Rua Figueiredo .................................................... 27
Capítulo II
As origens .................................................................................... 47
Capítulo III
De mim próprio ......................................................................... 61
Capítulo IV
O Méier de minhas reminiscências ..................................... 77
Capítulo V
O professor Teófilo ................................................................... 89
Capítulo VI
Barra Mansa ............................................................................... 107
Capítulo VII
A Escola Normal ........................................................................ 117
Capítulo VIII
Leituras e livros ......................................................................... 127
Capítulo IX
Espiritismo .................................................................................. 139
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Capítulo X
A escola politécnica ................................................................. 147
Capítulo XI
Trabalho ...................................................................................... 155
Capítulo XII
Interregno alemão, comercial e dentário ........................ 169
Capítulo XIII
Amores e casamento ............................................................... 181
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
APRESENTAÇÃO
DA 2ª EDIÇÃO
PASCHOAL LEMME: SERVIDOR DA EDUCAÇÃO PÚBLICA
Celebra-se, neste ano de 2004, o centenário do
educador Paschoal Lemme. Nascido na cidade do Rio de
Janeiro em 12 de novembro de 1904, no bairro do Méier,
viveu numa família de classe média, sendo seu pai, de
origem italiana, dentista de profissão e sua mãe, de berço português, professora, inteiramente dedicada à educação dos filhos (Memórias, v. 1).
A formação de Paschoal, iniciada na família – foi
alfabetizado por sua mãe – , desenvolveu-se na escola
pública. Do primário ao superior, freqüentou sempre estabelecimentos da rede escolar do antigo Distrito Federal,
passando pela Escola Visconde do Cairu, pela Escola Normal do Rio de Janeiro e pela Escola Politécnica da rede
federal, na qual estudou engenharia até a 3ª série, pois já
havia se definido pelo total engajamento no universo da
educação. Disse a seu pai: "Se não for professor, não serei
mais nada!" (Memórias, v. 1).
Ativo colaborador das reformas do ensino no
município do Rio de Janeiro, durante as gestões de
Fernando de Azevedo (1928-1930) e Anísio Teixeira
(1931-1935), Paschoal já havia ingressado na Associação Brasileira de Educação (ABE), familiarizando-se com
os principais educadores de então (Memórias, v. 2).
Membro atuante dessa Associação, foi o mais jovem signatário do emblemático Manifesto de 1932, dos
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Pioneiros da Educação Nova, e um de seus articuladores (Memórias, v. 4). Ainda
que solidário com as idéias esposadas por esse Manifesto, nascido no âmbito da
ABE, terá sido no Manifesto dos Inspetores de Ensino do Estado do Rio de Janeiro
ao Magistério e à Sociedade Fluminense, de 1934 (Memórias, v. 4), que Paschoal,
seu principal redator, ao lado de Valério Konder, esboçou uma definição mais pessoal em termos de política educacional, ao adotar a premissa de que a educação, para
se tornar efetivamente democrática, pressupunha a transformação da própria sociedade, em termos de um real compromisso com a ascensão socioeconômica das classes
menos favorecidas.
Sua percepção objetiva da realidade vivida pelo operariado do Rio de Janeiro
levou-o, durante a administração do Anísio Teixeira na Secretaria de Educação do
Distrito Federal, a organizar os cursos noturnos supletivos da União Trabalhista, considerada de orientação marxista pela polícia fascista do capitão Felinto Müller, nos
albores do Estado Novo. Ao lado de militantes socialistas como Graciliano Ramos e
Nise da Silveira, pagou o tributo da fidelidade a suas aspirações de justiça social,
recebendo o batismo do cárcere durante um ano e quatro meses (Memórias, v. 2).
Dessa experiência com o ensino supletivo, originou-se sua tese sobre
"Educação de Adultos", apresentada ao concurso para técnico de educação do
Ministério da Educação e Saúde Pública (Memórias, v. 5). Estando entre os primeiros classificados, foi convocado para integrar a equipe de Lourenço Filho na
organização do Inep, então Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos, de início como chefe da Seção de Documentação e Intercâmbio e, mais tarde, da
Seção de Inquéritos e Pesquisas.
Ao longo do Estado Novo e, após sua queda, no período seguinte, denominado de Democracia Liberal, sob a égide da Constituição de 1946, Paschoal Lemme
dedicou-se integralmente ao serviço público, sempre atuando no campo educativocultural, ora no Museu Nacional, ora no Instituto Nacional de Cinema Educativo.
Justamente nessa fase, em que simultaneamente exercia o magistério na Escola
Normal do Rio de Janeiro, foi divulgando suas idéias, por meio de livros como
Educação democrática e progressista, síntese de seu pensamento, mediante artigos, ensaios, cartas, relatórios técnicos ou comunicações a congressos nacionais e
internacionais de que participou. Em todos esses trabalhos, ressalta-se a absoluta
coerência e fidelidade a seu ideário, consubstanciado no leitmotiv de sua reflexão:
"Educação democrática somente numa sociedade democrática" (Memórias, v. 5).
Seu apurado gosto pela epistolografia fica evidente em sua farta correspondência constante de seu arquivo, por ele doado ao Programa de Estudos e
Documentação, Educação e Sociedade (Proedes), da Faculdade de Educação da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Nela se destaca o intercâmbio com
Fernando de Azevedo, dos anos de 1930 a 1960 (Memórias, v. 5), além das cartas
aos jornais em que assume sempre a defesa da educação pública em todos os seus
aspectos. É nessa perspectiva que se tornou um dos principais articuladores do
Manifesto de 1959, dirigido ao povo e ao governo, da lavra de Fernando de
Azevedo. Debatia-se, então, no Congresso, o Projeto da Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional, marcado pela antinomia das correntes empenhadas na
primazia ideológica a ser concedida ao ensino público e ao ensino privado.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Ao reeditar os cinco volumes das Memórias, por ele estruturados, o Inep se
associa às justas homenagens que lhe estão sendo prestadas na celebração de seu
centenário, registrando o reconhecimento desse Instituto à relevante contribuição
do educador Paschoal Lemme, um de seus primeiros e qualificados servidores.
Para esta segunda edição, foram necessárias algumas alterações no título
dos volumes, com base em consulta a sua família, prevalecendo o título geral Memórias de um educador para todo o conjunto, com pequenos ajustes nos subtítulos
de cada volume. Acrescentou-se uma biobibliografia ao 5º, compreendendo a cronologia do educador, apoiada em seu curriculum vitae, por ele organizado, e sua
bibliografia, presente na primeira edição.
As idéias, reflexões e testemunhos de Paschoal Lemme reunidos nas suas
Memórias, certamente, poderão inspirar as novas gerações a melhor alicerçar sua
percepção dos caminhos para a educação brasileira.
Jader de Medeiros Britto
Rio de Janeiro, junho de 2004
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
PREFÁCIO DA 1ª EDIÇÃO
É com o mais alto espírito de gratidão – envolta
numa aura de admiração que cresce sempre – que busco
dar este depoimento.
Paschoal Lemme é hoje da minha geração: em verdade, o tempo, na medida em que flui, aproxima – em
vida e post mortem – os homens: tinha ele, vejo-o agora,
doze anos mais que eu quando comecei meus estudos secundários e ele era já vice-diretor da primeira escola técnico-secundária então criada no Distrito Federal, o Rio de
Janeiro, sob a administração do educador, sempre lembrado, Anísio Teixeira. Entre mim e Paschoal medeava o
que havia entre um quase ou já adolescentezinho – que
se me perdoe o autocomiserativo diminutivo afetivo tão
vivo! – e um respeitadíssimo (pelo menos, por nós, alunos)
juveniadulto, marcado já pelo saber e conhecer e fazer,
voltados integralmente para a missão, sacrossanta (e o
digo sem hipérbole), de educar: educar é encaminhar espíritos de um lugar para outro, isto é, de um lugar em que
não há senão natureza, para outro lugar em que a natureza é transformada em cultura.
Paschoal Lemme era missão, paixão, devoção:
cria fundamente que, em última análise, o homem é
um ser da cultura, dessa coisa que só ele, homem, inventou, a saber, a capacidade/necessidade/fatalidade
de marcar/transformar/modificar a natureza, para criar para si mesmo um universo em que ele, homem, possa
ser cada vez mais homem mesmo. Punha-se Paschoal –
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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pôs-se sempre – a serviço dessa causa, visão e cosmovisão, de tal modo que não
era lícito a outrem ser céptico ante sua proposta e ação.
Sua trajetória no serviço público – que importa se municipal, estadual ou
federal, já que (para além do voto do poeta maior) sabia tirar ouro das narinas em
qualquer nível? –, foi uma batalha pertinaz, constante, inequívoca, corajosa,
sacrificada, militante, em favor da escola brasileira. E a sua, então, era uma missão
profética, ante os obstáculos que se lhe antepunham, a ele e a ela – a missão.
No seu tempo de opção social mais aguda, já se denunciavam os traços
maniqueístas de uma realidade sem alternativa:
– ou se criavam mulheres e homens da modernidade apta a superar os atrasos
seculares em que já então vivíamos, investindo em todas as crianças brasileiras o 8 x
8, isto é, oito anos de oito horas de estudo por dia, para fins "primários", após o que
se teriam 4 x 8 para fins "secundários" e ou "técnicos", e por fim 4 (5/6) x 6 (7/8) para
fins "superiores", com reciclagens e reciclagens e reciclagens subseqüentes;
– ou se cairia numa aviltada massificação, de tal modo que a degradação
iria em tal crescendo que, sem falsificação, o quadro geral da educação brasileira
viria a ser sintetizado nesta fórmula hedionda: o ensino superior não é mais que um
suplementar do secundário, que não é mais que um suplementar do primário, que
não existe. E, quanto à massificação, em todos os níveis, ela também é ilusória, pois
falha no atendimento de legiões de necessitados em todos os níveis.
Nem sei como exprimir aqui que os pontos de vista logo acima externados
só me engajam a mim – já que, pela natureza desta editoração, seria conveniente
que eu me comedisse. Mas busco não desmerecer do vínculo histórico e moral que
me liga ao autobiógrafo Paschoal Lemme.
De engenheiro, que nunca foi profissionalmente (ao formar-se, no Brasil só
se faziam advogados, médicos ou engenheiros, quando se faziam), Paschoal Lemme
se deu de corpo e alma à educação, lutando suas lutas e suas causas com lucidez:
sabia que, nodalmente, ensinar sem visão sociopolítica é quase tão estéril quão
estéril é administrar a educação como coisa apenas técnica, que a torna mera rotina burocrática, repetitiva, visto que educar é coisa poética, que só é boa quando
criativa e criadora. Paschoal foi, assim, um lúcido na compreensão de que as especulações com a educação, os métodos de ensino, todas as parafernálias físicas e
psíquicas das didascálias, das didáticas, das docências e o mais serviam de ilusões
tecnológicas para aqueles que, não tendo a coragem ou a vontade de ir ao fundo
do problema – de qualquer problema social – , alimentam a ilusão de resolverem o
chamado problema educacional. Aparecem, em conseqüência, profissionais da educação que, mesmo dando-se de coração à causa, reduzem seus fins à formulação e
criação de tecnologias, quase sempre importadas de ambientes estruturalmente
geradores de tecnologias adequados à melhora dos níveis sociais aí atingidos: nutrem, em suma, a quimera de construir com o estudante brasileiro em duas horas o
que os outros – em todos os países em que a educação pôde edificar a modernidade
– só conseguem com oito horas: migalha aguça a fome.
Assim, cria-se o círculo vicioso: técnicas, práticas, teorias, idéias, ideais, projetos, programas brotados da discussão cotidiana de ambientes sociais de 8 x 8 + 4
x 8 + 4 (5/6) x 6 (7/8) são propostos e, às vezes, "praticados" entre nós – mas sempre
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
destinados ao fracasso, pois a nossa realidade (dos "teóricos" 8 x 4 = 4 x 2, quando
não 2 x 2) é incompatível com a outra; disso vêm resultando duas conclusões "possíveis": uma, biologista, diz que o brasileiro – por mestiço, por inferior, por preguiçoso, por intrinsecamente de baixo quociente de inteligência – nada pode fazer, e
a outra, porque não é alimentado, não é assistido, não podendo, portanto, com um
quarto do atendimento humanamente desejável, corresponder aos que têm quatro
vezes mais, em quantidade e qualidade. Quaisquer que sejam as análises, as críticas,
as denúncias, o fato é que o Brasil não vem preparando seus recursos humanos
para a modernidade. Esta pode ser objetivamente aferida de múltiplas formas, a
mais simples das quais é a profissionalização do homem.
Até fins do século18, só 2% das populações (nacionais, regionais, continentais, o que fosse) tinham formação educacional qualificada. Mas no curso do século
19 aos dias de hoje, brotaram cerca de 30 mil profissões, 97% das quais exigem os
fatídicos 8 x 8 para mais. O Brasil, para com sua imensa massa, continua nos
comecinhos do século 19.
Paschoal Lemme nunca foi um iluso a tal respeito. Mas nunca abandonou a
luta. Daí a relevância de sua vida e deste seu depoimento. E a forma autobiográfica
é a perfeita para os objetivos fundamentais destes escritos: se à educação no Brasil
alguém se deu tão integralmente, diuturnamente, numa prática contínua associada a uma busca contínua, a um aperfeiçoamento teórico contínuo pela aferição
contínua de sua validade prática, esse alguém é Paschoal Lemme, último supérstite
dos signatários do Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova da Associação Brasileira de Educação, que cedo viram os sombrios horizontes em que enveredávamos
no respeito.
Nesse sentido, para certos leitores interessados – educadores ou não, sociólogos ou não, políticos ou não, historiadores ou não – no processo educacional
brasileiro, sobretudo neste século crucial, a forma autobiográfica é a forma por
excelência, porque nos proporciona todos os impulsos generosos que animaram
Paschoal e seus companheiros nesta empreitada, repito-o, sacrossanta.
Será fugir da questão nodal invocar discrepâncias ideológicas, quando, na
prática, elas pesaram muito pouco no quadro da educação brasileira, cujo malogro
não me parece essencialmente ideológico, mas sobretudo carencial.
O que, entretanto, deve ser realçado nesta obra é que paixão, devoção e
dedicação emergem da pena rememorativa de Paschoal com toda a força da vida
vivida, fazendo destas páginas um documento palpitante de nossos malogros e
esperanças na formação dos brasileiros do tempo passado e do futuro. A lição,
pregressa e tão presente, aponta para o porvir. É preciso que a aproveitemos, agradecendo, ex imo corde, a Paschoal Lemme.
Rendendo ao educador um tributo de aplauso, a Academia Brasileira de
Letras houve por bem credenciar a publicação desta obra, para que suas lições
possam aproveitar às nossas gerações futuras.
Antônio Houaiss
Da Academia Brasileira de Letras
Rio de Janeiro, 5 de abril de 1988.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
EXPLICAÇÃO?
É impossível reproduzir em palavras os momentos
"idos e vividos". Os tempos passados "que não voltam mais"
são passíveis apenas de uma evocação imperfeita, pois
são irreproduzíveis as circunstâncias que os criaram e a
tessitura de emoções em que aconteceram. A vida flui
continuadamente e o ser se transforma com o perpassar
do tempo: "mudaria o Natal ou mudei eu?" Muda tudo e
mudam todos... "ninguém pode se molhar duas vezes na
mesma água do mesmo rio", já dizia o velho Heráclito, o
obscuro (?): não se é mais a mesma pessoa e a água já é
outra – cada momento passado é único.
Assim, memórias, confissões, recordações, evocações pouco mais podem ser do que quadros depurados
daquilo que restou do que se conseguiu captar nesse
fluxo incessante que é o complexo processo da vida de
cada um. "O autor que narra estórias já não é o homem
que as viveu. As distorções são inevitáveis quando se
procura reviver a própria vida", diz Henry Miller, com
muita propriedade. E, acrescenta Lawrence Dürrel em
Justine (Quarteto de Alexandria I):
Os fatos passados, longínquos, deformados pela memória,
adquirem um realce particular porque são vistos isolados do
seu contexto, destacados dos pormenores que os precederam e
seguiram, que destacamos e lançamos fora como subscritos usados. Os próprios atores sofrem uma transformação: afundamse lenta e profundamente no oceano da memória, como corpos
pesados, descobrindo em cada escalão uma nova avaliação no
coração humano.
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A outra limitação da exatidão das biografias é a própria linguagem, instrumento imperfeito, com o qual não se consegue retratar todos os infinitos aspectos
de uma dada situação, todas as circunstâncias de um único momento vivido: "ninguém pode contar tudo o que aconteceu em determinado momento de sua vida,
por mais curto que esse momento tenha sido", é ainda Henry Miller quem adverte.
Essa é, aliás, a deficiência de toda a palavra falada ou escrita e, por isso
mesmo, sempre me pareceu ser a literatura a forma mais perfeita da arte, na medida em que consegue vencer esse terrível entrave para se aproximar daquilo que se
deseja realmente expressar, ou expressar tudo aquilo que se deseja; e aí ela se torna
"a arte mais elevada e espiritual", no dizer de James Joyce. Um Homero, um Dante,
um Shakespeare, um Cervantes, um Dostoievsk, um Tolstoi ou um Goethe talvez, e
não muitos outros, têm aí sua glória, sua universalidade e o mistério de sua permanência.
V. N. Puchkin, um autor russo moderno, em seu livro Heurística, a ciência do
pensamento, diz a propósito:
Ao ensejo da análise psicológica concreta da consciência, ela tem sido relacionada com a
palavra. Considera-se que se toma consciência das concepções ou percepções que encontram
reflexo na voz, enquanto que todos os demais fenômenos psíquicos transcorrem além dos limites da consciência. Todavia, essa interpretação não corresponde integralmente aos fatos conhecidos pela psicologia e pela neuropatologia. É que existem percepções e mesmo uma complexa
atividade mental que não se relaciona com a fala. E até, ao contrário, pode ser imaginada uma
fala, da qual o homem não toma conhecimento.
Num livro que ainda estou lendo, neste 1º de setembro de 1978, quando
mais uma vez, passo a limpo estas Memórias, não pude deixar de escrever à margem: "Gostaria de saber escrever assim..." (Remanso, 20/8). Remanso é o sítio em
Pati do Alferes, que aparecerá mais tarde, espero, nestas Memórias. (O livro é: Tia
Júlia e o Escrevinhador, de Mário Vargas Llosa)
O trecho que me encheu de inveja, entre tantos outros, é o seguinte:
Era uma dessas soalhadas manhãs da primavera limenha, em que os gerânios amanhecem
mais arrebatados, as rosas mais fragrantes e as buganvilas mais arrogantes, quando um famoso
galeno da cidade – o doutor Alberto Quinteros – testa ampla, nariz aquilino,olhar penetrante,
retidão e bondade no espírito – abriu os olhos e espreguiçou-se na sua espaçosa casa de San
Isidro. Viu, através das cortinas, o sol dourando o gramado do bem cuidado jardim, que preparavam sementeiras de crótons, a limpeza do céu, a alegria das flores, e sentiu essa sensação
benfazeja que oito horas de sono reparador e a consciência tranqüila asseguram.
É isso. Se a palavra não alcança tudo o que se deseja dizer, a arte literária
maior é aquela que faz com que a imaginação do leitor complete, amplie, e se
emocione perante o que se diz ou o que se lê.
Agora, aqui mesmo, no "Remanso", são quase sete e meia da manhã, e abro a
janela do quarto onde escrevo. Faz frio. A manhã é cinzenta, pois desde ontem o
tempo mudou. Um passarinho, que não sei identificar, canta; um canto nem alegre
nem triste. Acompanhando o tempo chuvoso, o motor de um avião, com seu ruído
desagradável do progresso, subverte o ambiente bucólico; e eu penso que em outros
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
tempos, quando essas máquinas não eram tão aperfeiçoadas, via-se o avião passar
mais baixo, na rota Rio-Belo Horizonte, quase a essa mesma hora. E essa lembrança
evoca tantas outras daqueles tempos... melhores... piores, não sei. Duas crianças, filhas do caseiro, elevam suas vozes, brincando, e parecem felizes. Um galarote, ensaiando experiências, lança seu canto ainda inseguro... Tudo parece tão sereno. Mas a
amargura está dentro de mim e aperta meu coração. Aqui sozinho. Um filho no
sanatório, doente mental, talvez sem solução. E tudo mais... E é preciso tomar o fio do
pensamento. É preciso continuar a vida...
•••
Mas há, evidentemente, outras razões menores (?) que tornam tão pouco
fidedignas as memórias, as confissões, ainda as mais célebres.
As inibições, a falta de coragem, o pudor, o medo de cometer injustiças ou
revelar as intimidades próprias ou de segundas pessoas. É impossível ser imparcial
quando pretendemos ser juízes de nós próprios. "Certos defeitos dos diários íntimos
e das autobiografias", diz Simone de Beauvoir, "está em que, geralmente o que não
é preciso dizer, não se diz, e perde-se o essencial."
Além disso, ninguém aceita na verdade, voluntariamente, apresentar-se mal,
despir-se perante o mundo; a não ser os santos, ou os que se disponham à catarse
ou à flagelação, já no domínio do patológico.
Não se esgota ainda aí a precariedade das Memórias. Um fator externo, que
vem se agravando nos últimos tempos, num mundo que vai chegando ao auge de
uma crise, cujo desfecho ainda não se vislumbra, transforma simples declarações de
convicções, de pontos de vista ou de idéias, principalmente em face dos graves
problemas humanos, nos dias de hoje, em "crimes" contra "a ordem estabelecida". E
esses foram sempre considerados os maiores de todos os pecados... E por causa
deles, o próprio filho de Deus foi crucificado...
Que resta pois das memórias, das confissões, das autobiografias? Por que
tantos resolvem enfrentar todas essas dificuldades e limitações (e o número aumenta cada vez mais, estando mesmo as memórias em moda como gênero literário)? Por que falar de si mesmo, de sua vida, por que tornar público aquilo que se
considera íntimo? Desejo de comunicação? Preocupação educativa pela divulgação
de exemplos? Desejo de se justificar quem sempre se julgou incompreendido? Pretexto para expressar idéias, o que não seria possível fazer por outra forma?
Exibicionismo ou supervalorização de si próprio? Apenas imitação? Falta de imaginação para tentar outras formas de criação literária mais elevada?
Romain Rolland escreve em Jean Christophe:
Para ir ao fundo das coisas é necessário afrontar o respeito humano, a polidez, o pudor, as
mentiras sociais, sob as quais o coração jaz abafado. Se não se quer espantar ninguém, é preciso
resignar-se durante toda a vida a não dar aos medíocres senão verdades medíocres, que eles
possam assimilar: é preciso ficar aquém da vida.
Creio que nessa pré-história da humanidade em que ainda vivemos (e será
que sairemos dela?) apesar de todo o pretenso fantástico "progresso" material, ou
até mesmo por causa dele, o coração dos homens "jaz abafado"...
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Memórias e confissões não serão pois apenas desabafos, ânsia de descer ao
fundo das coisas, esforço para "não ficar aquém da vida", desejo, afinal de reafirmar que, apesar de tudo, ainda somos homens?
Mas, é possível também que seja Ernesto Sábato quem esteja com a razão
quando nos adverte de que:
Dada a natureza do homem, uma autobiografia é inevitavelmente mentirosa. E é só com
máscaras, no carnaval ou na literatura, que os homens se atrevem a dizer suas (tremendas)
verdades últimas. Persona significa máscara, e, como tal, entrou na linguagem do teatro e do
romance (em O Escritor e seus Fantasmas)...
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO I
O CHALÉ
DA RUA FIGUEIREDO
Há pessoas que conseguem localizar suas mais
antigas recordações aproximadamente desde os dois anos
de idade. Outras, porém, guardam de memória apenas
os acontecimentos ocorridos em anos mais tardios. Não
conheço pesquisas muito abundantes sobre essa interessante questão.
Entretanto, Freud sugeriu que "a amnésia infantil encobre, na maioria das pessoas, as lembranças de
seus primeiros anos de vida". E essa "amnésia" começa
quando a criança entra em seu período de latência do
desenvolvimento, no qual os primeiros impulsos primitivos são dominados, por volta dos seis anos de idade.
Durante esse período, a criança reprime suas fantasias
incestuosas e assassinas a respeito de seus pais e irmãos,
decorrentes da fase edipiana inicial. O que resta das lembranças dessa idade, Freud denominou de "memórias biombo", em que as recordações sofrem modificações para
proteger a criança do conteúdo penoso de muitas delas.
Pesquisas de alguns outros psicólogos concluíram, porém, que a criança ainda não possui estrutura
mental para o desenvolvimento de uma memória contínua. E há os que combinam as duas hipóteses, concluindo que, realmente, as sugestões de Freud são válidas,
mas que o cérebro infantil ainda não tem condições de
registrar todas as lembranças.
Há também os que chegaram à conclusão de que
são muito raras as pessoas que guardam recordações de
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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fatos ocorridos antes dos três anos de idade; e que as lembranças são geralmente
fragmentárias e descontínuas até cerca dos sete anos.
Outros pesquisadores conduziram à hipótese de que nos lembramos de pouca coisa que ocorreu na infância porque nos tornamos pessoas diferentes: pensamos diferentemente sobre as coisas; adquirimos, como adultos, padrões e linguagem que não possuíamos quando crianças.
Parece, por fim, que há uma certa tendência para nos colocarmos perante
nossas lembranças mais antigas como observadores externos e houve mesmo psicólogos que chegaram à conclusão de que uma quantidade significativa dessas
lembranças são vistas como se a pessoa estivesse assistindo a uma representação
num palco.
Jean-Jacques Rousseau refere-se diretamente a essa questão em suas célebres Confissões, com estas palavras: "Ignoro o que fiz até os cinco ou seis anos. Não
sei como aprendi a ler; lembro-me somente de minhas primeiras leituras e do efeito
que me produziram: é o tempo de onde começo a contar, sem interrupção, a consciência de mim mesmo."
Minhas mais antigas reminiscências localizam-se dentro de um quadro perfeitamente definido e jamais consegui vencer o limite que esse quadro estabelece,
para encontrar qualquer recordação anterior.
É como se, num espetáculo montado em determinado momento e lugar em
minha vida, as luzes se acendessem para iluminar minha memória, e minha consciência despertasse para constatar a existência do meu próprio eu e de todo o complexo meio circundante, em constante mutação. Foi assim como se minha vida
começasse exatamente aí, ao menos para a verificação de minha própria existência: o fluir da vida principiava, para não mais cessar.
É certo que, em relação aos primeiros anos, a recordação desse deslizar não
é contínua, ou melhor, a continuidade é dada por acontecimentos da rotina diária
– amanhecer o dia, acordar, levantar, a obrigatória higiene, o comer, as necessidades fisiológicas, o estudar, o não fazer nada (a melhor parte); mais tarde, as sensações eróticas (muito fortes e imperativas); as relações com os outros, os da família
e os estranhos, o anoitecer, o medo do escuro (próprio de todas as crianças), o sono,
os sonhos, os pesadelos...
Mas a fixação e a acumulação que eclodem em futuras evocações são dos
fatos esparsos, naturalmente os mais significativos, que, como marcos indeléveis,
afloram à superfície como pedras no perpétuo movimento do grande rio da vida.
Parece que, tal como confirmam as pesquisas, o mecanismo cerebral da memória,
não tendo ainda capacidade para fixar tudo, retém apenas os acontecimentos que,
por sua significação, deixam um registro mais profundo.
•••
Deveria andar lá pelos cinco ou seis anos de idade, pois, exatamente ao
completar os sete, um desses acontecimentos maiores ficou registrado: minha entrada para a escola primária. Esse fato, aparentemente incomum, pois meu aniversário natalício ocorria em novembro, quase no fim do ano, portanto, explicava-se
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
pelo zelo de meus pais em iniciar minha educação sistemática exatamente quando
isso se tornava possível pelos regulamentos da época, pois, a esse tempo, as escolas
primárias, sem qualquer rigidez, recebiam os alunos em qualquer dia do ano letivo.
O palco desse espetáculo era representado pelo chalé acaçapado da Rua
Figueiredo, no subúrbio do Méier, na então capital da República, o Rio de Janeiro,
minha terra natal. O estilo era muito comum na época: telhado de duas águas,
construção recuada da rua, em terreno alto e em declive acentuado; duas janelas e
uma porta à frente; as paredes externas pintadas de verde desbotado. Na entrada,
uma muralha de pedra, com gradil de ferro, melhoramentos já realizados por meu
pai, nessa primeira casa própria que, com grande esforço, conseguiu adquirir. O
acesso era feito por uma escadaria, também de pedra, colocada à esquerda, fechada em baixo por um portão também de ferro, bastante reforçado, tudo dentro dos
modelos daqueles tempos. Não se poupava o metal, apesar de então o País praticamente não possuir siderurgia: quase tudo, para a construção civil, talvez com a
exceção de algumas espécies de madeira, era importado, especialmente da Inglaterra, que nos fornecia todo esse material em troca do nosso café.
Um jardim mal cuidado completava o quadro da parte da frente, ocupando
toda a área entre o gradil e a casa, com os tradicionais canteiros cercados de tijolos
mal ligados por cimento. O prédio erguia-se no centro do terreno, com passagens
pelos dois lados. Nos fundos, o quintal estendia-se até o misterioso (para o garoto
de cinco ou seis anos) Morro da Madre de Deus, em declive bastante acentuado e
todo plantado de árvores frutíferas, especialmente laranjeiras. Um muro de alvenaria fechava o retângulo formado pelo terreno com um rústico portão de madeira,
permanentemente trancado com uma enorme fechadura enferrujada, quase colonial. Dado o declive dessa área, o chalé terminava ao nível do solo na parte posterior, onde havia um galpão, para o qual dava a porta da cozinha.
Como disse, não consigo relembrar nada anterior a esse cenário, onde decorreram os anos de minha primeira infância consciente, nem mesmo tenho qualquer idéia de quando nos instalamos ali, e não fixei qualquer cena de lembrança da
casa onde morávamos anteriormente. Dela só tive conhecimento por indicação de
meu irmão mais velho – o Virgílio –, muito mais tarde: ficava na Rua Ana Barbosa,
do outro lado da linha da Estrada de Ferro Central do Brasil, que dividia o bairro em
dois ambientes distintos. Era um pequeno chalé de beira de rua, que ainda hoje
existe não tendo sido por enquanto tragado pela rápida urbanização e avassaladora
modernização do bairro do Méier, nos últimos anos.
Saindo-se da Rua Arquias Cordeiro, uma das principais do bairro, que ladeia
a Estrada de Ferro pelo lado direito, um pouco adiante da antiga estação de bondes
da Light, entrava-se por uma rua que contornava o Morro do Vintém, elevação
ligada à história local e que, por assim dizer, fechava esse extremo do bairro, separando-o do seguinte – o do Engenho Novo. Em seguida, à esquerda, encontrava-se
a Rua Angélica e, mais adiante, paralela a esta, chegava-se à Rua Figueiredo. Esse
caminho, que costeava o referido Morro do Vintém e subia ao lado do muro de
nossa casa, conduzia ao Morro da Madre de Deus. Todo esse trajeto estava ainda
sem qualquer calçamento: chão de barro vermelho, que tornava intransitável essas
ruas na época das chuvas, ou seja, durante os longos meses do nosso verão tropical.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Do interior da casa guardo nítidas lembranças do assoalho de tábuas largas
de pinho de Riga, de uso generalizado nas construções desse tempo; do corredor
que, partindo da sala da frente, separava os quartos; do porão alto com os barrotes
também do mesmo pinho, onde estavam pregadas as tábuas do assoalho; das paredes altas, de pé direito de três metros, pintadas à tinta a óleo desbotada; dos bicos
de gás de iluminação; dos móveis antigos; do fogão à lenha; do banheiro de instalações rústicas em mistura com alguma louça inglesa, pois o País ainda não fabricava nada no gênero.
A figura de minha mãe me parece então sob o signo de uma atividade
ininterrupta: baixa, cheia de corpo, forte, tipo característico da ascendência portuguesa, dirigia e executava todo o trabalho doméstico, desde a limpeza da casa – de
que era atestado o assoalho sempre imaculadamente lavado, as tábuas de pinho
arrepiadas pela água, sem ainda o enceramento, cujo uso só se generalizou muito
tempo mais tarde – até a pesada lida da cozinha e da lavagem da roupa de toda a
família.
Mais tarde, ainda nessa casa, lembro-me que passou a auxiliá-la uma empregada doméstica – a Deolinda – uma parda magra, que muito se afeiçoou a todos
nós e cuja origem não conhecia – talvez mandada por meus avós maternos, que
residiam então na cidade de Barra Mansa, no Estado do Rio de Janeiro. A Deolinda
mais tarde, seria protagonista de um primeiro drama doméstico, de que me recordo
perfeitamente e que muito abalou a família. Simplória, deixou-se seduzir – "desencaminhar", como se dizia naqueles tempos – por um português padeiro, o que fez
com que tivesse que deixar nossa casa, a qual se ligara intimamente, pois não tinha
família no Rio de Janeiro. Para mim, o fato e as conseqüências eram incompreensíveis, pois não alcançava o sentido e a significação daquilo que se dizia deixar se
"seduzir" ou "desencaminhar", e que a nós, as crianças, aparecia e era classificado
como "pecado grave", a ponto da criatura não poder mais conviver com a "inocência" dos rebentos da família, cuja pureza passaria a ser ameaçada no contato com
a "pecadora".
Mais tarde, como era comum nesses casos, abandonada pelo namorado, de
quem se tornara amante, e creio que já tendo nos braços o fruto do "pecado",
procurou, de novo aproximar-se da família, mas não voltou a nos servir. Esse foi,
sem dúvida, o episódio humano que ficou mais profundamente gravado nas minhas recordações desse período de minha vida: a tempestade que o acontecimento
desencadeou em casa, as discussões, a longa hesitação sobre se devíamos ou não
continuar a abrigar a "pecadora" e o mistério insondável para meu curto entendimento infantil do que realmente sucedera, todas essas razões, naturalmente, foram
a causa de sua fixação nos condutos mais profundos da memória.
A figura de meu pai era menos nítida talvez, ou melhor, era menos carregada de tintas emocionais, apesar de sentir que era o chefe incontestável daquela pequena comunidade e o promotor principal da criação do ambiente material
que nos envolvia: tinha perfeita consciência de que dele provinha a principal
autoridade que regia aquele universo, ainda relativamente fechado às influências
externas, mantido e modificado pelo trabalho que realizava na profissão liberal a
que se dedicava. Por essa época, andava muito atarefado na transição que fazia
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
de atividades mais modestas para a carreira que deveria adotar em definitivo: a
de cirurgião-dentista. Isso lhe custou, compreendi depois, um enorme esforço,
pois teve que realizar todos os estudos secundários até conseguir matrícula na
antiga Escola de Medicina do Rio de Janeiro, depois Faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil. Nela se doutorou em Odontologia.
A esse tempo já éramos quatro os filhos: o Virgílio, homenagem ao condotieri
de Dante na Divina Comédia e o poeta maior da pátria de origem de meu pai (o
primeiro filho morrera prematuramente); a Palma, a primeira menina, cujo nome,
pouco comum, lembrava o de minha avó paterna – Palma de Martori Lemme – que
nós, os netos brasileiros, não conhecemos. E eu, Paschoal, que recebi o nome de
meu avô paterno, que também não conhecemos; e o Antônio, o júnior, como era de
praxe para manter a tradição, ou talvez numa outra homenagem, decorrente de
uma situação aflitiva, de que vim a ter conhecimento em tempos mais remotos.
Lembro-me bem, ou melhor, ainda hoje evoco o perfume, aliás nada desagradável, do indefectível charuto usado por meu pai, que se espalhava pela casa
toda e saturava especialmente o banheiro, onde permanecia pela manhã por tempo acima do normal, pois, segundo me lembro, a constipação intestinal era um
achaque de que sofreu praticamente toda a vida, acompanhada de severa enxaqueca, que lhe deteriorava o humor. Também suas ausências eram constantes, a
que o obrigavam os estudos e o trabalho fora de casa, pois já havia alguns anos
exercia a profissão como prático, na qual fora iniciado por meu avô materno. E
também não me esqueço de suas manifestações de vaidade pelos "quináus" que
dizia infringir aos professores da Escola de Medicina, inclusive aos mais notáveis,
como um Frederico Eyer, pela prática que já levava no exercício da profissão, especialmente nas extrações dentárias difíceis, em que se considerava um mestre.
Outra de minhas grandes recordações foi a alegria que a todos nos atingiu,
quando meu pai, recebendo afinal o diploma consagrador, pôde instalar o consultório em casa, onde passou a receber os clientes, deixando assim o exaustivo trabalho de os atender em suas residências, como era usual na época para médicos e
dentistas. Seu temperamento brusco, que vislumbrávamos, atribuíamos sem muita
clareza aos excessos do esforço que fazia para realizar-se e estabilizar-se em estilo
europeu, na casa e na profissão, ou seja, na família e no trabalho. E ambos, pai e
mãe, o faziam com grande afinco, cada um na sua esfera própria, pois sendo oriundos do sul da Europa e da classe média, eram esses os objetivos fundamentais da
vida. Aliás, foi o maior legado que nos transmitiram: a consciência desses deveres
fundamentais.
•••
Se essa era a moldura, muitos acontecimentos completaram o quadro do
conjunto de vida desses poucos anos que passamos no velho chalé da Rua Figueiredo.
Pelo Natal, festa maior, quase sempre recebíamos de nossos avós maternos,
de Barra Mansa, no Estado do Rio de Janeiro, jacás com galinhas, caixotes engradados com leitões ou frutas variadas. Certa vez, chegou-nos mesmo um carneirinho
que supusemos iria ficar conosco para ser incluído em nossas diversões infantis.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Ledo engano, pois estava destinado também aos misteres culinários. A morte do
bichinho encheu-nos de comoção e indignação, pois o animalzinho chorava desesperadamente, pendurado numa corda de estender roupa, até que o facão de um
especialista do açougue, chamado para executá-lo, calou-o para sempre. Ainda
não sabíamos que o carneiro era prato apreciado pelo paladar europeu, especialmente italiano...
As incursões e o trato do quintal, verdadeiro pomar, era atividade a que nos
entregávamos com prazer depois das horas de estudo e assessorados pelos pais, nas
folgas. Certa vez, perseguindo lacraias que se escondiam num tronco apodrecido de
um coqueiro que derrubáramos, desfechei involuntariamente, na cabeça do "Tonico",
o irmão mais moço, o ancinho, cujos dentes feriram-no bastante. Desolado, esperei
medroso a decisão sobre o castigo que receberia quando meu pai chegasse à tarde:
o fato em si me fazia sofrer intensamente e as perspectivas do castigo completavam o meu pânico. Nada de mais sério porém aconteceu: os ferimentos não eram
graves e os pais eram talvez ríspidos, mas não injustos ou insensíveis.
As corridas por dentro de casa, no jogo do pega-pega, completamente desastrado, levaram-me, certa vez, a ferir seriamente a testa na quina de um dos
consolos de jacarandá, com tampo de mármore, muito usados naqueles tempos,
mas as conseqüências também não foram muito graves.
Pouco saíamos em visitas a um pequeno número de famílias com quem
mantínhamos relações ou a algum parente, tios, irmãos de minha mãe. Sempre
atarefados, não sobrava aos pais muito tempo para esses lazeres externos.
De algumas dessas famílias guardo profundas recordações. Uma delas morava do outro lado da Estrada de Ferro, que era o ponto de referência obrigatório
em todos os subúrbios por ela atravessados: a família Gusmão. O dr. Gusmão, primeiro contador e depois formado em direito, fora um dos incentivadores dos estudos e do doutoramento de meu pai. Com sua "pêra" bem cuidada, tez pálida, parecia, aos meus olhos de menino, um Cristo. A família vivia em razoável nível econômico e lembro-me perfeitamente da consternação que a morte prematura do chefe
causou, depois de prolongados padecimentos: segundo ouvi dizer, fora provocada
pela ruptura de um aneurisma da aorta. Essa coisa, como se dizia então, "de arrebentar uma veia do coração", deixou-me chocado durante muito tempo. A família,
sem nenhum amparo, veio a sofrer depois grandes necessidades com a morte do dr.
Gusmão tendo que se mudar para um subúrbio longínquo; e a esposa e os filhos
foram obrigados a procurar empregos modestos para se manterem, o que não era
comum nas famílias desse tipo.
Próximo, ou melhor, quase defronte ao nosso chalé, morava uma família
alemã – os Stoffel – cujas meninas, muito louras, de aspecto quase celestial, com
suas tranças compridas de espiga de milho, causavam forte impressão ao meu gosto de menino precoce. Mantinham-se, porém, sempre um pouco distantes ou, pelo
menos, me davam essa impressão, talvez não inteiramente verdadeira. Dedicavamse à música, como bons alemães, tocavam piano e violino e, pelo Natal, mandavamnos cartões postais de "boas-festas", com motivos europeus, do norte. Certa vez,
recebemos um, que ainda conservo, bastante original, com os retratos enfileirados,
em tamanho pequeno, de toda a família, desde os pais até a última das crianças.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Não me recordo bem, mas creio que houve qualquer coisa de desagradável na vida
desses nossos vizinhos, que a desorganizou. Continuamos, porém, durante muito
tempo a encontrar a Henriqueta, a mais velha das meninas, e também o irmão mais
velho, que fora companheiro de estudos do Virgílio.
A terceira amizade de que me recordo bem e que se prolongou até os dias de
hoje, foi a da família Tavares, que aparecerá mais tarde em nossa vida, em relações
mais estreitas. Creio que foi mesmo a amizade mais íntima que mantivemos. Mário
Tavares, o chefe dessa família, segundo soube depois, foi talvez o principal
incentivador da carreira de meu pai. Era um homem magro, excessivamente nervoso, com manias curiosas. Moravam numa misteriosa casa (ao menos para mim, na
época), na Rua Joaquim Méier, também do outro lado da Estrada de Ferro, e para
onde, mais tarde, nos mudamos, tornando-nos vizinhos muito próximos. Uma grande
muralha vedava quase que completamente a casa da vista da rua. Visitei-a poucas
vezes, meio amedrontado, dados os hábitos dos moradores: sempre me pareceu ma
daquelas mansões dos romances de mistérios e onde aconteciam coisas mais ou
menos fantásticas. Os avós, os velhos Tavares, portugueses, foram dos primeiros
moradores do Méier, e, segundo me informou mais tarde a Lucília – a neta mais
velha –, teria ele, o avô, cedido ao governo os terrenos em que seria construída a
antiga Parada do Méier, depois transformada na Estação do Méier da Estrada de
Ferro Central do Brasil.
Além da Lucília, os outros dois irmãos eram a Luzia e o Roberto, mais ou
menos das mesmas idades do primeiro grupo dos Lemmes, e assim foram nossos
companheiros de todos aqueles anos; as duas meninas tornaram-se minhas colegas
quando entramos, no mesmo ano de 1918, para a antiga Escola Normal do Distrito
Federal, diplomando-se comigo, professoras primárias. Entre nós, como era natural,
surgiram amores de adolescentes, e pouco faltou para que as duas famílias não
acabassem unidas pelo casamento dos filhos.
Pelo Natal, lembro-me bem, o doutor Mário Tavares e dona Zulmira mandavam-nos presentes, brinquedos de bastante valor, que recebíamos naturalmente,
com grande alegria. Não sei como meus pais retribuíam essas gentilezas natalinas.
As meninas, hoje senhoras professoras aposentadas, ainda vivem. Tiveram vicissitudes (quem não as tem); a Luzia afastou-se bem depressa do magistério, atacada de
tuberculose, de que se curou. O Roberto entrou depois em desequilíbrio mental. Os
três ficaram solteiros.
•••
A rotina dessa vida que se iniciava no conhecimento das coisas e das pessoas, foi quebrada por um acontecimento de certo relevo e que, naturalmente, viria
perturbar a relativa calmaria até então reinante no chalé da Rua Figueiredo.
Meu pai tinha uma irmã na Itália – a tia Paschoalina – que depois da morte
de minha avó paterna, sozinha, sem parentes, saudosa ou talvez necessitada do
irmão, passou a pressioná-lo para que fosse buscá-la e trazê-la para o Brasil.
Minha mãe contava-me em anos recentes que, certa vez, tivera um sonho
no qual aparecia sua cunhada implorando para que o irmão fosse buscá-la, o que
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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fez, afinal, com que ele se decidisse a viajar para trazê-la para a nossa companhia.
A tia Paschoalina, depois da morte da mãe – minha avó – vivia num orfanato.
Entretanto, segundo se dizia, o tio e tutor e os primos sentiram muito sua falta,
pois já a consideravam como filha.
Não guardo qualquer recordação das circunstâncias em que meu pai fez
essa viagem, é claro depois de muitas hesitações. Apenas um cartão-postal escrito
para minha mãe e no qual aparece o Vesúvio em plena erupção assinala a estada de
meu pai na terra natal, tendo cedido, pois, aos rogos da irmã.
O fato é que a tia Paschoalina aparece para mim no chalé, já casada com o tio
Ernesto, um português padeiro. O que permaneceu, porém, bem nitidamente em minha memória, foi a figura de minha prima – a Mônica – filha do casal de tios –
menina de cabelos louros escorridos, de pernas magras, na camisola de chita barata.
Lembro-me que havia algum mal-estar entre as duas – minha mãe e a tia
italiana – talvez por ciúmes do irmão e marido, o que depreendi de conversas
vagas. O desentendimento, porém, nunca chegou a rompimento de relações. Minha
mãe aprendeu com a cunhada a preparar pratos da cozinha italiana, e até mesmo
algumas expressões da língua materna de meu pai. Não sei se em conseqüência
desses atritos os tios acabaram por deixar nossa casa, onde estiveram hospedados
por algum tempo. Mais tarde, foram para Portugal, não mais regressando ao Brasil.
E nunca mais tivemos notícias deles. Ou melhor, vez por outra ouvia falar que uns
vagos primos portugueses teriam aparecido no Méier à procura de minha mãe e
dos primos brasileiros.
Havia também, entre as personagens ligadas a esse período de minha vida, a
dona Rosa, uma italiana imensa, companheira de viagem de minha tia Paschoalina
e que cismou que devia me batizar. Com um sotaque muito carregado, entrava pela
casa adentro, espaventosa, trazendo-me sempre uns biscoitos que me tiravam o
medo de seus apertados abraços e beijos. O marido, o padrinho ou compadre Afonso, dedicava-se ao comércio de tecidos, que vendia à freguesia em suas casas. Tinham duas filhas, tão lindas de rosto quanto enormes de corpo – a Carmela e a
Anunzziata. Mais tarde, alguma coisa que aconteceu com as filhas, que tinham
sangue quente de italianos, fez com que as visitas dos padrinhos fossem se espaçando, até que nunca mais tivemos notícias deles. Eram, entretanto, boa gente e
que, certo dia, me levaram à pia batismal ali na Matriz de Nossa Senhora de Lourdes,
no antigo Boulevard 28 de Setembro, em Vila Isabel, onde moravam. Assim, se nasci
no Méier, fui batizado na Vila e ganhei seu "feitiço". Não é pois por acaso que
considero o Feitiço da Vila, de Noel Rosa, a composição de música popular mais
bela entre todas.
Fui também o último dos Lemme a receber batismo – o sacramento da Santa Madre Igreja católica apostólica romana – o que, e certa forma, recordo hoje
com satisfação. As mudanças que se operam atualmente na Igreja de Roma são
para mim uma das maiores revoluções do nosso tempo.
•••
A época era dos lampiões a gás, e à noitinha os acendedores, com seus
bastões, empurravam a portinhola colocada na parte inferior da caixa envidraçada
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
que protegia o lampião, fazendo a luz brilhar misteriosamente para os olhos das
crianças e, após o que, a batida metálica característica indicava que a portinhola
voltava ao lugar normal. E aos poucos, a fileira de lampiões, de um lado e de outro
da rua, brilhava, e um halo envolvia os focos de luz nas noites escuras ou esmaecia
à luz das estrelas ou da lua cheia. De qualquer forma, depois do jantar, nós, os
garotos, aproveitávamos a claridade, reunindo-nos junto aos lampiões, e conversávamos, brigávamos e sonhávamos... No verão, os cupins e as libélulas enxameavam
atraídos pela luminosidade dos lampiões e queimavam as asas na compulsão
irresistível.
Era também o tempo dos pregões: "sorvete Iaiá"..."é de abacaxi, sinhá!"...
"olha a laranja seleta!"... "amendoim torradinho, está quentinho!"... doceiros,
amoladores, quitandeiros, funileiros... que sei mais... todos oferecendo seus préstimos e suas mercadorias de porta em porta, naqueles tempos fáceis, de vida mansa
e trato cordial. Aqueles bons tempos que não voltam mais, tragados pela tecnologia,
pelo "progresso", pela angústia, pela vida que passa e não é vivida...
•••
Mas, a grande festa que empolgava adultos e crianças era sem dúvida as
comemorações juninas: os fogos, as fogueiras e os balões. O ritual do "papel de
seda", em folhas coloridas, na disputa da feitura do maior balão, os de "boca de
arco de barril", sim senhor: de vários metros de comprimento, só um arco de barril
de metal podia servir de "boca", pois atingiam mesmo a altura dos prédios comuns.
A preparação da "bucha" era uma técnica que se transmitia quase com devoção: os
pedaços de saco de aniagem, o sebo, o breu, tendo o querosene como combustível
para desencadear a chama. Depois, durante alguns momentos, a "boca" ficava colada ao chão para que o corpo do balão enchesse de ar quente, desdobrando-se os
gomos iluminados, multicoloridos, mais ou menos esticados, acompridados ou bojudos, conforme a quantidade de papel empregada. Por fim, era o larga!... triunfal,
e a subida portentosa... acompanhada de vivas e palmas, de fogos e assobios, os
pingos de breu e de sebo, caindo incendiados. Às vezes, porém, era o fracasso: o
fogo "lambia" rapidamente o papel colorido... a decepção e a determinação de
confeccionar um ainda maior... O céu ficava literalmente crivado de pontos luminosos, numa féerie deslumbrante; as correrias pelas ruas, os magotes de crianças e
adultos, armados de paus e pedras para "tascar" os que desciam e se apagavam.
Freqüentemente, estalavam conflitos de conseqüências bastante graves entre os
"tascadores" dos balões. Nas manhãs frias e orvalhadas de junho, saía-se à procura
dos balões apagados, caídos durante a noite, e, vitoriosamente, trazia-se para casa
aquele acervo de papel colorido, amarfanhado, molhado pelo orvalho, enegrecido
por dentro, pela fuligem do querosene. E muitas vezes eram consertados, reativados
e de novo lançados ao espaço para novas proezas. Disputavam-se os feitios mais
extravagantes, o número de lanterninhas e penduricalhos, a altura que atingiam...
As fogueiras armadas nos quintais e até mesmo nas ruas, as batatas doces
assadas, as danças, as vestimentas típicas, as cantigas, os fogos de artifício.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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As "barraquinhas de fogos" eram outro complemento indispensável aos festejos juninos. Em caixotes de madeira eram colocadas prateleiras e depois, tudo
forrado com papel de cores vistosas. As "barracas" eram então cheias de fogos,
obtidos por compra ou troca: "estrelinhas", "bichas", "busca-pés", "bombas", as espécies mais baratas e inofensivas. Penduradas nas frentes das residências, durante
o dia eram ponto de "negócios"; à noite, iluminadas por lanternas japonesas, que
nós mesmos confeccionávamos, tornavam-se centro de grande atividade, de trocas, disparos coloridos e, às vezes, quando se obtinha um artefato mais caro, um
"chuveiro de prata", as noites frias e escuras de junho eram repentina e brilhantemente iluminadas do chão, acompanhando os pontos de luz que os balões, lá do
alto, projetavam permanentemente...
•••
Naqueles tempos, esse calendário de festas, religiosas ou não, era seguido
espontaneamente, e quase tudo era produto de nossa criatividade. A produção de
artefatos era calculada pelo consumo provável de cada festividade. Hoje, o processo inverteu-se: a propaganda cria a sucessão dos eventos, os dias "das mães", "dos
pais", "da criança", "dos namorados", que sei mais... Alguns, inteiramente artificiais,
são transformados em simples pretextos para as atividades comerciais, forçando
um consumismo desenfreado: a produção comandando os espetáculos, e a produção de bens materiais, a maioria supérfluos, se sobrepondo aos motivos puramente
humanos, de fervor religioso ou de simples lazer.
Com tristeza via-se acabar o mês de junho, sempre de férias, e chegar o dia
de Sant'Ana, o último que se comemorava, encerrando os festejos... E a volta às
aulas restabelecia a rotina interrompida.
O progresso liquidou tudo isso: o crescimento das cidades extinguiu os quintais, as chácaras; e a prevenção dos incêndios, a preservação das matas, aos poucos,
foi tornando estranho às crianças de hoje todo o encanto desse divertimento, sem
dúvida perigoso e mesmo brutal, em muitos casos, mas que marcava indelevelmente os dias de nossa infância, de todas as infâncias. E nenhum argumento racional é
capaz de varrer da memória o encantamento daqueles tempos... e uma tristeza e a
nostalgia aperta os corações...
Para as crianças das zonas urbanas, creio eu, essas festas representavam os
momentos de maior expansão da alegria de viver mais espontânea e profunda, num
quadro de uma vida mais lenta, mais calma, mais vivida, mais feliz. Mais feliz sem
dúvida do que nos proporciona hoje o fantástico "progresso" que tão duramente
atinge, em primeiro lugar, os menores, privados de espaço, dos folguedos mais
simples, do sadio contato com a natureza. Saudosismo, sim, bendito saudosismo,
reconheço. Hoje, ficam elas diante de um retângulo mágico, iluminado, paralisadas,
inertes, atordoadas, bebendo a violência e o erotismo fora do tempo, impregnando-se da mentira da propaganda que faz do fumo, do álcool e do sexo, errado e
prematuro, os maiores valores da vida. Recebendo as influências artísticas que não
são suas, com desprezo daquilo que é inerente à nossa cultura nacional legítima.
36
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Brinquedos perigosos, sem dúvida, eram os balões do meu tempo. Mas o que
está sendo dado em troca aos meus filhos e principalmente aos netos?
As festas juninas para nós, as crianças daqueles tempos sobrepujavam em
importância e encantamento as duas outras grandes manifestações do calendário
anual das cidades: o Natal e o Carnaval. A primeira era especialmente religiosa e da
família em conjunto, e a segunda estava voltada mais para os adultos.
•••
Havia ainda os brinquedos e divertimentos que apareciam periodicamente,
invadiam a cidade por algum tempo, as casas, as ruas, as escolas, não se sabia como,
e que eram, em seguida, substituídos por outros, em verdadeiras ondas misteriosas,
comandadas não se sabe por quem: de repente eram as bolas de "gude", disputadas
"à brinca" ou "à vera", em triângulos, corrido ou em "buracas". Então, era um frenesi de colecionar bolas de todos os tamanhos, operações de compra, de venda, de
troca, perdas e ganhos. Um belo dia tudo cessava e aparecia alguém com um
"bilboquê": a bola furada presa a um bastão por um barbante, e que se procurava,
num gesto hábil, fazer entrar a ponta do bastão no buraco da bola. Havia, até entre
adultos, os que se excediam em habilidade de repetir essa operação um sem número de vezes, sem interrupção e esse era proclamado campeão.
As "pipas" ou "papagaios" sucediam então, produzindo, quase como os balões, uma febre de confecções, cada uma mais rebuscada, em competições acirradas: "papel de seda", flecha comprada nas quitandas, goma de polvilho, linha, e
estava tudo pronto para empinar o artefato; as disputas iam até as brigas ásperas,
com os desafios em que explodia a gíria da época: "dá linha galinha", "dá barbante
elefante". Dispositivos secretos tais como cacos de vidro amarrados aos "rabos" das
"pipas", visavam cortar as linhas dos adversários. O futebol, no meu tempo, ainda
não existia com a importância de esporte nacional; havia apenas o futebol amador,
nos clubes.
Os circos e os mambembes eram a principal atração, especialmente nas pequenas localidades do interior. Mas as famílias cariocas ainda podiam sair incorporadas em passeios aos locais tradicionais: o Jardim Zoológico, ali em Vila Isabel, o
Jardim Botânico, a Quinta da Boa Vista, o Campo de Sant'Ana.
A ida às praias, o banho de mar, ainda não fazia parte dos hábitos comuns,
ao menos das famílias dos subúrbios: Copacabana era um imenso areal de acesso
difícil. O Túnel Novo (Coelho Cintra) só foi aberto em 1906 e a avenida Atlântica,
em 1905.
Sobre a Quinta da Boa Vista lembro-me perfeitamente da grande festa que
marcou a inauguração dos melhoramentos, em 1912, onde fui levado por meu pai.
Era à noitinha e guardo bem vivo o deslumbramento que me causou a iluminação,
feérica para a época, dos novos jardins em frente ao grande edifício do Palácio
Imperial, onde funciona hoje o Museu Nacional.
Fazia-se por esse tempo a transição dos bondinhos puxados a burro para os
de tração elétrica, e uma simples viagem nesses novos veículos já constituía um
passeio e um divertimento emocionante para as crianças e até mesmo para adultos.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
37
Mas, sem a mesma intensidade, alguns outros acontecimentos ganharam
permanência em minhas recordações desse período.
A Exposição Internacional de 1908, comemorativa do centenário da abertura dos portos pelo príncipe D. João, trouxe ao Brasil um balão do tipo "Bleriot".
Emocionados, apreciávamos das janelas do chalé as evoluções do incrível aparelho,
que nos enchia de pasmo e de indagações, para as quais não recebíamos respostas
satisfatórias. Por essa mesma época, aviadores franceses faziam experiências nos
terrenos do antigo Derby Club (onde hoje se encontra o estádio do Maracanã) com
um avião dessa mesma marca, do nome de famoso piloto francês. Mal podíamos
supor então que eram os primeiros passos que o homem ensaiava para a conquista
do transporte aéreo, de que os brasileiros eram pioneiros com os inventos e as
façanhas de Santos Dumont no princípio do século. É difícil para as crianças de
hoje avaliar os sentimentos de admiração e também de medo que essas incursões
incipientes de alguns "heróis" do espaço despertavam em nós.
O trem de ferro, em terra, era o meio de transporte que aceitávamos como
coisa normal e segura. O próprio navio para as viagens longas, intercontinentais, já
nos deixava, de certa forma, temerosos, pelas notícias das tragédias dos naufrágios.
Como poderíamos pois admitir que alguém pudesse viajar pelo espaço, a não ser
como exibição de coragem gratuita ou talvez como sintoma de pouco equilíbrio
mental...
•••
Em 1910, tinha eu seis anos, outro fenômeno empolgante levava nossa atenção e admiração para os céus: o cometa Halley fazia sua aparição, com sua cauda
luminosa, lá ao longe, no horizonte, por cima das palmeiras que se avistavam das
janelas do chalé. Era um espetáculo que ao mesmo tempo nos deslumbrava e fazia
apertar os corações, como anunciador de possíveis catástrofes, choques com a Terra, de efeitos, dizia-se, imprevisíveis. E não somente as crianças se enchiam de
preocupações, pois os adultos também mal conseguiam disfarçar seus temores. A
repercussão do aparecimento do cometa foi enorme. Atribuíram-se a ele acontecimentos nefastos tais como a morte de figuras ilustres como a de Eduardo VII, rei da
Inglaterra, de Joaquim Nabuco, do jornalista Henrique Chaves, do desenhista Ângelo Agostini e até do grande escritor e humorista Mark Twain, norte-americano.
Na política, relacionava-se a eleição do Marechal Hermes da Fonseca com o
aparecimento do cometa, e O Malho, de 21 de maio de 1910, a célebre revista
humorística e de crítica social da época, publicava um desenho de Ramon Lobão,
no qual Rui Barbosa aparecia como o cometa trazendo a cauda luminosa a dar
voltas entre os astros menores da política. A caricatura utilizou fartamente o fenômeno e muitos escritores registraram o fato em suas memórias.
Até mesmo o carnaval aproveitou o aparecimento do cometa em suas alegorias, segundo informação que colho na crônica de Ronaldo Rogério de Freitas
Mourão, astrônomo do Observatório Nacional, sobre Astronomia e Astronáutica
(Jornal do Brasil, 4ª feira, 26/1/1983, caderno B, p. 6). Diz ele:
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Uma análise das músicas populares brasileiras desde o início do século permite-nos evidenciar que os nossos compositores sempre acompanharam os grandes eventos astronômicos. Assim motivado pela notável aparição do cometa Halley em 19 de maio de 1910, o Carnaval do
ano seguinte, aproveitou a esplêndida aparição do cometa em seus carros alegóricos, fantasias
e músicas.
Uma das grandes sociedades, o Clube dos Fenianos, inclui o Halley em seu cortejo. Coube ao
artista Fiúza Guimarães encarregado da elaboração dos préstitos da sociedade, conceber a alegoria do carro intitulado "O Beijo do Halley". Numa delirante composição de ouro e prata, a
Terra, no seu rodopiar diário, voltando-se ora para um ora para outro, deixava-se beijar impudicamente por esse grandioso vagabundo dos espaços interplanetários.
Outra grande sociedade, o Clube dos Democráticos, também inclui em seu cortejo a alegoria "A Dança dos Cometas", de autoria do artista catarinense Publio Marroig, um dos grandes
rivais de Fiúza, no concurso que o vespertino A Notícia patrocinava para escolha do melhor
cenógrafo que confeccionasse os préstitos da terça-feira gorda. Marroig mostrava os cometas
"espadanando numa vertigem feérica de luminosas centelhas.
Outras sociedades, como nos conta Jota Efegê, este incansável estudioso dos
carnavais cariocas, participaram ainda do desfile. Uma delas, foi o Clube Carnavalesco Rejeitados de S. Cristóvão, cujos foliões exibiram um préstito crítico-alegórico,
com traços eróticos, sobre o cometa, ao mesmo tempo em que cantavam:
Lalá me deixa espiar nessa luneta
Eu sou do grupo que gosta do cometa
Cometa do Halley, cometa do ar,
Levanta a cauda que eu quero espiar.
Não foram somente as grandes sociedades que usaram o Halley em suas
alegorias no centro da cidade. No Méier, um dos pontos capitais do Carnaval dos
subúrbios, o cenógrafo Augusto Cordovil elaborou, para os Progressistas Suburbanos, um carro alegórico no qual se via uma estrela com grande cauda.
Os efeitos do cometa se fizeram sentir ainda no Carnaval de 1912, quando,
no "domingo gordo", o famoso Ameno Resedá desfilou pela avenida Central com o
enredo "Corde Celestial" onde figuravam o Sol, a Lua, Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno, Urano, Netuno e o cometa Halley, todos em trajes caprichosamente desenhados pelo caricaturista Amaro Amaral. O astrônomo inglês Edmund
Halley estava representado pelo bailarino Juvenal Nogueira, enquanto a portaestandarte Semíramis personificava a Lua e o imponente mestre-sala Mário Félix
configurava o Infinito.
Uma vez livres da ameaça da cauda do cometa Halley que, roçando a Terra
poderia incendiá-la, como se dizia na época, os cariocas, com sua irreverência peculiar, adaptaram os seguintes versos a uma conhecida música:
Dizem que o mundo vai se acabar,
Eu vou morrer.
Dizem que os paus-d'água,
Vão deixar de beber.
Isto é impossível,
Eu não posso crer,
Por causa que os paus-d'água
Nunca deixam de beber...
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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As crianças de hoje, que pouco olham para o céu, ou melhor, que pouco
espaço têm por entre os imensos blocos de cimento em que vivem para vislumbrar
alguma nesga de azul, não podem avaliar a emoção que nos invadia ao apreciar,
deslumbrados, o magnífico e estranho fenômeno.
Alguém recentemente sugeriu que se pusessem galinhas, vacas, bois, jumentos, carneiros e cabras no Jardim Zoológico, como animais exóticos, pois somente aí
as crianças de nossas cidades de hoje, poderiam saber concretamente da existência
desses representantes outrora domésticos do reino animal... (Parece que o Jardim
Zoológico do Rio de Janeiro recentemente tomou essa iniciativa). Talvez em breve o
mesmo terá que ser feito com os cães e os gatos domésticos... Que dizer então de
um cometa real, fora das histórias em quadrinhos... É certo que todas as crianças
assistiram à cena empolgante dos primeiros astronautas descendo na Lua: mas será
que acreditaram mesmo naquilo que estavam vendo através do retângulo luminoso da televisão ou pensaram que se tratava de "ficção científica", de que são ansiosos espectadores habituais?
A verdade é que as crianças estão recebendo uma tenebrosa massa de impressões e informações, jamais imaginada por qualquer ser humano. Acontece, porém, que vêm sendo bombardeadas por tudo isso passivamente, quase inertes, hipnotizadas diante do vídeo, o que vem preocupando seriamente quantos são responsáveis por esses problemas e pelas conseqüências que eles possam vir a ter. Pela
palavra escrita, pelo cinema, pelo rádio, e especialmente pela televisão, que entra
na intimidade de suas vidas sem licença e sem aviso, cada vez menos elas próprias,
as crianças, manipulam diretamente as coisas, os objetos e sentem concretamente
as pessoas. Além disso, são continuamente transportadas, ao invés de se movimentarem por si mesmas: sentam-se para fazer intermináveis trabalhos escolares, e
depois passam, horas e horas diante do retângulo mágico. Que resultará de tudo
isso? Fala-se tanto hoje em "criatividade" e tudo parece organizado para formar
crianças-robôs. Ainda hoje, dia 9 de novembro de 1983, quando, mais uma vez,
faço a revisão dessas Memórias, leio, num jornal, esta correspondência de Chicago,
Estados Unidos da América do Norte: "Uma criança americana, entre 9 e 12 anos,
passa 1 mil horas em sala de aula, durante um ano. E 1 mil 340 horas em frente a
um aparelho de televisão. Quando chegar aos 18 anos, esta criança terá passado 22
mil horas vendo TV e apenas 11 mil estudando". Ao longo de sua formação, um
americano sofre ainda influência de duas outras "maravilhas" da tecnologia – os
jogos eletrônicos e o automóvel – com conseqüências nocivas à sua educação e à
sua saúde. E esta é a preocupação de especialistas, que acabam de lançar um alerta
aos pais, para interromper este processo deformador. David Pearl, chefe do Departamento de Pesquisas de Comportamento, do Instituto Nacional de Doenças Mentais, disse que os pais, em grande maioria, subestimam o tempo que seus filhos
passam vendo televisão e o tipo de programas a que assistem.
"A televisão é agora um agente socializante, quase comparável, em importância, ao lar, à escola e à comunidade na influência do desenvolvimento e do
comportamento das crianças", disse Pearl, numa conferência sobre o impacto do
estilo de vida sobre a saúde de crianças e adolescentes (Sharon Rutenberg, UPI).
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Nesses primeiros anos de nossas vidas, praticamente, só usávamos os transportes para os passeios a lugares mais distantes. Para a escola, para as compras e
tudo o mais, ia-se à pé, pois tudo ficava próximo no bairro, verdadeira comunidade.
O contato com as pessoas era direto, e se fazia com todas as categorias profissionais: com o lixeiro, com o padeiro, com o quitandeiro, com o professor... Até mesmo
a "vara de marmelo" estabelecia relações íntimas entre pais e filhos para corrigir os
desvios mais graves.
Nestes novos tempos de agora, meus netos são transportados à escola de
automóvel ou nos ônibus escolares, mesmo que se trate de distâncias de poucas
quadras; vivem sentados fazendo intermináveis "deveres escolares", em ambientes
estreitos de apartamentos, ajudados por copioso material impresso, tudo pronto,
recebendo por aqueles veículos, aquela massa imensa de informações que não têm
tempo de selecionar e assimilar. Não é de estranhar, pois, que a palavra mágica
"criatividade" venha invadindo todas as áreas da Pedagogia, pondo nas mãos da
criança material artificial, para que ela tente manipular alguma coisa por si própria. Nós fazíamos nossos balões, nossas pipas, nossas máscaras de carnaval, nossas
fantasias, nossa cola de farinha de trigo, nossos brinquedos de caixotes, arames e
caixas de fósforos vazias, nossos cadernos que transformávamos em livros, escassos
na época. E parecia que ficávamos satisfeitos... Hoje, os meus netos, cheios de brinquedos de corda, mirabolantes, eletrônicos, misteriosos, de pilhas e luzes artificiais,
parecem estar sempre insatisfeitos, infelizes ou, como se costuma dizer, já nascem
cansados de viver...
"Outra característica da cultura atual, e nos Estados Unidos especialmente,
é que, tal como é planejada, só pode ser experimentada passivamente e essa passividade é profundamente empobrecedora para o indivíduo", afirma com toda a propriedade Charles A. Reich, em seu O Renascer da América.
•••
Para encerrar esse período de minha infância, bastante revelador do ambiente cultural em que vivíamos, lembro-me perfeitamente de um acontecimento de
caráter nacional – a morte do Barão do Rio Branco, a 11 de fevereiro de 1912;
tinha eu, portanto, oito anos incompletos.
Meu pai era leitor assíduo do Correio da Manhã, desde seu aparecimento. O
estilo combativo do jornal de Edmundo Bittencourt, às vezes até desabusados, coadunava-se bem com o temperamento e com seu ânimo calabrês, formado no ambiente das lutas garibaldinas da unificação política de sua pátria de origem (meu
pai nascera em setembro de 1874).
Lembro-me assim, com muita nitidez, do noticiário abundante sobre a morte do chanceler, informando-nos sobre o significado da perda do grande estadista
brasileiro. Era, se bem me lembro, num domingo quente do verão carioca, e me vejo
sentado na tradicional cadeira de balanço, na sala de jantar, perfeitamente consciente da significação do fato, que decifrava bastante razoavelmente com os conhecimentos de leitura que já possuía.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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É de notar que meu pai, italiano de nascimento, já se achava perfeitamente
integrado e identificado com sua pátria adotiva; tornado brasileiro pela grande
naturalização decretada em 15 de novembro de 1889 pela República nascente, ele
nos incumbia, como talvez poucos pais brasileiros, o interesse pelos acontecimentos nacionais. Isso naturalmente por sua própria educação européia, de valorização
da coisa pública, dos fatos políticos e sociais, o que não era comum nas famílias
brasileiras do mesmo nível social.
Essa orientação influiu profundamente na formação, dos irmãos Lemme sendo, sem dúvida, a razão de nossos pendores para a participação nos acontecimentos políticos e sociais de nosso povo, o que nos conduziram posteriormente a opções mais ou menos extremadas, de acordo com as situações em que cada um de
nós se viu envolvido no decorrer da vida. E como não poderia deixar de acontecer,
tais opções trouxeram para alguns de nós não pequenos dissabores...
•••
De outro acontecimento político de grande significação, verificado um pouco
antes, não guardo tão vívida recordação – a revolta da Marinha de Guerra, chefiada por João Cândido, em 1910 – a não ser por algumas referências ao bombardeio
dos tiros de canhão dos navios rebelados, que teriam atingido o centro da cidade.
Como morávamos nos subúrbios do Méier, longe desse centro, não fomos envolvidos diretamente nos acontecimentos e minha pouca idade - 6 anos - encarregouse do resto. Vejamos.
Era a 23 de novembro de 1910:
Foi cheia de angústia a noite em que um tiro de canhão anunciou que explodira aquela
revolta [...] Os poderosos canhões das naus sublevadas sacudiam a cidade com os estrondos
espaçados de seus disparos, que quebravam, como clamores de uma tragédia, o silêncio opressivo e pesado dentro do qual tudo parecia transido de terror [...] As granadas sibilavam no
espaço em tiros sem alvo nem objetivos certos, explodindo a esmo. [...] Os navios rebeldes executavam, dentro da baía, transpondo a barra e regressando ao interior da enseada, manobras de
precisão admirável, que faziam crer na presença de algum oficial de elevada patente e de grande capacidade técnica a bordo. Era a revelação, naquele movimento, do marinheiro rude que a
lenda havia de perpetuar como o "Almirante Negro", chefe que assombrava com sua capacidade
imprevista – João Cândido.
São referências que encontro em A República que a revolução destruiu, de
Sertório de Castro.
•••
Não poderia concluir esta tentativa de traçar o quadro aproximado desses
primeiros anos de minha vida consciente, se não procurasse dizer alguma coisa de
mim próprio, de como eu mesmo me via então, de meu caráter enfim.
Em primeiro lugar, vêm as incursões, bastantes precoces, creio eu, no terreno de interesse pelo outro sexo. É uma componente fundamental da personalidade,
quando a idade própria cria o problema.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Lembro-me assim perfeitamente de uma primeira paixão avassaladora, cuja
protagonista era a Edite, uma jovem morena, alta e magra, moradora nos arredores
do chalé, de cuja família não guardo, porém, qualquer recordação. Era bem mais
velha do que eu, mas isso não influía em nada em meus sentimentos. Antes, já minha
prima Mônica me despertara para essa apreciação emocional, pelo outro sexo, de
forma bem diferente de qualquer outra coisa que pudesse me causar prazer.
Também de alguns habitantes do misterioso Morro da Madre de Deus, que
se reuniam em nosso portão na época dos festejos juninos, na formação dos grupos
do "tasca balão", já ouvira as mais antigas referências, de que me recordo, ao terreno proibido da relação entre sexos, das quais, naturalmente, pouco entendi. Alguns
desses elementos eram bem mais velhos do que nós, os moradores do chalé, e de
condição social inferior e já tinham, segundo depreendo hoje, iniciação bastante
avançada nesses assuntos; ao menos era o que pareciam revelar na linguagem desabrida que usavam, chocando a sensibilidade das crianças mais ou menos ingênuas que éramos, como resultado de nossa educação repressora. Esses vizinhos despertavam em nós grande curiosidade porque já percebíamos vagamente o que se
ocultava por trás daquela linguagem, apesar de não termos ainda base fisiológica
para sentir e compreender exatamente o que significava. Não é preciso dizer que os
encontros de cães e gatos no cio, que presenciávamos freqüentemente, deixavamnos embaraçados, encabulados mesmo, apesar de não entendermos com precisão o
que estava ocorrendo: os adultos, naturalmente, procuravam desviar nossa atenção desses espetáculos. Não me lembro, porém, de qualquer manipulação a que me
entregasse, pela possível excitação que essas visões pudessem produzir: a localização desse instinto básico da personalidade só se daria um pouco mais tarde.
Pouco mais poderia dizer da consciência de meu próprio ser nos anos em
que vivi no chalé da Rua Figueiredo (1906-1913). Voltando-me, com algum esforço, para dentro de mim próprio, vejo que não formava ainda uma individualidade
nítida, separada do meio circundante. Os fatos, as pessoas e as coisas, o exterior em
suma, misturavam-se ainda com o eu, com o interior, ou este ainda estava por
assim dizer, dissolvido no ambiente, como se fora uma espécie de esponja, de contornos pouco precisos, mergulhada num fluido em constante transformação e que
fosse absorvendo permanentemente, o que vinha de fora – as impressões exteriores
– pois, era ainda pequena a reação de dentro para fora, naturalmente por deficiência do equipamento fisiológico, movimento esse de interação que vai aos poucos
definindo e formando a personalidade.
Estava, pois, naquela fase de formação do eu, que Louis Lavelle caracteriza
assim:
É por isso que o eu nada é fora do seu corpo e fora dessa consciência do universo inteiro,
que não seria possível sem o corpo. Não que o corpo a produza por um misterioso epifenômeno;
mas para que a consciência seja possível é preciso que nos distingamos do mundo e, por conseguinte, que tenhamos um corpo limitado.
Essa delimitação do corpo que produz a consciência do eu é um longo processo, conforme descreve Piaget, e se completa, creio eu, com a maturação sexual,
ou melhor, com a plena localização do instinto da reprodução. Aí, o indivíduo se
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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sente como uma personalidade definida e distinta das outras e, ao mesmo tempo,
procura sua complementação no sexo oposto, no "milagre do amor", da perpetuação da espécie:
A natureza, antes de tudo, quer a reprodução dos seres: por toda parte, desde o cume das
montanhas até o fundo do oceano, a vida tem medo de morrer. Deus, para conservar sua obra,
estabeleceu, como lei, que o maior gozo de todos os seres seja o ato da geração. A palmeira
enviando à sua fêmea a poeira fecunda, freme de amor nos ventos calmosos; o veado no cio
estripa a corça que lhe resiste; a pomba palpita debaixo das asas do macho, como uma sensitiva
amorosa; e o homem ao possuir nos braços a companheira, no seio da natureza todo-poderosa,
sente saltar no coração a centelha divina que o criou (Alfred de Musset, em A confissão de um
filho do século).
É lamentável que esse instinto fundamental da vida seja objeto de tanta
repressão de tão penosas conseqüências (e eu as senti bem sérias, uma iniciação
tortuosa, e daí a minha insistência no assunto). É a loucura e o gênio de Nietzsche
que nos adverte: "O desprezo da vida sexual, inculcá-la com o conceito de impureza é um verdadeiro pecado contra o espírito santo da vida".
Nesse particular, a juventude de hoje chega a me causar inveja, quando vai
unificando o sexo e o amor, ambos "sagrados", desprezando nefastos preconceitos,
que insiste em separar aquilo que são as faces da mesma moeda, e que moeda: o
instinto básico da vida.
Assim, em retrospecto vejo-me como um menino tímido, encabulado, profundamente emotivo, corando com facilidade, chorando durante uma noite inteira
porque a Edite, sua platônica namorada, não lhe dedicou a devida atenção. Carente, talvez, em termos de algum freudismo, de mais carinho materno e de menos
autoritarismo do pai ríspido. Mas, que fazer, se chegamos a ser uma dúzia de irmãos vivos (8 homens e 4 mulheres) e se o tempo era pouco para o trabalho de
cuidar, alimentar, vestir, alojar e instruir esse bando, que muitas vezes só podia ser
devidamente contido com a ajuda da vara de marmelo, sempre presente no canto
da sala de jantar, e, quando inutilizada pelo uso, nós mesmos, os próprios usuários,
éramos mandados a adquirir outra nova na quitanda do "seu" Manuel português...
– Mas, eu sou uma neurótica, John. Descobri que tenho uma infinidade de neuroses.
– E daí? Talvez por isso mesmo é que você é uma estrela. Talvez você deixe de ser o que é se
ele lhe curar de todas as neuroses. Eu também tenho as minhas esquisitices, mas é por isso que
vou dar 25 dólares por hora para um camarada, só para que ele me diga que meu pai me
maltratou e que o que sinto é simplesmente falta de carinho de minha mãe? E se for verdade?
Que é que poderei fazer para remediá-lo? Ir a Minnesota e dar um soco no nariz do meu velho?
Ele tem oitenta anos. Ou então chamar uma call-girl (prostituta) grisalha e fazer com que me
acalente e me sirva uma mamadeira? (Jacqueline Susann, em Valley of the dolls).
•••
O período do chalé da Rua Figueiredo ia chegando ao fim. Meu pai prosperava
na nova profissão. O curso terminou e ele recebeu o tão almejado e sofrido diploma
e comprou o anel de grau. A clientela aumentava. Mas os caminhos de acesso ao
chalé continuavam cada vez mais difíceis, tornando-se praticamente intransitáveis
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
durante os aguaceiros do verão. O barro vermelho que descia do Morro do Vintém
transformava as ruas, ainda sem qualquer calçamento, em enormes lamaçais, afugentando a clientela.
Parece que foi essa a principal razão que levou meu pai a cogitar na mudança para local mais apropriado e mais acessível. Evidentemente, havia também economias acumuladas, que permitiam mais altas aspirações.
E assim, certo dia, o velho chalé foi sendo abandonado por um casarão
situado do outro lado da Estrada de Ferro – considerado o mais nobre – o da Rua
Dias da Cruz, onde nos instalamos por muitos anos, depois de uma reforma que
consumiu algum tempo e muitos recursos. Estava situado à Rua Joaquim Méier,
que subia da Rua Dias da Cruz, bem defronte à cancela da Estrada de Ferro, em
ladeira bastante acentuada. O número era o 18.
Construída na frente do prédio uma sala de espera e ao lado o consultório
dentário, planejado especialmente, afinal pôde meu pai colocar no vidro da janela
a inscrição consagradora de tantos anos de trabalhos, esforços e sacrifícios:
ANTONIO LEMME – CIRURGIÃO DENTISTA
E nos cartões de visita, acrescentou com indisfarçável orgulho:
PELA ESCOLA DE MEDICINA DO RIO DE JANEIRO
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO II
AS ORIGENS
Meus avós paternos eram italianos de Cosenza,
capital da província da Calábria. Não os conheci. Meu avô
– Paschoal Lemme ou Pasquale – legou-me o nome por
inteiro, o que, diga-se de passagem, causou-me embaraços durante toda a vida: sendo um nome pouco comum,
fazia-me objeto de atenção especial, quase sempre irônica, que feria minha sensibilidade de menino tímido, encabulado. Lembro-me muito bem do vexame que me atingia ao ser gritado meu nome pelo bedel, irascível e de
poucas letras, no saguão de entrada do Colégio Pedro II,
ali na Rua Larga, durante a chamada para prestar as provas dos exames de "preparatórios": "Paschoal... Lemme..."
Os dois emes inusitados do meu nome de família levavam
o funcionário a dar a interpretação que lhe ocorria no
momento, e a mais freqüente era atribuir-me o codinome
do chefe da Revolução Russa – Lenine – , muito em destaque na época, lá pelos idos de 1917-1920, anos durante
os quais eu prestava aqueles exames.
Desse Lemme com dois emes nunca pudemos
descobrir a verdadeira origem, que positivamente não
nos parecia ser italiana nem mesmo latina. Seria judia,
que tivesse passado para a Holanda, com a forma
Lemme, e que, segundo pesquisadores das origens dos
Leme de São Paulo, criou o tronco inicial dos bandeirantes paulistas? Nesse caso, estaríamos ligados aos
Lemes quatrocentões de São Paulo, os quais descendiam exatamente de um Antonio Lemms, vindo da
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Holanda, segundo as conhecidas pesquisas de Washington Luís, sobre o povoamento de São Paulo.
Um outro pesquisador da genealogia paulistana, Alfredo Ellis Júnior, escreve em seus Capítulos da história social de São Paulo:
Como é sabido, por varonia, esses Lemes procediam de Antonio Leme, filho natural do
flamengo Martins Leme, tendo entre o povoador Antão Leme e este seu antepassado flamengo
mediado quatro gerações, de maneira que teria ele apenas 1/16 de sangue holandês e Pero
Leme, seu filho, também povoador primeiro, somente 1/32.
Rocha Pombo, em sua História do Brasil, afirma que:
Este Antão Leme, povoador, era filho do grande descobridor e navegador... Antonio Leme,
da Ilha da Madeira (1474-1484), companheiro de Vicente Dias, Diogo de Teive e Afonso Sanches,
que cruzavam nessa época o oceano ocidental em todas as direções...
E Gaspar Frutuoso em Saudades da terra e Silva Leme em Genealogia
paulistana, acrescentam:
O maior vulto do bandeirismo do último quartel do seiscentismo, nasceu em 1608 e foi
filho de Pedro Dias Paes Leme e de Maria Leite. Por seu pai, Fernão era Leme, provavelmente da
estirpe flamenga emigrada em Portugal, aliada à gente ibérica, cujas origens se encontravam
nos monarcas hispânicos e nos que ocupavam o trono do reino dos Carolíngios. Por sua mãe,
Fernão era neto de Paschoal Leite, fidalgo de uma magnífica árvore genealógica.
Alimentar a suposição de que descendemos de uma estirpe de antepassados
tão notáveis e até nobres é sempre muito gratificante... Mesmo que, como no nosso
caso, se trate, com certeza, de pura ficção...
Ou seria esse Leme de origem judia-austríaca, germânica, portanto? Existe
na Istria, península ao norte da Itália, um pequeno rio ou canal denominado Leme,
que Júlio Verne aproveita nas peripécias de uma de suas obras mais célebres: Matias
Sandorf. Quem me chamou a atenção para esse fato foi meu irmão Virgílio, que era
e ainda é um admirador irredutível do grande futurólogo francês, que encantou
nossa juventude. Do relato da fuga espetacular da prisão desse êmulo de Monte
Cristo, o conde Sandorf, relemos estas passagens:
Realmente, essa superfície d'água, que servia de embocadura à Foiba, não era nem lago,
nem lagoa, mas simplesmente estuário. No país, davam-lhe o nome de Canal de Leme e comunica com o Adriático por uma fenda estreita entre Orsera e Rovigno, na costa ocidental da
península istriana.
E adiante:
Com efeito, pelas cinco horas da tarde, sentiu-se na estrada o tropel de um pequeno esquadrão de cavalaria. O conde Sandorf que, de rastros, se acercava da porta do recinto, voltou
precipitadamente para junto do companheiro e arrastou-o para o canto mais escuro do celeiro,
onde se conservaram debaixo de um montão de silvas secas, na mais completa imobilidade.
Meia dúzia de gendarmes, comandados por um sargento, subiam a estrada, dirigindo-se para o
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
oeste. Parariam no canal? O Conde Sandorf interrogou-se a si próprio com viva ansiedade. Se os
gendarmes revistassem a casa em ruínas, não deixariam de descobrir os que aí se haviam escondido. Foi nesse mesmo sítio que fizeram alto. O sargento e dois gendarmes apearam-se; os
outros ficaram a cavalo. Estes receberam ordem de percorrer toda a região pelos arredores do
Canal do Leme.
•••
Nunca consegui saber exatamente o que fazia ou de que vivia meu avô
paterno: barbeiro? Apurei apenas, vagamente, que se dedicava à música e tocava
bandolim (ou violino?) em orquestra que se exibia em festas no palácio do governador da Província. Sempre tive enorme curiosidade em conhecer alguma coisa
mais a respeito desse meu ascendente que me legou o nome. Meu pai, porém,
nunca nos fez qualquer revelação explícita, e minha mãe pouco sabia também,
creio eu, desses antecedentes da família Lemme. Não tinha idade nem interesse na
época para interrogar a tia Paschoalina por ocasião de sua rápida passagem por
nossa casa. E o outro tio, irmão de meu pai - o Vicente -, não cheguei a conhecer,
pois morreu pouco depois de chegar ao Brasil, em companhia de meu pai.
Minha avó paterna, Palma de Martori Lemme, contava minha mãe, tinha a
pele muito escura, talvez por influência árabe, e por isso era apelidada de "Tição".
Com a morte de meu avô, dedicou-se à fabricação de tecidos, chegando, segundo
ouvi contar, a dirigir uma pequena fábrica nos arredores de Cosenza. A vinda dos
dois rapazes para o Brasil – meu pai e meu tio Vicente – causou-lhe grande desgosto, segundo revelou meu pai pouco antes de morrer, e que no delírio que precedeu
ao desenlace, acusava-se como o causador da morte de sua mãe, minha avó.
Não sei se isso acontece com outras pessoas, mas sempre alimentei um sentimento de certa frustração por não haver obtido o conhecimento direto, ou, ao
menos, informações mais precisas e completas sobre a vida dessas criaturas das
quais, afinal, descendia: um indício qualquer do que realmente foram, do que lhes
sucedeu, do que exatamente viveram e morreram. Essa falta de informações estabelecia como que um vazio, um hiato, numa das alas de minha vida, uma espécie de
perda de simetria necessária para a sustentação de nossas vidas. Esse sentimento
era tanto maior, porque conheci praticamente toda a ascendência do lado materno, tendo até mesmo convivido, por algum tempo, com meus avós, pais de minha
mãe, e quase que com todos os tios e tias, irmãs e irmãos dela.
Sempre tive orgulho dessa ascendência italiana, mas infelizmente, quando
visitei rapidamente a Itália (1957), esse inigualável país, não pude viajar até a cidade natal de meus avós para tentar descobrir algum traço de suas vidas que materializasse suas existências e satisfizesse minha curiosidade.
Como tantos outros antes de mim, entretanto, deslumbrei-me com a visão
desse país, cujo ambiente extraordinário só um gênio da literatura poderia sentir
em toda a extensão e tentar descrever: um Goethe, por exemplo. Em 1786, o grande alemão empreende pela primeira vez essa viagem maravilhosa, tão ardentemente desejada, que relata depois minuciosamente (1816-1817) em suas Italiensche
reise (Viagens italianas), como parte de sua autobiografia:
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Goethe parte cheio de alegria e esperanças, à conquista desse país, que foi sempre, desde
sua infância – ele mesmo o confessa – ser o mais belo sonho e também seu mais terrível
pesadelo. Desde que seu pai, sendo ele ainda menino, contara-lhe sua viagem a esse país do
limoeiro e do louro, pulsava em sua alma uma nostalgia, aguçada pelas lindas estampas que
seu pai trouxera de lá e que se dependuravam em belas molduras nas paredes de sua casa. Até
uma gôndola de brinquedo, seu pai trouxera de lá e quantas viagens não fazia nela, a uma
Veneza ideal, o menino Goethe! A viagem à Itália chegou a obcecar-lhe de tal modo que,
segundo ele mesmo confessa, chegou a ser uma tortura e a marcar como um tabu, que a
moderna psicologia freudiana explicaria satisfatoriamente todas as idéias e sensações provenientes da parte da Itália.
E o próprio Goethe escrevia:
Roma, 1º de novembro (1786)
Enfim cheguei a esta capital do mundo! Se a houvera visto em boa companhia, guiado por
um homem verdadeiramente discreto, há quinze anos teria me considerado feliz. Porém, uma
vez que deveria vê-la sozinho, é bom que essa alegria me tenha deparado tão tarde.
Pelas montanhas tirolesas passei como voando! Verona, Vicenza, Pádua, Veneza, vi-as bem;
porém, Ferrara, Cento, Bolonha, vi-as de passagem, e Florença apenas a vi. Minha ânsia de
chegar a Roma era tão grande e crescia tanto a cada momento, que não podia estar sossegado
em nenhum lugar, e em Florença, só permaneci três horas. Agora, porém, que me encontro aqui
e tranqüilo, creio que serenei para toda a minha vida. Pois pode-se dizer, com razão, que começa uma nova vida quando vemos com os nossos próprios olhos aquele conjunto que parcialmente conhecíamos por dentro e por fora. Vejo agora, animados de vida, todos os sonhos de
minha juventude...
E adiante:
Em outros lugares deve-se buscar o principal: aqui ele nos acossa e cumula. [...]. Ter-se-ia
que escrever com mil estilos, o que é aqui uma pena. E logo, ao cair da tarde, estamos já
vencidos e exaustos de tanto ver e admirar.
Como se vê, não me contenho em antecipar essa visão admirável, que só
muitos anos depois me enterneceu, contagiado pela magia dessa terra e dessa gente, a meu ver, únicas no mundo. E não me envergonho com isso. Estou em excelente
companhia.
Já nos tempos atuais, um outro escritor de origem bem diversa – o russo Ilya
Ehrenbourg – em suas Memórias, com a mesma ternura e admiração, fala-nos
assim da pátria das maiores figuras que a humanidade já produziu: um Virgílio, um
Dante, um Leonardo da Vinci ou um Miguel Ângelo:
Vi a Itália, pela primeira vez, há meio século, é claro que muitas coisas mudaram desde
aquela época. No Norte, cresceram enormes usinas; construíram-se modernas localidades
residenciais para operários; ademais, o Museu de Turim parece que não tem rival em toda a
Europa, quer pela iluminação, quer pela disposição dos quadros. O nível de vida subiu. As tiragens de livros cresceram, os operários começaram a ler, até mesmo os camponeses. O mundo se
ampliou: o antigo provincialismo desapareceu. No que diz respeito ao conhecimento da literatura soviética, a Itália ultrapassou os demais países do Ocidente: traduzem muito, não esporadicamente, diga-se de passagem, mas sabendo escolher. Pelas estradas onde outrora eu caminhei,
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
onde encontrava burricos e carros de boi, correm bandos de pequenos Fiat, motocicletas, Mas o
espírito do povo, que me compreendeu e conquistou quando era bem jovem, permanece o
mesmo.
Esta a esplêndida e inigualável terra de meu pai e de meus avós. Por que não
me orgulhar dela?
•••
Reunindo os fragmentos de histórias que ouvi de minha mãe (por mim
provocadas) e dos meus dois irmãos mais velhos, pude concluir que meu pai veio
para o Brasil, com uns 14 anos, juntamente com um irmão mais moço – Vicente –,
ambos em companhia de uns tios, que se dirigiam a São Paulo, onde pretendiam se
dedicar à indústria hoteleira, atividade de que já se ocupavam na Itália.
A morte desses tios, atacados pela febre amarela que então grassava no Rio
de Janeiro, deixou os dois rapazes entregues à própria sorte, acabando por se fixarem na Capital do País. O mais moço, o tio Vicente, veio a falecer mais tarde, vítima
de tuberculose, depois de longos sofrimentos e de procurar por todos os meios a
cura, sempre dedicadamente assistido e mantido pelo irmão. Não cheguei a conhecêlo, mas meus dois irmãos mais velhos - o Virgílio e a Palma -lembram-se dele
perfeitamente, inclusive porque foi padrinho de batismo dessa minha irmã, sendo a
madrinha a tia Zulmira, a irmã mais moça de minha mãe, que esteve para se casar
com tio Vicente.
Sozinhos, no país estranho, pouco pude saber de seus passos, e de seus sofrimentos nessa inesperada situação. É certo que andaram por Niterói, não sei em que
circunstâncias, mas chegaram a ter a casa em que moravam destelhada pelos bombardeios dos canhões do marechal Floriano Peixoto, durante a Revolta da Marinha,
em 1893.
Vale a pena recordar, com Felisbelo Freire, em sua História da revolta de 6
de outubro de 1893:
Ao amanhecer de 6 de outubro de 1893, despertou a população da capital da República,
sob a desagradável notícia de que se achava revoltada parte da esquadra nacional, sob o comando do almirante Custódio de Melo... [...] A resistência de Niterói é uma das mais belas
páginas da luta. Almejada pela revolta, de preferência ao Rio de Janeiro, a cidade fluminense
tinha, no dia 6, como elementos de defesa, além do heroísmo moral de suas autoridades, civis e
militares, uma guarnição de 74 soldados de polícia! Achava-se, porém, à frente deles o bravo
coronel Fonseca Ramos, a que se deve principalmente a defesa da cidade, nos primeiros dias da
luta. [...] Figurava no plano da revolução dar um desembarque na cidade, cuja tomada seria uma
grande vitória, senão a morte do governo. [...] De posse dela, estavam eles de posse da Armação
e da Fortaleza de Santa Cruz, a mais importante das fortalezas legais. [...] Duas tentativas fizeram para isso, nos dias 7 e 8 (de setembro) sendo essas expedições dirigidas pelo 1º tenente
Felinto Perry, 2° tenente Honório de Barros, auxiliados pelo major Sebastião Bandeira e pelo
capitão Miranda de Carvalho. [...] Ambas foram infrutíferas. As forças legais defenderam a
cidade que sofreu prolongado fogo do Aquidaban, República e Trajano. Começou então a correr
o primeiro sangue e a se fazer sentir os estragos da cidade, cuja população emigrou toda para o
interior, transformando-se ela numa praça de guerra.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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•••
É provável que os dois rapazes tenham participado dessa debandada e depois, não consigo imaginar como, apareceram no Engenho de Dentro, subúrbio do
Rio de Janeiro, encontrando-se, talvez por mero acaso, com meu avô materno,
Adelino Paes, que aí havia se estabelecido.
Consta que meu avô acolheu bondosamente os dois jovens italianos, dandolhes trabalho, orientando-os na profissão a que se dedicava – tinha uma grande
loja de barbearia – cuidando de meu tio doente e até a língua do país procurou
ensinar-lhes.
Fico sempre a especular sobre a verdade desse relato, quase do tipo daqueles em que Balzac era mestre, descrevendo relações de família, encontros e
desencontros entre gente de classe média comum. E procuro representar a cena do
português ríspido – meu avô materno – a receber e proteger com carinho os dois
rapazes, naturalmente de má aparência, pois não consigo compreender como se
mantinham, nem como se fariam facilmente entender, em seu patuá calabrês. E são
essas coincidências que parecem reforçar a idéia de predestinação: o mais velho
dos dois vem a namorar e a casar-se com uma das filhas do português e protetor,
que seria depois minha mãe.
O Antônio (Lemme) revelou-se muito ativo e trabalhador, grangeando depressa a amizade e a admiração do futuro sogro. Manejava com rapidez e perfeição
a tesoura e a navalha, gabando-se de seus verdadeiros torneios de velocidade em
competição com seus futuros cunhados e meus tios maternos, que trabalhavam
também na loja de meu futuro avô. Diz-se que o velho Adelino protegeu também
com grande bondade o tio doente, tendo mesmo chegado a levá-lo, mais tarde,
para a cidade de Barra Mansa, no Estado do Rio de Janeiro, quando para lá se
transferiram, numa tentativa de obter melhora para a saúde precária do rapaz,
num clima mais favorável. Infelizmente, porém, não conseguiu vencer a doença,
vindo a falecer, não sei exatamente em que ano.
Essa circunstância de ser meu pai encaminhado tão facilmente para a profissão da tesoura e da navalha é que me fez acreditar que haveria talvez alguma
iniciação anterior, por já se dedicar a essa profissão meu avô paterno, na Itália.
É certo que a ligação de meu avô materno com meu futuro pai perdurou e
se consolidou e, em breve, era ele iniciado nas artes mais nobres do boticão e em
muitos elementos de medicina, dos quais meu avô Adelino possuía conhecimentos
bastante extensos, tendo mesmo grande experiência, com estudos inacabados, realizados em Paris.
•••
Meus avós maternos eram portugueses originários de Vizeu, onde desfrutavam de situação econômica e social bastante razoável.
Vizeu é a cidade notável por ter sido a pátria de Viriato, que venceu os romanos, e pelos
quadros do pintor Grão Vasco, que ostenta a sua Sé. Em Vizeu estamos em plena Beira, uma das
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
grandes províncias de Portugal. Aí, o castanheiro, o cedro, o carvalho, o pinheiro bravo, põem
na paisagem todos os tons e essa grandeza própria e as árvores que vivem séculos. A Beira é o
berço dos homens robustos, a província mais portuguesa de Portugal.
Nessa cidade de Viriato, meus avós possuíam casa própria, assobradada, de
três pavimentos, guarnecida, segundo me dizia minha mãe, com orgulho e tristeza,
com móveis e alfaias vindas diretamente de Paris. A viagem para o Brasil significou,
assim, uma queda desse padrão de vida, com o qual, parece, minha mãe nunca se
conformou inteiramente.
Meu avô – Adelino Paes – estudara medicina em Paris, mas não chegara a
concluir o curso. Terminado, porém, o primeiro ano, recebeu o pomposo título de
Oficial Cirurgião Barbeiro, pois, a essa época, era profissão conceituada, exigindo
conhecimentos de anatomia, de modo que podia aplicar a pacientes "bichas" e
"ventosas", para sangrar e os aliviar dos males cardíacos. Meu avô vivia entre médicos, e especialmente cirurgiões, que freqüentavam sua casa e com ele conferenciavam nos casos mais graves. Sem o título do curso completo, prestava, porém, assistência aos médicos formados, e depois, já no Brasil, ainda me lembro, mantinha
amizade com doutores de nomeada, entre eles Joaquim Murtinho, médico homeopata
e depois ministro da Fazenda de Campos Sales.
Em sua loja de barbeiro, no Engenho de Dentro, subúrbio do Rio de Janeiro,
aplicava, como aprendera, as "bichas" e as "ventosas", cuja aparelhagem cheguei a
conhecer. Dedicava-se também à arte dentária e era especialmente hábil no manejo do boticão, na extração de dentes. Possuía instrumental completo, adquirido em
Paris, e cujos vistosos estojos passaram por nossas mãos. Manifestava sempre mágoa por não ter concluído o curso de medicina. Era um português de porte alto,
elegante, de hábitos aristocráticos, vermelho, olhos azuis, instruído, como se vê,
mas de poucas falas. Quando o conheci, usava quase que permanentemente um
charuto, que mastigava em gesto característico, andando de um lado para o outro,
de mãos atrás das costas, aparentando sempre mau humor, um tanto superficial.
Minha avó materna – Josefina de Jesus Paes – era alta, morena, nariz aquilino,
cabelos pretos e crespos, que atingiam, quando soltos, as costas até bem embaixo.
Criara muitos filhos – conheci três tios e três tias – os homens todos trabalhando
na mesma profissão do pai. Não gozava porém de muita saúde ou a perdera com as
duras lides domésticas. Quando aqui chegou, foi logo atacada pela febre amarela, o
que levou a família a fazer uma viagem de volta a Portugal. Depois, fixaram-se
definitivamente no Brasil.
Minha mãe tinha dois anos de idade quando aqui chegou na primeira viagem. A vinda para o Brasil se fizera a conselho de um amigo ou compadre já aqui
radicado. Creio que era comerciante e entusiasmara os amigos com seu sucesso
financeiro. A mesma sorte, porém, não sorriu para a família Paes.
Aqui chegando, residiram primeiro no centro da cidade, na rua dos Inválidos
ou do Lavradio, onde se instalavam as famílias de imigrantes de melhores posses. As
mais ricas, como se sabe, procuravam os bairros distintos da época, lá para o Catumbi
ou Rio Comprido, nas tradicionais chácaras, descritas por José de Alencar ou Machado de Assis em seus romances.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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O Rio de Janeiro era, nesse fim de século, um "porto sujo", onde grassavam
a varíola, a febre amarela, a peste bubônica e outras moléstias tropicais. Atacavam
principalmente os estrangeiros que aqui desembarcavam sem qualquer resistência
ou imunidade natural.
É bom recordar esse quadro, na palavra de Gastão Pereira da Silva (em
Rodrigues Alves e sua época):
Que era, no entanto, o Rio de Janeiro antigo?
Uma cidade colonial, surgida ao acaso, em desacordo com os mais elementares princípios
da ética e política social.
Solo fertilíssimo demais – diz Miranda Ribeiro – acrimonias particulares, matrizes de erisipelas,
empigens, sarnas, endemias crônicas, e da doença vulgarmente chamada de mal de São Lázaro,
na opinião abalizada de Antônio Medeiros, clínico notável nos tempos de antanho.
Situada no extremo da vasta planície úmida e quente, charcosa, pantanosa, e circundada
de montanhas, os seus logradouros públicos não obedeceram à direção natural dos ventos reinantes, contrariando-os, de modo que o desasseio das praças provenientes dos despejos cujos
eflúvios voltavam para a cidade, envoltos com os ventos que os podem fazer pestíferos; as
igrejas loucamente recheadas de cadáveres por indiscreta devoção; a vala, o cano, a cadeia, os
esterquilínios vagos, enfim, tantos depósitos de imundícies levaram o doutor Antônio Joaquim
de Medeiros, respondendo aos quesitos formulados por Acórdão da Câmara desta Cidade, em
1798, após explanação sobre a consulta, a afirmar inquirindo:
– Está em problema qual das cidades é a mais doentia, se o Rio de Janeiro ou Angola?
Dizia-se que ir ao Rio de Janeiro era suicidar-se, foi o dístico que estrangeiros colocaram
simbolicamente à entrada da baía da Guanabara...
Como se sabe, somente muito mais tarde, com a gigantesca obra de Rodrigues
Alves, Pereira Passos, Paulo de Frontin e Osvaldo Cruz, entre outros, é que essa
situação se modificou e o Rio de Janeiro perdeu a pecha infamante de "porto sujo".
Em 1903, Rodrigues Alves dizia em sua primeira mensagem ao Congresso
Nacional:
Os defeitos da Capital afetam e perturbam todo o desenvolvimento nacional. A sua restauração no conceito do mundo será o início de uma vida nova, o incitamento para o trabalho nas
áreas extensíssimas de um país que tem terra para todas as culturas, clima para todos os povos
e explorações remuneradoras para todos os capitais. O que convém – e o governo vai fazê-lo –
é iniciar o serviço e não mais abandoná-lo, embora nos custe avultados sacrifícios.
Já antes, em manifesto à Nação, a 15 de novembro de 1902, afirmava:
Quando se consumarem (refere-se aos melhoramentos projetados para a cidade), poderse-á dizer que a Capital libertou-se da maior dificuldade para o seu saneamento e o operário
bendirá o trabalho que lhe for proporcionado para fim de tanta utilidade...
•••
De volta dessa viagem a Portugal, onde minha avó fora tentar a cura da febre
amarela, a família deixou o centro da cidade, refugiando-se num subúrbio longínquo
para a época – o do Engenho de Dentro – , situado nos contra-fortes da serra dos
Pretos Forros, onde o clima era mais saudável e distante das pestilências da beira-mar.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Conheci, porém, meus avós maternos com mais nitidez somente muito mais
tarde, quando já se haviam radicado na cidade de Barra Mansa, no Estado do Rio de
Janeiro, para onde foram em circunstâncias de caráter bastante dramático, que
relatarei adiante.
Foi assim pois, nesse refúgio do Engenho de Dentro que se deu o encontro
das duas famílias, ambas vindas do sul da Europa como imigrantes, cujos detalhes
nunca pude apurar cabalmente, e que deveriam formar o tronco de que nós, os
Lemmes da segunda geração, nos originamos.
O novo aprendiz rapagão desempenado, que chegara ao Engenho de Dentro
fugindo aos bombardeios dos canhões de Floriano Peixoto, acabou por conquistar
as boas graças e a amizade do casmurro Adelino Paes, e a convivência das famílias
levou a aproximação com a filha – Maria do Nascimento – minha futura mãe.
O namoro travou-se no estilo da época, às escondidas, com encontros furtivos e bilhetinhos escamoteados, recebendo a clássica oposição da família: o rapaz
era um "carcamano", sem eira nem beira, sem grandes perspectivas de elevação
social. E a família da moça já sofrera muito com a decadência que a transladação
para o Brasil ocasionara. Houve, porém, amor, insistência e até surras, segundo
minha mãe contava, para fazer esquecer o estranho. Havia ainda a circunstância da
avó Josefina ter saúde precária, e a filha, incumbida de todo o trabalho pesado da
casa, iria fazer-lhe muita falta. Freqüentemente, nos contava ela, era posta fora da
cama pelo pai, de madrugada, com certa brutalidade, para enfrentar o tanque de
lavagem de roupa, a cozinha e todo o serviço doméstico. Mas, a tudo resistiram e
acabaram por receber o necessário consentimento. E o casamento realizou-se com
todo o aparato da época, até com casaca e cartola para o noivo, indumentária essa
que conheci muito tempo depois, pois a incluíamos em nossas brincadeiras de crianças, ainda no chalé da Rua Figueiredo.
Os noivos tinham então 23 e 16 anos, respectivamente, e estávamos em
junho de 1897, exatamente no dia 3.
Após a cerimônia, o casal foi, no mesmo dia, contava minha mãe, diretamente para o Méier, onde se instalou na casa já preparada de antemão, graças à
generosidade do padrinho João Afonso Ferreira. Estava situada exatamente na esquina da Rua Dias da Cruz com a antiga Rua Paraguai, hoje Cônego Tobias, e,
portanto, bem em frente à plataforma da "parada" do Méier da Estrada de Ferro
Central do Brasil, depois transformada em Estação do Méier, no próprio coração do
bairro, que apenas nascia.
Como de hábito nesse tempo, para as famílias do nosso nível social, a residência ficava nos fundos da casa, e, na frente, em alinhamento com a rua, localizava-se a loja do novo profissional, que assim ganhava autonomia e todas as responsabilidades de família e do trabalho.
Não foi porém muito feliz no novo negócio – uma barbearia de luxo – cujos
empregados, vindos de São Paulo (imaginem!), trabalhavam de casaca. As despesas
eram grandes e os lucros, parece, não apareciam na medida esperada. Já então, a
idéia de ir aos poucos mudando de profissão, com o aproveitamento dos conhecimentos adquiridos com o sogro, deve ter orientado as ambições de meu pai. O fato
é que, desde então, as navalhas e as tesouras foram aos poucos sendo substituídas
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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pelos boticões. E a influência dos amigos já referidos fez com que, aos poucos, meu
pai saísse da condição de "prático" para a conquista do almejado diploma de cirurgião-dentista.
O casal, porém, jamais deixou o bairro do Méier, a não ser eventualmente e
por pouco tempo, e nele permaneceu até o último dia de vida de cada um: ele, em
1946, e ela, em 1968.
Ali, naquele subúrbio, prosperaram, completaram e criaram uma numerosa
família – 16 partos com 12 filhos vivos, oito homens e quatro mulheres.
Assistiram ao desenvolvimento do bairro no qual cooperaram, e que conheceram ainda agreste e que, ao morrerem, era considerado a capital dos Subúrbios
da Central do Brasil, uma verdadeira cidade, com mais de 200 mil habitantes.
Meu pai, homem que se revelou de grande energia, dado o esforço que teve
que realizar por si próprio, para conseguir a ascensão social, de sua incultura inicial
até uma carreira de nível superior, com as agravantes dos tropeços que lhe causavam a origem estrangeira e as dificuldades da língua, tornou-se, naturalmente, um
temperamento autoritário, através do qual encobria uma grande afetividade, que
não conseguia expressar devidamente. Mal dissimulava, porém, sua bondade e seu
interesse pelos filhos e pela família. Atirava-se ao trabalho diário, desde a manhã
até as últimas horas da tarde ou as primeiras da noite. Emotivo, como todo o
meridional, sofria de ataques de enxaqueca, que hoje a herdei, vejo a sua origem
em distúrbios neurovegetativos. Daí a razão de seu mau humor e às vezes a
brusquidão no trato com minha mãe e conosco. Seu exemplo, seu trabalho, sua
energia, seu interesse pela coisa pública e pelos destinos da pátria de adoção, seu
espírito progressista e liberal, seu anticlericalismo, no sentido de não admitir qualquer manifestação de obscurantismo – tudo isso, foi um legado que nos transmitiu,
que nos marcou, sem dúvida de maneira positiva.
Não importa que em certo período da vida cedesse a impulsos difíceis de
julgar, mas não de entender, numa crise que não é incomum em homens que fizeram grandes esforços, com sacrifícios intensos e com enormes renúncias pessoais,
para construir uma situação de maior desafogo, os quais, em dada fase da vida,
cedem a ilusões de procurar uma recompensa afetiva, que julgam não poder encontrar na companheira de todas as lutas. E sem avaliar bem as conseqüências,
atiram-se a aventuras que acabam sem oferecer qualquer compensação e, ao contrário, como aconteceu, levaram-no a um fim bastante triste. Enfim, já disse o
próprio Cristo, quem, ao menos em pensamento, nunca pecou, que atire a primeira
pedra...
De qualquer forma, porém, chegou a ser pessoa muito conceituada e conhecida no Méier e em toda aquela zona dos subúrbios da Central do Brasil, onde era
conhecido por dr. Lemme. Foi amigo das figuras mais tradicionais do bairro, e nos
tempos de moço, ainda sem as amarguras da vida a pesar-lhe na alma, entregavase aos folguedos carnavalescos, freqüentava bailes e saraus, fantasiava-se, e, aos
domingos, reunia-se com os amigos em rodas de jogos familiares. Mais tarde cultivou amizades com as figuras dos mais destacados médicos, alguns dos quais legaram seus nomes às ruas tradicionais do bairro: um Dias da Cruz ou um Aristides
Caire.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Seu interesse pela educação fez com que procurasse proporcionar aos filhos
o máximo de estudos que seus recursos permitiram.
As divergências que nós, os irmãos Lemme quando já íamos adquirindo nossa personalidade, tivemos com ele, foram superficiais e normais, dadas a sua origem, educação e estilo de vida que foi levado a adotar. E não era muito mais do que
o esforço natural que os filhos devem fazer para escapar à tutela dos pais, especialmente os autoritários, pelas circunstâncias de vida e que ocasiona o chamado
"conflito de gerações" que se torna até indispensável para que se formem personalidades independentes.
Mas, passadas as crises, ele respeitava nossa situação e nossas aspirações,
cujos fundamentos ele próprio lançara. Creio mesmo que já na parte final de sua
vida, e em decadência acentuada, dadas as ilusões afetivas que alimentara e perdera, orgulhava-se de nós, de nossas carreiras e até mesmo de nossas idéias, um tanto
radicais. Lembro-me bem que, indo me visitar quando eu amargava nas prisões da
reação (1936-1937), não lamentou propriamente minha situação e parecia mesmo
aprovar inteiramente minha atitude de resistência às iniqüidades que os presos
políticos sofriam naquela época sombria de nossa história.
•••
Minha mãe, enérgica, como sempre a conheci, naquela azáfama ininterrupta,
a atender a tudo e a todos, numa família que aumentava a cada ano, dotada de
admirável bom senso, enfrentando galhardamente os humores nem sempre agradáveis de meu pai, não recuava mesmo no uso da "vara de marmelo", quando a
agitação daquela meia dúzia de capetas passava de limites suportáveis.
Foi uma devotada à família, ao marido, aos filhos, chegando mesmo a um
quase completo descuido pessoal, e deve ter sido essa uma das causas daquele
mergulho do quase velho Lemme na aventura completamente fora dos padrões que
poderiam ser imaginados para o tipo de família que constituíram.
Sem pieguices, equilibrava-se relativamente bem entre um marido autoritário e às vezes até violento, e uma filharada barulhenta, atendendo às duas partes,
sem encobrir possíveis faltas, mas também sem intransigências inúteis. Durante
muitos anos, quase sempre à espera de um próximo filho, acabou por perder a
saúde.
Sua amargura foi se acentuando quando sentia a reprovação por parte do
companheiro de tantos sacrifícios, a esse interminável suceder de uma descendência, já não mais desejada. E a realidade brutal do abandono do lar, derrotou-a
completamente. Minha irmã Palma teve que assumir a direção da casa e arcou com
todo o ônus da manutenção e criação dos irmãos restantes – a maioria – que se
viram assim desprotegidos de um lar organizado, ambiente em que vivera o grupo
dos primeiros quatro. A essa missão ela se atirou com a maior energia e firmeza,
tendo sacrificado para isso seus mais caros planos de vida pessoal.
Isso tudo, porém, não invalidou no doutor Lemme suas qualidades de profissional íntegro, sempre a procura das melhores técnicas para executar seus trabalhos. Uma de suas últimas realizações nesse sentido foi a construção de um edifício
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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especializado para a instalação dos consultórios dentários e oficina de trabalhos de
prótese, para si e para os filhos que iriam acompanhá-lo e suceder-lhe na profissão
que abraçara. E isso representava uma grande novidade para a época e um progresso para a localidade, pois a esse tempo os médicos e os dentistas, especialmente
nos subúrbios, ainda mantinham seus consultórios nas próprias residências e atendiam os clientes em suas casas, num verdadeiro trabalho de ambulantes, caracterizado pelo uso das "maletas pretas" típicas, onde conduziam o instrumental necessário para suas intervenções e tratamento.
Assim é que, um belo dia, foi surgindo na confluência das Ruas Dias da Cruz
e Silva Rabelo, uma estranha construção de forma trapezoidal, que se dividia numa
sala de espera, dois consultórios dentários e uma oficina de prótese dentária, além
de outras dependências.
Com a frente para a Rua Silva Rabelo, n° 11, ficava o prédio principal,
onde por mais de 50 anos residiu a família Lemme. Nela, depois de dramática
volta ao lar e longa e incipiente doença, falecia com 72 anos o dr. Antônio Lemme,
em 15 de abril de 1946, e muito tempo depois, a 13 de agosto de 1968, com 86
anos, extinguia-se a vida cheia de trabalhos, alegrias e desilusões de dona Maria
do Nascimento Lemme.
•••
A família Lemme foi assim, sem qualquer dúvida, uma das mais antigas a se
estabelecer no Méier, de onde nunca se afastou, podendo, sem favor ser considerada como uma das fundadoras e impulsionadoras do desenvolvimento da capital
dos Subúrbios da Central.
O terreno em que se situavam as construções que serviram por mais de 50
anos de residência a essa família, foi desapropriado pelo governo do antigo Estado
da Guanabara e nele construída uma pequena e bela pracinha. Nela ainda podem
ser apreciadas as árvores frutíferas plantadas com carinho e quase devoção pela
família Lemme, que, por nossa influência, foram conservadas no plano de arborização.
O novo logradouro deveria receber, como homenagem e por justiça, o nome do
chefe de nossa família "Praça Antônio Lemme". Mas, como sempre acontece, as autoridades estão alheias a essas circunstâncias histórico-sentimentais, e quase que a nova
praça recebia um nome sem significação de morador ou político com muito poucas
raízes na história local. Na oportunidade, cheguei a enviar aos jornais cariocas uma
carta sobre o problema, reivindicando os "direitos" da família Lemme sobre a denominação do recém-criado logradouro. Eis a nota, conforme publicação do jornal O Globo
de 2 de setembro de 1976, com alguns cortes feitos pela redação desse jornal:
NOME DE PRAÇA NO MÉIER
Em 1920, meu pai, Antônio Lemme, adquiriu o prédio e o terreno localizados na confluência das Ruas Dias da Cruz e Silva Rabelo, na parte mais central e valorizada do subúrbio do
Méier, hoje transformado numa verdadeira cidade.
O prédio fora construído por João Afonso Ferreira, amigo de minha família e pai do general-médico João Afonso de Souza Ferreira, ex-diretor do Serviço de Saúde do Exército e já
falecido.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Em 1956, o governo do então Distrito Federal desapropriou a área para a construção de
uma praça. Somente agora, em 1976, 20 anos depois, a desapropriação foi executada e os
herdeiros receberam apenas cerca de 1/5 do valor atual da propriedade, além de terem ficado
durante esses 20 anos sem poder dispor de seu patrimônio.
Outro problema:
A praça está sendo urbanizada (esperamos que ao menos as mangueiras e caramboleiras
plantadas e cuidadas durante muitos anos pelos proprietários sejam preservadas) e não se sabe
ainda a denominação que o novo logradouro receberá.
Parece-me entretanto que seria justo que consagrasse o nome de Afonso Ferreira, que
construiu o prédio. Ou o de Antônio Lemme, chefe da família tradicional do Méier, onde se
radicou em 1896, ampliou e fez novas construções no local, ali trabalhando, vivendo e morrendo, e cujos descendentes (12 filhos e muitos netos), depois de 56 anos de residência contínua,
tiveram que deixar seu lar, forçados pela desapropriação tão injustamente indenizada.
Nossas sugestões não foram, porém, levadas em consideração. O melhor que
se conseguiu foi perpetuar o nome, felizmente expressivo, do escritor Agripino
Grieco, que se radicara no Méier havia uns trinta anos, crítico literário de méritos
inegáveis, de temperamento impulsivo, mas também de ascendência italiana como
o velho Lemme.
Creio que serei bem compreendido pelos possíveis leitores destas Memórias se
abusar de mais uma transcrição para acentuar ainda mais todo o impacto que ainda
hoje me causa ao invocar aqueles anos vividos no casarão da Rua Silva Rabelo número 11. São trechos de um trabalho da professora Francisca Schettino Gomberg publicado num jornalzinho do bairro, sob o título "As mangueiras da praça". Escreve ela:
Sempre que passo pela praça Agripino Grieco (aquela pracinha do Méier, no início da Rua
Dias da Cruz) tenho que olhar para as mangueiras que existem lá. Quantas vezes passo, quantas
vezes olho: é infalível. E cismo enquanto ando. É que por elas, a cada hora, passam centenas de
pessoas, num interminável vai-e-vem, gente distraída, gente apressada, e essa gente nem se
apercebe da presença das mangueiras na praça. Mas eu não. Tenho sempre, para elas, um olhar
que é quase reverência, um olhar de respeito: respeito não só pelo que elas são (últimos vestígios do verde do nosso bairro) mas também, e principalmente, pela história que elas têm. Uma
história singela que ficou entre os membros de uma das mais antigas famílias do Méier, alguns
amigos deles e de uns poucos políticos. Se eu não conhecesse um pouquinho dessa história,
talvez passasse pela pracinha com a mesma indiferença com que todo mundo passa. Mas eu
conheço. Por isso, vejo-as com profunda admiração. Essas velhas mangueiras viram crescer as
crianças da família Lemme, os doze filhos de dona Maria do Nascimento Lemme e do dentista,
doutor Antônio Lemme. Em 1920, ela e seu marido foram morar numa casa enorme que ficava
na Rua Silva Rabelo n° 11. Lá encontraram algumas árvores no grande quintal; mas outras
foram plantadas, depois, por eles... O tempo foi passando. As crianças cresceram vendo, no diaa-dia, o carinho que dona Maria dedicava àquelas árvores e às plantas que transbordavam de
verde o quintal da casa... Aos oitenta e seis anos, dona Maria faleceu. Nessa época, corria na
Justiça o processo de desapropriação da casa. O antigo casarão, em pleno centro do Méier, já
não combinava com mais nada do que havia a sua volta. Durante nove anos, os filhos de dona
Maria lutaram duramente para que a casa não fosse demolida, pois sua mãe queria morrer ali.
Uma luta gloriosa que, infelizmente, terminou com a morte de dona Maria. Mas ela morreu ali,
rodeada pelos filhos e pelo verde que com tanto amor ela ajudara a crescer... Há meses atrás,
passei pela praça no momento em que um rapaz trepado numa das mangueiras, sacudia-lhe os
galhos fortes e cheios de mangas, para que estas caíssem. Embaixo, um grupo de moças, estudantes de um cursinho do Méier, numa correria alegre, recolhia as frutas que rolavam pelo
chão. Aí, sim; todos que passavam pela praça paravam para olhar. Fiquei engasgada de emoção.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Confesso, até que, naquele momento, senti vontade de bater palmas; uma vontade enorme de
aplaudir, com entusiasmo as mangueiras da praça – figuras principais de um show maravilhoso
que a natureza preparava para a comunidade do Méier... E a senhora viu, dona Maria, de onde
quer que esteja, o tamanho daquelas mangas?
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO III
DE MIM PRÓPRIO
O ano de 1904 é considerado por muitos historiadores como o verdadeiro marco divisório entre
os séculos 19 e 20, se é que os séculos são passíveis de
separações tão nítidas.
É, por exemplo, a opinião de Maurice Beaumont,
no volume XVIII da coleção Peuples et Civilisations,
quando observa: "Le 19 siècle n'est clos qu'en 1904,
que ouvre une nouvelle phase d'historie universelle".
Nesse ano, em abril, ocorre uma reviravolta na
balança de poderes na Europa, com o acordo firmado
entre as duas potências tradicionalmente inimigas – a
França e a Inglaterra – que formaram então o núcleo
da coalizão que deveria enfrentar, dez anos mais tarde,
a Alemanha unificada de Bismark. E assim iriam disputar a conquista dos mercados mundiais indispensáveis
à nova era que se abria para o grande desenvolvimento, que despontava sob a égide da ciência e da técnica.
Continua Beaumont:
L'Anglaterre renonce à son "splendide isolement': entre
la France et l'Allemagne, ele opte contre Aliemagne.
L'antagonisme anglo-allemand est désormais soudé à l'hostilité
francoallemande, et, logiquemente, leur convergence doit
aboutir à ún conflit. En ce sens, l'accord d'avril 1904 est bien
"le cheval de Troie" que porte la guerre
E adiante:
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Malgré les rivalités du siècle finissant l'Entente Cordiale se prépare; quand elie aboutit en
1904, on peut dire qu'une ère nouvelle commence...
A era das grandes guerras mundiais e das revoluções, das imensas transformações verificadas na vida econômica, política e social, em todos os quadrantes do
mundo.
•••
Também no Brasil esse ano não transcorreu sob o signo da tranqüilidade.
No alvorecer do século 20, a capital da República apresentava um panorama singular: ao
lado de belezas naturais inigualáveis e de mansões como o Palácio do Catete, construído em
1865, havia um amontoado de vielas, becos, cortiços e hospedarias; o lixo amontoava-se nas
calçadas; o abastecimento de água era insuficiente; inexistia rede de esgotos; doenças mortais
ameaçavam a população. Faltava muito, portanto, para que pudesse igualar-se às capitais européias ou mesmo à vizinha Buenos Aires. A febre amarela era endêmica. Introduzida no Brasil
provavelmente por um cargueiro norte-americano que aportara no Rio de Janeiro, só no ano de
1850 provocara a morte de 6.500 pessoas. Atacava de preferência no verão, deixando o inverno
para a varíola, que, em 1904, matou 3.566 cariocas. E ainda havia a cólera, a peste bubônica, o
tifo, a tuberculose. (De Saga, a grande história do Brasil, fascículo 69, p. 150. São Paulo: Abril
Cultural S/A Editora, 1981).
Em 1903 (escreve Gastão Pereira da Silva, do livro já citado), o novo presidente da República, Rodrigues Alves (1902-1906), afirma de público, em sua primeira mensagem ao Congresso Nacional:
Os defeitos da Capital afetam e perturbam todo o desenvolvimento nacional. A sua restauração no conceito do mundo será o início de uma vida nova, o incitamento para o trabalho nas
áreas extensíssimas de um país que tem terra para todas as culturas, clima para todos os povos
e explorações remuneradoras para todos os capitais. O que convém – e o governo vai fazê-lo é iniciar o serviço e não mais abandoná-lo, embora nos custe avultados sacrifícios.
E o presidente cumpre as promessas.
Enquanto Osvaldo Cruz combate os germes patogênicos, Pereira Passos, Paulo de Frontin,
Francisco Bicalho, Lauro Müller vestem a cidade. Os casebres ruem à força da dinamite e das
picaretas salvadoras. Surgem no lugar dos pântanos os primeiros jardins. Nas vielas estreitas e
imundas, as alamedas arborizadas. Nas ruas, compram-se ratos, por medida de profilaxia. Nas
residências, vacinam-se os que não querem ter varíola. Isola-se o doente de febre amarela.
Combate-se as águas estagnadas, destruindo-se as larvas dos culicídeos. Calafetam-se as caixas
d'água. Pelotões de guardas fazem o policiamento dos focos infectantes.
Mas, grandes resistências se levantaram contra as medidas, por vezes violentas, adotadas pela equipe saneadora que iria transformar o Rio de Janeiro numa
cidade moderna, habitável.
O "Bota-Abaixo", como era apelidado Pereira Passos, é taxado de louco furioso, de visionário, de monstro insensível, especialmente pelos comerciantes portugueses do centro da cidade, que perdiam suas casas, freqüentemente derrubadas
da noite para o dia, por descumprirem a intimação do governo, de abandoná-las.
62
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Paulo de Frontin traça e abre a avenida Central (depois avenida Rio Branco), sendo
vítima de ataques violentos. Acusava-se, entre outras coisas, de que a direção em
que se situava a nova via principal da cidade, de mar a mar, seria a causa de terríveis e permanentes resfriados para os que tivessem a infelicidade de por ela transitar... Osvaldo Cruz, principalmente, era "atingido com os maiores anátemas": no
mínimo – invasor desalmado dos lares, carrasco insensível dos doentes, inoculador
de venenos no corpo de pessoas desprevenidas...
A gota d'água foi, porém, a "lei da vacina obrigatória", exigida por Osvaldo
Cruz para completar sua obra de saneamento da cidade e que o Congresso aprova
em 31 de outubro de 1904, depois de longos e ásperos debates contra os que se
empenhavam em fazer do Rio de Janeiro uma cidade com alguns requisitos básicos
para a habitação do homem.
O povo, ainda descontente com a situação que vinha desde o governo
deflacionário de Campos Sales, e, de certa forma, atordoado por aquela indispensável balbúrdia causada pelas picaretas purificadoras e pelas medidas de saneamento, nem sempre bem explicadas ou bem entendidas, tornou-se presa fácil de
políticos ambiciosos e despeitados e de concepções retrógradas, como as que propagavam as correntes influenciadas pelo pensamento positivista, contra a vacina
obrigatória.
Vale a pena transcrever aqui um boletim atribuído aos adeptos do credo de
Augusto Comte e distribuído ao público antes de rebentar a insurreição de 1904.
Dizia assim:
Cidadãos! Um governo anti-republicano – mais que isso, um governo antipatriótico (sic),
levado pelos conselhos egoísticos de charlatães sem clínica, pretende fazer a Pátria retrogradar
para além do tempo das feitorias, transformando o povo num viveiro de cobaias. Para realizar
esse plano diabólico, ele recorreu ao auxílio de advogados sem causas ou, indiretamente, à
custa do Tesouro Nacional, a essas indignas defesas a esses vergonhosos aplausos com que se
pretende confundir a opinião nacional! Cidadãos! O atual regulamento de higiene, congnominado
"Código de Torturas", é uma agressão à dignidade humana, é um ataque à probidade médica, é
uma violação insólita de vossas câmaras conjugais, é um desacato grosseiro aos nobres melindres de vossas esposas, finalmente um bote selvagem aos santos aposentos de vossas filhas
púberes.
Repare-se na intriga soez da referência à violação dos aposentos de esposas
e filhas, pelos "mata-mosquitos" e "caça-ratos" de Osvaldo Cruz, querendo assim
combater as indispensáveis inspeções domiciliares, sem as quais as medidas, tornadas compulsórias, seriam inócuas ou muito pouco eficientes, práticas essas hoje
rotineiras nos serviços de saúde pública preventiva.
Nesse ambiente de tensão, alimentada por essas acusações aleivosas e envenenadas por todos esses interesses contrariados, aliados à mentalidade tacanha da
época, à ignorância e à má fé, desencadeia-se a chamada "Rebelião de Novembro
de 1904", especialmente contra a "lei da vacina obrigatória", à qual José Maria Belo
assim se refere em sua História da República:
Reaparecia o velho sonho dos primórdios da República, de uma ditadura militar de essência
positivista, capaz de salvar a pureza dos princípios republicanos; o senador Lauro Sodré, militar
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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e político, que se distinguia por sua atitude contra o golpe de estado de Deodoro da Fonseca, era
o chefe da Revolução. Osvaldo Cruz, na sinceridade de suas convicções, não compreendia bem o
assalto das desencadeadas paixões políticas. Quis renunciar para evitar dificuldades maiores
para o governo. Fortalecido, todavia, pela confiança e solidariedade de Rodrigues Alves, resiste
à áspera investida. Na tarde de 10 de novembro de 1904 começaram as arruaças. Recrudesciam
no dia imediato; multiplicavam-se por toda a zona central da cidade os clamores da desordem,
os motins e os ataques diretos às forças policiais. Bandos de amotinados tentam marchar contra
o palácio da presidência da República. À noite, intensifica-se a revolta: eram destruídos os
combustores de gás da iluminação pública. Aqui, além, erguiam-se barricadas; delas, das janelas
e das esquinas atiravam contra a polícia, como nas insurreições clássicas de Paris, na época de
Luís Felipe e de Carlos X. Atropelava-se o trânsito. Era de pânico o ambiente.
Na madrugada de 15 de novembro já o movimento havia sido dominado (escreve Gastão
Pereira da Silva). Terminou assim a chamada Revolução de Novembro, vencendo a República
um dos transes mais difíceis e perigosos que até então tinha atravessado.
Raimundo A. de Athayde dá-nos um depoimento muito interessante sobre
esses lamentáveis acontecimentos de novembro de 1904. São as impressões de Olavo
Bilac:
[...] depois de percorrer todos os recantos da Capital, visitando aqueles restos denunciadores dos
crimes cometidos contra o progresso e a civilização, [assim se expressava o poeta] eu perguntava a mim mesmo, embrutecido pelo espanto, que mágoa, que ressentimento, que receio ou que
despeito pudera levar esta gente a um ato de tão completa insensatez, obrigando o Brasil a
perder em um dia o que ganhara em quinze anos, revoltando-se contra um governo que só quer
dar luz, avenidas, saúde, árvores, limpeza, dignidade ao povo, dando trabalho aos que querem
trabalhar provendo os lares de pão, preparando a grandeza de uma pátria que só ainda não é
grande e bela por ser suja e despovoada.
Confrange-se a alma do poeta ante o espetáculo triste que presenciava. Em
meio às ruínas, da sujeira e vergonha que aquela torrente deixara exclama indignado:
Semana maldita, some-te, mergulha no grande abismo insondável do tempo, onde há esquecimento para tudo – para as ambições, para a ignorância e até para a maldade consciente
(Pereira Passos, o reformador do Rio de Janeiro).
Entretanto, a repressão violenta não se fez esperar. A 16 de novembro, o
governo decretou estado de sítio lançando suas tropas contra bairros pobres, conforme em A política geral do Brasil de José Maria dos Santos:
Sem direito a qualquer defesa, sem a mínima apuração regular de responsabilidades, os
populares suspeitos de participação nos motins daqueles dias começaram a ser recolhidos em
grandes batidas policiais. Não se fazia distinção de sexos nem de idades. Bastava ser desocupado
ou maltrapilho e não provar residência habitual, para ser culpado. Conduzidos para bordo de
um paquete do Lóide Brasileiro, em cujos porões já se encontravam a ferros e no regime da
chibata os prisioneiros (do bairro) da Saúde, todos eles foram sumariamente expedidos para o
Acre.
•••
Nessa "semana maldita", na apóstrofe indignada do poeta, em pleno desenvolvimento da revolta popular, num sábado, dia 12 de novembro de 1904, mais ou
64
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
menos às 18 horas, talvez apressado pelas circunstâncias e emoções do momento,
nascia eu, numa pequena casa de uma rua insignificante – a Rua Augusta n° 4 – na
parte alta do lado esquerdo da Estação do Méier... O signo (está muito em moda
sua utilização) era o de "escorpião", contraditório, com males e bens terríveis...
Nunca pude localizar essa casa modesta, creio mesmo que desapareceu
destruída por algum plano de urbanização local. Tenho vaga idéia de que ficava
na parte alta da Rua Joaquim Méier, onde mais tarde nos instalamos no casarão
do n° 18. Nem sei quais as razões que nos levaram a residir nela. Era eu o terceiro
dos filhos vivos da família, pois o primeiro morrera ao nascer. Acima de mim
estavam o Virgílio (1901) e a Palma (1903). Com o Antônio, o "Tonico", que veio
em seguida (1906), completou-se o primeiro grupo dos quatro, que foram companheiros de brincadeiras e brigas, educação e estudos, num lar já em ascensão
social e relativamente bem organizado.
Depois vieram, numa seqüência quase anual, mais 12, dos quais apenas não
vingaram quatro mortos prematuramente, e já num ambiente bastante diferente,
conforme ficou relatado.
Dizem que nasci gordo, sadio, e, segundo contava minha mãe, gracejando,
desde muito cedo já comia espaguete...
Não acredito em predestinação (ou acredito?), mas o fato de ter nascido sob
o signo de uma rebelião popular que se alastrava pelas ruas da minha cidade natal,
deve ter acentuado em mim a condição em que viveram os homens de minha geração, num mundo em conflito, em transição, para alguma coisa que não se sabe
ainda ao certo o que possa ser.
Sem exagero, começava o mundo a viver uma daquelas épocas de convulsão social, que a história da humanidade conheceu anteriormente com a
queda de Roma e o advento do Cristianismo; ou com a passagem da Idade
Média para a era capitalista. E assim, os que não nasceram ou foram educados
para passar "a vida em brancas nuvens", como dizia o poeta, tiveram que fazer
opções, às vezes radicais, ao menos nos anos da juventude. E essas opções,
naturalmente, não permitiram que levassem uma existência tranqüila, com a
segurança a que se tinham acostumado as gerações anteriores, que gozaram
daquele largo período de paz e prosperidade, de expansão vitoriosa do regime
que, nas asas da ciência e da técnica, estendia-se a todo o mundo conhecido de
então. Mas, as ilusões do progresso contínuo e linear frustraram-se, e assim
sobrevém o período dos conflitos violentos, das matanças jamais imaginadas
entre povos, das guerras mundiais e das revoluções, dos antagonismos radicais
nas concepções de vida, nas filosofias, nas artes e nas ciências, na busca frenética de um mundo mais humano, que o próprio homem vinha desumanizando.
As doutrinas salvadoras, os ditadores carismáticos, mas também as grandes conquistas dos povos em suas lutas por melhores condições de vida, tudo isso dividia os homens, uns querendo fazer retroceder a marcha da história, outros
tentando manter-se em seus egoísmos, no gozo de suas riquezas e privilégios,
outros, enfim, procurando, por todos os meios, lícitos ou ilícitos, quase sempre
com grandes sacrifícios pessoais, novos caminhos em busca de dias melhores.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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É legítimo, pois, e antes de tudo um ato de coragem, que alguém afirme:
Apesar dos pesares, eu ainda acredito nas utopias sociais de uma sociedade sem classes. Mas
não encontro, no mundo de hoje, um país onde eu dissesse: Ah! nesse eu gostaria de viver! Aliás,
acho que essa é uma grande tragédia da minha geração. Todos os projetos testados fracassaram.
Em qualquer continente, de qualquer bandeira, com qualquer ideologia. Nós não temos aqueles
modelos que tínhamos na nossa juventude, aquelas esperanças. Fracassaram. As bandeiras estão esfarrapadas. Então só restam as utopias. Eu continuo fiel a elas. Mas entre essas utopias
tem que estar a liberdade incluída. E liberdade significa absorver as diferenças. Se a diferença
não for admitida, então é realmente monopólio do saber, ditadura de um tipo de conhecimento. (Do cineasta Cacá Diegues, em entrevista ao Jornal do Brasil, em 3 de setembro de 1978).
A esses "filhos do século" devem ser permitidos (ou, pelo menos, compreendidos) todos os caminhos ou descaminhos que trilharem e, por certo, não assistirão
ao desfecho final desses verdadeiros cataclismas que se abateram sobre a Terra:
econômicos, políticos, sociais, espirituais, morais..., se é que haverá desfecho...
Mas, mesmo agarrados às suas utopias, não poderão dizer que não viveram
num dos mais empolgantes momentos da história da humanidade.
•••
Com a saída do chalé da Rua Figueiredo, voltávamos, definitivamente, à
parte considerada nobre do bairro: aquela de que a Rua Dias da Cruz constituía a
artéria principal. Mudáramos para o casarão da Rua Joaquim Méier n° 18. Essa rua
começava na Dias da Cruz, quase em frente à cancela que dava passagem, por
sobre o leito da estrada de ferro, para o lado oposto, na Rua Arquias Cordeiro. Por
ela passavam os bondinhos puxados e burros, que ainda conheci. A Rua Joaquim
Méier subia em ladeira bastante acentuada, que se cobria de lama barrenta nos
dias de chuva: o calçamento só veio muito mais tarde. Na esquina com a Rua Dias
da Cruz, havia um restaurante ou "Casa de Pasto", como se denominava então, de
propriedade de um português, nosso amigo, e onde aos domingos, para o ajantarado,
íamos buscar litros de vinho verde gelado, recebido diretamente de Portugal e
vendido a granel, tirado diretamente das torneiras dos próprios tonéis.
O casarão, construído em terreno que se estendia até a rua paralela seguinte – a Rua Paraguai (hoje Cônego Tobias) – , ficava ao nível da rua na parte da
frente, mas, com o declive do terreno, formava-se para os fundos um porão habitável. Desde logo, com seu espírito progressista, meu pai fez construir uma sala e um
quarto à frente da casa, para servirem à instalação do gabinete dentário e da sala
de espera, para a clientela que se fazia promissora... Na janela do consultório pintada num quadro de vidro fosco, a inscrição consagradora, já referida: ANTONIO
LEMME, CIRURGIÃO-DENTISTA.
Com o aumento da família, novas ampliações foram sendo feitas no prédio,
inclusive uma grande sala de jantar, nos fundos, com saída para uma larga varanda
que se estendia até quase a frente da casa.
Nesse ambiente passei praticamente o final dos anos da infância e todos os
da adolescência, e nele se decidiu o meu destino profissional.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Nós, os rapazes, dormíamos nos quartos ao rés do chão, no porão, que se
abriam para um grande salão, onde estudávamos e passávamos as horas de lazer.
Nele fizemos funcionar, mais tarde, um jornalzinho, O Cairú, em homenagem ao
nome da escola em que estudávamos, composta letra a letra por meio de carimbos de
borracha. Não foi além do segundo número, mas através dele fizemos as primeiras
incursões no domínio das letras. Essa atividade empolgou os três irmãos Lemme durante algum tempo e os levou a se exercitarem na redação e na apreciação de leituras, das quais selecionavam trechos que mais os agradava ou impressionava. Lembrome bem que entre as transcrições incluímos a célebre diatribe de Rui Barbosa sobre o
jogo: "diátese cancerosa", etc., etc., etc. Éramos inocentes e moralistas...
Nesse porão, nos quartos mais ou menos lúgubres, senti os maiores medos
de minha vida, que procurava esconder dos irmãos e dos adultos, pois, de acordo
com a idade, já era exigida alguma afirmação de coragem... Em noite de insônia,
um enorme alívio me acalmava quando a luz da madrugada começava a penetrar
através dos vidros das pequenas janelas que davam para um corredor lateral, por
onde se podia atingir a rua, mas que estava sempre vedado por um portão de ferro.
Certa noite, estando o prédio em meio de uma de suas remodelações, um
ladrão penetrou no andar superior, naturalmente atraído pelos valores existentes
no consultório dentário de meu pai. Lembro-me, ainda hoje, dos passos furtivos do
intruso no assoalho, que me enchiam de terror, pois roubo domiciliar, naqueles
tempos, era coisa rara... Por causa das obras, estávamos todos dormindo no porão,
e meu pai, acordando, muniu-se de um pedaço de pau à guisa de porrete, e saiu
pelos fundos para surpreender o incômodo visitante, mas este já tinha escapado.
Este porão, de recordações dramáticas, foi mais tarde cedido, como moradia, a uma das irmãs de minha mãe – a tia Deolinda – que passava um período de
dificuldades, com alguns filhos e o marido, operário-ferreiro com parco salário
trabalhando na conhecida Fundição Indígena, localizada no centro da cidade, à
Rua Camerino. O contato mais íntimo com a família dessa minha tia, além do interesse tradicional pelas primas, deixou-me recordação muito viva.
Entre outras novidades, travamos relações com um daqueles gramofones
usados na época, no início da reprodução da música por meio de discos, e no qual,
com aquela voz fanhosa característica, ouvíamos encantados as canções em voga,
anunciadas no início do disco, "fabricados pela casa Edison do Rio de Janeiro..."
Aí também, creio que adquirida em leilão que meu pai costumava freqüentar para a compra de móveis e utensílios domésticos, fomos empolgados pelas revelações de uma máquina de cinema rudimentar, na qual repetíamos inúmeras
vezes o mesmo pequeno filme, com o mesmo encantamento.
Mais tarde, foi esse porão alugado a outras pessoas, entre elas às irmãs
Laura e Leonor Monteiro, funcionárias da secretaria da antiga Escola Normal do
Rio de Janeiro.
Ainda ligada a esse período do porão, lembro-me bem, pela impressão profunda que nos causou, uma empregada doméstica esquizofrênica (concluo hoje,
pelo comportamento que apresentava). Suas manifestações de agressividade durante o dia e os gritos durante a noite enchiam-nos de pavor. Com muita dificuldade conseguimos nos livrar da infeliz criatura, internando-a num sanatório.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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No casarão da Rua Joaquim Méier, sofremos também todas as doenças comuns da infância: o sarampo, a catapora, a caxumba, a coqueluche... A medicação
era na base de homeopatia, que meu pai adotara ao se converter ao espiritismo.
Mas, para a coqueluche, conforme era aconselhado, fazíamos passeios pela madrugada às proximidades do gasômetro, pois a inalação do gás de iluminação, não sei
com que fundamento, era recomendada para o alívio dos acessos violentos de tosse. Íamos também ao Alto da Boa Vista, respirar pela manhã o ar puro e suave, num
dos melhores passeios que o Rio de Janeiro nos proporcionava, àquele tempo feito
nos bondes elétricos. Infelizmente, administradores "progressistas" ou "agitados",
mais tarde privaram a cidade desse encanto turístico.
Poucas relações mantínhamos por essa época. As mais íntimas eram, sem
dúvida, com a família Tavares, a que já nos referimos.
Mais tarde fizemos boas relações com a família Bellucci, italiana, moradora
na Estação do Riachuelo e cujo filho – André – era nosso colega de estudos. Apreciador de música, especialmente do "bel-canto" italiano, com ele nos iniciamos no
teatro de ópera e de opereta, o que não fora feito por meu pai, apesar de conhecer
e apreciar esse tipo de música, cujas canções mais célebres costumava trautear na
língua natal. E uma das irmãs do André Bellucci, a Marianina, loura e cheia de
corpo, me atraía particularmente, chegando mesmo a se cogitar que dessa apreciação poderia sair casamento... Não saiu. Mas mantivemos sempre boas relações de
amizade com a família.
Pouco depois, o cinema entrava triunfante e irresistível em nossas vidas de
adolescentes. Primeiro foram os filmes italianos e alguns alemães, com suas estrelas que produziam aquele tremendo impacto em nossos sentidos e corações: as
italianas Francesca Bertini e Pina Menicheli, a alemã Theda Bara... Acompanhávamos emocionados o desempenho dessas beldades, sonhando nas salas escurecidas e
nos agitando nas noites indormidas. Os filmes em série eram seguidos com assiduidade exemplar, e nossa vida, fora dos estudos, era completada com os comentários,
as apreciações, as preferências pelos filmes disputados e discutidos com ânimo
fervoroso. Depois, começou a era do filme norte-americano, com suas grandes vedetes e galãs inolvidáveis: Mary Pickford, Mae Murray, Vilma Banki, Norma Talmadge,
John Gilbert, Rodolfo Valentino, a misteriosa Greta Garbo, o genial Chaplin. Mais
tarde, Norma Sharer, Joan Crawford e tantos outros. Os westerns, em seguida,
encheram toda uma época, impondo-nos hábitos e maneirismo. Mas era o sexappel, o erotismo, já então explorado em todas as formas na apresentação dessas
divas que produziam em nós, adolescentes, impressões devastadoras...
O cinema, sem dúvida, modelou toda uma época, a que ninguém escapou,
invadindo com sua influência os mais longínquos lugarejos do País, levando seus
modismos, o estilo de vida, especialmente norte-americano, e, se provocou incentivos para se viver melhor, realizou uma obra tenaz de desnacionalização, de menosprezo pelas nossas mais caras e apreciáveis tradições.
Impacto maior, creio eu, só a televisão está produzindo agora.
Mas, a grande festa nacional, que nos empolgava a todos, crianças, jovens e
adultos, era, sem dúvida, o Carnaval. E seu ambiente era a rua, seu protagonista, o
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
povo – o povo mesmo –, numa comunhão e confraternização, numa mistura de
classes impossível de acontecer em quaisquer outras ocasiões.
Desde o início do ano começavam "as batalhas de confetes", precursoras e
estimuladoras do chamado "tríduo de Momo". Algumas se tornaram célebres, como
as do Boulevard 28 de setembro e a da Rua Dona Zulmira, no Maracanã, para onde
me deslocava sozinho, em companhia dos irmãos, colegas de escola ou vizinhos
amigos. Havia uma emulação entre essas batalhas para ver qual atraía maior público e apresentava a melhor decoração e maior animação, "empolgação", como se diz
hoje.
Eneida em sua História do carnaval carioca registra: "As batalhas de confete
sucedem-se em várias ruas. Em todos os lugares se brinca o carnaval: nos bondes,
no mar, nas avenidas e praças."
Naqueles dias quentes do verão carioca e de férias escolares, ao cair da
tarde, as duas ruas principais do bairro, dos dois lados da Estrada de Ferro, iam-se
enchendo de mascarados, de grupos de palhaços, pierrôs e colombinas, diabinhos,
pastoras, os "blocos de sujos", a entoar as canções prediletas, empunhando ventarolas
e serpentinas, reco-recos, e, mais tarde, enchendo o ambiente daquele cheiro característico e agradável do éter perfumado dos lança-perfumes. Aos poucos, essas
ruas tornavam-se praticamente intransitáveis, com os populares de todos os níveis
sociais em completa confraternização, em idas e vindas incessantes, ou sentados
em cadeiras, nas calçadas, em frente às residências ou às casas comerciais, trocando
"trotes", ditos jocosos, disfarces na voz, demonstrações de habilidades dos mascarados, com as vestimentas mais extravagantes e repetindo o refrão: "sabe com
quem está falando?"... Na descrição dessa loucura coletiva estou falando um pouco
de mim próprio, pois todas essas extravagâncias produziam profunda impressão no
adolescente introvertido que eu era, e os disfarces dos mascarados, que não conseguíamos reconhecer e que revelavam, às vezes, conhecimento de certos aspectos
particulares de nossas vidas, que desejávamos que não fossem conhecidas, causavam-me forte impacto emocional.
Depois vieram os "corsos" de automóveis, em filas contínuas, entrelaçados
de serpentinas, que eram atiradas dos carros, de uns para os outros, entretecendose em emaranhados coloridos, onde as meninas do bairro apareciam sentadas nas
capotas em atitudes mais livres e provocantes, rostos pintados, pernas à mostra,
tudo isso servindo de pretexto para aproximações que a vida comum não encorajava: namoros, apertões, princípios de romances, que às vezes se prolongavam em
paixões juvenis avassaladoras. Era assim uma completa euforia, uma imensa catarse
coletiva que endoidecia toda aquela multidão, que esquecia, durante os três dias
frenéticos, todas as dificuldades e frustrações de um ano inteiro. Pessoas das mais
pacatas e responsáveis, de hábitos morigerados, eram surpreendidas nas atitudes
mais insólitas, num ambiente de tolerâncias recíprocas.
A esse tempo ainda não tinham projeção as escolas de samba, nem os grandes bailes dos clubes: o carnaval era realmente a grande festa popular, cujos atos
principais, jocosos ou dramáticos, se desenrolavam exclusivamente nas ruas e nas
praças. Os bondes elétricos apinhados, com gente dependurada por todos os lados
e até grimpados no alto do teto dos veículos, faziam o desespero dos condutores,
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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quase todos portugueses, que insistiam em cumprir suas obrigações na cobrança
das passagens. Mais tarde chegou, o tempo das batalhas de confetes no interior
desses veículos, o transporte popular e tradicional da cidade, tão desastradamente
suprimido da vida do carioca. "Em 1926 – diz Eneida no seu livro citado – aparecem
os banhos de mar a fantasia, e, em 1929, tornam-se célebres as batalhas em bondes: São Januário, São Cristóvão. Durante muitos anos, os passageiros do bonde de
Fábrica, que saía do ponto às 7 horas e 15 minutos, realizavam durante o Carnaval,
renhidas batalhas de serpentinas e confetes."
No terceiro dia, era a descida para o centro da cidade para assistir ao desfile
dos carros alegóricos e de crítica das grandes sociedades carnavalescas: Os Tenentes do Diabo, Os Fenianos e os Democráticos, que tinham partidários tão fervorosos
e intransigentes quanto hoje os grandes clubes de futebol, Disputavam o esplendor
das concepções, das luzes, de mecânica e da crítica. Os cumprimentos, meneios
eróticos e os beijos jogados para a multidão, que se comprimia nas principais ruas
e avenidas do centro da cidade, pelas mulheres semidespidas, que se encarapitavam
no alto daquelas geringonças, puxadas a burros, constituíam um dos maiores atrativos desse final da grande festa. As meias palavras surpreendidas nas conversas
entre adultos, deixavam os adolescentes curiosos e incendiados pelas referências
àquelas beldades de seios e coxas à mostra e que, sussurravam, seriam recrutadas
nos melhores prostíbulos da cidade...
Nos dias que se seguiam, era um desfilar interminável de comentários, discussões, disputas entre partidários dos vários clubes e sociedades, relatos dos casos
e aventuras vividas naqueles três dias de loucuras individuais e coletivas.
Esses casos, verdadeiros ou exagerados, causavam tremendo impacto na sensibilidade e na curiosidade, especialmente dos adolescentes, em questão fundamental
em que faziam sua iniciação, constituindo o que se denominava a "licenciosidade" do
carnaval:
[...] gente nua, principalmente mulheres, beijos, abraços, bêbados, carnavalescos caídos em tanta farra, isto está em desenhos, caricaturas, retratos de várias épocas [...] Seria enfadonho fazer
um levantamento das licenciosidades do carnaval carioca através de sua vida. Jamais foi possível separar Momo dos bacanais. Excessos sempre existiram. Sempre houve muitos nus e muitos
desregramentos. Momo é um deus essencialmente desvairado, sexual, amante do álcool e da
carne. Como condená-lo?
As palavras são ainda da saudosa Eneida.
Tudo isso agitava profundamente o menino emotivo, encabulado que eu
era, em cujo interior o sexo já explodia em manifestações irreprimíveis. Poucas
aventuras reais, é certo, teria para contar dessa época, em que mais apreciava e
absorvia com avidez toda essa expansão desenfreada de corpos, de sexo, do que
propriamente participava, e isso, por causa da timidez, o que não deixava de ser um
mal. O ambiente de casa era aparentemente austero nesse particular, aparentemente digo eu, pois num casal de origem européia meridional, como era o de meus
pais, o sexo não poderia deixar de ser impositivo e a prova era o estado de gravidez
quase que permanente de minha mãe, apesar de as últimas já não serem nada bemvindas... Em minha educação sexual, essa aparente austeridade dos familiares não
foi nada favorável: desvios poderiam ter sido evitados se tivesse recebido a essa
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
altura da vida uma palavra esclarecedora. A educação sexual é necessária: quando
e por quem deve ser feita é que é o problema, mas que não é insolúvel.
Assim, a imaginação e a fantasia agiam intensamente, na excitação dos
sentidos, que despertavam imperiosos, à vista de tanta liberdade, de tantas promessas, de tantas provocações. Nesse sentido, ficou-me gravada desse período de
loucuras coletivas a descrição pormenorizada feita a nós por um colega de meu
irmão mais velho, de cenas do defloramento de duas irmãs, já não muito jovens,
inteiramente perturbadas por aquela magia demoníaca da grande festa do rei da
expansão da carne. Depois, haveria as contrições, as restrições e os arrependimentos na Quarta-Feira de Cinzas, na Quaresma, no resto do ano todo...
Mas, o carnaval tinha outro aspecto que se perdeu completamente: era a
oportunidade para a crítica política, livre, do povo, que se expandia em desabafos
contra o governo, as autoridades, as medidas impopulares, expressas nas canções e
nos discursos feitos do alto dos carros das sociedades carnavalescas.
Quem não se lembra do Pelo telefone, de Donga, aparecido em 1917? E do
Abre alas, de Chiquinha Gonzaga, da Urucubaca na careca do Dudu (o Marechal
Hermes, presidente da República), do Ai! seu mé (do presidente Bernardes), e de
tantas outras explosões populares sobre ocorrências políticas, sociais ou administrativas, da Cidade ou do País? Ainda não tínhamos chegado à época das repressões, da negação total da liberdade, da imposição do "respeito" à autoridade, quase
sempre não merecedora dele; ainda se dava ao povo o direito sagrado de discordar,
de criticar os que por ele eram escolhidos para governá-lo, pois o poder teoricamente, emanava dele – o povo – e em seu nome deveria ser exercido.
Sobre a repressão, o grande problema do nosso tempo, bom insistir, já em
1909, a Gazeta de Notícias chamava Alfredo Pinto, chefe de Polícia, de "empreiteiro de lágrimas". Isso aparecia em manchete, enquanto o texto da notícia dizia: "o
que se vê com as proibições é um sintoma grave – é mais restrição à liberdade
pública." E ainda (de Eneida no livro citado):
Na monarquia havia muito mais liberdade para o Carnaval: polícia e governo não proibiam
críticas nem máscaras que ridicularizavam deputados e senadores e até a própria pessoa do
Chefe do Estado. Depois da República, se foi restringindo esse direito de fazer graça à custa dos
homens públicos, a política foi se requintando de severidade, cada ano criando nova restrição,
cada ano aumentando as exigências.
E que dizer dos dias de hoje, quando o direito de crítica foi quase que totalmente anulado pelos nossos pretensiosos e quase sempre incompetentes governantes,
que se julgam intocáveis?
•••
Os grandes acontecimentos dessa época já impressionavam vivamente o
menino adolescente. A Campanha Civilista, por exemplo, tendo à frente a figura
popular de Rui Barbosa, o "Coco da Bahia", que conheci mais tarde pessoalmente,
em sua campanha eleitoral, discursando do alto de um palanque armado no Largo
de São Francisco e também no Senado – ali, na Praça da República, onde se acha
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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atualmente a Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro e
cujas sessões assisti, muitas vezes, no tempo de estudante. A eclosão da Primeira
Guerra Mundial e mesmo a Revolução Russa, que tão profundas transformações
deveriam trazer para o mundo, não causaram, entretanto, impacto proporcional à
sua importância, talvez porque eu já ia penetrando nos tempos de minha "revolução interna", que não deixava muita margem para as grandes preocupações de
caráter exterior, apesar da magnitude delas. Não quero dizer com isso que não
tivessem chegado até nós as repercussões e os horrores da primeira carnificina
mundial, que marcou, sem dúvida o fim de uma época de euforia e despreocupação
e fez o mundo penetrar na era das guerras e revoluções, das grandes transformações econômicas, políticas e sociais, que continuam até hoje, e cujo desfecho final
ainda sequer se vislumbra.
Tínhamos, por essa época, acesso a revistas estrangeiras e também à Eu Sei
Tudo nacional, e assim ficaram bem gravadas em minha memória aquelas visões
apocalípticas da guerra de trincheiras, com todos os seus horrores, que li mais
tarde, retratada em quadros inesquecíveis, no Nada de novo na frente ocidental, a
obra clássica de Erich Maria Remarque.
Eis uma dessas evocações, quando a literatura ultrapassa a realidade:
De repente Kammerich gemeu e começou a estertorar.
Dei um salto para o corredor, zonzo, e dei em perguntar alto:
– Onde está o médico? Onde está o médico?
Assim que se me deparou um homem com um avental branco, tratei de agarrá-lo:
– Venha depressa, Franz Kammerich está morrendo.
Ele desvencilhou-me e perguntou a um enfermeiro que se aproximava:
– De que se trata?
O outro respondeu:
– Leito 26. Terço superior da coxa amputado.
O médico esbraveja:
– Como posso saber quem seja se hoje já amputei cinco pernas? Afasta-me do caminho e
diz ao enfermeiro: - Vá ver! e corre para a sala de cirurgia.
Sinto frêmitos de raiva, enquanto acompanho o enfermeiro. Este me olha de viés e explica:
– Uma operação depois de outra, desde as cinco horas da manhã... Horrível!... Quer saber?
Hoje já morreram dezesseis. Seu amigo é o décimo sétimo. Na certa a conta será arredondada
para vinte...
Sinto-me desfalecer; já agora não posso mais. Enraivecer-me para quê? Que adianta? Ah!
Se eu pudesse me atirar no chão e não levantar mais!
Eis-nos diante do leito de Kammerich. Ele está morto e tem o rosto ainda molhado de
lágrimas e as pálpebras um pouco abertas; seus olhos têm a cor amarelenta de crosta de calos.
Não só Remarque, mas também Hemingway, e tantos outros, deixaram quadros trágicos dessa primeira hecatombe, que seria apenas um prelúdio de mais
vastas carnificinas.
Falava-se, entretanto, aqui do nosso lado, dos "aliados", sobre as "atrocidades alemãs": freiras estupradas, mulheres de seios decepados, crianças de braços
cortados e, até mesmo, do canibalismo dos "boches" (os alemães).
Entre nós, observa Pedro Calmon, em sua História social do Brasil,
[...] simpatias pelos aliados entroncavam-se em múltiplos interesses morais e econômicos. A
invasão da Bélgica, a eminente derrota dos franceses, que evitou Joffre, em La Mame, a aliança
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
anglo-italiana, a propaganda aliadófila; recebida com entusiasmo pelos meios intelectuais, como
tudo o que nos vem da França, prepararam o terreno para a definição americana. A população
era cada vez mais aliadófila. A destruição de navios brasileiros em águas européias valia como
um reiterado ato de hostilidade. Em 25 de outubro (1917), dirigiu-se o presidente ao Congresso
Nacional comunicando o torpedeamento do vapor "Macau", e pedindo o reconhecimento do
"estado de guerra" que foi assinado no dia seguinte. A guerra européia, que desfigurou o mapa
político do Universo, não chegou a estas plagas em forma de uma calamidade. Repercutiu como
uma convocação dramática de energias produtivas. Revestiu-se do caráter de uma corrida às
fontes de matérias-primas.
Paradoxalmente, todo esse horror que se desencadeava sobre o mundo, foi
um fator decisivo para o início do nosso desenvolvimento econômico, pois, privados
da produção européia e norte-americana, que nos fornecia quase tudo, tivemos que
improvisar a nossa indústria de bens de consumo e vender por bons preços nossas
matérias-primas abundantes. Começou a era da "substituição das importações"...
Sem poder avaliar, muito bem, é claro, todos esses aspectos do grave conflito entre as grandes potências mundiais pela redivisão do planeta pela conquista de
zonas de influência e de mercados – a grande época do imperialismo – lembro-me,
porém, perfeitamente, de toda essa movimentação e em seguida de suas repercussões, especialmente da propaganda do governo de Wenceslau Braz, com seus cartazes de "Parcimônia nos gastos", que eram espalhados por todo o País.
Não poderíamos vislumbrar, porém, que essa guerra de rastejos, de arame
farpado, de canhoneios ritmados, de bombardeios incipientes, onde a rainha das
armas era a metralhadora, seria apenas o prelúdio dos campos de concentração, do
arrasamento das cidades pelos bombardeios concentrados, para desembocar, por
fim, no horror indescritível da tremenda "eficiência" destruidora norte-americana,
em Hiroxima e Nagasaki e do napalm, da terra metodicamente arrasada e tornada
estéril, no Vietnã, dos dias atuais, da humanidade, enfim, dispondo de todos os
meios necessários para a sua completa destruição...
•••
Da Revolução Russa, por muitos considerado o maior acontecimento da primeira metade do século, os ecos também chegavam até nós, dos "horrores" cometidos pelos "bolchevistas" contra seus adversários e populações inteiras, sem falar
no assassínio de toda a família imperial russa. Lembro-me bem das caricaturas de
Lenin, em revistas e jornais, e de uma delas, especialmente, em que o líder comunista aparecia com sua cabeça redonda e calva ligada a um corpo de serpente... Só
começamos a compreender alguma coisa da significação daqueles "horrores", bem
mais tarde, quando nos caiu nas mãos Os dez dias que abalaram o mundo, livro do
jornalista norte-americano John Reed, que estava na Rússia e a tudo assistiu, produzindo uma das maiores peças jornalístico-literárias de todos os tempos. Sua alma
mater, a Universidade de Harvard, "excomungou-o" e o livro foi proibido durante
muito tempo na grande democracia... Seu corpo porém jaz sepultado em lugar de
honra, nos muros do Kremlin.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Eis um momento dramático de seu relato:
Exatamente às oito horas e quarenta minutos, uma tempestade de aplausos anunciou a
chegada de presidência, com Lenin à frente.
Uma silhueta baixa, cabeça redonda e calva mergulhada entre os ombros. Olhos pequenos,
nariz rombudo, boca larga e generosa. A mandíbula pesada. Estava completamente barbeado.
Mas a sua barba, dantes tão conhecida e que daquele momento em diante ia ser eterna, já
começava a despontar novamente. O casaco estava puído; as calças eram compridas demais.
Sua aparência física não indicava que ele poderia ser um ídolo das multidões. Mas foi querido e
venerado como poucos chefes, em toda a História. Um estranho chefe popular só pelo poder do
espírito. Sem brilho, sem ditos chistosos, intransigente e sempre em destaque, sem a menor
particularidade interessante, mas possuindo, em alto grau, a capacidade de explicar idéias profundas em termos simples e de analisar concretamente as situações. Senhor de prodigiosa audácia intelectual. Tal era Lenin.
E adiante:
Afinal, Lenin levantou-se. Apoiando-se no parapeito da tribuna, percorreu a assistência
com seus olhinhos piscos, aparentemente insensíveis à imensa ovação da Assembléia que o
aclamou durante vários minutos. Quando as palmas abrandaram, disse simplesmente:
– "Passemos agora à edificação da ordem socialista!" E iniciou a leitura da Proclamação aos
Povos e aos Governos de Todos os Países Beligerantes, um dos mais importantes documentos
da história contemporânea, qualquer que seja a opinião que se tenha sobre acontecimentos que
então se desenrolaram naquele imenso país dos czares e dos mujiques, e sobre o desenvolvimento posterior dos fatos.
– "A revolução de 6-7 de novembro" [de 1917] – disse terminando – "inaugurou na História
a era da Revolução Social. O movimento operário, em nome da paz e do socialismo, vencerá e
realizará sua missão."
Não importa que a história seguisse rumos que nem sempre corresponderam
aos anelos e às expectativas de quantos viram naqueles dramáticos eventos novas
esperanças para a humanidade.
George Santayana, grande figura de intelectual norte-americano, em carta
a Bertrand Russel, de dezembro de 1917, escrevia: "Quanto à Rússia, confesso que
admiro Lenin (nunca o cabotino Kerensky), pois ele tem um ideal por que está
disposto a lutar e esse ideal é profundamente antigermânico" (sic).
Já o próprio Bertrand Russel, em sua Autobiografia, assim se expressa sobre
o "gênio da Revolução":
Lenin, com quem conversei durante horas, me decepcionou um pouco. Não creio que houvesse imaginado antes disso que ele era um grande homem, mas no decorrer de nossa conversa,
me dei conta sobretudo de suas limitações intelectuais, de sua ortodoxia marxista, um tanto
estreita, e de um traço inconfundível de maliciosa crueldade. Falei dessa entrevista, assim como
de minhas aventuras na Rússia, em meu livro Practice and theory of bolshevism.
Mas, de sua amiga Dora, que ficara na Rússia, diz ele:
Ao cabo de certo tempo, comecei a receber cartas de Dora, trazidas da Rússia por amigos, e,
para grande surpresa minha, ela gostara da Rússia, tanto quanto eu a tinha odiado...
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
E depois:
Encontramo-nos em Frenchurch Street num domingo, e no primeiro instante fomos quase
como dois desconhecidos que se hostilizam. Para ela, minhas objeções aos bolcheviques eram
burguesas, senis, sentimentais. A simpatia dela por eles me deixava confuso e horrorizado. Ela
conhecera na Rússia homens cuja atitude lhe parecia superior à minha, em todos os sentidos.
Se aqueles terríveis acontecimentos e seu desenrolar posterior deixaram um
Bertrand Russel "confuso e horrorizado", que dizer de um menino de 12-13 anos
que eu era, colocado àquela imensa distância geográfica e, especialmente, cultural
do teatro de todas aquelas tragédias?
•••
Sessenta anos são passados desses acontecimentos trágicos e dramáticos,
quando passo a limpo esses escritos, e nesse largo tempo para uma vida e mínimo
para a História houve "grandes esperanças" e tantas outras "ilusões perdidas".
E leio na Homilia de apelo aos homens, lançada em Roma no dia 3 de setembro de 1978 por João Paulo I, quando acaba de assumir a cadeira de São Pedro,
estas palavras:
Devemos dirigir ainda uma saudação aos chefes de Estado e aos membros das delegações
especiais. Estamos profundamente comovidos por vossa presença, quer de vós que estais à frente dos altos destinos de vosso país, quer de vós que representais vossos governos ou organizações internacionais. A todos agradecemos vivamente. Vemos em tal participação, a estima e a
confiança que depositais na Santa Sé e na Igreja, humilde mensageira do Evangelho a todos os
povos da Terra, para ajudar a criar um clima de justiça, de fraternidade, de solidariedade e de
esperança, sem o que o mundo não poderá viver.
•••
A chamada "gripe espanhola" de 1918, que se seguiu ao término do primeiro grande conflito mundial do século, como acontecimento mais próximo, apesar
de não ter nos atingido muito severamente, nem produzido qualquer caso de maior
gravidade na família, causaria, ao rapaz, uma impressão muito profunda: era a
desolação nas ruas, as casas comerciais com as portas cerradas, a falta de alimentos, mesmo que houvesse recursos para adquiri-los, os casos que atingiram parentes, amigos e conhecidos e, sobretudo, as descrições reais ou fantasiosas, como a de
cadáveres amontoados em carroções e despejados em valas comuns nos cemitérios,
onde os coveiros, quando existiam, já não podiam cumprir seus místeres com um
mínimo de decência.
Segundo Miguel Couto, 80% da população do Rio de Janeiro foi atingida
pela epidemia, tendo morrido umas 15 mil pessoas.
•••
Enfim, o casarão da Rua Joaquim Méier ia sofrendo grandes transformações. O terreno em que se situava fora dividido ao meio por uma cerca alta, feita de
folhas de zinco. Na metade que dava para a Rua Paraguai (atual Cônego Tobias)
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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meu pai fizera construir um novo prédio, para onde transferiu o consultório dentário
e a oficina de prótese e nos quais meu irmão mais velho – o Virgílio – já ensaiava
sua carreira, seguindo as pegadas do velho Lemme.
Ao lado, um estábulo, pois tais estabelecimentos continuavam a resistir aos
propósitos de saneamento do centro urbano, mandava-nos seu odor característico
e os ruídos próprios de suas atividades, desde a madrugada...
Eu continuava a resistir ao cerco realista de meu pai, que muito naturalmente queria conduzir todos os filhos homens para os caminhos da profissão em
que tivera tanto sucesso. Eu tentava escapar à doutrinação e à obrigatoriedade de
servir como auxiliar no gabinete dentário. Detestava o ambiente desse gabinete,
aquelas conversas, sempre as mesmas, aquelas bocas abertas, os choros das crianças e os gritos dos adultos na hora das extrações mais dolorosas, feitas com boticões
quase grosseiros e anestesia muito precária. E ficava encabulado com as reprimendas
que recebia de meu pai, diante dos clientes, pelo pouco zelo que punha no cumprimento de minhas obrigações.
•••
Se há predestinação, meu caminho já estava traçado, e, dentro em pouco,
minha resistência às artes do boticão se coroaria de êxito.
E esse acontecimento decisivo para minha vida futura verificou-se ainda
nesse ano de 1918, de tantas apreensões, incompreensões e tragédias. Em 12 de
novembro desse ano, completava 14 anos de idade. A adolescência amadurecia,
com todo o lastro de dúvidas, temores, ansiedades, que não podiam se expressar
livremente, pois a repressão familiar e social se exercia soberana...
O rapaz tornava-se cada vez mais introspectivo, em plena revolução interna, mas obrigado a dissimular toda a riqueza e profundidade de seus sentimentos
de ternura e amor.
Ernest Becker em seu livro A negação da morte esclarece:
Há o tipo de homem que tem grande desprezo pelo imediatismo, tenta cultivar sua vida
interior, baseia seu orgulho em algo mais profundo e íntimo, cria uma distância entre si e o
homem comum. Kierkegaard chama a esse tipo o introvertido. Ele está um pouco mais preocupado com o que significa ser uma pessoa, com individualidade e originalidade. Gosta da solidão
e recolhe-se periodicamente para refletir, talvez para acalentar idéias sobre seu eu secreto, do
que poderia ser. Este, depois de tudo dito e feito, é o único problema real da vida, a única
preocupação valiosa do homem: qual é o verdadeiro talento de cada um, seu dom secreto, sua
autêntica vocação?
Qual seria realmente a minha?
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO IV
O MÉIER DE MINHAS
REMINISCÊNCIAS
A casa, a escola e o Méier, onde aquelas se situavam, constituíram o universo de minha infância,
adolescência e juventude.
O bairro do Méier formou-se e expandiu-se a
partir da antiga "Parada" dos trens da Estrada de Ferro
Central do Brasil, esta inaugurada, em seu primeiro trecho, em 1858.
Ali nasci e vivi até o fim da juventude, somente
o deixando aos 22 anos (1926) para iniciar nova vida,
já com profissão definida e, no ano seguinte, com o
casamento.
As casas onde morei no Méier foram apenas três
e a escola onde verdadeiramente fiz minha formação
básica, uma somente. O Méier foi, porém, constante em
minha vida durante todo esse período, pois os curtos
afastamentos dele – um para a Ilha de Paquetá, férias
em casa dos avós maternos na cidade de Barra Mansa,
no Estado do Rio de Janeiro, e, mais tarde, a estada de
mais ou menos um ano nessa mesma cidade – não significaram interrupção importante na continuidade de residência nesse subúrbio da cidade do Rio de Janeiro.
Bem pequeno era esse Méier de minhas mais longínquas e gratas recordações, que revejo com ternura. E
pouco variou a área mais central, aquela diretamente
ligada à minha vida, naqueles anos de minha formação.
Apenas, nos dias de hoje, toda essa parte central e
adjacências deixou de ser residencial para se tornar zona
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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intensamente comercial, de trânsito confuso em certos momentos, verdadeiro "mercado oriental".
Como área mais característica, destacavam-se os trechos das duas ruas principais, que ainda conservam os mesmos nomes, dados em homenagem a médicos
que se fizeram notáveis por sua atuação no bairro e arredores.
Do lado esquerdo da Estrada de Ferro de quem vem do centro da cidade,
estendia-se a Rua Dias da Cruz – nome de ilustre médico homeopata, largamente
conhecido em toda a cidade e que foi amigo de meu avô e de meu pai. Do outro
lado, a Rua Arquias Cordeiro, também adotou nome de médico. Tudo convergia,
porém, para a Estação do Méier, onde naturalmente se verificava o maior movimento de saída e chegada dos habitantes da região, pois os trens de ferro constituíram, por muito tempo, o único meio de transporte para fora do bairro. Nas horas
próximas à chegada ou à saída dos comboios, a plataforma enchia-se de passageiros, que, nos bons tempos, de população reduzida, acomodavam-se sem precipitação nos bancos confortáveis de palhinha, forrados de capas de linho, com as iniciais
bordadas em vermelho: E.F.C.B. E até a chegada à Estação Central tinha-se tempo
suficiente para conversar e os namorados de trocar juras de amor.
Uma passagem de nível sobre o leito da Estrada de Ferro ligava as duas ruas
principais, quase em frente à Rua Joaquim Méier, no ponto em que, mais tarde,
seria construído em viaduto, com escadarias de ferro, que é o mesmo ainda hoje ali
existente: muito pouco estético, deu outro aspecto a esse trecho do bairro, atendendo a uma antiga reivindicação dos moradores. É que essa antiga passagem de
nível por sobre os trilhos, fechada no momento em que os trens se anunciavam por
meio de apitos prolongados e de toques repetidos de sineta, acionadas por velhos
funcionários da Estrada, alguns mutilados em acidentes de tráfego, era verdadeiramente fatídica. Quase que semanalmente registravam-se ali mortes violentas de
passantes desatentos, atingidos pelas locomotivas – as "marias-fumaças" e, depois,
as máquinas alemãs, mais modernas, a óleo. Elas apareciam repentinamente na
curva que existia do Engenho Novo para o Méier, quando vinham da cidade, ou
passavam, em grande velocidade, quando se tratava de trens "expressos", provenientes do interior. Em meio a essas notícias freqüentes de atropelamentos, quase
sempre fatais, de pessoas mutiladas pelos "limpa-trilhos" das máquinas, ou
despedaçadas pelas rodas dos carros, ficou-me gravada como uma das minhas mais
antigas recordações dessa época o espetáculo macabro de um pobre homem, colhido por um desses trens expressos, estirado entre os trilhos, sobre os dormentes, com
os miolos à mostra, pois a caixa craniana tinha sido 1iteralmente aberta, "destampada", pela violência do choque. E ali ficou durante muitas horas, cercado pela
curiosidade popular, com as clássicas quatro velas acesas, colocadas por mãos
caridosas. Durante muito tempo, aquela visão perseguiu o menino sensível, impressionando-o fortemente.
A travessia de veículos nesse trecho, porém, só ficou resolvida muito mais
tarde, com a construção da passagem sob a via férrea, próxima à Estação do Engenho Novo, em frente à Rua Gregório das Neves. Posteriormente, foi construído um
outro viaduto sobre a Estrada de Ferro, próximo à estação seguinte ao Méier, a de
Todos os Santos. Com o grande aumento da população do bairro, recentemente
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
uma nova passagem elevada foi lançada em frente ao Jardim do Méier e, ultimamente, um grande viaduto para veículos e pedestres passou a ligar os dois lados do
bairro, partindo também do Jardim do Méier e devendo, quando estiver concluído,
descer diretamente na Rua Dias da Cruz. O primeiro viaduto, entretanto, construído
ainda nos meus dias de morador do bairro, constituiu-se num verdadeiro trambolho deselegante, que estreitou ainda mais a Rua Dias da Cruz, no seu trecho mais
central, dificultando enormemente o trânsito, tanto mais que o plano de alargamento dessa rua até hoje não se concretizou, em vista, parece, da resistência dos
comerciantes locais, que não quiseram sacrificar nada de seus interesses em benefício da coisa pública. Somente agora, com a abertura da Avenida Marechal Rondon
e o estabelecimento de "mão única" nas duas vias, é que o trânsito melhorou um
pouco. Assim mesmo, nas horas de maior movimento, extensas filas de veículos se
formam, quase desde o Engenho Novo.
O outro extremo do Méier, em direção à Estação do Engenho Novo, é fechado,
por assim dizer, pelo Morro do Vintém, denominação que recebeu, segundo parece,
em virtude de uma "corrida em busca de ouro", que se teria verificado no século 18,
registrada por Francisco Inácio Ferreira em seu Dicionário geográfico de minas do
Brasil (edição do século 18), e que teria apressado a colonização do local. Nesse
ponto, a companhia de bondes – a Light and Power, que já então existia com seus
"bondes" elétricos, um dos enormes melhoramentos introduzidos na cidade na primeira década do século, antes apenas servida pelos bondinhos a tração animal e pelos
tílburis coloniais, cujos últimos exemplares ainda conheci – fizera construir um viaduto sobre a Estrada de Ferro, em curva, pelo qual os carros elétricos atingiam, do
outro lado, a confluência das três principais vias, que ainda conservam os nomes
tradicionais: as Ruas 24 de Maio, Dias da Cruz e Lins de Vasconcelos. Esta última,
começa aí e penetra, em ângulo agudo e em declive acentuado, até atingir a Boca do
Mato, ligando-se assim, já próximo ao Engenho de Dentro, novamente com a parte
final da Rua Dias da Cruz. Posteriormente, o trecho desse ponto até a Estação do
Méier recebeu o nome de 24 de Maio, prolongando-se assim essa grande artéria, que
começa na Estação de São Francisco Xavier, onde se liga com a rua do mesmo nome
tradicional, que segue até o bairro da Tijuca. Do outro lado, o viaduto da Light descia
na Rua Arquias Cordeiro, perto das oficinas que essa companhia mantinha então
para reparos e manutenção de seus veículos. A travessia desse estafermo, de ferro e
madeira, pintado a piche, e que trepidava fortemente durante a passagem dos "bondes", constituía uma aventura para as crianças – quase como um trampolim dos
parques de diversões – infundindo-lhes medo, fazendo-as agarrar os balaústres dos
veículos a espiarem medrosamente para baixo, especialmente quando coincidia com
a passagem de algum trem. E também não deixava de causar certo receio aos adultos,
em virtude dos boatos que se espalhavam periodicamente sobre suas precárias condições de segurança. Entretanto, não guardo lembrança de ter se registrado ali qualquer acidente, nem nas subidas vagarosas nem nas descidas velozes dos "elétricos". A
demolição, mais tarde, desse viaduto, quando se fez a ligação direta das duas vias que
margeavam a Estrada de Ferro, mudou completamente a fisionomia característica
desse extremo do bairro, pois era, por assim dizer, o marco divisório com o seguinte –
o do Engenho Novo.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Paschoal Lemme, ainda aluno de
escola primária , sua turma e sua
professora da Escola Visconde de
Cairu, Rio de Janeiro (1913).
Recordo-me muito bem da abertura, no morro, da ligação da Rua 24 de Maio
com a nua Dias da Cruz, permitindo a passagem de uma das linhas mais extensas de
bondes da Light – a da Piedade – que, partindo do Largo de São Francisco, no centro
da Cidade, atingia esse subúrbio da Central. Essa linha foi por mim utilizada diariamente, durante vários anos, quando fazia o curso da antiga Escola Normal, situada
no Largo do Estácio e que foi transformada posteriormente em escola primária, quando
a escola de formação de professores do antigo Distrito Federal transferiu-se para o
majestoso prédio construído especialmente para abrigá-la, na administração Prado
Júnior-Fernando de Azevedo (1927-1930). Recentemente, aquele prédio teve que ser
demolido para permitir a construção da estação local do metrô: a do Estácio de Sá.
Nos outros dois extremos do bairro, do lado da Rua Arquias Cordeiro, margeando
a Estrada de Ferro, chegava-se à estação seguinte, a de Todos os Santos – de menor
importância – e, em seguida, atingia-se a do Engenho de Dentro, um dos mais antigos
núcleos de população dos subúrbios da Central e que ganhou maior importância com a
construção das grandes oficinas da Estrada de Ferro Central do Brasil.
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Do lado da Rua Dias da Cruz ainda não tinha sido aberta a passagem para o
Engenho de Dentro, o que se deu mais tarde, com a extensão das linhas de bondes
até aquela estação e depois até a de Piedade. Foi um grande melhoramento, cuja
inauguração festiva conservo bem clara em minhas lembranças. Ficava assim concluída a ligação direta entre o centro da cidade e esse último subúrbio.
Por esse extremo da Rua Dias da Cruz, atingia-se também a Boca do Mato – a
princípio com os bondinhos puxados a burros – a estação climática, muito conceituada em toda a região, que ainda conheci bastante agreste e que se estendia até as
encostas da Serra dos Pretos Forros, coberta de cerrada vegetação, com muitas quedas d'água encachoeiradas, de aspecto tipicamente rural. Ali, os primeiros escravos
libertos dos antigos engenhos dos jesuítas se abrigavam, construindo seus barracos,
precursores das atuais favelas. Posteriormente, far-se-ia a ligação com a tradicional
Rua Lins de Vasconcelos por uma via que recebeu o nome do outro médico notável –
o doutor Pedro de Carvalho.
Os médicos, a esse tempo, tinham uma preferência natural na gratidão da
população, com a consagração de seus nomes em ruas e praças dos bairros, sobrepujando mesmo em muitos casos as tradicionais denominações de caráter religioso
ou a de políticos, muito usadas anteriormente. Esses médicos, alguns dos quais se
tornaram também políticos, além de atender às aflições do corpo, eram em geral
pessoas humanitárias, que amparavam os clientes mais pobres dando consultas
gratuitas nas farmácias locais e fornecendo remédios. A concorrência era pequena
e a vida mais calma permitia essas magnanimidades, que tinham também, é claro,
muitas vezes objetivos políticos.
A Rua Lins de Vasconcelos, que corria junto ao sopé da parte elevada dessa
zona da Cidade, ligava, quase que em arco os dois extremos da Rua Dias da Cruz e
estabelecia, por esse lado, os limites do Méier daquela época.
A ligação do Méier com as estações seguintes, em direção ao interior, pelo
lado esquerdo da via férrea e junto a esta, em continuação à Rua Dias da Cruz, só
foi feita mais tarde, com a abertura da Avenida Amaro Cavalcanti. Formou-se então em frente à Estação do Méier uma pequena praça, bem no centro do bairro, e
que deveria ter sido ampliada, desafogando esse local, o que foi entretanto impedido pela resistência dos interesses de comerciantes e proprietários, mancomunados
com políticos locais de pouca visão.
As principais ruas transversais às duas vias mais importantes que ladeavam
os trilhos da Estrada de Ferro Central do Brasil receberam, quase todas, os nomes
dos descendentes das famílias tradicionais - cuja principal e que, na escassa história do bairro, se dizia fundadora do mesmo, eram as que se originavam do ascendente camarista do Imperador, Duque Estrada Méier.
Segundo consta, a Estrada de Ferro Central do Brasil, inaugurada em 1858,
tendo necessidade de fazer passar seus trilhos por aquela zona, obteve a doação dos
proprietários – José Soares Batista e sua mulher e dois dos filhos do camarista Méier.
A doação continha uma cláusula que obrigava a manter o nome de "Méier" para
aquela região, sob pena de anulação. (Nessa época, Méier escrevia-se ainda com o
indispensável Y e, freqüentemente, se levantava a dúvida sobre se a verdadeira pronúncia do nome alemão deveria ser "máier" ou "méier": esta última prevaleceu).
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Conforme se depreende dos poucos dados históricos de que se dispõe, a área
central do que viria a ser o "Méier" do meu tempo, originara-se de uma "Fazenda"
– denominada de São Francisco –, sesmaria doada pelo Imperador Pedro I a um seu
gentil homem, esse mesmo camarista Augusto Duque Estrada Meyer. De ascendência alemã, constava, porém, ter nascido por ocasião de uma viagem da família a
Portugal. Seus descendentes foram em grande número e muitas das ruas principais
da localidade perpetuaram seus nomes: o do próprio camarista Meyer, Joaquim
Méier, conforme se viu, estritamente ligado à minha vida de menino e adolescente,
Carolina Méier, Frederico Méier e outras. Eu próprio cheguei a conhecer descendentes dessa família fundadora, tendo tido como colega de escola um deles, rapaz
alto, louro e vermelhão, características da ascendência alemã.
Em 1889, o proprietário da Padaria Engenho Novo, um certo senhor Coutinho,
anunciava a venda de lotes de terrenos para a construção de casas, na Estação do
Méier. O anúncio vinha publicado na Gazeta de Notícias, de 18 de abril de 1889,
com os seguintes dizeres: "Vendem-se terrenos prontos para edificar na Estação do
Méier; trata-se na Praça do Engenho Novo, 16, Padaria."
O primeiro comprador teria sido o senhor Manuel Paiva, operário aposentado do Arsenal de Guerra, que adquiriu o lote que, antes da abertura da Avenida
Marechal Rondon, era o n° 84 da Rua Hermengarda. Manuel Paiva, português, foi
amigo de meu pai, freqüentava nossa casa e se dedicava ao espiritismo. Mantinha
em sua residência um "centro espírita", no qual assisti a várias "sessões", levado por
meu pai e, segundo me contava minha mãe, foi um dos elementos que induziram
meu pai a abraçar essa crença. Foi também na casa do velho Paiva que, segundo me
informaram mais tarde, meu pai conheceu a criatura – que se dizia médium – e que
deveria levar o velho Lemme aos descaminhos, que o fizeram abandonar a família
por algum tempo.
Em 1897, exatamente no ano do casamento de meus pais, o Méier era elevado
a 2° distrito da freguesia do Engenho Novo, ganhando assim maior autonomia.
Essa denominação tradicional de Engenho Novo, que se manteve até hoje,
provém das atividades dos jesuítas que, no século18, possuíam grande extensão de
terras, que começavam no atual bairro do Estácio de Sá e atingiam as partes altas
da Zona Norte do Rio de Janeiro. Possuíam um engenho – o Engenho Velho – na
área da Tijuca. Expandindo depois suas atividades, fizeram construir um outro – o
Engenho Novo e, provavelmente – o Engenho de Dentro. Com a expulsão dos jesuítas do Brasil, por ato do Marquês de Pombal de 1760, essas terras passaram a
outros donos. Em 1783, criou-se a freguesia de Nossa Senhora da Conceição do
Engenho Novo, a que pertencia a futura região que seria doada ao camarista Méier
e que seria minha terra natal: o Méier.
•••
As outras ruas que, por assim dizer, formavam a geografia do bairro do meu
tempo, receberam os nomes da família Barbosa (Ana, Manoela etc.) e da família
Batista, Hermengarda e poucos outros, todos do lado da Rua Dias da Cruz. Do outro
lado ficavam as Ruas Figueiredo, Angélica, Lucídio Lago, onde foi construído o
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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quartel da Polícia Militar, e Aristides Caire nome de outro médico que se fez notável em todo o subúrbio, militando depois na política e que também foi amigo de
nossa família. Já em época mais recente, foi construído o Jardim do Méier, no
ângulo formado pelas Ruas Arquias Cordeiro e Aristides Caire, melhoramento esse
recebido com grande júbilo pela população local. Aos fundos, pouco depois, era
edificada uma estação do Corpo de Bombeiros, inaugurada em 1914, e, com frente
para a Rua Arquias Cordeiro, um posto da Assistência Pública, transformado mais
recentemente no que é hoje o Hospital Salgado Filho.
O Méier tinha também seus arrabaldes subsidiários: o de Inhaúma, obrigatório no conhecimento de todos os moradores da região, pois para ali eram conduzidos,
através de ruas enlameadas, por parentes e amigos, os mortos para repousarem em
sua última morada: o cemitério de Inhaúma, único durante muito tempo em toda
aquela região. Uma linha de bondes ligava-o pela Rua José Bonifácio, que começava
em frente a Estação de Todos os Santos, ao centro do Méier.
O templo católico tradicional do Méier, a cuja construção assisti, de tijolos
sem reboco, dedicado ao culto do Coração de Maria, ficava na antiga Rua Cardoso
– hoje Coração de Maria. Em frente a essa rua, encontrava-se uma passagem de
nível sobre o leito da Central – a cancela do Perna de Pau. Segundo relata a crônica
local, em 31 de outubro de 1909 foi conduzida a primeira pedra colocada para a
construção desse templo, somente iniciada efetivamente em janeiro do ano seguinte. A primeira parte da igreja foi inaugurada em agosto de 1912, e toda a parte
central ficou pronta, no mesmo mês, em 1914. Com sua torre vermelha e característica, avistada dos pontos mais elevados do bairro, identificando o centro do
Méier, a Basílica do Coração de Maria teve sua origem numa pequena capela
construída no fronteiro Morro das Dores, na Estação de Todos os Santos, para a
devoção de Nossa Senhora das Dores.
Na esquina da antiga Rua Cardoso estava localizada uma das escolas primárias tradicionais do bairro e que recebeu mais tarde o nome do Padre Antônio
Vieira, tendo sido construído mais tarde um novo prédio para abrigá-la.
Um outro núcleo subsidiário do Méier era o Cachambi, ligado também por
uma linha de bondes, e pelo qual se atingia a Estrada Real de Santa Cruz, hoje
avenida Suburbana, e também os subúrbios da Linha Auxiliar e da Estrada de Ferro
Leopoldina, que tiveram grande desenvolvimento em anos posteriores. Toda essa
zona, em suas partes mais altas, era considerada também de bom clima e para ali
iam as famílias passar fins de semana, e mesmo residir, fugindo à canícula tropical
e à insalubridade das partes mais baixas da velha cidade colonial.
E assim se completavam, pelo lado direito da Estrada de Ferro, as áreas que
constituíam o Méier, que foi o ambiente físico e às vezes mágico em que vivi naqueles anos de minha infância e adolescência.
•••
A descrição minuciosa, certamente maçante para o leitor comum, tem porém uma significação bem viva e concreta para mim: é uma evocação de lugares
que conheci palmo a palmo, que percorri em passeios exploratórios, com os irmãos
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
ou colegas, alargando-se pouco a pouco, até atingir os limites mais afastados, com
alguns trechos cercados de mistérios, que uma vegetação ainda luxuriosa tornava
irrevelados. E esse alargamento de horizontes, acompanhava, naturalmente, o crescimento físico e de entendimento do menino: assim, havia uma como conjugação
física e espiritual indissolúvel entre a pessoa e o ambiente, naquilo que se denomina a vivência de cada momento e de cada um.
Evidentemente, que aqui novamente a palavra falha para uma descrição
exata na qual essa vivência se revela em todo seu colorido emocional de uma verdadeira geografia sentimental. Também não posso dizer que nesse período tenha
havido, nesse estágio de minha vida, ocorrências que pudessem ser consideradas
como dramáticas.
Os tempos deslizavam mais ou menos calmos, com o progresso da família,
em recursos, como em tamanho, com os anos se sucedendo, marcados para o menino do Méier pelo avanço paulatino nos estudos, pela repercussão mais ou menos
intensa de alguns acontecimentos na família, na escola, na vida social do bairro, e,
como também, é claro, no País e no mundo.
•••
Não diria aqui, como André Malraux, que detestei minha infância, mas também não seria sincero se afirmasse que a evoco com excessivo sentimento de saudade. É que, como se sabe hoje, na vida de uma criança e, especialmente, de um
adolescente, nem tudo transcorre entre flores, alegrias e sorrisos, como se quis
fazer crer, e a escola nem sempre terá sido "risonha e franca"...
E não é porém somente ao mundo "exterior" que se deve atribuir as culpas
do desassossego e mesmo dos sofrimentos do menino e do adolescente: as causas
mergulhavam no "interior", no desenvolvimento, com uma ajuda menor talvez do
que a necessária, dada sua constituição extremamente sensível, para evitar desnecessários recalcamentos de energias vitais, que poderiam depois explodir em direções menos desejadas. Essa não é uma queixa, mas apenas uma constatação tardia
e sem remédio, que tantos outros poderiam fazer... Eram contingências dos hábitos
e práticas da educação da época e também da essência repressiva da própria civilização: "pois a essência da sociedade é a repressão do indivíduo e a essência do
indivíduo é a repressão de si mesmo", como quer Norman O. Brown. Ou esclarecendo melhor: "o homem é o animal que reprime a si mesmo e que cria cultura ou
sociedade a fim de reprimir-se" (em O sentido psicanalítico da história).
E se assim é não há culpas a atribuir, nem queixas a fazer, a não ser e
inutilmente, aliás, contra a "civilização", a grande e inelutável repressora.
•••
Nesse quadro geográfico-histórico-sentimental-emocional constituído pelo
bairro, as tintas fortes eram dadas por aqueles grandes acontecimentos em geral
dramáticos, senão trágicos – as guerras, as revoluções, as epidemias. Mas havia
também o escorrer do dia a dia, da hora, e, principalmente, as noites com suas
insônias, seus sonhos, suas esperanças e seus pesadelos.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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E esse passar lento ou rápido de cada dia é que constitui a verdadeira tessitura
da vida, aquela em que o ser, a princípio indiferenciado do ambiente, vai aos poucos ganhando contornos mais ou menos nítidos, no contato com as realidades, com
as fricções continuadas com as coisas e as outras pessoas, com a natureza exterior
e as compulsões internas, carregando ainda em si o peso das influências ancestrais.
E assim, apareciam as miudezas desse dia-a-dia, algumas causando impactos desproporcionados à sua aparente desimportância.
Como norma de educação da família, éramos incumbidos de fazer as compras da casa: na quitanda do "seu" Manuel, no armazém ou no armarinho dos
irmãos Azevedo, portugueses, amigos da família desde a mocidade de meu pai, ou
ainda na Padaria das Famílias, de outro português, também amigo de nossa casa.
E aí, nessa pequena sociedade externa, ouvíamos e aprendíamos muitas
coisas. O "seu" Manuel, da quitanda, por exemplo, era um desses portugueses
desbocados, que não mediam palavras mesmo perante senhoras ou diante de
crianças: contava histórias e anedotas fesceninas ou escabrosas com o propósito
deliberado de encabular os fregueses. De uma dessas histórias guardo perfeita
lembrança:
A mulher brigava freqüentemente com o marido e resolveram, por isso, colocar uma tábua
no meio da cama do casal para evitar qualquer contato. Passado pouco tempo, certa noite, a
mulher começou a dar espirros fortes e repetidos. E o marido, acordando, mais que depressa
exclamou: "Maria estás muito mal, é melhor tirar a tábua..."
Éramos mandados também ao açougue, e lá tive a primeira aula prática
sobre inflação: depois da guerra de 1914-1918 os preços começaram a subir e o
quilo da carne passou a custar a incrível quantia de 800 réis, fato muito comentado
em todas as famílias.
Mas havia outras influências: mantínhamos relações com uma família alemã proprietária de uma barbearia. A dona da casa, cabeleireira, muito loura, me
atraía fortemente, apesar da diferença de idade. E um dos filhos, o mais moço, creio
que de nome Alexandre, com a maior sem-cerimônia, masturbava-se à nossa vista,
com toda a galhardia, e mostrava como sua ejaculação atingia a maior altura na
parede...
Os cinemas eram o Mascote, o mais antigo, situado à Rua Arquias Cordeiro;
mais tarde, foi inaugurado o Cine Méier, na Avenida Amaro Cavalcanti recémaberta. Nesse, fremíamos com a nudez erótica de Mae Murray e outras divas, cujo
corpo provocava os devaneios mais intensos em noites de insônia.
Em 1922, houve a grande Exposição Comemorativa do Centenário da Independência do Brasil. Muitas vezes visitamos os pavilhões erguidos na área que ficava entre as atuais Avenidas Presidente Wilson e Beira-Mar, admirando a produção
industrial e artística de grande número de países representados e também do Brasil. O pavilhão da França era um dos mais belos em minhas recordações e foi depois
cedido à Academia Brasileira de Letras para a instalação de sua sede. O pavilhão
dos Estados Brasileiros funcionava naquele edifício envidraçado, erguido em frente
à Santa Casa de Misericórdia, que depois abrigou repartições do Ministério da Agricultura e foi recentemente demolido, sendo a área transformada numa praça.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Mas houve também em 5 de julho de 1922, o primeiro levante dos "tenentes", debelado por Epitácio Pessoa. E em 1924, o segundo, em São Paulo, de que
resultou a legendária Coluna Prestes, que a todos nós, jovens da época, empolgou e
encheu de esperanças para a consecução dos sonhos de um Brasil maior e melhor,
cujos destinos já então nos preocupavam.
A esse tempo, porém, praticamente adultos, o Méier já não poderia exercer sobre nós, os irmãos Lemme, aquelas mesmas influências de seus encantos e
mistérios, que eram talvez muito mais os próprios encantos e mistérios de nossa
infância perdida.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO V
O PROFESSOR TEÓFILO
Foi minha mãe quem me iniciou nos segredos
da leitura e da escrita: sua vocação para o ensino era
evidente e chegou mesmo a fazer estudos preliminares
para seguir a carreira do magistério, com Leolinda
Daltro, educadora de renome e líder do movimento feminista no Brasil. Motivos de ordem particular, ligados
a certo atrito com a irmã mais velha – a tia Cecília –
segundo me deixou entrever em suas conversas comigo, quando procurava obter maiores informações sobre sua vida – fizeram com que se desfizessem seus
sonhos de se tornar professora primária. E sempre se
mostrou descontente com esse fato. Suas aptidões porém se revelaram na educação e no ensino, ao menos
em relação ao primeiro grupo dos quatro, dos dezesseis
filhos que teve. Depois, o trabalho excessivo de criar
família tão numerosa, não permitiu mais que se
desincumbisse dessa tarefa.
A velha cartilha de Thomaz Galhardo, impressa
em modesto papel de jornal, em preto e branco, tão
divulgada na época, era o instrumento mais
freqüentemente utilizado. E o método consistia na
memorização das lições que se sucediam, página a página, numa graduação que se considerava então como
a mais lógica e natural para a aprendizagem. Começava-se pelo alfabeto, primeiro as vogais que se "decoravam" pela repetição inúmeras vezes, até que se conseguia desenhar razoavelmente aqueles sinais, que para
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uma criança de seis ou sete anos eram verdadeiros hieróglifos. Depois vinham as
consoantes; passava-se em seguida aos ditongos e depois às combinações das
consoantes com vogais, a começar pelas que apareciam primeiro na linguagem
falada das crianças:
ba, be, bi, bo, bu
va, ve, vi, vo, vu
Quando tudo isso estava bem fixado na leitura e na escrita, vinham as palavras
isoladas mais comuns e mais fáceis para o vocabulário da idade, seguindo-se pequenas
frases em que se combinavam, mesmo sem muito nexo, os elementos já aprendidos:
Vovó viu a ave
A ave vive e voa
Eu vi a viúva
Viva a vovó
Vovô vê o ovo
A ave voava
Por fim, apareciam pequenas historietas e poesias, que eram lidas e decoradas
aos gaguejos, pela pouca segurança ainda nos domínios dos elementos fundamentais
da linguagem. Uma das últimas lições da cartilha era uma pequena poesia, em
quadrinhas, que ainda hoje, passados quase setenta anos, me é grato recordar. Ei-la:
O amanhecer
Clareia aos poucos.
O Sol desponta.
O galo canta.
Tudo se apronta.
Tudo se apronta.
Que já é dia.
Começa a lida.
Ninguém vadia.
Põem-se os cavalos
Já nas carroças:
Os bois nos carros
Seguem pras roças.
Pombos e abelhas
Voam contentes,
Brilham as plantas
Resplandescentes.
Todos se movem:
Homens, mulheres,
Correndo, alegres
Aos seus misteres.
90
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Menino salta,
Fora da cama.
Tudo ao trabalho
Convida e chama!
Em outras dessas poesias simplórias uma erigia um tremendo cacófato: "O
passarinho no galho, pipila, trina e gorjeia..."
A atenção para a leitura e o estudo nessa enfadonha memorização era
freqüentemente ativada pelo "método pedagógico", muito eficiente, dos piparotes
nas orelhas ou dos "suaves" golpes de vara na cabeça.
A terminação da cartilha era saudada com grandes elogios e satisfação, e a
passagem para o livro de leitura "intermediária", em geral de melhor apresentação
gráfica, contendo mesmo estampas coloridas, em papel acetinado, representava
um grande passo à frente, ansiosamente aguardado. Mas isso só acontecia, geralmente, após o ingresso na escola.
Ao completar os sete anos, como já referi antes, e já com essa iniciação,
graças aos esforços de minha mãe, fui matriculado na escola pública então dirigida
pela professora Olímpia de Castilhos, situada no alto do Morro do Vintém. Ficava
bem próxima de nossa casa da Rua Figueiredo, e a atingíamos subindo uma das
ladeiras, bastante íngreme, de acesso ao morro. Em dias de chuva, a água descia
com violência, abrindo sulcos profundos no saibro vermelho e a subida tornava-se
ainda mais penosa.
Àquela época, as escolas públicas primárias, existentes em número reduzido,
eram freqüentadas pelos filhos das famílias de classe média, pois as crianças de
nível econômico mais baixo cresciam quase todas analfabetas. Essas poucas escolas
se faziam conhecidas pelos nomes de suas diretoras ou diretores, pois a esse tempo,
ainda havia grande número de homens que se dedicavam ao magistério primário.
Esses estabelecimentos de ensino estavam quase que todos instalados em
prédios comuns de residência, mal adaptados, e, na maioria deles, em dependências
internas, moravam os diretores e mesmo professores.
A escola de "Dona Olímpia", denominada mais tarde "Professor Visitação",
ocupava enorme casarão, em meio de frondosas mangueiras, a cuja sombra acolhedora passávamos os recreios. Freqüentei durante pouco tempo essa escola; guardo,
porém, bem viva em minha memória a figura imponente da dona Olímpia, mulata
escura, cheia de corpo, que impunha facilmente a autoridade e a disciplina, ao
mesmo tempo com energia e bondade.
Foi aí que passei da cartilha para as Leituras Preparatórias, da série PuigarriBarreto, professores de São Paulo que iniciavam, com João Köpke, a renovação dos
livros escolares. A eles juntou-se mais tarde Erasmo Braga, também de São Paulo.
Eram volumes bem ilustrados, graduados e impressos em papel de boa qualidade,
novidade em relação ao que existia anteriormente. As historietas mais interessantes eram originais ou adaptadas de livros nacionais ou estrangeiros. Depois de muito repetidas, essas pequenas histórias e poesias ficavam guardadas na memória por
muito tempo. Lembro-me ainda hoje das frases que iniciavam a primeira dessas
"lições" do novo livro de leitura:
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
91
Augusto, com um barbante laçou uma lagartixa, e, sem largar a ponta do barbante...
punha-se à janela da frente de sua casa e fazia descer o cordel diante do nariz do transeunte
desprevenido, que levava um grande susto ao sentir o bichinho balançando-se à sua frente, sem
atinar de onde e como viera...
A ilustração tornava a cena inesquecível... Essas e outras historietas, cada
vez mais bem apresentadas, na medida em que se avançava nas páginas do livro,
algumas de cunho mais ou menos sentimental, outras de caráter moralizante, divertiam e comoviam o menino de oito-nove anos, e o estimulavam a prosseguir na
aprendizagem o mais rapidamente possível até o fim do volume, e passar para o
seguinte da série, que já recebia a denominação de primeiro livro de leitura.
•••
Mudando-nos para o outro lado da Estrada de Ferro, freqüentei por algum
tempo uma escola mista situada na parte mais alta da Rua Joaquim Méier, no
mesmo prédio em que se instalaria mais tarde a escola dirigida pela professora
Isabel Pereira Mendes, outra admirável educadora, que formou muitas gerações de
moças do bairro.
Nessa escola trabalhava uma professora, dona Leopoldina, cheia de corpo e
muito descansada, e que pouca atenção dava aos alunos, mas que tinha uma filha
– a Zuleika – morena, de covinhas nas faces, olhos muito negros, rasgados, com um
sinalzinho acima do lábio, e que foi minha segunda e grande paixão platônica...
Mas foi numa terceira escola, que freqüentei em seguida, que deveria permanecer por vários anos, até concluir o curso primário e complementar. Nela sofri
a admirável influência de um desses verdadeiros educadores intuitivos, que também existiam na época, apesar da precariedade dos cursos de formação de professores e a grande quantidade de mestres leigos, sem qualquer curso: a pedagogia, a
didática, a metodologia, as técnicas de ensino, ainda ensaiavam seus primeiros passos, mas a vocação, a intuição e a dedicação supriam essa falha.
A escola era para meninos e rapazes e estava instalada num prédio residencial,
assobradado, que ficava um pouco adiante daquele em que residíamos, na Rua
Joaquim Méier n° 18. Dirigia-a, na época em que me matriculei, o professor Lima e
Silva, e era denominada a 2ª escola masculina do 9º distrito escolar, de acordo com
a nomenclatura adotada, pouco antes, para as escolas do antigo Distrito Federal.
Os sete anos de extensão dos cursos primários da época eram divididos em
três etapas: elementar (três anos), médio (dois anos) e complementar (dois anos). As
condições de vida das famílias de classe média permitiam manter os filhos nas escolas
primárias até uma idade relativamente avançada e assim é que podiam ser encontrados nelas rapazes de 16, 17 e até 18 anos e mais de idade, nos últimos anos do curso.
Essa promiscuidade desses rapazes com meninos impúberes resultava em
alguns inconvenientes, não apenas disciplinares, mas especialmente numa iniciação um tanto precoce em assuntos de natureza sexual, às vezes de maneira mais
ou menos escabrosa. Lembro-me muito bem das exibições impudicas que um dos
alunos mais velhos, um homem feito, fazia de seus órgãos sexuais, com grande
espanto, para nós, os meninos.
92
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Um atrito do professor Lima e Silva, homem de estatura elevada, vermelhão
e pouco afável, com alguns desses alunos de mais idade, por questões disciplinares,
parece ter sido a causa de seu afastamento da direção da escola. Segundo ouvia
falar, teria mesmo havido tentativa de agressão desses alunos contra o diretor, em
verdadeira rebelião.
Substituiu-o, dentro de pouco tempo, o professor Teófilo Moreira da Costa,
mestiço claro, de estatura mediana, bigode hirsuto caído sobre a boca, homem de
maneiras simples e fala mansa, quando não se irritava com alguma ocorrência
escolar desagradável ou alguma outra preocupação.
Não sei de onde vinha transferido e qual sua experiência anterior em direção de estabelecimentos de ensino. O fato é que, aos poucos, a escola começou a
sentir sua influência: a disciplina se restabelecia e a classe dos mais velhos recebia
uma atenção especial do novo diretor, que também era professor desses rapazes.
Sua vocação e seu interesse eram principalmente dirigidos para o ensino da
língua pátria, onde seus conhecimentos se mostravam bastante amplos, pelo que
pude mais tarde perceber, indo até mesmo a um domínio bastante extenso do latim.
Sua dedicação não tinha limites, dando mesmo a impressão que nunca se
afastava da escola, que parecia constituir toda sua vida.
Aí, sob sua direção, é que comecei a me firmar nos conhecimentos básicos,
com vários de seus auxiliares, professores e professoras, que o professor Teófilo
escolhia sempre com o maior cuidado, experimentando-os e dando-lhes toda a
assistência. O que melhor recordo dessa época é justamente o que se refere à aprendizagem da língua materna, ao estilo da época, mas que lançava boa base para o
desenvolvimento futuro, dado que um bom domínio da língua nacional é de fundamental importância. Os verbos eram cuidadosamente memorizados em todas as
suas flexões, regulares e irregulares; as cópias, as leituras junto à mesa, estudadas
em casa e "tomadas" pelo professor, ou perante a turma, num treino de desembaraço e boa dicção; as redações todas corrigidas e anotadas eram discutidas em
aula; as poesias, rigorosamente memorizadas e recitadas em aula, em verdadeiros
torneios literários. Guardo bem viva na memória a lembrança desses recitativos,
que incluíam poemas bem longos, tais como O melro, de Guerra Junqueira; O pássaro cativo, de Olavo Bilac; O navio negreiro, de Castro Alves; O I Juca Pirama, de
Gonçalves Dias, e tantos outros e também sonetos célebres, que até hoje, registrados
na memória, somos capazes de repetir quase sem erro.
O ensino da aritmética era também muito bem cuidado, com seus cálculos e
problemas, que deveriam ter a melhor apresentação e limpeza em cadernos apropriados, e a extensão do programa ia até a aprendizagem de questões de juros e
câmbio. A geografia, com seus mapas ilustrativos e coloridos. A história do Brasil,
com suas maiores datas sempre comemoradas em festas cívicas. As ciências naturais, depois tão descuidadas. Os trabalhos manuais para os meninos e os de agulha,
para as meninas.
•••
Mas o professor Teófilo tinha planos de maior alcance para a sua escola, que
só mais tarde fui percebendo. O fato é que, dentro em pouco, falava-se na mudança
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
93
do estabelecimento para outro prédio, mais amplo, que melhor atendesse aos objetivos ainda não completamente revelados por ele. Realmente, após as férias creio que
dos anos 1914-1915, a escola foi transferida para um outro prédio, bem maior e mais
adequado, situado à Rua Ana Barbosa, onde no pavimento superior funcionava a
sempre misteriosa, para nós, meninos, Loja Maçônica Visconde de Cairu, nome que a
própria escola adotou mais tarde. Ainda hoje ali funciona essa Loja, com seus símbolos cabalísticos esculpidos na fachada: apenas o jardim foi ocupado por estabelecimentos comerciais, com a enorme expansão que se verificou no centro do bairro do
Méier nos anos posteriores.
Que planos eram esses em cuja execução o professor Teófilo empenharia toda
a sua vida e pelos quais sacrificou a saúde e, por fim, sem exagero, a própria vida?
Corinto da Fonseca, outro grande educador brasileiro, que, nem sempre muito
bem compreendido em vida, ainda não teve o merecido reconhecimento, contavame muito mais tarde, quando já exercia cargos elevados na antiga Diretoria de
Instrução Pública do Distrito Federal, que as idéias que o professor Teófilo queria
pôr em execução em sua escola tiveram origem num curso ministrado por ele,
Corinto da Fonseca, sobre a introdução dos trabalhos manuais nas escolas primárias e complementares do Distrito Federal. Essas idéias eram inspiradas em métodos
russos, alemães e suecos e especialmente no chamado sloyd sueco, sistematizados
pelo professor Otto Salomon, criador e diretor do célebre instituto de ensino de
trabalhos manuais, conhecido pelo nome de Seminário de Näas, na Suécia. Constava principalmente de trabalhos em madeira, feitos a faca, constituindo um adestramento geral, não profissional: trabalhos manuais como uma metodologia de
fixação de conhecimentos, de precisão, e não como uma matéria a mais nos currículos escolares, conforme explicava o professor Corinto da Fonseca.
Em seu livro denominado A escola ativa e os trabalhos manuais, Corinto da
Fonseca refere-se a esse curso, que o professor Teófilo teria assistido:
"A faca de sloyd foi aqui no Rio introduzida por mim, em 1914 quando
realizei uma série de sete conferências, em curso sistemático de teoria e prática dos
trabalhos manuais na Escola Riachuelo" (situada na Estação do Riachuelo, subúrbio
da Central do Brasil. Mais tarde essa escola recebeu a denominação de Escola Bolívia). E, continua o professor Corinto:
Revelei-a e o seu uso aos meus ouvintes, conseguindo de tal modo interessar o ilustre
pedagogo doutor Fábio Luz, então inspetor escolar do 9° Distrito e presidente da Liga de Professores desse distrito, que ele logo solicitou a minha intermediação junto à casa Hammacher
Schlemmer de Nova Iorque, para a aquisição de algumas coleções de ferramentas para o sloyd
a faca. Dessa interferência guardo a mais grata recordação numa quarta via da carta que foi
tirada em meu nome.
E aí está a origem das transformações pelas quais iria passar a escola, que sob
a direção do professor Teófilo, teria uma influência tão decisiva em minha formação.
O doutor Fábio Luz, nosso inspetor-escolar, é figura que também associo às
minhas recordações dessa época. Médico, mas também cultor das letras, fazendo crítica
literária, expondo mais tarde idéias socialistas avançadas, filiando-se à corrente do
anarquismo teórico, que teve como um dos corifeus no Brasil o professor José Oiticica.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
De Fábio Luz possuo o volume, hoje raro, de crítica literária intitulado Estudos
de literatura (1926), onde suas convicções anarquistas vêm expressas claramente.
Veja-se, por exemplo, este trecho do primeiro ensaio do livro A fome na Rússia:
Assim pensando, e assim obrigados a agir, os bolchevistas, quando de posse do poder, vendo-se bloqueados por todos os países da Europa, foram forçados a reorganizar o exército e a
defender seus ideais com todas as armas. A Rússia, ou antes, a mocidade russa, já dizimada pela
guerra anterior ao armistício de Brest-Litovski, tem de permanecer em armas, formando exércitos para a defesa das instituições novas e para combatê-las, nas várias tentativas reacionárias,
nos exércitos vermelhos, nas tropas de Denikine, Kolstchalk, Wrangel etc. A força moça, os
bravos vigorosos que arroteavam os campos, faltaram com a guerra; vem a fome, chegou a
peste. As três irmãs andam sempre juntas. A elas se associa sempre o Estado outra calamidade.
Mas, desde o início do século, meu antigo inspetor escolar já se dedicava a
atividades socialistas junto à classe operária. Em 6 de agosto de 1904, o jornalzinho
O amigo do povo publicava o discurso com que o doutor Fábio Luz saudava a
inauguração de uma "Universidade Popular", fundada, no Rio de Janeiro, a 24 de
julho desse mesmo ano. Dizia ele, então:
Concidadãos, minhas senhoras,
Está aberta a sessão com que se instala definitivamente a Universidade Popular. Que soma
de esforços e de energia, que soma de atividades e de boa vontade, que soma de tenacidade e
perseverança representa esta solenidade, esta primeira estação abençoada, este primeiro marco
fincado, esta primeira paragem vencida na longa jornada do bem e da instrução popular, todos
vós conheceis, todos vós compreendeis.
E adiante:
Vê bem o povo que os poderes públicos não se preocupam com a questão máxima de sua
ascensão para a verdade e para a luz.
E por fim:
Que todos aqueles que nos negrores das oficinas fuliginosas, nos presídios das fábricas, na
galé eterna do trabalho exaustivo, no doloroso labor diário em bem do explorador; que todos
aqueles que aspiram pela emancipação moral e pela libertação econômica, venham aqui buscar
um pouco de luz para desbravar o caminho na conquista da cidade futura, feliz e igualitária.
Por essa época, o cargo de inspetor escolar era considerado de bastante
relevo, sendo entregue a homens de cultura notória, especialmente dedicados às
letras: Olavo Bilac, Virgílio Várzea, Afrânio Peixoto, José Veríssimo e Alberto de
Oliveira foram inspetores escolares no antigo Distrito Federal.
•••
Mas, voltemos às atividades do professor Teófilo. Aos poucos fomos percebendo que ele pretendia ir muito além dos simples trabalhos manuais, do sloyd. Em
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
95
breve, graças aos seus esforços junto à administração central da Instrução Pública,
eram instaladas oficinas, especialmente para trabalhos em madeira, carpintaria e
marcenaria e também de tornearia, envernizamento e empalhação. Profissionais
desses ofícios vieram se juntar aos professores de letras, na tarefa de formar aqueles rapazes, de uma maneira inteiramente nova. O ensino de desenho também foi
introduzido, com professores especializados.
Nessa primeira fase da "escola nova" do professor Teófilo, a 30 de novembro
de 1914, tendo eu 10 anos, recebia o primeiro "diploma" de minha vida escolar, de
conclusão da 3ª classe do curso elementar, documento de muita importância para
nossa vaidade de menino e cujos dizeres transcrevo como documento de uma época:
A Inspetoria escolar do 9° Distrito, atendendo ao merecimento e aptidão que em exames de
promoção de classe, realizados na 2ª escola masculina deste distrito, no dia 18 de novembro de
1914, revelou o aluno Paschoal Lemme – nascido em 12 de novembro de 1904, filho de Antônio
Lemme e morador à Rua Joaquim Méier, 18, aprovado com distinção grau dez, confere-lhe, em
nome do Governo Municipal o presente certificado de habilitação da 3ª classe do curso elementar como prêmio de sua aplicação.
Capital Federal, 30 de novembro de 1914.
Assinavam o documento, recebido com grande alegria, o professor Teófilo
Moreira da Costa, o inspetor escolar doutor Fábio Luz, e em caligrafia ainda muito
hesitante, quase em garranchos, o aluno diplomado.
Foi meu mestre nesse curso, em que terminei a alfabetização, o professor
Salústio de Castilho, mestiço claro, cheio de corpo, de voz grossa, e que usava o
método comum na época de fazer toda a turma recitar a lição em voz alta, numa
espécie de cantochão. Era um disciplinador intransigente, bastante temido pelos
garotos, que se alinhavam, em número de quase quarenta, naquelas carteiras antigas de dois lugares cada uma. Sua didática, muito peculiar, produzia entretanto
bons resultados práticos.
Em junho de 1915 era eu aprovado na primeira classe do curso médio,
com nota plenamente 8 e, em novembro desse mesmo ano, concluía o curso
médio com nota plenamente 6. Atribuo essa baixa da eficiência escolar à eclosão
da adolescência, que fazia sua obra: a inquietação interior prejudicava a concentração nos estudos, o que quase sempre passava despercebido dos adultos, na
família e na escola. A natureza agia livremente sem qualquer orientação, a não
ser apenas a iniciação, ao acaso, feita com colegas mais experientes, alguns, como
vimos, já praticamente adultos, e que já tinham até mesmo contatos carnais com
o outro sexo, freqüentando mesmo prostitutas. De um, lembro-me bem, ouvíamos, cheios de curiosidade, é claro, suas aventuras nesse terreno, o que chegou
ao conhecimento do diretor e por fim da família, o que fez, segundo me parece,
com que fosse forçado a abandonar a escola. Com outros colegas, com quem nos
ligávamos por laços afetivos mais profundos, trocávamos confidências: a preocupação maior eram sempre aquelas sensações estranhas a que a idade nos conduzia e as "soluções" e as explicações que cada um de nós ia procurando dar, colhidas de maneiras diferentes nos diversos ambientes em que vivíamos. Em certas
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
épocas, uma verdadeira onda de erotismo nos avassalava e nos tornava desatentos, belicosos, brigões, como galarotes na muda.
•••
Como que aparentemente alheio ou indiferente a todo esse movimento subterrâneo que atingia os meninos adolescentes, que constituíam a maioria dos alunos do estabelecimento, o professor Teófilo prosseguia, com a obstinação característica dos temperamentos iluminados pela fé, sua obra de educador. Essa indiferença deveria ser, porém, muito mais aparente do que real, pois a essência de suas
realizações e inovações visava a dar justamente, consciente ou inconscientemente,
a esses jovens-meninos preciosas válvulas de escape para sua transbordante energia vital, em trabalhos de todas as modalidades, práticas e intelectuais, do cérebro
e das mãos. Constituíam-se assim um aproveitamento e desenvolvimento de todos
os aspectos da personalidade de cada um, dando-lhes oportunidades de expressão
variada, estimulando-lhes a criatividade, conceito que só agora vai penetrando na
didática moderna, como aquisição valiosa da prática e da teoria pedagógica. Assim,
se o ambiente cultural da época não ensejava na família ou na escola comum um
abordamento mais direto das causas e dos remédios para aquela inquietação dos
adolescentes, uma terapêutica adequada era em grande parte ministrada por aqueles
métodos de "educação integral", digamos assim, canalizando todo aquele élan vital
para propósitos construtivos e de significado individual e social: assim, ao invés da
repressão, possibilidades variadas de expressão.
•••
Num horário bastante extenso que ia das 8 ou 9 horas da manhã às 4 ou 5
horas da tarde, trabalhávamos, no primeiro período, nas oficinas. Nelas, os mestres
Carlos e Manuel, a princípio, e mais tarde outros profissionais, nos iniciavam nos
exercícios em madeira, dos mais simples até o acabamento de peças mais complexas, a lixa e verniz. Mais tarde, vieram os trabalhos de tornearia e de metal. No fim
do período letivo, havia exposições dos trabalhos realizados durante o ano. Dentro
em pouco, a escola já recebia mesmo encomendas de fora, inclusive de casas comerciais que revendiam os produtos por nós elaborados. Lembro-me perfeitamente
que ajudei a preparar muitos quadros-negros e outros utensílios escolares para a
Casa Vilas-Boas, então o maior estabelecimento do Rio de Janeiro, especializado no
comércio de material escolar.
Depois do almoço, assistíamos às aulas de letras. Nestas, pelas próprias
tendências do professor Teófilo, dedicávamos grande parte do tempo à aprendizagem da língua nacional, coisa que era fundamental para o futuro de cada um
de nós. As freqüentes composições, redações, cartas, transposições de poesias
para a prosa, recitações, os fatos da gramática, a análise gramatical e lógica, a
leitura, a interpretação e comentário de bons autores, tudo isso ia dando-nos um
domínio gradativo da linguagem escrita e falada, aquisição básica que deve ser
feita na escola primária.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Infelizmente, essas práticas não tiveram prosseguimento em tempos posteriores por uma série de razões, entre as quais se destacam a diminuição do número
de anos do curso primário, do número de dias do ano letivo, do número de horas
diárias de estudo, pela divisão da escola em turnos para atender ao crescimento da
população, não acompanhado devidamente pelo aumento do número de estabelecimentos. E os últimos anos da antiga escola primária, transladados para os chamados cursos secundários, não puderam manter um regime adequado de estudos e
isso somado à queda do nível de preparo dos professores, resultou nas gritantes
deficiências, hoje reconhecidas por todos, especialmente no tocante ao ensino da
língua materna.
Sempre à procura dos melhores elementos para auxiliá-lo na tarefa de desenvolver seus planos – pois evidentemente o professor Teófilo não poderia incumbir-se
sozinho de todos os encargos do ensino e da administração da escola, que se ia
tornando cada vez mais complexa –, tivemos por essa época como professora uma
jovem, dona Edwiges Machado, auxiliar eficiente e dedicada, apreciadora e seguidora
fiel dos métodos do professor Teófilo. Depois de muitos anos, era a primeira mulher
que tínhamos como professora, e sua juventude, afabilidade e competência agiam de
maneira intensa sobre a sensibilidade de nossa adolescência. Sua seriedade, porém, e
consciência dos deveres, foi-nos de grande proveito. Casou-se com um colega – o
professor Gumercindo – que trabalhava nas primeiras classes, e seu namoro, na escola, apesar da respeitabilidade com que se desenvolveu, não deixou de produzir em nós
sentimentos dos mais desencontrados.
•••
Dentro em pouco, já o professor Teófilo cogitava de dar mais amplas instalações ao estabelecimento ao qual já impusera a marca de sua personalidade e os
contornos de sua iniciativa pioneira.
Em 1916, a escola transferiu-se para um prédio mais amplo, situado à Rua
Dias da Cruz, na esquina com a Rua Lopes da Cruz, onde funcionou mais tarde o
Colégio Metropolitano, estabelecimento particular de ensino e em cujo terreno foi
construído por fim o shopping center do Méier.
O professor Teófilo fez construir anexos ao prédio residencial preexistente
galpões especiais para as oficinas e outras instalações. As aulas funcionavam no
prédio principal, um antigo sobrado de dois pavimentos, com uma grande varanda
ao lado.
Já aí estava eu como veterano, aluno das últimas classes. Sentia gozar da
simpatia e da confiança do professor Teófilo, que muitas vezes me incumbia de
assumir a direção de classes dos menores, nas faltas dos respectivos professores. E
apesar da minha timidez, pouca idade e experiência, ele sempre me elogiava achando
que me desempenhava da tarefa até mesmo melhor que os professores efetivos.
Mas, além do curso regular que se desenvolvia nessas atividades multiformes,
era tal a dedicação do professor Teófilo ao seu trabalho que, aos que considerava
seus melhores discípulos, sem qualquer remuneração e numa enorme sobrecarga
de esforço, depois das horas normais do expediente escolar, dispunha-se ainda a
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
preparar para prestar os "exames preparatórios", que eram realizados no Colégio
Pedro II, de acordo com a legislação da época, e condição para prestar os "exames
vestibulares" para a matrícula nas escolas superiores.
Faziam-se primeiro os exames das matérias consideradas básicas que eram
três: o português, a aritmética prática e teórica, e a geografia geral e do Brasil
(Corografia).
Foi assim que nos lançamos ao estudo dos Lusíadas, de Camões, interpretados e analisados lógica e gramaticalmente, pois era o texto obrigatório nos exames
de português. Destrinçar aquela ordem inversa característica do grande poema,
compreender todos aqueles episódios da história de Portugal e símbolos da mitologia, não era tarefa fácil, mas que fazíamos como um verdadeiro jogo, orientados
pelo entusiasmo do nosso mestre. E desde aí ficaram gravadas em minha memória
as passagens mais belas, entre as quais se destacava o episódio de Inês de Castro,
"aquela que depois de morta foi rainha": "Estavas linda Inês posta em sossego/De
teus anos colhendo o doce fruto"...
E o professor Teófilo nos advertia que deveríamos pronunciar "ledo" e "cego"
para não prejudicar a rima som sossêgo...
Na aritmética, pela primeira vez, abordávamos os chamados "teoremas", a
lógica matemática, com as demonstrações entusiásticas do nosso dedicado mestre,
que concluía como o vitorioso q.e.d. (quod erat demonstrandum), "como queríamos demonstrar"...
Na geografia, não nos limitava à memorização de nomes, mas nos obrigava a
acompanhar as aulas nos Atlas e a reproduzir depois, países e estados, em mapas e
desenhos minuciosos, em grandes cadernos especiais, coloridos com todo o cuidado.
Finalmente, chegava o dia em que deveríamos enfrentar as bancas examinadoras do Colégio Pedro II, constituídas de grandes nomes do magistério, porém
desconhecidos para nós.
Pela manhã, de acordo com a convocação prévia pelos jornais, sozinhos e
com as cólicas e desarranjos característicos das grandes emoções, comparecíamos à
sede do tradicional estabelecimento, à Rua Marechal Floriano. Fazíamos então as
provas escritas. Os aprovados nelas, cujos nomes eram afixados em listas ou proclamados no saguão de entrada do colégio, faziam as provas orais na parte da tarde,
perante assistência numerosa de candidatos, familiares e curiosos, o que aturdia os
meninos de 11-12 anos, idade da maioria dos candidatos. Os mais ilustres nomes
em cada disciplina nos submetiam a interrogatórios, alguns rigorosos, outros revestidos de maior bondade e compreensão: um Carlos de Laet, um João Ribeiro, um
José Oiticica, um Antenor Nascentes, um Mendes de Aguiar, um Gastão Ruch, um
Lafayete Pereira, e tantos outros.
Fui aprovado, logo na primeira vez nos dois exames considerados mais
difíceis: português e aritmética. E reprovado em geografia, considerado o mais
fácil: não me agradava muito a memorização... O ponto sorteado para prova
escrita foi a Inglaterra, e o presidente da banca examinadora era o notável geógrafo
Joaquim Coelho Lisboa, já idoso, de uma palidez impressionante, a bebericar leite
gelado e a se abanar permanentemente com um leque, pois os exames eram
realizados de dezembro a fevereiro, em pleno verão... Não havia remédio, porém,
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
99
teria que repetir em segunda época, o exame de geografia, corografia e
cosmografia, que era o título completo da matéria.
•••
As comemorações das datas cívicas do calendário escolar eram realizadas
com grandes solenidades, por meio de alocuções pronunciadas pelo diretor e pelos
professores, cânticos escolares, declamações de poesias, exibições de educação física. Havia também as exposições de trabalhos escolares, em competição com os de
outros estabelecimentos do mesmo distrito escolar. As grandes festas externas como
a da Primavera, realizada na Quinta da Boa Vista e que reunia grande número de
escolas; o treinamento para grupo de escoteiros, que surgiam em meio às manifestações patrióticas por ocasião da entrada do Brasil na Primeira Grande Guerra
Mundial; as festas do encerramento do ano letivo..., tudo isso ficou gravado em
minhas recordações de menino, juntamente com os folguedos caseiros, os trabalhos escolares e as lições a serem estudadas em casa, os "deveres escolares", como se
denominam hoje, e que eram preparados com grande capricho.
Além disso, o professor Teófilo nos estimulava a acompanhar os acontecimentos políticos do país e ele próprio era designado membro das mesas apuradoras
das eleições presidenciais. Lembro-me muito bem de uma delas, em que com sua
voz pausada e firme lia as cédulas, uma a uma: "Artur da Silva Bernardes – 1 voto!"
A figura do professor Teófilo sobressaía em tudo isso, sempre com aquela
aparência muito modesta, com seu casaco surrado de alpaca preta, calças
amarfanhadas, enérgico e disciplinador, mal dissimulando, porém, a bondade e a
compreensão que revelava para com aquele bando de garotos, alguns verdadeiramente endiabrados, castigando-os com palavras duras, quando necessário, sem
contudo nunca humilhá-los.
Duas vezes, se bem me lembro, vi-o realmente fora de si.
A primeira, como reação a um caso de homossexualismo entre os alunos,
que chegara, não sei como, ao seu conhecimento. Não entendi muito bem a razão
de toda aquela indignação, tanto mais quanto conhecia bem o rapaz acusado, que
segundo se dizia, se entregava a "práticas condenáveis" com colegas experimentados, num matagal ermo, próximo à sua casa.
O segundo episódio, recordo-me bem, ligava-se à circunstância de um aluno da classe dos mais velhos ter infringido a proibição terminante de colher frutas
verdes, creio que carambolas, das árvores existentes no grande terreno da escola.
Sem ter muita certeza da autoria da falta, o diretor responsabilizou um dos rapazes
considerados mais endiabrados, useiro e vezeiro em arquitetar traquinadas e confusões, punindo-o com a colocação no pescoço de um colar confeccionado por ele
próprio com os frutos verdes da referida árvore e obrigando-o a se exibir durante
todo o dia perante os colegas. Era, porém, o professor Teófilo o mais indignado com
o castigo que fora obrigado a ministrar, até que acabou explodindo e exprobando
a covardia de todos nós que não defendíamos o colega, cuja culpa não fora perfeitamente apurada...
100
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
A fama da Escola Visconde de Cairu já se alastrava por todos os subúrbios e
muitos pais vinham implorar ao professor Teófilo que aceitasse os filhos, muitos
expulsos de outras escolas, por mau comportamento e desleixo nos estudos, para
que eles tentassem a recuperação. E o desafio era aceito, e quase sempre conseguia
obter algum resultado com aquela terapêutica de ensino, trabalho, energia e compreensão.
Confesso que mais tarde, quando cheguei a ser professor de história da
educação, ao recordar-me da Escola Cairu e de seu fundador, essa obra apareciame com muita semelhança com a de Pestalozzi, no seu célebre Instituto de Yverdon,
na Suíça, ou com a de Makarenko, nos primeiros anos da Revolução Russa, recuperando menores abandonados, alguns ladrões e até assassinos, o que o educador
soviético relata na empolgante obra literária que é o Poema pedagógico.
•••
Mas o sonho do professor Teófilo prosseguia. Estava em seus planos fazer
construir um edifício especial para a instalação da escola, pois até aquela data
todos os prédios em que funcionara eram alugados e adaptados. Visava também a
transformação do estabelecimento numa escola profissional de caráter especial,
que, recebendo alunos desde o nível primário, até mesmo analfabetos, os levaria
até a adolescência, treinando-os em atividades diversificadas que pudessem ser
úteis para a escolha de uma profissão futura, sem descurar contudo do ensino de
letras, que permitiria aos que tivessem aptidões prosseguir em estudos de nível
mais alto e mesmo formarem-se em cursos superiores. Enfim, seria uma escola
básica, ao mesmo tempo de educação geral e profissional, de nível médio.
Por aí se vê como são antigas certas idéias e planos, que surgem depois
como novidades, em épocas posteriores, trombeteadas pela propaganda como soluções definitivas para os problemas do ensino e recebendo até denominações pomposas e pedantes como as de cursos profissionalizantes e com o caráter de
terminalidade...
•••
Enfim, depois de muitas lutas e enorme desgaste físico junto às autoridades
de Instrução Pública e do Legislativo Municipal, o professor Teófilo conseguiu que
as novas e definitivas instalações de sua escola fossem construídas em terrenos da
antiga Escola Professor Visitação, no alto do Morro do Vintém, vindo assim, por
coincidência, para bem junto do local em que minha vida escolar começara.
Não assisti a essa nova mudança, feita quando a construção dos novos prédios foi concluída: eu terminara o curso da escola ainda nas instalações da Rua Dias
da Cruz e ingressara, em 1919, na antiga Escola Normal do Distrito Federal. Para os
exames de admissão a essa escola fui também preparado pelo meu professor, juntamente com um pequeno grupo de moças: creio que ele descobrira em mim, não
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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sei como, algumas qualidades e condições para seguir a carreira que abraçara e
desempenhava com tanta dedicação.
Vim, porém, a conhecer essas novas instalações, já como professor, primeiro
para substituir uma professora licenciada (1923), e depois já em caráter efetivo do
curso complementar oficializado depois pela Reforma Fernando de Azevedo (19271930), com o nome de "curso complementar anexo", cujo plano de ensino constava,
conforme vimos anteriormente, de cinco anos de extensão para a escola primária e
quatro para as escolas de grau médio, com esse curso intermediário que podia ser
anexado as essas últimas escolas. Esses cursos foram muito ampliados, com a execução de trabalhos em madeira, metal, motores a explosão, eletrotécnica e desenho
artístico e industrial, além da parte de letras, que incluía a língua nacional, o francês e o inglês e de matemática, ciências físicas e naturais, história e geografia,
tecnologia de vários ofícios. Eu lecionava complementos de matemática, no curso
intermediário, pois a esse tempo já iniciara o curso da antiga Escola Politécnica do
Rio de Janeiro.
A escola, para custear despesas, passou também a receber encomendas de
caráter comercial, providências que levantava controvérsias entre educadores. Segundo constava, o professor Teófilo empenhava até mesmo seus recursos pessoais e
da família para constituir o que poderia chamar de "capital de giro" para esses
empreendimentos. E isso, parece, lhe causava grandes preocupações e dias de profundos aborrecimentos. Seu abatimento físico, nos últimos tempos em que privei
com ele nos trabalhos da escola, era visível e progressivo. Revejo-o ainda, nitidamente, incansável, galgando a custo a ladeira do lado mais íngreme do Morro do
Vintém, o da Rua Arquias Cordeiro, ainda sem calçamento, sempre com aquela
mesma simplicidade no traje, o mesmo casaco de alpaca preta puída, calças
amarfanhadas, vergado ao peso de todas aquelas preocupações, que a tal o conduziram seus sonhos e talvez desilusões...
Certo dia, em dezembro de 1927, dava eu uma aula no andar superior do
prédio principal, quando ouvi alguém atacado de forte acesso de tosse... Pouco
depois um velho servente da escola vinha me chamar: o professor Teófilo esvaía-se
em sangue, com tremenda hemoptise, num dos sanitários da escola. Aproximei-me
dele surpreso e preocupado e ele ainda quis resistir aos socorros que ofereci, dizendo-me em voz embargada, cortada de acessos de tosse e de sangue: "Isso não é
nada, passa logo!"
Seu estado, porém, era muito grave. Insisti e convenci-o afinal em se deixar
conduzir até sua casa, próxima dali, no bairro do Cachambi. Não mais se levantou
do leito, não tendo podido voltar à sua querida escola, à qual dera, literalmente, a
vida.
•••
Sua filha mais velha – Maria de Lourdes Costa, hoje viúva do doutor Thibau
–, que desde algum tempo trabalhava na secretaria da escola, ajudando o pai nos
trabalhos da administração, e a quem pedi, mais tarde, dados biográficos do professor Teófilo para redigir algumas palavras que deveria proferir na homenagem de
102
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
inauguração de uma escola primária que recebera seu nome, mandou-me as seguintes informações, que transcrevo aqui:
Trabalhador apaixonado, sempre teve como objetivos difundir cultura e amparar o estudante pobre, sem outra compensação além do prazer de um ideal realizado. E todas as manhãs,
às 7 horas, estava ele à porta da Escola Profissional Visconde de Cairu, assistindo à entrada dos
alunos que, em média de 550, anualmente, lotavam as salas de aula e oficinas.
Esses alunos foram a sua máxima preocupação. Se faltava um professor de cultura geral, lá
estava o diretor, incansável, substituindo o auxiliar, para que os 'pequenos' não fossem prejudicados.
Situada em subúrbio populoso, era a Escola Cairu procurada por crianças paupérrimas e a
assistência material a essas crianças foi feita de maneira quase milagrosa: 90% dos alunos
matriculados recebiam, com toda a regularidade, calçado, uniforme, passagens, material escolar e o prato de sopa. Como as dotações orçamentárias municipais não fossem pouco além das
verbas de 'pronto pagamento', organizou-se a 'Seção Industrial', onde os alunos, hábeis desenhistas, conhecedores perfeitos de estilos, executavam, sob o controle de mestres, encomendas
tanto para particulares como para a própria Prefeitura e, em 1926, quando o diretor vencia
pouco mais de 600 mil réis mensais, havia alunos que recebiam 300; e com a renda dessa 'Seção
Industrial', unicamente, foram construídos novos pavilhões e adquiridos aparelhamentos. Para
o prato de sopa foi plantada uma horta, cujos legumes e verduras que ainda sobravam eram
vendidos para aumentar a renda da escola.
Cumpria às Escolas Profissionais, afirmava ele, a preparação de técnicos para a indústria
nacional, técnicos cujos direitos seriam assegurados pelo Governo. E até crianças aleijadas foram por ele encaminhadas para um ofício adequado, que lhes garantisse o futuro.
Horas de repouso, férias, horas para as próprias refeições, interesses particulares, saúde,
tudo foi sacrificado, nada disso existia para ele, quando se tratava da causa do ensino, e à noite,
em sua residência, ou à tarde, na própria escola, estavam os alunos que terminariam o curso no
fim do ano, recebendo, graciosamente do diretor amigo, aulas particulares para os próximos
exames oficiais e preparatórios no Colégio Pedro II.
A 2 de dezembro de 1927 adoeceu. A 3 de janeiro de 1928 morria e, ao morrer, entre os
maiores sofrimentos, ainda teve forças para perguntar:
E a Cairu? E os pequenos?
•••
O professor Teófilo Moreira da Costa, de origem modesta, nasceu no antigo
Distrito Federal, no bairro de São Cristóvão, a 27 de janeiro de 1879, filho de José
Moreira da Costa, negociante português e de dona Luísa Moreira da Costa. Falecendo numa quarta-feira, dia 3 de janeiro de 1928, contava pois, apenas 49 anos.
Foram em grande número os jovens que educou e formou e que, posteriormente, seguiram as mais variadas profissões, desde as mais humildes até as mais
elevadas. Entre tantos nomes que poderia recordar ocorre-me citar os dos irmãos
Nilo e Waldemar Figueiredo Costa, de tradicional família do Méier, e que chegaram
ambos a almirantes de nossa Marinha de Guerra e terminaram suas carreiras como
ministros do Superior Tribunal Militar.
•••
É muito difícil descrever em palavras (sempre o mesmo problema) a influência
que sobre a minha formação exerceu essa figura de mestre, nunca demasiadamente
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
103
lembrada. Revendo-o, verifico que nunca chegamos a ter verdadeira intimidade, pois
sua figura apresentava sempre a aparência de uma grande austeridade, encobrindo,
por certo, uma "interioridade" rica e complexa que não conseguia expressar com
facilidade. Entendíamo-nos, porém, com uma espécie de linguagem sem palavras,
que é, sem dúvida, muitas vezes, a única possível e a mais expressiva. Por isso mesmo,
não faço a menor idéia do que o levou a fazer-me objeto de suas atenções. Talvez por
não ter um filho homem? O fato é que sua ação sobrepujou os esforços de meu pai
para fazer com que eu o seguisse em suas atividades profissionais. Na luta silenciosa
e sem palavras que suas influências travaram na minha formação saiu vitorioso o
professor Teófilo. De que instrumentos dispunha para detectar assim, com mais segurança minhas preferências, aptidões, ou quem sabe "vocação", jamais poderei saber.
Mas, certo dia, ao ter que responder à interpelação irritada de meu pai,
quando se fazia hora de decidir meu destino:
– "Mas afinal, o que é que você quer ser?"
A resposta veio de pronto:
– "Se não for professor, não serei mais nada!"
•••
Segundo dados que encontrei posteriormente em publicação da Repartição
de Estatística do antigo Distrito Federal, a Escola Profissional Visconde de Cairu
resultou da transformação da antiga 2ª escola masculina do 9º Distrito Escolar, pelo
Decreto n° 1.988, de 15 de setembro de 1918. Iniciada a prática de sloyd em madeira (sistema Laarson) durante as férias de 1916-1917, foi instalada uma pequena
oficina de trabalhos. Aquele mesmo decreto mandou dividir o ensino em um curso
primário de letras e um curso profissional, com oficinas de trabalhos em madeira
(carpintaria, marcenaria, entalhador, tornearia) e em metal (ferreiro, serralheiro,
ajustador e torneiro mecânico). Depois do referido decreto, foram montadas as
oficinas de carpintaria, tornearia em madeira e ferraria. Em 1920 foi instalada a
oficina de mecânica. Além do curso de letras, abrangendo a matéria contida nos
programas das escolas primárias (de sete anos) e de um curso especial complementar de funções algébricas e de conhecimentos de fenômenos de ordem geométrica,
foram por último estabelecidas cinco oficinas da seção de madeira (carpintaria,
marcenaria, tornearia, escultura e polimento), uma de massa plástica (modelagem
em pastelina e vasamento em gesso), duas da seção metal (ferraria e ajustamento
mecânico) e uma de desenho com iniciação em conhecimentos morfológicos, desenho geométrico, de ornato, figurado, projeção, perspectiva e sombras.
A matrícula nos respectivos anos letivos foram as seguintes: 1919 – 399 alunos; 1920 – 424 alunos; 1921 – 485 alunos; 1922 – 518 alunos; 1923 – 504 alunos;
1924 – 488 alunos; 1925 – 376 alunos; 1926 – 326 alunos.
•••
Alguns anos depois (1935), já então exercendo eu o cargo de superintendente
de todo o ensino técnico – secundário da antiga Prefeitura do Distrito Federal, na
104
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
administração Anísio Teixeira, tive a grata oportunidade de receber uma homenagem
dos alunos e professores da Escola Profissional de Cairu, prestada ao seu antigo colega. E em resposta às saudações de que fui alvo, aproveitei o ensejo para relatar a
origem da escola e um pouco da vida, paixão e morte de seu abnegado criador. O
jornalzinho que os alunos da escola então publicavam, A voz da Cairu, registrou
assim essa homenagem, que tanto me comoveu:
Realizou-se no dia 10 de outubro (1935) em nossa escola uma festinha em homenagem ao
professor Paschoal Lemme, superintendente de Ensino Técnico-Secundário.
O professor Paschoal Lemme iniciou seus estudos em nossa escola, onde foi aluno e, mais
tarde, por brilhantíssimo concurso, professor.
É, pois, motivo de intenso júbilo para nós, vermos o nosso ex-colega e mestre, galgar um
tão alto posto do ensino municipal...
É claro que minha emoção foi imensa e aqueles rapazes e colegas, que
assim me homenageavam em salas tão ligadas à minha própria vida, mal podiam
adivinhar que toda aquela emoção com que lhes agradeci, provinha da evocação
daquela figura tão simples, humana e dedicada, do mestre que fecundara com
sua vida, seu trabalho e seu amor aos "pequenos" aquela obra, que se expandira
até aquele ponto, podendo servir de modelo, ainda hoje, a instituições capazes de
atender às necessidades de educação e ensino da juventude de um país com as
características do nosso.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO VI
BARRA MANSA
Sempre achei um tanto estranha aquela residência de meus avós maternos e da quase totalidade
dos tios na cidade de Barra Mansa, no Estado do Rio de
Janeiro, às margens do rio Paraíba. Havia um desacordo ou uma falha nas informações que possuía de sua
chegada e estabelecimento no Rio de Janeiro.
Por que Barra Mansa?
Somente pouco antes de falecer, em 1968, foi
que minha mãe, numa das conversas que tínhamos quando ia visitá-la, e com a intenção que já alimentava de
escrever estas memórias, revelou-me, sem muitos pormenores, a razão desse fato.
A família de minha mãe, já foi dito antes, não
tivera muito sucesso em sua transladação definitiva para
o Brasil. Em breve, apresentava sintomas de decadência
econômica, obrigando-a a se transferir do centro da cidade, não apenas por causa da febre amarela, para um
subúrbio longínquo e ainda agreste, tal como era então
o Engenho de Dentro.
Minha mãe, aliás, não escondia sua decepção que
a vinda para o Brasil representava para a família, e lembrava sempre com saudade sua querida Vizeu e, com
orgulho, o nível de vida que desfrutava lá.
Mas a ida para Barra Mansa deveu-se a ocorrência anormal e de certa forma dramática.
Um patrício, compadre ou parente de meu avô
(não pude apurar exatamente quem era) metera-se em
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
107
demandas judiciárias em torno de propriedades imóveis. Faltando-lhe recursos para
prosseguir nas ações, induziu meu avô a emprestar-lhe dinheiro o que, com o fracasso das demandas, comprometeu de maneira grave as finanças do velho Adelino.
Com a perspectiva da perda total de seu patrimônio, meu avô desesperou-se, e
certo dia abandonou a casa e a família, no Engenho de Dentro, e desapareceu,
segundo parece, com a intenção até de suicidar-se...
E não sei como foi parar naquela cidade bem distante do Rio de Janeiro.
As coisas, depois, devem ter se arranjado, pois meu avô acabou se estabelecendo ali, onde refez a vida e para onde levou toda a família que ainda vivia sob
sua dependência.
Naquela cidade conheci todos os tios maternos que para lá foram, eram
três, e uma tia, a mais moça. Duas outras permaneceram no Rio de Janeiro, onde já
as conheci casadas e com filhos, meus primos e primas. Dessas duas, uma chegou
mesmo a morar conosco – a tia Deolinda – como já referi – ocupando durante
algum tempo as dependências térreas do casarão da Rua Joaquim Méier.
O marido da mais velha – a tia Cecília – era ou tornou-se um homem doente,
inutilizado para o trabalho (não sei o que fazia) e por isso a família passava dificuldades. Viviam distantes, lá para os lados da Boca do Mato nas encostas da serra dos
Pretos Forros, em propriedade adquirida por meu avô e onde meu tio – Antônio –
passou a dedicar-se a atividades agrícolas. Essa minha tia, segundo me parecia, não
alimentava sentimentos muito cordiais para com minha mãe, creio que por causa do
sucesso e progresso econômico de nossa família, em confronto com a situação de
quase miséria a que foi reduzida.
Lembro-me de visitas que lhes fazia, lá na casinha modesta, onde preparavam
envelopes para aumentarem um pouco os ganhos escassos. Mas, uma das primas – a
Sílvia –, a mais velha, morena de olhos verdes, me impressionava muito e prolongava
as visitas para ficar mais tempo a seu lado. . . Perdi-a, depois, completamente de vista,
sabendo apenas que teriam se mudado para São Paulo, em caráter definitivo.
A tia mais moça, a tia Zulmira, depois casada com um primo que viera de
Portugal – o Diamantino –, radicou-se no Rio de Janeiro.
•••
Eu já estivera durante um período curto de férias escolares em casa de meus
avós, em Barra Mansa.
Lembrava-me perfeitamente da "loja" ou salão de barbeiro, ampla, situada
na esquina da rua principal, creio que Francisco Leite, com a transversal que partindo da estação da Estrada de Ferro, se prolongava até a parte alta da cidade. A
atmosfera característica da loja, impregnada dos odores das perfumarias utilizadas, por muito tempo permaneceu em minha memória visual e olfativa. Os vidros
das "loções" alinhados nas pequenas prateleiras de vidro, em que sobressaíam os
perfumes franceses em moda – Roger et Gallet, o instrumental arrumado em ordem, os grandes espelhos, as cadeiras enfileiradas de um e de outro lado do salão,
a pia de mármore ao fundo...
108
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Meu avô, alto, claro, quase vermelhão, trincando sempre seu inseparável
charuto, falava em resmungos, como que sempre expressando um mau humor,
talvez fictício, ou talvez real, na medida em que amargava as recordações da terra
natal naquela cidadezinha do interior brasileiro, numa possível total decepção com
a realidade do "eldorado" com quem lhe acenara o amigo que o induzira a deixar
sua pátria. No fundo era, porém, uma alma boa, como provava seu devotamento à
família, aos filhos, e o que fizera por meu pai, de quem, parece, muito se orgulhava
pelos progressos que fizera na cultura e no padrão de vida. Com ele, no salão de
Barra Mansa, trabalhavam dois dos meus tios, o Albano e o Veríssimo, e também o
sobrinho recém-chegado de Portugal e depois genro – o Diamantino. O mais velho
– o Adelino, o "Linó", como era apelidado –, já encontrei com uma loja própria,
situada num dos extremos da cidade. O Veríssimo veio depois para o Rio de Janeiro,
onde viveu algum tempo, falecendo depois atacado de tuberculose pulmonar. Era
uma pessoa muito sensível, sempre voltado para coisas ternas, servindo-nos de boa
companhia e namoricando a sobrinha, minha irmã Palma.
A casa de moradia de meus avós ficava em continuação à loja, na rua transversal que partia da estação da Estrada de Ferro, à beira na rua, com porta e janela,
como era hábito na época. Minha avó, sempre afável, servia-nos ao café uns bolinhos de fubá de milho e biscoitos de polvilho, que ela mesma preparava, e cuja
lembrança e paladar me acompanharam por muito tempo.
Nessa primeira estada em Barra Mansa, fez-me companhia a minha prima
Ester, filha mais velha da tia Deolinda, e cuja convivência era muito agradável para
mim, principalmente em encontros furtivos, lá pelos fundos da casa, local que revejo, cheio de móveis velhos, gaiolas e ratoeiras, e por onde passavam roedores em
grande número, mas nossa adolescência não prestava muito atenção a essas coisas.
Pouco mais me lembro dessa primeira viagem, a não ser a ida a um circo,
que aparecera na cidade e que, como se sabe, constituía, com as festas religiosas, o
maior espetáculo dessas povoações do interior, para as crianças e adultos, com seus
palhaços, suas acrobacias e alguns animais exóticos.
•••
Minha mãe não passava bem de saúde na Rua Joaquim Méier. Partos continuados, dos quais dois, segundo me lembro, resultaram em insucessos e outros na
morte do recém-nascido; e creio que também uma flebite que a atacou durante
muitos anos fê-la ficar por longo tempo presa ao leito.
Estávamos no ano de 1916, em plena guerra mundial, portanto, quando se
começou a falar na necessidade da mudança de clima e na insistência de meus avós
para que fôssemos passar algum tempo em Barra Mansa. O fato é que, apesar de
todas as dificuldades de uma viagem dessas para uma família numerosa e da impossibilidade de meu pai permanecer fora do Rio de Janeiro por longo período, pois
não poderia abandonar a clínica que crescia cada vez mais e era a nossa única
fonte de renda, a viagem foi afinal resolvida.
Parti na frente, em companhia de meu tio Albano, que viera ao Rio de Janeiro
para nos ajudar na mudança, e empreendemos a viagem. Lembro-me perfeitamente
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
109
da subida da Serra do Mar, onde Paulo de Frontin, então diretor da EFCB., em meio
das maiores dificuldades, promovia enormes obras de alargamento para a duplicação
das linhas até a Barra do Piraí, para facilitar o acesso ao interior do País, e o transporte de mercadorias para o porto do Rio de Janeiro, pois as ligações marítimas estavam
seriamente ameaçadas pelos ataques dos alemães aos nossos navios.
Passávamos assim, em meio a fumaça, carvão e fuligem, por entre complicados andaimes e escoramentos, dentro dos túneis, que nos assustavam bastante,
mas que até então não tinham causado qualquer acidente de monta.
O frio intenso, o ar leve da serra nos trechos livres e aquele sentimento de
libertação da rotina diária que levava no Rio de Janeiro, ao menos por algum tempo, dava-me uma sensação de euforia, dificilmente exprimível em palavras.
Tratava-se agora de conseguir uma casa para instalação de toda a família
para uma permanência prolongada, e ela foi encontrada num extremo da rua principal da cidade, fazendo esquina juntamente com o início da estrada de rodagem que
conduzia ao interior do município, atravessando grandes fazendas de gado e café.
Por ela passavam freqüentemente os carros de bois, que se anunciavam pelo
estridente chiado típico, resultante do atrito das rodas com o eixo, e que, nos dias
de chuva, se atolavam nos lamaçais que se formavam logo à saída da cidade, exatamente ao lado de nossa casa. Também por ali eram conduzidas pelos vaqueiros e
tangidas aos gritos característicos, manadas de gado. Muitas vezes, entre curiosos e
encabulados, apreciávamos os touros, com seus enormes órgãos sexuais em riste,
tentar cobrir as fêmeas, sem qualquer contemplação pela nossa suposta inocência
de crianças, criadas em ambiente urbano e austero...
Dormi, ou melhor, pernoitei, pois o sono não veio até a madrugada, nessa
nova residência em companhia do tio Diamantino, que já trabalhava com meu avô.
Esse tio era um tipo curioso, muito religioso, com sotaque português acentuado,
que se trajava de luto na Semana Santa e reclamava até dos apitos dos trens que
não respeitavam assim a morte do Senhor no dia de sua Paixão... Uma boa alma,
porém, que se fez nosso amigo e nos entretinha contando casos de sua terra natal.
Em pouco tempo, estávamos todos instalados nessa casa, meu pai viajando
toda semana para o Rio, para trabalhar, sofrendo de um grave abscesso dentário,
que durante muitos meses inchou-lhe o rosto, confirmando o velho ditado que "em
casa de ferreiro, espeto de pau".
A perspectiva de uma permanência longa deveria nos levar a não interromper
os estudos e assim é que fomos matriculados no Grupo Escolar local, denominado
"Fagundes Varela", situado num casarão na esquina da praça principal da cidade,
onde também se erguia a igreja matriz. Dirigia-o o professor Felinto Elísio. Éramos
então três irmãos – a Palma, eu e o "Tonico", pois o Virgílio já concluíra o curso
primário e estudava os "preparatórios" para ingressar no curso de odontologia da
Faculdade de Medicina, pois seu caminho já estava traçado, seguindo as pegadas de
meu pai.
Estudantes do Rio de Janeiro que éramos, tínhamos orgulho dessa condição e olhávamos com certa sobranceria aquele colégio do interior. Entretanto,
era muito bem organizado e nada ficava a dever às escolas da capital. Recordome bem que, para nos classificar e nos colocar nas classes em que deveríamos
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
estudar durante esses meses, o próprio diretor nos submeteu a uma prova, que
constou de um trabalho escrito livre, versando sobre a Independência do Brasil.
Pouco me lembro do ambiente escolar propriamente dito, e do que aprendemos de novo em suas aulas. Sobressai, entretanto, em minha memória, a figura
de uma de nossas professoras – a dona Cora – ainda bem jovem e que viria a ser
minha subordinada muitos anos mais tarde – tais as voltas que o mundo dá em
nossas vidas –, quando pelos anos de 1933-1936 exerci o cargo de inspetor de
ensino do Estado do Rio de Janeiro e participei de cursos de aperfeiçoamento para
professores do Estado, aos quais, alguns deles segundo suponho, minha antiga
professorinha talvez tenha assistido.
Além disso, ficou bem marcada em minhas recordações a grande festa do
encerramento do ano letivo, com representações no palco do cinema-teatro local,
mas da qual não participei diretamente, pois não consegui me desempenhar do
número que me coubera, para ser declamado em palco aberto: minha timidez e
encabulação não permitiram.
Mas foi aí em Barra Mansa que perdi minha inocência: dois rapazolas, colegas no Grupo Escolar aos quais muito me liguei, tiveram um papel decisivo em
minha iniciação nos segredos do sexo e da reprodução, que antes apenas vinha
tentando descobrir.
Eram filhos de uma família que possuía uma propriedade rural de certa
importância nos arredores da cidade, mas ainda dentro do perímetro urbano. Mantinham entre outras, uma criação de porcos. Pois bem, um dos dois endiabrados
rapazes, cinicamente, explicou-me certa vez, com todos os detalhes, como se entregava a relações sexuais com as leitoas, e em seguida mostrou conhecer todo o
mecanismo da reprodução animal e humana, que me transmitiu sem qualquer
circunlóquio.
Para mim, menino de 11-12 anos, criado na cidade, em ambiente quase
puritano, com muito pouco contato com a natureza, com os animais, essas revelações teriam evidentemente que chocar profundamente, produzindo-me uma
sensação de desconforto, em que misturava o ato da reprodução entre os seres
humanos com aquela sordidez de um chiqueiro, onde o garoto, meu instrutor,
perseguia, como um pequeno fauno, as porcas, aliviando-se das inquietações e
premências sexuais da adolescência, que explodiam.
De repente, toda a luz se fazia para mim em torno de minhas próprias sensações, do fenômeno da ereção, das poluções noturnas, da masturbação. Mas a
forma pela qual essas revelações foram feitas produziam provavelmente traumas,
que, de certa forma, dificultaram ou complicaram minha mais perfeita adaptação e
desempenho dessa função básica da vida.
Não sou dos que aceitam sem discussão um freudismo "vulgar", mas não se
pode deixar de concordar que o grande sábio de Viena, na verdade, trouxe para a
psicologia uma nomenclatura fortemente expressiva para uma série de fenômenos
da vida humana, que sempre se procurou encobrir, com prejuízo para um desenvolvimento normal dos seres, especialmente a partir da adolescência. Como tantos outros
jovens tive que "recalcar" os conhecimentos que acabava de obter por essa maneira,
digamos assim, tão "impudica", pois era impossível discuti-los abertamente por falta
de interlocutores capazes, que me tirassem dúvidas e perplexidades.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Paschoal Lemme, na conclusão do
curso primário, como primeiro
aluno da turma, aos 11 anos.
Escola Visconde de Cairu, Rio de
Janeiro, dezembro de 1915.
O problema, porém, que maiores dificuldades trazia era, sem dúvida, o de
ter que admitir que nossos pais também se entregavam a essas práticas "sórdidas",
e não éramos nós, nada mais, nada menos, que produtos delas. Não podíamos ainda
compreender, é claro, que, como afirma Maurice Gleodias em Encounter:
[...] quase todos os seres nasciam de um ato de luxúria pouco romântico, que a espécie ainda
continuava a propagar-se através da luxúria, e que quase todos os seres humanos viviam tão
preocupados com o sexo quanto com a comida e o sono; no entanto, embora o sexo fosse
fundamental para a vida de cada indivíduo, sua prática se tornava complicada e sua imagem
distorcida pela hipocrisia convencional.
Não podia saber, a esse tempo, que todo o edifício da psicologia, ao menos
freudiana, se baseia na teoria da "repressão", que
[...] o desejo de felicidade do homem está em conflito com o mundo todo. A realidade impõe
aos seres humanos a necessidade de renunciar prazeres. O princípio do prazer está em conflito com o princípio da realidade e esse conflito é a causa da repressão. (Norman O. Brown, em
Vida contra a morte).
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E ainda: "A sociedade impõe a repressão e esta causa a neurose da humanidade".
•••
De Barra Mansa, porém, ficaram recordações que ainda hoje me causam um
certo sentimento de nostalgia. O ambiente rural sempre exerceu sobre mim uma
atração muito forte, dando-me uma sensação de libertação, por isso não sendo de
estranhar que, por várias vezes na vida, quando as situações se faziam mais difíceis,
fosse assaltado pelo desejo de abandonar tudo e fugir para a roça...
As manhãs de sol, o ar leve e perfumado, os passeios a cavalo, aquele cheiro
característico do gado, as estradas empoeiradas, as árvores floridas, o gorjeio dos
pássaros, os canaviais, as laranjeiras em flor, os cafezais, as porteiras, a faina das
fazendas que visitava, causavam-me uma impressão de euforia interna, sensual,
indizível ao menino criado na cidade, num subúrbio, é bem verdade, ainda com
muitos aspectos quase rurais, mas que já não tinha os encantos daquela vida do
interior...
Somente em Júlio Ribeiro, em A carne, seu discutido romance naturalista,
dedicado a Zola, "o príncipe do naturalismo", encontrei mais tarde essa tentativa
de sintonizar o "sensualismo" da natureza com os sentimentos humanos, num
quadro em que se deveria excitar e expandir as manifestações eróticas, ainda mal
definidas, da heroína do livro. Não resisto ao impulso de transcrever aqui um dos
trechos mais expressivos, e para mim, mais belos do livro, nessa tentativa de
mesclar a natureza com os sentimentos humanos:
[...] ia adiantada a primavera.
A flora tropical rejuvenescera na muda de todos os anos: os gomos, os brotos, a fronte nova
rebentara pujante, aqui de um verde-claro deslavado, veludoso, muito tenro; ali, lustrosa, vidrenta,
cor de ferrugem; além, rubra. Depois, tudo isso se expandira, se robustecera, se consolidara, em
uma verdura forte, sadia, vivaz.
A natureza mudara de toilette, e entrara no período dos amores.
Irrompida a florescência com todo o seu luxo de formas, com toda a sua prodigalidade de
matizes, com todo o seu esbanjamento de perfumes...
A lascívia da flora se vinha juntar o furor erótico da fauna.
Por toda a parte ouviam-se gorjeios e assobios, uivos e bramidos de amor. Era o trilar do
inambu, o piar do macuco, o berrar do serelepe, o rebramar do veado, o miar plangente, quase
humano dos felinos...
O ar como que era cortado de relâmpagos sensuais, sentiam-se passar bufadas de tépida
volúpia...
•••
A estação da Estrada de Ferro Oeste de Minas (depois Rede Mineira de Viação) ficava ao lado da que servia aos trens da Central do Brasil e era o ponto final
do ramal que vinha do Estado de Minas Gerais. Diariamente, nela era descarregada
grande quantidade de latões de leite, abundante na época. O cheiro muito ativo do
leite, que freqüentemente se derramava no piso da estação, ainda hoje parece atingir meu olfato.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Atravessando-se o leito da Estrada de Ferro Central do Brasil e da Oeste de
Minas chegava-se ao jardim da cidade, com imensas árvores seculares, com cujos
troncos nodosos as preguiças nos espantavam, aqueles esquisitos animais que subiam lentamente galho acima ou ficavam paradas horas seguidas, sem qualquer
movimento. Caminhando-se um pouco mais, chegava-se às margens do Rio Paraíba.
Por uma ponte de ferro, atravessava-se para a outra margem, ainda muito agreste,
com poucas habitações humanas.
O Rio Paraíba deslizava majestoso, com sua magia, seus mistérios, suas lendas, suas cheias que traziam as águas até as ruas da cidade e aos fundos dos quintais. Com ele misturava-se a história do suicídio da irmã de uma de nossas tias,
mulher de meu tio Albano. Contava-se que toda a família dela seria atraída, mais
cedo ou mais tarde, para essa morte trágica no rio. Por estranho que pareça, essa
minha tia, depois de muitos anos atacada de doença mental e de uma estada em
São Paulo, onde se dizia que ficara completamente recuperada, um dia, voltando a
Barra Mansa, teve o mesmo destino da irmã: as águas do Paraíba, atraíram-na,
tragando-a para sempre...
Como era de se esperar, em meio a toda essa euforia e de expansão de
conhecimentos, mais uma grande paixão deveria encher os meus dias de estada
em Barra Mansa. A heroína agora era uma colega de escola, filha de uma família
importante da cidade, que aliás, sofreu mais tarde, grande revés financeiro. Distante, inacessível, creio que não prestava a melhor atenção àqueles amores do
adolescente encabulado do Rio de Janeiro, de cara espinhenta, curtindo em silêncio, as penas daquela paixão não correspondida...
A permanência em Barra Mansa estava a terminar. Minha mãe melhorara. E,
um belo dia, voltou-se àquela rotina da Rua Joaquim Méier, onde ela continuava a
nos brindar cada ano com um novo irmão. Para a chegada dos últimos, já eu mesmo era convocado para ir buscar a parteira. Não podia desconfiar que meu pai já
vivia, de certa forma, escabriado com aquela proliferação assim tão continuada de
novos herdeiros e isso poderia vir a ter conseqüências...
Retomei os estudos. Em breve minha vida, ou melhor, minha carreira profissional iria definir-se. Meu pai perderia a parada na insistência de fazer-me
empunhar os boticões. Venceria a influência do professor Teófilo.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO VII
A ESCOLA NORMAL
Meu pai, muito naturalmente, procurava encaminhar os filhos para a profissão em que vinha obtendo
sucesso e na qual poderia orientá-los e oferecer-lhes
campo para a prática imediata e, mais tarde, fazê-los
sucessores naturais de sua clientela, já bastante extensa
e rendosa.
Assim é que, sem muita consideração por nossas
preferências, conforme já referi, nos obrigava a servir de
auxiliares em seu consultório, devendo ali permanecer
todas as horas não destinadas aos estudos. Pela manhã,
quando iniciava o trabalho diário, já deveria encontrar
tudo limpo e arrumado no gabinete dentário. O ambiente em casa era também de molde a nos induzir a adotar
esse caminho: as conversas durante as refeições, em que
nos reuníamos em torno da grande mesa na sala de jantar, giravam quase sempre em torno de casos da arte
dentária, de extrações difíceis, em que meu pai se considerava um mestre; em demonstrações de coragem ou de
medo dos clientes, que eram comuns em face das técnicas
e métodos ainda não muito avançados da especialidade;
os trabalhos de prótese, de técnica complicada, artesanal;
a compra do material dentário, etc. Meu irmão mais velho – o Virgílio – já adotara, em definitivo, o caminho da
odontologia e dos trabalhos de prótese dentária: completava os preparatórios exigidos para a matrícula no curso
superior e já ensaiava os primeiros passos no atendimento aos pacientes.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Eu, porém, resistia a todo esse cerco, apesar de não me ter ainda definido
por outra qualquer alternativa. Não tolerava aquela permanência forçada no consultório, aquele cheiro ativo de creosoto, usado no tratamento de canais, e escapulia,
sempre que podia, para fugir à imposição paterna.
Entretanto, ia completando também os estudos básicos necessários para a
matrícula no curso superior de odontologia, da Escola de Medicina, à falta de
outra orientação mais definida. O decreto do governo, que passou a ser conhecido como o da "gripe espanhola", e que considerava aprovados nos chamados
exames de "preparatórios" os que simplesmente se inscreviam no Colégio Pedro II
e nos estabelecimentos credenciados pelo governo, me deu a oportunidade, para,
sem qualquer esforço, preencher aquela exigência, pois permitiu a obtenção dos
certificados dos exames que me faltavam e que eram: geografia, história, ciências físicas e naturais e francês.
Mas, mesmo assim, nada resolvi, continuando a resistir.
Terminado o curso primário e complementar, com esses certificados e sem
solução, meus pais pensaram em arranjar-me um emprego, talvez em escritório, e
para isso foram mobilizados os amigos. Depois, cheguei mesmo a prestar concurso
para o Banco do Brasil.
A idéia, porém, não me agradava, causando-me mesmo um certo sentimento de frustração, pois o "Tonico", o irmão mais moço, já se encaminhava também
para fazer o curso superior, seguindo as pegadas de meu pai, e eu ficaria, em inferioridade, apenas com um "emprego".
Afinal, certo dia, meu pai, à vista do meu desapontamento e da minha
irresolução, mal podendo sopitar sua irritação, fez-me aquela interrogação decisiva, obtendo resposta dramática e resoluta que o deixou um tanto desarvorado pela
firmeza e o inusitado da situação, pois não estava acostumado a esses "gritos de
independência" partidos especialmente dos filhos:
– Se não for professor, não serei mais nada!...
A influência do mestre Teófilo triunfava sobre o cerco e as pressões de casa...
•••
Meu pai, evidentemente desconcertado, pois não tinha qualquer idéia de
como se fazia de um filho um professor, resolveu afinal procurar o professor Teófilo
para com ele se aconselhar.
Lembro-me muito bem do encontro dos dois homens, único que tiveram
durante os longos anos em que freqüentamos a Escola Cairu: foi na sala da frente,
no rés do chão do prédio da escola na Rua Dias da Cruz, e onde eu tinha sido
incluído numa turma que o professor Teófilo preparava exatamente para o exame
de admissão à Escola Normal...
Não recebia por essas aulas particulares extraordinárias qualquer remuneração, ao menos de minha parte, e nunca soube de qualquer combinação que meu pai
teria tido com ele a respeito. Era uma espécie de prêmio que retirava de seu descanso
e de sua dedicação e que conferia aos alunos, que, segundo seu critério, melhor
correspondiam ao interesse com que se entregava ao ensino. E assim, continuei a me
preparar para o ingresso na Escola Normal.
118
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
Naqueles anos de 1918-1919, a "gripe espanhola", que serviu de pretexto
para a lei dos "exames por decreto", iria também facilitar a admissão ao curso da
antiga Escola Normal do Distrito Federal. Realizados os exames em princípios de
1919, nos quais fui classificado com média baixa, foi permitida, em seguida, a
matrícula dos que não atingiram o mínimo de "pontos" exigidos; mas a liberalidade
da administração não ficou por aí, pois acabou por autorizar o ingresso na escola
de todos os candidatos que tivessem apenas se inscrito nos exames e mesmo os que
foram reprovados, desde que o requeressem e provassem haverem concluído o curso primário.
Era então prefeito do antigo Distrito Federal Paulo de Frontin, engenheiro
notável, com grandes serviços já prestados ao País, mas também político que cortejava o eleitorado pelos métodos usuais na época. Além disso, havia um certo ambiente geral de consternação, provocado pelo impacto que causara o terrível surto
da doença, que assolara praticamente o mundo inteiro, dizia-se como uma das
conseqüências da tenebrosa carnificina de que a humanidade mal acabava de sair –
a Primeira Grande Guerra Mundial.
Em conseqüência dessas medidas, o velho casarão do Largo do Estácio, onde
funcionava então a Escola Normal, encheu-se de repente com cerca de três milhares de novos alunos, a maioria, naturalmente, constituída de elementos do sexo
feminino, que sempre predominaram no magistério primário: a matrícula que fora
de 889 alunos, em 1918, subiu para 2.950, em 1919.
Um certo número de rapazes, porém, ingressou nesse ano e eu me achava
incluído nesse pequeno grupo, com pouco mais de 14 anos, ao se iniciar o ano
letivo de 1919. Era então diretor e professor Inácio de Azevedo Amaral, depois
catedrático de cálculo da antiga Escola Politécnica, onde foi meu professor, e por
fim reitor da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
O curso era de nível secundário, com a extensão de cinco anos (reduzida,
em 1920, para quatro anos) e o currículo semelhante ao de um ginásio da época,
incluindo algumas matérias de caráter profissional no último ano: pedagogia,
psicologia, higiene escolar.
Escola tradicional e única no Rio de Janeiro, fora fundada por Benjamin
Constant em 1875 e equiparava-se em importância aos outros dois colégios de
nível médio: o Colégio Pedro II e o Colégio Militar. A maioria de seus professores
pertencia também aos corpos docentes daqueles dois colégios e também da Escola
Politécnica ou da Escola de Medicina. Figuravam, entre eles, os nomes mais representativos do magistério da época, secundário e superior.
O afluxo inusitado de alunos fez com que a administração fosse obrigada a
recrutar um grande número de novos professores – os chamados docentes – por meio
de provas internas ou até mesmo sem qualquer exigência, além do simples
apadrinhamento político. O ensino teria assim que sofrer o efeito dessas circunstâncias,
sendo por isso muito desigual para a mesma matéria, nas várias e numerosas turmas em
que teve que ser dividido o corpo de alunos em cada ano do curso: a qualidade do
ensino dependia naturalmente da competência, da dedicação e do preparo de cada
professor.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
119
Perdido naquele burburinho, e, por que não dizer, muitas vezes enfrentando
grande desorganização, freqüentei sem grande brilho as aulas e as provas parciais
e finais, sem entretanto repetir nenhum ano. De outro lado, porém, completava as
lacunas do preparo nas matérias para as quais havia obtido certificados dos exames
de preparatórios pelo "decreto da gripe", sem as ter realmente estudado, tais como
as ciências físicas e naturais e o francês, dando-me uma base com que pude arcar
com as responsabilidades de quase toda a minha carreira profissional posterior.
Foi, além disso, um período de vida intensa, em que a escola tornou-se centro de minhas preocupações, dando-me bastante independência, pois em casa era
pouco comum se indagar sobre o que eu andava fazendo. Eu me tornara uma
espécie de "ovelha negra" pois repudiara o destino traçado pelos boticões...
Assim, as minhas mais intensas recordações dessa época deveriam se referir
primordialmente à vida escolar, que era por assim dizer, toda a minha vida: dos
estudos, como dos amores, da vida intelectual, sentimental, emocional.
Tive a sorte de contar, entre os professores, com algumas figuras das mais
notáveis do magistério e da inteligência brasileira da época. Em português e literatura, Alfredo Gomes, cujo nome se fizera célebre com seu colégio; Júlio Nogueira,
eminente professor e especialmente Álvaro Ferdinando de Souza Silveira. Minha
apreciação por este último, grande mestre da língua, era enorme e, talvez por isso,
tivesse sido aclamado pelos colegas da turma como orador para saudá-lo quando
nos despedimos da escola. Guardo ainda as laudas com que, no estilo de adolescentes que ainda éramos, me desincumbi da tarefa. Souza Silveira tinha a particularidade de ser formado em engenharia e, como observa Adriano Kury comentando
sua obra, a esse fato se deve "certamente grande parte do rigor científico sempre
presente na obra do professor Souza Silveira e que dele fez o maior representante
dos neogramáticos entre nós". Faleceu no dia 5 de setembro de 1967, deixando-nos
várias obras importantes e entre elas, as Lições de português. Lembro-me que me
dispensava uma atenção especial em aula, pela minha relativa facilidade em
destrinchar a terrível ordem indireta de Os Lusíadas, em que me iniciara o professor Teófilo. Em matemática, fomos alunos do austero Francisco Cabrita, também
professor na Escola Politécnica. Carlos Werneck, Roquete Pinto, Pedro Galvão, Ademar
Costa, em ciências físicas e naturais. Carlos Porto Carneiro e Rocha Pombo, em
história geral e do Brasil; Honório de Souza Silvestre, em geografia. E outros que, se
não foram meus professores diretamente influenciavam o ambiente, e, de seus
cursos, tínhamos notícias por troca de informações com os colegas: Osório Duque
Estrada, Nestor Victor, Afrânio Peixoto, J. P. Fontenele, Hemetério dos Santos.
Alguns incidentes dessa época quebraram a regularidade das aulas e produziram impactos variados que, por assim dizer, enriqueceram a secura da rotina das
aulas. Assim foi a revolta, principalmente dos rapazes, contra a nomeação de Ester
Pedreira de Melo para diretora da escola, a primeira mulher a ascender a essa
posição, apesar de ser professora de renome e também uma das primeiras a ocupar
o cargo de inspetora escolar.
Acontecimento notável foi também a visita de Júlio Dantas, o grande
poeta português, que tão bem conhecíamos através de seus sonetos e, especialmente, do poema A ceia dos cardeais, que muitos de nós sabíamos de cor.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Lembro-me, entretanto, da decepção que nos causou com seu carregado sotaque lusitano, ao iniciar sua saudação de agradecimento às homenagens que
recebeu na escola.
Mas, além da freqüência às aulas, havia os círculos que formávamos com os
colegas com quem mais nos identificávamos; os livros didáticos de que nos servíamos, dos melhores disponíveis na época, e por onde estudávamos as matérias, por
extenso, sem "sebentas" ou apostilas: a álgebra de Serrasqueiro, a história geral de
Raposo Botelho; as discussões e as competições de conhecimentos, assim direta e
livremente hauridos dos livros eram outros tantos motivos de estímulo e progresso
nos estudos.
Fundávamos jornaizinhos escolares em que apareciam nossas primeiras produções literárias, em prosa e verso. Trocávamos impressões de leituras de todos os
gêneros, desde os versos melosos de um Casimiro de Abreu ou dos sonetos de Olavo
Bilac e da prosa derramada de um Coelho Neto, até as elucubrações sociais, políticas ou filosóficas de um Gomes Ribeiro, de um Albino Forjaz Sampaio ou de um
Schopenhauer, muito em voga na época.
O grupo dos rapazes, onde predominava a média de idade crítica que era a
da plena adolescência, incluía, entretanto, alguns elementos mais velhos que já
trabalhavam, vários até já com encargos de família e experiência própria nos problemas da vida adulta.
Era o período da complementação da iniciação sexual, da "descoberta da
mulher" e, naturalmente, esse problema constituía uma das preocupações marcantes
entre nós. Acrescia que aquele contato com mais de dois milhares de jovens de
outro sexo, de todas as procedências e tipos de educação, com a familiaridade e a
proximidade física que se estabelecia diariamente, nas salas de aula, nos próprios
bancos escolares, nos recreios, exacerbava ainda mais as manifestações dessa natureza; criava um ambiente da atividade ruidosa e descuidada de namoros, amores,
paixões intensas, intrigas amorosas, brigas, ciumadas e reconciliações, trocas de
juras através de versos e encontros reais. Enfim, Cupido e Eros comandavam vitoriosos, às vezes brincalhões, outras vezes dramáticos, as vidas exuberantes de toda
aquela juventude em plena expansão.
São do cardeal polonês Karol Wojtyla, bispo de Cracóvia, eleito papa em
outubro de 1978, com o nome de João Paulo II, essas palavras de seu livro Amor e
responsabilidade, publicado em polonês, em 1962:
No contato direto da mulher e do homem, uma experiência sensorial sempre ocorre nas
duas pessoas. Cada uma delas é corpo, e, como tal, provoca uma reação dos sentimentos, fazendo nascer uma impressão acompanhada, freqüentemente, de uma emoção. A razão é que, por
natureza, a mulher representa para o homem e o homem para a mulher, um valor que se associa
facilmente à impressão sensorial cuja fonte é a pessoa do sexo oposto. Essa facilidade com a
qual emoções nascem ao contato das pessoas do sexo oposto, está ligada à tendência sexual
própria do ser humano como sua energia natural.
Alguns rapazes já estavam completamente iniciados nas práticas do chamado "amor carnal", do sexo; outros, ensaiavam suas experiências, procurando informações com que pudessem vencer as dúvidas ainda existentes, que assaltavam os
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
121
mais tímidos ou reprimidos pelos preconceitos e restrições da educação familiar.
Eu me incluía entre estes últimos, pois me repugnava esse contato mercenário,
que me parecia macular um sentimento que a imaginação juvenil e poética idealizava; "amor", atração pelo outro sexo, deveria corresponder a alguma coisa de
"sublime", de "puro", que não se coadunava com a descrição que os já iniciados
faziam de seus encontros com as mulheres da "zona", como dizíamos então, onde
satisfaziam as premências de suas glândulas exacerbadas, pelas descargas dos
hormônios. Éramos levados em passagens furtivas por aquelas ruas, onde apreciávamos eletrizados a nudez daquelas mulheres, as chamadas "francesas", mas na
realidade "polacas", com seus enormes seios e coxas à mostra, a nos fazer sinais
amistosos e que nos atendiam, quase maternalmente, com a compreensão que às
vezes tinham do verdadeiro privilégio com que faziam a iniciação daqueles bisonhos rapazes nos segredos do sexo, exercendo com invulgar dignidade a chamada "mais antiga das profissões do mundo".
Após a primeira grande guerra, prostitutas européias notadamente francesas e alemãs,
premidas pela vida difícil, emigraram em massa e centenas vieram parar no Brasil e, nas cidades
maiores, começaram a exercer a profissão em regime de esforço concentrado. [...] Com essas
estrangeiras, vulgarmente chamadas "polacas", iniciou então o homem brasileiro uma espécie
de aprendizado de certas técnicas na arte do amor. [...] Depois do segundo conflito, na década
de 40-50, o fenômeno se repetiu: nova onda de prostitutas, pelo mesmo motivo, anterior, aqui
aportou.
Minha repugnância, entretanto, continuava invencível e se acrescentava a
ela o medo terrível das doenças venéreas, em torno das quais se fazia grande alarde
entre os jovens, pelo tratamento penoso e incerto, e cercado de verdadeiro ambiente de segredo e de vergonha, quando por má sorte chegava a ser contraída.
A "repressão" produzia seus efeitos, pois como observa Norman O. Brown:
Por dois mil anos ou mais, o homem tem se submetido a um esforço sistemático para
transformar-se num animal ascético. A disciplina doméstica, a condenação religiosa do prazer
do corpo e da exaltação filosófica da vida da razão, tem feito dele um homem dócil, na aparência, mas secretamente não persuadido em seu inconsciente.
E os derivativos, a "sublimação" era procurada em todas aquelas atividades
de caráter intelectual, na imaginação de paixões platônicas idealizadas, em derramamentos em prosa e verso, nas dedicatórias às "deusas da minha turma", que nos
faziam sofrer com terríveis mágoas de amor não correspondido... Era essa a tônica
de nossas produções literárias e eu concorri com muitas delas para nossas tertúlias
e colaboração em períodos de vida efêmera que fundávamos.
Tínhamos, porém, entre nós, poetas e artistas verdadeiros: Moacir de
Almeida, desaparecido prematuramente, autor dos Gritos bárbaros, livro póstumo de versos, era um deles. Foi meu colega e amigo, e saíamos em tertúlias intermináveis, a pé, muitas vezes do largo do Estácio até o largo da Lapa, próximo do
qual a família de Américo Pereira, outro colega e amigo, poeta e músico de valor,
tinha uma loja de comércio de móveis. Deste último é um artigo que publicamos
em O Normalista, jornal que apareceu em 1921, fundado por nós para defender
122
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
os interesses daqueles que como nós "nos destinamos ao sacerdócio de ensino da
Capital de nossa Pátria" (sic), conforme se lia no editorial do primeiro número.
Fazia Américo Pereira a defesa dos artistas, tão maltratados em nossa terra,
enaltecia Moacir de Almeida que, "com apenas 18 anos", dizia ele, "é um poeta de
grande talento e que vasa suas produções em forma pura, capaz de resistir à crítica
mais severa. É um apóstolo fervoroso do humanismo socialista (sic), como foi o
imortal cantor da cachoeira de Paulo Afonso – Castro Alves".
E transcreve um soneto do grande poeta, como fecho de seu trabalho, gênero literário muito em voga na época, especialmente por influência de Olavo Bilac:
Amargura
Ah! Não ser compreendido é a tortura do Artista!
Ofegante, rompendo os joelhos pelas fragas,
Vê debalde servir nas nuvens de ametista,
A miragem do ideal, entre as estrelas magas.
Arqueja; o vendaval de angústias o contrista,
Vem-lhe dos olhos sangrar em tristezas presagas,
Ergue a vista: o céu tão longe! Baixa a vista:
– Tão longe os corações a rolar como vagas!
Ele que tem o azul preso no crânio aflito,
Abre em astros de sangue a noite dos abrolhos,
Ergue constelações de rima no infinito...
Soluça na aflição do deserto profundo,
– tendo os astros no olhar e a noite sobre os olhos,
tendo os mundos nas mãos sem nada ter no Mundo!
Vejo, ainda hoje, Moacir de Almeida, muito magro, aspecto doentio, sempre
exuberante em sua gesticulação, chamando-me fraternalmente de "filho de
d'Annunzio", que ele admirava, por causa de minha ascendência italiana. Quase
não comia, sempre exaltado, febril: a tuberculose levou-a à morte prematura no
estilo de Álvares de Azevedo ou Noel Rosa... Nasceu a 22 de abril de 1902 e foi
sepultado a 1º de maio de 1925, com 23 anos apenas.
Agripino Grieco, sempre tão rigoroso e mordaz em suas críticas, dá-nos,
porém, de Moacir de Almeida, estas impressões, que coincidem bem com as que
guardo dele:
Recitando, Moacir de Almeida tinha a voz meio cava, dolente, velada, como vindo de uma
cripta distante, mas a beleza das coisas que celebrava conseguia embelezá-lo, e ele, que era
magro como um asceta, comprido, deselegante, sem saúde, sem graça pessoal, sem eloqüência
na conversação, transfigurava-se e prendia quem quer que o ouvisse, na trama de ouro das suas
rimas. Sua face lanhada, torturada, de zigomas salientes, como que se iluminava à radiação
verbal do seu sonho.
Américo Pereira, era outro artista muito sensível, que se dedicava especialmente à música, cuja casa freqüentei várias vezes e onde aprendi coisas de sua arte.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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José Franco de Freitas Machado, também bom poeta e crítico rigoroso dos colegas
que mandavam suas produções para o nosso jornal. Severino da Mota Maia, que
depois se formou em medicina, orador de nossa turma, meu padrinho de casamento, desaparecido tão prematuramente. Péricles Martins, Sílvio Cunha, Deusdedit de
Souza, os irmãos Chometon, Mário Rodrigues, Tito Pádua, os mais chegados a mim
entre os colegas de então.
Entre as companheiras dos bancos escolares guardo especial recordação de
duas: Regina Frugoni, de origem uruguaia, que perdi completamente de vista, e
Rosa Meireles, irmã dos Meireles, Silo e Ilvo e Francisco, que tiveram destacada
atuação nos movimentos revolucionários em torno da figura de Luís Carlos Prestes.
Rosa, encontrei muito mais tarde ligada ao major Carlos Costa Leite, também revolucionário da corrente de Prestes. Recordo-a, moreninha, de feições e fala acentuadamente nortistas, sempre radical em suas manifestações, mas que muito me atraía
com suas maneiras, modestas, desataviadas.
Dos colegas, poucos ficaram exclusivamente no magistério primário: a profissão já vinha tendendo para ser quase que exclusivamente do sexo feminino. Ao
mesmo tempo que fazíamos o curso normal, íamos completando os "exames de
preparatórios" no Colégio Pedro II, e assim assegurávamos um possível prosseguimento de estudos em cursos superiores. Alguns desses colegas seguiram a carreira
militar, optando pela Escola de Realengo. Outros, a medicina. Eu tentei a engenharia, fazendo os exames vestibulares para a Escola Politécnica, em 1925.
Em 1920, a Escola Normal teve o curso reduzido para quatro anos e nossa
turma, que iniciara o curso em 1919, passou a ser, oficialmente, a de 1922. Essa
compressão do curso, porém, abrigou-nos ainda a continuar os estudos até o meio
do ano de 1923.
Findava assim mais uma etapa de minha vida, com o diploma que me habilitava a exercer a profissão de professor primário da Prefeitura do antigo Distrito
Federal. Tinha então apenas 18 anos.
Teríamos agora de aguardar a almejada nomeação para os quadros do magistério oficial da capital da República.
Saíamos desse curso da Escola Normal com o amadurecimento trazido pela
idade, mas também produzido por um convívio rico, complexo, em que se misturavam estudos, conhecimentos, descobertas, contatos com mestres ilustres, competições e amizades, amores ingênuos, sofridos, entremostrando plenitudes de prazeres
físicos e espirituais, que apenas entrevíamos.
Sentíamos que ganháramos alguma coisa importante na complementação
de nossa personalidade, talvez aquela qualificação em uma profissão definida,
modesta, é verdade, mas que representava, sem dúvida, uma nova fase de nossa
vida.
•••
Na última metade do curso da Escola Normal, tinha havido grandes modificações em minha casa. Deixáramos o casarão da Rua Joaquim Méier e, depois de uma
curta passagem por um prédio da Rua Méier (hoje Pache de Faria), nos instalamos
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
definitivamente à Rua Silva Rabelo, n° 11, em casa construída pelo padrinho de casamento de meus pais – João Afonso Ferreira – e adquirida por eles.
Dali só saí quando deixei definitivamente a família para o casamento, em
1927. Desprendia-me, assim, de minhas raízes, e do Méier, para fundar um outro
núcleo que deveria perpetuar a descendência dos Lemme. A lei natural se fazia
respeitar e a vida prosseguia em sua marcha costumeira...
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO VIII
LEITURAS E LIVROS
Escolas, cursos, aulas, professores, são sem dúvida
os meios especializados e, por isso, os mais eficientes para
o desenvolvimento cultural dos indivíduos na civilização
atual: através deles os conhecimentos são transmitidos
de maneira intencional e sistemática, segundo programas
definidos, por métodos que procuram atender, não somente às características das várias idades, como também
às notórias diferenças entre as várias pessoas e aos interesses de cada um na vida social.
É certo que, nos dias de hoje, os novos meios de
comunicação, especialmente o rádio e a televisão, são
também instrumentos eficientes de aprendizagem, não
somente de caráter geral, mas até mesmo sistemática e
graduada, através de cursos programados, largamente
utilizados em todo o mundo, com a aplicação daqueles
meios de transmissão de massa. Chega-se até mesmo a
falar no fim da era das escolas tradicionais, dos professores, tal como os que existem ainda hoje... Computadores, robôs fariam esse trabalho muito melhor e com mais
eficiência e produtividade...
Menos sistemáticos ou mesmo totalmente
assistemáticos e de escolha mais livre, as leituras, os livros, o material impresso enfim, são, porém, os instrumentos de cultura que os indivíduos continuam a utilizar,
mais ou menos extensamente, conforme os estímulos que
recebem no ambiente em que vivem, os meios de que disponham para adquiri-los ou, às vezes, simplesmente, por
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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influência de um elemento da família, do interesse de um professor ou até do exemplo ou da predileção demonstrada por um colega ou um amigo. Há também certa
dose de gosto e predisposição pessoal, difícil de definir, mas que age facilitando a
ação daqueles outros fatores.
No meu tempo, porém, o livro ainda constituía o veículo cultural por excelência, que distinguia as pessoas, colocando-as na categoria especial de "intelectuais" e de homens de saber, os homens que tinham o trato com a palavra impressa,
os escritores, os leitores inveterados. Os elementos da outra categoria, a dos "homens práticos", tinham sempre a tendência a menosprezar e mesmo lastimar os
outros, aqueles que, de modo geral, pelo temperamento ou por outra qualquer
circunstância, se faziam cultores, não somente da literatura mas de qualquer espécie das outras artes. Os artistas de modo geral, eram considerados como seres mais
ou menos desajustados, malandros em potencial, que fugiam do "trabalho legítimo", única fonte de qualificação capaz de conferir verdadeira dignidade às pessoas. Lembre-se, por exemplo, o preconceito contra o teatro, especialmente em relação aos elementos do sexo feminino que a ele resolvessem se dedicar, pois era
considerado atividade para gente pouco séria, senão até mesmo licenciosa.
É certo que, nos dias de hoje, esses conceitos vão se modificando bastante e,
se viver da produção artística ainda é uma condição reservada a poucos, especialmente entre nós, com exceção talvez da arte que se torna indústria – como a
cinematográfica – , já se vai notando a tendência para considerar a arte em geral
com o reino dos eleitos, daqueles que não se submetem ao esmagamento a que a
civilização da mecanização tecnocrática vai conduzindo a humanidade.
Assim, para os corifeus da chamada "contracultura", expressão que reúne
tudo o que se opõe a esse apoucamento da natureza humana pelo predomínio da
máquina, da tecnocracia, a libertação está justamente na rejeição da "consciência
objetiva" e na valorização de tudo aquilo que a "civilização" reprimiu e que constitui justamente os aspectos nobres da alma humana, degradada pelo pecado original com a conseqüente "expulsão do paraíso" e a terrível sentença divina
condenatória: "Ganharás o pão com o suor do teu rosto". A redenção seria a volta
da humanidade ao prazer, às artes, ao "paraíso perdido" da criatividade, ao mundo
não reprimido do prazer descomprometido:
Em grande parte, infelizmente, o progresso técnico, na medida em que procura mecanizar
a cultura constitui uma guerra aberta ao prazer. É um esforço espantosamente perverso para
demonstrar que nada, absolutamente nada, é particularmente especial, singular ou maravilhoso, pois pode ser rebaixado à condição de rotina mecanizada. Cada vez mais o espírito de não é
mais o que paira sobre a pesquisa científica avançada – o esforço de degradar, desiludir, nivelar.
Será que o criativo e o lúdico embaraçam a mente científica a tal ponto que ela precisa tentar
a toda força degradá-los? (Theod. Roszak, em A contracultura).
E em outra passagem:
Para o tecnocrata, mais é sempre melhor. Onde quer que haja mais input e mais produção
– não interessa a natureza do que entra ou do que sai: bombas, estudantes, informação, estradas, pessoal, publicações, produtos, serviços – temos um sinal de progresso. À incompatibilidade
brutal de um ethos tão fanaticamente quantitativo com as necessidades vitais qualitativas do
128
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
indivíduo, eis o tema dos romances de Goodman. Constituem estas histórias em que pessoas
têm de 'marcar constantemente os limites' para se defenderem da tecnocracia despersonalizada
e para defenderem também sua humanidade sitiada.
E as leituras e os livros, a literatura enfim, quando em nossas mãos travando
conosco um diálogo mudo, protegendo nossa "interioridade", tão perigosamente
ameaçada pelo monstro asfixiante do "exterior", cada vez mais mecanizado e dirigido, para nos reprimir, convencer e degradar, é e será sempre um dos instrumentos, senão a arma mais eficiente de defesa, daquilo que constitui a essência da
verdadeira natureza humana. Conforme sugere Huizinga (em Homo ludens, 1950),
[...] o avanço da civilização tem reprimido o elemento lúdico na cultura; a implicação é que,
desde que a atividade lúdica é a modalidade de comportamento distintivo do homem, o avanço
da "civilização" [as aspas são minhas] desumanizou a cultura.
[...]
A arte nos seduz na luta contra a repressão. [...] Devido à repressão decorrente da vida
civilizada, perdemos muitos prazeres primitivos que a censura desaprova. [...] Assim, a arte luta
contra a razão repressiva e o princípio da realidade no empenho de reconquistar as liberdades
perdidas. [...] Se o papel da arte é desfazer repressões, e se a civilização é fundamentalmente
repressiva, nesse sentido, a arte é subversiva.
E os censores e seus mandantes têm, parece, consciência muito clara desse
fato...
Para Freud, por exemplo, a função da arte é constituir um grupo subversivo,
o oposto do grupo autoritário...
[...] mas, a psicanálise deve, como Freud, invejar a capacidade dos poetas (dos artistas da linguagem em geral, digo eu) como esforço denodado para resguardar, do turbilhão de suas próprias
emoções, as verdades mais profundas, para as quais nós outros temos de forçar o caminho,
incessantemente, apalpando em meio a torturantes incertezas.
Todas essas citações, que colho em Vida contra a morte, de Norman O. Brown,
visam à tentativa de mostrar ou demonstrar a significação que teve para mim, e deve
ter tido, em geral, para tantos outros, o fato de se penetrar nesse mundo encantado
das estórias e das leituras, dos livros e da literatura. Não como instrumento de cultura
sistematizada, graduada, sob medida, obrigatória, didática, enfim. De passagem, registremos como é pobre, em geral, o chamado "livro didático puro", justamente porque se institui em mais um instrumento de "repressão" do que há de espontâneo em
cada um de nós, e com o qual se pretende instalar no leitor ou no estudante a cultura
"depurada", dirigida... Refiro-me ao livro como meio de expressão livre, de libertação
exatamente dos "deveres" escolares, numa fuga da "realidade" para o mundo encantado do sonho, da imaginação, da fantasia.
Observem como as crianças, depois de provarem esses frutos da árvore da
verdadeira "ciência da vida", dos divertimentos sem compromissos, das leituras
sem objetivos definidos e produtivos, têm que ser quase arrancadas à força de
seus devaneios pouco "práticos" naturalmente, para as obrigações escravizadoras
de verdadeiros condenados dos "deveres escolares", sempre áridos, secos e que,
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
129
muitas vezes, os esmagam "debaixo das rodas", como aconteceu ao herói do célebre romance de Hermann Hesse, pelo desprezo dos adultos pela mais íntima
interioridade dos menores, na ânsia de moldá-los, de prepará-los para uma vida
"prática", de "dignidade social".
E ninguém chegou a suspeitar sequer de que a ambição cega e desregrada do pai e o
bárbaro massacre espiritual de alguns professores, tinham levado aquele ser frágil, desde a mais
tenra mocidade, ao estado atual de apatia e desinteresse. Por que tivera ele que estudar diariamente, até altas horas da noite, nos seus mais sensíveis e perigosos anos da adolescência? Por
que lhe haviam tirado os seus coelhos, proibido de pescar e excursionar pelos campos nos dias
de sol? Por que lhe haviam inculcado aquele ideal vazio e estéril de menino-sábio, até a cabeça
vergar ao peso dessa extenuante e sórdida ambição? Por que não lhe haviam deixado gozar bem
merecidas férias, depois do exame oficial? (Hermann Hesse, em Debaixo das rodas).
•••
Sem descender de uma família de intelectuais, o ambiente em que me criei
não era entretanto desestimulante. Meu pai, como vimos, desde que passei a perceber com mais nitidez sua presença em minha vida, estava exatamente empenhado
no trato com livros, pois se preparava para ingressar num curso superior, que concluiu depois. Minha mãe lastimava sempre não ter tido a oportunidade de se tornar
professora e sempre me apoiou em minha resistência aos desígnios paternos. Duas
de minhas irmãs, posteriormente, seguiram a carreira do magistério, e afinal todos
apreciavam muito o trato com os livros. Além disso, sofri a influência prolongada e
decisiva de um professor excepcional, que tinha exatamente como uma de suas
principais características um gosto muito acentuado pelo cultivo da língua e pela
apreciação literária.
Mas, além dessas influências, minha timidez e tendência para o isolamento,
levavam-me a buscar nas leituras, no livro, e depois na literatura em geral, de certa
forma, o diálogo com interlocutores silenciosos, a expansão de uma sensibilidade a
flor da pele, respostas a uma série de questões que ficavam fora do âmbito da
aprendizagem sistemática ou formal comum, no imenso campo dos sentimentos
das emoções e dos sentidos. Aí, grandes áreas constituíam e ainda constituem matéria proibida, provocadora de grandes inibições, e onde os adultos se encastelam,
a maior parte das vezes por ignorância sobre a maneira de abordar esses problemas, mas também por insegurança, ou contidos simplesmente pelos padrões morais
ou religiosos do meio a que pertencem e em que foram educados.
Por fim, na própria atividade profissional que adotei – a de professor – o
instrumento principal de trabalho é necessariamente o livro, o material impresso,
de caráter técnico ou geral.
Tornei-me, por todas essas razões, um grande leitor, um grande devorador
dessa espécie de alimento intelectual, de pura ficção, como recreação, ou de
caráter técnico-profissional. E por fim, como o maior veículo da procura de respostas para as indagações e das dúvidas sobre os grandes problemas que sempre
preocuparam os homens, e que acentuam com o "entardecer da vida": filosóficos,
econômicos, políticos, sociais, da vida e da morte.
130
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
•••
A iniciação, o acesso à leitura, em geral, se fazia no nível da escola primária,
através dos próprios livros de leitura de classe, que, no meu tempo, incluíam entre
os autores, grandes nomes da literatura nacional e estrangeira.
Desse período, guardo as mais vivas recordações daquele livro extraordinário que é O coração, de Edmundo de Amícis, obra-prima de sensibilidade e que
encantou muitas gerações de meninos, aqui e em todo mundo. Traduzido por João
Ribeiro e "cuidadosamente corrigida segundo a 854ª edição (!) italiana", impresso
em papel barato, de jornal, e editado pela Livraria Francisco Alves, de apresentação,
portanto, mais do que modesta. Neles, defrontávamos com aquelas cenas tão singelas da vida escolar, retratando exatamente as situações que nos eram familiares,
com professores, alguns dedicados até os extremos de sacrifícios e bondade, outros
amargos, carregando seus problemas íntimos, como homens ou mulheres que eram;
os colegas, alguns excepcionais, capazes de grandes ações, estudiosos, aplicados,
outros grosseiros, covardes, impertinentes e até brutais e ainda outros apenas gaiatos, brincalhões, sempre prontos para uma traquinada: um Garrone, um Derossi,
um Carlos Novis ou o desalmado Fronti. Havia também os contos mensais, que nos
emocionavam até as lágrimas: O patriotazinho de Pádua, O limpador de chaminés,
O pequeno vigia lombardo, O pequeno escrevente florentino, Dos Apeninos aos
Andes, Sangue romanholo, e tantos outros. E também havia aquelas cartas, assinadas por Teu pai ou Tua mãe, dirigidas ao protagonista e narrador do livro, Henrique,
da classe média, cartas que nos tocavam fundo com seus conselhos, suas reprimendas,
suas advertências, mas sempre repassadas de amor e de carinho pelo filho querido
que se preparava para a vida na escola.
Não será demais, nestas Memórias, transcrever aqui uma dessas cartas, onde
se revela o caráter desse livro, único no mundo, hoje completamente esquecido e
fora do alcance dos nossos escolares, cujo alimento espiritual, desgraçadamente,
parece ter se resumido nas historietas em quadrinhos, alheias à nossa cultura, e
tendo quase sempre por motivos a violência, o crime, o desamor.
A carta é esta:
Os amigos operários
abril, quinta-feira, 20.
Nunca mais, e por que Henrique? Isso depende de ti. Acabada a 4ª classe, irás para o ginásio:
eles serão operários, mas ficarás na mesma cidade e talvez por muitos anos. E por que então os
não verás mais? Quando estiveres na universidade ou no liceu poderás procurá-los nas suas
lojas e nas suas oficinas, e sentirás grande prazer tornando a ver os teus companheiros de
infância, já homens, a trabalhar. Sempre quisera ver se não irias procurar Coretti e Precossi
onde quer que estivessem! Hás de ir lá e hás de passar muitas horas em sua companhia, estudando a vida e o mundo, aprendendo com eles muitas coisas que outros não te saberiam ensinar, a respeito das suas artes, de sua sociedade e do teu país. E nota que, se não conservares
essas amizades, será difícil que adquiras outras semelhantes no futuro: amizades, quero dizer,
fora da classe a que pertences; viverás assim numa só classe, e o homem que freqüenta uma só
classe social, desde já, para conservar aqueles bons amigos para quando estiverdes separados, e
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
131
se convença desde já a preferi-los, por isso mesmo que são filhos de operários. Os homens das
classes superiores são os oficiais e são os operários, os soldados do trabalho; mas assim na
sociedade como no exército, o soldado não é menos nobre do que o oficial, porque a nobreza
está no trabalho e não no dinheiro; no valor e não nos galões; mas se há uma superioridade no
mérito, pertence esta ao soldado e ao operário, porque tiram menos proveito da própria obra.
Ama, pois, e respeita entre todos os teus companheiros, os filhos dos soldados do trabalho;
honra neles as fadigas, os sacrifícios de seus pais, despreza as diferenças de fortuna e de classe,
pelas quais os homens vis regulam os sentimentos e a cortesia e pensa que o sangue abençoado
que resgatou nossa pátria saiu quase todo das veias dos operários das oficinas e dos trabalhadores dos campos. Ama Garrone, ama Precossi, ama Corretti, ama o teu "Padreirinho", pois no
peito desses pequenos operários palpitam corações de príncipes; jura a ti mesmo que nenhuma
mudança de fortuna poderá jamais arrancar estas santas amizades infantis de tua alma. Jura
que se daqui a quarenta anos, passando por uma estação de estrada de ferro, reconhecerás,
metido na blusa de maquinista, o teu velho Garrone, com a cara empoeirada... Ah! não preciso
do teu juramento: estou certo que saltarias na máquina e te lançarias nos braços do teu amigo,
ainda que fosses senador.
Teu Pai
Dessa época são também os Contos infantis, de Olavo Bilac e Manoel Bonfim;
Os contos pátrios, de Olavo Bilac e Coelho Neto; os contos de Júlia Lopes de Almeida.
Ao lado desses, figuravam as Leituras de Ilka e Alba, de Fábio Luz, a que já me
referi, o Céu, terra e mar, coletânea de poesias compilada por Alberto de Oliveira,
na qual aprendíamos o que havia de melhor na produção dos grandes nomes da
poesia. Mais adiante, dava um verdadeiro salto para Os Lusíadas, texto obrigatório
nos exames de português do Colégio Pedro II. Era dessa época também a Antologia
nacional, de Fausto Barreto e Carlos de Laet, através da qual travávamos conhecimento com os trechos mais notáveis da literatura portuguesa e brasileira, e dos
autores, desde os mais antigos até os que se consagraram já em nossos dias, alguns
vivendo ainda e que conhecíamos pessoalmente: Olavo Bilac, Coelho Neto, Alberto
de Oliveira. Mas, Gonçalves Dias, Casimiro de Abreu e Castro Alves eram também
nossos ídolos e todos conheciam de cor e recitavam em aula ou em festas escolares:
O pássaro cativo, O caçador de esmeraldas, O navio negreiro, O livro e a América,
I Juca-Pirama, sem excluir O melro, de Guerra Junqueiro.
Foi por esse tempo também que descobrimos e penetramos naquele mundo
maravilhoso e imenso de Júlio Verne, em que devorávamos emocionados aqueles
volumezinhos encadernados em percalina vermelha, mal impressos, com poucas
gravuras e letras miúdas, editados pela Livraria Francisco Alves: Cinco semanas em
um balão, Da terra à lua, A volta do mundo em oitenta dias, Um herói de quinze
anos, Vinte mil léguas submarinas, A ilha misteriosa, Matias Sandorf e tantos
outros. Cada novo título que descobrimos num "sebo" (as livrarias que negociavam
com obras de segunda mão e das quais éramos assíduos freqüentadores) ou conseguíamos por empréstimos com algum colega, era uma verdadeira festa. Não sei por
que o grande francês não possui monumentos em cada canto do mundo, onde suas
histórias maravilhosas empolgaram a imaginação de gerações inteiras de adolescentes, na literatura de ficção mais audaciosa e jamais produzida nem mesmo com
o advento das revistas em quadrinhos, e que a ciência e o progresso técnico deveriam transformar, em muitos aspectos, em grandiosa realidade.
132
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
As aventuras de Rafles e de Arsène Lupin, publicadas em capítulos pelas
revistas da época (Seleta, Fon-Fon, Revista da Semana) também faziam parte do
reino encantado de nossa adolescência, com largo consumo, e no qual sobressaíam
também os romances de capa e espada de Michel Zévaco ou Alexandre Dumas, tais
como o célebre Conde de Monte Cristo ou Os Três mosqueteiros, entre outros.
De quando em vez um opúsculo obsceno, que não sabíamos bem de onde
provinha, penetrava clandestinamente em nossas salas de aula, relatando em termos
terrivelmente crus o que se passava naquelas áreas oficialmente proibidas do encontro dos sexos. Lembro de alguns que produziam verdadeiros impactos sobre a nossa
inocência ou ignorância, aumentando enormemente a excitação em que vivíamos,
em virtude dos efeitos de maturação biológica que se processava. E se, na verdade,
tratava-se de "literatura pornográfica" da mais baixa espécie, o fato é que, nesses
folhetos, muitos até com ilustrações bastante esclarecedoras, encontrávamos muitas
respostas a questões para nós dramáticas, mas que não eram dadas por outras fontes.
E assim, de maneiras as mais impróprias, segundo os padrões da época, de certa
forma essa "literatura" passava a fazer parte de nossa formação...
Mas, também o lado romântico de nossa adolescência, em pleno desabrochar, procurava ávido o alimento literário nos romances de amor: Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco; A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães; Inocência, de Taunay; a Rosa do Adro; os romances de Júlio Diniz. são lembranças desse
período. José de Alencar aparecia também, com seus dois aspectos, o da aventura e
o dos perfis de mulheres misteriosas: O Guarani, Iracema, As minas de prata, O
tronco do ipê, O sertanejo, O gaúcho, mas também Senhora, Diva, Lucíola. Lêmolos todos. E também Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano, A moreninha, de
Macedo; O Ateneu, de Raul Pompéia. Todos esses eram como passagem obrigatória,
assim como os românticos de Machado de Assis: Helena, Iaiá Garcia, D. Casmurro.
Na fase do "moralismo" que freqüentemente ataca os adolescentes, percorríamos
os clássicos norte-americanos: os Mardens e os Smiles.
Mais tarde, o anticlericalismo de meu pai levar-nos-ia a Guerra Junqueiro e
a Eça de Queiroz, este último em grande voga naqueles tempos, com sua prosa
citada como modelo, com seu lirismo, sua crítica social, seus enredos dramáticos.
Os poetas já tinham nossa apreciação, desde os tempos de escola primária.
Depois, na Escola Normal, era a época da exaltação do soneto, da rima, que viria a
ser demolida mais tarde pelos golpes do "futurismo", que fez entre nós sua irrupção
ruidosa com a Semana da Arte Moderna, em 1922. Coelho Neto, que conhecemos
depois pessoalmente, como diretor da Escola Dramática, ao tempo da Reforma
Fernando de Azevedo, também dava motivos para intermináveis controvérsias literárias, na interpretação de sua prosa rebuscada. Ficávamos felizes quando verificavam que sabíamos perfeitamente que o avantesma, do grande e gongórico escritor
era apenas o fantasma das pessoas comuns...
Tivemos também um período de incursões na literatura espírita, quando
meu pai se filiou a essa doutrina e andamos a penetrar nas obras de Allan Kardec.
Entre elas, destacava-se O Evangelho segundo o espiritismo, que era a Bíblia dos
espíritas. Mas também Léon Denis, Roustain, Flamarion e William Crookes, os dois
últimos cientistas, que tentaram basear na ciência as afirmações do espiritismo
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
133
sobre a existência de vida depois da morte e em outros planetas... Daí, passamos
aos grandes materialistas do século 19: alemães, franceses e ingleses, cujo mais
destacado foi Charles Darwin, com sua revolução no conhecimento da evolução
das espécies, que abalaria as crenças mais arraigadas da humanidade, na criação,
por Deus, de um ser especial, feito à sua imagem e semelhança. Descendemos de
macacos! Era o desafio que o grande naturalista lançava à face do orgulho do
homem, que passava a ser apenas o último elo da cadeia ininterrupta dos seres, que
vinham desde os mais elementares até os mais complexos, com suas realizações
prodigiosas que os equiparariam aos deuses.
Percorríamos as obras daqueles grandes nomes das ciências físicas e naturais, que representaram os cumes da ciência do século 19, naquelas traduções portuguesas, encadernadas em pano couro de várias cores, que obtínhamos a preços
acessíveis nos "sebos", especialmente no velho Martins, que tinha sua loja escura,
empoeirada, desarrumada, mas cheia de encantos para nós, ali, na Rua Senador
Euzébio, próximo ao Palácio da Prefeitura, e que depois foi absorvida pela Avenida
Presidente Vargas.
Perlustramos poucos clássicos, pois o latim e ainda menos o grego já não
eram mais componentes obrigatórias na formação da juventude de minha época.
Eles chegavam até nós somente associados aos exames de preparatórios e sem
qualquer atrativo, pois os professores não nos explicavam o alcance daquelas
obras imorredouras da literatura clássica, mas apenas nos faziam traduzir os trechos mais freqüentemente utilizados nas provas e assim sem ligação com o contexto completo, sofríamos no esforço de memorização das declinações, da ordem
indireta, da regência, das preposições, dos verbos. Lembro-me, a propósito, das
memórias de Winston Churchill, que também nunca pôde conciliar sua juventude
aventureira com aquela tortura do mensa, mensae, que ele descreve tão bem.
Considerou-se, por isso, um fracassado, de acordo com os padrões da educação
da época, em Oxford e Cambridge. e isso o levou a se dedicar ao cultivo da língua
inglesa moderna, em que chegou a ser um mestre da palavra falada e escrita.
Consolei-me, assim, de minhas reprovações no latim na banca examinadora presidida pelo professor Antenor Nascentes, que mais tarde tanto vim a admirar
pelos arejados conceitos no ensino da língua nacional, inclusive com sua defesa
da gíria, que considerava como a língua viva, em plena formação. Sobre os clássicos ainda, vim a aprender com meu colega, amigo e especialista Ernesto Faria,
que, somente se desperta o interesse dos jovens pelas grandes obras da humanidade quando se explica primeiro todo o alcance das mesmas, em suas fantasias
mitológicas, e referências históricas: somente depois disso é possível fazer mergulhar nas tricas gramaticais das declinações, regências e verbos.
A descoberta de uma tradução completa da Eneida de Virgílio, feita por um
professor mineiro, foi para mim a revelação de toda a beleza desse poema clássico,
desde as vicissitudes trágicas de Enéias, o fundador de Roma, até a ternura e desespero do infeliz amor de Dido pelo herói.
Pude assim compreender depois os conceitos expendidos por Voltaire em
carta à senhora Deffaud, escrita em 1754:
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
A senhora sabe latim? Não. Por isso é que me pergunta se prefiro Pope a Virgílio. Ah!
Madame, todas as nossas línguas modernas são secas, pobres e sem harmonia, em comparação
com as que falavam os gregos e os romanos, nossos primeiros mestres. Não passamos de violinistas de aldeia. Como quer a senhora, aliás, que eu compare de um poema épico, os amores de
Dido, do incêndio de Tróia à descida de Enéias aos infernos. Considero o Ensaio sobre o Homem,
de Pope, como o primeiro dos poemas didáticos, os poemas filosóficos; mas não ponhamos nada
ao lado de Virgílio. A senhora conhece por meio de tradução; mas os poetas não se traduzem.
Pode-se traduzir música? Tenho pena da senhora por não poder, com todo o seu gosto e sua
sensibilidade esclarecida, ler Virgílio.
Não é por acaso que a Eneida foi considerado como modelo do poema épico
e todos os poetas posteriores, se não o copiaram, tomaram-no como inspiração e o
seguiram. Dante em sua Divina comédia toma Virgílio como guia de suas aventuras: "Tu duca, tu maestro, tu signore." E o "divino mestre" é o modelo dos grandes
épicos da Renascença: de Tasso, na Jerusalém liberata; de Ariosto, no Orlando Furioso; de Milton, no Paraíso perdido; de Voltaire, na Henriada. E Camões, nos
Lusíadas, como se sabe, começa seu poema quase que com as mesmas palavras do
poema máximo da latinidade:
Arma virumque cano...
As armas e os barões
assinalados... canto...
Por tudo isso, sempre tive uma grande inveja daqueles que podiam ler no
original esses monumentos da cultura clássica.
Sem muita ordem cronológica, quero referir-me à literatura francesa, que, a
princípio obrigatória como parte dos textos a serem percorridos no ensino secundário, era ,depois descoberta na integralidade de suas obras imortais, tão ligadas à
nossa formação: um Balzac, um Victor Hugo, um Sthendal, Zola, Anatole France,
entre os maiores.
O ensino de inglês, com suas seletas, entre as quais me lembro, havia uma
denominada Estrada suave, levava ao interesse pelos maiores autores dessa língua,
como um Walter Scott ou Charles Dickens e, mais tarde, Shakespeare.
Mas, no meu caso, houve um desvio nesse caminho comum percorrido pelos
estudantes, pois enveredamos pelos estudos do alemão, pelas razões que veremos
adiante. E assim é que, certo dia, vi-me a traduzir, entre obras germânicas, o Also
Sprach Zarathustra, de Nietzsche, com suas belas máximas e parábolas de sabor
bíblico.
Não faltaram também, nessa fase, os russos, com os gigantes Tolstoi,
Dostoievski e Gorki. E os grandes norte-americanos: Mark Twain, Poe, Walt Whitman,
Hawthorne, Dreiser, Melville, Jack London, Hemingway, Steinbeck, Faulkner.
O gosto pela leitura, a valorização do livro como fonte de aquisição de
conhecimentos, mas principalmente de prazer estético, já a essa altura estava fortemente estabelecida e nunca mais deveria abandoná-la.
O curso da Escola Politécnica, naturalmente, levar-me-ia às obras de matemática e ciências físicas, em nível superior, o que foi de grande utilidade para o
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
135
meu desenvolvimento futuro, mesmo de caráter profissional. Houve certo momento mesmo em que pensei em me dedicar ao ensino da estatística e da metodologia
da matemática, em nível secundário, no curso de formação de professores. Não
obedecia, com isso, a uma tendência mais forte de meu espírito, pois, conforme fui
verificando aos poucos, nessa auto-análise que vamos empreendendo nem sempre
muito conscientemente durante a vida, minhas inclinações eram muito mais para o
intuitivo e artístico, do que para trilhar o caminho dos chamados conhecimentos
positivos, das chamadas ciências "exatas".
Mais tarde, com a especialização profissional, fui obrigado a penetrar naquela selva selvaggia da psicologia, da pedagogia, da didática, da metodologia, de
que constituí biblioteca bastante extensa, adquirindo tudo o que aparecia nas línguas que podia ler. Depois, com o curso feito na América do Norte, viriam juntar-se
a essa bibliografia novos volumes, contendo as direções da pedagogia daquele país,
que então já penetrava com bastante força entre nós. E por fim, com a viagem à
União Soviética, pude completar esse capítulo com tudo o que da produção desse
país pude obter em línguas acessíveis.
Fui levado depois a travar conhecimento com a literatura marxista. Percorri-a quase toda, a clássica, a prático-revolucionária e, por fim, as novas correntes
que pretendem interpretar aspectos até agora não explicados da crise do mundo
contemporâneo, com a crítica às teses marxistas, ao menos àquelas derivadas de
um marxismo considerado vulgar.
Minhas preferências acabaram por se definir no campo da história e da
filosofia, principalmente depois que tive que rever todos os meus conhecimentos,
onde havia muitas falhas resultantes da ausência em minha formação de um curso
superior sistemático nessas áreas. Voltando ao ensino, nas cadeiras de história e
filosofia da educação, aquelas lacunas se tornaram patentes e tive que fazer um
grande esforço para saná-las.
•••
Aliviado, porém, de todas as obrigações profissionais com a aposentadoria,
ficou-me esse gosto pela leitura, pela literatura, e cada novo livro que manuseio,
quase que com prazer erótico, é uma festa e um refúgio para as agruras da vida.
E nesse "entardecer da vida", penso como Blake que devemos admitir
[...] que existem homens que vêem o mundo não com a visão trivial ou como a investigação
científica o vêem, mas transformado, indiscutivelmente fulgurante; é que vendo o mundo assim, vêem-no como ele realmente é. Ao invés de nos apressarmos a degradar os relatos extasiados
de nossas videntes, de interpretá-los ao nível mais ínfimo e convencional, devemos estar dispostos a considerar a escandalosa possibilidade de que, onde quer que a imaginação visionária
fulge, a magia, aquela velha inimiga da ciência, renova-se transmudando a realidade cotidiana
em algo maior, talvez mais assustador, decerto mais audaz, do que a racionalidade atrofiada da
consciência objetiva poderá jamais admitir.
E, para mim, esses magos, esses videntes, esses inspirados pela verdadeira vida,
exorcizados pelos cultores fanáticos da "consciência objetiva" ou pela inconsciência
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
medíocre dos tecnocratas frios, são os artistas, são especialmente os criadores desses
monumentos literários, imperecíveis, que atravessaram séculos, conservando sempre
o mesmo frescor, a mesma beleza da "arte divina", como dizia Homero, para quem o
próprio Zeus impunha aos seus heróis um triste destino para que em "cantos excelsos"
pudessem ser celebrados pelos vates. E é Vênus quem fala:
Triste destino Zeus nos deu para que nos celebrem nas gerações porvindouras, os cantos
excelsos dos vates. (Ilíada, 357-358).
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO IX
ESPIRITISMO
Só muito recentemente é que vim a saber, por
minha mãe, e aliás com surpresa, que, quando conhecera meu pai, era ele católico praticante; foi ele quem fez
questão da realização do casamento religioso, com toda
a pompa característica da cerimônia na época.
Minha mãe, ao contrário do que sempre supus, apesar de católica, como toda a família, não era praticante
estrita e não me lembro mesmo de tê-la visto freqüentar a
Igreja em qualquer ocasião.
Contou-me ela, quando eu procurava conhecer
certas particularidades de nossa vida de família para tentar redigir estas Memórias, que, durante a viagem de
meu pai à Itália para buscar a irmã, a tia Paschoalina,
um compadre – o Januário Cordeiro, espírita e amigo da
família – , batizou, "um pouco por brincadeira", como
me dizia ela, o Virgilio, meu irmão mais velho. Na mesma ocasião, o Vicente, irmão mais moço de meu pai,
com a tia Deolinda, irmã de minha mãe, batizaram a
Palma, minha irmã.
O fato é que, nas recordações mais antigas que
guardo de meu pai, já o vejo como praticante do espiritismo, que considerava, porém, como uma "ciência" e
não propriamente como uma religião ou uma seita: a
sobrevivência da alma humana, para ele, era um fato
perfeitamente demonstrável, tal como a vida em outros
planetas e a evolução dos espíritos e seu aperfeiçoamento em múltiplas encarnações...
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Mas, a história da conversão de meu pai ao espiritismo foi mais ou menos a
seguinte, segundo ainda relato de minha mãe, confirmado mais tarde por meus
dois irmãos mais velhos.
O "compadre" Januário Cordeiro era um jornalista de boa cultura, que se
dedicava ao teatro e tinha uma farmácia na Estação de Piedade, onde morava. Era
também "médium" e fornecia a nossa família receitas médicas recebidas "do além"...
Freqüentava o Centro Espírita Antônio de Pádua, que funcionava num
sobrado da Rua General Câmara, próximo à Estação Central da Estrada de Ferro
Central do Brasil, rua essa que, como se sabe, desapareceu posteriormente com a
abertura da Avenida Presidente Vargas.
Minha mãe estava às vésperas do parto do quarto filho e passava muito mal.
O compadre Januário, então, exortou meu pai a pedir com fé a Santo Antônio de
Pádua que viesse em socorro da parturiente. E, realmente, logo em seguida, por
coincidência, a criança nasceu sem maiores problemas...
Esse meu irmão deveria por isso chamar-se Antônio de Pádua, mas, afinal,
acabou sendo apenas Antônio, apelidado depois de "Tonico" e que mais tarde deveria tornar-se o doutor Lemme Júnior, quando se graduou em odontologia na Faculdade de Medicina.
O "compadre" Januário teve um fim triste: segundo me parece, mulherengo
inveterado, sempre atrás de algum "rabo-de-saia", o que era facilitado por suas
atividades ligadas ao teatro, acabou se entregando à embriaguez, morrendo depois
de um derrame cerebral, quase na miséria.
Meu pai passou a freqüentar o Centro Espírita Antônio de Pádua. Mais tarde
creio que se filiou à Federação Espírita Brasileira, mas, entrando em divergência
com Frederico Figner, líder espírita brasileiro na época, acabou deixando a Federação e fundando a União Espírita Suburbana, que chegou a ter sede própria no
Méier, cuja construção foi promovida por um grupo espírita liderado por meu pai.
Era partidário da corrente chefiada por Allan Kardec, kardecista portanto, e se
opunha tenazmente a uma outra corrente – a de Roustain. A diferença entre as duas
correntes, segundo pude entender pelas intermináveis discussões que presenciei muitas vezes entre os respectivos partidários, seria: a primeira considerava Jesus o "divino
mestre", como diziam, possuidor de um corpo físico da mesma natureza da dos outros
homens, tendo pois sido reais seus sofrimentos, e assim, os "milagres" que realizava
provinham de sua condição como espírito superior que era, enviado a terra por Deus
para salvar a humanidade. Já os roustenianos afirmavam que o corpo de Jesus era
"fluídico", constituído de matéria especial, a mesma que formava a dos "espíritos",
porém "materializado", pois só assim se explicavam os referidos "milagres", que de
outra forma não seriam admissíveis.
Em torno desses e de outros problemas, segundo me lembro, travavam-se
ásperas e complicadas discussões cujo alcance, é claro, não podia compreender
completamente.
Meu pai chegou a reunir uma biblioteca bastante extensa sobre o espiritismo, a começar pelas obras de Allan Kardec, considerado o "grande mestre", que
eram estudadas minuciosamente.
140
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
O Evangelho segundo o espiritismo era a "bíblia", comentada nos mínimos
detalhes e servindo de texto para as pregações e os exemplos edificantes que estimulavam os ouvintes a seguirem a doutrina.
Mas, além de Allan Kardec, outros autores faziam parte dessa biblioteca
especialmente León Denis, Camille Flamarion e William Crookes. Os dois últimos, se
não eram propriamente autores espíritas no sentido comum, mereciam consideração, o primeiro pela defesa da tese da existência de vida em outros planetas, e o
último, por suas célebres experiências, na Inglaterra, sobre a "materialização dos
espíritos", questão considerada indiscutível para os seguidores do espiritismo mas
que com a contribuição de Crookes, diziam eles, ganhava base "científica".
Como conseqüência dessa orientação, em minha casa, o tratamento médico,
durante muito tempo, ou melhor, em todos esses anos de minha infância e adolescência, era feito pela homeopatia, sobre a qual meu pai e minha mãe chegaram a
ganhar muita experiência, receitando e indicando uma grande variedade de remédios para tratamento das enfermidades mais comuns. As "receitas" principais, porém, eram obtidas por meio de "médiuns" amigos da família, que, apenas com a
indicação do nome e da idade do paciente prescreviam a medicação adequada a
cada caso.
Recordo-me bem de ter ido muitas vezes buscar essas "receitas" com um
desses "médiuns", um professor da Escola Normal, Isaltino Barbosa, negro, gordo,
alma bondosa, que recebia o menino que eu era com grande amabilidade, tomava
de uma "tira" de papel almaço, escrevia no alto o nome do doente, concentrava-se
durante alguns minutos com uma das mãos apoiada na testa e, com a outra, rabiscava rapidamente a folha com os nomes dos remédios e as prescrições e, até mesmo, o diagnóstico, quando solicitado.
Os medicamentos eram geralmente adquiridos na Farmácia Almeida Cardoso, situada à Rua Marechal Floriano, próxima do largo de Santa Rita. Dali trazíamos
aqueles vidrinhos contendo os remédios prescritos: acônito, beladona, colocintes e
tantos outros, na dinamização adequada, conforme as teorias do inventor dessa
modalidade de farmacopéia, o médico alemão Samuel Christian Friedrich
Hahnemann, que a introduziu em 1876, e que se baseava na máxima similia, similibus
curantur, já sugerida por Hipócrates e Paracelso.
Meu pai chegou a ter certa proeminência nos meios espíritas e presidia
sessões de estudos e de práticas, mas sempre procurando dar a essas atividades o
caráter de conhecimento positivo, apesar de envolverem também aspectos dos cultos religiosos, especialmente as orações, a caridade, a moralidade estrita e outras
virtudes cristãs.
A essas sessões, ainda bem criança, eu e o Virgílio éramos levados por meu
pai, e assim tive oportunidade de apreciar muitas vezes seus dotes de orador e
pregador e suas qualidades didáticas nas explicações e interpretações dos textos,
especialmente do referido Evangelho de Allan Kardec.
Assistíamos também às "manifestações espíritas", onde presenciávamos muitas vezes pessoas que falavam de assuntos num nível que estava muito acima de sua
cultura em estado normal. Explicava-se, então que esses "médiuns" estavam recebendo "espíritos superiores", que, através de suas falas, nos instruíam e aconselhavam.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
141
Havia também os "médiuns" psicográficos, que escreviam extensas mensagens, as
quais seriam inteiramente incapazes de compor em seu estado normal. Observamos
também muitas vezes fatos realmente estranhos, como de uma senhora bastante
volumosa e pesada rodopiar em cima de uma mesa em movimentos quase que graciosos e leves, sem qualquer relação com a aparência real que apresentava em estado
normal...
Havia também os casos de "obsessão" em que "espíritos inferiores", por qualquer circunstância, perseguiam uma criatura, causando-lhe transtornos psíquicos,
que somente eram aliviados ou sanados com a "incorporação" desses espíritos em
"médiuns", sua "manifestação", como se dizia, para serem doutrinados ou exortados a se afastarem dos pacientes, que se recuperavam então de suas visões, anomalias ou comportamentos estranhos. Recordo que durante algum tempo tivemos em
nossa casa uma jovem senhora positivamente esquizofrênica, que fora entregue
aos cuidados de meu pai para sua recuperação, aliás sem qualquer resultado. Tinha
os comportamentos mais imprevistos, próprios dessa terrível doença mental, que
mais tarde tive a dolorosa infelicidade de conhecer muito bem, pois vi um dos meus
filhos mergulhar aos poucos nela, até hoje sem qualquer meio realmente eficaz de
tratamento.
Havia também os "passes", largamente utilizados, isto é, a aposição das mãos
ao longo do corpo do paciente para aliviá-lo das crises de agitação, de angústia ou
de outras manifestações doentias. Eu mesmo presenciei muitas vezes sua aplicação.
Os "médiuns" forneciam também nas sessões "água fluídica", em garrafas, a que se
atribuía virtudes curativas, tal como a água "benta" dos católicos.
Guardo bem de memória algumas figuras desse período, amigos espíritas de
meu pai, que freqüentavam nossa casa.
Um deles, muito assíduo, era o velho Manuel Paiva, português, operário
aposentado do Arsenal de Guerra, que se dizia ser um dos primeiros moradores do
Méier, conforme já referimos anteriormente, pois contava ter sido o primeiro comprador de um lote de terreno nessa localidade, situado à antiga Rua Hermengarda.
Mantinha em sua casa um "centro espírita", freqüentado por meu pai, e no qual
presenciei aquelas cenas que descrevi, de manifestações de espíritos.
O outro era o jornalista Alberto Pereira da Silva, creio que do Correio da
Manhã, homem culto, afável, e que quase sempre nos visitava aos domingos. Contava-nos então, em prosa agradável, intermináveis casos de espiritismo. Era dado
também a atividades de "vidente": assim, dizia que minha mãe, na última encarnação,
teria sido "mandchu" (originária da Mandchúria), pois até seu tipo físico e sua
fisionomia lembravam sua origem oriental. Quanto a mim, via-me sempre como
um homem de grande estatura, de que ele não podia precisar bem a origem, mas
que deveria ser ou da Patagônia ou do México. Não sei se por influências dessas
conversas, ou por outra razão qualquer, o fato é que um dos países que mais me
atraíram, sem qualquer razão especial, foi o México, que, aliás, infelizmente, nunca
pude visitar, mas cuja história empolgante sempre me interessou.
Essas tertúlias e discussões eram travadas num tom muito sério e elevado,
pois, como disse, o espiritismo era considerado por meu pai e seus correligionários como um conhecimento de caráter científico, e não como religião, seita ou
simplesmente como fé.
142
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Certa vez, meu pai foi chamado para observar estranhos fenômenos que
estariam acontecendo em casa da família de Sílvio Romero, já falecido. Para lá
fomos num domingo, sendo a primeira vez que tinha a oportunidade de visitar
Copacabana, que a esse tempo, era pouco mais que um grande areal. Dizia-se que
um busto de bronze do grande escritor, colocado na sala de visitas, em determinadas ocasiões "chorava"; havia também deslocamentos de objetos e ruídos estranhos, sem causa aparente. Não me lembro, porém, de ter ficado impressionado ou
convencido com o relato dessas ocorrências feito por pessoas da família que nos
receberam. Nunca tive também a oportunidade de confirmar a ocorrência desses
fatos, pois sempre me ficou a dúvida de se tratar realmente da casa do grande
autor da História da Literatura Brasileira. E muito mais tarde, colega de Nelson
Romero, professor, e amigo de Osvaldo Romero, alto funcionário da Secretaria de
Finanças no antigo Distrito Federal, filhos de Sílvio Romero, nunca me ocorreu
indagar de qualquer deles sobre a veracidade dessas histórias.
De tudo isso, pela idade, éramos principalmente eu e meu irmão mais
velho, Virgilio, meros assistentes ou espectadores. Minha mãe não tomava parte nessas reuniões espíritas e a participação dela limitava-se quase que exclusivamente ao consumo dos medicamentos de origem espírita: nem nunca cheguei a saber exatamente seu grau de crença em todas aquelas práticas. É certo
que sofremos a influência desse ambiente de casa, mas num sentido que não sei
exatamente definir. Ficou-nos um traço evidente de anticlericalismo, não intransigente, e uma certa singularidade em relação às famílias comuns, que eram
geralmente católicas praticantes.
Como única manifestação direta nessas atividades espíritas, recordo-me de
um longo requisitório que redigi contra a direção da União Espírita Suburbana de
onde meu pai tinha se afastado, não sei exatamente por que espécie de divergências. A União, certa vez, fizera distribuir uns folhetos com propaganda do espiritismo,
folhetos esses que eram distribuídos de casa em casa. Um deles foi parar em nossas
mãos e, discordando de seus termos, escrevemos o tal documento que está datado
de 5 de abril de 1923. Tinha eu, portanto, 19 anos.
Começava com uma epígrafe tirada dos versos de Guerra Junqueiro, de crítica à comercialização das coisas da Igreja católica apostólica romana, e que era a
seguinte:
Deus Filho, Bazar da Fé. Venda forçada.
Pela barca de Pedro a Judas consignada,
Chega um rico sortido em modas da estação,
Ver para crer! Surpresas! Atenção, ocasião
Única! Aproveitai, Comprai! Pechincha certa!
Ao bazar do Calvário! Ao Nazareno! Alerta Cristãos.
É o desfazer da feira. Último dia!
E continuava:
É assim que Guerra Junqueiro inicia uma das mais mordazes sátiras à hipocrisia católica
romana, e só nela, eterna ironia, encontramos a fórmula precisamente ajustável ao modo pelo
qual a União Espírita Suburbana pretende fazer a propaganda do Espiritismo!
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
143
E a coisa vai por aí, nesse estilo acrimonioso e, às vezes até insolente, muito
próprio da idade, desenvolvendo-se por 12 laudas datilografadas... A maior razão
da irritação era o que vinha contido na primeira declaração do folheto: "O Espiritismo declarando ser religião"... Ao que replicávamos indignados: "Em que época,
lugar ou ocasião, fez o Espiritismo tal declaração?" E dávamos a definição tal como
vem consignada pelo "mestre" Allan Kardec: Espiritismo é uma ciência que trata
da natureza, origem e destino dos espíritos, bem como de suas relações com o
mundo corporal (sic).
E terminávamos assim:
Aqui ficamos.
Não continuaremos a nossa apreciação, não só por já nos termos estendido mais do que o
conveniente numa simples carta, como também por ser inútil, pois as "razões" restantes afinam
pelo mesmo tom das primeiras.
Terminaremos, portanto, mas antes pedimos permissão para dar-vos um conselho e, podem
estar certos, um conselho de verdadeiros amigos.
Porque, ao invés de empregardes vossa atividade e os elementos materiais que possuís em
sessões e reuniões e outras inutilidades da maneira porque são feitos, onde nem ao menos pode
haver cooperação livre dos que desejam trabalhar, pois até as palavras que aí se pronunciam
devem ter a condição absoluta de serem calibradas pelo vosso modo de pensar e portanto onde
não há a mínima liberdade, condição indispensável para a obtenção de algum resultado; porque
dizemos nós, em lugar de todas essas coisas: legião do bem, manifestações de espíritos, doutrinações, sessões religiosas, preces a "Nosso Senhor Jesus Cristo" etc. etc., onde a assistência, sem
a menor ingerência, ouve passivamente, de cabeça baixa, e até constrangida, tudo o que quiserdes
dizer, como ouviam o padre ou o pastor, sendo portanto um trabalho absolutamente inútil; por
que, repetimos, não transformais tudo isso num centro de verdadeiro trabalho, tornando-vos
defensores das mais belas causas – a de espancar as trevas da ignorância (sic)? Desiludi-vos
meus amigos, o espiritismo do modo pelo qual está sendo praticado e propagado, longe de ser o
consolador prometido, será um veículo da conservação do erro e da ignorância. Transformai a
União Espírita Suburbana num centro onde a ignorância mais desprotegida possa haurir a verdadeira ciência: a física, a química, a história natural, a matemática racional, a astronomia,
prelúdios esses ministrados de acordo com os princípios da ciência universal – O Espiritismo.
Veja-se, por essa manifestação, ainda quase juvenil, o caráter que queríamos dar ao Espiritismo, de verdadeira "Ciência Universal"... Imaginem!.
Mas é também uma demonstração de que reagíamos ao que considerávamos como um rebaixamento do Espiritismo ao nível de uma religião qualquer, com
todas as suas superstições.
Meu pai recebeu meio desconfiado essa nossa manifestação, assim tão desabrida: creio que a esse tempo ele já estava entrando em choque com seus antigos
companheiros de crença, e talvez, quem sabe, já sentia certo abalo em suas convicções, mas ainda sem muita certeza sobre o caminho que deveria seguir daí por diante.
Em todo o caso, ficou evidente que nossa formação, nossos estudos, a influência do ambiente em que vivíamos, onde meu pai fizera sua ascensão até um
curso superior e nós seguíamos suas pegadas, impedia-nos de descambar para práticas supersticiosas características do chamado "baixo espiritismo".
Mais tarde, rompemos completamente com meu pai em relação ao seu
espiritismo, criticando-o por ter acabado por se ocupar mais de questões referentes ao "outro mundo" e colocando as coisas terrenas em segundo plano,
inclusive os problemas da casa e da família.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
De certa forma não era muito justa essa nossa apreciação. Esse rompimento,
porém, significava talvez uma reação ao seu autoritarismo, e assim, procurando escapar à sua influência, nos afirmar como pessoas independentes. É essa, aliás, a evolução natural das pessoas comuns, em sua passagem normal da adolescência para a
idade adulta e que se manifesta freqüentemente como um choque de gerações.
O espiritismo, porém, deveria mais tarde, conduzi-lo a uma situação bastante penosa para quem dedicara todo o seu esforço na constituição de uma família
que conseguira levar até uma condição bastante lisonjeira, tendo em vista suas
origens e um ponto de partida bem modesto.
Conforme já deixamos entender anteriormente, no Centro Espírita que funcionava na casa do português Manuel Paiva, meu pai conheceu uma criatura, "médium", à qual acabou se ligando, o que o fez se desviar de suas responsabilidades de
chefe de família e até mesmo abandonar a casa por um longo período, transferindo-se para São Paulo, em companhia dessa mulher e de duas de suas filhas.
Já estando eu fora de casa, esses descaminhos pouco me afetaram, mas
causaram grande abalo em casa, prejudicando em muito a educação dos restantes elementos da família, que eram a maioria. Minha mãe também sofreu
intensamente, pois, além de ferida profundamente em seu amor próprio de
mulher, constituiu tudo isso uma tremenda desilusão para todos os sonhos, que
naturalmente alimentava, de ter uma família unida e feliz, em que os cabelos
brancos coroariam uma vida de trabalho e esforços penosos, cercada dos netos
que perpetuariam as promessas do futuro.
Meu pai, já bem doente, sentindo talvez o fim próximo, pensou em voltar
para a casa e certo dia me procurou para servir como uma espécie de mediador.
Tentei desempenhar, da melhor forma possível esse penoso papel, obtendo de minha mãe o consentimento para que viesse passar seus últimos dias em casa. E sofreu terrivelmente antes de deixar definitivamente este mundo. . .
Essa passagem pelo espiritismo deixou em todos nós, além desse desfecho
doloroso, uma certa inadaptação ao padrão comum das famílias de nossa classe.
Eu, pelo menos, sempre senti essa singularidade em minha vida em contato com
outras pessoas e nunca pude definir exatamente o caráter dessa diferença. Ou já
éramos diferentes e a incursão pelo espiritismo foi apenas uma conseqüência?
Mas como ensina Kierkegaard,
[...] a fé é a mais elevada paixão de qualquer homem... Contudo ainda para aquele que não
chega até a fé, a vida implica em suficientes encargos, e se se a aborda com sincero amor, a
existência não será em vão, ainda que não possa ser comparada à existência daqueles que
alcançaram e compreenderam o mais elevado (Sören Kierkegaard, em Temor e tremor).
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO X
A ESCOLA POLITÉCNICA
Muitos dos rapazes que cursavam a Escola Normal faziam planos para prosseguir nos estudos em nível
superior.
A profissão de professor primário, já naquela
época, vinha sendo considerada entre nós como uma
atividade de caráter essencialmente feminino, e isso,
naturalmente, produzia nos elementos do sexo masculino um certo sentimento de inferioridade, que procuravam empenhando-se na conquista de diplomas
de cursos universitários em outras profissões.
Eu, além de participar desse sentimento, tinha
ainda o estímulo do confronto com os irmãos mais próximos em idade, que já estavam no caminho de se formarem em profissões de nível superior.
Alguns dos meus colegas encaminharam-se para
a medicina, outros para a Escola Militar do Realengo,
para onde tentaram me levar sem resultado: nunca tolerei a vida militar, com seu enquadramento hierárquico
e disciplinar, sinais exteriores, tais como fardas e outras
características, que não se coadunam com o meu temperamento. Não consegui mesmo fazer um serviço militar regular, obtendo mais tarde um "certificado de 3ª
categoria", de acordo com os regulamentos da época.
Pensei durante algum tempo em fazer o curso de
agronomia, pois não sei bem porque sempre senti certa
atração pelas atividades rurais, sentimento esse que me
acompanhou durante toda a vida.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Afinal, excluindo a medicina e o direito, carreiras pelas quais não sentia
qualquer inclinação, acabei optando pelo terceiro dos cursos mais procurados pela
juventude da época, pois eram esses os que tinham maior prestígio social e que
apresentavam melhores perspectivas de assegurar uma situação econômica mais
brilhante: a engenharia.
É certo que não se tratava propriamente de uma vocação muito nítida, pois
esta, se havia, seria para o magistério, para o ensino. Não obstante, não me desagradava a atividade da construção, especialmente no ramo da engenharia civil. É
certo que revelava certo gosto pela construção civil, pois meu pai sempre se entregara a grandes obras de reformas das casas que adquiria, e eu desempenhei em
muitas ocasiões a função de uma espécie de encarregado ou representante nos
serviços que deveriam ser executados e para os quais ele não dispunha de tempo
para acompanhar o cumprimento dos contratos.
Assim é que, ainda durante o curso da Escola Normal, como vimos, pus-me a
completar os "preparatórios" para a prestação do exame vestibular para a matrícula na antiga Escola Politécnica, o tradicional e prestigioso estabelecimento do Largo de São Francisco, o único, àquele tempo, que ministrava o ensino de engenharia
no Rio de Janeiro.
Possuía, como já disse, os certificados dos seis preparatórios exigidos para
os cursos de odontologia e farmácia. Era necessário completá-los com mais seis, a
saber: mais uma língua estrangeira (inglês ou alemão); as matemáticas (álgebra,
geometria e trigonometria); a história geral e do Brasil e o "famigerado" latim.
Em algumas dessas matérias podia me preparar para os exames vestibulares apenas com o estudo pessoal das partes dos programas oficiais que apresentavam diferenças em relação aos do curso normal. A língua estrangeira moderna
e o latim, porém, requeriam, assim como as matemáticas em nível mais elevado, o
auxílio de professores particulares. De como escolhi o alemão ao invés do inglês
será relatado adiante. O latim deu-me muito trabalho pois, como já disse, o ensino era péssimo e não tivera contato anterior mais profundo com a matéria ou
estímulo para perceber e apreciar todas as belezas da língua que, durante séculos, foi o veículo de toda a cultura ocidental. Baseava-se o ensino na fastidiosa
memorização das declinações, no hora, horae, como já referimos anteriormente,
nos verbos e na penetração penosa no cipoal dos autores exigidos nos exames
para tradução e análise gramatical, sem qualquer explicação sobre o significado
daqueles trechos e suas relações com o restante dos textos, das obras e dos valores da cultura e da civilização greco-romana. Só muito mais tarde, e apenas em
traduções, pude apreciar as belezas daquelas obras clássicas que chegaram até
nós: um Homero, um Virgílio, um Cícero, um Platão ou um Aristóteles.
Não é de estranhar, pois, que na primeira tentativa não conseguisse a aprovação desejada nas provas e tivesse que repetir, em segunda época, o exame.
Depois desse esforço era preciso ainda preparar o exame vestibular na
parte mais difícil, ao menos para mim, em vista do pouco preparo prévio e dos
programas bastante extensos, especialmente na parte referente à matemática: a
álgebra superior, a geometria analítica e a trigonometria, matérias que estudava
pela primeira vez.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Em março de 1925 consegui, afinal, com bastante dificuldade, penetrar como
aluno do primeiro ano no curso de engenharia civil, nas salas históricas do casarão
do Largo de São Francisco. Esse fato enchia-me de orgulho, pois o conseguira,
graças exclusivamente ao meu esforço, e como uma deliberação pessoal.
Criava assim a perspectiva de me elevar acima do magistério primário, ainda
que não tivesse qualquer projeto muito claro de exercer a profissão de engenheiro.
O objetivo no momento, era mais ampliar o âmbito dos meus conhecimentos, movido por aqueles sentimentos de ascensão a uma carreira de nível superior.
É certo que, em outros países, principalmente da Europa, o magistério
primário é exercido por grande número de homens, e há até uma certa corrente
de pensamento pedagógico que preconiza como benefício um contato dos meninos, e até mesmo das meninas, com professores primários do sexo masculino, mas
o preconceito entre nós e os baixos salários fizeram com que o ensino primário
fosse se tornando cada vez mais uma profissão procurada essencialmente pelo
sexo feminino.
Meu preparo básico para enfrentar o curso da Escola Politécnica, considerado o mais difícil dos três de igual prestígio social, não era grande, e por isso
encontrei muitas dificuldades para percorrer aqueles programas de matérias
inteiramente novas para mim, especialmente o cálculo diferencial e integral, a
geometria analítica e a geometria descritiva.
Além disso, minha nomeação, em 1924, para o cargo de professor adjunto
dos quadros do ensino municipal e a designação para trabalhar em escolas longínquas da zona rural do antigo Distrito Federal, tornavam muito difícil a freqüência
regular às aulas.
Por isso, somente em 1926, e com bastante dificuldade, pude prestar os
primeiros exames, relativos ao primeiro ano do curso.
Freqüentando pouco as aulas, minhas relações com os colegas eram superficiais: quase todos mais jovens do que eu e sem qualquer responsabilidade de
trabalho, levavam aquela vida despreocupada, folgazona, pois a maioria provinha de famílias cuja situação econômica permitia sustentá-los até a conclusão
do curso.
Minhas ligações eram mais estreitas com um pequeno grupo de elementos
mais velhos, que faziam o curso quase que nas mesmas condições que eu, isto é, já
trabalhavam ou mesmo já tinham responsabilidades de família, ou ainda, necessitavam do diploma de engenharia para ascenderem em suas carreiras profissionais,
já iniciadas.
Ainda hoje, porém, revejo com emoção aquelas salas do velho prédio, e
lembro-me muito bem do esforço que fazia para acompanhar as aulas, sempre
preocupado com os problemas do trabalho e, logo em seguida, com a responsabilidade de família, que vieram com o casamento, em 1927.
Não participava, mas admirava o estouvamento daquela juventude que ali
se preparava, alguns com grande brilho, para posições futuras, nas quais muitos se
distinguiram.
Mais tarde, minha situação funcional mudou radicalmente com a designação para a administração superior da Instrução Pública do antigo Distrito Federal,
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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para onde fui chamado em circunstâncias muito especiais e passei a integrar a
equipe de auxiliares de Fernando de Azevedo na grande reforma de ensino que
então se processava na capital da República. Essa nova situação fez com que, aos
poucos, fosse me convencendo que não poderia prosseguir no curso da Escola Politécnica, acabando por abandoná-lo.
Concorreu também para isso o fato de que, a posição que fui assumindo
como colaborador de Fernando de Azevedo, me aproximou de muitos educadores
que eram também professores do tradicional estabelecimento, tais como Dulcidio
Pereira, Azevedo Amaral, Mário de Brito, Everardo Backheuser, Barbosa de Oliveira,
que passaram a me considerar como um colega. E essa condição ficou ainda mais
evidente quando ingressei na Associação Brasileira de Educação, em 1926, que
liderava então todo o movimento pela renovação do ensino no Brasil e onde esses
e outros professores tornaram-se meus companheiros de luta, pois todos eles participavam das atividades dessa agremiação. Tudo isso criou para mim uma situação
de constrangimento, que foi me impedindo de me apresentar perante bancas examinadoras daquela escola, onde iria encontrar esses mesmos mestres, agora meus
colegas. Talvez isso pudesse ser considerado uma manifestação de escrúpulo exagerado, mas na realidade eu não dispunha mais de tempo para me preparar devidamente para os exames que deveria prestar perante alguns daqueles professores e
amigos, e não poderia aceitar da parte deles qualquer atitude de tolerância para
com o meu evidente despreparo.
Finalmente, a própria participação na equipe de colaboradores da Reforma
de Ensino, liderada por Fernando de Azevedo, fez com que passasse a ter por meta
aprofundar os estudos dos problemas de educação e ensino, em contato com todos
aqueles educadores, e por fim a encontrar nesses estudos a direção que deveria
adotar afinal, em definitivo, como carreira profissional e opção de vida.
É certo que o curso da Escola Politécnica, se o pudesse ter concluído, não
teria sido um impedimento para a minha carreira de educador, ao contrário,
representaria uma contribuição valiosa com a ampliação de cultura que ele me
proporcionaria. Aliás, mesmo os três anos incompletos que pude cursar já me
trouxeram bons subsídios para futura abordagem de certos aspectos da educação, tais como os referentes ao emprego dos métodos estatísticos nas chamadas
medidas educacionais.
Além disso, a Escola Politécnica, naquela época, era uma verdadeira academia de ciências físicas e matemáticas e a única existente entre nós que se dedicava
a esses estudos em nível superior, e seu corpo docente contava com as figuras mais
representativas desses setores de conhecimento. Sua projeção e influência no ambiente cultural do País ia muito além de sua condição formal de simples estabelecimento de ensino de engenharia. Ali se encontravam mestres como Amoroso Costa, Henrique Morize, Sodré da Gama, Caetano de Oliveira, Henrique Costa, Henrique
Novaes, Azevedo Amaral, Everardo Backheuser, Barbosa de Oliveira, Júlio Lohman,
Mário de Brito, Ferdinando Labouriau e tantos outros.
Nos laboratórios de física de Henrique Morize, então catedrático, fizeramse as primeiras experiências sobre a radiofonia no Brasil, desenvolvidas depois por
Roquette Pinto. A Associação Brasileira de Educação, que desempenhou papel de
150
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
tanto relevo na discussão de todos os problemas da educação no Brasil, nasceu
também nas salas da antiga Escola Politécnica, em 1924, fundada por elementos
dos mais representativos do corpo docente ou por figuras a ele ligadas, tais como
Heitor Lira da Silva, Francisco Venâncio Filho, Mário de Brito, Edgar Süssekind de
Mendonça, Barbosa de Oliveira, entre outros. Os primeiros cursos de aperfeiçoamento organizados para o magistério do Distrito Federal, na administração de Antônio Carneiro Leão, para a introdução de novos métodos de ensino, oriundos do
movimento de renovação da educação, conhecido como o da "escola nova" ou
"escola ativa", tiveram igualmente agasalho nas velhas salas do histórico edifício
do Largo de São Francisco, cursos esses ministrados por professores da Escola, tais
como Dulcídio Pereira, que substituíra Henrique Morize na cátedra de física, Delgado de Carvalho, Süssekind de Mendonça, entre outros.
Muitos de seus professores integraram movimentos políticos do País, de
caráter democrático e progressista, naquele período que teve como marco histórico o primeiro 5 de julho de 1922, destacando-se entre eles Mário de Brito e
Ferdinando Labouriau, que foram atingidos pela repressão do governo Artur
Bernardes, sendo presos e processados como elementos perturbadores da "ordem
pública"...
Toda essa efervescência de caráter cultural e político verificou-se justamente entre 1922 e 1930, período em que freqüentei as aulas dessa escola e me iniciava
numa nova vida profissional, sofrendo, pois, a influência desse ambiente de lutas
patrióticas e despertando em mim interesse por essas questões que diziam respeito
ao futuro do povo brasileiro e ao progresso do País.
Tenho bem viva ainda, dentro desse quadro de liderança que esses professores da Escola Politécnica exerciam no acanhado ambiente cultural e político do
País, a enorme consternação que causou o grave acidente de aviação em que perdeu a vida exatamente um punhado dos mais expressivos desses homens. Iam eles
receber em avião, fora da barra do Rio de Janeiro, Santos Dumont que voltava ao
Brasil depois de longos anos de ausência, em que a merecida glória lhe aureolou o
nome, quando encontraram a morte no desastre aéreo cinco dos mais destacados
professores da Escola Politécnica.
Foram dias de luto e tristeza pungente, em que se transformou a apoteose
que deveria assinalar a chegada ao Brasil daquele que constituía um símbolo para
todos nós, não somente pelos feitos que realizou no princípio do século, colocando
a aviação em bases exeqüíveis, como também pelo espírito que o animava, no sentido de que seu extraordinário invento fosse utilizado unicamente em benefício do
progresso da humanidade, e nunca para a guerra.
Nesse desastre morreram os professores da Escola Politécnica Tobias Moscoso,
Ferdinando Labouriau e Manoel Amoroso Costa, o aluno do quinto ano e assistente
do professor Tobias Moscoso, Frederico de Oliveira Coutinho, o médico sanitarista
Amauri de Medeiros e o doutor Paulo de Castro Maia.
Num dos bolsos de Amauri de Medeiros foi encontrado o texto da seguinte
mensagem dirigida a Santos Dumont:
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Paschoal Lemme, já como professor, com um grupo de colegas da
Escola Amaro Cavalcante, Rio de
Janeiro. Além de professor foi vicediretor dessa escola em 1930.
A bordo do hidroavião Santos Dumont, 3 de dezembro de 1928:
Do alto do hidroavião que tem o vosso nome glorioso, e nos adiantando à recepção que vos
preparou o povo da capital do Brasil, vimos apresentar os votos de boas-vindas ao grande brasileiro, conquistador dos ares, que honrou o nome da pátria no estrangeiro.
Santos Dumont, ao saber da tragédia, disse simplesmente: "Sempre recomendei que não voassem ao meu encontro. A impaciência condena sempre a grandes desastres." E concluiu: "Quantas vidas sacrificadas por minha humilde pessoa..."
Um episódio conhecido de poucos e ligado a esse triste acontecimento relaciona-se com o professor Mário de Brito, que, fazendo parte da comissão que iria
homenagear Santos Dumont no avião especialmente fretado para esse fim, perdeu,
por atraso involuntário, a hora do embarque e se salvou da catástrofe.
A maior homenagem aos ilustres professores, assim tão tragicamente desaparecidos, num momento que deveria ter sido de alegria e de glória, foi prestada
pela Associação Brasileira de Educação, que, em sessão especial, inaugurou seus
retratos em sua sede e os manteve para sempre.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
153
•••
Assim, a velha Escola Politécnica, com toda a sua tradição, suas realizações,
seus grandes mestres, seus hábitos e até mesmo seus defeitos e preconceitos foi
parte destacada de minha vida e é sempre com saudade que recordo a época e os
dias que por ali andei, os grandes acontecimentos a ela ligados, que presenciei, as
figuras dos mestres e amigos com quem tive maior contato e de quem ouvi as
lições, que, se todas não se revestiam de didática impecável, abriram-me horizontes
e foram de grande proveito para os tempos vindouros de minha vida, como homem
e como profissional.
E a frustração de não ter podido terminar o curso me acompanhou por
toda a vida.
Em todo o caso, quando necessitei, mais tarde, comprovar minha passagem
pelo tradicional estabelecimento, obtive a seguinte certidão:
Certifico que o requerente prestou vestibular nesta Escola, em março de mil novecentos e
vinte e cinco, tendo obtido aprovação nas seguintes matérias que constituíam o citado exame:
aritmética, álgebra, geometria plana e geometria no espaço, trigonometria retilínea e desenho
geométrico. Apresentou doze (12) certidões do Colégio Pedro II em as quais constam ter sido o
mesmo senhor aprovado nas seguintes matérias: português, aritmética, história do Brasil, história universal, álgebra, geometria, alemão, latim, física, química, história natural, geografia,
corografia e cosmografia e francês, tendo sido matriculado no primeiro ano do curso de engenharia civil, pelo regulamento de 1915. Em março de 1925, obteve aprovação nas seguintes
cadeiras do citado curso: geometria descritiva, física experimental e meteorologia em 12 e 14
de 1928 e desenho de ornatos, em dezembro de 1927.
É certo que cursei com a regularidade possível as aulas de matemática superior (geometria analítica e cálculo diferencial e integral), que eram dadas pelo novo
catedrático Inácio de Azevedo Amaral, que fizera na época concurso para a cadeira
e que tivera grande repercussão. Dada a extensão dos programas, não me senti
preparado para enfrentar o exame, mas o estudo dessas matérias me foi de grande
utilidade posteriormente. O mesmo aconteceu com a cadeira de mecânica racional,
lecionada pelo velho professor Sodré da Gama, homem de hábitos excêntricos, pois
chegava à aula, mal cumprimentava a turma de alunos à sua espera e, de costas,
enchia o quadro negro de todos aqueles complicados cálculos da matéria; dado o
toque de terminação da aula, fazia outro leve sinal com a cabeça e abandonava a
sala sem qualquer relacionamento mais íntimo com os alunos. A matéria, porém,
tinha que ser toda memorizada pelas "apostilas", organizadas pelos próprios alunos, e era rigorosamente exigida nos exames, como condição inicial para a aprovação. Também não cheguei a prestar esse exame.
Com essas duas matérias e mais a topografia, lecionada pelo professor
Cantanhede, e a química, primeiro com o professor Júlio Lohman e depois com
Mário de Brito, teria completado os três anos do curso básico da escola e poderia
receber o título de engenheiro geógrafo ou agrimensor, de acordo com o regulamento da época. Seria mais uma alternativa de atividade profissional, mas que,
infelizmente, ficou perdida na área dos planos de vida não realizados.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO XI
TRABALHO
Terminado o curso da Escola Normal em meados
de abril de 1923, não interrompi os estudos, pois estava
me preparando, como já disse, para prestar os exames
parcelados – "os preparatórios" – no Colégio Pedro II,
que me faltavam para obter os certificados necessários
para prestação do exame vestibular para a matrícula na
Escola Politécnica do Rio de Janeiro.
Entretanto, comecei desde logo a pensar em ensaiar minhas atividades de professor, dando aulas a alunos particulares.
Vivia inteiramente às expensas da família, e já
com 19 anos, tornava-se cada vez mais constrangedor
para mim essa situação de ter que pedir dinheiro a meu
pai para minhas despesas pessoais. É certo que tinha
em casa todo o necessário para minha manutenção, e
da parte da família havia total compreensão para o
meu problema, pois era apenas uma questão de mais
algum tempo a completa regularização de minha situação, uma vez que já havia conquistado pelo meu esforço uma profissão, modesta sem dúvida, mas que
demonstrava meus propósitos de levar uma vida responsável e independente.
Além desse problema, sentia-me em casa um
tanto deslocado, isolado mesmo, por não participar
das preocupações e até das conversas que interessavam especialmente aos meus dois outros irmãos e que
giravam sempre, como não poderia deixar de ser, em
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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torno de assuntos da clínica odontológica e outros incidentes, comentados com
meu pai. Tinha assim uma impressão vaga de que era uma espécie de "ovelha
negra", que tresmalhara do redil da arte dentária, para abraçar uma atividade
que não se apoiava em qualquer tradição da família. Além disso, professor era,
na prática, um funcionário público, e essa condição não gozava de muito bom
conceito em minha casa.
Para meus pais, profissões realmente dignas eram aquelas que se conquistavam e se exerciam por esforço próprio, livremente, e sem os favores dos governos...
Era um preconceito que provinha talvez da circunstância dos cargos do
"serviço público" serem naqueles tempos obtidos, quase todos, por apadrinhamento
político, isto é, pelo chamado "pistolão". E isso não era digno de um Lemme...
Já instalados no prédio residencial da Rua Silva Rabelo, a construção de
dois quartos independentes nos fundos do terreno, permitiu-me pôr em execução, com maior facilidade, o plano de começar a trabalhar dando aulas como
explicador a alunos particulares. O ensaio deu algum resultado, pois em breve já
preparava até sargentos para se matricularem no antigo curso de formação de
oficiais intendentes do Exército. Lembro-me que, entre meus alunos dessa época,
destacou-se um sargento de nome José Aguirre, que mais tarde continuou os
estudos, vindo a ser por fim, meu colega no quadro de professores secundários da
antiga Prefeitura do Distrito Federal. Dedicou-se com afinco ao ensino da língua
nacional, no Instituto de Educação do Rio de Janeiro, para onde prestou concurso, efetivando-se como professor. Faleceu prematuramente, em meio de uma
carreira que se tornara promissora.
Ainda em 1923, recebia eu do professor Teófilo um convite para substituir,
por dois meses, uma professora que se licenciara, e assim que voltei à Escola Visconde de Cairu, a esse tempo já instalada em seu prédio definitivo no Morro do
Vintém. Ali lecionei complementos de matemática elementar a uma classe do sétimo ano, o último do curso da escola.
Assim, entre essas aulas particulares, a substituição na Escola Cairu, e os
estudos para os exames da Escola Politécnica, ia decorrendo o tempo, e, naturalmente, com ele o meu amadurecimento para a vida.
Concluí os últimos exames "preparatórios" em dezembro de 1924 e assim,
em 1925, como já ficou referido, pude prestar o exame vestibular para a matrícula
no tradicional estabelecimento de engenharia do Largo de São Francisco.
Em casa, os irmãos iam aumentando quase um por ano e eu auxiliava nos
estudos primários aos que começavam a cursar esse grau de ensino.
É certo, porém, que não era um fluir despreocupado do tempo.
O Brasil atravessava, justamente nessa época, uma fase tormentosa em sua
vida política, econômica e social.
Depois da euforia dos festejos do Centenário da Independência, em setembro de 1922, com a grande exposição internacional e a visita de personagens ilustres tais como a do rei Alberto da Bélgica e a do presidente de Portugal, Antônio
José de Almeida, vieram os acontecimentos dramáticos da sucessão de Epitácio
Pessoa. O ambiente tornou-se tremendamente carregado, começando aí o ciclo das
revoluções que só terminaria em 1930. O episódio das "cartas falsas" de crítica a
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
generais do Exército, atribuídas ao candidato à presidência da República Artur
Bernardes; a criação da Reação Republicana por Nilo Peçanha e finalmente o levante militar do chamado primeiro 5 de julho de 1922, que terminaria com o drama dos "18 do Forte", não podia deixar indiferente o jovem que se habituara a dar
a devida importância a todos esses acontecimentos, até pelo temperamento, "pois
que nada do que era humano lhe era indiferente". E assim, todas essas dramáticas
passagens da história política do País despertavam em mim grande interesse, e por
que não dizer, a mais viva preocupação.
Faziam parte da minha vida de então a leitura diária dos jornais, hábito
que já se firmara, e a assistência às tempestuosas sessões do Congresso Nacional,
especialmente do Senado Federal, instalado no casarão da Rua Moncorvo Filho,
na esquina da Praça da República, onde funcionou depois a Escola de Direito da
Universidade do Rio de Janeiro, e onde conheci as figuras dos políticos mais destacados da época e ouvi seus veementes discursos de ataques à situação ou de
defesa do governo.
Entre os episódios que repercutiram grandemente, já no governo de Artur
Bernardes, que se iniciara a 15 de novembro de 1922, figurou a "depuração", pelo
Congresso, de Irineu Machado – político do Distrito Federal muito popular e com
grandes dotes de orador – em benefício de um outro – Mendes Tavares que recebera votação muito menor. A "depuração" consistia exatamente nisso: O Congresso
poderia aprovar a eleição de um candidato que, no entanto, não obtivera o maior
número de votos, anulando votações ou usando outros artifícios. Como era de
esperar, esse fato provocou grande reação do público, em face da popularidade de
Irineu Machado, e este defendeu por todos os meios seu mandato, falando durante
dias seguidos da tribuna do Senado, dispondo-se mesmo, como dizia, a ali pernoitar se necessário, levando consigo, para esse fim, maleta com pijama e outros pertences para passar quantas noites fossem necessárias, enquanto o regimento lhe
permitisse fazer uso da palavra. Mas, afinal, a votação de seus pares deu mesmo a
vitória ao candidato menos votado, impedindo a volta de Irineu Machado ao Senado, onde era um crítico ferrenho do governo.
As truculências do governo de Artur Bernardes continuavam assim, inclusive através das violências praticadas pelo célebre Marechal Fontoura, chefe de Polícia, dentre as quais teve enorme repercussão o "suicídio" do engenheiro Conrado
Niemeyer, oriundo de família importante, preso não me lembro bem por que, e que,
segundo a versão da polícia, se atirara de uma das janelas do pátio interno do
edifício da Polícia Central. "Fora suicidado" pela polícia, conforme afirmavam os
jornais da oposição.
O governo transcorria em estado de sítio permanente para "conter a desordem",
segundo se dizia, e o presidente era praticamente prisioneiro no Palácio do Catete.
A 1º de março de 1923, falecia em Petrópolis Rui Barbosa, a "Águia de Haia",
a grande figura do movimento civilista, e com sua morte, por assim dizer, encerrava-se todo um período da história do Brasil. O prestígio de que gozava era imenso,
apesar de, já bem doente, ter comparecido ao Senado no Rio de Janeiro para votar
a favor do "estado de sítio" pedido pelo governo de Artur Bernardes. Mas sua popularidade se consolidara desde os últimos anos do Império, com a campanha pela
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Federação, as lutas contra as oligarquias, a redação da Constituição Republicana, a
passagem pelo Ministério da Fazenda da Primeira República, apesar do Encilhamento,
a defesa intransigente das liberdades públicas, como paladino do habeas-corpus,
com sua deportação por Floriano Peixoto, enfim, com sua enorme obra de cultura,
em sua longa vida, consagrada depois na Casa de Rui Barbosa, verdadeiro museu de
uma vida dedicada ao País, na qual se destacava sua atuação na Conferência de
Haia, onde defendeu o princípio da soberania das nações mais fracas contra as
grandes potências.
Lembro-me bem de seus funerais, em desfile imponente pela Avenida Rio
Branco, ao qual assisti das escadarias da Biblioteca Nacional e a que não faltou o
choro convulso de muitos populares, espectadores, que rememoravam os lances
dramáticos da vida de Rui.
Em 1924, verifica-se o novo levante militar, o chamado segundo 5 de julho,
que começou em São Paulo, chefiado pelo general reformado Isidoro Dias Lopes, e
que teria seu desenvolvimento posterior na Coluna Prestes, nos anos seguintes,
com a célebre marcha através de todo o Brasil, e que só cessaria em princípios de
1927, com a internação na Bolívia dos remanescentes desse movimento que empolgava o país.
Além de Luís Carlos Prestes, destacaram-se nesse episódio outras figuras,
tais como os tenentes Juarez Távora, João Alberto, Siqueira Campos, Miguel Costa
e muitos outros, que depois de enormes vicissitudes e sacrifícios no exílio, a maior
parte voltaria ao Brasil para se unir aos políticos e com eles deflagrar a Revolução
de 1930, constituindo a ala "tenentista" da mesma. Deles se afastou Luís Carlos
Prestes, que daí em diante seguiu outros caminhos, tendo aderido ao marxismo.
Siqueira Campos, considerado uma das figuras mais destacadas do "tenentismo",
morreu em desastre de avião, exatamente quando, com João Alberto, procurava
voltar ao Brasil para se encontrar com os elementos que preparavam a Revolução
de 1930.
Todos esses dramáticos acontecimentos, como já disse, não poderiam deixar
de causar profunda emoção ao jovem que se habituara desde muito cedo a acompanhar os lances mais importantes da vida pública do país.
•••
Mas, voltando à minha vida pessoal e profissional. Em 1924, no governo de
Artur Bernardes, portanto, era prefeito da cidade Alaor Prata, político mineiro, que
realizou uma administração cheia de restrições, não somente pela grave situação
política do país, como pela falta de recursos. As deficiências de seu governo tornavam-se ainda mais evidentes em comparação com a administração anterior, do
engenheiro Carlos Sampaio, no governo Epitácio Pessoa, que, entre outras grandes
obras, realizou o desmonte do tradicional Morro do Castelo, mudando completamente a fisionomia do centro da cidade.
Depois de uma série de trâmites mais ou menos complicados, que se arrastaram por vários meses, eram assinados os atos de nomeação para os novos cargos de
professores adjuntos de terceira classe, de acordo com a classificação obtida pelos
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
diplomados nas últimas cinco turmas da antiga Escola Normal. Os elementos do
sexo masculino, em número muito reduzido, tinham obtido nesse entretempo uma
legislação especial, que lhes garantia um certo número de vagas para essas nomeações, e o meu nome figurou entre esses novos professores, apesar da minha nota
final do curso não ser das maiores em relação às obtidas pelas colegas do sexo
feminino. Era, porém, uma discriminação da lei municipal obtida por influência
política dos professores do sexo masculino. A 23 de abril de 1924 afinal, esses atos
eram assinados e com eles minha carreira profissional se iniciava.
As formalidades burocráticas para o ato de posse eram realizadas no velho
casarão histórico que servia de sede ao governo municipal e também da antiga
Diretoria Geral de Instrução Pública, situado na Praça da República entre as Ruas
General Câmara e São Pedro, e que foi posteriormente demolido, na administração
Henrique Dodsworth, para dar passagem à atual avenida Presidente Vargas. Foi ali
que recebi o almejado título de nomeação. Esses dias de abril de 1924 foram, sem
dúvida, como se pode imaginar, de intensa alegria: a obtenção desse documento
marcava uma etapa decisiva de minha vida, que se iniciava modesta, é bem verdade, mas que representava uma conquista, devida exclusivamente ao meu esforço e
à minha determinação: enfim, era professor!
Depois da posse no cargo, seguiu-se o ato da designação para o exercício
em uma pequena escola mista, situada na estrada do Magarça, entre a Estação de
Campo Grande e a praia de Guaratiba, em plena zona rural do antigo Distrito
Federal, onde deveríamos fazer estágio por dois anos, de acordo com a lei que
então regia a matéria.
Era diretor de Instrução Pública nesse período – Antônio Carneiro Leão,
intelectual pernambucano, que com outros viera para o Rio de Janeiro, trazido
por uma espécie de Mecenas – o Conde Pereira Carneiro, diretor do Jornal do
Brasil e que se dedicava a outros negócios, inclusive à direção da Companhia de
Comércio e Navegação. Antonio Carneiro Leão, que já tinha sido diretor de Instrução Pública, em Pernambuco, publicara alguns trabalhos sobre educação e
cultura, entre eles o livro Os deveres das novas gerações brasileiras, que viera
enriquecer a escassa bibliografia existente sobre esses problemas. Assumindo o
cargo de tanta responsabilidade, teve que enfrentar sérios problemas, pois, segundo constava, sua nomeação não fora do agrado do prefeito Alaor Prata, que
o hostilizou durante toda a sua administração, negando-lhe recursos com que
pudesse fazer uma obra de destaque à frente da repartição que lhe fora entregue. Entretanto, é de justiça assinalar que Carneiro Leão procurou fazer tudo o
que estava ao seu alcance para melhorar os serviços de educação da Capital da
República, podendo mesmo dizer-se que foi um pioneiro, que facilitou
grandemente a obra notável posteriormente realizada por Fernando de Azevedo,
já no governo Washington Luís, e que passou à História da educação nacional
como a "Reforma Fernando de Azevedo".
Apresentei-me naquela escolinha rural, com a designação assinada exatamente por Antônio Carneiro Leão, de quem mais tarde tornei-me amigo e companheiro de lutas. Minhas atividades começaram exatamente no dia 6 de maio de
1924 e na primeira escola mista do 1º Distrito Escolar, localizada à Estrada da Pedra
n° 53, na localidade denominada Magarça.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Minha vida entrou assim numa nova fase, mudando completamente.
Diariamente, pela manhã, mais ou menos às seis horas, tendo pois de levantar-me cerca das cinco horas, tomava um trem da Central do Brasil até a Estação de
Campo Grande, prosseguindo a viagem, a partir daí, num "bondinho" elétrico muito precário, que freqüentemente saltava dos trilhos obrigando os passageiros a
recolocá-lo no devido lugar. Em marcha ronceira, ia deixando os passageiros, a
maioria professores, que desembarcavam próximo às suas respectivas escolas, até a
última, situada já na praia de Guaratiba. Havia outros trens que poderiam nos levar
à Estação de Campo Grande, mas que só podiam ser tomados na Estação Central
Pedro II ou na Estação de Cascadura, e era preciso fazer ainda o percurso do Méier
até uma dessas estações. A volta dava-se à tarde, pois os horários dos "bondinhos"
eram muito espaçados, e assim, para um período de trabalho que não ultrapassava
umas quatro horas, consumia-se praticamente o dia inteiro. Ganhava-se então menos
de 200 mil réis, dinheiro da época, dos quais eram deduzidos o desconto obrigatório para o Montepio Municipal, que deveria assegurar a aposentadoria após 25
anos de trabalho. E com o restante, pouco mais de 180 mil réis, pagos sempre com
grande atraso – o que obrigava 'a obtenção de uma espécie de "vales" que diminuía
ainda mais o total – custeava-se todas as despesas de passagens, refeições e outras
extraordinárias, inclusive material escolar para as crianças, que eram paupérrimas
naquela zona, como em todas as outras escolas semelhantes do Distrito Federal.
Além disso, havia que comprar livros e roupa, e assim eu estava longe de ter obtido
independência econômica com o trabalho que acabava de iniciar. E a continuação
das aulas particulares tornava-se impossível dado o horário de trabalho diário,
praticamente, das cinco horas da manhã às cinco horas da tarde.
A escolinha para onde fora designado contava apenas comigo, como adjunto, além da diretora, que morava na zona sul da cidade e que fazia também um
percurso ainda mais longo para cumprir com suas obrigações profissionais diárias.
Era pessoa de certo nível social, e apesar de não estar muito satisfeita com a
designação que recebeu de dirigir escolinha tão pobre e distante desempenhava
com relativo interesse os seus deveres.
Dividimos desde logo o trabalho da melhor forma, incumbindo-se ela do
ensino de todas as meninas e ficando eu encarregado dos meninos. O ambiente era
desprovido de qualquer conforto, inclusive com falta de água potável de qualidade
razoável e de aparelho sanitário decente, o que deixava, diretora e adjunto bastante constrangidos.
O meio era muito pobre, e as crianças iam quase todas descalças, levando
pouca alimentação e bebendo água de um poço de qualidade muito duvidosa.
Entretanto, procurava desincumbir-me da melhor forma das minhas tarefas, mais
por intuição e usando a pequena experiência que já adquirira, do que inspirado em
quaisquer princípios de pedagogia e prática de ensino, quase inteiramente
inexistentes no curso "profissional" que fizera, e mesmo de difícil aplicação nas
condições concretas com que me defrontava.
Cabe aqui um reparo exatamente sobre esse estágio em zonas desprovidas
de todos os recursos: em geral as autoridades de educação insistem em submeter os
professores recém-formados a essa permanência inicial nessas escolas onde ficam
160
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
entregues a si mesmos, sem ter quem os oriente nesses primeiros passos numa
profissão que não é das mais simples, especialmente nesses meios em que as crianças não dispõem de qualquer auxílio do lar – desprovidos de quaisquer recursos
econômicos ou culturais. Os estágios, ao contrário, deveriam começar nas grandes
escolas e mais próximas dos grandes centros, onde colegas mais experimentados,
sem falar nos próprios diretores, orientadores e técnicos, prestariam a assistência
necessária aos novos professores, que apenas iniciam a carreira e que, mesmo com
os cursos de pedagogia, psicologia e didática, não estão em condições de enfrentar
os problemas da prática diária, que quase nunca se enquadram exatamente nas
teorias apreendidas.
É claro que a própria prática progrediu bastante nos últimos anos nas
Escolas Normais, mas é preciso não esquecer que: na prática, a teoria é muito
diferente...
É certo que Antônio Carneiro Leão fez um enorme esforço para melhorar as
condições do magistério primário, único a cargo da Diretoria Geral de Instrução
Pública da época, pois o ensino secundário e superior estavam sob a jurisdição do
governo federal. Chamou para seus assessores os melhores elementos do magistério, entre os quais recordo com saudade as professoras Floripes Anglada Lucas, já
falecida, Eulina Nazareth, Loreto Machado e algumas outras, primeiras mulheres
nomeadas para esse cargo tão cobiçado de inspetoras escolares, antes só entregues
a grandes figuras. Contou também com o auxílio dos professores Álvaro Rodrigues,
Paulo Maranhão, Venerando da Graça e outros, e com isso pôde introduzir muitos
melhoramentos no ensino primário. Organizou curso de aperfeiçoamento para o
magistério, os primeiros que se realizaram no Rio de Janeiro com essa finalidade.
Versavam especialmente sobre o conteúdo e os novos métodos de ensino das matérias do curso primário. Não freqüentei nenhum deles, mas os acompanhei sofrendo
a influência indireta dos elementos a eles ligados: Delgado de Carvalho, Edgar
Süssekind de Mendonça, Everardo Backeuser, Deodato de Morais, Álvaro Rodrigues
e outros.
O inspetor escolar designado para o distrito no qual estava incluída a escola
para qual fui designado era Deodato de Morais, vindo de São Paulo, e que, apesar
de um trato pessoal bastante desagradável, que chegava até à grosseria, esforçavase por introduzir novos métodos no ensino, especialmente na linguagem, básico
para a formação das crianças, e que já eram usados em São Paulo.
Foi nesse período que se começou a experimentar o chamado método de
sentenciação, baseado, segundo se dizia, nas novas aquisições da psicologia da
criança. De acordo com ele, fazia-se a aprendizagem da leitura e da escrita, simultaneamente, da frase completa com sentido, para se chegar depois à palavra isolada e, por fim, à letra, isto é, ao contrário dos antigos métodos da soletração e
palavração, adotados pelas cartilhas tradicionais, como a de Tomás Galhardo, pelos
quais aprenderam muitas gerações, inclusive eu próprio, conforme referi anteriormente. Por essas cartilhas, começava-se pelo alfabeto, cujas letras eram "decoradas" e escritas, passando-se às palavras e, por fim, às pequenas frases.
Atualmente, segundo estou informado, volta-se à combinação dos dois
métodos, não se usando nenhum deles de maneira exclusiva.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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O inspetor Deodato, vindo do interior de São Paulo, procurava introduzir
também nas escolas da zona rural do Distrito Federal – área em que estava localizado o distrito sob sua jurisdição – práticas agrícolas que não somente davam uma
ocupação aos meninos, desenvolvendo-lhes o gosto pelas atividades rurais, como
também, como resultado de seu trabalho – especialmente na horticultura – pretendiam obter os elementos para a confecção de alimentação com que completassem as condições precárias de nutrição que lhes eram proporcionadas em suas
famílias.
Fui incumbido de dirigir essas atividades e assim é que dentro em pouco
começamos a trabalhar no terreno que se estendia à frente do pequeno prédio em
que estava instalada a escola.
Nele procuramos organizar uma pequena horta que deveria produzir legumes para uma "sopa escolar", a ser fornecida aos alunos como complemento
alimentar.
Não eram desagradáveis essas atividades, mas meus conhecimentos agrícolas eram praticamente nulos. Procurei por isso enfronhar-me no assunto, estudando publicações especializadas, especialmente as distribuídas pela repartição de agricultura do Estado e também do Ministério da Agricultura, e procurando instruções
junto às autoridades desses setores da administração pública.
O entusiasmo dos meninos, porém, não era muito animador, isso porque as
famílias de que provinham tinham um conceito muito próprio sobre as atividades
escolares e talvez estivessem com a razão: enviavam seus filhos à escola justamente
para aprenderem "coisas" – tais como a leitura, a escrita, o cálculo – que os pudessem justamente tirar das condições em que viviam, e que lhes proporcionavam
como única perspectiva o trato precário da terra, o que já faziam em casa. E esse
esgravatar do terreno em condições tão precárias, dirigido por quem não dispunha
de habilitação especial para tanto, não lhes parecia que era a função verdadeira da
escola...
As crianças eram, porém, dóceis e aceitavam relativamente bem aquelas
práticas, em que se demonstravam quase sempre mais capazes do que o próprio
professor... Também os resultados dessa atividade não se mostravam muito brilhantes. O terreno prestava-se pouco ao cultivo, e a burocracia tornava difícil a
obtenção em tempo útil de ferramentas, adubos e demais elementos necessários
para demonstrações convenientes. O mais que se pôde fazer de mais útil foi melhorar as condições do poço, para tornar mais higiênica a obtenção de água potável.
E assim chegamos ao fim do ano letivo de 1924...
Esforçava-me por desempenhar minhas funções com a maior honestidade,
procurando estudar sempre os problemas, completando assim o curso muito deficiente que fizera, especialmente na parte profissional. Como já ficou dito, o curso da
Escola Normal fora reduzido de cinco para quatro anos, com sacrifício justamente
das matérias de caráter profissional, que tivemos de estudar com professores particulares para prestar exames em junho de 1923.
E, apesar de verificar que aquelas atividades agrícolas em que se empenhava
o inspetor Deodato muito pouco interessavam aos alunos, dediquei-me a elas com
o máximo de entusiasmo, procurando sempre melhores e maiores esclarecimentos
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
com os entendidos no assunto e sempre recorrendo aos livros especializados que
me pudessem trazer mais completos esclarecimentos dos respectivos problemas.
Entretanto, o sentimento de inferioridade persistia em mim perante aquela
atividade de ensinar o be-a-bá a crianças. De certa forma, a iniciação agrícola de
que fora incumbido suavizava um pouco esse sentimento, pois que se tratava de
uma atividade nitidamente de caráter masculino, além de representar um passo à
frente naquela rotina da escolinha rural.
Continuavam nesse entretempo meus estudos para me matricular na Escola
Politécnica, e isso se combinava com o meu trabalho e me dava uma perspectiva de
um dia abandonar aquelas atividades do magistério primário.
Alguma coisa inteiramente nova iria, porém, surgir num outro aspecto de
minha vida, justamente naquele ano e ligado também a minha passagem pela
escolinha de Magarça.
Viagens diárias nos trens e no trajeto obrigatório eram feitas por grande
número de professores e colegas da Escola Normal, designadas para escolas dessas
mesmas zonas rurais, e assim mexericos amorosos entre muitos desses jovens professores, e até entre os mais velhos, ocorriam, sejam com oficiais do Exército que
viajavam também em quantidade expressiva nesses mesmos trens no desempenho
de suas funções na Vila Militar e no Realengo, seja entre os próprios colegas.
Em breve, eu que vivia mais ou menos em disponibilidade sentimental, iria
também ser atingido pelas inquietações que definem esse estado, que se resume
numa palavra, que tem a virtude de não exigir maiores esclarecimentos – "o amor".
Mas isso teve tanta importância em minha vida que virá relatado em capítulo especial, como merece.
O ano de 1925 trouxe, além dessas, outras modificações em minhas atividades profissionais. O inspetor Deodato insistia em manter e ampliar em seu distrito
as atividades agrícolas. E assim é que me vejo, em breve, designado por ele para
superintender todo esse trabalho no distrito, cuja sede foi instalada na escola que
funcionava no casarão localizado nos jardins do Matadouro de Santa Cruz, escola
essa que funcionava sob a direção de um meu colega e amigo – o professor Álvaro
de Sousa Gomes, que se formara em turma anterior à minha e assim já ascendera a
esse cargo de direção.
Atirei-me às novas funções com a seriedade com que sempre cumpria minhas obrigações e até mesmo, por que não dizer, com algum entusiasmo, pois estava certo que agora, com uma área mais ampla e condições melhores, poderia talvez
levá-las a cabo com maior sucesso.
Tratava-se agora de preparar uma área de terreno bem maior, e para isso
seria necessário cortar alguns grandes pés de eucaliptos seculares existentes no
terreno do referido jardim, arar a terra, matar formigas, ali muito abundantes,
adubar, semear, num trabalho de agricultura de muito maior vulto.
Continuei a estudar o assunto e também a criação de abelhas, e a procurar
para isso as repartições federais e municipais. De um desses contatos ainda guardo
a cópia de um ofício dirigido ao diretor do Abastecimento e Fomento Agrícola do
Distrito Federal, dr. A. P. de Sousa Botafogo, que me atendeu na medida do possível, pondo à minha disposição o engenheiro agrônomo A. Correia da Silva, que
muito me auxiliou nesses trabalhos.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
163
O ofício, que esclarece bem os termos em que o problema foi colocado,
estava vazado nos seguintes termos:
Distrito Federal, 4 de junho de 1925.
Exmo. Sr. Dr. A. P. de Sousa Botafogo.
Diretor do Abastecimento e Fomento Agrícola do Distrito Federal.
A Inspetoria Escolar do 19º Distrito tendo, de acordo com o sr. Diretor da Instrução Pública
Municipal, resolvido organizar definitivamente, este ano, o ensino agrícola nas escolas rurais
sob sua jurisdição e, como complemento disto, fornecer aos alunos a SOPA ESCOLAR, medidas
cujo valor não se precisará enaltecer, vem solicitar a V. Excia. auxílios que facilitem o início
desse trabalho, visto como ainda não possuímos material e mão-de-obra próprios, dadas as
condições financeiras atuais da Prefeitura Municipal e mesmo por se tratar de um serviço ainda
em organização.
Os auxílios que ora solicito a V. Excia. serão utilizados, por agora, somente nos terrenos do
antigo parque do Matadouro, atualmente cedidos a Diretoria Geral de Inspetoria Pública e onde
funciona a Escola Estados Unidos, pertencente ao 19º Distrito Escolar, que por suas condições
foi escolhida para centro de distribuição desse serviço.
Eis o que de mais urgentemente solicita a V. Excia. esta Inspetoria:
1. Autorizar e mandar proceder ao corte de algumas árvores que impedem de modo absoluto o trabalho das máquinas para o preparo do terreno, visto como se trata de transformar
parte do antigo jardim em terreno apropriado à horticultura, principalmente;
2. Aragem e conseqüente dragagem dessa mesma área de terreno;
3. Pôr, durante algum tempo, à disposição da Escola, os antigos jardineiros do Parque, para
auxiliarem na feitura inicial dos canteiros de horticultura e jardinagem, no que serão ajudados
pelos alunos, que os conservarão depois;
4. Autorizar as oficinas do Matadouro a prestar auxílio no preparo de alguma ferramenta
que se estrague no uso pelos alunos e na construção de alguns pequenos objetos que serão
utilizados no Museu e na Biblioteca Agrícolas, em organização na referida escola.
Sem mais, agradecendo antecipadamente todo o apoio prestado por V. Excia. a essa causa
que julgamos da maior oportunidade e valor entre nós – O Ensino da Agricultura nas escolas da
Zona Rural. Subscrevo-me grato e atenciosamente, (a) Paschoal Lemme, comissionado para
auxiliar o ensino da agricultura nas escolas do 19º Distrito Escolar.
Nesse trabalho tive também a cooperação do jornalista Norberto dos Santos, diretor do jornalzinho Triângulo, que tinha sede em Santa Cruz, e que em seu
noticiário dava sempre relevo a essas atividades agrícolas escolares.
Infelizmente, porém, o desejo de realizar é freqüentemente maior do que a
própria realidade permite, pois nosso trabalho não era de molde a interessar muito
aos agricultores da região, pois era uma atividade bastante precária, e nem mesmo
preenchia aquele objetivo de obter os ingredientes suficientes para o preparo de
uma simples "sopa escolar" que atendesse de maneira regular o mínimo de crianças
que necessitavam de um reforço de alimentação.
Entretanto, o inspetor Deodato insistia nos seus propósitos, em grande parte como exibicionismo, de novato nas lides de educação na Capital do País, e também iludido com suas atividades no Estado de São Paulo, onde realmente existiam,
regiões agrícolas, definidas e tradicionais e onde tais atividades poderiam ser largamente organizadas nas escolas e difundidas pelas populações locais. A agricultura no Distrito Federal, naquela zona já se reduzia a simples hortas, quase todas
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
mantidas por portugueses, e as crianças, como já disse, procuravam as escolas justamente para obterem instrução e letras e fugir às suas atividades cotidianas. A
própria Escola Visconde de Mauá, em Marechal Hermes, que ministrava ensino agrícola em nível secundário, não conseguia grandes realizações nessa especialidade e
aos poucos foi se transformando numa escola profissional de ofícios, semelhante às
outras já existentes em outros bairros da cidade.
O caráter artificial da iniciativa ficava assim cada vez mais evidente, mas o
inspetor Deodato, ao que parece, tendo empenhado sua palavra junto à administração superior, não queria se render à evidência dos fatos.
Seu temperamento impulsivo e seu trato pessoal às vezes bastante desagradável, em breve levou o professor Álvaro de Sousa Gomes a deixar a direção da
escola, que era a sede desses serviços.
Eu, simples adjunto, fui designado para substituí-lo provisoriamente, até a
nomeação de um diretor efetivo, o que não deixava de constituir uma distinção
para mim, mal iniciado na carreira, pois ainda não completara nem três anos de
serviço.
Durou pouco tempo também minha permanência à frente dessas atividades.
Os trabalhos não progrediam conforme se tinha previsto, não só em razão daqueles
motivos apontados, como da falta de material e estímulo para sua continuidade
em condições favoráveis.
Afinal, uma precipitação do professor Deodato para inaugurar serviços que
eu julgava que não estavam em condições de serem exibidos como uma realização
vitoriosa e consolidada, fizeram com que eu também entrasse em choque com ele e
pedisse minha retirada do distrito sob sua jurisdição.
O ato final dessa minha resolução deu-se em virtude de uma notícia por ele
mandada publicar sobre uma festa de inauguração desses serviços agrícolas que eu
considerava ainda incipientes, ou talvez mesmo, com pessimismo, irrealizáveis nos
termos em que o inspetor Deodato desejava.
Transcrevo em seguida uma dessas notícias, publicada no jornal A Noite, na
época o vespertino mais popular do Rio de Janeiro:
De algum tempo a esta parte, o ensino primário de agricultura vem tomando grande incremento nas escolas do Distrito Federal.
Deve-se ao professor Deodato de Morais a introdução dessa patriótica diretriz em nosso
meio escolar.
Os serviços realizados nas escolas de Santa Cruz têm interessado a população local e não
são poucos os lavradores que acompanhavam com vivo interesse o que ali se está realizando.
Tendo conhecimento do bom êxito desses serviços, a firma Wilson King & Comp., agente da
Ford Motor Company, nesta Capital, em um gesto magnânimo e de alto alcance patriótico,
ofereceu fazer gratuitamente com os tratores Ford os trabalhos necessários em uma grande
área de terreno que circunda a escola primária do Matadouro.
O inspetor do distrito, professor Deodato de Morais, que não tem poupado esforços no
sentido de interessar os pequenos escolares no amor à terra, aceitou com prazer o oferecimento
da firma, marcando o dia 5 de setembro para a realização de tais serviços.
Aproveitando essa oportunidade, realizar-se-á então nesse dia a festa do arado, reunindose em Matadouro para mais de mil crianças, a fim de assistirem à rotação da terra e receberem
as primeiras noções práticas de agricultura.
É de se louvar o gesto dos Srs. Wilson King & Comp. em estimular assim as patrióticas
iniciativas do inspetor do 19º Distrito.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
165
Era uma questão de ponto de vista, como se vê: o professor Deodato queria
desde logo uma consagração; nós professores e executores dos planos, queríamos,
com simplicidade testar primeiro a viabilidade do projeto no local escolhido, para
depois festejar sua realização.
Minha transferência desse distrito deu-se em fins do ano letivo de 1925 e
foi assim muito curta como se vê minha passagem por essas atividades de caráter
agrícola.
Depois de uma breve permanência numa escola na Estação de Bangu –
onde fui encontrar na direção meu velho professor das primeiras classes de
ensino primário, Salustio Castilho, que por assim dizer tinha completado minha
alfabetização e que revi, evidentemente, com grande satisfação – quase deixei
definitivamente a função pública de professor primário, levado por acontecimentos que se passavam em casa e que giravam novamente em torno de problemas da arte dentária...
Passado, porém, esse interregno que posso denominar de "comercial e
dentário", voltei ao magistério, já agora para atender a um convite do professor
Teófilo Moreira da Costa, o meu antigo mestre, que aliás sempre demonstrara desejo de me levar em definitivo para com ele trabalhar em sua Escola Visconde de
Cairu, já definitivamente instalada em sua nova sede no Morro do Vintém, e realizando em grande parte o sonho que alimentara em toda a sua vida.
•••
Com o relato desse episódio do ensino agrícola nas escolas do 19º Distrito
Escolar não pretendo, de forma alguma, diminuir as boas intenções do professor
Deodato de Morais e sua operosidade, pois punha em sua atividade convicções que
adquirira em sua passagem pelo ensino em São Paulo, que a esse tempo já era dos
mais adiantados do País no tocante à agricultura.
Quis com isso muito mais fixar aspectos de meu próprio comportamento,
pois, mesmo me arriscando a sofrer represálias numa carreira que mal começava,
não hesitei em discordar do chefe, por não ter podido me convencer com a propaganda que se procurava fazer de atividades que eu considerava ainda muito primitivas para merecerem tanta propaganda, serem consideradas como a chave da solução dos problemas do ensino naquela zona e quem sabe mesmo do País.
É certo também que, já o professor Álvaro Gomes, com mais experiência do
que eu, não pudera permanecer à frente da escola que fôra justamente escolhida
para liderar esse movimento de instauração de novos "métodos de ensino".
Chego mesmo a imaginar, agora passados tantos anos, que o professor Deodato de Morais pudesse ter razão quanto aos objetivos que o animavam. Mas meu
inconformismo ou mesmo impaciência levaram-me àquele gesto de não poder
compactuar com a maneira com que se pretendia apresentar uma iniciativa, que
mesmo acertada, deveria ser realizada como projeto normal e desenvolvida sem
qualquer espécie de propaganda pessoal.
Sempre julguei não ser justo fazer experiências com elementos humanos, e
especialmente com crianças, antes que as iniciativas estivessem suficientemente
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
sedimentadas, e que estas fossem realizadas com a honestidade de propósitos que
a educação e o ensino exigem.
Esse desprendimento de possíveis vantagens, que não alego aqui com a intenção de valorização pessoal mas apenas como um dado de minha personalidade,
repetiu-se muitas vezes em minha carreira e situações de vida, até mesmo com
grandes prejuízos materiais, mas nunca me causaram arrependimento.
O professor Deodato, com quem aliás continuei a manter as melhores relações, prosseguiu em seu trabalho, convencido, parece, de seu acerto, e assim é que,
em 14 de maio de 1926, aparecia no jornal A Noite um extenso noticiário, que
ainda hoje conservo, e do qual constam os seguintes dados:
Com o ensino agrícola e a luta que ele determinava, desenvolver-se-iam no jovem brasileiro as capacidades de trabalho e de iniciativa. Traçado o plano da nova orientação propedêutica,
a Diretoria do Ensino aliciou os serviços do professor Deodato de Morais, catedrático de pedagogia da Escola Normal de São Paulo, a fim de que assumisse a direção do primeiro núcleo
experimental. O ilustre professor, nascido e criado em Piracicaba, padrão de ensino agrícola no
País, devotado à agricultura, e um esforçado trabalhador, iniciou desde logo sua demonstração.
Elegeu o 19° Distrito Escolar, que abrange uma zona essencialmente agrícola: Santa Cruz, Sepetiba
e Guaratiba. Dentro dessa zona, localizou em Matadouro, onde há uma escola tradicional funcionando há trinta e dois anos no mesmo prédio – ainda construído no Reinado e por determinação de D. Pedro II. O ensino desenvolveu-se rapidamente (sic) sob a orientação técnica do
professor Deodato de Morais, conseguindo pleno êxito (sic).
Essa escola, atualmente sob a direção da catedrática Maria Isabel Duarte Moreira, que
contava em 1924 com cento e poucos alunos, funciona hoje com 430 matriculados. Dez professores adjuntos encarregam-se de turmas diversas. A escola possui, além do curso regular, os
seguintes cursos:
Ensino de sloyd – a cargo da adjunta de terceira classe, Ermelinda Ferreira, discípula do
prof. Teófilo.
Ensino de trabalhos de agulha, malharia e roupas brancas – a cargo da adjunta de terceira
classe Virtúlia Penfold, com prática na Escola Rivadávia Correia.
Ensino de agricultura e horticultura, prática e teoria, a cargo do adjunto de terceira classe
Jaime Batista e do Sr. Isaltino Melo.
Ensino de apicultura, a cargo do adjunto Jaime Batista com prática no Colmeal Modelo de
Deodoro.
Cinema Pedagógico e Megascopia – a cargo dos professores Yolanda Oberlander e Henrique
Cancio.
E sempre enaltecendo a obra do professor Deodato de Morais, assim termina o artigo-reportagem:
Mas o seu maior resultado (desse sistema de ensino) é de ordem moral e consiste na integração
da criança brasileira no solo brasileiro e nos sentimentos brasileiros, maravilhosa comunhão que
generalizada no País por uma falange de pregadores do estofo do professor Deodato de Morais,
que sejam ao mesmo tempo como ele o é, homem de ação capaz de ilustrar com o exemplo
sobre a terra, a boa doutrina, surtiria naquele largo e generoso entendimento entre o brasileiro
e sua pátria, ambos férteis em virtudes e acabaria realizando o sonho imenso de ascensão espiritual e econômica do Brasil.
Evidentemente, as hipérboles, os exageros do artigo, de inspiração, é claro,
do próprio professor Deodato, numa obra que mal começava, não diminui em nada
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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o valor de suas intenções e seu esforço em realizar alguma coisa, que, do seu ponto
de vista, considerava útil e adequado, no setor que a administração do ensino público do Distrito Federal entregara aos seus cuidados.
Aquela pressa, porém, em organizar festividades de inaugurações
consagradoras não agradavam ao meu temperamento, que acertada ou erradamente julgava que aquelas realizações deveriam caminhar num ritmo, talvez mais
lento, mas em condições mais sólidas, e com o caráter de maior permanência e
especialmente sem necessidade de qualquer propaganda.
Talvez a intenção do professor Deodato de Morais fosse, com essa propaganda, chamar a atenção da autoridade superior para um problema que julgava de
grande importância.
É um método de cuja legitimidade não estava muito seguro na época, de
poder discutir com vantagens.
Ou talvez, como disse, minha impaciência, traço de caráter que sempre me
acompanhou por toda vida, não me deixasse compreender, em toda a extensão, os
motivos que animavam o inspetor Deodato.
Não soube nunca mais do destino daquelas redentoras "atividades agrícolas" nas escolas primárias daquela zona, denominada rural, da antiga capital da
República. Parece-me, porém, que não chegaram a ser de todo muito brilhantes.
E o próprio professor Deodato de Morais, creio, não permaneceu por muito
mais tempo à frente daquele distrito escolar.
Muito mais tarde, em 1934, quando exercia eu o cargo de secretário de
Anísio Teixeira, diretor de Instrução Pública, recebi do professor Deodato de Morais, um interessante livrinho de sua autoria, intitulado Alimentação, da Coleção
"Vida Higiênica", da Companhia Melhoramentos de São Paulo, com a seguinte dedicatória: "Ao caríssimo amigo e colega Paschoal Lemme, com um grande abraço, o
Deodato, maio, 1934."
Minha carreira, pois, se não começava propriamente com uma decepção, ao
menos já encontrava motivos para uma certa mudança de rumos e orientação, o
que se deu, efetivamente, pouco depois.
O importante, porém, nesse início de trabalho, foi desde logo, ter sido posto
à prova minha capacidade de expressar um pensamento independente, o que para
mim teve uma enorme significação, dado meu temperamento caracterizado não
somente pela timidez, como também pela dificuldade que sempre tive em assumir
atitudes que pudessem chocar ou melindrar de qualquer forma as pessoas com
quem devesse entrar em contato, quer por relações de hierarquia, quer por quaisquer outras circunstâncias: o trato agressivo, como a necessidade de discordar,
foram para mim deveres sempre muito desagradáveis de cumprir.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO XII
INTERREGNO ALEMÃO,
COMERCIAL E DENTÁRIO
Não sei exatamente como nasceu em nós – os
irmãos Lemme – essa predileção e interesse pelas coisas alemãs. Talvez fosse o efeito da propaganda dos
produtos industriais alemães que começavam a aparecer por aqui, em concorrência com os de origem francesa, inglesa ou norte-americana, especialmente no setor da arte dentária, que interessava particularmente a
meu pai e aos dois irmãos, que passaram a dar uma
atenção especial a eles.
A Alemanha, aos poucos, recuperada da guerra
que perdera, voltava a procurar seu lugar no mundo entre
as grandes potências, apesar das condições drásticas que
lhe foram impostas pelo Tratado de Versalhes. Essas circunstâncias, dentro em pouco, seriam um dos pretextos
ou causa da formação do ambiente que levaria o mundo
a uma maior e mais terrível catástrofe: a Segunda Grande Guerra Mundial.
Não creio, ou pelo menos não me recordo, que houvesse, de nossa parte, qualquer simpatia pelo militarismo
germânico, mas talvez existisse algum entusiasmo pelos
feitos alemães durante a guerra de 1914-1918. Não era
raro ouvir-se referências ao fato de um país sozinho – o
Império Alemão – ter enfrentado praticamente todo o mundo e ter resistido tanto tempo. Quem sabe seria o sentimento de pena que sempre surge em relação ao perdedor
de uma luta terrível entre gigantes, que fora a Primeira
Grande Guerra Mundial? Ou a "injustiça", em que muito se
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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falava também, das condições drásticas que foram impostas a um povo cuja operosidade,
criatividade e cultura eram por todos reconhecidas, como se houvesse a intenção de
esmagá-las definitivamente, em benefício de concorrentes mais felizes?
A palavra "imperialismo" já começava a se tornar de uso corrente, para definir interesses de dominação econômica e política, que pouco tinha a ver com a
pretensa "vocação" do povo alemão para dominar o mundo: tratava-se, sim, da
disputa de mercado e de fontes de matérias primas, e nesse jogo o "vale-tudo"
atingia gregos e troianos.
A transformação de inocentes e ingênuos de todos os lados em "carne para
canhão", através de uma propaganda que pretendia assumir o caráter de "puro
patriotismo" era outro assunto que se discutia muito, e, nesse sentido, a atitude e a
notável obra de um Romain Rolland, Au dessus de la melée, entre outras, produzia
seus efeitos esclarecedores. Enfim, sentia-se em tudo o ar pestilento da hipocrisia
nas manifestações dos políticos profissionais, que serviam a interesses que estavam
muito distantes de serem os que mais convinham à busca de uma verdadeira paz
entre os homens, ideal sempre alimentado, onde quer que estivessem e quaisquer
que fossem os povos a que pertencessem os "homens de boa vontade"...
O fato é que, quando tivemos que escolher entre a língua inglesa e a alemã,
para prestar o exame preparatório da segunda língua estrangeira (a primeira era o
francês, obrigatória, para nós, na época), optamos pelo alemão, apesar de ser o
inglês, ainda sem a ênfase atual, a preferida pela maioria dos estudantes.
Tratamos assim de procurar um professor que pudesse nos preparar para o
referido exame, e creio que foi o jovem Stoffel, nosso vizinho da Rua Figueiredo,
que reencontráramos depois de alguns anos de afastamento, quem indicou a pessoa que nos introduziu na complexidade do idioma do país que acabava de perder
a guerra, mas que era também a pátria de um Goethe, de um Schiller, de um
Beethoven, de um Heine, de um Thomas Mann ou de um Einstein.
Essa pessoa, que deveria ter uma influência muito positiva em nossas vidas,
não era porém um alemão, mas um suíço de origem alemã, o que, nas condições
vigentes na época, foi uma grande vantagem para nós.
Era ainda jovem, alto, magro, educado, de maneiras suaves, e trabalhava no
comércio em serviços de contabilidade, em escritórios de grandes estabelecimentos
importadores alemães. Viera sozinho para o Brasil, por motivos que nunca nos revelou exatamente, e sua família continuava vivendo no Cantão alemão do pequeno
país neutro e progressista do centro da Europa.
Em breve, ao cair da noite, pois era a única hora de que dispunha o nosso
professor improvisado, estávamos mergulhados na decifração dos caracteres góticos do Erstes Buch (1º livro) do método Berlitz, na iniciação ao difícil idioma organizado por Lutero, na base do latim. A vontade de aprender era bastante grande e
o professor se esforçava para nos introduzir, da melhor forma possível, naquele
cipoal de declinações, conjugações, regências de preposições, e nas frases em que o
verbo se partia, para aparecer um dos segmentos como chave de todo o pensamento, no fim do período...
Mas o que mais progredia era a nossa amizade com o jovem professor. Temperamento sentimental, separado da família, vivendo sozinho no Rio de Janeiro, foi
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
aos poucos se afeiçoando aos seus três alunos e acabou por freqüentar nossa casa,
onde muitas vezes fazia refeições e ficava durante muito tempo em convívio conosco.
Andejo, alpinista, acabou por nos arrastar para suas excursões domingueiras,
e foi assim, em sua companhia e por ele estimulado, que viemos a conhecer muitos
pontos pitorescos da cidade em que nascêramos e em que sempre vivêramos, muitos dos quais, porém, eram inteiramente desconhecidos para nós: Alto da Boa Vista,
Pico da Tijuca, Corcovado, Pão de Açúcar, e também as cidades vizinhas do Estado
do Rio de Janeiro, como Petrópolis, Teresópolis, Friburgo, Miguel Pereira, Pati do
Alferes, alargando muito nossa geografia, que a esse tempo quase que se limitava
ao Méier e arredores e ao centro da cidade.
Além disso, essas excursões iam aos pouco criando em nós o hábito saudável, que só muito mais tarde começou a se introduzir entre as pessoas de nossa
categoria: o descanso semanal, o week-end, a higiene mental pelo desligamento
completo das atividades da semana, do estudo ou do trabalho. Essa prática tornouse mais tarde corriqueira, especialmente depois do advento da era do automóvel,
que foi sem dúvida a grande revolução no transporte que mais profunda influência
teve na mudança de hábitos do homem, em todo o mundo, pela facilidade de
deslocamento individual que proporcionou.
Para mim particularmente, que estabeleci, como veremos em seguida, relações de ordem um pouco diferente com o nosso amigo suíço, esse hábito foi de
grande proveito. Assim foi que não mais o abandonei, levando-me mesmo, mais
tarde, a adquirir fora do Rio de Janeiro, um local onde passaria dias muito agradáveis e mesmo felizes como uma válvula de escape para as atribulações que a vida
me trouxe, em circunstâncias que jamais poderia imaginar que pudessem ocorrer
naqueles anos de relativa despreocupação. E assim se o alemão que aprendíamos
não era muito, a amizade com o Eduardo Haerdy – o nosso companheiro suíçoalemão – nos proporcionava outros benefícios bastante apreciáveis.
Esse local, que tantos anos depois escolheria para aquele fim, foi exatamente um dos que vim a conhecer através de uma das excursões domingueiras que o
nosso improvisado professor nos sugeriu e que fizemos várias vezes: Pati do Alferes.
Confesso que nunca poderia imaginar que fora das serras de Petrópolis,
Teresópolis e Friburgo, que eram os passeios clássicos, com suas estradas de ferro
galgando a montanha em cremalheira e suas paisagens típicas, tão decantadas, até
na literatura, pudesse haver coisa tão bela como os panoramas que se podiam
apreciar na subida do trenzinho da antiga Linha Auxiliar da Estrada de Ferro Central do Brasil.
Esse ramal de estrada de ferro partia da antiga Estação de Belém (hoje
Japeri), importante entroncamento ferroviário entre o Rio de Janeiro, São Paulo e
Minas Gerais, em demanda de Governador Portela, a quase 700 metros de altitude,
onde as linhas se bifurcavam, indo um ramal até Vassouras e outro a Porto Novo do
Cunha, à beira do rio Paraíba, na divisa com Minas Gerais. Aí, depois de se atravessar uma ponte, a linha férrea penetrava na chamada Zona da Mata desse Estado.
Nossa excursão preferida era na direção de Miguel Pereira, a antiga "Estiva",
que o grande médico brasileiro que lhe deu o nome recomendava como um dos
melhores climas do Brasil, só comparável exatamente a certas regiões da Suíça.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
171
Entre Miguel Pereira e Pati do Alferes, localidades pertencentes ao município de
Vassouras, ficava a Parada de Monte Alegre (hoje Pedras Ruivas), onde havia, instalado em casa colonial de grande beleza, um hotelzinho sem muita categoria, mas
cuja rusticidade e simplicidade nos atraía e no qual várias vezes pernoitamos.
Nossa pousada nesses agradáveis passeios por essas regiões, só muito mais
tarde viemos a saber, resultara da competição de dois barões em agradar à Sua
Majestade Imperial, o Senhor D. Pedro II...
Esse prédio colonial tinha uma história curiosa que vim a conhecer pela
leitura da interessante obra de Inácio Raposo intitulada História de Vassouras. À
página 152, lê-se o seguinte:
[...] um fato não menos digno de nota para a história de Vassouras, foi a passagem inesperada
de S. M. Imperial, nesse ano (1862), pela freguesia de Pati do Alferes. Tendo tomado o Imperador a estrada que une essa freguesia ao Município e especialmente à cidade de Petrópolis, a fim
de regressar à Corte pela estrada de ferro D. Pedro II, apareceu a cavalo, seguido de não pequena comitiva, na praça do povoado, com grande surpresa da população, que nem por isso deixou
de manifestar ao chefe da nação sua enorme alegria por vê-lo naquele próspero arraial e por
onde passava pela primeira vez. Saindo ao seu encontro, o Barão de Pati do Alferes solicitou do
soberano a graça de lhe conceder a honra de jantar em sua fazenda, convite este que foi aceito
por D. Pedro, que, após a lauta refeição, prometeu voltar ao povoado a fim de retribuir aos seus
gentis habitantes as grandes demonstrações de estima que acabara de receber. Infelizmente,
porém, não pôde sua Majestade cumprir essa promessa, o que profundamente entristeceu o
barão de Capivari que mandara construir para recebê-lo o rico palacete de Monte Alegre, entre
as povoações de Pati do Alferes e Miguel Pereira, localidade que naquele tempo ainda não
existia.
Mas, para mim, o nosso amigo suíço tinha um atrativo a mais: emotivo,
sentimental, de certa maneira um tímido também como eu, via-se arrastado
freqüentemente a crises amorosas, de que nos fazia confidentes, e isso me fortalecia o ânimo por verificar que essa espécie de problema, que por essa época me fazia
também sofrer bastante, não era característica particular minha, mas atingia também uma pessoa de origem tão diferente e de educação tão diversa da nossa. E isso
fez-me compreender, desde muito cedo, aquilo que pude verificar mais tarde, quando
os caminhos da vida me fizeram andar por muitos lugares completamente diferentes, por esse mundo afora: o homem, retirado o verniz que lhe empresta a educação, os costumes nacionais, os hábitos, aparentemente tão diversos, torna-se um
animal muito semelhante, qualquer que seja o quadrante da terra de onde proceda.
Esse efeito, muito subjetivo, do contato que mantive com o nosso jovem
professor de alemão, mas que teve grande importância para mim, só agora se apresenta à minha memória com toda a clareza, ao apreciar à distância aqueles tempos.
Mal saído da adolescência e começando minha vida responsável, esses problemas
ganhavam uma dimensão que hoje poderia parecer ridícula, mas que freqüentemente
deixam marcas profundas em espíritos sensíveis, de que muitas vezes jamais se
recuperam. Nem sempre a "repressão" que a vida impõe se processa com a necessária eficiência.
É que "a essência da repressão consiste na recusa do ser humano em admitir
as realidades de sua natureza humana"; mas "as únicas coisas válidas na vida psíquica
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
são, antes de tudo, as emoções. Todas as forças psíquicas só são significativas graças
à sua capacidade de suscitar emoções"... (Norman O. Brown em A vida contra a morte). E, no entanto, sempre é necessário justificar a emotividade como um defeito, uma
fraqueza, que é preciso superar, para que a vida se torne "normal", de acordo com os
padrões geralmente aceitos, mesmo que isso custe a supressão das "únicas coisas
válidas" pelas quais vale realmente a pena viver.
Mas o estreitamento das relações com a nossa família fez com que o nosso
amigo suíço, aos poucos, fosse caindo também no âmbito do interesse pelas coisas
da odontologia e, em breve, começou a brotar a idéia dele se dedicar ao comércio
de artigos dentários, onde começavam a surgir, como dissemos, algumas novas
especialidades, graças à inventividade da indústria alemã.
Além disso, ele se mostrava um tanto cansado do trabalho de escritório e da
condição de empregado e pensava em se estabelecer por conta própria.
A idéia progrediu e em breve começou a se discutir a possibilidade da organização de uma sociedade comercial, da qual meu pai participaria como sócio
comanditário, devendo integrá-la um outro elemento que já se dedicava a esse
ramo de negócio e que era conhecido de ambos.
Meu pai, parece, já estava pensando também em ir deixando a profissão,
que exercia por cerca de trinta anos consecutivos. Ou talvez, já se desenhava para
ele a situação que depois se efetivou, e para a qual necessitava de maior liberdade
de ação, que o trabalho pessoal diário num gabinete dentário não permitia...
O fato é que, dentro em pouco, surgia realmente a nova firma, tendo se
instalado primeiro numa pequena loja da Rua Sete de Setembro, e depois se mudado para a Praça Tiradentes.
A crise que se criara com o meu rompimento com o inspetor Deodato de
Morais e a perspectiva de voltar como simples professor-adjunto para uma escolinha
rural, fez com que se intensificasse em mim a idéia de abandonar a carreira do
magistério e, portanto, o serviço público.
Não foi difícil, pois, o trabalho de persuasão do amigo e professor de alemão e também dos elementos da família para que eu viesse a participar dessas
atividades comerciais da nova firma de artigos dentários, onde representaria meu
pai.
Acabei por me convencer, parcialmente, das razões que me eram apresentadas e assim é que decidi me licenciar do cargo de professor-adjunto da Prefeitura
do Distrito Federal, e ingressar, como experiência, no negócio e me dedicar a essas
atividades comerciais na loja da Praça Tiradentes.
O outro sócio era um espanhol de idéias progressistas – o Manuel Garcia –
artista, culto, figura muito interessante e que complementava seu orçamento
doméstico integrando a orquestra do Teatro Municipal, onde tocava viola.
Nessas novas atividades de caráter completamente inesperado para mim,
permaneci apenas pouco mais de um ano. Aprendi muita coisa útil e interessante,
próprias de uma atividade comercial de nível alto e especializado, como era a importação e a venda de artigos dentários. A contabilidade, a correspondência comercial, o trato nem sempre muito agradável com a freguesia e, finalmente, as
responsabilidades que tive de assumir na direção da firma durante a viagem do
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
173
nosso amigo suíço e agora sócio à Europa, para visitar a família e resolver problemas de caráter comercial, proporcionaram-me uma experiência bastante apreciável para a minha formação, alargando de certa forma meus horizontes, e trazendome um desembaraço que melhorou bastante meu temperamento por natureza tímido, como já acentuei tantas vezes.
Mas, a sociedade não perdurou muito. Meu pai, acostumado por tantos
anos a uma profissão liberal, não se adaptou à vida comercial, mesmo sem participar diretamente em suas atividades, pela sua condição de sócio comanditário.
Talvez também aquelas outras razões de caráter muito íntimo, que já o atraíam
para São Paulo, fizeram com que se desinteressasse do negócio. Este também não
progredia com a rapidez que fora prevista, inclusive por falta de capital, e, em
breve, a discordância entre os sócios fez com que meu pai se retirasse da firma,
que entretanto continuou com os outros dois elementos.
De minha parte também, apesar de não ser propriamente negativa a
experiência que fizera, o fato é que não me adaptava àquela vida do toma-ládá-cá: mercadorias contra dinheiro, de certa forma a impingir artigos que nem
sempre correspondiam à propaganda, enfim todos aqueles "truques" característicos da atividade comercial, que sempre considerei como uma forma inferior de aplicação do esforço humano, isto é, fazer-se apenas de intermediário
entre o que outros produziram e que terceiros precisam ou desejam consumir.
Havia ainda a necessidade diária de "fazer o caixa", naquela rotina do "deve" e
do "haver", onde o fim do mês era aguardado sempre com grande ansiedade e
apreensão, diante de uma perspectiva de desequilíbrio entre receita e despesa,
num pequeno negócio, sem grandes margens para financiamentos e sem haver
recursos a que recorrer para cobrir os déficits.
Positivamente, não tinha mesmo qualquer vocação para essa espécie de
atividade, que muito mais tarde vim encontrar tão bem retratada por Traven em
seu O barco da morte, neste diálogo:
– É verdade, Pippip. Uma pessoa acaba por se fatigar do comércio honrado. Há nele qualquer coisa que soa falso, entende? Como se estivéssemos todo o tempo espreitando as algibeiras
do próximo. Ser comerciante, Pippip, viver do dinheiro dos outros é quase... é assim como um
homem, que vive à custa de mulheres...
Esse tipo de atividade é ainda melhor e mais impiedosamente descrita por
Erasmo no seu imortal Elogio da Loucura:
Os negociantes, sobretudo, são os mais sórdidos e estúpidos atores da vida humana: não há
coisa mais vil do que a sua profissão, e, como coroamento da obra exercem-na da maneira mais
porca. São, em geral, perjuros, mentirosos, ladrões, trapaceiros, impostores. No entanto, devido
à sua riqueza, são tidos em grande consideração e chegam a encontrar frades aduladores, particularmente entre os mendicantes, que lhes fazem humildemente a corte e publicamente lhes
dão o nome de veneráveis, a fim de lhes abiscoitar uma parte dos mal adquiridos tesouros.
É claro que Erasmo se refere às atividades comerciais quando mal se saía da
Idade Média... Mas será muito diferente nos dias de hoje?...
174
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Mais tarde, iria fracassar novamente na tentativa de me dedicar ao "comércio" de minha pretensa especialidade, à frente de um colégio particular.
Positivamente, meu temperamento foi sempre mais voltado para as coisas,
digamos assim, das artes, onde não se considera muito a relação entre os possíveis
ganhos e a atividade que se exerce... E em educação, no ensino, como relacionar
esse trabalho invisível, impossível de ser medido em termos de ganhos e lucros que
é a formação de um ser humano ou a transmissão de conhecimentos, ainda que no
nível mais modesto? "A arte tem de afirmar-se contra a hostilidade do princípio da
realidade e da razão, que é escravizada ao princípio da realidade". E "o artista é o
homem que recusa inserção através da educação na ordem existente, permanece
fiel ao ser de sua própria infância e torna-se assim um ser humano de todas as
épocas", diz ainda Norman O. Brown, em seu A vida contra a morte.
Sem querer de qualquer forma me arvorar numa dessas figuras predestinadas que vez por outra surgem na multidão, que nela não tem lugar e emerge então
"segundo leis muito mais amplas", nunca pude, como disse, medir meus sonhos,
minha atividade, minhas mais modestas realizações pela caixa de uma máquina
registradora, e assim meu descompasso com qualquer atividade de caráter puramente comercial, mais cedo ou mais tarde, teria que se manifestar.
Nesse entretempo (1926) também o professor Teófio não desistia de sua
catequese, e voltava a me chamar para lecionar na minha "alma mater", a Escola
Visconde de Cairu, agora já em nova situação. Meus estudos na Escola Politécnica
voltaram a se intensificar. A sociedade, como disse, desfez-se. Voltei ao magistério.
Terminava assim o interregno comercial, alemão e dentário.
Conforme acentuei, guardo dele, porém, boas recordações, e teve sem
dúvida influência benéfica em minha formação, até mesmo por ter verificado,
concretamente, que esse jamais seria o meu verdadeiro caminho...
•••
Ligado a esse episódio, está também a viagem à Alemanha dos meus dois
irmãos, já dentistas – o Virgílio o mais velho, e "Tonico", o dr. Lemme Júnior – nome
profissional que passou a adotar, depois de formado, e que era um ano e pouco
mais moço do que eu.
Com minha irmã Palma, constituíamos o primeiro grupo dos quatro, que
fomos companheiros de infância e recebemos educação semelhante, com a família
ainda perfeitamente organizada, situação essa que se modificou depois, como vimos, pelos descaminhos a que foi levado o velho Lemme.
Essa viagem à Alemanha fazia parte do espírito aventureiro que nos caracterizava na época, pois os elementos concretos para uma tal empresa eram muito
precários. Os dois irmãos apenas começavam suas carreiras na profissão que escolheram. Fizeram tudo para que eu os acompanhasse, mas não foi possível atendêlos. A viagem seria realizada em função das atividades em que os dois já se tinham
fixado, e que de certa forma tinha também caráter comercial, por influência e
necessidades da firma do nosso amigo suíço, que serviria de introdutor em recomendações a pessoas de suas relações e a fornecedores, radicados na Alemanha. E
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
175
eu já estava completamente desligado dessas atividades. Além disso, teria necessidade de prolongar uma licença no serviço público, coisa muito incerta de obter.
Depois, já a esse tempo, novos interesses, e esses de caráter sentimental,
tinham surgido em mim. Esse foi mais um forte motivo para não poder acompanhar os dois irmãos naquela aventura.
Só recentemente soube que os dois tinham também a intenção de levar com
eles a Palma, minha irmã mais velha, mas isso ainda se tomava mais difícil, em vista
das funções que ela aos poucos ia assumindo na direção da família e da casa da Rua
Silva Rabelo por causa das ausências prolongadas de meu pai.
Assim, a viagem reduziu-se aos dois, e, num belo dia dos fins do mês de
março de 1927, embarcavam eles no navio alemão Monte Sarmiento, iniciando,
com muita coragem e muito poucos recursos reais, uma verdadeira aventura, fruto
da inconsciência e dos sonhos da idade, e que não durou mais do que alguns meses.
Essa viagem caracterizava bem o temperamento sobretudo do meu irmão
mais jovem, que por toda sua vida manteve esse mesmo espírito de desprendimento, bastante aventureiro, mas de uma pureza d'alma e de uma energia que o
teriam podido levar a melhores e mais felizes caminhos. A vida, porém, tem suas
predestinações próprias, digamos assim, e é muito difícil fugir às suas inexoráveis
injunções... O "Tonico", porém, merecia um destino mais de acordo com sua inteligência e bondade, ou quem sabe, quem pode dizer, queimou-a "by the both
ends", como não poderia deixar de fazê-lo. Sua morte tão prematura (17/3/1972),
depois de tantos sofrimentos, abalou-me profundamente, e ainda hoje não consigo acreditar que o quarto elemento do nosso querido grupo deixou-se levar
assim, abandonando-nos, nesse "entardecer da vida", quando mais precisávamos
uns dos outros, ao menos para evocar em conversas sem maiores responsabilidades aquilo que fomos, aquilo que sonhamos e o que realmente conseguimos ou
ainda desejávamos vir a ser.
Releio com emoção, agora que vou tentando evocar essas passagens de
nossa vida, alguns trechos dos artigos que o querido irmão se comprometeu a
enviar para o Diário de Medicina, jornal publicado por um grupo de amigos seus, e
onde já demonstrava sua intenção de prosseguir nos estudos para se diplomar nessa carreira mais alta, para que tinha inegável vocação, mas que, infelizmente, não
pode realizar.
Eis alguns trechos do primeiro artigo que escreveu, sob o título "Carta da
Alemanha" (Serviço Especial do Diário de Medicina, sexta-feira, 1º/4/1927):
A primeira destas "Cartas da Alemanha" não é da Alemanha. Vamos resumir nelas as impressões de viagem a bordo do "Monte Sarmiento", viagem começada com um belo sol, enquanto o carioca tomava cinzas...
Depois de uma breve descrição do navio e suas acomodações, dizia ele:
Bom salão de leitura, com uma pequena biblioteca. Além disso uma livraria com obras
alemãs. Corremos os olhos a procura de alguma coisa de interessante e encontramos os Brasilien
heute und morgen, de Fritz Kohler. Compramos o livro por 9,50 marcos, muito caro para quem
leva o depreciadíssimo mil réis. Vejamos: capa amarela, com lombada vermelha, cores nacionais,
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
ainda bem. Um beija-flor é a sugestiva decoração externa. Internamente, beija-flores e macacos. Muitas ilustrações: palmeiras do Jardim Botânico, fazendas de São Paulo, bananeiras, cobras, algodoeiros, etc.
No índice, um título chama a atenção: Der Brasilianer, à página 24. Veio-me logo o desejo
de guardar o livro para em Berlim presentear alguns dos nossos futuros amigos alemães. Será
um bom reclame do Brasil, pensamos. Lemos esse capítulo e resolvemos desde logo interditar o
livro – para longe a idéia de dá-lo a alemães! Pois se o autor teve a sem-cerimônia de escrever
as minúcias das nossas repartições!
E passo a traduzir o capítulo... que terminava assim: "quem quiser trabalhar, pode fazê-lo;
quem não quiser, deixe. A última foi preferida".
E adiante:
Já se passaram três dias desde que perdemos de vista o Corcovado e é preciso procurar
alguma coisa que interesse aos leitores do Diário de Medicina.
Procuro então o médico de bordo e, me apresentando como correspondente desse jornal,
pergunto-lhe se há algum dentista a bordo.
–Não, foi a resposta.
– E nos casos de urgência?
– Nós mesmos fazemos os curativos necessários e as extrações.
– E têm aparelhamento bastante para esses casos de urgência?
– Para a clínica médica, sim, temos mesmo uma sala de operações muito bem montada.
Quanto à clínica dentária urna pequena farmácia e o instrumental essencial...
E continua depois, acabando por descobrir as instalações dentárias no salão
de barbeiro, que não eram porém dentárias, mas uma máquina elétrica de cortar
cabelos, que os alemães começavam a introduzir na velha profissão dos fígaros...
(Este artigo é datado de 7 de março de 1927).
Num segundo artigo, publicado no Diário de Medicina, de 21 e 22 de abril
de 1927, continua a relatar "casos" de bordo, inclusive estas observações sobre
alemães que voltavam da América Latina para sua pátria:
Essas caras pálidas nos deram o que pensar. Não compreendíamos porque tanto alemão
(que são a maior parte dos passageiros), de ordinário caracteristicamente rosados e cheios de
saúde, se pusessem a bordo, naquele estado.
Depois, investigando, pudemos esclarecer a coisa – tratava-se de doentes que regressavam
à pátria em busca de cura. Vindo do Brasil e do Prata impaludados, dispépticos, com a pele
infestada de vários parasitas, voltam da América, admirados das belezas naturais e do bom
calor, mas vencidos pelas doenças. Sentem que viveriam bem na América do Sul, sentem aí o
estímulo de um sol que dá vida e um céu puro que alegra e que não existe no norte da Europa.
Mas, apesar disso, às vezes, não podem viver muito tempo nem desenvolver muita atividade,
principalmente intelectual, no nosso clima...
E depois de mais algumas descrições da viagem e de uma intervenção
odontológica, que teve a oportunidade de fazer, o que lhe grangeou notoriedade e
muitos clientes a bordo, termina com uma e breve referência à sua passagem por
Lisboa.
Estivemos algumas horas em Lisboa. Passeamos pela cidade seguindo logo para Belém, em
visita aos Jerônimos; não íamos portanto e tratar de odontologia, porque não havia ocasião
nem tempo para isso.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
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Mas não se furta a observar os "anúncios" de dentistas e termina com a
"verve" de um "cá e lá mais charlatães há"...
Sua integridade e irremediável boa-fé irritava-se com aquelas demonstrações que julgava indignas da profissão...
Não me parece que tenha remetido outras "Cartas da Alemanha" para o
Diário de Medicina. Pelo menos não consegui obter qualquer outra além dessas
duas, que como o autor afirma, não eram propriamente da Alemanha.
Mas, guardo entre meus documentos uma carta, escrita diretamente para
mim, datada de 26 de março a 20 de abril, em que a realidade da aventura começava a se desenhar e em que ele diz, entre outras coisas de menor importância:
Estamos em Berlim, término de nossa enorme viagem. Chegamos aqui no dia 24 e depois de
correr um dia inteiro à procura de casa, afinal arranjamos um quarto no terceiro andar, em casa
de uma viúva. A casa por fora parece um palacete, tem uma entrada de mármore esplêndida. O
nosso quarto é bom, mas tem o defeito de estar perto da casinha, de onde vem um eterno
cheiro de repolho, que a princípio nos deixou aterrorizados. Agora já estamos acostumados.
[...]
Come-se na Alemanha, come-se sempre, come-se tudo e em todo o lugar. Nas ruas, as
vitrines de comestíveis são verdadeiros suplícios tantálicos para quem tem fome e não tem
dinheiro...
[...]
A vida em Berlim é relativamente cara e agravada para nós pelo pouco valor do mil réis...
[...]
A grande dificuldade é o alemão – se dentro de três meses o falarmos corretamente, poderemos vencer, senão, parece-me que teremos que bater em retirada. .
Refere-se ainda, com maiores minúcias, sobre a passagem por Lisboa, e em
post-scriptum, que define bem seu temperamento e as preocupações que a idade
nos impunha, e mesmo porque "nem só de odontologia vivia o homem".
"Lindas pequenas em Hamburgo e Berlim!"
Poucas notícias recebi, daí em diante. O Virgílio, mais moderado e realista,
falava-me "de que aos poucos vamos tomando pé neste buraco". As dificuldades de
trabalho na profissão entretanto eram grandes, pois a legislação era muito rigorosa quanto a atividades de estrangeiros... É preciso não esquecer que a Alemanha
procurava se recuperar da derrota de 1918 e o espírito "chauvinista" deveria naturalmente imperar por toda a parte.
E assim, a aventura não pôde durar muito tempo.
Confesso, porém, que sempre tive muita inveja dos dois, que abandonaram
tudo para tentar alguma coisa, que se não deu grandes resultados "concretos",
"mensuráveis", satisfez ao menos, a esse espírito de libertação da rotina, que sempre senti também em toda a minha vida.
O dr. Lemme Junior, voltando ao Brasil, retomou suas atividades profissionais nas quais teve enorme êxito, chegando a ser considerado como um mestre em
odontologia. Não chegou a se diplomar m medicina, desejo que alimentou por
muito tempo. Depois... sim, depois, mergulhou em outra aventura, mais grave e de
conseqüências destruidoras: a política. Não qualquer "política", mas a ação política
que pretende transformar o mundo, este mundo que até agora "os filósofos apenas
178
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
haviam se dedicado a interpretar"... Sua inteligência e operosidade elevou-o até os
mais altos postos do partido da esquerda radical. Sua honestidade e boa-fé destruíam-lhe a família, a profissão e, por fim, a própria vida.
•••
O estudo da língua alemã, que fora a causa inicial de todos os acontecimentos narrados neste capítulo, não ficou totalmente abandonado.
O exame do Colégio Pedro II foi prestado por mim em condições que julgo
interessante narrar.
A banca examinadora era constituída por duas figuras eminentes do magistério e da cultura do País: Carlos de Laet e João Ribeiro. Completava-a o professor
Benjamin Fraenkel, de origem alemã.
Os candidatos eram, em sua maioria, teuto-brasileiros, que, de modo geral,
falavam corretamente o alemão.
Para a prova escrita fora sorteado um trecho bastante complicado de Kant.
Até hoje não consigo entender como se incluía num exame desse tipo um autor já
de si tão difícil e obscuro, mesmo para especialistas. Evidentemente, traduzi-o
mal, com muita dificuldade, e sem entender quase nada do que o grande filósofo
pretendia dizer. Enfim, consegui nota suficiente para ser chamado a prestar o
exame a oral.
Neste, os examinadores indagavam sempre do candidato se queria ser argüido em alemão ou em português.
Quando chegou a minha vez, aguardada com muita ansiedade, o professor
Fraenkel, por qualquer circunstância, esqueceu-se de me perguntar em que língua
queria ser argüido: resultado, tive que agüentar (é o termo) todo o exame em
alemão, mas a compensação veio no final: nota oito ("plenamente", como se dizia)
na escala de 0 a 10.
Enfim, estava vencida a última etapa, considerada a mais difícil para a obtenção dos últimos dos 12 certificados que eram exigidos para a prestação do
exame vestibular à Escola Politécnica.
Também nesse exame a escolha do alemão me proporcionou um incidente
curioso.
Reunidos todos os candidatos para a prestação da prova de língua estrangeira no grande salão das aulas de desenho do último andar do velho casarão do
Largo de São Francisco, foram dados os trechos para a tradução, sem dicionário, de
francês e inglês. Esqueceram-se, porém, os examinadores de dar o trecho em alemão para os candidatos que tivessem optado por essa língua em lugar do inglês.
Dirigi-me à banca examinadora para lembrar o fato.
O professor Jorge Kitzinger, presente no salão, como representante da banca, resolveu então perguntar se havia outros candidatos que tivessem escolhido o
alemão. Sensação geral: fui eu o único a me por de pé. Fiquei assim, sem o querer,
como uma estranha figura que "sabia alemão", tal como aquele personagem de
Lima Barreto que sabia javanês... Entretanto, conforme verifiquei depois, havia candidatos, descendentes de alemães, que dominavam a língua alemã, perfeitamente.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
179
O trecho dado para a tradução não foi difícil e assim atravessei razoavelmente a prova...
Voltei várias vezes ao estudo sistemático do alemão, mas nunca consegui
dominá-lo razoavelmente no mesmo nível do francês e do inglês. Este último fui
obrigado a estudar mais tarde, quando me fixei em definitivo nos estudos de educação. Em 1939, a viagem que empreendi à América do Norte exigiu também que
procurasse falar alguma coisa da língua, que se tornou depois de preferência indiscutível das novas gerações, graças especialmente à influência do cinema e da cultura norte-americanas, que invadiram o mundo inteiro, principalmente depois da
Segunda Grande Guerra, em que os Estados Unidos da América do Norte se tornaram, sem dúvida, a mais poderosa potência da Terra.
Mas, em Viena, anos depois, em minha primeira viagem à Europa, pude sentir a utilidade do pequeno vocabulário alemão que ainda conservava na memória,
como resultado dessas incursões no difícil idioma de Goethe.
Foi também através do estudo do alemão que passei a prestar maior atenção às grandes figuras da cultura desse país, não somente na literatura, como
também na filosofia e na história, o que, evidentemente teria que me proporcionar um maior equilíbrio na aquisição de conhecimentos nesses ramos em que,
mais tarde, se fixaram as minhas preferências.
Por isso não poderia concordar com Nietzsche, apesar de seu. gênio, em suas
diatribes contra seu próprio povo:
São eles [os alemães] s responsáveis por todos os grandes delitos cometidos contra a cultura nestes quatro últimos séculos. [...] Os alemães privaram a Europa dos frutos e dos significados
do último grande período da Renascença, num momento em que uma hierarquia superior de
valores, em que valores nobres afirmavam a vida... [...] Finalmente, quando em meio da ponte
entre dois séculos de decadência surgiu uma "force majeur" de gênio e de vontade, bastante
forte para fazer da Europa uma unidade política econômica, os alemães, com as suas "guerras
de independência", impediram a Europa de sentir o verdadeiro significado e a maravilhosa realidade da existência de Napoleão. É por isso que eles têm na consciência a culpa de tudo o que
ocorreu depois, do que atualmente acontece: a doença, a irracionalidade mais oposta à cultura
– o nacionalismo, esta neurose nationale de que sofre a Europa, este prolongamento ao infinito da divisão da Europa em pequenos Estados de politicazinha de campanário, privaram a Europa até do próprio significado da sua razão, conduziram-na a um beco sem saída. [...] Quando
pretendo imaginar um homem que repugne a todos os meus instintos surge-me logo à mente
um alemão!
E por fim, em sua catilinária contra Wagner, por ter se tornado um "bom
alemão", um "filisteu", afirma: "Por onde quer que passe, a Alemanha destrói a
Cultura..."
Não creio que se possa julgar um povo, em bloco, por essa forma, e só
mesmo a um espírito com a grandeza de um Nietzsche se poderia permitir essas
apreciações, evidentemente injustas, sobre seu próprio país, seu povo, tal como as
hipérboles sobre sua própria pessoa e sua obra como o faz no incrível Ecce Homo.
Ou já seria a manifestação da loucura que o inutilizou aos 44 anos...
Uma das causas dessa virulência foi, sem dúvida, o ressentimento que revela
quando observa: "Procuro [nos alemães] inutilmente uma prova de tato, de delicadeza comigo. De judeu já as tive, de alemães ainda não..."
180
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
CAPÍTULO XIII
AMORES E CASAMENTO
A vida assim narrada em capítulos pode dar a impressão de que a personalidade pára de sentir e de manifestar todos os seus outros aspectos para só se expressar
através daquele que se está descrevendo no momento.
Nada mais falso. A pessoa é uma só não podendo, porém,
ser descrita em sua totalidade, em cada momento fugaz:
ou se fala de uma coisa ou de outra, pois é impossível,
como já dissemos antes, citando Henry Miller, descrever
em palavras a totalidade de um momento vivido, por
menor que ele seja.
Assim, aquilo que é a essência da personalidade,
continua agindo, continua se manifestando, por mais
que outras necessidades, especialmente as de caráter
social, forcem-na a tomar caminhos de acordo com o
"princípio da realidade"...
Ainda acompanhando Freud através de magnífico estudo de Norman O. Brown (A vida contra a morte),
lembraremos que
[...] para Freud, o trabalho e a necessidade econômica são a
essência do princípio da realidade. Mas a essência do homem
reside não no princípio da realidade mas nos desejos inconscientes reprimidos. Seja qual for a severidade com que as necessidades se exerçam sobre ele, não é ele, em sua essência,
Homo economicus ou Homo laborans: por mais amarga que
seja a luta pelo pão, o homem não vive apenas pelo pão.
Freud sugere que, além do trabalho, existe o amor... E, se
além do trabalho, no fim da História, existe o amor, este deve
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
181
ter existido sempre desde o início da História e deve ter sido a força oculta que fornece a
energia dedicada ao trabalho e constituidora da História. Desse ponto de vista, Eros reprimido é
a energia da História e o trabalho deve ser considerado como Eros sublimado. Dessa maneira,
um problema não enfrentado por Marx, pode ser encarado graças a Freud.
O fato é que nenhuma "repressão" consegue estancar o "princípio da vida",
comandado por Eros, em suas manifestações tirânicas, e o jovem em meio às preocupações que a sociedade lhe impõe, procura o Amor... Mesmo que se o queira
reduzir às necessidades que a fisiologia lhe dita, tendo em vista aquele objetivo
geral da natureza, no afã da perpetuação da espécie... O aguilhão do sexo, do amor,
inseparáveis, não cessou de agir, em nenhum momento como a única verdadeira
"constante", enquanto por necessidade, por simples método, outros aspectos da
vida vão sendo vividos, ou melhor, narrados.
Já o dissemos, desde especialmente a Escola Normal – e estava na idade
própria das paixões avassaladoras – a descoberta da mulher, fez seu caminho e
produziu seus efeitos. O temperamento tímido impedia grandes sucessos nessa busca
de um amor unificado, em que pudessem se exprimir como um todo as manifestações que irrompiam nesse desabrochar da idade.
Ao sair da Escola Normal tinha uma "namorada" fixa, uma colega, que ao
cair da noite, depois do jantar, ia encontrar, em rua do outro lado da Estrada de
Ferro, no Méier.
Provinha ela de uma família do Estado do Rio de Janeiro, por coincidência
do município cuja sede era a cidade de Barra Mansa (que eu conhecera bem), e
viera morar com parentes no Rio de Janeiro, para fazer o curso da Escola Normal.
Na rua bastante escura, naquelas primeiras horas da noite, no portão de
uma grande chácara onde residia com parentes, trocávamos juras de amor e nos
entregávamos às carícias que são a expressão física inseparáveis do sentimento
idealizado, que ainda esbarra em tantos preconceitos.
Mas, com o passar dos dias, tudo isso foi esfriando, e certa vez tudo acabou,
e nem me lembro bem como nem por quê.
Hoje, não me repugna acreditar numa certa predestinação, em certos caminhos que temos que seguir, em certas circunstâncias que teremos que enfrentar na
vida, de uma forma ou de outra, com determinadas pessoas e não com outras...
E as Parcas ainda estavam tecendo, nesse particular, os rumos que deveriam
definir o meu "destino"...
•••
Além do trabalho, havia o amor... Repetindo: lá pelas cinco e meia da manhã, tinha que começar a me movimentar para, em viagem complicada, chegar ao
local de trabalho – aquela escolinha lá na estrada do Magarça, entre a Estação de
Campo Grande e a bela praia da Pedra de Guaratiba.
Os horários evidentemente coincidiam e essas viagens eram obrigatórias
para grande número de professores. Alguns já se conheciam, outros iam iniciando
amizades pelos reiterados encontros diários, interesses comuns da profissão, ou
outros que se iam formando e estreitando com o passar dos dias.
182
Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Nos trens, especialmente até a Vila Militar e o Realengo, viajavam muitos
militares que, em horários semelhantes, iam cumprir seus deveres profissionais.
Namoros, intrigas amorosas e até casamentos surgiam entre muitos deles e as jovens professoras.
Foi também nessas viagens profissionais que a "predestinação" iria me levar
a conhecer aquela que deveria partilhar comigo de toda uma vida, que depois de
percorrida, em seus melhores e piores momentos, nos leva a indagar: como poderia
ser de outra maneira?
•••
Apesar de termos cursado a Escola Normal no mesmo período e termos sido
nomeados no mesmo ato administrativo (e não se há de crer em "destino"!), só
viemos a nos conhecer naquelas viagens quase iguais, pois saíamos quase dos mesmos locais (Méier e Todos os Santos, respectivamente) e demandávamos escolas
muito próximas. Esse contato diário teria que levar à aproximação, ao conhecimento (e aí está o mistério que à falta de melhor explicação chamamos de "destino"), a
um entendimento que aos poucos se tornava singular, diferente do que era mantido com todas as outras pessoas em situação perfeitamente semelhante, mas que
não levaria ao mesmo desfecho.
E direi ainda mais, que nascemos e fomos criados praticamente na mesma
área desse Rio de Janeiro tão grande, e só passados tantos anos, nossos caminhos
deveriam se cruzar de maneira tão decisiva.
Em maio de 1924, começávamos o trabalho e, portanto também aquelas
viagens que nos uniram em veículos, locais e interesses. E em dezembro desse
mesmo ano nossa intimidade já se revelava na dedicatória que eu escrevia num
volume do Messidor, de Guilherme de Almeida, que era como uma espécie de
bíblia romântica de todos os namorados, àquele tempo:
A Carolina
Lembrança do último dia de Guaratiba.
15-XII-1924
Com a chegada das férias escolares, os encontros obrigatórios estavam naturalmente suspensos. Outros passos, então, teriam que ser dados para uma aproximação. E eles foram dados, e todos os seguintes...
•••
Carolina ("Donga" ou "Donguinha" na intimidade) provinha, tal como eu, de
família numerosa, de classe média. Perdeu a mãe muito cedo (10 para 11 anos,
segundo creio). A irmã mais velha, Alba, assumiu então a direção da casa. O pai,
oficial do exército da arma de engenharia chegou a general post-mortem, tendo
comandado, como coronel, unidades na Vila Militar.
Infância, Adolescência, Mocidade | Volume 1
183
Nesse período, Carolina, com parentes e amigos freqüentava as festas promovidas pelos oficiais da Vila Militar e, segundo ela mesma me contava, houve
vários namoros com subordinados de seu pai. Sempre me causou estranheza que
não tivesse se casado com um deles, o que seria fato comum. E iria encontrar mais
tarde um civil, tão desprovido de atrativos, inclusive sem qualquer apreço pela
carreira militar, cujos representantes eram, em certa época, um dos caminhos preferidos pelas jovens casadouras à procura de marido.
O pai, com quem parece ter tido grande ligação afetiva, faleceu durante a
gripe "espanhola", em 1918. Teve fé de ofício brilhante e era bastante bem dotado
intelectualmente. Não o conheci.
Veio depois o curso da Escola Normal, onde fez estudos brilhantes. Foi nesse
período que se tomou católica fervorosa, talvez em conseqüência da morte do pai,
e também pelo fato de quase ter morrido também, na mesma ocasião, atacada pela
mesma doença. Uma verdadeira crise religiosa quase a levou à vida monástica.
Com a pensão militar deixada pelo pai e depois acrescida ao salário de professora, Carolina tinha uma vida econômica bem modesta, porém praticamente
independente. Vivia com a irmã mais velha, já então casada, e que criava ainda a
mais moça – a Elisa. Quando a conheci, moravam no Catete, à Rua Silveira Martins,
numa vila ao lado do Palácio do Catete ("Vila Palácio", de propriedade do conde
Modesto Leal). Mas, com a necessidade das viagens diárias para o trabalho, passava
muitos dias em casa de um dos irmãos, o Breno, na Estação de Todos os Santos, e
também com uns tios que moravam próximos: a tia era Duarte Nunes, irmã de sua
mãe, e o tio, César Miranda Reis, a quem se ligava por carinho muito especial.
Entre esses três pontos, decorreu nosso namoro naqueles anos de 1925,
1926 e 1927, até o desfecho final.
Carolina era alta, morena, tipo "fausse-maigre", traços finos, modesta no
trajar, de ânimo muito igual, qualidade que manteve por toda a vida, apesar de
muitos momentos difíceis que teve que enfrentar.
Já a tendo conhecido órfã de pai e mãe, e com relativa independência econômica, não tínhamos contas a prestar a ninguém, e assim nossas relações se revestiram, desde logo, de certa peculiaridade.
Enquanto, durante os anos em que ocorriam, em minha vida, todas aquelas
modificações já narradas (escola Politécnica, quase abandono da carreira do magistério, "interregno alemão e dentário", a viagem frustrada à Alemanha e, por fim,
a volta ao ensino, já agora na Escola Visconde de Cairu), pouca coisa se modificou
em relação a ela, pois, sempre muito conservadora, continuava sua carreira pelos
caminhos normais, tendo apenas completado o tempo regulamentar e saído de
Guaratiba para uma escola mais próxima, para onde viera transferida sua antiga
diretora (na Estação de Bento Ribeiro, na Estrada de Ferro Central do Brasil).
Nas férias de 1926-1927, resolvemos viajar juntos para uma região que ela
conhecera quando o avô a levava em sua companhia para passar férias escolares: a
cidade de São João Del-Rei. Inteiramente entregues um ao outro, vivemos dias
deliciosos numa localidade próxima àquela cidade: Águas Santas, conhecida pelos
banhos de águas sulfurosas, tomados em instalações muito primitivas. Nossa intimidade já era então completa e pouco então faltava para o passo final.
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Paschoal Lemme | Memórias de um Educador
Não é de estranhar que esse nosso modo de proceder, digamos assim, nossas
relações muito peculiares, dadas as circunstâncias em que nos conhecemos, despertassem alguma estranheza e até mesmo comentários maliciosos. Se bem que não
guardei qualquer lembrança muito nítida dessas reações, encontrei entre meus papéis uma como que resposta a essas possíveis insinuações – em versos de Carlos
Magalhães, que Carolina me deu, datada de 11/4/1926, e que diziam assim:
Que importa?!..
Que importa que de nós falem os inconvenientes,
os perversos, os maus e despeitados vis,
Se em nossos corações perdura a fé dos crentes
E a plena convicção de nosso amor feliz?
Que importa esse sorrir de lábios maldizentes,
E esse profundo olhar de parvos e imbecis,
Se passarmos a vida enlevados, contentes,
E entre beijos de afeto e carícia gentis?
Que importa que esse mundo hipócrita pretenda
A crítica fazer ridícula ou severa
Uma vez que a moral desse Amor não compreenda?
Assim que importa a mim, a ti, que importa pois
Ouvir blasfêmias mil... se, em nada, em nada altera
A profunda paixão, que existe entre nós dois?"
•••
O casamento deveria ser marcado, a princípio, para 19 de março de 1927,
dia de São José, santo da devoção especial da noiva. Teve, porém, que ser adiado,
creio que por causa da demora nas formalidades usuais.
Comunicando em casa, a meu pai, nossa resolução, ela ocasionou da parte
dele a reação muito comum: a da alegação da falta de recursos materiais suficientes para nossa manutenção. Tentei convencê-lo de que não se tratava apenas disso.
E nos desentendemos. Saí de casa, e fui morar num quarto à Rua Frei Caneca.
Finalmente, tudo resolvido, a 28 de julho de 1927, na Igrejinha de Santo
Antônio dos Pobres, à Rua dos Inválidos, realizava-se a cerimônia religiosa, na maior simplicidade.
Nossa certidão de casamento dizia que naquela data, perante o juiz dr. Edgard
Limoeiro, foi realizado o casamento de Paschoal Lemme e Carolina de Barros e
Vasconcelos, ele nascido nesta cidade a 12 de novembro de 1904, filho de Antônio
Lemme e Maria do Nascimento Lemme, e residente à Rua Silva Rabelo, 11; e ela,
também natural do Rio de Janeiro, onde nascera a 19 de maio de 1902, filha de
Inocência de Barros e Vasconcelos e Adelaide Duarte Nunes de Barros e Vasconcelos, residente à Rua Silveira Martins, 72, casa 8. Foram testemunhas do ato Antônio
Lemme e César Miranda Reis.
Meu pai, sem guardar qualquer ressentimento, compareceu ao ato religioso.
Na tarde desse mesmo dia embarcamos para a cidade de Vassouras, onde
passaríamos alguns dias de "lua-de-mel", em casa de Félix Machado, titular do
cartório local, o "papai" Félix, como era conhecido, sogro de Everardo, um dos
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irmãos de Carolina, oficial do Exército. Eu já conhecia a cidade desde os tempos das
excursões com o nosso professor suíço-alemão. Mas ela se ligava agora em definitivo ao meu roteiro sentimental e assim não foi por acaso que, muito mais tarde, ao
pensar em escolher um local para termos um refúgio para as férias escolares da
futura família, minha preferência se voltasse para a cidadezinha que outrora célebre com um dos maiores centros produtores de café, com seus barões e casarões
coloniais, curtia agora sua singela pacatez na decadência. A tranqüilidade era
repousante em Vassouras. A essa época chegava-se à cidade somente pelo trenzinho da Linha Auxiliar, ou por Barão de Vassouras, da Estrada de Ferro Central do
Brasil. Um produto caracterizava a cidade: o célebre requeijão de Vassouras. A "Casa
das Eras", a residência de Eufrásia Teixeira Leite, uma das baronesas do café e grande amor de Joaquim Nabuco, era uma de suas atrações turísticas.
Circunstâncias fortuitas levaram-me a não realizar a idéia do refúgio para
as férias ali: ficou próximo, porém, em Pati do Alferes, no 2° Distrito do mesmo
município de Vassouras, cuja sede ainda hoje relembro sempre com um sentimento
de nostalgia e ternura.
Sobre nossa noite de núpcias e dias seguintes, é sempre elucidativo dizer
alguma coisa, na área, é claro, das confissões.
Sirvo-me aqui também das palavras do artigo de Délcio Monteiro de Lima,
autor da pesquisa intitulada Comportamento sexual do brasileiro, já citada. Diz ele
em certa passagem:
A mulher brasileira, na verdade, pouco ou quase nada sabe a respeito de sexo. 79% das
especialistas ouvidas no inquérito consideram-na com efeito, pouco esclarecida, enquanto 21%
a vêem regularmente esclarecida, não se computando nenhuma resposta, "muito esclarecida".
Isto em 783 questionários. O quadro, no entanto, não muda muito em relação ao homem. Em
outras palavras, estamos virtualmente na estaca zero em matéria de educação sexual, pouco
além dos ensinamentos que nos vieram da chamada escola da vida, ou para usar uma linguagem muito própria dos pais, sabemos o que foi aprendido "na rua". E apesar do papel representado pela literatura pornográfica, especialmente a ilustrada, nesse trabalho 'educativo', a quase
totalidade dos rapazes aprende sexo com as prostitutas ou com a empregada de casa ou do
vizinho. As moças aprendem com os rapazes.
Nós não fugíamos a essas regras gerais, e, por isso, a decantada primeira
noite e as seguintes, na realidade, não tiveram grande significação; só mesmo com
o passar do tempo veio o ajustamento mais ou menos normal, e as coisas sob esse
aspecto seguiram o curso comum.
•••
Ao voltarmos ao Rio de Janeiro, fomos morar numa pensão modesta à Rua
Francisco Muratori, na subida para Santa Teresa.
E aí passamos os meses mais tranqüilos e mais felizes de nossa vida: agosto
a dezembro de 1927.
Saíamos para o trabalho pela manhã e à tarde nos reuníamos para o jantar.
Passeios nos dias de folga. Concertos, algum teatro, recitais de declamações. Por
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essa época, a declamação estava muito em voga e Bertha Singermann era uma de
suas expressões máximas: fomos ouvi-la mais de uma vez.
À noite, em nosso quartinho modesto, nos transbordamentos, na fusão dos
corpos, entregávamo-nos completamente ao jogo do amor "che move il sole e
l'autre stele".
Nunca mais, que eu me lembre, depois desses dias, pudemos fruir tão completamente, sem o acicate das preocupações, um tão completo abandono, que as
palavras, mais uma vez, não conseguem descrever, mas que todos os amantes já
sentiram, e que as expressões da fala, ao contrário, só perturbam aquilo que por
sua natureza é inarrável, indizível.
E assim chegaram as férias escolares de 1927-1928. Estendiam-se então de
dezembro a março; depois foram-se encurtando, e roubada ao trabalho árduo do
professor essa pequena compensação.
Resolvemos passá-las em Paquetá, a "Ilha dos Amores", que eu já conhecia
bem. Foram dias inesquecíveis, naquele prolongamento de "lua-de-mel". Na volta
porém, já não estávamos sós. Segundo uma crença popular, a água do mar fizera
sua ação. O primeiro filho se anunciava. Nasceu em setembro de 1928. E então um
novo capítulo se abriu: o da família, com todas as suas preocupações e responsabilidades e também por que não dizer, com algumas alegrias...
Nos anos seguintes, quase um por ano, vieram os outros filhos, até o sexto.
Tudo aconteceu então e todas as experiências que a vida pode dar: da morte
na família até a doença irrecuperável de um dos filhos; dos cursos, ano a ano
palmilhados, até as formaturas; os casamentos, as noras, os netos... O sucesso na
carreira, as viagens, a política, os processos, a prisão, e as grandes decepções... As
aposentadorias, a descrença, os amigos mais chegados, os companheiros de jornada e algumas ligações mais íntimas, tudo desaparecendo, um a um, pelo afastamento ou pela morte inevitável.
Por fim, a época das "memórias e confissões".
•••
Tudo tão complicado e penoso, pois, infelizmente, nossa civilização perdeuse, como dizia o estranho personagem ao jovem Máximo Gorki (em As minhas
universidades):
Inventamos o progresso para nossa própria consolação. A vida não tem nem razão nem
sentido. Sem escravatura, não há progresso; sem a subordinação da maioria à minoria, a humanidade parava no caminho. Com a mania de tornarmos a vida mais fácil, complicamo-la; e
quando pretendemos aliviar a carga do nosso trabalho, aumentamo-la. As fábricas e as máquinas existem para fabricar mais e mais máquinas. É um absurdo... Há cada vez mais operários
quando só o camponês, o produtor do trigo, é necessário. O pão, eis o que todo o nosso trabalho
deve pedir à natureza. Quanto menor necessidade tiver o homem, mais feliz se sentirá; quanto
maiores desejos tiver, menor será a sua liberdade.
E adiante:
Vê se compreendes: cada um de nós precisa de muito pouco: de um bocado de pão e uma
mulher...
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•••
Creio que se não fosse a eficácia da "repressão", forçando a vitória do "princípio da realidade" sobre o "princípio do prazer", o homem, em geral, não se conformaria em ser considerado como mero instrumento de desígnios de entidades
exteriores à sua individualidade.
Alfred de Musset em A confissão de um filho do século descreve muito essa
condição em trecho já transcrito antes.
E, como consolo, conclui: "e o homem, ao possuir nos braços a companheira,
no seio da natureza, todo poderosa, sente saltar no coração a centelha divina que o
criou".
O erotismo puro foi erigido em pecado e a família santificada: o prazer deve
ter conseqüências e trazer obrigações sociais ou será criminoso e provoca remorsos.
O senso comum aceita a fórmula de que a mulher só se realiza plenamente
na maternidade e o homem no trabalho: fora disso estamos no âmbito do anormal,
do indevido.
Nunca pude, por isso, entender como, na legenda bíblica, Deus, ao expulsar
o casal primitivo do Paraíso, onde vivia no gozo das delícias do Éden, condenou a
mulher à maternidade, com as "dores do parto" e ao domínio do marido, e o homem ao trabalho "com o suor do seu rosto", como castigo.
Assim, no princípio do mundo o prazer era o divino, o estado natural; a
maternidade e o trabalho foram os castigos impostos por Deus, ao homem e à
mulher, pela traição ao "princípio do prazer"...
Não será pois uma legítima busca, do "paraíso perdido" essa ânsia que empolga a mocidade de hoje no caminho do Amor, em toda a sua plenitude, com o
repúdio dos valores que a "civilização" repressiva criou e que lhes quer impor uma
carga insuportável?
A luta de Eros contra a "civilização" que em seus exageros atuais tanto
assusta os moralistas, não será a única saída para a humanidade retomar seus verdadeiros caminhos, o caminho do Amor?
Ainda aqui estou com Norman O. Brown, em A vida contra a morte: "a
questão com que se defronta a humanidade é a abolição da repressão – na linguagem cristã tradicional – a ressurreição do corpo".
Mas, felizmente, para homens e mulheres, essa linguagem tradicional da
Igreja Católica vem mudando muito nos últimos tempos. Em 1962, um certo cardeal Karol Wojtyla, que se tornou o Papa João Paulo II, escrevia, num livro intitulado
Amor e responsabilidade, estas palavras, num capítulo dedicado ao estudo da sensualidade:
Mas tudo isso não prova que a excitabilidade sensual considerada como inata e natural seja
moralmente má. Uma sensualidade exuberante é apenas uma matéria rica mas difícil de manejar, da vida das pessoas, e que deve abrir-se tanto mais largamente a tudo que determina seu
amor. Sublimada, ela pode tornar-se (desde que não seja doentia) o elemento essencial de um
amor tanto mais completo, quanto mais profundo (dixit).
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