A obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, livro é o

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A obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, livro é o
Cultura em chamas: quando não apenas os livros são queimados
Gilberto da Silva1
Resumo:
A obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, livro é o ponto de partida para refletir sobre questões como
utopia/distopia, democracia/totalitarismo, sociedade vigiada/liberdade. Como viver numa sociedade
totalitária onde a cultura se resume no mais puro lazer e o Estado nega aos seres humanos o direito básico
de trocar informações e aprender? Como manter o pensamento crítico numa cidade onde prevalece a
condução rápida de automóveis, a ameaça da guerra, a alienação e o predomínio da tecnologia? Na
contemporaneidade, é possível evitar o colapso da memória perante a ausência de livros, partidos,
privacidade, diversidade e contemplação da natureza?
Palavras-chave: Fahrenheit 451, sociedade administrada, tecnologias comunicacionais, sociedade do
espetáculo.
Abstract
The book Fahrenheit 451, by the author Ray Badbury (movie by the same name in 1966, by the director
François Truffaut) is the start point to think about utopia/dystopia, democracy/totalitarism, watched
society/freedom. How living in a totalitary society, which culture is leisure and the State denies the basic
right to trade informations and learn? How keep the critical thought alive in a city where fast cars, war
threat, alienation and technologic domain are prevailing? In this era, is it possible to avoid the memory
meltdown facing the lack of books, parties, diversities and nature contemplation?
Keyword: Fahrenheit 451, administered society, communication technologies, the society of the
spectacle.
1
Gilberto da Silva é formado em sociologia e jornalismo, mestre em Comunicação pela Faculdade Cásper
Líbero e pesquisador do grupo Comunicação e Sociedade do Espetáculo na linha de pesquisa A Teoria
Crítica e a Comunicação na Sociedade do Espetáculo organizado pela Cásper Líbero e coordenada pelo
Prof. Dr. Cláudio Novaes Pinto Coelho. Edita a revista virtual P@rtes (www.partes.com.br).
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Introdução
A obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, publicada em 1953, parece ainda ser
assustadora para os dias atuais e merece reflexões sobre o atual estágio da sociedade do
espetáculo.
“Queimar era um prazer. Era um prazer especial ver as coisas serem devoradas, ver as
coisas serem enegrecidas e alteradas (Bradbury, 2003:23)” Ray Bradbury inicia com
essa frase a história do bombeiro Guy Montag (nome de uma companhia de papel e
segunda-feira em alemão), que ao contrário do que o nome de sua profissão possa
sugerir, não tem a tarefa de apagar incêndios, uma vez que as casas são a prova de fogo,
mas sim, encarregado de queimar livros a mando do Estado. Os bombeiros são
responsáveis por atear fogo nos livros e perseguir, prender e executar as pessoas
encontradas junto aos livros e também zelar pela paz e ordem social, controlando as
posturas e atitudes dos cidadãos.
A trama se passa em um futuro não muito distante, numa sociedade controlada por um
governo totalitário. Quando Montag conhece Clarisse, uma adolescente inquieta que
reflete sobre o mundo à sua volta, ele percebe o quanto tem sido infeliz no seu
relacionamento com Mildred, sua esposa, que fica o dia assistindo TV e tomando
medicamentos. Montag passa a se sentir incomodado com sua profissão e a ficar
descontente com a autoridade e com os cidadãos passivos.
Clarisse é considerada desajustada socialmente, alegre, intuitiva, instigadora e que
prefere perguntar o “por quê” das coisas, ao invés de “como”. Ela é estranha para
Montag, porque ela ama a natureza, a família e todas as coisas realmente não
relacionadas com tecnologia. Ela pensa de forma independente. Isso desperta Montag,
que começa a ver o que está errado com o mundo ao seu redor.
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O chefe de Montag, Capitão Beatty, percebe que o bombeiro tem agido de modo
estranho e o provoca com perguntas. Beatty é a única fonte de informação para Montag
saber mais sobre os livros, sobre o passado, e é com ele que se desenrolam os diálogos
mais importantes do livro, explicando a razão do governo ordenar a extinção dos livros.
Clarisse desaparece misteriosamente e Montag a cada dia é impelido a mudar seus
pensamentos e começa a esconder livros- subtraídos durante as ações dos bombeiros em casa.
Montag conhece Faber, um professor de inglês que viveu na época onde os livros ainda
não eram banidos e que produz em sua casa pequenos instrumentos (uma espécie de
aparelho auditivo, por exemplo). A história ganha em dramaticidade e emoção a partir
deste encontro.
Mildred denuncia Montag e ele, de repente, se vê respondendo um chamado para
queimar seus livros em sua própria casa. Durante esta ação, Montag mata Beatty. Após
fugir para evitar a sua prisão, ele se junta a um grupo fora da cidade, que mantém o
conteúdo dos livros em suas mentes, através da memorização, esperando pelo tempo em
que a sociedade irá de novo necessitar da sabedoria da literatura.
Utopia, distopia e a busca da felicidade
A obra Fahrenheit 451 é considerada uma obra distópica, termo geralmente usado para
designar uma ‘antiutopia’. No livro, a distopia é representada pela utilização da
tecnologia, pela falta de liberdade e pela vigilância vivida num futuro imaginado.
Utopia é o termo cunhado por Thomas More para designar um lugar que não está em
nenhum local real, somente existindo no plano do ideal, como um projeto de
antecipação. A utopia quase sempre remete ao futuro, ao progresso sempre harmonioso
com os sujeitos mais satisfeitos e felizes, modernamente a utopia existe em suas mais
variadas vertentes tais como a utopia socialista, capitalista, dos direitos humanos, etc.
Segundo Fredric Jameson, a perda da perspectiva histórica leva a um declínio do
pensamento utópico e da ficção e destaca que diante da dissociação histórica
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característica da globalização, num mundo repleto de miséria, pobreza, desemprego,
fome e demais mazelas da desintegração social, o termo utopia só sobrevive como
marca simbólica para diferenciar esquerda e direita: “o utópico se tornou, junto à
esquerda, um código para o socialismo ou comunismo, enquanto à direita tornou-se
sinônimo de ‘totalitarismo’ ou até mesmo de stalinismo.” (Jameson, 2006b:263)
Em Fahrenheit 451, a ausência da história e da memória fica explícita no momento em
que Montag alega que nem se lembra de quando e como e em quais condições conheceu
sua esposa. Para ela, isso não importa e apenas o presente é real e merece ser vivido. O
passado e o futuro não são importantes, pois lembrar produz dor e sofrimento. Midred e
seus amigos vivem um presente congelado e sem perspectiva.
Política, ideologia, democracia e totalitarismo
Numa sociedade totalitária “todo homem é demente quando pensa que pode enganar o
governo e a nós” diz Beatty a Montag (Bradbury, 2003:56), assim a vigilância se impõe,
num processo parecido com a servidão voluntária. Bradbury teve a ideia de escrever
sobre livros por conta de Hitler que queimou livros nas ruas de Berlim, o que levou
também a uma reflexão sobre a censura e o que seria um mundo onde os livros fossem
abolidos. Como seria a vida em uma sociedade controlada em que todos são iguais e a
imaginação reprimida?
Com efeito, abrir mão dos direitos de ler o que quiser para servir de combate a um
“inimigo” é sinal de que a cultura de um país corre sérios riscos, já que o controle do
Estado sobre o livre-arbítrio da população interfere diretamente na maneira como as
pessoas agem e pensam, alienando quem se deixa levar pelo discurso de “segurança
nacional” ou qualquer outra coisa do gênero.
Em sua época, Bradbury também “percebe o nascimento de uma forma sutil de
totalitarismo: a indústria cultural, a sociedade de consumo e seu corolário ético – a
moral do senso comum” como escreve Manuel da Costa Pinto no prefácio de Farenheit
451. Bradbury analisa a sociedade totalitária do consumo, da predominância da
ideologia do capital, que impõe o pensamento único, o individualismo e a “ordem” e
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analisa os valores que regem a sociedade, bem como alerta sobre os perigos que uma
sociedade controlada e administrada pode provocar.
O então jovem Bradbury discute os valores que a cultura letrada possui num momento
de criação da televisão. Focadas nas telas e no entretenimento, os personagens de
Fahrenheit 451 não possuem senso crítico nem senso histórico para avaliar as condições
em que vivem, ou mesmo para perceber que estão sendo manipulados. Vivendo na
cultura da televisão, no mundo efêmero das informações e o sob um intenso
entretenimento de baixo valor cultural, os cidadãos tornam-se hedonistas e até egoístas.
O que nos leva á seguinte reflexão: um mundo congelado, sem utopias, sem metas e
sem história é um mundo onde reina a felicidade? Clarisse pergunta a Guy: Você é feliz?
Mas como saber o que realmente é a felicidade quando se é proibido inclusive de pensar
por si só?
Com questões como esta, Clarisse aos poucos provoca reflexões na mente de Montag
indicando que a homogeneidade dos seres humanos e do mundo é imposta
hegemonicamente pelo poder.
Quando não são os próprios censores ou delatores, os habitantes da cidade de
Fahrenheit 451sofrem uma censura quase perfeita “o espectador é suposto ignorante de
tudo, não merecedor de nada. Quem fica sempre olhando, para saber o que vem depois,
nunca age: assim deve ser o bom espectador” (Debord, 1997:183). Poucos agem diante
da opressão e da censura imposta pelo regime, querem a felicidade, a fácil felicidade
encontrada na união com a “família e seus primos”, termo que Bradbury usa para
denominar os personagens da televisão.
Na trama, enquanto Montag começa a perceber o valor de livros, sua esposa Mildred
expressa o oposto ao basear-se na televisão de alta tecnologia e no apelo ao uso de
narcotizantes e de rádio para ajudá-la a dormir. Vivendo numa sociedade administrada,
com o Estado exercendo um controle sutil sobre as consciências, Mildred não questiona
qualquer aspecto da sua vida, e fica desconfortável com os sinais crescentes de
independência ou pensamento livre de Montag.
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Para Debord, o espetáculo incorpora todas as antigas alienações: a ilusão religiosa, a
alienação instituída pelo Estado moderno e dinheiro. O espetáculo é a ideologia
materializada (tese 215). O espetáculo concentra, enfim, a alienação mais completa: é a
abstração, em imagens, do que poderia ser o SER. No entanto, é assim que se apresenta:
as imagens são os sujeitos. E serão as imagens – novos fetiches/sujeitos – que mediarão
as relações entre os homens, incomunicáveis entre si. Eis o papel das mídias.
O Direito à Educação, direitos humanos e a fragmentação do homem
De acordo com o artigo 19 da Declaração dos Direitos Humanos das Nações Unidas,
cada pessoa tem o direito “à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a
liberdade de, sem interferências, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir
informações e ideias por quaisquer meios, independentemente de fronteiras”. No mundo
de Farenheit 451, a lei que proíbe livros nega aos seres humanos o direito humano
básico de trocar informações e aprender.
As pessoas que vivem nessa sociedade são educadas a desempenharem certas funções
sociais, sem se questionar muito sobre o que estão de fato realizando. Tudo é controlado
e as pessoas só têm conhecimento dos fatos por aparelhos de TVs instaladas em suas
casas, ou pelas rádios conchas, ou em praças ao ar livre. O sucesso deste estado de
obediência e paz social deve-se, especialmente, ao cuidado com a educação. Nas
escolas, ocorre o banimento dos hábitos de leitura e as crianças aprendem a não-ler,
decorar regras, números e que livros são para se queimar.
Sendo assim, numa sociedade onde ler é crime (exceto os sintéticos manuais) os livros
são armas perigosas. O sistema educacional sofreu reduções deixando de lado a
filosofia, a história e a gramática como disserta Beatty para Montag ao visitá-lo em sua
casa.
A escolaridade é abreviada, a disciplina relaxada, as filosofias, as
histórias e as línguas são abolidas, a gramática e a ortografia pouco a
pouco negligenciadas, e, por fim, quase totalmente ignoradas. A vida é
imediata, o emprego é o que conta, o prazer está por toda a parte
depois do trabalho. Por que aprender alguma coisa além de apertar
botões, acionar interruptores, ajustar parafusos e porcas? (Bradbury,
2003:80)
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A educação torna-se pragmática e padronizada tanto no agir como no pensar.
Instrumentalizada, esquemática e reduzida à mera reprodução e o conhecimento crítico,
nessa sociedade, leva à infelicidade ao provocar a dúvida e a dor.
Alienação, distanciamento da realidade e conformismo
A personagem Mildred se baseia nas sensações de tecnologia para entretê-la, mas ela
está realmente deprimida por seu estilo de vida vazia e não percebe a doença, trocando a
realidade pela vida “vivida” na TV com sua “familia”.
Segundo Debord, o espetáculo, ao capturar a carência de sonhar, produziria o mau sono
da sociedade moderna que, ao se apegar ao espetacular, não exprime senão seu desejo
de dormir, projetando uma vida para além do real. A alienação do espectador em favor
do objeto contemplado (o que resultado de sua própria atividade inconsciente) se
expressa assim: quanto mais ele contempla, menos vive; quanto mais aceita reconhecerse nas imagens dominantes das necessidades, menos compreende sua própria existência
e seu próprio desejo. Em relação ao homem que age, a exterioridade do espetáculo
aparece no fato de seus próprios gestos já não serem seus, mas de um outro que os
representa. É por isso que o espectador não se sente em casa em lugar algum, pois o
espetáculo está em toda parte. (Debord, 1997:24)
A vida cultural segue em Farenheit nos bares “que ligam as jukebox e são sempre as
mesmas piadas, ou o telão musical” (p53) e na arte da repetição ou da abstração. Na
trama de Fahrenheit 451, o meio de comunicação afasta a realidade concreta, o contato
íntimo, para um mundo supostamente menos doloroso, mas também manipulatório.
A afirmação que o meio de comunicação isola não vale apenas no
domínio cultural. Não apenas a linguagem mentirosa do locutor de
rádio se sedimenta no cérebro das pessoas como a imagem da
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linguagem e impede-as de falar umas com as outras [....]. O progresso
separa literalmente as pessoas. (Adorno, 1985:206)
Mesmo com a guerra prestes a estourar, a TV mostra a fuga “espetacular” de Montag e
sua versão mentirosa do climax da perseguição. Obcecadas por carros de alta
velocidade, as pessoas “viajam sobre pneus de borracha, rigorosamente isoladas umas
das outras”, como já nos lembra Adorno (1985:20). Quando Montag, em fuga, cruza
uma rodovia, os jovens motoristas pretendem atropelá-lo por pura diversão. A
mobilidade é rápida, tão rápida que não há tempo para admirar a paisagem.
Impressionante que Montag é despertado quando ele se conecta com a natureza, por um
momento, ao provar a chuva caindo – sua primeira sensação - e pelo seu relacionamento
com as pessoas. A diversão para adolescentes é brincar de matar uns aos outros nas ruas
nada que não nos lembre de menininhos ricos matando moradores em situação de rua.
Os cidadãos deste mundo parece não entender a gravidade da violência e da morte. O
governo glorifica a guerra que se aproxima, e as pessoas falam sobre isso como se fosse
um jogo. Os amigos de Mildred falam sobre a guerra como se fosse uma fofoca,
completamente insensíveis à gravidade da mesma.
A história do terrorismo foi escrito pelo Estado, logo, é educativo. As
populações espectadoras não podem saber o suficiente para ficar
convencidas de que, em relação a esse terrorismo, tudo mais deve lhes
parecer aceitável, ou, no mínimo, mais racional e mais democrático.
(Debord, 1997:185)
Conformismo e deslumbramento com a cultura e com a técnica é fundamental nesta
sociedade. O estado policial, que está sempre à beira da guerra, leva o cidadão ao lazer e
entretenimento, provocando um distanciamento da realidade concreta. Os livros são
proibidos porque provocam o poder de discordar, de refletir. A televisão é o mundo da
interação, das notícias produzidas pelo poder, sem constestação e sem provocar
emoções que provoque desconforto.
Tecnologia entre a modernidade e o passado
No romance, a tecnologia serve para distrair as pessoas da natureza deixando-as
circunscritas à uma sociedade dominada pelas imagens, pelo mundo da televisão e do
rádio. Pensar é um ato político danoso e temido. As pessoas gastam todo o seu tempo
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em frente da televisão e quase nunca ao ar livre ou ao convívio familiar, pois eles têm
“muitas horas de folgas e muito tempo para pensar” diz Faber. Há uma ausência nas
relações humanas e a tecnologia impede este relacionamento.
A diversão é o prolongamento do trabalho sob o capitalismo tardio.
Ela é procurada por quem quer escapar ao processo de trabalho
mecanizado, para se pôr de novo em condições de enfrentá-lo. Mas, ao
mesmo tempo, a mecanização atingiu tal poderio sobre a pessoa em
seu lazer e sobre a sua felicidade, ela determina tão profundamente a
fabricação das mercadorias destinadas à diversão, que esta pessoa não
pode mais perceber outra coisa senão as cópias que reproduzem o
próprio processo de trabalho. [...] O prazer acaba por se congelar no
aborrecimento, porquanto, para continuar a ser um prazer, não deve
mais exigir esforço e, por isso, tem de se mover rigorosamente nos
trilhos gastos das associações habituais. O espectador não deve ter
necessidade de nenhum pensamento próprio, o produto prescreve toda
reação; não por sua estrutura temática – que se desmorona na medida
em que exige o pensamento – mas através de sinais (Adorno &
Horkheimer, 1985:128).
Na década de 1950, quando o livro foi escrito, a invenção da televisão causou
preocupação e muitos pensaram que os filmes e os livros morreriam. A sensação da
época era que a tecnologia iria tornar as pessoas mais burras. O mesmo está
acontecendo com a internet e telefones celulares agora, certo? Há um apego à
tecnologia, uma substituição das relações humanas concretas pelos primos, tios, ou seja,
a família televisiva. Outra característica da obra é a substituição das atividades humanas
pela mecanização com máquinas inspiradas em animais, como o cão mecânico equipado
com uma ponta de agulha que pode injetar produtos químicos mortais.
Em um mundo sem unidade, a fragmentação está ligada à mecanização e à
especialização do mundo moderno com:
A força opressora de suas máquinas anônimas, com o fato de a maior
parte de nós ser forçada a se empenhar na execução de tarefas que
constituem apenas pequena parte de processos cujo significado e
desenvolvimento global permaneceu fora do alcance de nossa posição.
(Fischer, 108)
Diante desta perspectiva de futuro, para Bradbury, os americanos não apreciariam mais
a natureza, não teriam privacidade ou conexões íntimas, e não leriam livros. Na
verdade, na sociedade imaginada por Bradbury, ler ou possuir um livro é estritamente
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contra a lei. As pessoas estão preocupadas em simplesmente dirigir muito rápido ou
ocupadas em assistir muita TV e interagir com a família e praticamente depender da
tecnologia para se obter qualquer tipo de sensação ou sentimento.
A mais velha especialização social, a especialização do poder, encontra-se na raiz do
espetáculo. Assim, o espetáculo é uma atividade especializada que responde por todas
as outras. É a representação diplomática da sociedade hierárquica diante de si mesma,
na qual toda outra palavra é banida. No caso, o mais moderno é também o mais arcaico.
(Debord, 1997:20)
Farenheith 451 é, portanto, um mundo convertido à sociedade do espetáculo, uma
sociedade onde a literatura e a arte, no sentido adorniano, são apenas “culinária”.
Montag percebe cada vez mais que a leitura e a literatura são importantes para fugir de
uma sociedade totalmente administrada. “Tudo o que eu peço é um passatempo sólido”
diz Beatty a Montag (Bradbury, 2003:87).
Considerações finais
Escrito em 1953 o livro é uma história cativante, perturbadora e poética ao mesmo
tempo. Bradbury utiliza os elementos de ficção para criar uma parábola imaginativa de
uma sociedade em que a cultura é baseada em assistir televisão, dirigir perigosamente
em autoestradas, onde a sociedade é extremamente vigiada e com uma literatura a beira
da extinção. Impossível não traçar paralelos com nosso cotidiano administrado e
mascarado repleto de big-brothers, celulares e de todos os aparatos tecnológicos
modernos criando uma falsa sensação de prazer. Ao fazer uma crítica da sua época,
atacando o modo de vida americano dos anos 1950, Bradbury critica o consumismo, a
dependência da tecnologia e como ela pode ser utilizada pela mídia. Aborda a educação
e o entretenimento dando pistas de que o totalitarismo e o controle do pensamento
podem vir de qualquer lugar, sempre com pretextos de um clamor ideal das massas.
Mas Bradbury não realiza uma critica moralista ou religiosa da sociedade de consumo e
nem uma explicação sociológica, porém lança pistas para uma nova utopia, onde a
memória é resgatada. Na história, Montag encontra sua causa quando começa a perceber
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que a alfabetização e os livros são uma coisa boa e que não é impossível salvar as
pessoas, mas é preciso que as pessoas queiram se salvar.
Em Fahreinhet 451 o projeto de cidade foi falido pela corrupção, vigilância e guerra.
Montag busca na natureza o encontro com o ser humano. É nessa comunidade formada
por ex-clérigos, escritores e professores universitários, que Montag prossegue na ação
prática de questionar a sociedade cogitando voltar para a cidade que foi arrasada pela
guerra nuclear e, quem sabe, reestabelecer uma nova sociedade letrada.
Se os bombeiros de Bradbury são os “Garotos da Felicidade” que “resistem à pequena
maré daqueles que querem deixar todo mundo infeliz com teorias e pensamentos
contraditórios” aconselhando-nos a não deixar que a torrente de filosofia melancólica e
desanimadora domine nosso mundo, como diz Beatty a Montag (2003:87). Não é o
mesmo que dizem sobre o pensamento crítico?
Impossível não traçar um paralelo com a contemporaneidade. Nossa sociedade
administrada está repleta de pessoas que se entopem de remédios, calmantes,
tranquilizantes e outras drogas para enfrentar a complexidade e as adversidades da vida
moderna e num mesmo compasso refugiam-se nos programas de televisão como a única
fonte de informação e entretenimento. Coelho (2007:33) afirma: “O indivíduo que se
diverte consumindo os produtos da indústria cultural é o indivíduo entretetido por ela, e
que se torna dependente dela”, assim como descrito por Bradbury, o indivíduo (mero
consumidor) da nossa sociedade vive numa espécie de servidão voluntária em que o
indivíduo diante de uma sociedade que se propõe a cuidar dele, a
resolver os seus problemas, possui uma base material: o indivíduo
psicologicamente dependente é o indivíduo materialmente
dependente, que vive numa sociedade controlada pelos grandes
conglomerados empresariais. (Coelho, 2007:33)
Estamos vivendo numa sociedade de consumo e da predominância das imagens, os
livros impressos são cada vez mais raros e empoleirados em bibliotecas e a cada dia que
passa as edições de livros privilegiam a redução, a pasteurização e a deformação do
texto. Por outro lado, seria impossível nos dias atuais uma lei proibindo o acesso a canal
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de televisão ou site de internet? A primeira impressão que temos é que estamos
habitando uma sociedade sem vigias, onde toda busca de conhecimento é livre e que
não há nada que impeça o acesso ao saber, mas quem nos guia nessa procura por
conteúdo e aponta seus links para nossos olhos na sociedade baseada na virtualidade e
na imaterialidade?
Diante das reflexões aqui expostas e acreditando que o perigo ainda nos ronda e que
precisamos estar sempre vigilantes contra as vertentes do autoritarismo cultural e
político continuaremos, com base na premissa de Fredric Jameson, acreditando que
nossa tarefa, enquanto pensamento crítico é tecer abordagens que nos levem a
compreender o mundo social e histórico que está em nosso entorno, e que é nossa
realidade, lutando para que nossa cultura não vire cinza.
Referências
ADORNO, Theodor W. – HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos,
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985.
COELHO, Cláudio Novaes Pinto. Indústria cultural, entretenimento e cultura do narcisismo: a
questão do controle social terapêutico. LÍBERO - Revista do Programa de Pós-Graduação da Faculdade
Cásper Líbero. Ano X - nº 19 – Junho, 2007.
DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
BRADBURY, Ray. Farenheit 451 – a temperatura no qual o papel do livro pega fogo e queima. São
Paulo: Globo, 2003.
FISCHER, Ernst. A necessidade da arte. Circulo do Livro, São Paulo, sd.
JAMESON, Fredric. Virada Cultural – reflexões sobre o pós-modernismo. Civilização Brasileira: Rio
de Janeiro, 2006.
_______________. Espaço e Imagem – Teorias do pós-moderno e outros ensaios. Rio de Janeiro:
Editora UFRJ, 2006 b.
KURZ, Robert. Com todo vapor ao colapso. Juiz de Fora, MG: Editora UFJF-Pazulin, 2004.
___________. Os últimos combates. Vozes, São Paulo, 5ª edição, 1997.
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