VEREDAS 16.indb - Associação Internacional de Lusitanistas

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VEREDAS 16.indb - Associação Internacional de Lusitanistas
VEREDAS
Revista da Associação Internacional de Lusitanistas
VOLUME 16
AIL
Associação Internacional de Lusitanistas
A associação internacional
de estudos lusófonos
SANTIAGO DE COMPOSTELA
2011
A AIL – Associação Internacional de Lusitanistas tem por finalidade o fomento dos
estudos de língua, literatura e cultura dos países de língua portuguesa. Organiza
congressos trienais dos sócios e participantes interessados, bem como copatrocina
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Veredas
Revista de publicação semestral
Volume 16 – dezembro 2011
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VEREDAS: Revista da Associação Internacional de Lusitanistas
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Impressão e acabamento:
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ISSN 0874-5102
AS ATIVIDADES DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS
TÊM O APOIO REGULAR DO INSTITUTO CAMÕES
SUMÁRIO
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
Regra, estratégia e habitus .....................................................................................7
CARLOS PAZOS JUSTO
A imagem da Galiza e dos galegos em Portugal entre fins do século XIX e
primeiras décadas do XX: do imagotipo negativo ao imagotipo de afinidade ....39
ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
Psicopatologia e confissão poética: o valor diagnóstico/terapêutico da obra
literária de Mário de Sá-Carneiro ........................................................................71
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
Mosaicos espelhados: Uma leitura de partes de África, de Helder Macedo ......103
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
Marcas da presença do discurso mítico em Memorial do Convento .................129
REGINA ZILBERMAN
Álvaro Cunqueiro e a literatura fantástica .........................................................151
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM:
A Construção do Conhecimento pola Historiografia Literária dum Sistema
Deficitário (o caso galego para 1974-1978) .......................................................177
VEREDAS 16 (Santiago de Compostela, 2011), pp. 7-38
Regra, Estratégia e Habitus
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
Cultura e produção de conhecimentos educacionais. CAPES/CNPQ
RESUMO
Este artigo tem por objetivo contribuir para o aprofundamento das discussões acerca
do conceito de regra e sua importância para o entendimento do estruturalismo e do
pensamento mecanicista. Primeiramente, discute-se a questão da linguagem enquanto cálculo e o fato de que a regra só existe dentro de um sistema. Na concepção de
Wittgenstein, isso implica relações lógicas. O jogo de linguagem segue certas regras
gramaticais e, no entanto, não é o resultado da obediência a regras. Em seguida, demonstra-se como Lévi-Strauss e Bourdieu analisam de forma distinta o mundo social.
O primeiro baseia-se no conceito de regra e o segundo critica a ambiguidade da palavra regra e passa a utilizar os conceitos de prática, estratégia e habitus. Um comportamento pode ser regular sem ser resultado de obediência a regras e é por essa razão
que se deve analisar as práticas sociais e as estratégias que são utilizadas pelos agentes
sociais. Os agentes não são meros suportes da estrutura. Em conclusão, ressalta-se que
o conceito de estratégia é um instrumento de ruptura com o ponto de vista objetivista
e com o estruturalismo. O sentido do jogo é considerado como domínio prático da
necessidade do jogo. O real só pode ser plenamente compreendido através de uma
análise que tem como ponto de partida o modo de pensar relacional.
Palavras-chave: Estratégia, regra, prática, estruturalismo e habitus
ABSTRACT
Aiming deepening and discussion about the concept of rules and importance on understanding structure and mechanicist like thinking. First, one discusses language as
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
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calculus and the fact that a rule exists only into a system. According to Wittgenstein,
this implies logical relationships. The language role follows certain grammar rules,
however, it doesn’t obey the rules, though. Follow up, it is shown how Levi-Strauss
and Bourdieu clearly analyse the social world. The former is based on the concept of
rule and the latter criticizes the ambiguity of the world rule and goes on using practice,
strategy and habitus concepts. Behavior can be regular and not necessarily be a result
of obedience to rules and therefore we have to analyse social practices and strategies
used by social agents. They are not merely supports for the structure. As a conclusion,
strategy concept is a breaking tool objective view against structure as well. The game
role is considered as a practical command of the game. The reality can only be fully
understood through an analysis that has as a starting point the rational thinking.
Keywords: Strategy. Rule. Grammar. Structure. Habitus.
Introdução
Este artigo se insere dentro de uma pesquisa em andamento sobre o conceito de habitus em Pierre Bourdieu. Ao longo da pesquisa,
deparamo-nos com um problema relativo à relação que Bourdieu estabelece com o estruturalismo linguístico de Saussure e o estruturalismo
antropológico de Lévi-Strauss. No nosso entendimento, o conceito de
regra é essencial para a compreensão não apenas dos princípios básicos
do estruturalismo, mas também para o entendimento do distanciamento/
engajamento que Bourdieu toma em relação a Saussure e Lévi-Strauss.
A oposição entre esses autores e Bourdieu é marcada pela ambiguidade
da palavra regra que faz desaparecer a figura do agente social.
A regra só existe dentro de um sistema bem estabelecido, o que
implica relações. O nosso ponto de partida é a filosofia de Wittgenstein
porque o conceito de regra exerce um papel importante na sua filosofia
e na linguística de um modo geral. Essa abordagem se justifica também
em razão de que a linguística não pode prescindir da “salutar lógica
matemática, sob pretexto de que a língua é uma coisa concreta que vem
a ser e não uma coisa abstrata que é, segundo creio, um erro profundo, inspirado, no início, pelas tendências inatas do espírito germânico”
(Saussure, 2002, p.35). Essa divergência em relação à lógica formal é
decisiva do ponto de vista do método.
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
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Para Wittgenstein, a linguagem é considerada como cálculo.
Essa concepção mitológica da linguagem é abandonada por Wittgenstein. Ele compara a regra não com o cálculo, mas com o jogo de linguagem que, por sua vez, segue certas regras gramaticais, sem ser o resultado da obediência a regras. A filosofia do segundo Wittgenstein é uma
grande contribuição para o entendimento das formas de vida social. É
bem verdade que a compreensão de uma linguagem implica dominar as
técnicas que dizem respeito à aplicação das regras. O fato de seguir uma
regra se configura como uma atividade social. A teoria da autonomia
gramatical é elaborada por Wittgenstein, para quem a filosofia é uma
pesquisa gramatical.
Para Bourdieu, um comportamento pode ser regular sem, no entanto, ser o resultado da obediência a regras. Ele nos alerta em relação
à ambiguidade da palavra regra e prefere elaborar seu sistema de pensamento em torno do conceito de estratégia, práticas e habitus, além de
outros conceitos centrais que não trabalharemos neste artigo.
Bourdieu combate a descrição do mundo social feita a partir da
linguagem da regra. Ele não pensa a sociedade em termos de normas,
como é o caso de Wittgenstein. Isso implica que existe uma distância entre o conceito de regra e o conceito de habitus. Para analisar a questão do
casamento, Lévi-Strauss utiliza o conceito de regra, enquanto Bourdieu
prefere o conceito de estratégia. Lévi-Strauss estabelece relações estreitas entre o sistema econômico, o de parentesco e o sistema linguístico. O
parentesco é compreendido como um sistema. O que deve ser observado
é a prática. Nesse sentido, o senso prático é entendido como algo que se
acrescenta ao conhecimento das regras e que só pode ser assimilado pela
prática do jogo. É por essa razão que é necessário inscrever dentro da
teoria o princípio real das estratégias. As práticas de reprodução social,
econômica, cultural ou biológica apresentam regularidades. Mas isso
não nos permite afirmar que se trata de obediência a regras. As estratégias são produtos do habitus que é incorporado socialmente.
Bourdieu não nega a importância do estruturalismo, mas o considera como um momento indispensável para a pesquisa. A noção de estratégia faz com que o teórico evite o uso da noção de execução de uma
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regra. Existem princípios que são geradores de práticas e estratégias. A
maior contribuição da revolução estruturalista é a utilização do modo de
pensar relacional.
1. A Mitologia da Regra
No Tractatus, Wittgenstein é vitima da concepção mitológica da
linguagem como cálculo, ou seja, aquele que pronuncia uma frase e a
pensa está baseando-se em regras determinadas (Bouveresse, 1995, p.
574 e 1987, p.161). A concepção da linguagem como cálculo parte da
suposição de que o indivíduo que pronuncia e pensa uma frase está se
expressando, segundo as regras determinadas pela gramática. Wittgenstein é categórico ao afirmar que o indivíduo que utiliza a palavra cadeira,
por exemplo, não está teoricamente equipado de todas as regras e possibilidades de sua aplicação. Na verdade, o emprego de uma palavra pode
ser regular, sem se limitar –por todos os lados– pela aplicação de regras.
É em Philosophical Investigations que Wittgenstein critica os filósofos
que fazem a aplicação das palavras segundo as regras do jogo e de cálculos que possuem regras fixas.
Nós não devemos dizer que o indivíduo que faz uso de uma linguagem está jogando semelhante jogo que se baseia no cálculo. Wittgenstein diz ainda que o emprego de uma palavra nem sempre é limitado
por regras (Wittgenstein, 1961, p. 154-156). Não é verdade que agir segundo uma regra queira dizer agir segundo uma interpretação da regra.
A linguagem é um instrumento. Os conceitos são instrumentos e assim
as funções das palavras são tão diversas quanto as funções dos objetos.
Na verdade, a noção de sentido de uma expressão linguística é substituída pela noção de emprego de uma regra. A regra é entendida aqui
como aquilo que está determinado pela razão, pela lei ou pelo costume.
A regra é então uma norma. A regra gramatical, por exemplo, é uma
recomendação para o uso correto de determinado tipo de construção em
uma língua. A violação de uma regra gramatical fornece elementos sobre o sistema e seu do modo de funcionamento (Mounin, 1974, p. 157).
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
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Wittgenstein utiliza a palavra gramática para designar tanto as
regras constitutivas da linguagem quanto a pesquisa filosófica sobre as
regras e suas classificações. As regras gramaticais são as mesmas para
o uso correto de uma expressão que determina uma significação. Neste
caso, atribuir uma significação a uma palavra corresponde a especificar
a sua gramática. Contudo, o sentido de uma proposição é determinado
pelo lugar que ela ocupa no sistema gramatical. É esse sistema que determina as relações lógicas de uma proposição com outras proposições.
A idéia mesmo de gramática significa que falar uma linguagem
é se engajar em uma atividade que é orientada por regras. Wittgenstein
não abandona a idéia de que a linguagem é governada por regras. Ele esclarece isso quando compara a regra não com o cálculo, mas com o jogo
de linguagem. Compreender uma linguagem implica dominar as técnicas relativas à aplicação de uma regra. O contraste entre as proposições
empíricas e as proposições gramaticais é um contraste entre as regras
do nosso jogo de linguagem e os coups que nós jogamos nos jogos de
linguagem. Isso em conformidade com as regras estabelecidas. (Wittgenstein, 1976, p. 143 e 1975, p. 49). A verdade de uma proposição gramatical não consiste na enunciação de um estado de coisas, mas no fato
de que ela exprime uma regra com precisão. A capacidade de criar frases gramaticamente corretas –e de interpretá-las semanticamente– não
comporta nada que ultrapasse as possibilidades de um mecanicismo. A
linguística generativa é uma teoria da competência e não uma teoria do
uso. A competência é aqui representada pela posse de um conhecimento
ou de um sentido prático que pode ser explicado em termos de regras.
No Tractatus Wittgenstein defende a idéia de que falar uma linguagem é efetuar um cálculo com regras que estão escondidas. Neste
texto as regras da linguística formam a sintaxe lógica, ou seja, o cálculo
complexo das regras intangíveis. Trata-se do modelo de cálculo. Esse
modelo é bem explicado em Philosophical Investigations, quando Wittgenstein diz que quando alguém pronuncia uma frase e no sentido que
ele entende e compreende a frase, ele faz uma operação de cálculo segundo as regras determinadas (Wittgenstein, 2001, p.38). O autor afirma
que defendeu anteriormente essa idéia, mas trata-se de um erro. Ainda
na Philosophical Investigations ele afirma que não é possível seguir uma
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ANTONIO PAULINO DE SOUSA
regra “privately” (Wittgenstein, 2001, p.81). No entanto, Wittgenstein
não nega a possibilidade de que uma pessoa possa seguir uma regra. Na
verdade, saber se uma pessoa segue ou não as regras depende do que
ela é capaz de fazer e não da maneira que ela adquiriu essa capacidade.
Quando Wittgenstein faz uso dos termos de habitus e instituição,
ele nos assegura que seguir uma regra é uma prática social. Seguir uma
regra é, então, uma atividade tipicamente social e isso está relacionado
com o contexto histórico e social do sujeito. A maneira de agir, comum
a todos os homens, constitui um sistema de referência por meio do qual
nós interpretamos uma linguagem desconhecida (Wittgenstein, 2001, p.
81-82 e 108).
As regras têm um papel muito importante na filosofia de Wittgenstein. Isso se deve a duas convicções fundamentais do autor: a primeira é que a linguagem é governada por regras; a segunda, porque o
status a priori da lógica matemática e da filosofia são resultados dessas
regras. O que importa para Wittgenstein é saber o que fazemos, quando
utilizamos uma palavra ou expressão. É preciso não esquecer que uma
regra conhecida pelo indivíduo e que está implicada no jogo não se opõe
a uma regra à qual nos referimos a título de hipótese explicativa.
As proposições que exprimem convicções religiosas são literalmente regras que determinam a forma de tudo o que deve ser dito sobre
determinado objeto. É na Certitude que Wittgenstein reconhece que as
proposições que têm a forma de proposição empírica, e não somente as
proposições da lógica, são partes integrantes da fundação de toda possibilidade de se operar sobre o pensamento e a linguagem. Mas se nós
podemos atribuir, nesse sentido, uma função gramatical às proposições
em questão, não podemos considerá-las como proposições gramaticais,
pois elas dizem respeito aos objetos, mesmo se esses enunciados não
servem de fundamentos ao mesmo título que as hipóteses (Wittgenstein,
1975, p.100).
Wittgenstein nos faz entender que o aprendizado de um jogo passa pela formulação e pela aquisição explícita das regras que governam
o jogo. Contudo, podemos adquirir um tipo de comportamento regular que corresponde exatamente ao domínio prático do jogo sem que a
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enunciação das regras intervenha no processo do jogo. Eu posso saber
como continuar uma sequência de números porque a fórmula algébrica que engendra o número seguinte me vem ao espírito, mas eu posso
também continuar corretamente uma sequência de números sem que nenhuma regra particular tenha passado pelo meu espírito, ou seja, sem
dispor de outra coisa que não seja os exemplos que me foram fornecidos
(Bouveresse, 1995, p. 581).
Essa confusão fez Bourdieu preferir se expressar em termos de
estratégias, habitus, prática e não em termos de regras. Para ele, não
devemos confundir a existência de uma regularidade com a presença de
uma regra. O jogo social é réglè (regularizado) e é, portanto, um lugar
de regularidades. As coisas acontecem de forma regular: os herdeiros
ricos se casam regularmente com a filha rica mais nova. O problema
fundamental é saber o que é seguir uma regra no âmbito das relações e
se de fato existe possibilidade de uma linguagem privada. Ora, seguir
e aplicar uma regra significa ser capaz de interpretá-la em função de
certas circunstâncias e até mesmo de ignorá-la e transgredi-la inteligentemente. É bem verdade que certas regras dão a impressão de agir como
mecanismos porque elas determinam suas aplicações de tal forma que
não se deixa espaço para as iniciativas individuais.
É através da força da regra que se manifesta a necessidade diante
da qual nós nos inclinamos. A idéia da necessidade não nos é imposta
pela natureza das coisas às quais nosso sistema de representação tem ou
teria que se conformar, mas unicamente pela maneira que nós escolhemos os sistemas em questão.
Para Wittgenstein, uma proposição que só podemos representá-la como verdadeira tem uma função. É o caso das proposições matemáticas e das proposições gramaticais em geral. A diferença é que elas
funcionam como regras e não são nem verdadeiras nem falsas. A regra
matemática me permite dizer que eu cometi um erro em algum lugar,
mas para descobrir o erro é necessário conhecer as regras e isso é suficiente para reforçar a regra.
O signo através do qual se exprime o pensamento, nos diz Wittgenstein, é nomeado signo de proposição. Para ele, é na proposição
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que o pensamento se exprime de maneira perceptível aos sentidos. O
signo proposicional reside no fato de que os elementos da proposição,
as palavras, se relacionam umas com as outras de maneira determinada.
A proposição não pode ser considerada como uma mistura de palavra,
mas como uma articulação entre as palavras (Wittgenstein, 1961, p. 37
e 39). Por sua vez, o signo só determina uma forma lógica em função da
sua utilização nas regras de sintaxe lógica (Wittgenstein, 1961, p. 42 e
45). Está na essência da proposição a possibilidade da comunicação de
um novo sentido. A proposição só pode ser uma imagem de um estado
de coisas à medida que ela é logicamente articulada. A proposição elementar consiste em nomes. Ela é uma conexão e um encadeamento de
nomes (Wittgenstein, 1961, p.58 e 84).
Para Wittgenstein (1961, p. 50), a proposição é comparada à realidade. A estrutura das proposições se encontra mutuamente nas relações
internas. A possibilidade de uma proposição representar algo repousa
no fato de que os objetos são representados por signos linguísticos. A
proposição e o fato devem apresentar a mesma multiplicidade lógica.
É em Philosophical Investigations que Wittgenstein (2001, p.
81) afirma que toda ação que segue uma regra é uma interpretação. Nesse sentido, obedecer a uma regra constitui uma prática social. E quando
obedecemos a uma regra não há escolha, obedecemos cegamente e é
por isso que nessa lógica podemos substituir a palavra regra por trilhos.
Como a prática não deixa de ser uma interpretação, podemos então inferir que não é possível obedecer a uma regra na vida cotidiana. Wittgenstein insiste sobre o fato de que seguir uma regra é um prática social. Assim, o sentido é incorporado e não representado (Taylor, 1995, p.554).
Na verdade, não é possível obedecer a uma regra porque o problema não
se coloca em termos de causas. Ele é colocado em termos da justificativa que nos levaria a agir conforme a regra e a uma maneira particular
de nos comportarmos. Assim, seguir uma regra é análogo a obedecer a
uma ordem e as ordens nem sempre são seguidas. A nossa formação tem
esse objetivo e nós reagimos de maneira determinada. A maneira de reagir, comum a todos os homens de uma determinada região, constitui-se
como um sistema de referência através do qual podemos interpretar uma
linguagem desconhecida (Wittgenstein, 2001, p. 83 e 110).
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
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A caracterização da linguagem em Philosophical Investigations
está em consonância com a concepção de língua em Saussure no sentido
de que a língua é um sistema abstrato de regras que está subentendido
na fala. O Wittgenstein das pesquisas filosóficas definiu, de forma mais
exata, os principais problemas relativos à questão da regra. Trata-se de
compreender uma regra e de saber o que significa compreender uma
regra. Isso implica ter conhecimento ou ter consciência. Wittgenstein
mostra que o sujeito não tem domínio sobre um conjunto de questões
que tem influência direta na aplicação correta de uma regra.
2. Autonomia da Gramática e o Arbitrário das Regras
A autonomia da gramática em relação à realidade deve igualmente ser uma autonomia em relação a um tipo de realidade que poderia
constituir um mundo de sentido que as regras gramaticais devem, supostamente, descrever. A teoria da autonomia da gramática é atribuída
a Wittgenstein. Essa teoria comporta dois aspectos fundamentais: o primeiro é que a gramática não é responsável pela realidade e o segundo
aspecto é que as regras, tomadas individualmente, são independentes.
Uma regra não nos engaja em outra e isso implica que somos nós que
nos engajamos. Apesar de a regra da gramática ser arbitrária e a sua
organização interna ser opcional, a adesão a uma gramática (como unidade de medida) não o é. Ela é consequência da institucionalização das
regras sociais.
As regras da gramática não podem ser justificadas pela realidade
também não entram em conflito com a realidade. As proposições gramaticais têm o estatuto de regras, convenções e não podem ter condições de
estabelecer verdades propriamente dita. Se uma convenção é considerada verdadeira ou falsa pela realidade, ela deixaria de ser uma convenção.
Não devemos entender por isso que a convenção deva negar a existência
de relações lógicas entre as convenções. Essas relações são elas mesmas
constituídas por convenções. É preciso ter clareza quanto ao fato de que
a independência mútua de todas as proposições gramaticais é resultado
da não objetividade da relação lógica (Bouveresse, 1987, p.23).
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ANTONIO PAULINO DE SOUSA
A necessidade lógica de um enunciado é sempre a expressão de
uma convenção linguística. As proposições matemáticas constituem
exemplos significativos de regras gramaticais e o resultado da demonstração matemática nos conduz a adotar uma nova regra, a partir de uma
base estabelecida, portanto, como consequência de regras anteriormente
aceitas. A proposição matemática determina um caminho. Nesse sentido,
não é uma contradição que ela seja uma regra e não seja simplesmente
estipulada, mas engendrada segundo as regras (Bouveresse, 1987, p.23).
Temos o hábito de dizer que a dedução lógica apenas explicita as
consequências que já eram implicitamente admitidas. Isso no sentido de
que elas eram virtualmente impostas desde o início da significação dos
termos ou do conteúdo dos conceitos implicados na relação lógica. Se
a significação era determinada de forma completamente independente
das operações lógicas, seria evidentemente possível justificar as regras
de dedução dizendo que elas apenas refletem fielmente as características
constitutivas de conteúdos de significação preexistentes.
Essa forma de ver as coisas é contestada por Wittgenstein. Para
ele a significação e a compreensão de uma proposição gramatical não
são determinadas desde o início de maneira que nós seríamos imediatamente engajados a aceitar igualmente outras proposições gramaticais
que derivam de uma primeira proposição. “Uma conexão escondida não
existe na lógica” (Wittgenstein apudBouveresse, 1987, p. 24).
A maneira a partir da qual os objetos se encadeiam uns em relação aos outros constitui a estrutura do estado de coisas e a forma é considerada como a possibilidade mesmo da estrutura. É a relação entre o
conjunto de palavras que forma a proposição considerada como um fato
independente. O fato serve de objetivo que torna uma proposição verdadeira ou falsa e uma explicação lógica se impõe. A estrutura do fato
consiste nas estruturas dos estados de coisas (Wittgenstein, 1961, p. 33).
Na introdução Francesa do Tratatus, Bertrand Russell afirma que
deve existir alguma coisa em comum entre a estrutura de uma frase e a
estrutura do fato. A proposição lógica é uma representação (verdadeira
ou falsa) do fato. É a estrutura comum que torna possível a representação do fato e nesse caso se trata da estrutura da palavra e do fato. Essa
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
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é a tese fundamental da teoria de Wittgenstein (Wittgenstein, 1961, p. 8
e 19).
As conexões novas que nós acreditamos encontrar não estavam
lá em um sentido latente. Elas são resultados de uma construção que
deve ser efetuada e aceita a cada momento. Assim, ela não é a exploração de um universo de significações predeterminadas. Na verdade, elas
se constituem como uma determinação suplementar de sentido e uma
extensão da gramática e não uma simples explicitação do seu conteúdo
latente.
As regras de dedução não podem ser consideradas como proposições que exprimem verdades de um tipo especial em relação a qualquer
coisa como as significações. Para Wittgenstein, se o ‘p’ é o resultado do
‘q’, o sentido do ‘p’ está contido dentro do sentido do ‘q’. Mais ainda,
se um Deus cria um mundo onde certas proposições são verdadeiras, ele
cria assim um mundo no qual todas as proposições que são consequências da primeira são verdadeiras. No sentido analógico, ele não poderia
criar um mundo no qual uma proposição ‘p’ seja verdadeira, sem criar
ao mesmo tempo, a totalidade de seus objetos.
Se é verdade que uma proposição resulta da verdade de outras
proposições, isso se exprime pelas relações nas quais as formas dessas
proposições se referem umas às outras. Essas relações são internas e
existem desde o momento em que as proposições existem. A conclusão
é que podemos inferir ‘p’ de ‘que’ e toda inferência se faz de forma a
priori, conforme Wittgenstein (1961, p.66-67). Ele emprega o conceito
de propriedade formal dos objetos e propriedade de estrutura no mesmo
sentido de relações formais e relações estruturais. Ele afirma ainda que é
preciso colocar em primeiro plano as relações internas entre as proposições e em seguida as relações entre as estruturas gramaticais (Wittgenstein, 1961, p.53).
Para Wittgenstein, as regras gramaticais não devem dar conta de
nenhuma realidade. Elas determinam a significação que ainda não existe
(constituído) e não são, por isso, responsáveis por nenhuma significação. Assim, elas são arbitrárias. Não pode existir uma discussão sobre
a questão de saber se essas regras ou outras regras são boas para a pala-
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ANTONIO PAULINO DE SOUSA
vra “não” (ou seja, se elas são conforme a sua significação). A palavra,
sem as regras, não tem nenhum significado. Se nós mudamos a regra,
ela apresenta outra significação (ou não têm nenhuma) e nós podemos
igualmente mudar a palavra. Wittgenstein criticou sem cessar a imagem
obsessiva da significação de uma palavra como sendo uma caixa plena
cujo conteúdo é trazido com ela e embalado dentro dela e que nós devemos apenas explorar. É essa imagem que nos incita a considerar que
quando efetuamos uma inferência lógica a conclusão já deve, de uma
maneira ou de outra, ter sido compreendida (nos dois sentidos da palavra) na premissa (Bouveresse, 1987, p.25).
Com efeito, o pensamento não é uma máquina cuja exploração
poderia colocar em prática coisas impensáveis ou uma máquina que
pode fazer uma coisa para a qual ela parecia não ser capaz. Isso significa
dizer que, do ponto de vista lógico, o pensamento não funciona como
uma máquina. Na perspectiva lógica, a máquina só produz o que foi
programado para ser produzido.
Para nos assegurar plenamente deste ponto, é preciso que estejamos certos de que a máquina funcionará de forma puramente lógica, no
sentido de que ela só produzirá resultados que já foram pensados com os
conteúdos proposicionais mesmos. Em outros termos, o resultado lógico
da significação deveria coincidir com o que já existia, de uma forma
ou de outra, no pensamento no momento da compreensão (Bouveresse,
1987, p.26). A relação de dependência é instaurada e estipulada pela
regra mesma, pois não existe dependência escondida (Wittgenstein apudBouveresse 1987, p.27).
A idéia da significação é constituída e determinada pelas regras
mesmas (Bouveresse, 1987, p.32). O objetivo de Wittgenstein é romper
com a concepção mal orientada das regras como determinantes. O que
podemos concluir é que é unicamente a regra que dá sentido ao que
chamamos de fazer a mesma coisa. É a regra que cria um ponto de vista
a partir do qual todos os casos, mesmo diferentes, podem ser identificados e percebidos como sendo tratados de formas idênticas (Bouveresse,
1987, p.38). Compreender a regra que governa a utilização do fonema
‘f’ significa saber que ‘f’ só pode ser aplicado quando certas condições
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
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tiverem sido contempladas. Finalmente, é o ponto de vista que cria o
objeto, conforme Saussure. Esse ponto de vista é a própria regra ou uma
ciência.
A autonomia das regras gramaticais significa que nenhuma realidade lhe corresponde. Mais exatamente, quando nós falamos de uma
correspondência dessas regras com a realidade, queremos dizer outra
coisa. Dizer que uma realidade corresponde a 2+2=4 é como dizer que
uma realidade corresponde a dois. Significa dizer que uma realidade
corresponde a uma regra e, na verdade, trata-se de uma regra muito útil
– nós não poderíamos deixar de utilizar essa regra por várias razões e
não somente por uma razão. Existe um sentido quando dizemos que uma
realidade corresponde a uma regra. Mas não é a esse tipo de realidade
que nós esperamos e, sim, uma realidade mais complexa, constituída de
uma multiplicidade de fatos diferentes. Nós esperamos uma realidade
que vem da experiência imediata.
Wittegenstein defende não apenas que as proposições matemáticas não são proposições oriundas da experiência, mas também que elas
não são proposições descritivas em um sentido qualquer. A oposição
não é entre duas categorias de proposições, umas que descrevem os fatos ligados à experiência e outras que a tratam de outro tipo, mas entre
uma norma ou uma regra e uma proposição propriamente dito. Essa é a
única maneira de dar conta da diferença de categoria que existe entre as
proposições de essência e as proposições de experiência. As matemáticas são normativas, mas norma não significa a mesma coisa que ideal.
Dizer que as matemáticas tratam de ideais consistiria precisamente cair
na ilusão descritiva.
Wittgenstein quer que deixemos de pensar a operação das regras
sob o modelo da máquina-como-diagrama e pensemos mais em termos
de qualquer coisa real que esteja sujeita às contingências e acidentes que
podem acontecer. Se nós queremos explicar a normatividade da regra,
tal como ela aparece, o fato de que a regra tenha determinado de uma só
vez a totalidade de suas aplicações corretas, em termos de mecanismos,
é bem na máquina como símbolo de seu modo de ação que devemos
20
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
pensar. O movimento do símbolo de máquina é predeterminado de forma distinta de uma máquina real (Bouveresse, 1987, p.54).
O próprio da necessidade é se exprimir em proposições que têm
o status de regra. Mas a determinação lógica da ação pela regra não se
torna uma determinação empírica que produz sempre os mesmos resultados previstos. A ação que é determinada por uma regra é, ao mesmo
tempo, determinada por outros fatores que são propensões a provocar
acidentes diversos. Isso não introduz nenhum elemento acidental na relação estabelecida, a priori, entre a regra e o que constitui a aplicação
da regra, mas significa que a concepção criticada por Wittgenstein, é na
verdade, uma mitologia na medida em que se constrói um mito filosófico em relação à maneira a partir da qual se aplica as regras.
As regras, em um certo sentido, são enunciados. Você pode fazer tal ou qual coisa desde que obedeça a determinadas regras. Lá onde
temos as regras, podemos sempre passar à descrição da multiplicidade,
descrevendo, por exemplo, a maneira a partir da qual os homens jogam
o jogo de xadrez. As regras podem estar em conflito umas com as outras
na hora em que os enunciados correspondentes se contradizem.
Se considerarmos que as proposições gramaticais tratam de objetos de um tipo particular, nós nos encontraremos na obrigação de resolver dois problemas muito difíceis. O primeiro é saber como esses objetos fazem parte de uma outra realidade e, ao mesmo tempo, se referem à
realidade bem concreta. O segundo é saber que tipo de relação o sujeito
do conhecimento estabelece com as proposições gramaticais.
Wittegenstein tenta resolver simultaneamente essas duas dificuldades mostrando que não tem nada a postular aqui, a não ser a aptidão
a compreender e a aplicar as regras da linguagem. É certo que o que
chamamos regras e seguir uma regra pode colocar questões filosóficas
muito difíceis (Bouveresse 1987, p.160). As regras podem ser lidas em
qualquer tipo de objeto não sensível, com os quais somos capazes, de
uma maneira ou de outra, de entrar em contato.
Nas Philosophical Investigations, Wittegenstein se refere a Luther, quando diz que a gramática era a gramática da palavra Deus. Ele
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
21
interpreta isso como significando que um estudo da palavra seria um
estudo gramatical. Por exemplo, as pessoas poderiam discutir sobre a
questão de saber quantos braços Deus tem e alguém poderia entrar no
debate negando que se possa falar do braço de Deus. Isso jogaria luzes
sobre o uso da palavra Deus e a gramática da palavra (Wittgenstein,
2001, p. 371 e 373).
Wittgenstein não quer, certamente, dizer que a teologia se ocupa
mais da palavra Deus do que de Deus ele mesmo. Ele não sugere também que a geometria se ocupa mais da palavra cubo do que do próprio
cubo. É exatamente absurdo pensar que a filosofia só se ocupa das palavras, sob o pretexto de que ela é uma pesquisa gramatical. A verdade
é que a teologia não pode ser compreendida como determinando o que
pode ser e o que não pode ser dito de forma dual em relação a Deus.
Wittgenstein protesta contra a idéia de que a filosofia deve se esforçar
para penetrar nos fenômenos. Trata-se, na realidade, de descrever a possibilidade dos fenômenos através dos gêneros de enunciados que nós
formulamos sobre eles. É por isso que a filosofia é uma pesquisa gramatical e não porque ela estuda as palavras e não as coisas.
Podemos considerar, por exemplo, o caso de seres humanos que
têm um sistema de números e são capazes de contar os objetos, mas
não possuem ainda a regra da adição e da multiplicação. O fato de lhes
ensinar a regra 7+5=12 consiste, do ponto de vista de Wittgenstein, em
lhes ensinar um novo critério. Neste caso, trata-se de um critério matemático que lhes permite julgar sobre a validade dos resultados obtidos
a partir da simples experiência da soma. Um exemplo disso é que esse
critério matemático permite decidir (no momento de um cálculo) se um
objeto deve ser acrescentado ou retirado ou se ele não é bem comparado.
A regra lhes fornece um critério que eles ainda não tinham. O critério
comporta indiscutivelmente uma novidade importante na medida em
que se introduz uma determinação conceitual no local onde não existia
conceito (Bouveresse, 1987, p. 138).
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
22
3. Regra e Regularidade
Quando Bourdieu começou os seus trabalhos de pesquisa em etnologia, o seu objetivo era reagir contra o jurisdicismo, ou seja, contra
a tendência dos etnólogos a descrever o mundo social com a linguagem
da regra e dar a entender que teríamos compreendido as práticas sociais,
desde o momento em que anunciamos a regra explícita segundo a qual
essas práticas são produzidas e aplicadas. Os agentes sociais obedecem
a uma regra, quando o interesse a obedecer é maior do que o interesse
a desobedecer. Esta frase materialista é interessante, porque ela lembra
que a regra não é automaticamente eficaz por si mesma, mas ela nos
obriga a perguntarmos em que condições uma regra pode agir.
As noções de jogo, regra, costume, habitus e aprendizado são
contribuições significativas para a compreensão do jogo social. Essas
noções se comparam e se opõem facilmente aos conceitos centrais de
Bourdieu: habitus, jogo, senso prático, estratégias, etc. Toda a filosofia
do segundo Wittgenstein, que gira em torno da obediência às regras, é
uma contribuição importante para o entendimento das formas de vida
social (Chauviré, 1995, p.551). Wittgenstein pensa a sociedade em termos de normas, o que não é o caso de Bourdieu. JacquesBouveresse
analisa a distância existente entre regra e habitus, sem opor radicalmente
essas duas noções e defende que existe uma distinção fundamental entre
as duas noções.
A relação entre regra e prática é semelhante à relação entre língua/fala em Saussure. A fala só existe graças à pré-existência da língua,
mas são os atos da fala que possibilitam a existência da língua. A fala
tem necessidade da língua e ao mesmo tempo é a língua que determina
a multiplicidade dos atos da fala. Existe então uma reciprocidade, a qual
mostra que a regra reside essencialmente na prática. A regra é o que
anima a prática em um determinado momento (Taylor, 1995, p. 570).
Analisando algumas regiões da Califonia, Lévi-Strauss nos diz
que certos villages possuem uma organização dualista e outros ignoram esse tipo de organização. Isso permite estudar como um schèmes
(esquema) social idêntico pode se realizar através ou mesmo fora de
uma forma institucionalizada bem definida. Existe algo que se conserva
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
23
em ambos os casos e que a observação histórica permite filtrar, deixando de lado o conteúdo lexical das instituições e costumes, os elementos estruturais. No caso das organizações dualistas os elementos são
três: a exigência da regra, a noção de reciprocidade e o caráter sintético
da dádiva. Esses fatores existem em todas as sociedades consideradas
(Lévi-Strauss, 1974, p.36-37; 1976, cap. 5 e 7 ).
Nessa perspectiva estruturalista, Lévi-Strauss estabelece certas
analogias entre o sistema econômico, o sistema de parentesco e o sistema linguístico. Os três sistemas dizem respeito ao mesmo método e,
portanto, às mesmas regras. A diferença que existe é apenas do ponto de
vista estratégico, na medida em que cada um decide se situar dentro de
um universo comum. A teoria restrita de Lévi-Strauss estuda as sociedades que possuem regras positivas relativas à escolha do parceiro(a) em
vista do casamento e esse problema é colocado sob o ponto de vista do
parentesco.
Dentre as instituições que podem caracterizar um sistema de parentesco, existe a regra positiva para um sistema determinado. As regras
individuais de casamento são supostamente obrigatórias. Essa teoria
restrita é a teoria da aliança matrimonial. Essa aliança é o essencial da
teoria, contudo, dentro da sua estrutura, ela integra uma teoria geral que
podemos chamar de teoria estrutural do parentesco (Dumond, 1997, p.
116-117, 131-146). Percebe-se que a relação do agente social com a
sociedade é de natureza institucional. A instituição é entendida como
uma mediação entre a estrutura e os comportamentos individuais. Isso
significa que é necessário articular a ação coletiva instituída e a ação
do agente social. (Billaudot, 2009 e Boyer, 2004). Praticamente não há
dúvida de que existe homologia entre a sociologia de Bourdieu e as pesquisas econômicas institucionalistas da teoria da regulação (De Sousa,
2011, p.22).
Se a antropologia social, a economia e a linguística se unem para
fundar uma disciplina comum que seria a ciência da comunicação, é
preciso dizer que essa disciplina consistirá em regras. Essas regras são
independentes dos participantes (indivíduos ou grupos) que dirigem o
jogo. Assim, a natureza dos jogadores é indiferente. O que é pertinente é
24
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
saber quando um jogador pode escolher e quando ele não pode escolher.
As pesquisas de Lévi-Strauss, sobre o parentesco e o casamento, obedecem a uma teoria linguística.
Para Lévi-Strauss, a regra de parentesco e de casamento define
um quarto tipo de comunicação: aquele de genes entre os fenótipos. A
cultura não consiste, especialmente, em formas de comunicação, mas,
sobretudo, em regras aplicáveis em todos os tipos de jogos de comunicação. Isso tanto no nível do desenvolvimento da natureza quanto no
nível de desenvolvimento da cultura (Lévi-Strauss, 1974, p. 353). Essa
analogia se dá entre a sociologia do parentesco, as ciências econômicas
e a linguística.
Lévi-Strauss nos deixa entender que a cultura é reduzida a regras
que devem ser aplicadas em todos os tipos de jogos de comunicação.
Diz-nos ainda que as pesquisas nos fazem perceber que desde os trabalhos de Marcel Mauss até os de Mallinowski, a teoria etnográfica descobriu, graças à análise dos fatos econômicos, algumas das mais belas
regularidades. (Mauss, Mallinowski apud Lévi-Strauss, 1974, p. 354).
O modelo do economista Neumann, nos diz Lévis-Strauss, provém da
teoria do jogo, mas se assemelha ao modelo que é empregado pelos
etnólogos para estudar as regras de parentesco entendido como um sistema. (Neumann apud Lévi-Strauss, 1974, p. 354-356).
Para Neumann, o jogo consiste em um conjunto de regras que
descrevem as formas de jogar. As regras do jogo são fixadas e cada indivíduo ou grupo tenta jogar da mesma maneira, mas tentando aumentar
as vantagens em relação ao adversário (Lévi-Strauss, 1974, p. 355). É
assim que Lévi-Strauss introduz as noções de partida, escolha e estratégia. Essa noção de estratégia é sinônimo de escolha (Bourdieu, 1987,
p.78).
Existe a possibilidade de conversão de modelos estatísticos em
modelos mecânicos e vice-versa. É a partir da supressão do abismo entre
a demografia e a etnologia que nós temos à disposição uma base teórica
que garante a previsão e a ação (Lévi-Strauss, 1974, p. 356-357). No prefácio da primeira edição da obra As estruturas elementares do parentesco, Lévi-Strauss nos diz que o objetivo fundamental da obra “é mostrar
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
25
que as regras do casamento, a nomenclatura, o sistema dos privilégios
e das proibições são aspectos inseparáveis de uma mesma realidade,
que é a estrutura do sistema considerado” (Lévi-Strauss, 1976, p. 15).
É a relação social e não o vínculo biológico que desempenha um papel
determinante para a constituição de alianças matrimoniais. É a “aliança
que fornece a dobradiça, ou mais exatemente, o corte, onde a dobradiça
pode fixar-se. A natureza impõe a aliança sem determiná-la e a cultura
só a recebe para definir-lhe imediatamente as modalidades. Assim se
resolve a aparente contradição entre o caráter de regra de proibição e a
sua universalidade” (Lévi-Strauss, 1976, p. 69). A regra é considerada
como uma substância permanente e geral da cultura. Para Lévi-Strauss
(1976, p.71), a partilha dos alimentos se efetua de acordo com as regras
e elas refletem a estrutura do grupo familiar e social.
Em um artigo sobre Histoire et ethnologie (história e etnologia),
Lévi-Strauss faz uma crítica à teoria de estratégia matrimonial de Bourdieu ao afirmar que se trata de uma forma de espontaneísmo e um retorno à filosofia do sujeito (Levi-Strauss, 1983, p. 1230). Há outros que
veem nessa mesma teoria o determinismo e a abolição do sujeito, nos
diz Bourdieu (Bourdieu, 1987, p.20).
Lévi-Strauss está fechado (prefácio de Mauss sobre a fenomenologia) na alternativa entre o objetivismo e o subjetivismo. Ele não pode
pensar na ultrapassagem dessa alternativa. Essa é a maneira, a partir da
qual a regra pode existir nas nossas vidas enquanto valores que se fazem
carne.
Certas regras são bem formuladas, mas elas estão em interação
estreita com o nosso habitus. Normalmente os dois se convergem e se
completam. Bourdieu fala de habitus e das instituições como dois modos de objetivação da história passada. As instituições são geralmente
os locais de regras ou de normas expressivas. As regras não são interpretadas sozinhas, sem o sentido que elas carregam consigo e sem uma
afinidade com um espírito. As regras isoladas se tornam letras mortas.
O habitus é um sistema de disposições duráveis e transportáveis.
Uma disposição física é um habitus quando ele anuncia uma compreensão cultural. Nesse sentido, ele tem sempre uma dimensão expres-
26
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
siva visto que permite exprimir certas significações que as coisas e as
pessoas têm para nós e é exatamente permitindo essas expressões que
o habitus faz existir essas significações. As crianças estão mergulhadas
dentro de uma cultura e os adultos lhes ensinam as significações que
constituem tal cultura, na medida em que vão lhes inculcando um habitus apropriado. Nós aprendemos a nos comportar e a marcar a diferença
em relação aos outros, adaptando diferentes tipos de estilos e de comportamentos físicos.
Bourdieu (1987, p.79) descreve as estratégias de jogo duplo que
consiste em colocar o direito do seu lado e agir conforme os interesses
próprios, mas dando a entender que se está obedecendo às regras. O
sentido do jogo não é infalível. Ele é desigualmente repartido dentro de
uma sociedade assim como dentro de um jogo.
O aprendizado de um jogo pode passar por uma formulação e a
aquisição explícita das regras que governam o jogo. Contudo, podemos
adquirir este tipo de comportamento regular que corresponde ao domínio prático do jogo sem o devido enunciado das regras que intervêm no
processo. O observador externo procura explicar o jogo; para isso ele
formula hipóteses sobre as regras que os jogadores poderão seguir e
talvez procura formular um sistema de regras “tácito” ou explícito que
constitui uma condição suficiente para as regularidades características
que observamos no comportamento dos atores. O senso prático, ou sentido do jogo, é entendido como algo que se acrescenta ao conhecimento
teórico das regras e que se adquire pela prática do jogo. O conhecimento
prático só se adquire pela prática e só se exprime na prática.
O habitus como sentido do jogo é o jogo social incorporado que
se tornou natureza. Nada é mais livre e mais coercitivo do que a ação do
bom jogador. O habitus como social inscrito no corpo, no indivíduo biológico, permite produzir uma infinidade de atos de jogo que são inscritos
no jogo em estado de possibilidades e exigências objetivas. As coerções
e exigências do jogo, mesmo que elas não estejam fechadas no código
de regras, se impõem a eles, ou seja, o sentido da necessidade imanente
do jogo é preparado a perceber e realizar. Isso pode ser facilmente transportado no caso do casamento. Como foi demonstrado na pesquisa de
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
27
Bourdieu sobre o Béarn e a Kábylie onde as estratégias matrimoniais
são produtos não da obediência a uma regra, mas do sentido do jogo que
conduz a “escolher” o melhor partido possível tendo em vista o jogo que
a gente dispõe, ou seja, os atouts ou as péssimas cartas e a arte de jogar
de que somos capazes. A regra do jogo é explícita e a regularidade que
podemos observar, graça à estatística, é o produto agregado das ações
individuais orientadas pelas mesmas coerções objetivas ou incorporadas.
A produção das regras do jogo conduz também à elaboração de
modelos. A questão é saber o que separa as regras do jogo das regras de
parentesco.A imagem do jogo não é tão perigosa para evocar as questões sociais, mas sabe-se que ela comporta riscos. Assim, falar do jogo
é sugerir que existe no início um inventor do jogo, um nomothète, que
coloca as regras instauradas no contrato social. O mais grave é que ela
sugere que existem as regras do jogo, ou seja, as normas explícitas e
frequentemente escritas.
Na verdade, as coisas são mais complicadas. Podemos falar do
jogo para dizer que um conjunto de pessoas participa de um conjunto de
atividades regularizadas, uma atividade que, sem ser necessariamente o
produto da obediência a uma regra, obedece a certas regularidades. O
jogo é o local de uma necessidade imanente. Quem quer ganhar o jogo
deve se apropriar do sentido da necessidade e do sentido do jogo. A
utilização da palavra “regra” é, portanto, ambígua. O termo pode ser utilizado a condição que se faça uma distinção entre regra e regularidade.
O jogo social é regulado e é também o lugar de regularidades. As coisas
se passam de forma regular. Os herdeiros ricos se casam regularmente
com as cadettes ricas.
Para construir um modelo do jogo é preciso não apenas a simples
gravação das normas explícitas e o enunciado das regularidades se integrando umas às outras. É necessário pensar sobre os modos diferentes
dos princípios de regulação e de regularidade das práticas (Bourdieu,
1987, p.81). As trocas diferenciadas de dom e contra-dom são determinadas por um intervalo de tempo. Bourdieu introduz o papel fundamental que é exercido pela categoria tempo (Filho, 2007, p.206).
28
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
Bourdieu quer demonstrar a ambiguidade da palavra regra e chega até mesmo a dizer que “a linguagem da regra é o asilo da ignorância”
(Bourdieu, 1987, p. 83 e 90). Toda a reflexão de Bourdieu partiu da
seguinte interrogação: De que forma e como os comportamentos podem
ser réglés (regularizados), sem serem produtos da obediência a regras?
O que Bourdieu acrescenta à espontaneidade é a idéia da decisão apoiada sobre a deliberação, ou ainda, uma liberdade racional e inteligente
baseada em estratégias específicas. Para ele é necessário romper com a
tradição etnológica cuja tendência é tratar toda prática como a execução
de uma ordem ou de um plano.
No caso do estruturalismo, segundo Bourdieu (1972, p. 1106,
trata-se da execução de um modelo inconsciente que restaura a teoria da
prática do juridisme ingênuo que representa a relação entre linguagem
e palavra (ou entre estrutura e a prática) a partir do modelo da partitura
musical e sua execução. Nesse sentido, é importante observar que a execução nunca é feita pela massa. Ela é sempre individual e o indivíduo é
sempre o mestre. É isso que nós podemos chamar de palavra (Bourdieu,
1982).
Na concepção de Saussure, a língua existe dentro de uma coletividade. Para ele, não há nada de coletivo na palavra e as suas manifestações são unicamente individuais e momentâneas. Ele acrescenta ainda
que a prática psíquica não está totalmente investida no jogo (Saussure,
1995, p. 37-38). É por essa razão que Bourdieu recorre à noção de estratégia, para evitar essa noção de execução de uma regra. A noção de
estratégia é considerada como incompatível pela antropologia social de
Lévi-Strauss. O comportamento do agente é produto de um habitus. Isso
não ameaça a espontaneidade da ação, caso ele seja o resultado de uma
coerção externa, mas é resultado de uma disposição que se localiza no
agente mesmo.
A existência do determinismo descrito na sociologia dá a impressão de constituir uma ameaça, não somente para a liberdade, mas
também para a espontaneidade das ações individuais. Nós temos dificuldades para distinguir entre as ações que têm seus princípios dentro
do agente e aqueles que têm seus princípios fora dele e que podem acon-
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
29
tecer sem ele ou contra ele. O problema filosófico da liberdade aparece
com a idéia de constrangimento que nasce da prisão invisível. Não ser
livre seria algo como se estivéssemos presos e paralisados.
4. Prática e Estratégia
As noções que Bourdieu elaborou pouco a pouco, como a de habitus o habitus, nasceram da vontade de lembrar que, ao lado da norma
expressa e explícita ou do cálculo racional, existem outros princípios
geradores de práticas e estratégias. Isso, sobretudo, nas sociedades onde
existe pouca coisa codificada. Para dar conta do que essas pessoas fazem, é preciso supor que eles obedecem a um sentido do jogo, como se
diz em esporte.
Para compreender as práticas é preciso reconstruir o capital de
schémes informacionais que lhes permite produzir pensamentos e práticas sensatas e reguladas, sem intenção de sentido e sem obediência
consciente a uma regra. E não há dúvida de que as normas e as regras se
encontram em todo lugar. O habitus é o fundamento objetivo dos comportamentos regulares. (Bourdieu, 1987, p.94-95).
A maior contribuição do que se chama de revolução estruturalista consistiu em aplicar ao mundo social um modo de pensar relacional, que é o da matemática e da física moderna e que identifica o real,
não a substância, mas às relações. Esse modo de pensamento relacional
é o ponto de partida da construção apresentada na obra La distinction
(Bourdieu, 1987, p.150). O real é relacional. O que existe no mundo
social são relações sociais objetivas que independem das vontades individuais (Bourdieu, 1992, p. 72).
No primeiro capítulo do livro Substance et fonction, Cassirer
(1977) tece uma crítica ao substancialismo aristotélico que está presente no mundo social. O pensamento tem a função insubstituível que é a
de relacionar um conteúdo presente com um conteúdo passado e tentar
apreender a identidade de um e de outro. Nesse sentido, existe um modo
de dependência entre cada um dos elementos que compõem o mundo
30
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
social e eles só podem ser apreendidos dentro de um sistema. É por
essa razão que o pensamento é relacional. Cassirer (1977, p. 21, 26 e
29) defende a importância de uma teoria geral das relações. A lógica
substancialista e a relacional são dois tipos de lógica que se afrontam no
processo de evolução das ciências modernas.
Bourdieu questiona a confusão que existe na utilização do conceito de regra. Quando Lévi-Strauss fala de regra ou de modelo construído pelo teórico para dar conta da realidade, ele não se situa em oposição
a Bourdieu. A oposição é marcada pela ambiguidade da palavra regra.
Essa ambiguidade faz desaparecer o problema que Bourdieu queria colocar. Para ele, não sabemos exatamente se por regra estamos falando
de princípios do tipo jurídico produzido e dominado pelos agentes ou de
um conjunto de regularidades objetivas que se impõe a todos os agentes que entram no jogo. É a um desses dois sentidos que nos referimos
quando falamos de regras do jogo. Contudo, podemos ter no espírito um
terceiro sentido de regra que é o de modelo teórico e, portanto, de um
princípio construído pelo sábio para se dar conta do jogo. A reação de
Bourdieu é contra o mecanicismo de Saussure e o estruturalismo antropológico de Lévi-Strauss.
Para escapar disso, é preciso inscrever dentro da teoria o princípio real das estratégias, ou seja, do sentido prático e do sentido do jogo.
As noções de habitus (sistema de disposições), estratégia e senso prático
são conceitos que estão ligados ao esforço para sair do objetivismo estruturalista sem cair no subjetivismo (Bourdieu, 1987, p. 76-77). É preciso
lembrar que o conceito de habitus não pode ser dissociado do conceito
de campo. Por campo é preciso entender uma delimitação do mundo
social regido por leis e códigos próprios. Para Bourdieu, cada campo
é caracterizado por uma forma particular e diferente do interesse. “Em
alguns casos, a ação aparentemente desinteressada obedece, porém, à
lógica do campo (acadêmico, artístico). Mas, sobretudo, o interesse econômico não é o equivalente geral dos interesses que se desdobram nos
diversos campos, e há uma diferença fundamental com as pesquisas sociológicas, inspiradas pela problemática das escolhas racionais” (Boyer,
2003, p.273). A história também se introduz pelo fato de que o investimento num campo resulta da interação entre um espaço do jogo e um
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
31
sistema de disposições adequado ao jogo. Em outros termos, “...o investimento é um efeito histórico do acordo entre duas realizações do social:
nas coisas pela instituição, e nos corpos pela incorporação”(Bourdieu,
1984, p. 135).
Essa questão da estratégia está presente também nas pesquisas de
Foucault (2001) sobre a prisão. Ele não se interessa pelo detento como
pessoa, mas pelas táticas e estratégias que estão subentendidas nessa
instituição paradoxal que é a prisão. O problema central está relacionado à questão do poder que é, por definição, uma relação de força e, até
certo ponto, uma relação de guerra. Para Foucault, o modelo de análise
que deve ser utilizado não é o da psicologia nem o da sociologia, mas
o da estratégia enquanto a arte da guerra. A tática e a estratégia deixam
marcas no espírito e no corpo como a guerra deixa cicatrizes nos corpos
dos combatentes.
Bourdieu quer reintroduzir os agentes que o estruturalismo reduziu ao estado de simples épifenômenos da estrutura (Bourdieu, 1987,
p. 19). Ele não pretende introduzir a noção de sujeito da tradição humanística que é “supposé agir” unicamente em função de intenções que
ele conhece e que domina e não de causas determinantes que ele ignora.
Nesse ponto, Bourdieu se inspira em Wittgenstein.
A tendência nas ciências humanas e da natureza é considerar que
existem regularidades características e elas são resultados da ação de
mecanismos que explicam o movimento. Contudo, existe uma diversidade de condutas sociais regulares que parecem não poder ser explicadas, de forma satisfatória, nem pela intervenção de regras, sob as quais
os agentes alinham seus comportamentos e nem em termos de causalidade brutal. É nesse nível intermediário que intervém o conceito chave
de Bourdieu que é o habitus.
É uma mitologia considerar as leis da natureza como regras às
quais os fenômenos naturais são coagidos a se conformar. É como se a
regra agisse da mesma forma que uma força motriz que coage o agente a
caminhar em uma direção determinada. A lei é expressão de uma regularidade, mas ela não é a causa da existência dessa regularidade, como ela
seria, se pudéssemos dizer que os objetos são coagidos pela lei mesma a
32
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
se comportar de uma determinada forma. Para Wittgenstein, se as decisões humanas apresentassem regularidades exprimidas em leis, mesmo
assim, elas não deixariam de ser livres.
Os estruturalistas pensam o mundo social como um espaço de
relações objetivas transcendentes aos agentes irredutíveis às interações
entre os indivíduos (Bourdieu, 1987, p.18). A abordagem estruturalista
visa compreender as relações objetivas, independente das consciências e
das vontades individuais. O ponto de vista da fenomenologia visa compreender a experiência que os agentes fazem realmente da interação, dos
contextos sociais e a contribuição que eles dão para a construção mental
e a prática das realidades sociais (Bourdieu, 1987, p.47).
Bourdieu é levado a falar de estratégias matrimoniais ao invés
de regras de parentesco. Essa mudança de vocabulário manifesta uma
mudança de ponto de vista. No seu artigo intitulado Les stratégies matrimoniales dans le système de reproduction (as estratégias matrimoniais dentro do sistema de reprodução), Bourdieu adota como ponto de
partida o fato de que as práticas, a partir das quais os camponeses da sua
terra natal (Bearn) tendem a assegurar a reprodução da linhagem e ao
mesmo tempo a reprodução dos seus direitos sobre os instrumentos de
produção, apresentarem regularidades claras. No entanto, isso não nos
permite dizer que as regularidades são o resultado da obediência a uma
regra (Bourdieu, 1972, P. 1105).
Para Bourdieu, é preciso romper com a tradição etnológica que
trata toda prática como execução de uma ordem ou de um plano. O estruturalismo restaura, através da execução de um modelo inconsciente,
a teoria da prática do juridisme ingênuo que é representado pela relação
entre a língua e a palavra. O modelo é o da partição musical e sua execução (Bourdieu, 1972, p.1106).
O sistema de disposição inculcado pelas condições materiais de
existência e a educação familiar constituem-se como princípio unificador das práticas e, ao mesmo tempo, é produto das estruturas sociais. A
tendência é que essas práticas podem se reproduzir, ou seja, elas podem
ser reinventadas inconscientemente ou imitadas conscientemente. As
estratégias canalizam as práticas e aparecem como inscritas na natureza
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
33
das coisas. Assim, o casamento não é produto da obediência a uma regra
ideal, mas o resultado de uma estratégia que coloca em prática os princípios interiorizados de uma tradição particular (Bourdieu, 1972, p.1107).
As estratégias matrimoniais visam fazer um bom casamento, ou
seja, maximizar os lucros e minimizar os custos econômicos e simbólicos do casamento como transação de um tipo particular. Os princípios
que tendem a excluir os casamentos entre famílias muito desiguais (cultural ou socialmente) visam a maximizar o lucro material e simbólico
que podem ser adquiridos através das transações matrimoniais. As estratégias são orientadas pelo valor do patrimônio material e simbólico
que pode ser engajada na transação e pelo modo de transmissão do patrimônio.
O discurso jurídico reduz a regras formais as estratégias complexas e sutis através das quais as famílias tentam navegar e se reproduzir
no âmbito econômico, cultural e biológico. O chefe de família tem mais
ou menos a liberdade para jogar com as regras para favorecer, discretamente, um ou outro dos seus Filhos, através do dom em dinheiro líquido
ou pelas vendas fictícias. A palavra partilha é, muitas vezes, empregada
para designar os arranjos entre a família para evitar a divisão da propriedade (Bourdieu, 1972, 1113).
Os fracassos do empreendimento da introjeção e reprodução cultural nos conduzem a afirmar que o sistema nunca funciona como um
mecanismo. O sistema não ignora as contradições entre as disposições
e as estruturas que podem ser vividas como conflitos entre o dever e o
sentimento. As estratégias são produtos do habitus enquanto domínio
prático de uma pequena quantidade de princípios implícitos a partir dos
quais se engendra um conjunto de práticas que podem ser regularizadas. O habitus é o produto das estruturas que ele tende a reproduzir. As
estratégias matrimoniais não podem ser dissociadas das estratégias de
sucessão, de fecundidade e até mesmo das estratégias pedagógicas.
Nas suas pesquisas Vernier (1985) conclui que a classe social e
a ordem de nascimento (mais precisamente, a origem do sobrenome)
determinam, em grande parte, o valor estatutário dos indivíduos e o que
eles devem ao nascimento. O casamento acontece de acordo com a clas-
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
34
se social e é definido pela importância da propriedade do capital econômico e simbólico. Trata-se de um jogo complexo como as estratégias
matrimoniais, em que as práticas rituais intervêm dentro de um sistema
de disposição que se pode pensar analogicamente com a gramática gerativa de Chomsky (1973), com a diferença de que se trata de disposições
adquiridas pela experiência e assim variáveis segundo os momentos.
O sentido do jogo permite criar uma infinidade de coups adaptados a uma infinidade de situações possíveis que nenhuma regra, por
mais complexa que ela seja, pode prever. As regras de parentesco são
substituídas pelas estratégias matrimoniais. A referência que Bourdieu
faz constantemente a Chomsky é, à primeira vista, surpreendente porque
ele é representante típico da teoria da linguagem como cálculo. Esse
modelo é ligado a Frege e Wittgenstein que criticou. Essa relação complexa deve ser objeto de uma nova investigação.
Conclusão
A estratégia é concebida como um instrumento de ruptura com o
ponto de vista objetivista e com a ação sem o agente que supõe o estruturalismo (recorrendo à noção de inconsciente). Nós podemos recusar a
ver na estratégia o produto de um programa inconsciente, sem fazer o
produto de um cálculo consciente e racional. A estratégia é o produto do
senso prático enquanto sentido do jogo, de um jogo social particular historicamente definido, que se adquire desde a infância pela participação
nas atividades sociais.
O bom jogador faz, a cada vez, o que deve ser feito e o que é exigido pelo jogo. Isso supõe uma invenção permanente que é indispensável para se adaptar a situações indefinidamente variadas e jamais perfeitamente idênticas. A intuição é necessária a cada etapa da aplicação de
uma regra. Não é verdade que agir segundo uma regra queira dizer agir
segundo uma interpretação da regra. Isso não assegura uma obediência
mecânica às regras explícitas e codificadas.
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
35
Temos que considerar uma rede de transformações que nos conduz de prisões evidentes, a prisões menos evidentes, e a prisões completamente invisíveis. Isso não significa que nossas ações se exerçam
dentro dos limites que imaginamos. Na verdade, nós podemos ser manipulados por agentes invisíveis que rivalizam conosco para o controle
do nosso corpo e têm interesses contrários aos nossos. Dentro do jogo
social, certos comportamentos regulares são o resultado da vontade de
se conformar com as regras codificadas e reconhecidas. A regularidade
é produto da regra e não apenas obediência à regra e pode ser um ato
intencional que implica o conhecimento e compreensão do que seja a
regra.
É preciso inscrever dentro da teoria o princípio real das estratégias (ou seja, o sentido prático), o que é chamado de senso do jogo como
domínio prático da lógica ou da necessidade de um jogo que se adquire
com a experiência e que funciona além da consciência e do discurso
(Bourdieu, 1980). As noções como habitus (sistema de disposições), de
senso prático e de estratégia são ligadas ao esforço para sair do objetivismo estruturalista, sem cair no subjetivismo. A capacidade criativa
não é a de um sujeito transcendental – dentro da tradição idealista –
mas aquela de um agente agindo. “A noção de habitus inscreve-se num
modo de pensamento genético, em oposição a modos de pensamento
essencialistas [...]. O habitus é algo fortemente gerador. [...] O habitus é
um princípio de invenção, que, produzido pela história, é relativamente
arrancado da história: as disposições são duradouras, o que acarreta toda
sorte de efeitos de hysteresis (de atraso, de distanciamento).” (Bourdieu,
1984, p. 134-135).
Bourdieu caracteriza o habitus como produto incorporado da necessidade objetiva. O habitus é a necessidade feita virtude, produto de
estratégias, mesmo que ele não seja consciente e nem o resultado de um
mecanismo. É objetivamente ajustado à situação e a ação que orienta o
sentido do jogo e tem todas as aparências de uma ação racional que desenha um observador imparcial, dotado de toda a informação necessária
e capaz de dominar socialmente. O que se chama de regras do jogo é
próximo do que se deve chamar habitus ou estratégias sociais. O jogo
36
ANTONIO PAULINO DE SOUSA
é lugar de uma necessidade permanente que é, ao mesmo tempo, uma
lógica imanente e o sentido do jogo (Bourdieu, 1987, p. 21 e 81).
As interações que procuram uma satisfação imediata das disposições empíricas, que podemos observar e registrar, escondem as estruturas que aí se encontram. Podemos nos dar conta disso observando
a diferença entre a estrutura e a interação que é, ao mesmo tempo, a
diferença entre a visão estruturalista e a visão interacionista sob todas
as suas formas.
Bourdieu (1987, p.151) defende o estruturalismo como um momento necessário da pesquisa. Nesse sentido, ele é próximo de Paul
Ricoeur, o qual estabelece uma diferença entre uma filosofia estruturalista e um estudo estrutural de textos. Essa última abordagem do texto
é uma forma de mostrar as articulações internas que independem da
subjetividade do autor. A objetivação é entendida como uma passagem
obrigatória para a explicação e visa uma melhor compreensão do texto.
Paul Ricoeur defende então uma autonomia semântica do texto e isso é
distinto de uma filosofia estruturalista na qual o sujeito é eliminado da
sua posição de enunciateur (Ricoeur, 1995, p. 119-120). Tanto Pierre
Bourdieu quanto Paul Ricoeur (adotando perspectivas distintas) possuem uma prática estrutural e, ao mesmo tempo, uma relação conflituosa com o estruturalismo praticado, sobretudo, na obra de Lévi-Strauss.
Essa pesquisa representa um esforço para compreender o conceito de regra e sua relevância para o entendimento do modo de pensar
estruturalista. O jogo de linguagem segue certas regras gramaticais, mas
não se restringe a obedecer às regras (Bourdieu, 1982). Nesse caso, o
agente social não é um mero suporte da estrutura e é por essa razão que
Bourdieu pensa em termos de estratégias e habitus. A luta constante é
no sentido de romper com o pensamento mecanicista que considera as
práticas sociais como uma simples execução de uma ordem ou de um
plano. É o sistema de disposição, inculcado pelas condições materiais e
culturais de existência, e a educação familiar que se configuram como
princípio que unificam as práticas e estratégias sociais.
REGRA, ESTRATÉGIA E HABITUS
37
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A imagem da Galiza e dos galegos em
Portugal entre fins do século XIX e
primeiras décadas do XX: do imagotipo
negativo ao imagotipo de afinidade
CARLOS PAZOS JUSTO
Universidade do Minho
Grupo Galabra (Universidade de Santiago de Compostela)
O objetivo deste trabalho é descrever e analisar as origens e funções da
imagem que dos galegos e da Galiza funcionava em Portugal, nomeadamente em Lisboa, desde fins do século XIX até as primeiras décadas do
século XX. A partir fundamentalmente da trajetória do enclave galego
de Lisboa, nas páginas seguintes tentaremos descrever e analisar como o
imagotipo dos galegos em vigor em finais do século XIX, passa a partilhar o imaginário português com uma outra representação bem diferente
que funcionará no espaço social português respondendo a outros interesses e finalidades. Neste sentido, explicitamos já que não é objetivo deste
trabalho entrar aqui em elucubrações sobre a menor ou maior fidelidade
da imagem portuguesa dos galegos à realidade deste coletivo,1 apenas
1 Nesta orientação interpretamos as indicações de Machado e Pageaux (2001: 51): “O estudo
40
CARLOS PAZOS JUSTO
nos interessa conhecer e analisar a representação que efetivamente funcionou no imaginário português.2
O tema proposto não tem sido objeto de estudos de conjunto.
No entanto, têm surgido ao longo das últimas décadas trabalhos, nomeadamente desde os estudos literários e centrados num produtor literário
concreto, que têm contribuído para colocar questões e possibilitar análises mais abrangentes (cfr. p. ex. Beirante 1992 ou Rodriguez e Torres
1994). Também, desde os estudos literários e da cultura há abundante
literatura sobre as relações literárias/culturais entre a Galiza e Portugal
para o período fixado (cfr. p. ex. Villares 1983, Vázquez 1995, Torres
1999a, 2008 e 2010 ou Cunha 2007).3 Desde os estudos linguísticos,
vários trabalhos forneceram informação relevante sobre os significados
da palavra galego ou a fraseologia portuguesa com presença galega (cfr.
Marçal 1954, Kristensen e Evans 2006, Grygierzee e Ferro 2009). O
fenómeno migratório galego em Portugal, central, como veremos, na
origem da representação inicial dos galegos em Portugal, tem recebido uma atenção crescente nos últimos anos, ajudando a melhor descrever a formação e funcionalidades da imagem portuguesa dos galegos
(cfr. González 1999, 2006, 2009 e 2011 ou Alves 2002); paralelamente
da imagem deve dar menos importância ao grau de ‘realidade’ duma imagem do que ao seu
grau de conformidade com um modelo cultural previamente existente, de que importa conhecer os componentes, os fundamentos, a função social [...] o verdadeiro problema é o da lógica
da imagem, da sua ‘verdade’ e não da sua ‘falsidade’”.
2 No que diz respeito à imagologia, este trabalho servir-se-á metodologicamente das ferramentas e orientações desenvolvidas por Machado e Pageaux 2001 e Beller e Leerssem 2007.
Anotamos já que a consecução dos objetivos deste estudo estão norteados pela afirmação de
Joep Leerssem: “Imagology [...] its aim is to understand a discourse of representation rather
than a society” (Beller e Leerssem 2007: 27); do mesmo modo, entendemos a imagem “as
the mental silhouette of the other, who appears to be determined by the characteristics of family, group, tribe, people or race. Such an image rules our opinion of others and controls our
behaviour towards them” (Beller e Leerssen 2007: 4; sublinhados nossos). Por outro lado,
consideramos com Machado e Pageaux (2001: 53) que a “imagem [...] é um facto cultural”
e, portanto, é suscetível de ser analisada recorrendo a um conjunto heterogéneo de produtos
culturais, não apenas literários. Optamos por utilizar a etiqueta de Manfred S. Fischer imagotipo (cfr. Beller e Leerssen 2007: 9 e 333) face a, por exemplo, estereótipo, por traduzir com
maior transparência, na nossa leitura, o caráter composto de uma imagem dada; desta forma,
a imagem de um grupo ou país pode estar composta de um o mais imagotipos com origens e
funcionalidades diversas.
3 O assunto passa desapercebido, porém, nos estudos cuja perspetiva é a estatal, isto é, aqueles
que explicitam Espanha e Portugal como os dois focos centrais da análise (cfr. p. ex. Torre e
Telo 2002 ou Alonso 2006).
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
41
saíram a público vários trabalhos que desde diferentes perspetivas se
debruçam sobre os galegos emigrados em Portugal, especialmente em
Lisboa (cfr. Felgueiras 1981, Pinho 1983, Vaz 2008 ou Dantas 2010).4
O imagotipo negativo
A imagem dos galegos em Portugal na época contemporânea até
fins do século XIX está estreitamente vinculada ao fenómeno migratório
galego em Portugal. Desde o século XVIII, após o fim da guerra de sucessão espanhola, e até meados do século XX, Portugal, especialmente
Lisboa, foi um destino principal para a emigração galega. Quantitativamente, o momento de apogeu estaria por volta de 1800, estimando-se o
número de emigrantes por volta dos 80 mil passando a perto de 30 mil
em fins da centúria (González 2011).5 Estes galegos exercerão maioritariamente trabalhos não qualificados. Em palavras de António Pinho:
Os mesteres dos Galegos, em geral, eram os de acarretador, aguadeiro, almocreve, artífice; carregador (da Alfândega e da Companhia
do Arroz), cortador (referenciado no século XVII), cozinheiro, criado
doméstico (de libré, botequim, casa de pasto, tasca); moço de armazém
(de loja de bebidas, de mercearia) e moço de esquina ou de fretes (chamado também carrejão e mariola), além de postilhão de cadeirinha ou
liteira, serviçal (no mais lato sentido), trabalhador braçal e barredor.
4 A publicação em 2008 de Historia dunha emigración difusa. 500 anos de emigración galega
a Lisboa (Leira 2008), livro de homenagem à colónia galega de Lisboa, marca um ponto de
inflexão no estudo e conhecimento do fenómeno migratório galego em Portugal. Até esta
data, a emigração galega a Portugal teve uma atenção limitada, tanto em Portugal como na
Galiza se comparada com a profusão de trabalhos acerca da emigração galega para o continente americano; para este caso, há inclusive estudos que introduzem questões imagológicas
(cfr. Núñez 2002 e Cagiao e Núñez 2007: 11 e ss.).
O presente trabalho nutre-se, não exclusivamente, de trabalhos nossos centrados no enclave
galego de Lisboa (Pazos 2009, 2010c e especialmente 2010b e 2011a).
5 Durante grande parte do século XIX o recrutamento forçoso do exército espanhol é um dos
fatores que explicam a grande afluência de emigrantes a Portugal; no último terço deste século, porém, este modelo migratório experimentará um importante decréscimo devido à irrução
dos destinos ultramarinos (Argentina, Uruguai, Brasil, etc.) (González 2006: 258-259).
42
CARLOS PAZOS JUSTO
Se o consentiam os patacos amealhados ou a ânsia de relativa independência, escolhiam as ocupações de amolador de tesouras e navalhas
(em simultâneo com o conserto de guarda-chuvas e de louças, daí o
deita-gatos ou gateiro), carvoeiro, castrador de felinos, estalajadeiro, negociante, padeiro, sota, taberneiro e vendedor de rendas (Pinho
1983: 211-212; itálicos no original).6
A posição/função social determinada pela sua condição de imigrantes e de trabalhadores não qualificados vai ser fundamental na origem do que denominamos imagotipo negativo em elaboração já desde o
século XVIII. Este nutre-se repertorialmente, entre outros, dos seguintes elementos: grosseiros e brutos, ignorantes e avarentos, trabalhadores
não qualificados, em ocasiões alcoólicos, ingénuos mas desconfiados,
utentes de uma variedade linguística própria e de uma vestimenta peculiar, sem vínculos aparentes com Portugal; podem aparecer designados
como gallegos, tuyanos ou vigoenses.7 Como se vê, o imagotipo é constituído por um conjunto amplo de elementos, pois tem como referente
um grupo social muito presente na sociedade portuguesa; lembre-se a
este respeito, que muitos dos afazeres dos galegos tinham lugar na praça
pública.8
6 Apontamos já que todas as citações, incluídos os anexos, mantêm os textos na sua forma
original.
7 Viktoria Grygierzec e Xesús Ferro Ruibal anotam, entre outros, os seguintes elementos sobre
os galegos a partir da fraseologia portuguesa: “esforzo máis físico ca intelectual / escravo do
traballo / agoniado polo traballo / obsesionado con reunir diñeiro / famélico (gando) / último
da escala social / covarde / lorpa, groseiro, bruto / traidor” (Grygierzec e Ferro 2009: 103).
Por outro lado, tudo parece indicar que a origem, constituição e funcionalidade do
imagotipo português não difere muito do castelhano/espanhol. Para Fernando Romo Feito
a periferização da Galiza no trânsito da Idade Média para Idade Moderna “caused a massive
emigration of Galicians in miserable conditions [...], leading them to occupy the lowest
job categories. They were associated with footmen, servants, handymen, barmaids (often
prostitutes), drudges, and washer-women hefty, ugly and lustful. The view of Galicians was
mostly negative, and this can be seen in the proverb antes puto que gallego” (Romo 2010:
461; cfr. Caramés 1993 e Palmás 1984: 514).
8 Repare-se que nesta imagem conta essencialmente a presença de galegos em Lisboa e não o
conhecimento efetivo da Galiza; isto é, trata-se, na altura, da imagem de um grupo e não de
um país ou uma nação.
A visibilidade dos galegos na Lisboa dos séculos XVIII e XIX era tal que ficou consignada
em textos de autores estrangeiros; entre eles: Guiseppe Baretti (italiano), Guiseppe Gorani
(italiano), Dumouriez (francês) e Willian Dalrrymple (inglés) (cfr. Garcia 1996). Singular,
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
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A vitalidade e expansão do imagotipo português dos galegos ficou patente em numerosos produtos culturais.9 Em Eloquencia Gallega.
Sermão pregado por um cura gallego na freguezia de Forcadella no
anno 1720 [da era vulgar] (1878), O Gallego Lorpa. Entremez em um
acto (1879), Confissão do Gallego Ramon Parde-lhas (s.d.) (cfr. Kristensen e Evans 2006), O Galego e o Diabo texto de Almeida Garret
de 1824 ou no famoso O Galego. Vida, Ditos e Feitos de Lázaro Tomé
de Alexandre Herculano, o imagotipo negativo é elemento repertorial
central e carregado de uma evidente funcionalidade jocosa.10 A mesma
função humorística, ridicularizante, estará por trás d’Os Galegos e outras historias (1884) de Rafael Bordalo Pinheiro. O imagotipo estará
presente igualmente na pintura e na incipiente fotografia da época (cfr.
Dantas 2010) ou inclusive no cinema; segundo Carlos Consiglieri “O
primitivo cinema português ajudou a esta fixação [a do imagotipo]. O
moço de frete (o galego dos recados) perduram em A Canção de Lisboa
(1932-33) na cena da mudança; em A Vizinha do Lado; e em O Pai
Tirano (1941)” (Carlos Consiglieri apud Pinheiro 1994: 22; itálicos no
original). Na fraseologia, por seu turno, há inúmeros vestígios: Guarda-te de cão preso e de moço galego, Trabalhar como um galego, A fome e
o frio fazem o gado galego, Debaixo de galego, só um burro, Cinquenta
galegos não fazem um homem, Pariu a galega! ou Ver-se galego são
alguns dos adágios recolhidos por Grygierzee e Ferro 2009.
porquanto contraria a imagem portuguesa dos galegos, é a representação que destes desenha o
francês Joseph B. F. Carrère em Voyage en Portugal (1798); como assinalou Rodrigues Lapa
já em 1952, o retrato de Carrère era bem mais amável: “Não oferece os seus serviços; espera
com tranquila dignidade que lhos solicitem. Esta raça desperta a atenção do observador [...]
e considera-a uma raça privilegiada, que não sofreu a influência das causas físicas e morais
que contribuíram para abastardar a espécie humana em Portugal” (Joseph Carrère apud Lapa
1952: 9-10).
9 Lembre-se neste sentido com Machado e Pageaux: “no plano cultural, o estereótipo é de
grande importância. Ele constitui uma forma maciça de comunicação. Sendo uma redução
extrema da informação, ele é também uma forma ideal de comunicação de massas” (Machado e Pageaux 2001: 52).
10 Outros textos com presença do imagotipo negativo aparecem citados em Vaz 2008.
CARLOS PAZOS JUSTO
44
O imagotipo de afinidade
No último terço do século XIX e primeiras décadas do XX a imagem portuguesa dos galegos, e agora também da Galiza, experimenta
uma complexificação notável ao emergir um novo imagotipo que aqui
denominaremos de afinidade. Uma das primeiras evidências da elaboração desta nova representação dos galegos surge no texto já citado O
Galego. Vida, Ditos e Feitos de Lázaro Tomé (1845-1846), texto inserido numa série de “Typos Portuguezes” que o autor ia empreender e de
que só publicou este primeiro volume. Apontava Alexandre Herculano
no Prólogo: “A ideia ‘galego’ é complexa; é trina. Há galego-mito –
galego-história – galego-actualidade: o primeiro um símbolo; o segundo um ovo; o terceiro um elemento social” (Herculano 1981: 219). O
imagotipo negativo descrito acima está vinculado a este “galego-actualidade”, quer dizer, aos imigrantes galegos. Ora, Alexandre Herculano
utiliza repertorialmente esta imagem dos galegos vigente em Portugal
com função (etno-)humorística mas, ao mesmo tempo, explicita no seu
texto uma outra visão da Galiza e dos galegos paralela à que de forma
sistemática vários agentes portugueses começam a reelaborar como um
dos elementos do repertório cultural português. Em estreito diálogo com
o impulso planificador dos galeguistas da altura (cfr. infra), Teófilo Braga, nomeadamente, Leite de Vasconcelos, Oliveira Martins ou o próprio
Alexandre Herculano, vão introduzir na sua produção a Galiza como
espaço geo-humano individualizado (a respeito do espanhol/castelhano), pondo em valor uma série de elementos de variada natureza, nomeadamente a respeito da vinculação entre a Galiza e Portugal: identidade/
afinidade de língua, alma, raça, passado, paisagem, etc.;11 por sua vez,
contestam o imagotipo negativo.
Assim por exemplo, Teófilo Braga contradiz a imagem dos galegos a vigorar na altura quando, referindo-se à Galiza, afirma:
Pelo estudo da poesia gallega, é que se podem comprehender as formas
do lyrismo portuguez; e a desmembração d’esse territorio, que ethnicamente nos pertence tem permanecido para nós extranho durante tantos
11 Seguimos aqui de perto as teses propostas por Elias Torres (Torres 1999a: 273 e ss.).
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
45
seculos, é que prova a falta absoluta de plano na nossa vida politica. A
verdadeira origem da tradição lyrica da Galliza está ligada á sua constituição ethnica […]
O afastamento da Galliza de Portugal provém do esquecimento da tradição nacional e da falta de plano politico em todos os que nos tem governado. Em Portugal o espirito moderno penetra, mas ainda, é considerado como revolucionario. Na Galliza o estudo da tradição começou
já (Teófilo Braga apud Torres 1999a: 280).
Leite de Vasconcelos irá, um ano depois, incidir explicitamente
no assunto nos termos fixados por Teófilo Braga:
Assim como, segundo a theoria da evolução, o homem-animal se esqueceu de que sahira lentamente dos mammiferos simianos, tambem
muitas vezes o homem-social perdeu a lembrança da sua origem ethnica. (...) Achamos o mesmo esquecimento no facto que se dá entre
Portuguezes e Gallegos. Sabe-se que para Portugal o nome gallego é
uma irrisão.
[…]
O proprio Camões, apesar de descendente de uma familia da Galliza,
não se pejou de dizer ao povo da sua procedencia: Oh sordidos galegos, duro bando.
Se existe, pois, tal analogia entre Portugal e Galliza, analogia que tão bem
póde traduzir-se numa federação, se o curso das ideias, em vez de levar a
utopias monarchicas de união ibérica prejudiciaes para nós, guiar os animos num certo sentido; se nós vemos as populações da Galliza emigrarem
constantemente para cá, offerecendo-nos os seus braços em qualquer ordem
de trabalhos: porque é esse opprobio infame e arremessado às faces dos
nossos irmãos? (Leite de Vasconcelos apud Torres 1999a: 284-285; itálico
nosso).12
12 A tomada de posição de Leite de Vasconcelos continua com um protesto inconformado para
com o imagotipo negativo: “Aproveitando a occasião do 2.° centenario calderoneano, em que
os povos peninsulares, conforme ha pouco fizerão a Camões, se aggregão para commemorar
a memoria de um espirito illustre (...) venho, perante a Geographia, a Historia, a Ethnographia e a Moral, protestar solemnemente contra o falso preconceito portuguez que liga ao
46
CARLOS PAZOS JUSTO
Em interessado diálogo com os vizinhos do Sul, na Galiza, desde
meados do século XIX, vários agentes (Manuel Murguia, nomeadamente) começam a elaborar um novo repertório identitário para os galegos;
nascem aqui uma série de ideias/crenças, algumas de longo percurso
(como é o caso do celtismo) a respeito das singularidades dos galegos,
da Galiza no âmbito do Estado espanhol e que vão nutrir a autoimagem
dos galegos e da Galiza. Neste quadro, os primeiros galeguistas começam também a desenhar uma série de traços identitários dos galegos
que os ligam interessadamente a Portugal (outra vez a língua, a raça, a
alma, etc.), referente de reintegração13 que irá funcionar como “alicerce
da legitimidade de existir e reforço da própria identidade e da soberania
cultural” (Torres 1999a: 273).14
Estes novos discursos sobre os repertórios culturais de galegos e
portugueses vão funcionar na prática como os primeiros, e talvez mais
importantes, possibilitadores de uma nova forma de relacionamento entre galegos e portugueses; são, para o que aqui interessa no que diz resnome gallego uma significação affrontosa.
Espero que a imprensa illustrada do paiz cor-responda a este apêllo” (Leite de Vasconcelos
apud Torres 1999a: 284-285; itálicos nossos).
A intervenção de Leite de Vasconcelos elucidativamente incluía o seguinte poema onde se
destaca:
Porque te insultão, lyra das Hispanhas?/ Pois não ouvem o grito do Alalálaa/ Que os Gallegos
entoão nas montanhas? [...] Não differem as nossas tradições [...] Possuimos egual quinhão
de glória. Jamais o opprobio desleal e baixo/ Sobre o nome gallego, nosso irmão!/ A Justiça
levanta o vivo facho/ Da federal e ehtnica união:/ Separados da Hispanha, em dia novo,/
Outra vez formaremos um só povo! (Leite de Vasconcelos apud Torres 1999a: 285).
Para Oliveira Martins, por exemplo:
[...] portugueses e gallegos somos um e o mesmo povo na lingua e no sangue [...] Desde o Finisterra pelo menos até ao Mondego, o povo é absolutamente o mesmo, e se não tivesse sido o
facto da scizão politica pelo Minho, a lingua seria absolutamente identica. O portuguez não é
outra coisa senão o galleciano que tomou caracteres proprios com a cultura principalmente quinhentista. Antes, as duas fallas não se distinguem (Oliveira Martins apud Torres 1999a: 313).
13 As raízes da planificação galeguista a respeito de Portugal encontram-se, como evidenciou
Raquel Bello (2012), nos discursos dos ilustrados galegos do século XVIII.
14 Na elaboração do discurso galeguista do século XIX, nomeadamente no de Manuel Murguia:
“A nacionalidade realízase necesariamente nun proceso dialético fronte ós ‘outros’. E, por
iso, na dogmática nacionalista eses ‘outros’ teñen categorías distintas: hai un tratamento de
negación fronte ó Estado ou fronte as nacionalidades que non comparten a mesma étnia,
como Castela, hai un tratamento de reintegración de cara a Portugal e un tratamento de
analoxía cara a países como Cataluña, Irlanda, País Vasco” (Barreiro 2007: 34; itálicos nossos). Estes modos de relação e os conceitos associados foram analisados primeiramente por
Beramendi 1991.
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
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peito à imagem portuguesa, o substrato repertorial determinante de uma
nova forma de imaginar os galegos e a Galiza que, tentaremos demonstrá-lo a seguir, irá consolidando-se no imaginário15 português ao longo
das décadas seguintes.
Após as elaborações galegas e portuguesas do último terço do
XIX, nas primeiras décadas do século XX e até, grosso modo, 1936, as
relações entre os grupos e agentes galegos e portugueses interessados no
contacto galego-português estarão presididas pela ideia central da afinidade/identidade entre galegos e portugueses. Com especial incidência a
partir de 1917, o relacionamento será protagonizado pelos galeguistas,
agora com alguma coesão, organização e meios de expressão próprios,
e grupos e agentes portugueses nacionalistas, nomeadamente a emergente Renascença Portuguesa, com Teixeira de Pascoaes à cabeça; mais
à frente, na década de 30, significar-se-ia em Portugal nomeadamente
Rodrigues Lapa (cfr. Alonso Estravís 1998). É ao longo da década de
10 e de 20, por exemplo, quando a saudade, elemento repertorial central
dos da Renascença, vai ser elaborado interessadamente como mais um
elemento de união entre galegos e portugueses (cfr. Torres 2008).16
Evidências do imagotipo de afinidade. O enclave galego de
Lisboa
A seguir, a partir das tomadas de posição de agentes e grupos
vinculados ao enclave galego de Lisboa tentaremos demonstrar como
nas primeiras décadas do século XX, junto ao aqui denominado imagotipo negativo, começa a funcionar socialmente o imagotipo de afinidade
no espaço social português.
Como já foi indicado, a colónia galega de Lisboa era no período
de análise quantitativamente numerosa. Ora, com especial relevância
para os objetivos deste trabalho, este coletivo experimenta desde fins do
15 Entendemos por imaginário com S. Scherer: “The imaginary is seen as the fictional production of reality [...] and as a generator of social image formation, which is in turn understood
as a reality surplus that results from the oscillation between individual psychological constructs and their historical and social institutions” (Beller e Leerssen 2007: 346).
16 Dados os objetivos deste trabalho não nos vamos deter nem nos discursos nem nos eventos
vinculados às relações galego-portuguesas do período em análise. A bibliografia sobre o assunto citada mais acima é suficientemente reveladora.
48
CARLOS PAZOS JUSTO
século XIX e durante as primeiras décadas do XX uma notável complexificação qualitativa. Com base num relatório de 1873 que o governo
português teria solicitado ao Consulado espanhol, González Lopo destaca o facto de um grupo não desprezível de emigrantes (por volta do 5%
do total)17 alcançar uma posição económica avantajada.18 Muitos destes
galegos abastados trabalham na hotelaria, sendo proprietários de “emblemáticos” cafés e restaurantes (Café Martinho, Café Suiço, Irmãos
Unidos, Hotel Francfort, restaurante Estrela d’Ouro, Restaurante Gambrinus, etc.) (González 2011: 7 e ss.), tendo, portanto, acesso a novas
redes sociais e, na prática, expondo-se perante a sociedade portuguesa já não como moços de fretes ou aguadeiros mas como emergentes
proprietários; possibilitando, por seu turno, a consciência no coletivo
imigrante dos seus deficits de, por exemplo, capital simbólico, social,
etc. que, como veremos, tentarão superar através de várias estratégias.
Neste estado de coisas, um dos entraves maiores com que se encontram
os lisboanos19 no seu percurso de ascensão social será a imagem à que
estão associados que os remete na altura a uma posição secundária e até
marginal no espaço social português.
A defesa dos interesses do enclave de variado tipo (com papel
predominante para os lisboanos) será feita, na prática, recorrendo a várias estratégias. A de provavelmente maior impacte no espaço social
17 É claro que o relatório consular se referia aos emigrantes espanhóis e não especificamente
aos emigrantes galegos. Contudo, todos os trabalhos consultados coincidem à hora de indicar
que os galegos eram o coletivo maioritário entre os emigrados oriundos do Estado espanhol;
o próprio cônsul refere em 1873 que os galegos seriam um 97% do total (cfr. Alves 2002: 4;
Pena 1999: 15).
18 González Lopo situa estes emigrantes entre “alta y mediana burguesía en la que se pueden
distinguir actividades de claro prestigio – profesores, propietarios, dueños y socios de fábricas y establecimientos comerciales” (González 2011: 9).
19 Lisboanos, denominação utilizada na metrópole, isto é, na sua terra de origem, identificava os
emigrantes abastados em Lisboa (cfr. González 1999: 254). A própria existência da palavra
evidencia a notoriedade deste coletivo na Galiza. Grygierzee e Ferro (2009: 84) recolheram
esta elucidativa cantiga popular sobre os lisboanos em Caritel (zona Sul da Galiza): “Lisboanos de Lisboa/que vindes facer ó eido?/Vindes engana-las mozas/coa sona do diñeiro”. A
notoriedade dos lisboanos parece ter ultrapassado os limites das zonas de procedência dos
emigrantes se repararmos, p. ex., na atenção laudatória que lhe dedica a importante revista
Vida Gallega (por exemplo em 1910). Os próprios galeguistas parecem conceder uma importância notável à colónia galega de Portugal (e em geral, aos coletivos galegos da emigração)
se repararmos em como subintitulam o seu órgão de expressão, A Nosa Terra: “Idearium das
Irmandades da Fala en Galicia e nas colonias galegas d’América e Portugal”.
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
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português (e no próprio enclave) foi a criação de instituições vinculadas
à colónia. Deste modo, como noutros destinos da diáspora galega, surgiram (i) associações ou centros com diferentes objetivos que congregam
os membros da colónia e (ii) publicações periódicas, em vários casos
bilingues, que tinham como destinatários preferentes o coletivo emigrante.20 Além de contribuir à coesão interna do próprio enclave,21 as associações e publicações periódicas estão ao serviço deste para contestar
o imagotipo negativo, contrário aos interesses dos lisboanos e, em geral,
de todos os emigrantes galegos em Portugal.
Em 1908, o corresponsal de El Tea em Lisboa afirmava: “Pasaron los años en que nuestros compatriotas eran objeto de befa y demás expansiones populares. Hoy debido á nuestra actividad y con ella
20 Associações vinculadas ao enclave galego seriam inequivocamente: a Associação Galaica de
Socorros Mútuos (1888) e Juventud de Galicia (1908). Publicações periódicas: La España
Moderna (1908), El Clamor Español (1909), La España Democrática (1912), España y Portugal (1913), Hispania (1924 e 1935), El Heraldo Español (1931), Alborecer (1932); Ignacio
Chato acrescenta a esta lista as seguintes publicações, as duas do século XIX: El Gallego
(1881-1883?) (pelo título mais parece tratar-se de uma publicação humorística) e La Voz Galaica (1882) (Chato 2004: 130-133). Neste sentido, definir os limites do que denominamos
enclave galego em Lisboa no âmbito do coletivo de emigrantes oriundos do Estado espanhol
não é tarefa fácil, nem, por outro lado, objetivo prioritário deste trabalho; é provável, portanto, que existissem mais associações vinculadas ao enclave galego assim como também é
possível que um ou vários dos jornais citados não estivessem diretamente vinculados àquele.
Nos jornais consultados (ao lado da publicação republicano-agrarista El Tea, de Ponte-Areas,
com importantes relações com o enclave) são notórias as tensões existentes no conjunto dos
emigrantes oriundos do Estado espanhol no que diz respeito aos modelos de associação. Assim, a modo de exemplo, podíamos ler em 1908 em La España Moderna: “En Portugal los
españoles andamos faltos de ella [união] y como consecuencia de esto, ni hay colonia ni hay
españoles, ni esiste mas que antagonismo [...] El Centro Gallego, muy digno de imitar por
las demas regiones; pero es el caso que Galicia se concentra solo á defender su región” (La
España Moderna, 24/10/1908, p. 3).
21 Domingo González Lopo assinala a preocupação dos lisboanos pela formação dos seus filhos
como mais uma estratégia no seu projeto de ascensão social (González 2011: 12). O caso
de Alfredo Guisado (cfr. Pazos, 2010a), descendente de emigrantes galegos, é paradigmático. O número 21 de Vida Gallega de 1910, incluia nas suas páginas um retrato laudatório
da família Guisado (com fotografia) em que se indica: “Sus hijos [os de Antonio Venancio
Guisado] reciben una esmerada instrucción en los centros docentes de la capital, obteniendo
en sus exámenes notas de significado aprovechamiento. Así es que el joven Alfredo Pedro,
luego que concluya sus estudios preparatorios, se trasladará á Bélgica ó Alemania para seguir la carrera de ingeniero de industrial” (Vida Gallega, 31/05/1910). Tal não se verificou;
Alfredo Guisado, porém, sim frequentou um dos liceus mais prestigiados de Lisboa, o Liceu
do Carmo, e acabaria por forma-se em Direito na Universidade de Lisboa e ser deputado na
Assembleia da República antes da irrução do autoritarismo.
50
CARLOS PAZOS JUSTO
el progreso y cultura, han desaparecido esos antiguos rencores que más
de una vez dieron origen á graves conflictos” (El Tea, 5/12/1908). A
asseveração de El Tea pecava de excessivo entusiasmo. Escassos dois
anos mais tarde, sob o título “Los gallegos de Lisboa” e a raiz de umas
eventuais piadas sobre os galegos aparecidas na publicação Os Ridículos, escreviam em El Tea: “¿No son preferidos los gallegos en todas
partes á los de otras naciones? En Lisboa mismo, ¿no hay muchísimos
más portugueses desempleados que gallegos? […] Que los gallegos son
hábiles, trabajadores y honrados, que al abandonar su casa su propósito
es uno solo: trabajar y comer” (El Tea, 23/7/1910, p. 2; itálicos nossos).22
No texto de El Tea está presente um dos contra-argumentos que
o enclave utilizou recorrentemente para contestar o imagotipo negativo:
os galegos eram honestos e trabalhadores.23 Tal argumento, no entanto,
não era suficiente para atenuar a presença hegemónica do imagotipo negativo na imagem portuguesa dos galegos. Prova-o transparentemente
a intervenção de Guilhermina de Moraes (provavelmente um pseudónimo) n’O Paiz. Jornal Republicano Radical em 1912; sob o título “O
roubo nos pesos e nas medidas”, escrevia, entre outras coisas, “o mais
refinado ladrão n’esta especialidade é o gallego tasqueiro, taberneiro
22 Poucos dias depois, El Tea (30/07/1910, p. 1) recolhia o texto (ou um dos textos) motivo da
afrenta; exemplificamos com o seguinte excerto: “Cachaço calejado p’lo chinguiço / Vermelho como a flor da sardinheira, / As cordas penduradas na lombeira / Que sâo indispensáveis
no serviço […] No lar, encontra filhos con fartura / Todos feitos em carta registada!!!”
23 Aparentemente o facto de um setor importante do enclave apoiar publicamente o novo regime republicano, aproximando-se assim das novas elites políticas é mais uma estratégia que
visa ampliar os horizontes dos membros da colónia. A imprensa ligada ao coletivo emigrante
é, segundo a informação manejada, maioritariamente republicana; assim por exemplo La
España Moderna ou El Clamor Español. El Tea, sempre com importantes vínculos com a
colónia será um meio principal de propaganda republicana no seio do enclave; lembre-se,
neste sentido, que o seu diretor, Amado Garra, vai receber em 1922 a “Cruz del Cristo” [sic]
do Governo da República portuguesa (El Tea, 23/04/1922). González Lopo introduz ainda
outra leitura para explicar a adesão de parte importante do enclave à causa republicana, relacionando a instauração da República, o iberismo expansionista de Afonso XIII e o, consequente, “perigo espanhol”: “los gallegos se vieron de pronto colocados en una posición muy
incómoda en medio del fuego cruzado de la diplomacia de ambos países y la desconfianza y
el desprecio de la opinión popular.
Precisamente esta nueva situación, políticamente muy inestable y progresivamente más violenta, obligó a los gallegos a posicionarse de manera clara para evitar que un comportamiento
ambiguo perjudicase, no sólo sus intereses, sino también su propia integridad y la de sus
instituciones corporativas” (González 2011: 19).
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
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carvoeiro e merceeiro. Este figurão vindo do norte, cheio de ronha e
porcaria, é aceite em Lisboa como homem honesto e de trababalho”
(vid. Apêndice I).
Em 1912, as palavras de G. de Moraes ativando o imagotipo
negativo já não passariam desapercebidas ao enclave. Este encontra-se suficientemente fortalecido, coeso e organizado como para rejeitar
publicamente as afirmações da autora, para tal conta com instituições
próprias. Assim, poucos dias depois, sob o título “Colonia Callaica”,
O Paíz, com alguma relutância, anuncia que receberam uma carta dos
galegos “queixando-se” do artigo de G. de Moraes. A tal carta seria publicada dias mais tarde, presumivelmente devido à pressão dos galegos,
em artigo intitulado “A Colonia Callaica”; significativamente, a carta é
assinada pelo presidente de Juventud de Galicia, “Lorenço Varella Cid”,
um empresário de sucesso; quanto o conteúdo, a carta insurge-se contra
as palavras de G. de Moraes enfatizando especialmente o carater trabalhador dos galegos (vid. Apêndice II).24
A autora de “O roubo nos pesos e nas medidas” acabaria por
voltar a intervir nas páginas d’O Paíz noutro tom. Sob o título “Á Colonia gallaica. Uma satisfação franca e sincera”, G. de Moraes escreve:
aos galegos honrados “presto eu, como portuguesa toda a homenagem
do meu maior respeito e a alta consideração que me merecem todas as
pessoas de bem”.25
24 Note-se que o nascimento de Juventud de Galicia está de alguma forma relacionado com a
imagem dos galegos. Segundo indicou um dos seus membros mais destacados, a ideia surgiu
depois de uma festa onde vários galegos foram convidados a deixar o local com um “Se querem dançar vão dançar para a vossa terra” (Ramiro Vidal Carrera apud Vaz 2008: 18). Neste
sentido, o aparecimento de Juventud significa também, provavelmente, a criação de espaços
que por falta de capitais e discriminações lhes eram negados.
25 Outro episódio no qual o enclave reage através dos meios ao seu alcance está relacionado
com a morte de um dos seus membros. A capa do nº 3 de España y Portugal está dedicada
por inteiro a desenvolver a manchete “Españoles. Nuestro Compatriota José Carrera Seoane
¡¡Ha Muerto a causa de la Agresión Cobarde del policía, 380!!” (22/11/1913). A notícia teve,
por seu turno, acolhida em termos similares no metropolitano El Tea. No seu último número,
España y Portugal lançava a seguinte iniciativa: “SUSCRIPCIÓN POPULAR. Patrocinada
por España y Portugal, para procesar el policia 380, que mató nuestro compatriota José
Carrera Seoane” (España y Portugal, 6/12/1913, p. 3); a seguir, figuravam várias dezenas de
nomes com as quantidades entregues.
52
CARLOS PAZOS JUSTO
Vemos como, apesar dos novos discursos portugueses sobre a
Galiza no último terço do século XIX, a planificação galeguista e dos
republicanos e o progressivo fortalecimento do enclave, a imagem à que
estavam vinculados os emigrantes galegos em Portugal continuava a estar presidida pelo imagotivo negativo. Tudo indica que a capacidade de
os galegos residentes em Lisboa se fazerem ouvir e serem escutados
além das margens do enclave era ainda bastante limitada. Por outro lado,
a adscrição identitária/nacional destes é no mínimo ambígua. Autointitular-se galego não deveria ser na altura uma prática socialmente rentável.26
As causas da persistência do imagotipo negativo não são aparentemente unívocas. Contudo, achamos de todo necessário indicar com M.
Beller que “Once formed, stereotypes [entenda-se aqui imagotipos] are
resistant to change on the basis of new information” (Beller 2007: 429).
Deste modo, a persistência do imagotipo negativo relaciona-se antes de
mais com a própria genética deste tipo de representações, que uma vez
incorporadas com solidez ao imaginário, à cultura, oferecem uma alta
resistência à mudança ou até à sua desativação.27
A irrução das Irmandades da Fala a partir de 1916 vai significar uma acentuada intensificação das relações culturais entre agentes e
grupos galegos e portugueses; por seu turno, o relacionamento cultural
passará para primeiro plano nas elites culturais portuguesas (ultrapassando largamente assim os limites do imagotipo negativo); aquele estará
presidido pela ideia da proximidade(/similitude) identitária. São vários
26 Aparentemente, como consequência do imagotipo negativo presente no imaginário português os galegos hesitaram à hora de auto-nomearse. Neste sentido, González Lopo aponta:
Resulta muy significativo que el adjetivo galaico – o en su defecto el de español- se emplee
preferentemente como apelativo de asociaciones, cabeceras de periódicos o para designar
actividades, como mecanismo de defensa eufemístico para sortear el ultrajante gallego, que
había adquirido tan negativas connotaciones (González 2011: 14; itálicos no original).
27 González Lopo interroga-se sobre o assunto nestes termos:
Cabría preguntarse si esa ofensiva en pro de la divulgación de un viejo estereotipo en un
momento en que comenzaban a multiplicarse los ejemplos que lo impugnaban, no es en
cierto modo signo de ese cambio y una respuesta al mismo al ser visto por un sector de la
población autóctona como una amenaza por la inversión de papeles sociales que de cara al
futuro parecía presagiar (González 2011: 11).
Em nota de rodapé, Domingo G. Lopo indica que nesta altura a colónia galega apresentaria
uns índices de alfabetização superiores aos da média lisboeta (ibid.). O “perigo espanhol”,
seguindo esta linha de análise seria também um dos ativadores do imagotipo negativo.
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
53
os eventos que, com maior ou menor sucesso, têm lugar neste período
encenando os vínculos galego-portugueses (cfr. Marco, 1996: 201-202;
vid. n. 16). Estes contribuem necessariamente para uma exposição da
Galiza e dos galegos, por exemplo, na imprensa periódica, em termos
bem afastados do imagotipo negativo (cfr. Cunha 2007). O enclave galego de Lisboa, sempre atento ao devir da metrópole, não ficaria alheio
a estas mudanças. Com efeito, logo em 1919, El Tea dá notícia da penetração do galeguismo no enclave.28
Neste estado de coisas, grupos e agentes do enclave empenhados
em adquirir outras espécies de capital (além do económico) começam
a intervir no espaço social português em sintonia com os postulados
dos grupos galegos e portugueses interessados no contacto galego-português. Assim, por exemplo, em 1919 abrem uma suscrição entre
a colónia para os mutilados de guerra portugueses. O envelope carimbado para tal fim indicava: “P’ros mutilados d’a guerra portugueses. /
A COLONIA GALAICA” (em El Tea, 23/05/19, o texto que anunciava
a suscrição também estava, expressivamente, em galego). A notícia da
entrega do dinheiro ao Presidente da República foi recolhida por vários
jornais, alguns com fotografia da comissão; a manchete d’A Capital era:
“Para os mutilados da guerra. Um acto de filantropia da colónia galaica
de Lisboa” (A Capital, 30/07/1919)29. Escassos dois anos mais tarde, El
Tea dá notícia da oferenda que a colónia tributa ao soldado desconhecido (português) em Lisboa. Na mesma página que Ramiro Vidal Carrera
publica uns versos sob o título “Galicia e Lusitania” podíamos ler:30
28 As páginas de El Tea em 1919 dão notícia das várias iniciativas, algumas polémicas, que no
seio do enclave se produziam em sintonia com os galeguistas; desde conferências sobre a literatura galega a declarações de apoio à “autonomia” da Galiza (cfr. p. ex. El Tea, 23/4/1919).
29 Dizia A Capital: “O venerando presidente da Republica recebeu, como já ontem noticiámos,
na cidadela de Cascais os srs. Lourenço Varela Cid, Agapito Serra Fernandes e dr. Alfredo
Pedro Guizado, que em nome da colónia galaica lhe foram entregar a avultada quantia de
4.041 escudos com que a mesma colónia se dignou contribuir [discurso de Alfredo Guisado]
’Excelencia: - Regressando triunfante duma ensanguentada jornada [...] Portugal [...] trouxe
alguns dos seus filhos que tão valentemente defenderam o nome da sua Patria nos campos da
batalha, mutilados [...] A colonia galega que vive nesta paiz que tão hospitaleiro para ela tem
sido, não se esqueceu tambem do seu dever. [...] A comissão Lourenço Varela Cid, Agapito
Serra Fernandes, Ermindo Augusto Alvarez, Ramiro Vidal Carreira e Alfredo Pedro Guisado’.” (A Capital, 30/07/1919).
30 Poucos dias antes, Alfredo Guisado intervinha em El Tea com o poema “A Voz de Galicia”
onde se destacam, por um lado as alusões à homenagem ao soldado desconhecido e, por outro
54
CARLOS PAZOS JUSTO
A propósito de los homenajes realizados el dia 9 de Abril, al soldado desconocido protugués, al que la colonia gallega en Lisboa ofreció dos
ricos candelabros de cinco luces cada uno, en plata, con las inscripciones
siguientes: ‘Galicia ós heroes d’a sua hirmán Lusitania’. ‘Pra que alumbren
eternamente n’o corazón d’esta pátria hospitaleira’. A colonia gallega en
Lisboa. -9-4-921 (El Tea, 23/05/1922; itálicos nossos).
Nesse mesmo ano, 1922, desde as páginas da Seara Nova, Alfredo Guisado, português de ascendência galega estreitamente vinculado
ao enclave afirmava: “É necessário que essa ideia que a maioria do povo
de Lisboa e até de Portugal tem sôbre êsse país tão nosso irmão pela
Raça, acabe e que se dê a conhecer tal êle é, em todas as manifestações
da sua Arte” (Seara Nova, 14/1/1922, p. 148).31 Em 1924, segundo El
Pueblo Gallego (22/03/1924, p. 2), Juventud de Galicia lançaria uma
outra iniciativa: homenagear a Camões na Corunha com um monumento
e a Rosalia de Castro com o próprio em Lisboa.
A seguinte tomada de posição do enclave de que temos conhecimento com relevância para os objetivos traçados neste trabalho produz-se em fins de 1928 e inícios de 1929. Nessa altura, vários agentes
lançam a iniciativa de organizar uma Semana Portuguesa na Galiza (e
igualmente uma Semana Galega em Portugal). A Seara Nova, com destaque o Diário de Notícias, El Pueblo Gallego ou A Nosa Terra irão acompanhar os trabalhos de organização assim como as polémicas surgidas.32
Nas páginas do Diário de Notícias ficou registada a adesão entusiasta
lado, a tematização dos vínculos entre Galiza e Portugal numa relação de parentesco (El Tea,
23/04/1921).
31 N’A Pátria, dois anos antes, ao referir-se à emigração galega em Portugal: “É que na alma
galega há qualquer coisa da alma portuguesa, a mesma sentimentalidade, a mesma religiosa
saudade pela sua pátria, a mesma infinita ternura” (A Pátria, 7/06/1920; itálico nosso). É de
notar que as tomadas de posição de Alfredo Guisado, nomeadamente com a publicação de
Xente d’a Aldea, dão, aparentemente, os frutos desejados; em crítica ao poemário, podemos
ler no Correio da Manhã em 1921: “É triste que em Portugal não se conheça melhor a Galliza, tão irmanada a nós por varias razões que é escusado invocar. É preciso amar a Galiza,
como se ama uma irmã que é meiga e que não nos pede em troco mais do que um pouco de
carinho” (Correio da Manhã, 12/04/1921).
32 Abordamos a implicação de Alfredo Guisado na organização da Semana Portuguesa na Galiza em Pazos 2011b.
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
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de Juventud de Galicia à iniciativa; em Fevereiro de 1929 noticiava o
jornal lisboeta com grande foto da comissão de membros do enclave: “A
colonia galega de Lisboa, tão avultada e laboriosa, trouxe-nos ontem a
sua calorosa anuencia, as suas felicitações por esta nova iniciativa, pondo-se incondicionalmente á nossa disposição e manifestando-nos o seu
intenso desejo, que é também o nosso, de que a obra tão brilhantemente
iniciada seja levada a cabo com o luzimento que merece, retribuida mais
tarde pela realização de uma ‘Semana Galega em Lisboa’” (Diário de
Notícias, 2/02/1929, p.1).
Alguns dias mais tarde, Alfredo Guisado, recorrendo ao repertório galego-português de proximidade/afinidade, intervém no Diário
de Notícias impugnando o imagotipo negativo. Sob o título “Galegos”
escrevia Alfredo Guisado: “Como conheço bem a Galiza e como conheço tambem o que são e o que valem os galegos, lamento que, por
vezes, nós, portugueses, sejamos tão desagradaveis para com eles [...]
Ridicularizar, portanto, os galegos, pela sua lingua, o mesmo será que
ridicularizar-nos a nós proprios, falando do nosso glorioso passado literario” (Diário de Notícias, 17/02/1929, p. 1).
Em sintonia com as iniciativas anteriores, o Presidente de Juventud de Galicia, aparentemente em nome da colónia galega de Lisboa,
escreve uma carta muito elucidativa ao Diário de Notícias (vid. Apêndice III). Antonio Fresco Conde alude na sua intervenção em várias ocasiões à relação de proximidade entre a Galiza e Portugal. A carta contém igualmente contínuas referências à cultura, à literatura e à arte, não
apenas à economia e ao comércio, interesse, caberia pensar, prioritário
dos emigrantes galegos abastados; conclui mostrando o seu apoio e o da
instituição que preside à Semana Portuguesa na Galiza.
Na revista do mesmo Diário de Notícias, O Notícias Ilustrado,
de 10 de Março de 1929, o coletivo de emigrantes galegos em Portugal,
nomeadamente o enclave lisboeta, conseguirá notabilizar-se ao receber
uma homenagem de reconhecimento. Sob o título “Os galego são nossos
irmãos!” O Notícias Ilustrado, explica o número especial: “Dá com este
número a sua comovida colaboração nessa homenagem à colónia galaica que em Portugal tem tão numerosa representação. Irmãos de raça,
56
CARLOS PAZOS JUSTO
na actividade, galegos e portugueses irmanam-se na sua intimidade sã e
cordial” (O Notícias Ilustrado, 10/03/1929, p. 5).
Na extensa atenção dedicada aos galegos, a revista do Diário de
Notícias insere fotografias onde a representação dos galegos, apesar do
tom amigável, está no essencial em sintonia com o imagotipo negativo
aqui descrito; a fotografia que ocupa toda a capa é de um amolador,
nas páginas interiores aparecem galegos desempenhando os ofícios que
muitos exerceram durante o século XIX e parte do XX. O “Número extraordinário dedicado à colónia galaica”, porém, longe de insistir neste
imagotipo da imagem portuguesa dos galegos, inclui também na sua
homenagem uma secção dedicada aos “Artistas e Poetas Filhos de Galegos”, e também, ao lado de imagens de paisagens galegas retratos da
“Grandes Figuras da Colónia”; isto é, galegos destacados na indústria
e no comércio lisboetas. Figura igualmente na revista uma página dedicada a “poesias galegas”, onde aparece o texto guisadiano “A voz de
Galícia” já citado.33 Na página 15, o próprio Alfredo Guisado colabora
com o artigo “Nós e a Galiza” onde, apoiando-se numa extensa citação do discurso de Manuel Murguia, pronunciado nos Jogos Florais de
Tui de 1891, se felicita pela iniciativa d’O Notícias Ilustrado e põe em
destaque as semelhanças entre a Galiza e Portugal: “A casa é a mesma,
separa-a apenas uma parede: o Minho”.
A homenagem do Diário de Notícias à colónia galega tem obrigatoriamente de se relacionar também com o aumento significativo da
relevância social e económica do enclave galego em Lisboa, agora com
capacidade económica,34 interessada em apagar os traços menos amáveis do imagotipo negativo.
33 Os outros autores eram: Andrés Martínez Salazar, Marqués de Figueroa, Curros Enríquez,
Rosalia de Castro e Ramón Cabanillas.
34 De facto esta capacidade económica parece ser um dos fatores por trás da acolhida do Diário
de Notícias às reivindicações dos galegos em Lisboa. Os nomes dos proprietários das casas
comerciais com publicidade em, por exemplo, o número especial dedicado a esta comunidade pelo Notícias Ilustrado, assim o indica.
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
57
Conclusões
A partir do exposto mais acima, nomeadamente da análise do
percurso do enclave galego, em nossa opinião, pode concluir-se:
•
No período de análise, com especial incidência nos últimos anos,
o imagotipo negativo passa a partilhar o imaginário português
com uma nova visão da Galiza e dos galegos.
•
Este imagotipo começa a ser elaborado por agentes tanto portugueses como galegos no último terço do século XIX e nutre-se
da ideia central de que os galegos e portugueses compartem uma
série de elementos de variada natureza (identidade/afinidade de
língua, alma, raça, passado, paisagem, etc.).
•
As estratégias dos membros do enclave lisboeta durante a República e depois desta passam por insurgir-se contra a imagem
lusa menos amável para com os galegos, não optando por identificar-se inequivocamente como galegos, e adscrevendo-se ambiguamente a um identidade difusa ou diretamente espanhola;
paralelamente tentam autoidentificar-se como trabalhadores e
honestos ao passo que parecem querer aproximar-se das novas
elites republicanas ou, no mínimo, distanciam-se das conspirações monárquicas. Mas, os mesmos membros da colónia galega,
transcorridos os anos, descobrem que a sua origem galega pode
retribuir-lhe alguns benefícios o qual indica, em nosso entender, que uma outra forma de imaginar a Galiza e os galegos,
em concorrência com o imagotipo negativo, cristaliza em Portugal seguindo o caminho traçado por grupos e agentes galegos
e portugueses interessados, por distintos motivos, em fortalecer
as relações galego-portuguesas. Neste sentido, os galegos, pelos
seus capitais, começariam a ser úteis a setores da burguesia e,
ainda, da administração do Estado. A galeguidade não será, pois,
necessariamente um entrave para aquisição de capital social ou
simbólico. Por outras palavras: ser galego como Rosalia de Castro ou sentir saudade como os portugueses poderá ser agora um
cartão de visita não só aceitável como estimável;
CARLOS PAZOS JUSTO
58
•
Deste modo, a trajetória do enclave evidencia que o imagotipo,
aqui denominado de afinidade, funciona socialmente, efetivamente, sobretudo a partir da década de 20, concorrendo com o
imagotipo negativo.
•
O novo imagotipo não é representação exclusiva de um grupo
humano, como o negativo; é representação de indivíduos (os galegos em geral) e, especialmente, da Galiza (território com caraterísticas próprias).
•
Consequentemente, por último, a imagem portuguesa dos galegos e da Galiza, apresenta no fim do período de análise uma
composição dual, analisável desde o conceito de imageme35 porquanto os dois imagotipos se nutrem de vários elementos antagónicos ou, no mínimo, incompatíveis.36 Os dois têm origens
e funcionalidades diversas. Enquanto o imagotipo negativo está
vinculado ao fenómeno migratório galego em Portugal e é ativado no espaço social português preferentemente para provocar o
riso, o imagotipo de afinidade responde ao labor planificador de
galegos e portugueses e pode funcionar, por exemplo, para ativar
as relações entre a Galiza e Portugal no plano cultural ou servir
de plataforma aos imigrantes galegos para aquisição de outros
capitais além do económico.
Coda
Quanto e quê desta imagem lusa da Galiza e dos galegos ficou
após a implantação do Estado Novo e da Ditadura franquista com o
35 Tomamos esta noção de J. Leerssen: “in most cases, the image of a given nation will include
a compound of layering different, contradictory counter-images, with (in any given textual
expression) some aspects activated and dominant, but the remaining counterparts all latently,
tacitly, subliminally present. As a result, most images of national character will boil down to
a characteristic, or quasi-characterological, polarity: passion and arrogance in the Spaniards,
refinement and immorality in the Italians [...] An imageme is the term used to describe an
image in all its implicit, compounded polarities” (Beller e Leerssen 2007: 343-344).
36 Poderíamos falar, nos termos de Machado e Pageaux 2001: 61-62, de uma imagem que vai,
simplificando, da “fobia” à “filia”; contudo, verificamos que a imagem portuguesa dos galegos conserva no fim do período fixado a “fobia” à qual acrescenta a “filia”.
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
59
consequente apagamento das possibilidades de intervir cultural e politicamente de muitos dos interessados no contacto galego-português é
questão de difícil resposta.
Provavelmente a análise deveria ser equacionada em termos de
invisibilidade.37 Tudo parece indicar que no imaginário português atual a
Galiza não usufrui de uma posição consistente. Os entraves que mostraram as longevas ditaduras peninsulares às relações aqui aludidas parece
ter sido uma das causas desta invisibilidade.38 Por outro lado, o facto de
Portugal (os portugueses) se imaginar a si próprio como uma cultura
homogénea aparentemente dificulta a visibilidade da heterogeneidade
doutros estados (neste caso a do Estado espanhol).
Ora, como hipótese, cremos que hoje, nos inícios da segunda
década do século XXI, o imaginário português a respeito da Galiza e
dos galegos (e consequentemente o modo de se relacionar com estes)
tem as suas raízes (não só, mas de forma significativa) no imagotipo
de afinidade aqui descrito. Assim, a ideia ou crença da Galiza e dos
galegos como comunidade e indivíduos que mantém algum tipo de
afinidade com Portugal e os portugueses ainda funciona culturalmente, socialmente, pelo menos para umas elites ilustradas. Os discursos
que acompanharam e acompanham a fundação e desenvolvimento de
instituições comuns a galegos e portugueses como o Eixo Atlântico
assim o indicam. Claro que a proximidade/afinidade aparece em não
poucas ocasiões, como dizia Elias Torres ao analisar quatro romances
portugueses da década de 90, “imersa numha confusom, onde interessa o tópico e o exotizante a custa da realidade” (Torres 1999b: 304).39
37 Temos assistido em numerosas ocasiões ao singular encontro entre turista ou viajante galego
(muitas vezes castelhano-falante) e empregado de mesa ou funcionário do posto de turismo
em que o primeiro, ativando o seu imaginário, se expressa no seu galego(nhol) e o segundo,
fazendo o próprio, em portunhol. Além do caricata e até risível, a situação demonstra os
défices que galegos e portugueses acumularam durante as últimas décadas.
38 A primeira ponte sobre o rio Minho a ligar a Galiza e Portugal, entre Tui e Valença, data do
ano 1886. A segunda a ser construída de que tenhamos conhecimento, para o trânsito rodado,
foi inaugurada em 1987 entre Monção e Salvaterra; a ponte nova entre Valença e Tui é de
1993.
39 No último romance português com presença repertorial galega de que temos notícia, O eremita galego (Rocha 2011), a representação da Galiza, sem deixar de veicular uma realidade
próxima (uma das personagens, p. ex., explicita que entre galego e português, “A diferença
também não é muita”) aparece toldada desta confusão onde mistério, morte e religião surgem
CARLOS PAZOS JUSTO
60
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64
CARLOS PAZOS JUSTO
Apêndices
I
O roubo nos pesos e nas medidas [excerto]
Todavia, o mais refinado ladrão n’esta especialidade é o gallego
tasqueiro, taberneiro carvoeiro e merceeiro. Este figurão vindo do norte,
cheio de ronha e porcaria, é aceite em Lisboa como homem honesto e
de trababalho [sic.].
Feitas as contas e bem analysado á luz da critica clara, nem ele
nunca foi honesto, nem respeitador das nossas leis, nem grato á hospitalidade que lhe dispensamos, nem util por qualquer motivo ao nosso
meio industrial.
O gallego vulgar, o que anda para ahi em certos misteres, é uma
especie de judeu do que respeita a negocio. Se a sua actividade se encaminha para a taberna ou para o café, o gallego falseia todos os productos
que vende; assim como se compraz em nucna dar a medida cabal dos
liquidos vendidos nem o peso certo das cousas que se lhe compra.
Além d’isso, na maior parte dos casos é imoral e porco, uma
espécie de toupeira que tanto fura por um montão de esterco como por
outro solo mais hygienico.
A questão é de dinheiro, e o gallego, a trôco d’este metal presta-se a tudo.
Quem, melhor que elle, vive com as meretrizes e com os rufias,
n’uma familiaridade quasi de irmãos? Esta gente, tão repulsiva para os
outros, é para o gallego a divina providencia.
O gallego é o factotum de tudo que amenise a vida depravada da
mulher prostituida, publica ou particular [a autora tinha-se notabilizado
nas páginas de O Paiz atacando assiduamente a prostituição].
Elle é o dono dos hoteis de pernoitar; elle é o proprietario dos
cafés das camareras; elle dirige as tabernas onde a malandragem se vae
acoitar durante as horas mortas da noite, para as libações gratas á sua
miseravel vida; elle é moço alcoviteiro dos recadinhos recatados da
prostituição vergonhosa e deprimente d’esta cidade; elle é, finalmente,
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
65
o vasculho que nos rouba, que nos envenena com as tranquibernias dos
productos que vende, e que nos deprime com os seus negocios sujos e
improprios d’esta cidade.
Os lenocinistas mais numerosos de Lisboa são os gallegos, porque muitos conhecemos nós, que se ligaram com mulheres portuguezas,
já sem vergonha e pudôr, sómente com o fim de que ellas, com a sua
actividade, lhes engrossassem os haveres.
Ah! Se fôssemos governo, os senhores galegos ou entravam na
ordem, ou iam passear...
Guilhermina de Moraes “O roubo nos pesos e nas medidas” in O
Paíz, 17/09/1912, pp. 1 e 2 (itálicos no original).
II
Colonia Callaica
Sr. director d’«O Paiz».
No seu jornal de 17 do corrente, deu V. publicidade a um artigo
altamente offensivo da colonia gallaica e, em absoluto, sento de verdade
e justiça.
Extranharíamos esse facto se elle representasse a opinião de V.
ou da sua redacção a quem tantas e tantas provas de deferencia está
devendo a colonia a que temos a honra de pertencer, mas, felizmente, o
artigo vem assignado por uma senhora e isto nos basta para o supormos
devaneio feminino, gerado n’um momento de mau humor.
Todavia como é a primeira vez que nas columnas de O Paiz somos tão injusta e rudemente tratados, negando-se-nos todas as qualidades que dão jus a quaesquer pessoas a viverem em nacionalidade que
não seja a sua, pedimos-lhe, sr. Director, a fineza de perimitir que no seu
jornal demonstremos, pela publicação d’esta carta, a falta de fundamento com que fomos difamados pela sr.ª D. Guilhermina de Moraes.
A colonia galaica de Lisboa é na generalidade tão devotada á
properidade e progresso d’esta nação como os mais estrenuos e dedicados patriotas portugueses.
66
CARLOS PAZOS JUSTO
Nem todos os filhos da Galliza correspondem á hospitalidade
que aqui lhes é dispensada com a correcção que é apanagio dos homens
honrados; no entanto o numero dos que assim procedem é de tal modo
infimo que se torna quais imponderavel.
Ao contraio do que afirma a collaboradora de V. a quasi totalidade dos gallegos aqui residentes, vive do seu trabalho honrado contribuindo assim para o argumento da riqueza publica e engrandecimento
moral e material da nação.
É tanta a sua estima por Portugal que muitos membros da nossa
colonia aqui constituiram familia e assentam residencia definitiva, convertendo o producto do seu trabalho em estabelecimentos e propriedades que concorrem para valorisar mais este paiz.
Dizendo isto, não fazemos uma afirmação gratuita. Emborra
pese á collaboradora de V. muitas propriedades e estabelecimentos pertencentes a gallegos embellezam as ruas da c[a]pital e concorrem ao
conjunto de grandiosidade que a torna digna de admiração dos extrangeiros e é motivo de legítimo orgulho dos nacionaes.
De como a colonia galaica é ciosa pela felicidade e honra da nação que galhardamente lhe dá hospitalidade, existe a exhuberante prova
na attitude que tem tomado todas as vezes que algum incidente desagradavel ou agradavel perturba ou agita a vida da Patria Portuguesa.
N’essas occasiões, a colonia, esquecendo preconceitos de nacionalidade integra-se na mesma patria, como se esta fora sua, para a
acompanhar em todos os lances de angustia ou de regosijo. E porque
não hade ser assim, se defende os seus interesses vitaes e o patrimonio
dos seus filhos?
Cerrando os olhos perante a incisiva evidencia dos factos, a sr.ª
Guilhemina de Moraes calumniou-nos pelo capricho feminino de querer
calumniar-nos, o que devidamente comprehendido por esta collectividade nos inhibe de lhe responder.
Por ella nem viriamos importunar V nem tirar ao seu apreciado
jornal o espaço de que carece para outros assumptos; porém é desejo
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
67
nosso que na colecção do «Paiz» onde o artigo da sr.ª D. Guilhermina
de Moraes já existe, figure também este desabajo d’uma colonia cuja
dignidade não pode estar á mercê de injustas criticas.
Pela concessão de mais este penhorante favor se confessam gratos a V em nome da collectividade que representam
Pela concessão de mais este penhorante favor se confessam gratos a V em nome da collectividade que representam.
Os directores de Juventud de Galicia, em seu nome
O Presidente
Lorenço Varella Cid
Lorenço Varella Cid, “A Colona Gallaica” in O Paiz, 29/09/1912,
pp. 1 e 2 (itálicos nossos).
III
A Semana Portuguesa na Galiza. Como a nossa iniciativa é acolhida pela Sociedade ‘Juventud de Galicia’
Sr. Director do ‘Diario de Noticias’: - A espontaneidade e o carinho com que o ‘Diario de Noticias’ acolheu a ideia de realizar uma
Semana Portuguesa na Galiza produziu extraordinaria satisfação entre
os membros da colonia espanhola e muito principalmente entre os naturais das quatro províncias galegas, manifestadas com todo o entusiasmo
na ultima assembleia da Sociedade ‘Juventud de Galicia’ a que tenho a
honra de presidir.
Nesta assembleia, que se efectuou no dia 20 do corrente, foi, por
unanimidade, aprovado um voto de agradecimento e apoio ao ‘Diario de
Noticias’ a aos ex.mos srs. Antonio Ferro e dr. Alfredo Pedro Guisado
pela maneira leal e carinhosa com que se referiram á nossa terra e pela
justiça feita aos valores que marcam na vida cultural, artistica, scientifica e literaria da Galiza. Esses votos que não reflectem sómente palavras platonicas mas sim a certesa de uma constante colaboração moral e
material dos meus compatriotas e conterraneos, o que por este meio faço
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CARLOS PAZOS JUSTO
publico, confirmam a adesão que já tive ocasião de oferecer, em nome
de ‘Juventud de Galicia’ ao ‘Diario de Noticias’.
Os jornais galegos têm-se ocupado com muita simpatia da Semana Portuguesa na Galiza, o que demonstra existir o desejo ardente duma
maior confraternização galaico-lusitana. A imprensa da minha terra,
que é a expressão periodica mais racial da vitalidade e do sentimento galego, sabe que, procedendo deste modo e abrindo as suas paginas
para dar calor a essa feliz iniciativa, interpreta fielmente os desejos do
nosso povo. Não somos só os que vivemos em Portugal, neste hospitaleiro país, que amamos como uma segunda patria, que sentimos essa
simpatia e esse carinho pelos nossos irmãos portugueses; são os que
vivem tambem na Galiza, porque, uns e outros, orgulhos da nossa patria
espanhol, abrigamos o mesmo espirito de fraternal apreço por Portugal.
Tem uma facil explicaição esta simpatia, porque são com certesa
poucos os que não têm um laço de amizade, de parentesco mais ou menos directo, mais ou menos remoto.
Em Portugal residimos actualmente mais de cinquenta mil espanhois, dos quais calcula-se que setenta e cinco por cento somos filhos
da Galiza. Tambem só na nossa terra vivem uns quinze mil portugueses.
Todavia, as relações de intercambio cultural e economico entre Portugal
e a nossa região têm sido quasi nulas, sem que para isso exista uma explicação satisfatoria. Nem nós conhecemos Portugal, nas suas diversas
manifestações literarias, artitsticas e até industriais e comercias, nem
tão pouco os portugueses em geral têm conhecimento da literatura e da
arte galega, a não ser daqueles trechos de poesias que, como já muito
bem disse o dr. Alfredo Guisado, tem divulgado a ilustre artista D. Amelia Rey Colaço.
A Semana Portuguesa na Galiza, que, em meu entender, deverá
realiza-se nas cidades de Santiago de Compostela, Vigo, Pontevedra,
Coruña, Orense e Lugo, será o inicio duma aproximação mais constante.
Nesse sentido ha muito ainda que fazer. Torna-se necessario
aperfeiçoar as comunicações para mais facilmente se chegar a esse intercambio. Para se falar entre Lisboa e qualquer terra da Galiza, mesmo
A IMAGEM DA GALIZA E DOS GALEGOS EM PORTUGAL ENTRE FINS DO SÉCULO XIX E
PRIMEIRAS DÉCADAS DO XX: DO IMAGOTIPO NEGATIVO AO IMAGOTIPO DE AFINIDADE
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com a praça fronteiriça de Tuy, ainda é necessario comunicar-se por via
Madrid; tambem seria necessario estabelecer-se comboios rápidos com
carruagens-leitos para facilitar a viagem da Galiza através de Portugal
para Sevilha e vice-versa. A construção de uma ponte sobre o Minho que
unisse directamente Monção e Salvatierra é tambem uma iniciativa que,
além de fomentar o desenvolvimento das povoações fronteiriças, muito
facilitaria o desenvolvimento do turismo entre os dois países.
Não menos importante a necessidade que existe de que os jornais
portugueses possam ser lidos (o que não acontece actualmente) em qualquer localidade da Galiza, porque seriam muitos os seus leitores que, desejando estar ao facto da vida portuguesa para ‘matar saudades’ da terra
onde bastantes deles passaram a sua juventude e se orgulham por terem
contribuido com as sua energias para o desenvolvimento do comercio e
da industria portuguesa, lhes interessa tambem informar-se das cotações
dos fundos publicos portugueses, pois não deve desconhecer-se que
poucas são as vilas e freguesias galegas onde não existam possuidores
desse valores (Diário de Notícias, 1/03/1929, p. 1).
Não é, pois, dificil esperar que, com todos estes factores, prova ineludivel da amizade galaico-portuguesa, a Semana Portuguesa na
Galiza ha de encontrar, por parte de todos nós, a mais franca e decidida
cooperação e acolhimento.
Ao cumprir este grato dever de tornar publico os votos de simpatia e apoio da Sociedade a que presido, estou convencido de que ao
‘Diario de Noticias’ não faltará a necessaria colaboração que esta iniciativa se realize com o maior explendor
Antonio Fresco Conde, presidente de Juventud de Galicia.
Antonio Fresco Conde, “A Semana Portuguesa na Galiza.
Como a nossa iniciativa é acolhida pela Sociedade ‘Juventud de Galicia’” in Diário de Notícias, 1/03/1929, p. 1 (itálicos nossos).
VEREDAS 16 (Santiago de Compostela, 2011), pp. 71-102
Mário de Sá-Carneiro:
doença e criatividade
ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
Resumo:
O poeta Mário de Sá-Carneiro (1890-1916), co-editor, com Fernando Pessoa, da
Revista Orpheu – marco do primeiro modernismo português –, é autor de uma obra
relativamente extensa para o exíguo período em que foi produzida. Suicida aos 26
anos, escreveu poesia, contos, dramas e uma novela, quase sempre com um enfoque
autobiográfico e autoficcional. Grande parte do conteúdo de sua literatura lida com o
tema do espelho de maneira narcisista, perseguindo a própria imagem ao extremo da
autodestruição. Neste ensaio, buscamos refletir, com um olhar investido da perspectiva
médica, sobre sua escrita confessional: que se manifesta, em qualquer dos gêneros que
utilizou para se expressar, como a crônica de uma morte anunciada, literatura monotemática sobre o eu cindido e motivada pela pulsão tanatológica.
Palavras-chave: Mário de Sá-Carneiro; literatura confessional; autobiografia; depressão; suicídio.
Abstract:
The poet Mário de Sá Carneiro (1890-1916), co-editor, with Fernando Pessoa, of the
journal Orpheu –high-light of the early Portuguese Modernism- is the author of a
relatively large work, considering the short time of its production. Before committing
suicide at the age of 26, he wrote poetry, short stories, plays and a novel, most of the
time under an autobiographical or auto-fictional approach. A great part of his literature
deals with the theme of Narcissus’ mirror, seeking his own image to the point of self-destruction. In this essay, we will try to reflect, through a medical perspective, over
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
his confessional writing. We will take under considerations any of the genres he used
to express this idea as the chronicle of a death foretold in the shape of a monothematic
literature about the divided self motivated by a thanatological urge.
Key words: Mário de Sá Carneiro, confessional literature, autobiography, depression,
suicide
Não há homens normais em si próprios; há apenas homens normais nas
suas relações com os outros. O indivíduo que tem o instinto da sua coexistência com os outros: esse é o indivíduo normal. O instinto de imitação é uma instituição da normalidade. Há uma exceção a esta regra,
que é a dos homens de gênio, através dos quais as sociedades operam
as suas transformações. Os homens de gênio são, de fato, anormais.
Pasme-se de que alguém contestasse a morbidez, a anormalidade do
homem de gênio – núcleo acertado de tantos desacertos de psiquiatras
precipitados.
António Mora
Desistamos. A nenhuma parte a minha ânsia me levará.
Pra que hei-de então andar aos tombos, numa inútil correria?
Tenham dó de mim. Côa breca! Levem-me pra enfermaria –
Isto é: pra um quarto particular, que o meu pai pagará.
Justo. Um quarto de hospital – higiênico, todo branco, moderno e tranqüilo;
Em Paris, é preferível – por causa da legenda...
Daqui a vinte anos a minha literatura talvez se entenda –
E depois estar maluquinho em Paris, fica bem, tem certo estilo...
Mário de Sá-Carneiro, “Caranguejola
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO: DOENÇA E CRIATIVIDADE
73
1. Da psicopatologia e sua relação com a literatura
Henry Wallis (1856). Retrato do poeta romântico Thomas
Chatterton, que se suicidou com arsênico
“Oh! Não me odeies, não! /Eu te amo ainda, /Como do peito a
aspiração infinda/ Que me influi o viver, /E como a nuvem de azulado
incenso; /Como eu amo esse afeto único, imenso /Que me fará morrer!” – nestes versos de Álvares de Azevedo, poeta romântico brasileiro
precocemente falecido, vítima da tuberculose aos 21 anos, evoca-se a
figura trágica de outro jovem bardo, o inglês Thomas Chatterton, que se
suicidou aos 18 anos. O dramaturgo francês Alfred de Vigny escreveu o
drama Chatterton, no qual dá voz ao lamento do poeta, emblemático de
toda uma geração: “Ó morte, anjo da libertação, como tua paz é doce!
Eu bem tinha razão de te adorar, mas não tinha a força de te conquistar.
Eu sei que teus passos serão lentos e seguros. Vê anjo severo, como
subtrairei a todos o traço de minha presença sobre a terra...”. Tipicamente romântico, esse lamento traduz a essência deste estilo que se caracterizou pelo culto ao amor impossível e à autodestruição como forma
de fuga da realidade. Desde o seu aparecimento em meados do século
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
XVIII, com o emblemático romance Os sofrimentos do jovem Werther,
de Goethe (1774), o Romantismo ceifou muitas vidas, particularmente
entre os artistas “incompreendidos”, de vida boêmia e descuidada. Só na
Alemanha, trinta mil suicídios foram atribuídos à influência da leitura
desta obra.
Com o refluxo dos autores ingleses trazidos pelos pré-românticos
alemães, sobrevém na Europa, com ampla repercussão no mundo ocidental, uma arte mergulhada em paradigmas incomuns. A fantasia poética apresentava componentes mórbidos, mergulhando numa ambiência
noturna carregada de misticismo, satanismo e ritualismo. Incentivava-se
a visão depressiva, sarcástica e alienada da vida, que só poderia conduzir à melancolia, ao pessimismo e ao desepero. Tudo um tanto artificial,
se considerarmos que os seus agentes eram na maioria jovens recém-saídos da adolescência, muitos deles realmente vitimados pela doença da
moda, a tísica, que também predispunha a esses estados de espírito. Mas
se o suicídio encontrou no romantismo um momento histórico propício,
também não deixou de existir depois dele. Não por acaso Albert Camus
escreveu em seu célebre ensaio O mito de Sísifo (1942): “O suicídio é a
grande questão filosófica de nosso tempo. Decidir se a vida merece ou
não ser vivida é responder a uma pergunta fundamental da filosofia”.
Suicídio, do latim sui (próprio) e caedere (matar), é o ato intencional de matar a si mesmo. O suicídio é um fenômeno paradoxal
que desafia não só as religiões, mas várias ciências, como a filosofia, a
psicologia, o direito, a psiquiatria, a bioética. A visão predominante da
medicina moderna é a de que o suicídio é um problema de saúde mental,
associado a fatores psicológicos, como a dificuldade ou a impotência em
lidar com a depressão, com o medo e com outros transtornos mentais e
emocionais.
Não será possível um estudo da psicopatologia do fenômeno
sem que haja um reconhecimento da existência da doença mental. Esta
questão, embora possa parecer, não é tão absurda, sobretudo face a algumas correntes modernas: “Dizer que a esquizofrenia é uma ‘situação de
crise microsocial’, ou que a loucura é sempre uma ‘viagem que liberta
e enriquece a pessoa’, representam tentativas de negar o conceito da
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO: DOENÇA E CRIATIVIDADE
75
doença. O entusiasmo por esta tirania retórica é tanto, a ponto de alguns
de seus defensores não titubearem em afirmar que ‘não há a nenhuma evidência inequívoca para apoiar a inclusão da esquizofrenia como
entidade mórbida no campo da nosologia médica’. Talvez devêssemos
recuar uns quatrocentos anos e incluir esses percalços emocionais na
esfera da demonologia, esquecendo de vez toda esta história de neurotransmissores e neuroreceptores”.1
O psiquiatra G. J. Ballone, autor dessas observações, considera
a antipsiquiatria2 tão absurda quanto seria a extinção sumária dos hospitais psiquiátricos como forma de eliminar de vez os doentes mentais:
“Seria o mesmo que propor a anticardiologia para eliminar os cardiopatas, ou a extinção de todas as maternidades para controlar, definitivamente, a natalidade”. O gérmen da antipsiquiatria, porém, parece tão
antigo quanto a própria especialidade, insinuando-se até na literatura
brasileira do século XIX, na famosa novela O alienista, de Machado de
Assis, que dá voz à disseminada suspeita intelectual quanto à validade
dos conhecimentos disponíveis sobre a doença mental, bem como quanto à operacionalidade das ações terapêuticas propostas.
Cientista de notoriedade internacional, o Doutor Simão Bacamarte monta um centro de pesquisas, a Casa Verde, destinado ao estudo
e classificação das formas de doença mental. Pretende separar o reino
da loucura do reino da sanidade, através da identificação de um conceito
de normalidade que o permita levar a cabo a seleção dos doentes. Gradualmente, porém, vai observando que as “esquisitices” são tantas e tão
particulares na população, que ninguém se conforma inteiramente com
os seus critérios normativos, o que o leva a internar todos os habitantes
1 G.J. Ballone. Diagnóstico psiquiátrico, disponível em www.psiqweb.med.br, revisto em 2005.
2 Antipsiquiatria é um termo que se refere a uma coleção de movimentos que visam a criticar as teorias e práticas fundamentais da psiquiatria tradicional. Críticas comuns são: que a
psiquiatria aplica conceitos e instrumentos médicos de modo inapropriado à mente e à sociedade; que ela frequentemente trata pacientes contra a vontade; que ela inapropriadamente
exclui outras abordagens à doença e ao sofrimento mental; que sua integridade médica e ética
é comprometida por ligações com a indústria farmacêutica e com companhias de seguro; que
ela usa um sistema de diagnóstico categorial (por exemplo, Manual diagnóstico e estatístico
de desordens mentais) que se acusa de estigmatizar pacientes e de ser mal-fundamentado
científica e clinicamente; e que o sistema psiquiátrico é vivido por muitos de seus pacientes
como humilhante e controlador.
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
da cidade. O hospício é a Casa do Poder, e Machado de Assis sabia
disso muito antes das teorias de Lacan e das teses de Foucault. Ciente
da falha de seu método, o doutor Bacamarte acaba concluindo que o
único verdadeiro louco da história é ele mesmo, libertando os internos e
fechando-se na Casa Verde para morrer em poucos dias. O Dr. Ballone
provavelmente diria, a respeito do assunto, “que não se pode matar o
vírus da má utilização social da psiquiatria propondo a eutanásia desta
área da ciência”. A existência de “doutores Bacamarte” não pode ser
aventada como justificativa para a condenação sumária das Casas Verdes, nem para a alegação da inexistência da doença e do sofrimento em
Itaguaí ou seja lá onde for.
Uma das peculiaridades da psicopatologia é o duplo aspecto com
que os distúrbios psíquicos se apresentam: as alterações quantitativas e as
alterações qualitativas. Na obstetrícia, por exemplo, observamos apenas
alterações qualitativas: a mulher está grávida ou não está grávida. Também na dermatologia, a pele está íntegra ou lesada, da mesma forma na
ortopedia, na reumatologia, na neurologia e assim por diante. O paciente
psiquiátrico, por sua vez, pode apresentar uma alteração na qualidade do
ser, ao lado de uma alteração na quantidade do fenômeno psicopatológico. Desta forma, as alterações psicopatológicas ou os desvios da normalidade acontecem tanto do ponto de vista qualitativo como quantitativo,
frequentemente ambos e simultaneamente.
A angústia e a depressão, por exemplo, são acontecimentos psíquicos experimentados por todos indivíduos da espécie humana em
maior ou menor grau, ao menos em algum momento da vida. Porém,
em algumas situações estes sentimentos podem aparecer em quantidade
que ultrapassa os limites considerados normais. Embora todos tenhamos
experimentado a angústia e a depressão, a partir de algum limite pouco
preciso tais sintomas passam a ser considerados patológicos, tanto quanto passam a produzir extremo sofrimento. Está aí o aspecto quantitativo.
Nestes casos, a polêmica entre as várias tendências reside na delimitação dos limites quantitativos entre o normal e o patológico; trata-se de
um determinado ponto além do qual o fenômeno passa a ser considerado
mórbido e patológico.
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO: DOENÇA E CRIATIVIDADE
77
Talvez por isso, como ensina Georges Canguilhem, fosse mais
adequado pensarmos no não-normal e no patológico ao invés de tentarmos, como o Doutor Bacamarte, delimitar o normal: “No passado, todas
as pessoas que tentaram construir uma ciência do normal fracassaram,
muitas vezes de modo ridículo. Gostaríamos de terminar essas novas
reflexões sobre o normal e o patológico esboçando uma patologia paradoxal do homem normal, mostrando que a consciência da normalidade
biológica inclui a relação com a doença, o recurso à doença, como a
única pedra de toque que essa consciência reconhece e, portanto, exige. ... Por doença do homem normal deve-se compreender o distúrbio
que, com o tempo, se origina da permanência do estado normal, da uniformidade incorruptível do normal, a doença que nasce da privação de
doenças, de uma existência quase incompatível com a doença.” (Canguilhem, 2010, p. 247).
2. Da autoficção como anamnese da alma
2. 1. Autoficção: a escrita de si
Em seu livro Psicanálise e literatura, Jean Bellemin-Noël critica
um impulso muito comum nas abordagens interdisciplinares da literatura: tratá-la como “o reflexo, o traço do autor, o que equivale a considerá-la uma ruína, um resto, um resíduo, como nascida de um fracasso”. Segundo ele, “cada livro publicado acompanhado de uma assinatura (que
não passa de um endereço para onde enviar cumprimentos ou insultos)
é o início de um sistema de ecos com outros textos; e, nessa liturgia de
agrupamento, o oficiante é o leitor, sem ter que medir-se com o autor,
referir-se a outra coisa que não seja o texto entre outros, colocado nesse
instante sob o foco de uma irradiação”. (Bellemin-Noël, 1978, p. 78).
Esses comentários foram escritos no auge do estruturalismo, direcionamento da crítica literária que, fazendo frente ao imanentismo e ao biografismo anteriores, pretendia conferir aos estudos literários um caráter
“científico”, isolando o texto de todas as suas relações sociais, reduzindo o seu produtor a um mero “endereço” (e logo proclamando a morte
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
do autor) e transferindo a responsabilidade pelo seu significado para
o “leitor”: ainda não um leitor qualquer, mas o especialista, o crítico
literário, que se apropriava assim da obra alheia com a mesma arrogância com que certos médicos se apropriam do corpo de seu paciente e o
submetem ao poder e à determinação de seus discursos, interpretações,
intervenções e prognósticos.
Feita essa concessão à academia, Noël insinua uma dúvida: “Parece que só existe um caso em que é necessário extrapolar do homem:
quando o texto se coloca em cena como (re)presentação deste homem;
e isso se chama autobiografia.” E avança, cautelosamente: “Também
não assumiríamos uma fórmula como ‘a autobiografia pertence à psicobiografia’, mesmo que acrescentássemos ‘e ela só’ (mas nunca, bem
entendido, ‘e a ela só’). De qualquer maneira, parece evidente que a história de um homem feita por ele mesmo implica o questionamento desse
homem naquilo que escreveu a seu respeito, quer isso seja verdadeiro
ou falso, elogioso ou depreciativo, etc. Quando se trata de uma obra, ou
de um conjunto de obras autobiográficas, o apelo aos dados do registro
civil e da história mostra-se legítimo se desejarmos entrar no jogo instaurado pelo autor” (1978, p. 79).
Noël evoca ainda o “livro decisivo” de Philippe Lejeune, O pacto autobiográfico (1975), que busca definir a autobiografia como um
texto cujo contrato de leitura é diferente do contrato da ficção: “A autobiografia é a narração retrospectiva em prosa3 que uma pessoa real faz
da sua própria vida, quando põe a tônica na sua vida individual, e em
3 “Em O pacto autobiográfico afirmei – heresia! – que a autobiografia era ‘em prosa’, o que
em 99% dos casos ela é de fato, mas não certamente de direito. Foi inútil, depois disso, tentar me explicar longamente no mesmo volume (no capítulo ‘Michel Leiris, Autobiografia e
Poesia’) ou voltar ao tema para apaziguar as coisas em 1986, em Moi aussi. Quase 50 anos
depois, num colóquio em Marselha (2000), uma mesa-redonda foi dedicada à questão: ‘O autobiográfico na poesia contemporânea: uma renovação?’. ... Chega-se mais perto do segredo
de um poema quando o poeta explica sua gênese, escreve a autobiografia de sua inspiração
ou a de seu trabalho? Este é o sonho de certos leitores: colher confidências, entrar no ateliê
do artista – como se não fosse neles, leitores, que se fizesse a alquimia, como se a poesia
pudesse ser explicada pelas circunstancias ou desmontada em uma série de engrenagens ou
de receitas, como se palavras alheias ao poema pudessem fornecer respostas às palavras do
poema... Muita gente ronda em torno da poesia para que ela conte a sua história e seja obrigada a confessar-se: o próprio poeta por vezes, seus leitores e exegetas frequentemente. Mas
a poesia escapa da biografia e foge na ponta dos pés. (Lejeune, 2008, p. 99)
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO: DOENÇA E CRIATIVIDADE
79
particular na história da sua personalidade.” Mas a questão autobiográfica, para Lejeune, vai-se tornando complexa ao longo dos anos (Lejeune,
2003, p. 41):
A promessa de dizer a verdade, a distinção entre verdade e mentira,
está na base de todas as relações sociais. Sem dúvida que a verdade é
inatingível, sobretudo quando se trata da vida humana, mas o desejo
de a alcançar define um campo de discurso e atos de conhecimento,
um certo tipo de relações humanas que nada têm de ilusório. ... Quanto
ao fato de que a identidade individual, na escrita como na vida, passa
pela narrativa, isso não quer de modo algum dizer que ela seja ficção.
Pondo-me por escrito, eu apenas prolongo o trabalho de criação de
identidade narrativa (como diz Paul Ricoeur) em que consiste toda e
qualquer vida. Claro que, ao tentar ver-me melhor, continuo a criar-me,
passo a limpo os rascunhos da minha identidade, e esse movimento vai
provisoriamente estilizá-los ou simplificá-los. Mas não estou a brincar
à invenção de mim mesmo. Pelo contrário, ao tomar a senda da narrativa dou fiel à minha verdade: todos os homens que andam na rua são
homens-narrativa, é por isso que se aguentam de pé. Se a identidade é
um imaginário, a autobiografia que se cola a esse imaginário está do
lado da verdade. Isso não tem qualquer relação com o jogo deliberado
da ficção.
Lejeune afirma que um autobiógrafo não é aquele que diz a verdade sobre a sua vida, mas alguém que diz que a diz. Em seu estudo
original, Lejeune deu grande importância aos nomes próprios, ancorando a noção do “pacto” ao compromisso que o autor estabelecia com o
seu leitor ao reconhecer sua narração como não mediada pela intenção
de fantasiar. Isto levou outros estudiosos, como Serge Doubrovsky, a se
perguntar se nas situações fronteiriças, “as mais apaixonantes” – como
as autobiografias em terceira pessoa, as memórias imaginadas –, o pacto
com o desejo de narrar a verdade de uma vida estaria menos presente
do que quando o autor se apresenta ao leitor sem mediações? Não seria
todo e qualquer impulso autobiográfico uma confissão da impossibilidade do sujeito de alcançar a sua verdade? E não seria a mediação uma for-
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
ma de facilitar, e não de dificultar, o acesso ao que possa haver de mais
verdadeiro, e talvez de mais oculto – inconfessável – na vida de alguém?
Doubrovsky cunhou o termo “autoficção” para dar conta dessas
questões, quando em 1977 lançou na França o seu livro Fils, de cunho
autobiográfico, em plena atmosfera do objetivismo radical e descritivista do nouveau-roman. Confrontava, assim, os escritores experimentalistas e os teóricos cientificistas da literatura, cada vez mais empenhados
em se esquivar das “escritas do eu”. Na opinião de Lejeune, porém, “os
desafetos da autobiografia são, frequentemente, tanto no meio acadêmico como no literário, os guardiães da alta cultura, da “verdadeira literatura”. Assim, o termo ‘autoficção’ passou a ser usado com outros fins:
para certos escritores, tornou-se um meio de realizar o desejo de narrar
a experiência vivida, sem o ônus da incômoda etiqueta ‘autobiografia’”.
(Lejeune, 2008, p.7).
Com os estudos culturais, que passaram a garimpar as escritas
marginalizadas dos cânones oficiais, sobretudo aquelas resultantes de
memórias pessoais ou coletivas de traumas psicológicos, situações de
conflitos sociais, tragédias ou catástrofes, a figura do autor foi de certa
forma restabelecida e o gênero confessional reabilitado no âmbito da
crítica literária. Em sua tese de doutorado “Escritas de si, escritas do
outro: autoficção e etnografia na narrativa latino-americana contemporânea”, Diana Klinger identifica duas problemáticas estéticas ligadas
ao pós-colonialismo, que atravessariam a literatura brasileira e latino-americana contemporânea: “o retorno do autor” e a “virada etnográfica” (Klinger, 2006, [7]):
Nossa hipótese é que o cruzamento de ambas as perspectivas em alguns romances atuais permite pensar as múltiplas relações entre a literatura e a antropologia em particular, e entre a literatura e a epistemologia num sentido mais amplo. Essas ficções apresentam pontos
de contato com as premissas da chamada antropologia pós-moderna,
enquanto proposta de reconsiderar o lugar do autor e da linguagem
na representação do outro culturalmente afastado. Nesses romances, a
representação da alteridade se inscreve num paradoxo, entre a herme-
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO: DOENÇA E CRIATIVIDADE
81
nêutica do outro e a tautologia de uma linguagem que se dobra sobre si
própria. Na auto-reflexão sobre o conceito de representação, que também caracteriza um momento recente das disciplinas humanísticas, a
narrativa contemporânea se situa numa posição ambivalente entre a
ficção e a não-ficção”.
O caso de Mário de Sá-Carneiro, obviamente, não encontra respaldo nas perspectivas mais atualizadas sobre a autoficção, por se tratar
de um autor português do início do século XX, proveniente de família
rica e apreciador das vantagens que lhe conferia a sua condição privilegiada – seja a pessoal, seja a de origem –, e cuja obra estaria mais
próxima do conceito de alienação política e de estetização vazia do que
de um qualquer “engajamento”. O seu quinhão de realidade, porém, reside no caráter verdadeiramente “diagnóstico” que se pode atribuir ao
confessionalismo que permeia tanto a sua narrativa – francamente “autoficcional” – quanto a sua poesia.
Isto se considerarmos que o principal e talvez único tema de sua
produção é o próprio “eu” – mas não o “eu” interior, emocional ou espiritual, dos românticos e dos decadentistas. Seu narcisismo parece mais
sintonizado com uma problemática pós-moderna, fincada no corpo, ou
na rejeição patológica de sua auto-imagem, de sua aparência física robusta e corada quando comparada a um ideal de beleza padronizado para
o artista de sua época – preso a um corpo lânguido e consumido, frágil
e esquálido –, que exerceu no imaginário deste jovem aspirante a poeta
um efeito tão devastador quanto o padrão das modelos fotográficas e de
passarela parece exercer nas jovens anoréxicas do século XXI. Se isto
configura uma “doença”, um “desvio da ‘normalidade’, uma condição
mórbida com alguns parâmetros semelhantes e recorrentes, não o podemos e nem tencionamos afirmar, sobretudo no âmbito de uma investigação literária – quando talvez a abordagem mais indicada fosse a médica,
ou a multidisciplinar.
No entanto, pretendemos aqui levantar brevemente essa questão,
identificando os “sintomas” dessa nossa hipótese nos textos deste autor
e refletindo a respeito das causas das representações mentais do sujeito
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
sobre o seu corpo na contemporaneidade, época em que os discursos
sobre a “alteridade” social, étnica e até especieísta estão tão em voga
que parecem ignorar quando a “outridade” radical, a mais devastadora
e aniquiladora, se manifesta no “mesmo”, no em-si de cada um: quando
o indivíduo é incapaz de se identificar com uma coletividade qualquer
porque percebe que a construção dessa identidade se baseia na exigência
de uma impossível conformidade de seu suporte físico com os modelos
culturais vigentes, investidos em modelos corporais: seja de juventude,
de silhueta, de beleza ou de saúde.
Tão ou mais excludente que a diáspora social, a diáspora da aparência corporal é vivida no desespero da solidão e da incomunicabilidade, e pode conduzir ao suicídio. Como em outras situações traumáticas,
a literatura parece exercer uma função catártica, constituindo-se como
uma válvula de escape a essa reclusão do sujeito em si; e embora apresente um potencial francamente terapêutico em muitos casos – potencial
este oficialmente não reconhecido pela medicina –, elabora-se como um
documento testemunhal, provavelmente de valor diagnóstico, mesmo
quando se revela inútil para compensar o drama da incompatibilidade
corpo-alma que se manifesta nesses casos.
2. 2. Anamnese: a escrita do outro
Anamnese (do grego ana, ‘trazer de novo’ e mnesis, ‘memória’) é uma entrevista realizada pelo profissional de saúde com o seu
paciente, com a intenção de deflagrar uma investigação sobre a possível
existência de uma doença. Durante essa entrevista, o médico anota as
queixas apresentadas, e procura relacioná-las com as características das
doenças conhecidas e catalogadas pela ciência, de modo a facilitar ou a
possibilitar um diagnóstico. Uma anamnese, como qualquer outro tipo
de entrevista, possui formas ou técnicas corretas de ser aplicada. Após a
anamnese é realizado o exame físico, onde se procuram os sinais e sintomas da doença. Até pouco tempo, a anamnese, quando bem conduzida,
era responsável por 85% do diagnóstico na clínica médica, liberando
10% para o exame clínico (físico) e apenas 5% para os exames labora-
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO: DOENÇA E CRIATIVIDADE
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toriais ou complementares. No entanto, como as circunstâncias da entrevista clínica vêm mudando vertiginosamente na atualidade, cada vez
menos tempo é reservado para a conversa com o paciente, transferindo-se a responsabilidade do exame físico, por outro lado, para a crescente
precisão dos aparatos de investigação laboratorial.
A anamnese é, portanto, um gênero narrativo ameaçado de extinção, por assim dizer, na medicina pós-moderna, cada vez mais mecanizada. O entendimento do que seja a relação médico-paciente atravessa
um momento dramático, pela desumanização dos procedimentos e pela
institucionalização de critérios de normalidade e de saúde muitas vezes
absolutistas, impermeáveis às razões, demandas e desejos dos próprios
sujeitos sofredores. Esse contexto leva a situações extremas de sequestro dos corpos humanos, em vida, pela ciência e pela tecnologia, cujos
bons propósitos nem sempre justificam os meios e as técnicas empregadas para atingir um alegado e supostamente inquestionável fim: o restabelecimento da “saúde”, como se este conceito fosse um lugar-comum
ou um ponto pacífico na sociedade.
Para o médico e escritor Moacyr Scliar, “a anamnese é um texto
compreensivelmente abreviado, redigido em linguagem técnica, portanto neutra, seguindo um roteiro pré-estabelecido cujo objetivo básico
é conduzir a um diagnóstico. Ocasionalmente, as palavras do paciente
podem ser transcritas, mas isto acontece quando são demasiado chamativas ou bizarras – e aí estarão acompanhadas do vocábulo latino sic
(assim, assim mesmo). A redação será correta, mas jamais literária; não
se trata de uma ‘obra aberta’, mas sim de um processo de comunicação
auto-explicativo”.
Segundo o clínico William Osler, na anamnese o paciente é que
deve funcionar como um texto. Num seminal ensaio publicado no início
deste século, Osler sugeriu aos professores de medicina que afastassem
os alunos dos livros e os levassem ao leito do enfermo. Naquele momento, tal posição era compreensível e necessária; tratava-se de evitar
uma predominância da teoria sobre a prática, uma cultura médica livresca. Mas o pêndulo se inclinou demasiadamente na direção oposta. Por
exemplo: ao formato clássico da anamnese foi proposta uma modifica-
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ção, conhecida como prontuário orientado a problemas, que organiza
o relato médico e os documentos a ele anexos de forma racional, mas
que inevitavelmente acentua a distância e a diferença entre a anamnese
convencional e os textos narrativos da doença, como os de Mário de Sá-Carneiro e tantos outros.
Para Scliar, a questão que se coloca é: “como superar tal hiato na
prática da medicina e no ensino médico?”. E adianta: “Nos últimos anos,
vários autores (Brody, 1988; Kleinman, 1988; Coles, 1989) propuseram
a inclusão de textos literários no currículo médico, dentro das chamadas
Humanidades Médicas, área que inclui história da medicina, ética médica, antropologia e sociologia médicas, comunicação médica. Kathryn
M. Hunter, que coordena esta área na Northwestern University Medical
School (USA), sintetiza as razões para a introdução dos textos literários
no currículo médico (Hunter, 1991), demonstrando que a grande literatura alarga o campo de visão dos profissionais, situando a doença no
contexto maior da existência e dos valores humanos, revelando de forma
privilegiada – esclarecedora mas sempre emocionante – os bastidores
da doença. Pode assim colaborar para diminuir a distância entre as duas
culturas, e transformá-las em uma cultura só, que é a cultura do ser humano em sua totalidade”.(Scliar, 2000, p. 245).
Em seu livro The Wounded Storyteller: Body, Illness and Ethics,
Arthur W. Frank (1995, p. 10) relaciona a prática da medicina moderna
às posturas do colonialismo:
A colonização foi central para a realização da medicina moderna e
orientou a construção de seus discursos. Mas o sujeito doente na era
pós-colonial começa a cobrar o seu lugar nas narrativas médicas. O
pós-colonialismo, na sua forma mais generalizada, é a demanda do
sujeito oprimido para falar ao invés de ser falado, para representar a
si mesmo ao invés de ser representado; escapando, na pior das hipóteses, de ser completamente apagado pelos discursos do poder. O doente
pós-colonial quer assumir a responsabilidade por aquilo que significa
a doença em sua vida. Recusando-se a ser reduzido a mero “material
clínico” na construção do texto médico, o doente na atualidade começa
a reivindicar a sua própria voz.
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Neste contexto, as escritas confessionais e o gênero literário autobiográfico, com suas várias manifestações, oferecem novas perspectivas de leitura, talvez mais pragmáticas, incluindo a possibilidade de
sua utilização na prática médica, como documentos importantes para a
construção menos arrogante e dogmática dessa “escrita do outro” (mesmo com propósitos clínicos específicos) que é a anamnese médica –
admitindo-se, naturalmente, que alguma anamnese médica consiga sobreviver à invasão perfeccionista das máquinas no contexto da medicina
contemporânea.
A narrativa da doença, escrita pelo próprio punho do doente,
amadorística ou profissionalmente, com ou sem qualidade estética,
pode, segundo pesquisas recentes como as da médica e crítica literária
Rita Charon (2006), contribuir infinitamente não só para uma compreensão mais ampla do sujeito doente como um todo, mas para um redimensionamento filosófico, com importantes mudanças pragmáticas e
até mesmo paradigmáticas no território da medicina, sobre o significado
dos diversos estágios que o ser, em seu corpo, pode atravessar durante a
vida: seus percalços, acidentes, tropeços e alterações até a intercorrência
da morte, incluindo uma reflexão mais abrangente e necessária sobre a
própria morte.
Quando essa “narrativa da doença” é produzida com qualidade
estética, porém, ela adquire indubitavelmente um valor diferenciado,
pela peculiaríssima capacidade que o artista apresenta de capturar a realidade e descrevê-la de maneira vívida, rica e repleta de pormenores
significativos. No artigo citado, Moacyr Scliar explora esta possibilidade através da análise do livro de José Cardoso Pires, De profundis,
valsa lenta, em que o autor descreve a afasia pela qual passou em consequência de um acidente vascular cerebral. Scliar mostra em sua análise
as diferenças que se observam no enfoque da doença por escritores e
por médicos, mas sobretudo por narradores implicados no problema,
narradores doentes, sejam eles leigos ou profissionais. A autoridade da
experiência é valorizada aqui em detrimento da exclusividade da importância muitas vezes conferida ao discurso científico, tanto em termos de
validade diagnóstica como de orientação terapêutica.
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
No caso das narrativas e poemas de Mário de Sá-Carneiro, não
se dispõe de uma leitura médica (uma “anamnese”) com esse enfoque
específico para ser referida ou comentada no âmbito deste trabalho. A
fortuna crítica do autor inclui, obviamente, diversos estudos de natureza
psicanalítica, porém nenhum orientado no sentido de considerar a importância de seu texto como uma “narrativa da doença”, explorando as
possibilidades de se relacionar o seu sofrimento – que culmina com o
suicídio – como diretamente ligado à infeliz perseguição de um referente identitário essencialmente físico, talvez comportamental: um modelo
artificial determinado pela moda, pela busca da fama e da legitimidade
artística na aparência, na máscara – e não na representação, na qualidade
de sua produção. No caso de Mário de Sá-Carneiro, a sugestão do Dr.
William Osler, de que “o paciente deve funcionar como um texto”, poderia ser literalmente considerada.
No entanto, o corpo, para Mário de Sá-Carneiro, sempre foi inatingível. Seu corpo real, que ele via como “obeso”, era negado, rejeitado e agredido em sua poesia, alvo de um terrível bullying pessoal. E
seu corpo ideal, projetado como um clone dos protótipos forjados como
“belos” pelos critérios de seu tempo, era transferido para “outros” – os
protagonistas de suas narrativas, invejados pelo narrador ao extremo do
crime – que constitui o tema de sua única novela de fôlego, a surpreendente Confissão de Lúcio, narrativa de um ex-presidiário sobre a sua
participação no assassinato de um homem belo e bem-sucedido a quem
ele amava como a si mesmo.
É preciso não esquecer que a negação simbólica deste corpo,
transformado em tema de uma substancial obra literária, é inclusive reforçada pelo efetivo desaparecimento do cadáver do poeta após cometer
o suicídio, o que faz sua história real imbricar-se indelevelmente com a
ficção. Desaparecido seu túmulo do cemitério de Pantin, em Paris, seu
corpo jamais foi encontrado ou recuperado, como atestam as suas biografias, num dos maiores mistérios que cercam a história de sua curta
vida. Sobre este corpo tão problemático, ora pesado a ponto de esmagar
o sujeito em vida, ora leve a ponto de desaparecer sem deixar rastro após
a morte, erige-se uma estranha escritura, que oscila entre a autobiografia
e a anamnese, entre a escrita de si em (per)versos, na qual o sujeito se
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rejeita e se recusa; e a “escrita do outro” em entrevista, na qual o sujeito
se duplica e se disfarça, face a face, como em Dr. Jekyll e Mr. Hyde: o
narrador Hyde (o poeta) invejando o protagonista Jekyll (figura de papel
na qual projeta a sua alma), perseguindo-o, descrevendo-o e desejando-o com tamanha luxúria a ponto de destruí-lo pela impossibilidade de se
fundir com ele num único e mesmo ser. Exótica e complexa obra literária na qual se ocultam, talvez, importantes elementos para o estudo e a
compreensão psicopatológica do narcisismo e do suicídio.
3. O eu cindido de Mário de Sá-Carneiro e o valor diagnóstico de sua obra confessional
3.1. O discurso de si em poesia: a rejeição do eu inadequado
Toda a obra poética de Mário de Sá-Carneiro organiza-se segundo o tema da inaceitação de si, da inadequação do sujeito ao seu tempo e
espaço, do desajuste de seu espírito à realidade, seja a do próprio corpo,
seja a da sociedade circundante. Os textos mais emblemáticos desse sintoma foram reunidos no conjunto intitulado Últimos poemas, escritos,
os seis (“Caranguejola”, “´Crise lamentável”, “O fantasma”, “El-rei”,
“Aquele outro” e “Fim”) entre novembro de 1915 e fevereiro de 1916,
pouco antes do suicídio em 26 de abril, quando, às oito da noite, no Hotel de Nice em Paris, toma cinco frascos de arseniato de estricnina. O cenário foi cuidadosamente pensado como numa peça teatral. Sá-Carneiro
vestiu-se a rigor e convidou testemunhas, como o amigo português de
pouca data, José Araújo, que presenciou tudo, e acabou tornando-se o
responsável por todas as derradeiras providências a seu respeito: o enterro, o pagamento das dívidas, a distribuição das posses e a comunicação do acontecido. Curiosamente, as cartas foram endereçadas a Pessoa,
não à família. Há algo de farsesco no episódio, anunciado por diversas
vezes em correspondência de Mário ao amigo em Lisboa, e várias vezes
desmentido.
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Os pouquíssimos conhecidos em Paris relatam a existência de
um relacionamento conturbado com “uma mulher” no período, sobre a
qual nada se sabe. José Araújo comenta apenas que não percebia “se era
amor, simpatia ou ódio; mas desde então ele mudou bastante, vinha ao
escritório apressado, saíamos a um café e então ele, coitado, contava-me
o que se passava: que não podia continuar assim, impossível, impossível, aquela mulher: um mistério, um horror, sempre muito nervoso
(antes tenho que lhe dizer que ele tomava estricnina em grande dose)”.
Outro amigo, Xavier de Carvalho, em texto publicado no Diário de Notícias (3/6/1916), diz que, em visita ao quarto do poeta em Paris, encontrou na mesa de cabeceira “o retrato de sua bem-amada”; e acrescenta
ter ouvido falar num grupo, à porta de um restaurante quase em frente
ao hotel de Sá-Carneiro: “- É um escritor português que se suicidou por
amor”. Para atribuir maior veracidade à hipótese, menciona a presença,
no enterro, “de uma midinette idealmente loira com os olhos cheios de
lágrimas, que atravessou a rua e deitou sobre o caixão o pequeno ramo
de violetas que trazia no corsage de linon branco e cor-de-rosa pálido.
‘– Um poeta que morreu de amor – explicava ela a uma companheira. –
Como eu o teria amado!’”. Impossível não perceber, no detalhismo descritivo, uma tentativa de ficcionalizar, à maneira romântica, o episódio
para os leitores do jornal – o que só contribui para envolver em brumas
e suspeitas a morte do poeta.
As cartas escritas de próprio punho a Pessoa também não colaboram para esclarecer o suposto episódio do envolvimento amoroso. O
tom confuso, literário, sugere uma inversão da existência que passa a ser
experimentada, enquanto realidade, no âmbito da ficção:
E você compreende todo o perigo para mim – para a minha beleza
doentia, para os meus nervos, para a minha alma, para os meus desejos – de ter encontrado alguém que realize esta minha sede de doença
contorcida de incerteza, de mistério, de artifício? ‘Uma de minhas personagens’ – atinge bem todo o perigo? Diga o que pensa. E note: aqui
não há amor, aqui não há afeto. E o desejo é até a mínima prisão: mas
há todo o quebranto – quebranto para mim – que meus versos maus
longinquamente exprimem. Percebe bem o meu caso? Escreva-me –
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suplico-lhe – uma longa carta; e diga se mede bem o perigo, se me
compreende. É um horror, um horror porque é um grifado sortilégio.
Por que é que eu devia encontrar alguém: fui encontrar alguém – ainda
que noutros vértices – igual a mim próprio? Não sei nada. (Carta a
Pessoa de 7/4/1916)
O tom de grande excitação desta e das demais missivas que são
remetidas a Pessoa no mês de abril deste ano fatídico sugerem efetivamente que Mário atravessava uma grave crise psicológica. Como não
temos acesso às respostas de Pessoa, não podemos avaliar o modo como
o amigo terá interpretado tais cartas. No entanto, não podemos ignorar
o quanto Pessoa era dado a sintomas semelhantes de confusão da realidade com a ficção, agravados pelo aparecimento dos heterônimos. As
mistificações eram frequentes em sua vida, como quando simula ser o
seu próprio psiquiatra e escreve para um ex-professor e para ex-colegas
na África do Sul, pedindo informações a seu respeito; ou quando forja o
suicídio do mago Aleister Crowley em Lisboa, um episódio com repercussão na imprensa local e internacional.
O fato é que, a considerar o conteúdo das cartas, Mário vive, de
fato, um relacionamento muito perturbador. A maioria dos estudiosos
tende a atribuir os problemas do poeta à indefinição sexual: uma forte
tendência homoerótica, complicada pelas severas interdições culturais,
morais e legais de sua época, o teriam levado a uma cisão do espírito,
incapaz que era de administrar o desejo e a culpa. Sob essa perspectiva,
esse “alguém igual a mim próprio” seria, muito simplesmente, outro
homem, capaz de despertar seus mais inconfessos instintos, mas incapaz
de ajudá-lo a superar a sua autocrítica, a sua vergonha e o seu medo,
abrindo-lhe uma porta para continuar existindo apesar de sua incorformidade física e emocional ao padrão de normalidade de seu tempo. O
suicídio teria acontecido, portanto, muito antes da cena de ingestão da
dose extrema de estricnina: já estaria previsto no momento mesmo de
sua fraqueza, no momento de sua capitulação ao suposto amante; ou
talvez ainda antes, quando, ao descobrir-se quem era, vislumbrou a inevitabilidade deste momento acontecer em alguma esquina de sua vida:
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Depois, coisa interessante, quando eu medito horas no suicídio, o que
trago disso é um doloroso pesar de ter de morrer forçosamente um dia,
mesmo que não me suicide. (Aliás eu tenho a certeza que esse não
será o meu fim. Como digo no Incesto: ‘os meus amigos podem estar
perfeitamente sossegados’). Mas não falemos mais destas ‘complicações doentias’. (Nos bons tempos de 80, quando Bourget florescia, nos
rapazes de vinte anos o que se estudava eram as ‘complicações sentimentais’ – quer dizer, ‘amorosas’. A nossa geração é mais complicada,
creio, e mais infeliz. A iluminar as suas complicações não existe mesmo uma boca de mulher. Porque somos uma geração superior.) (Carta
a Pessoa, 2/12/1912)
Mais elaborado, evidentemente, é o confessionalismo poético
sobre o problema que o aflige (“o quebranto que meus versos maus longinquamente exprimem”), porém não de todo incompreensível, quando
situado dentro do contexto aqui apresentado. Seu barroquismo retórico
tem o propósito claro de desviar o leitor da obviedade das alusões do
“Fantasma”: aquele que decretou sua sentença de morte no momento
mesmo em que assumiu a sua verdade. Documento trágico que atesta
as limitações a que estão submetidos os discursos humanistas: médico,
jurídico, religioso, científico, etc., de determinadas épocas, capazes, por
exemplo, de diagnosticar a homossexualidade como uma patologia, e
de condená-la como um crime – algo que seria inadmissível, senão em
vinte anos (como supôs, otimista, o poeta: “Daqui a vinte anos a minha
literatura talvez se entenda”), mas pelo menos no decorrer do século à
frente daquele que o sacrificou:
Fantasma
O que farei na vida – o Emigrado
Astral após que fantasiada guerra –
Quando este Oiro por fim cair por terra,
Que ainda é oiro, embora esverdinhado?
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(De que Revolta ou que país fadado?...)
Pobre lisonja, a gaze que me encerra...
- Imaginária e pertinaz, desferra
Que força mágica o meu pasmo aguado?...
A escada é suspeita e perigosa:
Alastra-se uma nódoa duvidosa
Pela alcatifa – os corrimãos partidos...
- Taparam com rodilhas o meu norte,
- As formigas cobriram a minha Sorte,
- Morreram-me meninos nos sentidos...
Daí talvez advenha a ânsia de carnavalizar a própria morte, tão
anunciada, e de espetacularizar o evento do “Fim”, de modo a dar uma
grotesca e indiscutível visibilidade ao seu ser – agora morto – cuja verdade não encontrou espaço de expressão e de vida em seu contexto.
O cenário circense, absurdo, patético, imaginado pelo poeta para o seu
cortejo final, dá a medida da extensão de sua dor, da rejeição sofrida,
do destronamento imposto ao próprio eu em sua última caminhada num
mundo incapaz de acolher a sua existência – a sua autobiografia – senão
como mentira, disfarce, ficção:
Fim
Quando eu morrer batam em latas,
Rompam aos saltos e aos pinotes –
Façam estalar no ar chicotes,
Chamem palhaços e acrobatas.
Que o meu caixão vá sobre um burro
Ajaezado à andaluza:
A um morto nada se recusa,
E eu quero por força ir de burro...
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
2. 2. O discurso do outro em prosa: a construção do duplo
ideal e o efeito terapêutico da literatura
Aquele Outro
O dúbio mascarado – o mentiroso
Afinal, que passou na vida incógnito,
O Rei-lua postiço, o falso atônito –
Bem no fundo, o cobarde rigoroso.
Em vez de Pajem, bobo presunçoso.
Sua alma de neve, asco dum vômito –
Seu ânimo, cantado como indômito,
Um lacaio invertido e pressuroso.
O sem-nervos nem Ânsia - o papa-açorda,
(Seu coração talvez movido a corda...)
Apesar de seus berros ao Ideal.
O raimoso, o corrido, o desleal,
O balofo arrotando Império astral:
O mago sem condão – o Esfinge gorda...
Mário de Sá-Carneiro
Se o subjetivismo confessionalista da poesia de Mário aborda
mais as angústias resultantes de um provável conflito ligado à definição
de sua sexualidade, na prosa ele vai se remeter com mais frequência ao
sentimento de inadequação de sua imagem pessoal à imagem que faz de
um artista. O narrador da maioria de seus contos e de sua única novela
é o “Esfinge-gorda”, o “Rei-lua postiço”, o “Papa-açorda” e todos os
demais apelidos depreciativos que elenca neste poema verdadeiramente
“metalinguístico” intitulado “Aquele Outro”: no qual define a personalidade do Mr. Hyde, o sujeito quase sempre anônimo que percorre as
suas histórias testemunhando as brilhantes ações do “Outro” em que
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se projeta. A menos que o “Outro” seja o próprio Mr. Hyde narrador,
agredido pelo Dr. Jekyll – seu protagonista típico, o poeta belo, magro,
trigueiro, com grandes olheiras maceradas, elegantes vestes negras, e
bem sucedido na vida social e na arte. Mário se coloca no intervalo entre
os dois – na “ponte de tédio” entre o ser que despreza e julga falido em
todos os sentidos, e o ser que projeta como ideal na sua imaginação, com
o qual convive e tem talvez mais intimidade do que com o próprio “ser
real”, a considerar o tipo de vida que levava: filho único, órfão de mãe,
o pai distante na África, frequentemente emigrado na Cidade-Luz em
quartinhos de hotel – cenário que acentuava o contraste com a imagem
que fazia de sua aparência “inadequada” – e mergulhado no absorvente
projeto de se tornar um escritor “famoso”.
Analisar comparativamente a configuração típica deste duplo
narrador-protagonista em sua produção narrativa, de modo a constatar
a semelhança entre eles, demandaria um espaço maior do que dispomos neste ensaio. Ilustrativamente, portanto, citamos alguns contos nos
quais a temática do duplo, associada ao suicídio, é central: “A profecia”,
“Página de um suicida”, “Loucura”, “Ladislau Ventura”, “Asas”, que
poderiam todos ser resumidos no esquemático “Eu-próprio o Outro”,
que prefigura a novela A confissão de Lúcio:
Sou um punhal d’ouro cuja lâmina embotou. A minha alma é esguia –
vibra de se elançar. Só o meu corpo é pesado. Tenho a minh’alma presa
num saguão. Não sou covarde perante o medo. Apenas sou covarde
em face de mim próprio. Ai! Se eu fosse belo!... Envergonho-me, de
grande que me sinto. Sou tão grande que só a mim posso dizer meus
segredos. Nunca tive receios. Tive sempre frio. ...
Hoje encontrei-o pela primeira vez. Foi no Café. De súbito, vi-o à minha frente. O Café estava cheio. Por isso veio sentar-se à minha mesa.
Mas eu não o vi sentar-se. Quando o vi, já ele estava diante de mim.
Ninguém nos apresentara e já conversávamos os dois. Como é belo! E
o ar de triunfo que ilumina o seu rosto esguio, macerado? ... Tombam-lhe os cabelos longos aos anéis. É ruivamente loiro. Tive vontade de
o morder na boca. ... Aquele sim, aquele é que me saberia ser. ... Por
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uma semana desde que o conheço estive sem o ver. Só então pude medir bem o que me liga a ele. Não é afeto, embora chegue a ter desejos
de o beijar. É ódio. Um ódio infinito. Mas um ódio doirado. Por isso
o procuro. E vivo em face dele. Por que é verdade: agora, só vivo em
face dele.
Os meus amigos acham-me muito mudado. Dizem-me que eu tenho
outra voz, outras atitudes, outra expressão fisionômica. Venho para
casa cheio de medo. Olho-me a um espelho...Horror! Descubro no meu
rosto, caricaturizado, o ricto de desdém do seu rosto. Falo alto... E pela
primeira vez me recordo do som da sua voz. Ando no aposento, tremo
todo! Pela primeira vez oiço os seus passos... É preciso curar-me desta
obsessão.
Hoje escrevi algumas páginas. Nestas, acredito. São verdadeiras obras
de arte. Leio-as em voz alta num orgulho de auréola... Mas depressa
me enraiveço. E rasgo-as também. Não são minhas. Se o não tivesse
conhecido, nunca as escreveria... O fim! ... Já não existo. Precipitei-me
nele. Confundi-me. Deixamos de ser nós-dois. Somos um só. Eu bem
o pressentia, era fatal. Ah! Como o odeio!... Foi-me sugando pouco
a pouco. O seu corpo era poroso. Absorveu-me. Já não existo. Desapareci da vida. Enquistei-me dentro dele. O mais doloroso é que ele
não sabe que me absorveu porque não me admirava. Se me admirasse,
seria eu quem o absorveria.
Enfim – o triunfo! Decidi-me! Matá-lo-ei esta noite... quando Ele dormir...
(Mário de Sá-Carneiro, Eu próprio o Outro, in: Céu em fogo. Obra
completa, 1995, pp. 503-512)
Há uma flagrante similaridade entre as novelas de Sá-Carneiro e
de Oscar Wilde, A confissão de Lúcio e O retrato de Dorian Gray, que
trabalham o tema do duplo, da aparência e da auto-imagem. O surpreendente desfecho da primeira parece reeditar a fantasmagoria da segunda,
que transfere o espírito do protagonista para o âmbito da representação
artística, aprisionando-o num quadro que registra a sua decadência física e moral enquanto o seu corpo permanece incólume. Por sua vez,
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a própria história de Wilde já evoca um conto de Edgar Allan Poe, “O
retrato oval”, onde um pintor absorve a alma de sua jovem e bela esposa
na pintura que executa febrilmente até a sua consumação, numa total
aniquilação do ser real pelo spectrum (fantasma; espetáculo) da imagem.
Curioso é perceber como, neste conto, Poe antecipa uma discussão que seria levada a cabo por Roland Barthes em A câmara clara.
Partindo da busca do rosto de sua mãe, recentemente falecida, num álbum de fotografias, o autor afirma “encontrá-la” apenas numa imagem
antiga, quando tinha cinco anos e provavelmente uma fisionomia muito
diferente daquela que ele conhecera. O que ele identifica naquela fotografia, porém, é o que vem a chamar de punctum, numa das mais famosas e sentidas teorias sobre a fotografia existentes: uma ferida empática,
a percepção de uma “aura”, talvez, capturada num gesto, expressão ou
essência que evocam, num observador afetivamente mobilizado (spectator), um reconhecimento distinto daquele que se dá pelo acesso intelectual ao studium: ou ao conjunto de conhecimentos e dados técnicos
sobre o contexto que envolve o modelo cuja mancha se imprime no
negativo da fotografia.
No conto de Poe há um observador interessado, que descobre
o velho quadro no interior de um castelo. Sua primeira impressão é a
do punctum: ele sente um choque ao vislumbrar uma imagem perdida
entre as sombras, e é arrebatado pela impressão de reconhecimento de
um rosto que parece vivo no interior da moldura. Após esta experiência
sensorial, ele vai em busca do studium, folheando um catálogo de arte
que contém informações sobre os quadros expostos na galeria onde se
encontra. Mas o livro, as histórias, as descrições e as análises estéticas
da pintura em questão de nada lhe servem para explicar o impacto que
percebe na alma. O encontro com a realidade daquela jovem dama, que
consumiu os seus dias por amor ao pintor indiferente, que só desejava
eternizá-la no corpo da tela, parece atravessar o tempo atingindo-o com
a eloqüência de um grito.
Sensível a essa impressão, Wilde também faz o seu protagonista
Dorian Gray vivenciar a singular experiência de empatia do punctum,
ao contemplar a própria imagem no retrato que dele fez o seu amigo, o
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pintor Basil Hallward. Nada nos assegura que o retrato deveras registrasse a aparência progressivamente envelhecida e malévola de Dorian,
pois ninguém testemunhava as supostas metamorfoses do quadro, exceto ele mesmo. Mas enquanto um studium social hipócrita cercava a sua
vida real, assegurando que ele mantivesse uma auto-imagem favorável,
mesmo na mais sórdida decadência, nada o salvaguardava da sensação
de reconhecimento de sua verdade na contemplação solitária do espelho
do quadro. Dorian mata Basil, como se o pintor fosse o responsável por
aquela denúncia plástica de seus pecados e de seu envelhecimento. Mas
acaba descobrindo que o efeito do punctum é pessoal e intransferível, e
está menos no objeto do que no próprio sujeito que o apreende. Daí o
recurso último ao suicídio, que pratica como se estivesse cometendo um
homicídio, agredindo um outro (o outro deteriorado que via na pintura,
que pensa rasgar com uma faca, enquanto rasga o próprio peito). Só na
morte o spectator e o spectrum, cindidos pela inaceitação do sujeito,
conseguem se reunir.
Algo similar acontece na história de Lúcio, quando confessa sua
inocência no crime pelo qual acaba de cumprir uma pena de dez anos
de prisão. Amante de Marta, esposa de seu melhor amigo, Ricardo de
Loureiro, Lúcio diz haver testemunhado o disparo de Ricardo contra a
mulher. Cego de ciúmes (não se sabe se da esposa, do amigo ou de ambos), ele teria buscado vingança, assassinando-a. Mas o que se passa é
que, após o disparo de “Ricardo”, Lúcio percebe que “Marta” desaparece misteriosamente, e que o amigo é quem jaz morto aos seus pés. Como
Dorian, até o fim da história Lúcio recusa-se a admitir a evidência do
punctum, que denuncia a ambigüidade do spectator e do spectrum. Permanece, assim, na realidade do studium, denegando a verdade que esclarece para todos exceto para si mesmo: a de que ele amara um homem
apaixonadamente, imaginando-o uma mulher. Ao eliminar o fantasma
feminino que encobria o real objeto de seu desejo, Lúcio não consegue
lidar com a revelação que deflagra, e prefere destruir o seu amante a
admitir o seu amor. O assassinato, do qual não se defende, é uma espécie de suicídio, que o afasta da vida social, do universo do studium e da
possibilidade de continuar alimentando a sua fantasia. Nas narrativas de
Sá-Carneiro, portanto, há uma inegável aderência do referente biográfi-
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co à ficção: o obsessivo retrato falado de seu corpo inadequado4 parece
funcionar em sua obra como um autêntico biografema barthesiano.5
No entanto, a tendência dos estudos literários de ignorar o autor
em função de uma apreensão estritamente cultural e estética do texto
torna difícil, em geral, a percepção do caráter obsessivo de certas obras.
A um olhar mais cauteloso, porém, é possível verificar o quanto certas
narrativas se oferecem como potenciais anamneses de almas em conflito, nas quais a produção de relatos da doença parece exercer um efeito
terapêutico no sentido de permitir a confissão e o alívio, mesmo momentâneo, da perturbação; bem como a organização do espírito cindido no
texto, acrescida da alegria que produz a própria criação, em si, sobretudo quando bem conduzida por uma pessoa realmente talentosa.
Não há como negar que Mário de Sá-Carneiro era um jovem de
talento, com grande potencial de vir a se tornar um importante escritor.
Mas também é difícil acreditar que não estivesse seriamente perturbado
no período de sua mais intensa produção, e que esta perturbação não se
manifestasse franca e desesperadamente em sua escritura, quase como
um pedido de socorro. Sua prosa é praticamente a mesma, com pequenas variações: é a confissão desesperada de um sintoma que parece mui4 Diz Barthes: “De um corpo real, que estava lá, partiram radiações que vêm me atingir, a mim,
que estou aqui; pouco importa a duração dessa transmissão; a foto do ser desaparecido vem
me tocar como os raios retardados de uma estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga a
meu olhar o corpo da coisa fotografada”. O punctum é uma experiência que independe dos
modelos que permitem construir a imagem como objeto cultural, pois não traz o compromisso de compor uma mensagem. É claro que não deixa de ser mediadora desse gesto que,
à distância, parece nos tocar. Mas Barthes fala de “uma aderência do referente na imagem”.
Há a mediação, mas o que está no meio é testemunha ou, mais do que isso, é portador de
uma ação, como uma flecha que transfere para um alvo distante a força do gesto que lhe deu
movimento. Assim, a fotografia transporta esse gesto no tempo e, por isso, Barthes se refere
ao objeto fotografado como spectrum: como ele explica, o espetáculo que se oferece ao olhar,
mas também o “retorno do morto”, como um fantasma, como uma existência do passado que
se manifesta no presente.
5 O biografema, segundo Barthes, nunca é uma verdade objetiva: “O biografema nada mais é
do que anammese factícia: a que eu empresto ao autor que amo”. A biografemática – ‘ciência’ do biografema – teria como objeto pormenores isolados, que comporiam uma biografia
descontínua; essa ‘biografia’ diferiria da biografia-destino, onde tudo se liga, fazendo sentido. O biografema é o detalhe insignificante, fosco; a narrativa e a personagem no grau zero,
meras virtualidades de significação. Por seu aspecto sensual, o biografema convida o leitor a
fantasmar; a compor, com esses fragmentos, um outro texto que é, ao mesmo tempo, do autor
amado e dele mesmo - leitor.” (Perrone-Moisés, 1983, p.15)
ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
98
to real e que o absorve ao longo dos dias: o de uma insuportável cisão
interna, provavelmente deflagrada na adolescência, quando da descoberta de suas inclinações sexuais não convencionais, e estendida pelos
anos de sua juventude, associada ao sentimento da impossibilidade de
amadurecer profissionalmente na carreira escolhida – igualmente alvo
de preconceitos no mundo burguês em que nasceu e foi criado. A solidão
em que mergulhou, associada ao preconceito social sofrido no exílio,
geográfico e do próprio corpo, e ao despreparo da ciência médica para
reconhecer e tratar o seu problema, terá determinado a inevitabilidade
de seu destino, tantas vezes prognosticado em seus textos: o suicídio.
4. Considerações finais
Afinal, que importância teriam essas considerações para a apreciação estética de sua obra? – perguntariam os críticos literários. Provavelmente uma importância fundamental. Uma obra, muitas vezes, é um
corpo substituto, um corpo textual que se consubstancia ao corpo físico
e não raro fornece o perfil do corpo espiritual, invisível e impalpável,
daquele que a concebe. Um texto nem sempre é uma peça decorativa ou
uma máquina de pensar, produzida por ninguém para o deleite onanista
da posteridade. Uma obra de arte nem sempre é um território despossuído, ofertado graciosamente aos fruidores, para que dela façam aquilo
que desejarem. A demanda pela reabilitação do autor nos estudos literários passa por uma demanda pelo reconhecimento mais amplo dos testemunhos escritos; mesmo – e sobretudo – aqueles até então considerados
exclusivamente artísticos: imunes, portanto, à contaminação do humano e da falibilidade de seus criadores. O reconhecimento desta característica poderá, talvez, contribuir para fornecer aos artistas que sofrem na
solidão de suas escrivaninhas uma opção ao suicídio; o que beneficiaria,
inclusive, a comunidade dos leitores e críticos, com a possibilidade de
obras mais extensas e completas. Ou a literatura desses autobiográficos
não existiria se a sua doença fosse efetivamente constatada e tratada? ...
Não teriam eles outro assunto se restabelecida a sua saúde e equilíbrio,
a sua possibilidade de usufruir de uma existência mais comum e menos
aflitiva?
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO: DOENÇA E CRIATIVIDADE
99
Autora do livro Touched With Fire –Manic-Depressive Illness
and The Artistic Temperament, a médica e portadora de transtorno bipolar Kay Redfield Jamison acredita que ninguém é criativo quando severamente deprimido. A quantidade de artistas que se suicidam ao longo
das eras, independente de idade, raça, credo e cultura é impressionante;
e constitui um dado factual inegável, embora ainda indevassado, da relação entre a genialidade e algum tipo de sofrimento mental. Jamison
cita poetas como Paul Celan, Hart Crane, Vladimir Maiakóvsky, Cesare
Pavese, Sylvia Plath; escritores como Ernest Hemingway, Yukio Mishima, Gérard de Nerval, Virginia Woolf; artistas como Vincent van Gogh,
Mark Rothko, Nicolas de Stäel, entre os muitos dispostos em longas
listas anexadas como apêndice ao seu livro. Entre os portugueses, Antero de Quental, Camilo Castelo Branco e Florbela Espanca, para citar
alguns. Se quisermos admitir que a arte, nesses casos, ultrapassa a condição de sintoma, e representa comparativamente mais, por exemplo, do
que um rash cutâneo representa para o diagnóstico do sarampo, então
seremos forçados a crer que esses artistas, em condições mais favoráveis, teriam tido melhores oportunidades para criar. Jamais saberemos,
de fato, o que eles teriam produzido se tivessem sobrevivido, mas é possível que a doença tenha roubado à humanidade um importante legado,
conduzindo-os a uma morte precoce.
Além disso, a autora mostra que o suicídio não é a única ameaça
enfrentada por essas pessoas na ausência de tratamento: são comuns
problemas secundários determinados pelo abuso de álcool, nicotina e
drogas as mais diversas, por eles utilizadas ao longo dos séculos como
forma de abrandar o sofrimento determinado por sua condição. A medicina moderna, segundo a autora, ofereceria opções sofisticadas de tratamento, com novas drogas capazes de reverter os sintomas maníaco-depressivos sem afetar aqueles aspectos do temperamento e da cognição
responsáveis pela genialidade artística (Jamison, 1994, p. 251):
Artistas e escritores, como as pessoas comuns, podem decidir por si
próprios se desejam ou não tratamento, e qual a opção mais adequada. Alguns acabam escolhendo o tratamento médico tradicional, ou-
100
ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
tros optam por versões idiossincráticas, e outros ainda preferem não
escolher nenhum tratamento, mesmo conscientes do sofrimento que
poderão vir a experimentar. É claro que, acima de tudo, a profundidade
e a intensidade do sentimento humano influenciam a criação artística.
Mas a medicina moderna está apta a garantir o alívio dos extremos
da agitação, do desespero e da psicose: ela permite hoje algumas opções inimagináveis anteriormente. A maioria dos escritores, artistas e
compositores discutidos neste livro, porém, não tiveram direito a uma
escolha significativa.
Mário de Sá-Carneiro não teve direito a nenhuma escolha. Mas
o testemunho de sua obra, se encarado sem preconceitos, pode ajudar a
esclarecer casos semelhantes, sem comprometer a validade do enfoque
estético que norteia os estudos que foram e continuarão a ser feitos sobre
sua obra. Como muito bem antecipa Jamison, na esteira dos Doutores
Bacamarte da ficção e da realidade (Jamison, 1994, p. 259):
O temor que a medicina e a ciência venham a roubar a inefabilidade
de tudo e a prejudicar a complexidade labiríntica da mente é tão antigo
quanto as tentativas do homem de traçar o movimento das estrelas. ...
O que permanece problemático é saber se estamos diminuindo os mais
extraordinários entre nós – os nossos escritores, artistas e compositores – ao pretender realizar uma abordagem de suas vidas e obras numa
perspectiva psicopatológica e das doenças do humor. Será que nós –
em nossa pressa para diagnosticar, curar e talvez até mesmo alterar
seus genes – estamos comprometendo o respeito que devemos sentir
por sua diferença, sua independência, a força de suas mentes e de suas
individualidades? Será que diminuímos os artistas ao constatarmos que
eles apresentam uma propensão muito maior do que a população em
geral de sofrer ataques recorrentes de mania e depressão, experiências
de volatilidade de temperamento, inclinação à melancolia e tendência
ao suicídio? ... Eu não penso assim. (JAMISON, 1994, p. 259).
MÁRIO DE SÁ-CARNEIRO: DOENÇA E CRIATIVIDADE
101
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ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA
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Mosaicos Espelhados:
Uma leitura de Partes de
África, De Helder Macedo
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
UFGD - Universidade Federal da Grande Dourados
Resumo
O escritor português Helder Macedo dedicou importantes ensaios a autores como Almeida Garrett, Machado de Assis e Cesário Verde. E, como romancista, Macedo estabeleceu um relevante diálogo entre sua ficção e as obras dos autores de sua eleição.
Portanto, o objetivo deste artigo é propor uma leitura do primeiro romance de Macedo,
Partes de África, considerando que seu narrador, também chamado Helder Macedo,
filia-se a certa tradição romanesca, que inclui destacadamente Almeida Garrett. Então,
é inevitável questionar se os ensaios de Macedo podem iluminar a leitura de Partes
de África.
Palavras-chave: Helder Macedo; Literatura Portuguesa; Ensaísmo.
Abstract
The Portuguese writer Helder Macedo wrote important essays devoted to authors such
as Almeida Garrett, Machado de Assis e Cesário Verde. And, as a novelist, Macedo
has established an important dialogue between his fiction and the works of his favourite the novelists. Therefore, the purpose of this paper is to undertake a reading of
Macedo’s first novel, Parts of Africa, considering that the narrator, also called Helder
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
104
Macedo, affiliates himself into certain novelistic tradition that includes prominently
Almeida Garrett. Thus, is inevitable to wonder whether the Macedo’s essays are able
to enlighten the reading of Parts of Africa,
Keywords: Helder Macedo; Portuguese fiction; Essays.
O que me levou mais tempo a perceber é que isso de romances, poemas, pinturas, só tem mesmo graça quando se não consegue distinguir
o que é fingimento e o que apenas parece ou não parece fingimento.
E vice-versa, em todas as possíveis permutações da imaginação e da
memória. Acho que já o disse: espelhos paralelos num mosaico incrustado de espelhos.
Helder Macedo
1.
Uma armadilha em potencial para o crítico literário é sentir-se
tentado a analisar uma obra fiando-se em declarações de seu autor. O
romancista português Helder Macedo bem o sabe, embora não se exima de um ou outro comentário interpretativo sobre seus próprios livros
(Carvalhal,; Tutikian, 1999, p. 147):
O autor é possivelmente a pessoa menos qualificada para comentar a
sua própria obra. Só talvez, quando apanhado à má fila, em resposta
espontânea a perguntas que lhe sejam feitas. O mais provável, no entanto, é que dê respostas diferentes a perguntas semelhantes, segundo
as circunstâncias. […] O autor que sabe o que faz (e, se não sabe, deve
mudar já de profissão) só o sabe enquanto está fazendo. Depois, a sua
leitura do que escreveu não é melhor nem pior do que a de qualquer
outro leitor. A não ser, por vezes, quando nas tais respostas às tais perguntas se surpreeende a si próprio. Dito isto, tudo o mais pode ser
partilhado, com a verdade possível..
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
105
Em conferências e entrevistas, Macedo já colaborou na construção da “verdade possível” que, surpreendendo-o ou não, ajudou mais de
um intérprete nos meandros de seus textos. É preciso lembrar, inclusive, que na qualidade de um escritor com particular apreço ao discurso
metaficcional, ele termina por elaborar, no corpo de seus romances, um
primeiro rascunho de análise ou de interpretação de sua própria obra.
Afinal, o que seria sua “teoria do mosaico”, exposta diligentemente em
Partes de África, se não uma teoria ficcional que aparentemente funcionaria com fio condutor de sua narrativa, sua primeira chave de leitura?
Digo “aparentemente” porque, tendo sido construída no âmbito da ficção, não pode ser compreendida a priori como um ensaio incrustrado no
romance, ou sequer como uma teoria coesa; antes, é preciso interpretá-la como parte integrante de um projeto ficcional que cria sentido desse
contínuo jogo entre informar e iludir seu leitor, e entre exibir e esconder
seus próprios procedimentos de composição.
Acadêmico, antes de ser ficcionista, em seu percurso profissional Helder Macedo consolidou uma obra ensaística consistente sobre
autores do relevo de Cesário Verde, Luís de Camões, Almeida Garrett,
Camilo Castelo Branco, Machado de Assis, entre muitos outros. É natural, portanto, que, no momento em que tenha se tornado ficcionista, seus
interesses como professor fossem lembrados, não apenas pela recepção
crítica de seus romances, mas também pelo próprio autor, em depoimentos concedidos em mesas redondas e congressos. É notável, aliás,
como o repertório evocado pelo narrador caprichoso de Partes de África
em muito coincide com os autores de interesse do escritor e catedrático
Helder Macedo. Relação que não lhe passou desapercebida:
Mas olhem, embora inevitavelmente só possa escrever a partir de mim,
na ensaística escrevo sobretudo sobre os outros, na poesia sobretudo
sobre mim, e na ficção sobre mim e os outros ao mesmo tempo. […]
Mesmo assim, são gêneros diferenciados que necessariamente se alimentam uns aos outros e que portanto, nem que seja só implicitamente,
se articulam no que eu escrevo. O que, num romance —nos outros
gêneros duvido, nunca experimentei —, até pode permitir brincadeiras
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
106
como, por exemplo, integrar um ensaio ou um poema na ficção Aréas;
Osakabe, 2002, pp. 333-4
Na verdade, a articulação entre ensaio e ficção na obra de Macedo é mais do que implícita, e resulta em bem mais do que meras “brincadeiras” ficcionais. As referências intertextuais dos romances são parte
importante da composição ficcional, e a leitura de alguns ensaios do
escritor pode nos mostrar o porquê.
2.
Helder Macedo investigou as Viagens na minha terra, de Almeida Garrett, em três ensaios capitais. O mais célebre e importante deles
é “As Viagens na minha terra e a menina dos rouxinóis”, publicado em
1979, na revista Colóquio/Letras. Macedo explica que Garrett anunciava sua narrativa como “um símbolo”, ou seja, sua viagem simboliza
o avanço do “progresso social” do país. O sentido oculto de seu livro
seria, segundo o narrador, comprovar a existência de dois princípios no
mundo: o espiritualista e o materialista. O primeiro, que pode ser representado pela figura de Dom Quixote, tem “os olhos fitos em suas grandes e abstratas teorias”, sem se ater ao mundo material (Garrett, 2001, p.
31); já o segundo declara que as abstrações espiritualistas não passam de
utopias, e pode ser representado por Sancho Pança. Assim, como fazem
os dois personagens antípodas na obra de Cervantes, o materialismo e
o espiritualistmo são os princípios que regem o progresso humano e se
alternam na “marcha do progresso social português”, especificamente.
Segundo Macedo (2007, p. 16), Garrett
diz, por exemplo, que a sociedade sua contemporânea é materialista e
que a literatura que a reflecte é espiritualista; que a História, cujo valor
espiritual acentua, está representada em Portugal pela degradação material de monumentos em ruínas. O mesmo modelo lhe serve também
para explicar a divisão do País na Guerra Civil, que opôs o materialis-
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
107
mo do Antigo Regime os ideais do liberalismo. Mas (...) cada termo de
oposição contém em si uma equivalente dicotomia: o materialismo do
Antigo Regime tinha como complemento antitético interno o espiritualismo dos frades; e o espiritualismo — ou idealismo — do Regime
Liberal produziu o materialismo dos seus sucedâneos, os barões. Desta
perspectiva, torna-se claro que, para Garrett, a marcha do progresso
social português simbolizada na sua viagem Tejo-arriba não progride,
nem pode progredir, porque os termos de cada antítese foram polarizados em ordem inversa numa nova antítese que os neutraliza, resultando, em suma, no que, semanticamente, se pode caracterizar como um
quiasmo. Com efeito, no sentido estrito, o quiasmo é a figura de estilo
em que duas expressões simétricas e antitéticas se contrabalançam,
pela sua repetição em ordem inversa.1
O mesmo acontece na novela da menina dos rouxinóis. Em seu
início, Carlos é um jovem idealista, liberal, e seu contraponto é Frei
Dinis, partidário do Antigo Regime (e que, descobrimos mais tarde, é
o verdadeiro pai de Carlos). Ou seja, cumprem o papel de Quixote e
Sancho Pança, respectivamente. Mas essa função vai se inverter até o
final da novela, já que Carlos deixa corromper seus ideais para se tornar
barão, enquanto Frei Dinis passa a se dedicar inteiramente aos ideais de
sua ordem, arrependido de seu passado pecaminoso, materialista. Estabelece-se, assim, uma imagem invertida de um personagem em relação
ao outro, como em um espelho.
De modo que o jogo de contrários que se estabelece na narrativa
das viagens também organiza estruturalmente a novela, estabelecendo
entre esses dois níveis narrativos uma unidade estrutural e de significação.
Em seu ensaio, Helder Macedo estabelece ainda uma outra relação entre a viagem e a novela: explica que os personagens da novela
1 Ainda segundo Macedo, trata-se mais de “uma alternância linear de opostos co-existentes do
que como uma polarização dinâmica de opostos complementares — o que tem mais a ver
com dicotomia do que com dialética”. É por isso, também, que Macedo desenvolve a tese
de que a reflexão de Garrett possui mais do pensamento do pensador inglês Jeremy Bentham
do que de Hegel, citado “obliquamente” nas Viagens como “um profundo e cavo filósofo de
além Reno”.
108
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
são a personificação da antinomia definidora da “marcha do progresso
social” de Portugal, como Garrett ironicamente descreve na viagem, de
modo que “a novela adquire valor metafórico sinónimo do significado
da viagem propriamente dita, tornando-a, como diz Garrett, num símbolo” (Macedo, 2007, p. 17). Ora, assim sendo, é possível concluir que, já
que a novela metaforiza a viagem (Macedo, 2007, p. 17)
ao fazê-lo, a própria novela passa a ter um valor designativo, ou documental, de funcionalidade metonímica, aliás estruturalmente acentuado pela sua intercalação fragmentada entre a chegada dos viajantes ao
vale de Santarém e o seu regresso a caminho de Lisboa.
A série de designações e associações estabelecidas por Garrett
neste momento da narrrativa revela sintaticamente a continuidade entre
os dois planos do livro (a novela e a viagem). Além disso, Garrett reafirma continuamente o valor simbólico de sua viagem, sua “grave Odisséia”. E embora Macedo reserve ainda algumas considerações importantes ao caráter épico do livro, interessa-me mais, para o momento, o
fato de que Garrett implica a si mesmo nesse simbolismo, estabelecendo
uma inequívoca relação entre sua condição pessoal e a do país. As Viagens não são especificamente sobre um momento histórico determinado,
mas sobre personagens e conflitos sentimentais que o simbolizam. Podemos dizer o mesmo sobre os romances de Helder Macedo. “Metáforas
da História”, como dirá mais tarde em Pedro e Paula.
Além de Carlos e Frei Dinis, é bastante clara a significação simbólica das rivais Joaninha e Georgina: a primeira, símbolo de um Portugal tradicional e a segunda, da modernidade trazida pelo liberalismo
inglês. Ambas, é preciso que se diga, representam o que há de melhor
nestas sociedades, e são íntegras a ponto, inclusive, de se entenderem e
respeitarem mutuamente. Carlos, não conseguindo optar por uma delas,
termina por trair seus ideais, como se não conseguisse, tendo vencido a
guerra, lidar com as ações concretas necessárias e decorrentes da luta.
Ao tornar-se barão, rende-se ao próprio narcisismo.
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
109
Ao final do livro, Garrett, em pessoa, encontra-se com os personagens da novela, e estabele um importante diálogo com Frei Dinis. A
esse respeito, Helder Macedo (2007, p. 21) explica que
Afinal, todo o quiasmo é um falso dilema, que só pode ser solucionado
se os termos que o definem forem corrigidos de modo a permitirem
uma síntese que os supere. E é isto o que, efectivamente, Garrett vai
fazer, ao tomar o lugar de Carlos no quiasmo definido pela sua relação com Frei Dinis. Para Carlos, já é tarde demais. É o narrador que,
ocupando o espaço semântico previamente definido por Carlos, no fim
da sua “Odisséia” pode reconhecer com Frei Dinis que, absolutistas e
liberais,“erramos todos”.
No ensaio seguinte sobre as Viagens, intitulado “Garrett no romantismo europeu” (publicado originalmente em 1999), Macedo explica que Carlos não é apenas um duplo de Garrett, mas também seu oposto
semântico. Oposição contraditoriamente mais clara na medida em que
a biografia de ambos convergem factualmente. Isso porque (Macedo,
2007, p. 28)
Carlos é o eu alternativo em que Garrett teria podido tornar-se se não
tivesse optado por outras possibilidades de ser, não é um auto-retrato
autoral. O que Garrett fez foi uma ficção equivalente à que o literariamente inclassificável Henry James — irmão do psicólogo William James, que publicou estudos pioneiros sobre as chamadas personalidades
múltiplas — iria fazer na novela The jolly corner, quando o narrador
confronta o monstruoso ele-próprio-outro que também teria podido vir
a ser.
O conto de Henry James a que Macedo se refere foi publicado no
Brasil como “A bela esquina”, em tradução de José Paulo Paes. Enredo:
Spencer Brydon é um norte-americano que retorna a seu país natal após
110
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
33 anos vivendo na Europa. Em Nova York, passa a administrar de perto o conjunto de imóveis de sua propriedade, enquanto preserva vazia
a misteriosa casa que constitui “a bela esquina”, na qual viveu grande
parte de sua família. Neste lugar, encontra uma presença fantasmática
que, descobrimos ao final, é o duplo de Brydon. Na verdade, é o próprio
Brydon, caso houvesse permanecido nos Estados Unidos: estaria envelhecido e machucado pelo trabalho, mas muito mais rico.
Na opinião de José Paulo Paes, trata-se do conto mais pessoal de
James presente na antologia. Em primeiro lugar, porque Spencer Brydon
apresenta alguns pontos biográficos em comum com o autor, como o
fato de ter adotado a Inglaterra como sua casa. Além disso, o fantasma
representa a oposição tão cara a James, entre “a vulgaridade do progressismo norte-americano e os refinamentos do conservadorismo europeu”,
que “se resolve numa opção de exílio sob a qual se embuça, residual, a
nostalgia de ‘uma vida que poderia ter sido e que não foi’ — para citar
o verso de Manuel Bandeira” (James, 1994, p. 179). Deste modo, James
representa duas versões de si mesmo, uma mais próxima a sua cronologia pessoal, outra alternativa.
Que o autor “se disfarce” de personagem pode ser uma eficaz
estratégia de despersonificação autoral, como no caso de Carlos, que
termina por se revelar não um alter-ego completo de Garrett, mas uma
possibilidade, como o fantasma de James. Macedo (2007, p. 27) faz a
distinção entre os dois tipos de narradores nos seguintes termos:
A intervenção explícita do eu autoral no texto que está a compor — que
é a maneira romântica, mas também camoniana, gostosamente desenvolvida por Garrett nas Viagens — tinha portanto de ser proscrita como
um terrível pecado contra a verdade do realismo. Mas ele há também
outras verdades, entre as quais a verdade do texto, e não é menos verdade, como disse Todorov, que “todos os romances contam a história
da sua própria criação, a sua própria história”. Essa história implícita necessariamente inclui a história do autor que a está escrevendo e,
portanto, mesmo se disfarçadamente, a revelar a sua subjetividade no
que escreve. O parecer não fazê-lo é apenas uma estratégia literária,
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
111
como o autor interveniente parecer dialogar com um hipotético leitor
também havia sido?
Além disso, interessa a Macedo ressaltar que, mesmo em um
texto realista, em que o autor não intervém na narrativa de maneira deliberada, comentando o texto, ou não se personifica abertamente em
um personagem homônimo, a personalidade do autor pode se revelar.
Afinal, o autor implícito dispõe os fatos significativos de sua história,
justapondo-os de acordo lhe convém — à maneira de Hippolyte Taine.
Esta “justaposição significativa” nada mais seria do que uma montagem
muito próxima à da linguagem cinematográfica. E, como na edição de
um filme, supõe sempre um autor que selecione e ordene suas partes,
esteja ele evidente ou implícito nas suas escolhas.
Macedo dedicou especial atenção a essa “justaposição significativa” no ensaio Nós, uma leitura de Cesário Verde, publicado em 1975
e que constitui, segundo nota da primeira edição, “a versão portuguesa”
de sua tese de doutoramento da Universidade de Londres. Nela, Helder
Macedo explica que Cesário Verde encontrou “na estética eminentemente prosaica de Taine os alicerces metodológicos da sua poesia”, de modo
que ao menos dois preceitos da narrativa realista podem se aplicar à poética de Cesário (Macedo, 1999c, p. 20). A primeira delas é a idéia de que
a narrativa é um espelho a passar por uma estrada, retirada de Stendhal.
A segunda, que me interessa diretamente, é a técnica narrativa que Harry
Levin descreveu em Flaubert, e a qual ele chamou de “justaposição significativa”. Tal definição será reutilizada por Macedo em alguns de seus
ensaios subseqüentes, e deverá ser fundamental para nossa leitura de
seus romances. Levin explica que a prosa de Flaubert é estruturada sob
a justaposição calculada de elementos de cena e comentários internos
(principalmente através do discurso indireto livre) selecionados e dispostos de modo a promoverem um sentido. É o contrário de um Balzac,
por exemplo, cujo método de composição prima pela acumulação de
detalhes, almejando um quadro completo da cena descrita.
Nas palavras de Helder Macedo, Cesário Verde — que, curiosamente, dizia-se avesso à prosa — encontrou no método realista de H.
112
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
Taine os fundamentos de sua poética, o que indica em parte a originalidade de sua obra: “o método crítico de Taine pode ser definido, sumariamente, como a aplicação da análise do real com o propósito implícito de
exacerbar a sua compreensão crítica” (Macedo, 1999c, p. 19). Método
afim ao de Cesário, que o realiza através da justaposição significativa de
elementos de cena, como que em uma narrativa realista (a exemplo de
Flaubert) (Macedo, 1999c, p. 20)
A frase “justaposição significativa” usada por Harry Levin para descrever a técnica narrativa de Flaubert pode igualmente aplicar-se ao
método poético de Cesário: os seus poemas progridem numa série de
seqüências aparentemente acidentais de acontecimentos justapostos
cuja articulação, estruturalmente metonímica, está mais próxima da
técnica cinematográfica de corte e montagem (derivada da técnica da
justaposição significativa do romance realista) do que da técnica poética de associação metafórica.
O mesmo em relação a Garrett e a Camilo Castelo Branco, a cujo
romance A brasileira de Prazins Macedo também dedicou um ensaio,
em que investiga como as histórias aparentemente díspares do livro se
sobrepõem, mostrando como “a aparente falta de unidade desta obra
possa ser (...) funcionalmente deliberada” (Macedo, 2007, p. 46). Ou
seja, assim como “feito por Garrett nas Viagens na minha terra, também
n’ A brasileira de Prazins a falta de unidade narrativa seja um modo de
significar a sua unidade temática, manifestada numa série de convergências semânticas” (Macedo, 2007, p. 47).
Enfim, em linhas gerais, pode-se dizer que Helder Macedo descreve, a propósito do romance de Almeida Garrett, uma organização
estrutural baseada nos seguintes elementos: 1) Almeida Garrett integra
uma tradição “não-nomeada” pelos manuais literários mas que atravessou diferentes gêneros e formas romanescas, tradição para a qual é fundamental um tipo de ironia desconstrutiva; 2) Carlos não é apenas um
duplo de Garrett, mas um “eu” alternativo, que nunca chegou a se cum-
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
113
prir, de modo que a entrada de Garrett no universo da novela comprova
a relação a história pessoal do autor com o panorama histórico simbolizado (o “disfarce” de Garrett, neste sentido, foi não disfarçar-se); 3)
a literatura, para Garrett, funciona como símbolo, já que o percurso de
sua viagem e os personagens da novela representam simbolicamente o
momento histórico português; 4) a novela da menina dos rouxinóis estabelece uma relação ao mesmo tempo metafórica e metonímica com a
narrativa das viagens, justapondo-se a ela de modo apenas aparentemente arbitrário; 5) a estrutura do romance é baseada em duplos antitéticos
cuja evolução dentro do enredo promove a inversão da antítese inicial, o
que Macedo chama de quiasmo.
Como veremos, Partes de África redimensiona todas essas questões.
3.
O primeiro capítulo de Partes de África expõe claramente as
principais chaves de leitura do romance. Em primeiro lugar, as referências intertextuais, aqui representadas pela presença de Almeida Garrett.
A começar pelo próprio subtítulo do capítulo, explicativo: “Em que o
autor se dissocia de si próprio e desdiz o propósito do seu livro” (Macedo, 1999a, p. 09). Trata-se de uma estrutura muito a gosto do XVIII,
e que foi bastante ainda usada por Garrett. Assim se inicia o Capítulo I
das Viagens na minha terra: “De como o autor deste erudito livro se resolveu a viajar na sua terra, depois de ter viajado no seu quarto; e como
resolveu imortalizar-se escrevendo estas suas viagens” (Garrett, 2001,
p. 23). Este tom de distanciamento, em que o autor “se dissocia de si
mesmo”, será problematizada em ambos os romances. Além do título, a
própria situação inicial do narrador de Partes de África remete a Almeida Garrett (2001, p. 23) e a seu predecessor, Xavier de Maistre, autor da
Viagem ao redor do meu quarto (1794).
114
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
Que viaje à roda do seu quarto quem está à beira dos Alpes […] entende-se. Mas com este clima, com este ar que Deus nos deu, onde a
laranjeira cresce na horta, e o mato é de murta, o próprio Xavier de
Maistre que aqui escrevesse, ao menos ia até o quintal.
Eu muitas vezes, nestas sufocadas noites de estio viajo até à minha janela para ver uma nesguita de Tejo que está no fim da rua, e me enganar
com uns verdes de árvores que ali vegetam sua laboriosa infância […].
Embora o narrador de Partes de África não nomeie de saída nenhum de seus predecessores, as referências a eles são bastante claras.
Helder Macedo, em férias sabáticas na casa de um amigo, contempla
a paisagem que, como em Garrett, é composta de uma nesga de água e
de muito verde (desta vez da serra de Sintra), visão também enganosa
(Macedo, 1999a, p. 9)
Entre serras que não mudam nunca e águas do mar que nunca estão
quedas. Exceto que, sendo Primavera e o mar ficando ainda longe, basta ir ao terraço para constatar que são as serras de Sintra que diariamente se transformam e as águas da Praia das Maçãs que parecem sempre
fixas. Não se deve ter demasiada confiança em metáforas de segunda
mão.2
Que o narrador não confie em “metáforas de segunda mão” pode
parecer contraditório, vindo de uma voz narrativa que se apropria continuamente de uma seleta lista de autores e faz desse procedimento um
dos mais relevantes para seu romance. Mas o autor inverte a metáfora
2 Aqui, ocorre uma referência a outra obra bastante cara a Helder Macedo: Menina e moça,
de Bernardim Ribeiro, à qual o autor já dedicou longos estudos acadêmicos, e que será outra
presença recorrente em Partes de África: “Escolhi para meu contentamento (se entre tristezas
e cuidados há aí algum) vir-me viver a este monte onde o luar e a míngua da conversação
da gente fosse como já para meu cuidado cumpria, porque grande erro fora, depois de tantos
nojos quantos eu com estes olhos vi, aventurar-me ainda a esperar do mundo o descanso que
ele não deu a ninguém, estando eu assim só, tão longe de toda a gente de mim ainda mais
longe, donde não vejo senão serras que se não mudam, de um cabo, nunca, e do outro águas
do mar que nunca estão quedas” (Ribeiro, 1999, p. 72).
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
115
emprestada de Bernardim Ribeiro, e avisa que o fez, de modo a desestabilizar, logo de saída, a noção de verdade e de apropriação. Ou seja,
como a paisagem que causou ao narrador uma falsa impressão, seu texto
também poderá enganar o leitor, que deve ficar atento: mesmo as referências intertextuais não são confiáveis no sentido de fornecerem um
sentido unívoco à interpretação.
De qualquer modo, alguns elementos da “empresa Garrettiana”
são evidentes em Partes de África. Não apenas nas referências intertextuais supracitadas, mas também, por exemplo, na composição do personagem principal, o narrador homônimo do autor. Helder Macedo adota
a forma memorialista — ou simula adotá-la — de modo semelhante ao
que Almeida Garrett adotou a narrativa de viagens. Se Garrett adota a
primeira pessoa — ficcionalizando-se — para narrar sua viagem, e “disfarça-se” em um óbvio duplo que é Carlos, Macedo faz o mesmo: faz de
si um personagem-narrador que, apesar de ter uma biografia muito semelhante ao do autor empírico, com este não deve ser confundido, sob o
risco de mergulharmos numa leitura biográfica para a qual não teríamos
comprovação possível. Nas palavras do narrador, “este livro não é sobre
mim mas a partir de mim, condutor biograficamente qualificado das suas
factuais ficções” (Macedo, 1999a, p. 221). E indica seus predecessores:
“Neste, que nunca se sabe quando é romance e quando não é, o meu
disfarce é não me disfarçar, como fez o Bernardim antes do Pessoa vir a
explicar como era” (Macedo, 1999a, pp. 221-2).
O narrador nos interessa não como representação do autor empírico, mas como ente ficcional, autoconsciente e impregnado de um valor
simbólico. Como diz Tânia Franco Carvalhal, sobre Partes de África, “a
história pessoal nunca está isolada, mas mesclada à história coletiva e,
muitas vezes, essa última não é apenas a do território africano, mas a do
país europeu que o colonizou” (Carvalhal,,2002, p. 122). Decorre que,
em termos próximos aos que Macedo usou ao se referir a Garrett, Partes
de África não é um romance sobre um momento histórico específico,
mas sobre dramas o que significam. Como na nobre tradição a que o
narrador diz pertencer, a de “de dizer alhos para significar bugalhos”, o
que é outra maneira de dizer metáfora, conforme explica Maria Fernanda Alvito Pereira de Souza Oliveira (2002, p. 78):
116
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
dizer alhos para significar bugalhos não é senão uma forma irônica
de aludir a um processo a que tradicionalmente damos o nome de metáfora. Parece estar mais claro agora o não-propósito deste livro, bem
como o de toda a tradição literária a que ele se oferece como intérprete
e continuador: escrever é metaforizar a si mesmo e ao seu olhar sobre
o mundo, em prosa o verso, em poema, romance ou drama.
Metáfora, aqui, é o mesmo que símbolo, na acepção usada por
Almeida Garrett: a trajetória pessoal do narrador e de seus personagens
reflete determinado momento histórico. Não à toa, a relação entre memória íntima, familiar, e a história de Portugal vem sido apontada pela
fortuna crítica macediana como a principal chave de leitura para Partes de África. Os “bugalhos” seriam, por exemplo, o momento histórico pós-colonial atravessado por Portugal, interpretação legitimada por
parte significativa da recepção crítica da obra de Macedo. Para Marisa
Corrêa Silva (2002, p. 18), Partes de África “é, talvez, o primeiro romance da Literatura Portuguesa que supera a necessidade de uma mea
culpa pós-colonial”. Já segundo Margarida Calafate Ribeiro (2002, p.
69), não se trata do que poderíamos chamar de romance pós-colonialista
“convencional”, no sentido conferido por Salman Rushdie ou por Karen
Blixen (de Out of Africa):
Partes de África transmite-nos antes um olhar excêntrico: que vem de
África, mas que não se transveste de africano porque é europeu, e que
olha para Portugal simultaneamente do centro e da periferia africana
em que se formou. Assim sendo, Portugal é uma parte de África e África é uma parte de Portugal e é esse o “sentido marítimo desta hora”. E
é nesta mobilidade genuína que se encontra a portugalidade espalhada
que deveria caracterizar a pós-colonialidade política e literária em que
Portugal não seria mais centro nem fronteira.
Nessa acepção, o percurso do protagonista metaforiza — porque
ele o vivenciou — o momento histórico do fim do império português:
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
117
ver a África em “partes”, como um continente plural, já é uma forma de
resistência ao olhar imperial; mais do que isso, vê-la como parte indissociável da memória é conferir a ela um estatuto ficcional, em que o histórico submete-se à invenção. E fazer, então, um elogio a sua diversidade
e suas possibilidades.
Parte do sentido dessa metáfora está na aparente disjunção de
suas partes. Como em Garrett: em “As viagens na minha terra e a menina dos rouxinóis, Helder Macedo (2007, p. 13) parte do pressuposto
de que as Viagens constituem uma metáfora cuja “deliberada disjunção
aparente corresponde a um significado global de que essa mesma disjunção é a organização estruturamente necessária” (Macedo, 2007, p. 13).3
Ora, não é outra a estrutura composicional das Partes de África. A independência dos pedaços deste mosaico não impede que se estabeleça um
sentido global entre eles. A respeito da novela da menina dos rouxinóis,
Macedo (2007, p. 13) já dizia que sua intercalação dentro da narrativa
das viagens é
[f]uncionalmente se não arbitrária, pelo menos aleatória, já que resultaria do tempo linear da narrativa no espaço físico da viagem. A novela
que o autor por assim dizer encontrou no decurso da sua viagem poderia, portanto, se entendida independentemente do contexto geral da
obra e até publicada, como já foi, em volume separado (...).
Trata-se, porém, de uma arbitrariedade apenas aparente, na medida em que a justaposição entre os dois planos — a narrativa de viagens e a novela da menina dos rouxinóis — promove, de acordo com
Macedo, um dos núcleos significativos do romance. Aparentemente arbitrários e independentes são também alguns dos capítulos de Partes de
África: a peça, o relatório, a conferência, o ensaio da Colóquio/Letras,
além de alguns capítulos que poderiam se lidos separadamente, como
contos (David Mourão Ferreira bem definiu apropriadamente o capítulo
3 Macedo cita o ensaio de Ofélia Paiva Monteiro (1976), como precursor na comprovação da
unidade temática das Viagens de Garrett.
118
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
dedicado a Mário de Sá-Carneiro como um “quase conto”, embora tenha
sido publicado como artigo da revista Colóquio/Letras). Além disso, a
ordem dos capítulos sugere certa aleatoriedade, alguns dos quais poderiam eventualmente ser trocados de lugar sem qualquer prejuízo para a
unidade geral do livro. Essa aparente falta de unidade sugere, como nas
Viagens, não uma disjunção, mas uma correspondência semântica entre
as partes, correspondência explicada no capítulo 5 de Partes de África,
intitulado “Um bestiário recuperado na teoria do mosaico”, e o mais
francamente metaficcional do romance. Nele, o autor expõe o que parece ser sua “teoria ficcional”, definida nestes termos (Macedo, 1999a,
pp. 40-41)
Só que o meu estilo, perdoe o leitor que já deu por isso, é oblíquo e
dissimulado, desenvolvimento próprio e algo original, perdoe o leitor
que ainda não deu por isso, da nobre tradição de dizer alhos para significar bugalhos, que é a de toda a poesia que se preza e da prosa que
prefiro. E nem julguem que alhos e bugalhos são coisas diferentes, são
é reflexos diferentes da mesma coisa. Como num mosaico incrustado
de espelhos. Explico: quando se tira um pedacinho dum mosaico, não
se percebe, olhando só para o pedacinho, que faz parte do nariz e por
isso pode perfeitamente passar a fazer parte de qualquer outra imagem
para que seja necessário, mesmo num mosaico sem nariz. […] Faço
por isso voto solene de que irei trazendo para este meu mosaico todos os pedaços necessários para nariz, olhos, dente, boca, só que não
obrigatoriamente nesta ordem e nem sempre pertencentes ao reflexo
fictício do mesmo rosto. E terá de ser o leitor a encontrar os pedaços
mais adequados para colocá-los, segundo o amor tiver.
“Mosaico incrustrado de espelhos”: eis, então, os dois princípios
organizadores do romance: o fragmento (o mosaico) e o duplo (o espelho).
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
119
4.
Como Garrett, portanto, Helder Macedo se “filia” a uma certa
tradição narrativa; “disfarça-se”, sem difarçar-se, em um duplo literário;
demonstra conceber a literatura como um símbolo; compõe um romance
com partes desconexas, mas cujo sentido encontra-se precisamente na
“justaposição significativa” dessas partes.
Porém, o narrador de Partes de África, não satisfeito em expor
sua “teoria ficcional”, precisa dar “outra volta no parafuso”, jogando
com as palavras de modo a obscurecer o que parecia claro. Trata-se,
então, de uma teoria que não apenas esclarece, mas problematiza e, no
limite, caminha para o paroxismo, já que carrega a cada linha sua negação. Por todo o romance, multiplicam-se os exemplos de expressões
antitéticas ou contraditórias.4
Não se trata de jogos verbais gratuitos. As antíteses de Macedo,
como os quiasmos de Garrett, possuem a função de representar, no corpo do texto, as contradições e paradoxos temáticos do romance. E estão
presentes em diferentes níveis: no nível dos personagens, compostos
em oposição uns em relação aos outros; no nível metaliterário, ou seja,
nas reflexões sobre o romance e na elaboração de sua suposta “teoria
ficcional”, contraditória e que se deslegitima a si mesma; na composição estrutural do próprio romance, composto por registros de diferentes
estatutos textuais; no sentido social ou histórico, na descrição de conflitos e relações de poder. E a começar pelo primeiro capítulo, no qual o
“autor se dissocia de si próprio e desdiz o propósito deste livro”, para
ao final concluir (Macedo, 1999a, pp. 10-11, grifos meus)
4 Exemplos: Não era ideologia era um instinto básico de sobrevivência, de não querer sobreviver assim, de saber que quando tinha medo de fazer alguma coisa é porque devia fazê-las,
que quando tinha razão é porque a não tinha, que a virtude era o mais torpe dos vícios e
que ao menos os vícios não eram virtude (Macedo, 1999a, p. 100, grifos meus). Ou ainda:
E os ex-camaradas sem imaginação que, de repente, a partir do momento em que aceitou,
o acusaram de traição e deixaram de o conhecer, é porque nunca o tinham conhecido, nem
nunca serão capazes de imaginar uma ponte suspensa num rio sem margens (Macedo, 1999a,
p. 106, grifos meus).
120
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
E agora, tendo definido as fronteiras ausentes desta minha grave viagem e, de novo poeta em anos de prosa, tendo prenunciado com os
ecos literários pertinentes o verdadeiro não-propósito dos meus plurais
romances, poderei começar, como cumpre, depois do princípio.
Dentre as muitas dicotomias estabelecidas no romance, a mais
importante delas, que contamina as demais relações de forma e sentido, é a relação entre História e ficção, como fica explícito na curiosa
declaração que abre o capítulo 5, em que o narrador declara categoricamente que não se trata de uma “autobiografia” nem de “um romance a
fingir que não é um romance” (Macedo, 1999a, p. 39). Ou seja, o livro
não esconde seu estatuto ficcional, de modo que mantém o privilégio
de abarcar discursos de diferentes naturezas e a manipular à vontade
gêneros diversos como a autobiografia, o teatro, a poesia, o ensaio, sem,
contudo, se comprometer com a verdade ou com a especificidade destes
discursos.
Mais importante, porém, do que apenas se pronunciar a respeito
do estatuto ficcional do livro é adotar procedimentos declaradamente
ficcionais ― e indicá-los. Um bom exemplo é a composição de personagens “segundo o método de Taine”, como o inspetor da Pide Lobo
dos Santos. O romance exibe, continuamente, seus procedimentos ficcionais, sem, em nenhum momento, exigir para si o status de verdade
histórica ou biográfica. Principalmente porque parte não de documentos
ou de pesquisas históricas, mas da memória. Como já afirmou Marisa
Corrêa Silva (2002, p. 13), “a recordação, em Partes de África, é assumida como jogo; e jogo ficcionalizante”, e não como índice da verdade. Em Partes de África, a recuperação do passado histórico e pessoal
não se dá através do estudo historiográfico de documentos e recolha de
testemunhos, mas através da rememoração: “Recordar tem muito de parecido com imaginar, mas julgo que recordo com razoável veracidade”
(Macedo, 1999a, p. 50).
Helder Macedo tem demonstrado, em conferências e depoimentos, plena consciência da interpenetração entre História e ficção, questão
desenvolvida profundamente pela ficção portuguesa contemporânea, já
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
121
que “o que chamamos História é também uma percepção da memória:
a memória própria de quem viveu ou observou o que aconteceu, o testemunho de outros, registros, documentos, imagens” (Carvalhal,; Tutikian, 1999, p. 38).
Sob o signo da recordação e da imaginação, portanto, as memórias do narrador não estão sujeitas aos imperativos memorialistas ou
historiográficos; afinal, e de qualquer modo, o memorialismo e a História também estão sujeitos aos limites da representação e, portanto, da
ficção.
Ciente disso, o narrador reafirma continuamente o estatuto ficcional de seu livro, de modo que, ainda de acordo com Marisa Corrêa
Silva (2002, pp. 148-149),
Ao recusar explicitar as fronteiras (e mesmo atribuir qualquer importância à diferença) entre real e imaginário, Macedo já contesta uma
visão tradicional de História: se a memória do homem já é misto de
lembrança e imaginação, que diferença faz se o conteúdo imaginário
surgiu inadvertida ou deliberadamente? Real e ficção serão irremediavelmente misturados ao tentarmos capturar um fato, um evento, um
relato.
É possível estabelecer como se dá essa “irremediável mistura”
entre real e ficção, e localizar alguns desses procedimentos, através dos
quais se efetua a indistinção entre memória, imaginação e a História ou a
biografia. O primeiro deles é o próprio ritmo da narrativa, que é sempre
o da memória. Daí as associações rápidas, nem sempre explicadas ao
leitor, as elipses de sentido, as idas e vindas do enredo, de que é um bom
exemplo o capítulo 2, um longo mosaico (para usar um termo bastante
adequado) de cenas de infância que se sucedem em um ritmo caprichoso
de evocação. Algumas delas, lembradas em termos infantis: como quando se refere a uma viagem através de uma zona de conflito, onde via
“pessoas com ramos de árvores a crescer dos ombros”, ou maravilhava-se com um botão na parede que fazia haver luz imediatamente.
122
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
E é assim mesmo quando descrevem eventos históricos e suas
conseqüências. Ou seja, a voz do narrador nunca é escondida, e as cenas não se pretendem realistas como em uma fotografia. Em nenhum
momento o narrador almeja a impessoalidade do discurso histórico tradicional, embora ostente sempre que também fala da história; e o faz,
mas como que obedecendo ao ritmo de sua ficção: sem linearidade, com
lapsos de causalidade, sem comprovação dos fatos.
É uma forma de contar que vem da infância, aprendida com a
mãe: a fantasia e outras “coisas mais improváveis” ficaram entrelaçados
com “o infalível fascínio de ouvir minha mãe”, numa época em que “não
era necessário distinguir entre o que era verdade por ter acontecido e o
que era verdade sem ter de acontecer, entre o sonho da noite e o brincar
da manhã” (Macedo, 1999a, p. 15).
Não se trata, apenas, de confundir fatos e invenção na memória
infantil. É o narrador já adulto que confere estatuto ficcional a fatos históricos, como, por exemplo, quando descreve um episódio que envolve
a FRELIMO (Frente de Libertação Moçambicana) (Macedo, 1999a, p.
37, grifos meus)
Conta-se que quando o avião com os primeiros russos sobrevoou Lourenço Marques houve um motim a bordo porque não acreditavam que
aquela pudesse ser a mesma cidade que a propaganda lhes fizera prever. […] Conta-se também que […] os dirigentes da FRELIMO pediram aos vertiginosos descolonizadores de torna-viagem um período de
transição que lhes permitisse prepararem-se para assumir o poder […].
Mas contam-se muitas coisas.
A verdade por trás do evento evocado, se a há, não pode ser
alcançada, ou pelo menos não pelo romance. O “contar” do narrador
não diz respeito apenas um procedimento localizado, mas o próprio e
aparentemente único meio de se ter acesso à história: “Ou assim se dizia que disse, como história cochichada entre sorrisos ainda cúmplices
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
123
com a Primeira República, ou já em incrédulo Estado Novo” (Macedo,
1999a, p. 14).
Afinal, alguns episódios da História oficial parecem puras ficções, ainda que suas consequências possam ser terrivelmente factuais.
Como aquela “guerra do Bate-pá”, inventada por um governador que
“depois inventara uma revolução para justificar os massacres com que
reprimira a guerra que não houve. Ou alguém inventou tudo por ele e
ele acreditou, tendo mandado matar gente às centenas (...)” (Macedo,
1999a, p. 96).
Além disso, a literatura é sempre uma referência de comparação
para que o narrador explique o contexto histórico ou a composição de
determinada personagem. Assim, certos ritos tribais são descritos “como
os brasileiros torna-viagem nas novelas do Camilo” (Macedo, 1999a, p.
59-60) e o entusiasmo de alguns amigos “pelo folclorismo nordestino do
Jorge Amado era sintoma irrefutável de precoce subversão moçambicana” (Macedo, 1999a, p. 61). Ou ainda, sobre as violentas conseqüências
de um conflito de fronteira: “Enfim, romances que nem o Jorge Amado
no seu pior” (Macedo, 1999a, p. 99).
É preciso dizer que a literatura não é a única forma de efabulação
utilizada nestas comparações, mas também o cinema, jogo, a ópera, metáforas constantes mesmo em seus outros romances. O ministro Teófilo
Duarte, por exemplo, tinha do Império uma concepção semelhante à
de Grouxo Marx no filme em que era gerente dum grande hotel e mandou mudar os números de todos os quartos: “Mas pense na confusão!”
teria dito alguém, para a pronta e fictícia (mas plausível) resposta do
ministro: “Ora, pense mas é no gozo!” (Macedo, 1999a, p. 55). Mesmo a política internacional não está isenta da demolidora observação do
narrador, que repara que, dos espiões em atividade durante a Segunda
Guerra Mundial em Lourenço Marques estavam “um inglês, um alemão,
um italiano e um francês, como nas anedotas” (Macedo, 1999a, p. 56).
E a ópera, tantas vezes presente, proporciona dois dos momentos mais
significativos do romance: o comportamento bizarro deste Gomes Leal,
que torturava os escravos ao mesmo tempo em que os fazia representar
peças de sua predileção, e o Drama Jocoso, do Garcia de Medeiros,
124
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
reproduzido em grande parte do romance, como uma adaptação do Dom
Giovanni de Mozart.
Quanto à política do pai, é associada a um jogo de cartas (Macedo, 1999a, p. 79):
Ou, pelo menos, desse construtor daquele império, num jogo de vida e
de morte que acaba quando se joga a carta final do baralho, e depois o
baralho é arrumado e não se fala mais disso. O fim do jogo, para ele [o
pai], a carta final do baralho, deve ter sido o último governador-geral
de Angola a sair às escondidas pela porta do quintal com a bandeira
enrolada debaixo do braço.
O binômio História e Ficção também é simbolizado por outra das
principais antinomias do romance, a oposição entre o núcleo materno e
o paterno, subentendida na seguinte distinção: “Uns imaginam o mundo, outros controem-no. São modos complementares de ser e ambos me
merecem simpatia. Também há quem construa um mundo imaginário e,
nesse caso, depende” (Macedo, 1999a, p. 29).
O pai, seguramente, pertence ao grupo dos que constroem o
mundo. Com ele, o narrador manteve uma relação tumultuada, devido
às funções políticas que exercia. Homem prático, ligado à história oficial, não era “dado a metáforas, e seus estilo, que Stendhal aprovaria,
era o caminho mais rápido entre um nome e um verbo” (Macedo, 1999a,
p. 10). Ideológica e politicamente, está comprometido com o imperialismo, embora sua conduta seja bastante ambivalente. Se, por um lado,
compactua com os preconceitos essenciais do colonialismo, demonstra
em sua atuação política um comportamento diferenciado, mais humanista.
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
125
Maria Corrêa Silva (2002, pp. 37-38) reforça que o pai é o
único representante de uma mundivisão contrária à do “autor”-narrador que não sucumbe à ironia deste, a convivência respeitosa, ainda
que nem sempre pacífica, e a amizade que une pai e filho são o maior
índice da “desautorização”, da relativização que Macedo permite sobre
os seus próprios pontos de vista, sua própria ideologia.
De outro lado, a mãe faz parte daquele grupo que imagina o
mundo, e representa, portanto, o lado literário da família. Tendo casado
cedo, era como outra criança de que o pai cuidasse, e manteve-se muito
próxima dos filhos, principalmente contando-lhes histórias. Era assim
também seu Avô materno (assim mesmo, com maiúscula) imortalizado
na memória do menino como em uma ilustração de um livro: “republicano, maçon de barbas ruivas e olho camoniano perdido na Primeira
Grande Guerra” (Macedo, 1999a, p. 14).
Deste modo, escrever um livro de memórias é sempre ultrapassar
as fronteiras entre os domínios da História e da ficção. Ilustrativo neste
sentido é o início de seu segundo romance, Pedro e Paula, narrado de
maneira “realista”, ou seja, “baseado no que eu próprio vi e não no mero
diz-se” (Macedo, 1999b, p. 17). Deste modo, os personagens do filme
Casablanca são transportados para a Lisboa de 1945, ultrapassando
qualquer fronteira que pudesse haver entre invenção e realidade histórica. A História, revista pela memória, “é como se fosse ficção minha”,
diz o narrador (Macedo, 1999a, p. 130).
Em Partes de África, a História sujeita-se à ficção, e a ficção é
repleta de marcas históricas. A oposição antitética se inverte, não propriamente como um quiasmo Garrettiano, mas ansiando igualmente por
uma síntese. Síntese que não há, ao menos não em termos evidentes.
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS
126
5.
Em Partes de África, escrever é reabitar “a galeria de sombras”
que foi a casa paterna, penetrar num “largo corredor com as paredes
quase totalmente cobertas por fotografias que refletem, como crônica
minimalista de família, a história de uma boa parte do colonialismo
português do último império” (Macedo, 1999a, pp. 9-10). Reavaliar a
História e a biografia não é possível senão assumindo-as como ficção;
para tanto, Macedo recorreu aos seus mestres literários, particularmente
Garrett, e demonstra pretender, como o autor de As viagens na minha
terra, criar suas próprias “metáforas da história”.
É preciso notar, porém, que para além da leitura de que os personagens de Macedo simbolizam um momento histórico português,
é preciso compreender que o sentido do texto se constrói também na
disjunção entre suas partes, na obsessão metaficcional, virtuosismo narrativo. Neste sentido, Partes de África ficcionaliza o processo criação
que poderíamos, didaticamente, dividir em dois planos: a redação de
uma autobiografia que espelhasse o passado do país, e que por isso é um
projeto de restauração; e o desenvolvimento de uma teoria ficcional que
esclarecesse os imperativos dessa redação e que espelhasse procedimentos já analisados pelo catedrático em sua produtiva carreira de ensaísta.
Mas em Partes de África (e nos romances seguintes de Macedo), fica claro que o passado, histórico ou pessoal, não é possível de ser
restaurado. A restauração é sempre fantasmática, o que Macedo (2007,
pp. 56-57) já descobrira em um ensaio a propósito de Dom Casmurro: “qualquer restauração, seja ela política ou psicológica, é sempre um
exercício de mortalidade, uma história de fantasmas”.
Além disso, o plano da biografia e o da teoria ficcional, justapostos, terminam por compor uma das muitas antíteses do romance, já
que se negam mutuamente: dizer que a autobiografia se compõe como
mosaico é negar sua condição restauradora, ou sua capacidade de metaforizar a história senão como cacos e fragmentos. Ao mesmo tempo,
continuar narrando não deixa de ser a afirmação do valor da narrativa,
seja ela histórica, biográfica, ficcional, apesar de suas contradições e do
aparentemente caótico discurso metaficcional.
MOSAICOS ESPELHADOS: UMA LEITURA DE PARTES DE ÁFRICA, DE HELDER MACEDO
127
O projeto literário de Helder Macedo — desenvolvido até o momento em mais quatro romances — opera sobre um impasse: ficcionalizar restaurações impossíveis, justapondo História e ficção sem que
emerja desse contraste uma síntese evidente, senão a própria ficção em
sua fragmentária, mas imprescindível, condição.
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RIBEIRO, Margarida Calafate. Parte de nós: uma leitura de Partes de África. In: Teresa Cristina
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SILVA, Marisa Corrêa. Partes de África: cartografia de uma identidade cultural portuguesa. Rio
de Janeiro: EdUFF, 2002.
VEREDAS 16 (Santiago de Compostela, 2011), pp. 129-150
Marcas da presença do discurso
mítico em Memorial do convento
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
Resumo
Este texto trata-se, basicamente, de um exercício de leitura que se propõe ver no romance Memorial do convento, de José Saramago, marcas da presença do discurso
mítico. Dada a riqueza do romance, optamos pela análise das ações e delas fizemos
ainda um recorte abrupto, escolhendo aquelas que se agrupam no conjunto das funções
cardeais, ou nucleares, essenciais à narrativa e demos prioridade às em que os ecos do
discurso mítico apresentam-se de forma mais vibrante. O entendimento de que o discurso literário se configura enquanto bacia receptora do discurso mítico permitiu-nos
deitar um olhar outro para o romance de José Saramago: o olhar para o funcionamento
das próprias articulações do romance e capacidade do autor em apreender elementos
das mais variadas narrativas míticas para a construção de seu universo de tinta e papel.
Parecem residir em Memorial do convento, claramente, pelo cotejo dos excertos apresentados, mais que traços, traçados de elementos do discurso mítico, que se articulam
não somente como ecos, mas como se fossem pinceladas que em alguns momentos
vêm à superfície da tessitura textual e se destacam em alto relevo, projetando uma
atmosfera que, por vezes, apesar do constante repelir, aproximam-se e interseccionam-se para a constituição da trama do romance.
Palavras-chaves: Discurso mítico. Discurso literário. Memorial do convento.
Abstract
This text comes from a reading assignment that proposes to see in the novel Memorial
do Convento, by José Saramago, marks of the presence of mythic discourse. Given
the richness of such a novel, we chose to analyze the actions and made them even
an abrupt cut, choosing those that cluster in the set of cardinal or nuclear functions,
essential to the narrative and give priority to echoes of the presence of more vibrant
mythical discourse. The understanding that literary discourse is shaped as a receiving
130
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
basin of mythic discourse allowed us to give another look to this novel by José Saramago: a look at the functioning of his joints in the novel and the author’s ability to
grasp elements of the various mythic narratives to build its universe of ink and paper.
It seems to reside in Memorial do Convento clearly shown by comparison of the passages more than traces of elements of mythic discourse, which are articulated not only as
echoes, but as if they were brush strokes that at times come to the surface of the fabric
and textually stand out in high relief, projecting an atmosphere that sometimes, despite
the constant fighting off, approaching and intersecting, the plot of the novel is formed.
Keywords: Mythic discourse. Literary discourse. Memorial do convento.
A etimologia da palavra mito vem do termo falar, dizer, mutheisthai, que
traz a oralidade como princípio e componente básico à sua constituição
enquanto acontecimento discursivo. Logo, é do ouvir e do contar que o
mito se alimenta e se constitui e é nesse processo que também os narradores se alimentam (Flores, 2000). Apesar da aparente simplicidade,
sabemos que o conceito mais simples acerca do termo não ficaria apenas nestas categorias do ‘ouvido’ e do ‘dito’. Como todo acontecimento
discursivo, o mito é banhado pela realidade cultural na qual se insere
e, por isso mesmo, não pode ser entendido senão como uma realidade complexa, podendo ser abordado e interpretado por vias diversas;
enquanto tal, sua estrutura se compõe de valores sociais, ideológicos e
religiosos. Para o propósito desta leitura, adotaremos o entendimento de
que o discurso mítico é aquele que “visa transmitir conceitos globais,
apresentando-nos o que é de difícil compreensão de forma simplificada,
reduzindo a essência das coisas à sua gênese”, que é o conceito formulado por Lévi-Strauss (Flores, 2000, p.18). De Eliade (2007, p.11)
acrescentamos: tem uma “missão sagrada”, se propõe “relatar” feitos
dos Entes sobrenaturais, como deuses e heróis divinizados, ocorridos no
tempo primordial, no tempo fabuloso, do princípio.
Quanto ao discurso literário, grosso modo, podemos entendê-lo
como aquele que se constitui de/nos interstícios da memória pessoal e
social, marcadamente pela ficção, pela fantasia criadora de seu autor,
pela visão ideológica da História e da realidade e pela percepção herdada no trato com as pessoas e os livros (Bosi, 1988). A ficção, que é
marca principal desse discurso, é no romance “uma estratégia de criação
MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
131
para tornar as coisas como nós, queremos que elas sejam. Seria a nossa
maneira de metamorfosear o mundo” (Bastazin, 2006, p.38).
Por tais discussões até agora apresentadas, vemos que ambos
os discursos, o mítico e o literário, ora afastam-se, ora aproximam-se
e interseccionam-se. Do afastamento, quando entendemos que o mito
trata-se de uma instância sagrada, norteando padrões morais e religiosos, enquanto que o literário ao recriar o mundo expressa valores de
uma sociedade numa visão dessacralizadora, eivada pela perda de fé nos
acontecimentos do mito. Das aproximações e intersecções, consideremos alguns aspectos: ambos os discursos fundam-se sob a base da metáfora; são ‘discursos de representação’ ao encapsular o real, este que é de
difícil apreensão e compreensão; além disso, o objeto de representação
no mito é sempre, como na literatura, um signo.
Desse modo, parece pertinente ressaltar que, recorrer ao mito, na
análise literária, significa buscar encaminhamentos para uma compreensão mais profunda do texto, consoante Northrop Frye, crítico literário
contemporâneo vinculado à corrente mitológico-ritualista, cujo precursor foi Mircea Eliade.
1.
Feitos os devidos recortes e estabelecidos os conceitos para nosso propósito, passemos a relação do discurso saramaguiano com o discurso mítico.
O discurso literário é o espaço no qual emerge sob forma de marcas o discurso mítico. Nos romances de José Saramago não é diferente:
são romances que deixam entrever as costuras e alinhavos de seu feitio.
Exemplo maior, Manual de pintura e caligrafia (1977),1 que o narrador
ao se voltar para a arte de imitar o mundo pela pintura, se volta para
refletir sobre o próprio ato de escrita e da sua relação narrador-autor
com a escrita e a linguagem. Ainda, o mundo ficcional, construído por
Saramago, neste e em outros romances, não é dado como objetivo, mas
1 As datas referendadas entre parêntesis correspondem ao ano de publicação da obra em questão, o que não necessariamente se reflite nas referências bibliográficas.
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PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
fruto de uma vivência cadenciada pela subjetividade, processada ao longo da diegese, de modo que, as perspectivas, por vezes, são-nos dadas
de maneira borradas e povoadas por sujeitos fragmentários, ‘errantes’,
em trânsito, em vias de formação.
O ato cosmogônico, que trata da questão do princípio, origem e
evolução do universo e, consequentemente da origem do homem, deixa-se entrever no próprio ato de criação do romance. Isso é claro quando
entendemos que o narrador, como deus do Génesis, deve criar todo o
terreno da ficção, dá corda aos seus seres de tinta e papel para que se
ponham a desenrolar as ações, injetando vida ao mundo outro que se
ergue. Por tais vias, as costuras e alinhavos postos à vista no romance
saramaguiano parecem incorporar também essa perspectiva da cosmogonia, levando-nos a concordar com Bastazin (2006, p.101), quando
afirma que, “da mesma forma que a mitologia relata o modo como algo
foi produzido e manifestou-se na sua plenitude, o texto saramaguiano
parece relatar a apreensão do segredo da origem e trazê-lo, ao leitor,
desde o início da narrativa” (grifos da autora).
Nos romances do escritor português, em específico esse Memorial do convento, tal como nos mitos, as histórias e suas personagens
convertem-se, em decorrência de estratégias enunciativas, em potencialidades sempre abertas ao conjunto infinito de possíveis. Citemos, para
exemplo, ainda, de Levantado do chão (1980), Gracinda Mau-Tempo e
António Espada na conquista da terra e do pão; de Memorial do convento (1982), o casal Blimunda, esta vidente que vê o que há de “demais”
no mundo, e Baltasar Sete-Sóis, “deus-maneta”, o amor e a porfia pelo
devir de esperanças e desejos insubmissos, Bartolomeu de Gusmão, visionário ousado, sonhador, João Pequeno, corcunda centrado no existir
carente, e a leva de gente do campo e da cidade, trabalhadores esfolados
e vagabundos, vigiados pelo fogo da Inquisição e pela insanidade da
Coroa; de O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), Jesus e Maria de
Magdala, a paixão despojada; de Ensaio sobre a cegueira (1995), esse
Odisseu feminino, a mulher do médico, despida de tudo e vivendo nos
labirintos de uma sociedade caosificada por uma névoa branca que a
todos cega – essa que nasceu para ver de perto o horror, será o guia na
pólis urbana, a Odisséia moderna; ou ainda, para finalizar essa galeria,
MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
133
aquele homem que vai à procura de um barco para descobrir uma ilha
que nem ele próprio sabe o destino, em O conto da ilha desconhecida
(1997). Fiquemos com esses exemplos. Eles são já uma amostra significativa de que as personagens saramaguianas são prenhes da pluralidade que somos; são, por assim dizer, parafraseando Rosenfeld (1996, p.
90), “abertas para o passado que é presente que é futuro que é presente
que é passado”, abertas não apenas para um passado individual e sim
para o da humanidade; confundem-se com seus predecessores remotos;
são, ora manifestações fugazes, máscaras momentâneas, ora tipos que se
grudam às margens da história oficial; partícipes na eterna luta entre as
forças divinas e demoníacas, construtos históricos, religiosos, míticos,
culturais e poéticos.
2.
Memorial do convento data o quarto da leva de romances de José
Saramago. O autor pauta-se na história oficial para a escrita de uma história oficiosa cujo tema é a construção de um convento em Mafra. Esse
tema é permeado pela vivência amorosa do casal Blimunda e Baltasar e
pela construção da passarola, sonho de um padre, Bartolomeu de Gusmão, constituindo, desse modo, duas histórias que se amarram no corpo
do romance.
Neste ensaio objetivamos um exercício de leitura a fim de verificar no Memorial do convento, marcas do discurso mítico, uma vez
entendermos a Literatura, conforme os trajetos já delineados, enquanto
bacia receptora do mito. Preferimos nomear como leitura, no sentido
usado por Ravoux-Rallo (2005, p. 112), porque se trata de um percurso
pessoal que visa o destaque de certos excertos do texto para análise e de
deles o ‘desvelamento’ progressivo de um sentido; trata-se de um percurso que, embora tenha um princípio e um fim, é para ser lido como um
recorte sem princípio e fim, já que o pressuposto unitário de uma obra
literária nos parece falacioso porque é inalcançável.
Dada a riqueza do romance, optamos pelas ações; elas são que
nos servirão de categorias de análise. Tal escolha é meramente metodo-
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PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
lógica, já que os elementos da narrativa não são categorias estanques,
do contrário, estão em movimento, são complexas, não obedientes a um
continuum linear e apresentam-se, por vezes, de modo indestrinçável.
Das ações, fizemos ainda um recorte significativo. A escolha por tal elemento da narrativa não se deu aleatoriamente ou às cegas. Foi feita fundamentada no que propõe Roland Barthes (cf. Reuter, 2004): primeiro
distinguimos aquelas que se agrupam no conjunto das funções cardeais,
ou nucleares, essenciais à narrativa e depois demos prioridade àquelas
em que os ecos do discurso mítico se mostram mais vibrantes.
Assim, enumeramos sete movimentos da narrativa, dispostos da
seguinte maneira: (i) o ritual da procissão de penitência, no período da
Quaresma, decorrente no Terreiro do Paço; (ii) o primeiro encontro entre Blimunda e Baltasar, decorrido no Rossio, durante o auto-de-fé em
que Sebastiana de Jesus, mãe de Blimunda, é condenada ao degredo em
Angola; (iii) o ritual do casamento de Blimunda e Baltasar, dado na casa
de Blimunda; (iv) o ritual da perda de virgindade; (v) a recolha das vontades por Blimunda por toda Lisboa; (vi) o voo da passarola, construída em Sebastião da Pedreira; (vii) o último encontro de Blimunda com
Baltasar, decorrido no mesmo lugar onde se conheceram, no Rossio,
também num auto-de-fé, o último realizado em Portugal.
Situamos os espaços em que decorrem as ações porque entendemos serem eles fundamentais e, por vezes, determinantes dos acontecimentos na narrativa; conforme Bachelard (2008), “o espaço convida
a ação”. No corpo da diegese eles se organizam, formam sistemas e
produzem sentido, o que somente já mereceria um estudo mais acurado.
Atenção seja dada a Sebastião da Pedreira, por exemplo, onde é construída e de onde parte o voo da passarola e também onde se dá boa parte das
ações de ‘transgressão’ da ordem social e religiosa; que se registre o próprio ato de construção de um instrumento de voo como símbolo maior
das transgressões, entendendo que na época, século XVIII, só era permitido voar “os anjos e as divindades celestes”. Como lugar rural, distante
das vistas da Inquisição, da Igreja e da Corte, assemelha-se aos lugares
mágicos para os quais somos, toda vez transportados, quando escutamos
a entrada das histórias infantis – Era uma vez... – que, por conseguinte,
recobra o lugar onde se dá o mito, sempre num território sagrado, aquele
MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
135
que está longe da turbulência do urbano, do profano, isolado, em comunhão com a natureza. Adentremos a “abegoaria”: “cerca-os a grande
quinta abandonada onde as árvores de fruto vão regressando à braveza
natural, as silvas cobrindo os caminhos, e no lugar da horta encrespam-se Floresta de milhas e figueiras-do-inferno” (Saramago, 2007, p.87).
Mais claro ficará esse entendimento e essa importância quando for
dado a conhecermos que essa construção e esse voo da passarola são
os grandes ressoos do discurso mítico em Memorial do convento.
3.
(i) Vai sair a procissão de penitência. Castigámos a carne pela jejum,
merecemo-la agora pelo açoite. Comendo pouco purificam-se os humores, sofrendo alguma coisa escovam-se as costuras da alma. […]
Passa a procissão entre filas de povo, e quando passa rojam-se pelo
chão homens e mulheres, arranham a cara uns, arrepelam-se outros,
dão-se bofetões todos, e o bispo vai fazendo sinaizinhos da cruz para
este lado e para aquele. […]
Nas janelas só há mulheres, é esse o costume. Os penitentes vão de grilhões enrolados às pernas, ou suportam sobre os ombros grossas barras
de ferro […] ou desferem para as costas chicotadas como disciplinas,
feitas de cordões em cujas pontas estão presas bolas de cera dura, armadas de cacos de vidro, e estes que assim se flagelam é que são o
melhor da festa […] então levanta-se do coro feminil grande assuada,
e possessas, frenéticas, as mulheres reclamam força no braço, querem
ouvir o estralejar dos rabos do chicote, que o sangue corra como correu
do Divino Salvador, enquanto latejam por baixo das redondas saias, e
apertam e abrem as coxas segundo o ritmo da excitação e do adiantado
[…] é tudo coisa de fornicação, e provavelmente o espasmo de cima,
veio em tempo de responder ao espasmo de baixo, o homem de joelhos
no chão, desferindo golpes furiosos, já frenéticos, enquanto geme de
dor, a mulher arregalando os olhos para o macho derrubado, abrindo
a boca para lhe beber o sangue e o resto. (Saramago, 2007, p.28-30).
136
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
O recorte dessas imagens é bastante significativo. Marcado por
um ritmo caudaloso do fio da oralidade para findar como uma incursão
plástica, essas ações nos dão o entendimento das relações de afastamento que o discurso literário mantém com o discurso mítico e o entendimento de que as relações entre ambos os discursos que viemos apontar
no decorrer da análise, constituem-se, também como já dito, em marcas
do mito no romance. Tal conjunto de ações também deixa-nos entrever
um narrador que usa o espaço do sagrado e injeta-lhe uma cadeia de
ações profanas, que fica-nos impossível precisar onde é que um começa e onde que outro finda, fazendo-nos recobrar o proposto em Eliade
(1992), de que tal existência do profano não é nunca encontrada em estado puro, o que por extensão, podemos dizer o contrário: tal existência
do sagrado não se é nunca encontrado em estado puro.
Por outra via, esta leva de ações vem mostrar que a obra em
questão não pode, de forma alguma, ser lida com um mero olhar perscrutador, mas com um olhar penetrante, pois o que reside nela está na
transgressão, seja dos códigos religiosos, moral e social da época, seja
dos referidos códigos e valores ainda vigentes no presente. Essa profanização do sagrado, operada pelo narrador, é o que funda o caráter
dialético do romance; sagrado e profano se interpenetram e se redimensionam, tocados pelo sensoriamento de um narrador inquieto que busca
o tempo todo o choque entre o oficial e o não-oficial, o dito e interdito.
Antes de tudo, é preciso entender que momentos históricos como estes,
serão visitados ao longo do romance pelos veios da dessacralização ou
desoficialização.
O conjunto de ações mostra-nos, por oposição, o disparate entre
o espaço dos rituais religiosos, locais de libertação e libertinagem sexual feminina, e os espaços de construção da passarola e dos encontros
sexuais entre Blimunda e Baltasar. É nesse espaço, aliás, que, ambos se
conhecem – um auto-de-fé era espetáculo que se assemelhava às procissões que eram concentradas no mesmo cenário; daí deverão partir para
fundar outro mundo (Saramago, 2007, pp. 50-51)
MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
137
(ii) Grita o povinho furiosos impropérios aos condenados, guincham
as mulheres debruçadas dos peitoris, alanzoam os frades, a procissão é
uma serpente enorme que não cabe direito no Rossio e por isso se vai
curvando e recurvando como se determinasse chegar a toda parte ou
oferecer o espectáculo edificante a toda a cidade […] ali está, Blimunda, Blimunda, Blimunda, filha minha, e já me viu, e não pode falar, tem
de fingir que me não conhece ou me despreza, mãe feiticeira e marrama ainda que apenas um quarto, já me viu, e ao lado dela está o padre
Bartolomeu Lourenço, não fales, Blimunda, olha só, olha com esses
olhos teus que tudo são capazes de ver, e aquele homem quem será,
tão alto que está perto de Blimunda e não sabe, ai não sabe não, quem
é ele, donde vem, que vai ser deles, poder meu, pelas roupas soldado,
pelo rosto castigado, pelo pulso cortado, adeus Blimunda que não te
verei mais, e Blimunda disse ao padre, Ali vai minha mãe, e depois,
voltando-se para o homem alto que lhe estava perto, perguntou, Que
nome é o seu, e o homem disse, naturalmente, assim reconhecendo o
direito de esta mulher lhe fazer perguntas, Baltasar Mateus, também
me chamam Sete-Sóis.
As ações desse segundo momento dão-nos contas de um auto-de-fé. Uma leva de condenados pela Inquisição segue em desfile por
entre a multidão: serão uns queimados na fogueira e outros, como a mãe
de Blimunda, Sebastiana de Jesus, surrados e degredados para Angola.
Nesse momento assistimos a tomada de voz da narrativa por Sebastiana; é ela que, por uma espécie de telepatia, predestina e guia o olhar de
sua filha Blimunda a Baltasar Mateus, soldado maneta recém chegado a
Lisboa, vindo da Guerra de Sucessão, na Espanha. É assim que ambos
se conhecem.
Da cadeia dessas ações, dois signos são importantes de recortar:
a imagem da serpente, que a procissão é comparada, e o olhar de Blimunda. O primeiro traz uma carga simbólica para o que eram as procissões de auto-de-fé: espetáculos ao ar livre como najas a bailar, saindo do
cesto de seus encantadores tendo por missão entreter e intimidar os que
assistem; também, de imediato, parece-nos remeter ao dragão mítico,
necessário de ser morto para a instauração do cosmos. E o segundo marca a fundação do princípio cósmico. É o olhar de Blimunda que seduz e
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PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
arrasta Baltasar ao encontro com ela; é o olhar de Blimunda o que dará
início ao desenrolar da própria trama narrativa (Saramago, 2007, p. 53):
Baltasar Mateus, o Sete-Sóis, está calado, apenas olha Blimunda, e de
cada vez que ela o olha a ele sente um aperto na boca do estômago,
porque olhos como estes nunca se viram, claros de cinzento, ou verde,
ou azul, que com a luz de fora variam ou o pensamento de dentro, e às
vezes tornam-se negros nocturnos ou brancos brilhantes como lascado
de carvão de pedra.
A imagem desse olhar será recorrente durante todo o romance,
o que daria uma outra investigação crítica, certamente. Ressalte-se que
esse olhar de Blimunda não se reduz a fundar um cosmos, mas também
a guiá-lo, entendendo que é por através dele que todas as ações da narrativa serão coadas.
(iii) Blimunda levantou-se do mocho, acendem o lume na lareira, pôs
sobre a trempe uma panela de sopas, e quando ela ferveu deitou uma
parte para duas tigelas largas que serviu aos dois homens, fez tudo isto
sem falar, não tornara abrir a boca depois que perguntou, há quantas
horas, Que nome é o seu, e apesar de o padre ter acabado primeiro de
comer esperou que Baltasar terminasse para se servir da colher dele,
era como se calada estivesse respondendo a outra pergunta, Aceitas
para a tua boca a colher de que serviu a boca deste homem, fazendo
seu o que era teu, agora tornando a ser teu o que foi dele, e tantas vezes
que se perca o sentido do teu e do meu, e como Blimunda já tinha dito
que sim antes de perguntada, Então declaro-vos casados. (Saramago,
2007, pp. 53-54)
Esta cena parece ser, com a do olhar e da perda da virgindade de
Blimunda, uma das mais poéticas do romance; portadora de uma simplicidade tamanha, entretanto, de forte riqueza simbólica. O silêncio da
MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
139
narrativa já ressalta sua grandeza e sua beleza; por si só, é o silêncio
o seu qualificativo maior. É um momento sublime, em que o acontecimento fala por si próprio. É a cena em que se processa a edificação
do cosmos, que será regido pela trindade terrena, Blimunda, Baltasar e
Bartolomeu. Remete-nos ao ritual cristão do repartir do pão e do vinho
na última ceia, remontado, inclusive, com a mesma precisão simbólica:
a divisão do alimento essencial como purificação e rememoração das
origens. Acrescido estará o ritual do casamento e do ato sexual, sugestivamente exposto na permuta dos pronomes possessivos “teu” e “meu”,
intermediado por uma colher, que pelo seu formato é máxima representação simbólica do hermafrodito: o falo e o sexo feminino.
O entendimento da instalação de um cosmos fará mais sentido
ainda quando reportarmos para o fato de que essa trindade, que se reúne
agora ao redor de uma mesa, como cavaleiros medievais, vem de um auto-de-fé em que pessoas foram surradas, degredadas, queimadas. A fuga
do caos para um espaço mítico, a casa, “nosso lugar no mundo”, nosso
“verdadeiro cosmos” (Bachelard, 2008, p. 24), centro primordial, outro
mundo, lugar de eleição de silêncio, de paz e de aconchego em meio
da ignorância e agitação do mundo externo, profano; a casa é o espaço
necessário para a instalação de uma cosmogonia, que contraria a todos
os princípios já formulados e se deixará reger por princípios próprios.
A repartição do pão também vem recobrar o proposto por Chevalier e
Gherbrant (1997), o retorno da vida ativa. O ato sexual de Blimunda e
Baltasar é o passo seguinte para a re/fundação dessa vida ativa, a constituição do cosmos (Saramago, 2007, pp. 54-55):
(iv) Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltasar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara
muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com a ponta
dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltasar, sobre o coração. Estavam
ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. Depois o silêncio. Não correu mais sangue. (Saramago,
2007, p.54-55)
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PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
O ritual de perda da virgindade é a consumação do matrimônio
e representa um vínculo entre um fim e um começo, entre o que deixou
de ser e o que penetrou na vida real (Brandão, 2004). O sangue é aqui
símbolo de um rito de passagem, signo da vida em oposição à morte. E
o erguer de uma cruz de sangue sob o peito de Baltasar assemelha-se à
demarcação de um centro para a instauração do cosmos.
Os dedos utilizados por Blimunda, o médio e o indicador, são
os mesmos utilizados pelos padres nos rituais de persignação dos óleos
santos aos fiéis nos sacramentos. Isso nos permite o emparelhamento
da personagem à figura de uma sacerdotisa, que, com pureza e instinto,
instaura a consolidação da união celebrada por Bartolomeu (cena iii).
Este gesto, centrado na cruzada do direito com o esquerdo, do alto com
o baixo, desenha os movimentos das leis que deverão reger este cosmos:
o surgimento de uma outra teologia, misto de cristianismo e paganismo,
que rompe em definitivo com os princípios acordados pelo dogmatismo
cristão.
A observação feita por Pitthan (2008, p. 2) para o desfecho dessa
cena vem corroborar para a associação do entendimento que dela fizemos em concomitância com as outras observações nossas: no “mesmo
momento em que Blimunda e Baltasar comungam na carne, do lado de
fora, na rua, um outro embate se faz ouvir, e não de corpos que se completam numa correspondência de completude e soma, mas de disputa, de
divisão, no som retinido das espadas”. Tal observação também instaura
o sentido dual para a simbologia do elemento sangue; ao mesmo tempo
em que representa a vida, um retorno a ela e uma instauração do cosmos, o sangue faz ser a representação da morte. Dados todos os rituais
de fundação do cosmos, será hora de dar início a empreitada maior, a
construção da passarola, da sagração do mito.
(v) Segurava Baltasar a mula, e Blimunda estava afastada alguns passos, de olhos baixos, com o bioco puxado para adiante, Bons dias, disseram eles, Bons dias, disse o padre, e perguntou, Blimunda ainda não
comeu, e ela, da sombra maior das roupas, respondeu, Não comi […]
Pelas ruas escuras, foram subindo até o alto da Vela […]
MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
141
Diz o padre Bartolomeu Lourenço, […] ouçam então, na Holanda soube o que é o éter, não é aquilo que geralmente se julga e ensina, e não
se pode alcançar pelas artes da alquimia, para ir buscá-lo lá ele onde
está, no céu, teríamos nós de voar e ainda não voamos, mas o éter,
dêem agora muita atenção ao que vou dizer-lhes […] vive dentro dos
homens e das mulheres […] compõe-se, sim, ouçam bem, das vontades
dos vivos.
[…] Como é a vontade, É uma nuvem fechada, Que é uma nuvem fechada, Reconhecê-la-ás quando a vires, […] para isso viemos aqui […]
Blimunda levantou a cabeça, olhou o padre, viu o que sempre via, […]
Não vejo nada. O padre sorriu, Talvez que eu já não tenha vontade,
procura melhor, Vejo, vejo uma nuvem fechada sobre a boca do estômago. […] Tirou do alforge um frasco de vidro que tinha presa ao fundo, dentro, uma pastilha de âmbar amarelo, Este âmbar, também chamado electro, atrai o éter, andarás sempre com ele por onde andarem
pessoas, em procissões, em autos-de-fé, aqui nas obras do convento, e
quando vires que a nuvem vai sair de dentro delas, está sempre a suceder, aproximas o frasco aberto, e a vontade entrará nele. (Saramago,
2007, pp. 120-122)
Observando o poder dado a essa mulher, Blimunda Sete-Luas,
é possível ver a sua grandiosidade: ela é a responsável em elevar ao ar,
“onde até agora só subiram Cristo, a Virgem e alguns escolhidos santos”
(Saramago, 2007, p. 86), o homem. As ações apresentadas nesse recorte
dão conta do princípio dessa empreitada do voo, voo que se processará,
ironicamente, antes da construção de Mafra, obra meramente dependente da vontade humana. Aqui reside o caráter de subversão operada pelo
autor-narrador ao termo ‘memorial’, título da obra. Apesar de ser o fato
da construção do convento o mote para a narrativa, é a passarola a que
rouba a cena, fazendo o leitor inverter o olhar para os fatos apresentados
no correr da diegese.
A máquina de voar insere-se na narrativa como um mito do qual
depende o homem para viver; a capacidade de voo equipara-se a capacidade de transcendência humana, capacidade tão necessária à produção
da condução de nossa existência.
142
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
Aqui, é inevitável fugir das aproximações com as várias narrativas do mito grego. Primeiro, essa capacidade de Blimunda em ver o
que está além nos remete ao cego Tirésias – a cegueira de um e a visão
excessiva do outro, interseccionadas quando nos é dado a saber que Tirésias, cegado por Hera, passa a usufruir da mantéia, o dom da previsão,
dado por Zeus, que é dom de Blimunda.
Depois, o padre Bartolomeu de Gusmão. Este se assemelha ao
Ícaro, punido juntamente com Dédalo, seu pai, à prisão no labirinto do
Minotauro. Bartolomeu, como cientista, ignora os fanatismos de sua religião, questiona todos os princípios dogmáticos e mergulha no seu sonho de voar, como mergulha Ícaro no céu azul e encanta-se pelo sol. O
desfecho trágico operado no curso da narrativa mítica é o que se processará na narrativa saramaguiana: pela ambição daquele, as asas derretem
e padece no mar Egeu, pela ambição deste, vê-se dominado pelo seu
próprio invento padece de loucura e morre. Além de que, as condições
de voo de ambos, Ícaro e Bartolomeu, são provenientes do mesmo estágio de emparedamento: o primeiro encontra-se no labirinto e o segundo
sob o olhar castrador da Inquisição. Bartolomeu, juntamente com seu
casal titã, repete o desejo de Faetone, filho mortal de Hélios, que, querendo imitar o pai, consegue a promessa de guiar o carro do sol por um
dia. Mas, Faetone não conseguindo manobrar os cavalos e sustentar o
carro na abóbada celeste despenca-se sobre a Terra, incendiando-a e matando o jovem e sua ousadia. O desejo de voar, do mesmo modo, matarão Bartolomeu e Baltasar e transformará Blimunda em mulher vagante
pelo mundo.
Uma vez recolhidas as vontades, vamos assistir, então, ao voo da
passarola (Saramago, 2007, pp. 188-189):
(vi) Agora, sim, podem partir. O padre Bartolomeu Lourenço olha o
espaço celeste descoberto, sem nuvens, o sol que parece uma custódia
de ouro. Depois Baltasar que segura a corda com que se fecharão as
velas, depois Blimunda, prouvera que adivinhassem os seus olhos o
futuro, Encomendemo-nos ao Deus que houver, disse-o num murmúrio, e outra vez num sussurro estrangulado, Puxa, Baltasar, não o fez
MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
143
logo Baltasar, tremeu-lhe a mão, que isto será como dizer Fiat, diz-se e
aparece feito, o quê, puxa-se e mudamos de lugar, para onde. Blimunda
aproximou-se, pôs as duas mãos sobre a mão de Baltasar, e, num só
movimento, como se só desta maneira devesse ser, ambos puxaram a
corda. […] A máquina estremeceu […] girou duas vezes sobre si própria enquanto subia […] lançou-se em flecha, céu acima. (Saramago,
2007, p.188-189)
Essa ação do voo vem coroar o romance; representa o fruto da
cosmogonia. É um acontecimento de cariz mítico, um momento de epifania; constitui-se um ato de heroísmo, a gesta de uma união trina que
sacraliza o universo cósmico vindo em construção desde sua fundação
com aquele olhar de Blimunda a Baltasar, no início da narrativa. Tanto é
um ato que coroa um cosmos que a própria narrativa deixa entrevê suas
marcas já no início da cena; notemos toda a influência do espaço para
configuração da ação, descrita pelo olhar do padre Gusmão: “o espaço
celeste descoberto, sem nuvens, o sol que parece uma custódia de ouro”.
Consoante Bastazin (2006, p.143), este voo “é o resultado da harmonia
que se estabelece entre a ciência, representada pelo projeto e orientação
do padre Bartolomeu, a magia de Blimunda na ação de recolher as vontades e o artesanato de Baltasar, envolto em velas, arames e asas que hão
de fazê-los voar”. É também a concretização do sonho de um visionário;
da possibilidade de transcender, de fugir do mesmo, que corrói, que castra. O voo tem esse caráter simbólico de libertação, de constatação da
capacidade de ousar, de ir além, ao encontro de novos ares. Ao subir ao
céu, também os três, a trindade terrena, igualam-se a trindade celeste.
Novamente é necessário chamar a atenção para o papel dessa
mulher Blimunda no correr da empreitada. Se esse voo se dá, é, sobretudo, por sua contribuição, afinal é ela quem recolhe asvontades que fazem
pôr a máquina de voar em órbita. O simples gesto de impulsionar a partida desse voo, dá o caráter, novamente, de ser o papel do feminino aquele
que vai se firmando enquanto agente da criação. Blimunda é, simultaneamente, uma personagem que revela o domínio do maravilhoso, pelo
dom de ver o interior, o além, e é a que dá corda às tomadas decisões:
“como outras personagens femininas de Saramago, também Blimunda
144
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
tem uma grande firmeza interior, uma forma de oferecer-se em silêncio
e de aceitar a vida e seus desígnios sem orgulho nem submissão, com a
naturalidade de quem sabe onde está e para quê” (Fernández, 2002, s/p).
Entretanto, nem tudo se reduz a essa euforia do voo da passarola, esta ação, como aquela da persignação com o sangue da virgindade
(recorte iv), possui, na narrativa, uma dimensão antagônica: ao passo
que liberta, prende; ao passo que une Blimunda, Baltasar e Bartolomeu,
também os separa, visto que, depois do padre, será Baltasar que, numa
de suas idas aos consertos dos estragos do tempo na máquina de voar,
desaparece. Este sumiço leva Blimunda ao que seria o seu purgatório
(Saramago, 2007, p. 343)
Conheceu todos os caminhos do pó e da lama, a branca areia, a pedra
aguda, tantas vezes a geada rangente e assassina, dois nevões de que só
saiu viva porque ainda não queria morrer. Tisnou-se de sol como um
ramo de árvore retirado do lume antes de lhe chegar a hora das cinzas,
arregoou-se como fruto estalado, foi espantalho no meio das searas,
aparição entre os moradores das vilas, sustos nos pequenos lugares e
casais perdidos.
E vagou por terras portuguesas. Sete voltas, nove anos, como
os sete degraus e os nove círculos do purgatório e do inferno de Dante
(Saramago, 2007, p. 346): “Milhares de léguas andou Blimunda, quase
sempre descalça. A sola dos seus pés tornou-se espessa, fendida como
cortiça”. Poética imagem. A transmutação da heroína em seu próprio
espaço, entendendo que a cortiça é o elemento simbólico do território
português.
Essa condenação, por assim dizer, da personagem, cumpre outra
função no interior da narrativa, que é a de semelhança ao herói mítico.
Como no discurso mítico o herói tende a passar por toda uma leva de
purgações que lhe altera o semblante para o fim da sua trajetória ser
um outro sendo o mesmo, Blimunda encarna esse caráter: ela deixa de
ser apenas aquele ser bussolar para dá lugar a um ser também de rotas
MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
145
alteradas, como é o feminino. Os traços de corpo “alto e delgado como
inglesa” que o olhar de Baltasar denotara no início da narrativa, dão
lugar aos de “tisnada”, “espantalho”, de “pés de cortiça”. Transformações físicas que apontam para também uma transformação psíquica da
personagem.
Chegando aqui, antes de passarmos à leitura das ações de desfecho do romance, é necessário abrir um parêntesis para dois aspectos:
um, este caráter de constituição da personagem Blimunda, e outro, a
simbologia dos números no correr das ações até agora postas em análise.
Blimunda, filha de uma acusada de feitiçaria, guiada pela marca
da sombra impressa na alcunha de seu nome, Sete-Luas, encontra a luz,
o Sol, ancestral lunar, marcado na alcunha de Baltasar, o Sete-Sóis. Unidos luas e sóis, a personagem conhecerá a luz, o dia, as claras, mesmo
que condenada à noite, à sombra, no fato de só poder ver o que há de real
no mundo às escondidas; arderá num amor pleno, desfeito de limites e,
em momento algum, se deixará congelar-se pela imagem que tem de lua
e pela união com o sol. Seus ritos de sexualidade com “seu homem” se
darão à luz inteira do universo, em harmonia com seu cosmos, e têm eles
um caráter que difere do comum: são atos instintivos, cuja função visa
apenas seu prazer; observemos os dois recortes a seguir:
Dormiram nessa noite os sóis e as luas abraçados, enquanto as estrelas
giravam devagar no céu, Lua onde estás, Sol aonde vais. (Saramago,
2007, p. 88)
É dezembro, os dias são curtos […] por isso Baltasar e Blimunda dormirão no caminho, num palheiro de Morela […] Já sabemos que estes
dois se amam as almas, os corpos e as vontades, porém, estando deitados, assistem as vontades e as almas ao gosto dos corpos, ou talvez
ainda se agarrem mais a eles para tomarem parte no gosto, difícil é
saber que parte há em cada parte, se está perdendo ou ganhando a alma
quando Blimunda levanta as saias e Baltasar deslaça as bragas, se está
a vontade ganhando ou perdendo quando ambos suspiram e gemem, se
ficou o corpo vencedor ou vencido quando Baltasar descansa em Blimunda e ela o descansa a ele, ambos se descansando. Este é o melhor
146
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
cheiro do mundo, o da palha remexida, dos corpos sob a manta, dos
bois que ruminam na manjedoura, o cheiro do frio que entra pelas frinchas do palheiro, talvez o cheiro da lua, toda a gente sabe que a noite
tem outro cheiro quando faz luar, até um cego, incapaz de distinguir
a noite do dia, dirá, Está luar, pensa-se que foi Santa Luzia a fazer o
milagre e afinal é só uma questão de fungar, Sim senhores, que lindo
luar o desta noite. (Saramago, 2007, pp. 134-135)
No que tange à simbologia dos números, é perceptível que eles
se marcam de forma constante, no correr de toda narrativa: a começar
pelos sobrenomes das personagens, Sete-Luas e Sete-Sóis, sete é também a data e hora de sagração do convento, sete igrejas as visitadas
na Páscoa, passando pela trindade, Blimunda, Baltasar e Bartolomeu,
e findando nessas rotas purgatórias de caráter mítico, mágico e poético.
Apontam para uma totalidade, o número de Apolo; ou para a perfeição,
no caso do três; ou para a insistência, determinação e fechamento de um
ciclo, no caso do nove. Logo, só a simbologia dos nomes e dos números
e outros símbolos – muitos podem ser vistos na citação acima – mereceriam um estudo à parte. Fechemos aqui o parêntesis e voltemos às ações.
(vii) Encontrou-o. Seis vezes passara por Lisboa, esta era a sétima. […]
Caminhava no meio de fantasmas, de neblinas que eram gente. Entre
os mil cheiros fétidos da cidade, a aragem nocturna trouxe-lhe o da
carne queimada.
[…]
São onze os supliciados. A queima já vai adiantada, os rostos mal se
distinguem. Naquele extremo arde um homem a quem falta a mão esquerda. Talvez por ter a barba enegrecida, prodígio cosmético da fuligem, parece mais novo. E uma nuvem fechada está no centro de seu
corpo. Então Blimunda disse, Vem. Desprendeu-se a vontade de Baltasar Sete-Sóis, mas não subiu para as estrelas, se à terra pertencia a
Blimunda. (Saramago, 2007, pp. 346-347)
MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
147
O caráter simbólico do desfecho dessa sequência de ações, que
é o desfecho de Memorial do convento, é vasto: entendendo Blimunda
como fundadora do cosmos por através de seu olhar, como o Espírito
Santo na trindade terrena e herói mítico, nesse desfecho ela assemelha-se ao Deus cristão por ser a única capaz de comungar do corpo, verdadeiramente; assemelha-se a Prometeu, que rouba dos deuses uma fagulha do fogo para os homens, ao roubar das estrelas o ar que Deus respira;
e, alcançando o que parecia inalcançável em nome da humanidade. A
morte de Baltasar pelo fogo da Inquisição, ele que junto com Blimunda
e o padre Bartolomeu representa o progresso da humanidade com o voo
da passarola, é um retorno às trevas. Deixá-lo partir para ser o ar de
Deus seria o mesmo que acordar com esse retorno. Baltasar merece ficar
na terra, ainda que como sopro no ventre de Blimunda, agora ovo cósmico. Nisso reside o caráter heróico de Blimunda: não deixar, em nome
do progresso humano, perecer esse cosmos.
Essa ação é o signo de uma outra epifania; uma epifania que
não é de Deus, mas de um deus particular: aquele é o cabedal em que
a religião se apóia para os atos e atrocidades; aquele é justificativa para
colorir uma película que a todos cega. O que esse momento-chave nos
traz é a instauração de uma claridade, como a da Lua, leite bacento, mas
claridade; o reconhecimento súbito de que Baltasar, figura humana, deve
entre humanos habitar. É também um instante de comunhão, de fecundação simbólica; o fechamento de um ciclo que se eterniza, remetendo-nos àquela imagem da Uróboro, sobreposição mítica do tempo e do
espaço; no mito não há o tempo cronológico, do relógio, mas correntes
cíclicas (Vérnant, 1990). O ato de Blimunda instaura o entardecer de um
cosmos e o alvorecer de outra cosmogonia.
4.
Por tudo o que foi dito, é pertinente recobrar aqueles recortes
postos no princípio deste texto a fim de estabelecermos alguns encaminhamentos. Parece-nos suficiente aquele entendimento do discurso
literário enquanto bacia receptora do discurso mítico. Isso permitiu-nos
148
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO
deitar um olhar outro para o romance de José Saramago: o olhar para
o funcionamento das próprias articulações do romance e para a capacidade do autor em apreender elementos dos mais variados discursos e
utilizá-los no processo de engenharia de romanesca – seu universo de
tinta e papel. Pelo cotejo dos excertos analisados, notificamos que, reside em Memorial do convento, claramente, mais que traços, mas traçados
de elementos enformadores do discurso mítico, que se articulam e vêm
à superfície da tessitura textual projetando aí uma densa atmosfera que,
direciona para a constituição da trama do romance.
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BRANDÃO, Junito de Souza. Mitologia grega. 18.ª ed. Petrópolis/RJ: Vozes, 2004.
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PITTHAN, Iran Nascimento. Blimunda, uma alegoria do novo. Disponível em: http://www.
rubedo.psc.br/Artigos/blimunda.html. Último acesso em 16 de janeiro de 2008.
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MARCAS DA PRESENÇA DO DISCURSO MÍTICO EM MEMORIAL DO CONVENTO
149
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SARAMAGO, José. O evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo: Companhia das letras, 1991.
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os gregos: estudos de psicologia histórica. Trad. de Haiganuch Sarian. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1990.
VEREDAS 16 (Santiago de Compostela, 2011), pp. 151-176
Álvaro Cunqueiro e a
literatura fantástica
REGINA ZILBERMAN
UFRGS
Resumo:
Em 1956, Álvaro Cunqueiro publicou As crónicas do sochantre, livro com formato de
romance mas composto de histórias individuais ligadas pela personagem de Charles
Guenolé Mathieu de Crozon. A obra insere-se na tradição literária do Decameron de
Boccaccio ou do Heptameron de Margarida de Navarra. Este trabalho propõe o estudo
do romance de Cunqueiro à luz de diferentes quadros teóricos que ajudem a compreender a sua complexidade narrativa, da análise da literatura fantástica e do mágico a
partir de Todorov ao fundamentos da análise freudiana.
Palavras-Chave: Álvaro Cunqueiro, literatura fantástica, Todorov, estranho, Freud.
Abstract:
In 1956, Álvaro Cunqueiro published As crónicas do sochantre. The book was composed as a novel but is formed by a series of individual stories linked by the character
of Charles Guenolé Mathieu de Crozon. The work is part of the literary tradition of
Boccaccio’s Decameron and Margarida de Navarra’s Heptameron. This paper aims
to study Cunqueiro’s novel through the under the light of different theoretical frameworks that can help to comprehend its narrative complexity, from Todorov’s analysis
of fantastic literature and the concept of magic, to the grounds of Freudian analysis.
Keywords: Álvaro Cunqueiro, literatura fantástica, Todorov, estranho, Freud.
REGINA ZILBERMAN
152
Onde paramos? Só os coveiros o sabem.
Mas não é preciso morrer para parar ligeiramente;
as viagens, por exemplo, e aquela em particular,
são um pouco de morte quando se chega,
e um pouco ainda de morte quando de um sítio se parte.
Gonçalo M. Tavares
1. Do prólogo ao epílogo
Álvaro Cunqueiro (1911-1981) publicou seus primeiros textos
longos em prosa na década de 50 do século XX. Desde a juventude,
dedicara-se sobretudo à poesia, mas, com Merlin e família e outras historias, impresso em 1955, volta-se à narrativa, adotando a matéria de
Bretanha como uma de suas preferidas. Merlin e família revela igualmente outras marcas da ficção de Cunqueiro: a composição narrativa
por meio da colagem de relatos independentes, a apropriação intertextual, a tendência à fantasia e ao fantástico.
Em 1956, Álvaro Cunqueiro lança As crônicas do sochantre, livro de difícil classificação, já que tem o formato do romance, mas se
compõe de histórias individuais, reunidas por um fio comum, a marcha
dos mortos insepultos pela Bretanha até sua remissão. Não é, porém,
coletânea de contos, já que dispõe de uma personagem central, Charles
Anne Guenolé Mathieu de Crozon, cuja trajetória remonta à infância e
redunda na escrita inicial das crônicas indicadas pelo título. Por causa da
identificação com a crônica, corteja o relato histórico, porém, define-se,
desde o prólogo, pelo gênero fantástico e fabuloso, a que se vincula a
matéria de Bretanha desde a Idade Média.
Em As crônicas do sochantre, a composição narrativa e a apropriação intertextual não podem ser dissociadas, já que a obra pode ser
incluída em uma tradição literária que remonta a duas obras canônicas
de natureza similar: o Decameron, de Giovanni Boccaccio (1313-1375),
que congrega um conjunto de contos narrados por figuras da aristocracia
florentina, refugiadas, por dez dias, em segura casa de campo por ocasião da peste que vitima a cidade natal; e o Heptameron, de Margarida
de Navarra (1492-1549), que repete a estrutura e as razões similares às
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
153
do Decameron – dez viajantes, fugindo de uma tempestade, refugiam-se
em uma abadia – para justificar a reunião dos narradores em lugar isolado, onde passam o tempo contando histórias uns aos outros.
O livro de Cunqueiro retoma esse processo, na medida em que
os membros do bando de insepultos que transitam pela Bretanha relatam
suas biografias entre si e para o sochantre, quando este é incorporado
ao grupo, não na qualidade de morto que aguarda ser enterrado, mas na
condição de músico que tocará seu bombardino por ocasião dos funerais
do Fidalgo de Quelvén, recentemente integrado àquela comunidade fantasmagórica. Mas o ficcionista galego introduz mudanças importantes, a
mais evidente sendo a alteração do estado físico dos narradores: não são
vivos que relatam, para escapar à morte; são os mortos que repetem suas
trajetórias, para suportar o tipo de existência que ainda lhes resta. Por
sua vez, enquanto os jovens aristocratas do Decameron ou do Heptameron almejam evitar o contágio da epidemia, os componentes da hoste
são confundidos com a peste, como ocorre na oportunidade em que,
tomados por uma trupe de atores, enceram o drama Romeu e Julieta.
Assim, se nas coletâneas de Giovanni Boccaccio e de Margarida
de Navarra, o ambiente está marcado por males – naturais, mesmo no
caso da peste florentina – que assolam a população, em As crônicas do
sochantre, as adversidades se antropomorfizam, ao se materializarem
nas personagens que conduzem a trama. Por sua vez, Álvaro Cunqueiro
parece ter a intenção de enfatizar o contexto político. Assim, situa a
ação do livro entre 1793 e 1797, período da revolução francesa conhecido como o do Terror, quando as ideologias políticas se agudizaram, e
povo e aristocracia se confrontaram, de que resultam sucessivas crises
políticas e econômicas, serenadas por ocasião da tomada do poder por
Napoleão Bonaparte (1769-1821), o militar corso coroado imperador da
França.
As apropriações intertextuais, associadas à modalidade narrativa
da coletânea de histórias provenientes de autores diversos, sendo esses
as personagens cuja integração os torna uma equipe coesa, estabelecem
as coordenadas históricas e literárias de As crônicas do sochantre. De
uma parte, sinalizam a relação da obra de Cunqueiro com a tradição ar-
154
REGINA ZILBERMAN
tística europeia; de outro, evidenciam a interpretação dada pelo escritor
ao contexto em que planta suas personagens, assinalado pela desordem
e pela morte, que circula com naturalidade e impunemente pelo cenário
bretão.
Este cenário, por sua vez, se reveste de particularidades explicitadas pelo narrador desde os parágrafos de abertura do livro, quando um
narrador anônimo descreve o local onde se passa a ação ficcional:
Bretanha é uma terra muito apenedada pela banda do mar, porém,
por onde se une a França, abre-se em amplas planícies, vales estreitos e alegres outeiros. É terra muito viciosa de caminhos, porque
nela, amém de gente natural de sobremundo, andam fáceis e muito vigilantes passageiros, gentes das soterradas alamedas, defuntos
vespertinos, fantasmas, hostes cavaleiras, ânimas redimindo-se de
obrigas; as mais delas, gentes falecidas às quais alguma peta não
deixa sossego (p. 7).1
Depois da descrição do espaço, o narrador volta-se à apresentação dos seres humanos, concluindo que “moços há que se enamoram de
um ar”. (p. 7) E conclui, de modo abrangente:
Pelos caminhos de Bretanha, vai a dança macabra empurrando ventos,
e a mais pequenina flor que nasce em abril, à beira de um caminho, não
sabe se vai ser levada ao cabelo de uma menina ou pisada pelo pé de
um esqueleto que brinca na frente da hoste, guiando o passo que chamam “l’embrasse”, e é um tempo de amor na “galharda”. (p. 8)
O prólogo antecipa a ambientação do livro, ao chamar a atenção
para a sobrenaturalidade que ali impera. Essa decorre das pessoas ali
encontráveis, “naturais do sobremundo”, como os “defuntos vesperti1 As demais citações provêm dessa edição, indicando-se as páginas onde se encontram. Procedemos à versão para a língua portuguesa.
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
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nos”, os “fantasmas” ou as “hostes cavaleiras”. São essas, aliás, as que
frequentam a obra de Cunqueiro, a saber, o grupo de insepultos que
necessita se redimir e que, para ser enterrado, requer a liberação da pena
que não dá sossego a nenhum de seus componentes. Eis a “dança macabra” que movimenta o conjunto da obra, destacando-se nela a ação do
“moço” que se enamora de um ser aéreo, a saber, o sochantre responsáveis pelas crônicas que inspira o trabalho do narrador anônimo.
O prólogo, portanto, introduz o contexto fabuloso em que transcorre a ação, naturalizado pelo narrador, na medida em que tais características são próprias à Bretanha. De outro lado, o prólogo sumaria
os acontecimentos subsequentes, fazendo com que esses constituam
exemplificação das marcas do espaço geográfico onde ocorrem. As personagens, da sua parte, constituem metonímia do espaço que habitam,
configurando uma situação de inteira identificação entre o homem e a
natureza.
Este espaço, por sua vez, é fantástico, por efeito da presença da
morte – ou da sobrevida dos defuntos. O fato de que a morte interage
com a vida não significa que ela aterrorize; mas a circunstância de que
se confunda com a peste indica que prevalece a desordem e o desconcerto, agudizando-se essa situação por efeito da localização temporal das
ações: o período do Terror, quando a discussão política se polarizou, o
poder se fragmentou, e o uso da guilhotina se popularizou.
A particularização do espaço decorre, assim, de sua permanente
interação com o fantástico. É importante, sob esse aspecto, que o narrador sugira, na frase de abertura da obra, que essa Bretanha consiste
região independente, e não parte da França, à qual se une graças às “amplas planícies”, “vales estreitos” e “alegres outeiros”, distintos da área
localizada junto à “banda do mar”, marcada por penedos. A Bretanha de
As crônicas do sochantre é terra diferenciada, separada da França, e não
parte de seu território nacional.
O seccionamento é estratégico, já que faculta a imputação de
atributos fantásticos ao cenário das crônicas, garantindo a verossimilhança, sem que essa se tenha de submeter-se ao realismo. Além disso,
permite a proposta de outro paralelo, entre a Bretanha de As crônicas
REGINA ZILBERMAN
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do sochantre e aquela das lendas medievais, mencionada pelo narrador, no “Epílogo aos bretões”, acrescentado por Álvaro Cunqueiro à
versão em castelhano de seu livro: “não é alheio a isso o [fato] de que
também se chamara Bretanha o país assombroso do (Cunqueiro, 1989,
p. 188, tradução nossa). A introdução da Bretanha mágica de Merlin e
da corte de Camelot complementa a verossimilhança do contexto sobrenatural definido desde a página de abertura, afiançando a coerência
do conjunto.
No mesmo epílogo dirigido aos bretões, Álvaro Cunqueiro
procura justificar a escolha daquela região, supostamente desconhecida por ele, para desempenhar o papel de espaço dos acontecimentos. Primeiramente anota que, leitor de René de Chateaubriand (17681848) ou Villier de l’Isle Adam (1838-1889), a Bretanha passara a
ocupar um lugar em seu imaginário. Depois, destaca as semelhanças
daquele cenário com sua terra galega natal, ambas povoadas por “fantasmas, bruxas, mendigos, santos e heróis”. Por essa razão, não teve
ele qualquer dificuldade em recriar a natureza presente em sua ficção:
“os campos e as cidades, os rios e os vaus, os caminhos e as ruínas,
pintei-os do natural da minha terra, Galiza, sendo ambos, o bretão e o
galego, reinos atlânticos, finisterras, semelhantes em flora e fauna, e
províncias vagamente distantes” (Cunqueiro, 1989, p. 185).
As crônicas do sochantre, lidando com um universo fabuloso
povoado por seres fantásticos e situações extraordinárias, e narrando
eventos situados em local estrangeiro e época distante, fala, pois, da Galiza natal de Álvaro Cunqueiro. O que diz dela é o que se encontra nas
histórias dos fantasmas que deambulam sem destino por aquela pátria
quase mítica.
2. Histórias de crimes e malfeitos
Na sequência do prólogo, o narrador faz curta apresentação de
Charles Anne Guenolé Mathieu de Crozon, o sochantre responsável
pelas crônicas, resultantes essas dos anos em que acompanhou a hoste
dos mortos insepultos. Uma primeira parte dá continuidade à narrativa,
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
157
apresentando os acontecimentos que levaram o jovem músico a se integrar ao grupo, embora não compartilhe a principal característica desse,
composto por seres já falecidos.
O grupo de cadáveres é formado pelas seguintes personagens:
os aristocratas Coulaincout de Bayeux, que o lidera, e o Fidalgo de
Quelven, proprietário rural; John Sabat, o médico, que representa uma
camada profissional, o mesmo ocorrendo com Jean Pleven, o escrivão
de Dorne, e Monsieur de Nancy, o verdugo de Lorena, profissionais esses, contudo, provenientes de segmentos urbanos empobrecidos; Guy
Parbleu, o criado do demônio, e Mamers, o coxo, condutor da carroça,
correspondem à classe popular, entregue à sua própria sorte, a não ser
quando encontra algum protetor, de preferência de natureza satânica. Há
ainda uma figura feminina, Clarina de Saint-Vaast, que traduz sobretudo
a situação da mulher, dependente do ponto de vista econômico e frágil
do ponto de vista sentimental.
É Bayeux quem define a hoste, ao se apresentar a Charles de
Crozon: “Quero assegurar-vos que toda esta companhia, ainda que seja
de réprobos, fantasmas, enforcados e sombras, é um batalhão de gente
pacífica.” (p. 25) O perfil que lhe atribui inclui intencionalmente qualidades conflitantes: seus parceiros, uma “companhia” para militar, expõem índices de criminalidade; apesar disso, constituem “gente pacífica”. O desenvolvimento posterior do enredo dará razão ao soldado,
confirmando a natureza contraditória de cada um dos componentes da
caravana que atravessa a Bretanha.
O comandante explicita ainda sua atividade regular: “contar as
nossas histórias a nós mesmos”, o que todos fazem regularmente, “dia
após dia, mês após mês, ano após ano”. Após esclarecer Charles de Crozon a respeito, Bayeux se pergunta se essa rotina sem fim “é ou não um
castigo muito a modo?” (p. 38)
A segunda parte reproduz essas histórias, dando conta das biografias de cada um dos membros da companhia de Bayeux, explicitando
também porque passam por um “castigo” de que faz parte a permanente
repetição do mesmo discurso.
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REGINA ZILBERMAN
As histórias são narradas enquanto a hoste descansa junto às ruínas do mosteiro de Saint-Efflan la Terre. A primeira a falar é Clarina de
Saint-Vaast, que falece depois de envenenar a irmã. Essa acabara por lhe
roubar o amado; Clarina, agora viúva de um rico senhor, não se conformara em ser preterida pelo ex-noivo Pierre. Porém, depois de cometer
seu crime, decide verificar se o veneno empregado era eficaz, o que provoca sua própria morte. É castigada a perambular pela Bretanha enquanto purga por seu erro, castigo que se prolongará enquanto Pierre estiver
vivo, o que ainda tomará dois anos. Depois disso, poderá descansar: “E
então eu poderei ir à minha campa, no velho cemitério de Audierne, tão
perto do mar, que, nos temporais de março, os nichos ficam cheios de
peixes. E eu não quero mais que dormir, dormir, dormir...” (p. 51)
O narrador seguinte é o escrivão Jean Pleven, homem bem sucedido que já acumulara bom dinheiro. Mas sua ambição leva-o a cobiçar
o tesouro de dois irmãos que disputavam sua posse. Para se adonar do
baú que guardava o ouro, primeiramente falsifica documentos que atrasam o andamento do processo; depois, procura a riqueza no lugar onde
fora escondida. Contudo, esquece de levar consigo os papéis que continham a localização do cofre; encontrado tal mapa por seus perseguidores, é flagrado no local, preso e enforcado. Seu descanso depende de se
solucionar o litígio entre os proprietários, o que certamente demorará,
já que o processo ficara ainda mais confuso depois de sua intervenção:
“e ando nessa função enquanto não termine no Parlamento de Rouan o
pleito do tesouro, no que tanto eu embaralhei, falseei, argui e atestei, e
faltam ainda uma vista e uma perícia selada, com que se tardará um ano
comprido.” (p. 58)
Coulaincourt de Bayeux narra os acontecimentos que o envolvem, os quais culminam em seu fuzilamento no pátio de Sedan, punição pelo crime de ter violado uma menina. O militar defende-se, ao
afirmar que desejava salvar a criança do sufocamento: “a verdade que
passou é que ela me deixava, e se morreu nos meus braços devia ser de
uma síncope, e as machucaduras encontradas em seu pescoço não foram
porque eu a sufocasse, senão que, para trazê-la de volta à vida, sacudia-a, buscando que recuperasse de novo o alento.” (p. 59) Mais adiante,
Coulaincourt oferece mais detalhes sobre seu crime: sob sua liderança,
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um grupo de soldados, bêbados, chacina uma família, ação que culmina
com a violação da criança, conduta de que Coulaincourt é acusado. O
fidalgo, contudo, não encerra aí sua participação nos eventos maldosos:
depois de morto, fecunda Catalina de Erquy, sua “dama”, de que nasce
um filho bastardo, seu herdeiro. A efetivação do feito sobrenatural resulta de pacto do aristocrata com uma figura demoníaca, Ismael Florito,
o que sublinha a natureza maligna do procedimento do comandante da
tropa defunta.
O quarto depoimento provém do verdugo de Lorena, também ele
pactário, não com o demo, mas com Ashavero, o judeu errante, a quem,
por dinheiro, ajuda a fugir do cárcere. Ao fazê-lo, é atacado pelos outros prisioneiro e morto. Monsieur de Nancy só poderá livrar-se de sua
condição atual, quando puder testemunhar que Ashavero não foi enforcado; mas, como um falso judeu errante se apresenta no lugar do outro,
é preciso ao mesmo tempo que o engano se desfaça, para que, enfim, ele
alcance a paz da sepultura.
As duas últimas narrativas dão conta das ações nefastas de John
Sabat e de Guy Parbleu. O primeiro, de origem britânica, estuda medicina em Montpellier, sendo sua educação patrocinada por Juvelino Caraffa, que o ensina a empregar as artes do envenenamento. Desejando
aperfeiçoar-se, e contando ainda com o apoio do padrinho, Sabat estabelece-se em Roma, onde pratica seu ofício. A ambição cega-o, porém:
desejando adonar-se dos “diamantes, pérolas e ouro” (p. 76) dos ricos
proprietários romanos, intoxica os rios, mas acaba vítima de sua maldade, pois morre afogado nas águas que tentava conspurcar.
Guy Parbleu é, literalmente, um pobre diabo, já que serve ao
demônio. Acompanha seu senhor pela Bretanha, pois esse persegue uma
personagem, de nome Clamot, que lhe teria roubado uma valise. Parbleu
é autorizado, pelo patrão, a utilizar uma capa que o tornaria invisível;
mas, descuidado, perde o objeto mágico; quem a encontra, um alfaiate,
experimenta a capa, podendo, assim, desaparecer. É considerado morto
pela coletividade onde vivia, e Parbleu acusado do crime. Como é, sabidamente, “sacristão do demo” (p. 85), condenam-no à fogueira, onde
falece: “caiu-me sentença de ser queimado no adro de Saint-Germain,
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REGINA ZILBERMAN
causante da morte do alfaiate, que não se voltou a saber dele, e de pacto
com Satã.” (p. 86)
As narrativas individuais corroboram o ambiente fantástico estabelecido nas páginas iniciais do romance, particularizando-o por meio
de alguns elementos próprios. Um deles é dado pela presença ostensiva
do demoníaco, que se mostra nas narrativas de Coulaincourt de Bayeux,
John Sabat e Guy Parbleu. Todos são pactários, de que resultam, ao
menos parcialmente, algumas vantagens: o comandante garante sua descendência, Sabat e Parbleu dispõem, ao menos por um tempo, de poderes extraordinários.
Por sua vez, o verdugo de Nancy compromete-se com o judeu
errante, que, se não pertence diretamente ao universo demoníaco das
demais personagens, constitui uma espécie de Anticristo, na medida em
que não reconheceu, a seu tempo, a divindade do filho de Deus. A esse
crime, soma-se outro: Ashavero duplica-se em um falso judeu errante
por meio da figura que se faz passar por ele. A essas duplicações e mascaramentos acrescentam-se as identidades de Ismael Florito, originário
do inferno, e de Juvelino Caraffa que se revela ao médico inglês: “Eu
era um demo”. (p. 79)
Figuras benignas estão ausentes do universo habitado pelos insepultos quando viviam. Mesmo gestos generosos, como o de Clarina
Saint-Vaast, que cede o noivo Pierre, para que sua irmã possa sobreviver
a um mau parto, são corrompidos pelas circunstâncias: Ana Eloísa seduz
o parceiro de Clarina, que, para vingar-se, assassina a irmã. Da sua parte, profissionais encarregados do exercício da justiça, de que é exemplo
o escrivão de Dorne, empregam sua arte em proveito próprio, e só são
punidos porque se mostram incompetentes, qualidade, aliás, compartilhada por todos os defuntos.
Com efeito, a ineficiência é o traço que os une. O erro não coincide com o delito, mas com a falta de aptidão para levar o ato criminoso
até o final com vantagens próprias. De certo modo, todos praticam uma
hybris, não por efeito do orgulho ou da arrogância, mas por ausência de
habilidade: Parbleu perde a capa mágica, e Pleven, o mapa do tesouro;
Clarina prova o próprio veneno, assim como Quelvén; o verdugo de
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
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Lorena e John Sabat são enganados pelas figuras demoníacas com quem
mantiveram um pacto. Obrigam-se, assim, a pagar por seus equívocos,
ficando a meio caminho entre a vida e a morte, e dependendo de que o
transcorrer do tempo recomponha a ordem dos acontecimentos.
A reconstituição da ordem, coincidindo com o término da pena
imposta aos mortos insepultos, não se subordina, pois, às ações dessas
personagens. Cabe-lhes aguardar, pacientemente, uma intervenção externa que, por sua vez, não apresenta componentes divinos, mágicos
ou míticos. Com efeito, o elemento regulador é secular e incontrolável
pelo homem – o tempo. Assim, se se reconhece um fator trágico na
composição das personagens que penam pela Bretanha – a presença da
hybris, de outro se evidencia uma descrença diante das possibilidades de
exercício da justiça – já que a dike não se impõe ao final das trajetórias
dos figurantes da trama.
Para a concepção de mundo traduzidas pelas histórias individuais, essa conclusão significa sobretudo a permanência do caos, da injustiça, do desacerto, que será mitigado, quando se encerrar o prazo de
expiação de cada um, e a morte for completa, após o que resta apenas a
indiferença. Só então algum tipo de justiça se estabelece, já que suprime,
ao menos parcialmente, aquelas figuras criminosas do cotidiano bretão.
Por outro lado, o mesmo universo representado pode ser compreendido não apenas por meio da chave dos valores da tragédia clássica,
mas também desde as imagens da mitologia cristã. Não é difícil reconhecer que a situação transitória em que se encontra a hoste comandada
por Coulaingcourt corresponde às imagens do purgatório, formuladas
desde a Idade Média por teólogos como Santo Agostinho (354-430) e
Santo Tomás de Aquino (1225-1274). Mas para aquelas almas penadas não há redenção, apenas a hipótese de repousarem eternamente sob
a terra, aniquilando-se definitivamente sua condição humana e carnal.
Trata-se, pois, de um purgatório sem alternativa; ou, se quisermos, um
inferno sobre a Terra, ao qual não se opõe nenhum Paraíso. No universo
proposto por Cunqueiro, não há a simetria e organização encontrável na
Comédia de Dante Alighieri (1265-1321), mas tão-somente a permanência do mal, a que se opõe a nulificação sumária.
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A vigência do mal é o aspecto mais flagrante do mundo desenhado por Cunqueiro, em As crônicas do sochantre, já que a eliminação dos
criminosos não decorre do exercício da justiça. De uma parte, porque,
na maioria dos casos, eles mesmos se punem, não, porém, por sentimento de culpa ou remorso, mas, como se observou, por praticarem seus
atos nocivos de modo ineficaz. De outra, porque, quando são julgados,
é a violência do grupo que se abate sobre eles: a fogueira em que arde
Parbleu, o fuzilamento sumário de Bayeux, o ataque a Nancy. Logo, a
justiça apresenta-se sob o ângulo do desvio, distorcendo seus fins e, sob
esse aspecto, aproximando-se da criminalidade de suas vítimas. Trata-se
de um universo desregrado, entregue à violência e ao arbítrio dos indivíduos, a regulação dependendo da intervenção do sobrenatural.
Cunqueiro, com essas crônicas, parece manifestar uma visão
bastante crítica do mundo exposto na obra. Sua perspectiva, porém, não
perde de vista o momento histórico, e esse se evidencia, de modo mais
explícito, na terceira e última divisão do livro.
3. As histórias na História
Encerrado o registro das pequenas biografias dos insepultos,
com ênfase nas maldades cometidas por eles, a narrativa retorna à situação inicial, quando todos se encontram recolhidos junto às ruínas do
mosteiro de Saint-Efflan. Corre o ano de 1793, quando a França, logo
a Bretanha, vive o fervor revolucionário, em um período qualificado
como o do Terror pela historiografia futura, em decorrência das perseguições políticas de que são vítimas os adversários ou os ex-aliados do
regime republicano.
O contexto histórico, nas partes iniciais da obra, exerce o papel
de pano de fundo; na terceira parte, porém, ele desempenha importante
protagonismo no relato. Assim, logo após o narrador narrar os sentimentos de Charles de Crozon diante de sua inusitada situação – que não
apenas aprecia, pois “tomou sabor àquele livre vagar, e o gastar os dias
sem apuros.” (p. 95), mas que o deleita, já que desperta nele leve paixonite por Clarina (“Andaria ele a enamorar-se de uma defunta?” (p. 98),
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
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pensa o rapaz) – é apresentado o confronto direto entre os chouans, isto
é, os realistas, partidários do antigo regime monárquico, e os republicanos, liderados, os primeiros, como seria de se esperar, pelo aristocrata
Coulaincourt de Bayeux.
Que o líder monarquista seja um defunto ainda não sepultado diz
muito da concepção da obra sobre aquele grupo, conservador e ultrapassado. Mas a obra não é menos crítica em relação aos republicanos,
conforme sugere o capítulo II, da terceira parte. Nesse ponto da narrativa, uma personagem encontrada pelo grupo manifesta sua perturbação diante do fato de um cego que pedia esmola estar em vias de ser
guilhotinado. Sua indignação não provém apenas da insignificância do
crime – a mendicância – mas, sobretudo, pela circunstância de que, na
Bretanha, os cegos sempre tenham sido considerados sagrados; porém,
comenta o mesmo interlocutor: “os tempos novos não tiram o boné para
ninguém.” (p. 106)
Nesse mesmo capítulo, o modo irônico e dessacralizador que
atravessa As crônicas do sochantre se evidencia de modo cabal, completando o quadro da desordem e do desregramento vigentes. Informado de
que o cego será guilhotinado, Monsieur de Nancy, exemplo dos velhos
tempos em que os delitos eram punidos com a forca, deseja conhecer a
nova ferramenta de exercício da justiça. Procura o representante do governo, Toulet, para que esse demonstre o funcionamento do “engenho”
(p. 109). Em seu relato, Nancy começa por justificar porque Toulet assumiu o encargo público: ele era “um homem gordo e prolixo, e disse-me
que nunca trabalhara nisso, que era oficial relojoeiro do Parlamento de
Paris, e que se vira metido no ensino da guilhotina para escapar a umas
dívidas, e da vergonha da mulher que tinha, que era muito jovem” (p.
110). Conta depois que, para explicar a dinâmica da guilhotina, o funcionário colocara seu pescoço sobre a barra onde se precipita a lâmina
fatal. Nancy não resiste à oportunidade: ao ver Toulet naquela posição,
aciona o mecanismo, provocando a decapitação do servidor do governo.
Ao terminar sua narração, comenta ser a guilhotina “um progresso” (p.
111), sinalizando a modernidade da máquina do Estado encarregada de
eliminar os indesejados.
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Outras duas cenas retratam a turbulência do presente: a encenação, pela hoste, de Romeu e Julieta, drama que guarda do original
shakespeareano tão-somente o título e o local da ação, Verona, pois as
personagens em cena preocupam-se sobretudo em expressar os prejuízos da guerra: “Amigos todos, cidadãos de Verona, gente pobre, senhores soldados; foram-se, por fim, os suíços. Onze anos tivemos a corda da
justiça ao pescoço. Onze anos de morte, de fome, de sede, de medo” (p.
125). Nesse espaço tomado pelo desespero da fome, não há lugar para
o amor, como indiretamente manifesta uma menina, espectadora decepcionada com o fato de que o galante Romeu não aparecera: “Minha mãe,
minha mãe, não havia Romeu, nem memórias, nem lírios!” (p. 133).
Há lugar, sim, para o medo e para a ameaça da peste, identificada pelo
público, quando percebe que os atores perdiam as carnes e mostravam
seus esqueletos, em cumprimento à norma de que, quando baixasse o
sol, eles recuperavam sua aparência de defuntos.
Por isso, a cena final passa-se na pousada Nova França – “em
Bagnoles o sochantre alugou uma pequena câmara na pousada da Nova
França” (p. 136) –, onde todos se embebedam, e mesmo o casto Charles
de Crozon não consegue desempenhar sua função de músico, requisitada pelo Fidalgo de Quelvén, que desejava oferecer uma serenata à Srta.
de Vitré, sua amada dos tempos de vivo.
É essa a última cena em que se relata o convívio entre Charles e
os insepultos. Encerra-se a terceira parte em um ambiente de ópera bufa
(sob esse aspecto, não parece acidental, ainda que anacrônica, a menção, no derradeiro capítulo, ao compositor Gioachino Antonio Rossini,
nascido em 1792 e falecido em 1868), após o que se apresenta o Final,
quando, após mais de três anos de andanças, o sochantre retorna para
casa.
4. Anos de aprendizagem
Ao adotar o modelo das narrativas encaixadas,2 Cunqueiro
explora as possibilidades advindas da multiplicação dos narradores.
2 A propósito das narrativas de encaixe, cf. Todorov, 1970a.
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
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Entre os defuntos, não se identificam diferenças estilísticas entre os
modos de contar, provindo as variações das distintas biografias e
personalidades de cada um. A essa forma particular de exercício da
polifonia,3 Cunqueiro acrescenta ao livro gêneros diversos, como o
prólogo e o epílogo (no caso da edição em castelhano), o formato dramático no episódio da encenação de Romeu e Julieta, a interpolação
dos apêndices com comentários sobre as personagens, a apropriação
da crônica.
A adoção da crônica enquanto o gênero literário que enfeixa o
livro aponta para o empenho em aproximar-se do relato histórico, indicando, por outro caminho, que o contexto representado pela época
efetivamente desempenha o protagonismo examinado antes. Por outro
lado, Cunqueiro procede ao desdobramento do narrador, já que Charles
de Crozon é autor das crônicas originais, mas uma segunda figura, anônima, se assenhora do material exposto, cujo formato definitivo (mas
não tanto, pois a edição em castelhano conta com um capítulo a mais) é
transmitido ao leitor.
O desdobramento – ou a duplicação – do narrador suscita alguns
efeitos notáveis, facultando:
•
a apresentação do autor, Charles de Crozon, em terceira pessoa,
delegando o emprego da primeira pessoa apenas aos defuntos,
quando relatam suas biografias;
•
a exposição de Charles enquanto “alteridade”, já que ele é o “outro” do discurso do narrador anônimo, que se identifica como
editor: “em um dos libretinhos que deixou o senhor sochantre
De Crozon, estava esta notícia de Ismael Florito, e atendendo à
novidade do caso, dão-na aqui os editores.” (p. 165);
•
o distanciamento em relação aos fatos narrados e, principalmente, a transferência do relato para a atualidade, provavelmente a
do autor.
Esses elementos não são negligenciáveis, já que, de uma parte,
transformam Charles em personagem, cuja trajetória acompanhamos,
3 A propósito do conceito de polifonia, cf. Bakhtin, 2008.
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REGINA ZILBERMAN
às vezes de perto, às vezes de longe; de outra, complementa o processo desencadeado por ocasião da apresentação do cenário, conforme a
seguinte equação: a Bretanha está para a Galiza, assim como a época
retratada, a do Terror e da guerra entre republicanos e monarquistas,
para o presente. Em outra formulação, a Bretanha do passado é a Galiza
de hoje ou, pelo menos, do período em que Cunqueiro redigiu o livro.
É nesse ambiente que se dá a formação sentimental de Charles Anne Guenolé Mathieu de Crozon, nascido no dia de São Cosme
(Cunqueiro, 2008, p. 9) no ano de 1762 (ou 1772, conforme a edição
castelhana [Cunqueiro, 1989, p. 11]). A família inscrevia-se em uma
linhagem de tradição, já que lhe era facultado “correr com um pano
verde pelas ruas de Rennes berrando que vinha El Rei, quando o Cristianíssimo escrevia que ia visitar a Bretanha, ainda que depois não
viesse” (p. 9). Mas o retrato da infância do futuro sochantre não comprova tais fidalguias: a mãe fora alcoólatra, porque, “para curá-la de
uma flatulência que lhe ficou de um mal parto, receitou-lhe o médico
aguardente com quina, e começando a tomar gosto ao remédio, deu-se
à bebida” (p. 9), e morrera quando o filho tinha onze anos; o pai, militar de pouca importância, deixa a criança aos cuidados de uma criada,
pouco se ocupando com a educação do menino.
É a criada a pessoa relevante do passado de Charles, pois não
apenas definiu sua profissão – a de músico – como o lugar onde poderia exercer sua profissão – a de sochantre na Santa Colegial Capela, de
Pontivy. Não nomeada, a empregada é figura curiosa: quando jovem,
vestira-se de homem e apresentara-se como voluntária na Real Artilharia, tendo servido como soldado por alguns anos. Comenta o narrador:
“até chegou a nascer-lhe bigode” (p. 10). Depois de deixar o trabalho
junto à família De Crozon, a “artilheira”, como a identifica o narrador,
muda-se para Roma, onde se faz passar, com sucesso, por soldado suíço
junto à guarda papal.
Sua androgenia é, pois, enfatizada no texto. Como é ela também
“quem determinou fazer músico a Charles Anne”, porque ele herdou
“a fraqueza da mãe, salvo na voz, que aos nove anos já a tinha solene
e eclesiástica” (p. 10), e escolheu o instrumento que deveria tocar, o
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
167
bombardino, “instrumento que caía muito bem em gente fidalga; ainda
em uma demoiselle não estaria mal visto” (p. 10), constata-se que a
assimilação de traços tanto masculinos, como femininos colabora que
ela exerça, simultaneamente, os papéis materno e paterno. Por sua vez,
Charles, simbolicamente o filho dessa personagens andrógina, também
não apresenta definições muito claras de gênero, pois o instrumento que
toca – o bombardino – não ficaria mal mesmo para uma moça.
Charles não é, porém, desprovido de libido. Inquilino de Clementina Marot, entretém fantasias eróticas com a locatária: “estas fantasias, e muitas outras que se dirão, eram as que faziam a preguiça do nosso sochantre, quanto mais que não ousava passar delas a feito cumprido”
(p. 17). Que não consegue ultrapassar esse ponto, indica-o o narrador
que comenta a propósito da personagem (p. 26):
E que lhe queriam a ele, ao pobre sochantre da Colegial de Pontivy,
sempre tremendo de frio, sempre acarinhando sonhos que nunca se
cumpriam, tocando o seu bombardino nos enterros e no coro, contando
às escondidas os seus poucos luíses de ouro, por toda luxúria apertando
cada manhã as ondulações de madame Clementina, por toda gula uma
tortinha de ervas finas e umas trutas empanadas?
Mais adiante, após ser incorporado à hoste liderada por Bayeux,
sente-se, como se observou, atraído por Clarina de Saint-Vaast, “uma
defunta”. Charles, assim, oscila entre a castidade e a lubricidade, e não
é ocasional que, na primeira ocasião junto aos insepultos, busque a proteção de Saint-Efflam, a quem o mosteiro, em ruínas, é dedicado (p. 43):
O sochantre até serenava um pouco com o santo ali pertinho, e desculpando-se com uma corrente de ar, mudou de lugar e foi sentar-se ao
pé mesmo de Saint-Efflam, e acomodou-se, e estendeu o braço sobre
os pés desnudos do santo patrão, e apoiou no braço a cabeça. Com
os dedos parecia-lhe ler algo escrito na pedra, e iluminava uma vez e
168
REGINA ZILBERMAN
outra as letras meio apagadas pelos anos e os temporais, e era quase
como rezar.
Ao final do ciclo de relatos, quando retorna o dia, e os defuntos
preparam-se para partir, Saint-Efflam pode então suspender o amparo
concedido ao afilhado: “O Saint-Efflam de pedra retirava o seu pé de
cima do braço do sochantre” (p. 87), observação sugestiva, de um lado,
da humanização da estátua e de seu poder mágico, de outro, da afinidade
entre ela e seu protegido.
Com efeito, Efflam, em vida, estivera ligado à corte de Arthur,
o herói cultuado pela matéria de Bretanha a que Cunqueiro faz referência em seu epílogo à edição castelhana. Antes, fizera um voto de
castidade; a obrigação de casar com a filha de um rei rival, com o fito
de alcançar a paz entre seus respectivos territórios, leva-o a fugir à
Bretanha, onde desempenha as tarefas registradas pelo ciclo arturiano
(Asensio, 2003, pp. 160-164).
Charles, como seu padrinho, compartilha a abstinência; porém,
ao contrário daquele, retorna para casa, reencontrando-a tal qual a deixara, embora o aspecto externo do moço tivesse se alterado: “Sentiu que
alguém movimentava-se na cozinha, porém não quis entrar, por medo de
que assustasse madame Clementina, ao não conhecê-lo com as barbas
de três anos, que, enquanto andara com a hoste, não se barbeara” (p.
143). Mas a falta dele não havia sido percebida, já que outro fantasma,
o do tio do cocheiro Mamers, tomara seu lugar. Mudara tão-somente
ele, mais velho e mais maduro, pronto eventualmente para enfrentar o
mundo de que procurara se esconder.
O amadurecimento de Charles não o torna, porém, um sábio,
apenas um indivíduo mais rico, pois toma posse da herança legada pelo
fidalgo de Quelvén. Mas a Bretanha está provavelmente mais pacificada, pois, em 1797, quando volta para a hospedaria de Clementina Marot,
os tempos do Terror eram já passado. É quando o sochantre se põe a
escrever suas crônicas, ou “memórias”, conforme identifica o autor na
descrição das “dramatis personae”, de que se nutre seu relato.
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
169
As duplicações se reproduzem, pois, no conjunto da narrativa,
não apenas por efeito da delegação da arte de contar histórias, mas também porque decorre dos desdobramentos da personalidade do protagonista, que encontra em outras figuras projeções de sua identidade. A
polifonia ocorre, assim, tanto no plano do discurso, quanto no âmbito
da representação, propondo um unidade entre o nível linguístico e o
ficcional. Charles De Crozon é o lugar onde essas uniões se explicitam,
assegurando sua importância no conjunto da obra, já que tanto a nomeia,
quanto a protagoniza.
5. A literatura fantástica
Elementos de natureza mágica e extraordinária permeiam o texto
do início até seu final. Estão indicados no prólogo e reiterados em todos
os passos do relato, já que, desde a atmosfera bretã até o cenário de
Pontivy no começo das aventuras de Charles, e desde a composição das
personagens até a presença de estátuas de santos que ganham vida, não
há um momento em que o maravilhoso seja desacreditado, e o sobrenatural, desmentido.
Sob esse aspecto, As crônicas do sochantre poderiam alinhar-se
a um gênero que teve em Tzvetan Todorov (1939) um de seus principais
pesquisadores. Em livro de 1970, ele configura três categorias básicas,
a partir das quais estabelece sua tipologia: o estranho, o fantástico e o
maravilhoso. As diferenças dependem do modo como uma obra de ficção expõe um acontecimento extraordinário, em princípio inexplicável,
que a posiciona – ou não – no âmbito da literatura fantástica. O fato
incomum, segundo Todorov, produz necessariamente uma hesitação,
experimentada tanto pelas criaturas ficcionais, como pelo leitor. A partir
daí, descortinam-se três possibilidades, determinando as seguintes distinções:
– o acontecimento extraordinário explica-se racionalmente, de
que emerge o estranho;
– o acontecimento extraordinário não perde o caráter de sobrenaturalidade, mas é aceito conforme a lógica reinante entre as fi-
170
REGINA ZILBERMAN
guras ficcionais; neste caso, como ocorre entre contos de fadas
e narrativas populares, vigora o maravilhoso;
– a terceira alternativa não elege nenhum dos dois caminhos.
Conforme Todorov (1970b, p. 30) “há um fenômeno estranho
que podemos explicar de duas maneiras, por tipos de causas
naturais e sobrenaturais. A possibilidade de hesitar entre as
duas cria o efeito fantástico”4 – eis a literatura fantástica em
sentido estrito.
Sob esse aspecto, As crônicas do sochantre pertenceriam com
mais propriedade ao maravilhoso, já que o encantamento não se desfaz. Por sua vez, considerando o modo como Cunqueiro compõe as personagens, a obra poderia ser alinhada ao romance gótico, gênero que
suscita as reflexões de Todorov e que, praticado, entre outros autores e
obras, por Horace Walpole (1717-1797), em O castelo de Otranto, de
1764, Anne Radcliffe (1764-1823), em Os mistérios de Udolfo, de 1794,
ou Jan Potocki (1761-1815), em Manuscrito encontrado em Saragossa (1804-1805), experimentou seu apogeu à época em que a ação das
Crônicas se passa. Cunqueiro alcançou, pois, notável simultaneidade
entre o tempo da representação e o período literário com o qual o livro
dialoga, em especial, entre o livro de Potocki e o seu.
Destaque-se, outrossim, que o trabalho intertextual de Álvaro
Cunqueiro, em As crônicas do sochantre, ultrapassa o plano literário, dialogando igualmente com as artes plásticas de seu tempo. Nesse
sentido, o ambiente ficcional elaborado pelo escritor poderia ser ilustrado por pinturas de Francisco Goya (1746-1828), como A Romaria
de Santo Isidro (figura 1) ou Velhos comendo sopa (figura 2), que expõem figuras próximas da monstruosidade.
Essa simultaneidade, por sua vez, não esgota as relações intertextuais de As crônicas do sochantre. Assim, de um parte, está posta,
como se observou antes, uma interlocução com as coletâneas de contos que têm Giovanni Boccaccio e Margarida de Navarra entre seus
fundadores, estabelecendo um paralelo não apenas entre o gênero lite4 Cf. também Todorov 1970a. A propósito da tipologia sugerida por Tzvetan Todorov, v. Paes,
1985.
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
171
rário escolhido, mas entre os mundos representados, já que se assemelham a desordem experimentada no Decameron e no Heptameron, daqueles escritores respectivamente, e o caos suportado pelos franceses
nos anos posteriores à queda da Bastilha, em 1789, em especial após a
tomada do poder pelos jacobinos, em 1793. De outro, o tema do livro
pode ser visualizado em quadros da pintura pós-medieval, expressivas
do mundo às avessas, do estágio transitório que é o Purgatório, bem
como do caráter terminal e irreversível do Inferno, de que são exemplo obras de Hieronymus Bosch (c. 1450-1516; figura 3).
Uma das categorias identificadas por Tzvetan Todorov, a do
estranho – em alemão, Unheimlich – tinha sido objeto de investigação
de Sigmund Freud (1856-1939), em ensaio de 1919. Aquele vocábulo provém de heimlich, acrescido da partícula negativa – un; por sua
vez, o adjetivo procede de Heim, casa ou lar, apontando, pois, para o
familiar. O estranho nasce do desconforto com o familiar, ou, nos termos do autor, “o estranho é aquela categoria do assustador que remete
ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar.” (Freud, 1996, p.
238).5
Freud chama a atenção para um dos temas mais representativos
do estranho: “a sensação, em seu mais alto grau, em relação à morte e aos cadáveres, ao retorno dos mortos e a espíritos e fantasmas.”
(p. 258) Observa que, em muitas línguas, a expressão alemã “uma
casa unheimlich” só pode ser traduzida por “uma casa assombrada”
(p. 258), sugestiva da associação entre a morte e o sobrenatural. Freud
(p. 259) explica o significado da associação:
Dificilmente existe outra questão, no entanto, em que as nossas idéias
e sentimentos tenham mudado tão pouco desde os primórdios dos tempos, e na qual formas rejeitadas tenham sido tão completamente preservadas sob escasso disfarce, como a nossa relação com a morte. Duas
coisas contam para o nosso conservadorismo: a força da nossa reação
emocional original à morte e a insuficiência do nosso conhecimento
científico a respeito dela. A biologia não conseguiu ainda responder se
5 Todas as citações provêm de Freud 1996, indicando-se apenas as páginas onde se encontram.
172
REGINA ZILBERMAN
a morte é o destino inevitável de todo ser vivo ou se é apenas um evento regular, mas ainda assim talvez evitável, da vida. [...] Uma vez que
quase todos nós ainda pensamos como selvagens acerca desse tópico,
não é motivo para surpresa o fato de que o primitivo medo da morte é
ainda tão intenso dentro de nós e está sempre pronto a vir à superfície
por qualquer provocação.
A partir desse aspecto, Freud propõe a equação que explica o
significado do estranho e, sobretudo, o medo suscitado por ele: o estranho abriga algo reprimido, que retorna à consciência naquele formato
“desfamiliar”. Assim, o “estranho não é nada novo ou alheio, porém
algo que é familiar e há muito estabelecido na mente, e que somente se
alienou desta através do processo da repressão”. (p. 258) Mais adiante,
reitera: “o estranho provém de algo familiar que foi reprimido.” (p. 264)
Dentre os sentimentos reprimidos, Freud destaca o que parece
mais próprio ao estranho – o complexo de castração, elencado na companhia de outras expressões características:
Agora temos apenas algumas observações a acrescentar – pois o animismo, a magia e a bruxaria, a onipotência dos pensamentos, a atitude
de homem para com a morte, a repetição involuntária e o complexo
de castração compreendem praticamente todos os fatores que transformam algo assustador em algo estranho. (p. 260)
Em As crônicas do sochantre, apresentam-se os dois temas
identificados por Freud, combinados na composição da personagem de
Charles: a contemplação da morte, corporificada nos mortos insepultos;
e o sentimento de castração. Que sua imaturidade, como quereria Freud,
se deve à irresolução e repressão de sua sexualidade, indicam-no vários
fatores: a indeterminação de gênero da “artilheira”, que faz simultaneamente os papéis materno e paterno, indecisão que se materializa em sua
androginia; a contemplação das formas femininas inalcançáveis, seja as
da matrona Clementina Marot, seja as de Clarina de Saint-Vaast, esta
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
173
em processo de decomposição, dado seu estado de morta ainda não enterrada. É preciso que essa mulher seja devolvida ao mundo subterrâneo para provavelmente Charles liberar sua sexualidade e suplantar suas
inibições diante do sexo oposto. Para tanto, o gênero feminino precisa
aparecer na sua condição de estranheza ou Umheimlichkeit, caso contrário, ele não retornaria à normalidade após a peregrinação experimentada
junto à hoste comandada por Coulaincourt de Bayeux.
Sob esse aspecto, o percurso de Charles pela Bretanha corresponde à trajetória de seu inconsciente, cuja linguagem mais conhecida
é a do sonho, manifestação que formata os acontecimentos experimentados pelo sochantre. Assim, o espaço por onde transita no começo da
trama é obscuro e indeterminado:
A névoa era espessa e baixa, e cegava a rua. [...]
A rua pareceu muito longa ao sochantre, sempre seguindo a pouca luz
do farolinho, e desconheceu-lhe o piso, e não sabia por onde andava.
[...] Nunca névoa tal se vira em Pontivy. (p. 19-20).
Ao adentrar em tal cenário sombrio, ele inicia uma aventura fantasmagórica; mas, quando essa termina, nada ocorrera externamente,
fator sugestivo de que o tempo não transcorrera. Além disso, é manhã,
e Clementina Marot prepara o desjejum, dando a entender que Charles
acordava. Sob esse aspecto, as crônicas corresponderiam ao relato de
um processo onírico interno, durante o qual a personagem expressou,
eventualmente compreendeu e talvez ultrapassou a condição dual em
que estava jogado, preparando-o para uma existência madura e serena.
As crônicas do sochantre expõem, pois, um ritual de passagem. E, como tal, apropriam-se de sua forma original, a narrativa do
maravilhoso, como propõe Vladimir Propp (1974). É a trajetória do
sochantre que oferece ao leitor um caminho para além da desordem
e da desunião, caminho que depende de uma experiência do caos na
direção de sua superação. Por sua vez, porque o enredo pode ser en-
174
REGINA ZILBERMAN
tendido desde a perspectiva do sobrenatural – obedecida a norma imposta pelo narrador desde o prólogo – ou desde a perspectiva realista
– neste caso, estaria narrado o trajeto onírico do sochantre em busca
de sua identidade e maturidade –, recompõe-se a hesitação, jogando o
livro para o âmbito da literatura fantástica, graças à presença do traço
distintivo fundamental na concepção de Todorov.
É por manifestar a Unheimlichkeit que As crônicas do sochantre alinham-se à literatura fantástica, alinhamento que não desmente
os componentes sobrenaturais que o narrador atribui ao espaço bretão.
Rompendo com os limites do realismo, Álvaro Cunqueiro, em seu livro,
explora as virtualidades dos gêneros literários que suplantam o modelo
de representação associado à reprodução fotográfica do mundo visível.
Ao adotar um antinaturalismo retrô, já que suas matrizes provêm de
sugestões que se estendem do século XIV ao XVIII, o ficcionista galego
reinventa a modernidade naquilo que ela deve ao passado e à história.
O recurso às potencialidades do fantástico não se extingue nesse
ponto, pois faculta ao autor investir em questões políticas nacionais.
Observou-se antes que o cortejo dos mortos insepultos simboliza a presença de um passado ainda não eliminado que assombra o presente, traduzido por personagens pobres e desprotegidas que não têm a quem
recorrer, a não ser que se submetam às forças demoníacas que assolam o
território em que vivem. Por outro lado, os adversários dos defuntos não
se mostram melhores do ponto de vista ético e prático: não empregam
a justiça para julgar os criminosos, preferindo apelar para a força e a
violência, resumida na máquina letal que é a guilhotina, instrumento a
serviço de quem fizer melhor uso dela, seja o perverso verdugo de Lorena, seja o cordato Toulet.
No mundo bretão recriado por Cunqueiro, a barbárie é pior que o
sobrenatural, coincidindo com o unheimlich referido por Freud, pois corresponde ao familiar, que, desfigurado, assombra, transgride e aniquila.
Sua manifestação mais completa é a guerra, sobretudo a que, dividindo
um povo em duas facções inimigas, dilacera uma nação. Seu resultado,
o Terror, tanto o histórico, pois denomina um período da vida francesa,
quanto o simbólico, pois expressa os efeitos da catástrofe bélica.
1. ÁLVARO CUNQUEIRO E A LITERATURA FANTÁSTICA
175
Nunca é demais relembrar a identificação, proposta por Álvaro
Cunqueiro, entre a Bretanha de seu livro e a Galiza de sua experiência.
Por criar uma Bretanha imaginária, Cunqueiro pôde falar da Galiza real;
por enfatizar a estranheza do universo ficcional, pôde também chamar
a atenção para os elementos atemorizantes de seu presente. Graças aos
procedimentos suscitados pela literatura fantástica, foi capaz de interpretar os descaminhos de sua pátria, a seu tempo. Legou, assim, uma
obra única, cujo diálogo, nascido das virtualidades polifônicas do discurso, mantém uma permanente – e atual – interlocução com o público
contemporâneo.
Figura 1. FRANCISCO GOYA - ROMARIA DE SÃO ISIDRO
Figura 2. FRANCISCO GOYA – VELHOS COMENDO SOPA
REGINA ZILBERMAN
176
Figura 3. HIERONYMUS BOSCH – O INFERNO
REFERÊNCIAS
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Barcelona, 2003.
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Janeiro: Forense Universitária, 2008.
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1989. p. 188.
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TAVARES, Gonçalo M. Uma viagem à Índia: melancolia contemporânea (um itinerário). São
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TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 2.ª ed. São Paulo:
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TODOROV, Tzvetan. Introduction à la littérature fantastique. Seuil, Paris, 1970.
VEREDAS 16 (Santiago de Compostela, 2011), pp. 177-210
A Construção do Conhecimento
pola Historiografia Literária
dum Sistema Deficitário (o caso
galego para 1974-1978)1
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
Universidade da Corunha
Grupo Galabra (Universidade de Santiago de Compostela)
Resumo:
O presente artigo é resultado de um projeto de investigação cujos objetivos dizem respeito ao estudo dos processos de construção de sistemas literários/ culturais à partida
debilmente institucionalizados. Partimos da hipótese de que o estudo dos métodos e os
procedimentos utilizados para a construção e hierarquização de um determinado (tipo
de) conhecimento(s) sobre um estádio concreto dum sistema cultural dessas caraterísticas, é necessário para entendermos a origem, a função e a conformação das regras e
materiais que estruturam do ponto de vista simbólico e identitário a comunidade que
sustenta esse dado sistema.
Neste contributo partimos do levantamento e o estudo quantitativo, qualitativo e relacional de diferentes tipos de materiais produzidos no subcampo da crítica e a historiografia literária com a finalidade de avançarmos no conhecimento em dous sentidos
1 Este trabalho inclui-se no projeto de investigação FISEMPOGA (“Fabricação e Socialização
de Ideias num Sistema Emergente durante um Período de Mudança Política. Galiza 19681982”) subsidiado pola DGPyTC do Governo da Espanha entre os anos 2009-2011 (FFI200805335/FISO).
178
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
fundamentais: por um lado, interessa-nos conhecer esses procedimentos, as regras propostas, os critérios de inclusão ou hierarquização colocados em virtude de determinados interesses e posições, e os materiais e as ferramentas teórico-metodológicas utilizadas polos agentes e grupos que participam nesse processo de institucionalização. Por
outro lado, queremo-nos aproximar tanto dos resultados (e das eventuais carências) do
processo de canonização em que esses grupos estão envolvidos como dos mecanismos
de diverso tipo que nele operam e que o explicam.
Da nossa análise concluímos que esse conhecimento não foi elaborado nem arrumado
de maneira e com ferramentas teórico-metodológicas ou procedimentais de tipo relacional, facto que explica tanto o caráter parcelar e parcializado do próprio conhecimento, como as ausências detetadas em relação às normas que funcionam no sistema,
aos métodos utilizados para a sua abordagem, à organização e hierarquização do saber,
ou aos programas, projetos e estrutura institucional dos grupos que agem no sistema
cultural em foco em um período histórico de forte mudança política em que, em boa
medida, são construídas as ideias que ainda conformam essa comunidade ibérica no
momento atual.
Palavras chave: Historiografia literária, processos de canonização, sistemas literários
deficitários, emergência, Galiza, franquismo
Abstract:
This article is part of the results of a research project which has as its main aim the
study of the construction processes of cultural/literary systems scarcely institutionalized from a start. Our point of departure is the hypothesis that the study of the methods
and procedures used for the construction and organization into a hierarchy of a certain
(kind of) knowledge(s) about a determined phase of a cultural system with those characteristics, is necessary to understand the origin, function and development of rules
and materials structuring from a symbolic and identity point of view the community
that holds that system.
In this contribution we begin with the collection of different kinds of materials produced in the literary historiography and critic subfields, and their study from a quantitative, qualitative and relational point of view, in order to go further in its knowledge
in two fundamental senses: on one hand, we are interested in knowing the procedures,
proposed rules and criteria for the inclusion or organization into a hierarchy, held depending on determined interests and positions, as well as in stating the materials and
theoretical-methodological tools used by agents and groups participating in that process of institutionalization. On the other hand, we focus both the results (and possible
lacks) of the canonization process those groups are involved in, along with the mechanisms of different condition which work in it and explain it.
From our analysis, we conclude that this knowledge was not elaborated or arranged
with tools either theoretical-methodological or relational in its procedure, a fact that
explains: the limited and partial nature of that knowledge; the absences detected regarding the rules in force in the system; the methods applied for its analysis; the organization, also into a hierarchy, of information; and, in the end, the programs, projects
and institutional structure of those groups acting in the cultural system in study for a
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
179
historical period of high political change when, to a large extent, those ideas nowadays
still conforming the Iberian community were created.
Key-words: Literary historiography, Canonization processes, Deficient literary systems, Emergence, Galiza, Francoism
Este trabalho revisa um volumoso corpus bibliográfico de variada tipologia (manuais e histórias da literatura, monografias, antologias e materiais críticos, educativos e legislativos de diferente natureza)2 com o
objetivo de analisar as várias questões relacionadas com as regras, os
materiais e as ferramentas metodológicas e procedimentais com que os
principais grupos presentes no campo da crítica e da historiografia literária da Galiza forom construindo desde 1979 até 2009 o conhecimento
sobre o Sistema Literário Galego (SLG) em relação a um período do seu
desenvolvimento (1974-1978) determinante para a configuração atual
da comunidade galega.3
A nossa hipótese de partida é que as ferramentas procedimentais
e teórico-metodológicas com que é abordado (e arrumado) o conhecimento dum determinado objeto de estudo determinam a tipologia (e as
lacunas) do conhecimento assim gerado. Em função disto, para além
2 Dentre estes materiais, serão aqui citadas apenas aquelas referências consideradas
imprescindíveis para a sustentação ou exemplificação duma determinada posição crítica ou
dum assunto concreto.
3 Ainda que os resultados da presente análise sejam de aplicação em grande medida ao
conjunto do SLG historicamente considerado, o estádio concreto do sistema objeto do
conhecimento analisado abrange desde o assassinato em finais de dezembro de 1973
do almirante Carrero Blanco (presidente do governo do ditador Francisco Franco e seu
previsível sucessor) até o referendo da Constituição Espanhola em dezembro de 1978 e
está caraterizado, sumariamente, 1) por apresentar à partida uma situação que os próprios
agentes nele participantes identificam como deficitária (fundamentalmente na sua extensão,
autonomia e grau de institucionalização); 2) por compartilhar (ou disputar, segundo grupos e
programas) o espaço social com um sistema cultural já relativamente autónomo e fortemente
institucionalizado -no caso galego o Sistema Literário (em) Espanhol [SLE]-; 3) por suportar
um alto nivel de stress provocado polas fortes mudanças experimentadas no campo político
(nomeadamente quanto à passagem dum regime ditatorial e centralizado para um quadro
administrativo definido pola democracia parlamentar e a delegação parcelar de autonomia
política); e 4) por experimentar um incremento relativo de produção e acúmulo de energia
(entendida como trabalho social) que se traduz no aumento quer da intensidade dos labores
culturais quer do número de agentes e grupos envolvidos na fabricação e promoção de ideias
para a comunidade.
180
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
de identificarmos os principais grupos responsáveis pola construção do
conhecimento sobre o SLG no período selecionado, analisamos os critérios e processos que conduzirom à eventual elaboração duma determinada hierarquia no saber e ao estabelecimento e canonização dum
dado tipo de conhecimento, estudando os métodos e os procedimentos
utilizados para a sua construção.
1. Tipologia dos discursos críticos
Apesar de verificarmos no conjunto da produção crítica analisada
a existência dum grau relativamente elevado de ecletismo metodológico
(que contribui para a relativa neutralização das diferenças de focagem),
a historiografia literária galega das três últimas décadas pode ser localizada no espaço metodológico delimitado entre duas posições teóricas
básicas: 1) a identitária, de caráter heterónomo, focagem histórico-social e nacionalitária e funcionalidade explicitamente política; e 2) a sustentada em postulados sistémicos que, segundo afirma, tenciona focar
a literatura como uma instituição relativamente autónoma. Junto destas
duas correntes principais, documentámos ainda um setor historiográfico
minoritário que se ocupa do período 1974-1978 postulando como regra
determinante à hora de legitimar e atribuir valor aos produtos integrados
no SLG o critério estético (Samartim 2009), isto é, a minimização crítica dos elementos externos ao espaço textual e a valorização da perfeição
formal ou da beleza sentida ou percebida num texto tido por literário.
Em geral, os contributos em volta das regras delimitadoras ou
hierarquizadoras do SLG presentes na bibliografia em foco estão a indicar que todas as análises partem da aceitação do uso da língua galega
como única norma sistémica (regra que baliza sistemas segundo Torres
Feijó [2004: 429] e, neste caso, identifica como pertencentes ao SLG
unicamente os materiais em galego), ainda que existe um reconhecimento explícito das dificuldades de aplicação deste critério linguístico em situações raramente concretadas mas, em todo o caso, apontadas
para períodos caraterizados pola falta de autonomia no campo político,
por uma situação linguística precária quanto ao reconhecimento social
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
181
e institucional da língua galega e com uns campos culturais deficitários
quanto ao seu grau de autonomia, institucionalização, estrutura e funcionamento.4 Em última instância, a posição de unânime centralidade ocupada na historiografia literária galega polo chamado critério filológico
desde 1963 (ano em que foi apresentado como “científico” polo crítico
ligado à Editorial Galaxia Ricardo Carballo Calero [1981]) é resultado
do trabalho dos vários grupos galeguistas atuantes neste sistema ao longo do seu processo histórico de construção.
Assumindo este critério linguístico, o setor maioritário da crítica
galega posterior a 1978, localizada no âmbito político-cultural do nacionalismo galego da esquerda e encabeçada polo professor Francisco
Rodríguez, elabora desde inícios de setenta um corpus ideológico no
qual funciona como principal critério normativo de caráter legitimador
e hierarquizador o critério identitário (Samartim 2009), segundo o qual
a posição mais ou menos central no sistema dum determinado elemento
estará em função do grau de consciência da Galiza como entidade cultural diferenciada que, a juízo do próprio grupo, achegue esse elemento
ao SLG. Por seu lado, uma parte da crítica literária galega adota desde
os inícios da década de noventa do século XX um discurso metodológico de caráter sistémico e aponta para a utilidade das teorias relacionais
tanto para a delimitação mesma do objeto de estudo como para a identificação e a análise das normas atuantes no SLG. No entendimento de
que um sistema literário está conformado pola rede de relações em que
participam uma série de elementos interdependentes no quadro dumas
determinadas regras de jogo ou de entendimentos institucionais, a professora da USC Dolores Vilavedra (uma das principais representantes
deste discurso crítico) denomina “criterio sistémico” um requisito de
natureza metodológica segundo o qual serão considerados como fazendo parte do SLG todos os elementos que participem numa determinada
rede de relações (sistema) em virtude da aplicação das normas verificadas no seu funcionamento.
4 Esta descrição corresponde-se com o desenvolvimento do SLG na imensa maioria do seu
percurso histórico e também, em grande medida, com o lapso temporal estudado no projeto
Fisempoga o qual, porém, não figura entre os momentos em que a bibliografia analisada
deteta uma aplicação deficitária deste critério linguístico.
182
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
Estas duas focagens teóricas (aqui “identitária” e “sistémica”)
coincidem na necessidade de utilizar paradigmas interpretativos capazes de dar conta das especificidades históricas de sistemas literários
como o galego (literatura “periférica” ou “débil”, segundo seja Rodríguez [1996] ou Vilavedra [1999] a referi-la), caraterizados por uma deficiente institucionalização política e cultural e por uma situação linguística identificada como diglóssica, fronte a sistemas “centrais” ou “fortes”,
com alto grau de autonomia e institucionalização e que têm acreditada,
portanto, a sua suficiência sistémica (Torres Feijó 2000: 970 e ss]). Desta maneira, o percurso bibliógrafico efetuado inicia-se com reflexões
explicativas da necessidade de utilizar metodologia específica para o estudo do SLG a partir da sua identificação com sistemas literários periféricos em “situaciones de tipo colonial o semicolonial” (Vázquez Cuesta
1980: 622), de acordo portanto com os parámetros propostos pola crítica
nacionalista, que considera que o caráter colonial da Galiza determina
os modos de estudo do SLG e se (pre)ocupa em evidenciar a natureza
social e nacionalitária da prática literária na Galiza e em explicitar a
autonomia do SLG a respeito do SLE.5
Em meados de oitenta, Anxo Tarrío (1986) ainda partia do conceito de “colonialismo interior” (postulado em 1967 em La Révolution
régionaliste por Robert Lafont e divulgado em inícios de setenta no
campo intelectual e político galego fundamentalmente por Xosé Manuel
Beiras) para tentar “unha canle de investigación que dera conta dos trazos temáticos, estilísticos, simbólicos, etc., que comparten un número
importante de obras literarias producidas en países en vías de desco5 “A práctica literaria que merece o nome de galega non é un apéndice da española, senón algo
específico, dunha realidade específica. O que se entende por un produto cultural xenuíno, coa
súa propia dialéctica, coa súa diferencia lingüística e coa súa realidade referencial e visión
do mundo diferenciada” (Rodríguez 1996: 6). Em inícios de oitenta, Pilar Vázquez Cuesta
(1980: 626 e 628), próxima de posições favoráveis à (re)integração cultural galego-portuguesa na altura, reforça esta ideia da autonomia do SLG face o SLE estabelecendo paralelismos
entre os sistemas galego e português. Este último funciona inicialmente para o galeguismo
como referente de reintegração, mas perde centralidade nas estratégias do conjunto deste
movimento no franquismo (sobretudo se comparado com o pré-guerra [Torres Feijó 1995])
e pode funcionar também como referente de analogia ou de oposição (Beramendi 1991) para
alguns grupos, nomeadamente no último caso para o Instituto de la Lengua Gallega (ILG),
instituição central no campo linguístico desde a sua fundação na USC em 1971 (Samartim
2005).
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
183
lonización” (Vilavedra 1999: 33). Em fins de noventa, porém, Tarrío
(1997: 44) diz analisar já o SLG “dende unha consideración sistémica
da literatura como unha institución social, seguindo unha metodoloxía
na que interesa, más có valor estético ou artístico da obra, reunir e interrelaciona-los elementos que a fan posible como fenómeno observable”.
Esta mudança de paradigma interpretativo leva o professor da USC a
posições compartilhadas com a sua colega Dolores Vilavedra (1999: 3435), quem bota mão por sua vez também do conceito de “etnopoética”
(utilizado por González-Millán em 1991) por considerá-lo “un instrumento especialmente útil para situacións como a galega en que as tensións entre centro e periferia, tanto intrasistémicas coma intersistémicas,
perturban [...] non só o funcionamento, senón a propia definición do
sistema”.
Vilavedra (1999: 34) analisa a adaptabilidade deste modelo teórico ao caso galego e considera que entre as suas avantagens está o facto
de ajudar a explicar as “particularidades do discurso literário étnico” e
que, nesse sentido, representa “unha oportunidade para superar os límites epistemolóxicos e axiolóxicos impostos polos discursos críticos
xerados polas literaturas hexemónicas, ó tempo que pon en evidencia
dimensións silenciadas -en tanto que subversivas- polas instancias canonizadoras”. Contudo, a professora compostelã coloca entre os défices
da “etnopoética”, centrada no estudo dos processo de construção nacional através do feito literário, parecidos argumentos aos apontados para
questionar a função hierarquizadora atribuída ao critério identitário
por Francisco Rodríguez (analisados em Samartim 2009), basicamente
“predeterminación ideolóxica, o que se traduce en parcialidade e escasa
versatilidade”, assim como “que o seu obxectivo prioritario sexa contribuír ó proxecto de construcción dunha cultura nacional diferenciada, co
que isto implica de condicionante teleolóxico” (Vilavedra 1999: 35).6
6 Em troca, a proposta de Vilavedra (35-36; itálicos nossos) passa pola adoção de “un certo
eclecticismo á hora de configurar un modelo interpretativo co que dilucidar a especificidade do discurso literario galego. [Isto significa que] o investigador da literatura se dote dun
abano de instrumentos metodolóxicos o suficientemente extenso e variado [...] instrumentos
que deberán mudar ou complementarse segundo as épocas, os autores e os xéneros, e que
na miña opinión deben cumprir, antes ca calquera outro, tres requisitos fundamentais: seren
compatibles cunha definición máis ampla do que tradicionalmente se viña entendendo por
«literatura», que atenda tamén ó seu carácter institucional; actualizaren e autonimizaren os
184
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
Também desde a crítica de base relacional, o professor González-Millán (1994 e 1996) aborda as mudanças experimentadas no SLG
desde o fim do franquismo até a consolidação do período autonómico sustentando que é a progressiva perda de influência canonizadora
dos critérios legitimadores heterónomos, fundamentados no que vimos
chamando critério identitário, a favor doutras normas hierarquizadoras
mais próximas quer da autonomia do campo literário quer do funcionamento do mercado, o que carateriza um sistema cultural que alcança
durante as duas últimas décadas do século XX um grau de institucionalização e autonomia até então desconhecidos.7 O professor do Hunter
College coloca a baliza inicial dos seus trabalhos “na percepción dun
cambio de perspectiva a partir de 1975 e sobre todo na década seguinte”
(González-Millán 1994: 13; itálicos nossos) e estuda o processo de autonomização e institucionalização do SLG após o franquismo partindo
de Moisan e Saint-Jacques (1987) para apontar que (González-Millán
(1996: 17-18)
o grao de autonomía dun campo literario como o galego debe medirse
en relación con tres criterios: a delimitación da súa especificidade discursiva, a efectividade da súa lexitimación nacional e a consolidación
da súa articulación como obxecto de estudio e ensino. [...] Estes tres
horizontes de autonomía son unha guía excelente para estudiar a transformación dun espacio literario como o galego, que a partir de 1975 ve
como os diversos colectivos se esforzan por consolidar un campo especializado cun discurso próprio e cunhas institucións específicas. As
consecuencias desta nova dinámica son obvias: unha reducción do ámbito de lexitimación do discurso literario, ao perder a multifuncionalidade social das décadas anteriores; unha maior autonomía para poder
criterios identificadores da valencia literaria e, por último, daren conta da especificidade
que caracteriza os distintos niveis do sistema literario galego en tanto que formulado nunha
lingua non normalizada”.
7 Nesse mesmo período está também a ser construída na comunidade que sustenta o SLG a
autonomia política reconhecida na Constituição de 1978. Neste sentido, partindo da hipótese
de Bourdieu segundo a qual os campos de produção cultural ocupam uma posição dominada
a respeito dos campos do poder, apontamos para o interesse de estudar as relações entre os
dous processos (autonomia política e cultural) sem negligenciar que “as posibilidades de
autonomía do campo literario galego supoñen un poder galego real, político, económico,
etcétera, fronte ó que [ter a possibilidade de] declararse autónomo” (Figueroa 2001: 127).
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
185
funcionar como un discurso social específico; e unha drástica reducción nas credenciais do escritor como depositario da memoria nacional,
por ter que compartilas com outros axentes sociais, que dende as súas
propias áreas de especialización reivindican distintas articulacións da
memoria colectiva.8
Em resumo, para González-Millán (1996: 28) a “tensión entre
unha consagración autónoma e unha lexitimación heterónoma tradúcese, no caso de literaturas como a galega, na dificultade de dar o paso do
nacionalismo literario a unha literatura nacional” ou, por outras palavras, na passagem complexa do que a crítica dita “pos-colonial” chama
literatura de resistência (Harlow 1987) para um sistema literário com
o suficiente grau de institucionalização e autonomia (quer a respeito do
sistema cultural com que compartilha/ disputa espaço social quer dos
campos do poder político e económico) como para que a sua continuidade e reprodução não seja percebida como problemática polos grupos
e instituições atuantes nele.9
8 Estas alterações esclarecem também sobre a resistência sistémica (Samartim 2009) daqueles
grupos que sustentam os repertórios e a função nacionalitária atribuída ao discurso literário
galego em períodos anteriores, caraterizados (em geral para o caso do período pré-autonómico) polos défices no funcionamento do sistema e por uma situação em que “canonización
estética y legitimación social eran uno y el mismo proceso, dominados no por las frágiles
normas de un precario campo literario, sino por las presiones sociales y políticas, nacidas de
los conflictos asociados con determinados actos de resistencia y reivindicación colectivas”
(González-Millán 2002: 226-227).
9 Se a interpretação que fazemos dos postulados de González-Millán for correta, ao identificar
o conjunto do SLG galego prévio à morte do ditador com o “nacionalismo literário”, este
crítico aponta para uma situação de monopólio legitimador (ou, polo menos, de clara hegemonia nos instrumentos de legitimação) do discurso militante nacionalista no SLG da década de setenta. A alegada passagem do “nacionalismo literário” para a “literatura nacional”
sustentaria-se, assim, na perda do monopólio legitimador do texto nacional no conjunto do
sistema, facto que teria acontecido de maneira progressiva após o franquismo e com a conseguinte instauração da autonomia política na Galiza. Julgamos que esta ideia é central nos
trabalhos de González-Millán mas que, sem pretendermos minusvalorar tampouco o peso
das propostas nacionalistas no SLG de 1974 a 1978, isto não se corresponde exatamente com
a realidade do acontecido na altura. Os últimos trabalhos da equipa que sustenta o projeto
Fisempoga (Samartim 2010) questionam o alegado monopólio do discurso nacionalitário
de resistência e obrigam também a incluir nas análises do SLG as tomadas de posição dos
grupos que relativizam a função do critério filológico como norma sistémica (excluídos,
por isso, das margens do sistema pola crítica historiografia a 1978) e a ponderar no estudo
do conjunto do sistema as ações dos grupos galeguistas mais institucionalizados nos cam-
186
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
Completamos a síntese das tipologias dos principais instrumentos analíticos com que a historiografia literária galega das últimas três
décadas pretende explicar o funcionamento dum sistema literário periférico em processo (dinámico, não teleológico) de construção e em concorrência polo mesmo espaço social com um sistema autónomo e fortemente institucionalizado com a referência à investigação de M. Xesús
Rodríguez Fernández (1999). Ainda que com impacto praticamente nulo
fora do âmbito do grupo Galabra da USC em que foi elaborado (e para
além das óbvias funções de reflexibidade e explicitação do posicionamento crítico também do presente trabalho), a utilidade da investigação
de Rodríguez Fernández (1999: 54-57) reside em se ter aproximado da
“Recepção literária em situações de conflito” e, com base nas achegas
neste campo do professor Antón Figueroa (1988), ter integrado nas suas
análises os métodos de abordagem de natureza relacional acompanhados também por González-Millán, colocando no centro da pesquisa sobre o SLG o estudo das relações (nomeadamente aqui com o SLE), das
estratégias (em maior ou menor medida sucedidas quando analisadas a
posteriori) e das caraterísticas das normas e dos materiais com que os
grupos que atuam num sistema literário periférico trabalham para construírem a autonomia (ou para manterem ou mudarem o nível ou o tipo de
relação tanto com o sistema em contato como com os campos do poder)
em função dessas mesmas regras e materiais terem mais ou menos precariedade ou suficiência.10
pos culturais, que são em geral abertamente contrários aos repertórios (sociais, artísticos ou
político-identitários) promovidos polos grupos nacionalistas, defendem em maior grau que
os agentes da esquerda a autonomia relativa da arte e fazem um uso sensivelmente diferente
da função modelar atribuída a tradição, ainda que, neste sentido, tal como afirma Rodríguez
Fernández (1999: 122), “a persistência no repertório da tradição como o garante máximo da
galeguidade e da vocação resistente da cultura galega, aproxima-os [aos nacionalistas], em
parte, daqueles grupos galeguistas que defendem um repertório mais essencialista, aos que,
no entanto, questionam porque do seu ponto de vista desideologizam o seu repertório, folclorizando os seus materiais e descontextualizando-os das circunstâncias políticas e históricas
por que foram criados”.
10 A partir de que González-Millán (1994: 30) afirmasse que “son múltiples os indicadores
da confrontación entre as dúas institucións literarias que actúan en Galicia, a galega e a
de expresión castelá”, Rodríguez Fernández (1999: 46) aponta que no SLG pós-franquista
confrontam-se grupos que pretendem consolidar no espaço social galego um sistema literário
com a língua galega como norma sistémica, com outros que “formulam a existência dum
único polissistema, o espanhol, que integraria como periféricos, portanto como subsistemas,
o catalão, o galego e o basco”. Entre as instituições que legitimam esta segunda opção Rodrí-
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
187
2. Procedimentos de Abordagem
No levantamento bibliográfico efetuado reparámos também em
que a exposição das diferentes propostas metodológicas apresentadas
nas páginas precedentes não se reflete na utilização, no acompanhamento ou na aplicação de procedimentos de abordagem essencialmente
dissemelhantes dum mesmo objeto de estudo e, em consequência, em
resultados analíticos substancialmente diferentes. Polo contrário, a bibliografia crítica analisada carateriza-se pola neutralização da metodologia de partida, facto que não julgamos alheio ao peso da tradição
também no campo da historiografia literária galega. Com uma tradição
historiográfica condicionada também pola precariedade institucional em
que o conjunto do SLG é dialeticamente construído, isto pode contribuir
a explicar a prática verificada no conjunto dos materiais analisados, que
se ocupam da reunião de elementos que cumprem a única norma sistémica contemplada (a utilização da língua galega), da sua arrumação
em géneros canonizados e da sua seleção e análise temático-estilística
através da focagem de “obras e autores” (como tradicionalmente vem
fazendo a historiografia literária de sistemas considerados “centrais” ou
“fortes”, portanto). Entendemos, então, que a neutralização metodológiguez Fernández coloca o ensino, alguns prémios literários bilíngues galego-castelhano e propostas críticas como as exemplificadas por Darío Villanueva (1992: 15 e ss.), elementos todos que parecem trabalhar para a conformação dum agregado de sistemas que compartilham
norma(s) sistémica(s); este intersistema literário (Torres Feijó 2004) que Dario Villanueva
(2000) cataloga como “Literatura española” (diferente da “Literatura castelá” e da “Literatura española en lingua castelá”) teria como norma sistémica o uso dalguma língua presente
no Estado (castelhano, galego, catalão ou euskara). Ao lado destas duas opções principais,
Rodríguez Fernández também refere as propostas de (re)integração no intersistema luso-afro-brasileiro sustentadas por grupos periféricos no período autonómico. Ora, para o que
agora nos interessa, esta investigadora afirma que em nenhuma das três macro-estratégias
referidas se concretiza “quais são os elementos em que assentam a sua definição do que deve
ou não deve ser incluído no mesmo [SLG], [isto é,] como se distinguem os produtos galegos
dos outros com os que concorre ou, dependendo da visão, convive” (Rodriguez Fernández
1999: 47). Esta investigadora acompanha Torres Feijó (2000: 969) nas conclusões sobre esta
questão e afirma que, como os sistemas literários cifram a sua diferença e a sua suficiência
em termos de normas, modelos e materiais repertoriais diferenciais e concorrentes, apesar do
triunfo que significou para as propostas dos grupos galeguistas o consenso estabelecido em
torno à consideração da língua galega como norma sistémica a partir de 1980 (Rodríguez
Fernández 1999: 54), “existem outras normas de repertório que de não se actualizarem, mas
sobretudo, dada a debilidade do repertório galego, de não se criarem com as duas premissas
de diferenciação e concorrência [...], põem em perigo a subsistência e a sobrevivência do
sistema literário galego para se definir como autónomo”.
188
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
ca e o peso da tradição (também formal) estão na base duns resultados
centrados em abordagens temático-estilísticas de autores e obras agrupados em gerações e géneros.
No sentido ainda desta confluência de resultados, existem também elementos compartilhados entre os três discursos críticos referidos acima que a justificam em grande medida; assim, as referências ao
“contexto” que fai a crítica mais textocêntrica e esteticista11 contribuem
para aproximar este discurso do da crítica nacionalista, que oferece já
nos anos oitenta em troca “unha visón da história da literatura como manifestazón cultural dun proceso histórico, que respeita a autonomia do
texto nos seus valores estéticos” (Mato Fondo et al 1988: 9; itálicos nossos). Juntamente com isto, o “critério histórico-político interno” (Rodríguez 1990: 19) sustentado pola historiografia nacionalista não parece
contraditório com a explicação da literatura como um fenómeno social
e histórico própria dos discursos sistémicos que, para além de pretender
integrar esse discurso crítico de natureza política, também levam em
conta o “protagonismo da función poética da linguaxe no texto literario”
(Vilavedra 1999: 18).
Apontamos, contudo, para a escassa integração das relações entre elementos e campos na imensa maioria dos trabalhos histórico-literários analisados, acompanhem estes contributos discursos de caráter
histórico-político ou de tipo relacional. Assim, as análises dos materiais
pretensamente sistémicos também não dão conta da posição ocupada e
da função desenvolvida no conjunto do sistema polos agentes e as instituições que o conformam, nem das normas de funcionamento do SLG
no momento histórico em foco, e as referências às circunstâncias de produção e circulação dos produtos têm em geral um caráter introdutório e
dificilmente podem, neste sentido, ser localizadas dentro dos objetivos
focados por uma análise relacional, mas apenas dentro duma abordagem
em maior ou menor grau contextual (entendida como o conjunto dos
11 “A historia da literatura debe procurar estudiar as obras en si, destacando os seus valores
estéticos, pero tamén debe incluír algunha información sobre o contexto, o que permite un
coñecemento máis completo do fenómeno literario e, xa que logo, facilita interpretacións
parciais da obra, que enriquecen a súa dimensión plurisignificativa ” (Gutiérrez Izquierdo
2000: 38).
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
189
elementos extra-literários a que um texto fai referência ou que explicam
a produção de determinados textos).12
Desta maneira, quanto aos procedimentos de arrumação e de
abordagem do conhecimento, detetamos um acordo total no agrupamento de produtos e repertórios em géneros canonizados e a aceitação
com alguns matizes da arrumação dos produtores em gerações (pormenores que não impedem o uso deste método, como veremos abaixo). Ao
lado desta arrumação geral encontramos vários exemplos de agrupamentos específicos também sujeitos a uma posterior organização genérica (e,
depois, a outra em obras e autores) para os casos dos repertórios destinados ao público infanto-juvenil (a partir da década de setenta), para a
produção feminina (integrada no corpus geral de maneira maioritária,
facto seguramente favorecido pola posição central ocupada pola figura
de Rosalia de Castro no SLG) e para os espaços que tanto Bassel (1991)
como Torres Feijó (2004) denominam enclaves e que, por regra geral,
serão individualizados apenas em referência ao imediato após-guerra
(1940-1950) com a função de cubrir o vazio deixado pola ausência de
produção em galego na metrópole, referenciados escassamente fora deste momento e referidos na bibliografia analisada sob epígrafes em que
figuram termos como “emigración”, “exilio”, “diáspora” ou “exterior”.
12 Destas tentativas de análise sistémica, em maior ou menor medida deficientes ou parcelares,
deverão ser excetuados, por exemplo, os trabalhos publicados por Vilavedra já no século
XXI, os contributos de González-Millán e Figueroa (centrados fundamentalmente no âmbito
da análise de aspetos que dizem respeito às normas e modos de funcionamento do SLG)
e o trabalho já referido de Rodríguez Fernández, que aponta para a alegada falta de integração nos estudos que se ocupam do SLG pós-franquista dos elementos político-culturais
que explicam a dinâmica e a transformação do sistema literário, mas que são diretamente
desestimados nos materiais através dos quais acedemos ao conhecimento construído sobre
o funcionamento do SLG entre 1974 e 1978 ou, na maioria dos casos, são considerados
como “externos” ao sistema literário em foco. Por suas palavras (Rodríguez Fernández 1999:
59): “Este carácter externo deriva-se, principalmente, de que nestas análises se priorizam os
textos e os autores, fazendo-se uma análise imanente que não permite, em nossa opinião,
estabelecer as razões que explicam o porquê dessa transformação e a função que todos estes
elementos desempenham. Noutros casos estes elementos, juntamente com os acontecimentos
político-sociais são considerados como importantes, mas unicamente são utilizados como
pano de fundo, como contexto histórico que pretende deitar luz sobre as novas dinâmicas que
se verificam, mas que, em qualquer caso, afinal não são postos em relação com esses autores
e obras que estudam, continuando a privilegiar a perspectiva internista”.
190
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
A estas questões relacionadas com a organização do conhecimento somam-se ainda aquelas outras referidas à periodização, nas
quais, aos efeitos da integração do lapso 1974-1978, o início do período
posterior ao após-guerra é colocado tanto no ano da morte do ditador
(1975) como em 1980. Ainda que não existe uma equivalência exata
entre a tipologia de discurso crítico e a escolha duma das duas datas
apontadas para separar a época franquista da autonómica (Tarrío 1998
e Vilavedra 1999 afirmam partir de idênticos postulados metodológicos
sistémicos e estabelecem 1975 e 1980, respetivamente), destaca neste
ponto a influência da proposta periodizadora de Francisco Rodríguez
(1990: 62-63) que, sustentada na dependência de fatores exógenos ao
campo literário (sócio-políticos), consiste em estender um período que
entende caraterizado por uma
atmosfera que condicionará a criación literária en termos positivos
-tensión e vitalidade- até 1.980, máis ou menos. Xa aprobada a Constitución Española e o Estatuto de Autonomia da Galiza, especialmente
a partir de 1.981, os acontecimentos irán precipitando-se nun camiño
de confusión e falta de expectativa ideolóxica que condicionará gravemente non só o desenvolvimento cuantitativo -número de obras publicadas- senón tamén cualitativo da nosa literatura.13
13 Repare-se no caráter aproximativo atribuído à periodização polas expressões sublinhadas.
Para a reprodução desta periodização contribuiu sem dúvida a importante presença do grupo
do professor Rodríguez no ensino secundário (a própria obra de 1990 corresponde-se com a
publicação da memória apresentada para as provas de catedrático de liceu polo líder político-cultural do grupo nacionalista). Entre os “critérios metodolóxicos para a análise do fenómeno literário galego” prescritos por Rodríguez (1990: 18; carregado no original) o número
sete ocupa-se da periodização: “Os grandes períodos, que poden abranxer arredor de 25 anos,
ainda que agrupen a diferentes xeracións, son do ponto de vista histórico, máis sintomáticos,
pois manteñen unidade e coeréncia ideolóxica e cultural, nos aspectos fundamentais. Debe
fuxir-se da catalogación atomizada e alumear, con luz histórica potente, os fenómenos
literários, e o contraste entre épocas e autores ou obras”. Desde a crítica sistémica, Vieites
(1996: 12) contempla também a pertinência de levar em conta elementos externos ao campo
literário (nomeadamente a relação deste com os campos político e nacional), mas coloca a
questão da periodização noutros termos: “Entendemos que toda proposta de periodización
debe partir da análise das características singulares do propio obxecto de estudio e no caso da
literatura galega, deberemos ter presente tamén a variable sociopolítica, pois o aumento da
conciencia de Galicia como país histórica, cultural ou lingüísticamente diferenciado, repercute na producción literaria cualitativa e cuantitativamente” (sobre periodologia e mudanças
nos sistemas literários ibéricos vid Domínguez 2004).
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
191
O facto de que o conhecimento sobre o SLG esteja construído sob os parâmetros da divisão genérica explica, contudo, a procura
duma baliza específica para a mudança na evolução de cada género concreto na bibliografia consultada.14 Desta maneira, podemos ver como o
lapso temporal compreendido entre 1974 e 1978 está atravessado em
vários pontos pola linha imaginária que separa o período identificado na
bibliografia analisada como “posguerra” doutro que, em geral, é adjetivado como de “hoxe” ou “actual” (e ao qual não é nunca colocada data
de terminus ad quem). Julgamos que o facto dos materiais consultados
terem localizado ao longo deste período mudanças parcelares no sistema (concretamente diferenças temático-estilísticas e nas condições de
produção e circulação dos produtos agrupados em géneros), justifica a
individualização da linha imaginária que separa o franquismo da Autonomia (1974-1978) como uma dessas “zonas difusas de imbricação e de
interpenetração” que refere Aguiar e Silva (1999: 420).
Chamamos a atenção ainda para o facto de que as balizas estabelecidas para o conjunto do sistema nos materiais consultados nem
sempre são funcionais depois de que a crítica efetue o agrupamento da
produção em géneros e coloque marcas cronológicas específicas tentando responder à evolução de cada tipologia genérica. Da mesma maneira, esta organização do conhecimento em géneros canonizados não
é analisada e em nenhum momento é questionada pola crítica literária
galega, e a análise do discurso genérico é apresentada habitualmente
nas monografias e trabalhos historiográficos consultados (com maior
intensidade no caso da crítica dita sistémica) como um objetivo em si
mesma, sem colocar em geral esta questão em função da explicação do
14 Em geral, é apontado 1976 para a poesia, 1975 ou 1977 para a narrativa (sem acordo sobre
a data de esgotamento definitivo da corrente denominada «Nova Narrativa Galega» [cf, por
exemplo, Salinas 1985 com Forcadela 1993]), também 1975 para a literatura infanto-juvenil e
o ensaio (nalgum caso aqui também 1978) e 1978 para o teatro (se quem aborda este subcampo específico é Vieites [1996] e não Vilavedra [1998], para quem a baliza deve avançar até o
fim do período de transição, que situa em 1980). Leve-se em conta, ainda, que “um código literário não se extingue abruptamente, num determinado ano ou num determinado mês, como
também não se constitui dum jacto. [...]. A utilização de datas precisas para assinalar o fim de
um período e o início de outro, como se se tratasse de marcos a separar dois terrenos contíguos, não possui rigoroso significado analítico-referencial, apenas lhe devendo ser atribuída
uma simples função de balizagem, como que a indicar um momento particularmente relevante na desagregação de um período e na conformação de outro” (Aguiar e Silva 1999: 420).
192
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
funcionamento, da estrutura ou das relações presentes no sistema em
foco (como veremos adiante, esta estrutura também será reproduzida
polo sistema de ensino). Não detetamos, portanto, nos trabalhos historiográficos consultados uma análise do discurso genérico entendido
como um repertório da cultura (exceto nalguma monografia específica,
como as que González-Millán 1996 ou Vilavedra 2002 dedicam à narrativa); o que destaca neste tipo de produtos, porém, é a utilização destas
categorias como contentores onde arrumar materiais em virtude dumas
determinadas caraterísticas textuais preestabelecidas.15
De acordo com a nossa análise, o modo em que está construído
o conhecimento sobre o SLG em volta do período selecionado evidencia, por uma parte, o caráter relativamente aproximativo e convencional
atribuído à periodização e, por outro lado, tem como principal consequência a parcelação das focagens e, portanto, a dificuldade para a compreensão global do SLG (quanto às relações do conjunto de elementos
que interatuam no seu processo de construção). Entendemos que a organização do conhecimento unicamente por géneros e o entendimento
dos géneros apenas como epígrafes sob as quais arrumar materiais com
determinadas caraterísticas textuais (sem questionar, em geral, a função
e a posição que os géneros, como repertórios, desempenham no siste15 Lembremos as “épocas, os autores e os xéneros” que colocava Vilavedra (1999: 36) entre
os assuntos de que a metodologia sistémica devia dar conta, ou, no mesmo pólo crítico,
como Anxo Tarrío (2001: 17) expressa as suas preferências por “adoptar unha metodoloxía cronoxenolóxica que nos permitise observa-la evolución dos distintos xéneros canónicos
desde a posguerra ata hoxe, através das diferentes xeracións, promocións ou unidades xeracionais (no sentido manheiniano [sic] da expresión)”. Por seu lado, a crítica literária mais
textocéntrica (Gutiérrez Izquierdo 2000: 8) está interessada fundamentalmente no “carácter
representativo dos trazos formais e temáticos do xénero ou autor estudiado”. No outro pólo
da crítica, em coerência com a função atribuída à literatura e com os métodos que movem o
seu estudo, o oitavo critério metodológico prescrito por Rodríguez (1990: 20; carregado no
original) determina que “nunha situación como a galega, fai-se máis apremiante o estudo
das formas como expresión dos contidos”, sem que isto signifique arrumar a produção
de maneira diferente da genérica. Por contra, uma abordagem centrada nos géneros como
repertórios obrigaria à crítica, de acordo com González-Millán (1995: 346), “a identificar
que axentes interveñen na configuración, perpetuación e subversión das formas xenéricas e a
precisar os requisitos que fan posible a súa actuación. As institucións educativas responsables
da transmisión do coñecemento [quando existirem], as tradicións literarias canonizadas, o
mundo editorial, os grupos e movementos literarios, determinados procesos socioculturais,
as institucións avaliadoras (sobre todo as académicas) e o protagonismo de determinados
textos e autores, deberían figurar entre os axentes privilexiados desta dinámica xenérica”.
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
193
ma) não favorece esses objetivos e também não possibilita abordagens
transversais e em maior grau relacionais do conjunto do sistema, por
exemplo quanto ao estudo de trajetórias de indivíduos, de grupos ou do
papel desempenhado polas instituições também quanto à configuração,
à função e à posição dos géneros em foco, ou quanto às relações mesmas
entre os vários géneros (de presença/ ausência no sistema, de hierarquia,
etc.).
Apesar das questões colocadas acima sobre a organização do
conhecimento em géneros, unicamente o agrupamento geral dos produtores em gerações é motivo dalguma reflexão crítica na bibliografia
historiográfica consultada.16 No entanto, no conjunto dos trabalhos analisados, a historiografia literária da Galiza acompanha a estrutura geracional estabelecida por Xosé Luís Méndez Ferrín (1984) para a poesia
galega do século XX. Este produtor, localizado crítica e politicamente
na esquerda nacionalista, não defende “a análise xeracional como método excluínte de interpretación histórica” (Méndez Ferrín 1984: 71; itálico no original), leva em conta o (re)conhecimento e posicionamento dos
produtores em relação à tradição e entende
que o concepto [de geração literária] é insustituíble se nos propomos
agrupar escritores en sectores coerentes que reflexen en bloque os condicionamentos sociais, económicos e histórico-literarios dun momento
dado. Para o autor, xeración é un conxunto de escritores nacidos nun
16 Para a apresentação destes assuntos, alguns trabalhos analisados referem as propostas de Karl
Mannheim (1928) e de Julius Petersen (1946). Em “O Problema das Gerações”, Mannheim
(1928) entende estes agrupamentos de produtores como conjuntos alargados de relação (generationszusammenhang) que potencialmente podem avançar na configuração de grupos
concretos (konkretegruppen) ou, para o que aqui nos interessa, reconhece que uma unidade
geracional pode não se constituir um grupo concreto e coeso socialmente, por mais que o uso
dos vocábulos “grupo” e “geração” funcionem geralmente na bibliografia consultada como
sinónimos (i.e. Vilavedra 2004: 396). Para Petersen (1946), por seu lado, uma geração literária pode ser entendida em virtude de fatores como a coincidência na data de nascimento (que
favorece atitudes solidárias), a comunhão de orientações pedagógicas (cifrada numa similar
formação cultural e ideológica), a vivência de problemas comuns (que estimula posicionamentos e intervenções conjuntas), o eventual reconhecimento duma liderança intelectual comum, a criação duma linguagem literária específica, a desagregação da geração anterior, etc.;
situações todas que apontam mais para uma tendência (ou, outra vez, uma potencialidade) do
que para um facto relacional objetivo e objetivável.
194
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
período de dez anos, que se configuran colectivamente nun determinado intre histórico, e en relación con determinado estadio da tradición
literaria precedente.
Boa prova do sucesso do agrupamento de produtores feito por
Ferrín na sua tese de doutoramento constitui-o o facto de que este é
reproduzido no ensino médio inclusive desde antes da sua efetiva publicação em livro na primeira metade da década de oitenta (Colectivo
Seitura 1982: 381), utilizado como modelo para os períodos não abrangidos no trabalho deste crítico nacionalista (Tarrío Varela 1997: 56) e
tresladado em grande medida do género que ocupou historicamente a
posição central no SLG também para os géneros diferentes do poético,
em função tanto da centralidade alcançada por este produtor no campo
literário galego desde a década de sessenta (em virtude duma acumulação de capitais relacionada quer com as suas ações nos campos culturais
quer com o mantimento dum discurso político enquadrado na esquerda
independentista) como do pretendido caráter abrangente deste trabalho
historiográfico de Ferrín e da implementação dos postulados teóricos da
crítica nacionalista de que faz parte.17
Na hora de agrupar os produtores segundo a data de nascimento
ou de início da sua produção, porém, encontramos tomadas de posição
no sentido de relativizar ou questionar a adaptabilidade desta arrumação
para o estudo do SLG; isto acontece também no caso de Méndez Ferrín, para quem o principal motivo de roçamento entre o procedimento
geracional e o estudo da realidade literária da Galiza está localizado
nas situações políticas não favorecedoras do uso literário da língua galega. Tanto para Ferrín como para o conjunto da crítica literária galega
(que parte da aceitação indiscutida do critério filológico), esta situação
anómala afetaria em maior medida períodos anteriores ao focado nes17 “Non só tratei de clasificar autores e tendencias poéticas de antes e de despois da guerra
antifascista, senón que tamén quixen calificar os xéneros en prosa das épocas estudadas, así
como designar os feitos culturais e as actividades políticas que acompañaron á literatura e
determinar os dados económicos, sociais e, en conxunto, históricos que considerei necesario
en cada intre para unha comprensión xusta deste anaco da nosa evolución histórico-literaria.
Nesta obra enténdese a xeración de textos poéticos en língua galega como parte do proceso
de liberación nacional do noso pobo” (Méndez Ferrín 1984: 17).
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
195
te estudo (nomeadamente o imediato após-guerra) do que a década de
setenta.18 Serão estas anomalias no funcionamento do SLG as causas
de Francisco Rodríguez (1990: 19; carregado no original) determinar o
caráter secundário do chamado “critério xeracional” fronte às normas
propostas e aos métodos de abordagem já conhecidos do seu grupo:
Ademais do critério histórico-político interno, pode empregar-se,
como complementário, o critério xeracional, nunca como exclusivo
ou prioritário. Ao ser a nosa unha situación anormal, a idade ou data
de nacimento non sempre unifica aos escritores nen sequer en canto ao
momento cronolóxico das suas contribucións á literatura pátria.
A contradição anotada por Ferrín e a situação de anormalidade
do SLG apontada por Rodríguez para secundarizar o método geracional
são também consideradas pola crítica que diz acompanhar um discurso
sistémico. Por isso, à hora de reflexionar sobre a aplicabilidade do método geracional como fórmula interpretativa válida para o estudo do SLG
(nomeadamente para a poesia, em virtude da já referida construção do
conhecimento na base dos repertórios de género e a traslação do método
de análise do género central para os restantes), Vilavedra (1999: 221) refere as várias tentativas da crítica galega (Álvarez Cáccamo e Bernárdez
1994, Román Raña 1996 ou Manuel Forcadela 1996) para “establecer
un novo paradigma analítico que detectase cales destas liñas [temáticas
e estilísticas] funcionan como eixes vertebradores na reconstrucción do
discurso poético, e de analizar o seu desenvolvemento”.19 Contudo, o
18 Méndez Ferrín (1984: 71) indica concretamente que “a máis importante contradición que
achei no meu traballo entre o concepto de xeración e a realidade literaria e cultural en cuestión, maniféstase no seguinte feito anómalo: as tres primeiras xeracións do posguerra (primeira, nados entre 1910 e 1920; segunda, nados entre 1920 e 1930; terceira, nados entre 1930 e
1940) xurden case simultaneamente. Non siguen unha á outra; agroman, máis ou menos, contemporáneas, despegan xuntas. Esta anomalía débese a que a produción de libros galegos se
interrumpe entre 1936 e 1950”. Román Raña (1996), por seu lado, após revisar as condições
de aplicabilidade dos critérios de Petersen para a análise da poesia galega de após-guerra,
conclui que a arrumação geracional não é viável no SLG até a década de 70.
19 Anotamos como mostra das tentativas e das estratégias ensaiadas para resolver os problemas
apontados, quanto ao agrupamento e a periodização no SLG, “Unha proposta de superación
196
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
alto grau de consenso alcançado pola já tradicional organização feita
por Ferrín em inícios da década de oitenta, faz com que o novo paradigma interpretativo proposto na década seguinte não passe por superar o
agrupamento dos produtores em geracões, mas apenas por servir-se da
clasificação geracional como ponto de partida para entender o “diálogo
interxeracional que achega os estilos e as vontades e dificulta o establecemento de fronteiras diacrónicas” (Álvarez Cáccamo e Bernárdez
1994: 3-4) ou por empregá-lo, em último caso, “non tanto como ríxida
clasificación xeracional senón a modo de esqueleto cronolóxico que nos
oriente para seguir o desenvolvemento das principais propostas estéticas” (Vilavedra 1999: 221). Assim, o conjunto da crítica literária que se
ocupa do SLG dos anos setenta acompanhará efetivamente o método
de arrumação dos produtores em gerações minimizando a importância
dos agrupamentos para a compreensão do sistema (recorrendo ao caráter
convencional das categorizações e mesmo recolhendo, nalgum caso, a
ideia da produção como ato individual e solitário do génio criador vinda
do romantismo), alegando o peso do consenso em volta duma tradição
já consolidada, razões de comodidade, claridade expositiva ou o suposto
didatismo derivado deste procedimento (veja-se tanto Tarrío 1994: 346
e 2001: 20 como, no pólo da crítica mais esteticista, Rodríguez Gómez
1986: 11-12).
Destacamos ainda a permanência nas monografias e trabalhos
historiográficos publicados nas três décadas que abrange a bibliografia
consultada destes procedimentos tanto de arrumação do conhecimento
(géneros, gerações, periodização...) como de análise temático-estilística
dos materiais organizados em obras e autores; além do mais, o conheda orde xeracional oitenta/noventa” de Iris Cochón Otero (in Tarrío 2001: 285-287), em
cujo estudo esta professora da USC nega validez, por convencional, ao conceito de geração
e afirma partir “dunha consideración global do decurso poético do último cuarto de século
XX, [com o qual] é claro que as súas premisas de partida combaten o carácter compacto
tanto dos anos oitenta coma dos noventa, isto é, socavan as bases ontolóxico-periodolóxicas
habituais” (pág. 286). Em concreto, a proposta de Iris Cochón passa por agrupar e estudar
conjuntamente a produção poética de 1976 a 2000, ainda que na mesma obra enciclopédica
este período é dividido e abordado separadamente em “A poesía de fin de milénio: os anos oitenta” (responsabilidade da também professora da USC Mª Xesús Nogueira [in Tarrío 2001:
290-363]) e em “A poesía de fin de milenio: O reaxuste dos anos noventa” (redigido pola
própria investigadora responsável da alternativa colocada como integradora; in Tarrío 2001:
366-417).
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
197
cimento assim construído é tresladado aos livros de textos e aos manuais utilizados no ensino (nas suas várias etapas) desde a introdução das
matérias de língua e literatura galega na educação escolar obrigatória
em 1979 até (polo menos) o ano 2009, com o que fica garantida a sua
transmissão e reprodução no conjunto do sistema.20 Julgamos que vale a
pena indicar ainda, como mostra das diferentes tomadas de posição presentes no estratégico campo do ensino, das lutas dos diferentes grupos
polo seu controlo e da sua evolução ao longo destes trinta anos, que os
principais responsáveis (Gutiérrez Izquierdo, Navaza Blanco e Rodríguez Gómez) pola elaboração da Proposta didática assinada por Guillén
Álvarez et al em 2004 tinham participado já em 1982, sob a direção do
professor da USC Varela Jácome, na redação do manual de Literatura
Galega para 3º ano de bacharelato “aprobado como libro de texto pola
Consellería de Educación coa data 5-X-1982” e, polo mesmo, reeditado
e utilizado maioritariamente no ensino na primeira metade desta década.
Na apresentação dos conteúdos deste sucedido curso de literatura galega, o denominado daquela Colectivo Seitura ocupa-se em maior medida
da compoente social do facto literário do que o farão os mesmos professores nas décadas posteriores (Gutiérrez Izquierdo et al 1991 e 2003),
quando já centram a referida proposta didática no “estudo sistemático
dos textos, co obxecto de [os alunos e alunas] captaren as súas dimensións estéticas” (Guillén Álvarez et al 2004: 6). Esta secundarização dos
critérios heterónomos, que vinham tendo um importante peso relativo
nos materiais destinados a circularem no campo do ensino desde 1979,
não alcança da mesma maneira a proposta de Desenvolvemento curricular elaborada por Bao Abelleira e Vázquez González (1997: 12), onde
(ainda) figura o objetivo da crítica “identitária” maioritária neste campo:
“Comprende-la relación entre a obra literaria e o contexto sociocultural
20 Sirva apenas como exemplo do apontado a Programación de lingua [e literatura] galega
pra ensino básico publicada pola Xunta de Galicia em 1979 (MEC-XG 1, 1979: 49 e 54),
que contempla entre os seus objetivos que o alunado “vaia anotando as características que
definen os distintos xéneros literarios” e entre os conteúdos previstos o “estudio dos xéneros
literarios”; e veja-se também a Proposta didáctica de língua e literatura galega publicada já
em 2004 com a pretensão de que “ao rematar a etapa, alumnas e alumnos teñan demostrado coñecementos solventes sobre [...] as etapas da literatura galega, recoñecendo autores e
obras”(Guillén Álvarez et al 2004: 5).
198
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
no que foi creada e recoñecer nela as influencias literarias e non literarias”.
Em todo o caso, no percurso bibliográfico realizado verificámos
que, juntamente com os numerosos livros de texto e manuais, a produção após 1978 de trabalhos historiográficos sobre a literatura galega
também foca direta ou indiretamente o campo do ensino e que, em todos
estes materiais, o objetivo de “Saber en que circunstancias se desenvolveu a nosa literatura e coñece-los seus autores e obras máis importantes”
(Mouriño Cagide et al 1991) combina-se em maior ou menor medida
com o intuito de conhecer quais forom as “correntes estéticas e ideolóxicas que configuraron até o presente a personalidade cultural e histórica
da Galiza a través do esforzo criador dos seus escritores” (Mato Fondo
e Fernández Pérez-Sanjulián 1992).
Este assunto leva-nos à última questão que queremos abordar
neste trabalho. Ao falarmos da neutralização metodológica já chamámos a atenção para a coincidência básica entre o conjunto dos conteúdos apresentados nos materiais consultados (a referida confluência de
resultados); isto significa que o modo em que foi construído o conhecimento sobre o SLG (em concreto sobre 1974-1978) faz com que as
formas de apresentação e os próprios resultados tenham um alto grau de
similitude (e apresentem, portanto, as mesmas lacunas) seja qual for a
orientação teórico-metodológica colocada à partida no trabalho historiográfico concreto. Porém, isto não significa que não existam diferenças
entre discursos críticos (nas páginas anteriores foram expostos elementos comuns e diferenciais entre eles) e, para o que pretendemos analisar
neste momento, que não haja mudanças na linha central do discurso
crítico galego posterior a 1978, considerado agora historicamente e não
em função das diferentes focagens metodológicas que o sustentam.
Estas mudanças têm a ver, no básico, com a constatação de que,
a medida que avança o processo de autonomização e institucionalização
do SLG, tem lugar uma relativa mas progressiva diminuição da atenção
prestada ou do grau de intensidade com que são abordadas determinadas
questões e, ainda que alguns elementos mantêm uma posição de centralidade similar em todo o processo, há outros assuntos (ou mesmo con-
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
199
ceitos concretos) que não têm continuidade no discurso crítico galego
considerado no lapso cronológico de 1979 a 2009. Em concreto, apontamos para a ausência do referente de reintegração português tanto do
campo da historiográfica literária como dos materiais destinados diretamente para o campo do ensino depois da primeira metade de oitenta.
No primeiro caso, já referimos as semelhanças estruturais entre
as literaturas galega e portuguesa alegadas por Vázquez Cuesta em 1980
para reforçar a autonomia do SLG em relação ao SLE, e poderemos citar
ainda o trabalho de Carlos Reis (1992: 461) em volta da “síndrome do
periferismo” que, segundo o professor de Coimbra, parece afetar por
igual a cultura galega e a portuguesa. Sobre o segundo tipo de produtos,
sabemos que o manual de Fernández Herráiz e García Uría (1982: 5)
inclui entre os materiais apresentados “algunhas nozóns da Literatura
Portuguesa, co fin de encadrar o feito literário galego no ámbito que lle
corresponde, de maneira que o alumno consiga unha visión universalizadora da nosa cultura”. Ora, se bem o uso da “literatura portuguesa e as
literaturas de expresión portuguesa, como complemento adecuado pra
facilitarmos unha visión universalizadora da nosa cultura” (MEC-XG
4, 1980: 31) figura na primeira Programación de Lingua e Literatura
Galegas pra BUP,21 após a supressão nos Deseños Curriculares Base
para o ensino secundário da Galiza dos conteúdos respeitantes às literaturas lusófonas (Xunta de Galicia 1992 e 1993) e verificada a falta
de continuidade do elemento lusófono na historiografia literária galega
depois do contributo de Vázquez Cuesta (1980), as referências relativas
ao intersistema cultural galego-luso-brasileiro estão limitadas depois da
primeira metade de oitenta nestas duas instâncias legitimadoras (crítica
e ensino) às práticas e repertórios compartilhados com Portugal durante
a Idade Média (entre os séculos XII e XV), altura em que surge e se consolida neste espaço um sistema cultural laico promovido pola nobreza
galega no romance ibérico ocidental (para as “Consideracións sobre o
21 No seu “Programa de Contidos” destinados ao terceiro ano de bacharelato, a Programación
“preparada polos profesores Víctor F. Freixanes, Xosé M. Enríquez, Xosé L. Grande Grande,
Antonio Gil Hernández e Xosé R. Pena” (MEC-XG 4, 1980: [3]) contemplava o estudo de
dous temas monográficos (um sobre “Luís de Camões” e outro sobre “As literaturas de expresión portuguesa”) e de várias epígrafes dedicadas ao estudo do referente de reintegração
português integradas no corpo do programa docente (nos temas 6, 8-10 e 14-15).
200
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
período medieval na historiografia literária galega” vid Gutiérrez García
2004). Não detetamos, portanto, referências significativas ao período
abrangido polo projeto Fisempoga, apesar do papel de relativa centralidade jogado nessa altura pola relação com a Lusofonia nas diferentes
estratégias de vários dos grupos presentes no SLG, ou dos labores de assistência identitária realizados por agentes do galeguismo em Portugal,
nomeadamente por Rodrigues Lapa nos campos literário e linguístico
galego deste período.22
Julgamos que este abandono da referencialidade portuguesa na
crítica que se ocupa do SLG deve estar relacionada nalguma medida
com a passagem desde uma função de referente de reintegração a outra
de referente de oposição no campo da codificação linguística (Samartim
2005), mudança acontecida no centro do sistema cultural galego a partir
da institucionalização em 1982 pola Rela Academia Gallega [RAG] (e
oficialização um ano depois polo Governo autonómico) das propostas
nesse sentido sustentadas polo ILG com intensidade variável desde a
sua criação em 1971. Apesar dos grupos nacionalistas da esquerda promoverem até os inícios do século XXI modelos linguísticos alternativos
e em maior grau próximos dos estándares de Portugal e do Brasil que
os oficializados polas instituições culturais e políticas autonómicas (Samartim 2004), a crítica nacionalista, preocupada na defesa do caráter
autónomo e periférico do SLG, tampouco sustenta a linha de discurso
ensaiada por Vázquez Cuesta em 1980.23 Esta carência de referências
22 De acordo com o conhecimento do SLG fornecido por vários trabalhos de membros da equipa que sustenta o projeto Fisempoga (vid Loureiro 2006 ou Torres Feijó 2007), estamos em
disposição de afirmar que a falta de continuidade desta linha de estudo na bibliografia de
referência deixa fanado o conhecimento sobre o SCG (polo menos) entre o franquismo e a
transição.
23 Entre os objetivos da segunda etapa de ensino básico figurava em 1979 “[«traballar co neno
para lograr»] que sexa consciente das semellanzas e diferencias co portugués” (MEC-XG 1,
1979: 47), e entre os objetivos marcados para o primeiro ano de Bacharelato estava também
nessa altura “Insistir e facer ver no alumnado un carácter universalizador do galego: isto é,
facer ve-la situación do noso idioma e cultura nun marco universal, nas súas relacións cos
países románicos en xeral e coa área galego-portuguesa en particular” (MEC-XG 4, 1980:
8). Confronte-se esta focagem com a ausência de referências à língua e à literatura portuguesas na didática preparada polo nacionalismo em meados de oitenta (Radío 1986), e com
a equidistância representada na única referência detetada nos “Contidos do terceiro ciclo”
do ensino primário após a introdução da Ley de Ordenación General del Sistema Educativo
(LOGSE, Ley Orgánica 1/1990): “Relacións e interferências da lingua galega con outros
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
201
em quanto a relações intersistémicas também não é preenchida pola crítica dita sistémica.24
Na linha desta ausência de analogias ou de reflexões sobre as
relações com outros sistemas literários referenciais para o SLG historicamente considerado, chamamos a atenção também para a escassa atenção dedicada nos manuais e nas enciclopédias consultadas à função da
tradução no sistema e, da mesma maneira, apontamos também para a
inexistência na bibliografia consultada de alusões ao sistema catalão,
tradicional referente de analogia que desempenha uma importante função quer como modelo para a periodização básica do SLG quer como
fonte de transferências para campos emergentes em finais dos setenta
e primeiros oitenta, nomeadamente pola via da tradução de literatura
infanto-juvenil (Figueiras 2009 para este assunto concreto e Figueroa
2002 para as questões metodológicas envolvidas na autonomia e as relações intersistémicas). A estas ausências devemos opor, porém, a continuidade nos discursos críticos da defesa ou justificação da autonomia
do SLG face ao seu referente de oposição (nomeadamente na crítica
nacionalista), do recurso aos elementos sócio-políticos externos ao SLG
a modo de explicação “contextual” (que não relacional) e da afirmação
unânime do critério filológico como única norma sistémica, em todo
o caso dentro da relativa escasseza de referências a este assuntos nos
trabalhos historiográficos gerais já notada (Samartim 2009) e com intensidade variável em função das diferentes motivações das principais
focagens metodológicas que sustentam o discurso crítico-historiográfico
após 1978.
Para concluirmos, apontamos também para o paulatino avanço
no processo de confluência terminológica que deriva no uso geral do
sintagma “literatura galega”, a custo da perceção do progressivo esvaiidiomas. Galego e portugués. Galego e castelán. Galego, francés e inglés” (Xendro et al
1993: 43).
24 Apesar de detetar a necessidade de que “o estudio da literatura galega como un sistema autónomo e autóctono debería atender, describir e explicar [...] a súa pertenza a diversos sistemas
interliterários (no noso caso, hispánico, europeo e lusófono, fundamentalmente), definidos
en función de criterios de natureza territorial, etnolingüística, rexional, etc. e cun espectro
relativamente estable e ben definido para cada unha das literaturas nacionais que operen no
seu marco” (Vilavedra 1999: 19-20).
202
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
mento de terminologia em maior medida nacionalitária (nomeadamente
“literatura nacional”, de maior sucesso nos anos oitenta do que nos noventa) e na assunção gradual da terminologia sistémica polo conjunto da
crítica desde a primeira metade da última década do século XX.25 Esta
expansão de terminologia sistémica alcança também a crítica nacionalista, como demonstra a recolha sumária feita sobre os vários volumes
editados por Ansede e Sánchez Iglesias em 1996 efetuada por Gómez
Sánchez e Queixas Zas (2001: 5; itálicos nossos) com o “obxectivo
de sintetizar, nun manual con carácter divulgativo, aqueles episodios,
obras, autores e autoras fundamentais na configuración do noso sistema
literario”. O termo “sistema literário” será utilizado, então, desde inícios da década de noventa até esta primeira década do século XXI como
sinónimo do conceito geral “literatura galega”, sem esta primeira aceção
se corresponder necessariamente com análises propriamente sistémicas
e, portanto, com base empírica e centradas no estudo da literatura como
uma rede relacional de elementos interdependentes (confrontem-se, neste sentido, as monografias de González-Millán, Figueroa, Torres Feijó,
Rodríguez Fernández ou Vilavedra [2002] que figuram na nossa bibliografia, com os conteúdos dos manuais publicados ou coordenados por
Vilavedra [1999] ou Tarrío).
25 “G[onzález]-M[illán] e Antón Figueroa [...] foron os que asumiron principalmente a responsabilidade de fornecer desde comezos dos anos noventa as bases para os estudos sistémicos
aplicados á literatura galega. Libros como Communication littéraire et culture en Galice
[1997], cabo doutros, constituirían boa proba. Desde logo isso é certo, pero non constitúe
toda a verdade. [...]. Porque G-M foi tamén, entre nós, o máis frontal crítico en relación cos
presupostos que podem representar a teoría dos polisistemas de Itamar Even-Zohar ou a teoría do campo literario de Pierre Bourdieu. Foino sobre todo nos seus últimos anos e de maneira ben decidida ademais. Tanto, que se podería dicir que aspirou a impugnar eses operativos
para postular outros alternativos, de maior largura e cargados do que el mesmo describiría
como tensión utópico-proxectiva” (Casas 2002: 34; itálicos no original). Entre as publicações
no espaço galego relacionadas com as teorias sistémicas e de campo indicaremos apenas os
trabalhos editados na primeira metade da década de noventa polo próprio Itamar Even-Zohar
(1993 e 1995; com presença anterior no âmbito hispano através da revista espanhola Criterios [Even-Zohar 1985-1986]), González-Millán (1990, 1992 e 1994), Antón Figueroa (1992
e 1994) ou Elias J. Torres Feijó (1995). Já no fim desta década Rodríguez Fernández (1999:
60) referia que “nestes últimos anos da mão de investigadores como X. González Millán,
Antón Figueroa ou Elias Torres começam a pôr-se os alicerces na Galiza duma nova maneira
de abordar o fenómeno literário, considerando-o um sistema e interrelacionando e estudando
todos estes elementos e a sua função e pertinência”.
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
203
3. Síntese conclusiva
No caso galego, o nacionalismo filológico é responsável pola
atribuição à língua galega do caráter de única norma sistémica com
independência das condições de aplicabilidade do chamado critério filológico e das diferentes propostas político-culturais existentes nesse
sentido em cada estádio do processo de construção do SLG. A crítica e
a historiografia literária galega tresladam assim para o SLG o valor atribuído à língua como principal elemento etno-identitário diferencial da
comunidade e, ao não colocarem no centro das suas análises os (conflituosos) processos de legitimação normativa em sistemas deficientemente institucionalizados, excluem das margens do SLG tanto as análises
das tomadas de posição que matizam ou discutem esta função identificadora da língua galega no sistema literário, como os resultados que daí
se derivam para o funcionamento do sistema e os discursos sobre outras
eventuais funções atribuídas a este elemento identitário (de competência
intercomunitária ou de relacionamento com outros sistemas culturais,
por exemplo). Assim mesmo, a íntima relação existente entre os processos de construção dos campos literário, político e nacional (Figueroa 2001), explicam a heteronomia do primeiro a respeito dos segundos
promovida polos grupos nacionalistas, com centro de ação e objetivos
referenciados no campo político nacional galego, tanto a respeito das
normas de repertório propostas (critério identitário) como dos métodos
de estudo e interpretação do SLG (acompanhando o chamado critério
histórico-político interno).
Em virtude da função como conformadora da identidade nacional
atribuída polos grupos nacionalistas da Galiza à literatura e da posição
relativamente central do nacionalismo literário em sistemas emergentes
como o galego se historicamente considerados (de acordo com relações
entre os campos político, nacional e cultural apontada), estes grupos
procuram manter ou melhorar a sua posição nos campos em que atuam
(também no da historiografia literária) e oferecem resistência perante as
mudanças na estrutura e no funcionamento do sistema literário derivadas do processo de institucionalização (político e cultural) dirigido no
novo tempo polos seus antagonistas ou opositores também nos campos
político e nacional. Entendemos que isto explica o mantimento dos mé-
204
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
todos de interpretação tradicionais elaborados polo grupo para a abordagem do sistema quando este se encontrava numa situação de (maior)
dependência, a oposição destes grupos a atribuírem valor tanto às regras
identificadoras e hierarquizadoras como aos produtos propostos polos
grupos e agentes que pretendem a sua institucionalização de acordo com
o novo quadro de oportunidades, assim como que estes grupos nacionalistas não reconheçam a autoridade das novas instituições legitimadoras
(quer políticas quer culturais) e que criem as suas próprias instâncias de
legitimação (tal como acontece para o caso da codificação linguística,
em que o nacionalismo galego só reconhece a autoridade da RAG em
2003 [Samartim 2003]).
No caso galego, as mudanças na direção da progressiva institucionalização e autonomização dos campos político e literário trazem
consigo após a transição política (claramente afirmadas depois de 1982)
a consolidação definitiva da língua galega como norma sistémica e a
incorporação de novas regras e instituições legitimadoras que foram
discutidas ao longo da década de oitenta e parte de noventa pola crítica
nacionalista; este pólo da crítica, colocado em posicões de resistência
sistémica (Samartim 2009), discutiu nessa altura o que entendia era um
risco de assimilação do SLG polo SLE em virtude de que o repertório
do primeiro crescia com normas e modelos transferidos do seu histórico referente de oposição (Even-Zohar 2005: 50-67).26 A necessidade de
explicar estas mudanças e, sobretudo, a estrutura e o funcionamento do
SLG neste novo estádio justifica a adoção de novas ferramentas metodológicas por parte da crítica e da historiografia literária galega na última
década do século XX. A posição das teorias sistémicas de Even-Zohar e
26 “A progressiva institucionalização do sistema literário galego está ao serviço da normalização da produção literária, onde as diferentes tomadas de posição são, por outra parte, uma
boa prova de que os caminhos e as estratégias dos grupos não são coincidentes. Discute-se,
fundamentalmente durante o período compreendido entre 1975 e 1995, qual é a literatura que
se deve fazer, quais são os materiais que devem ser actualizados, qual a tradição que deve ser
considerada, quais os sistemas literários em que pegar para preencher aquelas lacunas que o
galego não pode cobrir, se é necessária ou não uma literatura de consumo, se há que escrever
romance melhor do que novela ou romance melhor do que poesia, se há que tematizar o
compromisso com o país nos textos literários ou unicamente este compromisso deve ficar
garantido através da qualidade estética, etc; todas estas perguntas formuladas a partir de 1975
pretendem ser resolvidas com o objectivo de conseguir a autonomia sistémica” (Rodríguez
Fernández 1999: 89).
A CONSTRUÇÃO DO CONHECIMENTO POLA HISTORIOGRAFIA LITERÁRIA DUM SISTEMA
DEFICITÁRIO (O CASO GALEGO PARA 1974-1978)
205
sociológicas de Bourdieu no campo científico internacional, a sua contrastada aplicabilidade para a análise de casos de literaturas periféricas
como a galega, assim como o trabalho de difusão no campo científico
da Galiza levado a cabo por agentes como González-Millán ou Figueroa
explicam, julgamos, a adoção destas teórias de base relacional por uma
parte da crítica galega nucleada na USC.
Da mesma maneira, no repasso polos diferentes discursos críticos presentes neste período histórico no campo da historiografia literária
galega notamos que as escassas tomadas de posição de caráter pretensamente textocêntrico e esteticista detetadas na nossa bibliografia podem
ser explicadas em virtude duma reação ao peso do discurso político-nacional no campo literário e da crítica; julgamos que isto, juntamente
com o caminho para posições mais centrais de propostas metodológicas
que consideram o texto como mais um elemento do Sistema Literário
(porém não necessariamente o mais importante), contribuiu para se produzir nesse pólo da historiografia literária um retorno à tradição crítica
de base estruturalista e textual.
Verificamos, contudo, uma aplicação irregular das ferramentas
metodológicas relacionais no campo da crítica galega, com maior sucesso em trabalhos monográficos sobre aspetos particulares do que em enciclopédias e manuais historiográficos gerais (ainda que Vilavedra 1999
e Tarrío 2001 e 2002 avançam nesse sentido); aqui, o peso do formato
“História da Literatura” e das focagens tradicionais contribui para que a
centralidade das análises não esteja colocada na explicação da evolução
diacrónica da configuração duma rede de relações, nem da função e da
posição relativa dos elementos interdependentes que a constituem num
determinado estádio do sistema, senão em grande medida na tradicional abordagem temático-estilística de obras e autores organizados em
géneros e gerações; além do mais, as análises e apontamentos sobre o
contexto político-económico-cultural do período em causa substituem
por regra geral as referências às relações internas e externas que contribuiriam para entender o funcionamento do sistema.
O conhecimento sobre o SLG assim construído (apresentado
aqui para o período 1974-1978) permite-nos concluir este trabalho afir-
206
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM
mando que, apesar das valiosas informações sobre elementos ou aspetos
concretos que atingem o funcionamento deste sistema deficitário num
período caraterizado pola mudança política, os materiais em foco têm
uma utilidade relativa para atingir este objetivo, já que este conhecimento não está nem elaborado nem arrumado de maneira relacional,
polo qual contém as lacunas já apontadas e referidas não apenas ao seu
caráter parcelar, parcial ou ideologizado, mas também relacionadas com
défices na deteção das normas que funcionam no sistema, métodos utilizados para a abordagem, organização e hierarquização do saber e, não
menos importante, ausências de análises dos programas e projetos dos
grupos que agem no SLG em relação com a estrutura institucional de
que se dotam ou em que atuam.
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AS AUTORAS E OS AUTORES
ANTONIO PAULINO DE SOUSA: Doutor em Sociologia pela Universidade
de Paris-VII e em Ciências Sociais pela FASSE, Faculdade de Ciências
Sociais do Intitut Catholique de Paris. Prof. do Departamento de Educação II da UFMA e do Mestrado em Educação/UFMA. Membro da
Association Française de Sociologie.
CARLOS PAZOS JUSTO: Redondela, 1975. É Licenciado em Filologia
Galega (1998) e em Filologia Portuguesa (1999) pela Universidade de
Santiago de Compostela. Como bolseiro do Instituto Camões é pósgraduado com o Diploma Universitário de Formação de Professores
de Português Língua Estrangeira (2001) pela Universidade do Porto.
É Mestre em Teoria da Literatura e Literatura Portuguesa pela Universidade do Minho (2009) e Máster de Experto em Cultura Espanhola
Contemporânea (2009) pela Universidad de Alcalá. Foi Leitor do Centro de Estudos Galegos (2003/2008) e na atualidade é Leitor da Área de
Estudos Espanhóis e Hispano-Americanos do Departamento de Estudos
Românicos da Universidade do Minho. Prémio Carvalho Calero de Investigação em 2009 com Trajectória de Alfredo Guisado e a sua relação
com a Galiza (1910-1921).
ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA: Doutora em Letras pela PUC-Rio
e Universidade de Lisboa, professora do Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal de Pernambuco, autora, entre outros,
de A mensagem e a imagem: literatura e pintura no primeiro modernismo português (Recife: Edufpe, 2005).
GREGÓRIO FOGANHOLI DANTAS: Doutorado em Teoria e História Literária na área de Literatura Portuguesa pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas, SP), é atualmente Professor Adjunto, nível I, de
Literatura Portuguesa e Literaturas de Expressão em Língua Portuguesa
na UFGD (Universidade Federal da Grande Dourados), Dourados, Mato
Grosso do Sul, Brasil.
212
PEDRO FERNANDES DE OLIVEIRA NETO: É mestre em Letras pelo Programa
de Pós-graduação em Letras (PPgL) da Universidade do Estado do Rio
Grande do Norte. Autor de Palavras de pedra e cal (poesia), Sertanices
(poesia), O ser em O conto da ilha desconhecida diante do ser sartriano
(ensaio) e Retratos para a construção da identidade feminina na prosa
de José Saramago (ensaio), a exceção do primeiro, todos inéditos. É
integrante do Grupo de Estudos Críticos da Literatura (GECLIT), onde
atua na linha de pesquisa Poéticas do Literário e do Grupo de Estudos
Linguísticos e Literários (GEPELL), onde atua na linha de pesquisa Literatura e Sociedade. Atualmente é professor substituto na Universidade
do Estado do Rio Grande do Norte.
REGINA ZILBERMAN: Nascida em Porto Alegre, licenciou-se em Letras
pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e doutorou-se em Romanística pela Universidade de Heidelberg, na Alemanha. Foi professora titular da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul,
onde lecionou Teoria da Literatura e Literatura Brasileira, coordenou o
Programa de Pós-Graduação em Letras, entre 1985 e 2004 e dirigiu a
Faculdade de Letras, entre 2002 e 2004. Entre 1987 e 1991, e entre 2005
e 2006, dirigiu o Instituto Estadual do Livro, da Secretaria de Cultura,
do Governo do Estado do Rio Grande do Sul. Foi Honorary Research
Fellow no Spanish & Latin American Department, da Universidade de
Londres, no ano escolar de 1980-1981. Realizou o pós-doutoramento no
Center for Portuguese & Brazilian Studies, da Brown University, USA.
É pesquisadora 1A do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Foi assessora-científica e coordenadora da
área de Letras e Artes da da FAPERGS, entre 1988 e 1993. Coordenou
a área de Letras e Lingüística entre 1991-2 e 1993-95, da Fundação CAPES, fazendo parte de seu Conselho Técnico-Científico. Pertenceu ao
Conselho Estadual de Ciência e Tecnologia, do Estado do Rio Grande
do Sul, entre 1995 e 1999. Participou, entre 1999 e 2001, e entre 2004 e
2007, do Comitê Assessor para a área de Letras e Lingüística, do CNPq.
Recebeu, em 2000, na Universidade Federal de Santa Maria, o título de
Doutor Honoris Causa. Presidiu a Associação Internacional de Lusita-
213
nistas, com sede em Coimbra, Portugal, entre 2002 e 2008. Atualmente, é professora do Instituto de Letras, da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, e membro do corpo docente permanente do Programa de
Pós-Graduação em Letras.
São publicações suas: A invenção, o mito e a mentira (1973),
São Bernardo e os processos da comunicação (1975); Do mito ao romance: tipologia da ficção brasileira contemporânea (1977); A literatura
no Rio Grande do Sul (1980); A literatura infantil na escola (1981);
Literatura infantil: autoritarismo e emancipação (1982); Literatura infantil brasileira: história & histórias (1984); Literatura gaúcha: temas
e figuras da ficção e poesia do Rio Grande do Sul (1985); Um Brasil
para crianças (1986); Alvaro Moreyra (1986); Leitura: perspectivas interdisciplinares (1988); Estética da Recepção e História da Literatura
(1989); Literatura e pedagogia: ponto & contraponto (1990); A leitura
rarefeita (1991); Roteiro de uma literatura singular (1992); A terra em
que nasceste: Imagens do Brasil na literatura (1994); A formação da
leitura no Brasil (1996); O berço do cânone (1998); Pequeno dicionário
da literatura do Rio Grande do Sul (1999); Fim do livro, fim dos leitores? (2001); O preço da leitura (2001); O tempo e o vento: história, invenção e metamorfose (2004); O viajante transcultural: leituras da obra
de Moacyr Scliar (2004); As pedras e o arco: fontes primárias, teoria e
história da literatura (2004); Retratos do Brasil (2004); Como e por que
ler a literatura infantil brasileira (2005); Crítica do tempo presente:
estudo, difusão e ensino de literaturas de língua portuguesa (2005); Centenário de Mario Quintana (2007); Corpo de baile; romance, viagem
e erotismo no sertão (2007); Clarice Lispector: novos aportes críticos
(2007); Teoria da Literatura I (2008); Machado de Assis & Guimarães
Rosa: da criação artística à interpretação literária (2008); Escola e leitura: velha crise, novas alternativas (2009); Das tábuas da lei à tela do
computador: a leitura em seus discursos (2009); A leitura e o ensino da
literatura (2010); Brás Cubas autor, Machado de Assis leitor (2012).
214
ROBERTO LÓPEZ-IGLÉSIAS SAMARTIM: Licenciado em Filologia Galega
com prémio extraordinário (1998), Filologia Portuguesa (1998), DEA
[Mestrado] em Estudos Clássicos e Medievais (2000) e Doutor em Filologia Galega (2010) pela Universidade de Santiago de Compostela
(USC). Bolseiro de investigação do Instituto Camões (1999-2001) e
da USC (2003-2005), foi professor visitante na Universidade de Vigo
(2003) e, desde 2006, é professor no Departamento de Galego-Português, Francês e Linguística da Universidade da Corunha. No ano 2002
ganhou o Prémio Carvalho Calero de Investigação com A Dona do
Tempo Antigo. Mulher e campo literário no Renascimento Português
(1495-1557) (2003), resultante da pesquisa no projeto de investigação
«Entre diletantismo e profissionalidade: Escritoras na Europa do sul, da
Idade Média à Modernidade». Atualmente integra o projeto «Fabricação
e Socialização de Ideias num Sistema Emergente durante um Período de
Mudança Política (Galiza 1968-1982)» e publicou resultados em forma
de capítulos de livros, artigos em revistas e comunicações em congressos internacionais, enquadrando-se aqui também a tese de doutoramento
intitulada O Processo de Construçom do Sistema Literário Galego entre
o Franquismo e a Transiçom (1974-1978): Margens, relaçons, estrutura
e estratégias de planificaçom cultural (USC, 2010). Desde novembro
de 2010 dirige a Agália. Revista de Estudos na Cultura e desde julho
de 2011 é Secretário Geral da Associação Internacional de Lusitanistas.