estudos de direito de propriedade e meio ambiente
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estudos de direito de propriedade e meio ambiente
Coordenadores Marcos Wachowicz João Luis Nogueira Matias ESTUDOS DE DIREITO DE PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE Fundação Boiteux Florianópolis 2009 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira. Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009. 1 CD-ROM Inclui bibliografia ISBN: 978-85-7840-022-4 1. Propriedade. 2. Meio Ambiente. 3. Propriedade Intelectual. 4. Desenvolvimento. 5. Políticas públicas. Editora Fundação Boiteux Conselho Editorial Prof. Aires José Rover Prof. Arno Dal Ri Júnior Prof. Carlos Araújo Leonetti Prof. Orides Mezzaroba Secretária executiva Thálita Cardoso de Moura Capa, projeto gráfico Reciclagem digital e Arte Visual Diagramação e revisão Thais dos Santos Casagrande Endereço UFSC – CCJ - 2º andar – Sala 216 Campus Universitário – Trindade Caixa Postal: 6510 – CEP: 88036-970 Florianópolis – SC Tel./Fax: 3233-0390 (ramal 209) E-mail: [email protected] Site: www.funjab.ufsc.br 2 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente SUMÁRIO PREFÁCIO PARTE I – PROPRIEDADE O SISTEMA DE PROPRIEDADE INDÍGENA PRÉ-COLONIAL.......................................................................14 Thais Luzia Colaço A PROPRIEDADE NO BRASIL COLÔNIA, IMPÉRIO E NO CÓDIGO CIVIL DE 1916................................26 Francisco Amaral A PROPRIEDADE PÓS-MODERNA: conceito e classificação............................................................................43 José Isaac Pilati MACROECONOMIA E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: propriedade pública e interesses privados...................................................................................................................................................................70 Luiz Henrique Urquhart Cademartori O FUNDAMENTO ECONÔMICO E AS NOVAS FORMAS DE PROPRIEDADE......................................................................................................................................................95 João Luis Nogueira Matias PROPRIEDADE INTELECTUAL E SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: uma análise de sua natureza jurídica e co-dependência......................................................................................................................................................126 Marcos Wachowicz Afonso de Paula Pinheiro Rocha EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL ATRAVÉS DE MEDIDAS DE FRONTEIRA: regulação no acordo TRIPS e na negociação do Acordo Comercial Anti-Contrafação (ACTA).................................................................................................................................................................147 Heloísa Gomes Medeiros PROPRIEDADE E DESENVOLVIMENTO: análise pragmática da função social............................................167 Luciano Benetti Timm Renato Vieira Caovilla 3 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente PARTE II – PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL: um novo paradigma para o século XXI...............................................194 José Rubens Morato Leite Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE NO DIREITO.......................................................................................214 Rogério Portanova PROPRIEDADE, TRIBUTOS E MEIO AMBIENTE..........................................................................................228 Ubaldo César Balthazar ALGUNS COMENTÁRIOS COMPARATIVOS A RESPEITO DA RELAÇÃO ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E PROTEÇÃO AMBIENTAL NOS SISTEMAS JURÍDICOS DO BRASIL E DA ALEMANHA........................................................................................................................................................243 Andreas J. Krell DA CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA EM ÁREAS DE PROTEÇÃO: ESTUDO SOBRE A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA URBANA.................................259 Juliana Cristine Diniz Campos PROPRIEDADE INTELECTUAL E AMBIENTALISMO CULTURAL.....................……..........................…273 Afonso de Paula Pinheiro Rocha TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL E PROPRIEDADE: possibilidade de uma política fiscal adequada ao programa “Minha casa, minha vida”.....................................................................................................................................303 Denise Lucena Cavalcante João Victor Porto Sales A FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL................................................................................................................................327 Germana Parente Neiva Belchior 4 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente PREFÁCIO O Estudo do Direito de Propriedade e do Meio Ambiente na sociedade contemporânea ganha relevo e novas dimensões teóricas. Percebe-se um grande movimento acadêmico, um crescente interesse sócio-político e econômico, que tem despertado nos estudiosos do direito questões que delineiam novos contornos da disciplina em suas mais variadas matizes doutrinárias. Neste sentido é que a presente obra aglutina inúmeros seminários, congressos e eventos realizados no Brasil e no exterior pelos professores e pesquisadores do Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e da Universidade Federal do Ceará – UFC. Esta obra coletiva uma visão ampla sobre as questões dos novos paradigmas para um velho direito: Propriedade e Meio Ambiente. 1. Novos paradigmas para um velho direito: Propriedade e Meio Ambiente A consolidação contemporânea da idéia de supremacia das normas constitucionais impõe a releitura dos direitos fundamentais em perspectiva que prestigie os valores democraticamente eleitos pelo legislador. O contexto do neoconstitucionalismo demanda construção teórica que faça a devida adaptação dos institutos jurídicos aos padrões firmados pela Constituição, fixando novos paradigmas de interpretação para as normas infraconstitucionais. O foco do presente projeto gira em torno do instituto de propriedade, abordando desde a parte teórica, histórica e filosófica em busca da sua compreensão, até a construção em forma de direito. A doutrina brasileira possui um paradigma de forte tradição romano-germânica na sua concepção de propriedade. Entretanto, nada mais justifica que a mesma seja vista com ares de um direito natural e sagrado, bem como inerente ao espírito humano. 5 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Por sua vez, dentro de um paradigma anglo-saxão, o estudo da propriedade adquire um caráter de cunho mais técnico e a mesma passa a ser estudada sobre a ótica de um fenômeno econômico. Surge, então, o interesse para o avanço da ciência jurídica em realizar uma análise comparativa entre os dois modelos, oportunizando o estudo de como essa mudança de paradigma pode ser operacionalizada para melhor compreender e implementar os objetivos e valores destacados na Constituição Federal de 1888. Assim, ante as novas demandas do Direito e do Estado, o direito de propriedade deve ser remodelado para respeitar a função social e ambiental, o que demonstra a importância e a atualidade da pesquisa, conforme será analisado no decorrer deste projeto. 2. O direito de propriedade no paradigma liberal O advento do Estado liberal marca a ruptura com a velha ordem, caracterizada pela prevalência do mito e do dogma, no plano filosófico, pela inexistência da liberdade de trabalho, no plano econômico, e pelo poder ilimitado do soberano, no plano político. Tal realidade explica, embora não justifique, os excessos que lhe foram peculiares. O ideário liberal é expressão não apenas de um novo cenário político e social, mas de uma transformação da própria maneira das pessoas encararem a vida, o que refletia sobre a ordem jurídica e, necessariamente, sobre o direito de propriedade. No Estado liberal, por volta do século XVIII, vigorava o constitucionalismo clássico, onde a Constituição era reduzida a um instrumento jurídico que tinha como finalidade básica limitar ou enfrear o exercício do poder estatal. O poder estava adstrito às normas que almejavam a liberdade, protegendo, assim, o indivíduo. E para se ter liberdade, era preciso segurança na ordem jurídica. A liberdade individual, e, conseqüentemente, a segurança jurídica eram os primados básicos do Estado liberal. Surgem, assim, os direitos civis e políticos, denominados de direitos fundamentais de primeira geração. Referidos direitos se caracterizam pela necessidade de não-intervenção do Estado no patrimônio jurídico dos membros da comunidade. Esta categoria é fundada no Estado liberal absenteísta, onde se deu a manifestação do status libertatis ou status negativus. Realçam, portanto, o princípio da liberdade. 6 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Em tal contexto, a propriedade foi concebida como absoluta, plena realização da liberdade dos indivíduos, direito divino, assegurando ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor da coisa. O antigo Código Civil Brasileiro, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, era expressão desse ideário. O Estado devia, assim, assegurar os meios jurídicos necessários para o proprietário garantir a manutenção de sua propriedade, bem como seu caráter de perpetuidade. O uso da propriedade era realizado de forma irresponsável, independente dos custos ambientais que tal atividade pudesse proporcionar, em busca do desenvolvimento econômico. 3. O Estado social e o direito de propriedade A industrialização e o progresso técnico trazem consigo fenômenos que, ao romper com a harmonia da sociedade liberal, alteram profundamente as concepções da sociedade e do Estado, bem como o próprio sistema de direitos fundamentais. Nesse sentido, a concepção individualista do direito de propriedade, típica do Estado liberal, tornou-se um forte obstáculo à proteção e à preservação do meio ambiente. Com a degradação ambiental, a qualidade de vida também foi prejudicada. A meta do intervencionismo é transformar o ultrapassado Estado liberalista em Estado social, objetivando solidariedade e justiça social. A partir deste momento, com a origem do Estado social, visualizam-se os direitos fundamentais de segunda geração. Os direitos de segunda geração são os direitos econômicos, culturais e sociais, só que os últimos requerem prestações positivas (status positivus) por parte do Estado para suprir as carências da sociedade. A propriedade, direito fundamental típico de primeira geração, precisa cumprir sua função social, de acordo com a legislação civil de 1916. Verifica-se que referido direito se transforma, se modifica, se reestrutura para atender às novas exigências do Estado Social, em consonância com os direitos fundamentais de segunda geração. Contudo, o formalismo típico do Estado Social não era suficiente para a concretização efetiva dos direitos previstos em tese. Como avanço em relação ao Estado Social, no Estado Democrático de Direito a ordem jurídica é vocacionada à realização dos valores previstos na Constituição, atuando de forma incisiva para a concretização dos direitos fundamentais. 7 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente No que se refere à propriedade, a Constituição Federal de 1988, ao garantir, em seu art 5º, incisos XXII e XXIII; e art. 170, incisos II e III, o direito de propriedade vinculado à função social, acarreta uma transformação no seu conteúdo. A função social da propriedade, portanto, pretende não apenas impor obrigações negativas ao proprietário, mas também um poder-dever de dar a sua propriedade um destino em prol da coletividade. No entanto, ainda perdura no Estado contemporâneo o essencial da concepção liberal, traduzindo na afirmação de que o homem, pelo simples fato de o ser, tem direitos e que o Poder Público deve respeitá-los. Assegurar o respeito da dignidade humana continua sendo o fim da sociedade política. Dignidade esta, no entanto, que não é vista apenas no âmbito do indivíduo isolado, mas sim de uma forma coletiva, em virtude da solidariedade. 4. O direito de propriedade no Estado Democrático de Direito: o avanço para o Estado de Direito Ambiental Continuando com a evolução histórica, surgem direitos de titularidade coletiva, intitulados pela doutrina de direitos fundamentais de terceira geração. Consagram o princípio da solidariedade, englobando, também, o meio ambiente ecologicamente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, progresso, autodeterminação dos povos e outros direitos difusos. O direito ao meio ambiente alcançou patamar de direito fundamental da pessoa humana, conforme previsto no art. 225, caput, da Lei Maior. Analisando o art. 5º, CF/88, percebe-se que o direito ao meio ambiente não foi por ele albergado, estando, assim, fora do seu catálogo. No entanto, a doutrina já é uníssona ao defender que o rol dos direitos e garantias do art. 5º não é taxativo, na medida em que § 2º, do art. 5º, traz uma abertura de todo o ordenamento jurídico nacional ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos e aos direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. A questão ambiental ainda goza de relevo especial na missão de tutelar e de desenvolver o princípio da dignidade humana ou como desdobramento imediato da coresponsabilidade geracional. 8 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente A Constituição brasileira de 1988, ao completar vinte anos, é testemunha de transformações que tornam a questão ambiental na pauta do dia. O meio ambiente ecologicamente equilibrado assume tamanha importância que acaba se mostrando como um direito “horizontal” na medida em que interfere sobre os demais ramos do direito: privado, público e internacional, caracterizando-se, ainda, como um direito de “integração”, que penetra em todos os ramos da ciência jurídica para neles introduzir a idéia ambiental. Nesse sentido, a cada dia aumenta o número de adeptos de um novo modelo de Estado, defendido, inicialmente, por Canotilho, intitulado de Estado Constitucional Ecológico. Trata-se da ecologização do direito ao impor uma nova postura do Estado, na busca da efetivação dos direitos fundamentais de terceira geração. Depois de mais de vinte anos em debate, o Projeto do novo Código Civil foi aprovado no dia 15 de agosto de 2001. No que concerne ao direito de propriedade, a nova lei traz, de forma inédita, a função ambiental vinculada ao exercício deste direito em geral. O novo Código Civil é o primeiro instrumento normativo brasileiro que trata da função ambiental da propriedade, conforme seu art. 1.228, § 1º. Note-se, pois, que além de inserir a função social da propriedade, já prescrita no Código Civil de 1916, a atual lei civil prevê a função ambiental, na medida em que trata dos seus elementos, como a proteção à flora, à fauna, à preservação das belezas naturais, à manutenção do equilíbrio ecológico e a preservação patrimônio histórico e artístico, assim como o uso da propriedade em consonância com as determinações da legislação ambiental. Pela leitura do referido dispositivo, constata-se que o ambiente sadio não está dentro da função social da propriedade. O legislador foi mais longe, ao impor uma função ambiental autônoma, nova, gerando outras obrigações ao proprietário de qualquer bem, além daquelas já previstas com a função social. Isto é de suma importância na medida em que o direito de propriedade vem se transformando para acompanhar a globalização e o desenvolvimento tecnológico. O novo dispositivo trata de uma norma geral do direito de propriedade, não se limitando à urbana e à rural, como fazem as leis já citadas. Assim, a propriedade intelectual, virtual, empresária, etc., todas as formas de propriedade estão submetidas à função ambiental, em perfeita consonância com o direito fundamental ao equilibro ecológico e com o Estado de Direito Ambiental. 9 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Outro ponto interessante é que o Código Civil traz uma cláusula aberta em prol do meio ambiente, ao assegurar que a função ambiental deve ser assegurada também de acordo com a legislação especial e não apenas com os componentes trazidos na redação literal do diploma normativo. O princípio da função sócio-ambiental da propriedade tem uma dupla dimensão. Ao impor que o proprietário não pode prejudicar terceiros e qualidade ambiental, visualiza-se o aspecto negativo. Com o viés positivo, a função social e ambiental garante que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente equilibrado. Resta inconteste que a função social e ambiental da propriedade não constitui um mero limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. A nova perspectiva da função social e ambiental deve ser rediscutida para atender ao novel paradigma do Estado de Direito Ambiental, ao permitir, portanto, que o proprietário tenha obrigações positivas, no exercício do seu direito, para que a sua propriedade esteja em consonância com o modelo do desenvolvimento sustentável. Não dá dúvidas de que o Estado de Direito Ambiental se torna fortalecido com a nova disposição normativa infraconstitucional, o que implica no reconhecimento do status material do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Embora o texto constitucional permaneça o mesmo, remetendo apenas à função social da propriedade, tendo o meio ambiente como um dos seus elementos, é necessária uma leitura sistemática de toda a Constituição e da ordem jurídica em geral, tendo como pré-compreensão do intérprete o valor da sustentabilidade ambiental. 5. A propriedade intelectual e o meio ambiente Na análise da nova feição do direito de propriedade, o meio ambiente, em suas diversificadas perspectivas, assume destacada importância. A compreensão do alcance do conceito de meio ambiente e as implicações que decorrem de sua proteção, condicionam o exercício do direito de propriedade, sendo correto falar-se em função ambiental da propriedade. 10 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Neste contexto, serão apresentados os paralelos existentes entre o Direito da Propriedade Intelectual e o Direito Ambiental, de maneira a propor a existência de um meio ambiente intelectual ou cultural. Impõe-se, também, a análise de como os instrumentos do direito ambiental podem ser utilizados para aprimorar a tutela jurídica da propriedade intelectual. Podem ser propostos paralelos entre as duas searas jurídicas, principalmente de caráter epistemológicos, o que pode levar à sugestão de formas de aplicação de alguns princípios do direito ambiental para o campo da propriedade intelectual. A temática da pesquisa aglutinada neste livro se demonstra relevante por tratar da necessidade imperativa de conciliar o desenvolvimento econômico com o equilíbrio ecológico, na invasão do público na esfera privada, em prol da ecologização do direito de propriedade, inclusive referente ao meio ambiente intelectual. 6. A estrutura e sistematização da pesquisa A pesquisa agora publicada na presente obra coletiva aglutina temas de ampla discussão no país e no exterior na área do Direito da Propriedade e Meio Ambiente. Nos diferentes artigos aqui coletados e para uma melhor sistematização, optou-se por uma estrutura em duas partes: A primeira parte contempla essencialmente estudos sobre o Direito de Propriedade, abordando temas como a história dos sistemas de propriedade, conceitos, classificações e novas formas de propriedade, em especial a propriedade intelectual. A segunda parte contempla estudos sobre o Direito de Propriedade e Meio Ambiente, isto é, analisa não somente aspectos da propriedade pura, mas sua interação com questões ambientais, abordando temas como Estado de Direito Ambiental, questão tributária, função sócio-ambiental da propriedade, propriedade intelectual e ambientalismo cultural. Os trabalhos aqui desenvolvidos também foram apresentados nos seminários e congressos realizados como fruto das pesquisas do PROJETO CASADINHO do CNPq que possibilitou a união dos esforços de professores e de pesquisadores do Programa de Pós11 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC. Os artigos agora publicados cumprem com excelência o aprofundamento das pesquisas devotadas aos Direito da Propriedade e Meio Ambiente, bem como provocam debates sobre seus fundamentos constitutivos e matizes ideológicas que por certo influenciarão a evolução do pensamento jurídico. A todos que contribuíram para a realização desta obra nosso muito obrigado. O resultado agora o leitor tem diante de si. Marcos Wachowicz Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC João Luis Nogueira Matias Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em Direito na Universidade Federal do Ceará – UFC 12 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente PARTE I PROPRIEDADE 13 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I O SISTEMA DE PROPRIEDADE INDÍGENA PRÉ-COLONIAL Thais Luzia Colaço1 SUMÁRIO 1. Introdução. 2. A discussão da existência de direito nas sociedades ágrafas e sem Estado. 3. Bens dos mortos. 4. Propriedade coletiva. 5. Propriedade individual. 6. Sistema de produção. 7. Considerações Finais. 8. Referências Bibliográficas. 1. Introdução Este trabalho visa relatar o sistema de propriedade indígena, dos Guarani précoloniais. Antes da chegada dos europeus à América, as populações indígenas tinham cultura e história próprias, seguindo seu ritmo normal de desenvolvimento. Partindo-se de uma visão etnocêntrica, desde a época do descobrimento, existe consenso de que os indígenas se achavam desprovidos “de fé, de lei e de rei”. Por essa concepção, não se admitiam qualquer manifestação religiosa, regras de convívio social e liderança entre os índios americanos. A crença na superioridade e na onipotência do modelo da sociedade cristã-ocidental não permitia aos europeus perceber outra verdade além da sua. Mas populações indígenas possuíam as suas regras de convívio social, o seu direito consuetudinário, que lhes foi negado por falta de compreensão e respeito e também pelos interesses da dominação colonial. Ao se depararem com outra realidade sócio-jurídica na América, os espanhóis chocaram-se e não entenderam as diferenças entre o direito espanhol de tradição romanista e o direito consuetudinário das sociedades indígenas, fundamentado, 1 Doutora em Direito. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direitos da UFSC. Coordenadora do Grupo de Pesquisa de Antropologia Jurídica – GPAJU. Pesquisadora do CNPq. E-mail: [email protected]. 14 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I basicamente, na responsabilidade coletiva, no sistema da reciprocidade e da solidariedade, priorizando os interesses coletivos sobre os individuais. Isto vai aparecer como algo antagônico, totalmente diverso da sociedade burguesa individualista ocidental. 2. A discussão da existência de direito nas sociedades ágrafas e sem Estado A existência ou não de direito entre os povos ágrafos foi uma discussão que se estendeu a este século. O direito era sempre associado à figura do Estado e da sua codificação escrita. Era muito difícil, à maioria dos juristas, conceber outras formas de direito, que não aquela já consagrada pelo modelo ocidental. Essa idéia da ausência de um sistema jurídico nas sociedades indígenas perdurou até recentemente, porque o direito indígena não estava de acordo com os padrões do direito europeu, por não possuir "instituições tais como são definidas nos sistemas romanistas ou do common law, por exemplo: a noção de justiça, de regra de direito (rule of law), de lei imperativa de responsabilidade individual".2 Chase-Sardi chama de "etnocentrismo jurídico" a posição de vários autores, tanto de esquerda quanto de direita, como Marx, Engels, Kelsen e Radcliffe-Brown, que vinculam o direito ao Estado, não aceitando a existência de direito nas sociedades sem escrita por não haver organização estatal. Afirma, ainda, que é necessário atualizar-se com as modernas investigações antropológicas, que chegaram à conclusão de que não há sociedade humana sem cultura, muito menos sem direito, ainda que não possua o chamado "Estado". O direito tem por base a cultura, constituída fundamentalmente pelos costumes herdados socialmente.3 O conceito de lei existia na língua Guarani, representado pela palavra TEKO, que significa "ser, estado de vida, condição, estar, costume, lei, hábito".4 As idéias de "lei natural", "conformidade com os maiores", ou " conformidade com o direito costumeiro" eram representadas pelas palavras TEKO REKO, TEKO RAPE e TEKO 2 GILISSEN, op. cit., p. 36. CHASE-SARDI, Miguel. El derecho consuetudinario indígena y su bibliografía antropológica en el Paraguay. Asunción: Universidad Católica, 1990. p. 49, 17-18. 4 MELIÁ, Bartomeu S. J. El "modo de ser" Guaraní en la primera documentación jesuítica. 15941639. Revista de Antropología. São Paulo: v. 24, 1981. p. 7. 3 15 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I MÉÊ. Também possuíam a noção de "conduta boa", pela palavra TEKÓ PORÃ, e "conduta má" pela palavra TEKÓ VAÍ.5 Quanto ao direito civil, a concepção tradicional da Antropologia Jurídica não admitia qualquer possibilidade de sua existência nas sociedades sem escrita. Porém, Gilissen constatou que antes do aparecimento da escrita os povos já haviam "percorrido uma longa evolução jurídica", possuindo grande parte das instituições civis hoje conhecidas: "o casamento, o poder paterno e ou materno sobre os filhos, a propriedade (pelo menos mobiliária), a sucessão, a doação, diversos contratos tais como o empréstimo."6 Malinowski afirma que as regras do direito civil são respeitadas não pela arbitrariedade do temor a uma represália, mas, sim, por um "acordo da reciprocidade" em que todos serão beneficiados.7 3. Bens dos mortos Existiam vários costumes nas sociedades indígenas com relação ao destino dos bens deixados pelos mortos. Segundo Gilissen, falecido o chefe, normalmente os seus pertences eram enterrados com ele ou incinerados. Mas os bens que podiam ser úteis à comunidade para suprir suas necessidades eram preservados, "fazendo assim aparecer as primeiras formas de sucessão de bens." 8 Cláudio de Cicco afirma que os bens deixados pelo pai de família eram repartidos entre os seus parentes, mas, a cabana seria do filho que casasse primeiro.9 Com relação aos índios Guaná, os bens do falecido são repartidos igualmente entre parentes e amigos, sem privilegiar os filhos.10 Entre os Mbyá-Guarani do Guairá, só era permitido tocar nos objetos dos mortos após feita a sua conferência pelo chefe. Posteriormente, os bens eram colocados sobre a sepultura e abandonados.11 5 PERALTA, Anselmo & OSUMA, Tomas. Diccionario guarani-espanhol. Buenos Aires: Tupã, 1950. p. 142. 6 GILISSEN, op. cit., p. 31. MALINOWSKI, p. 61. 8 GILISSEN, op. cit., p. 44. 9 DE CICCO, op. cit. p. 6. 10 CHASE-SARDI, op. cit., p. 86. 7 16 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Tratando-se do Guarani paraguaio contemporâneo, os únicos herdeiros do morto são seu cônjuge e seus filhos. Objetos de uso pessoal como roupas, adornos, a rede e documentos são enterrados junto com ele. Os Guarani da região oriental do Paraguai não conhecem o direito de herança, pois os pertences do defunto são enterrados com ele após serem tocados pelos seus parentes. 12 Os Ava-Katu-Ete cultivavam a instituição do hermanazzo adoptivo, na qual é estabelecido estreito vínculo entre os irmãos adotivos. Em caso de morte de um deles, desde que não tenha constituído família, todos os bens passam a pertencer ao irmão adotivo, e não ao irmão consangüíneo.13 4. Propriedade coletiva As sociedades indígenas também possuíam um tipo de propriedade, tanto coletiva quanto individual. A propriedade coletiva é a mais abrangente e se inicia com a própria ocupação do território. A terra, o ar e a água são bens considerados sagrados, aos quais o homem tem acesso para uso comum.14 Gilissen reforça esta idéia: “O solo é sagrado, divinizado; ele é a sede de forças sobrenaturais. Um laço místico, por vezes materializado por um altar, existe entre os homens e os espíritos da terra, e também com os mortos, os antepassados enterrados neste solo.”15 De acordo com as atividades econômicas desenvolvidas pelos povos indígenas (a caça, a pesca, o extrativismo e a agricultura), o grupo necessita de grandes extensões de terra, e seus limites territoriais devem ser rigorosamente respeitados por outras tribos. O território é considerado propriedade da comunidade como um todo e jamais poderá vir a ser alienado.16 O chefe divide a terra em parcelas que são distribuídas às famílias apenas por um curto lapso de tempo. "Não existe apropriação por prescrição aquisitiva; qualquer 11 12 13 14 15 16 Id., Ibid., p. 101. Id., Ibid., p. 144, 148. Id., Ibid., p. 93. Id., Ibid., p. 143. GILISSEN, op. cit., p. 45. DE CICCO, op. cit., p. 5. 17 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I que seja a duração da detenção de uma parcela, ela deve sempre retornar à comunidade."17 Enfim, a comunidade é a proprietária da terra, e as famílias detêm a posse. 18 Quando excessivos, os bens decorrentes da produção familiar eram destinados ao grupo, mas quando insuficientes para a distribuição coletiva, eram consumidos apenas pelos membros da família. Em momentos de crise e de escassez, a família carente era suprida por outras famílias.19 Dessa forma, a redistribuição "generosa", fundamentada no princípio da reciprocidade, determinava a produção de bens, tornando-se garantia familiar contra a escassez e também sinônimo de prestígio social. 20 Sendo assim, os indivíduos que não se enquadrassem no sistema da reciprocidade eram socialmente rechaçados: Uma das ações mais fortemente condenadas como anti-sociais é a avareza; uma pessoa que tem, por exemplo, mais facas do que necessita e se recusa a distribuir o excedente, é malvista e desprestigiada; um líder de aldeia que, sistematicamente, se recusa a ser generoso, isto é, a dar do que é seu quando lhe é pedido, acaba por perder sua credibilidade como líder e, eventualmente, a liderança.21 O espaço habitacional também era distribuído conforme os laços de consangüinidade e afinidades entre os seus ocupantes.22Todos os integrantes eram donos da habitação em geral, mas internamente existia a delimitação de espaço individual de cada um.23 5. Propriedade individual Quanto à questão da propriedade individual, as fontes confirmam a sua existência. Basta averiguar no direito das sucessões que, quando alguém falece, normalmente são enterrados com o morto os seus objetos de uso pessoal. Michaele afirma que a propriedade individual dos índios limita-se às armas, a alguns ornamentos e à rede. 17 18 19 20 21 22 23 GILISSEN, op. cit., p. 45. CHASE-SARDI, op. cit., p. 144. RAMOS, op. cit., p. 42. CHASE-SARDI, op. cit., p. 169. RAMOS, op. cit., p. 39. Id., Ibid., p. 37. DE CICCO, op. cit., p. 6. 18 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I O restante, como a habitação, os utensílios domésticos e de trabalho, assim como os alimentos são bens de família, pertencentes ao clã.24 Referindo-se à falta de ambição dos indígenas de acumular riquezas em metais preciosos, Hans Staden atesta: "Seu tesouro são penas de pássaros. Quem as tem em grande quantidade é rico, e quem tem cristais para os lábios e faces, é dos mais ricos." 25 Susnik argumenta que os bens tangíveis são produtos manufaturados, pertencendo de direito a quem os produziu, mas que se trata de uma propriedade limitada porque está sujeita, freqüentemente, às regras de livre prestação e do uso coletivo. São eles: os adornos plumários, principalmente se associados a alguma experiência visionária; as canoas produzidas cooperativamente; as canoas pesqueiras que são de propriedade da família; as canoas guerreiras que pertecem aos guerreiros. Não existindo, portanto, bens móveis excedentes, predomina o utilitarismo imediato. 26 No entanto, segundo a mesma autora, os bens intangíveis ou imateriais são exclusivos de seus possuidores: os cantos revelados pelos sonhos e as fórmulas mágicas são de propriedade individual, mas podem ser transferidos em vida pelo seu proprietário; os clãs são donos de seus cantos particulares transmitidos pelos seus ancestrais; as tradições mitológicas ensinadas durante os ritos de iniciação pertencem a tribo em geral; as associações responsáveis pelos cultos podem ter direito de posse sobre as sepulturas ; as lendas referentes a membros de uma família lhes pertencem; os xamãs são donos dos seus conhecimentos mágicos; os instrumentos musicais considerados sagrados e as máscaras rituais são propriedades individuais de seus portadores.27 Cabe lembrar que, apesar da existência da propriedade individual dos bens tangíveis, na maioria das vezes eles não eram objetos raros. Pela abundância de matériaprima e simplicidade de produção, eram de fácil acesso a todos. Além do que, a simples manifestação do desejo de obter a coisa era suficiente para que a recebesse como doação, firmando um compromisso de retribuí-la em outra oportunidade. 28 24 25 MICHAELE, op. cit., p. 10. STADEN, op. cit., p. 172. 26 SUSNIK, Introduccíon a la antropología social. (Ambito americano), p. 89. 27 Id., Ibid., p. 90. 28 MARTINS, op. cit., p. 279. 19 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Moisés Bertoni ratifica a situação da rotatividade da posse dos bens, demonstrando que não se reconhece a propriedade, mas se respeita a posse pessoal dos objetos num determinado momento, pois a pessoa que detém a coisa não se chama “seu proprietário”, nem “seu dono”, ou sequer “seu possuidor”, só se chama “sua pessoa”, ou seja, a pessoa que, naquele momento, detém a coisa.29 6. Sistema de produção A divisão do trabalho nas sociedades indígenas era feita, basicamente, pelo sexo e pela idade; cada qual tinha uma parcela de colaboração, sabendo, antecipadamente, dos benefícios que reverteriam para si e para o grupo.30 Toda produção tinha uma motivação fundamental que era "a possibilidade da redistribuição,que envolve um direito e um dever". 31 Também é importante frisar que muitos autores, como Martins, consideram incorreta a qualificação do trabalho e da economia Guarani como "mera economia de subsistência", pois, apesar do pouco tempo dedicado ao trabalho, a sua produção ultrapassava o mínimo necessário para garantir a sobrevivência do grupo. É certo que não existia um excedente econômico capaz de acumular grandes riquezas, mas existia um excedente que permitia "a hospitalidade generosa, a ajuda solidária e a organização de grandes festas."32 7. Considerações Finais Os Guarani pré-coloniais também possuíam um tipo de propriedade coletiva e individual. A propriedade coletiva era a mais importante e a mais abrangente, iniciando-se com a ocupação do território. A terra era considerada um bem sagrado, indispensável para a sobrevivência do grupo. Os limites de cada tribo deveriam ser rigorosamente respeitados por outras tribos. O território pertencia a toda a comunidade e jamais poderia ser alienado. O tipo de atividade econômica praticada pelos indígenas (a caça, a pesca, o extrativismo e a agricultura) exigia grandes extensões de terra. O valor econômico da terra 29 BERTONI, op. cit., p. 223. 30 Conforme as características sócio-econômicas das sociedades indígenas, as relações de trabalho foram inseridas no contexto do direito civil, não cabendo mencioná-las no direito do trabalho. 31 MARTINS, op. cit., p. 148. 32 MARTINS, op. cit., p. 246. 20 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I estava relacionado a sua fertilidade. O chefe dividia a terra em parcelas que eram distribuídas às famílias por tempo determinado, depois retornavam à comunidade, donde se conclui que as famílias apenas usufruíam temporariamente da posse da terra, mas a comunidade é que era a sua proprietária. Os bens decorrentes da produção familiar Guarani eram distribuídos ao grupo quando excedentes, e, em momentos de crise, a família carente que antes houvesse doado seus bens era suprida por outras famílias que tivessem excesso de produção. O princípio da reciprocidade era ativado com a redistribuição generosa dos bens. O indivíduo avarento, que não se enquadrasse no sistema da reciprocidade, negando-se a distribuir o excedente, era rechaçado socialmente. A habitação familiar indígena pertencia aos membros da grande família, agrupados por laços de consangüinidade e afinidade. Todos eram proprietários da residência de um modo geral, mas, no seu interior, existia a demarcação do espaço de cada um dos seus ocupantes. As construções pertenciam à grande família até o momento em que eram abandonadas em conseqüência de migração do grupo, ou pela sua substituição por outra casa devido ao seu estado precário. Apesar de tênue, existia na sociedade Guarani a noção de posse individual. Os objetos de uso pessoal, como as armas, os ornamentos e a rede eram de propriedade individual. Os utensílios domésticos e de trabalho e os alimentos eram bens de família, pertencentes ao clã. Pode-se afirmar ainda que os bens intangíveis ou imateriais eram exclusivos de seus possuídores, mas os bens tangíveis tinham a propriedade limitada porque estavam sujeitos às regras da livre prestação e do uso coletivo. Na maioria das vezes, os bens tangíveis não eram coisas raras, podendo ser doados a qualquer um que os desejasse, sob o compromisso de retribuí-lo quando necessário, caracterizando a rotatividade na posse dos bens. Na verdade não se reconhecia a propriedade, mas, sim, a posse pessoal de bens num determinado momento. Basicamente existiram duas categorias de bens: os bens de uso exclusivamente coletivo, o Tupambaé; e os bens de uso familiar ou individual, o Abambaé. Nas sociedades indígenas não havia distinção entre tempo produtivo e tempo recreativo, existindo uma contínua alternância entre as atividades laborais e as atividades dedicadas ao descanso, ao lazer, à sociabilidade e à religião. Na sociedade Guarani normalmente não havia nenhuma condenação ao ócio, pois grande parte do tempo era utilizado para descanso e festividades. 21 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Existia o costume indígena do mutirão, que era a realização de trabalhos coletivos em atividades como a pesca, a colheita e a construção de casas, reforçando os vínculos de amizade e de parentesco. Mesmo dedicando-se pouco tempo, e não sendo sistematizado e disciplinado, o trabalho indígena resultava numa produção suficiente para satisfazer às necessidades do grupo, possibilitando, ainda, a promoção de grandes festas, a ajuda solidária e a hospitalidade generosa. A baixa produtividade atendia às limitadas necessidades da economia tribal. O trabalho nas sociedades indígenas era dividido basicamente pelo sexo e pela idade. O trabalho feminino era indispensável para a sobrevivência do grupo. As mulheres desenvolviam trabalhos domésticos, artesanais (fiação e olaria), agrícolas e de transporte de carga. Os homens praticavam a caça, a pesca, a guerra e construíam casas, embarcações e armas. 8. Referências Bibliográficas BERTONI, Moisés. La civilización guarani: religión y moral. Asunción: Indoamericana, 1956. BRUXEL, Arnaldo. Os trinta povos guaranis. 2. ed., Porto Alegre: EST/ Nova Dimensão, 1987. . O sistema de propriedade das reduções guaraníticas. Pesquisas. 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Os programas de pós-graduação das Faculdades de Direito da Universidade Federal do Ceará e da Universidade Federal de Santa Catarina reúnem seus professores, alunos e docentes externos especialmente convidados, para uma reflexão sobre a propriedade no Brasil Colônia, no Império e no Código Civil de 1916, e sua relação com o meio ambiente. O tema, por sua amplitude, implica uma perspectiva histórica e crítica. Histórica, porque se protrai ao longo de quase meio milênio, compreendendo os períodos colonial e imperial, e crítica porque, servindo a história do direito de consciência crítica do direito positivo2, permite conhecer as mudanças ocorridas, suas causas e seus efeitos, assim como o sentido e a função das diversas espécies de propriedade que se sucederam na história do nosso país. A iniciativa é conveniente e oportuna, considerando-se as mudanças que a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o Código Civil de 2002 introduziram na ordem jurídica brasileira, afetando não só a estrutura da propriedade como também a sua função, permitindo vislumbrar a passagem de uma concepção 1 Doutor honoris causa das Universidades de Coimbra e Católica Portuguesa. Professor Titular de Direito Civil e Romano da Universidade Federal do Rio de Janeiro. e-mail: [email protected]. 2 Paulo Grossi. Mitologie giuridiche della modernità, Milano, Giuffrè Editore, 2001, p. 3 e 38 26 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I tradicionalmente dogmática e estrutural, para uma de natureza axiológica e funcional, mais coerente com o pensamento jurídico contemporâneo. A propriedade exprime juridicamente a relação pessoa-coisa, na qual se reconhece um especial poder sobre os bens, transferíveis por meio do contrato e protegidos, no seu valor, pelas normas da responsabilidade civil. Propriedade, contrato e responsabilidade civil são, assim, institutos básicos do direito privado. Em torno deles formou-se a ciência, a legislação e a jurisprudência do direito civil3, que tutela também, o meio ambiente, matéria de importância crescente na sociedade contemporânea, a sociedade da ciência, da tecnologia, do risco. O reconhecimento da centralidade da propriedade, mobiliária e imobiliária, não impede, porém, considerar-se a pessoa humana o valor fundamental da ordem jurídica brasileira, uma das notas do direito contemporâneo, que vê a pessoa humana in concreto e situada, não mais a figura abstrata e geral do sujeito de direito. Pessoa humana e justiça como valores prioritários e fundamentais, contrariamente à posição hegemônica da segurança e da propriedade, da época da codificação. Aspectos a relevar, também, são as mudanças que o legislador introduziu na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o Código Civil de 2002. Mudanças de natureza estrutural, com a inserção de princípios, cláusulas gerais e conceitos indeterminados, que abrem o direito para os valores ético-políticos e para o mundo da realidade fática; mudanças de natureza funcional, com a passagem da perspectiva estrutural do normativismo-legalista da modernidade para a funcionalização dos institutos jurídicos, principalmente a propriedade e o contrato, e por fim, mudanças de natureza metodológica, com a possibilidade de um novo pensamento jurídico, problemático, axiológico e dialético, a substituir o pensamento sistemático, normativista, teorético e lógico-dedutivo da modernidade. Essas inovações permitem o retorno da razão prática ao direito civil brasileiro, e afetam, como não podia deixar de ser, a realização dos institutos básicos do direito civil, trazendo a propriedade novamente à ribalta da discussão jurídica4. 3 4 Guido Alpa. Che cos‘é il diritto privato?, Roma-Bari, Editori Laterza, 2007, p. 81. Stefano Rodotà. Il terribile diritto. Studi sulla proprietà privata, Bolonha, Il Mulino, 1981, p.17. 27 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A propriedade interessa tanto ao direito privado quanto ao direito público, o que demonstra a unidade essencial do direito5. Como direito subjetivo e como instituto jurídico, pertence ao direito civil, que o disciplina na sua existência e eficácia6, e ao direito constitucional, que o considera direito fundamental 7, princípio da ordem econômica e financeira8 e dotado de função social9. Sua importância cresce na medida em que aumenta a complexidade da sociedade contemporânea. Novos problemas exigem novas estruturas jurídicas de resposta. Presente em todo o processo de formação histórica do direito ocidental, com as características próprias de cada fase, sua definição foi sempre problemática, tendo a doutrina jurídica e nos códigos civis sempre optados pela indicação do seu conteúdo, não obstante defini-la como um conceito unitário, do que é exemplo o Código Civil francês. No Código Civil brasileiro de 1916, assim como no de 2002, sua descrição é analítica, indicando-se as diversas faculdades jurídicas que compõem o direito subjetivo de propriedade, isto é, o jus utendi (direito de usar), o ius fruendi (direito de fruir, gozar, de perceber seus frutos) e o ius abutendi (direito de dispor). A par desses poderes, sempre se reconheceu que o proprietário também tem deveres, pelo que o direito de propriedade mais se apresenta como uma situação jurídica complexa, compreensiva de poderes e deveres, cujo exercício pode afetar terceiros, a implicar o reconhecimento de sua função social. Como instituto jurídico, a propriedade é um dos que mais diretamente refletem as mudanças nas condições econômicas e sociais, sendo, por isso, objeto de particular atenção. Interessa aos juristas que a disciplinam, aos historiadores que a estudam na sua evolução, aos filósofos que apontam os seus valores fundantes, aos economistas que avaliam a sua importância nos sistemas de produção, aos sociólogos que a contemplam nas diversas funções. De tudo isso decorre que a propriedade não tenha um só significado. Tem-se a propriedade-instituto, a propriedade-direito subjetivo, a propriedade sob o ponto de vista econômico, político, sociológico, a propriedade 5 José Luis de los Mozos. El derecho de propriedade: crisis y retorno a la tradicion jurídica, Madrid, Editorial Revista de Derecho Privado, 1993, XIII. 6 Código Civil, arts. 1.228 a 1.368. 7 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, XXII. 8 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 170, II. 9 Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, XXIII e Código Civil, art. 1.228, § 1º. 28 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I constitucional, a propriedade de direito civil10. Identificam-se ainda, na sua evolução, outras espécies, como a propriedade coletiva, familiar, dos primórdios, seja a individualista do direito romano clássico, seja a do Código Civil francês de 1804, ambos de grande influência no direito brasileiro; a propriedade dividida, do feudalismo, em que se distinguia o domínio direto do domínio útil; a propriedade comunitária, dos clãs, das tribos, da aldeia, do direito germânico, no caso de propriedade fundiária; a propriedade coletivista, dos Estados totalitários. Essas formas de sociedade não se sucederam, necessariamente, no tempo, elas podem ter coexistido11, conforme as condições políticas e econômicas de cada sociedade. A época moderna considerava a propriedade um poder pleno e exclusivo do titular e um princípio da organização política e econômica da sociedade liberal. Defendendo uma concepção ideológica, a Revolução Francesa incluiu-a na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (art. 17) como direito inviolável e sagrado. O Código de Napoleão12, que consagrou o individualismo liberal13, defendeu-a como um direito unitário, no sentido de haver um só tipo de propriedade, embora passível de conteúdos diversos, absoluto, por deixar ao seu titular a decisão sobre a conveniência e modo de seu aproveitamento, perpétuo, por não se extinguir pelo não uso14, exclusivo, porque com eficácia erga omnes, tendo o proprietário direito de impedir qualquer invasão na esfera do seu poder, ilimitado, no sentido da indeterminação do exercício das faculdades que o compõem, e por isso mesmo elástica, porque suscetível de contração e distensão, conforme destituída ou não, de qualquer das suas faculdades. Desse modo, a propriedade passou a considerar-se projeção da personalidade individual, protegida como direito e como atributo pessoal 15. No século XX, a grande diversidade dos bens e, consequentemente, dos seus regimes, levou a um declínio da noção unitária, desenvolvendo-se a idéia de um instituto plural. Não a propriedade, mas as propriedades (urbana, rural, imobiliária, intelectual, industrial, 10 Stefano Rodotà. Il terribile diritto. Studi sulla proprietà privata, Bolonha, Il Mulino, 1981, p.163, nota 7. 11 John Gilissen. Introdução histórica ao direito, 2ª edição, tradução de A.M Hespanha e L.M. Macaísta Malheiros, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 636. 12 Código Civil francês, art. 544. 13 Jacques GHESTIN e Gilles GOUBEAUX. Traité de droit civil. Introduction générale, 4e édition, Paris, LGDJ, 1994, p. 104. 14 Vicent L. Montés. La propriedade privada en el sistema del derecho civil contemporaneo, Madrid, p. 75. 15 Francisco Amaral. Direito Civil. Introdução, 7ª edição, Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p.180. 29 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I tecnológica etc), objeto de leis especiais. Nessa especialização insere-se a temática do meio ambiente16, considerado patrimônio público que abrange a terra, com seus recursos minerais, a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a flora17. Aspecto a destacar, também, é a relatividade do direito e a variabilidade do conteúdo da nova propriedade, com o predomínio da idéia do social sobre a do individual. 1. A experiência jurídica romana. O conceito, a natureza e a importância da propriedade na sociedade contemporânea e no direito ocidental, resultam de um longo processo evolutivo, com períodos distintos, nos quais a propriedade apresenta diferenças específicas. O conhecimento dessa evolução leva a uma perspectiva de natureza crítica, no sentido de permitir verificar as mudanças ocorridas, suas causas e seus fatores de transformação 18, assim como o sentido e a função das diversas espécies de propriedade que se sucederam na história do nosso país. Parta-se do pressuposto de que o direito faz parte da cultura brasileira, e de que esta se formou e desenvolveu a partir da matriz ocidental européia, cuja influência é ainda hoje evidente. Essa matriz é, assim, a primeira referência a considerar em um breve percurso histórico. E nesse repensar a nossa tradição jurídica, impõe-se começar pelo direito romano, não só no que diz respeito à dogmática jurídica mas também ao processo metodológico de realização da justiça pois, diversamente do que defendia a racionalidade jurídica moderna, ainda hoje dominante, no sentido de ser o direito uma ciência teorética, com um raciocínio lógico-dedutivo, o direito romano era uma ciência prática, que se valia de um raciocínio dialético para resolver casos concretos. Tomemos a nossa primeira codificação civil. “Se passarmos em revista os 1.807 artigos do nosso Código Civil, verificaremos que mais de quatro quintos deles, ou sejam, 1.445, são produto de cultura romana, ou 16 Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981. Francisco Amaral. Espírito e técnicas romanos no direito ambiental brasileiro, in Revista Brasileira de Direito Comparado, número 14, Rio de Janeiro, 1993, p. 27 e sg. 18 Paulo Grossi, p. 3 e 38. 17 30 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I diretamente aprendidos nas fontes da organização justinianéia, ou indiretamente das legislações que ali foram nutrir-se largamente, como aconteceu a Portugal, a Alemanha, a França e a Itália, que fizeram do Direito Romano o manancial mais largo e mais profundo para mitigar sua sede de saber‖.19 No que respeita ao instituto da propriedade, nas fontes romanas não se encontra uma definição sintética, quer pela aversão dos juristas romanos à abstração conceitual, quer pela dificuldade de um conceito único que pudesse abranger as espécies já existentes. Reconhecia-se, porém, a existência de situações de fato que permitiam considerar a propriedade um poder sobre coisas corpóreas, composto de várias (hoje) faculdades, como as de usar, fruir e dispor (ius utendi, fruendi, abutendi), poder esse protegido pela ação reivindicatória (rei vindicatio) e limitado pelo interesse público, por motivos religiosos e morais, e por interesses privados20. O direito de propriedade não aparece nas fontes romanas como um poder absoluto, ilimitado, exclusivo ou perpétuo. A noção romana de propriedade era flexível, o que lhe permitiu ser a base de diferentes concepções que se desenvolveram tanto na tradição romanista, a partir do século XII, quanto no direito feudal, no direito natural moderno e nos direitos codificados21. Inicialmente dominium, depois proprietas, esse termo exprimia uma situação jurídica subjetiva em que alguém exercia um poder geral sobre uma coisa material. Sob o ponto de vista político, reduzia-se à propriedade da terra que, durante séculos, tem sido quase o único bem de produção e a base de todo o poder22. Sujeitos ativos do dominium eram, exclusivamente, os cidadãos romanos e os estrangeiros (peregrini), aos quais fosse reconhecido o direito de comercializar (ius commercii). Sujeitos passivos, no sentido de que deviam respeitar esse direito, eram todas as pessoas que viviam no espaço romano. De qualquer modo, reconhece-se que aos juristas romanos se deve a construção dogmática do direito de propriedade. Quanto à relação propriedade-meio ambiente, reconhece-se hoje que o direito romano já se constituía em um primeiro estágio, ou núcleo normativo, em matéria de dano ambiental, particularmente no que se referia à contaminação das águas e aos danos 19 Abelardo Lobo. Curso de Direito Romano, Brasília, Edições do Senado Federal, Brasília, 2006, p. 17. A. Santos Justo. Direitos Reais, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 221. 21 Peter Stein. 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Eram as relações de vizinhança, o abuso de direito e a responsabilidade civil objetiva. Quanto às relações de vizinhança, o direito romano limitava o direito de propriedade por meio de princípios reguladores das relações entre imóveis de proprietários diversos30, do que eram exemplo a actio aquae pluviae arcendae, ação concedida ao proprietário de um terreno para reclamar do vizinho a demolição de uma obra que altere o curso normal das águas. No direito clássico existia o princípio de que as águas deviam seguir o seu curso normal, sem alteração31, e a actio arborum furtim caesarum , ação já prevista na Lei das XII Tábuas contra o corte furtivo de árvores na propriedade de outrem32. Tema controvertido eram os atos ad emulationem, atos praticados no exercício do próprio direito com intenção de prejudicar terceiros33, como os das emissões (immissio), atos de ingerência na esfera jurídica de outrem, causando prejuízo, por exemplo, a emissão de fumaça, odor, águas etc. Desde que não excedessem o limite normal e ordinário, deviam ser tolerados pelo proprietário que as sofresse. Se ultrapassassem os limites estabelecidos, podia o prejudicado usar o interdito uti 23 José Luiz Zamora Manzano. Precedentes romanos sobre el Derecho Ambiental. La contaminación de aguas, canalización de aguas, canalización de las aguas fecales y la tala ilícita forestal, Madrid, EDISOFER, 2003, p.104. 24 D. 47, 11, 1, 1. 25 D. 43, 24, 11, pr. 26 D. 39, 3, 3, pr. 27 D.43.22.16; D. 43,22,1,10; D.43.23,1 28 D.47, 7, 3 29 C. 3, 35,1 30 Pietro Bonfante. Corso di diritto romano, Milano, Giuffrè Editore, 1966, p. 321. 31 D. 39, 3. 32 D. 47,7. 33 D. 50, 17, 55. 32 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I possidetis, e se o dono do prédio causador da emissão alegasse o direito a produzi-la, uma ação negatoria34. Quanto ao abuso de direito, era proibido por meio de legislação casuística e específica35, desconhecendo-se uma teoria do abuso de direito36. Reconhecia-se que nullus videtur dolo facere qui suo iure utitur (não se considera que obra com dolo quem usa de seu direito)37 mas também se condenava o abuso no exercício do próprio direito, não como princípio geral mas como intervenção pretoriana destinada a corrigir o exercício dos direitos subjetivos, sempre que seu exercício se tornasse abusivo38. Pode afirmar-se, de modo geral, que o direito romano não conhecia limites ao exercício do direito de propriedade, “salvo aqueles impostos por absoluta e imprescindível necessidade da vida econômica da sociedade”. Nesse caso, predominava o sentido da moralidade e da consciência popular, acentuando-se o espírito do social sobre o particular. Pode-se dizer, portanto, com precisão, que em Roma os limites ao exercício dos direitos estavam na consciência social, nos costumes, na moral do povo romano, onde se criavam idéias fundamentais do ordenamento jurídico, como a aequitas e a bona fides. Em matéria de responsabilidade civil, tema de ricas sugestões em favor da socialidade do direito romano, as idéias sociais e objetivas superavam o elemento espiritual na fixação da responsabilidade. O predomínio da teoria do risco indicava que, para o direito clássico, o fundamento da obrigação de indenizar não decorria da culpa do agente, mas de um princípio de eqüidade e de justiça comutativa, segundo o qual todo aquele que, na defesa dos seus interesses, prejudicasse o direito de outrem, ainda que de forma autorizada, devia indenizar o dano causado. Esses princípios presidem, ainda hoje, a responsabilidade pelo dano ambiental. Algumas das disposições romanas citadas vieram a integrar-se no direito ibérico, por meio do direito visigótico, encontrando-se vestígios no Fuero Juzgo, livro VIII, título 3, leis 1 e 5, na Lei das Siete Partidas39, em matéria de limpeza e recomposição de valas, canais e limpeza das cloacas40. Na Partida VII, lei XVIII, dispunha-se sobre o 34 Ulpiano, D. 8, 5 ,8, 5, 7. D. 24, 1, 63; D. 30, 1, 43, 1. 36 Francesco De Martino. Diritto e società nell‘ antica Roma, Roma, Editori Riuniti, 1979, p. 291. 37 D. 50, 17,55. 38 D. 8, 5, 8, 5. 39 Partida III, título XXXII, Lei VII. 40 D. 43, 21, 1. 35 33 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I corte ilícito de árvores, de modo semelhante ao vigente no direito romano41 42. Passando-se à era da codificação, pode afirmar-se que a trilogia de Gaio, pessoas, coisas e ações, estava ainda na base da matéria privada que se sistematizou nos códigos civis da Europa continental43. Nesses códigos, a propriedade ocupa um papel central, que varia conforme as suas relações com outros institutos da esfera civil. Temos assim que, no Código de Napoleão, de grande influência no Código Beviláqua, o eixo principal é o que liga a propriedade ao contrato, pelo que a grande contribuição desse código não foi a de liberar a propriedade de seus impedimentos feudais, permitindo-lhe o acesso da burguesia, mas a sua inserção no processo de produção e circulação dos bens por meio de outro notável instituto, o contrato44, expressão da soberania individual na atividade econômica das pessoas. Propriedade, contrato e responsabilidade civil são, assim, reconhecidamente, institutos fundamentais do direito civil que se relacionam diretamente com o ambiente, bem jurídico que, por sua importância, tem hoje uma posição central, permitindo reconhecer-se não só um direito ao ambiente como também um direito do ambiente45. 2. A propriedade no Brasil Colônia. O regime das sesmarias marcou a propriedade no Brasil Colônia, desde sua implantação, em 1530, até ao advento da Resolução de 17 de junho de 1822, que suspendeu a concessão de novas sesmarias e a confirmação das já existentes. Pela divisão do Tratado de Tordesilhas, as terras brasileiras pertenciam ao Estado português (terras da Coroa), mais propriamente ao Reino de Portugal, cabendo à Ordem de Cristo a jurisdição espiritual46. Depois também ao Rei (reguengos) e a particulares (herdamentos), que as doavam, não propriamente a terra, mas o seu usufruto, o benefício47. A posse e a propriedade da terra resultavam, assim, de simples 41 D.47, 7, 7, 2 José Luis Zamora Manzano, p. 104. 43 Umberto Vincenti. Diritto senza identità. La crisi delle categorie guiridicha tradizionali, Bari, Laterza, 2007, p. XIV. 44 Stefano Rodotà. Il diritto privato nella società moderna, Bolonha, Il Mulino, 1971, p. 313. 45 Francisco Amaral. Espírito e técnicas romanos no direito ambiental brasileiro, in Revista Brasileira de Direito Comparado, número 14, Rio de Janeiro, 1993, p. 27 e sg. 46 José da Costa Porto. Formação territorial do Brasil, Brasília, Fundação Petrônio Portella, 1982, p.26. 47 Vicente Cavalcanti Cysneiros. Propriedade territorial no Brasil, in Enciclopédia Saraiva de Direito, nº 62, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 233. 42 34 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I concessão de terras públicas, na forma de sesmaria, sem restrições de maior importância que não fosse a obrigação do sesmeiro de cultivá-la e de nela fixar a sua morada habitual. Cumpridas essas exigências, adquiria-se o domínio efetivo sobre as terras concedidas. Portugal procurava, com esse regime, “trasladar, para as nascentes colônias, as características que nortearam as concessões predominantes na sua idade média”, e já adotadas nos Açores, Cabo Verde e ilha da Madeira, com a finalidade de enfrentar o problema da falta de alimentos, garantindo o abastecimento das populações locais. Não havia essa necessidade, porém, na nova colônia, onde o objetivo era, predominantemente, o povoamento e a grande plantação. Concediam-se as terras, originariamente públicas, visando-se ocupar o solo com a lavoura, o plantio da cana de açúcar, a criação de gado. E distribuíam-se sem grande rigor porque havia pouca gente para ocupá-la48. A primeira medida do rei D. Manuel, o monarca dos descobrimentos, foi dar as terras, em arrendamento para a exploração do pau-brasil. Deveu-se, porém, a D. João III, que instituiu em 1530 o regime das capitanias ou donatarias, a obra sistemática de colonização. Constituíam-se as capitanias por uma carta de doação, outorgando ao donatário uma certa extensão de terra, com a respectiva jurisdição civil e criminal. Acompanhava essa carta um foral, contrato de aforamento, pelo qual os colonos que recebessem terras tornavam-se tributários perpétuos da Coroa. Esta reservava para si o monopólio do pau-brasil e das especiarias, pertencendo-lhe ainda o quinto dos metais e pedras preciosas que se viessem a descobrir, e o dízimo de todos os tributos lançados pelos donatários, ficando livre para os donatários e colonos, o tráfico dos demais produtos, especialmente o açúcar, o algodão e o fumo. Segundo as Ordenações Filipinas49, sesmarias eram “as dadas de terras, casas ou pardieiros que foram ou são de alguns senhorios da terra e que já em outro tempo foram lavradas e aproveitadas e agora o não são‖. O termo seria derivado de sesmo ou sesma, a sexta parte de alguma coisa50. De origem romana, instituíram-se em Portugal pelo rei D. Fernando, por meio da lei de 26 de junho de 1.375, a chamada Lei das 48 Costa Porto. Estudo sobre o sistema sesmarial, Recife, Editora Universitária, 1965, p.81. Livro 4º, Título XLIII. 50 Paulo Carneiro Maia. Sesmarias – I, in Enciclopédia Saraiva de Direito, nº 68, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 478. 49 35 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Sesmarias, posteriormente recolhida pelas Ordenações. As terras assim chamadas eram concedidas por meio de cartas de sesmarias, títulos distribuídos inicialmente sem rigor, pois havia pouca gente para ocupar a terra, desenvolvendo-se, assim, uma política latifundiária com doação de terras que outorgavam direitos de uso e fruição, não de propriedade. Pode-se, portanto, afirmar, que o regime da propriedade fundiária no Brasil tem origem no período colonial, nas chamadas sesmarias, o que levou à instituição da grande propriedade rural, o latifúndio, destinada à monocultura, sustentada pelo trabalho escravo. O poder de conceder sesmarias foi extinto pela lei nº 601, de 18 de setembro de 1850, a chamada lei de terras. 3. A propriedade no Brasil Império. Dois fatos importantes marcaram a história da propriedade no Brasil Império: a extinção do regime das sesmarias, e a regularização da propriedade fundiária com o advento da lei nº 601, de 1850. A Resolução de 17 de junho de 1822 do Príncipe Regente D. Pedro de Bragança suspendeu a concessão de novas sesmarias e a confirmação das já existentes, por sua inadequação aos objetivos visados. O regime das sesmarias não atingira os resultados pretendidos, quer pelo seu abandono pelos respectivos titulares, quer pelo inadimplemento destes no tocante às suas obrigações51. Verificava-se, assim, que a distribuição de terras pela Coroa produzira resultado diverso do alcançado em Portugal, onde essa prática visava garantir o abastecimento da população, que no Brasil era ainda incipiente, o objetivo era o povoamento. Além disso, a concessão de terras levara a uma verdadeira “aristocratização da propriedade”. As elites urbanas, vivendo nas capitais e conhecendo os meandros da burocracia oficial, obtinham o domínio legal das terras que pediam, restando aos habitantes do interior a possibilidade, apenas, de ocupar o solo, sem outra garantia que não a decorrente da posse, simples situação de fato. Desenvolveu-se, assim, o regime de posses, um verdadeiro costume jurídico52, segundo o qual a posse da terra, com cultura efetiva e morada habitual do possuidor, eram 51 Vicente Cavalcanti Cysneiros, p. 241. Ruy Cirne Lima. Pequena história territorial do Brasil, São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura, 1991, p. 57. 52 36 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I requisitos necessários e suficientes para a aquisição da propriedade, como ainda hoje ocorre. Enquanto que no regime das sesmarias o beneficiário recebia o título e a terra para depois cultivá-la, no regime da posse, o posseiro cultivava primeiro a terra para depois obter a sua respectiva titularidade. A necessidade de regularizar-se o regime da posse, exercida sobre terras devolutas, assim chamadas as terras “suscetíveis de serem devolvidas ao patrimônio público”, por não se acharem no domínio privado, ou por não terem sido dadas por sesmarias ou outras concessões governamentais, ou ainda por não se acharem ocupadas por meio de posses, levou à promulgação da lei n.° 601, de 1850, a Lei das Terras do Império, também conhecida como o estatuto das terras devolutas. Disciplinava as glebas não utilizadas, sem titularidade legítima de posse ou de propriedade, “devolvidas à nação pelo desuso dos particulares e as terras ainda inexploradas”53. A denominação terras devolutas estava no artigo 3º dessa lei, que dispunha: “São terras devolutas: § 1ºas que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal; § 2º- as que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmaria ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação e cultura; § 3º- as que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta lei; § 4º- as que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas por esta lei”. A lei nº 601, de 1850, teve méritos. Entre outros, valorizou a posse legítima da terra que, efetivamente cultivada, levava ao reconhecimento da propriedade dos posseiros sobre os terrenos ocupados. E foi precursor do processo discriminatório de terras no Brasil, ensejando a devolução das terras devolutas ao patrimônio nacional. 4. A propriedade no Código Civil de 1916. Na elaboração do Código Civil brasileiro de 1916 imperou, como seria de esperar, uma visão européia do mundo e do direito, que se condicionou, por sua vez, pelas circunstâncias físicas e étnicas do novo domínio colonial. Clóvis Beviláqua pôde, 53 Messias Junqueira. O instituto brasileiro das terras devolutas, São Paulo, LAEL, 1976, p. 78 37 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I assim, afirmar, que o Código Civil era “expressão da alma brasileira, e, ao mesmo tempo, rebento da cultura jurídica dos romanos e lusos, e fruto da época” 54. Tinha, na sua formação, preceitos de direito romano, germânico, canônico e medieval, sistematizados sob a influência espiritual do direito francês e da técnica do código alemão. Refletia as conceções filosóficas dos grupos dominantes, detentores do poder político e social da época, por sua vez determinadas, ou condicionadas, pelos fatores econômicos, políticos e sociais. Do ponto de vista ideológico, consagrava os princípios do liberalismo, defendido por uma classe média conservadora que absorvia contradições já existentes entre a burguesia mercantil, defensora da mais ampla liberdade de ação, e a burguesia agrária, receosa dos efeitos desse liberalismo55. Em matéria de propriedade, adotou os princípios do individualismo, por achar o legislador, necessário vincular o homem ao solo56, assegurando ampla liberdade contratual, na forma mais pura do liberalismo econômico. Refletia, assim, o ideal de justiça de uma classe dirigente européia por origem e formação, constituindo um direito afastado das condições de vida do interior do país, traduzindo mais as aspirações civilizadoras dessa elite, embora progressista, do que os sentimentos e necessidades da grande massa da população, em condições de completo atraso57. Tecnicamente um dos mais perfeitos, quer na sua estrutura dogmática, quer na sua redação, escorreita, segura, precisa, o Código Civil brasileiro de 1916 era um diploma conciso, contendo apenas 1.807 artigos, número bem inferior ao do francês (2.281), ao do alemão (2.383), ao do italiano (2.969), ao do português (2.334). No instituto da propriedade compreendia várias espécies. Quanto aos titulares, distinguia-se a propriedade pública, que tinha por objeto bens públicos58, da propriedade particular. Esta podia ser de um só dono, ou, simultaneamente, de vários (o condomínio). Quanto ao conteúdo, distinguia-se a propriedade plena, se todos os seus direitos elementares se achavam reunidos no do proprietário, da propriedade limitada, se tinha ônus real ou era 54 Clóvis Beviláqua. O Código Civil, in “Linhas e Perfis Jurídicos”, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1930, p. 178. 55 Orlando Gomes. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro, Salvador, Livraria Progresso Editora, 1958, p. 42. 56 Clóvis Beviláqua. Linhas gerais da evolução do direito constitucional, da família e da propriedade durante a centúria de 1827 a 1927, in “Linhas e Perfis Jurídicos”, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos, 1930, p. 91 57 Orlando Gomes, p. 34. 58 Código Civil, art. 66. 38 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I resolúvel59. Quanto ao objeto, distinguia-se a propriedade imobiliária, a mais importante devido ao princípio da publicidade, que se realizava pela instituição dos registros públicos, da propriedade mobiliária, que tinha por objeto coisas móveis (coisas fungíveis e consumíveis, divisíveis e indivisíveis, singulares e coletivas). E ainda os bens reciprocamente considerados (bens principais e acessórios, compreendendo estes os frutos, os produtos, os rendimentos, os acessórios de solo, e as benfeitorias). O Código Civil de 1916 garantia o direito de propriedade, mas não de modo absoluto, pois seu individualismo subordinava-se às necessidades sociais, como indicam as restrições que o próprio código previa, em matéria de usucapião, desapropriação por utilidade pública e direitos de vizinhança. Estes compreendiam regras sobre o uso nocivo da propriedade, sobre o regime das águas e sobre as limitações ao direito de construir. É precisamente nessas disposições já que se vislumbrava o que se viria a ser, meio século depois, matéria de direito ambiental. Reconhecia-se, assim, o poder que o proprietário tinha de proibir atos prejudiciais, assim como a possibilidade de prevenção de determinados perigos e ainda garantir a manutenção da ordem natural60. Os arts. 554 e 555 do código dispunham sobre o uso nocivo da propriedade, que poderia causar ofensas à segurança pessoal ou dos bens, ao sossego (ruídos, emissões de fumaça ou fuligem) ou à saúde (emanação de gases tóxicos, poluição de águas, estábulos)61, pelo que se concedia ao proprietário o poder de pedir que cessasse o dano ou fosse reparado o já produzido62. Estatuía, também, regras sobre o uso de águas correntes particulares, das águas pluviais e das fontes, em relação ao estado de vizinhança entre prédios63 matéria posteriormente regulada em lei especial, o Código das Águas, decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934. As disposições do código visavam, assim, a 59 Código Civil, art. 525. António Menezes Cordeiro. Tutela do Ambiente e Direito Civil, in Direito do Ambiente, Lisboa, Instituto Nacional de Administração, 1994, p. 386. 61 Clóvis Beviláqua. Direito das Coisas, edição histórica, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976, p. 188. 62 Código Civil de 1916 - Art. 554 - O proprietário, ou inquilino de um prédio tem o direito de impedir que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o habitam. Art. 555 - O proprietário tem direito a exigir do dono do prédio vizinho a demolição, ou reparação necessária, quando este ameace ruína, bem como que preste caução pelo dano iminente. Vedava-se também a construção de estrebarias, currais, pocilgas, estrumeiras que contrariassem os regulamentos de higiene. Art. 578 - As estrebarias, currais, pocilgas, estrumeiras, e, em geral, as construções que incomodam ou prejudicam a vizinhança, guardarão a distância fixada nas posturas municipais e regulamentos de higiene. 63 Clóvis Beviláqua, p.195. 60 39 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I manutenção da ordem natural, estabelecendo a obrigatoriedade do prédio inferior de receber as águas que corressem naturalmente do superior. E se o dono deste fizesse obras de arte, para facilitar o escoamento, procederia de modo a não piorar a condição natural e anterior do outro64. Em matéria de direito de construir, ainda quanto às águas, dispunha o código serem proibidas as construções capazes de poluir, ou inutilizar para o uso ordinário, a água de poço ou fonte alheia, a elas preexistente65. Proibidas também eram as escavações que tirassem ao poço ou à fonte de outrem a água necessária66. Ocorrendo a violação dessas regras, causando o dano que hoje se classificaria como ambiental, nascia a obrigação de indenizar, ou seja, a responsabilidade civil prevista no art. 159 do Código Civil67. É de concluir-se, portanto, que, guardadas as características e dimensões dos respectivos sistemas sociais, e as mudanças decorrentes da evolução histórica, principalmente as provocadas pelo desenvolvimento da sociedade industrial, a relação que hoje se verifica entre a propriedade e meio ambiente, não difere, na sua essência, daquilo que o direito romano já estabelecia e que o código brasileiro recepcionou. 5. Conclusões. De tudo o que exposto foi, podem-se tirar as seguintes conclusões. A propriedade é um dos institutos fundamentais do direito civil patrimonial, como expressão jurídica da relação histórica entre o ser humano e as coisas da realidade externa. A compreensão de sua estrutura e função no direito contemporâneo, particularmente na ordem jurídica brasileira, pressupõe uma perspectiva histórica e, consequentemente, uma perspectiva crítica, que permite identificar de modo racional e objetivo, os fatores ou circunstâncias que provocaram a sua evolução, tanto na sua 64 Código Civil de 1916 - Art. 563 - O dono do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm naturalmente do superior. Se o dono deste fizer obras de arte, para facilitar o escoamento, procederá de modo que não piore a condição natural e anterior do outro. 65 Código Civil de 1916 – Art. 584 - São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar para o uso ordinário, a água de poço ou fonte alheia, a elas preexistente 66 Código Civil de 1916 - Art. 585 - Não é permitido fazer escavações que tirem ao poço ou à fonte de outrem a água necessária. É, porém, permitido fazê-las, se apenas diminuírem o suprimento do poço ou da fonte do vizinho, e não forem mais profundas que as deste, em relação ao nível do lençol d‘água 67 Código Civil de 1916 - Art. 159 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano 40 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I estrutura, como no seu fundamento e função nos diversos períodos da história nacional, a colônia, o império e a república do início do século XX. A propriedade, desde os primórdios da civilização, é um conceito poliédrico. Apresenta várias facetas e espécies, de acordo com as necessidades sociais a que responde. A perspectiva histórica que orienta a presente comunicação, revela que o direito subjetivo e o instituto jurídico da propriedade, como expressões normativas da relação pessoa-coisa do mundo externo, nunca se manifestou como categoria unitária, geral e abstrata. Pelo contrário, sempre foi múltipla e variada, quer quanto ao seu titular, quer quanto ao seu objeto, quer quanto ao seu conteúdo. Uma visão crítica, proporcionada pelo conhecimento histórico, revela que a importância e função da propriedade não são idênticos em uma economia agrária e em uma de capitalismo avançado 68. Conforme a época, as necessidades sociais e os interesses da pessoa humana, vários foram os tipos de propriedade que surgiram, pelo que hoje pode-se reconhecer a existência histórica não da propriedade mas das propriedades, a implicar a ruptura do tradicional conceito unitário e a configuração da propriedade como um conceito plurifacetado. Isso não impede, porém, que continue a ser uma das categorias fundamentais do direito privado. O direito romano, que teve o mérito de sistematizar o conjunto de seus preceitos e de classificá-la conforme a pessoa do seu titular e conforme o seu objeto, é o primeiro a manifestar o espírito individualista que veio a caracterizar, historicamente a propriedade. Nesse direito existem, porém, matizes sociais, como os que se encontram na disciplina das relações de vizinhança, do abuso de direito e da responsabilidade civil. No direito medieval, a propriedade decompôs-se em direitos paralelos que a construção doutrinária denominou de dominium directum e dominium utile, diversos graus do direito do proprietário regime feudal, que veio a ser superado pelo espírito burguês da revolução francesa. No que respeita ao direito brasileiro, o período colonial caracterizou-se pelo predomínio do latifúndio, a grande propriedade base da economia de exportação de produtos primários, (açúcar, algodão, fumo), sistema que se manteve até o processo de industrialização do século XX. 68 Stefano Rodotà. Il diritto privato nella società moderna, Bologna, Il Mulino, 1971, p. 314. 41 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Quanto à relação da propriedade com o meio ambiente, à semelhança do que ocorreu no direito romano, guardadas as necessárias proporções, no Código Civil de 1916 já se encontravam normas que relativizavam o individualismo do direito de propriedade, principalmente em matéria de direitos da vizinhança, abuso de direito e responsabilidade civil. Isso abriu caminho para a profunda mudança que se veio a verificar posteriormente, quando o direito de propriedade deixou de ser apreciado na sua estrutura para ser considerado na sua função social, do que um dos melhores exemplos são as limitações impostas ao direito de propriedade por um novo direito, o direito do ambiente, que visa garantir proteger a vida em todas as suas manifestações. 42 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A PROPRIEDADE PÓS-MODERNA: conceito e classificação José Isaac Pilati1 SUMÁRIO 1. Introdução. 2. Propriedade comum e especial: dois perfis e um paradigma a construir. 2.1. A Propriedade comum. 3. As propriedades especiais. 4. Propriedades especiais: classificação. 4.1. Propriedades especiais particulares. 4.2. A propriedade especial público privada. 4.3 Propriedades especiais coletivas: patrimoniais (étnicas) e extrapatrimoniais (coletivas propriamente ditas). 5. Propriedade coletiva extrapatrimonial ou coletiva propriamente dita: base constitucional da função social. 6. Conclusão. 7. Referências. RESUMO Enfoca-se a propriedade especial constitucional, que se destaca da propriedade comum corpórea tradicional (dos códigos), afirmando-se como base das transformações do Direito, na Pós-Modernidade. 1. Introdução A propriedade é a instituição central da civilização, não só por constituir o conjunto básico de valores2 – uma mentalidade, como diz Grossi3 – com que se orientam e pautam pessoas e coisas, mas também por determinar e materializar a estrutura com que historicamente se regem e reproduzem as relações de Estados e de 1 Professor do Curso de Pós-Graduação em direito da Universidade Federal de Santa Catarina. REALE, Miguel. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 181 et seq. Toda cultura é histórica e não pode ser concebida fora da história. Em cada tempo predomina um valor em relação a outros...Os valores não estão isolados uns dos outros,...mas se ordenam de forma gradativa, hierarquizando-se entre subordinantes e subordinados, ou fundamentais e secundários. A ética proprietária assenta no ter a Moral individual e social (Direito) do bem fundamental, que é a propriedade. 3 GROSSI, Paolo. La propiedad e las propiedades: un análisis histórico. Traducción de Angel M. López y López. Madrid: Civitas, 1992 . 2 43 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I indivíduos e de Sociedades. Na Pós-modernidade4 confrontam-se dois modelos: o da proprieté napoleônica, reproduzida no art. 1228 do CCB – criticada pelo pioneiro discurso de função social de Duguit; e o das propriedades especiais constitucionais de 1988, que despontam sob a égide jurídica do coletivo e a aura política da participação. A Modernidade e as codificações trabalharam com um conceito estrito de propriedade, limitado ao âmbito das coisas corpóreas; o capital financeiro correu por fora desse âmbito, num buraco-negro jurídico que o punha a salvo de qualquer enquadramento ou compromisso de função social. Já a Pós-Modernidade deverá trabalhar com um conceito amplo de propriedade5, incluindo todo poder patrimonial oponível ao grupo social. Isso coloca ao alcance da função social todo o poder, individual e social, seja ele político, econômico, de que natureza for. Com isso não é o conceito de propriedade que se modifica, mas o arcabouço, o paradigma. Rodotá6 diz que a Propriedade carrega um enigma, perante a desigualdade social renitente, que o Estado e os instrumentos da ordem jurídica não conseguem resolver. Este é o ponto que importa: até aonde vai o mérito proprietário? Locke7 justifica a apropriação com fundamento no trabalho, porém não para açambarcar a terra e sim para usufruirmos. Assim é de início, arremata: Direito e conveniência andando juntos, sendo inútil, bem como desonesto, tomar demasiado, ou mais do que o necessário. O 4 RUSSO, Eduardo Angel. Teoria general del derecho: en la modernidad y en la posmodernidad. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, [1995?], p. 317 et seq. La posmodernidad parece ser, entre otras cosas, el lugar para las nuevas utopías. Desde el antológico ‗mayo francés‘ pedir lo imposible se tiene por uma forma de hacer que o imposible sea real. Na p. 318 alerta: La posmodernidad es, en primer lugar, una moda. Es decir, algo que alguien crea y que muchos usan sin saber de que se trata. Uma moda que alguém cria e que muitos utilizam sem saber de que se trata. DIAS, Maria da Graça dos Santos. Direito e pós-modernidade. In: DIAS, M. G. S; MELO, O. F; SILVA, M.M. Política jurídica e pós-modernidade. Florianópolis: Conceito, 2009, p. 11-34, destaca que, na Modernidade, o parlamento representa o povo e o governo é das leis, não dos homens. 5 MACKELDEY, F. Elementos del derecho romano. 4 ed. Madrid: L. López, 1886, p. 151, chama atenção, como romanista, para a propriedade em sentido amplo, que inclui toda a fortuna e tudo o que pertence a alguém; a propriedade de bens corpóreos é propriedade em sentido estrito. As propridades especiais da Pós-Modernidade devem devolver importância à propriedade en el sentido extenso de la palabra. 6 RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla proprietà privada. Bolonha: Il Mulino, 1990, inaugura a obra referindo a questão proprietária, que sempre se propõe, mas que não (ou nunca) se soluciona, restando intacto perante nós l‘enigma della proprietà (p. 15). Pode-se dizer o mesmo da corrupção, que é uma fraude quanto aos méritos proprietários. São, portanto, dois desafios à pósmodernidade: a desigualdade e a corrupção. 7 LOCKE, John. Tratado sobre o governo civil. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 406 et seq. Como os homens podem vir a ter propriedade, se Deus deu a terra à humanidade em comum? Cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. O trabalho de seu corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele (p. 409). 44 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I dinheiro também se justificaria nessa linha: como meio de tornar durável (com a troca) o perecível, pois o desperdício é igualmente condenável. O liberalismo de Locke é preciso não só nesse aspecto, do mérito e dos limites da propriedade; ele baseia a relação de poder não no Estado como Hobbes8; mas num estado de natureza anterior, que é de plena liberdade. Liberdade de indivíduos proprietários, que criam o Estado e participam do governo9. As propostas de reforma que não observam este princípio basilar – da propriedade como instituição e substância – partem da perspectiva de que Estado e Direito são exteriores à propriedade; com isso tendem a serem conservadoras, porque o poder do Estado situa-se no lado da reação, enquanto que o proprietário está no campo da ação, em tempo real. A crise de hoje, sobretudo a ecológica, é reflexo de um novo momento da propriedade em sentido amplo: as velhas formas, jurídica e política, já não correspondem à substância. Esse descompasso entre substância e forma, confunde os eruditos do nosso tempo, que apesar do talento e da aplicação da maioria, perderam o senso de direção da força10. O método que compartilham de modo geral como paradigma enreda-os na massa falida da Modernidade, e eles pretendem solucionar a obsolescência jurídica com paliativos da velha ordem superada. Como se fosse possível tutelar o coletivo com instrumentos do CPC e sem rever o arcabouço institucional. A realidade é que se está a manter uma ordem jurídica que se tornou inadequada à tutela dos interesses fundamentais da civilização e da espécie humana. A própria ONU11 anuncia a iminência da tragédia global por obra do homem12; porém, não cuida da causa primeira que é a inaptidão do Estado autocrático, do qual ela mesma é a grande 8 HOBBES, Thomas. Leviatã: ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de Rosina D‟Angina. São Paulo: Ícone, 2000. 9 PEREIRA, Ascísio dos Reis. A moral liberal como processo educativo no pensamento político de John Locke. In: CANDIDO, Celso; CARBONARA, Vanderlei. Filosofia e ensino: um diálogo transdisciplinar. Ijuí: Unijuí, 2004, p. 153-167. Disponível também em: www.espaçoacademico.com.br. Acesso em 20 abr. 2009. 10 Parafraseia-se SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Metodologia jurídica. Tradução de Heloísa da Graça Buratti. São Paulo: Rideel, 2005, p. 15. 11 Os alertas são do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática – IPCC posto em ação pela ONU em 1988. 12 Sobre o efeito estufa, ver BRASIL, Ministério da Ciência e Tecnologia. Efeito estufa e a convenção sobre a mudança do clima. Disponível em www.dominiopublico.gov.br, acesso em 30 de jan. 2008. O excesso de emissões antrópicas, especialmente de dióxido de carbono, mas também de mano e óxido nitroso, podem provocar mudança permanente no clima, imprimindo novos padrões no regime de ventos, pluviosidade e circulação dos oceanos – com possíveis conseqüências catastróficas para a humanidade, como o aumento do nível do mar. Nos últimos 70 anos registrou-se aumento médio de 0,6º C na temperatura da superfície do globo. 45 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I voz. Inaptidão de um sistema que não tem solução para a crise do modelo de desenvolvimento, que esgotou um Planeta finito. Um sistema cujo conceito de propriedade é superado e exige nova conformação das instituições políticas e jurídicas; que resgate o coletivo como condição essencial do equilíbrio proprietário. Porém, não significa romper com o princípio da corporiedade do Código Civil; e sim resgatar o arcabouço conceitual e estrutural da propriedade como instituto. Não é o caso de discutir se a propriedade é um fenômeno construído, histórico – na expressão de Nietzsche13 contra-natural – ou se é eterno, fazendo parte da natureza humana. Ela incorpora e institucionaliza relação de luta, de poder, de dominação e subserviência. Não é campo neutro, nem objeto estático. O grande desafio do Direito pós-moderno, em sua função mediadora, consiste, basicamente, em definir-lhe estrutura e conceito em que o Coletivo tenha o mesmo peso dado ao Individual. Nesta tarefa, o sistema romano de propriedade é contraponto de inspiração insuperável para o raciocínio pós-moderno; porque a propriedade romana era exercida sob o manto da democracia participativa, e não representativa. O público-privado romano é diferente do desenho da Modernidade, justamente por isso, porque funciona sem a mediação de um ente como o Estado Moderno, separado deles. O dominium romano significa submissão de pessoas e bens ao pater famílias, não a um proprietário individual, e as relações se travam em foros de um condomínio de romanos paterfamilias, que partilham o coletivo no plano religioso, jurídico e político. 13 FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de melo Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1999, texto que reproduz um ciclo de conferências realizado no Rio de Janeiro em maio de 1973, usou do pensamento de Nietzsche para questionar os esteios do pensamento ocidental, destacando a dimensão histórica do sujeito do conhecimento e da própria verdade; não teriam origem metafísica (Ursprung), mas seriam coisas inventadas, fabricadas (Erfindung). O conhecimento, no fundo, não faz parte da natureza humana. É a luta, o combate, o resultado do combate e consequentemente o risco e o acaso que vão dar lugar ao conhecimento. O conhecimento não é instintivo é contra-instintivo, assim como ele não é natural, é contra-natural (p. 17). E em seguida: Eis a grande ruptura com o que havia sido tradição da filosofia ocidental, quando até mesmo Kant foi o primeiro a dizer explicitamente que as condições de experiência e do objeto da experiência eram idênticos. Nietzsche pensa ao contrário, que entre conhecimento e mundo a conhecer há tanta diferença quanto entre conhecimento e natureza humana (p. 17 e 18). Quando Nietzsche estabelece ruptura ente conhecimento e coisas (no sentido de que não há harmonia prévia entre o conhecimento e as coisas a conhecer) e ruptura entre conhecimento e instintos (no sentido de que o conhecimento é resultado dos instintos, mas não é nem deriva diretamente dos instintos), está afirmando, por via de conseqüência, que a propriedade – como conhecimento aplicado que é, também é contra-natural. É também relação de poder, de dominação e de subserviência, historicamente construída. 46 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Engels14 é um caso clássico de leitura moderna equivocada do modelo romano. O brilhante parceiro de Marx não consegue visualizar o coletivo não-estatal de Roma e adota como método contrapor: à propriedade a tribo primitiva, de constituição gentílica e base familiar. O seu viés é de extinção da propriedade e perecimento de um Estado de classes; e com esses olhos examina a realidade romana, na qual identifica, por sua conta, a existência de: súditos do Estado; terras conquistadas pelo Estado; autêntica constituição de Estado15, noções a que é levado pelo direcionamento teleológico do seu método, que persegue a eliminação da luta de classes.16 Sob esse ângulo de visão e de construção teórica, Engels está vendo Roma com os olhos da Modernidade e seu paradigma17; como se tivesse tido, como forma de governo, uma república representativa e autocrática; como se não tivesse sido a Roma da civitas – dos romanos com comitia, magistraturas18 e senado – e sim a república de Roma, pessoa jurídica separada dos cidadãos, manipulada por uma classe dominante. Nessa linha, seu direcionamento não é no rumo de um coletivo de equilíbrio, de res populi, a ser restabelecido sob as garantias do Estado Democrático de Direito pósmoderno; e sim de um coletivo totalitário e utópico. O prejuízo desse tipo de leitura das instituições romanas clássicas – como Estado Antigo – é inevitável: perde-se o elemento de equilíbrio entre particular-público- 14 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de Leandro Konder. 14 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997 é um clássico nessa abordagem. A tribo teria entrado em colapso às primeiras manifestações do trabalho, da acumulação, da vida econômica ativa, até o salto dialético vivenciado pela Grécia Antiga, onde se manifesta pela primeira vez o embrião da Sociedade estatal, com leis territoriais, poder de polícia separado dos habitantes e nas mãos de um ente abstrato, que seria o Estado. 15 ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 143 e 145. Referindo-se a latinos e peregrinos que viviam em Roma: Todos estes novos súditos do Estado (deixando e lado a questão dos ‗clientes‘) viviam fora das antigas gens, cúrias e tribos [omissis]. Mais adiante: Não podiam [omisis] beneficiar-se das terras conquistadas pelo Estado. E na p. 145: Uma nova constituição a substituiu, uma autêntica constituição de Estado [omissis] A força pública [omissis] também, se opunha à classe dita proletária, excluída do serviço militar e impedida de usar armas. Como pode o autor utilizar categorias modernas em tal contexto, como se as realidades fossem simétricas? 16 MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de lutas de classes. 17 Marx, evidentemente, comunga dessa idéia, fazendo alusão a: A auto-importância da esfera política – o engano do Estado Antigo. MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de José Carlos Bruni; Marco Aurélio Nogueira. 10 ed. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 130. 18 Basta observar como os plebeus posicionaram-se na seccessio plebis: a criação do tribunato colocou-os no plano de igualdade (conferindo-lhes direito de veto e instância de comitia plebis), sem os transformar em patrícios. A excelência das instituições reside nisso: estarem à altura dos conflitos de sua época, resolvê-los e não eliminá-los. Nessa linha é esclarecedor o texto de TAFARO, Sebastiano. La herencia de los tribuni plebis. Traducido por Carla Amans. Buenos Aires [2008?], digit. 47 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I coletivo. Se a modernidade apropriou-se do coletivo em favor do particular, a PósModernidade não pode ir para o outro extremo: anular o particular num coletivo de feição estatal. Pois tal tese chega, por linha transversa e ironicamente, ao mesmo resultado que combate, porque deságua num coletivo autocrático, com a mesma feição da Modernidade. A Pós-Modernidade deverá instituir um sistema estruturado na tríplice dimensão que Roma ensinou: de Coletivo x Privado x Estatal19. A dimensão de república participativa que Roma vivenciou e que a PósModernidade retoma no plano constitucional, repõe a questão a ser dialeticamente sintetizada: não eleminar a velha propriedade e o velho Estado, mas resgatá-los em plano superior, redefinindo-os. Reestruturá-los em nova sinergia como elementos da nova ordem social. Nova ordem que irá fundamentar e legitimar a propriedade na justiça do mérito, de capital e trabalho, em novo suum cuique tribuere20, baseado no equilíbrio entre as esferas distintas: do privado (indivíduo), do público (Estado) e do coletivo (Sociedade). Mirando-se no espelho da antiguidade, recompor a face. 2. Propriedade comum e especial: dois perfis e um paradigma a construir O constitucionalismo brasileiro contemporâneo consagra dois sistemas, que se fundem na Pós-Modernidade; o da propriedade comum, que possui princípios e regras próprias e representa a grande conquista moderna da liberdade individual perante o Estado, o público, e os demais indivíduos; e o outro, materializado nas propriedades 19 A antiguidade romana plasma nas instituições políticas os dois elementos fundamentais: o bem do indivíduo e o bem do todo, naquilo que o bem social é condição do bem de cada qual. O bem, visto como valor social, é o que chamamos propriamente de justo, e constitui o valor fundante do Direito. REALE, Miguel. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, p. 209. A modernidade encarna e inclui, neste plano fundamental, um terceiro elemento, que é o Estado separado dos indivíduos; confere autonomia ao espaço de imperium, que era conferido às magistraturas romanas. Por isso, quando Marx e Engels falam de Estado Antigo, equiparado em função ao Estado Moderno (da e na luta de classes), laboram num método incompatível com a proposta de resgate do coletivo (pós-moderno) deste livro. 20 Dos três princípios de Ulpiano (D. 1,1,10,1 e I, 1,1,3) – viver honestamente (honeste vivere), não lesar outrem (alterum non laedere) e dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere) – este último tem uma tradução, modernamente, que pode não condizer com o exato sentido original dos romanos. Tribuo, tribuere, como verbo transitivo, tem sentido próprio de dividir entre as tribos; daí, na língua comum, distribuir, repartir, dividir; de onde: atribuir, conceder, dar, destinar, imputar. Como intransitivo: ter consideração ou condescendência para com. FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 4 ed. Brasília: Ministério da Educação e Cultura, 1967, p. 1018. Dar a cada um o que lhe pertence está no plano individualista moderno; atribui a cada um o que lhe é devido por direito objetivo. E se a idéia for a de imputar direitos coletivos? Direitos sociais fundamentais? RAMOS, J. Arias. Derecho romano: parte general, derechos reales, p. 29, por exemplo, critica tais princípios pela sua vagueza e a imprecisão de limites entre Direito e Moral. Será que ele tem razão nesse lugar comum (próprio da modernidade)? 48 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I especiais, que se pautam por outras normas de exercício e tutela, orientadas pelo coletivo e pela função social. As propriedades de uma e de outra categoria possuem titular, objeto, exercício e tutela diferenciados, mas convivem em harmonia, num sistema, assim, muito mais complexo do que o romano. 2.1 A Propriedade comum A propriedade comum é a de caráter dominial, regida pelo Código Civil (art. 1228), que se contrapõe como sistema, tradicionalmente, à propriedade pública, regida pelo direito administrativo. Estrutura-se e classifica-se pelas categorias tradicionais: móvel e imóvel, plena e restrita, perpétua e resolúvel. É avessa ao condomínio, que tolera como uma situação transitória; tem na posse um instrumento avançado de defesa (interditos) e nas ações petitórias (reivindicatória, negatória) o instrumento adequado de tutela; e desdobra-se em direitos reais limitados de gozo (que se tutelam por interditos e ações confessórias) e de garantia (créditos privilegiados). Atua reduzindo o universo subjetivo aos dois interlocutores: indivíduo proprietário e Estado pessoa. No plano do objeto, restringe os bens jurídicos às duas categorias: públicos e privados. À base desses elementos, o direito subjetivo da dominialidade submete os objetos corpóreos à lógica proprietária, em substância, essência e erga omnes, com as limitações da lei; ou seja, outorgando ao Direito a função limitada de forma, a serviço da liberdade que nasce do ter, e que privilegia as relações econômicas. Por isso, o saber jurídico da Modernidade tende a ser assunto de leis e de especialistas, a operar por subsistemas que funcionam por subsunção. Tende-se a reduzir o Direito à lei, ao monismo estatal, dando plena liberdade ao proprietário, que pode fazer tudo o que a lei não proíbe, pois o Direito diz, apenas, como e não o que fazer. Nesse diapasão, a jurisdição é monopólio estatal, que substituindo as partes diz o direito declarando quem tem razão, sem preocupação, em termos de sistema, com o resultado efetivo do processo. Vale dizer, um sistema que abstrai da alternativa que não seja autocrática; ao contrário, o paradigma costuma ver com desconfiança qualquer proposta participativa, que transfira às partes a soberania da decisão. Imperando hegemonicamente esse modelo da Propriedade Moderna, o Estado tende a desautorizar qualquer centro de poder que fuja desse padrão codificado; 49 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I monopolizando a produção jurídica, procurou sempre reduzir as formas de propriedade privada a uma só, a individual. Essa tendência pode ser observada em algumas formas arcaicas de propriedade coletiva, que resistiram ao binômio de estatismo e individualismo proprietário, tanto em Portugal com os baldios, como em Espanha com os bienes comunales, em França com os biens seccionaux, e em Itália com os beni ou demani civici, para falar em alguns casos da chamada dominialidade cívica.21 A dominialidade proprietária individualista – como se pode observar – em muitos casos invadiu esses espaços, como ainda faz em terras indígenas, nas reservas naturais e outras do jaez no Brasil; porém, nos dias atuais o absolutismo jurídico vem sendo questionado e relativizado por diversos modelos novos de auto-regulação, os quais refletem o caráter pluralístico das atuais sociedades nos textos constitucionais (como em Portugal 1976 e Espanha 1978) e no plano infraconstitucional, como é o caso da lei francesa de 1985, só para dar alguns exemplos estrangeiros.22 É o reflexo de uma nova realidade, que o constitucionalismo não criou, mas passa a respaldar. No Brasil, o Código de 1916 trazia, no capítulo do condomínio, uma seção dedicada ao compáscuo (art. 646)23, mas que não foi mantida pelo Código atual de 2002. Em contrapartida, a CRFB de 1988 e a legislação infraconstitucional trazem novas espécies de propriedade como a quilombola e as Reservas Extrativistas, assim como dão foro participativo à definição pluralista dos conteúdos da propriedade urbana, mediante o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor. É esse fenômeno, das propriedades especiais, que agora merece enfoque; não sem antes repetir que elas surgem no bojo de um constitucionalismo que transforma os direitos patrimoniais. 3 As propriedades especiais Não há tradição em dominialidade cívica no Brasil, porém, o fenômeno das novas propriedades especiais, em sua diversidade e pluralidade de formas, é uma 21 NABAIS, José Casalta. Alguns perfis da propriedade coletiva nos países do Civil Law. Coimbra: Coimbra, [1998], p. 224. 22 NABAIS, José Casalta. Alguns perfis da propriedade coletiva nos países do Civil Law. Coimbra: Coimbra, [1998], p. 226. 23 Dispunha o art. 646 do CC/16: Se o compáscuo em prédios particulares for estabelecido por servidão, reger-se-á pelas normas desta. Se não, observar-se-á, no que lhe for aplicável, o disposto neste capítulo, caso outra coisa não estipule o título de onde resulte a comunhão de pastos. Parágrafo único. O compáscuo em terrenos baldios e públicos regular-se-ão pelo disposto na legislação municipal. 50 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I realidade dos tempos atuais, que a doutrina, de um modo geral, não tem destacado. Elas rompem com a auto-referencialidade da propriedade moderna codificada e seu sistema político institucional, relativizando os seus elementos, o que não significa a sua eliminação, como destaca Rodotá24: a propriedade, com sua lógica sempre será o único, verdadeiro princípio e valor constitutivo de todo o sistema. Não só na Modernidade, mas também na Pós-Modernidade. Os valores proprietários permanecem. A propriedade especial relativiza o indivíduo como interlocutor, mediante titularidades coletivas, como ocorre, por exemplo, na propriedade quilombola. Relativiza também o objeto da propriedade, que antes se restringia aos bens corpóreos, e agora pode abranger verdadeiras entidades ou complexos de situações jurídicas partilhadas coletivamente, inclusive com órgãos públicos ou interesses privados concorrentes, como se observa na reserva extrativista. É a relativização do próprio conteúdo do direito: numa o uso, gozo e disposição à mercê do voluntarismo individualista, e na outra a dependência de procedimentos e de decisões compartilhadas. Em outras palavras e de outro ângulo, é a substituição do monismo jurídico pelo pluralismo de fontes, sob a égide dos instrumentos constitucionais e das leis de natureza participativa e de contratos coletivos. O perfil legal da propriedade especial inclui: origem constitucional, lei(s) especial(is), ente estatal de apoio e mediação (INCRA, FUNAI, ou Agência reguladora). Importa autonomia e novas classificações jurídicas de bens, incluindo, além do público e do privado o bem coletivo (ambiente, cultura), sob nova taxonomia. E às vezes se dirá entidade no lugar de bem; investidura ao invés de modo de aquisição e titularidade em vez de domínio. Essas modificações de reconstituição de todo o paradigma da propriedade (em sentido amplo), afetam outros institutos jurídicos de direito privado como o direito de vizinhança; as interferências não se darão, apenas, entre imóveis, mas entre propriedades em sentido amplo, impondo harmonização e compatibilidade com interesses de dimensões não imaginadas pela propriedade moderna, como o equilíbrio ecológico, por exemplo. Como diz Rodotá25: compatibilidade entre decisões individuais 24 RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla proprietà privada. Bolonha: Il Mulino, 1990, p. 21. No original, relativização perché la proprietà, com la sua lógica, sarebbe l‘unico, vero principio e valore costitutivo dell‘intero sistema. 25 RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla proprietà privada. Bolonha: Il Mulino, 1990, p. 21. No original: Compatibilità tra decisioni individuali ed altri interessi [omissis]... come parte di um 51 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I e outros interesses [omissis]... como parte de um patrimônio comum (da coletividade, de um povo, da humanidade inteira) ou como direitos das gerações futuras. 4. Propriedades especiais: classificação Esse rompimento do paradigma de la proprieté, abre horizonte à pluralidade de formas proprietárias, e será tarefa da doutrina criar as classificações dessas novas propriedades que se debuxam no horizonte da Pós-Modernidade. Podem ser identificadas entre outras: as propriedades especiais particulares, as público-privadas e as propriedades especiais coletivas, sendo que estas últimas podem ser patrimoniais ou étnicas e extra-patrimoniais. A propriedade especial particular é a que tem dimensão própria26 de função social, como a urbana e a rural, ou regime jurídico diferenciado, como a intelectual, e a público-privada, que é empresária. 4.1. Propriedades especiais particulares A propriedade urbana é a destinada à moradia, ao comércio e à indústria, regra geral situada na zona urbana, ou mesmo na zona rural 27. É propriedade comum quanto ao objeto (bens corpóreos imóveis); quanto ao regime jurídico (de direito real, a título singular ou sob condomínio); quanto à aquisição (os modos previstos no Código Civil) e quanto às limitações (perante regulamentos administrativos, direito de vizinhança e outros). Porém, tem um grande diferencial que é a função social. Função social que é cumprida quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (CRFB, art. 182, § 2º). patrimonio comune (di collettività, di um popolo, dell‘intera umanità) o come diritti delle generazioni future. 26 O que não quer dizer não estejam as demais propriedades sob a égide do princípio da função social; a alusão é ao registro expresso da CRFB nos art. 182, §2º e 186. 27 Há dois critérios para distinguir urbano de rural. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função ambiental da propriedade rural. São Paulo: LTr,1999, p. 59-64. FERREIRA, Pinto. Curso de direito agrário. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 171-173. O primeiro é o finalístico ou da destinação, do art. 4º da lei n. 8629/93 e segundo o topográfico ou geográfico do Código Tributário Nacional, Lei n. 5.172/66, art. 29 e 32, §§ 1º e 2º. Ao contrário da autora (Borges) e da voz corrente da doutrina, entende-se que um não exclui o outro, aplicando-se o que for adequado ao caso concreto. Por exemplo, uma área rural favelada pode ser objeto de usucapião coletiva, já que pela destinação passou, com o tempo e a posse, a urbana. Quem adota o critério geográfico seria obrigado a negar a usucapião, o que não parece correto nem justo. 52 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I As diretrizes gerais desse novo perfil da propriedade urbana estão previstas no Estatuto da Cidade, lei 10.257/2001, além das leis de parcelamento do solo urbano (n. 6766/1979) e das incorporações (n. 4.591/1964), e numa lei municipal participativa que é o plano diretor, na alçada do povo constitucional. A discussão, a aprovação, as modificações, as emendas devem ser debatidas com a comunidade municipal mediante os instrumentos previstos, como audiências públicas, plebiscitos e referendos; a Câmara de Vereadores, no final, aprova o que foi decidido na discussão coletiva, à semelhança da auctoritas patrum do Senado Romano. Por isso é propriedade especial28. Seu conteúdo já não é definido exclusivamente pelo regime jurídico do direito comum codificado, como reza o paradigma da propriedade moderna; é a comunidade municipal, mediante lei e instrumentos participativos e democráticos, ou seja, pelo pluralismo jurídico, quem define o conteúdo específico de uso e gozo do solo na dimensão social e também particular, por conseqüência. Pluralismo que expressa conciliação de todos os interesses comunitários: particulares, públicos, ambientais, coletivos – e que positivados no plano diretor vão definir o exato conteúdo de direito de cada unidade e o modelo de cidade. A propriedade especial rural assemelha-se à categoria antitética da propriedade urbana no que tange à dimensão de direito comum; mas tem figurino distinto quanto ao regime jurídico e à função social29. Pelo art. 4º da lei 8629/93, rural é o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou agroindustrial30. Pelo critério topográfico31 ou geográfico do Código Tributário Nacional, Lei 5.172/66, art. 29 e 32 §§ 1º e 2º, é o imóvel que se situa fora do perímetro urbano, tem cadastro rural32 e recolhe imposto territorial rural (Lei 9393/96). 28 A sua unidade é o lote urbano, que não representa um terreno isolado, porém, uma série de equipamentos e serviços públicos agregados (Lei 6.766/79, art. 2º, § 4º e § 5º), de acordo com as diretrizes de função social da cidade (Estatuto da Cidade, art. 2º). 29 FERREIRA, Pinto. Curso de direito agrário. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 3. A propriedade imóvel rural toma novo rumo e passa a constituir novo ramo do direito, o direito agrário, desde as diretivas do I Congresso Agrário de 1921, realizado na Itália. 30 A lei 8.171/91, que dispõe sobre política agrícola, em seu artigo 1º, juntamente com os fundamentos, objetivos, competências institucionais, ações e instrumentos da referida política, inclui a atividade pesqueira como atividade agrícola. 31 O art. 49 da lei n. 9985/2000, a propósito, dispõe: A área de uma unidade de conservação do Grupo de Proteção Integral é considerada zona rural, para os efeitos legais. Parágrafo único. A zona de amortecimento das unidades de conservação de que trata este artigo, uma vez definida formalmente, não pode ser transformada em zona urbana. 32 Lei 4947/66 e 10.267/01. 53 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Esse imóvel cumpre a função social (art. 186 da CRFB), quando tem aproveitamento racional e adequado, respeita o meio ambiente e as disposições que regulam as relações de trabalho e favorecem o bem-estar de proprietários e trabalhadores. As diretrizes constam do Estatuto da Terra (n. 4.504/1964) e da lei 8.629/93. Sua tributação é orientada aos fins constitucionais (lei 9.393/96 sobre Imposto Territorial Rural – ITR), e à política agrícola (leis 8.171/91 e 8.174/91) preconizando: propriedade familiar, crédito, renovação tecnológica, assistência técnica e extensão rural, seguro agrícola, cooperativismo, irrigação, eletrificação rural. Como o plano diretor abrange todo o território do município, a propriedade rural também apresenta uma dimensão participativa. Assim, a solução local das questões agrárias pode e deve ser discutida nesse fórum coletivo, que define a função social e os níveis de utilização e otimização do território municipal. A União Federal e o Parlamento estabelecem as diretrizes da propriedade rural e da reforma agrária e os órgãos específicos (como o INCRA) cuidam de seu cumprimento; mas é na ágora local33 que se definem, pelos instrumentos constitucionais, do plano diretor e de leis especiais34, a extensão e o conteúdo de função social dos imóveis rurais. Com esse viés, a questão agrária pós-moderna muda de rumo, atrela-se a uma nova idéia de desenvolvimento e defronta-se com novos horizontes de propriedades especiais. A lei 9985/2000, por exemplo, consagra uma variante de propriedade rural, que é a Reserva Particular do Patrimônio Natural – RPPN35. Por iniciativa do proprietário, o imóvel é total ou parcialmente incluído no Sistema Nacional de Unidades de Conservação – SNUC, com o objetivo de conservar a diversidade biológica. Isso se dá mediante Termo de Compromisso firmado perante as autoridades ambientais (se houver interesse público), averbado no Registro de Imóveis. É um modelo especial de propriedade, em que o proprietário, espontaneamente, abre mão das prerrogativas de direito subjetivo comum particular para conferir ao imóvel uma finalidade de interesse social ou coletivo. As RPPNs podem ter espectros 33 Nessa arena coletiva estarão com a comunidade não só as autoridades locais, mas as autoridades estaduais e federais, especialmente do INCRA. Participação é processo inclusivo, deliberativo e de consenso de todas as esferas da Sociedade e do Estado. 34 O art. 99 da lei n. 8.171/91, por exemplo, obriga o proprietário rural a recompor a Floresta Legal do Código Florestal (lei 4.771/65, com a redação da lei 7.803/89) em pelo menos 30 avos da área total por ano. 35 É o art. 21 da lei 9985/2000 (regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I,II, III e VII da Constituição Federal, institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências), regulamentado pelo Dec. 5746/2006. 54 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I variados, sendo que algumas não têm objetivos econômicos e outras podem voltar-se à visitação, com objetivos turísticos, recreativos e educacionais ou à pesquisa científica (art. 21, § 2º). A exploração dos recursos naturais não se exclui desse modelo, mas depende de um Plano de Manejo36 (ou de proteção e de gestão da Unidade) elaborado com as autoridades ambientais e outras parcerias. Essas duas categorias de propriedade especial privada – rural e urbana – redefinidas pela ordem constitucional de 1988 demonstram que o individualismo jurídico e o voluntarismo estatal que presidiram as codificações deram lugar à funcionalização do direito de propriedade, perante os desafios da sustentabilidade e da solidariedade social. À dicotomia público/privado acrescenta-se hoje um terceiro elemento, que é a dimensão do coletivo, estampada nos direitos sociais fundamentais. A própria reforma agrária deve ser implantada sob a égide das propriedades especiais e executada sob nova orientação de exercício e tutela. A propriedade intelectual37 é garantida pelo art. 5º, XXVII a XXIX da CRFB, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País, e pauta-se por duas leis básicas, n. 9.610/1998 (direito autoral) e n. 9279/96 (propriedade industrial)38. Aparta-se do direito comum pelo objeto, que é imaterial, reunindo no gênero categorias como direitos autorais, marcas, indicações geográficas, desenhos industriais, patentes, topografia de circuitos integrados, proteção de informação confidencial, controle de práticas de concorrência desleal, tudo sob influência do direito internacional39, e sob a égide da função social. No plano do objeto, ela opõe direitos da personalidade e direitos morais a direitos patrimoniais, e na dimensão de função social coloca em confronto o interesse do titular com os interesses gerais da cultura e da ciência e de comunidades étnicas – como 36 FERREIRA, Lourdes M. et al. Roteiro metodológico para elaboração de Plano de Manejo para Reservas Particulares do Patrimônio Natural. Brasília: IBAMA, 2004. Disponível em www.ibama.gov.br em pdf e html. Acesso em 25 de fev. de 2008. 37 RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1999, v. 2, p. 462. Todo o produto do engenho humano pertence ao seu autor, mas tal pertença só por analogia se pode chamar propriedade e não identificar-se com ela. Melhor é, pois, falar de direitos sobre bens imateriais [omissis]... 38 Existem outras leis no setor, como a n. 969/98 (programas de computador), 9.456/97 (cultivares), 9.615/98 (desporto), 8.974/95 (engenharia genética). 39 O Decreto 1.355/1994 promulga a Ata Final que incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de Negociações Comerciais Multilaterais do GATT (OMC), Trade Related Aspects of Intelectual Property Rights – TRIPS, em português Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados com o Comércio – ADPIC, cujo objeto de proteção engloba essas categorias de direitos. 55 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I no caso de conhecimentos tradicionais associados40 (MP 2186/2001). Seu regime jurídico é de legislação especializada, tutela específica pelo direito interno e por entidades supra-estatais41 e princípios próprios. Esses princípios emanam da órbita internacional42 e da órbita nacional43, como especialidade da matéria, proteção da forma estética original, exclusividade da exploração. A propriedade intelectual, portanto, é uma propriedade especial, cuja dimensão de função social deve ser examinada em contexto próprio, matéria que não se esgota aqui. É um dos casos que ilustram muito bem o conceito de propriedade em sentido amplo; que não se pauta pelo paradigma estreito da Modernidade, mas pelo arcabouço constitucional da República participativa. Nesse diapasão, enlaça-se com a territorialidade, a condominialidade, os conhecimentos coletivos associados, e constitui as propriedades étnicas; sem falar que na sua conformação mais tradicional, sofre ampla transformação em face do coletivo e da função social. 4.2 A propriedade especial público privada A propriedade especial público privada é fenômeno mais recente. A Propriedade Comum do Código Civil – que assegura como paradigma a plenitude de direito subjetivo particular sobre os bens da natureza – tem no reverso a réplica antitética da propriedade pública, regida pelo Direito Administrativo: nela o Estado exerce sobre os bens públicos uma função, vinculada à lei. Com o poder de polícia protege os bens de uso comum do povo, serve-se dos bens de uso especial ou do patrimônio administrativo como instrumento de seus serviços e dispõe dos bens 40 A MP foi editada sob n. 2052/2000, sofrendo alterações, até a MP 2.186-16, regulamentada pelo Dec. 3.945/2001, modificado pelo Dec. 4.946/2003. Essa legislação confere Direito Subjetivo em favor de uma comunidade, sobre informações ou práticas locais, individuais ou coletivas, com valor real ou potencial, associadas ao patrimônio gennético. Patrimônio genético são informações de origem genética de espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, obtidos de organismos vivos ou mortos. 41 A Organização Mundial do Comércio preocupa-se com os aspectos comerciais internacionais da propriedade intelectual, enquanto que a Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI www.wipo.int , International Conference on Intelectual Property – WIPO, ocupa-se da harmonização e guarda e administração dos tratados dos tratados.A União Internacional para Proteção das Obtenções de Variedades Vegetais – UPOV www.upov.org.es dedica-se à proteção internacional de cultivares. 42 Princípios internacionais seriam: tratamento nacional e da nação mais favorecida, proteção automática e proteção independente. 43 Princípios da órbita nacional seriam: especialidade da matéria, proteção da forma estética original, exclusividade da exploração, limitabilidade no tempo, restritividade da interpretação, facultatividade do registro e irrenunciabilidade do direito moral. 56 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I dominicais nas suas necessidades44. A propriedade Especial Público Privada tem outro escopo. Ela surge com o desenvolvimento econômico45, tendo por objeto bens nacionais, que são explorados por empresas estatais ou privadas, sob concessão ou autorização da União Federal, a teor dos art. 20, V, VIII, IX, 176 e parágrafos e 177, incisos e parágrafos da CRFB. É o caso de jazidas de petróleo46, gás natural, hidrocarbonetos fluidos e demais recursos minerais e potenciais de energia hidráulica, como propriedade distinta do solo:...mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional, por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sede e administração no País, na forma da lei (CRFB, art. 176, § 1º). No plano infraconstitucional, a exploração desse potencial de propriedade se dá na forma de legislação específica de cada setor, mediante regime empresarial47, como por exemplo: DL 227/67 (Código de Minas)48; Lei 7.781/89 (minerais nucleares e derivados); lei 9.478/97 (política energética nacional e atividades relativas ao monopólio do petróleo)49; lei 8901/94 (extração seletiva de madeira em florestas 44 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24 ed. São Paulo: RT, 1999, p.461. Opta-se por este autor, em nome de todos os outros, em face de sua popularidade até o passado mais recente. Em verdade, essa classificação reflete a do art. 66 do Código Civil de 1916. MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 727, adota o mesmo critério e assim define bem público: Bens públicos são todos os bens que pertencem às pessoas jurídicas de Direito Público, isto é, União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias e fundações de Direito Público (estas últimas, aliás, não passam de autarquias designadas pela base estrutural que possuem), bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à prestação de um serviço público. O conjunto de bens públicos forma o domínio público, que inclui tanto os bens imóveis como móveis. 45 No início da República o regime jurídico era o do art. 526 do CC/16, ou seja, as riquezas pertenciam ao dono do solo. A Constituição Federal de 1934 (art. 118 e 119) passou a considerar determinadas riquezas – jazidas, quedas d‟água – como propriedade distinta do solo para o efeito de exploração ou aproveitamento industrial, na dependência de autorização ou concessão federal, na forma da lei. A reforma começara pela EC de 03 de setembro de 1926, que suprimiu do art. 34 o n. 26, da Constituição de 1891: Art. 34 - Compete privativamente ao Congresso Nacional: ...29 – Legislar sobre terras e minas de propriedade da União. Permaneceu, assim, apenas o art. 64 da CF/1891, dispunha, até 1934, o seguinte: Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas em seus respectivos territórios... 46 Petróleo, segundo o art. 6º, I, da Lei n. 9.478/97, é: todo e qualquer hidrocarboneto líquido em seu estado natural, a exemplo do óleo cru e condensado. 47 O art. 177, § 1º da CRFB, com a redação da EC 9/95, autoriza a União a contratar com empresas estatais (como a Petrobrás) ou privadas, a realização das atividades industriais pertinentes. 48 O DL 227/67, com a redação da lei 8901/94, define empresa de mineração no art. 79. 49 Em agosto de 2009 seria apresentado o marco regulatório da exploração do petróleo do pré-sal, criando o Sistema de Partilha dos contratos de exploração, sem prejuízo do sistema dos contratos de Concessão tradcional. 57 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I públicas)50; (lei 11.284/2006 (participação do proprietário do solo nos resultadas da lavra). Já as águas subterrâneas pertencem ao Estado Federado, na forma do art. 21, XIX da CRFB e da lei 9.433/97 (institui a política nacional de recursos hídricos). O Código Civil/02 passou a contemplar expressamente a propriedade das riquezas nacionais do subsolo por intermediação da União, conforme reza o art. 1.473, V, combinado com o art. 1.230; permitindo, inclusive, que ela sirva de objeto de hipoteca, independentemente do solo. É evidente que isso não a retira da esfera e dos desígnios constitucionais da ordem econômica e social, especialmente da dimensão coletiva e dos deveres perante o ambiente. Trata-se de uma propriedade especial, cuja dimensão público/privada e de função social, confere-lhe uma condição de exercício que não pode ser confundida com a da empresa privada comum. O caráter especial dessa propriedade decorre do objeto, da investidura pública e do regime de utilização por leis próprias, mediante empresas privadas ou públicas51, sendo que estas últimas têm previsão expressa de função social no art. 173, § 1º e inciso I da CRFB, devendo funcionar sob fiscalização do Estado e da Sociedade. Nesse campo atuam as chamadas Agências Reguladoras, tais como a Agência Nacional da Energia Elétrica-ANEEL, Agência Nacional de Petróleo-ANP, Agência Nacional de Telecomunicações-ANATEL, que correspondem mutatis mutandis à FUNAI na propriedade indígena e ao INCRA na propriedade agrária. 4.3 Propriedades especiais coletivas: patrimoniais (étnicas) e extrapatrimoniais (coletivas propriamente ditas) A segunda categoria de propriedade especial é a coletiva, que no plano patrimonial é a propriedade étnica. Destacam-se aqui três espécies: propriedade indígena, propriedade quilombola e propriedade de reservas extrativistas por populações tradicionais (Lei 9985/2000). A CRFB estabelece as linhas fundamentais do direito étnico, nos artigos 215 e 216, e bem assim, cria modelos especiais de propriedade, que 50 As florestas públicas também podem ser exploradas de forma sustentável em outros regimes que não esse de empresa privada. São as modalidades da Lei 9985/2000 51 Nesse âmbito a Lei Geral das Agências Reguladoras n. 9.986/2000; a lei 8987/1995, que dispõe sobre o regime de concessão de permissão de serviços públicos previstos no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências; e a lei 9.074/1995, que estabelece normas para outorga e prorrogações das concessões e permissões de serviços públicos, e dá outras providências www.planalto.gov.br,. 58 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I fogem tanto do padrão do Código Civil quanto do figurino administrativo da propriedade pública. Não se trata de apropriação de terra por indivíduo ou pluralidade de sujeitos privados, como na usucapião urbana coletiva, por exemplo. Trata-se de propriedade diferenciada, especial, que importa reconhecimento e legitimação de uma territorialidade, histórica e antropologicamente construída, e preservada, em torno de uma identidade cultural, em torno de saberes e costumes de um grupo étnico ou local; seja de índios seja de quilombolas seja, por extensão, de comunidade de pescadores ou ribeirinhos, seringueiros, coletores de frutos. É propriedade que possui regime jurídico especial, em que não se fala em usucapião ou alienação nos moldes do direito comum, mas de outros modos de aquisição e outras formas de exercício e tutela do direito, cada uma na sua especificidade. A propriedade étnica caracteriza-se como reparatória afirmativa, em favor de negros e índios, principalmente – tão prejudicados pelo processo civilizatório nacional – os quais passam a ter assegurado o direito de reprodução sócio-cultural das tradições ancestrais; sem necessidade de se submeter ao modelo hegemônico da propriedade comum. Valorizando a diversidade étnica e a dimensão multicultural, a Lei Maior, com a propriedade étnica, enriquece a humanidade, pois garante modelos de vida comprometidos com a preservação da natureza, com a sustentabilidade e o resgate de valores milenares, que nos legaram a hegemonia do planeta. Na propriedade étnica de quilombos, por exemplo, é o grupo que se define como sujeito e é o próprio grupo que estabelece os conteúdos ou o perfil de exercício da mesma. Direito subjetivo, é coletivo pro indiviso e alia à territorialidade os conhecimentos tradicionais, de forma que o grupo étnico pode reproduzir-se segundo os seus usos, os seus costumes e a sua tradição, a despeito da lógica civilizitória que o cerca. Há, portanto, diz Rocha52, de prevalecer, para fins de pertencimento, a consciência da identidade, nos termos da Convenção 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil. Isso dito passa-se a examinar cada uma delas. 52 ROCHA, Maria E. Guimarães. O Decreto nº 4.887/2003 e a regulamentação das terras dos remanescentes das comunidades de quilombos. Disponível em www.presidencia.gov.br acesso em 22 jun. 2007. O art. 1º, al. “b”, 2 dispõe: A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente convenção. O dec. É n. 58.824/66, aprovado pelo Decreto Legislativo n. 20/65, que trata, nos art. 11-14, das terras indígenas (Convenção sobre Populações Indígenas e Tribais). 59 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A Propriedade especial coletiva indígena está prevista no art. 231 da CRFB e é regulada pela Lei n. 6.001/73 (Estatuto do Índio). Na dimensão de direito étnico possui várias Convenções internacionais ratificadas pelo Brasil 53, que lhe conformam o regime jurídico. Na esfera governamental atua a Fundação Nacional do Índio (Lei n. 5371/67)54, que estabelece e executa a política indigenista brasileira, com poderes, inclusive, de representação e assistência jurídica inerentes ao regime tutelar do índio. O art. 232 da CRFB legitima os próprios índios e suas comunidades defender seus direitos e interesses em juízo55, intervindo o Ministério Público. O Código Florestal, lei 4.771 de 1965, art. 2º, § 2º dispõe que as florestas que integram o patrimônio indígena ficam sujeitas ao regime de preservação permanente pelo só efeito da referida lei56. Já o art. 231 da CRFB reconhece aos índios57, além da sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, e bem assim as que habitam em caráter permanente, as que utilizam para suas atividades produtivas, as que são imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as que forem necessárias a sua reprodução física e cultural. É o instituto do indigenato, que permite aos índios viver em suas terras segundo seus usos, costumes e tradições – devendo, a União, demarcá-las protegendo e fazendo respeitar todos os seus bens. O regime jurídico da propriedade indígena não é de domínio propriamente dito, mas de posse permanente, com usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos; de sorte que se for necessária a sua remoção (após deliberação do Congresso Nacional), no caso de catástrofe, de epidemia que 53 Dec. n. 58.824/68 Convenção 107 da OIT tratando da propriedade indígena; Convenção 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais em países independentes - ratificada em 2002, Dec. Leg. 143/2002 v. www.socioambiental.org acesso em 23 fev. 2008 e WOLKMER, Antônio Carlos (org). Pluralidade jurídica na América Luso-Hispânica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998; e a Convenção da UNESCO sobre a diversidade das expressões culturais, Decreto Legislativo n. 485/2006, v. www.unesco.org.br acesso 23 fev. 2008. 54 O art. 1º da lei 5371/67 numera as finalidades e princípios da FUNAI, sendo de se destacar o respeito a sua (dos índios) cultura, usufruto exclusivo dos recursos naturais de suas terras e o despertar do interesse coletivo para a causa indigenista. 55 Intervindo sempre o Ministério Público. 56 A lei n. 4.771/65 é regulamentada, nos art. 44-46, pelo dec. n. 88.895/83. 57 O art. 3º do Estatuto do Índio, Lei 6001/73, define índio como todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional; comunica de indígena ou grupo tribal é o conjunto de família ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento, quer em contatos intermitentes ou permanentes com outros setores da comunhão nacional, sem, contudo, estarem neles integrados. O parágrafo único do art. 4º do Código Civil estabelece que a capacidade dos índios será regulada por legislação especial. 60 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I ponha em risco a sua população ou de interesse da soberania do país, o retorno será imediato, tão logo tenha cessado o risco ou a causa do afastamento. Em compensação, à diferença do art. 176 da CRFB, as riquezas do subsolo e os potenciais de energia hidráulica, nas terras indígenas, não pertencem à União, e só podem ser exploradas com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, que têm assegurada participação nos resultados da lavra (art. 231, § 3º). Não tem sido tranqüila a questão da demarcação das terras indígenas (Dec. 1775/1996), em face de conflitos e pretensões de não-índios, como se observa, especialmente, no caso da Reserva Raposa Serra do Sol, que começou em 1919, foi realizada em 1993, homologada em 2007 e suspensa em 2008 até 2009 pelo STF58. A Propriedade quilombola, instituída no ADCT da CRFB/88, art. 68 c/c art. 215 e 216 da CF e Dec. 4.887/2003, é reconhecida aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando tais terras. Conforme o Dec. 4.887/2003, art. 2º, consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. É propriedade coletiva, que inclui direitos culturais, cujas manifestações devem ser protegidas pelo Estado. Os quilombos incluem-se na categoria de comunidade local. É grupo humano distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente, por gerações sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e econômicas. A essas comunidades de afro-descendentes, estabelece o art. 68 do ADCT, é reconhecida a propriedade definitiva das terras que estejam ocupando, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos. Em complemento, o § 5º do art. 216 da CRFB, na defesa da cultura nacional, decreta o tombamento de todos os sítios detentores de reminiscências históricas dos antigos quilombos. A propriedade quilombola apresenta algumas diferenças em relação à propriedade indígena: trata-se propriedade dominial titulada (e não usufruto), mas não 58 A Reserva Raposa Serra do Sol possui área contínua de 1,7 milhão de ha. Com 1.000 km de perímetro, localizada em Roraima, na fronteira do Brasil com Venezuela e Guiana. É ocupada por índios Pemons e Capons, povos de filiação Caribes. A demarcação foi contestada por não-índios e o Governo de Roraima. Em 2007 o STF determinou a desocupação da Reserva, mas em 2008 suspendeu a operação de desintrusão, até o julgamento definitivo de março de 2009 a favor da comunidade indígena, por 10 votos a 1, ordenando a saída dos não-índios da Reserva. 61 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I inclui como aquela, as riquezas distintas do solo enumeradas no art. 176 da CRFB. O critério de identificação das áreas é o da autodefinição da própria comunidade. Já o seu reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação competem ao Ministério do Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios (art. 3º do Dec. 4.887/2003). É propriedade que assegura a participação dos interessados, diretamente ou por representantes, em todas as fases do procedimento respectivo (art. 6º do Dec. 4.887/2003), o que se estende ao exercício – como propriedade procedimental – e à tutela (tanto no plano intrínseco, nos conflitos internos, como no plano extrínseco, nos conflitos com terceiros). A titulação é mediante outorga de título coletivo e próindiviso, com cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, já que outra é a sua racionalidade. O título é levado ao Registro de Imóveis, constando em nome de associação legalmente constituída pela comunidade beneficiada. Se envolver terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o INCRA e a Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a expedição do título. No caso de sobreposição a unidades de conservação, áreas de segurança nacional, faixa de fronteira e terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a Secretaria-Executiva do Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural Palmares tomarão as medidas necessárias, conciliando o interesse do Estado. Quando incidir sobre terras de propriedade dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA deve encaminhar os autos para os entes responsáveis pela titulação. Se houver oposição de título de domínio particular não invalidado por vício de nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, o caminho será a desapropriação, conduzida pelo INCRA (art. 13 do Dec. 4.887/2003). Vale dizer os direitos dos quilombolas não será prejudicado por isso, mesmo porque o INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel, uma vez decretado o procedimento respectivo (art. 13, § 1º do Dec. 4.887/2003). Prevalece juridicamente a condição de propriedade quilombola, restando aos demais pretendentes não mais que o direito de indenização, a cargo do poder público competente. É propriedade especial, ademais, porque o seu conteúdo e o seu exercício serão definidos pela própria comunidade, de acordo com seus costumes e tradições, sendo inegável, neste aspecto e perante o direito comum, certa analogia com o direito 62 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I internacional privado: salvo ordem pública e soberania nacional. A investidura consagra regime jurídico especial, de efeitos retroativos, que torna a área imune a qualquer perda a outro título de direito comum, como usucapião, por exemplo. Aplica-se por analogia o que dispõe o § 6º do art. 231 da CRFB para a propriedade indígena, sem prejuízo de eventuais direitos de terceiros no caso de desapropriação.59 À semelhança da propriedade indígena com a FUNAI, os quilombolas também contam com o apoio de uma instituição própria; é a Fundação Cultural Palmares, encarregada de manter cadastro geral das comunidades; de acompanhar processos de titulação, tombamento do seu patrimônio cultural, defesa dos seus interesses em geral, articulação com as autoridades governamentais, especialmente junto ao Comitê Gestor do Etno Desenvolvimento, coordenado pelo Secretário Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial a que se refere o art. 19 do Dec. 4.887/2003. Porém, a Fundação é ente auxiliar, não exclui a autonomia do quilombo. A propriedade coletiva extrativista ou propriedade de unidades de uso sustentável por populações tradicionais é a que se estabelece em favor de tais coletividades sobre áreas de domínio público, transformadas por iniciativa federal, estadual ou municipal em Unidades de Conservação do Grupo de Uso Sustentável60. Elas integram o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, de que trata a lei 9985/2000 (art. 225, § 1º, incisos I, II, III da CRFB). À semelhança da propriedade indígena61, ela não garante o domínio sobre a área, e sim a posse e o uso dos recursos naturais de forma limitada e sustentável.62 59 BRASIL. Artigos, pareceres, memoriais e petições: o decreto nº 4.887/2003 e a regulamentação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Disponível em http://.www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_68/Artigos/Art_Maria.htm, acesso em 24 fev. 2008, ressalva o direito de indenização do particular, em caso de desapropriação das terras para quilombos, citando em reforço a seguinte opinião de Dalmo Dallari: a Constituição não declara a nulidade dos títulos anteriores, como o faz no caso das terras indígenas. Diferentemente dos índios que detém a posse permanente e o usufruto exclusivo das áreas por eles tradicionalmente ocupadas (o domínio destas terras continua a ser da União – artigo 231 § 2º da CF/88), aos remanescentes de quilombos é reconhecido o domínio das terras. De tal forma, colocam-se em confronto a propriedade do particular e a dos quilombolas revista constitucionalmente. 60 A lei 9985/2000 classifica as Unidades de Conservação em dois grupos; unidades de proteção integral, ou de uso indireto – como se dizia anteriormente – que visam à preservação das áreas com a diversidade biológica (Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural, Refúgio de Vida Silvestre) e unidades de uso sustentável. 61 O subsolo e o espaço aéreo, sempre que influírem na estabilidade do ecossistema, integram os limites da unidade (art. 24 da lei 9985/2000), mas, evidentemente, não pertencem aos residentes tradicionais. 62 A propriedade extrativista apresenta semelhança também com a Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia, da MP 2220/2001 e art. 1225, XI do CCB: quem possui como seu, por cinco anos ininterruptos e sem oposição, imóvel público situado em área urbana, de até 250 m2, utilizando-o para sua 63 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I O regime é vertido para contrato, que obedece a normas regulamentares (art. 23), firmado com as autoridades competentes, parcerias envolvidas e entidades da Sociedade Civil. Há diversas modalidades de Unidades de Conservação63, mas a mais importante é a Reserva Extrativista, definida como área utilizada por populações extrativistas tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte. O objetivo é proteger os meios de vida e a cultura das populações, e assegurar o uso sustentável dos recursos naturais da Unidade de Conservação. Portanto, é propriedade coletiva, de cunho étnico, incidente sobre patrimônio nacional, instituída por lei, de conteúdo fixado em contrato coletivo, com participação popular64, e que visa a compatibilizar biodiversidade, sócio-diversidade e desenvolvimento sustentável, no contexto regional.65 Em termos de conteúdo e de função social, é um tipo de propriedade rural, mas que se distingue, absolutamente, da propriedade rural particular e seu amplo espectro de liberdade como direito subjetivo. Trata-se de propriedade coletiva procedimental patrimonial. Por outro lado, desta difere outra espécie de propriedade coletiva, a extrapatrimonial. 5. Propriedade coletiva extrapatrimonial ou coletiva propriamente dita: base constitucional da função social Rodotá66 levanta a questão com que se pretende deixar à discussão. A propósito da luta pela conquista da cidadania social, pergunta: o acesso à cidadania social deve moradia ou de sua família, tem direito de concessão de suso especial para fins de moradia sobre o referido bem, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural (art. 1º da MP 2.220/2001). 63 São elas, de acordo com o art.: Área de Proteção Ambiental: em geral extensa, com certa ocupação, voltada à sustentabilidade dos recursos naturais. Área de Relevante Interesse Ecológico: pequena extensão, com pouca ou nenhuma ocupação humana. Floresta Nacional: de espécies predominantemente nativas, em que se permite extração seletiva e atividade de pesquisa científica. Reserva de Desenvolvimento Sustentável: área natural com população tradicional com existência baseada em sistemas sustentáveis ao longo de gerações, adaptadas às condições ecológicas locais e com papel fundamental na manutenção da diversidade biológica. 64 Art. 27, § 2º, art. 30 e 32 da lei 9985/2000. 65 A compatibilização desses fatores está prevista no art. 26 da lei 9985/2000. 66 RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla proprietà privada. Bolonha: Il Mulino, 1990, p. 22. No original: l‘accesso allá cittadinanza sociale deve avvernire attraverso la proprietà o attraverso i diritti? In altri termini: lê dimensioni di tale moderna cittadinanza dipendono daí beni che ciascuno puó acquistare sul mercato oppure dal riconoscimento di uma serie di situazioni giuridiche che sottraggono appunto il cittadino alla logica mercantile? 64 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I dar-se através da Propriedade ou através dos direitos? Em outros termos e com outras palavras: as dimensões de tal cidadania moderna dependem dos bens que cada um pode adquirir no mercado ou justamente do reconhecimento de uma série de situações jurídicas que livram o cidadão da lógica mercantil? Pode-se perguntar da mesma forma: o ambiente deve ser protegido por uma proclamação de direito ou mais que isso, ser uma propriedade titulada em favor de todos? A segunda alternativa – acrescenta Rodotá67 – redimensiona quantitativa e qualitativamente a propriedade, porque significa romper o nexo propriedadepersonalidade. A questão redistributiva, nessa linha, deixa de ser a questão central, e a relação entre indivíduo e bens deixa de ser necessariamente mediada pela lógica proprietária.68 Ora, esse aspecto é nuclear à função social da propriedade: seria ela solidariedade social do proprietário privado ou mais do que isso, o confronto da propriedade com direitos fundamentais elevados ao mesmo status de direito subjetivo, na pele de uma nova propriedade, a Propriedade Coletiva Extrapatrimonial? Observe e atente o leitor para o seguinte. Se for dado ao ambiente equilibrado e ao patrimônio histórico preservado – e aos demais direitos fundamentais do gênero – a condição de direito subjetivo coletivo, a mudança de paradigma para sua proteção será radical. Porque tais direitos saem da exclusividade do público estatal e seu poder de polícia, em que dependem do voluntarismo autocrático do poder público, e passam à condição de bens autônomos, separados do individual e do público. Resgata-se a efetividade da função social e se cria um novo modelo de tutela, a coletiva; um e outro objeto de discussão própria. 6. Conclusão Resumindo, a propriedade pós-moderna é um salto qualitativo em relação à propriedade dos códigos e da Modernidade. No plano político, surge e se exerce no seio da república participativa; no plano jurídico caracteriza-se como propriedade especial 67 RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto, p. 23. No original: Se le risposte scelgono la seconda alternativa, non solo il ruolo della proprietà nel sistema risulta quantitativamente ridimensionato. Può mutarne pure la qualità, perqué diventa più radicale lo sciogliersi del nesso proprietà-personalità. 68 RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto, p. 23. No original: .. diventa pure evidente il limite di una impostazione tutta risolta nella questione redistributiva. Il rapporto tra individuo e beni non è necessariamente mediato dalla logica proprietaria. 65 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I constitucional; e perante o Código Civil, substitui a velha propriedade comum imobiliária, no plano concreto69. Hoje, toda propriedade que o leitor possa ter ou obter, é propriedade da categoria especial: urbana ou rural ou étnica ou intelectual. Mas a categoria mais notável é a da propriedade coletiva propriamente dita, extrapatrimonial, como o ambiente, que em sua autonomia de bem coletivo constitui a base da função social. 7. Referências BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função ambiental da propriedade rural. São Paulo: LTr,1999. BRASIL. Artigos, pareceres, memoriais e petições: o decreto nº 4.887/2003 e a regulamentação das terras dos remanescentes das comunidades dos quilombos. Disponível http://.www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_68/Artigos/Art_Maria.htm, em acesso em 24 fev. 2008. 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Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. 69 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I MACROECONOMIA E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: propriedade pública e interesses privados Luiz Henrique Urquhart Cademartori1 SUMÁRIO 1. A desregulamentação dos mercados financeiros nacionais. 2- Conseqüências da reformulação das políticas econômicas. 3- A reforma na alta administração pública no Brasil. 4. Conseqüências da reforma. 5. O princípio constitucional da economicidade. 6. Referências Bibliográficas. 1. A DESREGULAMENTAÇÃO DOS MERCADOS FINANCEIROS NACIONAIS Os mercados financeiros têm grande influência na exigência de reformas na gestão pública, dada a sua relevância no contexto político-econômico atual. A ascensão do seu poder começa na década de sessenta, quando as economias nacionais deixaram de crescer e os Estados perderam força ante as corporações empresariais, que começaram a se deslocar do setor produtivo para o financeiro, à procura do lucro sem esforço e sem maiores preocupações2. Mercados administrados e fiscalizados, contratos de trabalho fortemente regulamentados e a rigidez dos compromissos estatais com os programas de seguridade social e defesa seriam as causas do colapso que levariam à desarticulação do sistema de taxas de câmbio fixas e à cessação do crescimento econômico real. Contextualiza-se 1 Mestre em Instituições Jurídico-políticas e Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; tem Pós-Doutorado em Filosofia do Direito pela Universidade de Granada – Espanha, é professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; consultor do INEP e SESu – MEC para avaliação de cursos de direito no território nacional; foi assessor jurídico do CECCON – Centro de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria de Justiça de Santa Catarina; autor de várias obras e artigos sobre Direito Público. 2 A respeito da estrutura socioeconômica do neoliberalismo, ver FORTUNY (2000) e também FLEURY (2001). 70 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I essa transição histórica do capitalismo fordista-keynesiano (capital produtivo) para um novo sistema de acumulação flexível definitivamente no início dos anos noventa3. Porém, a origem da desregulação dos mercados foi a decisão do presidente norteamericano Richard Nixon, em 1971, de suspender, no mercado interno de seu país, a convertibilidade ouro/dólar. Os Estados Unidos, unilateralmente, desvincularam-se do sistema de taxas de câmbio fixas (gold exchange standard) que tinha sido acordado em Bretton Woods, no crepúsculo da Segunda Guerra Mundial, quando, também, tinham sido criados seus guardiães internacionais, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Nesse sentido, mesmo que a crise tivesse sido identificada, contextualmente, em 1973/1975, foi somente na década de 80 que o movimento expansivo e internacionalizante dos capitais financeiros começou a mostrar o surgimento de uma nova face, que emergiu em conseqüência das políticas desregulacionistas universalizadas desde então. Dito em outras palavras, a desregulamentação financeira só se tornou política explícita no decorrer da década de oitenta. As políticas desregulacionistas emergentes desde então assentam-se sob a égide de uma nova hegemonia liberal-conservadora que autodenominou-se, propagandisticamente, de neoliberalismo4. São muitas as leituras feitas sobre a crise da economia mundial e suas conseqüências para os Estados e suas economias nacionais. Nos anos oitenta, o ultraliberalismo econômico, ancorado, principalmente, nas políticas dos governos de Ronald Reagan (Estados Unidos) e de Margareth Thatcher (Inglaterra), com vistas a fundamentar a liberação de todos os setores do mercado, ocupou-se em responsabilizar o intervencionismo estatal keynesiano por todas as inflações, crises fiscais e recessões dos anos setenta e oitenta na Europa e nos Estados Unidos. Porém, as transformações assinaladas emergiram mais nitidamente na segunda metade da década de oitenta, por ocasião da articulação dos novos centros de poder: Japão, Alemanha e Estados Unidos. Como explicita Fiori (op. cit., p. 184): Quando o cenário mundial se reordena e a estagnação é superada, o quadro econômico estrutural está radicalmente modificado. É clara a existência, já em pleno funcionamento, de um novo padrão tecnológico e organizacional da 3 Paes de PAULA (2002) aborda mais especificamente esse problema. DIETRICH, Heinz. Crise Capitalista na aldeia global. In: Revista Plural, n. 10. Florianópolis: UFSC, ago./dez./1998. p. 15. 4 71 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I produção. O sistema financeiro internacional se altera radicalmente, e a divisão internacional do trabalho entre corporações, países, regiões etc. é redesenhada. Paralelamente, com a queda do muro de Berlim – que funcionou como um ícone para o desmoronamento dos sistemas econômicos socialistas ou de tendências intervencionistas –, e com a vitória quase universal dos liberais conservadores na maioria dos países centrais, a nova ordem econômica, aguda nos países industrializados, adquiriu contornos mundiais e se projetou como indiscutível. Nesse contexto, é possível observar que a desregulamentação dos mercados financeiros nacionais acabou por estabelecer um mercado financeiro internacional “livre”, no qual as empresas começaram a operar (investimentos especulativos de capitais retirados do setor produtivo) à procura de lucros mais vantajosos em curto prazo. As empresas em expansão apoiaram a ascensão de um ideário neoconservador que prometia, de um lado, a abstenção de controles em todos os âmbitos e, de outro, liberdade de jogo para as forças “naturais” do mercado. 2. CONSEQÜÊNCIAS DA REFORMULAÇÃO DAS POLÍTICAS ECONÔMICAS A reformulação das políticas econômicas no mercado trouxe, como conseqüência, a debilidade da política central dos Estados Nações. Não é em vão que o primeiro conceito posto em crise no âmbito da Teoria Política foi o de soberania. A crise do conceito de soberania está intimamente associada à tese da morte do Estado nacional como conseqüência do deslocamento dos centros de poder do âmbito político para o econômico. O autor que teve notável relevância por esta tese é o japonês Kenichi Ohmae com a publicação de sua obra The End of de the Nation State, em 1996. Faria (1996, p. 31) sintetiza, claramente, a nova conformação das instâncias decisórias, da seguinte forma: Com a erosão das fronteiras, no âmbito da economia globalizada, a política se “desterritorializa”. E com a proliferação de mecanismos de auto-regulação econômica, perde seu papel como instância privilegiada de deliberação, decisão, direção e proteção, tendendo a operar numa dimensão mais coordenadora, sob a forma de redes formais e informais articuladas por empresas sindicatos e entidades representativas preocupadas em negociar questões específicas e assegurar interesses particulares. 72 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Como conseqüência de tais mudanças, o espaço do público, como representativo do “bem comum”, esvaziou-se de sentido, transformando os centros decisórios, antes políticos e públicos, em espaços privados de interesses definidos pelas contingências macroeconômicas. Nesta perspectiva, a representatividade e a legitimação das instâncias políticas, que tanto foram questionadas nos debates sobre a natureza do Estado, simplesmente se esfumaram, convertendo os parlamentos em arenas de lutas dos grupos de interesses estritamente econômicos. Nesse novo contexto, o que se altera não é o papel do poder político, são suas formas de atuação e de proteção dos espaços econômicos garantidos para seus capitais. (FIORI, 1997. p. 142) Conclui-se, então, que o referencial constitutivo das estruturas sociais contemporâneas é dado pelo sistema econômico, porém não a partir da pura racionalidade do mercado (entendida como racionalidade instrumental), mas sob a égide das contingências diárias baseadas, exclusivamente, na movimentação dos principais mercados financeiros5. O exemplo mais nítido, pelo qual se pode observar o ideário neoliberal ascendente dos organismos internacionais, destinado à América Latina é o denominado “Consenso de Whashington” de 1989 (AYERBE, 1998. p. 28). Por ocasião de um seminário organizado pelo Institute for International Economics para discutir o ajuste das políticas latino-americanas, com a participação do FMI, do Banco Mundial, do Banco Interamericano de Desenvolvimento e representantes do governo dos Estados Unidos e dos países de América Latina, surge uma espécie de receituário para que os governos latino-americanos possam “consolidar” e, assim, ajustar a economia da região. Os tópicos fundamentais podem ser agrupados em três categorias6: 1. Equilíbrio das contas públicas, obtido a partir da redução de despesas e não pelo aumento de impostos. 2. Liberalização da economia pela abertura comercial e a desregulamentação. Ou seja, abstenção de controles governamentais ao setor privado e a nãodiscriminação em face do capital estrangeiro. 3. Privatização das empresas públicas. Essa retitude financeira (CHOMSKY: 2001) colocou os países da região diante de um dilema insolúvel. Para sair da crise econômica endêmica que afetava, há décadas, 5 Basta escolher qualquer canal de notícias para perceber que a comunicação sobre a movimentação financeira ocupa o maior espaço na divulgação das informações quotidianas. 6 O Código de Conduta da Administração federal (2000) segue esses princípios. 73 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I toda a América Latina e conseguir a tão desejada estabilidade econômica, os governos precisaram de mais créditos externos e refinanciamentos de suas dívidas externas por parte dos credores internacionais, porém, somente teriam refinanciamento e injeção de capitais externos se aplicassem as políticas consideradas corretas pelos credores, debatidas e aprovadas em Washington. Mais ainda: a aplicação do receituário do consenso de Washington implicou custos elevados a curto e médio prazo como recessão, desemprego, eliminação de subsídios e recorte de gastos governamentais e reforma social7. Nesta perspectiva, se, por um lado, os países desenvolvidos impusseram, na década de oitenta e noventa, cada vez com mais força, uma visão elitista da agenda internacional com temas recorrentes como a desregulação dos capitais, a geração de formas cooperativas de interdependência econômica, a unificação monetária, a flexibilização dos sistemas de produção, a estandardização dos mercados, a criação de grandes blocos comerciais e a defesa dos cortes drásticos nos gastos públicos dos Estados nacionais, especialmente por meio de medidas tais como a privatização dos serviços públicos essenciais, por outro lado, os países latino-americanos, ao estarem compelidos a aderir à agenda internacional, transformam-se em um contraponto explosivo ao processo de unificação e flexibilização da economia mundial. 3. A REFORMA NA ALTA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL Dentro do atual contexto8, deve-se considerar a Reforma do Estado como uma luta deflagrada pela elite econômica dos países centrais, em especial Inglaterra e Estados Unidos, buscando ampliar a sua ação no mercado mundial, desregulamentando a legislação trabalhista, destruindo a estrutura sindical e pressionando os países periféricos a abrirem seus mercados à globalização. Na versão brasileira, o neoliberalismo defendeu a limitação da participação do Estado na atividade econômica 7 É interessante o capítulo de KLIKSBERG (1989) que trata da crise econômica e da necessidade de reformulação da máquina pública. 8 PETRAS entende neoliberalismo como o movimento que surge como resultado da crise do populismo e derrota do socialismo. E, ao mesmo tempo em que é progressista é retrógrado. Comenta as políticas neoliberais em cinco metas: estabilização de preços e das contas nacionais; privatização; liberalização do comércio e dos fundos de capital; desregulamentação das atividades privada e austeridade fiscal. Assim, o neoliberalismo “deve ser entendido como uma ideologia para justificar e promover a reconcentração de riquezas, a reorientação do Estado em favor dos super-ricos e o principal mecanismo para transferir riquezas para o capital estrangeiro”. PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. In: RAMPINELLI, Waldir José Ourives (org). No fio da navalha: críticas das reformas neoliberais. 2000. 74 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I e identifica-se com o ideal de “Estado menor” e mais eficiente. Para o neoliberalismo brasileiro, já se esgotou o modelo de Estado empresário, que supriu, num momento essencial do desenvolvimento econômico o papel do capital privado, que não se dispôs a investir em setores essenciais. A Reforma do Estado foi estimulada, principalmente, por mecanismos internacionais, como o Banco Mundial e o FMI – Fundo Monetário Internacional. Segundo eles, para que haja crescimento econômico e inserção na ordem mundial é preciso que os Estados estejam com orçamentos equilibrados e com estabilidade interna da moeda. Durante a sua modificação, o Estado Moderno tem assumido funções e responsabilidades que são retornadas posteriormente à sociedade, o que pode estar caracterizando um processo cíclico na modificação da civilização, em que o Estado assume papel catalisador na busca da prosperidade econômica e da justiça social, constantemente assumindo funções e as devolvendo à sociedade. Um dos principais fatores de aceleração no processo de transformação do Estado é o atual contexto das grandes tendências mundiais relacionadas à globalização, progressos na tecnologia da informação e emergência da sociedade civil organizada. O Estado está abandonando algumas funções e assumindo outras, o que está atribuindo-lhe um novo papel, onde o setor público passa de produtor direto de bens e serviços, para indutor e regulador do desenvolvimento, através da ação de um Estado ágil, e pretensamente inovador. As principais funções deste novo Estado são a regulação, a representatividade política, a justiça e a solidariedade. Para desempenhar este novo papel, formou-se um consenso governamental de que seria necessário reformar o Estado. É nesse contexto, então, que o Brasil tenta reformular os parâmetros organizacionais da Alta Administração Pública. Entende-se com o conceito de Alta Administração Pública o núcleo estratégico, isto é, o setor onde as decisões estratégicas são tomadas, que corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao Ministério Público e, no Poder Executivo, ao Presidente da República, aos ministros e aos seus assessores diretos, enfim, todos aqueles sujeitos que participam do planejamento e da formulação das políticas públicas. (FARIA, 1996. p. 52)9 9 É interessante notar também a abordagem de KELLY e WANNA (2001). 75 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I No Brasil, como já foi visto, este plano foi implantado através da Emenda Constitucional de 19.06.1998 e está orientado, especificamente, ao plano da administração pública federal. Após aprovado o programa de estabilidade fiscal que abrange a sustentabilidade fiscal. Embora nem o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e nem tampouco as Emendas Constitucionais tenham contemplado os mecanismos da gestão jurídica na nova administração pública, impõe-se a sua adoção, entre outras, no planejamento e na formulação das políticas públicas e nos conselhos das agências públicas, na medida em que se apresenta, dentro de sua lógica interna, como técnica funcionalmente adequada para garantir direitos fundamentais. O eixo principal da reforma gira em torno do conceito de eficiência, ou seja, do conceito de qualidade de serviço dentro do referencial econômico 10. Desta forma, o tradicional espaço público da decisão orientado pelo princípio político do bem comum é deslocado para o âmbito do sistema econômico. Nesse contexto, as categorias que determinavam a seletividade do código binário da política, isto é, poder/não-poder, ficam esvaziadas do sentido tradicional para determinar-se através de novos referenciais operativos: poder econômico/ausência de poder econômico. A partir de tal deslocamento de significantes, os velhos paradigmas da política carecem de sentido construtivo, pois deixaram de ser aptos para provocar a funcionalidade do sistema através da construção referencial. Nesse contexto emergente, os rumos da decisão na Alta Administração Pública são demarcados pelo significante do sistema econômico. 4. CONSEQÜÊNCIAS DA REFORMA O deslocamento referencial apontado trouxe como conseqüência a crise de outros significantes da área da administração pública na medida em que estão diretamente vinculados ao componente referencial. Bem público, lucro estatal, bem comum, políticas públicas, patrimônio público, poder político, são todos referentes que se contrapõem em seu sentido tradicional, ao novo referencial de eficiência. 10 Bresser PEREIRA (1998) trata especificamente o assunto. 76 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Nesta nova estrutura do Estado, apenas o setor estratégico e o setor das atividades exclusivas são mantidos como propriedade estatal. O setor dos serviços nãoexclusivos, através da publicização, foi transferido em boa parte para a forma de propriedade pública-não-estatal e o setor de produção, pela privatização, passou, com exceção da Petrobrás, à forma de propriedade privada, saindo da estrutura do Estado. O Núcleo Estratégico deve manter procedimentos burocráticos e, gradualmente, inserir técnicas gerenciais, já, as Atividades Exclusivas do Estado passam para administração gerencial. No setor de Serviços Exclusivos do Estado, a administração gerencial prevê uma maior autonomia na gestão orçamentária, financeira, de pessoal, de compras e contratações. Esta autonomia é garantida através da celebração dos Contratos de Gestão entre cada Ministério e o órgão descentralizado. Nesse contrato, instrumento de controle gerencial, são estabelecidas as metas a serem cumpridas, bem como os objetivos a serem alcançados11. Este setor passará a ser organizado através das Agências Executivas e das Agências Reguladoras. As Agências Executivas envolvem os serviços de arrecadação tributária, a segurança pública e a previdência social básica. As Agências Reguladoras são responsáveis pelo controle sobre os mercados monopolistas, ampliados com o programa de privatização de muitas áreas que eram serviços públicos estatais. Com o fito de normatizar os setores dos serviços públicos delegados e de buscar equilibrar o Estado, seus usuários e seus delegados, foram criadas seis agências reguladoras nacionais: Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL12; Agência Nacional de Telecomunicações – ANATEL13; Agência Nacional do Petróleo – ANP14; Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA15 e a Agência Nacional de Águas – ANA16. Ressalte-se que quanto à ANA tem-se discutido se apresenta as mesmas características das outras agências governamentais, especialmente no tocante à eliminação da burocracia na gestão dos recursos hídricos17. 11 BRASIL. Lei 10.028, de 19.10.2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal. BRASIL. Lei 9.427, de 26.12.1996. 13 BRASIL. Lei 9.472, de 16.07.1997. 14 BRASIL. Lei 9.478, de 06.08.1997. 15 BRASIL. Medida Provisória 1.791, de 30.12.1998. 16 BRASIL. Lei 9.980/00. 17 Atualmente encontra-se em discussão o anteprojeto de criação de uma nova Agência – a Agência Nacional de Defesa do Consumidor e da Concorrência (ANC), para a coordenação da política do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. 12 77 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Quanto aos serviços não exclusivos do Estado, a legislação que permite a criação das entidades com personalidade jurídica de direito privado como Organizações Sociais, foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei 9.637, de 15.05.1998. A forma de relação do Estado com as Organizações Sociais foi estabelecida, pelo parágrafo 8º, acrescido ao artigo 37 da Constituição Federal pela E.C. n 19, através de Contratos de Gestão18, em que serão definidos os objetivos e metas a serem alcançados. É um processo de desestatização das áreas de serviço de educação, saúde, meio ambiente, pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Esse dispositivo foi regulamentado, em parte, pela edição da Lei 9649/98, que estabelecia a organização da presidência e ministérios do governo FHC, a qual criou também as Agências Executivas na Administração Pública Federal. A partir dessa lei, as autarquias e fundações públicas que integrassem a Administração Indireta tornavam-se passíveis de ser qualificadas – pela edição de decreto específico para cada caso – como Agências Executivas dotadas de maior autonomia de gestão e sujeitas a um controle finalístico. Ocorrendo isto, deixaria de existir a autarquia ou fundação pública e surgiria outra entidade (Agência Executiva), com qualificação diversa, personalidade jurídica de direito privado e agentes submetidos a um regime não mais estatutário e sim celetista, embora a finalidade pública da entidade continue a mesma.. Tal mudança atingiria setores tais como saúde, educação e previdência, dentre outros, precisamente, veiculados através de autarquias e fundações públicas. Questiona-se muito a constitucionalidade de tais contratos de gestão. Isto porque, entende-se que o regime de trabalho inerente aos agentes que desempenham atividades em entidades tipicamente públicas, como são as autarquias, não pode ser contratual, tal como no modelo celetista, onde o trabalhador negocia condições laborais, ao contrário do servidor público, pautado, dentre outros princípios, pelo da indisponibilidade do interesse público, daí sua relação estatutária (unilateral) com o Poder Público. De outra parte, a autonomia das entidades da Administração Indireta, tais como autarquias e fundações públicas, deriva diretamente da lei e, portanto, um contrato que alterasse tais condições estaria, também ele, legislando através de uma 18 Na concepção de DI PIETRO, o objetivo desses contratos é conceder maior autonomia a órgãos e entidades da Administração, permitindo a consecução de metas a serem atingidas no prazo do contrato, o qual deverá “prever um controle de resultados que irá orientar a Administração Pública quanto à conveniência ou não de manter, rescindir ou alterar o contrato”. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, 1999. p. 197. 78 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I forma de regulação diversa da lei, o que caracterizaria afronta ao princípio da legalidade administrativa previsto no caput do artigo 37 da Constituição Federal, além de interferência indevida entre os poderes estatais, no caso, do Legislativo pelo Executivo. De outra parte, o legislador fez incluir a eficiência no rol dos princípios da Administração Pública no citado artigo 37 da Constituição Federal, dado o reconhecimento da precariedade na atuação dos seus órgãos e agentes. O fim primordial do aparelho estatal é servir ao público, ao cidadão-cliente de forma satisfatória, pautada sempre em requisitos mínimos que demonstrem e garantam controle de qualidade. A melhor prova de que a eficiência na Administração Pública passou a ser imperativa está no § 3o do art. 37, incluído pela Emenda Constitucional 19, de 04.06.1998. Diz ele: A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública direta e indireta, regulando especialmente: I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral, asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços; II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII; III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de cargo, emprego ou função na administração pública. Surgirá, assim, um “Código de Defesa do Usuário” para garantir meios de cobrança da boa qualidade nos serviços executados pela Administração, à semelhança do que ocorre com o Código de Defesa do Cidadão, na esfera civil. Com a nova ordem constitucional a sociedade tem a possibilidade de invocar a cidadania para cobrar a qualidade no serviço público. Para isto, existe a ação civil pública para defesa de interesse difuso ou coletivo, salientando sempre que poderá a demanda ter por objeto a condenação à pena de multa ou o cumprimento de obrigação de fazer ou não fazer. Assim, provimento judicial pode determinar que a Administração Pública execute reparação de obra ou serviço prestado sem qualidade. Para isto, vale-se o Judiciário de instrumentos para formar a prova. 79 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I O cidadão tem o direito a serviço público de bons resultados. O princípio da dignidade da pessoa humana19 tem destaque na Constituição, prevalecendo praticamente sobre todos os outros princípios nela consagrados. Pelo que se percebe, pretendeu-se, com a inclusão do dever de eficiência dentre os princípios constitucionais aplicáveis às atividades da Administração Pública, tornar induvidosa que a atuação do administrador, além de ater-se a parâmetros de presteza, perfeição e rendimento, deverá se fazer nos exatos limites da lei, sempre voltada para o alcance de uma finalidade pública e respeitados parâmetros morais válidos e socialmente aceitáveis. E tudo isso mediante a adoção de procedimentos transparentes e acessíveis ao público em geral. Significa dizer que não bastará apenas atuar dentro da legalidade, mas que ter-se-á, ainda, necessariamente, que se visar resultados positivos para o Serviço Público e o atendimento satisfatório, tempestivo e eficaz das necessidades coletivas20. Muitas são as responsabilidades do Estado e podem ser exigidos direitos como requisito da cidadania. A Administração Pública tem o dever de programar-se, com métodos e modos de atuação, tendo em vista sua função maior, que é a manutenção da sociedade equilibrada, visando à manutenção da ordem pública. Portanto, o grande desafio do Estado contemporâneo reside na gestão desses novos referenciais como construtores de novos espaços estratégicos. Assim é que a gestão jurídica ocupa um papel determinante para a construção da legitimidade do emergente poder político. 5. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ECONOMICIDADE O discurso constitucional impôs como um dos vetores da regular gestão de recursos e bens públicos o respeito ao princípio da economicidade, ao lado do basilar 19 O Estado ao manejar o jus puniendi em benefício da restauração da paz social deve atuar de modo a não se distanciar das balizas impostas pela condição humana do acusado da prática do crime. Por mais abjeta e reprovável que tenha sido a ação delituosa, não há como se justificar seja o autor privado de tratamento digno. A preocupação dispensada ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana tem a finalidade de impedir que a atividade punitiva do Estado, manifestada sob o interesse de velar pela segurança da coletividade, resulte como justificativa à depreciação do indivíduo. 20 NOBREGA, Airton Rocha da. O Princípio Constitucional de Eficiência. Disponível em <http://www.geocities.com/CollegePark/Lab/7698/art.htm> Acesso em 20.01.2002. 80 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I princípio da legalidade e do, também recém-integrado, princípio da legitimidade (CF, art. 70, caput). O conceito economicidade se conecta, no campo das ciências econômicas e de gestão, à idéia fundamental de desempenho qualitativo. Trata-se da obtenção do melhor resultado estratégico possível de uma determinada alocação de recursos financeiros, econômicos e/ou patrimoniais em um dado cenário socioeconômico. Nesse sentido, Régis Fernandes de Oliveira21 elucida que economicidade diz respeito a se saber se foi obtida a melhor proposta para a efetuação da despesa pública, isto é, se o caminho perseguido foi o melhor e mais amplo, para chegar-se à despesa e se ela fez-se com modicidade, dentro da equação custo-benefício. Por sua vez, Fernando Rezende22, comentando sobre a natureza políticoeconômica das despesas públicas, estatui que além da quantificação dos recursos aplicados em cada programa, subprograma ou projeto, a efetiva implantação do orçamento-programa depende, ainda, da aplicação de métodos apropriados para a identificação de custos e resultados, tendo em vista uma correta avaliação de alternativas. No caso de empreendimentos executados pelo setor privado, a escolha entre alternativas para atingimento dos objetivos do grupo é, normalmente, feita mediante comparações entre taxas de retorno estimadas para cada projeto, com a finalidade de estabelecer qual a alternativa que oferece os melhores índices de lucratividade. No caso de programas governamentais, o raciocínio é semelhante, recomendando-se, apenas, substituir a ótica privada de avaliação de custos e resultados (lucros) por uma abordagem que procure revelar os custos e benefícios sociais de cada projeto. Nesse caso, ao invés do critério de seleção referir-se à maximização de lucros, refere-se à maximização do valor da diferença entre benefícios e custos sociais. E Ricardo L. Torres23, também afirma que o “conceito de economicidade, originário da linguagem dos economistas, corresponde, no discurso jurídico, ao de justiça‖. Implica ―na eficiência na gestão financeira e na execução orçamentária, consubstanciada na minimização de custos e gastos públicos e na maximização da 21 OLIVEIRA, Régis Fernandes de; HORVATH, Estevão; e TAMBASCO, Teresa Cristina Castrucci. Manual de Direito Financeiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990. p. 94. 22 REZENDE, Fernandes. Finanças Públicas. São Paulo: Atlas, 1980. p. 111-112. 23 TORRES, Ricardo Lobo. O Tribunal de Contas e o controle da legalidade, economicidade e legitimidade. Rio de Janeiro: Revista do TCE/RJ, n. 22, jul./1991. p. 37-44. 81 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I receita e da arrecadação‖. Por fim, conclui que é, ―sobretudo, a justa adequação e equilíbrio entre as duas vertentes das finanças públicas”. Por fim, a Fundação Getúlio Vargas – SP24 concluiu que “economicidade tem a ver com avaliação das decisões públicas, sob o prisma da análise de seus custos e benefícios para a sociedade, ou comunidade a que se refere‖. Verifica-se, assim, não obstante o enfoque dado, uma significativa convergência quanto ao alcance conceitual do princípio constitucional sob análise. Cumpre destacar que, apesar de o princípio em tela não se encontrar formalmente entre aqueles constitucionalmente previstos para a administração pública federal (art. 37, caput), impõe-se materialmente como um dos vetores essenciais da boa e regular gestão de recursos e bens públicos. Ademais, é óbvio que o princípio da economicidade se harmoniza integral e complementarmente com o recém-introduzido princípio da eficiência (EC 19/98), sendo deste, com efeito, corolário, e vice-versa. Ricardo L. Torres25, enfatizando que o controle da economicidade inspira-se no princípio do custo-benefício, esclarece que este se fundamenta “na adequação entre receita e despesa, de modo que o cidadão não seja obrigado a fazer maior sacrifício e pagar mais impostos para obter bens e serviços que estão disponíveis no mercado a menor preço‖. Torre pontua, ainda, que o “princípio da economicidade carece de leitura conjunta com outras novidades introduzidas na fiscalização contábil, financeira e orçamentária, especialmente a que se refere à aplicação das subvenções e renúncia de receitas‖. Outrossim, reconhece a ―possibilidade de o Tribunal de Contas controlar, sob o ponto de vista da economicidade, todos os incentivos fiscais e financeiros concedidos na vertente da receita (isenções, créditos fiscais, deduções, abatimento, reduções de alíquotas etc.) ou da despesa pública (restituições de tributos, subvenções, subsídios)”. Maria Sylvia Z. Di Pietro26, de igual modo, defende a tese de que o controle da economicidade, assim como da legitimidade, envolve “questão de mérito, para verificar se o órgão procedeu, na aplicação da despesa pública, de modo mais econômico, atendendo, por exemplo, a uma adequada relação custo-benefício”. 24 Fundação opina sobre conceitos de economicidade e operacionalidade, revista do TCE/MT, n. 10, ago./1989. p. 49-58. 25 Ob. cit. 26 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 8. ed., São Paulo: Atlas, 1997. p. 490. 82 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Exemplo de aplicação do princípio constitucional da economicidade é a modalidade de licitação “pregão”. Ela foi concebida para simplificar contratações administrativas. Marcada, entre outras características, pela celeridade e pelo alto estímulo à competitividade na fase de lances verbais, tem se mostrado um valioso instrumento no atendimento do princípios constitucional da economicidade. Sua forma eletrônica satisfaz um reclame da modernidade, permitindo o emprego seguro de recursos tecnológicos na busca da realização do interesse público. A possibilidade de ser utilizada condiciona-se à edição de regulamentação específica pelos diversos entes da Federação, compatível com a legislação licitatória e atenta a particularidades estritamente técnicas. A condução do processo pela via eletrônica apresenta dificuldades cuja superação depende de adequada análise técnico-jurídica. Nesse contexto, a atuação do pregoeiro assume especial relevância. O sucesso do certame depende, em grande parte, de sua capacidade de fomentar a disputa em busca do menor preço e de, simultaneamente, mantê-la adstrita aos limites do razoável. Como pode verificar-se, todos os autores citados consideram o princípio da economicidade como o novo eixo para à construção da decisão pública. Nesse caso, ele incidiria, diretamente, em cada decisão administrativa que envolva alocação de recursos públicos. Porém, todo esse entusiasmo não revela os verdadeiros deslocamentos que a aplicação do princípio da economicidade provoca na operatividade funcional do sistema. Ao momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, o contexto social e político requeria transparência para a gestão da coisa pública. Assim, foram instituídos os princípios da moralidade e da eficácia que incidiriam diretamente, nos processos de construção da decisão pública em todos os âmbitos. Porém, as transformações sociais e, principalmente, econômicas que emergiram nos últimos anos viraram do avesso os objetivos estatais. Redimensionamento do Estado (minimalista) por imposição do Consenso de Washington; globalização informacional; aceleração dos processos tecnológicos aplicados à transferências monetárias eletrônicas; surgimento de uma “nova economia”, etc, todos esses fenômenos esvaziaram os significantes políticos e reificaram os referenciais econômicos. Nesse novo contexto, surgiram outros significantes que começaram a determinar novas formas de organização social. Assim, o conceito de eficiência, preenchido já de referenciais econômicos, foi plasmado na Emenda Constitucional de 1998 como o eixo 83 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I principal da política administrativa. Acontece que tal significante emergiu entrelaçado ao princípio da economicidade. Nessa perspectiva, poderia colocar-se que assim como os direitos fundamentais de liberdade não podem coexistir em um mesmo conflito com os direitos fundamentais de igualdade, considerados harmônicos apenas na sua dimensão prima facie, os princípios da moralidade, da transparência e da legalidade da gestão pública não podem ser extensamente aplicados diante da supremacia do binômio eficiência/economicidade. Como resta evidente das colocações dos autores supra citados, o significante da economicidade operaria como o princípio de excelência que nortearia a gestão da função pública. Isto é, se diante de um processo de construção da decisão pública é plenamente seguido o princípio da economicidade em detrimento, talvez, da legalidade, a decisão será considerada legítima uma vez que a gestão dos recursos públicos passou a ser o referencial administrativo por excelência. Nesse caso, a coisa pública, deixa de priorizar a garantia e direitos fundamentais dos súditos (cidadãos) para reverenciar referencias econômicos que indiretamente afetaram a clientela administrativa. Na realidade, estas observações não significam, de forma alguma, que o princípio da economicidade não seja considerado como o referencial que permite uma abertura cognitiva ao desgastado sistema da administração pública. O problema esta nos deslocamentos que a recursividade sistêmica provoca ao considerar o significante da economicidade como o eixo da gestão pública e que a reforma oculta sob o princípio da eficiência. É preciso lembrar que no âmbito privado, a economicidade das decisões encaminha à lucratividade e, portanto, à sobrevivência da organização. Porém, quando se trata da administração pública, a lucratividade não pode funcionar como um princípio programa, sob pena de desintegrar os fundamentos do Estado Constitucional de Direito. Isto é, a coisa pública não deve ser lucrativa. Pode até ser, porém não pode atuar como o significante por excelência da gestão pública. Nesse caso, o significante da economicidade deve atuar, conjuntamente, com os restantes princípios constitucionais e, especialmente, condicionado ao pleno exercício das garantias e direitos fundamentais. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 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Ao longo dos tempos, a conformação do direito de propriedade possibilitou a sua expressão em moldes diversificados, já tendo se apresentado como coletiva ou individualizada, relativa ou absoluta. A despeito dessa característica, contemporaneamente percebe-se grande dificuldade em compreendê-la fora de sua feição sagrada e inviolável, feição consagrada pelo ideário burguês. A doutrina e a jurisprudência, muita vez movidas pelo ardor ideológico, recusam o reconhecimento de novo paradigma para o exercício do direito de propriedade, o que impossibilita o reconhecimento de novas formas de propriedade. A exata compreensão dos fundamentos do direito de propriedade pode ofertar novas perspectivas para o debate. Defende-se que a fundamentação do direito de propriedade em perspectiva econômica pode possibilitar a compreensão e aceitação de novas formas de propriedade. 1 Professor-Doutor do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFC/Juiz Federal 95 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Inicialmente, será demonstrada a evolução histórica do direito de propriedade, desde o período romano até a propriedade nos paradigmas do estado liberal, do estado social e do estado democrático de direito. Em seguida, os fundamentos clássicos e econômicos serão apreciados, com o objetivo de ensejar o reconhecimento de novas formas de propriedade. Após, serão apresentadas as conclusões. 2. Desmistificando o direito de propriedade: evolução histórica A propriedade não se confunde com o direito de propriedade, vez que este tem seus limites estabelecidos pela ordem jurídica, estando vinculado ao momento histórico e às condições políticas e sociais vigentes.2 3 4 As lições do passado muitas vezes são úteis à compreensão do presente e à projeção do futuro. A demonstrar o interesse pela análise histórica da evolução da propriedade, Fábio Comparato, ao analisar as novas formas de propriedade existentes na sociedade contemporânea, especificamente a propriedade estática, que caracteriza o controle interno de sociedades anônimas, a relacionou com as formas de propriedade do medievo, que se sucediam sobre o mesmo objeto.5 2 Sobre a distinção entre direito à propriedade e direito de propriedade, entre outros, ver: TOMASETTI JÚNIOR, Alcides. A propriedade privada entre o direito civil e a constituição. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo: Malheiros, n.126, p.123-127, abr./jun. 2002, p.125: “Uma coisa é o direito à propriedade; outra o direito de propriedade. O direito de propriedade exercita-se de modo particular sobre os bens de produção”. 3 Sobre a historicidade do direito de propriedade ver, entre outros: MATIAS, João Luis Nogueira; ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro, op. cit., 2006; FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade contemporânea. Porto Alegre: Sérgio Fabris editor, 1988; NEVES, Antônio Castanheira. Questão de fatoquestão de direito ou o problema metodológico da juridicidade, a crise. Coimbra: Almedina, 1967. V. I; FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981; FERREIRA, Simone Nunes. Direito de propriedade nas constituições brasileiras e do MERCOSUL. Revista Jurídica Brasília, Brasília, v.8, n.83, p.180-192, fev./mar. 2007 e COCO, Giovanni. Crisi ed evoluzione nel diritto di proprietá. Milão: Giuffré, 1965. 4 CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. O autor analisa as diferentes formas de abordagem do direito de propriedade no meio acadêmico e oferta crítica sobre o ensino da matéria. 5 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.131: “[...] Os bens sociais pertencem à sociedade, mas quem detém sobre eles o poder de disposição é o empresário, ou seja, o titular do controle. Não se pode deixar de reconhecer aí, como já tivemos ocasião de assinalar, o ressurgimento do fenômeno de multiplicação de direitos reais concorrentes sobre os mesmos bens, característico do feudalismo.” 96 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I 2.1. Propriedade na era romana Impõe-se a análise da concepção de propriedade prevista no direito romano em razão da forte influência daquelas normas na ordem jurídica brasileira, principalmente no âmbito do direito civil. A importância da propriedade para a ordem jurídica e econômica romana é inegável, 6 mesmo sem uma definição precisa do instituto, como alerta Moreira Alves,7 sendo a sua percepção meramente intuída. Há a previsão do direito de gozar e dispor da coisa, que são os principais atributos do “dominium”. 8 A origem da propriedade é, em regra, associada ao enfraquecimento e divisão do mancipium, poder unitário, amplo, que gozava o pater famílias, englobando pessoas e coisas, que se desdobrou em diversas formas de poder, como o manus (sobre a mulher), patria potestas (sobre os filhos), dominica potestas (sobre os escravos) e dominium (sobre as coisas).9 Em sua feição inicial, a propriedade (proprietas, dominium) era prevista de forma absoluta, consistindo no direito de usar (jus utendi), gozar (jus fruendi) e abusar (jus abutendi) das coisas, possibilitando ao proprietário destruir a coisa, caso queira. Possuía caráter personalista, oponível a todos, podendo ser assegurada por ação própria no “jus civile”, que era a “rei vindicatio”. 6 CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. O autor expressa o entendimento de que a ordem jurídica e econômica romana girava em torno da propriedade. A mesma opinião era expressada por José de Alencar, para quem a propriedade foi o princípio central da formação e evolução da sociedade civil, a partir da sociedade romana. ALENCAR, José de. A propriedade. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial: STJ, 2004. 7 ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. V. I, p.281: “Os romanos não definiram o direito de propriedade. A partir da Idade Média é que os juristas, de textos que não se referiram à propriedade, procuraram extrair-lhe o conceito. Assim, com base num escrito de Constantino (C.IV, 35, 21), relativo à gestão de negócios, definiram o proprietário como suae rei moderator et arbiter (regente e árbitro de sua coisa), de fragmento do Digesto (V,3,25,11), sobre o possuidor de boa fé, deduziram que a propriedade seria o ius utendi et abutendi re sua (direito de usar e de abusar da sua coisa); e de outra lei do Digesto (I, 5, pr.), em que se define a liberdade, resultou a aplicação desse conceito à propriedade que, então, seria a naturalis in re facultas eius quod cuique facere libet, nisi si quid aut ui aut iure prohibetur (faculdade natural de se fazer o que se quiser sobre a coisa, exceto aquilo que é vedado pela força ou pelo direito)‖. 8 Sobre a conformação econômica dos diversos períodos romanos, ver BONFANTE, Pietro. Lezione di storia del commercio. Milano: Giuffré, 1982. v. I. 9 SANTOS JUSTO, Antônio. Direito privado romano. Coimbra: Coimbra editora, 1997. v. III. 97 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Atendendo à divisão da sociedade romana, a propriedade dividia-se em quiritária, pretoriana (in bonis), peregrina (ex jure gentium) e provincial. A mais ampla era a quiritária, atribuída apenas aos romanos. A propriedade peregrina era conferida ao estrangeiro, não há dominium ex jure quiritium. A propriedade é garantida pelo direito peregrino local ou por autoridades romanas. Após a promulgação do Edito de Caracala, que confere cidadania a quase todos os habitantes do império, desaparece esta forma de dominium. A propriedade provincial era a assegurada sobre terras das províncias romanas, não assegurava o domínio pleno, mas apenas os direitos correlatos. É equiparada à propriedade plena (quiritária) nos fins do século III. A propriedade no direito romano sofre lenta e gradual evolução, perdendo a sua conformação absoluta, individualizada, característica do período antigo, para assumir perfil mais brando, por influência do direito costumeiro e canônico.10 No período clássico e justinianeu, passa a ser entendida como direito que acarreta obrigações, deveres morais. É afastado o direito de abusar da propriedade, de destruí-la.11 Na 10 PEZELLA, Maria Cristina Cereser. Propriedade privada no direito romano. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris editor, 1998, p.218, a autora sustenta posição mais ampla, defendendo que a relativização da propriedade já ocorria nos primórdios da civilização romana, baseada nos princípios que fundamentavam o direito romano, principalmente o princípio do humanismo: “embora muitos intérpretes medievais e modernos do Direito romano tenham identificado como característica preponderante do direito de propriedade em Roma o absolutismo, isto não se pode admitir nem em sua época mais primitiva, pois, como se demonstrou neste estudo em exemplos concretos retirados das fontes romanas originais, desde o início do processo de civilização da sociedade romana pode se observar a clara submissão do exercício da propriedade ao interesse social. A submissão do exercício da propriedade, inicialmente ao interesse de grupos aparentados e, posteriormente, à sociedade toda, evidencia o privilégio do princípio da humanidade sobre os demais princípios do direito, o que permite que se afaste também o individualismo como característica marcante da propriedade romana, como alguns romanistas o fizeram, pois mesmo quando exercida individualmente, a propriedade romana sempre esteve sujeita ao interesse social”. No mesmo sentido: KASER, Max. Direito privado romano. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1999, p.141: “Apesar de a propriedade conferir um domínio pleno, não se pode abusar dele em prejuízo da colectividade. A sua limitação por interesse social compete, na época mais antiga, ao critério do censor, que vela pelos bons constumes. Os censores intervieram em caso de alienação de propriedade fundiária indispensável, de exploração insuficiente e, ainda, de gastos imprudentes e de luxos efeminados”; BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. t. I, p.1004: “O direito de propriedade tem sido definido por diversos modos. Os romanistas adotaram um que, realmente, parece traduzir, com fidelidade, o conceito genuinamente romano dessa relação jurídica: dominium est jus utendi et abutendi re sua, quatemus júris ratio patitur. Os romanos, [...] não emprestavam à propriedade um caráter absoluto. O seu individualismo era subordinado às necessidades sociais” e CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1957, p.233: “As transformações da senhoria trás repercussões serissimas na configuração da propriedade. Inicialmente, é óbvio que ela sofre a influência do regime econômico dominante, distendendo-se ou se adelgando ao sabor de sua evolução.” 11 CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. São Paulo: Saraiva, 1949. v. I, p.142: “O conceito Justinianeu de propriedade corresponde ao moderno, resulta da fusão das várias espécies 98 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Lei das XII Tábuas (VI, 3), é assegurada a propriedade de áreas para cultura, com aquisição por usucapião, após dois anos de uso, demonstrando a prioridade à produção. Tais feições são inteiramente modificadas na Idade Média. 2.2 Propriedade na Idade Média Em decorrência da invasão bárbara, com a prevalência de seus costumes e legislação, há grande confusão entre propriedade e posse, muito em razão do instituto germânico da Gewere, em que a propriedade não é separada da posse, que a faz presumir. Esta é a tônica na matéria até o redescobrimento do direito romano, no século XIII. No que se refere aos bens móveis, a posse legítima justifica a aquisição, bastando que o possuidor, em sendo contestado, demonstre que os bens não foram roubados ou perdidos, admissão clara do princípio mobilia non habent sequelam (em móveis não há seqüela). Com a redescoberta do direito romano, a partir do estudo dos doutos nas Universidades, e com a importância crescente do direito canônico, afasta-se a influência germânica, sendo firmada a separação exata entre propriedade e posse. É suprimido o princípio da mobília non habent sequelam, a posse das coisas móveis deixa de, por si só, acarretar a propriedade, sendo admitida a aquisição através de usucapião. De forma geral, era característica desse período a divisão da propriedade, repartida em domínio direto e útil. Passam a ter importância as tenências, consistentes no uso e gozo da terra de terceiros, por longos períodos, podendo ser alienada a outros, como eram exemplos o censo, o feudo, a enfiteuse e o fideicomisso. A propriedade fundiária foi levada ao extremo.12 13 de domínio que, no decurso dos séculos, no evolver do direito romano, coexistiram exercendo recíproca influência.” 12 Censo implicava na obrigação de cultivar a terra, fornecendo prestações em dinheiro e/ou espécie. O feudo tinha caráter militar e político, obrigava à prestação de serviço militar e ajuda financeira. 13 Sobre a enfiteuse, valiosas são as lições de ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 2002. v.I, p.341:“No direito justinianeu, a enfiteuse é direito real, alienável e transmissível aos herdeiros, que atribui a alguém (o enfiteuta), mediante o pagamento de um canon anual, faculdades sobre o imóvel de outrem, (o concedente) análogas às de verdadeiro proprietário. Só na Idade Média é que, em virtude das amplas faculdades do enfiteuta sobre o imóvel, surgiu a idéia de que a enfiteuse era modalidade de propriedade, inferior, porém à do proprietário.” 99 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente 2.3 Parte I Propriedade na revolução burguesa: paradigma liberal A realidade de fragmentação da propriedade foi modificada com a revolução burguesa, que aboliu todos os encargos sobre a terra, destacando Francisco Eduardo Loureiro que a nova realidade, movimentada pela dinâmica da atividade mercantilista, não era compatível com o fracionamento do direito de propriedade e com a concessão de privilégios a determinadas classes sociais.14 A propriedade é concebida como direito absoluto dos indivíduos, como reação ao poder do Estado, ao monopólio das corporações de ofício e aos privilégios de certas classes, evidenciando a proeminência individual. Tendo por base a interpretação dos juristas oitocentistas dos textos e glosas, foi construído sistema fechado, baseado na prevalência e exclusividade da lei, abolindo os vínculos feudais e consolidando a nova ordem.15 As previsões constantes da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, eram fiel expressão dos novos valores, especificamente os artigos 2º e 17 que, respectivamente, dispunham: (i)Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibiles de l´homme. Ces droit sont la liberté, la proprieté, la sûreté et la résistance à l‟oppression e (ii) la propriété étant un droit inviolable et sacré, nul ne peut en être privé, si ce n‟est lorsque la necessité publique, legalement constatée, l„exige évidemment, et sous la condition d‟une juste et préalable indemnité. 16 A propriedade é concebida como direito de uso, gozo e disponibilidade de bens, de forma absoluta, centro do ideário liberal, concepção que é expressa no Code Civil e dele se 14 LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.27. 15 LEVY, Jean Philippe. História da propriedade. Lisboa: Stampa, 1973, p.28 e ss, expõe o processo evolutivo de consolidação da nova ordem imposta pela burguesia, expondo o caráter ideológico da interpretação do direito romano pelos juristas oitocentistas. No mesmo sentido, não apenas apontando a interpretação impregnada de ideologia dos textos romanos pelos juristas oitocentistas, mas o próprio caráter individualista do trabalho dos glossadores. GROSSI, Paolo. Proprietà – diritto intermédio. Verbete em Enciclopédia del diritto, v. XXXVII, 1998. Em outra obra, não menos importante, o autor analisa a evolução da história do direito de propriedade, destacando a contribuição da pandectística para a sua conformação na feição liberal. GROSSI, Paolo. Historia del derecho de propriedad. La irrupción del colectivismo em la conciencia europea. Barcelona: Ariel, 1986. 16 Tradução livre: “artigo 2º - O objetivo de qualquer associação política é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança, e a resistência à opressão”. “Artigo 17 - Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a não ser quando a necessidade pública, legalmente reconhecida, o exige, sob a condição de uma justa e prévia indenização.” 100 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I irradia para as modernas codificações, tendo inclusive influenciado fortemente o Código Civil Brasileiro de 1916.17 No Code Civil era estatuído que “La proprieté est le droit de jouir et de disposer des choses de la manière la plus absolute, pourvu qu‘on n‘en fasse pas un usage prohibé par lês lois et lês règlements”.18 19 Godoy, no mesmo sentido, expressa com clareza a modificação operada pela revolução da burguesia: Com a Revolução Francesa, eliminou-se essa superposição dominial que havia no feudalismo, unificando-se o conceito de propriedade. Em patamar de igualdade com a liberdade e igualdade, a propriedade privada passou a ser considerada como pilar estrutural dessa sociedade. Na tentativa de igualar os homens, cada um passou a valer menos pelos títulos de nobreza e mais por seu patrimônio - era a ascensão da burguesia como classe social.20 É o mesmo raciocínio exposto por Stefano Rodotá, para quem o conceito expresso no Code Civil é decorrência da concretização do projeto ideológico da burguesia e, também, do amadurecimento da compreensão individualista da identificação e disciplina dos direitos subjetivos em geral.21 22 Bercovici também afirma o papel ideológico do direito de propriedade burguês, destacando que a análise da propriedade não dispensa abordagem que considere a sua caracterização como instituto concreto, ou seja, inserido na dinâmica histórico-social.23 Esta perspectiva não pode deixar de ser considerada em qualquer abordagem crítica sobre a matéria. A condição absoluta da propriedade somente pode ser entendida como forma de superação da realidade pré-revolucionária, portanto vinculada ao contexto de sua época, o 17 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. ed. anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999. 18 Tradução livre: “artigo 544 - A propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto, desde que não se faça uso proibido pelas leis e pelos regulamentos”. 19 DE PAGE, Henri. Traité elementaire de droit civil. Paris: [s.n.], 1963. v.V e RIPERT, Georges. Le regime démocratique et le droit civil moderne. 2. ed. Paris: Librairie Génerale de Droit et Jurisprudence, 1948. 20 SOUZA, Luciano de Godoy. Direito agrário constitucional – origem da propriedade. São Paulo: Atlas, 1999, p.25. 21 RODOTÁ, Stefano. Proprietà (Diritto vigente). El terrible derecho. Estúdio sobre la propriedad privada. Tradução de Luiz Diez-picazo. Madrid: Civitas, 1986. 22 ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. 2. ed. Lisboa: Livraria Petroni, 1968. Às folhas 74 e seguintes destaca o caráter ideológico da ordem jurídica burguesa, cujo objetivo era consolidar o novo regime. No mesmo sentido, PLANIOL, Marcel. Traité élémentaire de droit civil. 6. ed. Paris: Librairie Générale de Droit & Jurisprudence, 1911. O autor constata a supervalorização dos aspectos individualistas no Code Civil a demonstrar o seu caráter ideológico. 23 BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento – uma leitura a partir da constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. 101 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I que explica os seus excessos. A manutenção desta perspectiva parcial, entretanto, somente pode ser justificada pelo aspecto ideológico de que se revestiu a doutrina liberal. Os seus excessos formataram as linhas básicas de sua modificação. No direito nacional, a Constituição de 1824 regulava o direito à propriedade no artigo 179, inciso XXII, dispondo: garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público legalmente verificado exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão; será ele previamente indenizado no valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta única exceção, e dará as regras para determinar a indenização. Havia a incisiva proteção da propriedade, como conseqüência do contexto histórico da época. Consolidavam-se as idéias liberais da revolução burguesa, que repercutiram inclusive no Brasil, país estritamente agrário. Corroborou, também, para a definição ampla da propriedade, a nítida relação entre propriedade, principalmente a agrária, e poder, como decorrência da própria forma de ocupação e repartição de terras no Brasil.24 Também na primeira das Constituições da República do Brasil, a Constituição de 1891, a propriedade era expressão do ideário liberal, indicada como garantia, conforme estabelecia o artigo 72, parágrafo 17.25 Durante a vigência desta Lei Maior, foi editado o Código Civil de 1916, codificação baseada, tardiamente, nas idéias e valores emanados do Code Civil, em que a propriedade era prevista em perfil absoluto. Interessante destacar que no Brasil não foi vivenciada a estrutura econômica feudal. Foi aplicado o modelo napoleônico-pandectista sem o antecedente do formato de propriedade típico do sistema feudal, já que no Brasil prevalecia o sistema de sesmarias, em que as terras pertenciam ao patrimônio da Coroa Portuguesa, estando os particulares vinculados a relação jurídico-administrativa.26 24 FAORO, Raimundo. Os donos do poder – formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo, 2001. 25 “Artigo 72 – [...] § 17 – O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante prévia indenização”. 26 Sobre a forma peculiar de propriedade que prevalecia no Brasil, ver os esclarecimentos de VARELA, Laura Beck. Das propriedades à propriedade: construção de um direito. In: COSTA, Judith Martins (Org.). A reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.730-762, p.748: “[...] essa passagem que procuramos em breves linhas descrever da propriedade feudal à propriedade privada moderna, consagração do modelo jurídico napoleônico-pandectista, não tem paralelo na experiência jurídica brasileira. Nesta, desconhecedora da estrutura econômica feudal, o ponto de partida não será a complexa hierarquia 102 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A este tempo, Clóvis Beviláqua definia a propriedade como o poder assegurado pelo grupo social à utilização dos bens da vida psíquica e moral. 27 Lafayette Rodrigues Pereira a conceituava como o direito que tem uma pessoa de tirar diretamente de uma coisa toda a sua utilidade jurídica.28 Lacerda de Almeida a conceituava como o direito real que vincula à nossa personalidade uma coisa corpórea sob todas as suas relações.29 Nas definições clássicas percebe-se a nítida influência da concepção liberal de propriedade, tida como direito subjetivo, estático, uno, forma de realização da vontade do indivíduo. Entretanto, novas idéias estavam por emanar das Constituições mexicana e alemã (Constituição de Weimar), transformando o perfil do direito de propriedade, como será visto. 2.4 Propriedade no paradigma do estado social No final do século XIX e início do século XX, a sociedade foi modificada por profundas transformações motivadas pelo incremento da produção e do consumo em massa, características da sociedade industrial. Uma das conseqüências da supervalorização da produção foi a efetiva opressão do homem pelo homem, a liberdade formal foi usada para oprimir os mais fracos, o que desencadeou a reação contra a supervalorização do indivíduo. O ambiente jurídico, especialmente a concepção de propriedade, não ficou imune à nova realidade, como descreve Nobre Júnior: Desde princípios da centúria passada, a noção de propriedade fora alvo de notável transformação. Da concepção sacré et inviolable, plasmada pelo artigo 17, da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, legada pela Revolução Francesa, com os adornos inscritos no artigo 544, do posterior Code Civil de 1804, capitulou ante a necessidade de ser harmonizada com os imperativos da sociedade. 30 Novo paradigma é firmado para a compreensão dos direitos à liberdade, igualdade e propriedade. De um plano formal, evolui-se para a busca da liberdade e igualdade material, o que se reflete na compreensão da propriedade. Gierke, de forma simplificada, destaca que foi dominial do medievo, mas uma peculiar forma proprietária pertencente ao patrimônio da Coroa Portuguesa, que mantinha os particulares em uma relação de concessão, de natureza jurídico-administrativa.” 27 BEVILÁQUA, Clóvis, op. cit., 1977, p.34. 28 PEREIRA, Lafayette R. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Typografia Baptista de Souza, 1922, p.56. 29 ALMEIDA, Lacerda de. Direito das cousas. Rio de Janeiro: Ribeiro dos Santos, 1908, p.72. 30 NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. A posse e a propriedade no novo Código Civil. Revista de Direito Privado, São Paulo, ano 15, p.17-37, 4 jul./set. 2003, p.20. 103 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I dada aos direitos subjetivos uma dimensão de socialidade, em relação ao direito de propriedade, implicando tal dimensão na possibilidade de o titular do direito exercer as suas prerrogativas desde que não ofenda o direito de outrem.31 Para Pietro Barcelona, a nova realidade faz com que o proprietário seja árbitro absoluto das escolhas referentes ao uso do bem.32 Como conseqüência dos novos tempos, a Constituição mexicana, de forma pioneira, em 5 de fevereiro de 1917, fixa novos parâmetros para o exercício do direito de propriedade, estabelecendo, em seu artigo 27, a idéia de que a nação terá o direito de impor à propriedade privada as limitações exigidas pelo interesse público, assim como pode regular, em benefício de todos, o aproveitamento dos elementos naturais suscetíveis de apropriação, com a finalidade de realizar distribuição eqüitativa da riqueza pública, cuidar de sua conservação, obter o desenvolvimento equilibrado do país e melhorar as condições de vida da população urbana e rural.33 34 Posteriormente, em 1919, a Constituição alemã de Weimar dispõe, em seu artigo 153, que é garantida a propriedade, estabelecendo que o seu conteúdo e limites decorrem da lei. A expropriação tem que ser determinada pelo bem comum, decorrendo de disposições legais e mediante justa indenização, a não ser nos casos declarados na Lei. Ao fim do dispositivo, consta a declaração de que a propriedade obriga, devendo seu uso representar um serviço ao interesse social.35 31 GIERKE, Otto Von. La función social del derecho privado. Madrid: Sociedade Espanhola, 1904. BARCELONA, Pietro. Proprietà (Tutela constituzionale). Digesto delle discipline privatistiche, sezione civile. 14. ed. Turim: Utet, 1993. v XY, p.459. 33 No original, dispõe o parágrafo terceiro do artigo 27, da Constituição mexicana de 1917, que ―[...] la nación tendrá em todo tiempo el derecho de imponer a la propriedad privada las modalidades que dicte el interés publico [...]‖. 34 Sobre o impacto da previsão na ordem jurídica mexicana: ―Tradicionalmente vino considerándose a la propriedad como uno de los clássicos derechos del hombre; el derecho de propriedad como derecho natural, anterior y superior al Estado; concomitante al hombre mismo; que en materia civil llegó a ser considerado absoluto e inviolable para usar y disponer libremente de las cosas, dando origen a tanta injusticia y desigualdad. En este artículo, nuestra Carta de 1917 rompió com toda esa caracterización del derecho de propriedad, reconociendo a ésta su verdadera naturaleza de función social, que tiene por objeto hacer uma distribución equitativa de la riqueza pública y cuidar de su conservación. La singular concepción que nuestra Constitución há hecho del derecho de propriedad desemboca en una serie de declaraciones que, derivadas de uma realidad muy nuestra y venida de muy atrás, trastocan por completo la concepción que sobre el derecho de propriedad habían tenido todas las legislaciones hasta 1917”. HELÚ, Jorge Sayeg. El constitucionalismo social mexicano - La integración constitucional de México (1808-1988). México: Fondo de Cultura Econômica, 1991, p.662-663. 35 No original: “Das Eigentum wird von der Verfassung gewährleistet. Sein Inhalt und seine Schränken ergeben sich aus den Gesetzen. Eine Enteignung kann nur zum Whole der Allgemeinheit und auf gesetzlicher Grundlage vorgenommen werden. Sie erfolgt gegen angemessene Entschädigung soweit nicht ein Reichsgesetz 32 104 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Em ambas as Constituições, a propriedade não mais é conceituada como direito absoluto e irrestrito, posto que passa a ser condicionada ao direito dos demais indivíduos, de modo que tais idéias são difundidas e se espalham pela legislação dos demais países. No Brasil, na Constituição de 1934, os novos valores despontavam, tendo sido estabelecidas algumas restrições ao exercício abusivo do direito de propriedade, conforme era disposto no artigo 113, parágrafo 17.36 Com a Constituição de 1937, de certa forma, houve algum retrocesso no que se refere à vinculação do exercício do direito de propriedade ao interesse social. É remetida à lei a regulação dos limites do direito de propriedade.37 Na Constituição de 1946, a previsão do direito de propriedade e dos limites que lhe eram impostos constava dos artigos 141, parágrafo 16 e no artigo 147, este, referente à ordem econômica e social.38 No artigo 147 havia a disposição de que o uso da propriedade era condicionado ao bem estar social. É restabelecida restrição ao exercício do direito de propriedade, como previsto na Constituição de 1934, vinculando-o ao interesse social. Na Constituição de 1967, a previsão do direito de propriedade era estabelecida no artigo 150, parágrafo 22.39 Seguindo a divisão estabelecida na Constituição anterior, na regulação da ordem econômica, no artigo 157, era disposto que a ordem econômica tinha por fim realizar a justiça social, com base em alguns princípios, entre os quais, a função social da propriedade. etwas anderes bestimmt. Wegen der Höhe der Entschädigung ist im streitfalle der Rechtsweg bei den ordentlichen Gerichten often zu halten, soweit Reichsgesetze nichts anderes bestimmen. Enteignung durch das Reich gegenüber ländern, gemeinden und gemeinnützigen Verbänden kann nur gegen Entschädigung erfolgen. Eigentum verpflichtet. Sein gebrauch soll zugleich dienst sein für das Gemeine beste”. 36 “Artigo 113 [...] Parágrafo 17 – É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante previa e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.” 37 “Artigo 122 – A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: Parágrafo 14 - o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício.” 38 “Artigo 141– [...] Parágrafo 16 - É garantido o direito à propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito à indenização ulterior.” 39 “Artigo 150 – [...] Parágrafo 22 – É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização, em dinheiro, ressalvado o disposto no artigo 157, VI, parágrafo 1º. Em caso de perigo iminente, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, assegurado ao proprietário direito à indenização ulterior.” 105 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Foi nesta Constituição a primeira previsão do princípio da função social da propriedade, entretanto, a repercussão prática da previsão foi muito reduzida, não chegando a influenciar a concepção de propriedade então prevalente, constante do Código Civil de 1916. Com a Emenda 01, de 1969, a proteção do direito de propriedade passou a constar do artigo 153, parágrafo 22, que estabelecia: É assegurado o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro, ressalvado o disposto no artigo 161, facultando-se ao expropriado aceitar o pagamento em título da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária. Em caso de perigo público iminente, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior. Na regulação da ordem econômica, no artigo 160, era previsto que a ordem econômica e social tinha por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base, entre outros princípios, na função social da propriedade. Com a evolução da idéia de propriedade, a sua delineação jurídica passa a compor limites à atuação dos particulares, limites impostos por lei, como algo externo ao direito de propriedade, o que era evidenciado pela doutrina. Pontes de Miranda defende que a propriedade engloba um feixe de poderes jurídicos a partir do qual o proprietário pode, a princípio, utilizar a coisa, ou destruí-la, gravá-la ou praticar outros atos de disposição.40 Orlando Gomes, destacando que a propriedade pode ser conceituada em perspectivas diferentes, mas complementares entre si, expõe que, de forma sintética, a propriedade seria a submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. No plano analítico, seria o direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Na perspectiva descritiva, seria o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, através do qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.41 José de Oliveira Ascensão a conceitua como o mais amplo direito sobre a coisa, no sentido de que os demais direitos reais sobre coisa alheia dela decorrem, embora submetida aos limites firmados na lei.42 43 40 PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: RT, 1977. v. 10. 41 GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.109. 42 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: reais. Coimbra: Coimbra editora, 1993, p.448. 106 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Caio Mário a define como um direito, que compreende o poder de agir diversamente sobre a coisa, usando, gozando ou dispondo dela, podendo reivindicá-la de quem injustamente a detenha.44 A partir do Segundo pós-guerra, as transformações do direito de propriedade se acentuam, fazendo com que seja encarado de forma não absoluta, expandindo-se para novas formas e sofrendo as restrições da função social. A idéia de solidariedade social, entendida, na lição de Eros Grau, como “a energia que vem da densidade populacional fraternizando e não afastando os homens uns dos outros”, repercute no âmbito do direito, modificando a feição dos institutos jurídicos, a fim de adaptálos à nova realidade, o que ocorreu com a propriedade. 45 A propriedade transforma-se de feixe de poderes sobre a coisa em fonte de deveres, a partir de sua funcionalidade, ou seja, é posta a sua vinculação a objetivos pré-fixados, impondo-se ao proprietário o dever de concretizá-los. 2.5 Propriedade funcionalizada: paradigma do estado democrático de direito A definição do direito de propriedade como direito subjetivo, absoluto, baseado apenas nos interesses do proprietário não mais se justifica na ordem jurídica nacional, a teor do previsto nos artigos 5º, caput e incisos XXII e XXIII, e 170, incisos II e III, da Constituição Federal, e do artigo 1228, parágrafo 1º, do Código Civil.46 A dupla previsão do direito de propriedade na Constituição Federal atende a objetivos diferentes, sendo protegida a propriedade como forma de realização pessoal (direito à 43 No mesmo sentido, ver também GATTI, Edmundo. Teoria general de los derechos reales. 3. ed. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, [s.d.], p.138. 44 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. v. IV, p.72. 45 GRAU, Eros. A ordem econômica na constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p.242. 46 Artigo 5º da Constituição Federal – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII – é garantido o direito de propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social.” Artigo 170 – “A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – propriedade privada; III – função social da propriedade.” Artigo 1228 do Código Civil “[...] Parágrafo 1º - O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.” 107 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I propriedade) e como instrumento para o exercício da atividade econômica (direito de propriedade). Inicialmente, no caput do artigo 5º, é previsto o direito à propriedade, como forma de realização pessoal do indivíduo, em concepção ético-jurídica, cujo objetivo é “assegurar ao ser humano – com os bens ou graças aos bens atribuídos a ele enquanto pessoa – tenha oportunidade de criar, expandir e consolidar a própria personalidade”. 47 Nos demais dispositivos, o direito de propriedade é assegurado como instrumento para o exercício da atividade econômica. A previsão específica entre os princípios da ordem econômica impõe ao Estado o dever de respeitar a propriedade dos agentes privados, atribuindo-lhes o dever de fazer com que os bens tenham uso adequado à sua função social. Com bem destaca Francisco Eduardo Loureiro: a funcionalização dos institutos jurídicos de direito privado revela a íntima relação existente entre a abordagem técnico-jurídica, preocupada com o estudo da estrutura, e a abordagem sociológica, preocupada com o estudo da teoria funcional, ambas relativas a um mesmo fenômeno. Não basta ao jurista saber como o direito é feito, mas também para que serve, ou seja, sua causa final. Seria a função, então, o papel que um princípio, norma ou instituto desempenha no interior de um sistema ou estrutura. 48 49 Mas importa deixar claro que as abordagens estrutural e funcional não são excludentes, são complementares, o que significa dizer, em relação à propriedade, que a sua função passa a compor a sua estrutura, como elemento que a conforma e a vincula. Essa foi a opção do legislador constituinte, ao conceber o direito à propriedade privada vinculado à sua função social.50 47 TOMASETTI JÚNIOR Alcides. A propriedade privada entre o direito civil e a constituição. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo: Malheiros (Nova Série), ano XLI, n.126, p.123-128, abr./jun. 2002. 48 LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.109. 49 Sobre a diferença de perspectiva entre as abordagens funcional e estrutural, a obra de BOBBIO, Norberto, op. cit., 1977. Há tradução para o vernáculo da obra, denominada Da estrutura à função. Tradução de Daniela Beccaccia Versiani. São Paulo: Manole, 2007. 50 MORAES, José Diniz. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo: Malheiros, 1999. 108 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I É nesse sentido a manifestação de Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho, que anotam que a atribuição de função a institutos jurídicos implica na sua vinculação à realização de fins que lhe são previamente determinados.51 Também no mesmo sentido a opinião de Cármen Lúcia Antunes Rocha, em artigo em que analisa a atribuição de função à propriedade: Propriedade, conceito sempre aproximado, historicamente, dos bens da terra (conquanto, cada vez mais na civilização contemporânea, se tenha a imaterialidade do objeto da propriedade), tem natureza de função […]. O que parece certo é que, em princípio e por princípio, a propriedade presta-se a ser, em sua essência, algo dado a cumprir função, daí ser ela instrumentalmente voltada a um fim. A função, em qualquer caso, é dar a utilidade que apresente resultado sócio-político e econômico nos termos juridicamente definidos como legítimos. Paralelamente, a utilidade própria da coisa (res) é obtida pelo atendimento daquilo que é posto como sendo a sua função. 52 Mas o que significa atribuir função social à propriedade? A resposta é dada na lição de Caio Mário: [...] certo é que a propriedade cada vez mais perde o caráter excessivamente individualista que reinava absoluto. Cada vez mais se acentuará a sua função social, marcando a tendência crescente de subordinar o seu uso a parâmetros condizentes com o respeito aos direitos alheios e às limitações em benefício da coletividade. 53 É particularmente importante, para a compreensão do tema, pelos novos parâmetros que permite fixar, o artigo 1228, do Código Civil pátrio. 54 Flagrantes, no dispositivo, as restrições ao direito de propriedade, o uso dos bens é “condicionado às suas finalidades econômicas e 51 COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto, op. cit., 2005. ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da função social da propriedade. Revista LatinoAmericana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n.2, jul./dez. 2003, p.543-594, p.547. 53 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil – alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p.79. 54 “Artigo 1228 – O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Parágrafo 1º - O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Parágrafo 2º - São defesos os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de prejudicar outrem. Parágrafo 3º - O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo iminente. Parágrafo 4º - O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa área, na posse ininterrupta e de boa fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nele houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social e econômico relevante. Parágrafo 5º- No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos possuidores”. 52 109 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I sociais”, conforme o expresso texto legal, sendo defesos ao proprietário atos que não lhe tragam qualquer comodidade ou utilidade e/ou que objetivem prejudicar terceiros. No mesmo sentido, Leonardo Mattietto, com precisão singular, expõe a renovação que decorre dos novos tempos e foi assimilada pelo Código Civil de 2002: [...] o Código Civil, ao dispor sobre o direito de propriedade, admite a noção de propriedade-função, ao reconhecer que o direito deve ser exercido de acordo com suas finalidades econômicas, sociais e ecológicas. Abre-se, destarte, a perspectiva de renovação do próprio conceito de propriedade, tarefa que não é fácil, diante de um instituto que tem, por trás de si, séculos de história. 55 A idéia de função social, no direito brasileiro, expressa através de princípio constitucional, é conformadora do direito de propriedade, integrante de sua estrutura, delineada como relação jurídica complexa, implicando deveres instrumentais que permitem a realização dos objetivos eleitos pelo constituinte, vinculando o legislador infraconstitucional e o intérprete. A função social da propriedade, portanto, conforma o direito de propriedade, estabelecendo padrões para o seu exercício, que deve ser concretizado tendo em vista os interesses sociais.56 Mas quais interesses sociais? Tais interesses são os eleitos pelo legislador constituinte: a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, fundada na dignidade da pessoa humana e nos valores sociais do trabalho e na livre iniciativa, a teor dos artigos 1º e 3º, da Constituição Federal. A propriedade funcionalizada é meio para o alcance dos fins antes descritos. Instrumentalmente, é posta a funcionalidade da propriedade, competindo aos operadores do direito a sua concretização, cabendo ao Poder Judiciário coibir os excessos e zelar pela efetivação dos valores constitucionalmente eleitos. A propriedade deixa de ser direito individual e passa a ser moldada pelos princípios da ordem econômica, que tem por escopo assegurar a todos existência digna. Historicamente, a ideia era vinculada à obrigação de tornar a propriedade produtiva, como forma de ampliação geral da riqueza e bem-estar, entretanto, sem a preocupação de permitir a distribuição dos resultados da produção. 55 MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de informação Legislativa, Brasília, ano 42, n.168, p.189-196, out./dez. 2005, p.189. 56 Perlingieri acentua o caráter não apenas negativo da função social da propriedade, mas de promoção dos valores da ordem jurídica. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. 110 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Mais recentemente, pela vinculação aos fins antes descritos, tem sido entendido que a realização da função social da propriedade pressupõe o estabelecimento de relações sociais mais justas.57 Na prática, a aplicação do princípio nem sempre é tranqüila. Apesar das claras disposições constitucionais, muitos são os obstáculos ao reconhecimento efetivo da função social da propriedade. 58 59 Muitos são os autores que procuram limitar o alcance da função social da propriedade e da empresa, com os mais diferenciados argumentos. 60 Entre tais autores, pode-se citar Rachel Sztajn, que insinua que a inserção da função social da propriedade na Constituição Federal de 1988 atenderia ao objetivo de funcionalizar apenas a propriedade imobiliária: [...] por conta de uma função social da propriedade (basicamente da propriedade fundiária) prevista na Constituição do Brasil de 1988 o Código Civil de 2002 reproduz texto ideado na Itália, à época do fascismo, e que visava a direcionar a liberdade de contratar, uma das liberdades individuais, para que o Estado interviesse nas relações patrimoniais intersubjetivas de forma a estimular (ou impor) a realização de seus interesses. 61 É inegável que o princípio da função social tem aplicação bastante ampla em relação à propriedade imobiliária rural, o que se deve, em grande parte, à histórica perversa distribuição 57 LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p.112. 58 ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op cit., 2003, p.575: “Não faltaram leis no Brasil, desde a terceira década do século XX, a cuidar do atendimento do princípio constitucional da função social da propriedade e a determinálo; mas faltou, permanentemente, vontade de se atender e cumprir a Constituição da República e os interesses do povo, especialmente aquela parcela mais necessitada, que, não tendo voz, em geral também não tem vez”. Ver, também, GIORA JÚNIOR, Romeu. Intervenção do estado na propriedade. Revista Tributária e de Finanças Públicas, São Paulo, v. 69, p.83-96, jul./ago. 2006, p.84. 59 Com a finalidade de tornar explícita a opção do legislador, é previsto no parágrafo único do artigo 2035 do Código Civil que: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.” 60 Na doutrina nacional, há divergência sobre o alcance do princípio da função social da propriedade, com expressiva gama de autores defendendo que somente estariam submetidos à função social os bens de produção, exatamente por consistirem forma de exercício de poder econômico, a ele não estando submetidos os bens de consumo. Para os fins específicos do presente trabalho, a polêmica não interessa, uma vez que a propriedade de parcelas do capital de sociedades empresárias é, de forma inegável, propriedade que recai sobre bens de produção. Entre os autores que defendem a aplicação restrita do princípio da função social da empresa, destacam-se: GOMES, Orlando, op. cit., 1985, p.108; RODOTÀ, Stefano, op. cit., 1986, p.139; GODINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.427; COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto, op. cit., 2005 e COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo: Malheiros, n.63, p.71-79, jul./set. 1986; GRAU, Eros, op. cit., 1990; TOMASETTI JÚNIOR, Alcides, op. cit., 2002, p.126. 61 SZTAJN, Rachel, op. cit., 2005b, p.37. 111 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I de terra no Brasil, o que acarretou a mobilização de setores políticos que conseguiram o estabelecimento de parâmetros legais para a averiguação do atendimento à função social. O próprio artigo 186, da Constituição Federal, fixa as diretrizes do reconhecimento da propriedade rural que atende à função social, o que é especificado pelo Estatuto da Terra e pela Lei 8.629/93. 62 63 Entretanto, a melhor regulação jurídica da função social da propriedade imobiliária rural não pode ensejar o argumento de que a funcionalidade da propriedade a ela se reduz. É demonstração efetiva da maior amplitude da função social da propriedade, por exemplo, o Estatuto das Cidades, Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que oferta efetivos instrumentos de adequação da propriedade imobiliária urbana ao interesse social, dando cumprimento às disposições constitucionais sobre a matéria.64 Em verdade, até mesmo quanto à função social da propriedade imobiliária rural há resistências à efetivação. No âmbito judicial, não são poucas as decisões que, embora reconhecendo a função social da propriedade, deixam de efetivá-la sob o argumento de que compete ao Poder Executivo a sua efetivação. 65 62 Artigo 186 da Constituição Federal – “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.” 63 No artigo 9º da Lei 8.629/93, ocorre a especificação dos requisitos narrados na Constituição Federal (artigo 186) e no Estatuto da Terra (artigo 2º, parágrafo 1º), sendo descrito que o aproveitamento racional e adequado da terra é aferido pelo GUT – grau de utilização da terra, calculado pela relação percentual entre a área efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel, sendo produtiva a propriedade que alcançar índice igual ou superior a 80% (oitenta por cento), e pelo GEE – Grau de Eficiência na Exploração da Terra, calculado levando-se em conta os critérios previstos no artigo 6º, incisos I e II, conforme a natureza vegetal ou animal da exploração. 64 Artigo 182 da Constituição Federal – “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. [...] Parágrafo 2º - A propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor. [...]”. 65 O argumento de que a função social da propriedade não pode ser aferida pelo Poder Judiciário, em razão da administração ser responsável pela efetivação das políticas públicas, não procede, sobretudo quando manifestado em situações jurídicas que envolvem a utilização da propriedade imobiliária, em que a lei detalha a configuração da utilização produtiva. O argumento, em verdade, é reflexo de um perigoso sentimento de não efetividade da função social da propriedade, tendo sido expressamente acolhido no Acórdão lavrado nos Embargos de Declaração na Intervenção Federal 15/PR, apreciado pelo STJ, cujo Relator foi o Ministro Adhemar Maciel, DJ de 09.05.94, p. 10787: “[...] Não resta dúvida de que a propriedade deve ter função social, mas descabe ao Poder Judiciário embrenhar por tais searas. Solucionar tais conflitos se acha unicamente nas maõe dos executivos Federal e Estadual. [...]”. No mesmo sentido: AC 2005.38.00.355595/MG, relator Desembargador Federal Hilton Queiroz, quarta turma, TRF da 1ª. Região, DJ de 16.05.2006, p. 64 e Agravo 1.0024.06.088432-7/001. Relator Desembargador Dídimo Inocêncio de Paula. 14ª Turma do TJMG. Publicado em 26.01.2007. Felizmente, as decisões não indicam tendência uniforme da jurisprudência. 112 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Contemporaneamente, há grande debate sobre a natureza jurídica da propriedade, sendo certo que deixou de ser direito subjetivo, absoluto, estando sujeito a limites expostos na lei e em razão da necessária funcionalidade que a cerca. Tratá-la como direito subjetivo, do que decorre feixe de poderes de usar, gozar, dispor e reivindicar a coisa, vinculado à função social, parece ser inadequado em razão da incompatibilidade dos termos, o que em verdade, pressuporia uma nova conceituação de direito subjetivo. O novo contexto pressupõe a definição de propriedade como relação jurídica complexa, em que as limitações ao exercício do direito decorrem de sua própria estrutura, da qual advêm deveres em relação a terceiros proprietários ou não proprietários.66 Trata-se de relação de caráter patrimonial, porque dirigida a interesses econômicos; absoluta, no sentido de que acarreta dever geral de abstenção e, por fim, complexa, em razão dos vários vínculos que se entrelaçam, criando pluralidade de direitos e obrigações entre as partes.67 César Fiúza a define nesses padrões, conceituando-a como “relação jurídica dinâmica entre uma pessoa, o dono, e a coletividade, em virtude da qual são assegurados àquele os direitos exclusivos de usar, fruir, dispor e reivindicar um bem, respeitados os direitos da coletividade”.68 69 Após destacar o caráter dinâmico da idéia de propriedade, consistente em Em sentido contrário, defendendo a importância do papel do Poder Judiciário na efetivação da função social da propriedade: Agravo 598360402; 19ª Câmara Cível/TJRS. Relator para o Acórdão Desembargador Guinther Spode. A doutrina tem louvado a nova postura do Poder Judiciário, como se percebe pelo comentário ao aludido Acórdão, de autoria de TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. In: STROZAKE, Juvelino José (Org.). Papel do poder judiciário na efetivação da função social da propriedade. Questões agrárias: julgados comentados e pareceres. São Paulo: Método, 2002, 91-131, p.13O: “Nem se objete, com voz corrente, que, em matéria de reforma agrária, o Poder Judiciário estaria de “mãos atadas”. Evidentemente, aos juízes não é dado decretar a desapropriação deste ou daquele imóvel para fins de reforma agrária, cabe-lhes, contudo, na resolução dos conflitos que apreciam, deixar de atribuir tutela jurisdicional à propriedade que não atenda aos valores sociais e existenciais consagrados na Constituição. Delinea-se, na verdade, uma nova ordem pública, em que a tutela da propriedade privada não pode estar desvinculada da proteção de situações jurídicas não patrimoniais, com prioridade axiológica na legalidade constitucional, de modo a servir, segundo a dicção do Acórdão comentado, de „garantia de agasalho, casa e refúgio do cidadão”. 66 LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 67 A doutrina tradicional defende a impossibilidade de existência de relação jurídica complexa quando um dos pólos é indeterminado, o que deve ser relativizado já que a determinação do sujeito é importante para o exercício de relação jurídica subjetiva não como pressuposto de sua existência. 68 FIÚZA, César. Direito civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.630-631. 69 Vale o alerta de Tepedino que defende que a complexidade e adequação do direito de propriedade às mudanças sociais dificultam a elaboração de um conceito geral e abstrato. TEPEDINO, Gustavo. Contornos constitucionais da propriedade privada. In: _______. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p.267-286, p.279. 113 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I relações que se transformam no tempo e no espaço, expõe o autor que a aludida definição é adequada aos ditames da modernidade e ao paradigma do Estado Democrático de Direito.70 Nos contornos da noção de propriedade, destaca-se o poder jurídico concedido ao proprietário, oposto de forma ampla a toda a coletividade, exercido sobre a coisa, mas ponderado pelos exatos limites firmados pelo ordenamento. Desta forma, pode-se conceituála, em sintonia com seu caráter histórico, como vínculo jurídico entre o proprietário e a coletividade em relação a um bem, com forma própria de aquisição, modo de uso, gozo e disposição, assim como deveres e limitações, definidos pelo ordenamento jurídico. Atualmente, é consenso que a apropriação de bens é importante instrumento de realização pessoal, de concretização de interesses individuais, mas sujeita à compatibilidade com os outros interesses protegidos pelo ordenamento. Leonardo Mattietto, em auxílio à idéia, destaca que a propriedade contemporânea não é uma, “não sendo correto reduzir a sua dogmática a um instituto monolítico, cabendo antes, perfilhar um conjunto de situações jurídicas complexas, compreensíveis não apenas dos poderes, mas também de deveres, que envolvem a titularidade dos bens”. 71 Em suma, contemporaneamente, essa é a feição que adota o direito de propriedade, “passa a caracterizar-se como espécie de poder-função, uma vez que, desde o plano constitucional, encontra-se diretamente vinculado à exigência de atendimento da sua função social”. 72 3. Fundamentos clássicos do direito de propriedade Inúmeras teorias clássicas propõem-se a justificar o direito de propriedade, sob os mais diversificados argumentos. Para algumas, contrariamente, nada há que a justifique a apropriação privada de bens. 70 FIÚZA, César, op. cit., 2003, p.631. Para uma demonstração das transformações da noção de propriedade, ver GROSSI, Paolo. La propriedad y las propriedades. Un análisis histórico. Tradução de Angel Lopez y Lopez. Madrid: Cuadernos civitas, 1992. 71 MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 42, n.168, p.189- 196, out./dez. 2005, p.193. 72 MIRAGEM, Bruno. O artigo 1228 do Código Civil e os deveres do proprietário em matéria de preservação do meio ambiente. Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRS, Porto Alegre, v.III, n.VI, p.21-45, maio 2005. 114 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A teoria da especificação, por exemplo, que tem entre seus adeptos Locke 73, Mac Culloch, Guyot, Rousseau e Jhering74, propõe que a propriedade resulta do trabalho, sendo incorporada ao patrimônio pela atividade laborativa, sendo o esforço que transforma a coisa em domínio do sujeito de direito. Sua idéia geral é que a adição do trabalho aos recursos naturais cria a propriedade. A propriedade é concebida como direito natural, a partir da idéia de que na passagem do estado de natureza para o estado civil são conservados os melhores aspectos daqueles, fazendo com o estado civil seja a conservação daquele.75 Trata-se de explicação parcial, vez que não justifica a aquisição de propriedade que não deriva do trabalho, como aquela que advém da sorte, como as loterias. Já a teoria legalista sustenta que a propriedade advém da ordem jurídica, é concessão do Estado que possui poder para dividir os bens da sociedade. Entre seus adeptos, Hobbes 76 e Montesquieu.77 Como todas as demais teorias positivistas clássicas, implica na supervalorização da lei, desconsiderando inúmeros defeitos que lhe são inerentes. Para os opositores, a propriedade é apenas regulada por lei, sendo realidade que lhe é pré-existente. Já a teoria da ocupação, que tem entre seus adeptos Grócio, tem por argumento central o de que a prioridade da ocupação justifica e legitima a propriedade. A propriedade decorreria da ocupação com a finalidade de satisfação das necessidades. 78 Desconsidera as dificuldades de identificação da ocupação pioneira e refuta o caráter de historicidade de que se reveste. Para a teoria personalista, a propriedade é manifestação da personalidade, revelandose como a garantia econômica da liberdade. Tem entre seus defensores Freidrich Hegel. Parte do pressuposto de que a essência do ser humano é a realização de seus desejos, a qual tem por pressuposto a obtenção de recursos materiais. A propriedade privada é fundamental para a manifestação externa dos desejos e para a sua efetiva concretização. A propriedade deve ser entendida como forma de assegurar a esfera externa da liberdade.79 80 73 Second treatise of government, chapter V, part. 26. A Luta pelo direito. 10ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1992. 75 PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. São Paulo: Quartier Latin, 2006. 76 Leviatã. Os Pensadores. 3ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 77 The spirit of laws. Great Books of the Western World. Chicago: University of Chicago, 1952. 78 PLANIOL, Marcel. Cours élementaire de droit civil, vol. I.. 3ª edição. Paris: LGDJ, 1906. 79 BELL, Abraham e PARCHOMOVSKY, Gideon. What property is. ILE – Institute for Law and Economics, University of Pennnsylvania Law School, Research Paper 04-05, fevereiro de 2004. 74 115 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A teoria da natureza humana tem por argumento central a compreensão de que a propriedade é condição da existência humana e pressuposto de sua liberdade. O ser humano, como decorrência de sua natureza, exerce poder sobre bens, sejam móveis ou imóveis, corpóreos ou incorpóreos.81 A compreensão da propriedade como forma de manifestação da natureza humana, dificulta a fixação de limites e ponderações ao seu exercício, daí ter sido a teoria utilizada para a justificação de excessos. A teoria negativista, concebida a partir das idéias defendidas por Proudhon, considera a propriedade como uma ofensa às pessoas mais pobres, um “roubo”, em razão dos detentores dos meios de produção se locupletarem com o resultado do trabalho das camadas mais pobres.82 Formulada em período em que a propriedade era encarada como direito natural, Proudhon a definia como verdadeiro “suicídio” da sociedade em razão dos efeitos nefastos que acarretaria. A posse é que seria justa e jurídica. 4. Os fundamentos econômicos da propriedade. As tradicionais teorias que expõem os fundamentos do direito de propriedade são parciais e estreitamente vinculadas ao período histórico de sua formulação, o que demonstra a sua incapacidade de estabelecer uma explicação definitiva. A fundamentação econômica apresenta interessantes reflexões sobre a necessidade de garantia do direito de propriedade, entendo-o como a melhor forma de utilização dos bens. A doutrina norte-americana, em perspectiva utilitarista, apresenta justificativas econômicas para o surgimento e evolução do direito de propriedade, entre as principais, a teoria dos custos de exclusão e a tragédia dos baldios ou dos comuns (tragedy of commons). Para ambas as teorias, a propriedade é forma de alocação de recursos, encontrando seu fundamento e razão de ser no critério de melhor eficiência econômica na alocação de bens. O pressuposto central da teoria dos custos de exclusão é que, em um enfoque econômico, a posse ou propriedade de bens acarreta custos, referentes à exaustão dos bens ou 80 RADIN, Margaret Jane. Property and personhood. Stan Law Review 957 (1982). 81 Nas doutrinas socialistas, que predicam a propriedade coletiva dos bens de produção, é reconhecido o direito de propriedade individual no que refere aos bens de consumo. 82 PROUDHON, P. J. What is property? An inquiry into the principle of right and government. Nova York: Dover Publications, 1970. 116 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I relativos à efetivação da exclusividade de seu proveito (custos de exclusão). Parte da idéia de que no estágio inicial da civilização o direito de propriedade era desnecessário, na medida em que a abundância de recursos acarretava diminuto custo de exaustão e de exclusão, o que tornava inútil qualquer tentativa de delimitação da esfera coletiva ou individual da apropriação de recursos.83 Tornada a vida social mais complexa, os recursos escasseiam, despontando o dilema econômico da escassez de recursos versus necessidades ilimitadas, aumentando os custos de exclusão. Os indivíduos mais fortes são tentados a se apropriar de bens coletados ou produzidos por indivíduos mais fracos. Essa disputa no seio da sociedade é ineficiente do ponto de vista econômico, em razão de os indivíduos mais fracos coletarem ou produzirem menor quantidade de bens, pois estarão dedicados, também, à sua defesa. Por conseqüência, os indivíduos mais fortes obterão menor quantidade de bens, com dispêndio de maior esforço, em função da maior resistência dos mais fracos. Para esta teoria, a ineficiência econômica seria minorada com a proteção do direito de propriedade, que motivaria os indivíduos a um melhor desempenho econômico com a garantia institucional de exclusão do direito de terceiros sobre seus bens. A proteção do direito de propriedade produz sensível diminuição dos custos de exclusão, já que tornam menor a possibilidade de que bens coletados ou produzidos sejam apropriados por terceiros indevidamente.84 Outra forma de explicação da necessidade de proteção do direito de propriedade é a denominada tragédia dos baldios ou dos comuns (tragedy of commons), exposta por Garret Hardin.85 86 A tragédia dos comuns decorre da super-utilização de áreas não reguladas. Os terrenos baldios tendem a sofrer com a pastagem excessiva, sendo certo que os benefícios de cada cabeça de gado adicional são apropriados apenas pelo seu dono (internalização dos benefícios), enquanto que o custo da utilização da pastagem é absorvido por todos os 83 FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981. KASPER, Wolfgang. Economics freedom & development – an essay about property rights, competition and prosperity. CCS – Índia. ISBN: 81-87984-05-8 Rs. 200. 85 HARDIN, Garret. Revista Science Magazine, Washington, n.162, p.1243-1248, 1968. Ver-se sobre o tema: MATIAS, João Luis Nogueira; ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro. Repensando o direito de propriedade. In: Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI, 2006. Manaus. Florianópolis: Fundação José Arthur Boiteux, 2006. 86 Por commons deve-se entender qualquer recurso econômico que esteja livremente disponível, sem limitação ou regulamentação de sua utilização, como ocorria com as paragens naturais comunais da Inglaterra, que posteriormente foram objeto de precisa regulamentação 84 117 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I membros da comunidade (exteriorização dos custos), resultando desta dinâmica natural utilização excessiva dos baldios, que tendem a ser destruídos. A melhor utilização dos recursos pressupõe a delimitação do uso de bens comuns, forma de se assegurar maior eficiência econômica. Os direitos de propriedade, ou seja, exclusividade sobre bens, permitem a otimização da utilização dos recursos, com a paridade entre a internalização de benefícios e custos, sem reflexos para terceiros. A delimitação e proteção do direito de propriedade atenuam o problema da exaustão dos recursos, sendo esta a sua justificativa. Michael Heller alerta que a regulamentação absoluta do direito de propriedade pode acarretar o desvirtuamento do instituto, causando o que ele denominou tragédia dos anticomuns (tragedy of anti-commons).87 A regulamentação excessiva do direito de propriedade, em padrões individualistas e absolutos, pode inibir a sua melhor utilização econômica em razão do desperdício ou subutilização dos recursos. Os direitos de exclusão passam a ser entrave ao bom uso dos recursos, impossibilitando a alocação mais eficiente dos mesmos. A alocação eficiente de recursos, portanto, pressupõe o equilíbrio entre as tragédias anunciadas, de forma a internalizar os danos da utilização indevida de bens, considerada a sua natureza e peculiaridades, afastando as externalidades que recairiam sobre a totalidade do grupo social. 5. Novas formas de propriedade A característica mais marcante do direito de propriedade é a sua dimensão histórica, cuja percepção deve nortear tanto os doutrinadores como os operadores do direito. Atualmente, como visto, o direito de propriedade é conformado por sua vinculação aos fins previstos na Constituição Federal, especialmente, a construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A potencialidade da funcionalidade do direito de propriedade é imensa e a partir dela pode-se construir uma feição mais humana e inclusiva do direito de propriedade. Contudo, apesar dos avanços percebidos na compreensão do direito de propriedade, ainda é constatado um grande fosso entre a previsão abstrata e a concretização do direito de 87 HELLER, Michael. The tragedy of anti-commons: property in the transition form Marx to Markets. Harvard Law Review, Massachusetts, n.111, p.621-688, jun. 1997, p.668. O termo (tragedy of anticommons) foi inicialmente utilizado por MICHELMAN Frank. Property, utility and fairness: comments on the ethical foundation of just compensation law. Havard Law Review, Massachusetts, v.80, n.6, p.1165-1258, 1982. 118 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I propriedade. As pontencialidades do direito de propriedade funcionalizado não tem sido exploradas. Mais do que isso, pode-se mesmo questionar a incapacidade da regulação positivada contemplar todas as realidades de apropriação de bens. É fato que a dinâmica da sociedade pós-moderna faz com que o fenômeno propriedade extrapole a sua regulação jurídica, o que tem acarretado grandes conflitos. Joaquim Falcão é um dos mais incisos críticos do conceito jurídico de propriedade, até mesmo com a nova feição que lhe assegura o Código Civil. Sustenta o autor que o novel conceito é incapaz de resolver os problemas de nossa realidade. Baseado na questão das favelas e loteamentos irregulares, a moradia ilegal dos grandes centros urbanos, onde, em mais de dois milhões de domicílios, os moradores não conseguem provar a condição de proprietários, aponta que duas são as maneiras que temos mal enfrentado o problema: ―Primeiro, por meio do conceito jurídico tradicional de direito de propriedade, inclusive o do novo Código Civil. Esta legislação não chega às favelas. É dos ricos. Tem sido atenuada com institutos jurídicos como a bem intencionada usucapião urbana, introduzida pela Constituição de 1988. Mas esta solução, aprisionada por entraves burocráticos até agora intransponíveis, também não se revela solução de massa à altura da nossa urgência social. A segunda é a solução da violência, adotada por alguns movimentos sociais, especialmente no campo, que nos afasta da democracia e do Estado de direito‖. 88 De fato, muitas inovadoras manifestações da propriedade têm surgindo na contemporaneidade como, por exemplo, aquela que decorre das transferências dos contratos de mútuo do Sistema Financeiro da Habitação, por meio dos denominados “contratos de gaveta”, sem o formalismo exigido por lei. Será que não é hora de valorizar a posse legítima e facilitar o acesso efetivo à propriedade? Da mesma forma, como deixar de reconhecer a posse de residências urbanas transferidas à margem do Registro Público, pelos próprios particulares? Por outro lado, será que a propriedade rural improdutiva, constituída em perfeita sintonia com as exigências legais, merece proteção? Será que não é hora de uma efetiva concretização de uma reforma agrária que permita o acesso à terra a quem a faça produzir? 88 FALCÃO, Joaquim. Novo direito de propriedade. Conjuntura Econômica, Brasília, v.60, n.10, p.35, out. 1986. 119 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A premente necessidade de modificação da realidade social demanda uma atuação mais firme e decidida do Poder Judiciário, que deve ter uma nova compreensão do que é o direito de propriedade. Como a fundamentação econômica pode ser útil para a percepção, reconhecimento e proteção de novas formas de propriedade? A fundamentação econômica desnuda o caráter instrumental do direito de propriedade, o que facilita o reconhecimento de novas formas de manifestação desse direito. 6. Conclusão O caráter mais marcante do direito de propriedade é a sua historicidade, que induz a que sua concepção esteja vinculada aos aspectos sociais e econômicos do tempo e lugar em que exercido. No direito nacional, a evolução do direito de propriedade leva aos padrões narrados na Constituição de 1988 e no Código Civil de 2002, em que o direito de propriedade é funcionalizado, ou seja, o seu exercício é direcionado à concretização dos valores narrados no texto constitucional, especialmente à construção de uma sociedade livre, justa e solidária. A fundamentação clássica do direito de propriedade desconsidera o seu caráter histórico e instrumental, o que inviabiliza o reconhecimento de novas formas de manifestação do direito de propriedade, tão freqüentes na sociedade pós-moderna, caracterizada pelo consumo de massa e por uma ampla diversidade de interesses. A fundamentação econômica do direito de propriedade, que a justifica como o instrumento para garantir o uso mais eficiente dos bens, enseja novo paradigma na compreensão do problema, que passa a ser visualizada de forma mais aberta e democrática, 7. Referências bibliográficas ASCENSÃO, José de Oliveira. 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INTRODUÇÃO O trabalho busca analisar a razão pela qual impera na doutrina a diversidade de posicionamentos sobre a natureza jurídica dos direitos de propriedade intelectual, bem como a razão pela qual esta disparidade de posicionamentos não parece interferir na operacionalização da tutela de tais direitos. 1 Professor Permanente no Curso de Pósgraduação Mestrado/Doutorado em Direito da UFSC. Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Universidade Clássica de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual e Direito e Tecnologia da Informação. Coordenador do Programa “Casadinho”/CNPQ – UFC-UFSC junto ao programa consolidado da UFSC. 2 Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Pós-graduando – MBA em Direito Empresarial pela FGV/Rio. Ex-Advogado da Petrobras. Pesquisador associado do Programa “Casadinho”/CNPQ – UFC-UFSC. 126 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Superada esta análise, buscar-se-á verificar as implicações práticas que a definição adequada da natureza jurídica terá tanto sobre a interpretação doutrinária como sobre a interpretação jurisprudencial da propriedade intelectual. Nesse contexto, o trabalho traçará alguns conceitos básicos sobre a propriedade intelectual, passando a analisar diferentes posicionamentos doutrinários sobre a natureza jurídica desses direitos imateriais. Após, far-se-á a análise de posicionamento jurisprudencial exarado pelo Supremo Tribunal Federal quanto a natureza jurídica dos direitos de propriedade industrial, bem como verificando-se se esta noção pode ser validamente estendida às demais searas da propriedade imaterial. Por fim, o estudo irá suscitar primeiras inferências decorrentes desta análise crítica da natureza jurídica da propriedade intelectual. Apontar-se-á uma forma mais refinada de percepção do sistema de tutela das criações imateriais bem como a idéia de que uma proteção mais alargada não é necessariamente a mais desejável e adequada ao desenvolvimento social. 1 A EXPRESSÃO PROPRIEDADE INTELECTUAL A expressão propriedade intelectual pode ser classificada como genérica, correspondendo ao direito de apropriação sobre criações, obras e produções do intelecto, talento e engenho humanos, englobando uma série de diferentes doutrinas, todas, porém, relacionadas com atividades intelectuais ou com a implementação de idéias, dados e conhecimento em atividades práticas. Na lição de Denis Borges Barbosa, compreende-se a noção de Propriedade Intelectual: “(...) como a de um capítulo do Direito, altissimamente internacionalizado, compreendendo o campo da Propriedade Industrial, dos direitos autorais e outros direitos sobre bens imateriais de vários gêneros”.3 3 BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. vol. 1. p. 5. 127 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Bettina Bulzico possui visão ainda mais abrangente, entendendo que a Propriedade Intelectual ―(...) envolve toda atividade humana de caráter intelectual, que seja passível de agregar valores e que necessite de proteção jurídica‖.4 Observa-se que a expressão consagrou-se a partir da “Convenção de Estocolmo”, de 14 de julho de 1967, com a constituição da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI (World Intellectual Property Organization – WIPO), que, posteriormente, veio a se tornar uma agência especializada dentro do sistema das Nações Unidas, em 17 de dezembro de 1974. No Brasil, o a convenção de constituição da OMPI foi promulgada pelo Decreto nº 75.541, de 31 de março de 1975.5 Assim, é possível perceber que o substrato da expressão “propriedade intelectual” originou-se de forma centrípeta, decorrente da convergência e aglutinamento de uma série de doutrinas e ramos jurídicos em torno de aspectos comuns. A própria linguagem da convenção é utilizada de forma a incluir direitos sobre todas as atividades intelectuais em quaisquer campos do conhecimento. Nesse particular, a “(...) OMPI unifica os conceitos, abolindo a tradicional divisão existente no modelo tradicional ou histórico, que separava os direitos dos autores e dos inventores em duas categorias: direito de autor e conexos e propriedade industrial”.6 Com efeito, Luiz Gonzaga Silva Adolfo chega a dizer que a expressão não seria mais adequada frente a uma diversidade de doutrinas e searas que engloba e a 4 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Evolução da Regulamentação Internacional da Propriedade Intelectual e os Novos Rumos Para Harmonizar a Legislação. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Unibrasil. Vol 1. 2007. Disponível em: <http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br>. Acesso em: 25.07.08. 5 O art. 2º da Convenção indica de forma exemplificativa e ampliativa uma série de direitos que estariam englobados pela noção de propriedade intelectual. No texto do Decreto 75.541/75: “(...)Para os fins da presente Convenção, entende-se por: (...) viii “propriedade intelectual”, os direitos relativos: às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiofusão; às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico”. 6 BASSO, Maristela. A proteção da propriedade intelectual e o direito internacional atual. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 41. n. 162. p. 287-310. abr./jun. 2004. p. 288. 128 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I confusão no plano doutrinário, chegando a sugerir uma expressão ainda mais genérica, como Direitos Intelectuais ou Direito Intelectual.7 É interessante verificar que a diversidade de expressões é também indicativa da ausência de uniformidade verificável, tanto na doutrina, como na jurisprudência. De fato, a pluralidade de expressões é acompanhada pela devesa de diversas naturezas jurídicas distintas para os mesmos direitos sobre bens imateriais. Pedro Mizukami adverte que o campo da Propriedade Intelectual está passando por uma crise, multifacetada, com diversos aspectos interligados: a) uma crise conceitual; b) uma crise de modelos de negócios; c) uma crise de eficácia; d) uma crise de legitimidade. O autor adverte que este crise se da tanto num aspecto jurídico quanto político, existindo um descompasso entre concepções político-ideológicas que se rivalizam na busca de uma forma ideal de proteção aos bens imateriais.8 Assim, a expressão consagrada deve ser tomada com cautela, uma vez que pode suscitar uma falaciosa noção de ser um conceito auto-evidente, ou seja, propriedade sobre bens intelectuais. Passa-se a analisar a possibilidade de se encontrar a natureza jurídica real desta propriedade. 2 AS NATUREZAS JURÍDICAS DA PROPRIEDADE INTELECTUAL NA DOUTRINA Antes que se disserte sobre a natureza jurídica da propriedade intelectual é interessante chamar a atenção para a advertência realizada por Carol Proner. A autora indica que não é possível definir a natureza jurídica da propriedade intelectual de forma única, onipresente, pois o mesmo seria negar a historicidade e transformações que se 7 ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras privadas, benefícios coletivos: a dimensão pública do direito autoral na sociedade da informação. Tese de Doutorado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. São Leopoldo. 2006. p. 144-145. 8 MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Função social da propriedade intelectual: compartilhamento de arquivos e direitos autorais na CF/88. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. São Paulo. 2007. p. 168. 129 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I sucederam sobre as doutrinas que compõe atualmente o conceito. 9 Contudo, é possível ilustrar o amplo espectro de proposições formulados na doutrina pátria. Para Orlando Gomes, por exemplo, os direitos intelectuais não podem ser confundidos com a propriedade comum, embora possuam caracteres similares: O fenômeno da propriedade incorpórea explica-se como reflexo do valor psicológico da idéia de propriedade, emprestado pela persistente concepção burguesa do mundo. Embora esses direitos novos tenham semelhança com o de propriedade, por isso que também são exclusivos e absolutos, com ela não se confundem. A assimilação é tecnicamente falsa. Poderiam, contudo, enquadrar-se numa categoria à parte, que, alhures, denominamos, quasepropriedade, submetida a regras próprias.10 Carlos Alberto Bittar também aponta para um caráter sui generis dos direitos intelectuais ao tratar do direito autoral: São direitos de cunho intelectual, que realizam a defesa dos vínculos, tanto pessoais, quanto patrimoniais, do autor com sua obra, de índole especial, própria, ou sui generis, a justificar a regência específica que recebem nos ordenamentos jurídicos do mundo atual. 11 Por outro lado, existem doutrinadores que indicam que as características peculiares dos bens imateriais não desnaturam a possibilidade de configuração de um direito de propriedade dentro da ordem jurídica. Túlio Ascarelli, tratando dos direitos de patente, argumenta que é possível sustentar, não obstante o caráter resolúvel, que se trata de um direito absoluto sobre um bem imaterial.12 No mesmo sentido, a posição de Luiz Leonardos, para quem o direito de propriedade industrial ―(...) é um direito absoluto, patrimonial, oponível erga omnes, ou seja, o seu titular dispõe do usus, do fructus e do abusus sobre os bens que constituem o seu objeto”.Conclui ao final “(...) afirmando que o titular do direito de uma invenção patenteada é titular de um direito de propriedade, idêntico a qualquer outra propriedade do direito comum, como regulada no Código Civil”.13 Nesse mesmo viés, Gama Cerqueira caracteriza os direitos de propriedade intelectual como direitos reais: 9 PRONER, Carol. Propriedade Intelectual e Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2007. p. 141. 10 GOMES, Orlando. Direitos reais. 2. ed. São Paulo: Forense, 1962. p. 318 11 BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 11. 12 ASCARELLI, Tullio. Panorama de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. p. 200. 13 LEONARDOS, Luiz. Apud. LABRUNIE, Jacques. Direito de Patentes. São Paulo: Manole, 2006. p. 11. 130 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I (...) o direito do autor e do inventor é um direito privado patrimonial, de caráter real, constituindo uma propriedade móvel, em regra temporária e resolúvel, que tem por objeto uma coisa ou bem imaterial; denomina-se, por isto, propriedade imaterial, para indicar a natureza de seu objeto. 14 Assim, é possível afirmar que a idéia de que a propriedade intelectual é uma forma de propriedade é recorrente na doutrina. A propagação da noção de propriedade intelectual como uma forma de propriedade, não obstante especial, é problemática como bem adverte Pedro Mizukami, frente à força retórica do termo propriedade. Com efeito, essa retórica proprietária leva a uma confusão entre os institutos e uma tendência de aproximar a tutela destinada aos bens imateriais da tutela da propriedade tradicional, eclipsando um debate mais aprofundado das políticas públicas associadas e dos contornos que deve possuir o sistema de proteção.15 Essa retórica proprietária serve até mesmo com justificativa da noção apontada por doutrinadores como William Fisher, que ressalta ser a expansão a característica mais marcante e presente em todos os ramos da propriedade intelectual desde a sua constituição.16 Seja no ramo do direito autoral, pelas extensões de proteção às obras literárias e artísticas, seja no ramo da propriedade industrial com o vertiginoso crescimento de aplicações e concessões de patentes. Para José de Oliveira Ascensão, a “(...) expansão do âmbito dos direitos intelectuais é acompanhada por um reforço constante dos poderes assegurados aos titulares. Um dos aspectos mais salientes está na incessante redução dos limites dos direitos intelectuais”.17 Com efeito, há uma diferenciação sutil entre ter a natureza jurídica de propriedade ou ser tutelado tal qual a propriedade. Observe-se que a ordem jurídica pode conferir diversos direitos que se assemelhem a um domínio nos moldes da propriedade tradicional, sem, contudo, ser o objeto dessa proteção identificável com bens físicos móveis e imóveis. 14 CERQUEIRA, João Gama. Tratado da propriedade industrial. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1982. vol. 1. p. 130. 15 MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Op cit. p. 173. 16 FISHER, William W. The Growth of Intellectual Property: A History of the Ownership of Ideas. Berkman Center for Internet and Society. Harvard University. Disponível em: <http:cyber.law.harvard.edu/property99/history.html>. Acesso em: 08/08/08. 17 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito intelectual, exclusivo e liberdade. Revista da ESMAFE – Escola de Magistratura Federal da 5ª Região. Pernambuco, nº 3. 2002. p. 125-145. p. 126. 131 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Richard Posner, por sua vez, sintetiza que a propriedade intelectual se relaciona com valores imateriais que podem ser ou não trazidos a uma forma de tutela similar à propriedade. Nas palavras do autor: By intellectual property we mean ideas, inventions, discoveries, symbols, images, expressive works (verbal, visual, musical, theatrical), or in short any potentially valuable human product (broadly, ―information‖) that has an existence separable from a unique physical embodiment, whether or not the product has actually been ―propertized‖, that is, brought under a legal regime of property rights.18 Ainda assim, existe na doutrina um contraponto as concepções de que os direitos sobre bens imateriais sejam de fato propriedade ou uma forma de tutela jurídica artificialmente similar. Doyen Roubier, por exemplo, indicando uma não-conformidade dos direitos de propriedade intelectual com a clássica divisão civil, classificava os direitos de propriedade intelectual como direitos de clientela, ou seja, direitos que têm por função assegurar ou proteger a clientela. Outras teorias classificam tais direitos como direitos de monopólio, focando a análise no caráter exclusivo dos direitos.19 Tais doutrinadores apontam o caráter estritamente de privilégio que possuem os direitos de propriedade intelectual, buscando fundamento na natureza histórica de tais direitos, que asseguravam tão somente favores reais para a exploração de tecnologias úteis e a reprodução de livros. Assim, direitos de propriedade intelectual se aproximariam de um monopólio artificial que é criado em favor de autores e inventores. Para tal corrente, a outorga de direitos de propriedade intelectual, em qualquer de suas doutrinas específicas, nada mais seria que a tolerância de um monopólio, de uma exclusividade por parte do Estado em favor do indivíduo. Afasta-se, portanto, de uma concepção proprietária para se aproximar a de uma política pública, de uma política de incentivo a criação de bens imateriais fundada na atribuição de direitos exclusivos. 18 POSNER, Richard A.; LANDES, William M. The Economic Structure of Intellectual Property Law. Cambridge: Harvard University Press, 2003. p. 1. Tradução livre: “Por propriedade intelectual queremos dizer idéias, invenções, descobertas, símbolos, imagens, trabalhos expressivos (verbal, visual, musical, teatral), em síntese qualquer produto humano que tenha potencial valor (de forma ampla, “informação”) e que tenha existência separada de um substrato físico, queira ou não este produto tenha sido privatizado, isto é, trazido a um sistema legal de direitos de propriedade.” 19 LABRUNIE, Jacques. Direito de Patentes. São Paulo: Manole, 2006. p. 10. 132 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Para essa doutrina, portanto, a idéia de natureza jurídica fica em segundo plano aos argumentos que justificam a adoção dessa política por parte do ordenamento jurídico. Robert Sherwood, por exemplo, relata o surgimento de algumas teorias sobre a razão pela qual se dá esta proteção aos bens imateriais. Para o autor, estas se dividem em: “recompensa”; “recuperação”, “incentivo” e “risco”: A teoria da recompensa, diz, na verdade, que o criador ou inventor daquilo que deve ser protegido deveria ser recompensado por seu esforço. [...] A teoria da recuperação diz, talvez sem meditar muito, que o inventor ou criador, por ter despendido esforço, tempo e dinheiro, deveria ter a oportunidade de recuperar algo do que gastou. [...] A teoria do incentivo diz que é bom atrair esforço e recursos para o trabalho e desenvolvimento da criatividade, descobrimento e inventividade. [...] (...) teoria do risco (...) reconhece que a propriedade intelectual é o resultado de um trabalho desbravador, e que este trabalho possui um risco inerente. 20 No mesmo viés de classificação, a doutrina americana divide em três grandes grupos as teorias que tem embasado a justificativa de um sistema de proteção: teorias da “recompensa através de monopólio”; teorias do “incentivo pelos lucros com o monopólio” e teorias de “troca pelos segredos”.21 Logo, os direitos de propriedade intelectual não seriam direitos de propriedade, mas um portfólio de privilégios assegurados na forma de direitos exclusivos, a luz das teorias apresentadas. Denis Borges Barbosa afirma que tais direitos são monopólios, apesar de diferirem de uma idéia de monopólio strictu senso, pois se tem a exclusividade legal da utilização de um elemento comercial e não o monopólio autêntico de exclusividade da atividade do mercado.22 20 SHERWOOD, Robert. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo: EdUsp. 1992. p. 46-47. 21 POPP, Shane M. The Third Door Is off the Hinges: A Prospective Study on the Effects of the create Act Against Federal Patent Policies. John Marshall Review of Intellectual Property Law. p. 597607. Spring 2005. p. 604. 22 BARBOSA, Denis Borges. Usucapião de Patentes e Outros estudos de Propriedade Intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.76 133 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Em linha similar, Robert Sherwood entende que a propriedade intelectual deve ser entendida de forma diversa de um monopólio, pois esta deve ser percebida como uma proteção, um estímulo ao desenvolvimento humano. Na visão do autor, o foco da noção de monopólio é a exclusividade na própria atividade a ser desempenhada. Já para a propriedade intelectual o foco é exclusividade de aproveitamento de uma criação intelectual, nos limites do necessário, para promover a inovação. Nesse sentido: A propriedade intelectual pode oferecer uma vantagem importante, mas não é um monopólio. Num monopólio, especialmente quando for criado por iniciativa governamental, como é freqüente em muitos países comunistas e em desenvolvimento, a empresa, na verdade, não fracassa porque ela é protegida. A propriedade intelectual protege a idéia, a invenção, a expressão criativa, mas não a empresa. No caso da propriedade intelectual, o produto da mente pode fracassar ou ser suplantado no mercado. No caso de um monopólio, é a própria empresa o objeto de proteção.23 Consubstanciando tal entendimento, segue a posição do ilustre Richard Posner, para quem: (…) a patent or copyright confers a legal ―monopoly‖ on the patent or copyright holder. This usage, though common, is unfortunate, because it confuses an exclusive right with an economic monopoly. I have the exclusive right to the use of my house, but I am not a monopolist and would not be even if the house were very valuable. A patent or copyright does carve out an area of exclusive rights, but whether the rights holder can use his rights to obtain a monopoly return depends on whether there are good substitutes for his product (…)24 23 SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo: EdUsp. 1992. p.61. 24 POSNER, Richard A., Transaction Costs and Antitrust Concerns in the Licensing of Intellectual Property. John Marshall Review of Intellectual Property. Vol. 4. Iss. 3. 2005. p. 329. Tradução livre: “(...) uma patente ou um copyright conferem um “monopólio” legal para os seus detentores. Esta prática, apesar de comum, é um tanto infeliz, pois confunde a idéia de um direito exclusivo com a idéia de um monopólio econômico. Eu tenho o direito exclusivo ao uso de minha casa, porém não sou um monopolista, nem mesmo se a casa fosse extremamente valiosa. Uma patente ou um copyright efetivamente cria uma área de direitos exclusivos, porém se o titular será ou não capaz de usar esses direitos para obter um monopólio depende da existência ou não de bons substitutos para o seu produto (...)”. 134 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Tais considerações são precisas, porém, estão baseadas na premissa de um correto equilíbrio, tanto no escopo como no prazo de proteção, que a legislação confere à propriedade intelectual. Contudo, a retórica proprietária e a expansão acima identificadas tendem a operar o desequilíbrio, uma vez que a amplitude de proteção limita as alternativas de mercado que colocariam em cheque os detentores de bens imateriais para não abusar de seus ativos. Não obstante a permanência da cizânia doutrinária, o posicionamento de equalizar a propriedade intelectual com monopólios legais encontra importante respaldo na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na ADI 3.273/DF que tratou do caso do monopólio estatal sobre hidrocarbonetos. Não obstante o caso não tenha sido voltado para a análise da propriedade intelectual, dentro da fundamentação do acórdão foi adotado posicionamento expresso de que os direitos de propriedade intelectual seriam monopólios legais privados, razão pela qual se justifica um estudo de caso: 3 ANÁLISE DA ADI 3.273/DF – PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO MONOPÓLIO PRIVADO NA VISÃO DO STF Observa-se que os apontamentos sobre a natureza jurídica da propriedade industrial se fizeram presentes até mesmo na ementa da ADI 3273/DF: (...) 1. O conceito de monopólio pressupõe apenas um agente apto a desenvolver as atividades econômicas a ele correspondentes. Não se presta a explicitar características da propriedade, que é sempre exclusiva, sendo redundantes e desprovidas de significado as expressões "monopólio da propriedade" ou "monopólio do bem". 2. Os monopólios legais dividem-se em duas espécies: (i) os que visam a impelir o agente econômico ao investimento --- a propriedade industrial, monopólio privado; e (ii) os que instrumentam a atuação do Estado na economia. (...) Em outra passagem relevante, o ministro Eros Grau assim se manifesta sobre os monopólios privados: (...) 135 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Os monopólios legais dividem-se, por sua vez, em duas espécies: (i) os que visam impelir o agente econômico ao investimento e (ii) os que instrumentam a atuação do Estado na economia. Transitamos, quando diante daquele primeiro tipo de monopólio, pela seara da chamada propriedade industrial: da e na proteção dos brevetos, marcas, know-how etc. emerge autentico monopólio privado, ao detentor do direito de sua exploração. (...) Logo, a natureza da propriedade industrial seria de um monopólio legal não constante daqueles expressamente previstos na constituição federal. Questionamento que se deve fazer agora é a possibilidade de extensão dessa análise aos demais direitos de propriedade intelectual. Julga-se ser possível uma vez que a análise baseou-se nos efeitos de tais direitos previstos constitucionalmente, ou seja, o seu caráter exclusivo, nota esta que é comum a tutela dos diversos direitos imateriais. Robert Sherwood, por exemplo, constrói a unidade temática da propriedade intelectual em torno, exatamente, dessa noção de direito exclusivo, indicando oito elementos comuns às diversas formas de proteção: o conceito de um direito exclusivo; o mecanismo para a criação do direito exclusivo; a duração do direito exclusivo; o interesse público correlato ao direito exclusivo; a negociabilidade desse direito; os acordos informais e entendimentos entre as nações; a vigência do direito exclusivo; e os arranjos de transação para efeitos de mercado.25 4 A NECESSIDADE DE UMA REFLEXÃO SOBRE O DIREITO DE EXCLUSIVO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL E AS IMPLICAÇÕES NA SOCIEDADE INFORMACIONAL O Direito Industrial como visto, tem seu marco na Convenção de Paris (1883) e posteriormente nas suas revisões na exata medida em que, abrangendo e protegendo as invenções, modelos de utilidade, desenho industrial, marcas, indicações geográficas, todas originalmente foram concebidas e contextualizadas no momento tecnológico derivado da Revolução Industrial. 25 SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo: EdUsp. 1992. p. 37. 136 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Assim é que o Direito Industrial foi paulatinamente aperfeiçoado, sendo atualizadas suas normas a cada avanço técnico, mas sempre dentro do meio tecnológico que amoldou os interesses econômicos que erigiram a Sociedade Industrial. O Direito Industrial, para proteger os interesses econômicos e a tecnologia intrínseca no bem intelectual por ele tutelado, exige além do esforço intelectual original, a necessidade da caracterização de novidade, atividade inventiva, aplicabilidade industrial, não impedimento e suficiência descritiva. Tudo para que, preenchidos tais requisitos, possa ser atribuída carta patente para um novo produto ou processo, se disto resultar no seu conjunto um efeito técnico diferente ou novo. De tal forma que, havendo a concessão da patente, a idéia, que desenvolvida criou um novo produto ou processo, ganha proteção pelo direito de exclusivo que terá o titular da patente de explorá-la economicamente por um determinado tempo. Com este direito de exclusivo poderá o criador reaver com a comercialização do produto os investimentos que dispensou, além de auferir lucro pela sua invenção. Desde a União de Paris, todas essas premissas foram criadas e paulatinamente estabelecidas por meio de sucessivas revisões de tratados, sendo incorporadas às normas internas de Direito Industrial pelos mais diversos países. Este esforço de regulamentação representa que a cada inovação tecnológica ocorreu uma busca de equilíbrio de interesses econômicos envolvidos no processo de criação, desenvolvimento e comercialização de bens industriais, isto para a sua proteção e aperfeiçoamento nos séculos XIX e XX. O impacto da tecnologia da informação, no que diz respeito à construção jurídica da propriedade industrial e seu desdobramento para o ambiente virtual no ciberespaço, toma novos contornos e dimensões, antes inexistentes: a Revolução Tecnológica da Informação trouxe uma tecnologia digital, que é facilmente autoduplicável sem custo considerável agregado, como o era na reprodução de um produto industrializado; o conhecimento necessário para ter como resultado a criação de um produto industrial, que constituía uma barreira técnica contra a reprodução não licenciada, deixa de ser significativo diante da tecnologia de reprodução propiciada pelos programas de computador. Quer-se com isso dizer que a Revolução Tecnológica, e principalmente as inovações derivadas dos recursos informáticos, em que o programa de computador é 137 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I elemento central de criação e desenvolvimento tecnológico, acarretou, desde seu surgimento, e sobretudo com o advento da internet, uma nova busca de equilíbrio de interesses econômicos, no que tange à criação, uso e incremento desta tecnologia em todos os segmentos da Sociedade Informacional. É de todo necessário uma reflexão ampla sobre a natureza jurídica da propriedade intelectual, sobre os limites ao direito de exclusivo e sua implicações advindas da Revolução da Tecnologia da Informação. O impacto da tecnologia da informação, no que diz respeito à construção jurídica da propriedade industrial e seu desdobramento para o ambiente virtual no ciberespaço, teve sua discussão ampliada após decisão da Corte norte-americana de 23 de julho de 1998, favorável à concessão de patentes relacionadas a computer programs e business methods,26 mais especificamente no que diz respeito ao direito de exploração econômica exclusiva inerente ao patenteamento do software que combine características de processo ou de produto na internet.27 A liberdade de iniciativa é inerente à organização econômica de um Estado constitucional.28 Desta forma, a Constituição Federal brasileira veio a elencar como fundamento do Estado Democrático de Direito os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa.29 26 Trata-se do caso State Street Bank & Trust.Co. vs Signature Financial Group Inc julgado pela Suprema Corte Estadunidense decidindo pela procedência do pedido relacionado a método de fazer negócio utilizando a internet. Tal decisão constitui marco das patentes de invenção relacionadas a computer program e business methods. 27 “Desde o advento da patenteabilidade de software e business method, o incremento do United States Patent & Trademark Office – USPTO é evidenciado em patamares desprovidos de qualquer parâmetro anterior. No ano de 1998, foram depositados aproximadamente 203.000 pedidos de patentes, sendo concedidas cerca de 154.500 novas patentes. Somente no grupo de processamento de dados, computadores e comunicações, ao final de 1998, foram deferidas cerca de 22.000 novas patentes – o que representam um aumento de 40% em relação ao ano anteior – e 1.595 novas patentes de Internet, sinalizando um aumento de 500% sobre os números do ano antecedente. Somente nos primeiros três meses do ano de 1999 foram concedidas 696 patentes relacionadas à Internet”. BALÉCHE, Vinícius Barjas. As patentes de Business Methods e Software. in BAPTISTA, Luiz Olavo (coord.) Novas fronteiras do direito na informática e telemática. São Paulo : Saraiva, 2001, p. 127. 28 “Numa primeira noção, Estado constitucional significa Estado assente numa Constituição reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadão e tendente à limitação do poder.” MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Lisboa : Coimbra Editora, 2002, p.71. 29 Constituição Federal de 1988 – artigo 1.º “A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – Soberania; II – Cidadania; III – A dignidade da pessoa humana; IV – Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – O pluralismo político”. 138 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Tais valores são também reafirmados na Carta brasileira como Direitos Fundamentais do Cidadão no que concerne à livre iniciativa, à liberdade de trabalho, ofício e profissão e à defesa dos direitos de consumidor.30 Por fim, a Carta federal ao regular a ordem econômica houve por garantir a propriedade privada dos meios de produção, a livre concorrência, a defesa do meio ambiente e a busca do pleno emprego.31 Afirmando a Constituição uma opção pelo regime de economia de mercado, adota o princípio da livre iniciativa e da liberdade de concorrência como forma de alcançar o equilíbrio entre os grandes grupos e o direito de estar no mercado também para os pequenos empresários.32 É preciso ter claro que a organização da atividade econômica é feita em sua base pelo empresário ao articular os fatores de produção: (i) o capital, que consiste no investimento econômico necessário para a realização da atividade; (ii) o trabalho, que é ordenado pelo empresário da maneira que ele próprio organiza a mão-de-obra e assalaria; e (iii) a tecnologia ou o know-how necessário para o empreendimento,33 conhecimento este específico sobre o empreendimento, por mais simples e básico que seja para a produção ou circulação de bens ou serviços. 30 Constituição Federal de 1988 – artigo 5.º “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes ternos: (...) XIII – é livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer; (...) XXXII – o Estado promoverá na forma da lei, a defesa do consumidor”. 31 Ver: Constituição Federal de 1988 – Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica – artigo 170. 32 Neste sentido ver: FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 4.a Ed. Rio de Janeiro : Forense, p. 90. 33 “Em determinadas, atividades os direitos de propriedade industrial constituem elementos de grande repercussão econômica na composição do estabelecimento. Basta imaginar os exemplos das patentes para uma empresa voltada ao desenvolvimento de novos produtos, ou a proteção da marca de uma empresa de comércio varejista de renome nacional. Vale, portanto, uma rápida exposição sobre a abrangência da tutela da propriedade industrial no âmbito do direito brasileiro. O fundamento central da tutela da propriedade industrial reside na necessidade de proteção da atividade criativa do empresário, que, desenvolvendo produtos inovadores, ou criando marca que atue em si como elemento de atração da clientela, deve ser garantia de utilização econômica exclusiva destes direitos”. TOKARS, Fábio L. O Risco excessivo no trespasse de estabelecimento empresarial – Desvio da função econômica do contrato. Tese UFPR, 2002, p. 73. 139 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Contudo, o surgimento da internet com altíssimo tráfego de informações possibilitou o aparecimento de incontáveis formas de buscar e apresentar produtos e serviços, a fim de realizar negócios neste novo ambiente tecnológico. A nova economia propiciada pela internet trouxe novos modelos organizacionais com novos processos de negócios para produção34 ou circulação de bens e serviços no ciberespaço.35 Os empreendimentos de pequeno porte no ambiente virtual do ciberespaço desconheceriam fronteiras sendo capazes de atingir todo o mercado global. Seu sucesso residiria em sua agilidade, para que com isso, num primeiro momento, pudesse atrair a atenção de consumidores insatisfeitos com os produtos e serviços fornecidos por empresas tradicionais com grande rede de pontos de venda. Desta forma, consolidar-se-ia um novo tipo de empreendedor com uma nova maneira de realizar negócios. Esta atividade econômica na internet implica investimentos em tecnologia da informação e marketing36 com capacidade operacional para enfrentar as grandes corporações.37 34 “Aqui está o fato que, terrivelmente, muitos parecem não compreender: tanto quanto inspirar o mundo de novas criações, e quanto chamá-los a uma vida de inovações que ninguém poderia imaginar, a Internet irá reposicionar muitos daqueles que são poderosos agora, podendo alterar maneiras de fazer negócios que beneficiam muitas dessas pessoas importantes; e nós devemos esperar que aqueles que terão seus interesses ameaçados irão reagir”. LESSING, Lawrence. Ambientalismo. Alguma coisa deu certo. REINALDO FILHO, Demócrito. (Coord.) In Direito da Informática. Temas polêmicos. Bauru-SP : Edipro, 2002, p. 15. 35 “À medida que o uso comercial da Internet se difunde, as economias locais se aproximam umas das outras e os fatores de produção se internacionalizam, ou, para adotar um termo contemporâneo, se globalizam. A globalização dos fatores de produção, entretanto, depende da liberdade do fluxo dos mesmos entre as diversas economias locais, pelo que devemos, trabalhar com a expectativa de contínuo alinhamento de preços de terra, capital, trabalho e tecnologia com certas reservas, tendo um olho sobre as possibilidades tecnológicas e empresariais e outro sobre as limitações políticas e, sobretudo, legais”. WYLIE, Eduardo. Economia da Internet. Rio de Janeiro : Editora Axcel Books, 2000, p. 73. 36 “As assinaturas eletrônicas garantem as identidades, as comunições virtuais onde as pessoas aprendem a conhecer-se mutuamente, o marketing personalizado que estuda os perfis particulares dos consumidores de informação em linha, a multiplicação dos contatos e das redes que permitem obter informações sobre os indivíduos e as suas reputações, sem contar as diferentes maneiras de apresentação e de verificação das apresentações dos outros, tudo isto parece garantir um nível de confiança aceitável. (...) o ciberespaço oferece um meio excepcional de escolher parceiros quotidianos de todos os gêneros entre um leque muito mais variado do que aquele a que temos acesso fisicamente todos os dias, o que é um elemento favorável à qualidade da sociabilidade em linha”. LÉVY, Pierre. Filosofia World. O mercado. O ciberespaço. A consciência. Trad. Carlos Abomtim de Brito. Lisboa : Instituto Piaget. 2001, p. 70 e 71. 37 “Não é exagero afirmar que o surgimento da Internet e o fim da reserva de mercado no setor de informática, em 1992, colocaram sob a luz dos holofotes uma nova geração de empreendedores brasileiros. Talvez, sim, seja exagero compara-los aos seus pares norte-americanos, como Marc Andreesen – que depois de criar o Mosaic o rebatizou para Netescape Navigator, ganhando alguns dividendos por isso – ou Steve Case – um havaiano que teve a idéia de criar uma empresa chamada American Online (AOL) – em termos de importância para a formação da industria da Internet. Não em 140 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A atividade econômica desenvolvida pela internet ocasionaria a geração de emprego redimensionando as características do trabalho humano e flexibilizando-o, da mesma forma que as inovações tecnológicas demandaram novas profissões, destinadas ao desenvolvimento de novas técnicas comunicacionais, como: os webmasters, programadores responsáveis pelo gerenciamento tecnológico de um site de internet, ou ainda, webdesigners, que são desenhistas industriais especializados na concepção estética de páginas de internet. É fato que cada avanço tecnológico é gerador de mudanças organizacionais e trabalho. Foi assim com a Revolução Industrial e sua conseqüente automação do processo produtivo. Contudo, diante desse fenômeno social do trabalho humano com a Revolução Tecnológica, a vida digital provocou indagações sérias. Talvez a mais preocupante seja a denominada exclusão digital, que alija parcela significativa da sociedade de seus avanços e benefícios.38 O fenômeno da expansão da atividade econômica desenvolvido pela internet refletiu-se em particular nas relações entre o fisco e o contribuinte,39 não só na modalidade como nos conteúdos através dos quais a relação se desenvolve. Inúmeros estudos vêm sendo realizados40 sobre sua implicação fiscal no comércio de bens e serviços, envolvendo impostos diretos, inclusive aqueles que alcançam o rendimento formado pelas operações transnacionais decorrentes do uso das novas tecnologias. termos de brilhantismo. É o caso de Marcelo Lacerda, um dos pioneiros da Internet, brasileira, que no começo da carreira era chamado de Bil Gates tupiniquim”. VIEIRA, Eduardo. Os bastidores da internet no Brasil. São Paulo : Manole, 2003, p. 19. 38 “(...) em certo sentido, a globalização implica um acesso mais amplo, mais não equivalente para todos, mesmo em sua etapa teoricamente mais avançada. Do mesmo modo, os recursos naturais são distribuídos de forma desigual. Por tudo isso, acho que o problema da globalização está em sua aspiração a garantir um acesso tendendialmente igualitário aos produtos em um mundo naturalmente marcado pela desigualdade e pela diversidade. Há uma tenseão entre esse dois conceitos abstratos. Tentaremos encontrar um denominardor comum acessível a todas as pessoas no mundo, a fim de que possam obter coisas naturalmente não acessíveis a todos”. HOBSBAWM, Eric. O novo século. São Paulo : Cia das letras, 2000, p. 75. 39 “Como tributar algo que envolva elementos e conceitos pouco conhecidos como redes de computadores, softwares, serviços virtuais, backbone, estruturas de telecomunicações (apenas para utilizar a linguagem corrente) no caso da prestação de serviços de comunicação? Além disso, as leis que se referem ao tema e aos mecanismos tecnológicos de compreensão dessa prestação são suficientes para elucidar todos os fatos envolvidos, em face do direito positivo brasileiro?” OLIVEIRA, Edson Luciani de. Imposto sobre as Prestações de Serviços de Comunicação via Internet. Curitiba : Juruá, 2003, p. 31. 40 Neste sentido ver: MARINS, James. (Coord) Tributação e Tecnologia. Curitiba : Juruá, 2002, p. 12.; IVES GANDRA, da Silva Martins. (Coord).Tributação na Internet. São Paulo : 2001, p. 113.; OLIVEIRA, Julio Maria de. Internet e Competência Tributária. São Paulo : Dialética, 2001, 69.; GRECO, Marco Aurélio. Internet e Direito. 2.a Ed. São Paulo : Dialética, 2000, p. 179. 141 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A utilização de inovações tecnológicas em benefício da sociedade fez surgir – além de novas empresas que passariam a existir em função da internet – uma nova onda de investimentos em empresas de alta tecnologia por meio da National Association of Securities Dealers Automated Quotation System – NASDAQ.41 Os limites impostos pela patenteabilidade dos produtos ou serviços relacionados aos business methods constituem um dos maiores desafios para a Sociedade Informacional. Isto desde a histórica decisão da Suprema Corte Estadunidense ocorrida em 1998, relacionada à patenteabilidade do computer programs e business methods, no caso State Street Bank & Trust Co. vs Signature Financial Group Inc., pois implica a mudança dos conceitos e princípios que regem a ordem econômica do Estado, desafiando o operador do direito a compreender e buscar balizas deste novo paradoxo entre a liberdade de iniciativa e direito industrial no ciberespaço por meio de uma interpretação sistêmica da problemática apresentada. A livre iniciativa como direitos humanos fundamentais é de inafastável importância para uma economia de mercado. A forma como está sendo regulada a matéria pelas Cortes norte-americanas levará no caso específico do programa de computador e sua proteção jurídica no ciberespaço a um paradoxo entre os direitos fundamentais da livre iniciativa e liberdade de concorrência com o antagonismo do monopólio. É preciso ter claro que é a liberdade de iniciativa na internet que possibilita a auto-organização das atividades econômicas, nos incontáveis sites e páginas existentes no ciberespaço. Da mesma forma, deve ser assegurada a liberdade da utilização da tecnologia digital com o uso de programas de computador, sem os quais a atividade econômica não poderia ser realizada, pois estes softwares estão na base das novas formas de 41 “O mercado do NASDAQ é um mercado representado por mais de 500 negociantes que trocam títulos de mais 6 mil empresas. Estes agentes também são denominados por "Market Makers" que entram em competição com base em oferecer o melhor preço de compra e de venda. Este tipo de mercado não está sujeitas a regulamentações como o NYSE. A inscrição das empresas no mercado é livre, no entanto terá que mandar um documento à SEC. As empresas cotadas no NASDAQ não são apenas empresas do sector da Internet ou da informática. Encontramos bancos, sociedades biotécnicas, indústrias. Até este momento, o NASDAQ era apenas um mercado orientado para "as cotações". A concorrência baseava-se na compra ou venda dos títulos pelos Market Makers. Fonte : www.bolsapt.com/formacao/Default.asp%3FLivro%3D1%26Capitulo. 142 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I apresentação e circulação de bens e serviços, agora num ambiente virtual e sem limites de fronteiras na Sociedade Informacional. Wemer KOCH assevera que “nossa tecnologia moderna (com todas as vantagens e desvantagens) não teria sido possível com uma ciência não-livre. Penso que o sofware e a ciência são similares em muitos aspectos”.42 O paradoxo entre os direitos fundamentais da livre iniciativa e liberdade de concorrência, e o antagonismo do monopólio, está envolvido numa nova questão gerada por um novo conflito de interesses econômicos. A proteção do Direito Industrial conferida pela patentabilidade somente se justifica se, concomitantemente à proteção do investimento com a criação do monopólio de exploração, houver a proteção da liberdade de inovações. O paradoxo só existe porque a proteção conferida pelo Direito Industrial, a teor da decisão da Corte norteamericana no caso State Street Bank & Trust Co. vs Signature Financial Group Inc., está se revertendo apenas para as indústrias de conteúdo ou as indústriais de copyright. Num paralelo entre a Revolução Industrial e a atual Revolução Tecnológica, tem-se que, nos séculos passados, com a regulamentação de Direito Industrial por meio de tratados e legislações internas, foram vencidos os desafios para o desenvolvimento da Sociedade Industrial, compatibilizando-se interesses econômicos, tecnológicos e sociais. Ocorre que, atualmente, é preciso que seja vencido um novo desafio jurídico, que foi lançado pelo advento da tecnologia da informação: caberá ao direito em sua regulamentação propiciar o desenvolvimento pleno desta nova Sociedade Informacional, equalizando toda uma gama de interesses, preservando a liberdade de iniciativa da atividade econômica e o aperfeiçoamento do conhecimento do ser humano. REFERÊNCIAS ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras privadas, benefícios coletivos: a dimensão pública do direito autoral na sociedade da informação. Tese de Doutorado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. São Leopoldo. 2006. p. 144-145. 42 Conforme Wemer KOCH em palestra proferida na I Conferência Internacional de Software Livre Brasil realizada em Curitiba, entre os dias 5 a 7 de novembro de 2003, promovida pela Companhia Informática do Paraná - CELEPAR. 143 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I ASCARELLI, Tullio. Panorama de direito comercial. 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RESUMO O presente trabalho pretende analisar as negociações internacionais que estão ocorrendo sobre efetivação dos direitos de propriedade intelectual, no que se refere à regulação das medidas de controle nas fronteiras, com o objetivo de levantar questionamentos relevantes para a discussão sobre as regras existentes e as que se deseja implementar em âmbito internacional. Para tanto, realizou-se uma pesquisa bibliográfica na qual se expõem as negociações internacionais em matéria de propriedade intelectual após a celebração do Acordo TRIPs, seguido por comentários a respeito dos termos do artigo 51 do mesmo Acordo, que trata da suspensão de liberação pelas autoridades alfandegárias de bens que se suspeite contrafeito ou pirateado, e das negociações de um novo acordo internacional de combate à contrafação, o Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA). O tema é de grande relevância internacional e permanecerá na * Este trabalho tem como base a pesquisa apresentada no II Encontro Acadêmico de Propriedade Intelectual, Inovação e Desenvolvimento, realizado entre os dias 1 e 3 de setembro de 2009, no Rio de Janeiro, promovido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI). 1 Advogada. Mestranda em Direito, na área de concentração de Relações Internacionais, pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Colaboradora do setor jurídico do Departamento de Inovação Tecnológica da mesma instituição. 147 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I agenda de negociações sobre efetivação dos direitos de propriedade intelectual. Assim, é necessário entendê-los e utilizá-los de maneira a criar um sistema de proteção equitativo, claro e eficiente para todos os países, em especial àqueles em desenvolvimento. PALAVRAS-CHAVE: Propriedade Intelectual. Medidas de fronteira. Acordo TRIPs. Acordo Comercial Anti-Contrafação (ACTA). ABSTRACT This paper discusses the international negotiations that are taking place about enforcement of intellectual property rights, related to the regulation of border measures, the objective was to raise relevant questions to discuss regarding the existing rules and those desired to be implemented internationally. Therefore, we carried out a literature research in which it is exposed the international negotiations on intellectual property after the celebration of the TRIPS Agreement, followed by comments on the terms of the Agreement‟s Article 51, which deals with the suspension of release by customs authorities on goods suspected to be counterfeit or pirated, and the negotiation of a new international agreement to combat counterfeiting, the Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA). The theme is of international relevance and will remain on the negotiations agenda on enforcement of intellectual property rights. Thus, it is necessary to understand and use them in order to establish a fair, clear and efficient protection system for all countries, particularly developing countries. KEYWORDS: Intellectual Property. Border measures. TRIPs Agreement. AntiCounterfeiting Trade Agreement (ACTA). 1. INTRODUÇÃO As negociações internacionais relativas à propriedade intelectual passam por diferentes momentos desde o período de 1880 à 1891, quando foram estabelecidos as bases do sistema de proteção destes direitos: Convenção da União de Paris para a Proteção Industrial - 1883, Convenção da União de Berna para a Proteção das Obras 148 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Literárias e Artísticas - 1886 e Acordo de Madri Relativo à Repressão das Indicações de Procedência Falsa ou Enganosa dos Produtos – 1891. Com o objetivo de criar uma organização que se dedicasse exclusivamente com as questões relativas à propriedade intelectual foi criada, em 1967, a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), que ingressou no sistema das Nações Unidas em 1974, quando concluiu acordo com a ONU. Seguem a este período outras tratativas mundiais até ser consolidado o atual marco paradigmático da proteção dos direitos de propriedade intelectual, o Acordo sobre os Aspectos da Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio (Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights - TRIPs), na esfera da Organização Mundial do Comércio (OMC), firmado em 1994. Apesar de estabelecidos os standards mínimos no Acordo TRIPs, surge no cenário internacional a implementação de padrões cada vez mais elevados de direitos de propriedade intelectual decorrente de acordos realizados em âmbito bilateral, regional e multilateral. Desde o início de sua regulamentação observa-se a mudança de foro como uma característica constate nas discussões destes direitos, fenômeno que se repete como instrumento de manobra dos países desenvolvidos. Dentre os temas debatidos nestes foros encontram-se as normas relativas à efetivação dos direitos de propriedade intelectual, isto é, medidas que podem ser utilizadas pelos proprietários de direitos de propriedade intelectual com o intuito de executá-los. Tais normas incluem procedimentos e remédios civis e administrativos, medidas cautelares, exigências especiais relativas a medidas de fronteira e procedimentos penais. O problema do combate à contrafação e à pirataria que atinge diversos interesses, tanto privados como públicos, possui relevância neste domínio. Diversas estratégias são utilizadas para atingir este objetivo e atualmente negocia-se internacionalmente o Acordo Comercial Anti-Contrafação (Anti-Counterfeiting Trade Agreement - ACTA), que visa justamente estabelecer padrões internacionais para efetivação dos direitos de propriedade intelectual a fim de combater a contrafação e a pirataria. Para isto possui, no capítulo 2, a proposta de um quadro legal para efetivação dos direitos de propriedade intelectual com medidas civis, medidas de fronteira, medidas penais e no ambiente digital. 149 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Porém, os termos em que estão sendo negociado o ACTA ainda não foram totalmente esclarecidos, sendo disponibilizado apenas um resumo dos principais elementos em discussão nas propostas, informações suficientes para dar início a uma série de questionamentos sobre as mudanças que estão sendo propostas e suas conseqüências para os países em desenvolvimento. Do quadro legal apresentado pelo ACTA destaca-se a importância que possuem as medidas de fronteira, já regidas pelo Acordo TRIPs, a partir do artigo 51, na função de impedir o comércio de mercadorias falsificadas. Desta forma, pretende-se neste artigo fazer uma revisão bibliográfica sobre as negociações internacionais que estão ocorrendo sobre efetivação de direitos de propriedade intelectual em diversos âmbitos, no que se refere às medidas de fronteira, sua regulação no Acordo TRIPs e nas transações do Acordo Comercial AntiContrafação (Anti-Counterfeiting Trade Agreement - ACTA). Para tanto, primeiramente, serão expostas a situação em que se encontram as negociações internacionais em matéria de propriedade intelectual após a celebração do Acordo TRIPs, seguido por comentários a respeito do Artigo 51 do mesmo acordo, que regulamenta a suspensão da liberalização pelas autoridades aduaneiras de bens que se suspeitem violadores de direitos, e por fim será realizada análises sobre as negociações que envolvem o Acordo Comercial Anti-Contrafação (ACTA). 2. NEGOCIAÇÕES INTERNACIONAIS SOBRE PROPRIEDADE INTELECTUAL APÓS A CELEBRAÇÃO DO ACORDO TRIPS O modelo atual de proteção da propriedade intelectual é regido pelo Acordo TRIPs, celebrado em 1994, sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio (OMC), caracterizado por ser um acordo de proteção mínima obrigatório aos Estadosmembros signatários. O Acordo TRIPs não harmonizou as normas de proteção à propriedade intelectual entre os sistemas, podendo este variar de acordo com cada jurisdição. Assim, além de não estabelecer todos os aspectos dos direitos de propriedade intelectual, e ao reconhecer as diferenças nos sistemas legais e práticas de cada Membro, deixou à escolha de cada país o uso ou não de várias flexibilidades. 150 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Apesar de o Acordo ter sua origem relacionada, entre outras razões, a política econômica exterior de alguns países, como a tentativa de implementar medidas unilaterais e bilaterais principalmente pelos Estados Unidos e pela União Européia2 (PIMENTEL, 1999), pode-se concluir que houve um respeito aos interesses de países desenvolvidos e em desenvolvimento, como é possível extrair da redação de seu Preâmbulo e artigos 7º e 8º, que tratam dos objetivos e princípios do Acordo. Entendia-se que após a conclusão do Acordo TRIPs as tentativas bilaterais dos países desenvolvidos de uniformizar os direitos de propriedade intelectual não seriam mais praticadas, em decorrência do nível máximo atingido pelas obrigações existentes no acordo e pelo estabelecimento da OMC e da OMPI como principais fóruns deste tipo de negociação e implementação. (DRAHOS, 2001) Porém, este fato não foi observado na prática, e as tentativas de impor padrões cada vez mais elevados de propriedade intelectual pela via bilateral permanecem, instituindo-se um novo bilateralismo, que busca os benefícios do forum shifting3 e extinguir as flexibilizações do Acordo TRIPs. (BASSO, 2005) Este novo bilateralismo: [...] é aquele que, mesmo após a entrada em vigor do TRIPS, e na aparente atmosfera democrática do multilateralismo, impõe seja por força da “Special 301” americana, seja por meio de acordos bilaterais e regionais de livrecomércio, assim como dos bilaterais de investimento, padrões “extra-TRIPS” ou “TRIPS-plus” (BASSO, 2005, p. 21). Correa (2007) aponta ainda o bilateralismo como uma forma de driblar a resistência que os países, principalmente os Estados Unidos, enfrentam ao tomar iniciativas quanto a direitos de propriedade intelectual na OMC. Dentre as estratégias adotadas pelos países desenvolvidos nos acordos bilaterais de propriedade intelectual destaca-se: o artifício de forum shifting; a coordenação em âmbito bilateral e multilateral estratégias de propriedade intelectual, com o intuito de não infringir os acordos realizados na esfera da OMC e da OMPI; e 2 Assim, o Acordo TRIPs pode ser visto também como o ápice da estratégia desses países, que tinha por objetivo mudar o cenário de negociação dos temas para outro que possuísse adesão compulsória e um sistema de solução de controvérsias com sanções nos casos de comprovada infração. 3 Forum shifting consiste na estratégia de alguns países em mudar o foro de discussão de acordos sobre propriedade intelectual com intuito de implementar níveis mais elevados de proteção que não foram possíveis realizar nos foros originais sobre a matéria, no caso especificamente na OMC e na OMPI. 151 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I manter nos acordos internacionais o princípio do minimum standards4. (DRAHOS, 2001) Apreende-se deste contexto que o sistema multilateral passa a sofrer um enfraquecimento. Nesse sentido expõe Basso (2005, p. 13) que: Os acordos bilaterais e regionais abalam, portanto, o sistema multilateral porque limitam o uso das flexibilidades e exceções contidas no TRIPS [...]. Ademais interferem no marco das obrigações gerais porque, à luz do princípio da “nação mais favorecida” (MFN), quaisquer condições acordadas bilateral ou regionalmente devem ser oferecidas aos demais Estados Membros da OMC na mesma base. Além disso, bilateralmente o poder de negociação dos países em desenvolvimento é muito menor do que quando negociado em âmbito multilateral, como na OMC, pois com a associação de vários países em bloco este poder aumenta e mais concessões podem ser alcançadas. No âmbito bilateral as políticas que visam aumentar o nível de proteção de propriedade intelectual são marcadas pela assinatura de Tratados de Livre Comércio – TLCs (Free Trade Agreements – FTAs)5. Destaca-se que nem todos os TLCs possuem as mesmas previsões, em decorrência de diversos fatores relacionados aos países signatários, mas o que faz com que eles ganhem notoriedade são as suas semelhanças. (ABBOTT, 2006) Tem-se como exemplo os TLCs realizados pelos Estados Unidos que possuem entre suas disposições, de uma maneira geral, previsões sobre extensão do prazo de duração das patentes para produtos farmacêuticos (ou outros produtos) para compensar a demora na sua concessão, novos regulamentos quanto a exclusividade dos dados de prova, restringem o uso da licença compulsória e da importação paralela, ampliação das exceções sobre direitos de autor e conexos, proibição de importação paralela de obras protegidas por copyright, exigências sobre a rejeição de pedidos indicações geográficas caso haja conflito com uma marca comercial existente, e obrigações relativas a publicação de decisões judiciais e administrativas relativas à aplicação dos direitos de propriedade intelectual. (ABBOTT, 2006) 4 O princípio do minimum standards significa que cada novo acordo não implica revogação do anterior, podendo, inclusive, estabelecer padrões mais elevados de proteção. 5 Os Estados Unidos e a União Européia celebraram TLCs nestes moldes com países da África, Oriente Médio, Ásia, Pacífico, América do Sul e caribe. 152 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Porém, a estratégia de aumentar o nível de proteção da propriedade intelectual não se restringe ao âmbito bilateral, existem ainda iniciativas em âmbito regional e multilateral que incluem: 1. tratar a efetivação da propriedade intelectual como uma prioridade na agenda comum dos países do G8 e propor negociações sobre um novo tratado internacional sobre o combate à contrafação; 2. exigir que a questão da efetivação da propriedade intelectual faça parte da agenda permanente no Conselho de TRIPs, na OMC; 3. exercendo pressão na OMPI para reforçar o mandato do Comitê Consultivo para Efetivação para incluir normas de soft law; 4. aumentando o papel da OMA e da Interpol na efetivação da propriedade intelectual, especialmente através de medidas de controle nas fronteiras e a utilização de normas de direito penal; [...] 6 (BIADGLENG; TELLEZ, 2008, p. 23, tradução nossa) Neste contexto, destacam-se as regras de efetivação7 dos direitos de propriedade intelectual, trazidas de forma detalhada pelo Acordo TRIPs (artigos 41 a 61), que prevê procedimentos e remédios civis e administrativos, medidas cautelares, exigências especiais relativas a medidas de fronteira e procedimentos penais. As normas de efetivação são medidas que podem ser utilizadas pelos proprietários de direitos de propriedade intelectual com o intuito de executá-los através do sistema de propriedade intelectual. Esclarece Isabella Pimentel (2005, p. 113) que: Qualquer sistema de propriedade intelectual deve fornecer proteção aos Direitos de Propriedade Intelectual, pois de nada adiantaria aos sistemas concederem tais direitos e disponibilizarem informações referentes à atividade inventiva e à criatividade que eles envolvem se os proprietários destes direitos não dispuserem de meios para fazê-los valer. 6 1. setting enforcement of intellectual property rights as a priority in the common agenda of the G8 countries and proposing negotiations on a new international treaty on anti-counterfeiting; 2. demanding that the WTO make enforcement part of the permanent agenda of the TRIPS Council; 3. exerting pressure at WIPO to strengthen the mandate of the ACE to include soft law normsetting, such as developing best practices and guidelines on enforcement; 4. increasing the role of the WCO and Interpol in intellectual property enforcement, particularly through border measure controls and the use of criminal law; 5. introducing detailed TRIPS-plus obligations in the enforcement of intellectual property rights in bilateral FTAs and EPAs (economic partnership agreements) negotiated by the United States and European Union with developing countries. (BIADGLENG; TELLEZ, 2008, p. 23) 7 No Acordo TRIPs utiliza-se a palavra em inglês enforcement, traduzida por nós como efetivação, porém pode ter outros significados semelhantes como execução, aplicação, cumprimento e observância. 153 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Dentre os mecanismos de efetivação destaca-se, particularmente ao trabalho ora apresentado, a atuação das autoridades aduaneiras no combate a infração dos direitos de propriedade intelectual, visto como de grande relevância, uma vez que boa parte dos debates atuais sobre efetivação destes direitos refere-se a medidas de fronteira, e é indicada pelos países desenvolvidos como medidas essenciais para impedir sua violação (CORREA, 2009). 3. MEDIDAS DE FRONTEIRA NO ACORDO TRIPS É indiscutível a importância que possuem as medidas de fronteira na função de impedir o comércio de mercadorias falsificadas, que atualmente afetam a saúde, a segurança e os interesses econômicos de todo o globo. O próprio Acordo TRIPs descreve na Seção 4, da Parte III, sobre o papel e as responsabilidades que as administrações aduaneiras possuem quanto à aplicação dos direitos de propriedade intelectual. A Seção 4, inspirada principalmente nas leis nacionais existentes nos países desenvolvidos sobre a matéria de efetivação dos direitos de propriedade intelectual, apresenta o primeiro conjunto de normas internacionais em matéria de contrafação e pirataria (UNCTAD, 2005) e concretiza um dos principais objetivos incorporados no preâmbulo do próprio Acordo TRIPS, o reconhecimento da necessidade de uma estrutura multilateral de princípios, regras e disciplinas referentes ao comércio internacional de mercadorias contrafeitas. As normas de medidas de fronteira referem-se aos mecanismos que podem ser adotados por autoridades aduaneiras ou tribunais para controlar o movimento de bens que infrinjam direitos de propriedade intelectual através da fronteira do território de um país (CORREA, 2009). Não estando sujeito às mesmas os Estados-Membros que derrubarem substancialmente todos os controles sobre os movimentos de mercadorias através da sua fronteira com outro Estado-Membro com o qual forma uma união aduaneira (nota 12, artigo 51, Acordo TRIPs). A atuação das autoridades aduaneiras dos Estados-membros signatários do Acordo TRIPs, no que diz respeito ao controle de infrações contra a propriedade intelectual, devem levar em consideração o estabelecido no artigo 51 do Acordo TRIPs sobre suspensão de liberação pelas autoridades aduaneiras, in verbis: 154 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Os Membros deverão, em conformidade com as disposições a seguir enunciadas, adotar os procedimentos para permitir que um titular, que tenha motivos válidos para suspeitar que a importação de bens com marca contrafeita ou pirateados possa ocorrer, apresente um requerimento por escrito junto às autoridades competentes, administrativa ou judicial, para a suspensão pelas autoridades aduaneiras da liberação para livre circulação dessas mercadorias. Os Membros podem permitir que tal pedido seja feito em relação a mercadorias que envolvam outras infrações a direitos de propriedade intelectual, desde que os requisitos da presente seção estejam preenchidos. Os Membros também podem prever processos correspondentes relativos à suspensão pelas autoridades aduaneiras da liberação de bens que violem direitos de propriedade intelectual destinados à exportação dos seus territórios.8 (tradução nossa, grifo nosso) De acordo com este artigo a suspensão de liberação pelas autoridades aduaneiras é exigido apenas nos casos de importação de bens, facultando a cada Estadomembro estabelecer regras desta natureza em relação aos bens destinados à exportação. Porém, neste último caso, “estas seriam requisitos TRIPS-plus que não são obrigatórios para os membros da OMC”. (CORREA, 2009, p. 48) O próprio Acordo, na nota 13, do artigo 51, explicita que não há obrigação de aplicar estes procedimentos a importação de bens colocados no mercado de um terceiro país pelo titular do direito ou com o seu consentimento, assunto relativo à importação paralela, nem a bens em trânsito. Destaca-se que à autoridade aduaneira compete apenas a execução de medidas cautelares decididas por “autoridades competentes, administrativa ou judicial” quanto a questão de uma mercadoria ser contrafeita ou pirateada. Apesar de em alguns países as autoridades administrativas coincidirem com as próprias autoridades aduaneiras esta não é uma disposição do Acordo TRIPs, possibilitando que seja 8 Segue o disposto nos art. 51, do Acordo TRIPs, conforme se encontra no site da OMC. Disponível em: <http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips_05_e.htm>. Acesso em: 10 jul 2009: Members shall, in conformity with the provisions set out below, adopt procedures to enable a right holder, who has valid grounds for suspecting that the importation of counterfeit trademark or pirated copyright goods may take place, to lodge an application in writing with competent authorities, administrative or judicial, for the suspension by the customs authorities of the release into free circulation of such goods. Members may enable such an application to be made in respect of goods which involve other infringements of intellectual property rights, provided that the requirements of this Section are met. Members may also provide for corresponding procedures concerning the suspension by the customs authorities of the release of infringing goods destined for exportation from their territories. 155 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I competência exclusiva do judiciário ou de outra autoridade administrativa (UNCTAD, 2005). Além disso, estas medidas são aplicadas somente no caso de infrações de bens com marca contrafeita ou bens pirateados. Para os efeitos do Acordo TRIPs, entende-se por “bens de marca contrafeita” quaisquer bens que usem sem autorização uma marca que seja idêntica à marca registrada relativa a tais bens ou que não pode ser distinguida da marca genuína, e por "bens pirateados" entende-se por quaisquer bens que constituam cópias efetuadas sem o consentimento do titular, infringindo diretos de autor9. Correa (2009) observa que na contrafação de marcas não está incluído casos de marcas que possam encontrar confusão com outras marcas protegidas, e quanto a bens pirateados esta expressão não abrange os casos de plágio, quando, por exemplo, passagens verbais de um trabalho são copiadas sem consentimento. Outros aspectos relevantes do artigo 51 do Acordo TRIPs são que, em regra, esta disposição não se aplica a outros direitos de propriedade intelectual, como patentes10; e não existe disposição que obrigue as autoridades aduaneiras adotarem medidas cautelares ex officio, sendo necessário um requerimento específico do detentor do direito para a autoridade aduaneira agir. O objetivo de suspender a entrada de mercadorias que se suspeite infratora é: […] dar ao titular dos direitos um prazo razoavelmente extenso para que se inicie os procedimentos judiciais contra que presume que seja o autor da infração, sem correr o risco de que a mercadoria que ele suspeita que esteja infringindo seus direitos desapareça no mercado após ter sido autorizada a sua entrada pelas autoridades aduaneiras. (PIMENTEL, 2005, p. 135) 9 Segue o disposto na nota de rodapé 14, do Acordo TRIPs, conforme se encontra no site da OMC. <http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips_05_e.htm>. Acesso em: 10 jul 2009: (a) "counterfeit trademark goods" shall mean any goods, including packaging, bearing without authorization a trademark which is identical to the trademark validly registered in respect of such goods, or which cannot be distinguished in its essential aspects from such a trademark, and which thereby infringes the rights of the owner of the trademark in question under the law of the country of importation; (b) "pirated copyright goods" shall mean any goods which are copies made without the consent of the right holder or person duly authorized by the right holder in the country of production and which are made directly or indirectly from an article where the making of that copy would have constituted an infringement of a copyright or a related right under the law of the country of importation. 10 Este fato é de extrema relevância, pois, em bens com marca contrafeita ou bens pirateados é mais fácil realizar inspeção visual para identificar violação a estes direitos do que no caso de, por exemplo, uma patente de produto ou de processo, que necessita de um exame técnico e jurídico mais apropriado e de provas mais contundentes (Correa, 2009). 156 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I De maneira geral, o Acordo TRIPs, quanto às medidas de fronteira, segue o padrão de estabelecer regras de patamar mínimo da mesma forma que o restante do Acordo, deixando aos Estados-membros espaço considerável para estabelecer suas regras de controle sobre infrações contra a propriedade intelectual neste âmbito. Porém, observa-se que internacionalmente existe um movimento, principalmente dos países desenvolvidos, de estabelecer regras mais elevadas do que as exigidas no Acordo TRIPs sobre a matéria. Os esforços para maior efetivação dos diretos de propriedade intelectual a partir de medidas de fronteira foram incluídos na esfera da Organização Mundial das Aduanas, que, indo além da competência para a qual foi criada, tem estabelecido normas de caráter TRIPs-plus, como a adoção do Provisional Standards Employed by Customs for Uniform Rights Enforcement – SECURE. (CORREA, 2009) 4. MEDIDAS DE FRONTEIRA NO ANTI-COUNTERFEITING TRADE AGREEMENT (ACTA) O Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA) é um acordo multilateral em negociação entre Austrália, Canadá, União Européia, Japão, México, Marrocos, Nova Zelândia, Coréia, Singapura, Suíça e Estados Unidos, cujo objetivo é estabelecer padrões internacionais para efetivação dos direitos de propriedade intelectual a fim de combater a contrafação e a pirataria. As conversações preliminares, com a elaboração de um anteprojeto, ocorreram em segredo durante os anos de 2006 e 2007, havendo divulgação sobre seu escopo apenas em junho de 2008, ano em que as negociações iniciaram oficialmente11. Em 6 de abril de 2009, os participantes das negociações do ACTA emitiram uma declaração conjunta com um resumo dos principais elementos em discussão nas propostas. Este documento, que se encontra nos sites institucionais dos órgãos responsáveis de cada país, servirá de base para a análise que se segue neste trabalho 12. 11 Desde o início das negociações do referido Acordo diversas preocupações foram levantadas por movimentos civis, como o IP Justice, que indagava sobre a falta de transparência no processo de negociação do acordo, a não participação de grupos de interesse público, de país em desenvolvimento ou da sociedade civil, a exclusão da OMPI e da OMC como foro, entre outros (IP JUSTICE, 2008). 12 Para este artigo foi consultado o resumo publicado pelo: UNITED STATES TRADE REPRESENTATIVE (USTR). ACTA - Summary of Key Elements Under Discussion. Abr. 2009. 157 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I O projeto do ACTA possui em sua estrutura 6 capítulos e, de acordo com os países negociantes, busca elaborar um quadro de normas jurídicas internacionais que ainda não existe ou que precisa ser reforçado. O primeiro capítulo, intitulado disposições iniciais e definições, traz questões como o objetivo, âmbito, definições e princípios interpretativos do Acordo; o segundo capítulo dispõe de um quadro legal para efetivação dos direitos de propriedade intelectual com medidas civis, medidas de fronteira, medidas penais e efetivação de direitos de propriedade intelectual no ambiente digital; o terceiro capítulo trata de cooperação internacional para enfrentar o comércio transfronteiriço de mercadorias contrafeitas e piratas; o quarto capítulo destina-se a dispor sobre os métodos que serão utilizados pelas autoridades para aplicar as leis de efetivação de propriedade intelectual colocados no segundo capítulo; o quinto capítulo inclui as disposições institucionais; e o sexto capítulo expõe as disposições finais, incluindo detalhes sobre como o acordo irá funcionar. Especificamente quanto às medidas de fronteira, dispostas na seção 2, do segundo capítulo, discute-se: 1. Quais os direitos de propriedade intelectual vão ser abrangidos, e se as medidas de fronteira só devem ser aplicadas às importações ou deveria igualmente aplicar-se à exportação e ao trânsito de mercadorias; 2. Exceções mínimas que poderia permitir aos viajantes de trazer mercadorias para uso pessoal; 3. Procedimentos para que titulares de direitos possam solicitar às autoridades aduaneiras a suspensão da entrada de mercadorias suspeitas de violar direitos de propriedade intelectual na fronteira; 4. Possibilidade de que as autoridades aduaneiras possam dar início a essa suspensão ex officio; 5. Procedimentos para que as autoridades competentes possam determinar se as mercadorias suspensas infringem direitos de propriedade intelectual; 6. Medidas para garantir que bens que violam direitos de propriedade intelectual não sejam liberados para livre circulação, sem autorização do titular do direito, e as possíveis exceções; Disponível em: <http://www.ustr.gov/about-us/press-office/fact-sheets/2009/april/acta-summary-keyelements-under-discussion>. Acesso em: 15 jun. 2009. 158 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I 7. O arresto e destruição das mercadorias que tenham sido determinados como violadoras de direitos de propriedade intelectual, e as possíveis exceções; 8. A responsabilidade sobre as taxas para o armazenamento e destruição; 9. Atribuição de competência para as autoridades de exigir dos titulares caução ou garantia para proteger o acusado e prevenir abusos; e 10. Autoridade para divulgar informações essenciais sobre violação para os titulares do direito. Observa-se que nas negociações deste novo Acordo são discutidas diversas medidas que visam criar normas mais rígidas do que as estabelecidas no Acordo TRIPs, nitidamente normas TRIPs-plus, sobre o controle da efetivação da propriedade intelectual, através de medidas de fronteira. Um dos perigos do aumento da incidência em medidas de controle das fronteiras é a possibilidade de que os poderes conferidos às autoridades aduaneiras sobre efetivação da propriedade intelectual possam ser excessivamente amplos se não houver um treinamento adequado para emitir juízos sobre se as mercadorias são, na realidade, falsificados ou pirateados. (BIADGLENG; TELLEZ, 2008) Acentua-se a problemática quanto a infração às patentes, uma vez que os critérios que determinam a violação podem variar significativamente de uma jurisdição para outra, e pela dificuldade de realizar um exame técnico adequado para detectar em tempo hábil a infração. Existe ainda a possibilidade de que a concessão de amplos poderes para funcionários aduaneiros para controlar o fluxo de importações e exportações de mercadorias, com suspeita de estarem infringindo direitos de propriedade intelectual, possa criar barreiras ao comércio. (BIADGLENG; TELLEZ, 2008) Afinal, discute-se internacionalmente, justamente a facilitação do comércio, com esforços para a diminuição dos custos das operações de comércio exterior. Mais atribuições as aduanas, como no caso da suspensão ex officio, atravanca o comércio de mercadorias, torna-o mais lento e caro tanto para o comerciante, como para o governo e sociedade, e traz diversos problemas, “como o aumento da corrupção entre as autoridades aduaneiras, dificuldades na valoração das mercadorias, diminuição na arrecadação de tributos, imprevisibilidade e atrasos na liberalização de mercadorias, dentre outros” (SCORZA, 2008, p. 65). 159 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I No caso dos países menos desenvolvidos e dos países em desenvolvimento a ineficiência aduaneira é ainda mais preocupante, e serão os maiores prejudicados com mais barreiras não-tarifárias. Por esta razão, deve-se zelar pela simplificação e otimização dos procedimentos aduaneiros. Relevante assinalar que, dentre as obrigações gerais do Acordo TRIPs sobre efetivação destes direitos, devem ser observados os artigos 41.1 e 41.2, que estabelecem, respectivamente, que os procedimentos de efetivação serão aplicados de maneira a evitar a criação de obstáculos ao comércio legítimo e a prover salvaguardas contra seu uso abusivo, e que os mesmos serão justos e eqüitativos. A adoção de medidas ex officio é um das principais formas encontradas pelos países desenvolvidos para elevar os padrões de efetivação dos direitos de propriedade intelectual. Entretanto tais intervenções, alerta Carlos Correa (2009, p. 52), “transfere a responsabilidade pelos danos para o Estado e deve ser limitada para situações muito excepcionais em que há uma justificação para substituir provisoriamente o titular do direito em defesa de seus direitos privados” (tradução nossa) 13. Outros questionamentos relevantes sobre este tema são a extensão da suspensão para mercadorias destinadas à exportação e em trânsito, a possibilidade de aplicar a outros direitos de propriedade intelectual, a redução dos custos do titular e das evidências de que a mercadoria é pirateada ou contrafeita, a atribuição de mais competências para a autoridade aduaneira, entre outras. Estes aspectos e outros, que não se tem conhecimento em detrimento das negociações ainda estarem ocorrendo em segredo, são de extrema importância para todos os países do globo, que de uma forma ou de outra serão atingidos pelo ACTA, por isso deveriam ser discutidas em um foro multilateral, onde mais países estão presentes e os países em desenvolvimento possuem maior poder de negociação. Prova da necessidade de uma discussão mais plural pode ser vista no recente caso da apreensão pelas autoridades aduaneiras holandesas de um carregamento do medicamento para hipertensão Losartan, que seguia da Índia para o Brasil, onde naquele país o medicamento é protegido por patente e nestes outros dois últimos não há esta 13 Ex-officio interventions, however, shift the responsibility for damages to the state and should be limited to very exceptional situations in which there is a justification to provisionally substitute the right holder in defence of his private rights. (CORREA, 2009, p. 52) 160 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I proteção (ICTSD, 2009). O impasse da suspensão da liberalização da mercadoria em trânsito criou uma série de discussões sobre o acesso a medicamentos nos países em desenvolvimento14 e sobre barreiras ao comércio legítimo de genéricos. A União Européia, desta forma, agiu em conformidade seu Regulamento (CE) nº 1383/2003, que diz respeito as medidas que devem ser tomadas contra mercadorias suspeitas de violarem direitos de propriedade intelectual, e permite a suspensão de mercadorias em trânsito no território da União Européia.15 Porém, como afirma Frederick Abbott “as autoridades holandesas podem ter atuado segundo o texto do regulamento aplicável da UE. Contudo, tal fato não legitima a apreensão do ponto de vista do Direito Internacional, tampouco da perspectiva do comércio global responsável ou das políticas de saúde pública” (2009, p. 9). A falta de transparência dos países na negociação do ACTA, que alegam ser assunto de segurança nacional ou de política externa (LOVE, 2009), em relação a seus próprios cidadãos e aos outros países, deixa de fora a participação da sociedade civil, como se não fosse interesse dos mesmos discutir sobre as conseqüências das propostas ventiladas e contribuir com novas propostas. 5. CONCLUSÃO A questão da efetivação dos direitos de propriedade intelectual, como o combate à contrafação e a pirataria, é atualmente um tema de grande relevância na esfera internacional, que reflete nas diversas negociações e assinaturas de acordos bilaterais, regionais e multilaterais sobre a matéria. Porém, ao serem realizadas estas negociações e acordos, devem-se levar em conta os diversos estágios de desenvolvimento dos países participantes e a relevância de outros temas em discussão, como o próprio desenvolvimento, o acesso ao conhecimento e a saúde pública. Neste sentindo, é essencial que sejam mantidas as flexibilidades existentes no Acordo TRIPs ao serem assinados Tratados de Livre Comércio e ao negociar-se normas mais elevadas nos âmbitos multilaterais como no Conselho TRIPs da OMC, na 14 Na esfera da OMC um grande avanço sobre a questão do acesso aos medicamentos foi a Declaração Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública, cujos termos são diretamente atingidos pela apreensão realizada pela Holanda. 15 Regulamento (CE) nº 1383/2003, disponível em: <http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/site/en/oj/2003/l_196/l_19620030802en00070014.pdf>. 161 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I OMPI, na OMA, e outros foros. Tentando escapar de artifícios como o forum shifting, a coordenação de estratégias de forma a não infringir os acordos realizados na esfera da OMC e da OMPI, e a manutenção do minimum standards. Os países em desenvolvimento devem observar que em negociações bilaterais seus poderes de barganha são muito menores do que quando articulados em conjunto com outros países no âmbito multilateral. Outro aspecto relevante é que, em decorrência dos princípios da nação mais favorecida e do tratamento nacional, uma vez assinado um acordo bilateral com outro país, os direitos concedidos ao país signatário devem ser oferecidos nas mesmas bases para outros países. Quanto às medidas de fronteira o artigo 51, do Acordo TRIPs, preserva diversas flexibilidades, e permite que cada país estabeleça suas próprias regras, respeitando os padrões mínimos estabelecidos, quanto à suspensão de liberação pelas autoridades aduaneiras. Tal artigo estabelece basicamente que: a) cabe ao titular requerer a suspensão da liberação de bens pela autoridade aduaneira; b) deve haver motivos válidos para suspeitar a infração; c) a suspeita diz respeito ao caso de importação; d) os direitos de propriedade protegidos são relacionadas a infração de marca contrafeita ou bens pirateados; e) o requerimento é feito por escrito e encaminhado às autoridades competentes (administrativa ou judicial). O mesmo artigo faculta aos Membros que o pedido de suspensão de liberação seja feito em relação a mercadorias que envolvam outras infrações a direitos de propriedade intelectual, desde que presentes os requisitos acima. Assim como, permite estender esse procedimento a bens que violem direitos de propriedade intelectual destinados à exportação. Mas estas são medidas TRIPs-plus, isto é, não são exigidas pelo Acordo TRIPs. As negociações que se apresentam tanto na OMA, com o SECURE, quanto no novo Acordo Comercial Anti-Contrafação (ACTA) são de normas muito mais rígidas e de difícil execução pelos países em desenvolvimento, que não possuem as mesmas estruturas de comércio nem o mesmo nível de produção industrial e intelectual que países desenvolvidos, sem falar nos custos financeiros para implementação destas novas medidas. O ACTA, apesar de sua negociação sigilosa, o que não permite o acesso mais detalhes sobre seu conteúdo, traz diversos questionamentos e incertezas sobre o futuro da efetivação dos direitos de propriedade intelectual através de medidas de 162 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I fronteira. Questiona-se sobre a necessidade, eficácia e aplicabilidade de tais normas, principalmente nos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos que apresentam estruturas aduaneiras incipientes. Abordaram-se questões sobre o despreparo das autoridades aduaneiras para ampliação de suas competências, principalmente no que concerne as infrações às patentes; a criação de barreiras não tarifárias ao comércio, prejudicando a facilitação do mesmo; as conseqüências de se criar mecanismos para que a suspensão seja realizada ex officio; a extensão da suspensão para mercadorias destinadas à exportação e em trânsito; a possibilidade de aplicar a outros direitos de propriedade intelectual; a redução dos custos do titular e das evidências de que a mercadoria é pirateada ou contrafeita. A falta de acesso às informações sobre diversos aspectos tais como os termos que estão sendo negociados, os locais e datas das reuniões, quais países estão participando, atas das negociações, objetivos das negociações é descabida no atual estágio de governança global, sem falar na afronta aos direitos de seus próprios cidadãos. Este é um procedimento ilegítimo para apurar questões tão complexas quanto as que estão sendo propostas. Para encontrar uma solução eficaz aos problemas de efetivação da propriedade intelectual, como o combate à pirataria e à contrafação, é necessário levar em conta os princípios democráticos, as questões relativas ao livre comércio e a facilitação de troca de mercadoria, a compatibilidade com a realidade social, as questões de acesso ao conhecimento, e o surgimento de tecnologias cada vez mais avançadas. É necessário um esforço mundial coordenado, com discussões entre governo, setor privado e sociedade civil. Torna-se primordial um diálogo internacional em âmbito multilateral. 6 REFERÊNCIA ABBOTT, Frederick. Intellectual property provisions of bilateral and regional trade agreements in light of U.S. federal law. UNCTAD - ICTSD Project on IPRs and Sustainable Development. International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD), 2006. 163 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I _______________. A apreensão pela Holanda de medicamentos genéricos em trânsito da Índia para o Brasil: o que se temia ocorreu. In: International Centre for Trade and Sustainable Development (ICTSD). Pontes Quinzenal. Genebra, jun 2009, vol. 5, no. 2, p. 9. Disponível em: < http://ictsd.net/downloads/2009/06/pontesv5n2-final.pdf>. Acesso em: 24 set 2009. BASSO, Maristela. O direito internacional da propriedade intelectual. 1 ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2000. _______________. Propriedade intelectual na era pós-OMC: especial referência aos países latino-americanos. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2005. BIADGLENG, Ermias Tekeste; TELLEZ, Viviana Munoz. The changing structure and governance of intellectual property enforcement. 2008. Disponível em: <http://www.southcentre.org>. Acesso em: 02 jul. 2008. CORREA, Carlos M. 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Paper on the proposed Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA). 2008b Disponível em: <http://ipjustice.org/wp/2008/03/25/ipj-white-paper-acta2008/>. Acesso em: 12 jul. 2008. LOVE, Jamie. White House: ACTA still “secret in the interest of national defense or foreign policy”. Knowledge Ecology International (KEI). Washington, Genebra, 31 de julho de 2009. Disponível em: <http://www.keionline.org/blogs/2009/07/31/whitehouse-denies-foia-acta>. Acesso em: 24 set 2009. PIMENTEL, Isabella. A observância aos direitos de propriedade intelectual nos tratado internacionais administrados pela OMPI e no Acordo TRIPs. In: CARVALHO, Patrícia Luciane de (Coord.). Propriedade intelectual: estudos em homenagem à professora Maristela Basso. Curitiba: Juruá Editora, 2005. PIMENTEL, Luiz Otavio. Direito industrial: as funções do direito de patentes. 1 ed. Porto Alegre: Síntese, 1999. SCORZA, Flavio Augusto Trevisan. 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Acesso em: 2008. 01 Disponível em: ago. 2008 166 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I PROPRIEDADE E DESENVOLVIMENTO: análise pragmática da função social Luciano Benetti Timm1 Renato Vieira Caovilla2 SUMÁRIO 1. Introdução. 2. Direitos de propriedade: o processo de conversão do ativo subcapitalizado em capital ativo. 3. Instituições fortes: a adequada estrutura de incentivos à atividade produtiva. 4. A propriedade e sua função social no Brasil. 5. Um fundamental direito como direito fundamental. 6. Conclusão. Notas. RESUMO O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a importância dos direitos de propriedade, legalmente formalizados, para o processo de geração de capital e, em conseqüência, de maior renda e riqueza, porque apto a promover a inclusão, no sistema legalizado de trocas (mercado), dos cidadãos que à margem do mesmo atuam. O resultado desse processo é a promoção de maior bem-estar social. Assim, analisar-se-á a previsão constitucional acerca da função social da propriedade no Brasil em consonância com esta constatação, conferindo-lhe interpretação pragmática, através do método da análise econômica do direito, e em contraste com o posicionamento expresso no modelo “solidarista” vigente na doutrina brasileira, que propugna pela utilização do Direito Privado como mecanismo de justiça distributiva e de justiça social. Conclui-se que o “interesse coletivo” resulta melhor atendido quando, em primeiro lugar, 1 Advogado. Pós Doutor pela U.C. Berkeley, EUA. Master of Laws (LLM) pela Universidade de Warwick. Mestre e Doutor em Direito pela UFRGS. Professor Adjunto da PUCRS e da ULBRA. Professor da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul.Correspondência: Av. Carlos Gomes, 1340, 602, 90480-001, Porto Alegre, RS. (51) 3022 5550. Fax (51) 3022 6650. [email protected]. 2 Pesquisador do Grupo de Direito e Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).Correspondência: Av. João Wallig, 1845, 407, 91340-001, Porto Alegre, RS. (51) 9226 5729. [email protected] 167 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I formalizado e, após, respeitado o fundamental direito de propriedade individual, sendo eventuais excessos corrigidos via instituto do abuso de direito. Palavras-chave: Propriedade; Capital; Função Social; Desenvolvimento; Bem-estar social. ABSTRACT This paper aims at demonstrate the importance to a country to establish a formal system of property rights. Because a system of property rights is able to convert “dead” assets in capital, it is also able to generate wealth, including in the market place people who get used to negotiate at its margins. By observing that, we will nurture a pragmatic interpretation to the principle of the social function of property rights through the law and economics‟ lenses, in opposition to the so called “solidarist” model. Our conclusion is that the public welfare is best achieved by first entitling people to property, and then protecting the fundamental property rights. Abuses will be corrected by the doctrine of abuse of rights. Key-words: Property; Capital; Social Function; Development; Public Welfare. I - INTRODUÇÃO Qual fator é capaz de explicar as diferenças entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, em termos de riqueza? Em 1900, Japão e Filipinas apresentavam renda per capita semelhante, enquanto hoje, a renda per capita do Japão é seis vezes superior à das Filipinas. Da mesma forma, em 1900, Argentina e Canadá equivaliam-se quanto à renda per capita, ao passo que, nos dias de hoje, a renda per capita do Canadá é mais do que o triplo da renda per capita da Argentina (Cooter et al, 2006, p.2). Cabe indagar, por oportuno, se tal discrepância adviria das diferenças culturais dos povos. O economista Hernando De Soto assevera, contudo, não ser o fator cultural o responsável pelo sucesso ou insucesso de países tão diferentes e que a disparidade de riqueza entre o Ocidente e o resto do mundo é por demais ampla para ser justificada com base, tão-somente, na cultura (De Soto, 2001, p.18). 168 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I De Soto ressalta, ainda, que, na última década, Rússia e América Latina “têm compartilhado os mesmos problemas políticos, sociais e econômicos: desigualdades gritantes, economias subterrâneas, máfias ubíquas, instabilidade política, fuga de capital, desrespeito flagrante à lei”, e questiona: “alguém saberia apontar traços „culturais‟ comuns entre os latino-americanos e os russos?”(De Soto, 2001, p.24). Inobstante os países do Terceiro Mundo e os países que integravam o bloco comunista terem adotado receitas capitalistas (as quais são bem-sucedidas no Ocidente), tais como, o equilíbrio no orçamento, o corte dos subsídios, a atração de investimento estrangeiro e a redução das tarifas, não conseguiram prosperar. Aliás, De Soto afirma que os esforços desses países “foram recompensados com amargas decepções. Da Rússia à Venezuela, os últimos cinco anos foram tempos de sofrimento econômico, de queda nas receitas, de ansiedades e ressentimentos (...)” (De Soto, 2001, p.23). Diante desse quadro, o que explica o fato de os países pobres (onde vivem cinco sextos da humanidade), embora ágeis na adoção de todas as outras invenções ocidentais, “do clipe de papel ao reator nuclear” (De Soto, 2001, p. 22), terem sido incapazes de alcançar maior riqueza e maior bem-estar social? Seria algum tipo de conspiração monopolista ocidental, contra os países em desenvolvimento, a causa deste indesejável efeito? Não é assim que entendemos o problema. O maior obstáculo para que o resto do mundo atinja os níveis de riqueza alcançados pelos países desenvolvidos é a sua incapacidade de gerar capital (Soto, 2001, p. 19).1 Nesse sentido, deve-se perscrutar pela fonte que, de modo mais eficiente, conduz à geração de capital e, via de conseqüência, ao desenvolvimento econômico. Alan Greenspan, Presidente da Reserva Federal americana (FED), por 18 anos consecutivos, em sua A Era da Turbulência, cita que, de modo geral, o caminho mais curto e mais direto para a prosperidade de um país contém os seguintes elementos (Greenspan, 2007, pp. 242 e 243): A extensão da concorrência na economia interna e, ainda mais para as nações em desenvolvimento, a extensão da abertura de sua economia e a integração com o comércio internacional; As instituições de um país e sua qualidade para contribuir com o funcionamento da economia; A eficácia das medidas necessárias à estabilidade macroeconômica. 169 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Contudo, assevera Greenspan que a ordem de importância de tais elementos, bem como a ênfase a ser dada a cada um deles varia, e que, de acordo com sua experiência pessoal, a fonte precípua da prosperidade é a garantia dos direitos de propriedade e o império da lei. Em assim sendo, pontifica que “sem essa certeza [propriedade], de pouco adiantariam o livre-comércio, os enormes benefícios da competição e as vantagens comparativas” (Greenspan, 2007, p.243) Mas essa noção não é unissonamente compartilhada por todas as noções, principalmente por aquelas em desenvolvimento. Alías, nas palavras de Greenspan “Infelizmente, a noção de direito de propriedade ainda é fonte de conflitos, sobretudo em sociedades que questionam a moralidade da busca pelos lucros. (...). O direito de propriedade não é defensável em sociedades que ainda mantenham qualquer resíduo significativo do conceito marxista de que propriedade é roubo”(Greenspan, 2007, p.244). Para ilustrar a conexão existente entre a proteção dos direitos de propriedade e a geração de riqueza e bem-estar social, recorre-se ao exemplo das discrepantes trajetórias percorridas pela comunista República Democrática da Alemanha (parte oriental) e a República Federal da Alemanha (parte ocidental). Ao final da II Grande Guerra, precisamente após a Conferência de Potsdam, de agosto de 1945 (Mota e Braick, 1997, p. 517), a Alemanha resultou dividida em áreas de influência. Criou-se a República Democrática da Alemanha, sob influência da União Soviética, e a República Federal da Alemanha, conectada com o Ocidente. À época, ambas as Repúblicas equivaliam-se em características, tais como, população e educação. Após quarenta anos de divisão, as Repúblicas apresentaram situações econômicas distintas. Em período antecedente à reunificação, o PIB per capita da Alemanha Oriental, sob influência soviética e com a negação da propriedade privada, equivalia a 1/3 do PIB per capita da Alemanha Ocidental, esta estribada em economia de mercado, com respeito à propriedade (Cass, 2006, p. 88).2 Outrossim, ponto peculiar e “comprometedor” do planejamento central então em voga na União Soviética referia-se à constatação de que a maior parte de suas colheitas terem sido fruto de terras privadas, que representavam uma pequena fração da área agricultável (Greenspan, 2007, p. 243). Ainda, na China, embora somente 250 milhões, do total de 1,3 bilhão de habitantes, sejam dotados de propriedade privada e detenham o direito de titularizar ativos no setor privado, o país apresenta taxas de crescimento real de 10% ao ano, e a conclusão a que chega De Soto sobre este fato é: 170 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I “os, relativamente, poucos têm sustentado 10% de crescimento real, enquanto que o bilhão restante da população não faz parte do sistema legal” (Soto, 2004).3 Vale dizer, 25% da população fazem com que o crescimento econômico de sua economia seja de 10%. A questão, então, passa a ser não retirar a propriedade desses 25%, mas, ao reverso, fazer com que os outros 75% tornem-se, também, proprietários. Em vista disso, nevrálgica resulta a análise de como a propriedade privada tem o condão de gerar capital e, por conseguinte, contribuir para a promoção do bem-estar social. Esse é o ponto central do presente trabalho. Para tanto, partiremos da análise de um ambiente institucional em que não há direitos de propriedade, a fim de constatar a sua conseqüência no estímulo à produção e, por conseguinte, na promoção de bem-estar social. Ao depois, enfrentaremos o problema da diferença de riqueza e bem-estar entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, apontando a sua causa e observando que, principalmente no Brasil, o tratamento dado à propriedade tem o condão, tão-somente, de ampliar, ao invés de reduzir, tamanha discrepância. Nessa esteira, examinaremos as conseqüências da flexibilização dos direitos de propriedade no desenvolvimento econômico, percebendo que tal atitude não é o meio idôneo para atingir os fins a que se destina. Por fim, versaremos sobre o direito da propriedade como um direito fundamental do cidadão. II - DIREITOS DE PROPRIEDADE: O PROCESSO DE CONVERSÃO DO ATIVO SUBCAPITALIZADO EM CAPITAL ATIVO Alguns países são mais desenvolvidos do que outros pelo fato de suas economias crescerem mais do que a economia dos outros, vale dizer, há países em que as instituições fornecem uma estrutura de incentivos que orienta a alocação de recursos à atividade produtiva, ao passo que as instituições em outros países, geralmente menos desenvolvidos, estimulam a alocação de recursos escassos à atividade apropriadora. Isso significa que enquanto alguns países estimulam a sua população a inovar e a produzir, outros incentivam os seus cidadãos a dissiparem renda na apropriação do pouco que é produzido. 171 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Nesse sentido, com o intuito de demonstrar, ao final, a importância da propriedade, como parte das instituições formais de um país, para conferir o necessário incentivo à produtividade, partir-se-á da análise, primeiramente, de uma economia, hipoteticamente considerada, na qual não há propriedade formalmente reconhecida e, portanto, não respeitada pelo ordenamento jurídico. Na hipótese de não haver direitos de propriedade, os indivíduos que se dispõem a concretizar uma atividade produtiva terão, para além de alocar tempo e recursos à produção, alocar tempo e recursos à preservação daquilo que possuem. Por não existirem direitos de propriedade protegíveis pelo ordenamento jurídico, a dimensão da propriedade de um indivíduo será proporcional à sua capacidade de fornecer proteção àquilo sobre o que detém a posse. Por conseguinte, alguns indivíduos, ao invés de produzir, preocupar-se-ão com a apropriação de recursos e aqueles interessados na produção, deixarão de produzir mais porque o recursos à esta atividade destinados terão de competir com a finalidade de assegurar aquilo que já possuem. Dessa forma, os indivíduos produziriam até o ponto em que o benefício marginal adveniente da proteção do montante produzido igualar-se-ia ao custo marginal da atividade de proteger. Dito de outra forma, os recursos serão empregados na proteção daquilo que os indivíduos possuem até o ponto em que proteger uma unidade adicional seja igual ao benefício adveniente de manter esta unidade produzida. Com base na figura 1, em anexo, intitulada Produção vs. Apropriação, considere que os indivíduos desejam produzir PII, vez que este é o montante de produção que julgam necessário para o atendimento de suas necessidades. A linha CMg corresponde ao custo marginal de produzir uma unidade a mais do produto de sua atividade. A linha BMg representa o benefício marginal adveniente da produção desta unidade adicional. O eixo vertical representa o montante de recursos empregados na atividade produtiva. O eixo horizontal representa a quantidade de produção. Note-se que, se os indivíduos produzirem qualquer quantidade à esquerda de P, não estariam maximizando a sua produção, vez que o benefício adveniente da produção de uma unidade adicional superaria o custo de proteger esta unidade uma vez já produzida. Então, poderiam continuar na atividade produtiva. Caso os indivíduos desejarem produzir mais do que P, o montante de recursos necessários para proteger esta unidade adicional produzida seria maior do que o benefício do resultado dessa 172 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I produção adveniente. Em outras palavras, para que pudessem proteger esta unidade a mais, teriam de deixar desprotegida outra unidade produzida.4 Portanto, envidarão esforços até o montante em que consigam, ao mesmo tempo, produzir uma unidade e protegê-la (CMg = BMg). Mas, tal situação, em termos de eficiência produtiva, seria socialmente eficiente? Cooter e Ulen demonstram que um processo produtivo é considerado eficiente quando ocorre qualquer uma das seguintes situações (Cooter e Ulen, 2000, p. 12): a) Não é possível manter o mesmo nível de produção valendo-se de menos ou mais baratos insumos; b) Não é possível aumentar o nível de produção com a mesma quantidade insumos. Em assim sendo, há algum mecanismo que permita aos indivíduos alocarem menos recursos na defesa daquilo que possuem e, ainda assim, contarem com o mesmo nível de proteção? Fatos reais demonstram que sim. O economista Hernando De Soto, Presidente do Institute for Liberty and Democracy, sediado em Lima, no Peru, assevera que em projeto que neste país realizou, com o intuito de fazer com os que indivíduos pobres tivessem acesso à propriedade, a ativos e ao capital, constatou que nas residências que estavam formalmente registradas, ou seja, de cuja propriedade as pessoas eram titulares, havia, no mínimo, duas fontes de renda (e, por conseguinte, as pessoas gozavam de maior bem-estar), ao passo que nas residências sobre as quais não se reconheciam direitos de propriedade, havia, tãosomente, uma única fonte de renda (Soto, 2004). Por quê? A resposta, embora simples, assume larga dimensão. As pessoas que têm certeza de que a sua propriedade estará protegida e será respeitada não necessitam deixar alguém (o marido deixar a mulher, ou o inverso) tomando conta da casa enquanto trabalham. A partir do momento em que tal certeza se esvai, a melhor opção é deixar alguém tomando conta da propriedade, o que reduz as possibilidades de trabalho desta pessoa encarregada. Destarte, as pessoas podem alocar mais tempo e recursos na atividade produtiva e, ainda assim, terem os seus ativos protegidos. Fora de dúvida que uma pessoa a mais trabalhando faz com que a renda da família recrudesça. 173 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Tal constatação reveste-se de grande importância, porquanto com a percepção de maior renda (o que se refletirá em maior bem-estar social) os filhos dos proprietários das residências registradas podem passar a freqüentar a escola, diminuindo, dessa forma, o número de crianças praticantes de trabalho infantil (Soto, 2004).5 Com efeito, a situação fática da posse, sem assento registrário referente ao imóvel ocupado, significa manejar “ativo morto”, incapaz de gerar capital. Pelo próprio fato de os direitos de propriedade não poderem ser legalmente reconhecidos, os respectivos ativos não comportam a transformação em capital e não se constituem como bens de comércio, “senão em estreitos círculos locais, onde as pessoas se conhecem e confiam umas nas outras” (Soto, 2001, p. 20). Cabe notar, por oportuno, que nos Estados Unidos, as empresas iniciantes têm como a mais importante fonte de captação de recursos a hipoteca da casa do empresário. Nesse mesmo sentido, De Soto assevera que o título de propriedade privada significa conferir a um ativo uma função profícua e que é invisível, concernente às oportunidades que gera para o seu titular. Assim, o direito de propriedade fornece, ao titular do bem correspondente, a possibilidade de “ser utilizada com facilidade como garantia em empréstimos, como endereço de cobrança de dívidas, impostos e taxas; como localização que identifica os indivíduos para motivos comerciais, judiciais ou cívicos; ou como terminal responsável para o recebimento de serviços públicos, tais como energia, água, esgoto, telefone ou TV” (Soto, 2001, p.64). Com tal diagnóstico, De Soto propugna pela inserção social de 80% da população mundial que se encontra fora do sistema de comércio formal e legalizado, através, em primeiro lugar, do reconhecimento de direitos de propriedade e, ao depois, com o respeito ao mesmo. Alan Greenspan comenta em seu livro, a Era da Turbulência, que, no ano de 2003, recebeu De Soto no FED, e que este lhe apresentou uma proposta “para elevar o padrão de vida de segmentos significativos dos pobres do mundo” (Greenspan, 2007, p.245). Asseverou De Soto, em tal oportunidade, que se fosse possível conceder a propriedade sobre os bens que a maioria das pessoas já detinha a posse, “liberar-se-ia muita riqueza”. O montante total de “ativo morto”, i.e., sem expressão econômica e social, foi estimado em US$ 9 (nove) trilhões. Esse é o valor que corresponde à integralidade dos 174 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I imóveis de posse extralegal dos pobres do Terceiro Mundo e nas nações do extinto bloco comunista (Soto, 2001, p.47). De posse de tais dados, nota-se que os países do chamado Terceiro Mundo carregam alta dose de responsabilidade sobre a situação sócio-econômica de sua população. Para ilustrar, corriqueiras mostram-se as manifestações dos países em desenvolvimento contra a globalização, asseverando que os lucros de tal processo são percebidos, tão-somente, pelos países ricos. Ressalta-se, nessa esteira, que o Presidente da Tanzânia asseverou, em 2001, que o único benefício que o seu país recebe da globalização é poder participar da Copa do Mundo. Todavia, ao se analisar a quantidade de pessoas que exercem qualquer atividade no setor legal desse país, constata-se que o número é de 2%. Vale dizer, 98% das pessoas atuam na ilegalidade. E como afirma De Soto, não se pode comerciar a menos que o indivíduo seja capaz de assinar um bill of lading (conhecimento de embarque) ou operar uma transferência bancária. Para tanto, requer-se do comerciante, no mínimo, um endereço (Soto, 2006). Por fim, o homem criou diversas formas de representação ao longo de sua existência, com o intuito de compreender com a mente aquilo que, com as mãos, não se consegue tocar. Nesse sentido, o direito de propriedade, segundo todas as funções que exerce, não pode ser visto apenas em sua perspectiva estática, isto é, a dimensão que expressa, tão-somente, a posse direta de um bem. Mas, ao reverso, a propriedade é poderosa ferramenta que, principalmente por seus invisíveis atributos, capacita-se para tornar os ativos, comercial e financeiramente, visíveis, retirando-lhes a condição de subcapitalizados. Após a análise e constatação da importância dos direitos de propriedade formal e legalmente reconhecidos, passa-se a expor a relevância assumida pelas instituições no desenvolvimento econômico de um país; instituições as quais os direitos de propriedade compõem. III - INSTITUIÇÕES FORTES: A ADEQUADA ESTRUTURA DE INCENTIVOS À ATIVIDADE PRODUTIVA Com a introdução da propriedade privada, resulta elucidado quem é proprietário do que. A alocação dos recursos à produção, o que é incentivado com a proteção pelos direitos de propriedade, faz com que o bem-estar da população resulte 175 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I mais elevado do que quando, concomitantemente, ocorre a dissipação da renda (retirada de recursos da produção). “Em especial, a formalização da propriedade privada e a sua defesa pelo Estado permitem que, em vez de gastar parte do seu tempo defendendo o que possuem, as pessoas podem se concentrar inteiramente em produzir e gerar renda” (Pinheiro e Saddi, 2005, p. 95). Por exemplo, Harold Demsetz, em um artigo seminal intitulado Toward a theory of property rights refere uma experiência com índios no Canadá. Aduz a existência de duas áreas, uma em que existiam direitos de propriedade e outra em que tais eram ausentes. O resultado percebido foi o de que na área que foram assinalados direitos de propriedade, os recursos eram mais bem explorados. Mais recentemente, Douglass North, ganhador do Prêmio Nobel, em 1993, refere que as instituições de um país são um fator mais importante para o desenvolvimento do que as riquezas naturais, o clima favorável ou a agricultura. Afirma North que “as instituições são as regras do jogo, tanto as formais quanto as informais e também as suas características de eficácia. Juntas, definem a forma em que o jogo deve ser jogado (...)” (North, 2000). Em assim sendo, as leis compõem as instituições e não há direitos de propriedade sem lei que os protejam (North, 2004, p. 361).6 Como já referido supra, a previsão e a proteção dos direitos de propriedade têm o condão de promover a eficiência produtiva. Aliás, Cooter e Ullen asseveram que o regime de propriedade privada é criado visando a encorajar a produção, desincentivar o roubo e reduzir os custos de proteger os bens (Cooter e Ulen, 2000, p.77).7 Nesse sentido, direitos de propriedade claramente assinalados fazem diminuir o montante de externalidade gerado. A externalidade é um conceito econômico. Define-se como a geração de um benefício (externalidade positiva) ou a causação de um dano (externalidade negativa) em que o proveito (adveniente do benefício gerado) não é usufruído por quem o gerou e o custo (decorrente de um dano) não é suportado por quem o causou. Tratando-se de custos, quando não há a definição hialina dos direitos de propriedade, aquele agente que causa o dano não leva em conta, ao agir (seja produtor ou consumidor), os custos deste dano advenientes. E se não recair sobre o ofensor a responsabilidade pelo dano causado não haverá incentivos para que o reduza. Dessa forma, o nível de externalidade negativa gerado estará sempre acima de um ponto ótimo, sendo o dano causado e ninguém pelo mesmo responsabilizado. Em assim sendo, 176 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I uma função da propriedade, que é a de satisfazer o princípio da reparação, não será atendida caso os diretos de propriedade não sejam claramente definidos. Além disso, cabe notar que a propriedade faz recair sobre o seu titular todos os benefícios e os custos dela advenientes. Vale dizer, as externalidades, com a propriedade, são internalizadas. Isso porque ao fazer parte do sistema formal de propriedade, os indivíduos tornam-se individualmente responsabilizados e, então, “pessoas que não pagam por serviços e bens que consumiram podem ser identificadas, cobradas com juros, multadas, embargadas e ter suas taxas de crédito aumentadas” (Soto, 2001, p.79). Assim, tem-se que a propriedade exerce outras funções para além de, tãosomente, proteger a posse, como a de conferir segurança às transações, o que gera um incentivo aos cidadãos no sentido de “respeitarem títulos, honrarem contratos e obedecerem à lei” (Soto, 2001, p.79). Por isso, a assinalação objetiva da propriedade tende a fazer com que o seu titular dê a melhor destinação àquilo que titulariza, maximizando a sua utilidade, vez que preferirá mais gozar dos seus benefícios do que suportar os seus custos.8 E a internalização é perfeita quando todos os custos e benefícios entram no processo de tomada de decisão do titular da atividade que os gera. Definir claramente direitos de propriedade tem por conseqüência promover esta internalização. Todavia, um regime puro de propriedade privada, no qual o direito de propriedade é absoluto, jamais tomou assento na história da humanidade. Desde os romanos, a propriedade é composta por um conjunto limitado de direitos. Assim, restrições acerca do que um indivíduo pode ou não fazer com sua propriedade são comuns em todos os sistemas jurídicos. Entretanto, as variações destas restrições resultam em diferentes efeitos no desenvolvimento institucional e econômico de um país. É imbuído desse espírito que se passará à análise da função social da propriedade. IV - A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL NO BRASIL As formulações do mundo jurídico não são circunscritas às suas fronteiras. O Direito é um indutor de comportamentos. A tal conclusão, pode-se chegar 177 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I intuitivamente. Entretanto, a análise do direito a partir do ferramental da ciência econômica fornece uma teoria científica capaz de explicar os impactos das formulações jurídicas no comportamento dos indivíduos (Cooter e Ulen, 2000, p.3).9 O método da análise econômica do direito (Law and Economics) vale-se dos instrumentos econômicos para “resolver problemas legais e, inversamente, [predizer] como o direito e as regras legais exercem impactos sobre a economia e o seu desenvolvimento” (Pinheiro e Saddi, 2005, p.88). Os agentes econômicos, ou os “jogadores”, na expressão de North, são seres que reagem à referida estrutura de incentivos. A forma de jogar desses agentes é o reflexo das oportunidades oferecidas pela matriz institucional. Dessa forma, se o ambiente institucional recompensar, por exemplo, a pirataria, agentes econômicos especializados em reproduzi-la surgirão. Por outro lado, caso as instituições de um país recompensem a atividade produtiva, os agentes econômicos alocarão recursos e energia à consecução da produção (Pinheiro e Saddi, 2005, p.88). Como visto, as regras jurídicas compõem as instituições. Isso significa que se o ordenamento jurídico emitir sinais de que não protegerá os direitos de propriedade, o resultado será a dissipação de rendas através da competição entre os agentes econômicos para se apropriarem (mais do que produzirem) dos escassos recursos existentes. Assim, para além de um ordenamento jurídico prever os direitos de propriedade (law on the books), a prática jurídica deve esforçar-se para fazê-los válidos (law in action). Um método para tanto se constitui na observação das conseqüências das decisões judiciais, levando em conta os sinais que o subsistema jurídico envia aos demais subsistemas sociais, principalmente o econômico (Carvalho, 2005, p. 100). Com isso, cabe analisar as conseqüências sócio-econômicas de um ordenamento jurídico que optou por conter cláusulas genéricas, como demonstra ser a função social (Gama, 2007, p.19).10 A noção de função social emerge em contraposição à concepção individualista e liberal do direito de propriedade (Tepedino e Schreiber, 2005, p. 102). Trata-se do modelo solidarista de direito privado, cuja gênese, como já explicamos em outra 39 ocasião (Timm, 2006), encontra-se na sociologia de Durkheim. Acentuada influência para o surgimento de tal noção, a doutrina social da Igreja Católica, por meio das Encíclicas Rerum Novarum (do Papa Leão XIII), Quadragésimo Ano (do Papa Pio 178 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I XI), La Solemita e Oggi (do Papa Pio XII), Mager et Magistra (do Papa João XIII) e Populorum Progressio (do Papa Paulo VI), propugnava pela harmonização entre os interesses individuais e os anseios coletivos, chegando a asseverar que, sobre a propriedade, deveria incidir uma espécie de hipoteca social, com os bens materiais bastando apenas para o suprimento das necessidades básicas dos indivíduos, indo de encontro ao fato de que estes pudessem valer-se do excedente em detrimento daqueles que nada detinham (Gama, 2007, pp.5 e 6). Em assim sendo, no proprietário não se reconhecia o titular de direito subjetivo, mas, ao reverso, “o detentor da riqueza, mero administrador da coisa que deveria ser socialmente útil” (Fornerolli, 2004, p. 200). Já no século XIX, a concepção da função social era desenvolvida “pelas obras socialistas e anarquistas da Europa Industrializada” (Gama, 2007, p.18), mas ganhou status constitucional, tão-somente, com a edição da Constituição mexicana, de 1917 e, ao depois, com a Constituição alemã, de 1919, a Constituição de Weimar, sendo estas duas Cartas consideras o berço do Estado Social. No Século XX, com o final da Primeira Grande Guerra, o Estado passa a ser mais intervencionista, haja vista as mazelas trazidas pelo conflito. Da posição de instrutor das regras do jogo, o Estado passa a ser jogador, atuando diretamente no desenvolvimento econômico. Em razão, por exemplo, dos problemas habitacionais advindos do referido confronto, as leis locatícias passam a favorecer os locatários. O mesmo se dá com os empregados, em vista do problema de desemprego enfrentado, principalmente, pelos países derrotados. Assim, novas leis sobre acidente de trabalho e responsabilidade civil foram promulgadas, à margem dos princípios estruturais do Código Civil, “sacrificando o princípio da liberdade contratual e da responsabilidade civil subjetiva” (Timm, 2006, p. 237). Após a Primeira Grande Guerra tem-se a elaboração de leis que prevêem o remédio para casos que necessitam ser imediatamente sanados, ocorrendo aumento da legislação especial, tanto no concernente ao setor privado, quanto ao setor público, porquanto o Estado passa a intervir na economia, em prejuízo da sistematicidade do Código Civil. Desse modo, em que pese esteja, ainda, no centro do ordenamento jurídico, o Código Civil vai passando de lei geral a lei residual, vez que a pletora de leis efêmeras 179 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I passam a sustentar as bases legislativas específicas para determinada situação, “as quais são resultado de ativos grupos intermediários que pressionam no sentido de formulação de leis particulares que lhe são 44 favoráveis” deixando para o Código Civil a previsão geral da matéria. A especificação das leis, “como satélites autônomos procuram regiões próprias na órbita incontrolada da ordem jurídica, (...) formando-se microssistemas legislativos apartado do macrossistema do Código Civil”.11 A descodificação propriamente dita surge em diferentes países e em discrepantes momentos, na medida em que vão caindo as potências militares totalitárias. Sempre que há a mudança de regime, há a inauguração de uma nova ordem jurídica. Pois, as ordens jurídicas pós-segunda guerra mundial, erigiram-se com a Constituição garantidora dos direitos sociais no centro do ordenamento jurídico. É nesse sentido que se fala em descodificação, para apontar a relativização do Código Civil, submetendo os seus princípios aos princípios constitucionais, mais protetores, mais interventores, menos individualistas, mais sociais. No Brasil, após a Constituição de 1934, diversas leis especiais foram editadas em conformidade com a concepção social da propriedade, subjugando a matéria principiológica do então Código Civil, de 1916, como, por exemplo, o Estatuto da Terra (1964), o Estatuto da Mulher (1962), a Lei do Inquilinato (1979/1991), a alienação fiduciária em garantia (DL 911/69).12 No texto constitucional de 1946, no Brasil, a noção de propriedade resultou vinculada ao bem-estar social, objetivando a sua justa distribuição em igualdade de condições para todos. Na Carta de 1967, a função social foi erigida à categoria de princípio da ordem econômica e social (Tepedino e Schreiber, 2005, p. 103). Quanto à Constituição Federal de 1988, corriqueiro é o entendimento de que nela está previsto, no inciso XII, de seu artigo 5º, o direito à propriedade, mas que, no inciso imediatamente posterior, previsto está que a propriedade atenderá a sua função social. A partir disso, declinam-se ilações do tipo que à propriedade o ordenamento brasileiro não confere proteção, senão quando imbuída de sua função social. Vale dizer, ou a propriedade cumpre a sua função social ou não é protegida.13 É aquela típica idéia solidarista de Duguit de que a propriedade caracteriza dever e não direitos. Ainda que não se concorde integralmente com a precisão dessas afirmativas postas, é importante, então, questionar o que se entende por função social. 180 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Com efeito, preencher o conteúdo de tal cláusula genérica é tarefa árdua. A propagação do entendimento de que o princípio da função social deve ser observado alerta para a forma, mas descura do seu conteúdo. Ou seja, propugna-se por sua aplicação imediata, fornecendo-se as eventuais bases propícias para tanto, mas não se queda demonstrado o que, de fato, vem a ser a função social da propriedade e quando realmente a coletividade aumenta o seu bem-estar no julgamento de um determinado “caso concreto”. Nesse sentido: O efetivo controle desta conformidade somente pode ser feito em concreto, pelo Poder Judiciário, no exame dos conflitos que se estabelecem entre os interesses proprietários e aqueles não-proprietários. Os tribunais brasileiros têm desempenhado seu papel, como se vê das decisões mais recentes (...) (Tepedino e Schreiber, 2005, p.107). E se a doutrina civil e constitucional mostra-se franca àquela interpretação restritiva da propriedade individual em nome do “interesse coletivo”, a posição judicial não parece ir em sentido diferente. Veja-se, ilustrativamente, porque paradigmático, o julgamento de um órgão fracionário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, cuja ementa segue transcrita: AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO ATACADA: LIMINAR QUE CONCEDEU A ARRENDATÁRIO REINTEGRAÇÃO EM DE DETRIMENTO POSSE DOS DA "SEM EMPRESA TERRA". (...).RECURSO CONHECIDO, MESMO QUE DESCUMPRINDO O DISPOSTO NO ART-526 CPC, FACE DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL A RESPEITO E PORQUE DEMANDA VERSA DIREITOS FUNDAMENTAIS. GARANTIA A BENS FUNDAMENTAIS COM MÍNIMO SOCIAL. PREVALÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS DAS 600 FAMÍLIAS ACAMPADAS EM DETRIMENTO DO DIREITO PURAMENTE PATRIMONIAL DE UMA EMPRESA. PROPRIEDADE: GARANTIA DE AGASALHO, CASA E REFUGIO DO CIDADÃO. INOBSTANTE SER PRODUTIVA A ÁREA, NÃO CUMPRE ELA SUA FUNÇÃO SOCIAL, CIRCUNSTANCIA ESTA DEMONSTRADA PELOS DÉBITOS FISCAIS QUE A EMPRESA PROPRIETÁRIA TEM PERANTE A UNIÃO. IMÓVEL PENHORADO AO INSS. CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONFLITOS SOCIAIS E O JUDICIÁRIO. DOUTRINA LOCAL E ESTRANGEIRA. CONHECIDO, POR MAIORIA; REJEITADA A PRELIMINAR DE INCOMPETÊNCIA, A 181 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I UNANIMIDADE; PROVERAM O AGRAVO POR MAIORIA. (Agravo de Instrumento Nº 598360402, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Elba Aparecida Nicolli Bastos, Julgado em 06/10/1998). (grifo) Trata-se do caso da Fazenda Primavera, uma área de terra produtiva no Estado do Rio Grande do Sul que resultou invadida por 600 famílias integrantes do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). A companhia arrendatária da terra ingressou com ação de reintegração de posse e teve deferido o pedido para a concessão de medida liminar. Contra esta decisão, os réus interpuseram o aludido Agravo de Instrumento, cuja ementa transcreveu-se acima. Do corpo dessa decisão que proveu o recurso interposto, reformando a decisão de 1º Grau que concedera, liminarmente, a reintegração judicial na posse, extrai-se que o Tribunal sopesou, de um lado, o dano inevitavelmente causado à propriedade, adveniente da ocupação da terra e, de outro, a negativa de vigência aos direitos fundamentais, referido como o mínimo social, das 600 famílias sem-terra que, sendo daquele local removidas, não teriam para onde ir. Dessa forma, resultou decidido que sendo necessário sacrificar um dos dois aludidos direitos, que fosse, então, o direito patrimonial, para que vicejassem os direitos fundamentais. Cabe ressaltar, por oportuno, que a propriedade invadida não sofrera mediação do INCRA, não tendo atestado de improdutividade, sendo, portanto, supostamente produtiva. Aliás, na própria decisão há referência à produtividade da área em questão.14 Além da incerteza gerada por uma decisão como a referida, e conforme já exposto na primeira parte do presente artigo, tal entendimento tem por conseqüência prática a diluição do direito de propriedade do titular do imóvel, que ficará sem acesso à sua terra por anos a fio, enquanto durar o julgamento do mérito de sua ação possessória. Com efeito, em que pese ao proprietário esbulhado poder ser reconhecido, ao final de um processo, o seu direito de propriedade, tem-se que, durante este tempo, a utilização da propriedade pode resultar inviabilizada, interrompendo-se, assim, a atividade produtiva, ocasionando uma espécie de desapropriação às avessas. Imagine-se o quanto não desvaloriza o imóvel por conta da depreciação nesse período? Não bastasse isso, tal situação caracterizar-se-ia por gerar elevado custo de oportunidade. Por custo de oportunidade entende-se o custo econômico decorrente da não alocação de recursos, tempo e energia em possível atividade alternativa à escolhida 182 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I para o emprego de tais fatores (Cooter e Ulen, 2000, p.30). Vale dizer, ao se realizar uma determinada atividade, abre-se mão de outra, e, então, no verdadeiro custo da atividade escolhida deve-se computar aquilo que se deixou de ganhar ao preterir a atividade alternativa. Essa noção apresenta-se de forma mais pungente ao se tomar conhecimento de que, no Brasil, o total de recursos gastos com segurança alcança o montante de R$ 92 bilhões por ano, ou seja, 5% do seu PIB.15 Conforme já dito aqui, tais recursos geram ineficiência, vez que ao invés de serem destinados à atividade produtiva, dissipa-se renda, em primeiro lugar, na tentativa de realizar a apropriação indevida (invasores) e, em segundo lugar, na tentativa de evitá-la (proprietários). Com efeito, não se considere que uma decisão como a proferida pelo Tribunal do Rio Grande do Sul seja isolada. O aspecto problemático desse modelo “social” ou “solidarista”, como vem sendo denominado, é o alto risco da politização do Direito ou, na linguagem de Luhmann (Luhmann, 1988, p.244) - e, talvez, também, na de Weber 16 e na de Parsons17 -, a tentativa da dominação da racionalidade jurídica pela racionalidade política. Assim, o sistema jurídico, que possui a sua própria linguagem, o seu próprio código binário (legal - ilegal), resulta contaminado pela linguagem política, pelo código da política (poder - não poder), e, até mesmo, pela racionalidade política. Tal “politização” do sistema jurídico ultrapassa os muros da Academia, devido à predominância dos círculos acadêmicos sobre os mesmos (Engelmann, 2006). Nesse sentido, um estudo desenvolvido por Armando Castelar Pinheiro demonstra que mais de 70% dos juízes que responderam à pesquisa preferiam fazer “justiça social” a aplicar a letra fria dos artigos de lei e dos contratos (Pinheiro, 2005, p.100). Em assim sendo, de acordo com esse modelo “solidarista”, a função social da propriedade significaria a correção do desequilíbrio de poderes vigente na sociedade, fazer justiça distributiva no âmbito do direito privado, de modo a neutralizar desigualdades sociais, desconsiderando as conseqüências causadas ao sistema econômico. O corolário do subjetivismo, na hermenêutica de cláusulas genéricas, é a incerteza jurídica, que se queda prejudicada e potencializada por um sistema processual caótico, que não dispõe de suficientes mecanismos de uniformização jurisprudencial, conduzindo o juiz ao extremo de sua liberdade de decidir, ainda que isso colida com o interesse da maioria, em termos de previsibilidade. 183 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I Alan Greenspan afirma que “as pessoas, em geral, não se esforçarão para acumular o capital necessário ao desenvolvimento econômico se não tiverem certeza de sua propriedade.” (Greesnpan, 2007, p.243). À mesma conclusão chega a literatura especializada de Law and Economics.18 Nesse sentido, a utilização econômica da área invadida, no caso acima referido, não seria capaz de trazer benefícios substanciais aos seus ocupantes, vez que se quedariam desincentivados à empregar esforços na atividade produtiva, por algumas razões, tais como:19 (iv) Segundo o Relatório Doing Business 2008, do Banco Mundial, a terra e as edificações são responsáveis por ½ a ¾ da riqueza gerada na maioria das economias. Com títulos de propriedade, os indivíduos podem obter financiamentos bancários, até mesmo porque a terra é o colateral preferido dos bancos na realização de tais operações. Contudo, para tanto, deve-se ter um título legalmente constituído de propriedade; (v) No mesmo Relatório, refere-se que, no Brasil, são necessários 14 procedimentos para se registrar a propriedade, sendo apontado como um dos países que mais regulam o ato de formalizar esse direito; (vi) Se as famílias que tiveram o direito de invadir reconhecido não tiverem delimitados, definidos e registrados o direito de propriedade, estar-se-á diante de um caso de posse coletiva, na qual, pelo fato de o indivíduo não ter certeza de que poderá se apropriar do valor social de seu trabalho, não empregará esforços na consecução do mesmo. Vale dizer, os indivíduos só se engajarão em atividades nas quais o benefício delas adveniente supera o custo despendido para realizá-las. Portanto, na análise da concretização da função social da propriedade, caberá ao julgador observar e interpretar o sistema jurídico de fora para dentro, e não de dentro para... mais dentro ainda. Nesse sentido, Flávia Santinoni propõe o seguinte questionamento: “Quando os juízes irão se dar conta de que as suas decisões causam um grande impacto para além das partes envolvidas na disputa, causando desincentivos à produção ou incentivos à desordem ou novas invasões?”(Santinoni, 2006, p.9). Vale dizer, uma decisão judicial em um caso concreto emitirá uma orientação a outros agentes econômicos que se encontram na mesma situação das partes envolvidas no litígio. Trata-se dos efeitos de segunda ordem das regras jurídicas.20 184 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I A fixação da propriedade como ativo capaz de ser convertido em capital é mecanismo hábil para incluir os 4 bilhões de habitantes do mundo que se encontram à margem do sistema formal e legal de trocas, vale dizer, da economia de mercado, justamente pelo fato de não gozarem de direitos de propriedade. A inclusão (essa é a verdadeira função social da propriedade) será de forma mais eficiente ao se conferir direitos de propriedade àqueles que não os têm, sem radicalmente relativizar, em nome de objetivos evanescentes, os direitos daqueles que produzem. Por fim, transformar ativo morto em capital vivo é o mistério do capital (não o inverso). Tal conversão, os países desenvolvidos conseguem fazer, ao passo que os países do terceiro mundo e os antigos países comunistas não. Aí está a explicação para o fato de o capitalismo ter florescido em alguns países e não em outros. V - UM FUNDAMENTAL DIREITO COMO DIREITO FUNDAMENTAL Há quem diga que a indelével lição do século XX tenha sido a de que, na produção de riqueza social, a propriedade privada supera a propriedade coletiva (Cass, 2006, p.88). Hernando De Soto comunga de tal asserção, tanto que pesquisou a razão pela qual o capitalismo vicejou em alguns países e não em outros, chegando à conclusão de que a diferença residia na capacidade de os países prósperos converterem ativo subcapitalizado em capital ativo. Nesse sentido, tem-se que a fonte precípua para a geração do capital são os direitos de propriedade privada. De fato, os exemplos históricos, já referidos no presente trabalho, não deixam dúvidas. Em que pese a previsão e proteção dos direitos de propriedade ser motivo de controvérsia,21 principalmente entre os países nos quais a maior parte da população encontra-se excluída do sistema formal e legalizado de trocas, e, via de conseqüência, resultar flexibilizado (Fornerolli, 2004, p.200) em nome da consecução de pretensos direitos fundamentais ao mesmo superiores, tem-se que o direito de propriedade é um direito fundamental e, ainda, este direito tem o condão de promover outros direitos igualmente fundamentais. Com efeito, para além de o direito de propriedade ser um fundamental direito, é formalmente reconhecido e previsto como um direito fundamental. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas, em 1948, está expresso, 185 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I em seu artigo 17, que “Toda pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à propriedade”. Outrossim, no mesmo artigo 17, mas em sua cláusula segunda, enuncia-se que “Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade”. Diante disso, percebe-se que a flexibilização do direito de propriedade em nome de qualquer outro direito fundamental, merece minuciosa análise, vez que se estará diante de duas garantias fundamentais, e a preferência por uma em detrimento da outra exige sólida fundamentação. Ademais, dotar um cidadão de direito de propriedade, para além das vantagens supracitadas, permite-se a ele escolher, por exemplo, com base no sistema de preços, o arranjo alocativo mais eficiente para ser empregado em sua atividade produtiva (Cass, 2006, p.88). Isso satisfaz um outro direito fundamental, a saber, a liberdade de escolha. Então, ter-se-ia que a liberdade é corolário da propriedade. Aliás, é o que está dito no artigo 6, da Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, verbis: “[each signatory nation] to recognize the right to work, which includes the right of everyone to the opportunity to gain his living by work which he freely chooses.” Ora, não permitir que a pessoa que emprega recursos, tempo e energia em sua atividade produtiva apodere-se dos frutos de seu próprio trabalho, constitu-se flagrante negativa de vigência à própria dignidade do ser humano. Referiu-se acima que, no Peru, no final da década de 90 do século XX, se constatou situação na qual as residências cujos moradores tinham reconhecido o direito de propriedade sobre a mesma, apresentavam o dobro de renda em comparação aos moradores desprovidos de registro formal de propriedade sobre as suas terras. Logo adiante, destacou-se que nas famílias com maior renda (não por acaso, titulares de propridade reconhecida) o número de crianças que frequentava a escola era 28% superior ao número de crianças que regularmente estudavam nas famílias que não detinham direitos de propriedade (Soto, 2004). Isso está diretamente conectado ao direito fundamental da criança estudar, ao invés de ter de trabalhar, elevando consideravelmente a sua qualidade de vida. Além disso, cabe notar que a segurança advinda do registro da propriedade e, por conseguinte, da defesa da mesma, incentiva o seu titular a alocar mais recursos em sua atividade produtiva, não sendo forçado a dissipar renda na atividade apropriadora, aumentando a 186 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I eficiência na produção e, dessa forma, potencializando a geração de riqueza.22 Uma sociedade que não produz riqueza não é capaz de distribuir renda. VI – CONCLUSÃO Paradoxalmente, a função social da propriedade em um sistema de mercado não diverge muito, em uma perspectiva de análise econômica do Direito, da função privada. É protegendo e não relativizando a propriedade que há ganho de bem-estar social. Por certo, podem existir exageros, mas para isso existe a função corretiva do instituto do abuso de direito (cujo remédio jurídico é, tipicamente, perdas e danos e não desapropriação às avessas). Estudos de Hernando de Soto sugerem que a universalização dos direitos individuais de propriedade teriam efeito multiplicador de renda muito superior a outras alternativas de flexibilização da mesma, apontando, nesse sentido, que a disrepância, em termos de riqueza, entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, tem na capacidade daqueles em realizar, de modo eficiente, a conversão do ativo subcaptilizado em capital ativo, a sua causa precípua. A literatura de análise econômica parece confrontar as lições da communis opinio doctorum de que o enfraquecimento da proteção da propriedade aumentará a justiça social. É possível esperarmos o contrário, caso as decisões como a do TJRS prosperem e conformem as expectativas dos agentes econômicos, tornando os custos de monitoração e segurança impagáveis. NOTAS 1 por capital entende-se a representação das potencialidades que um bem deve possuir, capacitando-o para ser objeto de troca em uma economia de mercado. Nesse sentido, um bem que se encontra na extralegalidade, somente portará a característica de ser um bem físico (um ativo morto, na expressão de Hernando de Soto), subcapitalizado. Ao reverso, um bem que reúne condições de ser objeto de troca, por estar devidamente registrado, assume uma dimensão dinâmica (invisível,mas profícua), em oposição à mera situação física, estática. Assim, um bem pode ser usado como colateral em empréstimos bancários, ser terminal de recebimento de serviços públicos (água, luz, telefone, TV, Internet), servir para integralizar quotas ou ações em sociedade empresárias, ser fonte de tributos, etc. Vale dizer, com as palavras De Soto: “o capital é a fonte que aumenta a produtividade e gera a riqueza das nações” (De soto, 2001, p. 19). 187 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente 2 Parte I Ver, também, RICHEL, Richard. Germany’s Postwar Growth: Economic Miracle or Reconstruction Boom?, em Cato Journal, vol 21, n. 3, p. 440, disponível em http://www.cato.org/pubs/journal/cj21n3/cj21n3-5.pdf 3 Alan Greenspan refere que “quando a China concedeu formas altamente diluídas de propriedade aos residentes de áreas rurais que cultivavam lotes petencentes à comunidade, a produtividade agrícola e os padrões de vida ostentaram aumentos substanciais”, em GREENSPAN, op.cit..p. 243. 4 Por esse motivo, de acordo com o gráfico apresentado, os indivíduos jamais chegariam ao nível PII de produção, embora seja este o nível necessário para o atendimento das necessidades. 5 Essa conclusão foi referida por De Soto no International Development Seminar.The Hudson Institute, 2004. 6 O mesmo autor, Douglass North, assevera que as instituições são a estrutura de incentivos de uma economia, vale dizer, as organizações que brotam em uma economia são o reflexo das oportunidades conferidas pelas instituições. Nesse sentido, se as instituições incentivam a apropriação, os indivíduos e organizações alocarão recursos para a apropriação. De outro lado, se as instituições lançam incentivos no sentido da produção, os indivíduos alocarão os recursos na atividade produtiva, in NORTH, Douglass C. Economic Performance Through Time, in The American Economic Review, Vol 84, No. 3, (Jun, 1994), p. 361. 7 “To encourage production, discourage theft, and reduce the costs of protecting goods”, em COOTER, Robert e ULEN, Thomas. Law and Economics. Addison Wesley, 3ª Ed, 2000, p.77. 8 A concentração de custos e benefícios na pessoa do titular dos direitos de propriedade cria um incentivo para que utilize os recursos com maior eficiência, in DEMSTZ, Harold. Toward a Theory of Property Rights, The American Economic Review, vol. 57, No. 2, Papers and Proceedings of the Seventy-ninth Annual Meeting of the American Economic Association, May, 1967 p. 356. Ainda, se sobre o titular recaem todos os custos e benefícios de ser proprietário, então, tentará alocar os recursos da forma que maximize estes, reduzindo àqueles ao mínimo possível, cf SZTAJN, Rachel, ZYLERSZTAJN, Décio e MUELLER, Bernardo. Economia dos Direitos de Propriedade, parte II, in ZYLBERSZTAJN, Décio; SZTAJN, Rachel. Direito e economia: análise econômica do direito e das organizações. 1 ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. p. 95 9 COOTER e ULEN asseveram que as sanções jurídicas equivalem aos preços e que as pessoas respondem àqueles da mesma forma que reagem a estes. Isto é, quando os preços estão elevados, as pessoas reagem a tal situação consumindo menos dos bens mais caros e, igualmente, as pessoas realizam menos as condutas mais severamente sancionadas, in COOTER and ULEN, op. cit. p.3. 10 “(...) por si só, a expressão em destaque não apresenta alto nível semântico. Dessa maneira, ela pôde ser utilizada por diversas teorias econômicas para justificar inumeráveis ações estatais limitadoras das liberdades individuais”. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira Gama e CIDAD, Felipe Germano Cacicedo, in GAMA, Guilherme Calmon Nogueira (org). Função Social no Direito Privado e Constituição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 19. 11 “Esta leitura leva-nos a constatar que a propriedade saiu das raízes do direito civil, mas que atualmente encontra uma teia de normas (administrativa, consumerista, comercial, tributária etc.) que açambarca e 188 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I tem por fundamento as premissas insculpidas na Constituição Federal. Positivou-se, assim, um novo regime jurídico para o entendimento do instituto da propriedade.” FORNEROLLI. Op. Cit., p. 203. 12 O Código Civil brasileiro, de 2002, no § 1º, do artigo 1.228, expressamente prevê que a propriedade deve atender uma função social, verbis: § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. 13 “Em outras palavras: não há, no texto constitucional brasileiro, garantia a propriedade, mas tão- somente, garantia à propriedade que cumpre a sua função social”. (...) “A garantia da propriedade não tem incidência, portanto, nos casos em que a propriedade não atenda a sua função social, não se conforme aos interesses sociais relevantes cujo atendimento representa o próprio título de atribuição de poderes ao titular do domínio.” Idem., p. 105. FORNEROLLI afirma que “Contudo, instalou no inc. XXIII um inciso após a garantia da propriedade, a intenção socializante de que a propriedade deverá atender a sua função social”, em FORNEROLLI, Luiz Antonio Zanini, op. cit., p. 203. No mesmo sentido, BOHEN FILHO, Alberto. Cidade, propriedade e o novo paradigma urbano no Brasil. Revista Jurídica da Universidade de Franca, 2005. HAJEL, Flavia Nassif. A função social da propriedade no código civil. Revista Jurídica da Universidade de Franca, 2004; MARQUES, Benedito Pereira. Justiça agrária, cidadania e inclusão social. Procuradoria-Geral da Justiça Militar, 2005; SALLES, Venicio Antonio de Paula. O direito de propriedade em face do novo código civil. Revista do Tribunal Regional Federal, 2004; TEIZEN JUNIOR, Augusto Geraldo. A função social no código civil. Revista dos Tribunais, 2004; TEPEDINO, Gustavo José Mendes. Contornos constitucionais da propriedade privada. Revista Dialétic de Direito Processual, 2004. 14 “Inobstante ser produtiva a área, não cumpre ela a sua função social (...)”. 15 GASPAR, Antônio. Brasil gasta R$ 92 bilhões com segurança. Reportagem para o Website Terra. Notícia veiculada em 30/05/2008, disponível em http://invertia.terra.com.br/sustentabilidade/interna/0,,OI2919101-EI10425,00.html. 16 Para leitura mais aprofundada deste tópico, que excede o propósito do presente artigo, ver WEBER, Max. Economia e Sociedade. V.2. Brasília, Editora UnB, 1999, p. 1-153; FREUND, J. La rationalisation du droit selon Max Weber, in Archives de Philosophie du Droit, v. 23, 1968, p. 69 e ss. 17 O complexo sistema social ativo parsoniano aparece em PARSONS, Talcott. O sistema das sociedades modernas. São Paulo, Editora Pioneira, p. 15 e ss. 18 Ver, nesse sentido, DEMSTZ, Harold. Toward a Theory of Property Rights, The American Economic Review, vol. 57, No. 2, Papers and Proceedings of the Seventy-ninth Annual Meeting of the American Economic Association, May, 1967.; ZYLBERSZTAJN, Decio e SZTAJN, Rachel. (Organizadores). Direito e Economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.; NORTH, Douglass C. Custos de Transação, Instituições e Desempenho Econômico.Traduzido por Elizabete Harth. 3ª ed. Instituto Liberal: Rio de Janeiro, 2006.; BARZEL, Yoram. Economic analisys of property rights. Cambridge: Cambridge University Press, 2007.; SHAVELL, Steven. Foundations of Economic Analysis of Law. Belknap Press, 2004. 19 Todas as razões mencionadas resultam do exposto nas seções anteriores deste artigo. 189 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte I 20 Efeitos de segunda ordem 21 Ver introdução supra. 22 “O propósito fundamental dos direitos de propriedade, bem como a sua principal realização, é que eliminam a concorrência destrutiva pelo controle de recursos econômicos. Direitos de propriedade bem definidos e protegidos substituem a concorrência através da violência pela concorrência por meios pacíficos”. KOGAN, Lawrence. Rediscovering the Value of Intellectual Property Rights H ow Brazil‘s Recognition and Protection of Foreign IPRs Can Stimulate Domestic Innovation and Generate Economic Growth. International Journal of Economic Development Volume Eight, Numbers 1-2, 2006, pp. 15-678. BIBLIOGRAFIA COOTER, Robert e ULEN, Thomas. Law and Economics. Addison Wesley, 3ª ed, 2000, 488p. COOTER, Robert et al. 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(Organizadores). Direito e Economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. GRÁFICO – FIGURA 1 Figura 1. Produção vs. Apropriação $ Cmg CMg=BMg Bmg 0 P PII Q 192 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II PARTE II PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE 193 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL: um novo paradigma para o século XXI José Rubens Morato Leite1 Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira2 SUMÁRIO Introdução. 1. A proteção do meio ambiente no ordenamento brasileiro: uma breve análise de sua evolução. 2. Estado Democrático de Direito Ambiental. 2.1. Conceito e características. 2.2. Funções do Estado de Direito Ambiental. 2.3. Direito fundamental ao meio ambiente no Estado de Direito Ambiental brasileiro. Considerações finais. Introdução O presente artigo discute a necessidade de concretização de um Estado de Direito Ambiental diante da complexidade dos danos ambientais da sociedade contemporânea e de risco, cujas lesões são primordialmente difusas, incertas, de difícil comprovação do nexo causal e de reparabilidade peculiar, considerando-se as características do sistema ecológico3. 1 Pós-Doutor de Direito Ambiental. Professor Adjunto de Direito Ambiental e Constitucional Ambiental dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC, Visiting Fellow at Macquarie University, Centre for Environmental Law, Sydney, Austrália. Diretor do Instituto O Direito por um Planeta Verde. Coordenador do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco, cadastrado no CNPq. Autor de vários livros e artigos na área, entre eles: Direito ambiental na sociedade de risco, 2. ed., Forense Universitária; Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial, 2. ed., Revista dos Tribunais, e Organizador de Os novos direitos no Brasil: natureza e perspectiva, Saraiva. 2 Mestranda em Direito, Estado e Sociedade. Subárea Direito e Meio Ambiente, pela Universidade Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Ecologia Política na Sociedade de Risco, cadastrado no CNPq 3 De acordo com o sociólogo Ulrich Beck, vive-se, atualmente, numa sociedade de risco, na qual os riscos sociais, políticos, ecológicos e individuais tornaram-se incalculáveis e seus efeitos passaram a ser imprevisíveis, escapando cada vez mais das instituições de controle e proteção da sociedade industrial. BECK, Ulrich. Risk Society and the Provident State. In: LASH, Scott; SZERSZYNSKI, Bronislaw; WYNNE, Brian (orgs.). Risk, environment & modernity: towards a new ecology. Londres: Sage Publications, 1998. p. 27. 194 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Inicialmente, a fim de se atingir o objetivo pretendido, examinar-se-á como a proteção do meio ambiente tem sido positivada no ordenamento jurídico brasileiro. Essa análise culminará com o estudo da Constituição da República Federativa do Brasil, publicada em 5 de outubro de 1988, por ser este o documento que efetivamente desenhou um modelo de Estado de Direito Ambiental ao adotar princípios como o da precaução, por exemplo, e ao proteger o meio ambiente não apenas em virtude de sua utilidade para a espécie humana4. Em seguida, far-se-á um estudo do conceito, características e funções desse Estado, uma vez que se entende ser este o paradigma a ser seguido a fim de se garantir um ambiente ecologicamente equilibrado às presentes e futuras gerações, como determina a Constituição Federal de 19885. Diante dos grandes desafios que se impõem ao homem no sentido de se resguardar um bem que é essencial à sadia qualidade de vida, o Estado de Direito Ambiental, embora se trate apenas de uma proposta constitucionalmente positivada, serve de parâmetro a ser seguido. Obviamente que o desafio maior é a realização no plano fático dos postulados teórico-jurídicos desse modelo de Estado. No entanto, entende-se que a sua discussão já pode ser considerada como um primeiro passo na busca por transformações mais significativas em termos de proteção ambiental para o século XXI. 1. A proteção do meio ambiente no ordenamento brasileiro: uma breve análise de sua evolução As Ordenações do Reino foram os primeiros corpos normativos que trataram da proteção jurídica do meio ambiente brasileiro. Tratava-se de uma proteção mais restrita na medida em que suas proibições tinham como foco um bem ambiental em específico, desconsiderando-se a necessidade de proteger de maneira mais sistemática o meio 4 A Constituição Federal da República Federativa do Brasil adotou o princípio da precaução de maneira implícita nos incisos IV e V, do § 1º, do art. 225. Outrossim, entende-se que as normas constitucionais protegem o meio ambiente independentemente de sua utilidade para o homem ao, por exemplo, nos termos do inc. VII, também do § 1º, do art. 225, vedar práticas que coloquem em risco a função ecológica da fauna e da flora, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade 5 Estabelece o caput do art. 225, da Constituição da República Federativa do Brasil: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 195 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II ambiente. Assim, as Ordenações Afonsinas, por exemplo, proibiam o corte deliberado de árvores frutíferas, e as Ordenações Filipinas, por sua vez, protegiam as águas, punindo com multa quem jogasse material que a sujasse ou viesse a matar os peixes6. A proteção do meio ambiente no Brasil continuou a ser positivada, mesmo após a sua independência, de maneira pontual e fragmentada. Assim, diversas foram as legislações que procuraram proteger os microbens ambientais, desconsiderando a amplitude e complexidade do macrobem ambiental7, a exemplo da Lei n° 4.771, de 15 de setembro de 1965, que instituiu o novo Código Florestal, preocupando-se de maneira específica com um determinado bem, no caso as florestas8. A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, promulgada quase vinte anos depois do Novo Código Florestal, adotou uma visão mais sistêmica do meio ambiente ao instituir uma política preocupada em preservar, melhorar e recuperar a qualidade ambiental propícia à vida9. Com o objetivo de se assegurar uma gestão mais integrada do meio ambiente, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiental dispõe dos seguintes instrumentos, entre outros: zoneamento ambiental, licenciamento e revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras e o Sistema Nacional de Informações sobre o Meio Ambiente10. A Constituição Federal da República Federativa de 1988 adotou, assim como a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, dispositivos que protegem o meio ambiente de maneira integrada e não apenas fragmentada como fizeram as legislações esparsas ambientais anteriores. Sem dúvidas, o meio ambiente deve ser protegido de maneira sistêmica, pois ele próprio é um sistema cujas partes são interdependentes. Impende registrar que tanto a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente quanto 6 FREITAS, Wladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais. 2ªedição revista, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pág. 19. 7 O meio ambiente considerado em sua amplitude (macrobem ambiental) é amplo, de natureza imaterial, indivisível e difuso. O macrobem ambiental não se confunde com os elementos corpóreos que o integram, a exemplo da árvore, do solo e dos animais. Esses são os chamados microbens ambientais. 8 O art. 1°, da Lei 4.7771, de 15 de setembro de1965, que instituiu o Novo Código Florestal, dispõe que: “As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei estabelecem”. 9 A Lei 6.938, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, foi promulgada em 31 de agosto de 1981. Dispõe o art. 2° dessa lei: “A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País, condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios:[...]”. 10 Conforme o art. 9° da Lei 6.938. 196 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II a Constituição Federal sofreram intensa influência da Conferência de Estocolmo realizada em 1972, na Suécia. Entre os princípios adotados pela Conferência de Estocolmo encontram-se: 1) princípio da solidariedade intergeracional, devendo o meio ambiente ser protegido para as presentes e futuras gerações 11, 2) princípio do uso racional dos recursos naturais12 e 3) princípio da cooperação entre os Estados com o objetivo de proteger o meio ambiente13. Um outro documento que influenciou a Constituição Federal de 1988, em especial, foi o Relatório denominado Nosso Futuro Comum, também conhecido como Relatório Brudtland14, publicado em 1987, resultado das preocupações da Organização das Nações Unidas com a necessidade de se efetivar o desenvolvimento sustentável15. O documento apresenta um conjunto de recomendações focadas em cooperar com a solução de problemas supranacionais, tais como a proteção de ecossistemas como Antártica, oceanos e outros, a eliminação de guerras e a implementação de um programa de desenvolvimento sustentável pela ONU. Em virtude da publicação do Relatório Brundtland, a Assembléia Geral das Nações Unidas decidiu realizar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento em 1992, no Rio de Janeiro. Entre os documentos produzidos por conta dessa Conferência, encontram-se a Convenção sobre Diversidade Biológica e a 11 Princípio 1 : “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições de vida adequada em um meio cuja qualidade lhe permite levar uma vida digna e gozar de bem-estar, tendo a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presente e futura. A este respeito as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira continuam condenadas e devem ser eliminadas” 12 Princípio 5: “Os recursos não renováveis da Terra devem ser empregados de maneira a se evitar o perigo de seu esgotamento e a assegurar a toda a humanidade a participação nos benefícios de tal emprego”. 13 Princípio 14: “Todos os países, grandes e pequenos, devem ocupar-se com espírito e cooperação e em pé de igualdade das questões internacionais relativas à proteção e melhoramento do meio ambiente. É indispensável cooperar para controlar, evitar, reduzir e eliminar eficazmente os efeitos prejudiciais que as atividades que se realizem em qualquer esfera, possam Ter para o meio ambiente, mediante acordos multilaterais ou bilaterais, ou por outros meios apropriados, respeitados a soberania e os interesses de todos os estados”. 14 Note-se que Brundtland é sobrenome da primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland, presidente da Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – CMMAD -, criada pela ONU com o propósito de discutir as relações entre meio ambiente e desenvolvimento sustentável, bem como de propor alternativas para que isso se viabilize. 15 O Relatório Brundtland define a expressão desenvolvimento sustentável como “[...] o desenvolvimento que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades”. 197 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, das quais o Brasil é signatário 16. Essas convenções apresentam dois elementos significativos no tocante à necessidade de se garantir que danos transfronteiriços e complexos sejam evitados e reparados, quais sejam os princípios da cooperação entre os Estados e o da precaução17 . Pode-se dizer que a partir da década de oitenta as normas adotadas pelo ordenamento jurídico brasileiro passaram a gerir problemas ambientais de segunda geração. Assim como os direitos fundamentais em geral podem ser classificados como direitos de primeira, segunda, terceira, e até quarta geração 18, também no campo do direito ambiental é possível se falar em problemas ecológicos de primeira e de segunda geração19. No que se refere aos problemas ambientais de primeira geração, as normas jurídicas objetivam, primordialmente, controlar a poluição e subjetivar o direito ao meio 16 A Convenção sobre Diversidade Biológica foi promulgada pelo Decreto Legislativo n. 2, de 03 de fevereiro de 1994 e a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, por sua vez, pelo Decreto nº 2.652, de 1º de julho de 1998. 17 Nesse sentido, a Convenção da Diversidade Biológica estabelece em seu artigo 5º o princípio da cooperação. Eis a íntegra do referido dispositivo: “Artigo 5 – Cooperação: Cada Parte Contratante deve, na medida do possível e conforme o caso, cooperar com outras Partes Contratantes, diretamente ou, quando apropriado, mediante organizações internacionais competentes, no que respeita a áreas além da jurisdição nacional e em outros assuntos de mútuo interesse, para a conservação e a utilização sustentável da diversidade biológica”. Na Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, o princípio da cooperação apresenta-se de maneira implícita nos seguintes compromissos assumidos pelos Estados signatários: a) “Transferir recursos tecnológicos e financeiros para países em desenvolvimento além da assistência que já seja por eles oferecida, e apoiar os esforços desses países no cumprimento de suas obrigações sob a Convenção” e b) “Ajudar países em desenvolvimento que sejam particularmente vulneráveis aos efeitos adversos da mudança do clima para fazer frente aos custos de adaptação”. Outrossim, dispõe o princípio 3 da referida Convenção: “As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo possível. Para esse fim, essas políticas e medidas devem levar em conta os diferentes contextos socioeconômicos, ser abrangentes, cobrir todas as fontes, sumidouros e reservatórios significativos de gases de efeito estufa e adaptações, e abranger todos os setores econômicos. As Partes interessadas podem realizar esforços, em cooperação, para enfrentar a mudança do clima”(grifo nosso). 18 Há que se mencionar a existência de uma quarta dimensão de direitos fundamentais, composta pelos direitos à democracia, à informação e ao pluralismo. Esta dimensão é o resultado da globalização dos direitos fundamentais, no sentido de uma universalização no plano institucional, que corresponde, na opinião de Paulo Bonavides, à derradeira fase de institucionalização do Estado Social. BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.p.571. 19 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional ambiental português: tentativa de compreensão de 30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português. . In: CANOTILHO, José Joaquim Gomes (org.); LEITE, José Rubens Morato(org.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 1 e 2. 198 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II ambiente como direito fundamental do ser humano. Nesta primeira geração, a dimensão antropocêntrica parece ainda ser o fundamento da proteção jurídica do meio ambiente. Nesse sentido, verifica-se que as normas que antecederam à Constituição Federal protegiam o meio ambiente principalmente em função de sua utilidade para o homem. É o que se verifica, por exemplo, quando as Ordenações Afonsinas tipificam como crime de injúria ao rei o corte de árvores frutíferas. Diferentemente, os instrumentos jurídicos adotados pelo Brasil a partir da década de oitenta, a exemplo da Constituição Federal de 1988, da Convenção da Diversidade Biológica e da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, demonstram uma maior sensitividade para com a proteção do meio ambiente. Assim, para equacionar problemas ecológicos de segunda geração foram estabelecidos princípios e regras ancorados nas idéias de cooperação entre os Estados e de precaução, que oferecem instrumentos mais aptos a equacionar os problemas ecológicos de segunda geração. Um dos problemas ambientais de segunda geração é o que se refere aos efeitos combinados dos vários fatores de poluição e das suas implicações globais e duradouras como o efeito estufa, a destruição da camada de ozônio, as mudanças climáticas e a destruição da biodiversidade. Tais efeitos atingem não apenas as presentes gerações, mas também as futuras e, portanto, impõem a necessidade de adoção de uma nova ética, qual seja a ética intergeracional20. Compreende-se que o ordenamento jurídico brasileiro, através da Constituição Federal de 1988 e dos demais instrumentos internacionais por ela adotados, dispõe de mecanismos capazes de solucionar problemas ambientais de grande complexidade, tais como os de segunda geração. Nesse sentido, a Constituição Federal, por exemplo, incumbiu ao Poder Público o dever de preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas 21. Outrossim, adotou, de maneira implícita, o princípio da precaução ao estabelecer que o Poder Público é o responsável por “controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e 20 A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado é um direito intergeracional. Nesse sentido, dispõe o caput do art. 225, da C.F. Dessa forma, mitigou o antropocentrismo ao colocar no foco de sua atenção a preocupação com o direito daqueles que estão por vir. Entende-se que a Constituição Federal adotou uma ética intergeracional, pois, além do art. 225, caput, erigiu como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre, justa e solidária (grifo nosso). 21 Conforme o inc. I, do § 1º, do art. 225, da C.F. 199 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II o meio ambiente”22. Assim, observa-se que as normas jurídicas ambientais adotadas pelo ordenamento jurídico brasileiro objetivam solucionar não apenas problemas ambientais de primeira geração, mas, atentas à potencialidade dos danos ambientais, cujos efeitos podem ser até mesmo transfronteiriços, dedicam sua atenção também aos problemas ambientais de segunda geração, os quais, indubitavelmente, constituem-se o grande desafio para todos os Estados, pois exigem deles ações em conjunto e não apenas que cada Estado proteja o meio ambiente de maneira isolada. Através da criação de um sistema jurídico dotado de instrumentos destinados a solucionar problemas ecológicos de primeira e segunda geração, o ordenamento jurídico brasileiro desenhou o Estado de Direito Ambiental. A seguir, estudar-se-á o conceito, características e funções desse modelo de Estado. 2. Estado Democrático de Direito Ambiental 2.1. Conceito e características O Estado de Direito do Ambiente é fictício e marcado por abstratividade. É, por si só, um conceito abrangente, pois tem incidência necessária na análise da Sociedade e da Política, não se restringindo ao Direito. Diante de um mundo marcado por desigualdades sociais e pela degradação em escala planetária, construir um Estado de Direito Ambiental parece ser uma tarefa de difícil consecução ou até mesmo uma utopia, porque se sabe que os recursos ambientais são finitos e antagônicos com a produção de capital e consumo existentes. Nos ensinamentos de Santos, o Estado de Direito Ambiental é, na realidade, uma utopia democrática, porque a transformação a que aspira pressupõe a repolitização da realidade e o exercício radical da cidadania individual e coletiva, incluindo nela uma Carta dos direitos humanos da natureza23. Em termos similares, Pureza24 enfatiza: “O 22 23 Conforme o inc. V, do § 1º, do art. 225, da C.F. SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. Porto: Afrontamento, 1994, p. 42. 24 PUREZA, José Manuel; FRADE, Catarina. Direito do ambiente. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 1998, p. 8-9. 200 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Estado ambiental é um quadro de mais sociedade, mais direitos e deveres individuais e mais direitos e deveres coletivos e menos Estado e menos mercantilização. Neste novo contexto, não é prioritário o doseamento entre público e privado, mas sim o reforço da autonomia (logo, dos direitos e das responsabilidades) individual e social frente à mercantilização e à burocratização”. Segundo Capela, o Estado de Direito Ambiental é definido como a forma de Estado que se propõe a aplicar o princípio da solidariedade econômica e social para alcançar um desenvolvimento sustentável, orientado a buscar a igualdade substancial entre os cidadãos, mediante o controle jurídico do uso racional do patrimônio natural25. Canotilho26 vislumbra quatro postulados básicos no que concerne à compreensão do Estado de Direito Ambiental: o globalista, o publicista, o individualista e o associativista. O postulado globalista centra a questão ambiental em termos de “Planeta”, atentando para o fato de que a proteção ambiental não pode ser restrita a Estados isolados, devendo ser realizada em termos supranacionais. O postulado publicista centra a questão ambiental no “Estado”, tanto em termos de dimensão espacial da proteção ambiental quanto em termos de institucionalização dos instrumentos jurídicos de proteção ambiental. O postulado individualista, por seu turno, restringe a proteção ambiental à invocação de posições individuais. Assim, sendo o ambiente saudável contemplado na perspectiva subjetiva, os instrumentos jurídicos de proteção ambiental utilizados seriam praticamente os mesmos referidos na proteção de direitos subjetivos, possuindo, a proteção ambiental, acentuado caráter privatístico. O postulado associativista procura formular uma democracia de vivência da virtude ambiental, substituindo a visão tecnocrática com proeminência do Estado em assuntos ambientais (postulado publicista) por uma visão de fortes conotações de participação democrática. A peculiaridade do debate do Estado de Direito Ambiental exige que a reflexão a respeito da preservação do ambiente não possa restringir-se a Estados isolados apenas. Assim, aumenta a complexidade da questão quando se constata que o ambiente é uno, não se restringindo a realidades estanques diversas conforme fronteiras geográficas. 25 CAPELLA, Vicente Bellver. Ecología: de las razones a los derechos. Granada: Ecorama, 1994, p. 248. 26 CANOTILHO, José Joaquim Gomes, cit. 201 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II O postulado globalista, de forma exemplificativa, faz atentar para duas situações no que concerne a uma efetiva proteção ambiental em termos globais. Em primeiro lugar, nota-se discrepância entre as Constituições no tocante à configuração jurídica do ambiente, como já ressaltado anteriormente. Além do mais, tem-se de atentar para a extrema dificuldade que existe, entre os diversos países, para a necessária tomada conjunta de medidas de cunho técnico que visem à qualidade do ambiente. O problema, assim, já começa no próprio plano teórico, pois a caracterização do ambiente por uma Constituição denota a existência ou inexistência de postulados de um Estado Constitucional do Ambiente, bem como o grau de otimização para que se atinja, no plano teórico-jurídico, tal Estado. Havendo divergências notáveis entre o enquadramento do ambiente nas Constituições, vislumbra-se a dificuldade em se tratar o ambiente de maneira uniforme desde o plano teórico. Isso, incontestavelmente, traz prejuízos para a efetivação prática das medidas de proteção ambiental. É importante frisar que essa dificuldade não encontra como anteparo somente a questão da discrepância entre os tratamentos constitucionais dispensados ao ambiente pelos Estados (originando, entre os diversos Estados, imensa heterogeneidade e gradação na otimização dos postulados de um Estado de Direito do Ambiente), mas também fatores constitucionais que preexistem à própria concepção de Estado Constitucional do Ambiente, que, porém, são elementos classicamente consagrados como indissociáveis da própria idéia de Estado Constitucional, como, por exemplo, a soberania. A bem da verdade, a construção do conceito de Estado de Direito Ambiental tem de questionar elementos nos quais o próprio Estado se sustenta. É o caso, por exemplo, das dúvidas acerca das perspectivas do bem ambiental nos Estados chamados de “periféricos” que têm dificudades em abraçar disposições jurídicas do Estado de Direito Ambiental pela necessidade de desenvolvimento, trazendo um elemento a mais para sua efetiva implementação. A abstratividade do Estado de Direito do Ambiente não pode induzir a pensar que não existe importância em sua discussão. A definição dos pressupostos de um Estado de Direito do Ambiente serve como “meta” ou “parâmetro” a ser atingido, trazendo à tona uma série de discussões que otimizam processos de realização de aproximação do Estado ficto. 202 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 2.2. Funções do Estado de Direito Ambiental Podem-se sintetizar cinco funções fundamentais da discussão do Estado de Direito do Ambiente27: 1) Moldar formas mais adequadas para a gestão dos riscos e evitar a irresponsabilidade organizada28. Na sociedade de risco, o Estado não pode ser “herói”, garantindo a eliminação do risco, pois este subjaz ao próprio modelo que serve de base à sociedade. O Estado, então, busca a gestão dos riscos, tentando evitar a irresponsabilidade organizada. 2) Juridicizar instrumentos contemporâneos, preventivos e precaucionais, típicos do Estado pós-social. É aqui que se fornece especial atenção aos princípios da prevenção e da precaução inscritos no art. 225 da Constituição. Faz-se necessário, numa sociedade de risco, abandonar a concepção de que ao Direito só cabe se ocupar com os danos evidentes. A complexidade do bem ambiental na sociedade de risco exige que haja a introdução de aparatos jurídicos e institucionais que garantam a preservação ambiental diante de danos e riscos abstratos, potenciais e cumulativos. 3) Trazer a noção, ao campo do Direito Ambiental, de direito integrado. Considerando que o ambiente não é uma realidade naturalística segregada, sua defesa depende de considerações multitemáticas, em que se considere a característica de macrobem, pugnando-se por formas de controle ambiental, tanto no plano normativo como fático, que atentem para a amplitude do bem ambiental. 4) Buscar a formação da consciência ambiental. É impossível o exercício da responsabilidade compartilhada e da participação popular como forma de gestão de riscos sem que haja profunda consciência ambiental. 5) Propiciar maior compreensão do objeto estudado. É vital a definição do conceito 27 LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso; JAMUNDÁ, Woldemar. Estado de direito ambiental no Brasil. In: KISHI, Sandra Akemi S.; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês V. Prado (orgs.). Desafios do direito ambiental no século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005. p. 611-634. 28 A irresponsabilidade organizada é uma das características da sociedade de risco e pode ser descrita com sendo um fenômeno desencadeado a partir da pretensão dos atores vinculados ao processo de modernização de não reconhecer a realidade do risco. Trata-se de conceito elaborado pelo sociólogo Ulrich Beck. Agindo dessa forma, as instituições típicas da sociedade industrial buscam alcançar dois objetivos principais: I) eximir-se da culpa e da responsabilidade diante da produção de riscos e de seus possíveis efeitos secundários; e II) desviar e controlar os protestos que poderiam advir do conhecimento da realidade da catástrofe. 203 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II de ambiente, pois possibilita a compreensão da posição ecológica do ser humano e das implicações decorrentes de uma visão integrativa de ambiente. Verifica-se que o objeto bem ambiental é dinâmico, envolvendo sempre novas conformações, como, por exemplo, as novas tecnologias, tais como os OGMs. Assim, é importante um conceito aberto, procurando trazer flexibilidade. A otimização dos postulados do Estado de Direito do Ambiente não resolve os problemas ambientais surgidos com a crise ecológica pela qual se passa. Serve, entretanto, como transição da irresponsabilidade organizada generalizada para uma situação em que o Estado e a sociedade passam a influenciar nas situações de risco, tomando conhecimento da verdadeira situação ambiental e se municiando de aparatos jurídicos e institucionais capazes de fornecer a mínima segurança necessária para que se garanta qualidade de vida sob o aspecto ambiental. O Estado de Direito Ambiental, dessa forma, é um conceito de cunho teóricoabstrato que abarca elementos jurídicos, sociais e políticos na busca de uma situação ambiental favorável à plena satisfação da dignidade humana e harmonia dos ecossistemas. Assim, é preciso que fique claro que as normas jurídicas são apenas uma faceta do complexo de realidades que se relacionam com a idéia de Estado de Direito do Ambiente29.Não obstante, a construção de um Estado de Direito Ambiental passa, necessariamente, pelas disposições constitucionais, pois são elas que exprimem os valores e os postulados básicos da comunidade nas sociedades de estrutura complexa, nas quais a legalidade representa racionalidade e objetividade. O status que uma Constituição confere ao ambiente pode denotar ou não maior proximidade do Estado em relação à realidade propugnada pelo conceito de Estado de Direito Ambiental, haja vista que o aspecto jurídico é muito importante para a configuração e para a solidificação de estruturas efetivas, no âmbito do Estado e da sociedade, que visem à proteção do ambiente. A incorporação constitucional de proteção ao meio ambiente e a promoção de qualidade de vida, em face da situação incipiente do Estado, parece trazer conflituosidade entre os novos e os tradicionais fins (direitos), tais como crescimento 29 Os elementos jurídicos, políticos e sociais não fazem parte de realidades estanques. Há, na verdade, um imbricamento de tais elementos, de forma que as manifestações jurídicas implicam em direcionamentos na ordem social e política, ao passo que estas influenciam diretamente a produção e a eficácia das próprias manifestações jurídicas. 204 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II econômico, pleno emprego e muitos outros. Esses novos fins (direitos) avançam no sentido de propor mudanças na forma de desenvolvimento, com base em uma nova fórmula econômica, e propugnam pelo uso racional e solidário do patrimônio natural. A par dos avanços no plano constitucional, faz-se mister, para atingir um Estado de Direito Ambiental, outras várias mudanças, como, por exemplo, um novo sistema de mercado e uma redefinição do direito de propriedade. A consecução do Estado de Direito Ambiental passa obrigatoriamente pela tomada de consciência global da crise ambiental e exige uma cidadania participativa, que compreende uma ação conjunta do Estado e da coletividade na proteção ambiental. Trata-se, efetivamente, de uma responsabilidade solidária e participativa, unindo de forma indissociável Estado e cidadãos na preservação do meio ambiente. Assim, para se edificar e estruturar um abstrato Estado Ambiental pressupõe-se uma democracia ambiental, amparada em uma legislação avançada que encoraje e estimule o exercício da responsabilidade solidária. A participação redunda na transparência do processo e legitima a decisão ambiental, contribuindo de maneira profunda para conscientização da crise ambiental. Com efeito, através da participação, observa-se uma via de mão dupla: Administração e Sociedade Civil, considerando que o meio ambiente não é propriedade do Poder Público, exigindo máxima discussão pública e garantia de amplos direitos aos interessados. O apoio da coletividade nas decisões ambientais resultará em uma Administração mais aberta e menos dirigista. Contudo, a democracia ambiental participativa e solidária pressupõe, ainda, um cidadão informado e uma coletividade que detenha como componente indispensável a educação ambiental. Outro componente do Estado Democrático Ambiental é o amplo acesso à justiça, via tutela jurisdicional do meio ambiente. Note-se que os meios judiciais são, de fato, o último recurso contra a ameaça e a degradação ambiental. A sociedade atual exige que as demandas ambientais sejam palco de discussão na via judiciária, pois essa abertura resultará no exercício da cidadania e, conseqüentemente, maior conscientização. Constata-se que, para se edificar um Estado de Direito Ambiental com justiça ambiental, é necessário que se formule uma política de meio ambiente ancorada por princípios que vão se formando a partir das complexas questões suscitadas pela crise ambiental. Esse novo viés caracteriza-se pela responsabilidade do homem como guardião da biosfera, independentemente de sua utilidade para a espécie humana, sendo 205 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II indispensável à construção de um Estado de Direito Ambiental. 2.3. Direito fundamental ao meio ambiente no Estado de Direito Ambiental brasileiro Pretende-se, agora, verificar como o Estado brasileiro desenhou, em sua Constituição, o direito fundamental do ambiente, tendo como ponto referencial as novas exigências do Estado de Direito Ambiental. Com a superação do Estado liberal de Direito30 em sua forma clássica e com o advento do Estado do bem-estar social31, houve o redimensionamento da importância dos direitos fundamentais, enfatizando sua concepção multifuncional32. Superou-se, assim, a noção restritiva de que os direitos fundamentais serviriam unicamente à defesa do indivíduo contra o Estado; reconhecendo-se que os direitos fundamentais, além disso, servem à proteção e à materialização de bens considerados importantes para a comunidade. Diante disso, passou-se a verificar o fenômeno do esverdeamento das Constituições33 dos Estados34, que consiste na incorporação do direito ao ambiente equilibrado pelo ordenamento jurídico como um direito fundamental. Analisando o reconhecimento do direito ao ambiente e a sua inserção nos textos constitucionais, pode-se vislumbrar a existência de, precipuamente, três posicionamentos35. O direito ao ambiente aparece ora positivado numa dimensão 30 O Estado Liberal de Direito se consolidou a partir das Revoluções burguesas do século XVIII, caracterizadas por defender as maiores cotas possíveis de liberdade do indivíduo diante do Estado, modelo social este que substituiu o Antigo Regime (CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e Estado contemporâneo. Florianópolis: Diploma Legal, 2001, p. 89). 31 Estado de bem-estar é o produto da reforma do modelo clássico de Estado liberal que pretende superar as crises de legitimidade que este possa sofrer, sem abandonar sua estrutura jurídico-política. Caracterizase pela união da tradicional garantia das liberdades individuais com o reconhecimento, como direitos coletivos, de certos serviços sociais que o Estado providencia aos cidadãos, de modo a proporcionar iguais oportunidades a todos (Ibid., p. 207). 32 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2003, p. 160. 33 LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso; JAMUNDÁ, Woldemar. Estado de direito ambiental no Brasil, cit. 34 Todos os textos constitucionais referidos neste artigo <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions> (Acesso: 21 ago. 2003). 35 estão disponíveis em: SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio José Fonseca. Princípios de direito 206 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II objetiva, ora numa dimensão subjetiva, ora reunindo ambas as dimensões. Pela dimensão objetiva, o direito ao ambiente equilibrado é protegido como instituição. Embora a proteção do ambiente ainda esteja vinculada ao interesse humano, ela se dá de forma autônoma, ou seja, sem que confira ao indivíduo um direito subjetivo ao ambiente de forma exclusiva36. Com relação à segunda dimensão de proteção do direito ao ambiente equilibrado – apenas subjetiva –, vislumbra-se um caráter tão-somente antropocêntrico, em que o ambiente é protegido não como bem autônomo, mas a serviço do bem-estar do homem, conforme já mencionado. Para tanto, atribui-se um direito – o de viver em um ambiente saudável – ao indivíduo (seja individual, seja coletivamente), a que corresponde uma obrigação estatal de concretização. Nesse contexto, inserem-se as cartas constitucionais do Chile37 (art. 19: “A Constituição assegura a todas as pessoas: VIII – o direito para viver em um ambiente livre de contaminação. É dever do Estado trabalhar de forma que este direito não seja afetado e impulsionar a preservação da natureza”) e do Paraguai38 (art. 7º: “Toda a pessoa é titular do direito de habitar um ambiente saudável e ecologicamente equilibrado. Constituem objetivos prioritários de interesse social a preservação, a conservação, a alteração e a melhoria do ambiente, assim como sua harmonização com o desenvolvimento humano. Estes propósitos guiarão a legislação e as políticas de governo pertinentes”). A dimensão objetivo-subjetiva do ambiente é a mais avançada e moderna, porquanto repele a proteção ambiental em função do interesse exclusivo do homem para ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 99-101. 36 LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso; JAMUNDÁ, Woldemar. Estado de direito ambiental no Brasil, cit. 37 Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions>. Acesso em: 21 ago. 2003. Tradução livre dos autores. “La Constitución asegura a todas las personas: VIII – El derecho a vivir en un medio ambiente libre de contaminación. Es deber del Estado velar para que este derecho no sea afectado y tutelar la preservación de la naturaleza”. 38 Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions>. Acesso em: 21 ago. 2003. Tradução livre dos autores. “Toda persona tiene derecho a habitar en un ambiente saludable y ecológicamente equilibrado. Constituyen objetivos prioritarios de interés social la preservación, la conservación, la recomposición y el mejoramiento del ambiente, así como su conciliación con el desarrollo humano integral. Estos propósitos orientarán la legislación y la política gubernamental pertinente”. 207 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II dar lugar à proteção em função da ética antropocêntrica alargada 39. Pugna essa concepção pelo reconhecimento concomitante de um direito subjetivo do indivíduo e da proteção autônoma do ambiente, independentemente do interesse humano. Trata-se da configuração mais completa. São exemplos dessa conformação as Constituições da Colômbia40, da Espanha41 e do Brasil42. Nota-se, até aqui, que o reconhecimento do direito constitucional ao ambiente e de sua tutela jurídica é resultado de uma grande evolução do reconhecimento dos direitos fundamentais e da organização jurídico-estatal. Verifica-se que, inicialmente, foi ampliada a significação dos direitos fundamentais, atribuindo-lhes o caráter prestacional43, em que ao Estado é imputada a responsabilidade de efetivar determinados direitos dos cidadãos. Posteriormente, com a tomada de consciência da crise ecológica, vislumbrou-se a necessidade de inclusão do bem ambiental nesse âmbito de proteção constitucional, como direito fundamental. Atualmente, almeja-se melhor efetividade na conservação das condições ambientais e a implementação do postulado global na defesa do bem ambiental. Pode-se adiantar que a possibilidade de concretização de uma defesa global do ambiente, dependente de instrumentos 39 LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000, p. 80. 40 Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions>. Acesso em: 21 ago. 2003. Tradução livre dos autores. “Todas las personas tienen derecho a gozar de un ambiente sano. La ley garantizará la participación de la comunidad en las decisiones que puedan afectarlo. Es deber del Estado proteger la diversidad e integridad del ambiente, conservar las áreas de especial importancia ecológica y fomentar la educación para el logro de estos fines” (art. 79). “Son deberes de la persona y del ciudadano: VIII – Proteger los recursos culturales y naturales del país y velar por la conservación de un ambiente sano” (art. 95). 41 Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions>. Acesso em: 21 ago. 2003. Tradução livre dos autores. “Everyone has the right to enjoy an environment suitable for the development of the person as well as the duty to preserve it. The public authorities shall concern themselves with the rational use of all natural resources for the purpose of protecting and improving the quality of life and protecting and restoring the environment, supporting themselves on an indispensable collective solidarity” (art. 45). 42 BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal, 2000, 512 p. Para ilustrar, far-se-á indicação dos principais dispositivos constitucionais relacionados à proteção ambiental: art. 5º, XXIII, LXXI, LXXIII; art. 20, I, II, III, IV, V, VI, VII, IX, X, XI, e §§ 1º e 2º; art. 21, XIX, XX, XXIII, a, b e c, XXV; art. 22, IV, XII, XXVI; art. 23, I, III, IV, VII, IX, XI; art. 24, VI, VII, VIII; art. 43, § 2º, IV, e § 3º; art. 49, XIV, XVI; art. 91, § 1º, III; art. 129, III; art. 170, VI; art. 174, §§ 3º e 4º; art. 176 e § 1º; art. 182 e §§ 1º e 2º; art. 186; art. 200, VII e VIII; art. 216, V, e §§ 1º, 3º e 4º; art. 225; art. 231; art. 232. 43 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, cit., p. 195. 208 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II internacionais44, torna-se mais difícil à medida que se verificam divergências entre os textos constitucionais. A análise do caput do art. 225 da Carta Magna, já referido, demonstra, de maneira clara, a concepção jurídica conferida ao bem ambiental pelo Estado brasileiro. Diferentemente do que fizeram outras Constituições, não se restringiu a conferir o meio ambiente saudável como direito subjetivo. Em que pese o fato de também ter adotado tal aspecto (“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”), a Constituição brasileira contemplou o meio ambiente como bem que perpassa a concepção individualista dos direitos subjetivos, pois o reputou como bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida. Independentemente de qualquer posição jurídica pessoal firmada com relação ao ambiente, o bem ambiental apresenta, na ordem constitucional brasileira, proteção jurídica. O texto constitucional impôs ao Estado e à coletividade o dever de preservar o ambiente para as presentes e as futuras gerações. Como se pode pensar que quem não existe (futuras gerações) pode vir a ter qualquer direito subjetivo? O direito intergeracional relacionado ao meio ambiente não pode ser concretizado sem que se pense no meio ambiente como valor autônomo juridicamente considerado, servindo, inclusive, como limite ao exercício de direitos subjetivos. Está, assim, a garantia de preservação do meio ambiente dissociada da idéia de posição jurídica individual, tanto no que se refere a um pretenso direito subjetivo ao meio ambiente como a qualquer outro direito subjetivo. 44 Gerd Winter escreveu sobre a possibilidade de a futura Constituição da União Européia disciplinar, e em que termos seria, a proteção ao meio ambiente: “O pensamento ecológico foi realmente consignado na proclamação de objetivos da União, em dois tratados, o de Maastricht e o de Amsterdã. Na versão de Maastricht, o preâmbulo do Tratado da União Européia (TEU) menciona a proteção ambiental. O art. B, por sua vez, estabelece que „o progresso econômico e social é (...) sustentável‟. O art. 2º (EC) atenta para „o crescimento sustentável com respeito ao meio ambiente‟. O preâmbulo do Tratado da União Européia, na versão de Amsterdã, menciona uma vez a proteção do ambiente e avança citando „o princípio do ambiente sustentável‟. O art. 2º (TEU) repete a necessidade para „desenvolvimento‟ equilibrado e sustentável, e o art. 2 (EC) combina o „desenvolvimento equilibrado e sustentável‟ com „um alto nível de proteção com vistas à melhoria da qualidade do meio ambiente‟. Em síntese, os objetivos aparentemente consignam uma dupla abordagem: proteção do meio ambiente e sustentabilidade. Assim, nota-se que o conceito tradicional de proteção foi ladeado pelo mais recente conceito de sustentabilidade. Isto não significa que o conceito anterior se tornou obsoleto, pois ambos devem ser compreendidos como complementares” (WINTER, Gerd. Constitutionalizing environment protection in the European Union. In: SOMSEN, H.; SEVENSTER, H.; SCOTT, J.; KRÄMER, L. Yearbook of european environmental law. Oxford: Oxford University Press, p. 70-72 – tradução livre dos autores). 209 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Nesse sentido, Ayala45 afirma: “o direito fundamental ao meio ambiente nas sociedades de risco é definido a partir de uma compreensão social do futuro. Nesta, a promessa do futuro evoca a atribuição de deveres, a imposição de obrigações e o exercício de responsabilidades entre todos os membros da sociedade e do Estado, em um modelo ético de compromisso, que se encontra expresso de forma inovadora em nosso texto constitucional, como obrigação constitucional retratada no art. 225, caput, CRFB de 1988”. Questão interessante a observar no caput do art. 225 da Carta Magna diz respeito à titularidade do dever de preservação ambiental. A Constituição, a par da essencialidade do meio ambiente saudável, confere o que se pode denominar deveres fundamentais de proteção ao meio ambiente. Tais deveres são acometidos tanto ao Estado quanto à coletividade. Assim, o meio ambiente ecologicamente equilibrado não é finalidade do Estado apenas, mas sim de toda a coletividade, podendo-se observar a adoção de uma responsabilidade compartilhada, conforme já mencionado. Foi erigido, em termos de proteção ambiental, um sistema de responsabilidade solidária e ética com vistas às futuras gerações. Os deveres da coletividade provenientes da responsabilidade compartilhada e solidária também se relacionam com a limitação de direitos subjetivos dos sujeitos da coletividade, pois tendem a incidir reduzindo a manifestação de determinadas liberdades, como, por exemplo, o direito de propriedade. Pelo fato de o ambiente ser, conforme a Constituição, finalidade do Estado e, conjuntamente, da coletividade, não se vislumbra uma preponderância estatal nos temas ambientais. O Estado, então, pelas suas possibilidades materiais, deve assumir o papel de gestor no direcionamento das medidas de efetividade de um ambiente sadio em detrimento da visão que o reputa como único centro de poder das decisões concernentes ao ambiente. Não se admite, assim, o postulado publicista, aproximando-se do postulado associativista, levando em consideração a proposta de Canotilho, vista anteriormente. Verifica-se, no caso da Constituição brasileira, que o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado se insere ao lado do direito à vida, à igualdade, à liberdade, caracterizando-se pelo cunho social amplo e não meramente individual. Da 45 AYALA, Patryck de Araújo. Direito e incerteza: a proteção jurídica das futuras gerações no estado de direito ambiental. Florianópolis, 2002. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina. 210 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II leitura global dos diversos preceitos constitucionais ligados à proteção ambiental, chega-se à conclusão de que existe verdadeira consagração de uma política ambiental, como também de um dever jurídico constitucional atribuído ao Estado e à coletividade46. O Estado, dessa forma, deve fornecer os meios instrumentais necessários à implementação desse direito. Além dessa ação positiva do Estado, é necessária também a abstenção de práticas nocivas ao meio ambiente, por parte da coletividade47. O cidadão deve, nesse sentido, empenhar-se na consecução desse direito fundamental, participando ativamente das ações voltadas à proteção do meio ambiente. O que é realmente inovador no art. 225 é o reconhecimento da indissolubilidade do vínculo Estado-sociedade civil. Esse vínculo, entre os interesses públicos e privados, redunda em verdadeira noção de solidariedade em torno de um bem comum. No dizer de Rangel48, o direito do ambiente consubstancia uma pretensão de conteúdo negativo ou de abstenção, pois exige do Estado e da coletividade comportamentos não nocivos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Surge, desse caráter negativo do direito do ambiente, uma densidade reforçada, dando-lhe um conteúdo similar próprio de direito, liberdade e garantia. Deixe-se frisado que o direito fundamental do meio ambiente não admite retrocesso ecológico, pois está inserido como norma e garantia fundamental de todos, tendo aplicabilidade imediata, consoante o art. 5º, §§ 1º e 2º, da Constituição. Além do que o art. 60, § 4º, IV, também da Carta Magna, proíbe proposta de abolir o direito fundamental ambiental, nesse sentido considerado cláusula pétrea devido à sua relevância para o sistema constitucional brasileiro, como direito social fundamental da coletividade. No tocante à proibição de recesso de direitos fundamentais, impende registrar que se discute atualmente no Congresso Nacional projeto de lei cujo objetivo, entre outros, é o de reduzir de 80% para 50% a área de reserva obrigatória nas propriedades 46 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Procedimento administrativo e defesa do ambiente. Revista de Legislação e Jurisprudência. Coimbra, n. 3.802, p. 325-326, 1991. 47 RANGEL, Paulo Castro. Concertação, programação e direito do ambiente. Coimbra: Coimbra Editora, 1994. p. 234-235. 48 Ibid., p. 234-235. 211 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II rurais da região da Amazônia, sob o argumento de que, dessa forma, garantir-se-á o desenvolvimento auto-sustentável da agricultura brasileira49. Obviamente que a aprovação de leis que admitam retrocessos ecológicos, como o projeto de lei acima referido, impede, indubitavelmente, a concretização do modelo de Estado adotado pela Constituição Federal: o Estado de Direito Ambiental. Considerações finais O presente artigo objetivou estudar a evolução da juridicidade ambiental no Brasil, atentando-se para o fato de que com o Relatório de Brutdland, a promulgação da Constituição Federal de 1988 e a ratificação de instrumentos jurídicos internacionais, a exemplo da Convenção da Diversidade Biológica e da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, adotou-se no Brasil um modelo de Estado denominado Estado de Direito Ambiental, que abarca normas destinadas a equacionar problemas ecológicos de primeira e segunda geração. Observou-se que as primeiras normas que protegeram o meio ambiente brasileiro o fizeram de maneira pontual, sem se atentar para a complexidade do macrobem ambiental, a exemplo das Ordenações Afonsinas e Filipinas, bem como do Novo Código Florestal. A preocupação básica dessas legislações era proteger microbens sem se preocupar com a interdependência existente entre os elementos da natureza. Essas normas estavam voltadas aos problemas ambientais de primeira geração, pois objetivavam, basicamente, controlar a poluição e subjetivar o direito ao meio ambiente como direito fundamental do ser humano. Nesse sentido, protegia-se o meio ambiente em virtude, primordialmente, de sua utilidade para o homem. O fundamento de tais 49 O Novo Código Florestal, com alteração introduzida pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001, determina que as florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em área de preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no mínimo: I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia Legal” . Maiores informações acerca do projeto de lei que objetiva aumentar a área de desmatamento na região da Amazônia no site: < http://www.cidadesdobrasil.com.br/cgicn/news.cgi?cl=099105100097100101098114&arecod=18&newcod=633>.Acesso em 26 de maio de 2008 212 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II normas era, portanto, o antropocentrismo, ou seja, a preocupação única e exclusiva com o bem estar do homem. A partir da década de oitenta, verificou-se, no Brasil, uma crescente preocupação com os problemas ecológicos de segunda geração, dentre eles os efeitos da chuva ácida, das mudanças climáticas e os riscos oriundos da biotecnologia. Nesse aspecto, novos instrumentos foram paulatinamente adotados pelo ordenamento jurídico brasileiro, a exemplo do princípio da precaução e da cooperação entre os Estado. Observou-se, ainda, que as normas destinadas aos problemas ambientais de segunda geração fundamentaram-se numa ética intergeracional e, por conseguinte, menos antropocêntrica. É o que se infere do dispositivo constitucional brasileiro que obriga o Poder Público a restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas. Entende-se que, com a adoção de normas destinadas aos problemas ambientais de segunda geração, o ordenamento jurídico brasileiro desenhou um Estado de Direito Ambiental, o qual apesar de ser ainda um modelo fictício, pois adotado efetivamente apenas no papel, serve como modelo a ser implementado ao dispor de normas capazes de equacionar problemas ambientais complexos, que ultrapassam, muitas vezes, as fronteiras entre os Estados. Obviamente que o grande desafio que se impõe é o de se efetivar esse modelo de Estado no campo fático, pois muitas vezes os benefícios econômicos de curto prazo fazem com que as normas ambientais não sejam efetivamente cumpridas ou até mesmo sejam alteradas com o objetivo de se garantir maiores lucros. Nesse sentido, verificou-se que, atualmente, discute-se no Congresso Nacional a possibilidade de se ampliar o desmatamento das áreas rurais na região da Amazônia, muito embora o direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não admita retrocesso. Dessa forma, constatou-se que, embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha desenhado um Estado de Direito Ambiental dotado de instrumentos legais aptos a equacionar os problemas ecológicos de primeira e de segunda geração, falta vontade política para que tais instrumentos sejam efetivados. Ainda assim, entende-se que discutir o conceito, as características e as funções do Estado de Direito Ambiental pode ser o primeiro passo na busca da conscientização da sociedade e do Poder Público no tocante à necessidade de se concretizar esse modelo de Estado no século XXI a fim de se salvaguardar o direito intergeracional a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. 213 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE NO DIREITO Rogério Portanova1 SUMÁRIO: Introdução. 1. A propriedade e sua função através da história. 2. A propriedade e sua função social tutelada juridicamente. 2.1 Restrições administrativas. 2.2. Restrições civis e coletivas. 2.3. Restrições ambientais. 3. Perspectivas. INTRODUÇÃO O presente artigo é fruto de discussões que surgiram no curso da apresentação da palestra sobre a função ambiental da propriedade promovida pelo projeto Casadinho que envolve os cursos de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidade Federal do Ceará. A apresentação suscitou uma série de intervenções e posterior diálogo com alunos e professores, muitos destes comentários e os trechos que julguei mais pertinentes fazem parte deste artigo que tem uma dinâmica mais fluida do que a proposta de esgotar o assunto ou analisá-lo sob um único aspecto e se propõe a levantar pontos de discussão para facilitar a reflexão de tema tão atual e palpitante que é a relação da propriedade com o meio ambiente. A questão que envolve o tema propriedade é paradoxalmente um tema que ao mesmo tempo é muito antigo e se renova a cada momento em que se lança um novo olhar sobre a organização social e novas manifestações de poder. A questão da propriedade estava no centro das discussões do direito civil romano e atravessou a Idade Média com seu conceito de Direito Natural ou Direito Divino ligado a terra, inclusive a economia em seu período de contestação Iluminista apresentou os fisiocratas que defendiam os valores ligados a terra como base de uma economia que estivesse relacionada ao conceito de riqueza e não de valor, como fizeram 1 Rogério Portanova é doutor em Sociologie Et Anthropologie Du Politique pela Universite de Paris VIII. Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina. Presidente da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Santa Catarina. 214 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II os economistas neo-clássicos. Um dos problemas que fez com que esta corrente caísse em desgraça, foi justamente a defesa de um Despotismo Esclarecido, que de certa forma reavivava o Rei-Filósofo platônico com poderes quase ilimitados. No curso da Revolução Francesa, a propriedade era vista como um direito individual, fruto do trabalho e não como um direito natural ou divino, desta forma era ela também objeto de apropriação pessoal e poderia ser dado a ela um valor computado em pecúnia. Foi justamente em Marx que a propriedade individual foi identificada como um elo de apropriação indevida por parte da burguesia que fazia dos proletários extensão de suas máquinas e permanentes inquilinos de um bem que só aos que tinham condições de aquisição poderiam ser proprietários. Desta forma a propriedade era mais um instrumento de classe na opressão do proletariado e deveria ser suprimida pela revolução socialista que instituiria a propriedade coletiva ou comum sem qualquer tipo de distinção. Com o desenvolvimento do capitalismo e os resultados deste processo promovido pela modernidade industrial chegamos aos problemas contemporâneos que ultrapassam a questão da luta de classes. O aquecimento global, a poluição generalizada, a contaminação da águas e do solo, a concentração de armas atômicas e mísseis balísticos de destruição de massa não eram um privilégio da classe dominante ou do capitalismo imperial, mas o resultado de um modelo baseado na ciência e tecnologia com valores neutros de uma sociedade que buscava o progresso ilimitado seja pela via do capitalismo ou do socialismo distributivista. O resultado foi o atual impasse civilizatório. Eis que chegamos a discussão deste instituto jurídico milenar necessitando de uma nova redefinição. A propriedade não pode ser vista apenas sob o aspecto de apropriação “erga omnes” ou um bem de apropriação coletivista para maior produtividade, seus limites não podem ser apenas pela capacidade produtiva e a economia deve incorporar os valores que vão além do mercado chamados de externalidades negativas (que é o custo ambiental dos produtos não contabilizado nos preços dos mesmos e que causam a atual crise civilizatória que pesa sobre a humanidade). Trazer o tema da propriedade com uma visão jurídica e histórica com a implementação da variável ambiental é uma primeira aproximação que pretendemos neste breve artigo. 215 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 1 - A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO ATRAVÉS DA HISTÓRIA Falar de função social da propriedade não é algo novo que tenha sido inaugurado por influência do pensamento marxista apenas. Esta afirmação pode-se considerar verdadeira se restringirmos nossa análise histórica ao momento presente, mas já os romanos entendiam que o exercício do Direito de propriedade era subordinado às exigências do bem comum. Se remontarmos a Idade Antiga, não somente os Romanos, mas também os Gregos se debruçaram sobre esta questão. Podemos identificar as posições a respeito da propriedade desde a Grécia antiga, através de dois dos seus filósofos maiores. Em primeiro lugar o pensamento de Platão identificado com o idealismo, onde o que existia era apenas uma deformação do objeto ideal que existia em seu estado perfeito, desta forma o ideal de propriedade estaria sujeito a uma apropriação coletiva, pois nela repousaria o ideal de sociedade, tendo inclusive os filhos como responsabilidade coletiva de sua educação e a abolição da família, inclusive as mulheres pertenceriam a todos os homens de uma polis, não devendo os filhos ter os pais identificados para que melhor fossem educados. Desta forma a propriedade era um bem coletivo, não sendo possível a apropriação individual. Uma visão coletivista de propriedade, que por óbvio cumpria com sua função social ao servir o conjunto daquela sociedade. Por outro lado encontramos Aristóteles, que mesmo sendo discípulo de Platão, defendeu uma posição filosófica antagônica de seu mestre conhecida como realismo. Aristóteles admitia a propriedade como objeto de apropriação individual, porém ele deixava claro que esta deveria estar sujeita a um princípio ainda que embrionário podemos chamar de função social, mesmo que o objetivo seja o de dar um sentido a uma mera função econômica da propriedade, onde esta seria uma riqueza destinada à produção de bens que satisfaria as necessidades materiais, esta atividade o autor chamava de economia (onde Aristóteles diferenciava a economia – Oiko nomos –, da crematística – administração meramente monetária de valores). Na linha evolutiva do tempo histórico, podemos observar que na Idade Média a propriedade apresentava três diferentes perspectivas, apenas para ficarmos numa abordagem Tomista (São Tomás de Aquino), num primeiro plano estaria aquele que é a própria imagem e semelhança de Deus: o homem. Como dotado de racionalidade tem este um Direito Natural à posse dos bens ofertados por Deus e pela Natureza. Numa 216 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II perspectiva secundária, há a questão da apropriação dos bens, que poderíamos interpretar como o Direito de propriedade lato sensu, e por fim São Tomás fala de um condicionamento da propriedade conforme a história vivida de cada povo. Na chamada Modernidade podemos citar como um exemplo da gênese da função social da propriedade a desapropriação por interesse social inserida na Constituição de Weimar, na Alemanha em 1919. Este principio de desapropriação por utilidade pública também poderia ser encontrada na França no Código de 1791 e no Código Napoleônico, porém não na perspectiva da construção do Bem Estar Social como podemos verificar na referida Constituição alemã. Um outro estatuto reconhecido com uma marca de nossa era no pós-guerra foi a Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e nela podemos ver no seu artigo XVII os seguintes enunciados: 1 - Toda pessoa tem direito a propriedade, individual e coletivamente; 2 - Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade. A título de ilustração podemos trazer nos nossos domínios latino-americanos, a Declaração dos povos da América, aprovada em 1961 em Punta del Este, que deu origem a Aliança para o Progresso e que podemos constatar que ela confere a limitação do direito da propriedade da terra, advogando um programa de reforma agrária com vistas à mudança social face às estruturas patriarcais e os injustos sistemas de exploração dos trabalhadores e aquisição da terra. 2 - A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL TUTELADA JURIDICAMENTE De uma forma mais geral o tema propriedade foi objeto de análise de praticamente todas as ciências sociais, dentre estas o Direito e fora do campo mais amplo das Ciências Sociais, obviamente das Ciências Agrárias, do urbanismo, engenharia, etc. a idéia de propriedade e sua transformação está intrinsecamente ligada à idéia de evolução (ou retrocesso) da própria idéia de homem e civilização. Desde as observações de Rousseau que sinalizou que os primeiros conflitos ocorreram quando o primeiro homem disse “isso é meu”, até os tempos modernos, o 217 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II conceito de propriedade sofreu todo o tipo de influência, política, religiosa, ideológica, sociológica, jurídica, tributária, financeira, administrativa, etc. O certo é que o conceito de propriedade não pode ser aprisionado dogmaticamente e tem sua flexibilidade de acordo com a própria dinâmica da evolução da sociedade e de sua forma de observar o mundo e os fenômenos sociais. Não é nossa intenção fazer um estudo exaustivo sobre a evolução histórica da propriedade e suas implicações filosóficas, nem se, a partir de uma análise crítica da propriedade, ela é de fato a pedra angular do pensamento marxista e do pensamento do que tradicionalmente se resolveu denominar de esquerda. Assim como genericamente podemos dizer que o conceito de liberdade está associado aos princípios liberais; os referenciais que nos reportam ao conceito e a idéia de igualdade tem como valor geral o pensamento socialista. Grosso modo, poderíamos dizer que a idéia de propriedade privada pertence por excelência ao campo do pensamento dito de direita ou liberal, assim como a coletivização da propriedade teria por fundamento sua antítese ou em outras palavras o que tradicionalmente se convencionou chamar de esquerda. Ao Direito cabe dentre outras funções específicas da ciência jurídica, regularizar os conflitos fundiários e traduzir em uma organização normativa a vontade expressa pelo conjunto da população através de sua lei maior que é a Constituição. Desta forma veremos princípios que a rigor seriam antagônicos acolhidos pelo legislador constitucional como o respeito à propriedade – principio liberal; função social da propriedade – principio socialista, e mais recentemente a função ambiental da propriedade – principio sustentabilista. Da interpretação, da correlação de forças da sociedade e da sensibilização do judiciário é que vai se moldando o conceito levado a cabo na realidade cotidiana do Brasil e aplicado de acordo com o caso concreto nos diferentes pontos da federação. Claro está que os princípios que regem um condomínio ou a partilha do solo urbano para fins de habitação não devem ter os mesmos critérios legais que regem a propriedade rural de grande extensão, nem de sua aplicação para a agricultura, pecuária ou atividade extrativista. Entendemos que a propriedade é um conceito tão vasto e elástico como o próprio pensamento e que ela está na origem e causa de boa parte de conflitos e divergências de pensamentos por vezes inconciliáveis. O chamado Direito de propriedade sempre foi presente na nossa civilização Ocidental ainda que regulado de maneira diferenciada. Para ficarmos no Direito pátrio, 218 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II o Direito a propriedade está exposto como garantia constitucional através do art. 5° XXIII da Constituição da República Federativa do Brasil, do ponto de vista do Direito infraconstitucional ele está regulamentado pelo Código Civil, cito os artigos 524 a 648. Em nossa carta civil está disposto no artigo 524 que o proprietário tem o direito de usar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os possua. Através da história esta regulamentação nos leva a crença liberal de que há um Direito absoluto de utilização. Porém em sua evolução vimos que o Direito de propriedade não pode ser considerado como um direito absoluto, uma vez que se ele vier a interferir em direito alheio este pode ser oposto ou contestado, uma vez que o uso recorrente da propriedade não pode implicar em extrapolar os seus limites legais, havendo para sua utilização determinados limites, que são de diferentes ordens. Para fins deste artigo vamos explicitar algumas destas ordens, em especial as administrativas, cíveis e ambientais. 2.1. Restrições administrativas São aquelas de atividade exclusiva do poder público no seu pleno exercício do poder de polícia, o qual pode ser extrapolado, dentre eles o poder de fiscalização de construções, de vigilância sanitária, de controle das águas, da atmosfera, plantas e até zoonoses. Pode ainda exercer o poder de polícia dos logradores públicos, costumes, pesos e medidas e por fim das amplas atividades urbanas em geral. Desta forma, vemos que a propriedade, mesmo no seu pleno exercício comercial, tem o proprietário o dever de respeitar estas e outras normas e atividades administrativas para a garantia da ordem e do bem estar da população, não podendo o Direito de propriedade agredir ou perturbar este conjunto de atividades administrativas. 2.2. Restrições civis e coletivas Deste ponto de vista temos os limites já consagrados em diferentes cartas jurídicas que é a função social da propriedade, este princípio encontramos no enunciado do art. 5º, XXIII da Constituição Federal, embora não havendo uma limitação específica, ela representa a forma pela qual deve ser utilizada a propriedade, que visa atingir mais que um valor, uma utilidade que na falta de melhor termo chamaremos de 219 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II universal, beneficiando aqueles hipo-suficientes economicamente, no sentido de diminuir a pobreza, que se instalou em nossa sociedade e todas as conseqüências sociais e ameaça a paz social que esta traz. Uma das constatações mais visíveis da chamada injustiça social se encontra não só na concentração de riquezas, mas nos seus sinais exteriores deste profundo abismo social que é a externalização da riqueza onde a propriedade representa talvez o seu carro chefe. A resposta a este acinte contra o conjunto da sociedade se deu na forma de movimentos organizados que lutaram e lutam por acesso a terra e a propriedade, com objetivo de ocupação ou de assentamento, exigindo desta forma a mudança do conceito meramente individualista e comercial da propriedade.Observamos aqui que o exposto anteriormente não há o sentido socialista de uma propriedade coletivista, mas a individualização da propriedade através da garantia do título desta para moradia ou para a produção seja ela familiar ou individual e que esta seja possível a todos. Podemos por fim colocar as restrições que dizem respeito ao Direito de vizinhança conforme o exposto no art. 554 do garante ao proprietário o Direito de impedir o mau uso da propriedade vizinha que venha prejudicar a segurança, o sossego ou a saúde podendo exigir a demolição ou a reparação através de ação cominatória ou indenizatória. Encontramos o disposto no art. 572, enunciado que limita o Direito do proprietário de construir em vista do Direito dos vizinhos e dos regulamentos administrativos, podendo ser embargada a obra (art. 573). 2.3. Restrições ambientais Talvez aqui vejamos as maiores dificuldades de adaptação a propriedade, pois este vai estar sujeito ao diversos princípios do Direito Ambiental, dentre os mais relevantes, o principio da precaução, prevenção, irretroabilidade da lei ambiental, “in dubio pro ambiente”, publicidade, etc. Mas neste momento, vamos nos ater a alguns instrumentos jurídicos já consolidados, que restringem o Direito de propriedade, mas não chegam a redefinir seu estatuto. Como primeiro exemplo podemos citar as áreas de preservação como dos Parques Nacionais e Estações Ecológicas (Lei 6.902/81), do disposto no art. 1º do Código Florestal (Lei 4.771, 15/9/65) e da constituição da Reserva Legal obrigatória nos imóveis rurais (arts. 16 e 44 Cód. Florestal). Nesse sentido podemos dizer que as limitações o pleno exercício do Direito de propriedade visa à 220 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II preservação das florestas, sendo estas consideradas bem de interesse comum de todos (e não apenas público). Podemos identificar limitações urbanísticas uma vez que os imóveis urbanos devem respeitar além dos recursos naturais, o ambiente construído pelo homem também chamado de antrópico, incluindo o paisagismo e a cultura como um todo. Feita esta primeira observação quanto às restrições do Direito de propriedade, vê-se que este evidentemente não é absoluto devendo o seu proprietário utilizá-lo sem que venha afetar o equilíbrio ambiental e que cumpra a sua função social. Aliado ao que estabelece o art. 225 da Constituição Federal, podemos dizer que esta limitação de cunho ambiental não diz respeito apenas a utilização racional e equilibrada da propriedade por parte do proprietário, mas uma outra relação deste Direito que ultrapassa os limites ideológicos e a dogmática jurídica, por mais abundante que sejam os seus institutos. 3 - PERSPECTIVAS De todas as transformações que sofreu a propriedade, talvez a mais restritiva e a que aponta para uma possibilidade concreta de Justiça Geracional, seja justamente as restrições contemporâneas que tem por foco os temas ambientais do seu uso, redefinindo o seu próprio sentido. O sentido de restritiva, na verdade é paradoxal, pois ele não limita os tradicionais direitos de usar, fruir e gozar da propriedade (jus utendi, jus fruendi, jus abutendi), mas os insere numa possibilidade concreta de não abusar de algo que serve de sustento para um ganho coletivo que permite a existência de humanos (para quem se direciona as leis), como não humanos (vivos ou não). Tornando possível o equilibrio homeostático da Terra. Comparativamente, mesmo não havendo a disponibilidade total do direito de propriedade, sua correta utilização amplia a qualidade de vida, onde o proprietário é diretamente o primeiro beneficiário. Ora, esta compreensão do fenômeno limitador da propriedade só pode ser amplamente aplicado se vigorar o paradigma da sustentabilidade, que julgo ser o denominador comum da possibilidade de convívio da civilização no momento atual. Não é uma questão de abrir mão de Direitos, mas integrar um conjunto de deveres que tornam possível a existência comum. 221 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Com nossa visão privatista, entendíamos que a propriedade estava diretamente relacionada ao conjunto de bens adquiridos pelo individuo e que ela poderia ser disposta de acordo com a sua própria vontade, desde que respeitasse os preceitos legais e cumprisse com suas obrigações fiscais e administrativas com relação à propriedade. Por outro lado vemos o Estado como guardião deste princípio e que a afronta ao direito de propriedade seria uma afronta ao próprio Direito e a possibilidade de paz social, que uma vez perturbada deveria ser acionado o conjunto de aparelhos legais e repressivos do Estado. Fosse a propriedade privada ou coletivista, a ação do Estado sempre foi a garantia de que ele seria o garantidor dos seus princípios. Desta feita, não me parece que há uma significativa mudança do papel do Estado com relação à propriedade, o que existe é uma mudança dos valores que envolvem a propriedade que se choca com outros valores que coexistem num pleno estado de legalidade, mesmo que trabalhando com valores contraditórios. Nesse caso, o papel do poder público seria não só o de mediar, mas o de inserir a qualidade de vida para as atuais e futuras gerações garantidas pelo art. 225 como o Direito Fundamental que se sobreporia a todos os demais, inclusive os que ameaçassem este Direito como é o caso do sentido econômico da propriedade ou até da sua função social. Me explico melhor com um exemplo hipotético. Uma propriedade que venha a ser utilizada em uma área sensível, a Amazônia, por exemplo, e que seu proprietário queira destiná-la para a criação de gado (como já ocorreu no passado), não deveria ser levado em conta apenas o aspecto econômico da produção, mas uma série de fatores, sendo que o principal seria a questão da sustentabilidade do investimento e o dano ambiental que o mesmo causaria caso viesse a ser instalado este tipo de atividade. Poderíamos, da mesma forma, questionar um importante espaço de terra que seja improdutiva e que seja destinada a reforma agrária, mas esteja situada em um local ecologicamente sensível. Desta feita, estaria o Estado promovendo o afrontamento ao principio anteriormente evocado de promover a Justiça Geracional, mesmo que com o apoio de amplos setores da população e resolvendo um problema crônico no Brasil que é a concentração de terras e os altos índices de concentração de riqueza e propriedade na mão de poucos. Entendo que o dano causado ao meio ambiente não é minimizado quando este é perpetrado em nome de uma Justiça Social ou para amenizar o sofrimento de 222 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II populações carentes ou desprovidas de recursos financeiros. Além do que os exemplos abundam no sentido de mostrar que não há casos de fim da miséria através de agressões ambientais. O que garante uma qualidade de vida e a estabilidade financeira de populações carentes é em primeiro lugar o acesso à educação e a capacidade de usufruir da riqueza social e ter acesso aos meios científicos e tecnológicos que permitam uma complementaridade de sua formação e enriquecimento como cidadão. Os casos que podemos citar apenas como exemplificativos é o da extração ilegal de madeiras nobres e principalmente o caso do garimpo do ouro na década de 70/80, onde grandes fortunas foram adquiridas por pessoas sem instrução e da mesma forma como elas foram conquistadas, se esvaíram por falta de uma cultura de investimento e educação no sentido mais generalizado. Num caso e no outro, ficou a devastação, a permanência da miséria de muitos e o ganho de poucos que se utilizaram tantos dos meios que depredaram a natureza como da ingenuidade e boa fé de outros tantos. O resultado é catastrófico, estes processos além de engordarem a concentração de renda, deixaram um rastro de destruição que será sentido já nas atuais, mas principalmente para as futuras gerações, com perdas concretas em resultados que só são economicamente contabilizados porque não levam em conta as externalidades ambientais no preço dos produtos que advém os seus lucros. Alguns autores consideram a função ambiental da propriedade como elemento da função social da propriedade, por ser este um conceito mais antigo e que seria mais abrangente do que a função ambiental. Diversos autores defendem que estas categorias não são antagônicas, mas sim complementares da necessária evolução dos princípios e conceitos que envolvem o Direito de propriedade. Permito-me discordar e argumentar no sentido que não há complementaridade entre função social e função ambiental no caso da propriedade, e sim que a idéia da função ambiental está embutida o seu caráter social principalmente na propriedade, se entendermos esta no quadro mais geral da sustentabilidade. Não há que se falar em função ambiental se esta não cumprir a sua função social, no caso disso vir a ocorrer teríamos apenas um mero marketing ambiental para interesses privados ou simplesmente a transfiguração de um conceito que foi construído a longo de inúmeras lutas e conflitos ligados à busca de um denominador comum que poderíamos traduzir como a sadia qualidade de vida. Esta não pode ser adquirida através de uma perspectiva individualista e privatista, por mais ambientalmente correta que seja esta posição, pois ela careceria do elemento integrador 223 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II que vê as coisas, o planeta e nós mesmos interligados e interdependentes. Esta é claro é minha opinião e a razão mesmo de escrever este artigo, já que expliquei no início que não pretendi esgotar o tema nem fiz um detalhado apanhado das questões envolvendo a propriedade e o meio ambiente, mas sim procurei apontar de como que sempre deu margem a infindáveis discussões, pode ser visto sob a ótica contemporânea dos limites impostos ao crescimento econômico, dados pelos limites materiais e de como o Direito a propriedade deve se ater a este novo paradigma. Hodiernamente podemos dizer que a natureza jurídica do patrimônio ambiental tem diferentes graus de materialidade, porém pode-se identificar claramente que estes são bens difusos, que dizem respeito a todos e não se restringem a uma divisão simplista entre público e privado. Nesse sentido os bens públicos estariam sujeitos às mesmas restrições, não havendo qualquer privilégio com relação às restrições ambientais, pois se este a ferisse, mesmo em nome do público, estaria comprometendo algo mais amplo que é o coletivo (incluindo neste conceito o preceituado no art. 225 da Constituição Federal “as atuais e futuras gerações”). Esse bem da coletividade não pode ser considerado res nullius, mas com suas limitações pode ser passível de apropriação privada. Eis aqui o paradoxo e o desafio para investigações dos futuros pesquisadores jurídicos, algo que é passível de apropriação, mas deve ser tratado como de interesse coletivo. Privado sim é possível, mas para além do interesse e do conceito restrito ao Direito público. BIBLIOGRAFIA ALBAGLI, Sarita. Geopolítica da Biodiversidade. Brasília, IBAMA, 1998. ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1998. BARROS MONTEIRO, W. Curso de Direito Civil, 7. ed. São Paulo, Saraiva, 1967. 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Havia, inicialmente, uma finalidade apenas fiscal, não havendo, por parte do Príncipe, qualquer intenção de mudança no comportamento dos súditos, ou, na terminologia atual, sem intervenção na livre iniciativa, objetivando a um equilíbrio orçamentário. Esse procedimento contribuía tão somente para o enriquecimento das burras reais, constituindo-se, dessa forma, um sistema injusto. A neutralidade era algo utópico, pois jamais toda a arrecadação era revertida ou compensada em benefícios dos súditos contribuintes2. A finalidade meramente fiscal permanece ainda hoje como uma forma de tributação utilizada em alguns tributos, visto que a finalidade regulatória vem se impondo cada vez mais como sistemática de política fiscal. Podemos conceituar a tributação fiscal como a técnica que busca extrair do patrimônio dos particulares o dinheiro necessário para que o Estado possa cumprir com suas finalidades voltadas para o interesse público. 1 Doutor em Direito pela Université Libre de Bruxelles (1993). Professor Associado II da Universidade Federal de Santa Catarina. Vice-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC. 2 Ver nosso “História do Tributo no Brasil”, Fpolis: Ed.Boiteux, 2005, pp.17 a 23. 228 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Trata-se, portanto, do uso do tributo com fins tão somente arrecadatórios. O Estado, porém, vem fazendo uso da atividade financeira não somente para adquirir recursos, mas também para modificar estruturas sociais, obter resultados tanto políticos quanto econômicos, impondo verdadeiras mudanças em padrões comportamentais, realizando, através do uso orientado do tributo, mudanças sociais. Ricardo Lobo Torres sustenta, discorrendo sobre o tema3, que a extrafiscalidade, como forma de intervenção estatal na economia, apresenta uma dupla configuração: de um lado, a extrafiscalidade se deixa absorver pela fiscalidade, constituindo a dimensão finalista do tributo; de outro, permanece como categoria autônoma de ingressos públicos, a gerar prestações não tributárias. Dessa forma, a extrafiscalidade está diretamente relacionada com a intervenção estatal, reordenando a economia e as relações sociais, ficando o caráter de arrecadar recursos em um plano secundário. Em alguns impostos, inclusive, o caráter arrecadatório (finalidade fiscal) praticamente desaparece, impondo-se o caráter regulatório tendo em vista a finalidade principal da exação, que é regular comportamentos e impor modificações de conteúdo econômico ou social. Não podemos deixar de salientar que, notadamente, a função fiscal (arrecadatória) dos tributos também é de extrema importância ao meio ambiente, pois, desta forma, o Estado através da arrecadação das receitas tem como implementar ações que visem a proteção do meio ambiente, como prega o art. 225 de nossa Carta Maior. 2. Teoria geral do direito tributário As bases para o estudo da teoria geral do direito tributário, para Alberto Nogueira, são três: quem tributa, o que e como tributa e quem sofre os efeitos da tributação.4 Teorias gerais do direito tributário não são consenso em função da sua complexidade e peculiaridade de determinadas regiões e épocas. “Se temos o direito de propriedade sobre algo, aparece também o direito de ser tributado na medida correta e razoável”.5 3 TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.167. NOGUEIRA, Alberto. Globalização, regionalização e tributação: a nova matriz mundial. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p. 89. 5 NOGUEIRA, Alberto. Op. cit., p. 94. 4 229 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II A propriedade, no sentido atual, não deve ser entendida em caráter absoluto, como a via o direito romano. Muitos de nossos impostos sobre a propriedade, que a doutrina mais conservadora entende como sendo tributos reais (temos aí o IPTU e o ITR), podem perfeitamente ser entendidos como impostos pessoais, na medida em que o imposto incide não sobre a coisa, a res, mas sobre o exercício de um direito a essa coisa. Apesar de o STF ter “batido o martelo” acerca da impossibilidade de o IPTU incidir de forma progressiva (anteriormente à Emenda Constitucional nº 29/2000), em razão do valor do imóvel – vedando dessa forma a progressividade fiscal do tributo, cremos que é perfeitamente possível aplicar-se um critério de capacidade contributiva, tributando-se de forma mais elevada os imóveis de maior valor. Isso sem prejuízo da tributação extrafiscal, com a utilização do tributo de forma a penalizar a má utilização do imóvel, seu não aproveitamento, em prejuízo a um desenvolvimento ecologicamente coerente com os interesses sociais. Aliás, o poder de tributar não pertence ao Estado, como explica Alberto Nogueira: ―(...) o Estado não é detentor dessa faculdade. É apenas a entidade incumbida de exercer esse papel, de acordo com o direito da sociedade ou, mais objetivamente, com o direito de cada contribuinte‖.6 Com a tomada do poder pela alta burguesia, após a Revolução Francesa, assistiu-se ao domínio e à imposição desta classe. Não se pode negar, contudo, a influência de 1789 no campo dos direitos fundamentais. Como assevera Ricardo Lobo Torres, ―o poder de tributar nasce do espaço aberto pelos direitos humanos e por eles è totalmente limitado. O Estado exerce o seu poder tributário sob a permanente limitação dos direitos fundamentais e de suas garantias constitucionais‖.7 Os fatos de 1789 também influenciaram a Constituição brasileira de 1824, como a referência à capacidade contributiva. Desse modo, o poder de tributar nasce a partir da liberdade de iniciativa e do direito de propriedade, tornando-se legítimo na medida em que respeita os direitos de liberdade. O fenômeno da tributação é visto por alguns como poder unilateral; para outros, o Estado, por ser composto por representantes do povo, é legítimo e justo ao satisfazer as necessidades do povo. Portanto, muitas vezes a figura do Estado encobre a verdadeira face da relação tributária. Destarte, nossa opinião é de que há uma necessidade absoluta 6 7 NOGUEIRA, Alberto. Op. cit. (1997), pp. 97. NOGUEIRA, Alberto, Op. cit.(1997), pp. 99. 230 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II de se apresentar o tributo bem visível, dentro de uma teoria geral específica, que o fundamente, explique e legitime. 3. Reflexões sobre mudança social A principal finalidade de muitos tributos, portanto, não será a de um instrumento de arrecadação de recursos para o custeio das despesas públicas, mas a de um instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada8. É a partir dessa noção, que cabe, ainda preliminarmente, uma reflexão sobre a idéia de mudança social, com análise de alguns conceitos que lhe são próximos9. A estrutura social, dependendo do momento em que for estudada, pode apresentar-se de forma dinâmica ou estática. Uma organização social tende a uma maior estagnação com a criação de estratos sociais. Contudo a interação entre as classes sociais torna capaz a mudança social. Ação social, por seu lado, refere-se a movimentos sociais e grupos de pressão movidos por determinados interesses, retardando ou acelerando as mudanças sociais. Os grupos de pressão não constituem necessariamente uma reunião de pessoas de determinada elite ou classe social, mas podem ser também uma junção de diversos estratos sociais com os mesmos interesses. Os movimentos sociais, de outro lado, são organizações claramente estruturadas e identificadas, as quais reúnem membros com uma finalidade explícita. Suas ações dependerão da quantidade dos componentes, do poder econômico e do modo como agirão, se através de movimentos grevistas, manifestações, sabotagem etc. A ação será eficiente quando feita sobre as massas, conscientizando-as.10 Quando se aborda o conceito de mudança social, uma idéia provocadora surge com a noção de revolução. Revolucionar é mudar, mas em rítmo acelerado. A revolução não nasce de um único fator determinante, mas sim de vários aspectos, sejam eles sociológicos, filosóficos, políticos, religiosos e econômicos. A pré-revolução, o projeto do objetivo a ser alcançado, não se confunde com a revolução, a qual é um movimento que busca uma mudança rápida, sendo, às vezes, considerada violenta, não 8 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, p.528 e ss. FALCÃO, “Tributação e mudança social”, Rio de Janeiro: Forense, 1981. 10 FALCÃO, Raimundo Bezerra, op.cit., pp.57-60. 9 231 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II pela sua crueldade, mas pelo seu profundo grau de modificação. A partir daí, infere-se a mudança como conseqüência da revolução. Nessa análise, cabe ainda efetuar uma reflexão sobre o desenvolvimento econômico como fator de progresso, e portanto, de uma mudança social de caráter positivo. O sociólogo canadense Guy Rocher afirma que o desenvolvimento econômico consiste na utilização dos diferentes fatores econômicos com vista a aumentar o rendimento nacional, elevar o nível de vida geral da população dum país ou duma região e favorecer o bem-estar geral11. Marcus de Freitas Gouvêa lembra que a idéia de desenvolvimento tem ocupado os economistas há muito, e que tal discussão somente tomou corpo com o início do século XX, devido principalmente a dois fatores, o primeiro relacionado com o surgimento de seus principais teóricos (Keynes e Schumpeter), e o segundo em função da maior crise econômica da história moderna, “representada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque”12. Desenvolvimento econômico, regra geral, assume um caráter dimensional, ou seja, é um progresso em todas as direções, implicando em benefícios para toda a sociedade de um modo geral (educação, saúde, etc.). Por outro lado, no crescimento econômico há um aumento na produção, nos investimentos e consumos, acarretando uma maior concentração de renda nas mãos de determinadas elites. Para Gouvêa, as preocupações com o desenvolvimento “trascendem aquelas voltadas para o crescimento quantiitavamente considerado e para as correções do mercado”. Preocupase também, enfatiza o autor, “com os indicadores sociais e com qualidade de vida, de forma que o tema deixa de ser exclusivamente matéria a cargo dos economistas”13 Pois bem, uma questão fundamental diz respeito ao problema ecológico. Tratase de uma mudança de paradigma e nossa análise volta-se então para o problema da sobrevivência do planeta e consequentemente do Homem. Trata-se de uma reflexão voltada para o surgimento de novos mecanismos dos quais devemos lançar mão na proteção ambiental. Desta forma tentamos mostrar que o Direito, com suas múltiplas disciplinas, deve, através da interdisciplinariedade, ser instrumento de ação neste sentido. 11 ROCHER, Guy. Sociologia geral. Lisboa: Editorial Presença, v. 5, 1971, p. 109-117. GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p.88. 13 Idem, pp.88-89. 12 232 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Não é de hoje que ideais ambientalistas têm sido preocupação em nosso cotidiano. Organizações não governamentais como o Greenpeace, demais instituições, além de pessoas de todo o planeta têm mostrado ao mundo a problemática da degradação ambiental. Interessante lembrar que em 1815, José Bonifácio - Primeiro Ministro do Brasil Independente - já possuía esta preocupação: ―Se a navegação aviventa o comércio e a lavoura, não pode haver navegação sem rios, não pode haver rios sem fontes, não há fontes sem chuvas, não há chuva sem umidade, não há umidade sem florestas‖14. Não precisamos discorrer muito sobre a questão ambiental em si. Apenas cabe lembrar alguns fatores responsáveis pelo problema ambiental. A Revolução Industrial não pode deixar de ser mencionada como causadora de danos ambientais. A explosão demográfica, a gerar uma demanda cada vez maior por alimentos, agricultura e pecuária em franca expansão tomando o lugar de florestas, fatores acentuados pela competitividade do capitalismo, são causas de danos ao meio ambiente. As mudanças climáticas, efeitos da ação humana, têm provocado desastres ecológicos cada vez mais freqüentes. O derretimento das geleiras, os ciclones cada vez mais potentes, enchentes, calor e incêndios na Europa e secas, são eventos cada vez mais constantes e danosos ao meio ambiente. De tal feita, várias são as tentativas de desenvolver mecanismos, nacionais e internacionais, que combatam tais danos ao meio ambiente, assim como propiciem um desenvolvimento sustentável, prevalecendo a proteção ao meio ambiente sem que se estanque o desenvolvimento necessário à humanidade. Estabelecer condições para que a equação meio ambiente versus desenvolvimento/ comércio nacional e internacional - baseada em princípios jurídicos no âmbito interno e externo -, tem sido tarefa árdua e de extrema dificuldade aos agentes do direito. Entretanto, tal engajamento é indispensável à vida, do Homem e do planeta. Na questão de indução de comportamentos, a tributação ambiental leva os agentes a ações que visem a redução da poluição e a racional utilização dos recursos 14 SVIRSKY, Enrique; CAPOBIANCO, João Paulo R. (organizadores). Ambientalismo no Brasil – passado, presente e futuro. São Paulo, Brazil: Instituto Socioambiente/Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo, pág. 16. 233 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II naturais15. Neste sentido, a tributação ecológica leva o agente a realizar sua atividade buscando maior eficiência na proteção ao meio ambiente como também maximiza seus lucros, recolhendo uma carga menor de tributos. A utilização de agentes químicos menos nocivos ao meio ambiente, incrementos tecnológicos e de instalações, novos métodos de produção, também são mecanismos que podem levar a uma menor carga tributária e maior proteção ambiental. Isto posto, verificamos que a tributação ecológica leva grande vantagem na proteção ao meio ambiente em relação aos instrumentos normativos. Desta forma, a ação ecológica pode utilizar-se de diversos instrumentos, dentre eles a tributação. Em nível internacional, além da formulação de princípios com esse caráter, já existe uma prática concretizada através de ações pontuais e está se iniciando uma tendência à reformulação do próprio sistema tributário. Embora a luta de pioneiros, o Brasil parece ter sido realmente despertado para a questão pela pressão internacional, mais especificamente por ocasião da realização do Congresso Internacional sobre Meio Ambiente (ECO-92), no Rio de Janeiro, em 1992, tendo em vista o diagnóstico da necessidade de se preservarem as florestas tropicais para se obter êxito na luta contra o "efeito estufa". Na teoria econômica, a inclusão da solução tributária para os problemas do meio ambiente tem sua origem em Pigou, que sugeriu, admitida a hipótese da ausência de custos administrativos16, a instituição de um imposto para a correção das externalidades negativas e o pagamento de um subsídio como compensação para os efeitos externos positivos (Pigou, 1932, p.192, 381). Quais seriam, então, os objetivos da tributação ecológica? Basicamente, e em breve síntese, são a eficiência econômica e a proteção do meio ambiente. Segundo Baumol e Oates (1971, p. 56, rodapé), por exemplo, o poder de tributar pode representar, também, o poder de restabelecer as condições originais do meio ambiente. Com Eugênio Lagemann, vamos buscar um pouco da experiência internacional. A prática internacional pode ser dividida em duas estratégias: a instituição isolada de contribuições e a reforma do sistema tributário. A tributação ecológica com 15 PACHECO FILHO, Eduardo Galvão de França. O Direito Tributário na proteção ao meio ambiente, in http://www.advogado.adv.br/artigos/2006/eduardogalvaodefrancapachecofilho/odireitotributario.htm, acesso em 03/05/2009. 16 Pigou, 1956, p. 99. apud LAGEMANN, Eugênio. Tributação ecológica. Ensaios FEE, vol.23, n.1, 2002, pág.301. 234 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II caráter parcial foi a primeira opção, e já se registram experiências em diferentes países (Suhr, 1989, apud Lagemann, 2002). No que se refere à poluição do ar, destacam-se as experiências do Japão, da Holanda e da Noruega. É ainda Lagemann17 que lembra ter sido o Japão, em meados dos anos 70, quem introduziu uma tributação cujo fato gerador é a emissão de dióxido de enxofre (SO2). Sujeitos passivos são as empresas com uma emissão horária superior a 10.000 m3. O valor do tributo é calculado segundo o método da repartição, sendo fixado um valor equivalente aos prejuízos causados à saúde a serem cobertos. Como sua receita se destina ao fundo para compensar os prejuízos causados à saúde, não é garantido que seja alcançado um padrão adequado de qualidade do ar. A Holanda e a Noruega escolheram como objeto de tributação, respectivamente, um inpute e um produto ao invés das emissões. A Holanda tributa os combustíveis e define o valor desse tributo de acordo com o tipo de combustível e não de acordo com o seu potencial de prejudicar o meio ambiente. Sua receita objetiva cobrir os custos de controle e de administração das emissões aéreas 18. A Noruega tributa os produtos energéticos segundo o conteúdo de enxofre e tributa, assim, indiretamente, o volume de emissões de SO2. Como ele é cobrado através de um valor fixo aplicado sobre quantidades, seu efeito redutor da poluição declina com a elevação dos preços. No que se refere à poluição das águas, registram-se as experiências da França, da Holanda e da Alemanha Ocidental. A França foi pioneira na Europa Ocidental ao implementar a tributação das emissões de águas com fins ecológicos em 1968. Sujeitos passivos são as comunidades e as empresas. O tributo é fixado com base na quantidade e na qualidade das emissões19. As emissões são divididas em seis categorias que são diferentemente tributadas pelas organizações responsáveis pelas águas. A fixação da tributação é realizada com o auxílio de uma tabela de coeficientes de emissões, que considera o volume de emissões segundo setores de atividade e processos de produção. Parte dessa receita é direcionada para a construção e a manutenção de estações de tratamento de líquidos poluentes. O objetivo é atingir determinado nível de qualidade das águas. Na Holanda, existe, desde a década de 70, um sistema semelhante ao da França para a canalização de águas 17 LAGEMANN, Eugênio, “Tributação ecológica”, Ensaios FEE, vol.23, n .1, 2002, pág. 313 Idem. 19 LAGEMANN, op.cit., p.314 18 235 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II poluentes nas águas sob administração do Reino. No entanto, também as províncias, as comunidades e as sociedades civis cobram contribuições sobre as emissões em águas sob sua administração. As receitas provenientes da tributação aplicada pela administração das águas do Reino são direcionadas para um fundo de financiamento de estações de tratamento, enquanto as receitas recolhidas pelas províncias, comunidades e sociedades civis são aplicadas nas suas próprias estações. Na República Federal da Alemanha, a tributação das emissões líquidas foi implementada a partir de 1981, com base na legislação aprovada em 1976. Sujeitos passivos são apenas os poluidores diretos. O valor do tributo é fixado com base nas quantidades de unidades poluentes emitidas. Estas são calculadas, por sua vez, com base no conteúdo de materiais oxidáveis, de metais pesados, de ligas halogênicas e de seu potencial de envenenamento dos peixes. A receita decorrente da tributação é destinada para o financiamento de medidas que visam à manutenção ou à melhoria da qualidade das águas. Mesmo enfrentando, por vezes, dificuldades em estabelecer empiricamente a relação causal devido às interdependências presentes na realidade, parece que essas experiências de aplicação prática da receita tributária com fins ecológicos atingem a esperada diminuição das emissões poluentes, reduzindo, conseqüentemente, as externalidades negativas20. Importante sempre é a correta definição do fato gerador e o alcance de todas as emissões. 4. O ICMS ecológico O ICMS Ecológico tem representado um avanço na busca de um modelo de gestão ambiental compartilhada entre os Estados e Municípios no Brasil, com reflexos objetivos em vários temas, em especial a conservação da biodiversidade, através da busca da conservação in-situ, materializada pelas unidades de conservação e outros espaços especialmente protegidos21. 20 Suhr, 1989, p. 62-63, apud LAGEMANN, op.cit., p.314. LOUREIRO, Wilson. “ICMS Ecológico - A consolidação de uma experiência brasileira de incentivo a Conservação da Biodiversidade”, in http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./snuc/index.html&conteudo=./artigos/icms. html, acesso em 03/05/2009. 21 236 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II De notar que não se trata de matéria tributária, eis que envolve a repartição de receita dos Estados membros da Federação. Estes, após arrecadarem o ICMS junto a seus contribuintes, valem-se de uma permissão constitucional, como visto antes, para forçarem seus Municípios a adotarem políticas ambientais benéficas, do ponto de vista social e ecológico. É matéria de conteúdo financeiro, portanto, a ser tratada no âmbito do Direito Financeiro. Trata-se de uma idéia, de difícil implementação, que vem sendo adotado por vários Estados membros de nossa Federação. Como sabemos, o ICMS é o principal imposto estadual. Segundo a lei, 25% da arrecadação do ICMS devem ser destinados aos Municípios. Desse percentual, outros 25% podem ser repassados por critérios estabelecidos pelos Estados. Simplificando: do total da arrecadação desse imposto, 6,25% deverão ser repassados aos Municípios por critérios particulares de cada Estado. Considerando que a arrecadação nacional de ICMS em 2004 foi de 7,8% do PIB, ou cerca de R$ 138 bilhões, isso equivale, hoje, a um montante de R$ 8,6 bilhões. Uma soma substancial. O ICMS ecológico canalizaria uma parte desses recursos para ressarcir e incentivar os municípios pela boa conservação ambiental22. Funciona bem? Qual a quantidade de recursos que deve ser empenhada para esse fim? Os critérios adotados para a distribuição dos recursos são justos? O estado pioneiro do ICMS ecológico foi o Paraná23, em 1991. Foi definido que 5% do total de recursos repassados aos municípios obedecerão a critérios ambientais. Metade desses recursos são distribuídos para municípios possuidores de mananciais que abastecem outros municípios e a outra metade vai para aqueles que têm unidades de conservação. Quanto cada um merece é definido por critérios qualitativos, definidos pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP). Criado no Paraná, foi adotado também em dez Estados brasileiros e está em debate ou com anteprojetos de Lei em tramitação nas respectivas casas legislativas em seis outros Estados. 22 PEGURIER, Eduardo. Debatendo o ICMS ecológico. In http://www.oeco.com.br/eduardo-pegurier/47eduardo-pegurier/17133-oeco_12009, acesso em 4/05/2009. 23 As informações sobre o ICMS ecológico foram obtidas nos artigos de Loureiro e Pegurier, cit. 237 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Trata da utilização de uma possibilidade aberta pelo artigo 158 da Constituição Federal brasileira que permite aos Estados definir em legislação específica, parte dos critérios para o repasse de recursos do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, que os municípios tem direito. Neste caso a denominação ICMS Ecológico faz jus na utilização de critérios que focam temas ambientais. Nascido sob o argumento da compensação financeira aos Municípios que possuíam restrição do uso do solo em seus territórios para o desenvolvimento de atividades econômicas clássicas, o ICMS Ecológico tinha tudo para se transformar numa ferramenta estéril, acrítica, uma espécie de “chancelador” puro e simples para o repasse dos recursos, mas felizmente foi, e está sendo possível transformá-lo em muito mais do que isto. O ICMS Ecológico tem representado um instrumento de compensação, mas acima de tudo “incentivo” e em alguns casos, como “contribuição” complementar à conservação ambiental. Incentivo porque têm, por força da metodologia adotada, especialmente no Paraná, estimulado os Municípios que não possuem unidades de conservação a criar ou defender a criação destas, ou ainda aqueles Municípios que já possuem unidades de conservação em seu território, que tomem parte de iniciativas relacionadas a regularização fundiária, planejamento, implementação e manutenção das unidades de conservação. No caso paranaense, cabe realçar que entre 1992 e 2000 houve um incremento de 1.894,94 por cento em superfície de das unidades de conservação municipais, de 681,03 por cento nas unidades de conservação estaduais, 30,50 por cento nas unidades de conservação federais e terras indígenas e de 100 por cento em relação as RPPN estaduais. Houve ainda melhoria na qualidade da conservação dos parques municipais, estaduais e das RPPN. Este trabalho se ocupará em realizar uma descrição objetiva e uma análise, a luz da experiência paranaense na execução do ICMS Ecológico em relação à conservação da Biodiversidade, em relação às legislações já aprovadas e implantadas, ou em implantação no Brasil, bem como das propostas em fase de discussão. 238 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 5. Aspectos da legislação sobre o ICMS Ecológico aprovadas, implantadas ou em implantação. No Estado do Paraná a Lei do ICMS Ecológico, em relação à conservação da biodiversidade tem por objetivos: (a) aumento do número e da superfície de unidades de conservação e outras áreas especialmente protegidas (dimensão quantitativa); (b) regularização, planejamento, implementação e busca da sustentabilidade das unidades de conservação (dimensão qualitativa); (c) incentivo à construção dos corredores ecológicos, através da busca da conexão de fragmentos vegetais; (d) adoção, desenvolvimento e consolidação institucional, tanto em nível estadual, quanto municipal, com vistas a conservação da biodiversidade e, (e) busca da justiça fiscal pela conservação ambiental. Todo e qualquer município pode se beneficiar com recursos do ICMS Ecológico quer seja através da criação pelo próprio município ou por outro ente federado, de uma unidade de conservação, ou do aumento da superfície das unidades de conservação já criadas, ou ainda pela melhoria da qualidade da conservação das unidades de conservação, ou outra área especialmente protegida.Visando facilitar o exercício do ICMS Ecológico, os índices percentuais definidos para cada município, são calculados a partir da aplicação de fórmula, que visa mensurar Coeficiente de Conservação da Biodiversidade – CCB. Além do Paraná, nove outros Estados possuem legislações aprovadas. São Paulo foi o primeiro Estado a adotar o ICMS Ecológico depois do Paraná, com a aprovação da Lei n.o 8.510/93. A lei paulista estabeleceu que uma percentagem de 0,5% dos recursos financeiros deve ser destinada aos Municípios que possuem unidades de conservação e outros 0,5% aos Municípios que possuem reservatórios de água destinados a geração de energia elétrica. Em relação às unidades de conservação, a legislação prevê beneficiar os Municípios que possuem seus territórios integrando unidades de conservação criadas pelo Estado, não considerando as áreas criadas e geridas por outros níveis de gestão. Fixa ainda as categorias de manejo passíveis de gerar os benefícios, deixando de fora as Reserva Particulares do Patrimônio Natural. Além disto a Lei, auto-aplicável, limita a aplicação de variáveis ligadas à avaliação da qualidade das unidades de conservação, que possibilitaria melhor aproveitamento do 239 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II mecanismo em favor da consolidação das unidades de conservação, a exemplo do que acontece no Paraná24. O Rio Grande do Sul aprovou, em 1997, a Lei n.o 11.038, que criou, mesmo por “vias oblíquas”, seu ICMS Ecológico. O modelo gaúcho associa o critério ambiental ao critério “área do município”, definindo no inciso III, do artigo 1º da referida Lei, que deverá ser repartido entre os Municípios “7% (sete por cento) com base na relação percentual entre a área do município, multiplicando-se por 3 (três) as áreas de preservação ambiental e aquelas inundadas por barragens, exceto as localizadas nos municípios sedes das usinas hidrelétricas, e a área calculada do Estado....‖. A par de qualquer limitação, os profissionais do órgão ambiental encarregados pelo cumprimento da Lei, tem procurado, com criatividade, tirar o máximo proveito da oportunidade criada pela Lei em favor da consolidação das unidades de conservação, utilizando, além da variável quantitativa, variáveis qualitativas. Minas Gerais colocou em prática o ICMS Ecológico, também denominada de "Lei Robin Hood", através da criação da Lei n.o 12.040/95. A iniciativa mineira foi extremamente importante pela contribuição para a consolidação do ICMS Ecológico, colocando em prática além dos critérios unidades de conservação e mananciais de abastecimento, outros ligados ao saneamento ambiental, coleta e destinação final do lixo e patrimônio histórico. Do ponto de vista das unidades de conservação os resultados em relação ao aumento da superfície de áreas protegidas incentivadas pelo ICMS Ecológico tem sido contundentes. No Plano da criação de unidades de conservação municipais, tem havido grande repercussão a criação das Áreas de Proteção Ambiental, o que deve ser recebido com alguma cautela posto não exigirem esta categoria de manejo de unidade de conservação desapropriação, o que pode ativar o que se denomina “indústria das APAs”. O Estado de Minas não adotou variáveis qualitativas para o cálculo dos índices que os Municípios têm direito a receber, perdendo assim a oportunidade de utilizar mais efetivamente o ICMS Ecológico em benefício da consolidação das unidades de conservação. Rondônia criou o ICMS Ecológico em 1996, através da Lei n.o 147/96. O modelo rondonense está calcado no critério ligado às unidades de conservação e terras 24 LOUREIRO, Wilson. op.cit. 240 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II indígenas. Aspecto importante da Lei rondonense diz respeito s possibilidade da redução do ICMS Ecológico aos Municípios cujas unidades de conservação sofram invasões ou outros tipos de agressões. Rondônia também não adota o critério qualitativo e, na mesma linha de Minas gerais, perde a oportunidade incrementar o processo de regularização, planejamento, implementação e manutenção das unidades de conservação, além da busca, via ICMS Ecológico da melhoria da qualidade de vida dos povos indígenas. As Leis devem prever processo orgânico de articulação entre Estados e Municípios e sempre que possível a União, de forma que se possa caminhar para a construção e operacionalização da agenda 21, bem como de uma espécie de Federalismo Conservacionista, a exemplo do que previa o Sistema Nacional do Meio Ambiente. Em relação à conservação da biodiversidade, os Estados quando da adoção de suas Leis deveriam se orientar pelo SNUC, porém devem buscar a aprovação de Lei sobre Sistemas Estaduais, com adoção de Planos do Sistema de Unidades de Conservação, face não ser o ICMS Ecológico um fim em si mesmo, mas um instrumento meio, não devendo funcionar de maneira isolada, mas em conjunto com outras ações públicas. Podemos concluir, dessa forma, que o ICMS ecológico é um mecanismo que visa estimular os governantes a se preocuparem com o meio ambiente e, assim, a adotarem o desenvolvimento sustentável como meta de governo. Trata-se de um excelente exemplo de utilização de incentivos fiscais para promover a preservação ambiental, que deveria ser adotado como um modelo de política tributária. 6. Referências BALTHAZAR, Ubaldo Cesar. História do Tributo no Brasil, Fpolis: Ed.Boiteux, 2005. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, SP: Forense, 1975. FALCÃO, Bezerra, Tributação e mudança social, Rio de Janeiro: Forense, 1981. 241 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. http://www.advogado.adv.br/artigos/2006/eduardogalvaodefrancapachecofilho/odireitot ributario.htm, acesso em 03/05/2009. LAGEMANN, Eugênio. Tributação ecológica, Ensaios FEE, vol.23, n .1, 2002., disponível em http://revistas.fee.tche.br/index.php/ensaios/article/viewFile/2036/2418, acesso em 04/05/2009. LOUREIRO, Wilson. ICMS Ecológico - A consolidação de uma experiência brasileira de incentivo a Conservação da Biodiversidade, in http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./snuc/index.html&conteudo=./ artigos/icms.htm, acesso em 03/05/2009. NOGUEIRA, Alberto. Globalização, regionalização e tributação: a nova matriz mundial. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. PACHECO FILHO, Eduardo Galvão de França. “O Direito Tributário na proteção ao meio ambiente”, in PEGURIER, Eduardo. Debatendo o ICMS ecológico. In http://www.oeco.com.br/eduardo-pegurier/47-eduardo-pegurier/17133-oeco_12009, acesso em 4/05/2009. ROCHER, Guy. Sociologia geral. Lisboa: Editorial Presença, v. 5, 1971. SVIRSKY, Enrique; CAPOBIANCO, João Paulo R. (Organizadores). Ambientalismo no Brasil – passado, presente e futuro. São Paulo, Brazil: Instituto Socioambiente/Secretaria do Meio Ambiente do Estado de São Paulo. TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar,2001. 242 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II ALGUNS COMENTÁRIOS COMPARATIVOS A RESPEITO DA RELAÇÃO ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E PROTEÇÃO AMBIENTAL NOS SISTEMAS JURÍDICOS DO BRASIL E DA ALEMANHA Andreas J. Krell1 SUMÁRIO Introdução. 1. A função social da propriedade e a proteção ambiental no Brasil. 2. Alguns dados sobre a função social da propriedade: definição, restrição e indenização do sistema jurídico da Alemanha. 3. A situação doutrinária e jurisprudencial acerca da definição e restritação da propriedade privada no Brasil: pontos de divergência. Conclusão. Referências. RESUMO O presente artigo apresenta uma breve análise do instituto da função social da propriedade e sua relação à proteção ambiental, através de uma abordagem comparativa de alguns problemas, conceitos e instrumentos oriundos dos sistemas jurídicos da Alemanha e do Brasil, onde o novo Código Civil prescreve que a propriedade privada deve atender a valores ambientais consagrados na CF de 1988. Mostra-se que doutrina e jurisprudência brasileira ainda não desenvolveram critérios objetivos para a delimitação entre as normas que determinam o próprio conteúdo da propriedade (não indenizáveis) e determinações de conteúdo e de restrição que merecem uma indenização, havendo uma estagnação discussão da temática abrangente em torno dos conceitos da desapropriação e do direito adquirido. Chega-se à conclusão que há experiências teóricas e práticas do sistema jurídico alemão acerca da temática que poderão fornecer subsídios para o progresso da discussão no âmbito nacional. 1 Professor Associado de Direito Ambiental e Constitucional e Diretor da Faculdade de Direito (FDA) da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió; Doutor em Direito pela Freie Universität Berlin; Professor colaborador dos Cursos de Mestrado/Doutorado da Faculdade de Direito do Recife (UFPE); Pesquisador bolsista do CNPq (Nível 1); Membro do Comitê da CAPES na área do Direito. 243 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II PALAVRAS-CHAVE: Função social da propriedade. Proteção ambiental. Sistemas jurídicos brasileiro e alemão. INTRODUÇÃO O fenômeno da constitucionalização do Direito demanda uma rediscussão de vários institutos que, a priori, tinham um caráter meramente privatístico. É o que ocorre, notadamente, com a propriedade privada, que deve estar pautada no valor da proteção ao meio ambiente, consagrado no art. 225 da Constituição brasileira. O presente artigo tem como objetivo analisar, de forma não exaustiva, alguns instrumentos e conceitos ligados ao tema “propriedade e meio ambiente”, como eles se apresentam atualmente nos sistemas jurídicos brasileiro e alemão, para fins de uma comparação produtiva das soluções desenvolvidas nesses dois países tão diferentes. A metodologia utilizada é bibliográfica, teórica, exploratória, descritiva e jurisprudencial.2 1 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A PROTEÇÃO AMBIENTAL NO BRASIL A utilização da propriedade, que é, a princípio, livre, deve – por expressa previsão constitucional – atender à sua função social (art. 5°, XXIII, da CF) e se conformar às restrições impostas pelo Poder Público, a fim de assegurar que o seu uso não coloque em risco outros valores ou garantias asseguradas à coletividade. É de frisar que “a função social da propriedade não tem inspiração socialista, antes é um conceito próprio do regime capitalista [...], ao configurar a execução da atividade do produtor de riquezas, dentro de certos parâmetros constitucionais, como exercida dentro do interesse geral”. Portanto, ela “passou a integrar o conceito de propriedade, justificando-a e legitimando-a.3 2 Algumas das idéias aqui desenvolvidas foram inspiradas pelo projeto de pesquisa intitulado “A compatibilidade do direito de proteção à natureza com a garantia constitucional da propriedade na Alemanha e no Brasil”, apresentado por Cláudia Jecov Schallenmüller ao CNPq, em 2005. 3 BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 147. 244 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Sob o novo paradigma da constitucionalização do Direito Civil, esta nova ideologia foi confirmada pelo novo Código Civil brasileiro, que expressa a “redefinição do conteúdo do direito da propriedade à luz dos valores constitucionais ecológicos ou socioambientais, tendo em conta a carga de deveres e obrigações correlatas ao seu exercício”.4 Nessa linha, a Lei 10.406/02 (CC), no seu art. 1.228, § 1°, estabelece que [...] o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Esta significativa mudança no mais importante diploma jurídico-civil do País influencia também o seu Direito Administrativo, no sentido de que abre espaços maiores para que medidas estatais possam definir os limites concretos do conceito da propriedade nas diversas áreas. Há, por conseguinte, importantes efeitos para o uso de imóveis urbanos e rurais, além da questão da obrigação de indenização dos respectivos proprietários. Já na época da vigência da Carta de 1967/69, Pontes de Miranda afirmava em relação ao art. 180, § único, que colocava sob a proteção especial do Poder Público (entre outros bens e objetos) as paisagens naturais notáveis, que este dispositivo era “lei que limita o direito de propriedade, mas a lei-parte da Constituição, de modo que o legislador ordinário nenhum poder tem para alterá-la, ou para interpretá-la, e já a instituição da propriedade aparece, na Constituição mesma, com essa limitação”.5 Entretanto, foi somente a partir da Carta de 1988, que alguns doutrinadores começaram a reconhecer que não cabia mais falar de “desapropriação” na esfera dos limites internos da propriedade, “pois um ônus indissociável da propriedade não tem o dom de ser, a só um tempo, seu elemento e uma intervenção desapropriatória”, não sendo possível “compensar pela negação (= desapropriação) de um direito que não se 4 FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do meio ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 209. 5 PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários à Constituição de 1967; com a Emenda n. 1, de 1969 – Tomo VI. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 368 (destaques no original). 245 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II tem”, visto que os “figurantes internos colocam-se como condicionadores a priori do direito de propriedade”.6 Pode-se constatar que surgiu no Brasil, nas últimas duas décadas, “um movimento sócio-político e jurídico no sentido de substituir o reconhecimento incondicional dos direitos individuais de propriedade plena pela noção da função social e ambiental da propriedade e da cidade”.7 Isto significa que o exercício do direito de propriedade será sempre limitado pela sua função ambiental; ultrapassada a noção da propriedade privada que sofre restrições impostas pelo Direito Ambiental, percebe-se que o seu próprio conteúdo está “funcionalizado” pelo meio ambiente.8 Tem-se, portanto, no âmbito dos bens e valores ambientais e urbanísticos, em vez de um direito privado absoluto, a ser restringido posteriormente pelo poder de polícia, mas um direito que “já nasce limitado”.9 A mais importante conseqüência dessa nova ideologia constitucional da função ambiental da propriedade urbana10 foi a edição, em 2001, do Estatuto da Cidade (Lei 10.257), que veio a regulamentar os artigos 182 e 183 da CF. Esta lei federal, logo no início de seu texto, mostra a íntima ligação entre a proteção ambiental e o ordenamento dos espaços urbanos, quando ressalta, logo no seu art. 1°, o estabelecimento de “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”. O Estatuto da Cidade desempenha papel essencial na fixação e efetivo cumprimento da função social e ambiental da propriedade urbana, que antes ficava a cargo do Município. Agora, este é obrigado, especialmente na elaboração do seu Plano Diretor, a seguir as normas da Lei 10.257/01, que regulamentou os dispositivos constitucionais sobre o assunto e trouxe significativas modificações no regime do uso do solo urbano. 6 BENJAMIN, Antônio Herman. “Desapropriação, reserva florestal legal e áreas de preservação permanente”. In: FIGUEIREDO, Guilherme J. Purvin de (coord.). Temas de Direito Ambiental e Urbanístico. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 68. 7 FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade: promovendo o encontro das Agendas “Verde” e “Marrom”. In: FERREIRA, Heline S.; LEITE, José R. Morato. Estado de Direito ambiental: tendências – Aspectos constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 308. 8 Cf. BENJAMIN, Antônio Herman. Função ambiental. In: BENJAMIN, A. H. (coord.). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: RT, 1993, p. 48ss.; CAMPOS JR., Raimundo Alves de. O conflito entre o direito de propriedade e o meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2004, p. 137s. 9 PINTO, Victor Carvalho. Plano diretor e direito de propriedade. São Paulo: RT, 2005, p. 215. 10 Vide DIAS, Daniella Santos. Desenvolvimento urbano. Curitiba: Juruá, 2002, p. 138ss. 246 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II A fixação de vários critérios de ordem ecológica que consolidam o entendimento da atribuição de uma verdadeira função ambiental à propriedade imobiliária urbana faz com que a política urbana municipal esteja diretamente ligada à sua política ambiental, buscando-se conciliar crescimento urbano, infra-estrutura e função social das cidades com qualidade ambiental.11 2 ALGUNS DADOS SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE: DEFINIÇÃO, RESTRIÇÃO E INDENIZAÇÃO NO SISTEMA JURÍDICO DA ALEMANHA Na Alemanha, a garantia constitucional da propriedade encontra-se regulada no art. 14 da Lei Fundamental (LF), de 1949, que possui dois principais elementos: a) as “determinações de conteúdo e limites” (Inhalts-und Schrankenbestimmungen) do art. 14, inciso I, n. 2, LF, que concretizam a função social da propriedade (art. 14, inciso II, n. 2), fixando possibilidades de uso e disposição desta. Ocorrem por meio de leis parlamentares e dispositivos abstratos e gerais do Executivo. Em regra, não há pagamento de indenizações em razão dessas medidas. b) a desapropriação (Enteignung) do art. 14, n. 3, LF, que se dá quando um direito patrimonial protegido é subtraído de um particular total ou parcialmente, por meio de ato soberano, para realizar uma tarefa pública. Para tanto, é necessário que haja sempre uma intervenção concreta e individual na propriedade, que cause a subtração total ou parcial de posições concretas e subjetivas do proprietário. Além disso, é preciso que uma lei desapropriatória regulamente o tipo e o montante da indenização. Um bom exemplo para a concepção da função social da propriedade e seus efeitos concretos é a área dos recursos hídricos.12 Em princípio, o sistema jurídico alemão aceita a propriedade privada de corpos de água. Referido direito, no entanto, foi fortemente delimitado pela Lei federal de Gerenciamento dos Recursos Hídricos 11 Cf. CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis: Visualbooks, 2003, p. 74s. 12 Vide KRELL, Andreas J. Instrumentos básicos do gerenciamento e da proteção dos recursos hídricos na Alemanha. Revista Brasileira de Direito Ambiental, vol. 5, São Paulo, p. 41-72, 2006. 247 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II (Wasserhaushaltsgesetz - WHG),13 que concretizou o conteúdo da propriedade hídrica, sem, no entanto, “limitá-la”. O BVerfG afirmou que o direito de livre disposição do dono de um imóvel seria “afetado” pelo princípio constitucional da função social da propriedade, consagrado no art. 14, II, LF, que reza, de forma lapidar: “Propriedade obriga. Seu uso deve, ao mesmo tempo, servir ao bem da comunidade.”14 Num caso, julgado em 1981,15 denominado “Decisão sobre a retirada de cascalho molhado” (Naßauskiesungsbeschluß), o proprietário de um terreno retirava cascalho numa profundidade elevada, atingindo o lençol freático. Negou-se que este ato seria coberto pelo direito de propriedade do particular, com sujeição do mesmo à autorização ou até proibição do órgão competente, como expressão do direito do Estado de definir “conteúdo e limites” da propriedade, sem o dever de pagar indenização. O Direito das Águas da Alemanha é um exemplo ilustrativo da tendência geral do Direito Ambiental em direção de uma “desindividualização” da ordem jurídica. 16 Os tribunais deste país dificilmente concedem indenização a particulares atingidos por “medidas de concretização” da propriedade hídrica, que somente é possível em casos do estabelecimento de verdadeiras “restrições” à propriedade privada. Todavia, nos processos de concessão de outorgas hídricas, devem ser respeitados também os interesses individuais de terceiros, na medida em que estes sempre podem impetrar recursos administrativos e, posteriormente, judiciais contra as decisões tomadas pelo Poder Público. Prevalece no direito alemão o entendimento de que tanto leis parlamentares como normas gerais editadas pelo Executivo são capazes de concretizar o conteúdo e 13 A WHG já foi alterada diversas vezes e novamente promulgada em 2002. “Art. 14 (2) Eigentum verpflichtet. Sein Gebrauch soll zugleich dem Wohle der Allgeinheit dienen.” O teor da norma corresponde praticamente ao do art. 153 (3), da Constituição da primeira República Alemã, de 1919, elaborada por Assembléia Constituinte (diretamente eleita), cujas reuniões foram realizadas no Teatro de Weimar, pequena cidade no Estado da Turíngia, como homenagem à herança dos valores culturais e morais da Alemanha, representados por grandes poetas como Goethe, Schiller, Herder e Wieland, que lá tinham atuado. Em 1949, os criadores da Lei Fundamental fizeram apenas pequenos ajustes lingüísticos ao referido art. 14, sem alteração do conteúdo material, inserindo o verbo “servir” (dienen) no lugar de “ser serviço” (Dienst sein) e a expressão “bem da comunidade” (Allgemeinwohl), para substituir a expressão arcaica “o melhor geral” (das Gemeine Beste). 14 15 16 BVerfGE (Coletânea oficial das decisões do Tribunal Constitucional Federal), n. 58, p. 300ss., 335s. KLOEPFER, Michael. Umweltrecht. München: C. H. Beck, 1998, p. 832. 248 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II definir os limites da função social da propriedade, podendo haver, também, restrições de uso econômico de bens imóveis de particulares, as quais, em princípio, não devem ser indenizadas por parte do Estado. Foi este o principal resultado da referida decisão do BVerfG sobre o “cascalho molhado”, na qual foi estabelecido que uma “determinação de conteúdo/limites” jamais poderia ser considerada uma desapropriação, haja vista que sempre envolve casos concretos e deve incluir o pagamento de uma indenização.17 Em 1999, o BVerfG acrescentou importantes detalhes à sua jurisprudência sobre os contornos jurídicos da propriedade e a sua função social, permitindo, em certas circunstâncias, uma indenização também nos casos da concretização do conteúdo da propriedade, chamado de “definição indenizável de conteúdo” (ausgleichspflichtige Inhaltsbestimmung). Decidiu que, nos casos em que o legislador queira definir conteúdo e limites da propriedade, este teria que fixar também as condições, a forma e o volume da compensação de possíveis encargos desproporcionais de proprietários. Ao mesmo tempo, determinou a obrigação da Administração Pública de decidir sobre esta compensação já no momento da concretização da restrição da propriedade, sempre com fundamento no respectivo diploma legal.18 A decisão sobre o “exemplar obrigatório” (Pflichtexemplarsentscheidung)19 tratou da obrigação legal das editoras alemãs a entregar, no mínimo, um exemplar de cada livro publicado às respectivas bibliotecas estaduais, como uma forma de “definição de conteúdo/limites” da propriedade, que concretiza a sua função social. A falta da previsão legal de uma indenização foi julgada inconstitucional, já que o legislador era obrigado de criar normas que equilibrassem os diferentes encargos, para preservar o princípio da proporcionalidade. No caso, considerou-se desproporcional que uma pequena editora, especializada em produzir livros de formato especial, de tiragem reduzida e de valor elevado, fosse obrigada a entregar um exemplar gratuitamente à biblioteca pública, visto que esse dever legal poderia inviabilizar economicamente a edição. Os referidos princípios também são aplicáveis aos atos públicos que criam áreas de proteção aos mananciais em terrenos privados, bem como no âmbito das restrições e 17 Idem, p. 870s. BVerfGE, n. 100, p. 226ss., 246, em decisão sobre a constitucionalidade de medidas legais estaduais de proteção ao patrimônio histórico. 19 BVerfGE, n. 58, 137ss. 18 249 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II proibições de atividades particulares ligadas à agricultura e ao uso de florestas, que são necessárias para garantir a qualidade dos recursos hídricos e outros recursos naturais. O sistema alemão, contudo, reconhece que em casos específicos podem ser cumpridas as condições materiais de uma desapropriação sujeita à indenização (art. 14, III, LF), especialmente quando as medidas estatais de proteção ambiental “praticamente inviabilizam ou tornam pouco rentáveis” as formas de uso agroflorestal nas respectivas áreas, exercidas anteriormente de forma legal.20 Para estas medidas de “efeito desapropriatório”, a legislação prevê o pagamento de uma indenização. Além disso, introduziu-se uma “compensação de equidade” (Billigkeitsausgleich) para casos que não atingissem o grau de uma desapropriação, mas nos quais os beneficiados (públicos ou privados) pelas limitações do regular uso dos terrenos devam pagar uma justa compensação financeira pelas desvantagens econômicas causadas aos proprietários.21 Para Kloepfer, este pagamento obrigatório de uma “compensação de desvantagens” representa uma “quebra do princípio do usuário-pagador” capaz de levar, inclusive, a uma redução da vontade do Poder Público de criar áreas de proteção da natureza. Segundo o autor, estas “compensações” estão materialmente localizadas entre aquilo que deve ser indenizado, por constituir uma desapropriação, e aquilo que deve ser tolerado sem direito à indenização, por ter o caráter de uma “definição de conteúdo de limites” da propriedade, nos moldes de sua vinculação social consagrada pela própria Constituição.22 20 Cf. BREUER, Rüdiger. Umweltschutzrecht. In: BADURA, Peter et alii. Besonderes Verwaltungsrecht. 5. ed. Berlin usw.: De Gruyter, 1992, p. 474s. 21 A Lei federal transfere a regulamentação detalhada deste instrumento, assim como a sua implementação administrativa, ao encargo da legislação estadual, sendo este tipo de delegação legal uma característica do sistema jurídico alemão; cf. KRELL, Andreas J. “A necessária mudança de foco na implantação do federalismo cooperativo no Brasil: da definição das competências legislativas para o desenho de formas conjuntas de execução administrativa”. In: SOUZA NETO, Cláudio P. de; SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (orgs.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 635-660. 22 A presente “definição indenizável de conteúdo” tem por base o raciocínio de que os princípios da proporcionalidade e da igualdade, em conjunto com “aspectos de conveniência”, são capazes de impor ao Estado a efetuação de prestação pecuniária ao particular atingido pela medida, para compensar o encargo que este deve tolerar em virtude do art. 14, I, n. 2, LF; cf. KLOEPFER, Michael. Umweltrecht. München: C. H. Beck, 1998, p. 871s. 250 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 3 A SITUAÇÃO DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL ACERCA DA DEFINIÇÃO E RESTRITAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA NO BRASIL: PONTOS DE DIVERGÊNCIA No Brasil, o princípio da função social da propriedade foi introduzido formalmente pela Constituição Federal de 193423 e reforçado na de 1946.24 A Carta de 1988 prevê a garantia da propriedade em diferentes dispositivos: no art. 5o, são prescritos os direitos e deveres individuais e coletivos, garantindo-se a propriedade como bem juridicamente protegido como direito fundamental individual (inciso XXII). Ao mesmo tempo, a observância de sua função social constitui um dever (inciso XXIII). O art. 170 CF, por sua vez, inclui a propriedade privada, bem como a sua função social, nos princípios gerais da ordem econômica do Estado brasileiro. Já a propriedade urbana é regulamentada no art. 182, enquanto a propriedade rural encontra os seus dispositivos mais importantes no art. 5.o, XXVI e nos arts. 184-186. Em relação à desapropriação, deve-se fazer uma distinção entre a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante uma justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5.o, XXIV, CF) e a desapropriação como meio de sanção, nos respectivos âmbitos normativos da propriedade urbana e rural. As limitações ao direito de propriedade ocorrem mediante de leis parlamentares e por medidas do Executivo (limitações administrativas), estabelecidas por meio de normas abstratas e gerais. Até hoje, há, porém, muitos autores, que, de maneira equivocada, entendem a função social da propriedade apenas como meio para justificar limitações da propriedade privada no interesse público, mediante o exercício do “poder de polícia” dos órgãos estatais, desconhecendo que a função social não apenas limita o direito de propriedade, mas o define e estrutura nas suas diversas áreas de incidência.25 Porém, os efeitos das limitações ao direito de propriedade no Brasil são diferentes daqueles das “determinações de conteúdo/limites” da propriedade da LF 23 “Art. 113, n. 17 - É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. (...).” 24 “Art. 147 – O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá (...) promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.” 25 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 63ss. 251 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II alemã, sendo uma das principais razões para tal situação a aplicação da proteção do direito adquirido (art. 5.o, XXXVI, CF) ao direito de propriedade. Devido a um conservadorismo que, até hoje, costuma dar preferência aos direitos individuais (em detrimento dos coletivos/difusos) e apesar do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado expressamente consagrado no art. 225 CF, “ainda são numerosas as decisões judiciais baseadas em uma noção equivocada de direito adquirido”. Ademais, referido conceito entra em contradição com a função ambiental intrínseca do direito de propriedade e o respectivo dever constitucional em relação ao meio ambiente.26 Assim, era vetado ao legislador brasileiro modificar as possibilidades de uso e disposição da propriedade no decorrer do tempo, já que seu conteúdo era definido no momento de sua aquisição, sem a possibilidade de alterações posteriores. Embora essa corrente jurisprudencial seja ultrapassada, ainda não houve uma modificação da maioria dos doutrinadores brasileiros em relação a todos os elementos da garantia constitucional da propriedade. Por consequência, até hoje, “a teoria da função social da propriedade não tem tido eficácia prática e previsível na realidade dos operadores do Direito e no funcionamento do mercado”.27 Em geral, “a fórmula da ampliação interpretativa da função social da propriedade mostrou-se insuficiente, tanto no campo doutrinário como no terreno da jurisprudência” para mudar “todo um paradigma de exploração não sustentável dos recursos naturais”.28 Não houve, em especial, um aprofundamento da teoria sobre as formas de distinção dos diversos elementos do direito de propriedade, permanecendo a tendência de transformar atos que determinam o conteúdo e os limites da propriedade em desapropriações, com obrigação de indenização. 26 HARTMANN, Analúcia de Andrade. “Proteção do meio ambiente e direito adquirido”. In: Kishi, Sandra; Silva, Solange Teles da; Soares, Inês (orgs.). Desafios do Direito Ambiental no Século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 348, 351. 27 BENJAMIN, Antônio Herman. “Desapropriação, reserva florestal legal e áreas de preservação permanente”. In: FIGUEIREDO, Guilherme J. Purvin de (coord.). Temas de Direito Ambiental e Urbanístico. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 70. 28 BENJAMIN, Antônio Herman. “Direito Constitucional Ambiental brasileiro”. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; LEITE, José R. Morato (orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 72. 252 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II No ramo da proteção à natureza, são comuns intervenções na propriedade privada, principalmente na propriedade rural. No Brasil, o direito de proteção ambiental é regulamentado por normas esparsas em leis federais, estaduais, municipais e decretos, sendo os principais diplomas a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (6.938/81) e o Código Florestal (Lei 4.771/65), cujos arts. 16 e 44 (A-C) regulamentam a reserva legal que constitui uma limitação ao direito de propriedade, sem previsão de indenização. Entretanto, não há uniformidade na legislação brasileira em relação às normas indenizatórias de proteção ambiental. Existem leis que prevêem indenizações para limitações específicas, muitas vezes ligadas à localização da propriedade, sem necessidade de um exame da (des)proporcionalidade da limitação sofrida. Determinamse, antecipadamente, quais tipos de limitações serão indenizados, e quais não serão. A titulo de exemplo, cita-se o Decreto n. 10.251/77, do Estado de São Paulo, que criou o Parque Estadual da Serra do Mar, desencadeando, por conseqüência, várias ações de indenização por desapropriação indireta. O STJ, in casu, entendeu que as áreas de preservação permanente (APPs) do Código Florestal, por serem insuscetíveis de exploração econômica, não são indenizáveis. Já uma área de reserva legal “é indenizável, todavia, com exploração restrita, sem equivalência ao valor da área compreendida”.29 Sem dúvida, merecem aplausos os avanços recentes da jurisprudência dos tribunais superiores sobre o tema. Assim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou que a responsabilidade pela recomposição do proprietário de um terreno ecologicamente degradado independe de sua culpa pessoal (obrigação civil propter rem).30 No entanto, resta duvidoso condicionar a decisão sobre a indenização do proprietário de um imóvel apenas do fato de que este tem sido enquadrado (ou não) em algum regime jurídico especial de proteção ambiental (APP, reserva legal ou alguma unidade de conservação da Lei 9.985/00).31 29 STJ, 1. T., REsp 139.096/SP, REsp 1997/0046.743-0, rel. Min. Milton L. Pereira, j. 7.6.2001, DJ 25.3.2002, p. 178. 30 STJ – Resp 343.741/PR, 2. T., rel. Min. Franciulli Netto, DJU 7.10.2002; STJ – Resp 263.383/PR, 2. T., rel. Min. Otávio de Noronha, j. 16.6.2005; STJ – Resp 237.690/MS, 2. T., rel. Min. Paulo Almeida, DJU 12.3.2002; STJ – Resp 282.781/PR, 2. T., rel. Min. Eliana Calmon, DJU 16.4.2002. 31 Cf. FENSTERSEIFER, op. cit., p. 218ss. 253 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Também não parece cabível a generalização de que a redefinição da propriedade em determinada área (ex.: em razão da revogação de uma licença) sempre seja inconstitucional, por ferir a garantias constitucionais da propriedade privada e o direito adquirido. É imprescindível que o julgamento deve ser orientado pelos critérios concretos do caso (se já houve investimentos após a licença, se o imóvel está economicamente vinculado a uma atividade específica etc.). Ao mesmo tempo, sempre deverá ser considerado o fato se a delimitação da propriedade privada por ato público acontece num contexto onde todos os imóveis da mesma área e/ou dotadas das mesmas características estão sujeitos às mesmas restrições de uso e aproveitamento ou se o ônus imposto ao proprietário individual possui assume a conotação de um “sacrifício especial” (Sonderopfer).32 Isto significa, por exemplo, que todas limitações urbanísticas impostas por zoneamentos locais devem respeitar ao princípio da igualdade.33 É tarefa dos tribunais efetuar uma ponderação racional e objetiva dos bens e interesses envolvidos em cada caso, para poder decidir se a intervenção estatal concreta de proibição ou restrição de uso da propriedade exige uma indenização do particular (ex.: agricultor), se há uma delimitação restritiva de propriedade que merece uma compensação na base da equidade ou, ainda, se existe “apenas uma delimitação de um vínculo ecológico sem relevância indenizatória”.34 A referida concessão generalizada de indenizações leva, por um lado, à existência de limitações que são declaradas como não indenizáveis, ferindo-se o princípio da proporcionalidade. Destaca-se, outrossim, o aumento da “indústria de indenizações”, visto que os tribunais enfrentam grandes dificuldades na fixação do valor monetário das indenizações. O Poder Público brasileiro “vem sendo condenado judicialmente a pagar quantias vultosíssimas aos proprietários de imóveis situados nas áreas protegidas”, as quais “superaram absurdamente os valores do mercado 32 Carlos Ari Sundfeld faz uma análise bastante crítica das limitações do critério do sacrifício nesse âmbito; cf. Direito Administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 86ss. 33 Cf. MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental brasileiro. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2002, p. 74s. 34 CANOTILHO, J. J. Gomes. Proteção do ambiente e direito de propriedade: crítica da jurisprudência ambiental. Coimbra Editora, 1995, p. 100. 254 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II imobiliário”, através das figuras da desapropriação indireta e do apossamento administrativo.35 CONCLUSÃO Resta, à guisa de conclusão, destacar possíveis pontos de aproveitamento da doutrina alemã sobre os conteúdo e os limites da propriedade privada por parte do sistema jurídico brasileiro. Com base no que foi discutido acima, pode-se constatar que a doutrina brasileira sobre a garantia constitucional da propriedade ainda não chegou a um estado de firmeza e pacificação. Tanto na CF Brasileira (art. 225) como na LF Alemã (art. 20a) assegurase que a proteção do meio ambiente deve ser objetivo (fim) dos atos realizados pelo Poder Público em todos os níveis federativos. Este mandamento da Lei Maior deve influenciar também nas formas de definição do conteúdo e na fixação de restrições à propriedade privada, bem como na formulação de critérios concretos para concessão de indenizações no âmbito da proteção, preservação e conservação ambiental. Da mesma forma como aconteceu na Alemanha, seria recomendável que, no Brasil, o legislador ordinário e os órgãos administrativos fossem obrigados a fixar, de forma nítida, os critérios para a indenizabilidade de determinações sobre o conteúdo e os limites da propriedade nas diferentes áreas da vida econômica. Nesse ponto, certamente não satisfaz a figura abstrata da “desapropriação indireta”, amplamente utilizada pelos tribunais e pela doutrina, visto que esta não corresponde à natureza deste tipo de intervenção estatal, justamente por não poder ser equiparada a uma “verdadeira” desapropriação. Ainda não existe, no Brasil, uma clara divisão entre uma limitação administrativa e uma norma desapropriatória, haja vista que uma limitação pode se transformar, facilmente, num caso de desapropriação. Em virtude de uma exagerada concentração nas tentativas abstratas de definição da função social da propriedade nos diferentes setores (urbana, rural, intelectual, águas etc.), negligencia-se a discussão e confrontação dessa figura com os demais elementos da garantia constitucional da propriedade. 35 FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no Direito Ambiental. 3. ed. Sao Paulo: RT, 2008, p. 282s. 255 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Assim, acabam faltando critérios objetivos para a delimitação entre determinações de conteúdo da propriedade não indenizáveis e determinações de conteúdo que merecem uma indenização. Justamente nesse ponto, a análise do posicionamento da jurisprudência e da doutrina alemã a respeito certamente poderá – respeitadas as diferenças socioeconômicas, históricas e culturais – fornecer valiosos subsídios para o progresso da discussão no âmbito doutrinário brasileiro. REFERÊNCIAS BENJAMIN, Antônio Herman. “Desapropriação, reserva florestal legal e áreas de preservação permanente”. In: FIGUEIREDO, Guilherme J. Purvin de (coord.). Temas de Direito Ambiental e Urbanístico. São Paulo: Max Limonad, 1998. __________. Função ambiental. In: BENJAMIN, A. H. (coord.). Dano ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: RT, 1993. __________. “Direito Constitucional Ambiental brasileiro”. In: CANOTILHO, J. J. Gomes; LEITE, José R. Morato (orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2007. BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005. BREUER, Rüdiger. 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Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009. 257 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II __________. Instrumentos básicos do gerenciamento e da proteção dos recursos hídricos na Alemanha. Revista Brasileira de Direito Ambiental, vol. 5, São Paulo: Fiúza, p. 41-72, 2006. MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental brasileiro. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2002. PINTO, Victor Carvalho. Plano diretor e direito de propriedade. São Paulo: RT, 2005. PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários à Constituição de 1967; com a Emenda n. 1, de 1969 – Tomo VI. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 368. SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995. SUNDFELD Carlos Ari. Direito Administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 1997. 258 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II DA CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA EM ÁREAS DE PROTEÇÃO: ESTUDO SOBRE A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA URBANA Juliana Cristine Diniz Campos1 SUMÁRIO 1. Introdução. 2. Regramento Geral da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia. 3. A Definição das Áreas de Preservação Ambiental. 4. Dever de Proteção do Estado e Direito à Moradia: Alternativas. 4. Conclusão. RESUMO Este trabalho tem por objeto o estudo da concessão de uso especial para fins de moradia como instrumento de regularização fundiária nos casos de ocupação irregular de imóveis públicos, revelando-se como um dos mecanismos de funcionalização da propriedade estatal. Diante da possibilidade da ocupação ocorrer em áreas de proteção ou ambientalmente frágeis, verifica-se um nítido conflito de pretensões fundamentais entre o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito à moradia. Diante da norma do artigo 5º da medida provisória 2.220/2001, sustenta-se o argumento de que, nesses casos, a faculdade revela-se um poder-dever do estado em transferir os ocupantes para uma área onde a ofensa ao meio ambiente não seja realizada. Define-se as áreas de proteção ambiental para fins de interpretação da lei, associando a faculdade de transferência do estado a um dever geral de proteção deduzido do artigo 225 da constituição. Há, conforme se demonstra, uma tensão entre direitos fundamentais a partir da ideia geral de função socioambiental da propriedade, que é solucionada pela interpretação sistêmica da carta constitucional associada ao uso dos mecanismos hermenêuticos de solução de conflitos entre pretensões fundamentais. 1 Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Direito Urbanístico da Faculdade 7 de Setembro e de Introdução ao Direito da UFC. 259 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente PALAVRAS-CHAVES: PROPRIEDADE URBANA. Parte II FUNÇÃO SOCIAL. CONCESSÃO DE USO. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA. 1. INTRODUÇÃO O remodelamento do conceito de propriedade sofrido ao longo do século XX tem ocasionado a transformação da disciplina básica oferecida a esse direito, para o fim de condicionar o seu uso ao atendimento de alguns deveres básicos, compreendidos sob a expressão genérica de “função social”. Desse modo, se é possível falar em propriedade como uma pretensão fundamental protegida pelo artigo 5º, inciso XXII da Constituição, é igualmente difundida a ideia de que, como principal fator de riqueza e desenvolvimento social, a propriedade deve ter sua utilização condicionada pela juridicidade, a partir da perspectiva do estado do bem-estar. Nesse sentido, podemos associar a mudança sofrida na disciplina desse direito ao processo de consolidação de uma forma de organização política que assume o compromisso de reduzir as desigualdades sociais, a fim de concretizar o princípio da dignidade da pessoa humana2. Sendo a desigualdade fundamentalmente econômica, os meios mais efetivos para modificar essa realidade é uma sensível presença do estado no direcionamento da economia nacional, a fim de realizar alguns objetivos fundamentais, previstos no artigo 170 da Constituição, entre eles: a busca do pleno emprego, redução das desigualdades regionais, a defesa do consumidor, etc. Assim, tem-se a compreensão de que o regramento unicamente civilista da propriedade – cujo enfoque é realizado a partir da perspectiva do interesse privado – não atende de forma satisfatória ao projeto constitucional, especificamente no que se refere à transformação da ordem econômica, dada a obrigação estatal de transformar a realidade social. O reflexo dessa nova perspectiva é a criação, já na segunda metade do século XX, de uma série de novos ramos do direito destinados a adequar o direito de propriedade às novas relações sociais nascentes da compreensão política global. O direito urbanístico surge, nesse contexto, da necessidade de transformar o espaço urbano (a partir do condicionamento da propriedade imóvel), e disciplina 2 DIMOULIS, Dimitri. Fundamentação Constitucional dos Processos Econômicos: Reflexões sobre o papel Econômico do Direito. In: SABADELL, Ana Lucia et ali. Direito Social, Regulação Econômica e Crise do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2006, pg. 99. 260 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II aspectos como a ordenação do solo, o planejamento urbanístico, o controle do crescimento da cidade, para o fim de proporcionar o bem-estar e a qualidade de vida nos espaços habitáveis das grandes metrópoles do século XX. É por essa razão que, para Silva, a formação do direito urbanístico, (...) ainda em processo de afirmação, decorre da nova função do Direito, consistente em oferecer instrumentos normativos ao Poder Público a fim de possa, com respeito ao princípio da legalidade, atuar no meio social e no domínio privado, para ordenar a realidade no interesse da coletividade. 3 Paralelamente à transformação da propriedade e à criação de ramos da ciência jurídica, observa-se que a idéia de um direito à cidade desponta, já na década de 80 do século XX, como uma das dimensões da ideia geral de bem-estar que o estado busca atender, dando ensejo à discussão sobre a reforma urbana, isto é, sobre a necessidade de transformação das cidades em espaços agradáveis, que possibilitem o desenvolvimento da convivência pública e o exercício dos demais direitos fundamentais4. Esclarecem Rolnik et ali: Durante o processo de consolidação da Constituição de 1988, um movimento multissetorial e de abrangência nacional lutou para incluir no texto constitucional instrumentos que levassem à instauração da função social da cidade e da propriedade no processo de construção das cidades. Retomando a bandeira da Reforma Urbana, este movimento reatualizava, para as condições de um Brasil urbanizado, uma plataforma construída desde os anos 60 no país. As tentativas de construção de um marco regulatório a nível federal para a política urbana remontam às propostas de lei de desenvolvimento urbano elaboradas pelo então Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano nos anos 70, que resultaram no PL no 775/83.5 Nesse sentido, observamos a inclusão inovadora no texto constitucional de um capítulo próprio para a política urbana, inserido no título da ordem econômica e financeira, que estabelece a competência do município para executar as políticas de teor urbanístico, destinadas explicitamente a ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes, conforme a prescrição do artigo 182 da Constituição. É a própria carta que estabelece – como condicionamento 3 SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros: 2006, pg. 35. SAULE JR. Nelson. Interfaces do Direito à Cidade e Direito Urbanístico no Brasil e na Órbita Internacional. In: SAULE JR. Nelson (org.). Direito Urbanístico: Vias Jurídicas das Políticas Urbanas. Porto Alegre: SAFE, 2007, pg. 29. 5 ROLNIK, Raquel et ali. Estatuto da Cidade: Guia para Implementação pelos Municípios e Cidadãos. Brasília: Instituto Pólis, 2005, pg. 21. 4 261 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II geral à propriedade – o plano diretor enquanto instrumento básico de planejamento urbanístico, estabelecendo que a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor (art. 182, §2º). Verificamos, assim, que o uso da propriedade no espaço da cidade tem uma importância relevante para a conquista do bem-estar e que a elaboração de uma lei geral de desenvolvimento urbano (lei federal nº 10.257 de 2001) teve por finalidade estabelecer novos condicionamentos à propriedade urbana, a partir da perspectiva de três princípios fundamentais: o combate à especulação imobiliária; a democratização da gestão da cidade e a ampliação das formas de regularização fundiária. Verifica-se que o dever fundamental relacionado à função social ganha uma densidade com a normatização infraconstitucional, que estabelece os parâmetros de julgamento do uso da propriedade em relação a interesse geral. Nesse sentido, apesar da constituição estabelecer o dever, é o plano diretor – elaborado a partir da lei federal nº 10.257/2001 – que expressa, na dimensão concreta e factível, as ações e usos adequados à axiologia constitucional. Nesse contexto, tem-se a criação da concessão de uso especial para fins de moradia como mecanismo de regularização de ocupações irregulares em imóveis públicos, a fim de concretizar o direito à moradia digna e, ao mesmo tempo, favorecer o cumprimento da função social da propriedade. A previsão do instrumento na constituição e o seu regramento infraconstitucional demonstram que o dever fundamental de funcionalização alcança não apenas a propriedade privada, mas também o domínio público, que também deve ser destinado ao bem-estar da coletividade6. Problemas podem surgir quanto à aplicação do instrumento, especificamente no que se refere à ocupação de áreas ambientalmente frágeis ou de proteção ambiental permanente. Nesses casos, a criação de um conflito legítimo de pretensões fundamentais surge: garante-se o direito à moradia ou o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado? Qual das funções – a especificamente social ou a ambiental – deve a propriedade pública atender? A discussão tem lugar na perspectiva do aprimoramento da função social, que passa a ser compreendida não apenas em sua dimensão especificamente humana, 6 ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Função Social da Propriedade Pública. São Paulo: Malheiros, 2005, pg. 66. 262 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II mas igualmente ambiental. O agravamento das ações prejudiciais ao meio ambiente tem suscitado um movimento jurídico pelo aumento da efetividade do artigo 225 da constituição, especificamente no que se refere ao uso racional da propriedade. Nesse sentido, o significado do dever de funcionalização se consolida no sentido do artigo 186 da carta, segundo o qual a função social é cumprida quando a propriedade implica a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente, além da observância dos demais requisitos. Considerando essa nova realidade, o objeto deste artigo é analisar o instituto da concessão de uso especial para fins de moradia, especificamente no que se refere à ocupação de áreas inadequadas à habitação em virtude de sua importância ambiental. Observamos a aplicação do princípio da função socioambiental em relação à propriedade pública, especificamente no que tange a um dos instrumentos de regularização fundiária. 2. REGRAMENTO GERAL DA CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA A concessão de uso especial para fins de moradia é, em termos gerais, uma modalidade de contrato administrativo através do qual a utilização de um espaço público é cedida a particular para finalidade habitacional, uma vez atendidos alguns requisitos expressos em lei. Segundo Araújo7, a concessão é a modalidade tradicional e mais estável de instrumentalização jurídica do uso privativo de bens públicos por particulares e até mesmo por outras entidades. Verifica-se, portanto, uma utilização que tem finalidade precipuamente privada, daí a exclusividade do direito de uso conferido via contrato, ainda que, indiretamente, deva o instrumento propiciar o atendimento da função social da propriedade. Por essa razão: Concede-se o privilégio de uso a um particular, seja porque o Estado não se opõe a tal utilização e quer dar destinação produtiva a esse bem, ou porque através dessa concessão quer o Estado fomentar certas atividades particulares (turismo, p. ex.), ou ainda, seja com fundamento em objetivos sociais, sem exclusão de outras hipóteses. 8 7 8 ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2007, pg. 701. ARAÚJO, Edmir Netto de. Op. cit. 263 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II O instrumento representa a possibilidade de regularizar ocupações irregulares em imóveis públicos, favorecendo a concretização do direito à moradia, ao mesmo tempo em que destina à função social a propriedade urbana titularizada pelo estado. O fundamento constitucional da concessão encontra-se no artigo 183, § 3º da carta, que prevê a possibilidade de concessão de uso de imóveis públicos a homem ou mulher, independentemente do estado civil. Na medida em que a própria constituição, no artigo 183, §3º, impossibilita a aquisição por usucapião do domínio dos imóveis estatais, a concessão de uso representa uma alternativa a esse instrumento nos casos de posse irregular e mansa prolongada no tempo, facilitando a regularização quando o bem público for vocacionado à moradia. Inicialmente previsto nos artigos 15 a 20 do projeto de lei do estatuto da cidade, o regramento infraconstitucional do instituto foi vetado (veto nº 730) pelo presidente da república, em virtude da institucionalização do direito público subjetivo do ocupante à concessão especial. A fim de amenizar os efeitos que a previsão nesses termos pudesse ocasionar ao domínio do estado, findou-se por editar a medida provisória nº 2.220 de 2001, a qual estabelece uma limitação temporal para a configuração do direito subjetivo do ocupante: todos os requisitos para a concessão devem ser observados até o dia 30 de junho de 2001 para que o direito à concessão se configure. O regramento oferecido pela medida provisória nº 2.220/2001 perdeu sua precariedade normativa por força do artigo 22-A da lei federal nº 11.481 de 2007, que ampara os requisitos da medida provisória, agora com status legal. Para que a concessão especial de uso para fins de moradia seja possível, é necessário o atendimento dos seguintes requisitos: posse mansa de imóvel público com ânimo de domínio por um período mínimo de 5 anos, tendo o imóvel até 250m²; utilização do bem para fins de moradia do ocupante e de sua família; não ser o possuidor proprietário ou concessionário de qualquer outro imóvel urbano ou rural. É imprescindível que o prazo prescricional da posse esteja cumprido até 30 de junho de 2001, sendo irrelevante, para fins de titularidade do direito, o sexo ou estado civil do ocupante. A ocupação pode se dar de forma coletiva em imóveis com área superior a 250 m² quando seja impossível precisar a área ocupada por cada família, sendo o direito concedido de forma comum, nos mesmos termos do usucapião coletivo. 264 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II A função do instrumento é, portanto, a de regularizar uma situação de fato consolidada, a partir do reconhecimento da legitimidade da pretensão do ocupante, dada a inércia do poder público em reclamar a posse do bem ocupado. Trata-se, pois, de uma forma de conferir segurança jurídica9 à posse precária, quando a utilização do bem atende um direito fundamental social. Nesse sentido, podemos perceber que a eficácia do inciso XXIII do artigo 5º da Constituição irradia para a propriedade pública, que, assim como a particular, deve estar condicionada pelo dever de funcionalização. É possível que o imóvel ocupado irregularmente esteja localizado em áreas ambientalmente frágeis ou de proteção legal. Nesse caso, mesmo que o prazo prescricional e as demais condições sejam observadas, surge um nítido conflito de pretensões fundamentais. De um lado, o direito à moradia do ocupante e, de outro, a necessidade de assegurar o equilíbrio ambiental, na qualidade de direito difuso e condição de sustentabilidade. O regramento do artigo 5º da medida provisória, nessa hipótese, prevê a faculdade do poder público de assegurar o exercício do direito em outro local, sempre que a ocupação ocorrer em imóvel de uso comum do povo, destinado a projeto de urbanização, de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais, etc. Sustenta-se usualmente que a utilização do vocábulo “faculdade” indica apenas uma autorização, isto é, o estado decide se realiza ou não a transferência dos ocupantes, impedindo sua permanência nas áreas de interesse ambiental. Entretanto, é importante ressaltar que a hierarquia constitucional da proteção ao meio ambiente impede uma interpretação nesse sentido. A partir de uma idéia geral de razoabilidade, há, em relação ao estado, o dever de, ao mesmo tempo, assegurar o direito à moradia através da concessão e promover a preservação dos ecossistemas, evitando a ocupação de áreas ambientalmente frágeis. Nesse sentido, a faculdade é compreendida como um poder-dever. Para Silva 10: Quando uma medida estatal implica intervenção no domínio de proteção de um direito fundamental, necessariamente essa medida deve ter como objetivo 9 HERMANY, Ricardo; BONELLA, Danielle Soncini. A Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia como Meio de Regularizar Posses de Terras Públicas frente ao Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. In: Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, pg. 4.133. 10 SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: Conteúdo Essencial, Restrições e Eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, pg. 169. 265 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II um fim constitucionalmente legítimo, que, em geral, é a realização de outro direito fundamental. Aplicar a regra da proporcionalidade, nesses casos, significa iniciar com uma primeira indagação: A medida adotada é adequada para fomentar a realização do objetivo perseguido? Assim, é importante ressaltar a existência de um dever de proteção do estado em relação às áreas de proteção ambiental, ao mesmo tempo em que é legítima a pretensão fundamental à moradia, amparada no artigo 6º da constituição. Nesse caso, a restrição conferida ao direito à concessão de uso para fins habitacionais mostra-se não só adequada como necessária ao atendimento de outro direito fundamental, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esse é o condicionamento que a função qualificada como socioambiental confere à propriedade, tanto privada quanto pública. Por essa razão: É de observar-se que não só a iniciativa dos particulares como os empreendimentos do Poder Público devem respeitar as normas de controle da poluição e de preservação dos recursos naturais, sujeitando-se às respectivas limitações administrativas das entidades estatais competentes. 11 Há, conforme o argumento desenvolvido, a impossibilidade de que se conceda o direito à concessão especial em áreas protegidas por força de seu valor ambiental, de modo que se faz necessário o esclarecimento sobre a definição dessas áreas, a fim de conformar a aplicação do instituto da concessão, ao mesmo tempo em que a ideia geral de função social ganha um corpo mais denso de sentido. 3. A DEFINIÇÃO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL A questão ambiental, especificamente no que se refere à disciplina da proteção dos ecossistemas, foi prevista pela lei federal nº 9.985/2000, que institui o sistema nacional de unidades de conservação da natureza. A partir da leitura dessa norma, tem-se por preservação o conjunto de métodos, procedimentos e políticas que visem a proteção a longo prazo das espécies, habitats e ecossistemas, além da manutenção dos processos ecológicos, prevenindo a simplificação dos sistemas naturais (art. 1º, V). 11 MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005, pg. 560. 266 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II A unidade de preservação ambiental pode ser compreendida como extensão territorial qualificada, em virtude de suas particularidades naturais (relacionada à fauna, à flora, aos recursos minerais, etc.), que merece uma atenção especial do direito dada sua importância para o equilíbrio do planeta de uma forma geral. Igualmente valorosa por sua contribuição ao bem-estar humano, a área de preservação constitui um espaço salvo da ação irrestrita do homem, no sentido de impedir o esgotamento dos recursos. É instituída pelo Estado, de modo que somente a análise técnica das condições ambientais do local pode determinar a relevância ambiental da propriedade. As áreas de preservação podem ser de várias espécies, conforme o grau de relevância ambiental da localidade e as limitações administrativas impostas ao seu uso. Um dos exemplos de unidades de conservação são as áreas de preservação permanente, já delimitadas pelo artigo 2º da lei federal nº 4.771 de 1965, que admite a criação, por lei especial, de APPs com características diversas daquelas enumeradas no dispositivo. Como visto, a definição das áreas de relevância ambiental é bastante fluida, a fim de permitir a atuação da administração no sentido de ampliar as unidades de conservação quando haja interesse ecológico. Especificamente sobre as áreas de preservação permanente – modalidade mais rigorosa do instituto – tem-se que: As Áreas de Preservação Permanente - APP - são áreas nas quais, por imposição da lei, a vegetação deve ser mantida intacta, tendo em vista garantir a preservação dos recursos hídricos, da estabilidade geológica e da biodiversidade, bem como o bem-estar das populações humanas. O regime de proteção das APP é bastante rígido: a regra é a intocabilidade, admitida excepcionalmente a supressão da vegetação apenas nos casos de utilidade pública ou interesse social legalmente previstos.12 Haveria, assim, uma gradação de limitações referentes ao uso de áreas de interesse ambiental que impediria, ainda que para fins de moradia, a utilização de imóveis onde, por força da lei, há interesse de preservação – sempre definido administrativamente, a partir da averiguação das condições particulares do local. Nesse contexto, podemos afirmar que a análise do caso concreto pode indicar se a ocupação irregular se deu em área que, por suas características, é impassível de ser utilizada, 12 ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães. As Áreas de Preservação Permanente e a Questão Urbana. Brasília: Câmara dos Deputados, 2002. Disponível em: HTTP://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/doutrinas/arborizacao/as_areas_de_preservacao_per manente_questao_urbana.pdf. Último acesso em: 10/08/2009. 267 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II havendo, nesse caso, um dever de proteção do estado que se manifesta na obrigação de transferir os ocupantes do local. No contexto da cidade, têm-se as áreas ribeirinhas como espaços potencialmente propícios à ocupação irregular. Para Araújo: As cidades, não raro, nascem e crescem a partir de rios, por motivos óbvios, quais sejam, além de funcionar como canal de comunicação, os rios dão suporte a serviços essenciais, que incluem o abastecimento de água potável e a eliminação dos efluentes sanitários e industriais. Ao longo desses cursos d´água, em tese, deveriam ser observadas todas as normas que regulam as APP. Na prática, todavia, essas e outras APP têm sido simplesmente ignoradas na maioria de nossos núcleos urbanos, realidade que se associa a graves prejuízos ambientais, como o assoreamento dos corpos d´água, e a eventos que acarretam sérios riscos para as populações humanas, como as enchentes e os deslizamentos de encostas. 13 É necessário desenvolver argumentos favoráveis à funcionalização da propriedade em benefício do bem-estar social, sem que isso implique uma ofensa à sustentabilidade ambiental, a qual pode ter efeitos catastróficos a médio e longo prazo. Verificamos, a partir da leitura da lei federal nº 9.985 de 2000, um papel relevante atribuído à Administração Pública no sentido de determinar os limites das unidades de conservação, em defesa do interesse público. É perfeitamente lógico pensar, portanto, que o Estado tem o dever – e não apenas a faculdade – de transferir os ocupantes dos imóveis localizados em áreas urbanas de grande interesse ambiental, como as áreas ribeirinhas, por exemplo, na qualidade de ambientes propícios a invasões com finalidades habitacionais. Sem retirar a eficácia do direito fundamental à moradia, garante-se o direito à concessão especial de uso, através da alteração do imóvel sobre o qual incidirá a pretensão do ocupante, a fim de atender ao princípio da função socioambiental da propriedade. 4. DEVER DE PROTEÇÃO DO ESTADO E DIREITO À MORADIA: ALTERNATIVAS O direito à moradia apresenta-se como uma das espécies de direitos fundamentais sociais previstos no artigo 6º da constituição. Sua relevância normativa é 13 ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães de. Op. cit. 268 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II orientada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que a habitação apresenta-se como condição material de uma existência segura e adequada. Para Organização das Nações Unidas, a moradia adequada corresponde ao direito de viver com segurança, paz e dignidade, a partir da reunião dos seguintes requisitos: segurança jurídica da posse, disponibilidade de serviços e infraestrutura, custo acessível da moradia, habitabilidade, acessabilidade, localização e adequação cultural.14 O âmbito de vivência dos sujeitos deve, portanto, atender a um padrão de qualidade definido na carta constitucional e nos tratados internacionais sobre direitos humanos, notadamente o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), aprovado em 1966. A partir dessa perspectiva, criou o Estatuto da Cidade instrumentos que facilitam os processos de regularização fundiária, a fim de garantir o direito à moradia a ocupantes de imóveis particulares e públicos em situação irregular. Ao lado da usucapião especial (art. 183, caput, da constituição) criou-se a concessão de uso especial para fins de moradia, aplicável ao domínio público, tendo em vista a impossibilidade de aquisição de bens estatais por usucapião. A garantia do direito à moradia deve, entretanto, atender a uma série de pressupostos qualitativos relacionados ao local da habitação, de modo que ocupações de áreas de interesse ou fragilidade ambiental não são suscetíveis de concretizar adequadamente o direito fundamental em referência. Opta-se por uma interpretação sistêmica da constituição, no sentido de compatibilizar o previsto no artigo 6º com o artigo 225, impedindo-se a concessão de uso em áreas de preservação. Há, portanto, um dever de proteção do estado em relação ao meio ambiente que impede a regularização de ocupações em áreas ribeirinhas, por exemplo, dada a deficiência na habitabilidade do local ocupado. Nessas situações, compreende-se a faculdade prevista no artigo 5º da medida provisória nº 2.220/2001 como um dever – relacionado à obrigação de preservar o equilíbrio do meio ambiente – e não como uma simples possibilidade. Para Saule Jr. e Cardoso: 14 SAULE JÚNIOR, Nelson; CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil: Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU 29 de maio a 12 de junho de 2004 – Violações, Práticas positivas e Recomendações ao Governo Brasileiro. São Paulo: Instituto Pólis, 2005, pg. 22. 269 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II O Estatuto da Cidade integra os direitos humanos em seus aspectos políticos e de cidadania, bem como econômicos, sociais, culturais e ambientais. Assim como o direito à cidade, o Direito à Moradia também deve ser compreendido em seu aspecto econômico, social, cultural e ambiental. 15 Desse modo, conclui-se pela necessidade da Administração Pública encontrar alternativas às ocupações prejudiciais ao meio ambiente: sem ofender o direito subjetivo à concessão, deve o estado deslocar os ocupantes para áreas adequadas à habitação, garantindo-se o direito à moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, sem desmerecer o princípio da função socioambiental da propriedade. 5. CONCLUSÃO Este artigo foi desenvolvido a partir da releitura da propriedade, tendo em vista o princípio da função socioambiental. Verificamos que, muitas vezes, mecanismos constitucionais e legais criados para garantir direitos fundamentais, podem, se aplicados em dissonância à interpretação sistêmica da constituição, implicar em ofensa à preservação do meio ambiente, em claro descumprimento ao artigo 225 da carta. Nesse caso, estudamos a concessão de uso especial, como instrumento de regularização fundiária criado para garantir o direito fundamental à moradia. Considerando a realidade das cidades, constata-se que muitas das ocupações irregulares de imóveis públicos se dão em áreas ambientalmente frágeis (comunidades ribeirinhas) ou em áreas de preservação ambiental (dunas, por ex.), razão pela qual a medida provisória nº 2.220/2001 estabeleceu a faculdade da administração em deslocar os ocupantes para outro local nas hipóteses em que sua permanência implique ofensa o meio ambiente. Nesse caso, tendo em vista o dever de proteção do estado, sustenta-se que o artigo 5º da medida provisória mencionada deve ser interpretado como um poder-dever e não como mera possibilidade, sob pena de se admitir o desrespeito institucional ao equilíbrio ambiental no espaço urbano. O princípio da função socioambiental tem, portanto, a importância de diretriz hermenêutica para aplicação dos instrumentos de intervenção urbanística direcionados à 15 SAULE JR., Nelson; CARDOSO, Patrícia. Op. cit. 270 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II propriedade pública ou particular, a fim de que o seu uso seja condizente com o ideal de sustentabilidade amparado pela carta constitucional. 6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2007. ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães. As Áreas de Preservação Permanente e a Questão Urbana. Brasília: Câmara dos Deputados, 2002. Disponível em: http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/doutrinas/arborizacao/as_areas_de_pr eservacao_permanente_questao_urbana.pdf. DIMOULIS, Dimitri. Fundamentação Constitucional dos Processos Econômicos: Reflexões sobre o papel Econômico do Direito. In: SABADELL, Ana Lucia et ali. Direito Social, Regulação Econômica e Crise do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2006. HERMANY, Ricardo; BONELLA, Danielle Soncini. A Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia como Meio de Regularizar Posses de Terras Públicas frente ao Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. In: Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, pgs. 4.129 - 4.137. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005. ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Função Social da Propriedade Pública. São Paulo: Malheiros, 2005. ROLNIK, Raquel et ali. Estatuto da Cidade: Guia para Implementação pelos Municípios e Cidadãos. Brasília: Instituto Pólis, 2005. 271 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II SAULE JR. Nelson. Interfaces do Direito à Cidade e Direito Urbanístico no Brasil e na Órbita Internacional. In: SAULE JR. Nelson (org.). Direito Urbanístico: Vias Jurídicas das Políticas Urbanas. Porto Alegre: SAFE, 2007. SAULE JÚNIOR, Nelson; CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil: Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU 29 de maio a 12 de junho de 2004 – Violações, Práticas positivas e Recomendações ao Governo Brasileiro. São Paulo: Instituto Pólis, 2005. SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros: 2006. SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: Conteúdo Essencial, Restrições e Eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009. 272 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II PROPRIEDADE INTELECTUAL E AMBIENTALISMO CULTURAL Afonso de Paula Pinheiro Rocha1 SUMÁRIO Introdução. 1. Similaridades entre o direito ambiental e o direito de propriedade intelectual. 2. Um meio ambiente cultural e intelectual. 3. Contraste entre as dinâmicas de utilização dos bens naturais e dos bens intelectuais. 4. Considerações iniciais sobre as aplicações dos princípios ambientais à propriedade intelectual. 4.1. Princípio da Responsabilidade Intergeracional. 4.2. Princípio do Poluidor-Pagador. 5. O ambientalismo cultural na perspectiva do direito comparado. Considerações finais. Referências. RESUMO O artigo tem por objetivo traçar um paralelo entre o Direito Ambiental e o direito da Propriedade Intelectual. São apresentadas as similitudes de formação e tratamento constitucional entre as duas searas jurídicas, com ênfase na estreita relação entre o Meio Ambiente e a Cultura. Propõe-se a idéia de existência de um Meio Ambiente Cultural. Apontam-se as possíveis repercussões que uma perspectiva ambiental pode ter sobre a hermenêutica a ser utilizada nas questões envolvendo a propriedade intelectual e sobre a dinâmica dos bens imateriais na sociedade. São apresentadas sugestões de aplicações dos princípios ambientais à propriedade intelectual. Conclui-se que uma visão ambiental pode ser extremamente útil para ressaltar os pontos comuns às diversas doutrinas da Propriedade Intelectual, bem como para indicar soluções mais efetivas para garantir a difusão do conhecimento através de um sistema equilibrado de incentivos e limitações de direitos intelectuais. 1 Advogado da PETROBRAS. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Pósgraduando – MBA em Direito Empresarial pela FGV/Rio. Ex-Bolsista CAPES. 273 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II PALAVRAS CHAVES: Propriedade Intelectual, Ambientalismo Cultural, Domínio Público, Princípios Ambientais. ABSTRACT The article‟s purpose is to show a parallel between Environmental Law and Intellectual Property rights. It presents the similarities in the formation and constitutional treatment in the two fields of law, with emphasis in the close relation between Environment and Culture. It proposes the idea of an existing Cultural Environment. It suggests possible repercussions that an environmental view might have in intellectual property issues and the dynamic of intellectual goods in society. It presents suggestions of possible applications of environmental principles to intellectual property. It concludes that an environmental view might be extremely useful to highlight the commonalities in the several doctrines of intellectual property, as well as to point effective solutions to assure the dissemination of knowledge through a balanced system of incentives and limitations on intellectual rights. KEYWORDS: Intellectual Property, Cultural Environmentalism, Public Domain, Environmental Principles. INTRODUÇÃO O trabalho busca identificar os paralelos existentes entre o Direito da Propriedade Intelectual e o Direito Ambiental, de forma a propor a existência de um meio ambiente intelectual ou cultural e como instrumentos do direito ambiental podem ser utilizados para aprimorar a tutela jurídica da propriedade intelectual. Inicialmente serão apresentadas algumas similitudes fáticas e epistemológicas entre essas duas searas jurídicas, para posteriormente sugerir formas de aplicação de alguns princípios do direito ambiental para o campo da propriedade intelectual. Por fim, demonstra-se que a idéia de um ambientalismo cultural já vem sendo debatida no direito comparado e que o prisma ambiental sobre a propriedade intelectual pode ser útil tanto para a hermenêutica destinada aos bens intelectuais como para a definição de políticas públicas. 274 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 1 SIMILARIDADES ENTRE O DIREITO AMBIENTAL E O DIREITO DE PROPRIEDADE INTELECTUAL A idéia de um direito ambiental ou direito do meio ambiente, está relacionado com a progressiva compreensão da existência de um bem comum abrangente – o meio ambiente – que funcionaria como aglutinador do discurso de diversos movimentos e interesses sociais correlatos – grupos focados na preservação de animais, plantas, biodiversidade, preservação dos oceanos, preservação de parques nacionais, etc. Para James Boyle: ―A invenção do conceito de ‗ambiente‘ agrupou um conjunto de questões de outra forma desconexas, ofereceu uma nova visão em face da cegueira implícita nas concepções passadas e permitiu encontrar um interesse comum nunca antes vislumbrado.‖ 2 Logo, o direito ambiental surge da convergência de diversas doutrinas específicas relacionadas a bens ambientais específicos. No direito brasileiro, é preciso fazer destaque à Constituição Federal de 1988 que passou a referenciar o meio ambiente de forma expressa, no art. 225 e seguintes. Anteriormente, o direito ambiental era referenciado apenas em legislações esparsas e de forma não específica.3 Assim, nas palavras de Paulo Affonso Machado: O Direito Ambiental é um Direito sistematizador, que faz a articulação da legislação, da doutrina e da jurisprudência concernentes aos elementos que integram o ambiente. Procura evitar o isolamento dos temas ambientais e sua abordagem antagônica. Não se trata mais de construir um Direito das águas, um Direito da atmosfera, um Direito do solo, um Direito florestal, um Direito da fauna ou um Direito da biodiversidade. O Direito Ambiental não ignora que cada matéria tem de específico, mas busca interligar estes temas com a argamassa da identidade dos instrumentos jurídicos de prevenção e de reparação, de informação e de monitoramento e de participação.4 2 BOYLE, James. The Second Enclosure Movement and the Construction of the Public Domain. In: Duke Conference on the Public Domain. Law and Contemporary Problems. Volume 66, p. 33-74. Winter/Spring 2003. p. 52. No original: ―The invention of the concept of ―the environment‖ pulls together a string of otherwise disconnected issues, offers analytical insight into the blindness implicit in prior ways of thinking, and leads to perception of common interest where none was seen before.‖ 3 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 57. 4 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 16ª. ed. Malheiros: São Paulo. 2008. p. 54-55. 275 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Assim, a ausência de uma codificação única não retira do direito ambiental a sua identidade, sendo facilmente perceptível, atualmente, que os diversos diplomas legislativos que tratam de bens ambientais possuem um quantum comum, uma razão de ser pautada por princípios comuns – a proteção do ambiente. O direito da propriedade intelectual, por sua vez, também apresenta uma formação similar, podendo ser classificada como uma expressão genérica, correspondendo ao direito de apropriação sobre criações, obras e produções do intelecto, talento e engenho humanos. Funciona como um conceito “guarda-chuva”, que engloba uma série de diferentes doutrinas, todas, porém, relacionadas com atividades intelectuais ou com a implementação de idéias, dados e conhecimento em atividades práticas. Carol Proner ressalta que a idéia de “propriedade intelectual” deve ser entendida como categoria, respondendo aos estímulos econômicos e políticos de cada período histórico, envolvendo: direitos autorais, desenhos e processos industriais, marcas, patentes de invenção, denominações de origem, contratos de transferência de tecnologia, saberes tradicionais - folclore, costumes populares, artes reproduzidas em pintura e escultura -, enfim, temáticas diversas e abrangentes.5 Denis Borges Barbosa, da mesma forma, compreende-se a noção de Propriedade Intelectual: ―(...) como a de um capítulo do Direito, altissimamente internacionalizado, compreendendo o campo da Propriedade Industrial, dos direitos autorais e outros direitos sobre bens imateriais de vários gêneros‖.6 De forma ainda mais abrangente, Bettina Augusta Amorim Bulzico entende que a Propriedade Intelectual ―(...) envolve toda atividade humana de caráter intelectual, que seja passível de agregar valores e que necessite de proteção jurídica‖.7 A expressão consagrou-se a partir da “Convenção de Estocolmo”, de 14 de julho de 1967, com a constituição da Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI (World Intellectual Property Organization – WIPO), que, posteriormente, veio a 5 PRONER, Carol. Propriedade Intelectual: Para uma outra ordem jurídica possível. São Paulo: Cortez Editora, 2007. p. 3. 6 BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003. vol. 1. p. 5. 7 BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Evolução da Regulamentação Internacional da Propriedade Intelectual e os Novos Rumos Para Harmonizar a Legislação. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Unibrasil. Vol 1. 2007. Disponível em: <http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br>. Acesso em: 25.07.08. 276 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II se tornar uma agência especializada dentro do sistema das Nações Unidas, em 17 de dezembro de 1974. No Brasil, o a convenção de constituição da OMPI foi promulgada pelo Decreto nº 75.541, de 31 de março de 1975.8 Maristela Basso destaca a importância da OMPI para uma compreensão unificada: “(...) a OMPI unifica os conceitos, abolindo a tradicional divisão existente no modelo tradicional ou histórico, que separava os direitos dos autores e dos inventores em duas categorias: direito de autor e conexos e propriedade industrial‖.9 Com efeito, vários doutrinadores apontam elementos comuns às diversas doutrinas identificadas com a propriedade intelectual, o que permitiria a sua classificação e estudo conjunto. Para Robert Sherwood existem oito elementos comuns aos diversos regimes de proteção: o conceito de um direito exclusivo; o mecanismo para a criação do direito exclusivo; a duração do direito exclusivo; o interesse público correlato ao direito exclusivo; a negociabilidade desse direito; os acordos informais e entendimentos entre as nações; a vigência do direito exclusivo; e os arranjos de transação para efeitos de mercado.10 Luis Otávio Pimentel, por sua vez, também vislumbra um núcleo comum a tais direitos: ―(...) entre os elementos comuns, ou nucleares, de toda a propriedade intelectual a imaterialidade do seu objeto (incorpóreo) e o tempo limitado da sua proteção (...)‖.11 Contudo, para que a simetria com o direito ambiental se mantenha, é necessário identificar qual o objeto comum ao qual se destina todo o conjunto de tutelas e mecanismos jurídicos. 8 O art. 2º da Convenção indica de forma exemplificativa e ampliativa uma série de direitos que estariam englobados pela noção de propriedade intelectual. No texto do Decreto 75.541/75: “(...)Para os fins da presente Convenção, entende-se por: (...) viii “propriedade intelectual”, os direitos relativos: às obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas executantes, aos fonogramas e às emissões de radiofusão; às invenções em todos os domínios da atividade humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial, científico, literário e artístico”. 9 BASSO, Maristela. A proteção da propriedade intelectual e o direito internacional atual. Revista de Informação Legislativa. Brasília a. 41. n. 162. p. 287-310. abr./jun. 2004. p. 288. 10 SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo: EdUsp. 1992. p. 37. 11 PIMENTEL, Luís Otávio. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento. In: Propriedade Intelectual – Estudos em Homenagem à Professora Maristela Basso. Curitiba: Juruá Editora. 2005. p 41-60. p. 46. 277 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II No Direito Ambiental, não obstante os objetos de proteção nos casos concretos sejam bens ambientais específicos – corpos d‟água; florestas, terrenos – o objetivo do sistema, enquanto conjunto, é a tutela de um equilíbrio ambiental. O objetivo maior do sistema é a tutela de um equilíbrio dinâmico nas interações da humanidade com os elementos bióticos e abióticos de forma sustentável. Para os propósitos deste trabalho, entenda-se essa sustentabilidade ambiental como a durabilidade dos recursos frente às necessidades dos ecossistemas naturais e às demandas dos ecossistemas sociais com destaque para os processos de produção e consumo.12 Para a Propriedade Intelectual, os objetos específicos de proteção são diversos, relacionando-se a cada doutrina especifica e englobando criações intelectuais, expressões, informações, conhecimentos e tecnologias. O objetivo geral do sistema, entretanto, não é tão claro, possivelmente porque o foco da tutela jurídica é mais vislumbrado como o direito individual, eclipsando o interesse público subjacente. Os direitos de propriedade intelectual relacionam-se diretamente com o interesse público, pois tem sua existência justificada pelo interesse público simultâneo de: a) reconhecer os autores e inventores pelas suas criações; e de b) estimular que os mesmos produzam novos produtos e informações para a sociedade. Objetiva-se, portanto, um ciclo contínuo de inovação que trará conhecimentos e tecnologias que beneficiarão a sociedade e, ainda, o desenvolvimento econômico.13 Logo, tal qual no direito ambiental, deve existir uma dinâmica própria relacionada à interação dos seres humanos com os conhecimentos, informações e criações produzidas no ecossistema social. A sustentabilidade desse ambiente cultural relacionar-se-á, portanto, com a produção e disseminação de conhecimentos. Eliane Y. Abrão, discorrendo sobre o direito autoral, demonstra a dinâmica dos bens imateirias que pode ser estendida à propriedade intelectual como um todo: O privilégio temporário garantido por lei é, em si mesmo, enunciado e solução: os autores, pessoas comuns e sensíveis frutos do meio social e ambiental que habitam, recebem do meio ambiente histórico, geográfico e cultural os estímulos necessários à sua singular criação. Esta, por outro lado resulta de sua leitura pessoal do universo, decodificada pelos sentidos, razão 12 MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 5ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007. p. 69. SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo: EdUsp. 1992. p. 46. 13 278 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II pela qual goza o autor de privilégio temporário e exclusivo em relação à obra. E como é a coletividade que lhe fornece os ingredientes para a criação e a confecção de seu trabalho intelectual, de modo justo e equânime, manda a lei que ele devolva o uso e o gozo da obra criada a essa mesma coletividade, após a extinção do privilégio temporário.14 Assim, da mesma forma, que existem ciclos naturais dos recursos ambientais, existe um ciclo próprio dos bens imateriais que compõe o horizonte cultural e científico da humanidade. Da mesma maneira que o Direito Ambiental se pretende uma forma de regulação da utilização dos bens ambientais de modo a salvaguardar a continuidade desse ciclo e otimizar o aproveitamento social dos bens naturais, o Direito da Propriedade Intelectual deveria atuar como um mecanismo de salvaguarda dos ciclos do ecossistema social de produção de conhecimentos, bem como otimizar o aproveitamento social dos mesmos. A preocupação na preservação do meio ambiente natural não é meramente ética. Os recursos naturais e as dinâmicas dos ecossistemas naturais são elementos essenciais dos ecossistemas sociais, especialmente à economia moderna. David Bollier ressalta essa relevância da natureza: “A natureza proporciona, de forma silenciosa, inúmeros outros benefícios para a economia. A biodiversidade representa uma biblioteca genética que está sendo cada vez mais utilizada para desenvolver novos remédios e para aumentar a produtividade de trigo e milho. Os oceanos do planeta são importantes para a filtragem biológica de água, para desintoxicar poluentes, proporcionar alimentos e encorajar o turismo. Pesticidas naturais proporcionam um valioso serviço os agricultores ao melhorar as colheitas e diminuir custos de produção (um benefício que fica mais aparente quando o sistema ecológico está comprometido). No total, estima-se de forma grosseira que os serviços que a natureza proporciona estão na ordem de US$ 39 trilhões de dólares para a economia – isto num PIB estimado em US$ 35 trilhões”.15 14 ABRÃO, Eliane Y. Conhecimento, Pesquisa, Cultura e os Direitos Autorais. In: ADOLFO, Luis Gonzaga; WACHOWICZ, Marcos (Orgs.). Direito da Propriedade Intelectual – Estudos em Homenagem ao Pe. Bruno Jorge Hammes. Curitiba: Juruá Editora, 2006. p. 165-182. p. 167-168. 15 BOLLIER, David. Silent Theft – The private plunder of our common wealth. New York: Routledge, 2003. p. 65. No original: “Nature quietly provides countless other benefits to the economy. Biodiversity represents a ―genetic library‖ that is increasingly used to develop new medicines and increase de productivity of wheat and corn crops. The world‘s oceans are important in biologically filtering water, detoxifying some pollutants, providing food, and encouraging tourism. Natural pests 279 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Marcos Wachowicz, por sua vez, faz bela comparação entre os bens intelectuais na sociedade atual e a importância dos recursos naturais que foram base da “Revolução Industrial”: O bem intelectual na Sociedade da Informação paulatinamente passa a ser considerado tão valioso quanto, para a Revolução Industrial, foram os recursos das matérias-primas do carvão, do ferro e do óleo. Isto com nítida vantagem e diferença em relação a estes últimos, por se tratar de recursos naturais limitados e não-renováveis, ao passo que o bem intelectual é um recurso indefinidamente renovável. 16 O ecossistema social, tanto nos seus processos produtivos como nos seus processos de consumo, está cada vez mais voltado para os bens intelectuais. Quanto ao aspecto produtivo, Aires Rover destaca que, “(...) para as empresas, a posse do capital físico está se tornando marginal ao processo econômico e até desnecessário e incômodo. Em contraposição, agora a fonte da riqueza é o capital intelectual: conhecimentos estratégicos, marcas, patentes, conceitos, enfim, propriedade intelectual‖.17 Os processos de consumo, por sua vez, tem os próprios bens consumidos estreitamente ligados aos sistemas de propriedade intelectual, especialmente na vertente dos direitos autorais e de copyright: músicas, filmes, shows, jogos eletrônicos, etc. Desta forma, conjugando-se a importância do meio ambiente para a economia – e para a própria sociedade – com a crescente relevância a importância dos bens imateriais, são válidas as indagações: Será que existe uma universalidade tal qual é o meio ambiente para os bens naturais em relação aos bens imateriais? Será que existe algo como um meio ambiente imaterial, meio ambiente intelectual ou cultural? A resposta é afirmativa, existe sim um horizonte cultural comum que congrega todos os conhecimentos e informações da humanidade. Tal qual o ar que é respirado, existe uma pletora de sentidos e significados que são utilizados por todos, sem normalmente qualquer reflexão do grande valor social que possuem: a linguagem, a matemática, os conhecimentos científicos básicos, etc. provide a highly valuable service to farmers in improving crop yields and lowering costs (a benefit that is most apparent when the ecosystem service has broken down). All told, it has been crudely estimated that nature´s service provide some US$ 39 trillion of value to the economy – this in a global GDP estimated at US$ 35 trillion‖. 16 WACHOWICZ, Marcos. Propriedade Intelectual do Software & Revolução da Tecnologia da Informação. Curitiba: Juruá Editora, 2004. p. 96. 17 ROVER, Aires J. O Direito Intelectual e seus Paradoxos. In: ADOLFO, Luis Gonzaga; WACHOWICZ, Marcos (Orgs.). Direito da Propriedade Intelectual – Estudos em Homenagem ao Pe. Bruno Jorge Hammes. Curitiba: Juruá, 2006. p. 33-38. p. 36. 280 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Esse meio ambiente dos bens e recursos imateriais pode ser identificado com a própria cultura humana. Outro aspecto curioso é perceber que também existem importantes similitudes entre o meio ambiente e a cultura. 2 UM MEIO AMBINETE CULTURAL E INTELECTUAL Da mesma forma que o Direito Ambiental vai determinar formas de comportamento social em relação aos recursos naturais, o direito da Propriedade Intelectual é um importante segmento da ordem jurídica que vai determinar como a coletividade vai se relacionar com essa sua “ecologia do conhecimento”, em razão dos recursos imateriais. O equivalente ao meio ambiente natural no plano imaterial seria a cultura. Esta última vista como a integralidade dos conhecimentos, informações e sentidos existentes na sociedade. Para Ana Maria Marchesan a cultura ―(...) é tudo aquilo que é criado pelo homem. É também um conjunto de entes que, embora não sejam fruto da criação humana (ex. as paisagens naturais) são valorados como bens culturais‖.18 Danilo Fontenele Sampaio Cunha, indica que é possível compreender ―(...) a cultura como sendo a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e artística.‖19 Logo, essa concepção abrangente permite reformular a idéia de cultura como todos aqueles elementos imateriais ou o valor imaterial atribuído a coisas materiais que compõe o horizonte comum da humanidade e constitui as interações intersubjetivas humanas e as interações com a realidade natural. Com efeito, a própria relação do homem com o meio ambiente é mediada por informação, conhecimento. As revoluções tecnológicas colocam em evidência que a relação do ser humano com a realidade circundante passa a ser cada vez mais dependente da tecnologia, sendo esta entendida como o conhecimento aplicado. 18 MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito ambiental, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 17. 19 SAMPAIO CUNHA, Danilo Fontenele. Patrimônio Cultural – Proteção Legal e Constitucional. Rio de Janeiro: Letra Legal Editora, 2004. p. 25. 281 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Nessa perspectiva, justifica-se a interpretação ampliativa proposta por José Afonso da Silva para o conceito de meio ambiente que deve ser “(...) globalizante, abrangente de toda a Natureza original e artificial, bem como os bens culturais correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais, o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico‖.20 Logo, não seria de todo absurdo, defender a existência de um meio ambiente cultural, no qual os recursos naturais seriam as idéias, conhecimentos e tecnologias do horizonte cultural comum da humanidade, especialmente quando a Constituição Federal de 1998, expressamente consagra, no caput do art. 216, o patrimônio cultural imaterial. Há uma contraposição ao paradigma anterior, onde somente bens físicos e edificações com valor histórico seriam integrantes do patrimônio cultural.21 Além disso, o inc. III do art. 216 da Constituição Federal ressalta que as criações artísticas, científicas e tecnológicas compõem o patrimônio cultural. Logo, devem ser protegidas de acordo com esta natureza, embora a tutela jurídica das mesmas seja a da Propriedade Intelectual no que diz respeito aos interesses individuais dos autores, artistas e inventores. Há ainda algumas similitudes interessantes no tratamento constitucional dispensado tanto ao Patrimônio Cultural22 como ao Meio Ambiente23. Primeiro, ambos são tratados como direitos difusos da coletividade. O meio ambiente chega a ser expressamente designado como bem de uso comum do povo. Logo, ambos passam a ser direitos públicos subjetivos, oponíveis até mesmo contra o estado. Segundo, em ambos 20 SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 20. GANDELMAN, Silvia Regina Dain. Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural Imaterial. In: Anais do Seminário Patrimônio Cultural e Propriedade Intelectual: proteção do conhecimento e das expressões culturais tradicionais. Belém/PA, 13-15 de out. 2004. MOREIRA, Eliane; BELAS, Carla Arouca; BARROS, Benedita; PINHEIRO, Antônio. (Orgs.). p. 211-222. Belém: CESUPA/MPEG. 2005. p. 216. 22 Constituição Federal de 1988: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, (...). § 1º - O Poder Público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação. (...) § 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais. § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei. 23 Constituição Federal de 1988: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (...) § 3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados. 21 282 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II há a expressa previsão de participação da sociedade na proteção. Fica assim caracterizada uma responsabilidade da própria sociedade em relação aos mesmos. Ainda na linha defendida por José Afonso da Silva, seria possível até mesmo enquadrar esse meio ambiente cultural dentro de uma idéia global de meio ambiente. Observe-se que o conceito legal de meio ambiente identificado no art. 3º, inciso I da Lei 6.938/31 aponta para o meio ambiente como ―(...) o conjunto de condições leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.‖(grifado e negritado). A expressão abrangente do final do dispositivo torna possível argumentar que a vida engloba inda um aspecto imaterial ou cultural que não só o biológico, pois as interações do homem com os recursos naturais são, invariavelmente, mediadas pela cultura. Essa perspectiva de um meio ambiente cultural é relevante, pois serve para colocar a ótica na proteção cultural integralmente considerada e não no direito individual como usualmente acontece nos campos da propriedade intelectual. Ao contrário do Direito Ambiental, onde os debates e discussões sempre partem de um paradigma de proteção do interesse coletivo no equilíbrio ambiental, no caso da Propriedade Intelectual a própria forma de raciocínio jurídico está marcada pela perspectiva de um raciocínio privado de direitos individuais. Por exemplo, os debates do direito autoral são vistos como questões de direito civil e os debates da propriedade industrial vistos como questões de direito comercial, em todos os casos dissociados do profundo impacto social que possuem sobre a cultura de determinada sociedade. A própria expressão “propriedade intelectual” coloca-se em contraponto ao a expressão “patrimônio cultural”. As duas palavras que compõe a primeira expressam um aspecto individualista, vez que “propriedade” e “intelectual” evocam a idéia do indivíduo e da criatividade individual. Já as palavras que compõe a segunda expressão evocam uma noção de coletivo – patrimônio e cultura. Colocar em evidência a importância de um espaço cultural comum é necessário para evitar que uma lógica de tutela jurídica individualista venha a ser extremada na atribuição progressiva de direitos individuais em detrimento do direito difuso da coletividade de acesso aos bens culturais. Pertinente destacar a análise de José 283 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Oliveira de Ascensão, que embora se refira aos direitos autorais pode ser expandida para toda a propriedade intelectual: A defesa da cultura faz-se com a liberdade e não com a proibição. A afirmação pareceria desnecessária, mas não é. Quando hoje se vem falar de cultura, freqüentemente é apenas como pretexto para novas imposições a título de direito autoral.[...] Infelizmente, assistimos a uma evolução decepcionante. O hiperliberalismo selvagem em que vivemos manifesta-se, no domínio do direito de autor, pelo que se chamaria a “caça as exceções”. Toda a restrição é perseguida, invocando-se a qualificação do direito de autor como propriedade – quando, mesmo que a qualificação fosse verdadeira, nem por isso a “propriedade” deixaria de estar submetida às exigências da função social. [...] É lamentável que assim se proceda. As restrições ao direito de autor permitem a adaptação constante deste direito às condições de cada época. Agora, não só não se prevêem as restrições adequadas à evolução tecnológica como se impede toda a adaptação futura. O direito de autor tornase rígido, insensível a todo o devir.24 Além disso, outro ponto que a ótica sob um prisma ambiental coloca em evidência é qual a ecologia natural dos bens imateriais, qual o comportamento dos mesmos no âmbito social. 3 CONTRASTE ENTRE AS DINÂMICAS DE UTILIZAÇÃO DOS BENS NATURAIS E DOS BENS INTELECTUAIS Do paralelo traçado ao logo do trabalho verifica-se que um dos objetivos do sistema de propriedade intelectual deve ser a manutenção de um equilíbrio na “ecologia natural” dos bens intelectuais, além de promover um aproveitamento otimizado dos recursos. É a nota característica da imaterialidade que vai diferenciar o tipo de tutela jurídica que deve incidir sobre tais bens imateriais das tutelas jurídicas dispensadas aos bens ambientais. 24 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002. p. 135-137. 284 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Um dos paradigmas para a definição das formas de proteção dos recursos naturais é o problema econômico que se tornou famoso com o artigo The Tragedy of the Commons25, publicado por Garret Hardin, na revista Science, em 1968.26 O problema procura ilustrar como a racionalidade individual importa num incentivo natural para sobre-utilizar recursos naturais mantidos em regime comunal. O exemplo prático utilizado foi o de pastagens comunais e um grupo de criadores de gado. A tragédia que os terrenos vêm a sofrer é a sobre-pastagem. Segundo Hardin, esta decorre da situação aonde os benefícios provenientes de cada cabeça de gado adicional vão na sua totalidade para o proprietário – internalização dos benefícios – ao passo que o ônus que aquele consumo sobre o recurso ambiental – pastagem – é partilhado por todos os utilizadores do terreno – exteriorização dos custos. O resultado lógico dessa dinâmica é a utilização excessiva do pasto comunal, com o conseqüente esgotamento do próprio recurso. Logo, direitos de propriedade, ou direitos de exclusividade sobre a utilização de recursos naturais – no exemplo, propriedade sobre os terrenos de pastagem – é uma forma de prover incentivos para que os criadores de gado procurem manejar de forma eficiente os recursos que possuem, procurando extrair o máximo daquela área de pastagem, até mesmo reduzindo a utilização para permitir sua conservação. Contudo, esta lógica de atribuição de direitos exclusivos necessita ser reformulada quando da aplicação sobre bens intelectuais. Com efeito, os bens intelectuais são o que se pode chamar de “imperfeitamente exclusivos”27, pois é possível excluir terceiros de determinada informação ou conhecimento enquanto estes forem mantidos em segredo. Uma vez comunicados não é mais possível excluir aquele conhecimento ou informação do terceiro. A natureza imaterial ainda permite que o mesmo bem ou recurso – informação – seja utilizada por múltiplos indivíduos sem esgotar o recurso original. Uma mesma música, por exemplo, pode ser cantada por milhares de pessoas simultaneamente sem que a música se esgota, ao passo que a pastagem consumida por uma cabeça de gado não subsiste mais disponível para outros animais. 25 O termo “commons‖ refere-se a qualquer recurso natural que disponha de pouca ou nenhuma regulação, ou seja, são recursos naturais que podem ser livremente utilizados pela comunidade. 26 HARDIN, Garret. The Tragedy of the Commons. Science Magazine. nº 162. p. 1243-1248. 1968. 27 LESSIG, Lawrence. The Future of Ideas – The Fate of the Commons in a Connected World. New York: Vintage Books, 2002. p. 94. 285 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Assim, os bens imateriais são diferentes no que se relaciona aos critérios econômicos de rivalidade e exclusividade dos recursos. Essas diferenças de comportamento econômico implicam que o os equilíbrios do meio ambiente natural e do meio ambiente cultural prestar-se-ão a dinâmicas diferenciadas, demandando lógicas e formas de regulação próprias. Lawrence Lessig explica as implicações da rivalidade na definição de um sistema de controle sobre a utilização de recursos econômicos, naturais ou imateriais 1. Se o recurso é rival, então o sistema de controle é necessário para assegurar que o recurso não será esgotado, o que significa que o sistema deve assegurar que o recurso será tanto produzido como não sobre-utilizado; 2. Se o recurso é não rival, então o sistema de controle é necessário simplesmente criado – um problema de provisionamento. Uma vez criado não há qualquer perigo de que o recurso seja esgotado. Por definição um recurso não rival não pode ser exaurido. [...] O que se segue é crucial: O sistema de controle criado para recursos rivais (terra, carros, computadores) não é necessariamente apropriado para recursos não rivais (idéias, música, expressões). De fato, o mesmo regime para os dois tipos de recursos pode ocasionar um dano real. Portanto, o sistema legal ou a sociedade em geral, deve cuidadosamente delinear o tipo de controle ao tipo de recurso. Um só tipo de regulação não serve para todos os casos.28 Logo, o sistema de propriedade intelectual não deveria ter, a priori, a mesma formatação de um sistema de propriedade para bens materiais ou de recursos naturais. Embora o que se persiga no Direito Ambiental e no direito de Propriedade Intelectual seja o equilíbrio, no primeiro, uma preocupação deve ser a sobre-utilização ou esgotamento dos recursos, no segundo a existência ou não de incentivos suficientes à produção dos bens imateriais. Uma vez produzidos, os bens intelectuais podem ser amplamente difundidos, sem que o detentor originário veja-se diminuído no acesso ao bem. Essa vocação para a difusão dos bens intelectuais torna-se ainda mais patente diante das 28 LESSIG, Lawrence. Idem. p. 94-95. No original: “1. If the resource is rivalrous, then a system of control is needed to assure that the resource is not depleted which means the system must assure the resource is both produced and not overused; 2. If the resource is nonrivalrous, then a system of control is needed simply to assure the resource is created – a provisioning problem, (…). Once it is created, there is no danger that the resource will be depleted. By definition, a nonrivalrous resource cannot be used up. [...] What follows then is critical: The system of control that we erect for rivalrous resources (land, cars, computers) is not necessarily appropriate for nonrivalrous resources (ideas, music, expression). Indeed, the same system for both kinds of resources may do real harm. Thus a legal system, or a society generally, must be careful to tailor the kind of control to the kind of resource. One size won´t fit all.” 286 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II tecnologias digitais e das redes de telecomunicação, cujo exemplo por excelência é a Internet, que se consubstanciam em uma infra-estrutura que reduz os custos de distribuição dos bens intelectuais à quase zero. Contudo, essa facilidade de replicação ocasiona um problema que se relaciona com os incentivos necessários à produção do bem intelectual em primeiro plano. Surge o problema econômico conhecido como free riding, ou seja, a possibilidade de “pegar carona” no esforço alheio. Se os custos com a cópia ou a engenharia reversa de um determinado produto intelectual são muito menores do que os custos com a criação ou desenvolvimento do mesmo, a racionalidade individual sugeriria que todos os agentes aguardassem que outrem criasse o produto. Com todos agindo dessa forma o produto sequer seria criado inicialmente. O sistema de direitos de Propriedade Intelectual é a forma como a sociedade busca resolver esse problema. Através da atribuição de direitos exclusivos, busca-se equacionar tanto a questão dos incentivos para a produção como garantir uma distribuição eficiente. Consoante Lévêque e Ménière, Através da oferta de direitos exclusivos por um período de tempo limitado, a propriedade intelectual trata desses dois problemas de forma seqüencial. Inicialmente, o mecanismo legal de proteção torna o produto exclusivo. Usuários devem pagar pelos serviços oferecidos, através de royalties. Seqüencialmente, quando o trabalho passa para o domínio público, todos os consumidores podem acessá-lo de forma gratuita. Propriedade Intelectual procura encontrar um equilíbrio entre incentivos para a criação e inovação e usos, traduzindo-se em linguagem econômica como uma troca entre eficiências dinâmica e estática.29 Essa sistemática de atribuição de direitos exclusivos é comum às diversas doutrinas da propriedade intelectual, seja no tocante às criações artísticas seja no que se relaciona aos inventos industriais. Logo, traduz-se na própria dinâmica do equilíbrio ecológico desse meio ambiente cultural. 29 LÉVÊQUE, François; MÉNIÈRE, Yann. The Economics of Patents and Copyright. Paris: Berkley Eletronic Press, 2004. p. 5. No original: “By offering an exclusive right for a limited period, intellectual property law addresses these two problems sequentially. Initially, the legal mechanism of protection makes the good excludable. Users are required to pay for the services offered, through royalties. Subsequently when the work passes into the public domain, all consumers can access it free of charge. Intellectual property law thus attempts to strike a balance between the incentive to create and innovate and use translates into economic language as a trade-off between dynamic and static efficiency.” 287 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Os direitos exclusivos são uma forma de permitir o controle da criação de modo que o titular possa cobrar pelo acesso desse recurso intelectual para não só recuperar os custos com a criação ou desenvolvimento, bem como se sentir estimulado à criar em primeiro lugar. Dessa concepção decorre importante constatação, a forma e a extensão do controle é que delimitam o equilíbrio dessa ecologia informacional. Se o controle for muito reduzido, não haverá incentivos suficientes para a produção de novos bens intelectuais e o ambiente intelectual não estará a se expandir em toda a sua potencialidade. Por outro lado, se o controle for excessivo, estar-se-á limitando o acesso a esses bens imateriais desnecessariamente em favor do interesse individual. Além disso, não se está a permitir que outros indivíduos na sociedade elaborem sobre esse conhecimento prévio, produzindo algo novo sobre fundamentos passados. É possível dizer que as diferenças de dinâmica econômica entre os recursos naturais e os recursos intelectuais determinam duas diferentes posturas em relação à tutela dos respectivos meio ambientes. O meio ambiente natural, composto de bens materiais, necessidade de uma lógica de preservação e limitação da utilização de modo a promover a sustentabilidade do mesmo frente à esgotabilidade dos recursos. Já o meio ambiente cultural, composto de bens imateriais, necessita de uma lógica de expansão progressiva, tendo em vista a inesgotabilidade dos recursos. Para tanto, necessita de uma tutela que providencie tão somente os incentivos necessários a um nível de produção ótimo para a posterior difusão dos bens produzidos. O equilíbrio desse meio ambiente peculiar encontra-se na adequada atribuição da exclusividade tanto em escopo, como em duração. Os princípios ambientais, por sua vez, orientam tanto a construção de políticas públicas, como a hermenêutica a ser aplicada às questões ambientais. Válido, portanto, fazer algumas ilações de como transportar os principais princípios do direito ambiental para o campo da Propriedade Intelectual. 288 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 4 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE AS APLICAÇÕES DOS PRINCÍPIOS AMBIENTAIS À PROPRIEDADE INTELECTUAL Os princípios ambientais têm grande importância para se obter a efetividade do direito subjetivo a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. São diversos os princípios ambientais de índole constitucional: a) o princípio do acesso eqüitativo aos recursos naturais; b) o princípio do usuário-pagador; c) o princípio do poluidor-pagador; d) o princípio da precaução; e) o princípio da prevenção; f) o princípio da reparação; g) o princípio da informação; h) o princípio da participação.30 Contudo, para os propósitos deste estudo, destacamos alguns princípios nos quais é possível fazer paralelos e suscitar questões cuja análise pode se mostrar relevante para a compreensão da propriedade intelectual. 4.1 Princípio da Responsabilidade Intergeracional O princípio da responsabilidade intergeracional decorre da previsão constitucional, no final do caput do art. 225, da necessária preservação do meio ambiente para as gerações futuras. Tal princípio coloca em evidência que a tessitura social não é pontual, mas sim um contínuo através da história, ligando as mais diversas gerações. Nas palavras de Edmund Burke: Sociedade é realmente um contrato. (...) É uma parceria em toda a ciência; uma parceria em todas as artes; uma parceria em toda virtude e em toda a perfeição. Como os objetivos dessa parceria não podem ser obtidos em várias gerações, fica claro que essa parceria não é somente entre aqueles que estão vivos, mas entre aqueles que estão vivos, aqueles que estão mortos e aqueles que estão por nascer.31 O Direito Ambiental, portanto, objetiva salvaguardar as condições ambientais para o futuro. Do contrário, o uso desregrado atual irá comprometer a 30 DELGADO, José Augusto. Aspectos constitucionais do direito ambiental. BDJur, Brasília, DF. 19 dez. 2007. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/16087>. 31 BURKE, Edmund. Reflections on The Revolution in France. 1790. Disponível em: <http://socserv2.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/burke/revfrance.pdf>. Acesso em 08/08/08. No original: ―Society is indeed a contract. (…) It is a partnership in all science; a partnership in all art; a partnership in every virtue and in all perfection. As the ends of such a partnership cannot be obtained in many generations, it becomes a partnership not only between those who are living, but between those who are living, those who are dead, and those who are to be born.” 289 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II quantidade e qualidade de recursos ambientais necessários para que as gerações futuras possam exercer, no seu momento próprio, o direito a uma qualidade sadia de vida.32 Para José Rubens Leite, portanto: (...) a defesa do meio ambiente está relacionada a um interesse intergeracional e com necessidade de um desenvolvimento sustentável, destinado a preservar os recursos naturais para gerações futuras, fazendo com que a proteção antropocêntrica do passado perca fôlego, pois está em jogo não apenas o interesse da geração atual. Assim sendo, este novo paradigma de proteção ambiental com vistas às gerações futuras, pressiona um condicionamento humano, político e coletivo mais consciencioso com relação às necessidades ambientais.33 O tratamento constitucional da cultura, por sua vez, também aponta para a preservação da história e memória cultural do povo. Com efeito, existe toda uma gama de instrumentos jurídicos para a proteção do Patrimônio Cultural. Contudo, este é normalmente vislumbrado como tão somente os bens materiais e imateriais de valor histórico ou historiográfico, quando os incisos do art. 216 claramente indicam que os elementos desse Patrimônio transcendem os bens de valor meramente historiográfico. Particularmente no tocante aos bens do inciso III, as criações artísticas, científicas e tecnológicas, o princípio da responsabilidade intergeracional no campo da Propriedade Intelectual traduzir-se-ia em um imperativo de que, para as gerações futuras, não seja repassado um horizonte cultural e intelectual mais reduzido em razão da atribuição excessiva de direitos exclusivos sobre bens intelectuais. De fato, uma expansão desmedida de direitos de Propriedade Intelectual sobre bens intelectuais implica numa redução do horizonte cultural comum que estará à disposição da humanidade para que novas descobertas científicas e novos trabalhos de arte. Esse horizonte cultural comum disponível à todos, pode ser identificado com o domínio público, ou seja, um conjunto de bens ou recursos imateriais disponível à todos para utilização independentemente de autorização ou controle. Trata-se, portanto, de um commons cultural. 32 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 171. 33 LEITE, José Rubens. Dano Ambiental: do individual ao coletivo e extrapatrimonial. RT. São Paulo, 2003. p.74. 290 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Esse tipo de commons é normalmente negligenciado ou pouco estudado, pois o foco da atenção social usualmente reside com a novidade, não com a ciência ou conhecimentos básicos subjacentes. Peter Barnes assim se posiciona sobre este commons cultural: Por este eu me refiro aos presentes da linguagem, arte e ciência que herdamos, mais as contribuições que fazemos enquanto vivemos. Cultura é um trabalho conjunto – uma co-produção – de indivíduos e sociedade. As sinfonias de Morzart, tal quais as canções de Lennon e McCartney, são trabalhos de gênio. Mas elas surgem da cultura na qual tais gênios vivem. A instrumentação, o sistema de partituras, as formas musicais prevalentes são a massa da qual os compositores assam os seus bolos. Também com as idéias. Todos os pensadores e escritoras evocam histórias e descobertas que foram desenvolvidas por incontáveis homens e mulheres antes deles. Parafraseando Issac Newton, cada geração vê um pouco mais longe porque está nos ombros de suas predecessoras. Desta forma, todos os novos trabalhos absorvem do coletivo e o enriquecem. Para manter a arte e a ciência florescendo, nos devemos garantir que o commons cultural seja cuidado. [...] Hoje em dia, infelizmente, este commons cultural, tal qual o commons da natureza e comunidade está sendo enclausurado por corporações privadas. O perigo é que estas corporações venham a esgotar o solo onde a cultura cresce. O remédio é revigorar o commons cultural.34 A idéia de um meio ambiente cultural é importante para evidenciar a importância dessa cultural básica na qual toda a inovação e criatividade são geradas. A aplicação de um princípio de responsabilidade intergeracional à Propriedade Intelectual, por sua vez, implica na inserção de um componente ético na definição do que pode ou não ser apropriado, de que forma e por quanto tempo, para que esse commons cultural que é passado através das gerações não seja 34 BARNES, Peter. Capitalism 3.0. San Francisco: Berret-Koehler Publishers, Inc. 2006. p. 117. No original: “By this I mean the gifts of language, art, and science we inherit, plus the contributions we make as we live. Culture is a joint undertaking—a co-production—of individuals and society. The symphonies of Mozart, like the songs of Lennon and McCartney, are works of genius. But they also arise from the culture in which that genius lives. The instrumentation, the notation system, and the prevalent musical forms are the dough from which composers bake their cakes. So too with ideas. All thinkers and writers draw on stories and discoveries that have been developed by countless men and women before them. To paraphrase Isaac Newton, each generation sees a little farther because it stands on the shoulders of its predecessors. In this way, all new work draws from the commons and then enriches it. To keep art and science flourishing, we have to make sure the cultural commons is cared for. […] Today, unfortunately, this cultural commons, like the commons of nature and community, is being enclosed by private corporations. The danger is that corporations will deplete the soil in which culture grows. The remedy is to reinvigorate the cultural commons.” 291 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II progressivamente enclausurado e controlado por uns poucos detentores de ativos intelectuais, sufocando a criatividade futura e o acesso aos conhecimentos básicos para que se possam conduzir novas pesquisas científicas. Essa noção de um meio ambiente cultural que deve ser cuidado possui, portanto, implicação direta para as diversas doutrinas da propriedade intelectual: a necessidade de uma gestão racional dos recursos intelectuais. Se para o Direito Ambiental a utilização racional é aquela que permite a preservação e recuperação natural do ambiente, a utilização racional da Propriedade Intelectual será aquela onde a exclusividade e o controle privado são atribuídos na medida adequada para que haja um máximo de produção social de bens intelectuais e o retorno dos mesmos ao patrimônio comum. Foge aos propósitos deste trabalho delinear todas as possíveis aplicações que a construção desse princípio no campo da Propriedade Intelectual permitiria, contudo, fica patente que diversas questões atualmente debatidas poderiam ser beneficiadas com uma ótica ambiental, por exemplo, a questão dos conhecimentos tradicionais associados ao patrimônio genético. 4.2 Princípio do Poluidor-Pagador Para Marcelo Abelha, (...) o princípio do poluidor-pagador, juntamente com o do desenvolvimento sustentável (utilização racional dos componentes ambientais, que também constituem um direito das futuras gerações) e com a identificação do objeto de proteção do Direito Ambiental (equilíbrio ecológico derivado da interação de seus componentes – bens de uso comum), constituem os mais robustos “pilares” do Direito Ambiental, sobre os quais devem se assentar todas as normas do ordenamento jurídico do ambiente. 35 De fato, o princípio do polidor-pagador e do usuário-pagador além do viés econômico, possuem uma dimensão de ordem repressiva, de índole reparatória e ressarcitória, buscando internalizar ao processo produtivo os custos sociais que são suportados com o desenvolvimento das atividades econômicas. Consoante Paulo Affonso Machado: ―A atividade poluente acaba sendo uma apropriação pelo poluidor 35 RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 190. 292 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II dos direitos de outrem, pois na realidade a emissão poluente representa um confisco do direito de alguém em respirar um ar puro, beber água saudável e viver com tranqüilidade‖.36 Num nível bem básico, o que o princípio prevê é uma reparação tendo em vista o valor do ambiente que é aproveitado ou degradado dentro de um processo produtivo que gera lucros para determinado agente econômico. O pagamento financeiro é apenas a forma residual de reparação, pois o objetivo ideal do Direito Ambiental é a manutenção, recuperação ou reparação do próprio bem ambiental. No campo da Propriedade Intelectual é possível verificar uma dinâmica com algumas possíveis analogias. Com efeito, os titulares de ativos intelectuais relacionamse com o meio ambiente ex ante e ex post à atribuição dos direitos exclusivos. No caso do direito de propriedade industrial, por exemplo, ao solicitar a patente o inventor deve expor a técnica e o conhecimento inerentes à sua invenção, de modo que um técnico no assunto possa repetir o processo (art. 24 da Lei de Propriedade Industrial37). Neste momento, ex ante à proteção patentária, já há um retorno de conhecimento à coletividade. Ao expirar à patente, há um retorno mais significativo à sociedade, pois o conhecimento subjacente àquele invento ou processo passa para o domínio público, o que permite à qualquer indivíduo trabalhar com e elaborar sobre o mesmo. No direito autoral, o final da proteção dos direitos patrimoniais reflete a possibilidade de uma disseminação muito mais fácil e abre-se a possibilidade de elaboração de novos trabalhos sobre os bens intelectuais. Com efeito, um exemplo icônico do problema a qual está sujeito o meio ambiente cultural é a história da Disney Corporation. Lawrence Lessig informa que a maior parte dos grandes sucessos da Disney foram histórias derivadas de trabalhos do domínio público: Em verdade, o catálogo de trabalhos da Disney derivados do trabalho de outros é assombroso quando colocado em conjunto: Snow White (1937), 36 MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 16ª. ed. Malheiros: São Paulo. 2008. p. 273. 37 Lei nº 9.279/96: “Art. 24. O relatório deverá descrever clara e suficientemente o objeto, de modo a possibilitar sua realização por técnico no assunto e indicar, quando for o caso, a melhor forma de execução”. 293 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Fantasia (1940), Pinocchio (1940), Dumbo (1941), Bambi (1942), Song of the South (1946), Cinderella (1950), Alice in Wonderland (1951), Robin Hood (1952), Peter Pan (1953), Lady and the Tramp (1955), Mulan (1998), Sleeping Beauty (1959), 101 Dalmatians (1961), The Sword in the Stone (1963), and The Jungle Book (1967) , Treasure Planet (2003). Em todos esses casos, Disney (ou Disney, Inc.) retirou criatividade da cultura ao seu redor, mixou essa criatividade com seu extraordinário talento e gravou essa mistura na alma dessa cultura.38 Inegável que toda essa criatividade produzida corporativamente é uma importante parte da nossa cultura e valorizada pela comunidade. Com efeito, muitas dessas histórias passaram a se tornar elementos indissociáveis dos sentidos e significados de várias comunidades pelo globo. Contudo, essa criatividade está apenas disponível para consumo, nos termos ditados pelo detentor dos direitos. Qualquer uso não autorizado pode ser reprimido pelo aparato policial e jurisdicional do estado. Assim, é inegável que essa criatividade não retornou efetivamente para commons cultural, não obstante o efetivo valor desses trabalhos esta na apreciação do público. Através de progressivas expansões dos períodos de proteção dos trabalhos expressivos, nenhum dos trabalhos acima listados ingressou no domínio público. Assim, retirou-se um grande valor do commons cultural e ocorreu apenas um retorno parcial, com a elaboração de novos trabalhos, porém, esses novos objetos permanecem no controle de alguns poucos titulares, que efetivamente passam a ditar como a cultura pode ou não ser utilizada. Esse problema da ausência de um efetivo retorno ao commons cultural fica ainda mais cristalizado frente às novas tecnologias digitais que, através de tecnologias e equipamentos de baixo custo, democratizaram a possibilidade dos indivíduos de capturar sons e imagens da cultura ao seu redor e alterá-las para expressar novas mensagens e significados. Contudo, a maioria das imagens, músicas e filmes da nossa cultura são trabalhos protegidos pela Propriedade Intelectual, através da qual, os 38 LESSIG, Lawrence. Free Culture. New York: Penguin Books, 2004. p. 23-24. No original: ―Indeed, the catalog of Disney work drawing upon the work of others is astonishing when set together: Snow White (1937), Fantasia (1940), Pinocchio (1940), Dumbo (1941), Bambi (1942), Song of the South (1946), Cinderella (1950), Alice in Wonderland (1951), Robin Hood (1952), Peter Pan (1953), Lady and the Tramp (1955), Mulan (1998), Sleeping Beauty (1959), 101 Dalmatians (1961), The Sword in the Stone (1963), and The Jungle Book (1967) , Treasure Planet (2003). In all of these cases, Disney (or Disney, Inc.) ripped creativity from the culture around him, mixed that creativity with his own extraordinary talent, and then burned that mix into the soul of his culture‖. 294 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II titulares detêm o controle de como tais bens e a criatividade subjacente aos mesmos será utilizada. Ainda na comparação entre o meio ambiente natural e o meio ambiente intelectual, cumpre definir o que seria poluição que se pretende prevenir ou reparar no Direito Ambiental para a Propriedade Intelectual. A poluição é vista como uma externalidade negativa do processo produtivo, logo o direito cria mecanismos para que esta externalidade seja internalizada, através da imposição de custos, como por exemplo, necessidade de tratamento dos efluentes industriais. O equilíbrio que norma ambiental deve alcançar é a internalização dos custos associados a uma atividade produtiva sem, contudo, se tornar tão excessiva ao ponto de inviabilizar as próprias atividades econômicas necessárias à sociedade. Para os bens intelectuais, o problema é inverso, há uma dificuldade de internalizar os benefícios de determinada criação, uma vez que é da natureza desses bens uma grande assimetria entre os custos de produção e os custos de reprodução. Essa facilidade de reprodução gera, na verdade, externalidades positivas para a sociedade, uma vez que determinado conhecimento ou informação pode ser utilizado pode ser utilizado por terceiros, levando a novas descobertas. Numa simetria interessante, a lógica subjacente à Propriedade Intelectual deve ser a busca de um equilíbrio que permita a internalização dos benefícios oriundos de determinado bem intelectual produzido sem, contudo, reduzir as externalidades positivas ao ponto de anular qualquer benefício à sociedade. Logo, poderíamos entender como “poluição” do ambiente cultural o desequilíbrio causado por utilizações abusivas ou controles excessivos dos titulares de ativos intelectuais, uma vez, que a vocação natural da informação e do conhecimento é a difusão. A idéia de um poluidor-pagador, traduzir-se-ia, para a Propriedade Intelectual, em um princípio pelo qual o deve-se valorizar o commons cultural, bem como devem existir mecanismos jurídicos e institucionais através do qual o conhecimento produzido e usufruído com base nesse manancial informacional coletivo retorne para a sociedade de modo ainda útil e com potencial para permitir novas criações. Um dos pagamentos desse “poluidor” – aquele que se apropria do conhecimento através da ordem jurídica – seria o próprio novo produto cultural quando do seu retorno ao domínio público. 295 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 5. O AMBIENTALISMO CULTURAL NA PERSPECTIVA DO DIREITO COMPARADO Embora as considerações sobre as possíveis formas de instrumentalização e transposição de princípios ambientais à Propriedade Intelectual no direito brasileiro sejam apenas iniciais, demandado uma maior reflexão e estudo doutrinário, essa comparação e utilização do conjunto conceitual e metodológico do ambientalismo para a construção de uma perspectiva unificada dos movimentos sociais relacionados com a informação e o conhecimento já é presente no direito comparado. A idéia específica de um ambientalismo cultural (cultural environmentalism) no campo da propriedade intelectual surgiu na doutrina americana a partir dos trabalhos de James Boyle, professor da universidade de Duke.39 No livro Shamans, Software, and Spleens, Boyle explicita a multiplicidade de campos aparentemente díspares que tem como elemento comum a regulação sobre a informação. A utilização do movimento ambientalista como um paradigma de estudo é interessante para dotar os diversos movimentos em torno da regulação das informações e do conhecimento de uma identidade. Desta forma, fortalecendo o discurso sobre a necessidade de valorizar o commons cultural e informacional que tem cada vez maior importância na sociedade. Nas palavras do próprio Boyle: Eu tenho defendido que, da mesma forma, temos que tornar visíveis as invisíveis contribuições do domínio público, o “eco-sistema de serviços” realizados pelo ignorado, porém vital, reservatório de liberdade na cultura e na ciência. E, da mesma forma que com o ambientalismo, necessitamos não só de um reconhecimento semântico ou um movimento devotado a este fim, mas de um conjunto de ferramentas conceituais e analíticas. 40 39 LESSIG, Lawrence. Foreword. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law and Contemporary Problems. Volume 70, p. 1-4. Spring 2006. p. 1. 40 BOYLE, James. Cultural Environmentalism and Beyond. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law and Contemporary Problems. Volume 70, p. 5-22. Spring 2006. p. 7. No original: “I argued that, in a similar way, we needed to make visible the invisible contributions of the public domain, the “eco-system services” performed by the under-noticed but nevertheless vital reservoir of freedom in culture and science. And, just as with environmentalism, we needed not only a semantic reorganization, or a movement devoted to a goal, but a set of conceptual and analytic tools.” 296 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II O domínio público é o foco de uma grande valorização no trabalho de Boyle, para quem o mesmo sofre problemas similares ao ambiente em seu processo de afirmação social: O ambiente era sub-valorizado por uma concepção estreita e formalista de direitos de propriedade, que ignorava os efeitos da poluição e de outras atividades na ecologia coletiva, não reconhecidos como danos legalmente tuteláveis. Similarmente, existiam áreas da propriedade intelectual onde o domínio público era sub-valorizado por uma ideologia romântica de autoria, que pressupunha que a inovação surgia do éter – o autor não necessitaria de materiais básicos para suas criações.41 Retirar o foco do debate da pessoa do criador de um bem intelectual é uma forma importante para permitir a compreensão da importância do horizonte cultural comum da comunidade para o próprio processo criativo. Valorizar a idéia e o estudo do domínio público é uma forma de destacar a importância de um espaço de liberdade, seja nas artes ou nas ciências: A idéia do “ambiente” literalmente criou o “auto-interesse” ou conjunto de preferência que torna o movimento coeso. O mesmo é verdade aqui. Interesses aparentemente díspares são ligados pela idéia de proteção do domínio público e da importância de equilíbrio entre proteção e liberdade na ecologia cultural e científica.42 Essa ecologia da informação e do conhecimento necessita ser vislumbrada em toda a sua extensão, especialmente para que os diversos problemas existentes nas diversas doutrinas da Propriedade Intelectual possam ser entendidos como decorrência de uma causa comum, o desequilíbrio entre o controle e a liberdade sobre os bens intelectuais. 41 BOYLE, James. Cultural Environmentalism and Beyond. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law and Contemporary Problems. Volume 70, p. 5-22. Spring 2006. p. 7. No original: “The environment was undervalued by a narrow and formalistic conception of property rights that ignored the effects of pollution and other activities on the collective ecology, not counting it as a legally cognizable harm. Similarly, there were areas in intellectual property law where the public domain was undervalued by an ideology of authorial romance, which assumed innovation sprang out of thin air—the great author needs no raw material for his creations.‖ 42 BOYLE, James. Cultural Environmentalism and Beyond. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law and Contemporary Problems. Volume 70, p. 5-22. Spring 2006. p. 17. No original: “The idea of the ―environment‖ literally created the ―self-interest‖ or set of preferences that ties the movement together. The same is true here. Apparently disparate interests are tied together by the ideas of the protection of the public domain and of the importance of a balance between protection and freedom in the cultural and scientific ecology.‖ 297 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II O foco dos debates deve passar a ser o equilíbrio e não simplesmente a idéia de proteção e regulação. A já assentada idéia de um direito fundamental a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, transposta à Propriedade Intelectual em relação a um meio ambiente cultural, pode ser um importante fator para reformular o debate de forma mais lúcida e racional. É necessário, portanto, valorizar tanto o papel do indivíduo e seus interesses como o indispensável papel da coletividade nos processos de produção cultural e científica. Nas palavras de Lawrence Lessig: Tal qual o meio ambiente global, cada vez mais percebemos como escolhas relativamente específicas sobre como a informação será regulada possuem efeitos radicais na saúde e diversidade da ecologia informacional. E da mesma forma que precisamos levar em consideração os efeitos globais de nossa decisão de usar como fonte de energia o carvão, ou a utilização de gasolina nos carros, também devemos levar em consideração os efeitos culturais globais do aumento radical na regulação característica legislação sobre informação. O ponto não é anarquia. Ambientes informacionais, como os ambientes físicos, necessitam de regulação. Ninguém duvida que certa regulação é boa. Mas simplesmente porque alguma é boa, não segue que quanto mais é melhor. Ou mesmo se mais for melhor para alguns propósitos, não é necessariamente o melhor para a difusão do conhecimento ou progresso da cultura.43 CONSIDERAÇÕES FINAIS O artigo procurou demonstras as similitudes de tratamento existente entre o tratamento constitucional do meio ambiente e do patrimônio cultural, destacando que este último é composto não somente dos bens de valor historiográfico. A dicção constitucional expressamente indica que compõe esse patrimônio as criações artísticas, científicas e tecnológicas. A Propriedade Intelectual, por sua vez, disciplina exatamente 43 LESSIG, Lawrence. Foreword. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law and Contemporary Problems. Volume 70, p. 1-4. Spring 2006. p. 4. No original: “For, like the global environment, more now see how relatively specific choices about how information gets regulated have radical effects upon the health and diversity of an information ecology. And Just as we need to account for the global effects of our decision to heat with coal, or drive with oil, so too we need to account for the global cultural effects of the radical increase in regulation that marks information law. The claim is not for anarchy. Information environments, like physical environments, need regulation. None doubt that some regulation is good. But just because some is good, it does not follow that more is better. Or even if more is better for some purposes, it is not necessarily better for the spread of knowledge or the progress of culture” 298 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II os limites de apropriabilidade desses bens, bem como cria incentivos para a produção e regula o retorno dos bens produzidos para o horizonte cultural comum da humanidade. Conclui-se se possível traçar alguns paralelos entre o meio ambiente e um commons cultural da sociedade, contudo, os respectivos bens formadores prestam-se a dinâmicas de produção e consumo diferenciadas em razão da natureza material ou imaterial. Essas diferenças, por sua vez, vão determinar sistemáticas e equilíbrios próprios para o meio ambiente natural e o meio ambiente cultural. A transposição de princípios do direito ambiental para a propriedade intelectual encontra diversas aplicações. Primeiro, por traduzir para a propriedade intelectual a noção de uma responsabilidade intergeracional relativamente à cultura que é repassada às gerações futuras, que deve ser rica, farta e, principalmente, acessível para que possa haver uma evolução e expansão do conhecimento humano. Segundo, a idéia do direito a um meio ambiente equilibrado, onde os ônus impostos pela atividade humana devem ser reparados, evoca a idéia análoga de um ambiente cultural onde o acesso aos bens intelectuais não seja desnecessariamente limitado em favor da apropriação individual do conhecimento, bem como haja um efetivo retorno dessa cultura à coletividade. O artigo ainda demonstra que a idéia de um ambientalismo cultural como forma de unificar a visão dos diversos problemas e questões envolvendo a Propriedade Intelectual em suas diversas doutrinas, já vem sendo construído no direito comparado. A dignidade constitucional do meio ambiente é transportada para a seara intelectual como a dignidade do domínio público e do commons cultural da humanidade. Por fim, conclui-se que as analogias e o estudo das interações do Direito Ambiental, com a Propriedade Intelectual podem apresentar relevantes insights para o aprimoramento do debate, bem como para a construção racional e equilibrada do sistema jurídico de tutela dos bens intelectuais e informacionais. REFERÊNCIAS ABRÃO, Eliane Y. Conhecimento, Pesquisa, Cultura e os Direitos Autorais. In: ADOLFO, Luis Gonzaga; WACHOWICZ, Marcos (Orgs.). Direito da Propriedade Intelectual – Estudos em Homenagem ao Pe. Bruno Jorge Hammes. Curitiba: Juruá Editora, 2006. p. 165-182. 299 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro: Forense, 2002. BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2. ed. 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Curitiba: Juruá Editora, 2004. 302 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL E PROPRIEDADE: possibilidade de uma política fiscal adequada ao programa “Minha casa, minha vida” Denise Lucena Cavalcante1 João Victor Porto Sales2 SUMÁRIO 1. Por uma teoria geral da tributação ambiental. 2. Política Nacional de Habitação. 3. Programa “Minha Casa, Minha Vida”. 4. Aspectos Ambientais do Programa “Minha Casa, Minha Vida”. 5. Conclusão. 6. Referências Bibliográficas. RESUMO O presente artigo tem como meta analisar as possibilidades de uma política fiscal adequada ao programa habitacional do governo federal denominado “Minha Casa, Minha Vida” através de um enfoque tributário-ambiental, buscando aferir as possíveis medidas fiscais voltadas a proteção ambiental. Palavras-chaves: Tributação ambiental. Política habitacional brasileira. ABSTRACT This article intends to examine the possibilities for an appropriate tax policy to the federal government's housing program called "My House, My Life" through a environmental tax approach, in order to the survey possible fiscal measures aimed at environmental protection. Keywords: Environmental taxation. Brazilian housing policy. 1 Professora de Direito Tributário e Financeiro - Graduação e Pós-graduação. Doutora pela PUC/SP. Líder do Grupo de Pesquisa em Direito Tributário e Meio Ambiente - UFC. E-mail: [email protected] . 2 Aluno da graduação do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. Membro do Grupo de Pesquisa em Direito Tributário e Meio Ambiente - UFC. E-mail: [email protected]. 303 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 1 Por uma teoria geral da tributação ambiental No debate contemporâneo percebe-se uma crescente fusão das ciências e, mais ainda, quando as questões referem-se ao meio ambiente. Os estudos não podem mais se limitar a um único ramo do Direito, sendo o Direito Ambiental tópico prioritário em praticamente todas as áreas jurídicas. Em virtude dos graves problemas decorrentes da crescente deteriorização da natureza, a proteção ao meio ambiente tem sido objeto de estudo de importantes pesquisas jurídicas, sempre na tentativa de se fomentar novas condutas de proteção ambiental ou buscar reparar os imensos danos já causados. Diante deste contexto é que se defende aqui a criação de uma Teoria Geral da Tributação Ambiental com o objetivo de adequar os conceitos do direito ambiental às finanças públicas, viabilizando, assim, a elaboração de normas voltadas para as políticas públicas ambientais, principalmente as referentes às atividades estatais regulatórias. O Direito Tributário Ambiental3 exige uma sistematização dos princípios ambientais no âmbito dos direitos financeiro e tributário. Sendo o tributo um instrumento de intervenção na atividade econômica, ele pode ser utilizado na esfera ambiental como um indutor de atividades ambientalmente corretas, propiciando uma adequação do desenvolvimento sócio-econômico às necessidades ambientais.4 3 Regina Helena Costa assim identifica a relação existente entre a tributação e a preservação do meio ambiente: “A tributação ambiental pode ser singelamente conceituada como o emprego de instrumentos tributários para orientar o comportamento dos contribuintes à protesto do meio ambiente, bem como para gerar os recursos necessários à prestação de serviços públicos de natureza ambiental.” (Tributação ambiental. In Direito ambiental em evolução. Curitiba: Juruá. 2. ed. 2003, p. 303). 4 “De igual modo, faz-se necessária a intervenção do Poder Público nas esferas do desenvolvimento econômico e social, a fim de que seja realizado o controle efetivo do uso dos recursos naturais. Nesse sentido é que a tributação ambiental surge como um dos instrumentos de controle para o desenvolvimento econômico. Os padrões atuais de consumo revelam-se como sendo insuportáveis a longo prazo, sendo que os tributos se apresentam como uma utilíssima ferramenta na tentativa de manutenção de um meio ambiente saudável”. ( GREY, Natália de Campos. Tributação do meio ambiente. In Revista jurídica tributária. Ano 2 – abril/junho de 2009, n. 5. Porto Alegre: NOTADEZ, p. 82). 304 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Conforme previsto no art. 170, inciso VI, da Constituição da República Federativa do Brasil,5 tem-se uma autorização constitucional para a utilização do tributo como indutor de atividades econômicas, através de tratamento diferenciado que se exprime por estímulos ou desestímulos de determinadas condutas. Assim dispõe o texto constitucional: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...); VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação. O Brasil destaca-se neste contexto de proteção ecológica que se instaura no século XXI em virtude do seu imenso potencial de recursos naturais, tendo plenas condições importantes projetos para a produção de energias alternativas renováveis, tais como, energia solar, eólica e biomassa. Para fomentar as atividades econômicas6 voltadas para a utilização de mecanismos de desenvolvimento limpo, imperioso que se aprimore uma normatização adequada de proteção ambiental, caracterizando, assim, este século, como o da Responsabilidade Fiscal Ambiental, devendo, tanto as atividades estatais de arrecadação, como as 5 Registra-se, por oportuno, a contextualização do art. 170, inciso VI, da Constituição Federal, no texto a seguir: “Diante do mundo globalizado e da ausência de fronteiras em relação ao problema ambiental ver-se-á nesta questão uma atuação interdisciplinar, numa perspectiva de uma harmonização comunitária e de acordos internacionais no sentido de reverter o quadro caótico de degradação ambiental do planeta. O mais recente exemplo foi a aprovação do Protocolo de Kyoto (1997) que determinou o compromisso por parte dos países desenvolvidos de atingir, entre 2008 e 2012 a meta de redução média de 5,2% das suas emissões de dióxido de carbono. Seguindo este movimento mundial o Brasil, com a Emenda Constitucional n. 42, de 19/12/2003, acrescentou o inciso VI, ao art. 170, adotando uma política econômica intervencionista permitindo, assim, a adoção de benefícios fiscais as atividades econômicas não poluidoras.” (CAVALCANTE, Denise Lucena. Políticas públicas ambientais no setor automobilístico. In Direito tributário e econômico aplicado ao meio ambiente e à mineração. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 217). 6 Sobre a influencia do tributo na economia: “Assim, sendo a proteção ambiental uma dessas finalidades, admite-se a utilização da extrafiscalidade dos tributos para ordenar ou reordenar a economia e as relações sociais, através do incentivo ou desestímulo de determinados comportamentos em relação ao meio ambiente. Este fenômeno, a que se convencionou chamar tributação ambiental, abriga um gênero do qual fazem parte variadas espécies de tributos ecologicamente orientados.” (CAVALCANTE, Denise Lucena e, MENDES, Ana Stela Vieira. Constituição, direito tributário e meio ambiente. In Revista NOMOS. Vol. 28.2, jul/dez – 2008.2, p. 35). 305 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II programações orçamentárias da despesa, se voltar para atividades econômicas que promovam o estímulo ao desenvolvimento econômico que resguarde o meio ambiente7. Importante destacar aqui é a utilização de uma política fiscal ambiental voltada para a indução de atividades que propiciem o desenvolvimento econômico visando à proteção ambiental e, não no sentido de criar mais tributos ou mesmo gerar uma ´pressão fiscal adicional`8. Nessa perspectiva é que se faz mais viável a utilização de incentivos fiscais para proteção do meio ambiente do que a adoção dos chamados “tributos verdes”, pois embora pareça a solução mais coerente aos olhos de boa parte de doutrina, a criação de novos tributos (green tax - “imposto verde”), que tenham por hipótese de incidência um ato potencialmente lesivo ao meio ambiente, só faria por agravar, ainda mais, os encargos existentes sobre o contribuinte brasileiro - que, diga-se, é um dos mais onerados em todo o mundo -, sem que isso importe na esperada quebra de paradigma, reformulando a sistemática tributária nacional, há muito desiludida com promessas falaciosas de reforma. 9 Outro motivo para a utilização de incentivos fiscais ao invés da instituição de novos tributos é o fato de que ao se utilizar mecanismos que incentivem o empresário ou o próprio consumidor a adotar práticas sustentáveis trabalha-se com a prevenção do dano ambiental e não com a reparação do mesmo, o que para o meio ambiente é mais 7 Neste sentido argumenta Cristobal J. Borrero Moro: “Las medidas fiscales pueden, igualmente, realizar, tanto una función estimuladora de aquellos comportamientos acordes con el medio, como una función disuasoria de los contrarios. En estos casos, las medidas fiscales van a servir al cumplimiento del mandato constitucional de protección del medio, bien a través del establecimiento de un tributo, sin necesidad de utilizar su producto , bien a través del establecimiento de exenciones disminuyendo, total o parcialmente, los recursos que, potencialmente, podría proporcionar el establecimiento de un tributo. El legislador es plenamente consciente de la importancia de las medidas fiscales en orden a estimular o desestimular conductas tanto en el desarrollo de sus actividades de consumo, como productoras. Por ello, cuenta con dichos instrumentos tributarios a la hora de estimular conductas plenamente respetuosas con el medio o desincentivar aquellas contraria a éste. De esta perspectiva, las medidas fiscales desarrollan una función de intervención direccional.” (La tributación ambiental en España. Madrid: TECNOS, 1999, p. 87-88). 8 “A OCDE considera que a implementação da tributação ambiental deve ser feita de tal forma que a carga fiscal global sobre determinada economia não se altere, ou seja, não obstante o limite individual caracterizado pela capacidade contributiva, a tributação ambiental no contexto macroeconômico deve ser aplicada de maneira a não gerar uma pressão fiscal adicional”. (MODÉ, Fernando Magalhães. Tributação ambiental – a função do tributo na proteção do meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2003, p. 100). 9 FAZOLLI, Silvio Alexandre apud TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 94. 306 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II interessante, visto que a recuperação de um dano ambiental demanda um grande espaço de tempo e dinheiro sem a certeza de retorno do meio ambiente às condições anteriores. O professor Terence Trennepohl afirma que pode-se concluir, ainda que parcialmente, que a via dos incentivos é cabível, sem necessidade de maiores digressões, em todas as espécies tributárias. Demais disso, é razoável a ponderação de que àqueles que empreguem esforços na utilização de tecnologias e produtos, bens ou serviços ecologicamente contraprestação do Estado. corretos haja uma 10 A utilização do tributo como forma de proteger o meio ambiente, ainda que incipiente no Brasil, é uma realidade que deve ser aprimorada e aplicada cada vez mais, principalmente pela via da extrafiscalidade, com a cooperação entre Estado e sociedade para uma tutela eficaz do meio ambiente. 2 Política Nacional de Habitação Partindo do enfoque de uma atividade fiscal que fomente a proteção ambiental, analisaremos aqui os instrumentos jurídicos da recente política nacional de habitação no Brasil. Como se sabe o mundo atravessa uma crise ambiental de grandes proporções, causada pela interferência do homem no meio em que vive, tanto para dele retirar recursos naturais que serão utilizados para a produção dos mais variados produtos e para sua alimentação, bem como, para construir suas moradias e outros equipamentos para o seu lazer, trabalho, educação, saúde etc. A Constituição Federal de 1988 tutela o meio ambiente no artigo 225. Vejamos: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. A proteção expressa na Constituição Federal abrange não só o meio ambiente natural, mas também ao meio ambiente artificial, cultural e do trabalho. As políticas 10 TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 95. 307 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II habitacionais se relacionam principalmente com os dois primeiros, apesar de esta divisão ser apenas didática, que podem ser definidos como abaixo: O meio ambiente natural ou físico é constituído pela atmosfera, pelos elementos da biosfera, pelas águas (inclusive pelo mar territorial), pelo solo, pelo subsolo (inclusive recursos minerais), pela fauna e flora. Concentra o fenômeno da homeostase, consistente no equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e meio em que vivem. O meio ambiente artificial é compreendido pelo espaço urbano construído, consistente no conjunto de edificações (chamado de espaço urbano fechado), e pelos equipamentos públicos (espaço urbano aberto). 11 O meio ambiente artificial ganha proteção também no art. 182, da Constituição Federal, que trata da política urbana: Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. Assim dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela Resolução n° 217 A (III), da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro de 1948: Artigo XXV 1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda de meios de controle. subsistência fora de seu 12 A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 acata a determinação da Declaração supra transcrita, estabelecendo no art. 6º o direito à moradia como um dos direitos sociais. A inclusão desta previsão se deu através da Emenda Constitucional nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, após anos de luta dos movimentos que atuam nessa 11 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 8. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 22-23. 12 Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 25 jun. 2009. 308 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II área. Além da previsão do direito à moradia como direito social, a Constituição Federal tratou no art. 182 e art. 183 da Política Urbana, tendo esta sido regulada pela Lei n° 10.257/2001, mais conhecida como Estatuto da Cidade. Os direitos sociais,13 entre os quais está incluído o direito à moradia, são incluídos, doutrinariamente, na categoria de direitos fundamentais de segunda geração, conforme leciona Paulo Bonavides: os direitos sociais de juridicidade questionada (...), foram eles remetidos à chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos processuais de proteção aos direitos da liberdade. 14 Ao analisar a crise de observância e execução dos direitos sociais, o referido autor entende que tal crise será superada de tal forma que os direitos fundamentais da segunda geração tendem a tornar-se tão justificáveis quanto os da primeira; pelo menos está é a regra que já não pode ser descumprida ou ter sua eficácia recusada com aquela facilidade de argumentação arrimada no caráter programática da norma. 15 Apesar das ressalvas existentes em relação à eficácia dos direitos sociais, figurase mais do que importante a sua evolução para que os mesmos possam cada vez mais se concretizar. Não se pode mais pensar em direitos sociais como normas programáticas, onde o Estado escolheria o melhor momento para observá-las. É necessário vincular o Estado ao cumprimento dessas normas, criando políticas públicas e destinando recursos do orçamento para executá-las. O problema habitacional no Brasil se agravou no século XIX com o crescimento das cidades brasileiras se estendendo até a atualidade em níveis cada vez mais alarmantes. Apesar das políticas habitacionais elaboradas e executadas durante o século 13 Ingo Wolfgang Sarlet, em relação aos direitos sociais, leciona que os mesmos são chamados de direitos sociais em razão de estarem destinados a propiciar aos indivíduos a participação no bem-estar social, mas também são direitos individuais, como os de primeira geração. In: GOSDAL, Theresa Cristina. Dignidade do trabalhador: um conceito construído sob o paradigma do trabalho decente e da honra. Curitiba: UFPR, 2006, p.59. 14 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 564. 15 BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. atual. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 565. 309 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II XX, estas não foram capazes de solucionar essa problemática devido a falta de planejamento, de execução adequada, de recursos etc. Apesar de atingir primordialmente os mais pobres, que moram na maioria das vezes em condições não dignas, interferindo essa condição numa série de outros direitos, como o direito à saúde, ao lazer, à segurança, ao meio ambiente equilibrado, à intimidade, a questão habitacional atinge também àquelas pessoas pertencentes a classes economicamente e socialmente mais favorecidas, encontrando estas dificuldades de adquirirem sua casa própria. Em concorrência com o problema do déficit habitacional há a crise ambiental que cada vez mais traz preocupações e interferências na vida das pessoas. Então, faz-se primordial que toda política pública destinada à questão habitacional esteja em conformidade com as preocupações em se garantir um ambiente ecologicamente equilibrado. As primeiras preocupações com a problemática da habitação no Brasil ocorreram na denominada Era Vargas. Apesar de no final do século XIX ter havido uma preocupação com a questão das moradias tal preocupação se deu por motivos sanitários,16 como por exemplo o que ocorreu no Rio de Janeiro com os cortiços,17 onde após a destruição dos mesmos a população dessas habitações não tiveram o suporte do Estado, dirigindo-se para os morros da então capital do país, criando as primeiras favelas. Na Era Vargas, a questão da provisão habitacional é colocada pela primeira vez (...), quando Estado e setores técnicos passam a discutir a superação das condições 16 Com a crescente propagação de doenças ocorridas no final do século XIX no Rio de Janeiro, as autoridades desenvolveram um projeto de saneamento e modernização da cidade. Houve uma imensa insatisfação por parte da população atingida pela maneira como foi executado tal projeto, havendo uma série de conflitos, que ficou conhecido com “A Revolta da Vacina”. 17 O fenômeno dos cortiços e da falta de habitação adequada na cidade do Rio de Janeiro no final do século XIX foi retratado por Aluísio de Azevedo na obra “O Cortiço”, onde o autor em determinado trecho diz: “Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.”. Versão digitalizada retirada de AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30. ed. São Paulo: Ática, 1997. Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000015.pdf >. Acesso em: 29 jul. 2009. 310 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente precárias de moradia Parte II de aluguel, tendo como pressuposto a conquista da casa própria.18 A primeira Política Nacional de Habitação foi instaurada em 1946 com a criação da Fundação da Casa Popular, porém tal política revelou-se ineficaz devido à falta de recursos e às regras de financiamento estabelecidas, o que comprometeu o seu desempenho no atendimento da demanda, uma produção pouco que ficou restrito a alguns Estados da federação e com significativa de unidades. 19 Após essa primeira tentativa de atacar o problema, várias outras políticas foram instituídas tanto em governos civis como militares, sendo que a última delas está sendo implantada desde 2003, com a criação do Ministério das Cidades, órgão responsável pela Política de Desenvolvimento Urbano. Tal política está dentro do conceito de desenvolvimento urbano integrado no qual a habitação não se restringe a casa, incorpora o direito à infra-estrutura, saneamento ambiental, mobilidade e transporte coletivo, equipamentos e serviços urbanos e sociais, buscando garantir direito à cidade. 20 Com a instituição de uma nova concepção de política habitacional, faz-se necessária a distinção entre necessidades habitacionais e déficit habitacional, onde déficit habitacional deve ser entendido como "a necessidade de construção de novas moradias para a resolução de problemas sociais detectados em um certo as deficiências momento e específicos de habitação". Ou seja, representa propriamente habitacionais do estoque de moradias, de modo que sua quantificação global resulta da agregação dos domicílios rústicos e 18 CYMBALISTA, Renato e MOREIRA, Tomás. Política habitacional: a história e os atores de uma narrativa incompleta. In: ALBUQUERQUE, Maria do Carmo (Org.). Participação popular em políticas públicas: espaço de construção da democracia brasileira. São Paulo: Instituto Pólis, 2006, p. 33. 19 Política Nacional de Habitação. In: Caderno MCidades 4 Habitação. Ministério das Cidades. Brasília: 2004, p. 9. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretariasnacionais/secretaria-de-habitacao/politica-nacional-de-habitacao/4PoliticaNacionalHabitacao.pdf>. Acesso em: 25 de jun. 2009. 20 Política Nacional de Habitação. In: Caderno MCidades 4 Habitação. Ministério das Cidades. Brasília: 2004, p. 12. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretariasnacionais/secretaria-de-habitacao/politica-nacional-de-habitacao/4PoliticaNacionalHabitacao.pdf>. Acesso em: 25 de jun. 2009. 311 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente improvisados (habitações Parte II precárias) com a coabitação familiar. As necessidades habitacionais englobariam, além do déficit habitacional as habitações inadequadas, definidas como as moradias urbanas que apresentam deficiências graves de infraestrutura básica, adensamento excessivo e um comprometimento elevado da renda dos seus moradores com o aluguel. Sendo assim, o déficit habitacional apresenta-se apenas como uma parte integrante das necessidades habitacionais, que além da unidade habitacional stricto sensu levam em consideração também as condições de moradia vinculadas à qualidade de vida mais ampla, como os serviços de infra-estrutura básica, ou seja, o habitat. 21 Do exposto, infere-se que as novas concepções sobre política habitacional não buscam resolver somente o problema daqueles que não tem casa, mas também daqueles que vivem em condições precárias, devendo qualquer política se atentar para essas diretrizes e, ainda, sempre ter em foco à adequação ambiental das moradias previstas nesses novos projetos. 3 Programa “Minha Casa, Minha Vida” O déficit habitacional no Brasil estimado em 2006 é de 7,935 milhões de moradias, sendo a maior parte em áreas urbanas.22 Como se viu acima, a noção de déficit habitacional está ligada à idéia da necessidade imediata e intuitiva da construção de novas moradias. Nessa perspectiva foi criado o programa “Minha Casa, Minha Vida” que prevê a construção de 1 (um) milhão de moradias, com investimentos no montante de 34 (trinta e quatro) bilhões de reais, para as famílias que ganham até 10 (dez) salários mínimos,23 sendo que para aquelas cuja faixa de renda é de 0 a 3 salários haverá um 21 Déficit Habitacional Brasileiro - Conceituação e Dimensionamento. Câmara Brasileira da Indústria de Construção - Comissão de Economia e Estatística. Belo Horizonte: 1996, p. 2. Disponível em: <http://www.cbicdados.com.br/files/textos/047.pdf>. Acesso em: 25 de jun. 2009. 22 Déficit habitacional no Brasil 2006. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação. Brasília, 2008, p. 20. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/secretaria-dehabitacao/biblioteca/publicacoes-e-artigos/Deficit%20-%202006%2006-05-2008.pdf>. Acesso em: 25 de jun. 2009. 23 Mais informações sobre o programa “Minha Casa, Minha Vida” podem ser encontradas em: <www.minhacasaminhavida.gov.br>. 312 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II subsídio integral e para aquelas cuja faixa de renda é de 3 a 6 salários mínimos o subsídio será parcial. No contexto de crise econômica mundial cujos efeitos são sentidos no Brasil, o programa “Minha Casa, Minha Vida”, tem de um lado a finalidade de aquecer a economia, garantindo empregos e que o país não venha a entrar em recessão, e de outro lado a finalidade de enfrentar a questão da falta de moradias. E é nesse sentido, qual seja, o de ser um indutor da economia, que o programa se restringe apenas à construção de novas casas, com o objetivo de estimular a construção civil, um dos ramos mais importantes da economia, não prevendo, assim, a melhoria daquelas moradias que se encontram em situações inadequadas, o que provoca críticas daqueles que militam na área. O programa está incluído dentro das ações do PAC - Programa de Aceleração do Crescimento - que conta com investimentos públicos e privados, atuando em várias áreas da economia e que tem como finalidade a realização de obras em infra-estrutura para que o país possa continuar a crescer. Podem participar do programa pessoas com renda de até 10 salários mínimos, dividindo-se estas em três categorias24: de 0 a 3 salários,25 de 3 a 6 salários e, por último, de 6 a 10 salários. Os recursos serão garantidos pela União e pelo FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), sendo que a União irá investir também em infraestrutura. Estima-se com o programa reduzir-se o déficit habitacional em 14% (catorze por cento),26 prevendo a construção de quatrocentas mil casas para as famílias com renda de até três salários, duzentas mil casas para famílias com renda de três a quatro salários, cem mil casas para famílias com renda de quatro a cinco salários e outras cem mil para famílias com renda de cinco a seis salários e mais duzentas mil casas para famílias com renda de seis a dez salários mínimos. 24 As famílias de 0 a 3 salários, terão o subsídio integral com isenção do seguro; as de 3 a 6, terão um subsídio parcial com redução dos custos do seguro e acesso ao Fundo Garantidor e as de 6 a 10, serão beneficiadas com a redução dos custos do seguro e acesso ao Fundo Garantidor. 25 O déficit habitacional na faixa de renda de 0 a 3 salários mínimos, corresponde a 90,9% (noventa, nove por cento) daqueles que podem ser abrangidos pelo programa, por isso o mesmo prevê maiores benefícios e facilidades para essa faixa. 26 O programa trabalha com o déficit habitacional em 7,2 milhões de moradias, por isso a redução de 14% com a construção de 1 (um) milhão de casas. 313 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II O programa foi apresentado para a sociedade através da Medida Provisória nº 459, transformada no Projeto de Lei de Conversão 11/09 e convertida na Lei 11.977/2009, e prevê a participação dos Municípios e dos Estados-membros que cuidarão do cadastro dos beneficiários, da doação de terrenos, da infra-estrutura para o empreendimento, da desoneração fiscal, da agilização na aprovação dos projetos, alvarás, autorizações e licenças. As medidas fiscais a serem implantadas pelos Estados e Municípios dever ser muito bem planejadas, de forma a possibilitar a adoção de medidas fiscais indutoras para a construção de casas ambientalmente corretas já no âmbito da construção civil, como por exemplo, na escolha correta do material a ser utilizado nas respectivas obras. 4 Aspectos ambientais do programa “Minha Casa, Minha Vida” Com o lançamento do Programa “Minha casa, minha vida” pelo Governo Federal, têm-se uma excelente oportunidade de programar na consecução deste projeto a adoção de uma política fiscal voltada para a proteção do meio ambiente27. Interpretando sistematicamente os artigos 225 e 182 em conjunto com todo texto constitucional, depreende-se que para a cidade desenvolver suas funções sociais e garantir o bem-estar de seus habitantes, bem como a sadia qualidade de vida, é necessária a proteção do meio ambiente natural bem como a estruturação das cidades se dêem de forma organizada, utilizando racionalmente os espaços e os recursos naturais. Celso Antônio Pacheco Fiorillo afirma que dado o conteúdo pertinente ao meio ambiente artificial, este em muito relaciona-se à dinâmica das cidades. Desse modo, não há como desvinculá-lo do conceito de direito à sadia qualidade de 27 Sobre a política ambiental no Brasil explica Sérgio Abranches: “A política ambiental deixou de ser uma política centrada na conservação da natureza e no combate à poluição. Seu foco central moveu-se para as implicações das políticas públicas e privadas para o aumento das emissões de gases de efeito estufa e o desenvolvimento do capital científico e tecnológico necessário para assegurar meios de mitigação dessas emissões, bem como, para a adaptação às conseqüências climáticas inevitáveis do aquecimento global. Avaliar o grau de vulnerabilidade do país, desenvolver mecanismos de gestão dos riscos envolvidos e desenhar as políticas que permitam ao país adaptar-se aos eventos extremos aos quais estará sujeito passaram a ser as premissas inarredáveis da política ambiental. Os critérios derivados dessa política tornaram-se elementos-filtro de todas as demais políticas governamentais.” (In Interesse Nacional. Política ambiental – O Brasil na contramão. Ano 2, n. 5, abril-junho 2009, p. 52). 314 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II vida, assim como do direito à satisfação dos valores da dignidade humana e da própria vida. 28 A preocupação, portanto, com a organização das cidades está dentro do conceito de tutela do meio ambiente, pois o crescimento desordenado e desenfreado das mesmas atinge de maneira muito maléfica o ambiente como pode ser visto nos grandes centros urbanos, onde há uma grande poluição dos recursos hídricos e do ar, bem como o desmatamento das vegetações nativas e a extinção de várias espécies animais. A construção civil é uma das grandes responsáveis pelos impactos ambientais causados no planeta. Segundo Miguel Aloysio Sattler entre os grandes responsáveis por tais impactos se inclui o setor de atividades humanas conhecido como indústria da construção civil. Dados recentes (CIB; UNEP-IETC, 2002) apontam que o ambiente construído, através das atividades exercidas pela indústria da construção, absorve em torno de 50% de todos os recursos extraídos da crosta terrestre e consome entre 40% e 50% da energia consumida em cada país. 29 Continua o citado autor: Conclui-se, portanto, que, além de consumir quantidades fantásticas de recursos escassos, de gerar produtos cujos impactos desconhecem, ou preferem ignorar, o homem e a indústria por ele criada para lhe propiciar condições de conforto e de saúde, assim como as tecnologias desenvolvidas e concebidas para resguardar a qualidade de vida, estão longe de fazê-lo. Os impactos associados às atividades de construção estão, pois, já bem identificados pela comunidade científica internacional, que os associa a danos significativos ao meio ambiente, que comprometem seriamente os sistemas de de vida: energia e qualidade do solo, do ar e da água. Apesar de esse já existir, ainda são raras as escolas de engenharia e arquitetura no suporte conhecimento país a tratar 28 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 8. ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 275. 29 SATTLER, Miguel Aloysio. Habitações de baixo custo mais sustentáveis: a casa Alvorada e o Centro Experimental de tecnologias habitacionais sustentáveis. Porto Alegre: ANTAC, 2007, p. 13. Disponível em: <http://www.habitare.org.br/pdf/publicacoes/arquivos/colecao9/livro_completo.pdf> Acesso em: 10 ago. 2009. 315 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II adequadamente do tema no que concerne à formação dos futuros profissionais dessas áreas. 30 Dessa forma, é preciso conformar a política habitacional com a proteção ambiental, satisfazendo as necessidades humanas sem se esquecer do meio em que se vive, buscando-se, assim, o chamado desenvolvimento sustentável. 31 E é dentro desse conceito de desenvolvimento sustentável que deve atuar a política habitacional do programa “Minha Casa, Minha Vida”, pois se de um lado o objetivo é aquecer a economia, incentivando a construção civil, e resolver parte do problema da falta de moradia, por outro lado não se pode olvidar das questões ambientais que tanto preocupam a humanidade. O Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), em seu artigo 2°, inciso I, assegura a garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações. Assim, Celso Antônio Pacheco Fiorillo leciona que, o direito à moradia, no plano das cidades sustentáveis, deve ser compreendido portanto como o direito a um espaço de conforto e intimidade destinado a brasileiros e estrangeiros residentes no País, adaptado a ser verdadeiro reduto de sua família. Assegurado o PISO VITAL MÍNIMO, por força do que estabeleceu a Emenda Constitucional n. 26, de 14-2-2000, o direito a moradia tem previsão constitucionalmente estabelecida (art. 6°), traduzindo de forma didática a determinação constitucional prevista no art. 225 de assegurar a todos o direito a um meio ambiente ecologicamente 30 SATTLER, Miguel Aloysio. Habitações de baixo custo mais sustentáveis: a casa Alvorada e o Centro Experimental de tecnologias habitacionais sustentáveis. Porto Alegre: ANTAC, 2007, p. 14. Disponível em: <http://www.habitare.org.br/pdf/publicacoes/arquivos/colecao9/livro_completo.pdf> Acesso em: 10 ago. 2009. 31 A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável estabelece em seu Princípio 3 que o “direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e futuras”. Disponível em: <http://www.vitaecivilis.org.br/anexos/Declaracao_rio92.pdf> Acesso: 27 jun. 2009. 316 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente equilibrado, ou seja, um direito à vida da pessoa Parte II humana relacionada com o local onde se vive. 32 O Estatuto da Cidade, ainda nas palavras do referido autor acima, é a mais importante norma regulamentadora do meio ambiente artificial, devendo a execução da política urbana estar consonante com as principais premissas e objetivos do direito ambiental constitucional. Nas palavras do autor: Depois de onze anos de tramitação, o Senado aprovou o Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), como instrumento que passou a disciplinar no Brasil, mais que o uso puro e simples da propriedade urbana, as principais diretrizes do meio ambiente artificial, fundado no equilíbrio ambiental (parágrafo único do art. 1° do Estatuto) e em face de tratamento jurídico descrito nos arts. 182 e 183 da Constituição Federal. O objetivo do legislador (...) foi o de tratar o meio ambiente artificial não só em decorrência do que estabelece constitucionalmente o art. 225 da CF, na medida em que a individualização dos aspectos do meio ambiente tem puramente função didática, mas também em decorrência do que estabelecem os arts. 182 e 183 da Constituição Federal no sentido de direcionar aos operadores de direito facilidade no manejo da matéria, inclusive com a utilização dos instrumentos jurídicos trazidos constitucional brasileiro. fundamentalmente pelo direito ambiental 33 O Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) através da Resolução n. 412, de 13 de maio de 2009, estabeleceu os critérios e diretrizes para o licenciamento ambiental de novos empreendimentos destinados à construção de habitações de Interesse Social, como as do programa “Minha Casa, Minha Vida”. A necessidade de licenciamento ambiental é oriunda da Constituição Federal, que em seu artigo 225, §1º, inciso IV, que exige estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente. A Resolução n. 412 prevê o uso de licenciamento simplificado em única etapa à empreendimentos habitacionais cuja área do parcelamento do solo seja de até 100 (cem) hectares e cujo impacto ambiental seja pequeno (art. 1º), excetuados as que impliquem em intervenção em Áreas de Preservação Permanente, excetuadas as previstas na 32 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 8. ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 291. 33 FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 8. ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 286-287. 317 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Resolução CONAMA n. 369 ou seja localizada em áreas de risco, áreas alagadiças ou sujeitas a inundações, aterros com material nocivo à saúde e áreas com suspeita de contaminação e áreas que possuam declividade igual ou superior a 30%, salvo se atendidas as exigências das autoridades competentes (art. 8° e incisos). O licenciamento ambiental simplificado previsto na Resolução n° 412 exige a apresentação do Relatório Ambiental Simplificado (RAS), que conterá estudos relativos aos aspectos ambientais relacionados à localização, instalação e operação de novos empreendimentos habitacionais, incluindo as atividades de infra-estrutura de saneamento básico, viária e energia, apresentados como subsídio para a concessão da licença requerida, que conterá, dentre outras, as informações relativas ao diagnóstico ambiental da região de inserção do empreendimento, sua caracterização, a identificação dos impactos ambientais e das medidas de controle, de mitigação e de compensação (art. 4°, inciso II e art. 5°, inciso VI). A Resolução n. 412 estabelece ainda que os empreendimentos habitacionais de interesse social implantem sistemas de abastecimento de água potável e tratamento de esgoto sanitário, captação, retenção, infiltração e lançamento das águas pluviais, a coleta e disposição adequada de resíduos sólidos e a destinação de áreas verdes (art. 7° e incisos). Já a Lei n. 11.977/09 prevê, além da instituição do programa “Minha Casa, Minha Vida”, a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas, que é definido no art. 46 como o conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. A regularização fundiária, portanto, deve conter medidas que garantam a proteção do meio ambiente frente aos possíveis danos que possam ser causados pelos assentamentos irregulares, possibilitando a permanência daquelas pessoas na área habitada, mas de forma que os impactos ambientais sejam reduzidos. Dessa forma, o art. 48, da Lei n.11.977/2009 dispõe ao estabelecer como princípio, além daqueles previstos na Lei n. 10.257/2001, o seguinte: Art. 48. (...) 318 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II I - ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda, com prioridade para sua permanência na área ocupada, assegurados o nível adequado de habitualidade e a melhoria das condições de sustentabilidade urbanística, social e ambiental. Da leitura da Resolução n. 412, bem como da Lei n. 11.977/2009, verifica-se que um dos seus objetivos é retirar as populações de baixa renda das áreas de risco, das favelas e das áreas sem infra-estrutura adequadas, que causam perigo não só a integridade das pessoas que habitam esses lugares, mas ao próprio meio ambiente. Conforme ressaltou o Ministro do Meio Ambiente no lançamento do programa “a habitação popular, por si só, é ótima para o meio ambiente. A oferta de casas dignas em áreas regularizadas é o melhor antídoto contra a favelização. Quem não tem casa constrói na encosta dos morros e margens dos rios. Destroem e poluem e também são as primeiras vítimas dos deslizamentos e inundações”.34 Porém, o que chama mais atenção na questão ambiental referente ao programa “Minha Casa, Minha Vida” é a possibilidade de utilização de equipamentos de energia solar cujo objetivo é reduzir a conta de energia para as famílias de baixa renda, a emissão de gases do efeito estufa e evitar a construção de novos empreendimentos de geração e distribuição de energia elétrica. A Lei n. 11.977/2009 prevê no art. 82 o financiamento desses equipamentos. Vejamos: Art. 82. Fica autorizado o financiamento para aquisição de equipamento de energia solar e contratação de mão de obra para sua instalação em moradias cujas famílias aufiram no máximo renda de 6 (seis) salários mínimos. Segundo o Ministro do Meio Ambiente a utilização dos equipamentos de aquecimento solar irá reduzir as emissões de gases poluentes em 830 toneladas e evitar a necessidade de construção de uma usina hidrelétrica de 520 megawatts (MW).35 O engenheiro Carlos Faria, que auxiliou nos trabalhos do Ministério do Meio Ambiente (MMA), prevê que a implantação de equipamentos de aquecimento solar em 34 LEÃO, Lúcia. Programa prevê habitações populares ambientalmente sustentáveis. Ministério do Meio Ambiente, Assessoria de Comunicação. Brasília, 25 de março de 2009. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/ascom/ultimas/index.cfm?id=4654> Acesso em: 27 de jun. 2009. 35 MARQUES, Gerusa. Minc: plano de habitação prevê casas com energia solar. O Estado de São Paulo. São Paulo, 25 de março de 2009. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/geral/not_ger344621,0.htm> Acesso em: 27 de jun. 2009. 319 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 500 mil habitações traria os seguintes benefícios: geração de 18 mil empregos, aumento médio da renda familiar anual em R$ 300,00 a 500,00 reais, economia anual de 400 Gwh de energia elétrica, economia na geração, transmissão e distribuição de R$ 1,6 bilhões e redução do CO2, como já foi dito anteriormente, em 830 toneladas. 36 O reaproveitamento da água das chuvas como prevê a Resolução n° 412 também é outro ponto importante no programa “Minha Casa, Minha Vida”, pois visa economizar os recursos hídricos em atividades que possam utilizar as águas pluviais como ao limpar pisos, lavar carros e banheiros, ao regar plantas entre outras atividades em que o uso da água tratada não seja necessário. Além disso, outra forma de economizar os recursos hídricos previsto no programa é a individualização dos medidores de consumo de água em condomínios, o que certamente fará com que, por questões econômicas, utilize-se de forma mais racional tal recurso. Outra preocupação é em relação à madeira utilizada nas obras do programa “Minha Casa, Minha Vida”. Os projetos dos empreendimentos habitacionais são analisados pela Caixa Econômica Federal (CEF), responsável pelo financiamento do programa, que desde 01 de janeiro de 2009 exige o uso de madeira nativa de origem legal nos empreendimentos financiados pelo banco. Tal medida faz parte do “Acordo de Cooperação Técnica para Ação Madeira Legal” firmado entre o Ministério do Meio Ambiente, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e a Caixa Econômica Federal (CEF) e que tem como objetivo coibir o uso de madeira de origem ilegal nos empreendimentos financiados pela Caixa, definir medidas para comprovar a origem legal da madeira utilizada, implantar ações e procedimentos visando garantir a origem legal das madeiras utilizadas, criar um cadastro das construtoras inadimplentes ou que descumprem as regras para comprovação da madeira de origem legal, além de desenvolver ações educativas para o uso da madeira legal.37 Tal preocupação é importante, pois através da extração legal da madeira, utilizam-se 36 LOPES, Alessandra. O impacto do programa minha casa, minha vida no Brasil com o uso do aquecimento solar térmico. M.C.O Comunicação Empresarial. 26 de março de 2009. Disponível em: <http://www.maxpressnet.com.br/noticia-boxsa.asp?TIPO=PA&SQINF=367917>. Acesso em: 27 de jun. 2009. 37 Caixa só financiará empreendimentos usuários de madeira legal. IBAMA, DBFLO. Brasília, 30 de dezembro de 2008. Disponível em: <http://www.ibama.gov.br/2008/12/caixa-so-financiaraempreendimentos-usuarios-de-madeira-legal/>. Acesso em: 27 de jun. 2009. 320 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II técnicas adequadas, que possibilitam o manejo correto e a recuperação da área desmatada, o que não ocorre com a retirada ilegal da madeira. Outro ponto importante é em relação ao efeito estufa, pois o desmatamento de madeira ilegal juntamente com as queimadas na Amazônia, origem da maior parte da madeira utilizada nos empreendimentos em geral, corresponde pela maior fatia das emissões de gases do efeito estufa no Brasil. 38 O programa “Minha Casa, Minha Vida” dentro da perspectiva de adequação ambiental dos projetos habitacionais estabelecidos no Plano Nacional de Habitação, na Resolução n° 412, no Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) e de forma mais geral na Constituição Federal de 1988 em seus arts. 182, 183 e 225, busca criar medidas que efetivem essa tutela e garanta aos beneficiados desse programa moradias dignas que atentem para uma sadia qualidade de vida e pelo respeito ao meio ambiente em que se vive. Porém, o sucesso de tais medidas só poderá ser auferido com a implantação em conjunto dos instrumentos previstos nesses dispositivos e se faz necessário o transcorrer do tempo para que possa ser decretada a efetividade do programa, tanto no que diz respeito à criação das moradias previstas, quanto à tutela do meio ambiente natural e artificial. Já na parte inicial de aprovação dos projetos para a construção das casas sugerese uma política fiscal que incentive as construtoras a utilizar materiais ambientalmente corretos e projetos arquitetônicos que já sejam voltados para a economia de recursos naturais, como água e energia elétrica. Sem esta prévia política fiscal direcionada para a construção civil, o empresário não ficará motivado a mudar seus antigos paradigmas, construindo casas ainda no modelo antigo, com baixo custo, pouca qualidade e nenhuma preocupação ambiental. Nesse sentido o ordenamento jurídico deve ser visto em sua função promocional, logo que a função de um ordenamento jurídico não é somente aquela de controlar o comportamento dos indivíduos, o que pode ser obtido através da sanção 38 LÔBO, Irene. Queimadas na Amazônia são maior contribuição brasileira para aquecimento global, diz cientista. Agência Brasil. Brasília, 04 de março de 2007. Disponível em: <http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/03/04/materia.2007-03-04.0981705236/view>. Acesso em: 27 de jun. 2009. 321 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II negativa, mas também, aquela de dirigir os comportamentos em direção a certos objetivos determinados. 39 Após a construção das casas outra medida fiscal importante será a promoção aos moradores destes condomínios de uma educação ambiental proporcionada por incentivos fiscais diretos, como por exemplo, postos de coletas de lixo reciclável, diminuição da conta de energia para aqueles que participarem dos programas de educação ambiental, tal qual já vem sendo desenvolvido pela COELCE – Companhia Energética do Ceará40, redução de contas de água para os condomínios que tiverem normas de utilização correta da água, enfim, inúmeras atividades que proporcionem uma correta utilização dos recursos naturais, buscando minimizar a crise de energia e de recursos renováveis que está já instaurada no Brasil e no mundo41. 5 Conclusão O programa “Minha Casa, Minha Vida” talvez seja o primeiro passo para a construção de uma nova política habitacional em âmbito nacional, onde a construção de moradias populares seja feita de forma a garantir a qualidade de vida dos beneficiados e, ao mesmo tempo, o respeito ao meio ambiente. Nesse condão, novas políticas ambientais devem se somar ao programa para que sejam desenvolvidos cada vez mais projetos que visem de um lado, garantir segurança, 39 BOBBIO, Norberto apud SEBASTIÃO, Simone Martins. Tributo ambiental: extrafiscalidade e função promocional do direito. 1ª ed (ano 2006) 4ª reimp. Curitiba: Juruá, 2009, p. 37. 40 Os projetos de eficiência energética da COELCE podem ser encontrados em: (i) Programa de Eficiência Energética: http://www.elsites.com.br/PEE/pagina.php . (ii) Projetos: http://www.elsites.com.br/PEE/pagina.php?mod=projetos&pag=index . (iii) Ecoelce - troca de resíduos por bônus na conta: http://www.elsites.com.br/PEE/pagina.php?mod=projetos&pag=visualizar&codProj=2 . (iv) Eficientização de consumidores baixa renda: http://www.elsites.com.br/PEE/pagina.php?mod=projetos&pag=visualizar&codProj=10 . (v) Sustentabilidade COELCE: http://www.coelcesites.com.br/sustentabilidade/desenvolvimento/ . 41 Cita-se, por oportuno, os exemplos a seguir: “Otra vertiente importante de las políticas de eliminación de residuos es la constituida por las actuaciones de gestión en materia de envases y embalajes. Así, siguiendo las experiencias de Suecia, Italia, Alemania y Estados Unidos las Comunidades Autónomas podrían establecer tributos que gravasen aquellos modalidades de embalajes especialmente perjudiciales para el medio ambiente. Ejemplos: Suecia - sigue aplicándose los impuestos específicos sobre productos: envases de bebidas, baterías de níquel-mercurio-cadmio… y se extienden los sistemas de depósito de reembolso (envases retornables, carrocerías de coches etc.).” MAILLÁ, María Ángeles Guevos. El impuesto balear sobre instalaciones que coinciden en el medio ambiente. Madrid: Marcial Pons, 2000, p. 82. 322 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II qualidade e economia na construção das habitações e, de outro, mitigar o impacto das mesmas no meio ambiente. Medidas como a utilização de aquecedores solares nas casas do programa aliam economia e respeito ao meio ambiente e necessita de um tratamento diferenciado do Estado através de benefícios e incentivos. 42 Junto a ela deveriam se somar outras medidas eficazes como a utilização de materiais recicláveis que causem menos impactos, além de técnicas e processos na construção civil que evitem o desperdício de energia e matérias-primas. É necessária, porém, a diligência dos órgãos competentes na autorização, financiamento e fiscalização do programa para que o mesmo possa alcançar os seus objetivos. A proteção ao meio ambiente é uma competência comum dos entes estatais (art. 23, inciso VI e art. 225, da CF) e um dever da coletividade (art. 225 da CF), obrigando não só as políticas habitacionais, mas sim, todas as atividades, sejam públicas ou privadas, a respeitarem as normas ambientais. É importante, portanto, que o Estado, em todas suas esferas, juntamente com a sociedade civil ajam em consonância de objetivos na defesa do meio ambiente. 6 Referências Bibliográficas ABRANCHES, Sérgio. Política ambiental – O Brasil na contramão. In Interesse Nacional. Ano 2, n. 5, abril-junho 2009, p. 52-62. AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30. ed. São Paulo: Ática, 1997. (versão digitalizada). Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000015.pdf >. Acesso em: 29 jul. 2009. 42 Uma forma que o Estado tem de estimular condutas ambientalmente corretas é através da tributação, sendo que no caso em questão, poderia os municípios, como forma de incentivar os beneficiados do programa a utilizarem os aquecedores solares, estabelecer o chamado IPTU Ambiental, que se conforma muito bem ao princípio ambiental da prevenção. Assim, poderia ser utilizado o IPTU ambiental com a diminuição da alíquota ou da base de cálculo do IPTU para aquelas propriedades que se adéqüem a proteção do meio ambiente através dos critérios a serem definidos na própria legislação que regula IPTU. Mais informações sobre o IPTU Ambiental podem ser encontradas em: FARIA, Ana Maria Jara Botton. O IPTU ambiental e a aplicação do princípio do fim social da propriedade urbana. Curitiba: PUC-PR, fevereiro de 2005. 323 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. atualizada. São Paulo: Malheiros, 2005. CAVALCANTE, Denise Lucena. Políticas públicas ambientais no setor automobilístico. In Direito tributário e econômico aplicado ao meio ambiente e à mineração. São Paulo: Quartier Latin, 2009, p. 216-230. CAVALCANTE, Denise Lucena e, MENDES, Ana Stela Vieira. Constituição, direito tributário e meio ambiente. In Revista NOMOS. Vol. 28.2, jul/dez – 2008.2, p. 29-40. COSTA, Regina Helena. Tributação ambiental. In Direito ambiental em evolução. Curitiba: Juruá. 2.ed. 2003. CYMBALISTA, Renato e MOREIRA, Tomás. Política habitacional: a história e os atores de uma narrativa incompleta. In: Maria do Carmo (Org.). Participação popular em políticas públicas: espaço de construção da democracia brasileira. São Paulo: Instituto Pólis, 2006, 33. FARIA, Ana Maria Jara Botton. O IPTU ambiental e a aplicação do princípio do fim social da propriedade urbana. Curitiba: PUC-PR, fevereiro de 2005. FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 8. ed. Rev., atual. e ampl. 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São Paulo: Saraiva, 2008. 325 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Sites consultados: Caixa só financiará empreendimentos usuários de madeira legal. IBAMA, DBFLO. Brasília, 30 de dezembro de 2008. Disponível em: <http://www.ibama.gov.br/2008/12/caixa-so-financiara-empreendimentos-usuarios-demadeira-legal/>. Acesso em: 27 de jun. 2009. Déficit Habitacional Brasileiro - Conceituação e Dimensionamento. Câmara Brasileira da Indústria de Construção - Comissão de Economia e Estatística. Belo Horizonte: 1996, p.2. Disponível em: <http://www.cbicdados.com.br/files/textos/047.pdf>. Acesso em: 25 de jun. 2009. Déficit habitacional no Brasil 2006. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação. Brasília, 2008, p.20. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretariasnacionais/secretaria-de-habitacao/biblioteca/publicacoes-e-artigos/Deficit%20%202006%2006-05-2008.pdf>. Acesso em: 25 de jun. 2009. Política Nacional de Habitação. In: Caderno MCidades 4 Habitação. 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É nesse cenário que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado alcança patamar de direito fundamental, com a finalidade de manter o equilíbrio entre as necessidades humanas e a preservação dos recursos naturais, garantindo, dessa forma, a preservação da própria humanidade, por meio do desenvolvimento sustentável. A metodologia é bibliográfica, descritiva e exploratória. O objetivo deste artigo é investigar, de forma não exaustiva, a existência de uma função ambiental da propriedade autônoma, em razão do § 1º, art. 1228, do Código Civil, como instrumento de efetivação do Estado de Direito Ambiental. Pela leitura do referido dispositivo, à luz de uma hermenêutica jurídica ambiental, constata-se que o ambiente sadio não está dentro da função social da propriedade. O legislador foi mais longe, ao 1 Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Pesquisadora do Projeto Casadinho (CNPQ – UFC – UFSC). Professora de Hermenêutica Jurídica e Aplicação do Direito e de Direito Ambiental e Ecologia, do curso de graduação em Direito da Faculdade Christus – Fortaleza, onde, ainda, é professora orientadora do grupo de estudo “Meio Ambiente e Direitos Humanos: desafios e perspectivas”. Professora colaboradora do Escritório de Direitos Humanos – EDH – da Faculdade Christus. E-mail: [email protected]. 327 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II impor uma função ambiental autônoma, nova, gerando outras obrigações ao proprietário de qualquer bem, além daquelas já previstas com a função social, amadurecendo, pois, o Estado de Direito Ambiental. PALAVRAS-CHAVE: Meio ambiente. Estado de Direito Ambiental. Propriedade. Função ambiental. INTRODUÇÃO Durante sua evolução histórico-econômica, o homem valorizou o antropocentrismo clássico, dispondo dos bens naturais de forma ilimitada. A degradação ambiental está vinculada ao direito de propriedade. O uso absoluto, desenfreado e abusivo do direito de propriedade, cuja máxima se deu no Estado liberal, é a principal causa de desrespeito à natureza. É nesse cenário que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado alcança patamar de direito fundamental nas Constituições hodiernas com a finalidade de manter o equilíbrio entre as necessidades humanas e a preservação dos recursos naturais, garantindo, dessa forma, a preservação da própria humanidade, por meio do desenvolvimento sustentável. Com o novo paradigma do Estado de Direito Ambiental e o meio ambiente equilibrado como direito fundamental, urge uma mudança em toda a ordem jurídica, para atender ao princípio da solidariedade e ao valor da sustentabilidade, com o objetivo de tentar minimizar os efeitos da crise ecológica que ora se enfrenta. Diante disso, o presente artigo tem como objetivo investigar, de forma não exaustiva, a existência de uma função ambiental da propriedade autônoma, em razão do § 1º, art. 1228, do Código Civil, como instrumento de efetivação do Estado de Direito Ambiental. A metodologia utilizada é de natureza bibliográfica, descritiva e exploratória. 328 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 1 O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO Com a constitucionalização do direito ao meio ambiente, são criados novos conceitos sócio-jurídicos com o intuito de regulamentar direitos e deveres ecológicos. Por conta disso, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado alcança patamar de direito fundamental nas modernas Constituições por ser imprescindível à dignidade da pessoa humana. Dentre os direitos de terceira geração, Ferreira Filho 2destaca que o mais elaborado é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, pois é um direito assegurado à pessoa humana e é garantido pelo Poder Público como fundamental, sobrepondo-se, inclusive, aos direitos de natureza privada. Acerca da sua titularidade, ressalta Torres que o meio ambiente é oriundo de um direito natural que pertence a todos, pois a natureza não possui direitos em nome próprio. 34 Ponto interessante que merece ser discutido é se existe um direito fundamental do ambiente ou um direito fundamental ao meio ambiente. Em outras palavras, demanda investigação, ainda que rápida, verificar as dimensões objetiva e subjetiva do meio ambiente. Ao analisar o tema, Canotilho arremata que a discussão não se refere mais às positivações constitucionais do meio ambiente, momento este já praticamente superado, uma vez que a sua constitucionalização, já foi realizada pela maioria dos Estados. O que instiga questionamentos é como referido direito fundamental fora tutelado, uma vez que “algumas constituições se preocuparam mais com o direito do ambiente do que com o direito ao ambiente”. 5 2 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva, 1988, p. 62. 3 TORRES, Ricardo Lobo. A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos. In: Teoria dos Direitos Fundamentais. TORRES, Ricardo Lobo (org.). Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 295-296. 4 O direito ao meio ambiente é difuso, ou seja, sua titularidade é de todos e de ninguém em exclusividade. De acordo com Fernanda Pereira, são interesses que não pertencem à pessoa alguma de forma isolada, tampouco a um grupo de pessoas que não guardam qualquer laço de união entre si. PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho. Sobre o Direito à Vida e ao Meio Ambiente frente aos Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Razoabilidade. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes (coord). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 272. 5 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004, p. 179. 329 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Isto se deve pelo fato de o meio ambiente ter uma dupla acepção: objetiva e subjetiva. A dimensão objetiva trata do ambiente como fim e tarefa do Estado e da comunidade. Na medida em que o direito ao meio ambiente aparece na visão subjetiva, possui natureza de direito subjetivo individual. Já quando se trata da perspectiva objetiva, também chamada de “objetiva-valorativa” por Sarlet, significa que existem elementos objetivos de uma comunidade que devem ser guiados pelo Estado. Assim, releva-se como uma ordem objetiva de valores que irradia sobre o meio ambiente ecologicamente equilibrado. 6 O que muda, afinal, em termos jurídico-dogmáticos? Ao considerar o meio ambiente apenas em sua dimensão objetiva implica dizer que suas normas-tarefa ou normas-fim “não garantem posições jurídico-subjectivas, dirigindo-se fundamentalmente ao Estado e outros poderes públicos. Não obstante isso, constituem normas jurídicas objectivamente vinculativas”. 7 Quanto à acepção subjetiva do referido direito fundamental, é importante observar que o corte jurídico-constitucional do meio ambiente como bem jurídico autônomo só será possível caso a Constituição assim o preveja, sob pena de se dissolver na proteção de outros bens constitucionalmente relevantes. Ou seja, caso exista apenas a dimensão objetiva, explica Canotilho que [...] a consagração constitucional do ambiente como tarefa dos poderes públicos pode ser suficiente para impor responsabilidades ecológicas ao Estado (e outros poderes públicos) mas não tem operacionalidade suficiente para recortar um âmbito normativo garantidor de posições subjectivas individuais no que respeita ao ambiente. 8 O direito ambiental brasileiro é um sistema aberto e em evolução, o que impede o seu engessamento e a cristalização de seus princípios e de seus conceitos. 9 Nesse sentido, o núcleo do direito fundamental ao meio ambiente é a sadia qualidade de vida, determinando a sua dupla perspectiva, tese defendida também por Medeiros. Na lição da autora, “existe uma dupla perspectiva quanto ao conteúdo dos direitos fundamentais, os 6 SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 147. 7 CANOTILHO, op. cit., p. 181. 8 Ibidem, p. 184-184. 9 TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 86. 330 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II quais podem ser considerados tanto direitos subjetivos individuais como elementos objetivos fundamentais da comunidade”.10 No Brasil, referido direito fundamental encontra-se previsto no art. 22511, caput, da Lei Maior. Ao analisar o art. 5º, CF/88, percebe-se que o direito ao meio ambiente não foi por ele albergado, estando, assim, fora do seu catálogo. No entanto, a doutrina já é uníssona ao defender que o rol dos direitos e garantias do art. 5º não é taxativo, na medida em que o §2º, do art. 5º, traz uma abertura de todo o ordenamento jurídico nacional ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos e aos direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. 12 De fato, a Carta Magna pátria reconhece expressamente o ambiente ecologicamente equilibrado como meio para a preservação da vida humana, o que implica dizer que referido direito fundamental tem status formal (pois está previsto no Texto – art. 255, caput) e material (uma vez que seu conteúdo é imprescindível à dignidade humana). Tem, por conseguinte, aplicabilidade imediata, com fundamento no art. 5º, §1º, da Constituição de 1988, por possuir supremacia normativa conferida pela ordem jurídica constitucional. Trata-se da coerência interna dos direitos fundamentais baseada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana defendida por Sarlet, sendo capazes de gerar efeitos jurídicos. 13 Ainda sobre a sua eficácia, Teixeira explica que são as próprias atitudes do homem que geram a desarmonia ambiental, o que legitima o meio ambiente como direito fundamental e justifica a sua aplicabilidade imediata, afastando definitivamente a sua classificação de norma programática. 14 Fala-se, inclusive, em dimensão ecológica na dignidade humana, o que implica numa matriz fundante dos demais direitos fundamentais. Acerca do tema, defende Fensterseifer 10 MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: Direito e Dever Fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2004, p. 85. 11 “Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”. 12 Segundo Rossit, “não é demais assinalar que o direito ao meio ambiente equilibrado constitui-se em direito fundamental da pessoa humana, ainda que não figure expressamente no art. 5º da Carta Magna de 1988, justamente porque visa à sadia qualidade de vida, ou, em outras palavras, visa a assegurar direito fundamental que é a vida”. ROSSIT, Liliana Allodi. O Meio Ambiente de Trabalho no Direito Ambiental Brasileiro. São Paulo: LTr, 2001, p. 55. 13 SARLET, op. cit., p. 78-79. 14 TEIXEIRA, op. cit., p. 88-89. 331 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II [...] o conceito jurídico de dignidade humana formulado por Sarlet como moldura conceitual-normativa (aberta) e ponto de partida para pensar (e reformular) referido conceito em face dos novos desafios existenciais impostos pela degradação ambiental (mas também em vista da evolução cultural e dos novos valores socioambientais legitimados no âmbito comunitário), consagrando-se a sua dimensão ecológica. 15 Como direito fundamental, o meio ambiente possui ainda irrenunciabilidade, inalienabilidade e imprescritibilidade, características que, segundo Benjamin, informarão os princípios estruturantes da nova ordem pública ambiental.16 2 DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO AO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL No sistema normativo pátrio, o direito ao meio ambiente integra o rol dos direitos reconhecidos na Constituição e assume um caráter de direito formal e materialmente fundamental, já que está previsto no texto constitucional. Mas a proteção do meio ambiente não é apenas um dever do Estado, é dever de todos, sem exceção, do Poder Público e da coletividade, conforme preceitua o art. 225, da Carta Magna. O homem, na condição de cidadão, torna-se titular do direito ao ambiente equilibrado e também sujeito ativo do dever fundamental de proteger o ambiente, galgando, assim, passos para a estruturação de um Estado de Direito Ambiental. Partindo da premissa de que o direito ao meio ambiente equilibrado é a luz de todos os direitos fundamentais e da existência de uma nova ordem pública ambiental, é que se defende o fenômeno da Ecologização do Direito, fazendo com que “muitos institutos jurídicos (preexistentes) sejam renovados e muitos institutos jurídicos (novos) sejam criados dentro do ordenamento”. 17 15 FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do meio ambiente: a dimensão ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2008, p. 35. 16 BENJAMIM, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira. In Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 98. 17 NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. O Estado Ambiental de Direito. Revista de Informação Legislativa, Distrito Federal: Senado Federal, p. 295-307, a. 41, n. 163, jul./set. 2004, p. 299. 332 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II O fortalecimento do status material do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado nas legislações infraconstitucionais, os infortúnios ambientais crescentes e a Ecologização do Direito demandam uma transformação emergencial do papel do Estado. Manifesta-se Nunes Júnior na direção que Isso implica o surgimento de um novo Estado e de uma nova cidadania, que têm plena consciência da devastação ambiental, planetária e indiscriminada, provocada pelo desenvolvimento, aspirando assim a novos valores como a ética pela vida, o uso racional e solidário dos recursos naturais, o equilíbrio ecológico e a preservação do patrimônio genético. 18 Notadamente, a cada dia aumenta o número de adeptos de um novo modelo de Estado, que emerge a partir do redimensionamento do papel do Estado na sociedade, em prol de um meio ambiente sadio. Destaca Canotilho que o Estado Constitucional Ecológico foi defendido, inicialmente, pelo alemão Rudolf Steinberg, em sua obra “Der Ökologische Verfassungsstaat”. 19 No Brasil, o Estado de Direito Ambiental vem sendo fortemente sustentado por Machado, Leite, Benjamin, Morinaro, dentre outros. Molinaro sustenta que é melhor caracterizá-lo como Estado Socioambiental e Democrático de Direito, onde todos se obrigam, por conta do art. 225, em manter o equilíbrio e a salubridade do ambiente. Como conseqüência, defende o autor: [...] a garantia de um ´mínimo existencial ecológico´ e o mandamento da ´vedação da degradação ambiental´, núcleo e objeto do princípio de proibição de retrogradação socioambiental, constituem, entre outras, condições estruturantes de um Estado Socioambiental e Democrático de Direito.20 A formulação do Estado de Direito Ambiental, segundo Canotilho, impõe que o Estado, “além de ser um Estado de Direito, um Democrático e um Estado Social, deve também modelar-se como um Estado Ambiental.” 21 Já Capella propõe que o Estado de 18 Ibidem, p. 297. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional Ambiental Português: tentativa de compreensão de 30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português. In: Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 6. 20 MOLINARO, Carlos Alberto. Direito Ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 103. 19 21 CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito público do ambiente. Coimbra: Faculdade de Direito de Coimbra, 1995. 333 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Direito deve ser construído para efetivar o princípio da solidariedade econômica e social para alcançar um desenvolvimento sustentável. 22 Há quem defenda, como Leite, que o referido paradigma de Estado é fictício e abstrato, sendo uma tarefa de difícil consecução. 23No entanto, a abstratividade que lhe é pertinente não pode diminuir a importância da sua discussão. Afirma o autor que “a definição dos pressupostos de um Estado de Direito do Ambiente serve como ´meta´ ou ´parâmetro´ a ser atingido, trazendo à tona uma série de discussões que otimizam processos de realização de aproximação do Estado ficto.” 24 É fato. Não se pode ir contra o meio ambiente. Nem se pode voltar de encontro com o sistema capitalista e globalizado. Até porque não há riqueza se não existir vida. E não existe vida se não houver planeta. Ou seja, o meio ambiente sadio acaba sendo condição para a efetivação do próprio Direito. Na medida em que a sociedade reclama por anteparos, em virtude dos problemas ambientais, o Direito e o Estado precisam se manifestar com o intuito de tentar resolver ou, pelo menos, elaborar possíveis soluções. É exatamente isso que fundamenta a tese do Estado de Direito Ambiental. O Estado Ambiental continua sendo um Estado Democrático de Direito. A única (e fundamental) diferença são os acréscimos do novo princípio da solidariedade e do valor-base da sustentabilidade, implicando uma visão holística entre os elementos já existentes. Assim, o princípio da solidariedade atuará de forma conjunta com o princípio da legitimidade (“Estado Democrático”), em prol do valor justiça, e com o princípio da juridicidade (“Estado de Direito”) ao manifestar o valor segurança jurídica. 3 O EQUILÍBRIO AMBIENTAL COMO ELEMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE A Constituição Federal de 1988, em seu o art. 182, § 2º, ao tratar da política de desenvolvimento urbano, assevera que “a propriedade urbana cumpre sua função social 22 CAPELLA, Vicente Bellver. Ecologia: de las razones a los derechos. Granada: Ecorama, 1994, p. 248. 23 LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 49. 24 LEITE, op. cit., p. 151. 334 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor”. Ainda no texto constitucional, seu art. 186, II, prevê a função ambiental da propriedade, no que concerne à propriedade rural, como um dos elementos da função social.25 No âmbito da propriedade urbana, a regulamentação da sua função social e do plano diretor só veio com a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, intitulada de Estatuto da Cidade. Acerca da referida norma, afirma Dallari que [...] é importante destacar que o Estatuto da Cidade veio, de certa forma, dar eficácia ao princípio constitucional, pois embora a função do plano diretor já estivesse prevista pela Constituição, a carência de uma lei federal dispondo expressamente sobre isso impedia que os Municípios dessem concreção ao princípio da função social da propriedade. 26 A preocupação com o meio ambiente aparece como uma das diretrizes da política urbana, dentro da função social da cidade, conforme estipulado no art. 2º, IV, da Lei n. 10.257. 27 A função social da propriedade rural, entretanto, veio à baila com a Lei n. 8.629, de 21 de fevereiro de 1993, detalhando os preceitos constitucionais do art. 186. Dentre os requisitos trazidos pela lei, o art. 9º, II, impõe a utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.28 O equilíbrio ambiental, portanto, é tratado como um dos elementos da função social da propriedade rural e urbana, de acordo com a Constituição Federal de 1988 e legislações específicas. 25 Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I – aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (Destacado). 26 DALLARI, Adilson Abreu. Solo criado: constitucionalidade da outorga onerosa de potencial construtivo. In Direito Urbanístico e Ambiental. DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório (coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 27. 27 Ar. 2º. A política urbana tem por objetivo ordena o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: [...] IV – o planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente. (Destacado). 28 Art. 9º. [...] § 3º - Considera-se preservação do meio-ambiente a manutenção das características próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas. 335 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II 4 A FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE Depois de mais de vinte anos em debate, o Projeto do novo Código Civil foi aprovado no dia 15 de agosto de 2001. No que concerne ao direito de propriedade, a nova lei traz, de forma inédita, a função ambiental vinculada ao exercício deste direito em geral. O novo Código Civil é o primeiro instrumento normativo brasileiro que trata da função ambiental da propriedade, conforme seu art. 1.228, § 1º.29 Note-se, pois, que além de inserir a função social da propriedade, já prescrita no Código Civil de 1916, a atual lei civil prevê a função ambiental, na medida em que trata dos seus elementos, como a proteção à flora, à fauna, à preservação das belezas naturais, à manutenção do equilíbrio ecológico e a preservação patrimônio histórico e artístico, assim como o uso da propriedade em consonância com as determinações da legislação ambiental. A função ambiental é definida por Sant´Anna como o “conjunto de atividades que visam garantir a todos o direito constitucional de desfrutar um meio ambiente equilibrado e sustentável, na busca da sadia e satisfatória qualidade de vida, para a presente e futuras gerações”.30 Acerca da importância do desenvolvimento sustentável como viés hermenêutico, manifesta-se Krell: O desenvolvimento sustentável representa, portanto, um autêntico princípio da ordem constitucional brasileira, no sentido de que as normas da legislação ordinária de todos os níveis federativos devam ser interpretadas de acordo com a sua axiologia, especialmente as que tratam de assuntos ligados à proteção ambiental e ao desenvolvimento urbano. 31 29 Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que seja injustamente a possua ou a detenha. § 1º. O direito de propriedade deve ser exercitado em consonância com suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. (Destacado). 30 SANT´ANNA, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida: da Constituição Federal ao plano diretor. In Direito Urbanístico e Ambiental. DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos Libório (coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 153. 31 KRELL, Andreas J. Desenvolvimento sustentável às avessas nas praias de Maceió/AL: a liberação de espigões pelo novo Código de Urbanismo e Edificações. Maceió: EdUFAL, 2008, p. 37-38. 336 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Pela leitura do referido dispositivo, à luz de uma hermenêutica jurídica ambiental, constata-se que o ambiente sadio não está dentro da função social da propriedade. O legislador foi mais longe, ao impor uma função ambiental autônoma, nova, gerando outras obrigações ao proprietário de qualquer bem, além daquelas já previstas com a função social. Isto é de suma importância na medida em que o direito de propriedade vem se transformando para acompanhar a globalização e o desenvolvimento tecnológico. O novo dispositivo trata de uma norma geral do direito de propriedade, não se limitando à urbana e à rural, como fazem as leis já citadas. Assim, a propriedade intelectual, virtual, empresária, etc., todas as formas de propriedade estão submetidas à função ambiental, em perfeita consonância com o direito fundamental ao equilibro ecológico e com o Estado de Direito Ambiental. Nessa linha, ao analisar o §1º, art. 1228, Código Civil, o intérprete deverá ter como pré-compreensão a manifestação da sustentabilidade como forma de garantir um desenvolvimento ecologicamente correto com equidade social, ou seja, um desenvolvimento sustentável que terá por finalidade proporcionar a sustentabilidade para as presentes e futuras gerações. Outro ponto interessante é que o Código Civil traz uma cláusula aberta em prol do meio ambiente, ao assegurar que a função ambiental deve ser assegurada também de acordo com a legislação especial e não apenas com os componentes trazidos na redação literal do diploma normativo. O princípio da função sócio-ambiental da propriedade tem uma dupla dimensão. Ao impor que o proprietário não pode prejudicar terceiros, assim como a qualidade ambiental, visualiza-se o aspecto negativo. Com o viés positivo, a função social e ambiental garante que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente equilibrado. Resta inconteste que a função social e ambiental da propriedade não constitui um mero limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a coletividade e o meio ambiente. Não há dúvida de que o Estado de Direito Ambiental se torna fortalecido com a nova disposição normativa infraconstitucional, o que comprova o reconhecimento do status material do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 337 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II Embora o Texto Constitucional permaneça o mesmo, remetendo apenas à função social da propriedade, tendo o meio ambiente como um dos seus elementos, é necessária uma leitura sistemática de toda a Constituição e da ordem jurídica em geral, tendo como précompreensão do intérprete o valor da sustentabilidade ambiental, como orienta uma hermenêutica jurídica ambiental. CONCLUSÃO O processo acelerado de desenvolvimento visando o lucro a qualquer preço e a concepção liberal de propriedade privada têm acarretado a desarmonia ambiental. É necessária uma mudança de orientação que compatibilize a defesa dos recursos ambientais com o desenvolvimento econômico. O homem, na condição de cidadão, torna-se titular do direito ao ambiente equilibrado e também sujeito ativo do dever fundamental de proteger o ambiente, galgando, assim, passos para a estruturação de um Estado de Direito Ambiental. A crise ambiental demanda de forma emergencial um novo papel do Estado e do Direito. O Estado de Direito Ambiental é um paradigma estatal possível, não obstante a dificuldade de efetivá-lo, com elementos integrantes sólidos e adequados, a fim de que sejam implementados pelos Estados hodiernos na concretização do princípio da solidariedade como fundamento teórico-constitucional e da sustentabilidade como marco axiológico-constitucional. Ao adotar referido paradigma, é necessário um novo viés hermenêutico da ordem jurídica, tendo como valor a sustentabilidade, invadido a esfera pública e privada. Tratase da ecologização do Direito, impondo uma nova postura do Estado, imprescindível à promoção da dignidade da pessoa humana. Percebe-se que a função social da propriedade pretende não apenas impor obrigações negativas ao proprietário, mas também um poder-dever de dar a sua propriedade um destino em prol da coletividade. No que tange à função ambiental da propriedade, o novo Código Civil, em seu art. 1228, §1º, aloca o equilíbrio ecológico de forma autônoma, fora da função social da propriedade, comprovando o status material do direito fundamental ao meio ambiente equilibrado. O legislador foi além, ao impor uma função ambiental nova, gerando outras 338 Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente Parte II obrigações ao proprietário de qualquer bem, além daquelas já previstas com a função social. O direito de propriedade vem se transformando para acompanhar a globalização, o desenvolvimento tecnológico e a crise ecológica. O novo dispositivo trata de uma norma geral do direito de propriedade, não se limitando à urbana e à rural. A repercussão é tamanha no sentido que qualquer forma de propriedade, seja ela intelectual, virtual, empresária, etc., todas estão submetidas à função ambiental, em perfeita consonância com o direito fundamental ao equilibro ecológico e com o Estado de Direito Ambiental. REFERÊNCIAS BENJAMIM, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e Ecologização da Constituição Brasileira. In Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). São Paulo: Saraiva, 2007. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional Ambiental Português: tentativa de compreensão de 30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português. In: Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). São Paulo: Saraiva, 2007. __________. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra: Coimbra, 2004 __________. Direito público do ambiente. Coimbra: Faculdade de Direito de Coimbra, 1995. 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