estudos de direito de propriedade e meio ambiente

Transcrição

estudos de direito de propriedade e meio ambiente
Coordenadores
Marcos Wachowicz
João Luis Nogueira Matias
ESTUDOS DE DIREITO DE PROPRIEDADE E
MEIO AMBIENTE
Fundação Boiteux
Florianópolis
2009
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
WACHOWICZ, Marcos; MATIAS, João Luis Nogueira. Estudos de Direito de
Propriedade e Meio Ambiente. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2009.
1 CD-ROM
Inclui bibliografia
ISBN: 978-85-7840-022-4
1. Propriedade. 2. Meio Ambiente. 3. Propriedade Intelectual. 4. Desenvolvimento. 5.
Políticas públicas.
Editora Fundação Boiteux
Conselho Editorial
Prof. Aires José Rover
Prof. Arno Dal Ri Júnior
Prof. Carlos Araújo Leonetti
Prof. Orides Mezzaroba
Secretária executiva
Thálita Cardoso de Moura
Capa, projeto gráfico
Reciclagem digital e Arte Visual
Diagramação e revisão
Thais dos Santos Casagrande
Endereço
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
SUMÁRIO
PREFÁCIO
PARTE I – PROPRIEDADE
O SISTEMA DE PROPRIEDADE INDÍGENA PRÉ-COLONIAL.......................................................................14
Thais Luzia Colaço
A PROPRIEDADE NO BRASIL COLÔNIA, IMPÉRIO E NO CÓDIGO CIVIL DE 1916................................26
Francisco Amaral
A PROPRIEDADE PÓS-MODERNA: conceito e classificação............................................................................43
José Isaac Pilati
MACROECONOMIA
E
ADMINISTRAÇÃO
PÚBLICA:
propriedade
pública
e
interesses
privados...................................................................................................................................................................70
Luiz Henrique Urquhart Cademartori
O
FUNDAMENTO
ECONÔMICO
E
AS
NOVAS
FORMAS
DE
PROPRIEDADE......................................................................................................................................................95
João Luis Nogueira Matias
PROPRIEDADE INTELECTUAL E SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: uma análise de sua natureza jurídica e
co-dependência......................................................................................................................................................126
Marcos Wachowicz
Afonso de Paula Pinheiro Rocha
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL ATRAVÉS DE MEDIDAS DE
FRONTEIRA: regulação no acordo TRIPS e na negociação do Acordo Comercial Anti-Contrafação
(ACTA).................................................................................................................................................................147
Heloísa Gomes Medeiros
PROPRIEDADE E DESENVOLVIMENTO: análise pragmática da função social............................................167
Luciano Benetti Timm
Renato Vieira Caovilla
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
PARTE II – PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE
ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL: um novo paradigma para o século XXI...............................................194
José Rubens Morato Leite
Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira
PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE NO DIREITO.......................................................................................214
Rogério Portanova
PROPRIEDADE, TRIBUTOS E MEIO AMBIENTE..........................................................................................228
Ubaldo César Balthazar
ALGUNS COMENTÁRIOS COMPARATIVOS A RESPEITO DA RELAÇÃO ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL
DA PROPRIEDADE E PROTEÇÃO AMBIENTAL NOS SISTEMAS JURÍDICOS DO BRASIL E DA
ALEMANHA........................................................................................................................................................243
Andreas J. Krell
DA CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA EM ÁREAS DE PROTEÇÃO: ESTUDO
SOBRE A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA PROPRIEDADE PÚBLICA URBANA.................................259
Juliana Cristine Diniz Campos
PROPRIEDADE INTELECTUAL E AMBIENTALISMO CULTURAL.....................……..........................…273
Afonso de Paula Pinheiro Rocha
TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL E PROPRIEDADE: possibilidade de uma política fiscal adequada ao programa
“Minha casa, minha vida”.....................................................................................................................................303
Denise Lucena Cavalcante
João Victor Porto Sales
A FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE COMO INSTRUMENTO DE EFETIVAÇÃO DO ESTADO
DE DIREITO AMBIENTAL................................................................................................................................327
Germana Parente Neiva Belchior
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
PREFÁCIO
O Estudo do Direito de Propriedade e do Meio Ambiente na sociedade contemporânea
ganha relevo e novas dimensões teóricas. Percebe-se um grande movimento acadêmico, um
crescente interesse sócio-político e econômico, que tem despertado nos estudiosos do direito
questões que delineiam novos contornos da disciplina em suas mais variadas matizes
doutrinárias.
Neste sentido é que a presente obra aglutina inúmeros seminários, congressos e eventos
realizados no Brasil e no exterior pelos professores e pesquisadores do Programa de Pósgraduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e da
Universidade Federal do Ceará – UFC.
Esta obra coletiva uma visão ampla sobre as questões dos novos paradigmas para um
velho direito: Propriedade e Meio Ambiente.
1.
Novos paradigmas para um velho direito: Propriedade e Meio Ambiente
A consolidação contemporânea da idéia de supremacia das normas constitucionais
impõe a releitura dos direitos fundamentais em perspectiva que prestigie os valores
democraticamente eleitos pelo legislador.
O contexto do neoconstitucionalismo demanda construção teórica que faça a devida
adaptação dos institutos jurídicos aos padrões firmados pela Constituição, fixando novos
paradigmas de interpretação para as normas infraconstitucionais.
O foco do presente projeto gira em torno do instituto de propriedade, abordando desde a
parte teórica, histórica e filosófica em busca da sua compreensão, até a construção em forma
de direito.
A doutrina brasileira possui um paradigma de forte tradição romano-germânica na sua
concepção de propriedade. Entretanto, nada mais justifica que a mesma seja vista com ares de
um direito natural e sagrado, bem como inerente ao espírito humano.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Por sua vez, dentro de um paradigma anglo-saxão, o estudo da propriedade adquire um
caráter de cunho mais técnico e a mesma passa a ser estudada sobre a ótica de um fenômeno
econômico.
Surge, então, o interesse para o avanço da ciência jurídica em realizar uma análise
comparativa entre os dois modelos, oportunizando o estudo de como essa mudança de
paradigma pode ser operacionalizada para melhor compreender e implementar os objetivos e
valores destacados na Constituição Federal de 1888.
Assim, ante as novas demandas do Direito e do Estado, o direito de propriedade deve
ser remodelado para respeitar a função social e ambiental, o que demonstra a importância e a
atualidade da pesquisa, conforme será analisado no decorrer deste projeto.
2.
O direito de propriedade no paradigma liberal
O advento do Estado liberal marca a ruptura com a velha ordem, caracterizada pela
prevalência do mito e do dogma, no plano filosófico, pela inexistência da liberdade de
trabalho, no plano econômico, e pelo poder ilimitado do soberano, no plano político.
Tal realidade explica, embora não justifique, os excessos que lhe foram peculiares. O
ideário liberal é expressão não apenas de um novo cenário político e social, mas de uma
transformação da própria maneira das pessoas encararem a vida, o que refletia sobre a ordem
jurídica e, necessariamente, sobre o direito de propriedade.
No Estado liberal, por volta do século XVIII, vigorava o constitucionalismo clássico,
onde a Constituição era reduzida a um instrumento jurídico que tinha como finalidade básica
limitar ou enfrear o exercício do poder estatal.
O poder estava adstrito às normas que almejavam a liberdade, protegendo, assim, o
indivíduo. E para se ter liberdade, era preciso segurança na ordem jurídica. A liberdade
individual, e, conseqüentemente, a segurança jurídica eram os primados básicos do Estado
liberal.
Surgem, assim, os direitos civis e políticos, denominados de direitos fundamentais de
primeira geração. Referidos direitos se caracterizam pela necessidade de não-intervenção do
Estado no patrimônio jurídico dos membros da comunidade. Esta categoria é fundada no
Estado liberal absenteísta, onde se deu a manifestação do status libertatis ou status negativus.
Realçam, portanto, o princípio da liberdade.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Em tal contexto, a propriedade foi concebida como absoluta, plena realização da
liberdade dos indivíduos, direito divino, assegurando ao proprietário o direito de usar, gozar e
dispor da coisa. O antigo Código Civil Brasileiro, Lei n. 3.071, de 1º de janeiro de 1916, era
expressão desse ideário. O Estado devia, assim, assegurar os meios jurídicos necessários para
o proprietário garantir a manutenção de sua propriedade, bem como seu caráter de
perpetuidade. O uso da propriedade era realizado de forma irresponsável, independente dos
custos ambientais que tal atividade pudesse proporcionar, em busca do desenvolvimento
econômico.
3. O Estado social e o direito de propriedade
A industrialização e o progresso técnico trazem consigo fenômenos que, ao romper com
a harmonia da sociedade liberal, alteram profundamente as concepções da sociedade e do
Estado, bem como o próprio sistema de direitos fundamentais.
Nesse sentido, a concepção individualista do direito de propriedade, típica do Estado
liberal, tornou-se um forte obstáculo à proteção e à preservação do meio ambiente. Com a
degradação ambiental, a qualidade de vida também foi prejudicada.
A meta do intervencionismo é transformar o ultrapassado Estado liberalista em Estado
social, objetivando solidariedade e justiça social. A partir deste momento, com a origem do
Estado social, visualizam-se os direitos fundamentais de segunda geração.
Os direitos de segunda geração são os direitos econômicos, culturais e sociais, só que os
últimos requerem prestações positivas (status positivus) por parte do Estado para suprir as
carências da sociedade.
A propriedade, direito fundamental típico de primeira geração, precisa cumprir sua
função social, de acordo com a legislação civil de 1916.
Verifica-se que referido direito se transforma, se modifica, se reestrutura para atender
às novas exigências do Estado Social, em consonância com os direitos fundamentais de
segunda geração. Contudo, o formalismo típico do Estado Social não era suficiente para a
concretização efetiva dos direitos previstos em tese.
Como avanço em relação ao Estado Social, no Estado Democrático de Direito a ordem
jurídica é vocacionada à realização dos valores previstos na Constituição, atuando de forma
incisiva para a concretização dos direitos fundamentais.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
No que se refere à propriedade, a Constituição Federal de 1988, ao garantir, em seu art
5º, incisos XXII e XXIII; e art. 170, incisos II e III, o direito de propriedade vinculado à
função social, acarreta uma transformação no seu conteúdo.
A função social da propriedade, portanto, pretende não apenas impor obrigações
negativas ao proprietário, mas também um poder-dever de dar a sua propriedade um destino
em prol da coletividade.
No entanto, ainda perdura no Estado contemporâneo o essencial da concepção liberal,
traduzindo na afirmação de que o homem, pelo simples fato de o ser, tem direitos e que o
Poder Público deve respeitá-los.
Assegurar o respeito da dignidade humana continua sendo o fim da sociedade política.
Dignidade esta, no entanto, que não é vista apenas no âmbito do indivíduo isolado, mas sim
de uma forma coletiva, em virtude da solidariedade.
4. O direito de propriedade no Estado Democrático de Direito: o avanço para o
Estado de Direito Ambiental
Continuando com a evolução histórica, surgem direitos de titularidade coletiva,
intitulados pela doutrina de direitos fundamentais de terceira geração.
Consagram o princípio da solidariedade, englobando, também, o meio ambiente
ecologicamente equilibrado, uma saudável qualidade de vida, progresso, autodeterminação
dos povos e outros direitos difusos.
O direito ao meio ambiente alcançou patamar de direito fundamental da pessoa
humana, conforme previsto no art. 225, caput, da Lei Maior. Analisando o art. 5º, CF/88,
percebe-se que o direito ao meio ambiente não foi por ele albergado, estando, assim, fora do
seu catálogo. No entanto, a doutrina já é uníssona ao defender que o rol dos direitos e
garantias do art. 5º não é taxativo, na medida em que § 2º, do art. 5º, traz uma abertura de
todo o ordenamento jurídico nacional ao sistema internacional de proteção aos direitos
humanos e aos direitos decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição.
A questão ambiental ainda goza de relevo especial na missão de tutelar e de
desenvolver o princípio da dignidade humana ou como desdobramento imediato da coresponsabilidade geracional.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
A Constituição brasileira de 1988, ao completar vinte anos, é testemunha de
transformações que tornam a questão ambiental na pauta do dia. O meio ambiente
ecologicamente equilibrado assume tamanha importância que acaba se mostrando como um
direito “horizontal” na medida em que interfere sobre os demais ramos do direito: privado,
público e internacional, caracterizando-se, ainda, como um direito de “integração”, que
penetra em todos os ramos da ciência jurídica para neles introduzir a idéia ambiental.
Nesse sentido, a cada dia aumenta o número de adeptos de um novo modelo de Estado,
defendido, inicialmente, por Canotilho, intitulado de Estado Constitucional Ecológico.
Trata-se da ecologização do direito ao impor uma nova postura do Estado, na busca da
efetivação dos direitos fundamentais de terceira geração.
Depois de mais de vinte anos em debate, o Projeto do novo Código Civil foi aprovado
no dia 15 de agosto de 2001. No que concerne ao direito de propriedade, a nova lei traz, de
forma inédita, a função ambiental vinculada ao exercício deste direito em geral.
O novo Código Civil é o primeiro instrumento normativo brasileiro que trata da função
ambiental da propriedade, conforme seu art. 1.228, § 1º.
Note-se, pois, que além de inserir a função social da propriedade, já prescrita no
Código Civil de 1916, a atual lei civil prevê a função ambiental, na medida em que trata dos
seus elementos, como a proteção à flora, à fauna, à preservação das belezas naturais, à
manutenção do equilíbrio ecológico e a preservação patrimônio histórico e artístico, assim
como o uso da propriedade em consonância com as determinações da legislação ambiental.
Pela leitura do referido dispositivo, constata-se que o ambiente sadio não está dentro da
função social da propriedade. O legislador foi mais longe, ao impor uma função ambiental
autônoma, nova, gerando outras obrigações ao proprietário de qualquer bem, além daquelas
já previstas com a função social.
Isto é de suma importância na medida em que o direito de propriedade vem se
transformando para acompanhar a globalização e o desenvolvimento tecnológico. O novo
dispositivo trata de uma norma geral do direito de propriedade, não se limitando à urbana e à
rural, como fazem as leis já citadas.
Assim, a propriedade intelectual, virtual, empresária, etc., todas as formas de
propriedade estão submetidas à função ambiental, em perfeita consonância com o direito
fundamental ao equilibro ecológico e com o Estado de Direito Ambiental.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Outro ponto interessante é que o Código Civil traz uma cláusula aberta em prol do
meio ambiente, ao assegurar que a função ambiental deve ser assegurada também de acordo
com a legislação especial e não apenas com os componentes trazidos na redação literal do
diploma normativo.
O princípio da função sócio-ambiental da propriedade tem uma dupla dimensão. Ao
impor que o proprietário não pode prejudicar terceiros e qualidade ambiental, visualiza-se o
aspecto negativo. Com o viés positivo, a função social e ambiental garante que a propriedade
seja efetivamente exercida para beneficiar a coletividade e o meio ambiente equilibrado.
Resta inconteste que a função social e ambiental da propriedade não constitui um mero
limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional, por meio da
qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que não prejudique a
coletividade e o meio ambiente.
A nova perspectiva da função social e ambiental deve ser rediscutida para atender ao
novel paradigma do Estado de Direito Ambiental, ao permitir, portanto, que o proprietário
tenha obrigações positivas, no exercício do seu direito, para que a sua propriedade esteja em
consonância com o modelo do desenvolvimento sustentável.
Não dá dúvidas de que o Estado de Direito Ambiental se torna fortalecido com a nova
disposição normativa infraconstitucional, o que implica no reconhecimento do status material
do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Embora o texto
constitucional permaneça o mesmo, remetendo apenas à função social da propriedade, tendo
o meio ambiente como um dos seus elementos, é necessária uma leitura sistemática de toda a
Constituição e da ordem jurídica em geral, tendo como pré-compreensão do intérprete o valor
da sustentabilidade ambiental.
5.
A propriedade intelectual e o meio ambiente
Na análise da nova feição do direito de propriedade, o meio ambiente, em suas
diversificadas perspectivas, assume destacada importância. A compreensão do alcance do
conceito de meio ambiente e as implicações que decorrem de sua proteção, condicionam o
exercício do direito de propriedade, sendo correto falar-se em função ambiental da
propriedade.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Neste contexto, serão apresentados os paralelos existentes entre o Direito da
Propriedade Intelectual e o Direito Ambiental, de maneira a propor a existência de um meio
ambiente intelectual ou cultural. Impõe-se, também, a análise de como os instrumentos do
direito ambiental podem ser utilizados para aprimorar a tutela jurídica da propriedade
intelectual.
Podem ser propostos paralelos entre as duas searas jurídicas, principalmente de caráter
epistemológicos, o que pode levar à sugestão de formas de aplicação de alguns princípios do
direito ambiental para o campo da propriedade intelectual.
A temática da pesquisa aglutinada neste livro se demonstra relevante por tratar da
necessidade imperativa de conciliar o desenvolvimento econômico com o equilíbrio
ecológico, na invasão do público na esfera privada, em prol da ecologização do direito de
propriedade, inclusive referente ao meio ambiente intelectual.
6.
A estrutura e sistematização da pesquisa
A pesquisa agora publicada na presente obra coletiva aglutina temas de ampla
discussão no país e no exterior na área do Direito da Propriedade e Meio Ambiente.
Nos diferentes artigos aqui coletados e para uma melhor sistematização, optou-se por
uma estrutura em duas partes:
A primeira parte contempla essencialmente estudos sobre o Direito de Propriedade,
abordando temas como a história dos sistemas de propriedade, conceitos,
classificações e novas formas de propriedade, em especial a propriedade intelectual.
A segunda parte contempla estudos sobre o Direito de Propriedade e Meio Ambiente,
isto é, analisa não somente aspectos da propriedade pura, mas sua interação com
questões ambientais, abordando temas como Estado de Direito Ambiental, questão
tributária, função sócio-ambiental da propriedade, propriedade intelectual e
ambientalismo cultural.
Os trabalhos aqui desenvolvidos também foram apresentados nos seminários e
congressos realizados como fruto das pesquisas do PROJETO CASADINHO do CNPq que
possibilitou a união dos esforços de professores e de pesquisadores do Programa de Pós11
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC e Programa
de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Ceará – UFC.
Os artigos agora publicados cumprem com excelência o aprofundamento das pesquisas
devotadas aos Direito da Propriedade e Meio Ambiente, bem como provocam debates sobre
seus fundamentos constitutivos e matizes ideológicas que por certo influenciarão a evolução
do pensamento jurídico.
A todos que contribuíram para a realização desta obra nosso muito obrigado.
O resultado agora o leitor tem diante de si.
Marcos Wachowicz
Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em Direito na
Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC
João Luis Nogueira Matias
Professor do Curso de graduação e Pós-graduação em Direito na
Universidade Federal do Ceará – UFC
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
PARTE I
PROPRIEDADE
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
O SISTEMA DE PROPRIEDADE INDÍGENA PRÉ-COLONIAL
Thais Luzia Colaço1
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. A discussão da existência de direito nas sociedades ágrafas e sem
Estado. 3. Bens dos mortos. 4. Propriedade coletiva. 5. Propriedade individual. 6.
Sistema de produção. 7. Considerações Finais. 8. Referências Bibliográficas.
1. Introdução
Este trabalho visa relatar o sistema de propriedade indígena, dos Guarani précoloniais.
Antes da chegada dos europeus à América, as populações indígenas tinham
cultura e história próprias, seguindo seu ritmo normal de desenvolvimento.
Partindo-se de uma visão etnocêntrica, desde a época do descobrimento,
existe consenso de que os indígenas se achavam desprovidos “de fé, de lei e de rei”.
Por essa concepção, não se admitiam qualquer manifestação religiosa, regras de
convívio social e liderança entre os índios americanos. A crença na superioridade e na
onipotência do modelo da sociedade cristã-ocidental não permitia aos europeus
perceber outra verdade além da sua.
Mas populações indígenas possuíam as suas regras de convívio social, o seu
direito consuetudinário, que lhes foi negado por falta de compreensão e respeito e também
pelos interesses da dominação colonial.
Ao se depararem com outra realidade sócio-jurídica na América, os espanhóis
chocaram-se e não entenderam as diferenças entre o direito espanhol de tradição
romanista e o direito consuetudinário das sociedades indígenas, fundamentado,
1
Doutora em Direito. Professora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direitos da UFSC.
Coordenadora do Grupo de Pesquisa de Antropologia Jurídica – GPAJU. Pesquisadora do CNPq. E-mail:
[email protected].
14
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
basicamente, na responsabilidade coletiva, no sistema da reciprocidade e da solidariedade,
priorizando os interesses coletivos sobre os individuais. Isto vai aparecer como algo
antagônico, totalmente diverso da sociedade burguesa individualista ocidental.
2. A discussão da existência de direito nas sociedades ágrafas e sem Estado
A existência ou não de direito entre os povos ágrafos foi uma discussão que se
estendeu a este século. O direito era sempre associado à figura do Estado e da sua
codificação escrita. Era muito difícil, à maioria dos juristas, conceber outras formas de
direito, que não aquela já consagrada pelo modelo ocidental.
Essa idéia da ausência de um sistema jurídico nas sociedades indígenas perdurou
até recentemente, porque o direito indígena não estava de acordo com os padrões do
direito europeu, por não possuir "instituições tais como são definidas nos sistemas
romanistas ou do common law, por exemplo: a noção de justiça, de regra de direito (rule
of law), de lei imperativa de responsabilidade individual".2
Chase-Sardi chama de "etnocentrismo jurídico" a posição de vários autores,
tanto de esquerda quanto de direita, como Marx, Engels, Kelsen e Radcliffe-Brown, que
vinculam o direito ao Estado, não aceitando a existência de direito nas sociedades sem
escrita por não haver organização estatal. Afirma, ainda, que é necessário atualizar-se com
as modernas investigações antropológicas, que chegaram à conclusão de que não há
sociedade humana sem cultura, muito menos sem direito, ainda que não possua o
chamado "Estado". O direito tem por base a cultura, constituída fundamentalmente pelos
costumes herdados socialmente.3
O conceito de lei existia na língua Guarani, representado pela palavra TEKO,
que significa "ser, estado de vida, condição, estar, costume, lei, hábito".4 As idéias de
"lei natural", "conformidade com os maiores", ou
" conformidade com o direito
costumeiro" eram representadas pelas palavras TEKO REKO, TEKO RAPE e TEKO
2
GILISSEN, op. cit., p. 36.
CHASE-SARDI, Miguel. El derecho consuetudinario indígena y su bibliografía antropológica en el
Paraguay. Asunción: Universidad Católica, 1990. p. 49, 17-18.
4
MELIÁ, Bartomeu S. J. El "modo de ser" Guaraní en la primera documentación jesuítica. 15941639. Revista de Antropología. São Paulo: v. 24, 1981. p. 7.
3
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
MÉÊ. Também possuíam a noção de "conduta boa", pela palavra TEKÓ PORÃ, e
"conduta má" pela palavra TEKÓ VAÍ.5
Quanto ao direito civil, a concepção tradicional da Antropologia Jurídica não admitia
qualquer possibilidade de sua existência nas sociedades sem escrita.
Porém, Gilissen constatou que antes do aparecimento da escrita os povos já
haviam "percorrido uma longa evolução jurídica", possuindo grande parte das instituições
civis hoje conhecidas: "o casamento, o poder paterno e ou materno sobre os filhos, a
propriedade (pelo menos mobiliária), a sucessão, a doação, diversos contratos tais como o
empréstimo."6
Malinowski afirma que as regras do direito civil são respeitadas não pela
arbitrariedade do temor a uma represália, mas, sim, por um "acordo da reciprocidade" em que
todos serão beneficiados.7
3. Bens dos mortos
Existiam vários costumes nas sociedades indígenas com relação ao destino
dos bens deixados pelos mortos. Segundo Gilissen, falecido o chefe, normalmente os
seus pertences eram enterrados com ele ou incinerados. Mas os bens que podiam ser
úteis à comunidade para suprir suas necessidades eram preservados, "fazendo assim
aparecer as primeiras formas de sucessão de bens." 8
Cláudio de Cicco afirma que os bens deixados pelo pai de família eram repartidos entre os
seus parentes, mas, a cabana seria do filho que casasse primeiro.9
Com relação aos índios Guaná, os bens do falecido são repartidos igualmente
entre parentes e amigos, sem privilegiar os filhos.10
Entre os Mbyá-Guarani do Guairá, só era permitido tocar nos objetos dos mortos
após feita a sua conferência pelo chefe. Posteriormente, os bens eram colocados sobre a
sepultura e abandonados.11
5
PERALTA, Anselmo & OSUMA, Tomas. Diccionario guarani-espanhol. Buenos Aires: Tupã, 1950. p.
142.
6
GILISSEN, op. cit., p. 31.
MALINOWSKI, p. 61.
8
GILISSEN, op. cit., p. 44.
9
DE CICCO, op. cit. p. 6.
10
CHASE-SARDI, op. cit., p. 86.
7
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Tratando-se do Guarani paraguaio contemporâneo, os únicos herdeiros do
morto são seu cônjuge e seus filhos. Objetos de uso pessoal como roupas, adornos, a
rede e documentos são enterrados junto com ele. Os Guarani da região oriental do
Paraguai não conhecem o direito de herança, pois os pertences do defunto são
enterrados com ele após serem tocados pelos seus parentes. 12
Os Ava-Katu-Ete cultivavam a instituição do hermanazzo adoptivo, na qual é
estabelecido estreito vínculo entre os irmãos adotivos. Em caso de morte de um deles, desde
que não tenha constituído família, todos os bens passam a pertencer ao irmão adotivo, e não
ao irmão consangüíneo.13
4. Propriedade coletiva
As sociedades indígenas também possuíam um tipo de propriedade, tanto
coletiva quanto individual. A propriedade coletiva é a mais abrangente e se inicia com a
própria ocupação do território. A terra, o ar e a água são bens considerados sagrados, aos
quais o homem tem acesso para uso comum.14
Gilissen reforça esta idéia: “O solo é sagrado, divinizado; ele é a sede de forças
sobrenaturais. Um laço místico, por vezes materializado por um altar, existe entre os
homens e os espíritos da terra, e também com os mortos, os antepassados enterrados neste
solo.”15
De acordo com as atividades econômicas desenvolvidas pelos povos indígenas
(a caça, a pesca, o extrativismo e a agricultura), o grupo necessita de grandes extensões de
terra, e seus limites territoriais devem ser rigorosamente respeitados por outras tribos. O
território é considerado propriedade da comunidade como um todo e jamais poderá vir a
ser alienado.16 O chefe divide a terra em parcelas que são distribuídas às famílias apenas
por um curto lapso de tempo. "Não existe apropriação por prescrição aquisitiva; qualquer
11
12
13
14
15
16
Id., Ibid., p. 101.
Id., Ibid., p. 144, 148.
Id., Ibid., p. 93.
Id., Ibid., p. 143.
GILISSEN, op. cit., p. 45.
DE CICCO, op. cit., p. 5.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
que seja a duração da detenção de uma parcela, ela deve sempre retornar à comunidade."17
Enfim, a comunidade é a proprietária da terra, e as famílias detêm a posse. 18
Quando excessivos, os bens decorrentes da produção familiar eram destinados
ao grupo, mas quando insuficientes para a distribuição coletiva, eram consumidos apenas
pelos membros da família. Em momentos de crise e de escassez, a família carente era
suprida por outras famílias.19
Dessa forma, a redistribuição "generosa", fundamentada no princípio da
reciprocidade, determinava a produção de bens, tornando-se garantia familiar contra a
escassez e também sinônimo de prestígio social. 20
Sendo assim, os indivíduos que não se enquadrassem no sistema da
reciprocidade eram socialmente rechaçados:
Uma das ações mais fortemente condenadas como anti-sociais é a avareza;
uma pessoa que tem, por exemplo, mais facas do que necessita e se recusa a distribuir
o excedente, é malvista e desprestigiada; um líder de aldeia que, sistematicamente, se
recusa a ser generoso, isto é, a dar do que é seu quando lhe é pedido, acaba por perder
sua credibilidade como líder e, eventualmente, a liderança.21
O espaço habitacional também era distribuído conforme os laços de
consangüinidade e afinidades entre os seus ocupantes.22Todos os integrantes eram donos
da habitação em geral, mas internamente existia a delimitação de espaço individual de
cada um.23
5. Propriedade individual
Quanto à questão da propriedade individual, as fontes confirmam a sua
existência. Basta averiguar no direito das sucessões que, quando alguém falece,
normalmente são enterrados com o morto os seus objetos de uso pessoal. Michaele afirma
que a propriedade individual dos índios limita-se às armas, a alguns ornamentos e à rede.
17
18
19
20
21
22
23
GILISSEN, op. cit., p. 45.
CHASE-SARDI, op. cit., p. 144.
RAMOS, op. cit., p. 42.
CHASE-SARDI, op. cit., p. 169.
RAMOS, op. cit., p. 39.
Id., Ibid., p. 37.
DE CICCO, op. cit., p. 6.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
O restante, como a habitação, os utensílios domésticos e de trabalho, assim como os
alimentos são bens de família, pertencentes ao clã.24
Referindo-se à falta de ambição dos indígenas de acumular riquezas em metais
preciosos, Hans Staden atesta: "Seu tesouro são penas de pássaros. Quem as tem em
grande quantidade é rico, e quem tem cristais para os lábios e faces, é dos mais ricos." 25
Susnik argumenta que os bens tangíveis são produtos manufaturados,
pertencendo de direito a quem os produziu, mas que se trata de uma propriedade
limitada porque está sujeita, freqüentemente, às regras de livre prestação e do uso
coletivo. São eles: os adornos plumários, principalmente se associados a alguma
experiência visionária; as canoas produzidas cooperativamente; as canoas pesqueiras
que são de propriedade da família; as canoas guerreiras que pertecem aos guerreiros.
Não existindo, portanto, bens móveis excedentes, predomina o utilitarismo imediato. 26
No entanto, segundo a mesma autora, os bens intangíveis ou imateriais são
exclusivos de seus possuidores: os cantos revelados pelos sonhos e as fórmulas mágicas
são de propriedade individual, mas podem ser transferidos em vida pelo seu proprietário;
os clãs são donos de seus cantos particulares transmitidos pelos seus ancestrais; as
tradições mitológicas ensinadas durante os ritos de iniciação pertencem a tribo em geral;
as associações responsáveis pelos cultos podem ter direito de posse sobre as sepulturas ;
as lendas referentes a membros de uma família lhes pertencem; os xamãs são donos dos
seus conhecimentos mágicos; os instrumentos musicais considerados sagrados e as
máscaras rituais são propriedades individuais de seus portadores.27
Cabe lembrar que, apesar da existência da propriedade individual dos bens
tangíveis, na maioria das vezes eles não eram objetos raros. Pela abundância de matériaprima e simplicidade de produção, eram de fácil acesso a todos. Além do que, a simples
manifestação do desejo de obter a coisa era suficiente para que a recebesse como doação,
firmando um compromisso de retribuí-la em outra oportunidade. 28
24
25
MICHAELE, op. cit., p. 10.
STADEN, op. cit., p. 172.
26
SUSNIK, Introduccíon a la antropología social. (Ambito americano), p. 89.
27
Id., Ibid., p. 90.
28
MARTINS, op. cit., p. 279.
19
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Moisés Bertoni ratifica a situação da rotatividade da posse dos bens,
demonstrando que não se reconhece a propriedade, mas se respeita a posse pessoal dos
objetos num determinado momento, pois a pessoa que detém a coisa não se chama “seu
proprietário”, nem “seu dono”, ou sequer “seu possuidor”, só se chama “sua pessoa”, ou
seja, a pessoa que, naquele momento, detém a coisa.29
6. Sistema de produção
A divisão do trabalho nas sociedades indígenas era feita, basicamente, pelo sexo
e pela idade; cada qual tinha uma parcela de colaboração, sabendo, antecipadamente, dos
benefícios que reverteriam para si e para o grupo.30 Toda produção tinha uma motivação
fundamental que era "a possibilidade da redistribuição,que envolve um direito e um dever". 31
Também é importante frisar que muitos autores, como Martins, consideram
incorreta a qualificação do trabalho e da economia Guarani como "mera economia de
subsistência", pois, apesar do pouco tempo dedicado ao trabalho, a sua produção
ultrapassava o mínimo necessário para garantir a sobrevivência do grupo. É certo que não
existia um excedente econômico capaz de acumular grandes riquezas, mas existia um
excedente que permitia "a hospitalidade generosa, a ajuda solidária e a organização de
grandes festas."32
7. Considerações Finais
Os Guarani pré-coloniais também possuíam um tipo de propriedade coletiva e
individual. A propriedade coletiva era a mais importante e a mais abrangente, iniciando-se
com a ocupação do território. A terra era considerada um bem sagrado, indispensável para
a sobrevivência do grupo. Os limites de cada tribo deveriam ser rigorosamente respeitados
por outras tribos. O território pertencia a toda a comunidade e jamais poderia ser alienado.
O tipo de atividade econômica praticada pelos indígenas (a caça, a pesca, o
extrativismo e a agricultura) exigia grandes extensões de terra. O valor econômico da terra
29
BERTONI, op. cit., p. 223.
30
Conforme as características sócio-econômicas das sociedades indígenas, as relações de trabalho foram
inseridas no contexto do direito civil, não cabendo mencioná-las no direito do trabalho.
31
MARTINS, op. cit., p. 148.
32
MARTINS, op. cit., p. 246.
20
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
estava relacionado a sua fertilidade. O chefe dividia a terra em parcelas que eram distribuídas
às famílias por tempo determinado, depois retornavam à comunidade, donde se conclui que as
famílias apenas usufruíam temporariamente da posse da terra, mas a comunidade é que era a
sua proprietária.
Os bens decorrentes da produção familiar Guarani eram distribuídos ao grupo
quando excedentes, e, em momentos de crise, a família carente que antes houvesse doado
seus bens era suprida por outras famílias que tivessem excesso de produção. O princípio
da reciprocidade era ativado com a redistribuição generosa dos bens. O indivíduo
avarento, que não se enquadrasse no sistema da reciprocidade, negando-se a distribuir o
excedente, era rechaçado socialmente.
A habitação familiar indígena pertencia aos membros da grande família,
agrupados por laços de consangüinidade e afinidade. Todos eram proprietários da
residência de um modo geral, mas, no seu interior, existia a demarcação do espaço de
cada um dos seus ocupantes. As construções pertenciam à grande família até o momento
em que eram abandonadas em conseqüência de migração do grupo, ou pela sua
substituição por outra casa devido ao seu estado precário.
Apesar de tênue, existia na sociedade Guarani a noção de posse individual. Os
objetos de uso pessoal, como as armas, os ornamentos e a rede eram de propriedade
individual. Os utensílios domésticos e de trabalho e os alimentos eram bens de família,
pertencentes ao clã. Pode-se afirmar ainda que os bens intangíveis ou imateriais eram
exclusivos de seus possuídores, mas os bens tangíveis tinham a propriedade limitada
porque estavam sujeitos às regras da livre prestação e do uso coletivo. Na maioria das
vezes, os bens tangíveis não eram coisas raras, podendo ser doados a qualquer um que os
desejasse, sob o compromisso de retribuí-lo quando necessário, caracterizando a
rotatividade na posse dos bens. Na verdade não se reconhecia a propriedade, mas, sim, a
posse pessoal de bens num determinado momento.
Basicamente existiram duas categorias de bens: os bens de uso exclusivamente
coletivo, o Tupambaé; e os bens de uso familiar ou individual, o Abambaé.
Nas sociedades indígenas não havia distinção entre tempo produtivo e tempo
recreativo, existindo uma contínua alternância entre as atividades laborais e as atividades
dedicadas ao descanso, ao lazer, à sociabilidade e à religião.
Na sociedade Guarani normalmente não havia nenhuma condenação ao ócio,
pois grande parte do tempo era utilizado para descanso e festividades.
21
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Existia o costume indígena do mutirão, que era a realização de trabalhos
coletivos em atividades como a pesca, a colheita e a construção de casas, reforçando os
vínculos de amizade e de parentesco.
Mesmo dedicando-se pouco tempo, e não sendo sistematizado e disciplinado, o
trabalho indígena resultava numa produção suficiente para satisfazer às necessidades do
grupo, possibilitando, ainda, a promoção de grandes festas, a ajuda solidária e a
hospitalidade generosa. A baixa produtividade atendia às limitadas necessidades da
economia tribal.
O trabalho nas sociedades indígenas era dividido basicamente pelo sexo e pela
idade. O trabalho feminino era indispensável para a sobrevivência do grupo. As mulheres
desenvolviam trabalhos domésticos, artesanais (fiação e olaria), agrícolas e de transporte
de carga. Os homens praticavam a caça, a pesca, a guerra e construíam casas,
embarcações e armas.
8. Referências Bibliográficas
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O
direito
nas
sociedades
primitivas.
25
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A PROPRIEDADE NO BRASIL COLÔNIA, IMPÉRIO E NO CÓDIGO CIVIL
DE 1916
Francisco Amaral1
SUMÁRIO
Introdução. A propriedade em perspectiva histórica e crítica. 1. A experiência jurídica
romana. 2. A propriedade no Brasil Colônia. 3. A propriedade no Brasil Império. 4. O
Código Civil de 1916. 5. Conclusões.
Introdução. A propriedade em perspectiva histórica e crítica.
Os programas de pós-graduação das Faculdades de Direito da Universidade
Federal do Ceará e da Universidade Federal de Santa Catarina reúnem seus professores,
alunos e docentes externos especialmente convidados, para uma reflexão sobre a
propriedade no Brasil Colônia, no Império e no Código Civil de 1916, e sua relação
com o meio ambiente.
O tema, por sua amplitude, implica uma perspectiva histórica e crítica. Histórica,
porque se protrai ao longo de quase meio milênio, compreendendo os períodos colonial
e imperial, e crítica porque, servindo a história do direito de consciência crítica do
direito positivo2, permite conhecer as mudanças ocorridas, suas causas e seus efeitos,
assim como o sentido e a função das diversas
espécies de propriedade que se
sucederam na história do nosso país.
A iniciativa é conveniente e oportuna, considerando-se as mudanças que a
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o Código Civil de 2002
introduziram na ordem jurídica brasileira, afetando não só a estrutura da propriedade
como também a sua função, permitindo vislumbrar a passagem de uma concepção
1
Doutor honoris causa das Universidades de Coimbra e Católica Portuguesa. Professor Titular de Direito
Civil e Romano da Universidade Federal do Rio de Janeiro. e-mail: [email protected].
2
Paulo Grossi. Mitologie giuridiche della modernità, Milano, Giuffrè Editore, 2001, p. 3 e 38
26
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
tradicionalmente dogmática e estrutural, para uma de natureza axiológica e funcional,
mais coerente com o pensamento jurídico contemporâneo.
A propriedade exprime juridicamente a relação pessoa-coisa, na qual se
reconhece um especial poder sobre os bens, transferíveis por meio do contrato e
protegidos, no seu valor, pelas normas da responsabilidade civil. Propriedade, contrato
e responsabilidade civil são, assim, institutos básicos do direito privado. Em torno deles
formou-se a ciência, a legislação e a jurisprudência do direito civil3, que tutela também,
o meio ambiente, matéria de importância crescente na sociedade contemporânea, a
sociedade da ciência, da tecnologia, do risco.
O reconhecimento da centralidade da propriedade, mobiliária e imobiliária, não
impede, porém, considerar-se a pessoa humana o valor fundamental da ordem jurídica
brasileira, uma das notas do direito contemporâneo, que vê a pessoa humana in concreto
e situada, não mais a figura abstrata e geral do sujeito de direito. Pessoa humana e
justiça como valores prioritários e fundamentais, contrariamente à posição hegemônica
da segurança e da propriedade, da época da codificação.
Aspectos a relevar, também, são as mudanças que o legislador introduziu na
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 e o Código Civil de 2002.
Mudanças de natureza estrutural, com a inserção de princípios, cláusulas gerais e
conceitos indeterminados, que abrem o direito para os valores ético-políticos e para o
mundo da realidade fática; mudanças de natureza funcional, com a passagem da
perspectiva estrutural do normativismo-legalista da modernidade para a funcionalização
dos institutos jurídicos, principalmente a propriedade e o contrato, e por fim, mudanças
de natureza metodológica, com a possibilidade de um novo pensamento jurídico,
problemático, axiológico e dialético, a substituir o pensamento sistemático,
normativista, teorético e lógico-dedutivo da modernidade. Essas inovações permitem o
retorno da razão prática ao direito civil brasileiro, e afetam, como não podia deixar de
ser, a realização dos institutos básicos do direito civil, trazendo a propriedade
novamente à ribalta da discussão jurídica4.
3
4
Guido Alpa. Che cos‘é il diritto privato?, Roma-Bari, Editori Laterza, 2007, p. 81.
Stefano Rodotà. Il terribile diritto. Studi sulla proprietà privata, Bolonha, Il Mulino, 1981, p.17.
27
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A propriedade interessa tanto ao direito privado quanto ao direito público, o que
demonstra a unidade essencial do direito5. Como direito subjetivo e como instituto
jurídico, pertence ao direito civil, que o disciplina na sua existência e eficácia6, e ao
direito constitucional, que o considera direito fundamental 7, princípio da ordem
econômica e financeira8 e dotado de função social9. Sua importância cresce na medida
em que aumenta a complexidade da sociedade contemporânea. Novos problemas
exigem novas estruturas jurídicas de resposta.
Presente em todo o processo de formação histórica do direito ocidental, com as
características próprias de cada fase, sua definição foi sempre problemática, tendo a
doutrina jurídica e nos códigos civis sempre optados pela indicação do seu conteúdo,
não obstante defini-la como um conceito unitário, do que é exemplo o Código Civil
francês. No Código Civil brasileiro de 1916, assim como no de 2002, sua descrição é
analítica, indicando-se as diversas faculdades jurídicas que compõem o direito subjetivo
de propriedade, isto é, o jus utendi (direito de usar), o ius fruendi (direito de fruir, gozar,
de perceber seus frutos) e o ius abutendi (direito de dispor). A par desses poderes,
sempre se reconheceu que o proprietário também tem deveres, pelo que o direito de
propriedade mais se apresenta como uma situação jurídica complexa, compreensiva de
poderes e deveres, cujo exercício pode afetar terceiros, a implicar o reconhecimento de
sua função social.
Como instituto jurídico, a propriedade é um dos que mais diretamente refletem
as mudanças nas condições econômicas e sociais, sendo, por isso, objeto de particular
atenção. Interessa aos juristas que a disciplinam, aos historiadores que a estudam na sua
evolução, aos filósofos que apontam os seus valores fundantes, aos economistas que
avaliam a sua importância nos sistemas de produção, aos sociólogos que a contemplam
nas diversas funções. De tudo isso decorre que a propriedade não tenha um só
significado. Tem-se a propriedade-instituto, a propriedade-direito subjetivo, a
propriedade sob o ponto de vista econômico, político, sociológico, a propriedade
5
José Luis de los Mozos. El derecho de propriedade: crisis y retorno a la tradicion jurídica, Madrid,
Editorial Revista de Derecho Privado, 1993, XIII.
6
Código Civil, arts. 1.228 a 1.368.
7
Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, XXII.
8
Constituição da República Federativa do Brasil, art. 170, II.
9
Constituição da República Federativa do Brasil, art. 5º, XXIII e Código Civil, art. 1.228, § 1º.
28
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
constitucional, a propriedade de direito civil10. Identificam-se ainda, na sua evolução,
outras espécies, como a propriedade coletiva, familiar, dos primórdios, seja a
individualista do direito romano clássico, seja a do Código Civil francês de 1804, ambos
de grande influência no direito brasileiro; a propriedade dividida, do feudalismo, em que
se distinguia o domínio direto do domínio útil; a propriedade comunitária, dos clãs, das
tribos, da aldeia, do direito germânico, no caso de propriedade fundiária; a propriedade
coletivista, dos Estados totalitários. Essas formas de sociedade não se sucederam,
necessariamente, no tempo, elas podem ter coexistido11, conforme as condições
políticas e econômicas de cada sociedade.
A época moderna considerava a propriedade um poder pleno e exclusivo do
titular e um princípio da organização política e econômica da sociedade liberal.
Defendendo uma concepção ideológica, a Revolução Francesa incluiu-a na Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 (art. 17) como direito inviolável e
sagrado. O Código de Napoleão12, que consagrou o individualismo liberal13, defendeu-a
como um direito unitário, no sentido de haver um só tipo de propriedade, embora
passível de conteúdos diversos, absoluto, por deixar ao seu titular a decisão sobre a
conveniência e modo de seu aproveitamento, perpétuo, por não se extinguir pelo não
uso14, exclusivo, porque com eficácia erga omnes, tendo o proprietário direito de
impedir qualquer invasão na esfera do seu poder, ilimitado, no sentido da
indeterminação do exercício das faculdades que o compõem, e por isso mesmo elástica,
porque suscetível de contração e distensão, conforme destituída ou não, de qualquer das
suas faculdades. Desse modo, a propriedade passou a considerar-se projeção da
personalidade individual, protegida como direito e como atributo pessoal 15. No século
XX, a grande diversidade dos bens e, consequentemente, dos seus regimes, levou a um
declínio da noção unitária, desenvolvendo-se a idéia de um instituto plural. Não a
propriedade, mas as propriedades (urbana, rural, imobiliária, intelectual, industrial,
10
Stefano Rodotà. Il terribile diritto. Studi sulla proprietà privata, Bolonha, Il Mulino, 1981, p.163, nota
7.
11
John Gilissen. Introdução histórica ao direito, 2ª edição, tradução de A.M Hespanha e L.M. Macaísta
Malheiros, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1995, p. 636.
12
Código Civil francês, art. 544.
13
Jacques GHESTIN e Gilles GOUBEAUX. Traité de droit civil. Introduction générale, 4e édition, Paris,
LGDJ, 1994, p. 104.
14
Vicent L. Montés. La propriedade privada en el sistema del derecho civil contemporaneo, Madrid, p.
75.
15
Francisco Amaral. Direito Civil. Introdução, 7ª edição, Rio de Janeiro, Renovar, 2008, p.180.
29
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
tecnológica etc), objeto de leis especiais. Nessa especialização insere-se a temática do
meio ambiente16, considerado patrimônio público que abrange a terra, com seus
recursos minerais, a atmosfera, as águas interiores, superficiais e subterrâneas, os
estuários, o mar territorial, o solo, o subsolo, os elementos da biosfera, a fauna e a
flora17. Aspecto a destacar, também, é a relatividade do direito e a variabilidade do
conteúdo da nova propriedade, com o predomínio da idéia do social sobre a do
individual.
1. A experiência jurídica romana.
O conceito, a natureza e a importância da propriedade na sociedade
contemporânea e no direito ocidental, resultam de um longo processo evolutivo, com
períodos distintos, nos quais a propriedade apresenta diferenças específicas. O
conhecimento dessa evolução leva a uma perspectiva de natureza crítica, no sentido de
permitir verificar as mudanças ocorridas, suas causas e seus fatores de transformação 18,
assim como o sentido e a função das diversas
espécies de propriedade que se
sucederam na história do nosso país.
Parta-se do pressuposto de que o direito faz parte da cultura brasileira, e de que
esta se formou e desenvolveu a partir da matriz ocidental européia, cuja influência é
ainda hoje evidente. Essa matriz é, assim, a primeira referência a considerar em um
breve percurso histórico. E nesse repensar a nossa tradição jurídica, impõe-se começar
pelo direito romano, não só no que diz respeito à dogmática jurídica mas também ao
processo metodológico de realização da justiça pois, diversamente do que defendia a
racionalidade jurídica moderna, ainda hoje dominante, no sentido de ser o direito uma
ciência teorética, com um raciocínio lógico-dedutivo, o direito romano era uma ciência
prática, que se valia de um raciocínio dialético para resolver casos concretos.
Tomemos a nossa primeira codificação civil.
“Se passarmos em revista os 1.807 artigos do nosso Código Civil, verificaremos
que mais de quatro quintos deles, ou sejam, 1.445, são produto de cultura romana, ou
16
Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981.
Francisco Amaral. Espírito e técnicas romanos no direito ambiental brasileiro, in Revista Brasileira de
Direito Comparado, número 14, Rio de Janeiro, 1993, p. 27 e sg.
18
Paulo Grossi, p. 3 e 38.
17
30
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
diretamente aprendidos nas fontes da organização justinianéia, ou indiretamente das
legislações que ali foram nutrir-se largamente, como aconteceu a Portugal, a
Alemanha, a França e a Itália, que fizeram do Direito Romano o manancial mais largo
e mais profundo para mitigar sua sede de saber‖.19
No que respeita ao instituto da propriedade, nas fontes romanas não se encontra
uma definição sintética, quer pela aversão dos juristas romanos à abstração conceitual,
quer pela dificuldade de um conceito único que pudesse abranger as espécies já
existentes. Reconhecia-se, porém, a existência de situações de fato que permitiam
considerar a propriedade um poder sobre coisas corpóreas, composto de várias (hoje)
faculdades, como as de usar, fruir e dispor (ius utendi, fruendi, abutendi), poder esse
protegido pela ação reivindicatória (rei vindicatio) e limitado pelo interesse público, por
motivos religiosos e morais, e por interesses privados20. O direito de propriedade não
aparece nas fontes romanas como um poder absoluto, ilimitado, exclusivo ou perpétuo.
A noção romana de propriedade era flexível, o que lhe permitiu ser a base de diferentes
concepções que se desenvolveram tanto na tradição romanista, a partir do século XII,
quanto no direito feudal, no direito natural moderno e nos direitos codificados21.
Inicialmente dominium, depois proprietas, esse termo exprimia uma situação
jurídica subjetiva em que alguém exercia um poder geral sobre uma coisa material. Sob
o ponto de vista político, reduzia-se à propriedade da terra que, durante séculos, tem
sido quase o único bem de produção e a base de todo o poder22. Sujeitos ativos do
dominium eram, exclusivamente, os cidadãos romanos e os estrangeiros (peregrini), aos
quais fosse reconhecido o direito de comercializar (ius commercii). Sujeitos passivos,
no sentido de que deviam respeitar esse direito, eram todas as pessoas que viviam no
espaço romano. De qualquer modo, reconhece-se que aos juristas romanos se deve a
construção dogmática do direito de propriedade.
Quanto à relação propriedade-meio ambiente, reconhece-se hoje que o direito
romano já se constituía em um primeiro estágio, ou núcleo normativo, em matéria de
dano ambiental, particularmente no que se referia à contaminação das águas e aos danos
19
Abelardo Lobo. Curso de Direito Romano, Brasília, Edições do Senado Federal, Brasília, 2006, p. 17.
A. Santos Justo. Direitos Reais, Coimbra, Coimbra Editora, 2007, p. 221.
21
Peter Stein. Le droit romain et l‘ Europe. Essai d‘ interprétation historique, Bruxelles, Bruylant, 2003,
p. XXIV.
22
Jean-Philippe Lévy e Andre Castaldo. Histoire du droit civil, Paris, Dalloz, 2002, p 289.
20
31
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
à flora. Contavam com uma regulação pioneira23, com disposições específicas sobre o
problema da contaminação das águas24 e de cisternas25, despejos industriais, instalação
de lavadouros26, proteção de aquedutos, rios, mares, instalações hidráulicas, obras de
limpeza e depuração das fontes e das cloacas visando garantir a pureza das águas
canalizadas27, proibição do corte ilícito de árvores, assim como de outros danos à
flora28, além de disposições gerais sobre a consequente responsabilidade civil29.
Além desses preceitos, três institutos jurídicos permitiam ainda a limitação dos
direitos individuais por interesses sociais, nos quais já se inseriam preocupações
ecológicas. Eram as relações de vizinhança, o abuso de direito e a responsabilidade civil
objetiva.
Quanto às relações de vizinhança, o direito romano limitava o direito de
propriedade por meio de princípios reguladores das relações entre imóveis de proprietários diversos30, do que eram exemplo a actio aquae pluviae arcendae, ação
concedida ao proprietário de um terreno para reclamar do vizinho a demolição de uma
obra que altere o curso normal das águas. No direito clássico existia o princípio de que
as águas deviam seguir o seu curso normal, sem alteração31, e a actio arborum furtim
caesarum , ação já prevista na Lei das XII Tábuas contra o corte furtivo de árvores na
propriedade de outrem32.
Tema controvertido eram os atos ad emulationem, atos praticados no exercício
do próprio direito com intenção de prejudicar terceiros33, como os das emissões
(immissio), atos de ingerência na esfera jurídica de outrem, causando prejuízo, por
exemplo, a emissão de fumaça, odor, águas etc. Desde que não excedessem o limite
normal e ordinário, deviam ser tolerados pelo proprietário que as sofresse. Se
ultrapassassem os limites estabelecidos, podia o prejudicado usar o interdito uti
23
José Luiz Zamora Manzano. Precedentes romanos sobre el Derecho Ambiental. La contaminación de
aguas, canalización de aguas, canalización de las aguas fecales y la tala ilícita forestal, Madrid,
EDISOFER, 2003, p.104.
24
D. 47, 11, 1, 1.
25
D. 43, 24, 11, pr.
26
D. 39, 3, 3, pr.
27
D.43.22.16; D. 43,22,1,10; D.43.23,1
28
D.47, 7, 3
29
C. 3, 35,1
30
Pietro Bonfante. Corso di diritto romano, Milano, Giuffrè Editore, 1966, p. 321.
31
D. 39, 3.
32
D. 47,7.
33
D. 50, 17, 55.
32
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
possidetis, e se o dono do prédio causador da emissão alegasse o direito a produzi-la,
uma ação negatoria34. Quanto ao abuso de direito, era proibido por meio de legislação
casuística e específica35, desconhecendo-se uma teoria do abuso de direito36.
Reconhecia-se que nullus videtur dolo facere qui suo iure utitur (não se considera que
obra com dolo quem usa de seu direito)37 mas também se condenava o abuso no
exercício do próprio direito, não como princípio geral mas como intervenção pretoriana
destinada a corrigir o exercício dos direitos subjetivos, sempre que seu exercício se
tornasse abusivo38. Pode afirmar-se, de modo geral, que o direito romano não conhecia
limites ao exercício do direito de propriedade, “salvo aqueles impostos por absoluta e
imprescindível necessidade da vida econômica da sociedade”. Nesse caso, predominava
o sentido da moralidade e da consciência popular, acentuando-se o espírito do social
sobre o particular. Pode-se dizer, portanto, com precisão, que em Roma os limites ao
exercício dos direitos estavam na consciência social, nos costumes, na moral do povo
romano, onde se criavam idéias fundamentais do ordenamento jurídico, como a aequitas
e a bona fides.
Em matéria de responsabilidade civil, tema de ricas sugestões em favor da
socialidade do direito romano, as idéias sociais e objetivas superavam o elemento
espiritual na fixação da responsabilidade. O predomínio da teoria do risco indicava que,
para o direito clássico, o fundamento da obrigação de indenizar não decorria da culpa do
agente, mas de um princípio de eqüidade e de justiça comutativa, segundo o qual todo
aquele que, na defesa dos seus interesses, prejudicasse o direito de outrem, ainda que de
forma autorizada, devia indenizar o dano causado. Esses princípios presidem, ainda
hoje, a responsabilidade pelo dano ambiental.
Algumas das disposições romanas citadas vieram a integrar-se no direito ibérico,
por meio do direito visigótico, encontrando-se vestígios no Fuero Juzgo, livro VIII,
título 3, leis 1 e 5, na Lei das Siete Partidas39, em matéria de limpeza e recomposição de
valas, canais e limpeza das cloacas40. Na Partida VII, lei XVIII, dispunha-se sobre o
34
Ulpiano, D. 8, 5 ,8, 5, 7.
D. 24, 1, 63; D. 30, 1, 43, 1.
36
Francesco De Martino. Diritto e società nell‘ antica Roma, Roma, Editori Riuniti, 1979, p. 291.
37
D. 50, 17,55.
38
D. 8, 5, 8, 5.
39
Partida III, título XXXII, Lei VII.
40
D. 43, 21, 1.
35
33
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
corte ilícito de árvores, de modo semelhante ao vigente no direito romano41 42.
Passando-se à era da codificação, pode afirmar-se que a trilogia de Gaio,
pessoas, coisas e ações, estava ainda na base da matéria privada que se sistematizou
nos códigos civis da Europa continental43. Nesses códigos, a propriedade ocupa um
papel central, que varia conforme as suas relações com outros institutos da esfera civil.
Temos assim que, no Código de Napoleão, de grande influência no Código Beviláqua, o
eixo principal é o que liga a propriedade ao contrato, pelo que a grande contribuição
desse código não foi a de liberar a propriedade de seus impedimentos feudais,
permitindo-lhe o acesso da burguesia, mas a sua inserção no processo de produção e
circulação dos bens por meio de outro notável instituto, o contrato44, expressão da
soberania individual na atividade econômica das pessoas. Propriedade, contrato e
responsabilidade civil são, assim, reconhecidamente, institutos fundamentais do direito
civil que se relacionam diretamente com o ambiente, bem jurídico que, por sua
importância, tem hoje uma posição central, permitindo reconhecer-se não só um direito
ao ambiente como também um direito do ambiente45.
2. A propriedade no Brasil Colônia.
O regime das sesmarias marcou a propriedade no Brasil Colônia, desde sua
implantação, em 1530, até ao advento da Resolução de 17 de junho de 1822, que
suspendeu a concessão de novas sesmarias e a confirmação das já existentes.
Pela divisão do Tratado de Tordesilhas, as terras brasileiras pertenciam ao
Estado português (terras da Coroa), mais propriamente ao Reino de Portugal, cabendo à
Ordem de Cristo a jurisdição espiritual46. Depois também ao Rei (reguengos) e a
particulares (herdamentos), que as doavam, não propriamente a terra, mas o seu
usufruto, o benefício47. A posse e a propriedade da terra resultavam, assim, de simples
41
D.47, 7, 7, 2
José Luis Zamora Manzano, p. 104.
43
Umberto Vincenti. Diritto senza identità. La crisi delle categorie guiridicha tradizionali, Bari, Laterza,
2007, p. XIV.
44
Stefano Rodotà. Il diritto privato nella società moderna, Bolonha, Il Mulino, 1971, p. 313.
45
Francisco Amaral. Espírito e técnicas romanos no direito ambiental brasileiro, in Revista Brasileira de
Direito Comparado, número 14, Rio de Janeiro, 1993, p. 27 e sg.
46
José da Costa Porto. Formação territorial do Brasil, Brasília, Fundação Petrônio Portella, 1982, p.26.
47
Vicente Cavalcanti Cysneiros. Propriedade territorial no Brasil, in Enciclopédia Saraiva de Direito, nº
62, São Paulo, Saraiva, 1977, p. 233.
42
34
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
concessão de terras públicas, na forma de sesmaria, sem restrições de maior importância
que não fosse a obrigação do sesmeiro de cultivá-la e de nela fixar a sua morada
habitual. Cumpridas essas exigências, adquiria-se o domínio efetivo sobre as terras
concedidas.
Portugal procurava, com esse regime, “trasladar, para as nascentes colônias, as
características que nortearam as concessões predominantes na sua idade média”, e já
adotadas nos Açores, Cabo Verde e ilha da Madeira, com a finalidade de enfrentar o
problema da falta de alimentos, garantindo o abastecimento das populações locais.
Não havia essa necessidade, porém, na nova colônia, onde o objetivo era,
predominantemente, o povoamento e a grande plantação. Concediam-se as terras,
originariamente públicas, visando-se ocupar o solo com a lavoura, o plantio da cana de
açúcar, a criação de gado. E distribuíam-se sem grande rigor porque havia pouca gente
para ocupá-la48.
A primeira medida do rei D. Manuel, o monarca dos descobrimentos, foi dar as
terras, em arrendamento para a exploração do pau-brasil. Deveu-se, porém, a D. João
III, que instituiu em 1530 o regime das capitanias ou donatarias, a obra sistemática de
colonização. Constituíam-se as capitanias por uma carta de doação, outorgando ao
donatário uma certa extensão de terra, com a respectiva jurisdição civil e criminal.
Acompanhava essa carta um foral, contrato de aforamento, pelo qual os colonos que
recebessem terras tornavam-se tributários perpétuos da Coroa. Esta reservava para si o
monopólio do pau-brasil e das especiarias, pertencendo-lhe ainda o quinto dos metais e
pedras preciosas que se viessem a descobrir, e o dízimo de todos os tributos lançados
pelos donatários, ficando livre para os donatários e colonos, o tráfico dos demais
produtos, especialmente o açúcar, o algodão e o fumo.
Segundo as Ordenações Filipinas49, sesmarias eram “as dadas de terras, casas
ou pardieiros que foram ou são de alguns senhorios da terra e que já em outro tempo
foram lavradas e aproveitadas e agora o não são‖. O termo seria derivado de sesmo ou
sesma, a sexta parte de alguma coisa50. De origem romana, instituíram-se em Portugal
pelo rei D. Fernando, por meio da lei de 26 de junho de 1.375, a chamada Lei das
48
Costa Porto. Estudo sobre o sistema sesmarial, Recife, Editora Universitária, 1965, p.81.
Livro 4º, Título XLIII.
50
Paulo Carneiro Maia. Sesmarias – I, in Enciclopédia Saraiva de Direito, nº 68, São Paulo, Saraiva,
1977, p. 478.
49
35
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Sesmarias, posteriormente recolhida pelas Ordenações. As terras assim chamadas eram
concedidas por meio de cartas de sesmarias, títulos distribuídos inicialmente sem rigor,
pois havia pouca gente para ocupar a terra, desenvolvendo-se, assim, uma política
latifundiária com doação de terras que outorgavam direitos de uso e fruição, não de
propriedade. Pode-se, portanto, afirmar, que o regime da propriedade fundiária no Brasil
tem origem no período colonial, nas chamadas sesmarias, o que levou à instituição da
grande propriedade rural, o latifúndio, destinada à monocultura, sustentada pelo
trabalho escravo.
O poder de conceder sesmarias foi extinto pela lei nº 601, de 18 de setembro de
1850, a chamada lei de terras.
3. A propriedade no Brasil Império.
Dois fatos importantes marcaram a história da propriedade no Brasil Império: a
extinção do regime das sesmarias, e a regularização da propriedade fundiária com o
advento da lei nº 601, de 1850.
A Resolução de 17 de junho de 1822 do Príncipe Regente D. Pedro de Bragança
suspendeu a concessão de novas sesmarias e a confirmação das já existentes, por sua
inadequação aos objetivos visados. O regime das sesmarias não atingira os resultados
pretendidos, quer pelo seu abandono pelos respectivos titulares, quer pelo
inadimplemento destes no tocante às suas obrigações51. Verificava-se, assim, que a
distribuição de terras pela Coroa produzira resultado diverso do alcançado em Portugal,
onde essa prática visava garantir o abastecimento da população, que no Brasil era ainda
incipiente, o objetivo era o povoamento. Além disso, a concessão de terras levara a uma
verdadeira “aristocratização da propriedade”. As elites urbanas, vivendo nas capitais e
conhecendo os meandros da burocracia oficial, obtinham o domínio legal das terras que
pediam, restando aos habitantes do interior a possibilidade, apenas, de ocupar o solo,
sem outra garantia que não a decorrente da posse, simples situação de fato.
Desenvolveu-se, assim, o regime de posses, um verdadeiro costume jurídico52, segundo
o qual a posse da terra, com cultura efetiva e morada habitual do possuidor, eram
51
Vicente Cavalcanti Cysneiros, p. 241.
Ruy Cirne Lima. Pequena história territorial do Brasil, São Paulo, Secretaria de Estado da Cultura,
1991, p. 57.
52
36
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
requisitos necessários e suficientes para a aquisição da propriedade, como ainda hoje
ocorre. Enquanto que no regime das sesmarias o beneficiário recebia o título e a terra
para depois cultivá-la, no regime da posse, o posseiro cultivava primeiro a terra para
depois obter a sua respectiva titularidade.
A necessidade de regularizar-se o regime da posse, exercida sobre terras
devolutas, assim chamadas as terras “suscetíveis de serem devolvidas ao patrimônio
público”, por não se acharem no domínio privado, ou por não terem sido dadas por
sesmarias ou outras concessões governamentais, ou ainda por não se acharem ocupadas
por meio de posses, levou à promulgação da lei n.° 601, de 1850, a Lei das Terras do
Império, também conhecida como o estatuto das terras devolutas. Disciplinava as glebas
não utilizadas, sem titularidade legítima de posse ou de propriedade, “devolvidas à
nação pelo desuso dos particulares e as terras ainda inexploradas”53. A denominação
terras devolutas estava no artigo 3º dessa lei, que dispunha: “São terras devolutas: § 1ºas que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal;
§ 2º- as que não se acharem no domínio particular por qualquer título legítimo, nem
forem havidas por sesmaria ou outras concessões do Governo Geral ou Provincial, não
incursas em comisso por falta do cumprimento das condições de medição, confirmação
e cultura; § 3º- as que não se acharem dadas por sesmarias, ou outras concessões do
Governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas por esta lei; § 4º- as
que não se acharem ocupadas por posses, que, apesar de não se fundarem em título
legal, forem legitimadas por esta lei”.
A lei nº 601, de 1850, teve méritos. Entre outros, valorizou a posse legítima da
terra que, efetivamente cultivada, levava ao reconhecimento da propriedade dos
posseiros sobre os terrenos ocupados. E foi precursor do processo discriminatório de
terras no Brasil, ensejando a devolução das terras devolutas ao patrimônio nacional.
4. A propriedade no Código Civil de 1916.
Na elaboração do Código Civil brasileiro de 1916 imperou, como seria de
esperar, uma visão européia do mundo e do direito, que se condicionou, por sua vez,
pelas circunstâncias físicas e étnicas do novo domínio colonial. Clóvis Beviláqua pôde,
53
Messias Junqueira. O instituto brasileiro das terras devolutas, São Paulo, LAEL, 1976, p. 78
37
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
assim, afirmar, que o Código Civil era “expressão da alma brasileira, e, ao mesmo
tempo, rebento da cultura jurídica dos romanos e lusos, e fruto da época” 54. Tinha, na
sua formação, preceitos de direito romano, germânico, canônico e medieval,
sistematizados sob a influência espiritual do direito francês e da técnica do código
alemão. Refletia as conceções filosóficas dos grupos dominantes, detentores do poder
político e social da época, por sua vez determinadas, ou condicionadas, pelos fatores
econômicos, políticos e sociais. Do ponto de vista ideológico, consagrava os princípios
do liberalismo, defendido por uma classe média conservadora que absorvia contradições
já existentes entre a burguesia mercantil, defensora da mais ampla liberdade de ação, e a
burguesia agrária, receosa dos efeitos desse liberalismo55. Em matéria de propriedade,
adotou os princípios do individualismo, por achar o legislador, necessário vincular o
homem ao solo56, assegurando ampla liberdade contratual, na forma mais pura do
liberalismo econômico. Refletia, assim, o ideal de justiça de uma classe dirigente
européia por origem e formação, constituindo um direito afastado das condições de vida
do interior do país, traduzindo mais as aspirações civilizadoras dessa elite, embora
progressista, do que os sentimentos e necessidades da grande massa da população, em
condições de completo atraso57.
Tecnicamente um dos mais perfeitos, quer na sua estrutura dogmática, quer na
sua redação, escorreita, segura, precisa, o Código Civil brasileiro de 1916 era um
diploma conciso, contendo apenas 1.807 artigos, número bem inferior ao do francês
(2.281), ao do alemão (2.383), ao do italiano (2.969), ao do português (2.334). No
instituto da propriedade compreendia várias espécies. Quanto aos titulares, distinguia-se
a propriedade pública, que tinha por objeto bens públicos58, da propriedade particular.
Esta podia ser de um só dono, ou, simultaneamente, de vários (o condomínio). Quanto
ao conteúdo, distinguia-se a propriedade plena, se todos os seus direitos elementares se
achavam reunidos no do proprietário, da propriedade limitada, se tinha ônus real ou era
54
Clóvis Beviláqua. O Código Civil, in “Linhas e Perfis Jurídicos”, Rio de Janeiro, Livraria Freitas
Bastos, 1930, p. 178.
55
Orlando Gomes. Raízes Históricas e Sociológicas do Código Civil Brasileiro, Salvador, Livraria
Progresso Editora, 1958, p. 42.
56
Clóvis Beviláqua. Linhas gerais da evolução do direito constitucional, da família e da propriedade
durante a centúria de 1827 a 1927, in “Linhas e Perfis Jurídicos”, Rio de Janeiro, Livraria Freitas Bastos,
1930, p. 91
57
Orlando Gomes, p. 34.
58
Código Civil, art. 66.
38
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
resolúvel59. Quanto ao objeto, distinguia-se a propriedade imobiliária, a mais
importante devido ao princípio da publicidade, que se realizava pela instituição dos
registros públicos, da propriedade mobiliária, que tinha por objeto coisas móveis
(coisas fungíveis e consumíveis, divisíveis e indivisíveis, singulares e coletivas). E
ainda
os
bens
reciprocamente
considerados
(bens
principais
e
acessórios,
compreendendo estes os frutos, os produtos, os rendimentos, os acessórios de solo, e as
benfeitorias).
O Código Civil de 1916 garantia o direito de propriedade, mas não de modo
absoluto, pois seu individualismo subordinava-se às necessidades sociais, como indicam
as restrições que o próprio código previa, em matéria de usucapião, desapropriação por
utilidade pública e direitos de vizinhança. Estes compreendiam regras sobre o uso
nocivo da propriedade, sobre o regime das águas e sobre as limitações ao direito de
construir. É precisamente nessas disposições já que se vislumbrava o que se viria a ser,
meio século depois, matéria de direito ambiental. Reconhecia-se, assim, o poder que o
proprietário tinha de proibir atos prejudiciais, assim como a possibilidade de prevenção
de determinados perigos e ainda garantir a manutenção da ordem natural60. Os arts. 554
e 555 do código dispunham sobre o uso nocivo da propriedade, que poderia causar
ofensas à segurança pessoal ou dos bens, ao sossego (ruídos, emissões de fumaça ou
fuligem) ou à saúde (emanação de gases tóxicos, poluição de águas, estábulos)61, pelo
que se concedia ao proprietário o poder de pedir que cessasse o dano ou fosse reparado
o já produzido62. Estatuía, também, regras sobre o uso de águas correntes particulares,
das águas pluviais e das fontes, em relação ao estado de vizinhança entre prédios63
matéria posteriormente regulada em lei especial, o Código das Águas, decreto nº
24.643, de 10 de julho de 1934. As disposições do código visavam, assim, a
59
Código Civil, art. 525.
António Menezes Cordeiro. Tutela do Ambiente e Direito Civil, in Direito do Ambiente, Lisboa,
Instituto Nacional de Administração, 1994, p. 386.
61
Clóvis Beviláqua. Direito das Coisas, edição histórica, Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976, p. 188.
62
Código Civil de 1916 - Art. 554 - O proprietário, ou inquilino de um prédio tem o direito de impedir
que o mau uso da propriedade vizinha possa prejudicar a segurança, o sossego e a saúde dos que o
habitam. Art. 555 - O proprietário tem direito a exigir do dono do prédio vizinho a demolição, ou
reparação necessária, quando este ameace ruína, bem como que preste caução pelo dano iminente.
Vedava-se também a construção de estrebarias, currais, pocilgas, estrumeiras que contrariassem os
regulamentos de higiene. Art. 578 - As estrebarias, currais, pocilgas, estrumeiras, e, em geral, as
construções que incomodam ou prejudicam a vizinhança, guardarão a distância fixada nas posturas
municipais e regulamentos de higiene.
63
Clóvis Beviláqua, p.195.
60
39
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
manutenção da ordem natural, estabelecendo a obrigatoriedade do prédio inferior de
receber as águas que corressem naturalmente do superior. E se o dono deste fizesse
obras de arte, para facilitar o escoamento, procederia de modo a não piorar a condição
natural e anterior do outro64. Em matéria de direito de construir, ainda quanto às águas,
dispunha o código serem proibidas as construções capazes de poluir, ou inutilizar para o
uso ordinário, a água de poço ou fonte alheia, a elas preexistente65. Proibidas também
eram as escavações que tirassem ao poço ou à fonte de outrem a água necessária66.
Ocorrendo a violação dessas regras, causando o dano que hoje se classificaria
como ambiental, nascia a obrigação de indenizar, ou seja, a responsabilidade civil
prevista no art. 159 do Código Civil67.
É de concluir-se, portanto, que, guardadas as características e dimensões dos
respectivos sistemas sociais, e as mudanças decorrentes da evolução histórica,
principalmente as provocadas pelo desenvolvimento da sociedade industrial, a relação
que hoje se verifica entre a propriedade e meio ambiente, não difere, na sua essência,
daquilo que o direito romano já estabelecia e que o código brasileiro recepcionou.
5. Conclusões.
De tudo o que exposto foi, podem-se tirar as seguintes conclusões.
A propriedade é um dos institutos fundamentais do direito civil patrimonial,
como expressão jurídica da relação histórica entre o ser humano e as coisas da realidade
externa. A compreensão de sua estrutura e função no direito contemporâneo,
particularmente na ordem jurídica brasileira, pressupõe uma perspectiva histórica e,
consequentemente, uma perspectiva crítica, que permite identificar de modo racional e
objetivo, os fatores ou circunstâncias que provocaram a sua evolução, tanto na sua
64
Código Civil de 1916 - Art. 563 - O dono do prédio inferior é obrigado a receber as águas que correm
naturalmente do superior. Se o dono deste fizer obras de arte, para facilitar o escoamento, procederá de
modo que não piore a condição natural e anterior do outro.
65
Código Civil de 1916 – Art. 584 - São proibidas construções capazes de poluir, ou inutilizar para o
uso ordinário, a água de poço ou fonte alheia, a elas preexistente
66
Código Civil de 1916 - Art. 585 - Não é permitido fazer escavações que tirem ao poço ou à fonte de
outrem a água necessária. É, porém, permitido fazê-las, se apenas diminuírem o suprimento do poço ou
da fonte do vizinho, e não forem mais profundas que as deste, em relação ao nível do lençol d‘água
67
Código Civil de 1916 - Art. 159 - Aquele que, por ação ou omissão voluntária, negligência, ou
imprudência, violar direito, ou causar prejuízo a outrem, fica obrigado a reparar o dano
40
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
estrutura, como no seu fundamento e função nos diversos períodos da história nacional,
a colônia, o império e a república do início do século XX.
A propriedade, desde os primórdios da civilização, é um conceito poliédrico.
Apresenta várias facetas e espécies, de acordo com as necessidades sociais a que
responde.
A perspectiva histórica que orienta a presente comunicação, revela que o direito
subjetivo e o instituto jurídico da propriedade, como expressões normativas da relação
pessoa-coisa do mundo externo, nunca se manifestou como categoria unitária, geral e
abstrata. Pelo contrário, sempre foi múltipla e variada, quer quanto ao seu titular, quer
quanto ao seu objeto, quer quanto ao seu conteúdo. Uma visão crítica, proporcionada
pelo conhecimento histórico, revela que a importância e função da propriedade não são
idênticos em uma economia agrária e em uma de capitalismo avançado 68. Conforme a
época, as necessidades sociais e os interesses da pessoa humana, vários foram os tipos
de propriedade que surgiram, pelo que hoje pode-se reconhecer a existência histórica
não da propriedade mas das propriedades, a implicar a ruptura do tradicional conceito
unitário e a configuração da propriedade como um conceito plurifacetado. Isso não
impede, porém, que continue a ser uma das categorias fundamentais do direito privado.
O direito romano, que teve o mérito de sistematizar o conjunto de seus preceitos
e de classificá-la conforme a pessoa do seu titular e conforme o seu objeto, é o primeiro
a manifestar o espírito individualista que veio a caracterizar, historicamente a
propriedade. Nesse direito existem, porém, matizes sociais, como os que se encontram
na disciplina das relações de vizinhança, do abuso de direito e da responsabilidade civil.
No direito medieval, a propriedade decompôs-se em direitos paralelos que a
construção doutrinária denominou de dominium directum e dominium utile, diversos
graus do direito do proprietário regime feudal, que veio a ser superado pelo espírito
burguês da revolução francesa.
No que respeita ao direito brasileiro, o período colonial caracterizou-se pelo
predomínio do latifúndio, a grande propriedade base da economia de exportação de
produtos primários, (açúcar, algodão, fumo), sistema que se manteve até o processo de
industrialização do século XX.
68
Stefano Rodotà. Il diritto privato nella società moderna, Bologna, Il Mulino, 1971, p. 314.
41
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Quanto à relação da propriedade com o meio ambiente, à semelhança do que
ocorreu no direito romano, guardadas as necessárias proporções, no Código Civil de
1916 já se encontravam normas que relativizavam o individualismo do direito de
propriedade, principalmente em matéria de direitos da vizinhança, abuso de direito e
responsabilidade civil. Isso abriu caminho para a profunda mudança que se veio a
verificar posteriormente, quando o direito de propriedade deixou de ser apreciado na sua
estrutura para ser considerado na sua função social, do que um dos melhores exemplos
são as limitações impostas ao direito de propriedade por um novo direito, o direito do
ambiente, que visa garantir proteger a vida em todas as suas manifestações.
42
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A PROPRIEDADE PÓS-MODERNA: conceito e classificação
José Isaac Pilati1
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Propriedade comum e especial: dois perfis e um paradigma a construir.
2.1. A Propriedade comum. 3. As propriedades especiais. 4. Propriedades especiais:
classificação. 4.1. Propriedades especiais particulares. 4.2. A propriedade especial
público privada. 4.3 Propriedades especiais coletivas: patrimoniais (étnicas) e
extrapatrimoniais
(coletivas
propriamente
ditas).
5.
Propriedade
coletiva
extrapatrimonial ou coletiva propriamente dita: base constitucional da função social. 6.
Conclusão. 7. Referências.
RESUMO
Enfoca-se a propriedade especial constitucional, que se destaca da propriedade comum
corpórea tradicional (dos códigos), afirmando-se como base das transformações do
Direito, na Pós-Modernidade.
1. Introdução
A propriedade é a instituição central da civilização, não só por constituir o
conjunto básico de valores2 – uma mentalidade, como diz Grossi3 – com que se
orientam e pautam pessoas e coisas, mas também por determinar e materializar a
estrutura com que historicamente se regem e reproduzem as relações de Estados e de
1
Professor do Curso de Pós-Graduação em direito da Universidade Federal de Santa Catarina.
REALE, Miguel. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 181 et seq. Toda cultura é
histórica e não pode ser concebida fora da história. Em cada tempo predomina um valor em relação a
outros...Os valores não estão isolados uns dos outros,...mas se ordenam de forma gradativa,
hierarquizando-se entre subordinantes e subordinados, ou fundamentais e secundários. A ética
proprietária assenta no ter a Moral individual e social (Direito) do bem fundamental, que é a propriedade.
3
GROSSI, Paolo. La propiedad e las propiedades: un análisis histórico. Traducción de Angel M. López
y López. Madrid: Civitas, 1992 .
2
43
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
indivíduos e de Sociedades. Na Pós-modernidade4 confrontam-se dois modelos: o da
proprieté napoleônica, reproduzida no art. 1228 do CCB – criticada pelo pioneiro
discurso de função social de Duguit; e o das propriedades especiais constitucionais de
1988, que despontam sob a égide jurídica do coletivo e a aura política da participação.
A Modernidade e as codificações trabalharam com um conceito estrito de
propriedade, limitado ao âmbito das coisas corpóreas; o capital financeiro correu por
fora desse âmbito, num buraco-negro jurídico que o punha a salvo de qualquer
enquadramento ou compromisso de função social. Já a Pós-Modernidade deverá
trabalhar com um conceito amplo de propriedade5, incluindo todo poder patrimonial
oponível ao grupo social. Isso coloca ao alcance da função social todo o poder,
individual e social, seja ele político, econômico, de que natureza for. Com isso não é o
conceito de propriedade que se modifica, mas o arcabouço, o paradigma.
Rodotá6 diz que a Propriedade carrega um enigma, perante a desigualdade social
renitente, que o Estado e os instrumentos da ordem jurídica não conseguem resolver.
Este é o ponto que importa: até aonde vai o mérito proprietário? Locke7 justifica a
apropriação com fundamento no trabalho, porém não para açambarcar a terra e sim
para usufruirmos. Assim é de início, arremata: Direito e conveniência andando juntos,
sendo inútil, bem como desonesto, tomar demasiado, ou mais do que o necessário. O
4
RUSSO, Eduardo Angel. Teoria general del derecho: en la modernidad y en la posmodernidad.
Buenos Aires: Abeledo-Perrot, [1995?], p. 317 et seq. La posmodernidad parece ser, entre otras cosas, el
lugar para las nuevas utopías. Desde el antológico ‗mayo francés‘ pedir lo imposible se tiene por uma
forma de hacer que o imposible sea real. Na p. 318 alerta: La posmodernidad es, en primer lugar, una
moda. Es decir, algo que alguien crea y que muchos usan sin saber de que se trata. Uma moda que
alguém cria e que muitos utilizam sem saber de que se trata. DIAS, Maria da Graça dos Santos. Direito e
pós-modernidade. In: DIAS, M. G. S; MELO, O. F; SILVA, M.M. Política jurídica e pós-modernidade.
Florianópolis: Conceito, 2009, p. 11-34, destaca que, na Modernidade, o parlamento representa o povo e o
governo é das leis, não dos homens.
5
MACKELDEY, F. Elementos del derecho romano. 4 ed. Madrid: L. López, 1886, p. 151, chama
atenção, como romanista, para a propriedade em sentido amplo, que inclui toda a fortuna e tudo o que
pertence a alguém; a propriedade de bens corpóreos é propriedade em sentido estrito. As propridades
especiais da Pós-Modernidade devem devolver importância à propriedade en el sentido extenso de la
palabra.
6
RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla proprietà privada. Bolonha: Il Mulino, 1990,
inaugura a obra referindo a questão proprietária, que sempre se propõe, mas que não (ou nunca) se
soluciona, restando intacto perante nós l‘enigma della proprietà (p. 15). Pode-se dizer o mesmo da
corrupção, que é uma fraude quanto aos méritos proprietários. São, portanto, dois desafios à pósmodernidade: a desigualdade e a corrupção.
7
LOCKE, John. Tratado sobre o governo civil. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins
Fontes, 1998, p. 406 et seq. Como os homens podem vir a ter propriedade, se Deus deu a terra à
humanidade em comum? Cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa. O trabalho de seu
corpo e a obra de suas mãos, pode-se dizer, são propriamente dele (p. 409).
44
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
dinheiro também se justificaria nessa linha: como meio de tornar durável (com a troca)
o perecível, pois o desperdício é igualmente condenável.
O liberalismo de Locke é preciso não só nesse aspecto, do mérito e dos limites
da propriedade; ele baseia a relação de poder não no Estado como Hobbes8; mas num
estado de natureza anterior, que é de plena liberdade. Liberdade de indivíduos
proprietários, que criam o Estado e participam do governo9. As propostas de reforma
que não observam este princípio basilar – da propriedade como instituição e substância
– partem da perspectiva de que Estado e Direito são exteriores à propriedade; com isso
tendem a serem conservadoras, porque o poder do Estado situa-se no lado da reação,
enquanto que o proprietário está no campo da ação, em tempo real.
A crise de hoje, sobretudo a ecológica, é reflexo de um novo momento da
propriedade em sentido amplo: as velhas formas, jurídica e política, já não
correspondem à substância. Esse descompasso entre substância e forma, confunde os
eruditos do nosso tempo, que apesar do talento e da aplicação da maioria, perderam o
senso de direção da força10. O método que compartilham de modo geral como
paradigma enreda-os na massa falida da Modernidade, e eles pretendem solucionar a
obsolescência jurídica com paliativos da velha ordem superada. Como se fosse possível
tutelar o coletivo com instrumentos do CPC e sem rever o arcabouço institucional.
A realidade é que se está a manter uma ordem jurídica que se tornou inadequada
à tutela dos interesses fundamentais da civilização e da espécie humana. A própria
ONU11 anuncia a iminência da tragédia global por obra do homem12; porém, não cuida
da causa primeira que é a inaptidão do Estado autocrático, do qual ela mesma é a grande
8
HOBBES, Thomas. Leviatã: ou a matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. Tradução de
Rosina D‟Angina. São Paulo: Ícone, 2000.
9
PEREIRA, Ascísio dos Reis. A moral liberal como processo educativo no pensamento político de John
Locke. In: CANDIDO, Celso; CARBONARA, Vanderlei. Filosofia e ensino: um diálogo
transdisciplinar. Ijuí: Unijuí, 2004, p. 153-167. Disponível também em: www.espaçoacademico.com.br.
Acesso em 20 abr. 2009.
10
Parafraseia-se SAVIGNY, Friedrich Karl Von. Metodologia jurídica. Tradução de Heloísa da Graça
Buratti. São Paulo: Rideel, 2005, p. 15.
11
Os alertas são do Painel Intergovernamental sobre Mudança Climática – IPCC posto em ação pela
ONU em 1988.
12
Sobre o efeito estufa, ver BRASIL, Ministério da Ciência e Tecnologia. Efeito estufa e a convenção
sobre a mudança do clima. Disponível em www.dominiopublico.gov.br, acesso em 30 de jan. 2008. O
excesso de emissões antrópicas, especialmente de dióxido de carbono, mas também de mano e óxido
nitroso, podem provocar mudança permanente no clima, imprimindo novos padrões no regime de ventos,
pluviosidade e circulação dos oceanos – com possíveis conseqüências catastróficas para a humanidade,
como o aumento do nível do mar. Nos últimos 70 anos registrou-se aumento médio de 0,6º C na
temperatura da superfície do globo.
45
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
voz. Inaptidão de um sistema que não tem solução para a crise do modelo de
desenvolvimento, que esgotou um Planeta finito. Um sistema cujo conceito de
propriedade é superado e exige nova conformação das instituições políticas e jurídicas;
que resgate o coletivo como condição essencial do equilíbrio proprietário.
Porém, não significa romper com o princípio da corporiedade do Código Civil; e
sim resgatar o arcabouço conceitual e estrutural da propriedade como instituto. Não é o
caso de discutir se a propriedade é um fenômeno construído, histórico – na expressão de
Nietzsche13 contra-natural – ou se é eterno, fazendo parte da natureza humana. Ela
incorpora e institucionaliza relação de luta, de poder, de dominação e subserviência.
Não é campo neutro, nem objeto estático. O grande desafio do Direito pós-moderno, em
sua função mediadora, consiste, basicamente, em definir-lhe estrutura e conceito em que
o Coletivo tenha o mesmo peso dado ao Individual.
Nesta tarefa, o sistema romano de propriedade é contraponto de inspiração
insuperável para o raciocínio pós-moderno; porque a propriedade romana era exercida
sob o manto da democracia participativa, e não representativa. O público-privado
romano é diferente do desenho da Modernidade, justamente por isso, porque funciona
sem a mediação de um ente como o Estado Moderno, separado deles. O dominium
romano significa submissão de pessoas e bens ao pater famílias, não a um proprietário
individual, e as relações se travam em foros de um condomínio de romanos
paterfamilias, que partilham o coletivo no plano religioso, jurídico e político.
13
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. Tradução de Roberto Cabral de melo
Machado e Eduardo Jardim Morais. Rio de Janeiro: Nau, 1999, texto que reproduz um ciclo de
conferências realizado no Rio de Janeiro em maio de 1973, usou do pensamento de Nietzsche para
questionar os esteios do pensamento ocidental, destacando a dimensão histórica do sujeito do
conhecimento e da própria verdade; não teriam origem metafísica (Ursprung), mas seriam coisas
inventadas, fabricadas (Erfindung). O conhecimento, no fundo, não faz parte da natureza humana. É a
luta, o combate, o resultado do combate e consequentemente o risco e o acaso que vão dar lugar ao
conhecimento. O conhecimento não é instintivo é contra-instintivo, assim como ele não é natural, é
contra-natural (p. 17). E em seguida: Eis a grande ruptura com o que havia sido tradição da filosofia
ocidental, quando até mesmo Kant foi o primeiro a dizer explicitamente que as condições de experiência
e do objeto da experiência eram idênticos. Nietzsche pensa ao contrário, que entre conhecimento e
mundo a conhecer há tanta diferença quanto entre conhecimento e natureza humana (p. 17 e 18).
Quando Nietzsche estabelece ruptura ente conhecimento e coisas (no sentido de que não há harmonia
prévia entre o conhecimento e as coisas a conhecer) e ruptura entre conhecimento e instintos (no sentido
de que o conhecimento é resultado dos instintos, mas não é nem deriva diretamente dos instintos), está
afirmando, por via de conseqüência, que a propriedade – como conhecimento aplicado que é, também é
contra-natural. É também relação de poder, de dominação e de subserviência, historicamente construída.
46
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Engels14 é um caso clássico de leitura moderna equivocada do modelo romano.
O brilhante parceiro de Marx não consegue visualizar o coletivo não-estatal de Roma e
adota como método contrapor: à propriedade a tribo primitiva, de constituição gentílica
e base familiar. O seu viés é de extinção da propriedade e perecimento de um Estado de
classes; e com esses olhos examina a realidade romana, na qual identifica, por sua
conta, a existência de: súditos do Estado; terras conquistadas pelo Estado; autêntica
constituição de Estado15, noções a que é levado pelo direcionamento teleológico do seu
método, que persegue a eliminação da luta de classes.16
Sob esse ângulo de visão e de construção teórica, Engels está vendo Roma com
os olhos da Modernidade e seu paradigma17; como se tivesse tido, como forma de
governo, uma república representativa e autocrática; como se não tivesse sido a Roma
da civitas – dos romanos com comitia, magistraturas18 e senado – e sim a república de
Roma, pessoa jurídica separada dos cidadãos, manipulada por uma classe dominante.
Nessa linha, seu direcionamento não é no rumo de um coletivo de equilíbrio, de res
populi, a ser restabelecido sob as garantias do Estado Democrático de Direito pósmoderno; e sim de um coletivo totalitário e utópico.
O prejuízo desse tipo de leitura das instituições romanas clássicas – como
Estado Antigo – é inevitável: perde-se o elemento de equilíbrio entre particular-público-
14
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado. Tradução de
Leandro Konder. 14 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997 é um clássico nessa abordagem. A tribo
teria entrado em colapso às primeiras manifestações do trabalho, da acumulação, da vida econômica ativa,
até o salto dialético vivenciado pela Grécia Antiga, onde se manifesta pela primeira vez o embrião da
Sociedade estatal, com leis territoriais, poder de polícia separado dos habitantes e nas mãos de um ente
abstrato, que seria o Estado.
15
ENGELS, Friedrich. A origem da família, da propriedade privada e do Estado, p. 143 e 145.
Referindo-se a latinos e peregrinos que viviam em Roma: Todos estes novos súditos do Estado (deixando
e lado a questão dos ‗clientes‘) viviam fora das antigas gens, cúrias e tribos [omissis]. Mais adiante: Não
podiam [omisis] beneficiar-se das terras conquistadas pelo Estado. E na p. 145: Uma nova constituição a
substituiu, uma autêntica constituição de Estado [omissis] A força pública [omissis] também, se opunha
à classe dita proletária, excluída do serviço militar e impedida de usar armas. Como pode o autor utilizar
categorias modernas em tal contexto, como se as realidades fossem simétricas?
16
MARX, K; ENGELS, F. Manifesto do Partido Comunista. Tradução de Pietro Nassetti. São Paulo:
Martin Claret, 2003, p. A história de todas as sociedades que existiram até hoje é a história de lutas de
classes.
17
Marx, evidentemente, comunga dessa idéia, fazendo alusão a: A auto-importância da esfera política – o
engano do Estado Antigo. MARX, K; ENGELS, F. A ideologia alemã. Tradução de José Carlos Bruni;
Marco Aurélio Nogueira. 10 ed. São Paulo: Hucitec, 1996, p. 130.
18
Basta observar como os plebeus posicionaram-se na seccessio plebis: a criação do tribunato colocou-os
no plano de igualdade (conferindo-lhes direito de veto e instância de comitia plebis), sem os transformar
em patrícios. A excelência das instituições reside nisso: estarem à altura dos conflitos de sua época,
resolvê-los e não eliminá-los. Nessa linha é esclarecedor o texto de TAFARO, Sebastiano. La herencia de
los tribuni plebis. Traducido por Carla Amans. Buenos Aires [2008?], digit.
47
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
coletivo. Se a modernidade apropriou-se do coletivo em favor do particular, a PósModernidade não pode ir para o outro extremo: anular o particular num coletivo de
feição estatal. Pois tal tese chega, por linha transversa e ironicamente, ao mesmo
resultado que combate, porque deságua num coletivo autocrático, com a mesma feição
da Modernidade. A Pós-Modernidade deverá instituir um sistema estruturado na tríplice
dimensão que Roma ensinou: de Coletivo x Privado x Estatal19.
A dimensão de república participativa que Roma vivenciou e que a PósModernidade retoma no plano constitucional, repõe a questão a ser dialeticamente
sintetizada: não eleminar a velha propriedade e o velho Estado, mas resgatá-los em
plano superior, redefinindo-os. Reestruturá-los em nova sinergia como elementos da
nova ordem social. Nova ordem que irá fundamentar e legitimar a propriedade na
justiça do mérito, de capital e trabalho, em novo suum cuique tribuere20, baseado no
equilíbrio entre as esferas distintas: do privado (indivíduo), do público (Estado) e do
coletivo (Sociedade). Mirando-se no espelho da antiguidade, recompor a face.
2. Propriedade comum e especial: dois perfis e um paradigma a construir
O constitucionalismo brasileiro contemporâneo consagra dois sistemas, que se
fundem na Pós-Modernidade; o da propriedade comum, que possui princípios e regras
próprias e representa a grande conquista moderna da liberdade individual perante o
Estado, o público, e os demais indivíduos; e o outro, materializado nas propriedades
19
A antiguidade romana plasma nas instituições políticas os dois elementos fundamentais: o bem do
indivíduo e o bem do todo, naquilo que o bem social é condição do bem de cada qual. O bem, visto como
valor social, é o que chamamos propriamente de justo, e constitui o valor fundante do Direito. REALE,
Miguel. Introdução à filosofia. São Paulo: Saraiva, p. 209. A modernidade encarna e inclui, neste plano
fundamental, um terceiro elemento, que é o Estado separado dos indivíduos; confere autonomia ao espaço
de imperium, que era conferido às magistraturas romanas. Por isso, quando Marx e Engels falam de
Estado Antigo, equiparado em função ao Estado Moderno (da e na luta de classes), laboram num método
incompatível com a proposta de resgate do coletivo (pós-moderno) deste livro.
20
Dos três princípios de Ulpiano (D. 1,1,10,1 e I, 1,1,3) – viver honestamente (honeste vivere), não lesar
outrem (alterum non laedere) e dar a cada um o que é seu (suum cuique tribuere) – este último tem uma
tradução, modernamente, que pode não condizer com o exato sentido original dos romanos. Tribuo,
tribuere, como verbo transitivo, tem sentido próprio de dividir entre as tribos; daí, na língua comum,
distribuir, repartir, dividir; de onde: atribuir, conceder, dar, destinar, imputar. Como intransitivo: ter
consideração ou condescendência para com. FARIA, Ernesto. Dicionário escolar latino-português. 4 ed.
Brasília: Ministério da Educação e Cultura, 1967, p. 1018. Dar a cada um o que lhe pertence está no
plano individualista moderno; atribui a cada um o que lhe é devido por direito objetivo. E se a idéia for a
de imputar direitos coletivos? Direitos sociais fundamentais? RAMOS, J. Arias. Derecho romano: parte
general, derechos reales, p. 29, por exemplo, critica tais princípios pela sua vagueza e a imprecisão de
limites entre Direito e Moral. Será que ele tem razão nesse lugar comum (próprio da modernidade)?
48
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
especiais, que se pautam por outras normas de exercício e tutela, orientadas pelo
coletivo e pela função social. As propriedades de uma e de outra categoria possuem
titular, objeto, exercício e tutela diferenciados, mas convivem em harmonia, num
sistema, assim, muito mais complexo do que o romano.
2.1 A Propriedade comum
A propriedade comum é a de caráter dominial, regida pelo Código Civil (art.
1228), que se contrapõe como sistema, tradicionalmente, à propriedade pública, regida
pelo direito administrativo. Estrutura-se e classifica-se pelas categorias tradicionais:
móvel e imóvel, plena e restrita, perpétua e resolúvel. É avessa ao condomínio, que
tolera como uma situação transitória; tem na posse um instrumento avançado de defesa
(interditos) e nas ações petitórias (reivindicatória, negatória) o instrumento adequado de
tutela; e desdobra-se em direitos reais limitados de gozo (que se tutelam por interditos e
ações confessórias) e de garantia (créditos privilegiados).
Atua reduzindo o universo subjetivo aos dois interlocutores: indivíduo
proprietário e Estado pessoa. No plano do objeto, restringe os bens jurídicos às duas
categorias: públicos e privados. À base desses elementos, o direito subjetivo da
dominialidade submete os objetos corpóreos à lógica proprietária, em substância,
essência e erga omnes, com as limitações da lei; ou seja, outorgando ao Direito a função
limitada de forma, a serviço da liberdade que nasce do ter, e que privilegia as relações
econômicas. Por isso, o saber jurídico da Modernidade tende a ser assunto de leis e de
especialistas, a operar por subsistemas que funcionam por subsunção.
Tende-se a reduzir o Direito à lei, ao monismo estatal, dando plena liberdade ao
proprietário, que pode fazer tudo o que a lei não proíbe, pois o Direito diz, apenas, como
e não o que fazer. Nesse diapasão, a jurisdição é monopólio estatal, que substituindo as
partes diz o direito declarando quem tem razão, sem preocupação, em termos de
sistema, com o resultado efetivo do processo. Vale dizer, um sistema que abstrai da
alternativa que não seja autocrática; ao contrário, o paradigma costuma ver com
desconfiança qualquer proposta participativa, que transfira às partes a soberania da
decisão.
Imperando hegemonicamente esse modelo da Propriedade Moderna, o Estado
tende a desautorizar qualquer centro de poder que fuja desse padrão codificado;
49
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
monopolizando a produção jurídica, procurou sempre reduzir as formas de propriedade
privada a uma só, a individual. Essa tendência pode ser observada em algumas formas
arcaicas de propriedade coletiva, que resistiram ao binômio de estatismo e
individualismo proprietário, tanto em Portugal com os baldios, como em Espanha com
os bienes comunales, em França com os biens seccionaux, e em Itália com os beni ou
demani civici, para falar em alguns casos da chamada dominialidade cívica.21
A dominialidade proprietária individualista – como se pode observar – em
muitos casos invadiu esses espaços, como ainda faz em terras indígenas, nas reservas
naturais e outras do jaez no Brasil; porém, nos dias atuais o absolutismo jurídico vem
sendo questionado e relativizado por diversos modelos novos de auto-regulação, os
quais refletem o caráter pluralístico das atuais sociedades nos textos constitucionais
(como em Portugal 1976 e Espanha 1978) e no plano infraconstitucional, como é o caso
da lei francesa de 1985, só para dar alguns exemplos estrangeiros.22 É o reflexo de uma
nova realidade, que o constitucionalismo não criou, mas passa a respaldar.
No Brasil, o Código de 1916 trazia, no capítulo do condomínio, uma seção
dedicada ao compáscuo (art. 646)23, mas que não foi mantida pelo Código atual de
2002. Em contrapartida, a CRFB de 1988 e a legislação infraconstitucional trazem
novas espécies de propriedade como a quilombola e as Reservas Extrativistas, assim
como dão foro participativo à definição pluralista dos conteúdos da propriedade urbana,
mediante o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor. É esse fenômeno, das propriedades
especiais, que agora merece enfoque; não sem antes repetir que elas surgem no bojo de
um constitucionalismo que transforma os direitos patrimoniais.
3 As propriedades especiais
Não há tradição em dominialidade cívica no Brasil, porém, o fenômeno das
novas propriedades especiais, em sua diversidade e pluralidade de formas, é uma
21
NABAIS, José Casalta. Alguns perfis da propriedade coletiva nos países do Civil Law. Coimbra:
Coimbra, [1998], p. 224.
22
NABAIS, José Casalta. Alguns perfis da propriedade coletiva nos países do Civil Law. Coimbra:
Coimbra, [1998], p. 226.
23
Dispunha o art. 646 do CC/16: Se o compáscuo em prédios particulares for estabelecido por servidão,
reger-se-á pelas normas desta. Se não, observar-se-á, no que lhe for aplicável, o disposto neste capítulo,
caso outra coisa não estipule o título de onde resulte a comunhão de pastos. Parágrafo único. O
compáscuo em terrenos baldios e públicos regular-se-ão pelo disposto na legislação municipal.
50
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
realidade dos tempos atuais, que a doutrina, de um modo geral, não tem destacado. Elas
rompem com a auto-referencialidade da propriedade moderna codificada e seu sistema
político institucional, relativizando os seus elementos, o que não significa a sua
eliminação, como destaca Rodotá24: a propriedade, com sua lógica sempre será o único,
verdadeiro princípio e valor constitutivo de todo o sistema. Não só na Modernidade,
mas também na Pós-Modernidade. Os valores proprietários permanecem.
A propriedade especial relativiza o indivíduo como interlocutor, mediante
titularidades coletivas, como ocorre, por exemplo, na propriedade quilombola.
Relativiza também o objeto da propriedade, que antes se restringia aos bens corpóreos, e
agora pode abranger verdadeiras entidades ou complexos de situações jurídicas
partilhadas coletivamente, inclusive com órgãos públicos ou interesses privados
concorrentes, como se observa na reserva extrativista. É a relativização do próprio
conteúdo do direito: numa o uso, gozo e disposição à mercê do voluntarismo
individualista, e na outra a dependência de procedimentos e de decisões compartilhadas.
Em outras palavras e de outro ângulo, é a substituição do monismo jurídico pelo
pluralismo de fontes, sob a égide dos instrumentos constitucionais e das leis de natureza
participativa e de contratos coletivos. O perfil legal da propriedade especial inclui:
origem constitucional, lei(s) especial(is), ente estatal de apoio e mediação (INCRA,
FUNAI, ou Agência reguladora). Importa autonomia e novas classificações jurídicas de
bens, incluindo, além do público e do privado o bem coletivo (ambiente, cultura), sob
nova taxonomia. E às vezes se dirá entidade no lugar de bem; investidura ao invés de
modo de aquisição e titularidade em vez de domínio.
Essas modificações de reconstituição de todo o paradigma da propriedade (em
sentido amplo), afetam outros institutos jurídicos de direito privado como o direito de
vizinhança; as interferências não se darão, apenas, entre imóveis, mas entre
propriedades em sentido amplo, impondo harmonização e compatibilidade com
interesses de dimensões não imaginadas pela propriedade moderna, como o equilíbrio
ecológico, por exemplo. Como diz Rodotá25: compatibilidade entre decisões individuais
24
RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla proprietà privada. Bolonha: Il Mulino, 1990, p. 21.
No original, relativização perché la proprietà, com la sua lógica, sarebbe l‘unico, vero principio e valore
costitutivo dell‘intero sistema.
25
RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla proprietà privada. Bolonha: Il Mulino, 1990, p. 21.
No original: Compatibilità tra decisioni individuali ed altri interessi [omissis]... come parte di um
51
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
e outros interesses [omissis]... como parte de um patrimônio comum (da coletividade,
de um povo, da humanidade inteira) ou como direitos das gerações futuras.
4. Propriedades especiais: classificação
Esse rompimento do paradigma de la proprieté, abre horizonte à pluralidade de
formas proprietárias, e será tarefa da doutrina criar as classificações dessas novas
propriedades que se debuxam no horizonte da Pós-Modernidade. Podem ser
identificadas entre outras: as propriedades especiais particulares, as público-privadas e
as propriedades especiais coletivas, sendo que estas últimas podem ser patrimoniais ou
étnicas e extra-patrimoniais. A propriedade especial particular é a que tem dimensão
própria26 de função social, como a urbana e a rural, ou regime jurídico diferenciado,
como a intelectual, e a público-privada, que é empresária.
4.1. Propriedades especiais particulares
A propriedade urbana é a destinada à moradia, ao comércio e à indústria, regra
geral situada na zona urbana, ou mesmo na zona rural 27. É propriedade comum quanto
ao objeto (bens corpóreos imóveis); quanto ao regime jurídico (de direito real, a título
singular ou sob condomínio); quanto à aquisição (os modos previstos no Código Civil) e
quanto às limitações (perante regulamentos administrativos, direito de vizinhança e
outros). Porém, tem um grande diferencial que é a função social. Função social que é
cumprida quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas
no plano diretor (CRFB, art. 182, § 2º).
patrimonio comune (di collettività, di um popolo, dell‘intera umanità) o come diritti delle generazioni
future.
26
O que não quer dizer não estejam as demais propriedades sob a égide do princípio da função social; a
alusão é ao registro expresso da CRFB nos art. 182, §2º e 186.
27
Há dois critérios para distinguir urbano de rural. BORGES, Roxana Cardoso Brasileiro. Função
ambiental da propriedade rural. São Paulo: LTr,1999, p. 59-64. FERREIRA, Pinto. Curso de direito
agrário. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 171-173. O primeiro é o finalístico ou da destinação, do art. 4º da
lei n. 8629/93 e segundo o topográfico ou geográfico do Código Tributário Nacional, Lei n. 5.172/66, art.
29 e 32, §§ 1º e 2º. Ao contrário da autora (Borges) e da voz corrente da doutrina, entende-se que um não
exclui o outro, aplicando-se o que for adequado ao caso concreto. Por exemplo, uma área rural favelada
pode ser objeto de usucapião coletiva, já que pela destinação passou, com o tempo e a posse, a urbana.
Quem adota o critério geográfico seria obrigado a negar a usucapião, o que não parece correto nem justo.
52
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
As diretrizes gerais desse novo perfil da propriedade urbana estão previstas no
Estatuto da Cidade, lei 10.257/2001, além das leis de parcelamento do solo urbano (n.
6766/1979) e das incorporações (n. 4.591/1964), e numa lei municipal participativa que
é o plano diretor, na alçada do povo constitucional. A discussão, a aprovação, as
modificações, as emendas devem ser debatidas com a comunidade municipal mediante
os instrumentos previstos, como audiências públicas, plebiscitos e referendos; a Câmara
de Vereadores, no final, aprova o que foi decidido na discussão coletiva, à semelhança
da auctoritas patrum do Senado Romano.
Por isso é propriedade especial28. Seu conteúdo já não é definido exclusivamente
pelo regime jurídico do direito comum codificado, como reza o paradigma da
propriedade moderna; é a comunidade municipal, mediante lei e instrumentos
participativos e democráticos, ou seja, pelo pluralismo jurídico, quem define o conteúdo
específico de uso e gozo do solo na dimensão social e também particular, por
conseqüência. Pluralismo que expressa conciliação de todos os interesses comunitários:
particulares, públicos, ambientais, coletivos – e que positivados no plano diretor vão
definir o exato conteúdo de direito de cada unidade e o modelo de cidade.
A propriedade especial rural assemelha-se à categoria antitética da
propriedade urbana no que tange à dimensão de direito comum; mas tem figurino
distinto quanto ao regime jurídico e à função social29. Pelo art. 4º da lei 8629/93, rural é
o prédio rústico de área contínua, qualquer que seja a sua localização, que se destine ou
possa se destinar à exploração agrícola, pecuária, extrativa vegetal, florestal ou
agroindustrial30. Pelo critério topográfico31 ou geográfico do Código Tributário
Nacional, Lei 5.172/66, art. 29 e 32 §§ 1º e 2º, é o imóvel que se situa fora do perímetro
urbano, tem cadastro rural32 e recolhe imposto territorial rural (Lei 9393/96).
28
A sua unidade é o lote urbano, que não representa um terreno isolado, porém, uma série de
equipamentos e serviços públicos agregados (Lei 6.766/79, art. 2º, § 4º e § 5º), de acordo com as
diretrizes de função social da cidade (Estatuto da Cidade, art. 2º).
29
FERREIRA, Pinto. Curso de direito agrário. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 3. A propriedade imóvel
rural toma novo rumo e passa a constituir novo ramo do direito, o direito agrário, desde as diretivas do I
Congresso Agrário de 1921, realizado na Itália.
30
A lei 8.171/91, que dispõe sobre política agrícola, em seu artigo 1º, juntamente com os fundamentos,
objetivos, competências institucionais, ações e instrumentos da referida política, inclui a atividade
pesqueira como atividade agrícola.
31
O art. 49 da lei n. 9985/2000, a propósito, dispõe: A área de uma unidade de conservação do Grupo de
Proteção Integral é considerada zona rural, para os efeitos legais. Parágrafo único. A zona de
amortecimento das unidades de conservação de que trata este artigo, uma vez definida formalmente, não
pode ser transformada em zona urbana.
32
Lei 4947/66 e 10.267/01.
53
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Esse imóvel cumpre a função social (art. 186 da CRFB), quando tem
aproveitamento racional e adequado, respeita o meio ambiente e as disposições que
regulam as relações de trabalho e favorecem o bem-estar de proprietários e
trabalhadores. As diretrizes constam do Estatuto da Terra (n. 4.504/1964) e da lei
8.629/93. Sua tributação é orientada aos fins constitucionais (lei 9.393/96 sobre Imposto
Territorial Rural – ITR), e à política agrícola (leis 8.171/91 e 8.174/91) preconizando:
propriedade familiar, crédito, renovação tecnológica, assistência técnica e extensão
rural, seguro agrícola, cooperativismo, irrigação, eletrificação rural.
Como o plano diretor abrange todo o território do município, a propriedade rural
também apresenta uma dimensão participativa. Assim, a solução local das questões
agrárias pode e deve ser discutida nesse fórum coletivo, que define a função social e os
níveis de utilização e otimização do território municipal. A União Federal e o
Parlamento estabelecem as diretrizes da propriedade rural e da reforma agrária e os
órgãos específicos (como o INCRA) cuidam de seu cumprimento; mas é na ágora
local33 que se definem, pelos instrumentos constitucionais, do plano diretor e de leis
especiais34, a extensão e o conteúdo de função social dos imóveis rurais.
Com esse viés, a questão agrária pós-moderna muda de rumo, atrela-se a uma
nova idéia de desenvolvimento e defronta-se com novos horizontes de propriedades
especiais. A lei 9985/2000, por exemplo, consagra uma variante de propriedade rural,
que é a Reserva Particular do Patrimônio Natural – RPPN35. Por iniciativa do
proprietário, o imóvel é total ou parcialmente incluído no Sistema Nacional de Unidades
de Conservação – SNUC, com o objetivo de conservar a diversidade biológica. Isso se
dá mediante Termo de Compromisso firmado perante as autoridades ambientais (se
houver interesse público), averbado no Registro de Imóveis.
É um modelo especial de propriedade, em que o proprietário, espontaneamente,
abre mão das prerrogativas de direito subjetivo comum particular para conferir ao
imóvel uma finalidade de interesse social ou coletivo. As RPPNs podem ter espectros
33
Nessa arena coletiva estarão com a comunidade não só as autoridades locais, mas as autoridades
estaduais e federais, especialmente do INCRA. Participação é processo inclusivo, deliberativo e de
consenso de todas as esferas da Sociedade e do Estado.
34
O art. 99 da lei n. 8.171/91, por exemplo, obriga o proprietário rural a recompor a Floresta Legal do
Código Florestal (lei 4.771/65, com a redação da lei 7.803/89) em pelo menos 30 avos da área total por
ano.
35
É o art. 21 da lei 9985/2000 (regulamenta o art. 225, § 1º, incisos I,II, III e VII da Constituição Federal,
institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza e dá outras providências),
regulamentado pelo Dec. 5746/2006.
54
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
variados, sendo que algumas não têm objetivos econômicos e outras podem voltar-se à
visitação, com objetivos turísticos, recreativos e educacionais ou à pesquisa científica
(art. 21, § 2º). A exploração dos recursos naturais não se exclui desse modelo, mas
depende de um Plano de Manejo36 (ou de proteção e de gestão da Unidade) elaborado
com as autoridades ambientais e outras parcerias.
Essas duas categorias de propriedade especial privada – rural e urbana –
redefinidas pela ordem constitucional de 1988 demonstram que o individualismo
jurídico e o voluntarismo estatal que presidiram as codificações deram lugar à
funcionalização do direito de propriedade, perante os desafios da sustentabilidade e da
solidariedade social. À dicotomia público/privado acrescenta-se hoje um terceiro
elemento, que é a dimensão do coletivo, estampada nos direitos sociais fundamentais. A
própria reforma agrária deve ser implantada sob a égide das propriedades especiais e
executada sob nova orientação de exercício e tutela.
A propriedade intelectual37 é garantida pelo art. 5º, XXVII a XXIX da CRFB,
tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País,
e pauta-se por duas leis básicas, n. 9.610/1998 (direito autoral) e n. 9279/96
(propriedade industrial)38. Aparta-se do direito comum pelo objeto, que é imaterial,
reunindo no gênero categorias como direitos autorais, marcas, indicações geográficas,
desenhos industriais, patentes, topografia de circuitos integrados, proteção de
informação confidencial, controle de práticas de concorrência desleal, tudo sob
influência do direito internacional39, e sob a égide da função social.
No plano do objeto, ela opõe direitos da personalidade e direitos morais a
direitos patrimoniais, e na dimensão de função social coloca em confronto o interesse do
titular com os interesses gerais da cultura e da ciência e de comunidades étnicas – como
36
FERREIRA, Lourdes M. et al. Roteiro metodológico para elaboração de Plano de Manejo para
Reservas Particulares do Patrimônio Natural. Brasília: IBAMA, 2004. Disponível em
www.ibama.gov.br em pdf e html. Acesso em 25 de fev. de 2008.
37
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Tradução de Paolo Capitanio. Campinas:
Bookseller, 1999, v. 2, p. 462. Todo o produto do engenho humano pertence ao seu autor, mas tal
pertença só por analogia se pode chamar propriedade e não identificar-se com ela. Melhor é, pois, falar
de direitos sobre bens imateriais [omissis]...
38
Existem outras leis no setor, como a n. 969/98 (programas de computador), 9.456/97 (cultivares),
9.615/98 (desporto), 8.974/95 (engenharia genética).
39
O Decreto 1.355/1994 promulga a Ata Final que incorpora os Resultados da Rodada Uruguai de
Negociações Comerciais Multilaterais do GATT (OMC), Trade Related Aspects of Intelectual Property
Rights – TRIPS, em português Acordo sobre os Aspectos dos Direitos de Propriedade Intelectual
Relacionados com o Comércio – ADPIC, cujo objeto de proteção engloba essas categorias de direitos.
55
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
no caso de conhecimentos tradicionais associados40 (MP 2186/2001). Seu regime
jurídico é de legislação especializada, tutela específica pelo direito interno e por
entidades supra-estatais41 e princípios próprios. Esses princípios emanam da órbita
internacional42 e da órbita nacional43, como especialidade da matéria, proteção da forma
estética original, exclusividade da exploração.
A propriedade intelectual, portanto, é uma propriedade especial, cuja dimensão
de função social deve ser examinada em contexto próprio, matéria que não se esgota
aqui. É um dos casos que ilustram muito bem o conceito de propriedade em sentido
amplo; que não se pauta pelo paradigma estreito da Modernidade, mas pelo arcabouço
constitucional da República participativa. Nesse diapasão, enlaça-se com a
territorialidade, a condominialidade, os conhecimentos coletivos associados, e constitui
as propriedades étnicas; sem falar que na sua conformação mais tradicional, sofre ampla
transformação em face do coletivo e da função social.
4.2 A propriedade especial público privada
A propriedade especial público privada é fenômeno mais recente. A
Propriedade Comum do Código Civil – que assegura como paradigma a plenitude de
direito subjetivo particular sobre os bens da natureza – tem no reverso a réplica
antitética da propriedade pública, regida pelo Direito Administrativo: nela o Estado
exerce sobre os bens públicos uma função, vinculada à lei. Com o poder de polícia
protege os bens de uso comum do povo, serve-se dos bens de uso especial ou do
patrimônio administrativo como instrumento de seus serviços e dispõe dos bens
40
A MP foi editada sob n. 2052/2000, sofrendo alterações, até a MP 2.186-16, regulamentada pelo Dec.
3.945/2001, modificado pelo Dec. 4.946/2003. Essa legislação confere Direito Subjetivo em favor de uma
comunidade, sobre informações ou práticas locais, individuais ou coletivas, com valor real ou potencial,
associadas ao patrimônio gennético. Patrimônio genético são informações de origem genética de
espécime vegetal, fúngico, microbiano ou animal, obtidos de organismos vivos ou mortos.
41
A Organização Mundial do Comércio preocupa-se com os aspectos comerciais internacionais da
propriedade intelectual, enquanto que a Organização Mundial da Propriedade Intelectual – OMPI
www.wipo.int , International Conference on Intelectual Property – WIPO, ocupa-se da harmonização e
guarda e administração dos tratados dos tratados.A União Internacional para Proteção das Obtenções de
Variedades Vegetais – UPOV www.upov.org.es dedica-se à proteção internacional de cultivares.
42
Princípios internacionais seriam: tratamento nacional e da nação mais favorecida, proteção automática
e proteção independente.
43
Princípios da órbita nacional seriam: especialidade da matéria, proteção da forma estética original,
exclusividade da exploração, limitabilidade no tempo, restritividade da interpretação, facultatividade do
registro e irrenunciabilidade do direito moral.
56
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
dominicais nas suas necessidades44. A propriedade Especial Público Privada tem outro
escopo.
Ela surge com o desenvolvimento econômico45, tendo por objeto bens nacionais,
que são explorados por empresas estatais ou privadas, sob concessão ou autorização da
União Federal, a teor dos art. 20, V, VIII, IX, 176 e parágrafos e 177, incisos e
parágrafos da CRFB. É o caso de jazidas de petróleo46, gás natural, hidrocarbonetos
fluidos e demais recursos minerais e potenciais de energia hidráulica, como propriedade
distinta do solo:...mediante autorização ou concessão da União, no interesse nacional,
por brasileiros ou empresa constituída sob as leis brasileiras e que tenha sede e
administração no País, na forma da lei (CRFB, art. 176, § 1º).
No plano infraconstitucional, a exploração desse potencial de propriedade se dá
na forma de legislação específica de cada setor, mediante regime empresarial47, como
por exemplo: DL 227/67 (Código de Minas)48; Lei 7.781/89 (minerais nucleares e
derivados); lei 9.478/97 (política energética nacional e atividades relativas ao
monopólio do petróleo)49; lei 8901/94 (extração seletiva de madeira em florestas
44
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 24 ed. São Paulo: RT, 1999, p.461.
Opta-se por este autor, em nome de todos os outros, em face de sua popularidade até o passado mais
recente. Em verdade, essa classificação reflete a do art. 66 do Código Civil de 1916. MELLO, Celso
Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 727, adota
o mesmo critério e assim define bem público: Bens públicos são todos os bens que pertencem às pessoas
jurídicas de Direito Público, isto é, União, Estados, Distrito Federal, Municípios, respectivas autarquias
e fundações de Direito Público (estas últimas, aliás, não passam de autarquias designadas pela base
estrutural que possuem), bem como os que, embora não pertencentes a tais pessoas, estejam afetados à
prestação de um serviço público. O conjunto de bens públicos forma o domínio público, que inclui tanto
os bens imóveis como móveis.
45
No início da República o regime jurídico era o do art. 526 do CC/16, ou seja, as riquezas pertenciam ao
dono do solo. A Constituição Federal de 1934 (art. 118 e 119) passou a considerar determinadas riquezas
– jazidas, quedas d‟água – como propriedade distinta do solo para o efeito de exploração ou
aproveitamento industrial, na dependência de autorização ou concessão federal, na forma da lei. A
reforma começara pela EC de 03 de setembro de 1926, que suprimiu do art. 34 o n. 26, da Constituição de
1891: Art. 34 - Compete privativamente ao Congresso Nacional: ...29 – Legislar sobre terras e minas de
propriedade da União. Permaneceu, assim, apenas o art. 64 da CF/1891, dispunha, até 1934, o seguinte:
Pertencem aos Estados as minas e terras devolutas situadas em seus respectivos territórios...
46
Petróleo, segundo o art. 6º, I, da Lei n. 9.478/97, é: todo e qualquer hidrocarboneto líquido em seu
estado natural, a exemplo do óleo cru e condensado.
47
O art. 177, § 1º da CRFB, com a redação da EC 9/95, autoriza a União a contratar com empresas
estatais (como a Petrobrás) ou privadas, a realização das atividades industriais pertinentes.
48
O DL 227/67, com a redação da lei 8901/94, define empresa de mineração no art. 79.
49
Em agosto de 2009 seria apresentado o marco regulatório da exploração do petróleo do pré-sal, criando
o Sistema de Partilha dos contratos de exploração, sem prejuízo do sistema dos contratos de Concessão
tradcional.
57
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
públicas)50; (lei 11.284/2006 (participação do proprietário do solo nos resultadas da
lavra). Já as águas subterrâneas pertencem ao Estado Federado, na forma do art. 21,
XIX da CRFB e da lei 9.433/97 (institui a política nacional de recursos hídricos).
O Código Civil/02 passou a contemplar expressamente a propriedade das
riquezas nacionais do subsolo por intermediação da União, conforme reza o art. 1.473,
V, combinado com o art. 1.230; permitindo, inclusive, que ela sirva de objeto de
hipoteca, independentemente do solo. É evidente que isso não a retira da esfera e dos
desígnios constitucionais da ordem econômica e social, especialmente da dimensão
coletiva e dos deveres perante o ambiente. Trata-se de uma propriedade especial, cuja
dimensão público/privada e de função social, confere-lhe uma condição de exercício
que não pode ser confundida com a da empresa privada comum.
O caráter especial dessa propriedade decorre do objeto, da investidura pública e
do regime de utilização por leis próprias, mediante empresas privadas ou públicas51,
sendo que estas últimas têm previsão expressa de função social no art. 173, § 1º e inciso
I da CRFB, devendo funcionar sob fiscalização do Estado e da Sociedade. Nesse campo
atuam as chamadas Agências Reguladoras, tais como a Agência Nacional da Energia
Elétrica-ANEEL, Agência Nacional de Petróleo-ANP, Agência Nacional de
Telecomunicações-ANATEL, que correspondem mutatis mutandis à FUNAI na
propriedade indígena e ao INCRA na propriedade agrária.
4.3 Propriedades especiais coletivas: patrimoniais (étnicas) e extrapatrimoniais
(coletivas propriamente ditas)
A segunda categoria de propriedade especial é a coletiva, que no plano
patrimonial é a propriedade étnica. Destacam-se aqui três espécies: propriedade
indígena, propriedade quilombola e propriedade de reservas extrativistas por populações
tradicionais (Lei 9985/2000). A CRFB estabelece as linhas fundamentais do direito
étnico, nos artigos 215 e 216, e bem assim, cria modelos especiais de propriedade, que
50
As florestas públicas também podem ser exploradas de forma sustentável em outros regimes que não
esse de empresa privada. São as modalidades da Lei 9985/2000
51
Nesse âmbito a Lei Geral das Agências Reguladoras n. 9.986/2000; a lei 8987/1995, que dispõe sobre o
regime de concessão de permissão de serviços públicos previstos no art. 175 da Constituição Federal, e
dá outras providências; e a lei 9.074/1995, que estabelece normas para outorga e prorrogações das
concessões e permissões de serviços públicos, e dá outras providências www.planalto.gov.br,.
58
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
fogem tanto do padrão do Código Civil quanto do figurino administrativo da
propriedade pública. Não se trata de apropriação de terra por indivíduo ou pluralidade
de sujeitos privados, como na usucapião urbana coletiva, por exemplo.
Trata-se de propriedade diferenciada, especial, que importa reconhecimento e
legitimação de uma territorialidade, histórica e antropologicamente construída, e
preservada, em torno de uma identidade cultural, em torno de saberes e costumes de um
grupo étnico ou local; seja de índios seja de quilombolas seja, por extensão, de
comunidade de pescadores ou ribeirinhos, seringueiros, coletores de frutos. É
propriedade que possui regime jurídico especial, em que não se fala em usucapião ou
alienação nos moldes do direito comum, mas de outros modos de aquisição e outras
formas de exercício e tutela do direito, cada uma na sua especificidade.
A propriedade étnica caracteriza-se como reparatória afirmativa, em favor de
negros e índios, principalmente – tão prejudicados pelo processo civilizatório nacional –
os quais passam a ter assegurado o direito de reprodução sócio-cultural das tradições
ancestrais; sem necessidade de se submeter ao modelo hegemônico da propriedade
comum. Valorizando a diversidade étnica e a dimensão multicultural, a Lei Maior, com
a propriedade étnica, enriquece a humanidade, pois garante modelos de vida
comprometidos com a preservação da natureza, com a sustentabilidade e o resgate de
valores milenares, que nos legaram a hegemonia do planeta.
Na propriedade étnica de quilombos, por exemplo, é o grupo que se define como
sujeito e é o próprio grupo que estabelece os conteúdos ou o perfil de exercício da
mesma. Direito subjetivo, é coletivo pro indiviso e alia à territorialidade os
conhecimentos tradicionais, de forma que o grupo étnico pode reproduzir-se segundo os
seus usos, os seus costumes e a sua tradição, a despeito da lógica civilizitória que o
cerca. Há, portanto, diz Rocha52, de prevalecer, para fins de pertencimento, a
consciência da identidade, nos termos da Convenção 169 da OIT sobre Povos
Indígenas e Tribais, ratificada pelo Brasil. Isso dito passa-se a examinar cada uma
delas.
52
ROCHA, Maria E. Guimarães. O Decreto nº 4.887/2003 e a regulamentação das terras dos
remanescentes das comunidades de quilombos. Disponível em www.presidencia.gov.br acesso em 22 jun.
2007. O art. 1º, al. “b”, 2 dispõe: A consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser
considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da
presente convenção. O dec. É n. 58.824/66, aprovado pelo Decreto Legislativo n. 20/65, que trata, nos art.
11-14, das terras indígenas (Convenção sobre Populações Indígenas e Tribais).
59
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A Propriedade especial coletiva indígena está prevista no art. 231 da CRFB e
é regulada pela Lei n. 6.001/73 (Estatuto do Índio). Na dimensão de direito étnico
possui várias Convenções internacionais ratificadas pelo Brasil 53, que lhe conformam o
regime jurídico. Na esfera governamental atua a Fundação Nacional do Índio (Lei n.
5371/67)54, que estabelece e executa a política indigenista brasileira, com poderes,
inclusive, de representação e assistência jurídica inerentes ao regime tutelar do índio. O
art. 232 da CRFB legitima os próprios índios e suas comunidades defender seus direitos
e interesses em juízo55, intervindo o Ministério Público.
O Código Florestal, lei 4.771 de 1965, art. 2º, § 2º dispõe que as florestas que
integram o patrimônio indígena ficam sujeitas ao regime de preservação permanente
pelo só efeito da referida lei56. Já o art. 231 da CRFB reconhece aos índios57, além da
sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, os direitos originários
sobre as terras que tradicionalmente ocupam, e bem assim as que habitam em caráter
permanente, as que utilizam para suas atividades produtivas, as que são imprescindíveis
à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as que forem
necessárias a sua reprodução física e cultural.
É o instituto do indigenato, que permite aos índios viver em suas terras segundo
seus usos, costumes e tradições – devendo, a União, demarcá-las protegendo e fazendo
respeitar todos os seus bens. O regime jurídico da propriedade indígena não é de
domínio propriamente dito, mas de posse permanente, com usufruto exclusivo das
riquezas do solo, dos rios e dos lagos; de sorte que se for necessária a sua remoção
(após deliberação do Congresso Nacional), no caso de catástrofe, de epidemia que
53
Dec. n. 58.824/68 Convenção 107 da OIT tratando da propriedade indígena; Convenção 169 da OIT
sobre povos indígenas e tribais em países independentes - ratificada em 2002, Dec. Leg. 143/2002 v.
www.socioambiental.org acesso em 23 fev. 2008 e WOLKMER, Antônio Carlos (org). Pluralidade
jurídica na América Luso-Hispânica. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998; e a Convenção da
UNESCO sobre a diversidade das expressões culturais, Decreto Legislativo n. 485/2006, v.
www.unesco.org.br acesso 23 fev. 2008.
54
O art. 1º da lei 5371/67 numera as finalidades e princípios da FUNAI, sendo de se destacar o respeito a
sua (dos índios) cultura, usufruto exclusivo dos recursos naturais de suas terras e o despertar do interesse
coletivo para a causa indigenista.
55
Intervindo sempre o Ministério Público.
56
A lei n. 4.771/65 é regulamentada, nos art. 44-46, pelo dec. n. 88.895/83.
57
O art. 3º do Estatuto do Índio, Lei 6001/73, define índio como todo indivíduo de origem e ascendência
pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas
características culturais o distinguem da sociedade nacional; comunica de indígena ou grupo tribal é o
conjunto de família ou comunidades índias, quer vivendo em estado de completo isolamento, quer em
contatos intermitentes ou permanentes com outros setores da comunhão nacional, sem, contudo, estarem
neles integrados. O parágrafo único do art. 4º do Código Civil estabelece que a capacidade dos índios
será regulada por legislação especial.
60
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
ponha em risco a sua população ou de interesse da soberania do país, o retorno será
imediato, tão logo tenha cessado o risco ou a causa do afastamento.
Em compensação, à diferença do art. 176 da CRFB, as riquezas do subsolo e os
potenciais de energia hidráulica, nas terras indígenas, não pertencem à União, e só
podem ser exploradas com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades
afetadas, que têm assegurada participação nos resultados da lavra (art. 231, § 3º). Não
tem sido tranqüila a questão da demarcação das terras indígenas (Dec. 1775/1996), em
face de conflitos e pretensões de não-índios, como se observa, especialmente, no caso
da Reserva Raposa Serra do Sol, que começou em 1919, foi realizada em 1993,
homologada em 2007 e suspensa em 2008 até 2009 pelo STF58.
A Propriedade quilombola, instituída no ADCT da CRFB/88, art. 68 c/c art.
215 e 216 da CF e Dec. 4.887/2003, é reconhecida aos remanescentes das comunidades
de quilombos que estejam ocupando tais terras. Conforme o Dec. 4.887/2003, art. 2º,
consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos os grupos étnico-raciais,
segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de
relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com
a resistência à opressão histórica sofrida. É propriedade coletiva, que inclui direitos
culturais, cujas manifestações devem ser protegidas pelo Estado.
Os quilombos incluem-se na categoria de comunidade local. É grupo humano
distinto por suas condições culturais, que se organiza, tradicionalmente, por gerações
sucessivas e costumes próprios, e que conserva suas instituições sociais e econômicas.
A essas comunidades de afro-descendentes, estabelece o art. 68 do ADCT, é
reconhecida a propriedade definitiva das terras que estejam ocupando, devendo o Estado
emitir-lhes os títulos respectivos. Em complemento, o § 5º do art. 216 da CRFB, na
defesa da cultura nacional, decreta o tombamento de todos os sítios detentores de
reminiscências históricas dos antigos quilombos.
A propriedade quilombola apresenta algumas diferenças em relação à
propriedade indígena: trata-se propriedade dominial titulada (e não usufruto), mas não
58
A Reserva Raposa Serra do Sol possui área contínua de 1,7 milhão de ha. Com 1.000 km de perímetro,
localizada em Roraima, na fronteira do Brasil com Venezuela e Guiana. É ocupada por índios Pemons e
Capons, povos de filiação Caribes. A demarcação foi contestada por não-índios e o Governo de Roraima.
Em 2007 o STF determinou a desocupação da Reserva, mas em 2008 suspendeu a operação de
desintrusão, até o julgamento definitivo de março de 2009 a favor da comunidade indígena, por 10 votos a
1, ordenando a saída dos não-índios da Reserva.
61
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
inclui como aquela, as riquezas distintas do solo enumeradas no art. 176 da CRFB. O
critério de identificação das áreas é o da autodefinição da própria comunidade. Já o seu
reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação competem ao Ministério do
Desenvolvimento Agrário, por meio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma
Agrária - INCRA, sem prejuízo da competência concorrente dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios (art. 3º do Dec. 4.887/2003).
É propriedade que assegura a participação dos interessados, diretamente ou por
representantes, em todas as fases do procedimento respectivo (art. 6º do Dec.
4.887/2003), o que se estende ao exercício – como propriedade procedimental – e à
tutela (tanto no plano intrínseco, nos conflitos internos, como no plano extrínseco, nos
conflitos com terceiros). A titulação é mediante outorga de título coletivo e próindiviso, com cláusula de inalienabilidade, imprescritibilidade e impenhorabilidade, já
que outra é a sua racionalidade. O título é levado ao Registro de Imóveis, constando em
nome de associação legalmente constituída pela comunidade beneficiada.
Se envolver terrenos de marinha, marginais de rios, ilhas e lagos, o INCRA e a
Secretaria do Patrimônio da União tomarão as medidas cabíveis para a expedição do
título. No caso de sobreposição a unidades de conservação, áreas de segurança nacional,
faixa de fronteira e terras indígenas, o INCRA, o IBAMA, a Secretaria-Executiva do
Conselho de Defesa Nacional, a FUNAI e a Fundação Cultural Palmares tomarão as
medidas necessárias, conciliando o interesse do Estado. Quando incidir sobre terras de
propriedade dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios, o INCRA deve
encaminhar os autos para os entes responsáveis pela titulação.
Se houver oposição de título de domínio particular não invalidado por vício de
nulidade, prescrição ou comisso, e nem tornado ineficaz por outros fundamentos, o
caminho será a desapropriação, conduzida pelo INCRA (art. 13 do Dec. 4.887/2003).
Vale dizer os direitos dos quilombolas não será prejudicado por isso, mesmo porque o
INCRA estará autorizado a ingressar no imóvel, uma vez decretado o procedimento
respectivo (art. 13, § 1º do Dec. 4.887/2003). Prevalece juridicamente a condição de
propriedade quilombola, restando aos demais pretendentes não mais que o direito de
indenização, a cargo do poder público competente.
É propriedade especial, ademais, porque o seu conteúdo e o seu exercício serão
definidos pela própria comunidade, de acordo com seus costumes e tradições, sendo
inegável, neste aspecto e perante o direito comum, certa analogia com o direito
62
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
internacional privado: salvo ordem pública e soberania nacional. A investidura consagra
regime jurídico especial, de efeitos retroativos, que torna a área imune a qualquer perda
a outro título de direito comum, como usucapião, por exemplo. Aplica-se por analogia o
que dispõe o § 6º do art. 231 da CRFB para a propriedade indígena, sem prejuízo de
eventuais direitos de terceiros no caso de desapropriação.59
À semelhança da propriedade indígena com a FUNAI, os quilombolas também
contam com o apoio de uma instituição própria; é a Fundação Cultural Palmares,
encarregada de manter cadastro geral das comunidades; de acompanhar processos de
titulação, tombamento do seu patrimônio cultural, defesa dos seus interesses em geral,
articulação com as autoridades governamentais, especialmente junto ao Comitê Gestor
do Etno Desenvolvimento, coordenado pelo Secretário Especial de Políticas de
Promoção da Igualdade Racial a que se refere o art. 19 do Dec. 4.887/2003. Porém, a
Fundação é ente auxiliar, não exclui a autonomia do quilombo.
A propriedade coletiva extrativista ou propriedade de unidades de uso
sustentável por populações tradicionais é a que se estabelece em favor de tais
coletividades sobre áreas de domínio público, transformadas por iniciativa federal,
estadual ou municipal em Unidades de Conservação do Grupo de Uso Sustentável60.
Elas integram o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC,
de que trata a lei 9985/2000 (art. 225, § 1º, incisos I, II, III da CRFB). À semelhança da
propriedade indígena61, ela não garante o domínio sobre a área, e sim a posse e o uso
dos recursos naturais de forma limitada e sustentável.62
59
BRASIL. Artigos, pareceres, memoriais e petições: o decreto nº 4.887/2003 e a regulamentação das
terras
dos
remanescentes
das
comunidades
dos
quilombos.
Disponível
em
http://.www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_68/Artigos/Art_Maria.htm, acesso em 24 fev. 2008,
ressalva o direito de indenização do particular, em caso de desapropriação das terras para quilombos,
citando em reforço a seguinte opinião de Dalmo Dallari: a Constituição não declara a nulidade dos
títulos anteriores, como o faz no caso das terras indígenas. Diferentemente dos índios que detém a posse
permanente e o usufruto exclusivo das áreas por eles tradicionalmente ocupadas (o domínio destas terras
continua a ser da União – artigo 231 § 2º da CF/88), aos remanescentes de quilombos é reconhecido o
domínio das terras. De tal forma, colocam-se em confronto a propriedade do particular e a dos
quilombolas revista constitucionalmente.
60
A lei 9985/2000 classifica as Unidades de Conservação em dois grupos; unidades de proteção integral,
ou de uso indireto – como se dizia anteriormente – que visam à preservação das áreas com a diversidade
biológica (Estação Ecológica, Reserva Biológica, Parque Nacional, Monumento Natural, Refúgio de Vida
Silvestre) e unidades de uso sustentável.
61
O subsolo e o espaço aéreo, sempre que influírem na estabilidade do ecossistema, integram os limites
da unidade (art. 24 da lei 9985/2000), mas, evidentemente, não pertencem aos residentes tradicionais.
62
A propriedade extrativista apresenta semelhança também com a Concessão de Uso Especial para Fins
de Moradia, da MP 2220/2001 e art. 1225, XI do CCB: quem possui como seu, por cinco anos
ininterruptos e sem oposição, imóvel público situado em área urbana, de até 250 m2, utilizando-o para sua
63
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
O regime é vertido para contrato, que obedece a normas regulamentares (art. 23),
firmado com as autoridades competentes, parcerias envolvidas e entidades da Sociedade
Civil. Há diversas modalidades de Unidades de Conservação63, mas a mais importante é
a Reserva Extrativista, definida como área utilizada por populações extrativistas
tradicionais, cuja subsistência baseia-se no extrativismo e, complementarmente, na
agricultura de subsistência e na criação de animais de pequeno porte. O objetivo é
proteger os meios de vida e a cultura das populações, e assegurar o uso sustentável dos
recursos naturais da Unidade de Conservação.
Portanto, é propriedade coletiva, de cunho étnico, incidente sobre patrimônio
nacional, instituída por lei, de conteúdo fixado em contrato coletivo, com participação
popular64,
e
que
visa
a
compatibilizar
biodiversidade,
sócio-diversidade
e
desenvolvimento sustentável, no contexto regional.65 Em termos de conteúdo e de
função social, é um tipo de propriedade rural, mas que se distingue, absolutamente, da
propriedade rural particular e seu amplo espectro de liberdade como direito subjetivo.
Trata-se de propriedade coletiva procedimental patrimonial. Por outro lado, desta difere
outra espécie de propriedade coletiva, a extrapatrimonial.
5. Propriedade coletiva extrapatrimonial ou coletiva propriamente dita: base
constitucional da função social
Rodotá66 levanta a questão com que se pretende deixar à discussão. A propósito
da luta pela conquista da cidadania social, pergunta: o acesso à cidadania social deve
moradia ou de sua família, tem direito de concessão de suso especial para fins de moradia sobre o referido
bem, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural
(art. 1º da MP 2.220/2001).
63
São elas, de acordo com o art.: Área de Proteção Ambiental: em geral extensa, com certa ocupação,
voltada à sustentabilidade dos recursos naturais. Área de Relevante Interesse Ecológico: pequena
extensão, com pouca ou nenhuma ocupação humana. Floresta Nacional: de espécies predominantemente
nativas, em que se permite extração seletiva e atividade de pesquisa científica. Reserva de
Desenvolvimento Sustentável: área natural com população tradicional com existência baseada em
sistemas sustentáveis ao longo de gerações, adaptadas às condições ecológicas locais e com papel
fundamental na manutenção da diversidade biológica.
64
Art. 27, § 2º, art. 30 e 32 da lei 9985/2000.
65
A compatibilização desses fatores está prevista no art. 26 da lei 9985/2000.
66
RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto: studi sulla proprietà privada. Bolonha: Il Mulino, 1990, p. 22.
No original: l‘accesso allá cittadinanza sociale deve avvernire attraverso la proprietà o attraverso i
diritti? In altri termini: lê dimensioni di tale moderna cittadinanza dipendono daí beni che ciascuno puó
acquistare sul mercato oppure dal riconoscimento di uma serie di situazioni giuridiche che sottraggono
appunto il cittadino alla logica mercantile?
64
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
dar-se através da Propriedade ou através dos direitos? Em outros termos e com outras
palavras: as dimensões de tal cidadania moderna dependem dos bens que cada um pode
adquirir no mercado ou justamente do reconhecimento de uma série de situações
jurídicas que livram o cidadão da lógica mercantil? Pode-se perguntar da mesma
forma: o ambiente deve ser protegido por uma proclamação de direito ou mais que isso,
ser uma propriedade titulada em favor de todos?
A segunda alternativa – acrescenta Rodotá67 – redimensiona quantitativa e
qualitativamente a propriedade, porque significa romper o nexo propriedadepersonalidade. A questão redistributiva, nessa linha, deixa de ser a questão central, e a
relação entre indivíduo e bens deixa de ser necessariamente mediada pela lógica
proprietária.68 Ora, esse aspecto é nuclear à função social da propriedade: seria ela
solidariedade social do proprietário privado ou mais do que isso, o confronto da
propriedade com direitos fundamentais elevados ao mesmo status de direito subjetivo,
na pele de uma nova propriedade, a Propriedade Coletiva Extrapatrimonial?
Observe e atente o leitor para o seguinte. Se for dado ao ambiente equilibrado e
ao patrimônio histórico preservado – e aos demais direitos fundamentais do gênero – a
condição de direito subjetivo coletivo, a mudança de paradigma para sua proteção será
radical. Porque tais direitos saem da exclusividade do público estatal e seu poder de
polícia, em que dependem do voluntarismo autocrático do poder público, e passam à
condição de bens autônomos, separados do individual e do público. Resgata-se a
efetividade da função social e se cria um novo modelo de tutela, a coletiva; um e outro
objeto de discussão própria.
6. Conclusão
Resumindo, a propriedade pós-moderna é um salto qualitativo em relação à
propriedade dos códigos e da Modernidade. No plano político, surge e se exerce no seio
da república participativa; no plano jurídico caracteriza-se como propriedade especial
67
RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto, p. 23. No original: Se le risposte scelgono la seconda
alternativa, non solo il ruolo della proprietà nel sistema risulta quantitativamente ridimensionato. Può
mutarne pure la qualità, perqué diventa più radicale lo sciogliersi del nesso proprietà-personalità.
68
RODOTÁ, Stefano. Il terribile diritto, p. 23. No original: .. diventa pure evidente il limite di una
impostazione tutta risolta nella questione redistributiva. Il rapporto tra individuo e beni non è
necessariamente mediato dalla logica proprietaria.
65
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
constitucional; e perante o Código Civil, substitui a velha propriedade comum
imobiliária, no plano concreto69. Hoje, toda propriedade que o leitor possa ter ou obter,
é propriedade da categoria especial: urbana ou rural ou étnica ou intelectual. Mas a
categoria mais notável é a da propriedade coletiva propriamente dita, extrapatrimonial,
como o ambiente, que em sua autonomia de bem coletivo constitui a base da função
social.
7. Referências
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Tradução de Leandro Konder. 14 ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1997.
69
Para não ser tão drástico, cumpre ressalvar o caso da propriedade móvel corpórea, que não sofre
impacto tão radical como sofreu a propriedade imóvel. Na Pós-Modernidade, os princípios e regras do
Código Civil atuam meramente como direito comum, pois as propriedades serão todas especiais.
66
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
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69
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
MACROECONOMIA E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA: propriedade pública e
interesses privados
Luiz Henrique Urquhart Cademartori1
SUMÁRIO
1. A desregulamentação dos mercados financeiros nacionais. 2- Conseqüências da
reformulação das políticas econômicas. 3- A reforma na alta administração pública no
Brasil. 4. Conseqüências da reforma. 5. O princípio constitucional da economicidade. 6.
Referências Bibliográficas.
1.
A
DESREGULAMENTAÇÃO
DOS
MERCADOS
FINANCEIROS
NACIONAIS
Os mercados financeiros têm grande influência na exigência de reformas na
gestão pública, dada a sua relevância no contexto político-econômico atual. A ascensão
do seu poder começa na década de sessenta, quando as economias nacionais deixaram
de crescer e os Estados perderam força ante as corporações empresariais, que
começaram a se deslocar do setor produtivo para o financeiro, à procura do lucro sem
esforço e sem maiores preocupações2.
Mercados administrados e fiscalizados, contratos de trabalho fortemente
regulamentados e a rigidez dos compromissos estatais com os programas de seguridade
social e defesa seriam as causas do colapso que levariam à desarticulação do sistema de
taxas de câmbio fixas e à cessação do crescimento econômico real. Contextualiza-se
1
Mestre em Instituições Jurídico-políticas e Doutor em Direito do Estado pela Universidade Federal de
Santa Catarina - UFSC; tem Pós-Doutorado em Filosofia do Direito pela Universidade de Granada –
Espanha, é professor da Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC; consultor do INEP e SESu –
MEC para avaliação de cursos de direito no território nacional; foi assessor jurídico do CECCON –
Centro de Controle de Constitucionalidade da Procuradoria de Justiça de Santa Catarina; autor de várias
obras e artigos sobre Direito Público.
2
A respeito da estrutura socioeconômica do neoliberalismo, ver FORTUNY (2000) e também FLEURY
(2001).
70
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
essa transição histórica do capitalismo fordista-keynesiano (capital produtivo) para um
novo sistema de acumulação flexível definitivamente no início dos anos noventa3.
Porém, a origem da desregulação dos mercados foi a decisão do presidente norteamericano Richard Nixon, em 1971, de suspender, no mercado interno de seu país, a
convertibilidade ouro/dólar. Os Estados Unidos, unilateralmente, desvincularam-se do
sistema de taxas de câmbio fixas (gold exchange standard) que tinha sido acordado em
Bretton Woods, no crepúsculo da Segunda Guerra Mundial, quando, também, tinham sido
criados seus guardiães internacionais, o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco
Mundial.
Nesse sentido, mesmo que a crise tivesse sido identificada, contextualmente, em
1973/1975, foi somente na década de 80 que o movimento expansivo e
internacionalizante dos capitais financeiros começou a mostrar o surgimento de uma
nova
face,
que
emergiu
em
conseqüência
das
políticas
desregulacionistas
universalizadas desde então. Dito em outras palavras, a desregulamentação financeira só
se tornou política explícita no decorrer da década de oitenta.
As políticas desregulacionistas emergentes desde então assentam-se sob a égide de
uma nova hegemonia liberal-conservadora que autodenominou-se, propagandisticamente,
de neoliberalismo4.
São muitas as leituras feitas sobre a crise da economia mundial e suas
conseqüências para os Estados e suas economias nacionais. Nos anos oitenta, o
ultraliberalismo econômico, ancorado, principalmente, nas políticas dos governos de
Ronald Reagan (Estados Unidos) e de Margareth Thatcher (Inglaterra), com vistas a
fundamentar a liberação de todos os setores do mercado, ocupou-se em responsabilizar o
intervencionismo estatal keynesiano por todas as inflações, crises fiscais e recessões dos
anos setenta e oitenta na Europa e nos Estados Unidos.
Porém, as transformações assinaladas emergiram mais nitidamente na segunda
metade da década de oitenta, por ocasião da articulação dos novos centros de poder:
Japão, Alemanha e Estados Unidos. Como explicita Fiori (op. cit., p. 184):
Quando o cenário mundial se reordena e a estagnação é superada, o quadro
econômico estrutural está radicalmente modificado. É clara a existência, já
em pleno funcionamento, de um novo padrão tecnológico e organizacional da
3
Paes de PAULA (2002) aborda mais especificamente esse problema.
DIETRICH, Heinz. Crise Capitalista na aldeia global. In: Revista Plural, n. 10. Florianópolis: UFSC,
ago./dez./1998. p. 15.
4
71
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
produção. O sistema financeiro internacional se altera radicalmente, e a
divisão internacional do trabalho entre corporações, países, regiões etc. é
redesenhada.
Paralelamente, com a queda do muro de Berlim – que funcionou como um ícone
para o desmoronamento dos sistemas econômicos socialistas ou de tendências
intervencionistas –, e com a vitória quase universal dos liberais conservadores na maioria
dos países centrais, a nova ordem econômica, aguda nos países industrializados, adquiriu
contornos mundiais e se projetou como indiscutível.
Nesse contexto, é possível observar que a desregulamentação dos mercados
financeiros nacionais acabou por estabelecer um mercado financeiro internacional
“livre”, no qual as empresas começaram a operar (investimentos especulativos de
capitais retirados do setor produtivo) à procura de lucros mais vantajosos em curto
prazo. As empresas em expansão apoiaram a ascensão de um ideário neoconservador
que prometia, de um lado, a abstenção de controles em todos os âmbitos e, de outro,
liberdade de jogo para as forças “naturais” do mercado.
2.
CONSEQÜÊNCIAS
DA
REFORMULAÇÃO
DAS
POLÍTICAS
ECONÔMICAS
A reformulação das políticas econômicas no mercado trouxe, como
conseqüência, a debilidade da política central dos Estados Nações. Não é em vão que o
primeiro conceito posto em crise no âmbito da Teoria Política foi o de soberania. A
crise do conceito de soberania está intimamente associada à tese da morte do Estado
nacional como conseqüência do deslocamento dos centros de poder do âmbito político
para o econômico. O autor que teve notável relevância por esta tese é o japonês Kenichi
Ohmae com a publicação de sua obra The End of de the Nation State, em 1996.
Faria (1996, p. 31) sintetiza, claramente, a nova conformação das instâncias
decisórias, da seguinte forma:
Com a erosão das fronteiras, no âmbito da economia globalizada, a política se
“desterritorializa”. E com a proliferação de mecanismos de auto-regulação
econômica, perde seu papel como instância privilegiada de deliberação,
decisão, direção e proteção, tendendo a operar numa dimensão mais
coordenadora, sob a forma de redes formais e informais articuladas por
empresas sindicatos e entidades representativas preocupadas em negociar
questões específicas e assegurar interesses particulares.
72
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Como conseqüência de tais mudanças, o espaço do público, como representativo
do “bem comum”, esvaziou-se de sentido, transformando os centros decisórios, antes
políticos e públicos, em espaços privados de interesses definidos pelas contingências
macroeconômicas. Nesta perspectiva, a representatividade e a legitimação das instâncias
políticas, que tanto foram questionadas nos debates sobre a natureza do Estado,
simplesmente se esfumaram, convertendo os parlamentos em arenas de lutas dos grupos
de interesses estritamente econômicos. Nesse novo contexto, o que se altera não é o
papel do poder político, são suas formas de atuação e de proteção dos espaços
econômicos garantidos para seus capitais. (FIORI, 1997. p. 142)
Conclui-se, então, que o referencial constitutivo das estruturas sociais
contemporâneas é dado pelo sistema econômico, porém não a partir da pura
racionalidade do mercado (entendida como racionalidade instrumental), mas sob a égide
das contingências diárias baseadas, exclusivamente, na movimentação dos principais
mercados financeiros5. O exemplo mais nítido, pelo qual se pode observar o ideário
neoliberal ascendente dos organismos internacionais, destinado à América Latina é o
denominado “Consenso de Whashington” de 1989 (AYERBE, 1998. p. 28). Por ocasião
de um seminário organizado pelo Institute for International Economics para discutir o
ajuste das políticas latino-americanas, com a participação do FMI, do Banco Mundial,
do Banco Interamericano de Desenvolvimento e representantes do governo dos Estados
Unidos e dos países de América Latina, surge uma espécie de receituário para que os
governos latino-americanos possam “consolidar” e, assim, ajustar a economia da região.
Os tópicos fundamentais podem ser agrupados em três categorias6:
1. Equilíbrio das contas públicas, obtido a partir da redução de despesas e não
pelo aumento de impostos.
2. Liberalização da economia pela abertura comercial e a desregulamentação.
Ou seja, abstenção de controles governamentais ao setor privado e a nãodiscriminação em face do capital estrangeiro.
3. Privatização das empresas públicas.
Essa retitude financeira (CHOMSKY: 2001) colocou os países da região diante
de um dilema insolúvel. Para sair da crise econômica endêmica que afetava, há décadas,
5
Basta escolher qualquer canal de notícias para perceber que a comunicação sobre a movimentação
financeira ocupa o maior espaço na divulgação das informações quotidianas.
6
O Código de Conduta da Administração federal (2000) segue esses princípios.
73
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
toda a América Latina e conseguir a tão desejada estabilidade econômica, os governos
precisaram de mais créditos externos e refinanciamentos de suas dívidas externas por
parte dos credores internacionais, porém, somente teriam refinanciamento e injeção de
capitais externos se aplicassem as políticas consideradas corretas pelos credores,
debatidas e aprovadas em Washington. Mais ainda: a aplicação do receituário do
consenso de Washington implicou custos elevados a curto e médio prazo como recessão,
desemprego, eliminação de subsídios e recorte de gastos governamentais e reforma
social7.
Nesta perspectiva, se, por um lado, os países desenvolvidos impusseram, na
década de oitenta e noventa, cada vez com mais força, uma visão elitista da agenda
internacional com temas recorrentes como a desregulação dos capitais, a geração de
formas cooperativas de interdependência econômica, a unificação monetária, a
flexibilização dos sistemas de produção, a estandardização dos mercados, a criação de
grandes blocos comerciais e a defesa dos cortes drásticos nos gastos públicos dos
Estados nacionais, especialmente por meio de medidas tais como a privatização dos
serviços públicos essenciais, por outro lado, os países latino-americanos, ao estarem
compelidos a aderir à agenda internacional, transformam-se em um contraponto
explosivo ao processo de unificação e flexibilização da economia mundial.
3. A REFORMA NA ALTA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA NO BRASIL
Dentro do atual contexto8, deve-se considerar a Reforma do Estado como uma
luta deflagrada pela elite econômica dos países centrais, em especial Inglaterra e
Estados Unidos, buscando ampliar a sua ação no mercado mundial, desregulamentando
a legislação trabalhista, destruindo a estrutura sindical e pressionando os países
periféricos a abrirem seus mercados à globalização. Na versão brasileira, o
neoliberalismo defendeu a limitação da participação do Estado na atividade econômica
7
É interessante o capítulo de KLIKSBERG (1989) que trata da crise econômica e da necessidade de
reformulação da máquina pública.
8
PETRAS entende neoliberalismo como o movimento que surge como resultado da crise do populismo e
derrota do socialismo. E, ao mesmo tempo em que é progressista é retrógrado. Comenta as políticas
neoliberais em cinco metas: estabilização de preços e das contas nacionais; privatização; liberalização do
comércio e dos fundos de capital; desregulamentação das atividades privada e austeridade fiscal. Assim, o
neoliberalismo “deve ser entendido como uma ideologia para justificar e promover a reconcentração de
riquezas, a reorientação do Estado em favor dos super-ricos e o principal mecanismo para transferir
riquezas para o capital estrangeiro”. PETRAS, James. Os fundamentos do neoliberalismo. In:
RAMPINELLI, Waldir José Ourives (org). No fio da navalha: críticas das reformas neoliberais. 2000.
74
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
e identifica-se com o ideal de “Estado menor” e mais eficiente. Para o neoliberalismo
brasileiro, já se esgotou o modelo de Estado empresário, que supriu, num momento
essencial do desenvolvimento econômico o papel do capital privado, que não se dispôs
a investir em setores essenciais.
A Reforma do Estado foi estimulada, principalmente, por mecanismos
internacionais, como o Banco Mundial e o FMI – Fundo Monetário Internacional.
Segundo eles, para que haja crescimento econômico e inserção na ordem mundial é
preciso que os Estados estejam com orçamentos equilibrados e com estabilidade interna
da moeda.
Durante a sua modificação, o Estado Moderno tem assumido funções e
responsabilidades que são retornadas posteriormente à sociedade, o que pode estar
caracterizando um processo cíclico na modificação da civilização, em que o Estado
assume papel catalisador na busca da prosperidade econômica e da justiça social,
constantemente assumindo funções e as devolvendo à sociedade.
Um dos principais fatores de aceleração no processo de transformação do Estado
é o atual contexto das grandes tendências mundiais relacionadas à globalização,
progressos na tecnologia da informação e emergência da sociedade civil organizada. O
Estado está abandonando algumas funções e assumindo outras, o que está atribuindo-lhe
um novo papel, onde o setor público passa de produtor direto de bens e serviços, para
indutor e regulador do desenvolvimento, através da ação de um Estado ágil, e
pretensamente inovador. As principais funções deste novo Estado são a regulação, a
representatividade política, a justiça e a solidariedade. Para desempenhar este novo
papel, formou-se um consenso governamental de que seria necessário reformar o
Estado.
É nesse contexto, então, que o Brasil tenta reformular os parâmetros
organizacionais da Alta Administração Pública. Entende-se com o conceito de Alta
Administração Pública o núcleo estratégico, isto é, o setor onde as decisões
estratégicas são tomadas, que corresponde aos Poderes Legislativo e Judiciário, ao
Ministério Público e, no Poder Executivo, ao Presidente da República, aos ministros e
aos seus assessores diretos, enfim, todos aqueles sujeitos que participam do
planejamento e da formulação das políticas públicas. (FARIA, 1996. p. 52)9
9
É interessante notar também a abordagem de KELLY e WANNA (2001).
75
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
No Brasil, como já foi visto, este plano foi implantado através da Emenda
Constitucional de 19.06.1998 e está orientado, especificamente, ao plano da
administração pública federal. Após aprovado o programa de estabilidade fiscal que
abrange a sustentabilidade fiscal.
Embora nem o Plano Diretor da Reforma do Aparelho do Estado e nem
tampouco as Emendas Constitucionais tenham contemplado os mecanismos da gestão
jurídica na nova administração pública, impõe-se a sua adoção, entre outras, no
planejamento e na formulação das políticas públicas e nos conselhos das agências
públicas, na medida em que se apresenta, dentro de sua lógica interna, como técnica
funcionalmente adequada para garantir direitos fundamentais.
O eixo principal da reforma gira em torno do conceito de eficiência, ou seja, do
conceito de qualidade de serviço dentro do referencial econômico 10. Desta forma, o
tradicional espaço público da decisão orientado pelo princípio político do bem comum
é deslocado para o âmbito do sistema econômico. Nesse contexto, as categorias que
determinavam a seletividade do código binário da política, isto é, poder/não-poder,
ficam esvaziadas do sentido tradicional para determinar-se através de novos referenciais
operativos: poder econômico/ausência de poder econômico.
A partir de tal deslocamento de significantes, os velhos paradigmas da política
carecem de sentido construtivo, pois deixaram de ser aptos para provocar a
funcionalidade do sistema através da construção referencial. Nesse contexto emergente,
os rumos da decisão na Alta Administração Pública são demarcados pelo significante do
sistema econômico.
4. CONSEQÜÊNCIAS DA REFORMA
O deslocamento referencial apontado trouxe como conseqüência a crise de
outros significantes da área da administração pública na medida em que estão
diretamente vinculados ao componente referencial. Bem público, lucro estatal, bem
comum, políticas públicas, patrimônio público, poder político, são todos referentes que
se contrapõem em seu sentido tradicional, ao novo referencial de eficiência.
10
Bresser PEREIRA (1998) trata especificamente o assunto.
76
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Nesta nova estrutura do Estado, apenas o setor estratégico e o setor das
atividades exclusivas são mantidos como propriedade estatal. O setor dos serviços nãoexclusivos, através da publicização, foi transferido em boa parte para a forma de
propriedade pública-não-estatal e o setor de produção, pela privatização, passou, com
exceção da Petrobrás, à forma de propriedade privada, saindo da estrutura do Estado. O
Núcleo Estratégico deve manter procedimentos burocráticos e, gradualmente, inserir
técnicas gerenciais, já, as Atividades Exclusivas do Estado passam para administração
gerencial.
No setor de Serviços Exclusivos do Estado, a administração gerencial prevê uma
maior autonomia na gestão orçamentária, financeira, de pessoal, de compras e
contratações. Esta autonomia é garantida através da celebração dos Contratos de Gestão
entre cada Ministério e o órgão descentralizado. Nesse contrato, instrumento de controle
gerencial, são estabelecidas as metas a serem cumpridas, bem como os objetivos a
serem alcançados11. Este setor passará a ser organizado através das Agências Executivas
e das Agências Reguladoras.
As Agências Executivas envolvem os serviços de arrecadação tributária, a
segurança pública e a previdência social básica. As Agências Reguladoras são
responsáveis pelo controle sobre os mercados monopolistas, ampliados com o programa
de privatização de muitas áreas que eram serviços públicos estatais.
Com o fito de normatizar os setores dos serviços públicos delegados e de buscar
equilibrar o Estado, seus usuários e seus delegados, foram criadas seis agências
reguladoras nacionais: Agência Nacional de Energia Elétrica – ANEEL12; Agência
Nacional de Telecomunicações – ANATEL13; Agência Nacional do Petróleo – ANP14;
Agência Nacional de Vigilância Sanitária - ANVISA15 e a Agência Nacional de Águas
– ANA16. Ressalte-se que quanto à ANA tem-se discutido se apresenta as mesmas
características das outras agências governamentais, especialmente no tocante à
eliminação da burocracia na gestão dos recursos hídricos17.
11
BRASIL. Lei 10.028, de 19.10.2000 – Lei de Responsabilidade Fiscal.
BRASIL. Lei 9.427, de 26.12.1996.
13
BRASIL. Lei 9.472, de 16.07.1997.
14
BRASIL. Lei 9.478, de 06.08.1997.
15
BRASIL. Medida Provisória 1.791, de 30.12.1998.
16
BRASIL. Lei 9.980/00.
17
Atualmente encontra-se em discussão o anteprojeto de criação de uma nova Agência – a Agência
Nacional de Defesa do Consumidor e da Concorrência (ANC), para a coordenação da política do Sistema
Nacional de Defesa do Consumidor.
12
77
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Quanto aos serviços não exclusivos do Estado, a legislação que permite a criação
das entidades com personalidade jurídica de direito privado como Organizações Sociais,
foi aprovada pelo Congresso Nacional a Lei 9.637, de 15.05.1998.
A forma de relação do Estado com as Organizações Sociais foi estabelecida,
pelo parágrafo 8º, acrescido ao artigo 37 da Constituição Federal pela E.C. n 19, através
de Contratos de Gestão18, em que serão definidos os objetivos e metas a serem
alcançados. É um processo de desestatização das áreas de serviço de educação, saúde,
meio ambiente, pesquisa e desenvolvimento tecnológico. Esse dispositivo foi
regulamentado, em parte, pela edição da Lei 9649/98, que estabelecia a organização da
presidência e ministérios do governo FHC, a qual criou também as Agências Executivas
na Administração Pública Federal. A partir dessa lei, as autarquias e fundações públicas
que integrassem a Administração Indireta tornavam-se passíveis de ser qualificadas –
pela edição de decreto específico para cada caso – como Agências Executivas dotadas
de maior autonomia de gestão e sujeitas a um controle finalístico. Ocorrendo isto,
deixaria de existir a autarquia ou fundação pública e surgiria outra entidade (Agência
Executiva), com qualificação diversa, personalidade jurídica de direito privado e
agentes submetidos a um regime não mais estatutário e sim celetista, embora a
finalidade pública da entidade continue a mesma.. Tal mudança atingiria setores tais
como saúde, educação e previdência, dentre outros, precisamente, veiculados através de
autarquias e fundações públicas.
Questiona-se muito a constitucionalidade de tais contratos de gestão. Isto
porque, entende-se que o regime de trabalho inerente aos agentes que desempenham
atividades em entidades tipicamente públicas, como são as autarquias, não pode ser
contratual, tal como no modelo celetista, onde o trabalhador negocia condições laborais,
ao contrário do servidor público, pautado, dentre outros princípios, pelo da
indisponibilidade do interesse público, daí sua relação estatutária (unilateral) com o
Poder Público. De outra parte, a autonomia das entidades da Administração Indireta,
tais como autarquias e fundações públicas, deriva diretamente da lei e, portanto, um
contrato que alterasse tais condições estaria, também ele, legislando através de uma
18
Na concepção de DI PIETRO, o objetivo desses contratos é conceder maior autonomia a órgãos e
entidades da Administração, permitindo a consecução de metas a serem atingidas no prazo do contrato, o
qual deverá “prever um controle de resultados que irá orientar a Administração Pública quanto à
conveniência ou não de manter, rescindir ou alterar o contrato”. In: DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella.
Parcerias na administração pública. São Paulo: Atlas, 1999. p. 197.
78
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
forma de regulação diversa da lei, o que caracterizaria afronta ao princípio da legalidade
administrativa previsto no caput do artigo 37 da Constituição Federal, além de
interferência indevida entre os poderes estatais, no caso, do Legislativo pelo Executivo.
De outra parte, o legislador fez incluir a eficiência no rol dos princípios da
Administração Pública no citado artigo 37 da Constituição Federal, dado o
reconhecimento da precariedade na atuação dos seus órgãos e agentes. O fim primordial
do aparelho estatal é servir ao público, ao cidadão-cliente de forma satisfatória, pautada
sempre em requisitos mínimos que demonstrem e garantam controle de qualidade.
A melhor prova de que a eficiência na Administração Pública passou a ser
imperativa está no § 3o do art. 37, incluído pela Emenda Constitucional 19, de
04.06.1998. Diz ele:
A lei disciplinará as formas de participação do usuário na administração pública
direta e indireta, regulando especialmente:
I - as reclamações relativas à prestação dos serviços públicos em geral,
asseguradas a manutenção de serviços de atendimento ao usuário e a avaliação
periódica, externa e interna, da qualidade dos serviços;
II - o acesso dos usuários a registros administrativos e a informações sobre atos
de governo, observado o disposto no art. 5º, X e XXXIII;
III - a disciplina da representação contra o exercício negligente ou abusivo de
cargo, emprego ou função na administração pública.
Surgirá, assim, um “Código de Defesa do Usuário” para garantir meios de
cobrança da boa qualidade nos serviços executados pela Administração, à semelhança
do que ocorre com o Código de Defesa do Cidadão, na esfera civil.
Com a nova ordem constitucional a sociedade tem a possibilidade de invocar a
cidadania para cobrar a qualidade no serviço público. Para isto, existe a ação civil
pública para defesa de interesse difuso ou coletivo, salientando sempre que poderá a
demanda ter por objeto a condenação à pena de multa ou o cumprimento de obrigação
de fazer ou não fazer.
Assim, provimento judicial pode determinar que a Administração Pública
execute reparação de obra ou serviço prestado sem qualidade. Para isto, vale-se o
Judiciário de instrumentos para formar a prova.
79
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
O cidadão tem o direito a serviço público de bons resultados. O princípio da
dignidade da pessoa humana19 tem destaque na Constituição, prevalecendo
praticamente sobre todos os outros princípios nela consagrados.
Pelo que se percebe, pretendeu-se, com a inclusão do dever de eficiência
dentre os princípios constitucionais aplicáveis às atividades da Administração
Pública, tornar induvidosa que a atuação do administrador, além de ater-se a
parâmetros de presteza, perfeição e rendimento, deverá se fazer nos exatos
limites da lei, sempre voltada para o alcance de uma finalidade pública e
respeitados parâmetros morais válidos e socialmente aceitáveis. E tudo isso
mediante a adoção de procedimentos transparentes e acessíveis ao público em
geral. Significa dizer que não bastará apenas atuar dentro da legalidade, mas
que ter-se-á, ainda, necessariamente, que se visar resultados positivos para o
Serviço Público e o atendimento satisfatório, tempestivo e eficaz das
necessidades coletivas20.
Muitas são as responsabilidades do Estado e podem ser exigidos direitos como
requisito da cidadania. A Administração Pública tem o dever de programar-se, com
métodos e modos de atuação, tendo em vista sua função maior, que é a manutenção da
sociedade equilibrada, visando à manutenção da ordem pública.
Portanto, o grande desafio do Estado contemporâneo reside na gestão desses novos
referenciais como construtores de novos espaços estratégicos. Assim é que a gestão jurídica
ocupa um papel determinante para a construção da legitimidade do emergente poder
político.
5. O PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ECONOMICIDADE
O discurso constitucional impôs como um dos vetores da regular gestão de
recursos e bens públicos o respeito ao princípio da economicidade, ao lado do basilar
19
O Estado ao manejar o jus puniendi em benefício da restauração da paz social deve atuar de modo a não
se distanciar das balizas impostas pela condição humana do acusado da prática do crime. Por mais abjeta
e reprovável que tenha sido a ação delituosa, não há como se justificar seja o autor privado de tratamento
digno. A preocupação dispensada ao princípio da Dignidade da Pessoa Humana tem a finalidade de
impedir que a atividade punitiva do Estado, manifestada sob o interesse de velar pela segurança da
coletividade, resulte como justificativa à depreciação do indivíduo.
20
NOBREGA, Airton Rocha da. O Princípio Constitucional de Eficiência. Disponível em
<http://www.geocities.com/CollegePark/Lab/7698/art.htm> Acesso em 20.01.2002.
80
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
princípio da legalidade e do, também recém-integrado, princípio da legitimidade (CF,
art. 70, caput).
O conceito economicidade se conecta, no campo das ciências econômicas e de
gestão, à idéia fundamental de desempenho qualitativo. Trata-se da obtenção do melhor
resultado estratégico possível de uma determinada alocação de recursos financeiros,
econômicos e/ou patrimoniais em um dado cenário socioeconômico.
Nesse sentido, Régis Fernandes de Oliveira21 elucida que
economicidade diz respeito a se saber se foi obtida a melhor proposta para a
efetuação da despesa pública, isto é, se o caminho perseguido foi o melhor e
mais amplo, para chegar-se à despesa e se ela fez-se com modicidade, dentro da
equação custo-benefício.
Por sua vez, Fernando Rezende22, comentando sobre a natureza políticoeconômica das despesas públicas, estatui que
além da quantificação dos recursos aplicados em cada programa,
subprograma ou projeto, a efetiva implantação do orçamento-programa
depende, ainda, da aplicação de métodos apropriados para a identificação de
custos e resultados, tendo em vista uma correta avaliação de alternativas. No
caso de empreendimentos executados pelo setor privado, a escolha entre
alternativas para atingimento dos objetivos do grupo é, normalmente, feita
mediante comparações entre taxas de retorno estimadas para cada projeto,
com a finalidade de estabelecer qual a alternativa que oferece os melhores
índices de lucratividade. No caso de programas governamentais, o raciocínio
é semelhante, recomendando-se, apenas, substituir a ótica privada de
avaliação de custos e resultados (lucros) por uma abordagem que procure
revelar os custos e benefícios sociais de cada projeto. Nesse caso, ao invés do
critério de seleção referir-se à maximização de lucros, refere-se à
maximização do valor da diferença entre benefícios e custos sociais.
E Ricardo L. Torres23, também afirma que o “conceito de economicidade, originário
da linguagem dos economistas, corresponde, no discurso jurídico, ao de justiça‖.
Implica ―na eficiência na gestão financeira e na execução orçamentária,
consubstanciada na minimização de custos e gastos públicos e na maximização da
21
OLIVEIRA, Régis Fernandes de; HORVATH, Estevão; e TAMBASCO, Teresa Cristina Castrucci.
Manual de Direito Financeiro. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990. p. 94.
22
REZENDE, Fernandes. Finanças Públicas. São Paulo: Atlas, 1980. p. 111-112.
23
TORRES, Ricardo Lobo. O Tribunal de Contas e o controle da legalidade, economicidade e
legitimidade. Rio de Janeiro: Revista do TCE/RJ, n. 22, jul./1991. p. 37-44.
81
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
receita e da arrecadação‖. Por fim, conclui que é, ―sobretudo, a justa adequação e
equilíbrio entre as duas vertentes das finanças públicas”.
Por fim, a Fundação Getúlio Vargas – SP24 concluiu que “economicidade tem a ver
com avaliação das decisões públicas, sob o prisma da análise de seus custos e
benefícios para a sociedade, ou comunidade a que se refere‖. Verifica-se, assim, não
obstante o enfoque dado, uma significativa convergência quanto ao alcance conceitual
do princípio constitucional sob análise.
Cumpre destacar que, apesar de o princípio em tela não se encontrar formalmente
entre aqueles constitucionalmente previstos para a administração pública federal (art.
37, caput), impõe-se materialmente como um dos vetores essenciais da boa e regular
gestão de recursos e bens públicos.
Ademais, é óbvio que o princípio da economicidade se harmoniza integral e
complementarmente com o recém-introduzido princípio da eficiência (EC 19/98), sendo
deste, com efeito, corolário, e vice-versa.
Ricardo L. Torres25, enfatizando que o controle da economicidade inspira-se no
princípio do custo-benefício, esclarece que este se fundamenta “na adequação entre
receita e despesa, de modo que o cidadão não seja obrigado a fazer maior sacrifício e
pagar mais impostos para obter bens e serviços que estão disponíveis no mercado a
menor preço‖.
Torre pontua, ainda, que o “princípio da economicidade carece de leitura conjunta
com outras novidades introduzidas na fiscalização contábil, financeira e orçamentária,
especialmente a que se refere à aplicação das subvenções e renúncia de receitas‖.
Outrossim, reconhece a ―possibilidade de o Tribunal de Contas controlar, sob o ponto
de vista da economicidade, todos os incentivos fiscais e financeiros concedidos na
vertente da receita (isenções, créditos fiscais, deduções, abatimento, reduções de
alíquotas etc.) ou da despesa pública (restituições de tributos, subvenções, subsídios)”.
Maria Sylvia Z. Di Pietro26, de igual modo, defende a tese de que o controle da
economicidade, assim como da legitimidade, envolve “questão de mérito, para verificar
se o órgão procedeu, na aplicação da despesa pública, de modo mais econômico,
atendendo, por exemplo, a uma adequada relação custo-benefício”.
24
Fundação opina sobre conceitos de economicidade e operacionalidade, revista do TCE/MT, n. 10,
ago./1989. p. 49-58.
25
Ob. cit.
26
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 8. ed., São Paulo: Atlas, 1997. p. 490.
82
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Exemplo de aplicação do princípio constitucional da economicidade é a
modalidade de licitação “pregão”. Ela foi concebida para simplificar contratações
administrativas. Marcada, entre outras características, pela celeridade e pelo alto
estímulo à competitividade na fase de lances verbais, tem se mostrado um valioso
instrumento no atendimento do princípios constitucional da economicidade.
Sua forma eletrônica satisfaz um reclame da modernidade, permitindo o
emprego seguro de recursos tecnológicos na busca da realização do interesse público. A
possibilidade de ser utilizada condiciona-se à edição de regulamentação específica pelos
diversos entes da Federação, compatível com a legislação licitatória e atenta a
particularidades estritamente técnicas. A condução do processo pela via eletrônica
apresenta dificuldades cuja superação depende de adequada análise técnico-jurídica.
Nesse contexto, a atuação do pregoeiro assume especial relevância. O sucesso do
certame depende, em grande parte, de sua capacidade de fomentar a disputa em busca
do menor preço e de, simultaneamente, mantê-la adstrita aos limites do razoável.
Como pode verificar-se, todos os autores citados consideram o princípio da
economicidade como o novo eixo para à construção da decisão pública. Nesse caso, ele
incidiria, diretamente, em cada decisão administrativa que envolva alocação de recursos
públicos. Porém, todo esse entusiasmo não revela os verdadeiros deslocamentos que a
aplicação do princípio da economicidade provoca na operatividade funcional do
sistema.
Ao momento da promulgação da Constituição Federal de 1988, o contexto social
e político requeria transparência para a gestão da coisa pública. Assim, foram instituídos
os princípios da moralidade e da eficácia que incidiriam diretamente, nos processos de
construção da decisão pública em todos os âmbitos. Porém, as transformações sociais e,
principalmente, econômicas que emergiram nos últimos anos viraram do avesso os
objetivos estatais. Redimensionamento do Estado (minimalista) por imposição do
Consenso de Washington; globalização informacional; aceleração dos processos
tecnológicos aplicados à transferências monetárias eletrônicas; surgimento de uma
“nova economia”, etc, todos esses fenômenos esvaziaram os significantes políticos e
reificaram os referenciais econômicos.
Nesse novo contexto, surgiram outros significantes que começaram a determinar
novas formas de organização social. Assim, o conceito de eficiência, preenchido já de
referenciais econômicos, foi plasmado na Emenda Constitucional de 1998 como o eixo
83
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
principal da política administrativa. Acontece que tal significante emergiu entrelaçado
ao princípio da economicidade. Nessa perspectiva, poderia colocar-se que assim como
os direitos fundamentais de liberdade não podem coexistir em um mesmo conflito com
os direitos fundamentais de igualdade, considerados harmônicos apenas na sua
dimensão prima facie, os princípios da moralidade, da transparência e da legalidade da
gestão pública não podem ser extensamente aplicados diante da supremacia do binômio
eficiência/economicidade.
Como resta evidente das colocações dos autores supra citados, o significante da
economicidade operaria como o princípio de excelência que nortearia a gestão da
função pública. Isto é, se diante de um processo de construção da decisão pública é
plenamente seguido o princípio da economicidade em detrimento, talvez, da legalidade,
a decisão será considerada legítima uma vez que a gestão dos recursos públicos passou a
ser o referencial administrativo por excelência. Nesse caso, a coisa pública, deixa de
priorizar a garantia e direitos fundamentais dos súditos (cidadãos) para reverenciar
referencias econômicos que indiretamente afetaram a clientela administrativa.
Na realidade, estas observações não significam, de forma alguma, que o
princípio da economicidade não seja considerado como o referencial que permite uma
abertura cognitiva ao desgastado sistema da administração pública. O problema esta nos
deslocamentos que a recursividade sistêmica provoca ao considerar o significante da
economicidade como o eixo da gestão pública e que a reforma oculta sob o princípio da
eficiência.
É preciso lembrar que no âmbito privado, a economicidade das decisões encaminha à
lucratividade e, portanto, à sobrevivência da organização. Porém, quando se trata da
administração pública, a lucratividade não pode funcionar como um princípio programa,
sob pena de desintegrar os fundamentos do Estado Constitucional de Direito. Isto é, a
coisa pública não deve ser lucrativa. Pode até ser, porém não pode atuar como o
significante por excelência da gestão pública. Nesse caso, o significante da
economicidade deve atuar, conjuntamente, com os restantes princípios constitucionais e,
especialmente, condicionado ao pleno exercício das garantias e direitos fundamentais.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
O FUNDAMENTO ECONÔMICO E AS NOVAS FORMAS DE PROPRIEDADE
João Luis Nogueira Matias1
SUMÁRIO
1. Colocação do problema. 2. Desmistificando o direito de propriedade: evolução histórica.
2.1. Propriedade na era romana. 2.2. Propriedade na Idade Média. 2.3. Propriedade no estado
liberal. 2.4. Propriedade no estado social. 2.5. Propriedade funcionalizada: paradigma do
estado democrático de direito. 3. Fundamentos Clássicos do direito de propriedade. 4. Os
fundamentos econômicos da propriedade. 5. Novas formas de propriedade. 6. Colocações
finais. 7. Referências bibliográficas.
1. Colocação do problema
Fenômeno cultural, o direito de propriedade tem no seu caráter histórico a sua
característica mais presente. Ao longo dos tempos, a conformação do direito de propriedade
possibilitou a sua expressão em moldes diversificados, já tendo se apresentado como coletiva
ou individualizada, relativa ou absoluta.
A despeito dessa característica, contemporaneamente percebe-se grande dificuldade
em compreendê-la fora de sua feição sagrada e inviolável, feição consagrada pelo ideário
burguês. A doutrina e a jurisprudência, muita vez movidas pelo ardor ideológico, recusam o
reconhecimento de novo paradigma para o exercício do direito de propriedade, o que
impossibilita o reconhecimento de novas formas de propriedade.
A exata compreensão dos fundamentos do direito de propriedade pode ofertar novas
perspectivas para o debate. Defende-se que a fundamentação do direito de propriedade em
perspectiva econômica pode possibilitar a compreensão e aceitação de novas formas de
propriedade.
1
Professor-Doutor do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da UFC/Juiz Federal
95
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Inicialmente, será demonstrada a evolução histórica do direito de propriedade, desde
o período romano até a propriedade nos paradigmas do estado liberal, do estado social e do
estado democrático de direito. Em seguida, os fundamentos clássicos e econômicos serão
apreciados, com o objetivo de ensejar o reconhecimento de novas formas de propriedade.
Após, serão apresentadas as conclusões.
2. Desmistificando o direito de propriedade: evolução histórica
A propriedade não se confunde com o direito de propriedade, vez que este tem seus
limites estabelecidos pela ordem jurídica, estando vinculado ao momento histórico e às
condições políticas e sociais vigentes.2 3 4
As lições do passado muitas vezes são úteis à compreensão do presente e à projeção do
futuro. A demonstrar o interesse pela análise histórica da evolução da propriedade, Fábio
Comparato, ao analisar as novas formas de propriedade existentes na sociedade
contemporânea, especificamente a propriedade estática, que caracteriza o controle interno de
sociedades anônimas, a relacionou com as formas de propriedade do medievo, que se
sucediam sobre o mesmo objeto.5
2
Sobre a distinção entre direito à propriedade e direito de propriedade, entre outros, ver: TOMASETTI JÚNIOR,
Alcides. A propriedade privada entre o direito civil e a constituição. Revista de Direito Mercantil,
Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo: Malheiros, n.126, p.123-127, abr./jun. 2002, p.125:
“Uma coisa é o direito à propriedade; outra o direito de propriedade. O direito de propriedade exercita-se de
modo particular sobre os bens de produção”.
3
Sobre a historicidade do direito de propriedade ver, entre outros: MATIAS, João Luis Nogueira; ROCHA,
Afonso de Paula Pinheiro, op. cit., 2006; FACHIN, Luiz Edson. A função social da posse e a propriedade
contemporânea. Porto Alegre: Sérgio Fabris editor, 1988; NEVES, Antônio Castanheira. Questão de fatoquestão de direito ou o problema metodológico da juridicidade, a crise. Coimbra: Almedina, 1967. V. I;
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981; FERREIRA,
Simone Nunes. Direito de propriedade nas constituições brasileiras e do MERCOSUL. Revista Jurídica
Brasília, Brasília, v.8, n.83, p.180-192, fev./mar. 2007 e COCO, Giovanni. Crisi ed evoluzione nel diritto di
proprietá. Milão: Giuffré, 1965.
4
CORTIANO JÚNIOR, Eroulths. O discurso jurídico da propriedade e suas rupturas: uma análise do ensino
do direito de propriedade. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. O autor analisa as diferentes formas de abordagem
do direito de propriedade no meio acadêmico e oferta crítica sobre o ensino da matéria.
5
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto. O poder de controle na sociedade anônima. 4.
ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p.131: “[...] Os bens sociais pertencem à sociedade, mas quem detém sobre
eles o poder de disposição é o empresário, ou seja, o titular do controle. Não se pode deixar de reconhecer aí,
como já tivemos ocasião de assinalar, o ressurgimento do fenômeno de multiplicação de direitos reais
concorrentes sobre os mesmos bens, característico do feudalismo.”
96
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
2.1. Propriedade na era romana
Impõe-se a análise da concepção de propriedade prevista no direito romano em razão da
forte influência daquelas normas na ordem jurídica brasileira, principalmente no âmbito do
direito civil.
A importância da propriedade para a ordem jurídica e econômica romana é inegável, 6
mesmo sem uma definição precisa do instituto, como alerta Moreira Alves,7 sendo a sua
percepção meramente intuída. Há a previsão do direito de gozar e dispor da coisa, que são os
principais atributos do “dominium”. 8
A origem da propriedade é, em regra, associada ao enfraquecimento e divisão do
mancipium, poder unitário, amplo, que gozava o pater famílias, englobando pessoas e coisas,
que se desdobrou em diversas formas de poder, como o manus (sobre a mulher), patria
potestas (sobre os filhos), dominica potestas (sobre os escravos) e dominium (sobre as
coisas).9
Em sua feição inicial, a propriedade (proprietas, dominium) era prevista de forma
absoluta, consistindo no direito de usar (jus utendi), gozar (jus fruendi) e abusar (jus abutendi)
das coisas, possibilitando ao proprietário destruir a coisa, caso queira. Possuía caráter
personalista, oponível a todos, podendo ser assegurada por ação própria no “jus civile”, que
era a “rei vindicatio”.
6
CRETELLA JÚNIOR, J. Curso de direito romano. 20. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997. O autor expressa o
entendimento de que a ordem jurídica e econômica romana girava em torno da propriedade. A mesma opinião
era expressada por José de Alencar, para quem a propriedade foi o princípio central da formação e evolução da
sociedade civil, a partir da sociedade romana. ALENCAR, José de. A propriedade. Brasília: Senado Federal,
Conselho Editorial: STJ, 2004.
7
ALVES, José Carlos Moreira. Direito romano. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2002. V. I, p.281: “Os
romanos não definiram o direito de propriedade. A partir da Idade Média é que os juristas, de textos que não se
referiram à propriedade, procuraram extrair-lhe o conceito. Assim, com base num escrito de Constantino
(C.IV, 35, 21), relativo à gestão de negócios, definiram o proprietário como suae rei moderator et arbiter
(regente e árbitro de sua coisa), de fragmento do Digesto (V,3,25,11), sobre o possuidor de boa fé, deduziram
que a propriedade seria o ius utendi et abutendi re sua (direito de usar e de abusar da sua coisa); e de outra lei
do Digesto (I, 5, pr.), em que se define a liberdade, resultou a aplicação desse conceito à propriedade que,
então, seria a naturalis in re facultas eius quod cuique facere libet, nisi si quid aut ui aut iure prohibetur
(faculdade natural de se fazer o que se quiser sobre a coisa, exceto aquilo que é vedado pela força ou pelo
direito)‖.
8
Sobre a conformação econômica dos diversos períodos romanos, ver BONFANTE, Pietro. Lezione di storia
del commercio. Milano: Giuffré, 1982. v. I.
9
SANTOS JUSTO, Antônio. Direito privado romano. Coimbra: Coimbra editora, 1997. v. III.
97
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Atendendo à divisão da sociedade romana, a propriedade dividia-se em quiritária,
pretoriana (in bonis), peregrina (ex jure gentium) e provincial. A mais ampla era a quiritária,
atribuída apenas aos romanos. A propriedade peregrina era conferida ao estrangeiro, não há
dominium ex jure quiritium. A propriedade é garantida pelo direito peregrino local ou por
autoridades romanas. Após a promulgação do Edito de Caracala, que confere cidadania a
quase todos os habitantes do império, desaparece esta forma de dominium. A propriedade
provincial era a assegurada sobre terras das províncias romanas, não assegurava o domínio
pleno, mas apenas os direitos correlatos. É equiparada à propriedade plena (quiritária) nos fins
do século III.
A propriedade no direito romano sofre lenta e gradual evolução, perdendo a sua
conformação absoluta, individualizada, característica do período antigo, para assumir perfil
mais brando, por influência do direito costumeiro e canônico.10
No período clássico e justinianeu, passa a ser entendida como direito que acarreta
obrigações, deveres morais. É afastado o direito de abusar da propriedade, de destruí-la.11 Na
10
PEZELLA, Maria Cristina Cereser. Propriedade privada no direito romano. Porto Alegre: Sérgio Antonio
Fabris editor, 1998, p.218, a autora sustenta posição mais ampla, defendendo que a relativização da
propriedade já ocorria nos primórdios da civilização romana, baseada nos princípios que fundamentavam o
direito romano, principalmente o princípio do humanismo: “embora muitos intérpretes medievais e modernos
do Direito romano tenham identificado como característica preponderante do direito de propriedade em Roma
o absolutismo, isto não se pode admitir nem em sua época mais primitiva, pois, como se demonstrou neste
estudo em exemplos concretos retirados das fontes romanas originais, desde o início do processo de
civilização da sociedade romana pode se observar a clara submissão do exercício da propriedade ao interesse
social. A submissão do exercício da propriedade, inicialmente ao interesse de grupos aparentados e,
posteriormente, à sociedade toda, evidencia o privilégio do princípio da humanidade sobre os demais
princípios do direito, o que permite que se afaste também o individualismo como característica marcante da
propriedade romana, como alguns romanistas o fizeram, pois mesmo quando exercida individualmente, a
propriedade romana sempre esteve sujeita ao interesse social”. No mesmo sentido: KASER, Max. Direito
privado romano. Tradução de Samuel Rodrigues e Ferdinand Hämmerle. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbekian, 1999, p.141: “Apesar de a propriedade conferir um domínio pleno, não se pode abusar dele em
prejuízo da colectividade. A sua limitação por interesse social compete, na época mais antiga, ao critério do
censor, que vela pelos bons constumes. Os censores intervieram em caso de alienação de propriedade fundiária
indispensável, de exploração insuficiente e, ainda, de gastos imprudentes e de luxos efeminados”;
BEVILÁQUA, Clóvis. Código Civil dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1977. t. I,
p.1004: “O direito de propriedade tem sido definido por diversos modos. Os romanistas adotaram um que,
realmente, parece traduzir, com fidelidade, o conceito genuinamente romano dessa relação jurídica: dominium
est jus utendi et abutendi re sua, quatemus júris ratio patitur. Os romanos, [...] não emprestavam à
propriedade um caráter absoluto. O seu individualismo era subordinado às necessidades sociais” e
CHAMOUN, Ebert. Instituições de direito romano. Rio de Janeiro: Forense, 1957, p.233: “As
transformações da senhoria trás repercussões serissimas na configuração da propriedade. Inicialmente, é óbvio
que ela sofre a influência do regime econômico dominante, distendendo-se ou se adelgando ao sabor de sua
evolução.”
11
CORREIA, Alexandre; SCIASCIA, Gaetano. Manual de direito romano. São Paulo: Saraiva, 1949. v. I,
p.142: “O conceito Justinianeu de propriedade corresponde ao moderno, resulta da fusão das várias espécies
98
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Lei das XII Tábuas (VI, 3), é assegurada a propriedade de áreas para cultura, com aquisição
por usucapião, após dois anos de uso, demonstrando a prioridade à produção. Tais feições são
inteiramente modificadas na Idade Média.
2.2
Propriedade na Idade Média
Em decorrência da invasão bárbara, com a prevalência de seus costumes e legislação, há
grande confusão entre propriedade e posse, muito em razão do instituto germânico da Gewere,
em que a propriedade não é separada da posse, que a faz presumir. Esta é a tônica na matéria
até o redescobrimento do direito romano, no século XIII.
No que se refere aos bens móveis, a posse legítima justifica a aquisição, bastando que o
possuidor, em sendo contestado, demonstre que os bens não foram roubados ou perdidos,
admissão clara do princípio mobilia non habent sequelam (em móveis não há seqüela).
Com a redescoberta do direito romano, a partir do estudo dos doutos nas Universidades,
e com a importância crescente do direito canônico, afasta-se a influência germânica, sendo
firmada a separação exata entre propriedade e posse. É suprimido o princípio da mobília non
habent sequelam, a posse das coisas móveis deixa de, por si só, acarretar a propriedade, sendo
admitida a aquisição através de usucapião.
De forma geral, era característica desse período a divisão da propriedade, repartida em
domínio direto e útil. Passam a ter importância as tenências, consistentes no uso e gozo da
terra de terceiros, por longos períodos, podendo ser alienada a outros, como eram exemplos o
censo, o feudo, a enfiteuse e o fideicomisso. A propriedade fundiária foi levada ao extremo.12
13
de domínio que, no decurso dos séculos, no evolver do direito romano, coexistiram exercendo recíproca
influência.”
12
Censo implicava na obrigação de cultivar a terra, fornecendo prestações em dinheiro e/ou espécie. O feudo
tinha caráter militar e político, obrigava à prestação de serviço militar e ajuda financeira.
13
Sobre a enfiteuse, valiosas são as lições de ALVES, José Carlos Moreira, op. cit., 2002. v.I, p.341:“No direito
justinianeu, a enfiteuse é direito real, alienável e transmissível aos herdeiros, que atribui a alguém (o
enfiteuta), mediante o pagamento de um canon anual, faculdades sobre o imóvel de outrem, (o concedente)
análogas às de verdadeiro proprietário. Só na Idade Média é que, em virtude das amplas faculdades do
enfiteuta sobre o imóvel, surgiu a idéia de que a enfiteuse era modalidade de propriedade, inferior, porém à do
proprietário.”
99
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
2.3
Parte I
Propriedade na revolução burguesa: paradigma liberal
A realidade de fragmentação da propriedade foi modificada com a revolução burguesa,
que aboliu todos os encargos sobre a terra, destacando Francisco Eduardo Loureiro que a nova
realidade, movimentada pela dinâmica da atividade mercantilista, não era compatível com o
fracionamento do direito de propriedade e com a concessão de privilégios a determinadas
classes sociais.14
A propriedade é concebida como direito absoluto dos indivíduos, como reação ao poder
do Estado, ao monopólio das corporações de ofício e aos privilégios de certas classes,
evidenciando a proeminência individual. Tendo por base a interpretação dos juristas
oitocentistas dos textos e glosas, foi construído sistema fechado, baseado na prevalência e
exclusividade da lei, abolindo os vínculos feudais e consolidando a nova ordem.15
As previsões constantes da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789,
eram fiel expressão dos novos valores, especificamente os artigos 2º e 17 que,
respectivamente, dispunham:
(i)Le but de toute association politique est la conservation des droits naturels et
imprescriptibiles de l´homme. Ces droit sont la liberté, la proprieté, la sûreté et la
résistance à l‟oppression e (ii) la propriété étant un droit inviolable et sacré, nul ne
peut en être privé, si ce n‟est lorsque la necessité publique, legalement constatée,
l„exige évidemment, et sous la condition d‟une juste et préalable indemnité. 16
A propriedade é concebida como direito de uso, gozo e disponibilidade de bens, de
forma absoluta, centro do ideário liberal, concepção que é expressa no Code Civil e dele se
14
LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p.27.
15
LEVY, Jean Philippe. História da propriedade. Lisboa: Stampa, 1973, p.28 e ss, expõe o processo evolutivo
de consolidação da nova ordem imposta pela burguesia, expondo o caráter ideológico da interpretação do
direito romano pelos juristas oitocentistas. No mesmo sentido, não apenas apontando a interpretação
impregnada de ideologia dos textos romanos pelos juristas oitocentistas, mas o próprio caráter individualista
do trabalho dos glossadores. GROSSI, Paolo. Proprietà – diritto intermédio. Verbete em Enciclopédia del
diritto, v. XXXVII, 1998. Em outra obra, não menos importante, o autor analisa a evolução da história do
direito de propriedade, destacando a contribuição da pandectística para a sua conformação na feição liberal.
GROSSI, Paolo. Historia del derecho de propriedad. La irrupción del colectivismo em la conciencia
europea. Barcelona: Ariel, 1986.
16
Tradução livre: “artigo 2º - O objetivo de qualquer associação política é a conservação dos direitos naturais e
imprescritíveis do homem. Estes direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança, e a resistência à
opressão”. “Artigo 17 - Sendo a propriedade um direito inviolável e sagrado, ninguém pode ser dela privado, a
não ser quando a necessidade pública, legalmente reconhecida, o exige, sob a condição de uma justa e prévia
indenização.”
100
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
irradia para as modernas codificações, tendo inclusive influenciado fortemente o Código Civil
Brasileiro de 1916.17
No Code Civil era estatuído que “La proprieté est le droit de jouir et de disposer des
choses de la manière la plus absolute, pourvu qu‘on n‘en fasse pas un usage prohibé par lês
lois et lês règlements”.18 19
Godoy, no mesmo sentido, expressa com clareza a modificação operada pela revolução
da burguesia:
Com a Revolução Francesa, eliminou-se essa superposição dominial que havia no
feudalismo, unificando-se o conceito de propriedade. Em patamar de igualdade com a
liberdade e igualdade, a propriedade privada passou a ser considerada como pilar
estrutural dessa sociedade. Na tentativa de igualar os homens, cada um passou a valer
menos pelos títulos de nobreza e mais por seu patrimônio - era a ascensão da burguesia
como classe social.20
É o mesmo raciocínio exposto por Stefano Rodotá, para quem o conceito expresso no
Code Civil é decorrência da concretização do projeto ideológico da burguesia e, também, do
amadurecimento da compreensão individualista da identificação e disciplina dos direitos
subjetivos em geral.21 22
Bercovici também afirma o papel ideológico do direito de propriedade burguês,
destacando que a análise da propriedade não dispensa abordagem que considere a sua
caracterização como instituto concreto, ou seja, inserido na dinâmica histórico-social.23
Esta perspectiva não pode deixar de ser considerada em qualquer abordagem crítica
sobre a matéria. A condição absoluta da propriedade somente pode ser entendida como forma
de superação da realidade pré-revolucionária, portanto vinculada ao contexto de sua época, o
17
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. ed. anotada e atualizada por Ovídio Rocha Barros Sandoval.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
18
Tradução livre: “artigo 544 - A propriedade é o direito de gozar e dispor das coisas do modo mais absoluto,
desde que não se faça uso proibido pelas leis e pelos regulamentos”.
19
DE PAGE, Henri. Traité elementaire de droit civil. Paris: [s.n.], 1963. v.V e RIPERT, Georges. Le regime
démocratique et le droit civil moderne. 2. ed. Paris: Librairie Génerale de Droit et Jurisprudence, 1948.
20
SOUZA, Luciano de Godoy. Direito agrário constitucional – origem da propriedade. São Paulo: Atlas, 1999,
p.25.
21
RODOTÁ, Stefano. Proprietà (Diritto vigente). El terrible derecho. Estúdio sobre la propriedad privada.
Tradução de Luiz Diez-picazo. Madrid: Civitas, 1986.
22
ASCENSÃO, José de Oliveira. A tipicidade dos direitos reais. 2. ed. Lisboa: Livraria Petroni, 1968. Às
folhas 74 e seguintes destaca o caráter ideológico da ordem jurídica burguesa, cujo objetivo era consolidar o
novo regime. No mesmo sentido, PLANIOL, Marcel. Traité élémentaire de droit civil. 6. ed. Paris: Librairie
Générale de Droit & Jurisprudence, 1911. O autor constata a supervalorização dos aspectos individualistas no
Code Civil a demonstrar o seu caráter ideológico.
23
BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento – uma leitura a partir da constituição de
1988. São Paulo: Malheiros, 2005.
101
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
que explica os seus excessos. A manutenção desta perspectiva parcial, entretanto, somente
pode ser justificada pelo aspecto ideológico de que se revestiu a doutrina liberal. Os seus
excessos formataram as linhas básicas de sua modificação.
No direito nacional, a Constituição de 1824 regulava o direito à propriedade no artigo
179, inciso XXII, dispondo:
garantido o direito de propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem público
legalmente verificado exigir o uso e emprego da propriedade do cidadão; será ele
previamente indenizado no valor dela. A lei marcará os casos em que terá lugar esta
única exceção, e dará as regras para determinar a indenização.
Havia a incisiva proteção da propriedade, como conseqüência do contexto histórico da
época. Consolidavam-se as idéias liberais da revolução burguesa, que repercutiram inclusive
no Brasil, país estritamente agrário. Corroborou, também, para a definição ampla da
propriedade, a nítida relação entre propriedade, principalmente a agrária, e poder, como
decorrência da própria forma de ocupação e repartição de terras no Brasil.24
Também na primeira das Constituições da República do Brasil, a Constituição de 1891,
a propriedade era expressão do ideário liberal, indicada como garantia, conforme estabelecia o
artigo 72, parágrafo 17.25
Durante a vigência desta Lei Maior, foi editado o Código Civil de 1916, codificação
baseada, tardiamente, nas idéias e valores emanados do Code Civil, em que a propriedade era
prevista em perfil absoluto.
Interessante destacar que no Brasil não foi vivenciada a estrutura econômica feudal. Foi
aplicado o modelo napoleônico-pandectista sem o antecedente do formato de propriedade
típico do sistema feudal, já que no Brasil prevalecia o sistema de sesmarias, em que as terras
pertenciam ao patrimônio da Coroa Portuguesa, estando os particulares vinculados a relação
jurídico-administrativa.26
24
FAORO, Raimundo. Os donos do poder – formação do patronato político brasileiro. 3. ed. São Paulo: Globo,
2001.
25
“Artigo 72 – [...] § 17 – O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salvo a desapropriação
por necessidade ou utilidade pública, mediante prévia indenização”.
26
Sobre a forma peculiar de propriedade que prevalecia no Brasil, ver os esclarecimentos de VARELA, Laura
Beck. Das propriedades à propriedade: construção de um direito. In: COSTA, Judith Martins (Org.). A
reconstrução do direito privado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p.730-762, p.748: “[...] essa
passagem que procuramos em breves linhas descrever da propriedade feudal à propriedade privada moderna,
consagração do modelo jurídico napoleônico-pandectista, não tem paralelo na experiência jurídica brasileira.
Nesta, desconhecedora da estrutura econômica feudal, o ponto de partida não será a complexa hierarquia
102
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A este tempo, Clóvis Beviláqua definia a propriedade como o poder assegurado pelo
grupo social à utilização dos bens da vida psíquica e moral. 27 Lafayette Rodrigues Pereira a
conceituava como o direito que tem uma pessoa de tirar diretamente de uma coisa toda a sua
utilidade jurídica.28 Lacerda de Almeida a conceituava como o direito real que vincula à nossa
personalidade uma coisa corpórea sob todas as suas relações.29
Nas definições clássicas percebe-se a nítida influência da concepção liberal de
propriedade, tida como direito subjetivo, estático, uno, forma de realização da vontade do
indivíduo.
Entretanto, novas idéias estavam por emanar das Constituições mexicana e alemã
(Constituição de Weimar), transformando o perfil do direito de propriedade, como será visto.
2.4
Propriedade no paradigma do estado social
No final do século XIX e início do século XX, a sociedade foi modificada por
profundas transformações motivadas pelo incremento da produção e do consumo em massa,
características da sociedade industrial. Uma das conseqüências da supervalorização da
produção foi a efetiva opressão do homem pelo homem, a liberdade formal foi usada para
oprimir os mais fracos, o que desencadeou a reação contra a supervalorização do indivíduo.
O ambiente jurídico, especialmente a concepção de propriedade, não ficou imune à nova
realidade, como descreve Nobre Júnior:
Desde princípios da centúria passada, a noção de propriedade fora alvo de notável
transformação. Da concepção sacré et inviolable, plasmada pelo artigo 17, da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, legada pela Revolução
Francesa, com os adornos inscritos no artigo 544, do posterior Code Civil de 1804,
capitulou ante a necessidade de ser harmonizada com os imperativos da sociedade. 30
Novo paradigma é firmado para a compreensão dos direitos à liberdade, igualdade e
propriedade. De um plano formal, evolui-se para a busca da liberdade e igualdade material, o
que se reflete na compreensão da propriedade. Gierke, de forma simplificada, destaca que foi
dominial do medievo, mas uma peculiar forma proprietária pertencente ao patrimônio da Coroa Portuguesa,
que mantinha os particulares em uma relação de concessão, de natureza jurídico-administrativa.”
27
BEVILÁQUA, Clóvis, op. cit., 1977, p.34.
28
PEREIRA, Lafayette R. Direito das coisas. Rio de Janeiro: Typografia Baptista de Souza, 1922, p.56.
29
ALMEIDA, Lacerda de. Direito das cousas. Rio de Janeiro: Ribeiro dos Santos, 1908, p.72.
30
NOBRE JÚNIOR, Edílson Pereira. A posse e a propriedade no novo Código Civil. Revista de Direito
Privado, São Paulo, ano 15, p.17-37, 4 jul./set. 2003, p.20.
103
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
dada aos direitos subjetivos uma dimensão de socialidade, em relação ao direito de
propriedade, implicando tal dimensão na possibilidade de o titular do direito exercer as suas
prerrogativas desde que não ofenda o direito de outrem.31 Para Pietro Barcelona, a nova
realidade faz com que o proprietário seja árbitro absoluto das escolhas referentes ao uso do
bem.32
Como conseqüência dos novos tempos, a Constituição mexicana, de forma pioneira, em
5 de fevereiro de 1917, fixa novos parâmetros para o exercício do direito de propriedade,
estabelecendo, em seu artigo 27, a idéia de que a nação terá o direito de impor à propriedade
privada as limitações exigidas pelo interesse público, assim como pode regular, em benefício
de todos, o aproveitamento dos elementos naturais suscetíveis de apropriação, com a
finalidade de realizar distribuição eqüitativa da riqueza pública, cuidar de sua conservação,
obter o desenvolvimento equilibrado do país e melhorar as condições de vida da população
urbana e rural.33 34
Posteriormente, em 1919, a Constituição alemã de Weimar dispõe, em seu artigo 153,
que é garantida a propriedade, estabelecendo que o seu conteúdo e limites decorrem da lei. A
expropriação tem que ser determinada pelo bem comum, decorrendo de disposições legais e
mediante justa indenização, a não ser nos casos declarados na Lei. Ao fim do dispositivo,
consta a declaração de que a propriedade obriga, devendo seu uso representar um serviço ao
interesse social.35
31
GIERKE, Otto Von. La función social del derecho privado. Madrid: Sociedade Espanhola, 1904.
BARCELONA, Pietro. Proprietà (Tutela constituzionale). Digesto delle discipline privatistiche, sezione
civile. 14. ed. Turim: Utet, 1993. v XY, p.459.
33
No original, dispõe o parágrafo terceiro do artigo 27, da Constituição mexicana de 1917, que ―[...] la nación
tendrá em todo tiempo el derecho de imponer a la propriedad privada las modalidades que dicte el interés
publico [...]‖.
34
Sobre o impacto da previsão na ordem jurídica mexicana: ―Tradicionalmente vino considerándose a la
propriedad como uno de los clássicos derechos del hombre; el derecho de propriedad como derecho natural,
anterior y superior al Estado; concomitante al hombre mismo; que en materia civil llegó a ser considerado
absoluto e inviolable para usar y disponer libremente de las cosas, dando origen a tanta injusticia y
desigualdad. En este artículo, nuestra Carta de 1917 rompió com toda esa caracterización del derecho de
propriedad, reconociendo a ésta su verdadera naturaleza de función social, que tiene por objeto hacer uma
distribución equitativa de la riqueza pública y cuidar de su conservación. La singular concepción que nuestra
Constitución há hecho del derecho de propriedad desemboca en una serie de declaraciones que, derivadas de
uma realidad muy nuestra y venida de muy atrás, trastocan por completo la concepción que sobre el derecho
de propriedad habían tenido todas las legislaciones hasta 1917”. HELÚ, Jorge Sayeg. El constitucionalismo
social mexicano - La integración constitucional de México (1808-1988). México: Fondo de Cultura
Econômica, 1991, p.662-663.
35
No original: “Das Eigentum wird von der Verfassung gewährleistet. Sein Inhalt und seine Schränken ergeben
sich aus den Gesetzen. Eine Enteignung kann nur zum Whole der Allgemeinheit und auf gesetzlicher
Grundlage vorgenommen werden. Sie erfolgt gegen angemessene Entschädigung soweit nicht ein Reichsgesetz
32
104
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Em ambas as Constituições, a propriedade não mais é conceituada como direito
absoluto e irrestrito, posto que passa a ser condicionada ao direito dos demais indivíduos, de
modo que tais idéias são difundidas e se espalham pela legislação dos demais países.
No Brasil, na Constituição de 1934, os novos valores despontavam, tendo sido
estabelecidas algumas restrições ao exercício abusivo do direito de propriedade, conforme era
disposto no artigo 113, parágrafo 17.36
Com a Constituição de 1937, de certa forma, houve algum retrocesso no que se refere à
vinculação do exercício do direito de propriedade ao interesse social. É remetida à lei a
regulação dos limites do direito de propriedade.37
Na Constituição de 1946, a previsão do direito de propriedade e dos limites que lhe
eram impostos constava dos artigos 141, parágrafo 16 e no artigo 147, este, referente à ordem
econômica e social.38 No artigo 147 havia a disposição de que o uso da propriedade era
condicionado ao bem estar social. É restabelecida restrição ao exercício do direito de
propriedade, como previsto na Constituição de 1934, vinculando-o ao interesse social.
Na Constituição de 1967, a previsão do direito de propriedade era estabelecida no artigo
150, parágrafo 22.39 Seguindo a divisão estabelecida na Constituição anterior, na regulação da
ordem econômica, no artigo 157, era disposto que a ordem econômica tinha por fim realizar a
justiça social, com base em alguns princípios, entre os quais, a função social da propriedade.
etwas anderes bestimmt. Wegen der Höhe der Entschädigung ist im streitfalle der Rechtsweg bei den
ordentlichen Gerichten often zu halten, soweit Reichsgesetze nichts anderes bestimmen. Enteignung durch das
Reich gegenüber ländern, gemeinden und gemeinnützigen Verbänden kann nur gegen Entschädigung erfolgen.
Eigentum verpflichtet. Sein gebrauch soll zugleich dienst sein für das Gemeine beste”.
36
“Artigo 113 [...] Parágrafo 17 – É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o
interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade
pública far-se-á nos termos da lei, mediante previa e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como
guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o
bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.”
37
“Artigo 122 – A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no país o direito à liberdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes: Parágrafo 14 - o direito de propriedade, salvo a
desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e seus
limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício.”
38
“Artigo 141– [...] Parágrafo 16 - É garantido o direito à propriedade, salvo o caso de desapropriação por
necessidade ou interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente,
como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se
assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito à indenização ulterior.”
39
“Artigo 150 – [...] Parágrafo 22 – É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por
necessidade ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização, em dinheiro,
ressalvado o disposto no artigo 157, VI, parágrafo 1º. Em caso de perigo iminente, as autoridades competentes
poderão usar da propriedade particular, assegurado ao proprietário direito à indenização ulterior.”
105
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Foi nesta Constituição a primeira previsão do princípio da função social da propriedade,
entretanto, a repercussão prática da previsão foi muito reduzida, não chegando a influenciar a
concepção de propriedade então prevalente, constante do Código Civil de 1916.
Com a Emenda 01, de 1969, a proteção do direito de propriedade passou a constar do
artigo 153, parágrafo 22, que estabelecia:
É assegurado o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade
ou utilidade pública ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em
dinheiro, ressalvado o disposto no artigo 161, facultando-se ao expropriado aceitar o
pagamento em título da dívida pública, com cláusula de exata correção monetária. Em
caso de perigo público iminente, as autoridades competentes poderão usar da
propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior.
Na regulação da ordem econômica, no artigo 160, era previsto que a ordem econômica e
social tinha por fim realizar o desenvolvimento nacional e a justiça social, com base, entre
outros princípios, na função social da propriedade.
Com a evolução da idéia de propriedade, a sua delineação jurídica passa a compor
limites à atuação dos particulares, limites impostos por lei, como algo externo ao direito de
propriedade, o que era evidenciado pela doutrina.
Pontes de Miranda defende que a propriedade engloba um feixe de poderes jurídicos a
partir do qual o proprietário pode, a princípio, utilizar a coisa, ou destruí-la, gravá-la ou
praticar outros atos de disposição.40
Orlando Gomes, destacando que a propriedade pode ser conceituada em perspectivas
diferentes, mas complementares entre si, expõe que, de forma sintética, a propriedade seria a
submissão de uma coisa, em todas as suas relações, a uma pessoa. No plano analítico, seria o
direito de usar, fruir e dispor de um bem, e de reavê-lo de quem injustamente o possua. Na
perspectiva descritiva, seria o direito complexo, absoluto, perpétuo e exclusivo, através do
qual uma coisa fica submetida à vontade de uma pessoa, com as limitações da lei.41
José de Oliveira Ascensão a conceitua como o mais amplo direito sobre a coisa, no
sentido de que os demais direitos reais sobre coisa alheia dela decorrem, embora submetida
aos limites firmados na lei.42 43
40
PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Tratado de direito privado. 4. ed. São Paulo: RT, 1977. v.
10.
41
GOMES, Orlando. Direitos reais. 19. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p.109.
42
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito civil: reais. Coimbra: Coimbra editora, 1993, p.448.
106
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Caio Mário a define como um direito, que compreende o poder de agir diversamente
sobre a coisa, usando, gozando ou dispondo dela, podendo reivindicá-la de quem injustamente
a detenha.44
A partir do Segundo pós-guerra, as transformações do direito de propriedade se
acentuam, fazendo com que seja encarado de forma não absoluta, expandindo-se para novas
formas e sofrendo as restrições da função social.
A idéia de solidariedade social, entendida, na lição de Eros Grau, como “a energia que
vem da densidade populacional fraternizando e não afastando os homens uns dos outros”,
repercute no âmbito do direito, modificando a feição dos institutos jurídicos, a fim de adaptálos à nova realidade, o que ocorreu com a propriedade. 45
A propriedade transforma-se de feixe de poderes sobre a coisa em fonte de deveres, a
partir de sua funcionalidade, ou seja, é posta a sua vinculação a objetivos pré-fixados,
impondo-se ao proprietário o dever de concretizá-los.
2.5
Propriedade funcionalizada: paradigma do estado democrático de direito
A definição do direito de propriedade como direito subjetivo, absoluto, baseado apenas
nos interesses do proprietário não mais se justifica na ordem jurídica nacional, a teor do
previsto nos artigos 5º, caput e incisos XXII e XXIII, e 170, incisos II e III, da Constituição
Federal, e do artigo 1228, parágrafo 1º, do Código Civil.46
A dupla previsão do direito de propriedade na Constituição Federal atende a objetivos
diferentes, sendo protegida a propriedade como forma de realização pessoal (direito à
43
No mesmo sentido, ver também GATTI, Edmundo. Teoria general de los derechos reales. 3. ed. Buenos
Aires: Abeledo-Perrot, [s.d.], p.138.
44
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. 13. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998. v. IV, p.72.
45
GRAU, Eros. A ordem econômica na constituição. São Paulo: Malheiros, 2003, p.242.
46
Artigo 5º da Constituição Federal – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à
liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] XXII – é garantido o direito de
propriedade; XXIII – a propriedade atenderá a sua função social.” Artigo 170 – “A ordem econômica, fundada
na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna,
conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] II – propriedade privada; III –
função social da propriedade.” Artigo 1228 do Código Civil “[...] Parágrafo 1º - O direito de propriedade deve
ser exercido em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados,
de conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio
ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.”
107
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
propriedade) e como instrumento para o exercício da atividade econômica (direito de
propriedade).
Inicialmente, no caput do artigo 5º, é previsto o direito à propriedade, como forma de
realização pessoal do indivíduo, em concepção ético-jurídica, cujo objetivo é “assegurar ao
ser humano – com os bens ou graças aos bens atribuídos a ele enquanto pessoa – tenha
oportunidade de criar, expandir e consolidar a própria personalidade”. 47
Nos demais dispositivos, o direito de propriedade é assegurado como instrumento para o
exercício da atividade econômica.
A previsão específica entre os princípios da ordem econômica impõe ao Estado o dever
de respeitar a propriedade dos agentes privados, atribuindo-lhes o dever de fazer com que os
bens tenham uso adequado à sua função social. Com bem destaca Francisco Eduardo
Loureiro:
a funcionalização dos institutos jurídicos de direito privado revela a íntima relação
existente entre a abordagem técnico-jurídica, preocupada com o estudo da estrutura, e
a abordagem sociológica, preocupada com o estudo da teoria funcional, ambas
relativas a um mesmo fenômeno. Não basta ao jurista saber como o direito é feito, mas
também para que serve, ou seja, sua causa final. Seria a função, então, o papel que um
princípio, norma ou instituto desempenha no interior de um sistema ou estrutura.
48 49
Mas importa deixar claro que as abordagens estrutural e funcional não são excludentes,
são complementares, o que significa dizer, em relação à propriedade, que a sua função passa a
compor a sua estrutura, como elemento que a conforma e a vincula. Essa foi a opção do
legislador constituinte, ao conceber o direito à propriedade privada vinculado à sua função
social.50
47
TOMASETTI JÚNIOR Alcides. A propriedade privada entre o direito civil e a constituição. Revista de
Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São Paulo: Malheiros (Nova Série), ano
XLI, n.126, p.123-128, abr./jun. 2002.
48
LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p.109.
49
Sobre a diferença de perspectiva entre as abordagens funcional e estrutural, a obra de BOBBIO, Norberto, op.
cit., 1977. Há tradução para o vernáculo da obra, denominada Da estrutura à função. Tradução de Daniela
Beccaccia Versiani. São Paulo: Manole, 2007.
50
MORAES, José Diniz. A função social da propriedade e a Constituição Federal de 1988. São Paulo:
Malheiros, 1999.
108
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
É nesse sentido a manifestação de Fábio Konder Comparato e Calixto Salomão Filho,
que anotam que a atribuição de função a institutos jurídicos implica na sua vinculação à
realização de fins que lhe são previamente determinados.51
Também no mesmo sentido a opinião de Cármen Lúcia Antunes Rocha, em artigo em
que analisa a atribuição de função à propriedade:
Propriedade, conceito sempre aproximado, historicamente, dos bens da terra
(conquanto, cada vez mais na civilização contemporânea, se tenha a imaterialidade do
objeto da propriedade), tem natureza de função […]. O que parece certo é que, em
princípio e por princípio, a propriedade presta-se a ser, em sua essência, algo dado a
cumprir função, daí ser ela instrumentalmente voltada a um fim. A função, em
qualquer caso, é dar a utilidade que apresente resultado sócio-político e econômico nos
termos juridicamente definidos como legítimos. Paralelamente, a utilidade própria da
coisa (res) é obtida pelo atendimento daquilo que é posto como sendo a sua função.
52
Mas o que significa atribuir função social à propriedade? A resposta é dada na lição de
Caio Mário:
[...] certo é que a propriedade cada vez mais perde o caráter excessivamente
individualista que reinava absoluto. Cada vez mais se acentuará a sua função social,
marcando a tendência crescente de subordinar o seu uso a parâmetros condizentes com
o respeito aos direitos alheios e às limitações em benefício da coletividade.
53
É particularmente importante, para a compreensão do tema, pelos novos parâmetros que
permite fixar, o artigo 1228, do Código Civil pátrio. 54 Flagrantes, no dispositivo, as restrições
ao direito de propriedade, o uso dos bens é “condicionado às suas finalidades econômicas e
51
COMPARATO, Fábio Konder; SALOMÃO FILHO, Calixto, op. cit., 2005.
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes. O princípio constitucional da função social da propriedade. Revista LatinoAmericana de Estudos Constitucionais, Belo Horizonte, n.2, jul./dez. 2003, p.543-594, p.547.
53
PEREIRA, Caio Mário da Silva. Direito civil – alguns aspectos da sua evolução. Rio de Janeiro: Forense,
2001, p.79.
54
“Artigo 1228 – O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder
de quem quer que injustamente a possua ou detenha. Parágrafo 1º - O direito de propriedade deve ser exercido
em consonância com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e
o patrimônio histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. Parágrafo 2º - São defesos
os atos que não trazem ao proprietário qualquer comodidade, ou utilidade, e sejam animados pela intenção de
prejudicar outrem. Parágrafo 3º - O proprietário pode ser privado da coisa, nos casos de desapropriação, por
necessidade ou utilidade pública ou interesse social, bem como no de requisição, em caso de perigo iminente.
Parágrafo 4º - O proprietário também pode ser privado da coisa se o imóvel reivindicado consistir em extensa
área, na posse ininterrupta e de boa fé, por mais de cinco anos, de considerável número de pessoas, e estas nele
houverem realizado, em conjunto ou separadamente, obras e serviços considerados pelo juiz de interesse social
e econômico relevante. Parágrafo 5º- No caso do parágrafo antecedente, o juiz fixará a justa indenização
devida ao proprietário; pago o preço, valerá a sentença como título para o registro do imóvel em nome dos
possuidores”.
52
109
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
sociais”, conforme o expresso texto legal, sendo defesos ao proprietário atos que não lhe
tragam qualquer comodidade ou utilidade e/ou que objetivem prejudicar terceiros.
No mesmo sentido, Leonardo Mattietto, com precisão singular, expõe a renovação que
decorre dos novos tempos e foi assimilada pelo Código Civil de 2002:
[...] o Código Civil, ao dispor sobre o direito de propriedade, admite a noção de
propriedade-função, ao reconhecer que o direito deve ser exercido de acordo com suas
finalidades econômicas, sociais e ecológicas. Abre-se, destarte, a perspectiva de
renovação do próprio conceito de propriedade, tarefa que não é fácil, diante de um
instituto que tem, por trás de si, séculos de história.
55
A idéia de função social, no direito brasileiro, expressa através de princípio
constitucional, é conformadora do direito de propriedade, integrante de sua estrutura,
delineada como relação jurídica complexa, implicando deveres instrumentais que permitem a
realização dos objetivos eleitos pelo constituinte, vinculando o legislador infraconstitucional e
o intérprete.
A função social da propriedade, portanto, conforma o direito de propriedade,
estabelecendo padrões para o seu exercício, que deve ser concretizado tendo em vista os
interesses sociais.56 Mas quais interesses sociais?
Tais interesses são os eleitos pelo legislador constituinte: a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, fundada na dignidade da pessoa humana e nos valores
sociais do trabalho e na livre iniciativa, a teor dos artigos 1º e 3º, da Constituição Federal. A
propriedade funcionalizada é meio para o alcance dos fins antes descritos.
Instrumentalmente, é posta a funcionalidade da propriedade, competindo aos operadores
do direito a sua concretização, cabendo ao Poder Judiciário coibir os excessos e zelar pela
efetivação dos valores constitucionalmente eleitos.
A propriedade deixa de ser direito
individual e passa a ser moldada pelos princípios da ordem econômica, que tem por escopo
assegurar a todos existência digna.
Historicamente, a ideia era vinculada à obrigação de tornar a propriedade produtiva,
como forma de ampliação geral da riqueza e bem-estar, entretanto, sem a preocupação de
permitir a distribuição dos resultados da produção.
55
MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de informação Legislativa,
Brasília, ano 42, n.168, p.189-196, out./dez. 2005, p.189.
56
Perlingieri acentua o caráter não apenas negativo da função social da propriedade, mas de promoção dos
valores da ordem jurídica. PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002.
110
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Mais recentemente, pela vinculação aos fins antes descritos, tem sido entendido que a
realização da função social da propriedade pressupõe o estabelecimento de relações sociais
mais justas.57 Na prática, a aplicação do princípio nem sempre é tranqüila.
Apesar das claras disposições constitucionais, muitos são os obstáculos ao
reconhecimento efetivo da função social da propriedade.
58 59
Muitos são os autores que
procuram limitar o alcance da função social da propriedade e da empresa, com os mais
diferenciados argumentos. 60
Entre tais autores, pode-se citar Rachel Sztajn, que insinua que a inserção da função
social da propriedade na Constituição Federal de 1988 atenderia ao objetivo de funcionalizar
apenas a propriedade imobiliária:
[...] por conta de uma função social da propriedade (basicamente da propriedade
fundiária) prevista na Constituição do Brasil de 1988 o Código Civil de 2002 reproduz
texto ideado na Itália, à época do fascismo, e que visava a direcionar a liberdade de
contratar, uma das liberdades individuais, para que o Estado interviesse nas relações
patrimoniais intersubjetivas de forma a estimular (ou impor) a realização de seus
interesses.
61
É inegável que o princípio da função social tem aplicação bastante ampla em relação à
propriedade imobiliária rural, o que se deve, em grande parte, à histórica perversa distribuição
57
LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar,
2003, p.112.
58
ROCHA, Cármen Lúcia Antunes, op cit., 2003, p.575: “Não faltaram leis no Brasil, desde a terceira década do
século XX, a cuidar do atendimento do princípio constitucional da função social da propriedade e a determinálo; mas faltou, permanentemente, vontade de se atender e cumprir a Constituição da República e os interesses
do povo, especialmente aquela parcela mais necessitada, que, não tendo voz, em geral também não tem vez”.
Ver, também, GIORA JÚNIOR, Romeu. Intervenção do estado na propriedade. Revista Tributária e de
Finanças Públicas, São Paulo, v. 69, p.83-96, jul./ago. 2006, p.84.
59
Com a finalidade de tornar explícita a opção do legislador, é previsto no parágrafo único do artigo 2035 do
Código Civil que: “Nenhuma convenção prevalecerá se contrariar preceitos de ordem pública, tais como os
estabelecidos por este Código para assegurar a função social da propriedade e dos contratos.”
60
Na doutrina nacional, há divergência sobre o alcance do princípio da função social da propriedade, com
expressiva gama de autores defendendo que somente estariam submetidos à função social os bens de
produção, exatamente por consistirem forma de exercício de poder econômico, a ele não estando submetidos
os bens de consumo. Para os fins específicos do presente trabalho, a polêmica não interessa, uma vez que a
propriedade de parcelas do capital de sociedades empresárias é, de forma inegável, propriedade que recai
sobre bens de produção. Entre os autores que defendem a aplicação restrita do princípio da função social da
empresa, destacam-se: GOMES, Orlando, op. cit., 1985, p.108; RODOTÀ, Stefano, op. cit., 1986, p.139;
GODINHO, André Osório. Função social da propriedade. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.). Problemas de
direito civil constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p.427; COMPARATO, Fábio Konder;
SALOMÃO FILHO, Calixto, op. cit., 2005 e COMPARATO, Fábio Konder. Função social da propriedade
dos bens de produção. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro – RDM, São
Paulo: Malheiros, n.63, p.71-79, jul./set. 1986; GRAU, Eros, op. cit., 1990; TOMASETTI JÚNIOR, Alcides,
op. cit., 2002, p.126.
61
SZTAJN, Rachel, op. cit., 2005b, p.37.
111
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
de terra no Brasil, o que acarretou a mobilização de setores políticos que conseguiram o
estabelecimento de parâmetros legais para a averiguação do atendimento à função social.
O próprio artigo 186, da Constituição Federal, fixa as diretrizes do reconhecimento da
propriedade rural que atende à função social, o que é especificado pelo Estatuto da Terra e
pela Lei 8.629/93. 62 63
Entretanto, a melhor regulação jurídica da função social da propriedade imobiliária rural
não pode ensejar o argumento de que a funcionalidade da propriedade a ela se reduz. É
demonstração efetiva da maior amplitude da função social da propriedade, por exemplo, o
Estatuto das Cidades, Lei 10.257, de 10 de julho de 2001, que oferta efetivos instrumentos de
adequação da propriedade imobiliária urbana ao interesse social, dando cumprimento às
disposições constitucionais sobre a matéria.64
Em verdade, até mesmo quanto à função social da propriedade imobiliária rural há
resistências à efetivação. No âmbito judicial, não são poucas as decisões que, embora
reconhecendo a função social da propriedade, deixam de efetivá-la sob o argumento de que
compete ao Poder Executivo a sua efetivação. 65
62
Artigo 186 da Constituição Federal – “A função social é cumprida quando a propriedade rural atende,
simultaneamente, segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos: I aproveitamento racional e adequado; II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação
do meio ambiente; III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho; e IV – exploração
que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores.”
63
No artigo 9º da Lei 8.629/93, ocorre a especificação dos requisitos narrados na Constituição Federal (artigo
186) e no Estatuto da Terra (artigo 2º, parágrafo 1º), sendo descrito que o aproveitamento racional e adequado
da terra é aferido pelo GUT – grau de utilização da terra, calculado pela relação percentual entre a área
efetivamente utilizada e a área aproveitável total do imóvel, sendo produtiva a propriedade que alcançar índice
igual ou superior a 80% (oitenta por cento), e pelo GEE – Grau de Eficiência na Exploração da Terra,
calculado levando-se em conta os critérios previstos no artigo 6º, incisos I e II, conforme a natureza vegetal ou
animal da exploração.
64
Artigo 182 da Constituição Federal – “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público
municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das
funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes. [...] Parágrafo 2º - A propriedade urbana
cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no
plano diretor. [...]”.
65
O argumento de que a função social da propriedade não pode ser aferida pelo Poder Judiciário, em razão da
administração ser responsável pela efetivação das políticas públicas, não procede, sobretudo quando
manifestado em situações jurídicas que envolvem a utilização da propriedade imobiliária, em que a lei detalha
a configuração da utilização produtiva. O argumento, em verdade, é reflexo de um perigoso sentimento de não
efetividade da função social da propriedade, tendo sido expressamente acolhido no Acórdão lavrado nos
Embargos de Declaração na Intervenção Federal 15/PR, apreciado pelo STJ, cujo Relator foi o Ministro
Adhemar Maciel, DJ de 09.05.94, p. 10787: “[...] Não resta dúvida de que a propriedade deve ter função
social, mas descabe ao Poder Judiciário embrenhar por tais searas. Solucionar tais conflitos se acha
unicamente nas maõe dos executivos Federal e Estadual. [...]”. No mesmo sentido: AC 2005.38.00.355595/MG, relator Desembargador Federal Hilton Queiroz, quarta turma, TRF da 1ª. Região, DJ de 16.05.2006, p.
64 e Agravo 1.0024.06.088432-7/001. Relator Desembargador Dídimo Inocêncio de Paula. 14ª Turma do
TJMG. Publicado em 26.01.2007. Felizmente, as decisões não indicam tendência uniforme da jurisprudência.
112
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Contemporaneamente, há grande debate sobre a natureza jurídica da propriedade, sendo
certo que deixou de ser direito subjetivo, absoluto, estando sujeito a limites expostos na lei e
em razão da necessária funcionalidade que a cerca.
Tratá-la como direito subjetivo, do que decorre feixe de poderes de usar, gozar, dispor e
reivindicar a coisa, vinculado à função social, parece ser inadequado em razão da
incompatibilidade dos termos, o que em verdade, pressuporia uma nova conceituação de
direito subjetivo. O novo contexto pressupõe a definição de propriedade como relação jurídica
complexa, em que as limitações ao exercício do direito decorrem de sua própria estrutura, da
qual advêm deveres em relação a terceiros proprietários ou não proprietários.66 Trata-se de
relação de caráter patrimonial, porque dirigida a interesses econômicos; absoluta, no sentido
de que acarreta dever geral de abstenção e, por fim, complexa, em razão dos vários vínculos
que se entrelaçam, criando pluralidade de direitos e obrigações entre as partes.67
César Fiúza a define nesses padrões, conceituando-a como “relação jurídica dinâmica
entre uma pessoa, o dono, e a coletividade, em virtude da qual são assegurados àquele os
direitos exclusivos de usar, fruir, dispor e reivindicar um bem, respeitados os direitos da
coletividade”.68
69
Após destacar o caráter dinâmico da idéia de propriedade, consistente em
Em sentido contrário, defendendo a importância do papel do Poder Judiciário na efetivação da função social
da propriedade: Agravo 598360402; 19ª Câmara Cível/TJRS. Relator para o Acórdão Desembargador
Guinther Spode. A doutrina tem louvado a nova postura do Poder Judiciário, como se percebe pelo comentário
ao aludido Acórdão, de autoria de TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. In: STROZAKE, Juvelino
José (Org.). Papel do poder judiciário na efetivação da função social da propriedade. Questões agrárias:
julgados comentados e pareceres. São Paulo: Método, 2002, 91-131, p.13O: “Nem se objete, com voz
corrente, que, em matéria de reforma agrária, o Poder Judiciário estaria de “mãos atadas”. Evidentemente, aos
juízes não é dado decretar a desapropriação deste ou daquele imóvel para fins de reforma agrária, cabe-lhes,
contudo, na resolução dos conflitos que apreciam, deixar de atribuir tutela jurisdicional à propriedade que não
atenda aos valores sociais e existenciais consagrados na Constituição. Delinea-se, na verdade, uma nova
ordem pública, em que a tutela da propriedade privada não pode estar desvinculada da proteção de situações
jurídicas não patrimoniais, com prioridade axiológica na legalidade constitucional, de modo a servir, segundo
a dicção do Acórdão comentado, de „garantia de agasalho, casa e refúgio do cidadão”.
66
LOUREIRO, Francisco Eduardo. A propriedade como relação jurídica complexa. Rio de Janeiro: Renovar,
2003.
67
A doutrina tradicional defende a impossibilidade de existência de relação jurídica complexa quando um dos
pólos é indeterminado, o que deve ser relativizado já que a determinação do sujeito é importante para o
exercício de relação jurídica subjetiva não como pressuposto de sua existência.
68
FIÚZA, César. Direito civil. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p.630-631.
69
Vale o alerta de Tepedino que defende que a complexidade e adequação do direito de propriedade às
mudanças sociais dificultam a elaboração de um conceito geral e abstrato. TEPEDINO, Gustavo. Contornos
constitucionais da propriedade privada. In: _______. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999,
p.267-286, p.279.
113
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
relações que se transformam no tempo e no espaço, expõe o autor que a aludida definição é
adequada aos ditames da modernidade e ao paradigma do Estado Democrático de Direito.70
Nos contornos da noção de propriedade, destaca-se o poder jurídico concedido ao
proprietário, oposto de forma ampla a toda a coletividade, exercido sobre a coisa, mas
ponderado pelos exatos limites firmados pelo ordenamento. Desta forma, pode-se conceituála, em sintonia com seu caráter histórico, como vínculo jurídico entre o proprietário e a
coletividade em relação a um bem, com forma própria de aquisição, modo de uso, gozo e
disposição, assim como deveres e limitações, definidos pelo ordenamento jurídico.
Atualmente, é consenso que a apropriação de bens é importante instrumento de
realização pessoal, de concretização de interesses individuais, mas sujeita à compatibilidade
com os outros interesses protegidos pelo ordenamento. Leonardo Mattietto, em auxílio à
idéia, destaca que a propriedade contemporânea não é uma, “não sendo correto reduzir a sua
dogmática a um instituto monolítico, cabendo antes, perfilhar um conjunto de situações
jurídicas complexas, compreensíveis não apenas dos poderes, mas também de deveres, que
envolvem a titularidade dos bens”. 71
Em suma, contemporaneamente, essa é a feição que adota o direito de propriedade,
“passa a caracterizar-se como espécie de poder-função, uma vez que, desde o plano
constitucional, encontra-se diretamente vinculado à exigência de atendimento da sua função
social”. 72
3. Fundamentos clássicos do direito de propriedade
Inúmeras teorias clássicas propõem-se a justificar o direito de propriedade, sob os
mais diversificados argumentos. Para algumas, contrariamente, nada há que a justifique a
apropriação privada de bens.
70
FIÚZA, César, op. cit., 2003, p.631. Para uma demonstração das transformações da noção de propriedade, ver
GROSSI, Paolo. La propriedad y las propriedades. Un análisis histórico. Tradução de Angel Lopez y
Lopez. Madrid: Cuadernos civitas, 1992.
71
MATTIETTO, Leonardo. A renovação do direito de propriedade. Revista de Informação Legislativa,
Brasília, ano 42, n.168, p.189- 196, out./dez. 2005, p.193.
72
MIRAGEM, Bruno. O artigo 1228 do Código Civil e os deveres do proprietário em matéria de preservação do
meio ambiente. Cadernos do Programa de Pós-graduação em Direito da UFRS, Porto Alegre, v.III, n.VI,
p.21-45, maio 2005.
114
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A teoria da especificação, por exemplo, que tem entre seus adeptos Locke 73, Mac
Culloch, Guyot, Rousseau e Jhering74, propõe que a propriedade resulta do trabalho, sendo
incorporada ao patrimônio pela atividade laborativa, sendo o esforço que transforma a coisa
em domínio do sujeito de direito. Sua idéia geral é que a adição do trabalho aos recursos
naturais cria a propriedade.
A propriedade é concebida como direito natural, a partir da idéia de que na passagem
do estado de natureza para o estado civil são conservados os melhores aspectos daqueles,
fazendo com o estado civil seja a conservação daquele.75 Trata-se de explicação parcial, vez
que não justifica a aquisição de propriedade que não deriva do trabalho, como aquela que
advém da sorte, como as loterias.
Já a teoria legalista sustenta que a propriedade advém da ordem jurídica, é concessão
do Estado que possui poder para dividir os bens da sociedade. Entre seus adeptos, Hobbes
76
e
Montesquieu.77 Como todas as demais teorias positivistas clássicas, implica na
supervalorização da lei, desconsiderando inúmeros defeitos que lhe são inerentes. Para os
opositores, a propriedade é apenas regulada por lei, sendo realidade que lhe é pré-existente.
Já a teoria da ocupação, que tem entre seus adeptos Grócio, tem por argumento
central o de que a prioridade da ocupação justifica e legitima a propriedade. A propriedade
decorreria da ocupação com a finalidade de satisfação das necessidades. 78 Desconsidera as
dificuldades de identificação da ocupação pioneira e refuta o caráter de historicidade de que
se reveste.
Para a teoria personalista, a propriedade é manifestação da personalidade, revelandose como a garantia econômica da liberdade. Tem entre seus defensores Freidrich Hegel. Parte
do pressuposto de que a essência do ser humano é a realização de seus desejos, a qual tem por
pressuposto a obtenção de recursos materiais. A propriedade privada é fundamental para a
manifestação externa dos desejos e para a sua efetiva concretização. A propriedade deve ser
entendida como forma de assegurar a esfera externa da liberdade.79 80
73
Second treatise of government, chapter V, part. 26.
A Luta pelo direito. 10ª edição, Rio de Janeiro: Forense, 1992.
75
PIRES, Luis Manuel Fonseca. Limitações administrativas à liberdade e à propriedade. São Paulo: Quartier
Latin, 2006.
76
Leviatã. Os Pensadores. 3ª edição. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
77
The spirit of laws. Great Books of the Western World. Chicago: University of Chicago, 1952.
78
PLANIOL, Marcel. Cours élementaire de droit civil, vol. I.. 3ª edição. Paris: LGDJ, 1906.
79
BELL, Abraham e PARCHOMOVSKY, Gideon. What property is. ILE – Institute for Law and Economics,
University of Pennnsylvania Law School, Research Paper 04-05, fevereiro de 2004.
74
115
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A teoria da natureza humana tem por argumento central a compreensão de que a
propriedade é condição da existência humana e pressuposto de sua liberdade. O ser humano,
como decorrência de sua natureza, exerce poder sobre bens, sejam móveis ou imóveis,
corpóreos ou incorpóreos.81 A compreensão da propriedade como forma de manifestação da
natureza humana, dificulta a fixação de limites e ponderações ao seu exercício, daí ter sido a
teoria utilizada para a justificação de excessos.
A teoria negativista, concebida a partir das idéias defendidas por Proudhon,
considera a propriedade como uma ofensa às pessoas mais pobres, um “roubo”, em razão dos
detentores dos meios de produção se locupletarem com o resultado do trabalho das camadas
mais pobres.82
Formulada em período em que a propriedade era encarada como direito natural,
Proudhon a definia como verdadeiro “suicídio” da sociedade em razão dos efeitos nefastos
que acarretaria. A posse é que seria justa e jurídica.
4. Os fundamentos econômicos da propriedade.
As tradicionais teorias que expõem os fundamentos do direito de propriedade são
parciais e estreitamente vinculadas ao período histórico de sua formulação, o que demonstra a
sua incapacidade de estabelecer uma explicação definitiva.
A fundamentação econômica apresenta interessantes reflexões sobre a necessidade
de garantia do direito de propriedade, entendo-o como a melhor forma de utilização dos bens.
A doutrina norte-americana, em perspectiva utilitarista, apresenta justificativas
econômicas para o surgimento e evolução do direito de propriedade, entre as principais, a
teoria dos custos de exclusão e a tragédia dos baldios ou dos comuns (tragedy of commons).
Para ambas as teorias, a propriedade é forma de alocação de recursos, encontrando seu
fundamento e razão de ser no critério de melhor eficiência econômica na alocação de bens.
O pressuposto central da teoria dos custos de exclusão é que, em um enfoque
econômico, a posse ou propriedade de bens acarreta custos, referentes à exaustão dos bens ou
80
RADIN, Margaret Jane. Property and personhood. Stan Law Review 957 (1982).
81
Nas doutrinas socialistas, que predicam a propriedade coletiva dos bens de produção, é reconhecido o direito
de propriedade individual no que refere aos bens de consumo.
82
PROUDHON, P. J. What is property? An inquiry into the principle of right and government. Nova York:
Dover Publications, 1970.
116
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
relativos à efetivação da exclusividade de seu proveito (custos de exclusão). Parte da idéia de
que no estágio inicial da civilização o direito de propriedade era desnecessário, na medida em
que a abundância de recursos acarretava diminuto custo de exaustão e de exclusão, o que
tornava inútil qualquer tentativa de delimitação da esfera coletiva ou individual da
apropriação de recursos.83 Tornada a vida social mais complexa, os recursos escasseiam,
despontando o dilema econômico da escassez de recursos versus necessidades ilimitadas,
aumentando os custos de exclusão. Os indivíduos mais fortes são tentados a se apropriar de
bens coletados ou produzidos por indivíduos mais fracos. Essa disputa no seio da sociedade é
ineficiente do ponto de vista econômico, em razão de os indivíduos mais fracos coletarem ou
produzirem menor quantidade de bens, pois estarão dedicados, também, à sua defesa. Por
conseqüência, os indivíduos mais fortes obterão menor quantidade de bens, com dispêndio de
maior esforço, em função da maior resistência dos mais fracos.
Para esta teoria, a ineficiência econômica seria minorada com a proteção do direito
de propriedade, que motivaria os indivíduos a um melhor desempenho econômico com a
garantia institucional de exclusão do direito de terceiros sobre seus bens. A proteção do
direito de propriedade produz sensível diminuição dos custos de exclusão, já que tornam
menor a possibilidade de que bens coletados ou produzidos sejam apropriados por terceiros
indevidamente.84
Outra forma de explicação da necessidade de proteção do direito de propriedade é a
denominada tragédia dos baldios ou dos comuns (tragedy of commons), exposta por Garret
Hardin.85 86
A tragédia dos comuns decorre da super-utilização de áreas não reguladas. Os
terrenos baldios tendem a sofrer com a pastagem excessiva, sendo certo que os benefícios de
cada cabeça de gado adicional são apropriados apenas pelo seu dono (internalização dos
benefícios), enquanto que o custo da utilização da pastagem é absorvido por todos os
83
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Tributação e mudança social. Rio de Janeiro: Forense, 1981.
KASPER, Wolfgang. Economics freedom & development – an essay about property rights, competition and
prosperity. CCS – Índia. ISBN: 81-87984-05-8 Rs. 200.
85
HARDIN, Garret. Revista Science Magazine, Washington, n.162, p.1243-1248, 1968. Ver-se sobre o tema:
MATIAS, João Luis Nogueira; ROCHA, Afonso de Paula Pinheiro. Repensando o direito de propriedade. In:
Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI, 2006. Manaus. Florianópolis: Fundação José Arthur
Boiteux, 2006.
86
Por commons deve-se entender qualquer recurso econômico que esteja livremente disponível, sem limitação
ou regulamentação de sua utilização, como ocorria com as paragens naturais comunais da Inglaterra, que
posteriormente foram objeto de precisa regulamentação
84
117
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
membros da comunidade (exteriorização dos custos), resultando desta dinâmica natural
utilização excessiva dos baldios, que tendem a ser destruídos.
A melhor utilização dos recursos pressupõe a delimitação do uso de bens comuns,
forma de se assegurar maior eficiência econômica. Os direitos de propriedade, ou seja,
exclusividade sobre bens, permitem a otimização da utilização dos recursos, com a paridade
entre a internalização de benefícios e custos, sem reflexos para terceiros. A delimitação e
proteção do direito de propriedade atenuam o problema da exaustão dos recursos, sendo esta a
sua justificativa.
Michael Heller alerta que a regulamentação absoluta do direito de propriedade pode
acarretar o desvirtuamento do instituto, causando o que ele denominou tragédia dos anticomuns (tragedy of anti-commons).87 A regulamentação excessiva do direito de propriedade,
em padrões individualistas e absolutos, pode inibir a sua melhor utilização econômica em
razão do desperdício ou subutilização dos recursos. Os direitos de exclusão passam a ser
entrave ao bom uso dos recursos, impossibilitando a alocação mais eficiente dos mesmos.
A alocação eficiente de recursos, portanto, pressupõe o equilíbrio entre as tragédias
anunciadas, de forma a internalizar os danos da utilização indevida de bens, considerada a sua
natureza e peculiaridades, afastando as externalidades que recairiam sobre a totalidade do
grupo social.
5. Novas formas de propriedade
A característica mais marcante do direito de propriedade é a sua dimensão histórica,
cuja percepção deve nortear tanto os doutrinadores como os operadores do direito.
Atualmente, como visto, o direito de propriedade é conformado por sua vinculação aos fins
previstos na Constituição Federal, especialmente, a construção de uma sociedade livre, justa e
solidária. A potencialidade da funcionalidade do direito de propriedade é imensa e a partir
dela pode-se construir uma feição mais humana e inclusiva do direito de propriedade.
Contudo, apesar dos avanços percebidos na compreensão do direito de propriedade,
ainda é constatado um grande fosso entre a previsão abstrata e a concretização do direito de
87
HELLER, Michael. The tragedy of anti-commons: property in the transition form Marx to Markets. Harvard
Law Review, Massachusetts, n.111, p.621-688, jun. 1997, p.668. O termo (tragedy of anticommons) foi
inicialmente utilizado por MICHELMAN Frank. Property, utility and fairness: comments on the ethical
foundation of just compensation law. Havard Law Review, Massachusetts, v.80, n.6, p.1165-1258, 1982.
118
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
propriedade. As pontencialidades do direito de propriedade funcionalizado não tem sido
exploradas. Mais do que isso, pode-se mesmo questionar a incapacidade da regulação
positivada contemplar todas as realidades de apropriação de bens. É fato que a dinâmica da
sociedade pós-moderna faz com que o fenômeno propriedade extrapole a sua regulação
jurídica, o que tem acarretado grandes conflitos.
Joaquim Falcão é um dos mais incisos críticos do conceito jurídico de propriedade,
até mesmo com a nova feição que lhe assegura o Código Civil. Sustenta o autor que o novel
conceito é incapaz de resolver os problemas de nossa realidade. Baseado na questão das
favelas e loteamentos irregulares, a moradia ilegal dos grandes centros urbanos, onde, em
mais de dois milhões de domicílios, os moradores não conseguem provar a condição de
proprietários, aponta que duas são as maneiras que temos mal enfrentado o problema:
―Primeiro, por meio do conceito jurídico tradicional de direito de propriedade, inclusive o
do novo Código Civil. Esta legislação não chega às favelas. É dos ricos. Tem sido atenuada
com institutos jurídicos como a bem intencionada usucapião urbana, introduzida pela
Constituição de 1988. Mas esta solução, aprisionada por entraves burocráticos até agora
intransponíveis, também não se revela solução de massa à altura da nossa urgência social. A
segunda é a solução da violência, adotada por alguns movimentos sociais, especialmente no
campo, que nos afasta da democracia e do Estado de direito‖. 88
De fato, muitas inovadoras manifestações da propriedade têm surgindo na
contemporaneidade como, por exemplo, aquela que decorre das transferências dos contratos
de mútuo do Sistema Financeiro da Habitação, por meio dos denominados “contratos de
gaveta”, sem o formalismo exigido por lei. Será que não é hora de valorizar a posse legítima e
facilitar o acesso efetivo à propriedade?
Da mesma forma, como deixar de reconhecer a posse de residências urbanas
transferidas à margem do Registro Público, pelos próprios particulares? Por outro lado, será
que a propriedade rural improdutiva, constituída em perfeita sintonia com as exigências
legais, merece proteção? Será que não é hora de uma efetiva concretização de uma reforma
agrária que permita o acesso à terra a quem a faça produzir?
88
FALCÃO, Joaquim. Novo direito de propriedade. Conjuntura Econômica, Brasília, v.60, n.10, p.35, out.
1986.
119
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A premente necessidade de modificação da realidade social demanda uma atuação mais
firme e decidida do Poder Judiciário, que deve ter uma nova compreensão do que é o direito
de propriedade.
Como a fundamentação econômica pode ser útil para a percepção, reconhecimento e
proteção de novas formas de propriedade? A fundamentação econômica desnuda o caráter
instrumental do direito de propriedade, o que facilita o reconhecimento de novas formas de
manifestação desse direito.
6. Conclusão
O caráter mais marcante do direito de propriedade é a sua historicidade, que induz a
que sua concepção esteja vinculada aos aspectos sociais e econômicos do tempo e lugar em
que exercido.
No direito nacional, a evolução do direito de propriedade leva aos padrões narrados
na Constituição de 1988 e no Código Civil de 2002, em que o direito de propriedade é
funcionalizado, ou seja, o seu exercício é direcionado à concretização dos valores narrados no
texto constitucional, especialmente à construção de uma sociedade livre, justa e solidária.
A fundamentação clássica do direito de propriedade desconsidera o seu caráter
histórico e instrumental, o que inviabiliza o reconhecimento de novas formas de manifestação
do direito de propriedade, tão freqüentes na sociedade pós-moderna, caracterizada pelo
consumo de massa e por uma ampla diversidade de interesses.
A fundamentação econômica do direito de propriedade, que a justifica como o
instrumento para garantir o uso mais eficiente dos bens, enseja novo paradigma na
compreensão do problema, que passa a ser visualizada de forma mais aberta e democrática,
7. Referências bibliográficas
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125
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
PROPRIEDADE INTELECTUAL E SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO: uma
análise de sua natureza jurídica e co-dependência
Marcos Wachowicz1
Afonso de Paula Pinheiro Rocha2
SUMÁRIO
Introdução. 1. A expressão Propriedade intelectual. 2. As naturezas jurídicas da
propriedade intelectual na doutrina. 3. Análise da ADI 3.273/DF – Propriedade
intelectual como monopólio privado na visão do STF. 4. A necessidade de uma reflexão
sobre o direito de exclusivo da propriedade intelectual e as implicações na sociedade
informacional. Referências.
PALAVRAS CHAVES: Propriedade Intelectual, Natureza Jurídica, Monopólio,
Sociedade da Informação
KEYWORDS: Intellectual Property, Economic Analysis of Law, Development.
INTRODUÇÃO
O trabalho busca analisar a razão pela qual impera na doutrina a diversidade
de posicionamentos sobre a natureza jurídica dos direitos de propriedade intelectual,
bem como a razão pela qual esta disparidade de posicionamentos não parece interferir
na operacionalização da tutela de tais direitos.
1
Professor Permanente no Curso de Pósgraduação Mestrado/Doutorado em Direito da UFSC.
Doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Mestre em Direito pela Universidade
Clássica de Lisboa - Portugal. Especialista em Direito da Propriedade Intelectual e Direito e Tecnologia
da Informação. Coordenador do Programa “Casadinho”/CNPQ – UFC-UFSC junto ao programa
consolidado da UFSC.
2
Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Pós-graduando – MBA em
Direito Empresarial pela FGV/Rio. Ex-Advogado da Petrobras. Pesquisador associado do Programa
“Casadinho”/CNPQ – UFC-UFSC.
126
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Superada esta análise, buscar-se-á verificar as implicações práticas que a
definição adequada da natureza jurídica terá tanto sobre a interpretação doutrinária
como sobre a interpretação jurisprudencial da propriedade intelectual.
Nesse contexto, o trabalho traçará alguns conceitos básicos sobre a
propriedade intelectual, passando a analisar diferentes posicionamentos doutrinários
sobre a natureza jurídica desses direitos imateriais.
Após, far-se-á a análise de posicionamento jurisprudencial exarado pelo
Supremo Tribunal Federal quanto a natureza jurídica dos direitos de propriedade
industrial, bem como verificando-se se esta noção pode ser validamente estendida às
demais searas da propriedade imaterial.
Por fim, o estudo irá suscitar primeiras inferências decorrentes desta análise
crítica da natureza jurídica da propriedade intelectual. Apontar-se-á uma forma mais
refinada de percepção do sistema de tutela das criações imateriais bem como a idéia de
que uma proteção mais alargada não é necessariamente a mais desejável e adequada ao
desenvolvimento social.
1 A EXPRESSÃO PROPRIEDADE INTELECTUAL
A expressão propriedade intelectual pode ser classificada como genérica,
correspondendo ao direito de apropriação sobre criações, obras e produções do
intelecto, talento e engenho humanos, englobando uma série de diferentes doutrinas,
todas, porém, relacionadas com atividades intelectuais ou com a implementação de
idéias, dados e conhecimento em atividades práticas.
Na lição de Denis Borges Barbosa, compreende-se a noção de Propriedade
Intelectual: “(...) como a de um capítulo do Direito, altissimamente internacionalizado,
compreendendo o campo da Propriedade Industrial, dos direitos autorais e outros
direitos sobre bens imateriais de vários gêneros”.3
3
BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro:
Lumen Juris, 2003. vol. 1. p. 5.
127
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Bettina Bulzico possui visão ainda mais abrangente, entendendo que a
Propriedade Intelectual ―(...) envolve toda atividade humana de caráter intelectual, que
seja passível de agregar valores e que necessite de proteção jurídica‖.4
Observa-se que a expressão consagrou-se a partir da “Convenção de
Estocolmo”, de 14 de julho de 1967, com a constituição da Organização Mundial da
Propriedade Intelectual – OMPI (World Intellectual Property Organization – WIPO),
que, posteriormente, veio a se tornar uma agência especializada dentro do sistema das
Nações Unidas, em 17 de dezembro de 1974. No Brasil, o a convenção de constituição
da OMPI foi promulgada pelo Decreto nº 75.541, de 31 de março de 1975.5
Assim, é possível perceber que o substrato da expressão “propriedade
intelectual” originou-se de forma centrípeta, decorrente da convergência e
aglutinamento de uma série de doutrinas e ramos jurídicos em torno de aspectos
comuns. A própria linguagem da convenção é utilizada de forma a incluir direitos sobre
todas as atividades intelectuais em quaisquer campos do conhecimento.
Nesse particular, a “(...) OMPI unifica os conceitos, abolindo a tradicional
divisão existente no modelo tradicional ou histórico, que separava os direitos dos
autores e dos inventores em duas categorias: direito de autor e conexos e propriedade
industrial”.6
Com efeito, Luiz Gonzaga Silva Adolfo chega a dizer que a expressão não
seria mais adequada frente a uma diversidade de doutrinas e searas que engloba e a
4
BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Evolução da Regulamentação Internacional da
Propriedade Intelectual e os Novos Rumos Para Harmonizar a Legislação. Revista Direitos
Fundamentais
&
Democracia.
Unibrasil.
Vol
1.
2007.
Disponível
em:
<http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br>. Acesso em: 25.07.08.
5
O art. 2º da Convenção indica de forma exemplificativa e ampliativa uma série de direitos que
estariam englobados pela noção de propriedade intelectual. No texto do Decreto 75.541/75: “(...)Para os
fins da presente Convenção, entende-se por: (...) viii “propriedade intelectual”, os direitos relativos: às
obras literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas
executantes, aos fonogramas e às emissões de radiofusão; às invenções em todos os domínios da atividade
humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais
e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a
concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial,
científico, literário e artístico”.
6
BASSO, Maristela. A proteção da propriedade intelectual e o direito internacional atual. Revista
de Informação Legislativa. Brasília a. 41. n. 162. p. 287-310. abr./jun. 2004. p. 288.
128
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
confusão no plano doutrinário, chegando a sugerir uma expressão ainda mais genérica,
como Direitos Intelectuais ou Direito Intelectual.7
É interessante verificar que a diversidade de expressões é também indicativa
da ausência de uniformidade verificável, tanto na doutrina, como na jurisprudência. De
fato, a pluralidade de expressões é acompanhada pela devesa de diversas naturezas
jurídicas distintas para os mesmos direitos sobre bens imateriais.
Pedro Mizukami adverte que o campo da Propriedade Intelectual está
passando por uma crise, multifacetada, com diversos aspectos interligados:
a) uma crise conceitual;
b) uma crise de modelos de negócios;
c) uma crise de eficácia;
d) uma crise de legitimidade.
O autor adverte que este crise se da tanto num aspecto jurídico quanto
político, existindo um descompasso entre concepções político-ideológicas que se
rivalizam na busca de uma forma ideal de proteção aos bens imateriais.8
Assim, a expressão consagrada deve ser tomada com cautela, uma vez que
pode suscitar uma falaciosa noção de ser um conceito auto-evidente, ou seja,
propriedade sobre bens intelectuais.
Passa-se a analisar a possibilidade de se encontrar a natureza jurídica real
desta propriedade.
2 AS NATUREZAS JURÍDICAS DA PROPRIEDADE INTELECTUAL NA
DOUTRINA
Antes que se disserte sobre a natureza jurídica da propriedade intelectual é
interessante chamar a atenção para a advertência realizada por Carol Proner. A autora
indica que não é possível definir a natureza jurídica da propriedade intelectual de forma
única, onipresente, pois o mesmo seria negar a historicidade e transformações que se
7
ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras privadas, benefícios coletivos: a dimensão pública do
direito autoral na sociedade da informação. Tese de Doutorado. Universidade do Vale do Rio dos
Sinos – UNISINOS. São Leopoldo. 2006. p. 144-145.
8
MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Função social da propriedade intelectual: compartilhamento
de arquivos e direitos autorais na CF/88. Dissertação de Mestrado. Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo. São Paulo. 2007. p. 168.
129
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
sucederam sobre as doutrinas que compõe atualmente o conceito. 9 Contudo, é possível
ilustrar o amplo espectro de proposições formulados na doutrina pátria.
Para Orlando Gomes, por exemplo, os direitos intelectuais não podem ser
confundidos com a propriedade comum, embora possuam caracteres similares:
O fenômeno da propriedade incorpórea explica-se como reflexo do valor
psicológico da idéia de propriedade, emprestado pela persistente concepção
burguesa do mundo. Embora esses direitos novos tenham semelhança com o
de propriedade, por isso que também são exclusivos e absolutos, com ela não
se confundem. A assimilação é tecnicamente falsa. Poderiam, contudo,
enquadrar-se numa categoria à parte, que, alhures, denominamos, quasepropriedade, submetida a regras próprias.10
Carlos Alberto Bittar também aponta para um caráter sui generis dos direitos
intelectuais ao tratar do direito autoral:
São direitos de cunho intelectual, que realizam a defesa dos vínculos, tanto
pessoais, quanto patrimoniais, do autor com sua obra, de índole especial,
própria, ou sui generis, a justificar a regência específica que recebem nos
ordenamentos jurídicos do mundo atual. 11
Por outro lado, existem doutrinadores que indicam que as características
peculiares dos bens imateriais não desnaturam a possibilidade de configuração de um
direito de propriedade dentro da ordem jurídica. Túlio Ascarelli, tratando dos direitos de
patente, argumenta que é possível sustentar, não obstante o caráter resolúvel, que se
trata de um direito absoluto sobre um bem imaterial.12
No mesmo sentido, a posição de Luiz Leonardos, para quem o direito de
propriedade industrial ―(...) é um direito absoluto, patrimonial, oponível erga omnes, ou
seja, o seu titular dispõe do usus, do fructus e do abusus sobre os bens que constituem o
seu objeto”.Conclui ao final “(...) afirmando que o titular do direito de uma invenção
patenteada é titular de um direito de propriedade, idêntico a qualquer outra propriedade
do direito comum, como regulada no Código Civil”.13
Nesse mesmo viés, Gama Cerqueira caracteriza os direitos de propriedade
intelectual como direitos reais:
9
PRONER, Carol. Propriedade Intelectual e Direitos Humanos. Porto Alegre: Sergio Antonio
Fabris Editor, 2007. p. 141.
10
GOMES, Orlando. Direitos reais. 2. ed. São Paulo: Forense, 1962. p. 318
11
BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p. 11.
12
ASCARELLI, Tullio. Panorama de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. p. 200.
13
LEONARDOS, Luiz. Apud. LABRUNIE, Jacques. Direito de Patentes. São Paulo: Manole,
2006. p. 11.
130
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
(...) o direito do autor e do inventor é um direito privado patrimonial, de
caráter real, constituindo uma propriedade móvel, em regra temporária e
resolúvel, que tem por objeto uma coisa ou bem imaterial; denomina-se, por
isto, propriedade imaterial, para indicar a natureza de seu objeto.
14
Assim, é possível afirmar que a idéia de que a propriedade intelectual é uma
forma de propriedade é recorrente na doutrina.
A propagação da noção de propriedade intelectual como uma forma de
propriedade, não obstante especial, é problemática como bem adverte Pedro Mizukami,
frente à força retórica do termo propriedade. Com efeito, essa retórica proprietária leva
a uma confusão entre os institutos e uma tendência de aproximar a tutela destinada aos
bens imateriais da tutela da propriedade tradicional, eclipsando um debate mais
aprofundado das políticas públicas associadas e dos contornos que deve possuir o
sistema de proteção.15
Essa retórica proprietária serve até mesmo com justificativa da noção
apontada por doutrinadores como William Fisher, que ressalta ser a expansão a
característica mais marcante e presente em todos os ramos da propriedade intelectual
desde a sua constituição.16 Seja no ramo do direito autoral, pelas extensões de proteção
às obras literárias e artísticas, seja no ramo da propriedade industrial com o vertiginoso
crescimento de aplicações e concessões de patentes.
Para José de Oliveira Ascensão, a “(...) expansão do âmbito dos direitos
intelectuais é acompanhada por um reforço constante dos poderes assegurados aos
titulares. Um dos aspectos mais salientes está na incessante redução dos limites dos
direitos intelectuais”.17
Com efeito, há uma diferenciação sutil entre ter a natureza jurídica de
propriedade ou ser tutelado tal qual a propriedade. Observe-se que a ordem jurídica
pode conferir diversos direitos que se assemelhem a um domínio nos moldes da
propriedade tradicional, sem, contudo, ser o objeto dessa proteção identificável com
bens físicos móveis e imóveis.
14
CERQUEIRA, João Gama. Tratado da propriedade industrial. 2. ed. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 1982. vol. 1. p. 130.
15
MIZUKAMI, Pedro Nicoletti. Op cit. p. 173.
16
FISHER, William W. The Growth of Intellectual Property: A History of the Ownership of
Ideas. Berkman Center for Internet and Society. Harvard University. Disponível em:
<http:cyber.law.harvard.edu/property99/history.html>. Acesso em: 08/08/08.
17
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito intelectual, exclusivo e liberdade. Revista da ESMAFE
– Escola de Magistratura Federal da 5ª Região. Pernambuco, nº 3. 2002. p. 125-145. p. 126.
131
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Richard Posner, por sua vez, sintetiza que a propriedade intelectual se
relaciona com valores imateriais que podem ser ou não trazidos a uma forma de tutela
similar à propriedade. Nas palavras do autor:
By intellectual property we mean ideas, inventions, discoveries, symbols,
images, expressive works (verbal, visual, musical, theatrical), or in short any
potentially valuable human product (broadly, ―information‖) that has an
existence separable from a unique physical embodiment, whether or not the
product has actually been ―propertized‖, that is, brought under a legal
regime of property rights.18
Ainda assim, existe na doutrina um contraponto as concepções de que os
direitos sobre bens imateriais sejam de fato propriedade ou uma forma de tutela jurídica
artificialmente similar.
Doyen Roubier, por exemplo, indicando uma não-conformidade dos direitos
de propriedade intelectual com a clássica divisão civil, classificava os direitos de
propriedade intelectual como direitos de clientela, ou seja, direitos que têm por função
assegurar ou proteger a clientela. Outras teorias classificam tais direitos como direitos
de monopólio, focando a análise no caráter exclusivo dos direitos.19
Tais doutrinadores apontam o caráter estritamente de privilégio que possuem
os direitos de propriedade intelectual, buscando fundamento na natureza histórica de tais
direitos, que asseguravam tão somente favores reais para a exploração de tecnologias
úteis e a reprodução de livros.
Assim, direitos de propriedade intelectual se aproximariam de um monopólio
artificial que é criado em favor de autores e inventores. Para tal corrente, a outorga de
direitos de propriedade intelectual, em qualquer de suas doutrinas específicas, nada mais
seria que a tolerância de um monopólio, de uma exclusividade por parte do Estado em
favor do indivíduo.
Afasta-se, portanto, de uma concepção proprietária para se aproximar a de
uma política pública, de uma política de incentivo a criação de bens imateriais fundada
na atribuição de direitos exclusivos.
18
POSNER, Richard A.; LANDES, William M. The Economic Structure of Intellectual
Property Law. Cambridge: Harvard University Press, 2003. p. 1. Tradução livre: “Por propriedade
intelectual queremos dizer idéias, invenções, descobertas, símbolos, imagens, trabalhos expressivos
(verbal, visual, musical, teatral), em síntese qualquer produto humano que tenha potencial valor (de forma
ampla, “informação”) e que tenha existência separada de um substrato físico, queira ou não este produto
tenha sido privatizado, isto é, trazido a um sistema legal de direitos de propriedade.”
19
LABRUNIE, Jacques. Direito de Patentes. São Paulo: Manole, 2006. p. 10.
132
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Para essa doutrina, portanto, a idéia de natureza jurídica fica em segundo
plano aos argumentos que justificam a adoção dessa política por parte do ordenamento
jurídico.
Robert Sherwood, por exemplo, relata o surgimento de algumas teorias
sobre a razão pela qual se dá esta proteção aos bens imateriais. Para o autor, estas se
dividem em: “recompensa”; “recuperação”, “incentivo” e “risco”:
A teoria da recompensa, diz, na verdade, que o criador ou inventor daquilo
que deve ser protegido deveria ser recompensado por seu esforço.
[...]
A teoria da recuperação diz, talvez sem meditar muito, que o inventor ou
criador, por ter despendido esforço, tempo e dinheiro, deveria ter a
oportunidade de recuperar algo do que gastou.
[...]
A teoria do incentivo diz que é bom atrair esforço e recursos para o trabalho e
desenvolvimento da criatividade, descobrimento e inventividade.
[...]
(...) teoria do risco (...) reconhece que a propriedade intelectual é o resultado
de um trabalho desbravador, e que este trabalho possui um risco inerente. 20
No mesmo viés de classificação, a doutrina americana divide em três
grandes grupos as teorias que tem embasado a justificativa de um sistema de proteção:
teorias da “recompensa através de monopólio”; teorias do “incentivo pelos lucros com o
monopólio” e teorias de “troca pelos segredos”.21
Logo, os direitos de propriedade intelectual não seriam direitos de
propriedade, mas um portfólio de privilégios assegurados na forma de direitos
exclusivos, a luz das teorias apresentadas.
Denis Borges Barbosa afirma que tais direitos são monopólios, apesar de
diferirem de uma idéia de monopólio strictu senso, pois se tem a exclusividade legal da
utilização de um elemento comercial e não o monopólio autêntico de exclusividade da
atividade do mercado.22
20
SHERWOOD, Robert. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo:
EdUsp. 1992. p. 46-47.
21
POPP, Shane M. The Third Door Is off the Hinges: A Prospective Study on the Effects of the
create Act Against Federal Patent Policies. John Marshall Review of Intellectual Property Law. p. 597607. Spring 2005. p. 604.
22
BARBOSA, Denis Borges. Usucapião de Patentes e Outros estudos de Propriedade
Intelectual. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. p.76
133
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Em linha similar, Robert Sherwood entende que a propriedade intelectual
deve ser entendida de forma diversa de um monopólio, pois esta deve ser percebida
como uma proteção, um estímulo ao desenvolvimento humano.
Na visão do autor, o foco da noção de monopólio é a exclusividade na
própria atividade a ser desempenhada. Já para a propriedade intelectual o foco é
exclusividade de aproveitamento de uma criação intelectual, nos limites do necessário,
para promover a inovação. Nesse sentido:
A propriedade intelectual pode oferecer uma vantagem importante, mas não
é um monopólio. Num monopólio, especialmente quando for criado por
iniciativa governamental, como é freqüente em muitos países comunistas e
em desenvolvimento, a empresa, na verdade, não fracassa porque ela é
protegida. A propriedade intelectual protege a idéia, a invenção, a expressão
criativa, mas não a empresa. No caso da propriedade intelectual, o produto
da mente pode fracassar ou ser suplantado no mercado. No caso de um
monopólio, é a própria empresa o objeto de proteção.23
Consubstanciando tal entendimento, segue a posição do ilustre Richard
Posner, para quem:
(…) a patent or copyright confers a legal ―monopoly‖ on the patent or
copyright holder. This usage, though common, is unfortunate, because it
confuses an exclusive right with an economic monopoly. I have the exclusive
right to the use of my house, but I am not a monopolist and would not be
even if the house were very valuable. A patent or copyright does carve out
an area of exclusive rights, but whether the rights holder can use his rights
to obtain a monopoly return depends on whether there are good substitutes
for his product (…)24
23
SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo:
EdUsp. 1992. p.61.
24
POSNER, Richard A., Transaction Costs and Antitrust Concerns in the Licensing of
Intellectual Property. John Marshall Review of Intellectual Property. Vol. 4. Iss. 3. 2005. p. 329.
Tradução livre: “(...) uma patente ou um copyright conferem um “monopólio” legal para os seus
detentores. Esta prática, apesar de comum, é um tanto infeliz, pois confunde a idéia de um direito
exclusivo com a idéia de um monopólio econômico. Eu tenho o direito exclusivo ao uso de minha casa,
porém não sou um monopolista, nem mesmo se a casa fosse extremamente valiosa. Uma patente ou um
copyright efetivamente cria uma área de direitos exclusivos, porém se o titular será ou não capaz de usar
esses direitos para obter um monopólio depende da existência ou não de bons substitutos para o seu
produto (...)”.
134
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Tais considerações são precisas, porém, estão baseadas na premissa de um
correto equilíbrio, tanto no escopo como no prazo de proteção, que a legislação confere
à propriedade intelectual.
Contudo, a retórica proprietária e a expansão acima identificadas tendem a
operar o desequilíbrio, uma vez que a amplitude de proteção limita as alternativas de
mercado que colocariam em cheque os detentores de bens imateriais para não abusar de
seus ativos.
Não obstante a permanência da cizânia doutrinária, o posicionamento de
equalizar a propriedade intelectual com monopólios legais encontra importante respaldo
na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, na ADI 3.273/DF que tratou do caso do
monopólio estatal sobre hidrocarbonetos.
Não obstante o caso não tenha sido voltado para a análise da propriedade
intelectual, dentro da fundamentação do acórdão foi adotado posicionamento expresso
de que os direitos de propriedade intelectual seriam monopólios legais privados, razão
pela qual se justifica um estudo de caso:
3 ANÁLISE DA ADI 3.273/DF – PROPRIEDADE INTELECTUAL COMO
MONOPÓLIO PRIVADO NA VISÃO DO STF
Observa-se que os apontamentos sobre a natureza jurídica da propriedade
industrial se fizeram presentes até mesmo na ementa da ADI 3273/DF:
(...)
1. O conceito de monopólio pressupõe apenas um agente apto a desenvolver
as atividades econômicas a ele correspondentes. Não se presta a explicitar
características da propriedade, que é sempre exclusiva, sendo redundantes e
desprovidas de significado as expressões "monopólio da propriedade" ou
"monopólio do bem".
2. Os monopólios legais dividem-se em duas espécies: (i) os que visam a
impelir o agente econômico ao investimento --- a propriedade industrial,
monopólio privado; e (ii) os que instrumentam a atuação do Estado na
economia.
(...)
Em outra passagem relevante, o ministro Eros Grau assim se manifesta sobre
os monopólios privados:
(...)
135
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Os monopólios legais dividem-se, por sua vez, em duas espécies: (i) os que
visam impelir o agente econômico ao investimento e (ii) os que instrumentam
a atuação do Estado na economia.
Transitamos, quando diante daquele primeiro tipo de monopólio, pela seara
da chamada propriedade industrial: da e na proteção dos brevetos, marcas,
know-how etc. emerge autentico monopólio privado, ao detentor do direito
de sua exploração.
(...)
Logo, a natureza da propriedade industrial seria de um monopólio legal não
constante daqueles expressamente previstos na constituição federal.
Questionamento que se deve fazer agora é a possibilidade de extensão dessa
análise aos demais direitos de propriedade intelectual. Julga-se ser possível uma vez que
a análise baseou-se nos efeitos de tais direitos previstos constitucionalmente, ou seja, o
seu caráter exclusivo, nota esta que é comum a tutela dos diversos direitos imateriais.
Robert Sherwood, por exemplo, constrói a unidade temática da propriedade
intelectual em torno, exatamente, dessa noção de direito exclusivo, indicando oito
elementos comuns às diversas formas de proteção: o conceito de um direito exclusivo; o
mecanismo para a criação do direito exclusivo; a duração do direito exclusivo; o
interesse público correlato ao direito exclusivo; a negociabilidade desse direito; os
acordos informais e entendimentos entre as nações; a vigência do direito exclusivo; e os
arranjos de transação para efeitos de mercado.25
4 A NECESSIDADE DE UMA REFLEXÃO SOBRE O DIREITO DE
EXCLUSIVO DA PROPRIEDADE INTELECTUAL E AS IMPLICAÇÕES NA
SOCIEDADE INFORMACIONAL
O Direito Industrial como visto, tem seu marco na Convenção de Paris (1883) e
posteriormente nas suas revisões na exata medida em que, abrangendo e protegendo as
invenções, modelos de utilidade, desenho industrial, marcas, indicações geográficas,
todas originalmente foram concebidas e contextualizadas no momento tecnológico
derivado da Revolução Industrial.
25
SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo:
EdUsp. 1992. p. 37.
136
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Assim é que o Direito Industrial foi paulatinamente aperfeiçoado, sendo
atualizadas suas normas a cada avanço técnico, mas sempre dentro do meio tecnológico
que amoldou os interesses econômicos que erigiram a Sociedade Industrial.
O Direito Industrial, para proteger os interesses econômicos e a tecnologia
intrínseca no bem intelectual por ele tutelado, exige além do esforço intelectual original,
a necessidade da caracterização de novidade, atividade inventiva, aplicabilidade
industrial, não impedimento e suficiência descritiva. Tudo para que, preenchidos tais
requisitos, possa ser atribuída carta patente para um novo produto ou processo, se disto
resultar no seu conjunto um efeito técnico diferente ou novo.
De tal forma que, havendo a concessão da patente, a idéia, que desenvolvida
criou um novo produto ou processo, ganha proteção pelo direito de exclusivo que terá o
titular da patente de explorá-la economicamente por um determinado tempo.
Com este direito de exclusivo poderá o criador reaver com a comercialização
do produto os investimentos que dispensou, além de auferir lucro pela sua invenção.
Desde a União de Paris, todas essas premissas foram criadas e paulatinamente
estabelecidas por meio de sucessivas revisões de tratados, sendo incorporadas às normas
internas de Direito Industrial pelos mais diversos países. Este esforço de
regulamentação representa que a cada inovação tecnológica ocorreu uma busca de
equilíbrio de interesses econômicos envolvidos no processo de criação, desenvolvimento e
comercialização de bens industriais, isto para a sua proteção e aperfeiçoamento nos
séculos XIX e XX.
O impacto da tecnologia da informação, no que diz respeito à construção
jurídica da propriedade industrial e seu desdobramento para o ambiente virtual no
ciberespaço, toma novos contornos e dimensões, antes inexistentes:
a Revolução Tecnológica da Informação trouxe uma tecnologia digital, que é
facilmente autoduplicável sem custo considerável agregado, como o era na
reprodução de um produto industrializado;
o conhecimento necessário para ter como resultado a criação de um produto
industrial, que constituía uma barreira técnica contra a reprodução não
licenciada, deixa de ser significativo diante da tecnologia de reprodução
propiciada pelos programas de computador.
Quer-se com isso dizer que a Revolução Tecnológica, e principalmente as
inovações derivadas dos recursos informáticos, em que o programa de computador é
137
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
elemento central de criação e desenvolvimento tecnológico, acarretou, desde seu
surgimento, e sobretudo com o advento da internet, uma nova busca de equilíbrio de
interesses econômicos, no que tange à criação, uso e incremento desta tecnologia em
todos os segmentos da Sociedade Informacional.
É de todo necessário uma reflexão ampla sobre a natureza jurídica da
propriedade intelectual, sobre os limites ao direito de exclusivo e sua implicações
advindas da Revolução da Tecnologia da Informação.
O impacto da tecnologia da informação, no que diz respeito à construção
jurídica da propriedade industrial e seu desdobramento para o ambiente virtual no
ciberespaço, teve sua discussão ampliada após decisão da Corte norte-americana de 23
de julho de 1998, favorável à concessão de patentes relacionadas a computer programs
e business methods,26 mais especificamente no que diz respeito ao direito de exploração
econômica exclusiva inerente ao patenteamento do software que combine características
de processo ou de produto na internet.27
A liberdade de iniciativa é inerente à organização econômica de um
Estado constitucional.28
Desta forma, a Constituição Federal brasileira veio a elencar como
fundamento do Estado Democrático de Direito os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa.29
26
Trata-se do caso State Street Bank & Trust.Co. vs Signature Financial Group Inc julgado pela
Suprema Corte Estadunidense decidindo pela procedência do pedido relacionado a método de fazer
negócio utilizando a internet. Tal decisão constitui marco das patentes de invenção relacionadas a
computer program e business methods.
27
“Desde o advento da patenteabilidade de software e business method, o incremento do United
States Patent & Trademark Office – USPTO é evidenciado em patamares desprovidos de qualquer
parâmetro anterior. No ano de 1998, foram depositados aproximadamente 203.000 pedidos de patentes,
sendo concedidas cerca de 154.500 novas patentes. Somente no grupo de processamento de dados,
computadores e comunicações, ao final de 1998, foram deferidas cerca de 22.000 novas patentes – o que
representam um aumento de 40% em relação ao ano anteior – e 1.595 novas patentes de Internet,
sinalizando um aumento de 500% sobre os números do ano antecedente. Somente nos primeiros três
meses do ano de 1999 foram concedidas 696 patentes relacionadas à Internet”. BALÉCHE, Vinícius Barjas.
As patentes de Business Methods e Software. in BAPTISTA, Luiz Olavo (coord.) Novas fronteiras do
direito na informática e telemática. São Paulo : Saraiva, 2001, p. 127.
28
“Numa primeira noção, Estado constitucional significa Estado assente numa Constituição
reguladora tanto de toda a sua organização como da relação com os cidadão e tendente à limitação do
poder.” MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. Lisboa : Coimbra Editora, 2002, p.71.
29
Constituição Federal de 1988 – artigo 1.º “A República Federativa do Brasil, formada pela união
indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de
Direito e tem como fundamentos: I – Soberania; II – Cidadania; III – A dignidade da pessoa humana; IV
– Os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – O pluralismo político”.
138
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Tais valores são também reafirmados na Carta brasileira como Direitos
Fundamentais do Cidadão no que concerne à livre iniciativa, à liberdade de trabalho,
ofício e profissão e à defesa dos direitos de consumidor.30 Por fim, a Carta federal ao
regular a ordem econômica houve por garantir a propriedade privada dos meios de
produção, a livre concorrência, a defesa do meio ambiente e a busca do pleno
emprego.31
Afirmando a Constituição uma opção pelo regime de economia de mercado,
adota o princípio da livre iniciativa e da liberdade de concorrência como forma de
alcançar o equilíbrio entre os grandes grupos e o direito de estar no mercado também
para os pequenos empresários.32
É preciso ter claro que a organização da atividade econômica é feita em sua
base pelo empresário ao articular os fatores de produção:
(i) o capital, que consiste no investimento econômico necessário para a realização
da atividade;
(ii) o trabalho, que é ordenado pelo empresário da maneira que ele próprio organiza
a mão-de-obra e assalaria; e
(iii)
a tecnologia ou o know-how necessário para o empreendimento,33
conhecimento este específico sobre o empreendimento, por mais simples e
básico que seja para a produção ou circulação de bens ou serviços.
30
Constituição Federal de 1988 – artigo 5.º “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de
qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos seguintes ternos: (...) XIII – é
livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a
lei estabelecer; (...) XXXII – o Estado promoverá na forma da lei, a defesa do consumidor”.
31
Ver: Constituição Federal de 1988 – Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica – artigo
170.
32
Neste sentido ver: FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 4.a Ed. Rio de
Janeiro : Forense, p. 90.
33
“Em determinadas, atividades os direitos de propriedade industrial constituem elementos de
grande repercussão econômica na composição do estabelecimento. Basta imaginar os exemplos das
patentes para uma empresa voltada ao desenvolvimento de novos produtos, ou a proteção da marca de
uma empresa de comércio varejista de renome nacional. Vale, portanto, uma rápida exposição sobre a
abrangência da tutela da propriedade industrial no âmbito do direito brasileiro. O fundamento central da
tutela da propriedade industrial reside na necessidade de proteção da atividade criativa do empresário,
que, desenvolvendo produtos inovadores, ou criando marca que atue em si como elemento de atração da
clientela, deve ser garantia de utilização econômica exclusiva destes direitos”. TOKARS, Fábio L. O Risco
excessivo no trespasse de estabelecimento empresarial – Desvio da função econômica do contrato.
Tese UFPR, 2002, p. 73.
139
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Contudo, o surgimento da internet com altíssimo tráfego de informações
possibilitou o aparecimento de incontáveis formas de buscar e apresentar produtos e
serviços, a fim de realizar negócios neste novo ambiente tecnológico.
A nova economia propiciada pela internet trouxe novos modelos organizacionais com novos processos de negócios para produção34 ou circulação de bens e
serviços no ciberespaço.35
Os empreendimentos de pequeno porte no ambiente virtual do ciberespaço
desconheceriam fronteiras sendo capazes de atingir todo o mercado global. Seu sucesso
residiria em sua agilidade, para que com isso, num primeiro momento, pudesse atrair a
atenção de consumidores insatisfeitos com os produtos e serviços fornecidos por
empresas tradicionais com grande rede de pontos de venda.
Desta forma, consolidar-se-ia um novo tipo de empreendedor com uma nova
maneira de realizar negócios. Esta atividade econômica na internet implica investimentos
em tecnologia da informação e marketing36 com capacidade operacional para enfrentar as
grandes corporações.37
34
“Aqui está o fato que, terrivelmente, muitos parecem não compreender: tanto quanto inspirar o
mundo de novas criações, e quanto chamá-los a uma vida de inovações que ninguém poderia imaginar, a
Internet irá reposicionar muitos daqueles que são poderosos agora, podendo alterar maneiras de fazer
negócios que beneficiam muitas dessas pessoas importantes; e nós devemos esperar que aqueles que terão
seus interesses ameaçados irão reagir”. LESSING, Lawrence. Ambientalismo. Alguma coisa deu certo.
REINALDO FILHO, Demócrito. (Coord.) In Direito da Informática. Temas polêmicos. Bauru-SP : Edipro,
2002, p. 15.
35
“À medida que o uso comercial da Internet se difunde, as economias locais se aproximam umas
das outras e os fatores de produção se internacionalizam, ou, para adotar um termo contemporâneo, se
globalizam. A globalização dos fatores de produção, entretanto, depende da liberdade do fluxo dos
mesmos entre as diversas economias locais, pelo que devemos, trabalhar com a expectativa de contínuo
alinhamento de preços de terra, capital, trabalho e tecnologia com certas reservas, tendo um olho sobre as
possibilidades tecnológicas e empresariais e outro sobre as limitações políticas e, sobretudo, legais”.
WYLIE, Eduardo. Economia da Internet. Rio de Janeiro : Editora Axcel Books, 2000, p. 73.
36
“As assinaturas eletrônicas garantem as identidades, as comunições virtuais onde as pessoas
aprendem a conhecer-se mutuamente, o marketing personalizado que estuda os perfis particulares dos
consumidores de informação em linha, a multiplicação dos contatos e das redes que permitem obter
informações sobre os indivíduos e as suas reputações, sem contar as diferentes maneiras de apresentação
e de verificação das apresentações dos outros, tudo isto parece garantir um nível de confiança aceitável.
(...) o ciberespaço oferece um meio excepcional de escolher parceiros quotidianos de todos os gêneros
entre um leque muito mais variado do que aquele a que temos acesso fisicamente todos os dias, o que é
um elemento favorável à qualidade da sociabilidade em linha”. LÉVY, Pierre. Filosofia World. O
mercado. O ciberespaço. A consciência. Trad. Carlos Abomtim de Brito. Lisboa : Instituto Piaget. 2001,
p. 70 e 71.
37
“Não é exagero afirmar que o surgimento da Internet e o fim da reserva de mercado no setor de
informática, em 1992, colocaram sob a luz dos holofotes uma nova geração de empreendedores
brasileiros. Talvez, sim, seja exagero compara-los aos seus pares norte-americanos, como Marc
Andreesen – que depois de criar o Mosaic o rebatizou para Netescape Navigator, ganhando alguns
dividendos por isso – ou Steve Case – um havaiano que teve a idéia de criar uma empresa chamada
American Online (AOL) – em termos de importância para a formação da industria da Internet. Não em
140
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A atividade econômica desenvolvida pela internet ocasionaria a geração de
emprego redimensionando as características do trabalho humano e flexibilizando-o, da
mesma forma que as inovações tecnológicas demandaram novas profissões, destinadas
ao desenvolvimento de novas técnicas comunicacionais, como: os webmasters,
programadores responsáveis pelo gerenciamento tecnológico de um site de internet, ou
ainda, webdesigners, que são desenhistas industriais especializados na concepção
estética de páginas de internet.
É fato que cada avanço tecnológico é gerador de mudanças organizacionais e
trabalho. Foi assim com a Revolução Industrial e sua conseqüente automação do
processo produtivo. Contudo, diante desse fenômeno social do trabalho humano com a
Revolução Tecnológica, a vida digital provocou indagações sérias. Talvez a mais
preocupante seja a denominada exclusão digital, que alija parcela significativa da
sociedade de seus avanços e benefícios.38
O fenômeno da expansão da atividade econômica desenvolvido pela internet
refletiu-se em particular nas relações entre o fisco e o contribuinte,39 não só na
modalidade como nos conteúdos através dos quais a relação se desenvolve. Inúmeros
estudos vêm sendo realizados40 sobre sua implicação fiscal no comércio de bens e
serviços, envolvendo impostos diretos, inclusive aqueles que alcançam o rendimento
formado pelas operações transnacionais decorrentes do uso das novas tecnologias.
termos de brilhantismo. É o caso de Marcelo Lacerda, um dos pioneiros da Internet, brasileira, que no
começo da carreira era chamado de Bil Gates tupiniquim”. VIEIRA, Eduardo. Os bastidores da internet
no Brasil. São Paulo : Manole, 2003, p. 19.
38
“(...) em certo sentido, a globalização implica um acesso mais amplo, mais não equivalente para
todos, mesmo em sua etapa teoricamente mais avançada. Do mesmo modo, os recursos naturais são
distribuídos de forma desigual. Por tudo isso, acho que o problema da globalização está em sua aspiração
a garantir um acesso tendendialmente igualitário aos produtos em um mundo naturalmente marcado pela
desigualdade e pela diversidade. Há uma tenseão entre esse dois conceitos abstratos. Tentaremos
encontrar um denominardor comum acessível a todas as pessoas no mundo, a fim de que possam obter
coisas naturalmente não acessíveis a todos”. HOBSBAWM, Eric. O novo século. São Paulo : Cia das letras,
2000, p. 75.
39
“Como tributar algo que envolva elementos e conceitos pouco conhecidos como redes de
computadores, softwares, serviços virtuais, backbone, estruturas de telecomunicações (apenas para
utilizar a linguagem corrente) no caso da prestação de serviços de comunicação? Além disso, as leis que
se referem ao tema e aos mecanismos tecnológicos de compreensão dessa prestação são suficientes para
elucidar todos os fatos envolvidos, em face do direito positivo brasileiro?” OLIVEIRA, Edson Luciani de.
Imposto sobre as Prestações de Serviços de Comunicação via Internet. Curitiba : Juruá, 2003, p. 31.
40
Neste sentido ver: MARINS, James. (Coord) Tributação e Tecnologia. Curitiba : Juruá, 2002, p.
12.; IVES GANDRA, da Silva Martins. (Coord).Tributação na Internet. São Paulo : 2001, p. 113.;
OLIVEIRA, Julio Maria de. Internet e Competência Tributária. São Paulo : Dialética, 2001, 69.; GRECO,
Marco Aurélio. Internet e Direito. 2.a Ed. São Paulo : Dialética, 2000, p. 179.
141
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A utilização de inovações tecnológicas em benefício da sociedade fez surgir –
além de novas empresas que passariam a existir em função da internet – uma nova onda
de investimentos em empresas de alta tecnologia por meio da National Association of
Securities Dealers Automated Quotation System – NASDAQ.41
Os limites impostos pela patenteabilidade dos produtos ou serviços
relacionados aos business methods constituem um dos maiores desafios para a
Sociedade Informacional. Isto desde a histórica decisão da Suprema Corte
Estadunidense ocorrida em 1998, relacionada à patenteabilidade do computer programs
e business methods, no caso State Street Bank & Trust Co. vs Signature Financial
Group Inc., pois implica a mudança dos conceitos e princípios que regem a ordem
econômica do Estado, desafiando o operador do direito a compreender e buscar balizas
deste novo paradoxo entre a liberdade de iniciativa e direito industrial no ciberespaço
por meio de uma interpretação sistêmica da problemática apresentada.
A livre iniciativa como direitos humanos fundamentais é de inafastável
importância para uma economia de mercado. A forma como está sendo regulada a
matéria pelas Cortes norte-americanas levará no caso específico do programa de
computador e sua proteção jurídica no ciberespaço a um paradoxo entre os direitos
fundamentais da livre iniciativa e liberdade de concorrência com o antagonismo do
monopólio.
É preciso ter claro que é a liberdade de iniciativa na internet que possibilita a
auto-organização das atividades econômicas, nos incontáveis sites e páginas existentes
no ciberespaço.
Da mesma forma, deve ser assegurada a liberdade da utilização da tecnologia
digital com o uso de programas de computador, sem os quais a atividade econômica não
poderia ser realizada, pois estes softwares estão na base das novas formas de
41
“O mercado do NASDAQ é um mercado representado por mais de 500 negociantes que trocam
títulos de mais 6 mil empresas. Estes agentes também são denominados por "Market Makers" que entram
em competição com base em oferecer o melhor preço de compra e de venda. Este tipo de mercado não
está sujeitas a regulamentações como o NYSE. A inscrição das empresas no mercado é livre, no entanto
terá que mandar um documento à SEC. As empresas cotadas no NASDAQ não são apenas empresas do
sector da Internet ou da informática. Encontramos bancos, sociedades biotécnicas, indústrias. Até este
momento, o NASDAQ era apenas um mercado orientado para "as cotações". A concorrência baseava-se na
compra
ou
venda
dos
títulos
pelos
Market
Makers.
Fonte
:
www.bolsapt.com/formacao/Default.asp%3FLivro%3D1%26Capitulo.
142
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
apresentação e circulação de bens e serviços, agora num ambiente virtual e sem limites
de fronteiras na Sociedade Informacional.
Wemer KOCH assevera que “nossa tecnologia moderna (com todas as
vantagens e desvantagens) não teria sido possível com uma ciência não-livre. Penso que
o sofware e a ciência são similares em muitos aspectos”.42
O paradoxo entre os direitos fundamentais da livre iniciativa e liberdade de
concorrência, e o antagonismo do monopólio, está envolvido numa nova questão gerada
por um novo conflito de interesses econômicos.
A proteção do Direito Industrial conferida pela patentabilidade somente se
justifica se, concomitantemente à proteção do investimento com a criação do monopólio
de exploração, houver a proteção da liberdade de inovações. O paradoxo só existe
porque a proteção conferida pelo Direito Industrial, a teor da decisão da Corte norteamericana no caso State Street Bank & Trust Co. vs Signature Financial Group Inc.,
está se revertendo apenas para as indústrias de conteúdo ou as indústriais de copyright.
Num paralelo entre a Revolução Industrial e a atual Revolução Tecnológica,
tem-se que, nos séculos passados, com a regulamentação de Direito Industrial por meio
de tratados e legislações internas, foram vencidos os desafios para o desenvolvimento
da Sociedade Industrial, compatibilizando-se interesses econômicos, tecnológicos e
sociais.
Ocorre que, atualmente, é preciso que seja vencido um novo desafio jurídico,
que foi lançado pelo advento da tecnologia da informação: caberá ao direito em sua
regulamentação
propiciar
o
desenvolvimento
pleno
desta
nova
Sociedade
Informacional, equalizando toda uma gama de interesses, preservando a liberdade de
iniciativa da atividade econômica e o aperfeiçoamento do conhecimento do ser humano.
REFERÊNCIAS
ADOLFO, Luiz Gonzaga Silva. Obras privadas, benefícios coletivos: a dimensão
pública do direito autoral na sociedade da informação. Tese de Doutorado.
Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS. São Leopoldo. 2006. p. 144-145.
42
Conforme Wemer KOCH em palestra proferida na I Conferência Internacional de Software Livre
Brasil realizada em Curitiba, entre os dias 5 a 7 de novembro de 2003, promovida pela Companhia
Informática do Paraná - CELEPAR.
143
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
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ASCARELLI, Tullio. Panorama de direito comercial. São Paulo: Saraiva, 1947. p.
200.
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BASSO, Maristela. A proteção da propriedade intelectual e o direito internacional atual.
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BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1994. p.
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Disponível em: <http:cyber.law.harvard.edu/property99/history.html>. Acesso em:
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SHERWOOD, Robert. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São
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1992.
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46-47.
146
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
EFETIVAÇÃO DOS DIREITOS DE PROPRIEDADE INTELECTUAL
ATRAVÉS DE MEDIDAS DE FRONTEIRA: regulação no acordo TRIPS e na
negociação no acordo TRIPS e na negociação do Acordo Comercial AntiContrafação (ACTA)*
Heloísa Gomes Medeiros1
SUMÁRIO
1. Introdução.2. Negociações internacionais sobre propriedade intelectual após a
celebração do acordo TRIPS. 3. Medidas de fronteira no acordo TRIPS. 4. Medidas de
fronteira no Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA). 5. Conclusão. 6.
Referência.
RESUMO
O presente trabalho pretende analisar as negociações internacionais que estão ocorrendo
sobre efetivação dos direitos de propriedade intelectual, no que se refere à regulação das
medidas de controle nas fronteiras, com o objetivo de levantar questionamentos
relevantes para a discussão sobre as regras existentes e as que se deseja implementar em
âmbito internacional. Para tanto, realizou-se uma pesquisa bibliográfica na qual se
expõem as negociações internacionais em matéria de propriedade intelectual após a
celebração do Acordo TRIPs, seguido por comentários a respeito dos termos do artigo
51 do mesmo Acordo, que trata da suspensão de liberação pelas autoridades
alfandegárias de bens que se suspeite contrafeito ou pirateado, e das negociações de um
novo acordo internacional de combate à contrafação, o Anti-Counterfeiting Trade
Agreement (ACTA). O tema é de grande relevância internacional e permanecerá na
*
Este trabalho tem como base a pesquisa apresentada no II Encontro Acadêmico de Propriedade
Intelectual, Inovação e Desenvolvimento, realizado entre os dias 1 e 3 de setembro de 2009, no Rio de
Janeiro, promovido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI).
1
Advogada. Mestranda em Direito, na área de concentração de Relações Internacionais, pela
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Colaboradora do setor jurídico do Departamento de
Inovação Tecnológica da mesma instituição.
147
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
agenda de negociações sobre efetivação dos direitos de propriedade intelectual. Assim,
é necessário entendê-los e utilizá-los de maneira a criar um sistema de proteção
equitativo, claro e eficiente para todos os países, em especial àqueles em
desenvolvimento.
PALAVRAS-CHAVE: Propriedade Intelectual. Medidas de fronteira. Acordo TRIPs.
Acordo Comercial Anti-Contrafação (ACTA).
ABSTRACT
This paper discusses the international negotiations that are taking place about
enforcement of intellectual property rights, related to the regulation of border measures,
the objective was to raise relevant questions to discuss regarding the existing rules and
those desired to be implemented internationally. Therefore, we carried out a literature
research in which it is exposed the international negotiations on intellectual property
after the celebration of the TRIPS Agreement, followed by comments on the terms of
the Agreement‟s Article 51, which deals with the suspension of release by customs
authorities on goods suspected to be counterfeit or pirated, and the negotiation of a new
international agreement to combat counterfeiting, the Anti-Counterfeiting Trade
Agreement (ACTA). The theme is of international relevance and will remain on the
negotiations agenda on enforcement of intellectual property rights. Thus, it is necessary
to understand and use them in order to establish a fair, clear and efficient protection
system for all countries, particularly developing countries.
KEYWORDS: Intellectual Property. Border measures. TRIPs Agreement. AntiCounterfeiting Trade Agreement (ACTA).
1. INTRODUÇÃO
As negociações internacionais relativas à propriedade intelectual passam por
diferentes momentos desde o período de 1880 à 1891, quando foram estabelecidos as
bases do sistema de proteção destes direitos: Convenção da União de Paris para a
Proteção Industrial - 1883, Convenção da União de Berna para a Proteção das Obras
148
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Literárias e Artísticas - 1886 e Acordo de Madri Relativo à Repressão das Indicações de
Procedência Falsa ou Enganosa dos Produtos – 1891.
Com o objetivo de criar uma organização que se dedicasse exclusivamente
com as questões relativas à propriedade intelectual foi criada, em 1967, a Organização
Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), que ingressou no sistema das Nações
Unidas em 1974, quando concluiu acordo com a ONU.
Seguem a este período outras tratativas mundiais até ser consolidado o atual
marco paradigmático da proteção dos direitos de propriedade intelectual, o Acordo
sobre os Aspectos da Propriedade Intelectual Relativos ao Comércio (Trade Related
Aspects of Intellectual Property Rights - TRIPs), na esfera da Organização Mundial do
Comércio (OMC), firmado em 1994.
Apesar de estabelecidos os standards mínimos no Acordo TRIPs, surge no
cenário internacional a implementação de padrões cada vez mais elevados de direitos de
propriedade intelectual decorrente de acordos realizados em âmbito bilateral, regional e
multilateral. Desde o início de sua regulamentação observa-se a mudança de foro como
uma característica constate nas discussões destes direitos, fenômeno que se repete como
instrumento de manobra dos países desenvolvidos.
Dentre os temas debatidos nestes foros encontram-se as normas relativas à
efetivação dos direitos de propriedade intelectual, isto é, medidas que podem ser
utilizadas pelos proprietários de direitos de propriedade intelectual com o intuito de
executá-los. Tais normas incluem procedimentos e remédios civis e administrativos,
medidas cautelares, exigências especiais relativas a medidas de fronteira e
procedimentos penais.
O problema do combate à contrafação e à pirataria que atinge diversos
interesses, tanto privados como públicos, possui relevância neste domínio. Diversas
estratégias são utilizadas para atingir este objetivo e atualmente negocia-se
internacionalmente o Acordo Comercial Anti-Contrafação (Anti-Counterfeiting Trade
Agreement - ACTA), que visa justamente estabelecer padrões internacionais para
efetivação dos direitos de propriedade intelectual a fim de combater a contrafação e a
pirataria. Para isto possui, no capítulo 2, a proposta de um quadro legal para efetivação
dos direitos de propriedade intelectual com medidas civis, medidas de fronteira,
medidas penais e no ambiente digital.
149
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Porém, os termos em que estão sendo negociado o ACTA ainda não foram
totalmente esclarecidos, sendo disponibilizado apenas um resumo dos principais
elementos em discussão nas propostas, informações suficientes para dar início a uma
série de questionamentos sobre as mudanças que estão sendo propostas e suas
conseqüências para os países em desenvolvimento. Do quadro legal apresentado pelo
ACTA destaca-se a importância que possuem as medidas de fronteira, já regidas pelo
Acordo TRIPs, a partir do artigo 51, na função de impedir o comércio de mercadorias
falsificadas.
Desta forma, pretende-se neste artigo fazer uma revisão bibliográfica sobre
as negociações internacionais que estão ocorrendo sobre efetivação de direitos de
propriedade intelectual em diversos âmbitos, no que se refere às medidas de fronteira,
sua regulação no Acordo TRIPs e nas transações do Acordo Comercial AntiContrafação (Anti-Counterfeiting Trade Agreement - ACTA).
Para tanto, primeiramente, serão expostas a situação em que se encontram as
negociações internacionais em matéria de propriedade intelectual após a celebração do
Acordo TRIPs, seguido por comentários a respeito do Artigo 51 do mesmo acordo, que
regulamenta a suspensão da liberalização pelas autoridades aduaneiras de bens que se
suspeitem violadores de direitos, e por fim será realizada análises sobre as negociações
que envolvem o Acordo Comercial Anti-Contrafação (ACTA).
2.
NEGOCIAÇÕES
INTERNACIONAIS
SOBRE
PROPRIEDADE
INTELECTUAL APÓS A CELEBRAÇÃO DO ACORDO TRIPS
O modelo atual de proteção da propriedade intelectual é regido pelo Acordo
TRIPs, celebrado em 1994, sob os auspícios da Organização Mundial do Comércio
(OMC), caracterizado por ser um acordo de proteção mínima obrigatório aos Estadosmembros signatários.
O Acordo TRIPs não harmonizou as normas de proteção à propriedade
intelectual entre os sistemas, podendo este variar de acordo com cada jurisdição. Assim,
além de não estabelecer todos os aspectos dos direitos de propriedade intelectual, e ao
reconhecer as diferenças nos sistemas legais e práticas de cada Membro, deixou à
escolha de cada país o uso ou não de várias flexibilidades.
150
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Apesar de o Acordo ter sua origem relacionada, entre outras razões, a
política econômica exterior de alguns países, como a tentativa de implementar medidas
unilaterais e bilaterais principalmente pelos Estados Unidos e pela União Européia2
(PIMENTEL, 1999), pode-se concluir que houve um respeito aos interesses de países
desenvolvidos e em desenvolvimento, como é possível extrair da redação de seu
Preâmbulo e artigos 7º e 8º, que tratam dos objetivos e princípios do Acordo.
Entendia-se que após a conclusão do Acordo TRIPs as tentativas bilaterais
dos países desenvolvidos de uniformizar os direitos de propriedade intelectual não
seriam mais praticadas, em decorrência do nível máximo atingido pelas obrigações
existentes no acordo e pelo estabelecimento da OMC e da OMPI como principais fóruns
deste tipo de negociação e implementação. (DRAHOS, 2001)
Porém, este fato não foi observado na prática, e as tentativas de impor
padrões cada vez mais elevados de propriedade intelectual pela via bilateral
permanecem, instituindo-se um novo bilateralismo, que busca os benefícios do forum
shifting3 e extinguir as flexibilizações do Acordo TRIPs. (BASSO, 2005)
Este novo bilateralismo:
[...] é aquele que, mesmo após a entrada em vigor do TRIPS, e na aparente
atmosfera democrática do multilateralismo, impõe seja por força da “Special
301” americana, seja por meio de acordos bilaterais e regionais de livrecomércio, assim como dos bilaterais de investimento, padrões “extra-TRIPS”
ou “TRIPS-plus” (BASSO, 2005, p. 21).
Correa (2007) aponta ainda o bilateralismo como uma forma de driblar a
resistência que os países, principalmente os Estados Unidos, enfrentam ao tomar
iniciativas quanto a direitos de propriedade intelectual na OMC.
Dentre as estratégias adotadas pelos países desenvolvidos nos acordos
bilaterais de propriedade intelectual destaca-se: o artifício de forum shifting; a
coordenação em âmbito bilateral e multilateral estratégias de propriedade intelectual,
com o intuito de não infringir os acordos realizados na esfera da OMC e da OMPI; e
2
Assim, o Acordo TRIPs pode ser visto também como o ápice da estratégia desses países, que
tinha por objetivo mudar o cenário de negociação dos temas para outro que possuísse adesão compulsória
e um sistema de solução de controvérsias com sanções nos casos de comprovada infração.
3
Forum shifting consiste na estratégia de alguns países em mudar o foro de discussão de acordos
sobre propriedade intelectual com intuito de implementar níveis mais elevados de proteção que não foram
possíveis realizar nos foros originais sobre a matéria, no caso especificamente na OMC e na OMPI.
151
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
manter nos acordos internacionais o princípio do minimum standards4. (DRAHOS,
2001)
Apreende-se deste contexto que o sistema multilateral passa a sofrer um
enfraquecimento. Nesse sentido expõe Basso (2005, p. 13) que:
Os acordos bilaterais e regionais abalam, portanto, o sistema multilateral
porque limitam o uso das flexibilidades e exceções contidas no TRIPS [...].
Ademais interferem no marco das obrigações gerais porque, à luz do
princípio da “nação mais favorecida” (MFN), quaisquer condições acordadas
bilateral ou regionalmente devem ser oferecidas aos demais Estados
Membros da OMC na mesma base.
Além disso, bilateralmente o poder de negociação dos países em
desenvolvimento é muito menor do que quando negociado em âmbito multilateral,
como na OMC, pois com a associação de vários países em bloco este poder aumenta e
mais concessões podem ser alcançadas.
No âmbito bilateral as políticas que visam aumentar o nível de proteção de
propriedade intelectual são marcadas pela assinatura de Tratados de Livre Comércio –
TLCs (Free Trade Agreements – FTAs)5. Destaca-se que nem todos os TLCs possuem
as mesmas previsões, em decorrência de diversos fatores relacionados aos países
signatários, mas o que faz com que eles ganhem notoriedade são as suas semelhanças.
(ABBOTT, 2006)
Tem-se como exemplo os TLCs realizados pelos Estados Unidos que
possuem entre suas disposições, de uma maneira geral, previsões sobre extensão do
prazo de duração das patentes para produtos farmacêuticos (ou outros produtos) para
compensar a demora na sua concessão, novos regulamentos quanto a exclusividade dos
dados de prova, restringem o uso da licença compulsória e da importação paralela,
ampliação das exceções sobre direitos de autor e conexos, proibição de importação
paralela de obras protegidas por copyright, exigências sobre a rejeição de pedidos
indicações geográficas caso haja conflito com uma marca comercial existente, e
obrigações relativas a publicação de decisões judiciais e administrativas relativas à
aplicação dos direitos de propriedade intelectual. (ABBOTT, 2006)
4
O princípio do minimum standards significa que cada novo acordo não implica revogação do
anterior, podendo, inclusive, estabelecer padrões mais elevados de proteção.
5
Os Estados Unidos e a União Européia celebraram TLCs nestes moldes com países da África,
Oriente Médio, Ásia, Pacífico, América do Sul e caribe.
152
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Porém, a estratégia de aumentar o nível de proteção da propriedade
intelectual não se restringe ao âmbito bilateral, existem ainda iniciativas em âmbito
regional e multilateral que incluem:
1. tratar a efetivação da propriedade intelectual como uma prioridade na
agenda comum dos países do G8 e propor negociações sobre um novo tratado
internacional sobre o combate à contrafação;
2. exigir que a questão da efetivação da propriedade intelectual faça parte da
agenda permanente no Conselho de TRIPs, na OMC;
3. exercendo pressão na OMPI para reforçar o mandato do Comitê
Consultivo para Efetivação para incluir normas de soft law;
4. aumentando o papel da OMA e da Interpol na efetivação da propriedade
intelectual, especialmente através de medidas de controle nas fronteiras e a
utilização de normas de direito penal; [...] 6 (BIADGLENG; TELLEZ, 2008,
p. 23, tradução nossa)
Neste contexto, destacam-se as regras de efetivação7 dos direitos de
propriedade intelectual, trazidas de forma detalhada pelo Acordo TRIPs (artigos 41 a
61), que prevê procedimentos e remédios civis e administrativos, medidas cautelares,
exigências especiais relativas a medidas de fronteira e procedimentos penais.
As normas de efetivação são medidas que podem ser utilizadas pelos
proprietários de direitos de propriedade intelectual com o intuito de executá-los através
do sistema de propriedade intelectual. Esclarece Isabella Pimentel (2005, p. 113) que:
Qualquer sistema de propriedade intelectual deve fornecer proteção aos
Direitos de Propriedade Intelectual, pois de nada adiantaria aos sistemas
concederem tais direitos e disponibilizarem informações referentes à
atividade inventiva e à criatividade que eles envolvem se os proprietários
destes direitos não dispuserem de meios para fazê-los valer.
6
1. setting enforcement of intellectual property rights as a priority in the common agenda of the
G8 countries and proposing negotiations on a new international treaty on anti-counterfeiting;
2. demanding that the WTO make enforcement part of the permanent agenda of the TRIPS
Council;
3. exerting pressure at WIPO to strengthen the mandate of the ACE to include soft law normsetting,
such
as
developing
best
practices
and
guidelines
on
enforcement;
4. increasing the role of the WCO and Interpol in intellectual property enforcement, particularly through
border measure controls and the use of criminal law;
5. introducing detailed TRIPS-plus obligations in the enforcement of intellectual property rights
in bilateral FTAs and EPAs (economic partnership agreements) negotiated by the United States and
European Union with developing countries. (BIADGLENG; TELLEZ, 2008, p. 23)
7
No Acordo TRIPs utiliza-se a palavra em inglês enforcement, traduzida por nós como
efetivação, porém pode ter outros significados semelhantes como execução, aplicação, cumprimento e
observância.
153
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Dentre os mecanismos de efetivação destaca-se, particularmente ao trabalho
ora apresentado, a atuação das autoridades aduaneiras no combate a infração dos
direitos de propriedade intelectual, visto como de grande relevância, uma vez que boa
parte dos debates atuais sobre efetivação destes direitos refere-se a medidas de fronteira,
e é indicada pelos países desenvolvidos como medidas essenciais para impedir sua
violação (CORREA, 2009).
3. MEDIDAS DE FRONTEIRA NO ACORDO TRIPS
É indiscutível a importância que possuem as medidas de fronteira na função
de impedir o comércio de mercadorias falsificadas, que atualmente afetam a saúde, a
segurança e os interesses econômicos de todo o globo. O próprio Acordo TRIPs
descreve na Seção 4, da Parte III, sobre o papel e as responsabilidades que as
administrações aduaneiras possuem quanto à aplicação dos direitos de propriedade
intelectual.
A Seção 4, inspirada principalmente nas leis nacionais existentes nos países
desenvolvidos sobre a matéria de efetivação dos direitos de propriedade intelectual,
apresenta o primeiro conjunto de normas internacionais em matéria de contrafação e
pirataria (UNCTAD, 2005) e concretiza um dos principais objetivos incorporados no
preâmbulo do próprio Acordo TRIPS, o reconhecimento da necessidade de uma
estrutura multilateral de princípios, regras e disciplinas referentes ao comércio
internacional de mercadorias contrafeitas.
As normas de medidas de fronteira referem-se aos mecanismos que podem
ser adotados por autoridades aduaneiras ou tribunais para controlar o movimento de
bens que infrinjam direitos de propriedade intelectual através da fronteira do território
de um país (CORREA, 2009). Não estando sujeito às mesmas os Estados-Membros que
derrubarem substancialmente todos os controles sobre os movimentos de mercadorias
através da sua fronteira com outro Estado-Membro com o qual forma uma união
aduaneira (nota 12, artigo 51, Acordo TRIPs).
A atuação das autoridades aduaneiras dos Estados-membros signatários do
Acordo TRIPs, no que diz respeito ao controle de infrações contra a propriedade
intelectual, devem levar em consideração o estabelecido no artigo 51 do Acordo TRIPs
sobre suspensão de liberação pelas autoridades aduaneiras, in verbis:
154
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Os Membros deverão, em conformidade com as disposições a seguir
enunciadas, adotar os procedimentos para permitir que um titular, que tenha
motivos válidos para suspeitar que a importação de bens com marca
contrafeita ou pirateados possa ocorrer, apresente um requerimento por
escrito junto às autoridades competentes, administrativa ou judicial, para
a suspensão pelas autoridades aduaneiras da liberação para livre circulação
dessas mercadorias. Os Membros podem permitir que tal pedido seja feito
em relação a mercadorias que envolvam outras infrações a direitos de
propriedade intelectual, desde que os requisitos da presente seção estejam
preenchidos.
Os
Membros
também
podem
prever
processos
correspondentes relativos à suspensão pelas autoridades aduaneiras da
liberação de bens que violem direitos de propriedade intelectual
destinados à exportação dos seus territórios.8 (tradução nossa, grifo nosso)
De acordo com este artigo a suspensão de liberação pelas autoridades
aduaneiras é exigido apenas nos casos de importação de bens, facultando a cada Estadomembro estabelecer regras desta natureza em relação aos bens destinados à exportação.
Porém, neste último caso, “estas seriam requisitos TRIPS-plus que não são obrigatórios
para os membros da OMC”. (CORREA, 2009, p. 48)
O próprio Acordo, na nota 13, do artigo 51, explicita que não há obrigação
de aplicar estes procedimentos a importação de bens colocados no mercado de um
terceiro país pelo titular do direito ou com o seu consentimento, assunto relativo à
importação paralela, nem a bens em trânsito.
Destaca-se que à autoridade aduaneira compete apenas a execução de
medidas cautelares decididas por “autoridades competentes, administrativa ou judicial”
quanto a questão de uma mercadoria ser contrafeita ou pirateada. Apesar de em alguns
países as autoridades administrativas coincidirem com as próprias autoridades
aduaneiras esta não é uma disposição do Acordo TRIPs, possibilitando que seja
8
Segue o disposto nos art. 51, do Acordo TRIPs, conforme se encontra no site da OMC.
Disponível em: <http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips_05_e.htm>. Acesso em: 10 jul
2009:
Members shall, in conformity with the provisions set out below, adopt procedures to enable a
right holder, who has valid grounds for suspecting that the importation of counterfeit trademark or pirated
copyright goods may take place, to lodge an application in writing with competent authorities,
administrative or judicial, for the suspension by the customs authorities of the release into free circulation
of such goods. Members may enable such an application to be made in respect of goods which involve
other infringements of intellectual property rights, provided that the requirements of this Section are met.
Members may also provide for corresponding procedures concerning the suspension by the customs
authorities of the release of infringing goods destined for exportation from their territories.
155
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
competência exclusiva do judiciário ou de outra autoridade administrativa (UNCTAD,
2005).
Além disso, estas medidas são aplicadas somente no caso de infrações de
bens com marca contrafeita ou bens pirateados. Para os efeitos do Acordo TRIPs,
entende-se por “bens de marca contrafeita” quaisquer bens que usem sem autorização
uma marca que seja idêntica à marca registrada relativa a tais bens ou que não pode ser
distinguida da marca genuína, e por "bens pirateados" entende-se por quaisquer bens
que constituam cópias efetuadas sem o consentimento do titular, infringindo diretos de
autor9.
Correa (2009) observa que na contrafação de marcas não está incluído casos
de marcas que possam encontrar confusão com outras marcas protegidas, e quanto a
bens pirateados esta expressão não abrange os casos de plágio, quando, por exemplo,
passagens verbais de um trabalho são copiadas sem consentimento.
Outros aspectos relevantes do artigo 51 do Acordo TRIPs são que, em regra,
esta disposição não se aplica a outros direitos de propriedade intelectual, como
patentes10; e não existe disposição que obrigue as autoridades aduaneiras adotarem
medidas cautelares ex officio, sendo necessário um requerimento específico do detentor
do direito para a autoridade aduaneira agir.
O objetivo de suspender a entrada de mercadorias que se suspeite infratora
é:
[…] dar ao titular dos direitos um prazo razoavelmente extenso para que se
inicie os procedimentos judiciais contra que presume que seja o autor da
infração, sem correr o risco de que a mercadoria que ele suspeita que esteja
infringindo seus direitos desapareça no mercado após ter sido autorizada a
sua entrada pelas autoridades aduaneiras. (PIMENTEL, 2005, p. 135)
9
Segue o disposto na nota de rodapé 14, do Acordo TRIPs, conforme se encontra no site da
OMC. <http://www.wto.org/english/docs_e/legal_e/27-trips_05_e.htm>. Acesso em: 10 jul 2009:
(a) "counterfeit trademark goods" shall mean any goods, including packaging, bearing without
authorization a trademark which is identical to the trademark validly registered in respect of such goods,
or which cannot be distinguished in its essential aspects from such a trademark, and which thereby
infringes the rights of the owner of the trademark in question under the law of the country of importation;
(b) "pirated copyright goods" shall mean any goods which are copies made without the consent
of the right holder or person duly authorized by the right holder in the country of production and which
are made directly or indirectly from an article where the making of that copy would have constituted an
infringement of a copyright or a related right under the law of the country of importation.
10
Este fato é de extrema relevância, pois, em bens com marca contrafeita ou bens pirateados é
mais fácil realizar inspeção visual para identificar violação a estes direitos do que no caso de, por
exemplo, uma patente de produto ou de processo, que necessita de um exame técnico e jurídico mais
apropriado e de provas mais contundentes (Correa, 2009).
156
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
De maneira geral, o Acordo TRIPs, quanto às medidas de fronteira, segue o
padrão de estabelecer regras de patamar mínimo da mesma forma que o restante do
Acordo, deixando aos Estados-membros espaço considerável para estabelecer suas
regras de controle sobre infrações contra a propriedade intelectual neste âmbito. Porém,
observa-se que internacionalmente existe um movimento, principalmente dos países
desenvolvidos, de estabelecer regras mais elevadas do que as exigidas no Acordo TRIPs
sobre a matéria.
Os esforços para maior efetivação dos diretos de propriedade intelectual a
partir de medidas de fronteira foram incluídos na esfera da Organização Mundial das
Aduanas, que, indo além da competência para a qual foi criada, tem estabelecido
normas de caráter TRIPs-plus, como a adoção do Provisional Standards Employed by
Customs for Uniform Rights Enforcement – SECURE. (CORREA, 2009)
4.
MEDIDAS
DE
FRONTEIRA
NO
ANTI-COUNTERFEITING
TRADE
AGREEMENT (ACTA)
O Anti-Counterfeiting Trade Agreement (ACTA) é um acordo multilateral
em negociação entre Austrália, Canadá, União Européia, Japão, México, Marrocos,
Nova Zelândia, Coréia, Singapura, Suíça e Estados Unidos, cujo objetivo é estabelecer
padrões internacionais para efetivação dos direitos de propriedade intelectual a fim de
combater a contrafação e a pirataria.
As conversações preliminares, com a elaboração de um anteprojeto,
ocorreram em segredo durante os anos de 2006 e 2007, havendo divulgação sobre seu
escopo apenas em junho de 2008, ano em que as negociações iniciaram oficialmente11.
Em 6 de abril de 2009, os participantes das negociações do ACTA emitiram uma
declaração conjunta com um resumo dos principais elementos em discussão nas
propostas. Este documento, que se encontra nos sites institucionais dos órgãos
responsáveis de cada país, servirá de base para a análise que se segue neste trabalho 12.
11
Desde o início das negociações do referido Acordo diversas preocupações foram levantadas por
movimentos civis, como o IP Justice, que indagava sobre a falta de transparência no processo de
negociação do acordo, a não participação de grupos de interesse público, de país em desenvolvimento ou
da sociedade civil, a exclusão da OMPI e da OMC como foro, entre outros (IP JUSTICE, 2008).
12
Para este artigo foi consultado o resumo publicado pelo: UNITED STATES TRADE
REPRESENTATIVE (USTR). ACTA - Summary of Key Elements Under Discussion. Abr. 2009.
157
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
O projeto do ACTA possui em sua estrutura 6 capítulos e, de acordo com os
países negociantes, busca elaborar um quadro de normas jurídicas internacionais que
ainda não existe ou que precisa ser reforçado. O primeiro capítulo, intitulado
disposições iniciais e definições, traz questões como o objetivo, âmbito, definições e
princípios interpretativos do Acordo; o segundo capítulo dispõe de um quadro legal para
efetivação dos direitos de propriedade intelectual com medidas civis, medidas de
fronteira, medidas penais e efetivação de direitos de propriedade intelectual no ambiente
digital; o terceiro capítulo trata de cooperação internacional para enfrentar o comércio
transfronteiriço de mercadorias contrafeitas e piratas; o quarto capítulo destina-se a
dispor sobre os métodos que serão utilizados pelas autoridades para aplicar as leis de
efetivação de propriedade intelectual colocados no segundo capítulo; o quinto capítulo
inclui as disposições institucionais; e o sexto capítulo expõe as disposições finais,
incluindo detalhes sobre como o acordo irá funcionar.
Especificamente quanto às medidas de fronteira, dispostas na seção 2, do
segundo capítulo, discute-se:
1. Quais os direitos de propriedade intelectual vão ser abrangidos, e se as
medidas de fronteira só devem ser aplicadas às importações ou deveria igualmente
aplicar-se à exportação e ao trânsito de mercadorias;
2. Exceções mínimas que poderia permitir aos viajantes de trazer
mercadorias para uso pessoal;
3. Procedimentos para que titulares de direitos possam solicitar às
autoridades aduaneiras a suspensão da entrada de mercadorias suspeitas de violar
direitos de propriedade intelectual na fronteira;
4. Possibilidade de que as autoridades aduaneiras possam dar início a essa
suspensão ex officio;
5. Procedimentos para que as autoridades competentes possam determinar
se as mercadorias suspensas infringem direitos de propriedade intelectual;
6. Medidas para garantir que bens que violam direitos de propriedade
intelectual não sejam liberados para livre circulação, sem autorização do titular do
direito, e as possíveis exceções;
Disponível em: <http://www.ustr.gov/about-us/press-office/fact-sheets/2009/april/acta-summary-keyelements-under-discussion>. Acesso em: 15 jun. 2009.
158
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
7. O arresto e destruição das mercadorias que tenham sido determinados
como violadoras de direitos de propriedade intelectual, e as possíveis exceções;
8. A responsabilidade sobre as taxas para o armazenamento e destruição;
9. Atribuição de competência para as autoridades de exigir dos titulares
caução ou garantia para proteger o acusado e prevenir abusos; e
10. Autoridade para divulgar informações essenciais sobre violação para os
titulares do direito.
Observa-se que nas negociações deste novo Acordo são discutidas diversas
medidas que visam criar normas mais rígidas do que as estabelecidas no Acordo TRIPs,
nitidamente normas TRIPs-plus, sobre o controle da efetivação da propriedade
intelectual, através de medidas de fronteira.
Um dos perigos do aumento da incidência em medidas de controle das
fronteiras é a possibilidade de que os poderes conferidos às autoridades aduaneiras
sobre efetivação da propriedade intelectual possam ser excessivamente amplos se não
houver um treinamento adequado para emitir juízos sobre se as mercadorias são, na
realidade, falsificados ou pirateados. (BIADGLENG; TELLEZ, 2008)
Acentua-se a problemática quanto a infração às patentes, uma vez que os
critérios que determinam a violação podem variar significativamente de uma jurisdição
para outra, e pela dificuldade de realizar um exame técnico adequado para detectar em
tempo hábil a infração.
Existe ainda a possibilidade de que a concessão de amplos poderes para
funcionários aduaneiros para controlar o fluxo de importações e exportações de
mercadorias, com suspeita de estarem infringindo direitos de propriedade intelectual,
possa criar barreiras ao comércio. (BIADGLENG; TELLEZ, 2008) Afinal, discute-se
internacionalmente, justamente a facilitação do comércio, com esforços para a
diminuição dos custos das operações de comércio exterior.
Mais atribuições as aduanas, como no caso da suspensão ex officio,
atravanca o comércio de mercadorias, torna-o mais lento e caro tanto para o
comerciante, como para o governo e sociedade, e traz diversos problemas, “como o
aumento da corrupção entre as autoridades aduaneiras, dificuldades na valoração das
mercadorias, diminuição na arrecadação de tributos, imprevisibilidade e atrasos na
liberalização de mercadorias, dentre outros” (SCORZA, 2008, p. 65).
159
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
No caso dos países menos desenvolvidos e dos países em desenvolvimento a
ineficiência aduaneira é ainda mais preocupante, e serão os maiores prejudicados com
mais barreiras não-tarifárias. Por esta razão, deve-se zelar pela simplificação e
otimização dos procedimentos aduaneiros.
Relevante assinalar que, dentre as obrigações gerais do Acordo TRIPs sobre
efetivação destes direitos, devem ser observados os artigos 41.1 e 41.2, que
estabelecem, respectivamente, que os procedimentos de efetivação serão aplicados de
maneira a evitar a criação de obstáculos ao comércio legítimo e a prover salvaguardas
contra seu uso abusivo, e que os mesmos serão justos e eqüitativos.
A adoção de medidas ex officio é um das principais formas encontradas
pelos países desenvolvidos para elevar os padrões de efetivação dos direitos de
propriedade intelectual. Entretanto tais intervenções, alerta Carlos Correa (2009, p. 52),
“transfere a responsabilidade pelos danos para o Estado e deve ser limitada para
situações muito excepcionais em que há uma justificação para substituir
provisoriamente o titular do direito em defesa de seus direitos privados” (tradução
nossa) 13.
Outros questionamentos relevantes sobre este tema são a extensão da
suspensão para mercadorias destinadas à exportação e em trânsito, a possibilidade de
aplicar a outros direitos de propriedade intelectual, a redução dos custos do titular e das
evidências de que a mercadoria é pirateada ou contrafeita, a atribuição de mais
competências para a autoridade aduaneira, entre outras.
Estes aspectos e outros, que não se tem conhecimento em detrimento das
negociações ainda estarem ocorrendo em segredo, são de extrema importância para
todos os países do globo, que de uma forma ou de outra serão atingidos pelo ACTA, por
isso deveriam ser discutidas em um foro multilateral, onde mais países estão presentes e
os países em desenvolvimento possuem maior poder de negociação.
Prova da necessidade de uma discussão mais plural pode ser vista no recente
caso da apreensão pelas autoridades aduaneiras holandesas de um carregamento do
medicamento para hipertensão Losartan, que seguia da Índia para o Brasil, onde naquele
país o medicamento é protegido por patente e nestes outros dois últimos não há esta
13
Ex-officio interventions, however, shift the responsibility for damages to the state and should be
limited to very exceptional situations in which there is a justification to provisionally substitute the right
holder in defence of his private rights. (CORREA, 2009, p. 52)
160
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
proteção (ICTSD, 2009). O impasse da suspensão da liberalização da mercadoria em
trânsito criou uma série de discussões sobre o acesso a medicamentos nos países em
desenvolvimento14 e sobre barreiras ao comércio legítimo de genéricos.
A União Européia, desta forma, agiu em conformidade seu Regulamento
(CE) nº 1383/2003, que diz respeito as medidas que devem ser tomadas contra
mercadorias suspeitas de violarem direitos de propriedade intelectual, e permite a
suspensão de mercadorias em trânsito no território da União Européia.15 Porém, como
afirma Frederick Abbott “as autoridades holandesas podem ter atuado segundo o texto
do regulamento aplicável da UE. Contudo, tal fato não legitima a apreensão do ponto de
vista do Direito Internacional, tampouco da perspectiva do comércio global responsável
ou das políticas de saúde pública” (2009, p. 9).
A falta de transparência dos países na negociação do ACTA, que alegam ser
assunto de segurança nacional ou de política externa (LOVE, 2009), em relação a seus
próprios cidadãos e aos outros países, deixa de fora a participação da sociedade civil,
como se não fosse interesse dos mesmos discutir sobre as conseqüências das propostas
ventiladas e contribuir com novas propostas.
5. CONCLUSÃO
A questão da efetivação dos direitos de propriedade intelectual, como o
combate à contrafação e a pirataria, é atualmente um tema de grande relevância na
esfera internacional, que reflete nas diversas negociações e assinaturas de acordos
bilaterais, regionais e multilaterais sobre a matéria. Porém, ao serem realizadas estas
negociações e acordos, devem-se levar em conta os diversos estágios de
desenvolvimento dos países participantes e a relevância de outros temas em discussão,
como o próprio desenvolvimento, o acesso ao conhecimento e a saúde pública.
Neste sentindo, é essencial que sejam mantidas as flexibilidades existentes
no Acordo TRIPs ao serem assinados Tratados de Livre Comércio e ao negociar-se
normas mais elevadas nos âmbitos multilaterais como no Conselho TRIPs da OMC, na
14
Na esfera da OMC um grande avanço sobre a questão do acesso aos medicamentos foi a
Declaração Sobre o Acordo TRIPS e Saúde Pública, cujos termos são diretamente atingidos pela
apreensão realizada pela Holanda.
15
Regulamento
(CE)
nº
1383/2003,
disponível
em:
<http://eurlex.europa.eu/LexUriServ/site/en/oj/2003/l_196/l_19620030802en00070014.pdf>.
161
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
OMPI, na OMA, e outros foros. Tentando escapar de artifícios como o forum shifting, a
coordenação de estratégias de forma a não infringir os acordos realizados na esfera da
OMC e da OMPI, e a manutenção do minimum standards.
Os países em desenvolvimento devem observar que em negociações
bilaterais seus poderes de barganha são muito menores do que quando articulados em
conjunto com outros países no âmbito multilateral. Outro aspecto relevante é que, em
decorrência dos princípios da nação mais favorecida e do tratamento nacional, uma vez
assinado um acordo bilateral com outro país, os direitos concedidos ao país signatário
devem ser oferecidos nas mesmas bases para outros países.
Quanto às medidas de fronteira o artigo 51, do Acordo TRIPs, preserva
diversas flexibilidades, e permite que cada país estabeleça suas próprias regras,
respeitando os padrões mínimos estabelecidos, quanto à suspensão de liberação pelas
autoridades aduaneiras. Tal artigo estabelece basicamente que: a) cabe ao titular
requerer a suspensão da liberação de bens pela autoridade aduaneira; b) deve haver
motivos válidos para suspeitar a infração; c) a suspeita diz respeito ao caso de
importação; d) os direitos de propriedade protegidos são relacionadas a infração de
marca contrafeita ou bens pirateados; e) o requerimento é feito por escrito e
encaminhado às autoridades competentes (administrativa ou judicial).
O mesmo artigo faculta aos Membros que o pedido de suspensão de
liberação seja feito em relação a mercadorias que envolvam outras infrações a direitos
de propriedade intelectual, desde que presentes os requisitos acima. Assim como,
permite estender esse procedimento a bens que violem direitos de propriedade
intelectual destinados à exportação. Mas estas são medidas TRIPs-plus, isto é, não são
exigidas pelo Acordo TRIPs.
As negociações que se apresentam tanto na OMA, com o SECURE, quanto
no novo Acordo Comercial Anti-Contrafação (ACTA) são de normas muito mais
rígidas e de difícil execução pelos países em desenvolvimento, que não possuem as
mesmas estruturas de comércio nem o mesmo nível de produção industrial e intelectual
que países desenvolvidos, sem falar nos custos financeiros para implementação destas
novas medidas.
O ACTA, apesar de sua negociação sigilosa, o que não permite o acesso
mais detalhes sobre seu conteúdo, traz diversos questionamentos e incertezas sobre o
futuro da efetivação dos direitos de propriedade intelectual através de medidas de
162
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
fronteira. Questiona-se sobre a necessidade, eficácia e aplicabilidade de tais normas,
principalmente nos países em desenvolvimento e menos desenvolvidos que apresentam
estruturas aduaneiras incipientes.
Abordaram-se questões sobre o despreparo das autoridades aduaneiras para
ampliação de suas competências, principalmente no que concerne as infrações às
patentes; a criação de barreiras não tarifárias ao comércio, prejudicando a facilitação do
mesmo; as conseqüências de se criar mecanismos para que a suspensão seja realizada ex
officio; a extensão da suspensão para mercadorias destinadas à exportação e em trânsito;
a possibilidade de aplicar a outros direitos de propriedade intelectual; a redução dos
custos do titular e das evidências de que a mercadoria é pirateada ou contrafeita.
A falta de acesso às informações sobre diversos aspectos tais como os
termos que estão sendo negociados, os locais e datas das reuniões, quais países estão
participando, atas das negociações, objetivos das negociações é descabida no atual
estágio de governança global, sem falar na afronta aos direitos de seus próprios
cidadãos. Este é um procedimento ilegítimo para apurar questões tão complexas quanto
as que estão sendo propostas.
Para encontrar uma solução eficaz aos problemas de efetivação da
propriedade intelectual, como o combate à pirataria e à contrafação, é necessário levar
em conta os princípios democráticos, as questões relativas ao livre comércio e a
facilitação de troca de mercadoria, a compatibilidade com a realidade social, as questões
de acesso ao conhecimento, e o surgimento de tecnologias cada vez mais avançadas. É
necessário um esforço mundial coordenado, com discussões entre governo, setor
privado e sociedade civil. Torna-se primordial um diálogo internacional em âmbito
multilateral.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
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166
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
PROPRIEDADE E DESENVOLVIMENTO: análise pragmática da função social
Luciano Benetti Timm1
Renato Vieira Caovilla2
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Direitos de propriedade: o processo de conversão do ativo
subcapitalizado em capital ativo. 3. Instituições fortes: a adequada estrutura de
incentivos à atividade produtiva. 4. A propriedade e sua função social no Brasil. 5. Um
fundamental direito como direito fundamental. 6. Conclusão. Notas.
RESUMO
O presente trabalho tem por objetivo demonstrar a importância dos direitos de
propriedade, legalmente formalizados, para o processo de geração de capital e, em
conseqüência, de maior renda e riqueza, porque apto a promover a inclusão, no sistema
legalizado de trocas (mercado), dos cidadãos que à margem do mesmo atuam. O
resultado desse processo é a promoção de maior bem-estar social. Assim, analisar-se-á a
previsão constitucional acerca da função social da propriedade no Brasil em
consonância com esta constatação, conferindo-lhe interpretação pragmática, através do
método da análise econômica do direito, e em contraste com o posicionamento expresso
no modelo “solidarista” vigente na doutrina brasileira, que propugna pela utilização do
Direito Privado como mecanismo de justiça distributiva e de justiça social. Conclui-se
que o “interesse coletivo” resulta melhor atendido quando, em primeiro lugar,
1
Advogado. Pós Doutor pela U.C. Berkeley, EUA. Master of Laws (LLM) pela Universidade de
Warwick. Mestre e Doutor em Direito pela UFRGS. Professor Adjunto da PUCRS e da ULBRA.
Professor da Escola Superior da Magistratura do Rio Grande do Sul.Correspondência: Av. Carlos Gomes,
1340, 602, 90480-001, Porto Alegre, RS. (51) 3022 5550. Fax (51) 3022 6650. [email protected].
2
Pesquisador do Grupo de Direito e Economia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul (PUCRS).Correspondência: Av. João Wallig, 1845, 407, 91340-001, Porto Alegre, RS. (51) 9226
5729. [email protected]
167
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
formalizado e, após, respeitado o fundamental direito de propriedade individual, sendo
eventuais excessos corrigidos via instituto do abuso de direito.
Palavras-chave: Propriedade; Capital; Função Social; Desenvolvimento; Bem-estar
social.
ABSTRACT
This paper aims at demonstrate the importance to a country to establish a formal system
of property rights. Because a system of property rights is able to convert “dead” assets
in capital, it is also able to generate wealth, including in the market place people who
get used to negotiate at its margins. By observing that, we will nurture a pragmatic
interpretation to the principle of the social function of property rights through the law
and economics‟ lenses, in opposition to the so called “solidarist” model. Our conclusion
is that the public welfare is best achieved by first entitling people to property, and then
protecting the fundamental property rights. Abuses will be corrected by the doctrine of
abuse of rights.
Key-words: Property; Capital; Social Function; Development; Public Welfare.
I - INTRODUÇÃO
Qual fator é capaz de explicar as diferenças entre os países desenvolvidos e os
países em desenvolvimento, em termos de riqueza? Em 1900, Japão e Filipinas
apresentavam renda per capita semelhante, enquanto hoje, a renda per capita do Japão é
seis vezes superior à das Filipinas. Da mesma forma, em 1900, Argentina e Canadá
equivaliam-se quanto à renda per capita, ao passo que, nos dias de hoje, a renda per
capita do Canadá é mais do que o triplo da renda per capita da Argentina (Cooter et al,
2006, p.2).
Cabe indagar, por oportuno, se tal discrepância adviria das diferenças culturais
dos povos. O economista Hernando De Soto assevera, contudo, não ser o fator cultural o
responsável pelo sucesso ou insucesso de países tão diferentes e que a disparidade de
riqueza entre o Ocidente e o resto do mundo é por demais ampla para ser justificada
com base, tão-somente, na cultura (De Soto, 2001, p.18).
168
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
De Soto ressalta, ainda, que, na última década, Rússia e América Latina “têm
compartilhado os mesmos problemas políticos, sociais e econômicos: desigualdades
gritantes, economias subterrâneas, máfias ubíquas, instabilidade política, fuga de
capital, desrespeito flagrante à lei”, e questiona: “alguém saberia apontar traços
„culturais‟ comuns entre os latino-americanos e os russos?”(De Soto, 2001, p.24).
Inobstante os países do Terceiro Mundo e os países que integravam o bloco
comunista terem adotado receitas capitalistas (as quais são bem-sucedidas no Ocidente),
tais como, o equilíbrio no orçamento, o corte dos subsídios, a atração de investimento
estrangeiro e a redução das tarifas, não conseguiram prosperar. Aliás, De Soto afirma
que os esforços desses países “foram recompensados com amargas decepções. Da
Rússia à Venezuela, os últimos cinco anos foram tempos de sofrimento econômico, de
queda nas receitas, de ansiedades e ressentimentos (...)” (De Soto, 2001, p.23).
Diante desse quadro, o que explica o fato de os países pobres (onde vivem
cinco sextos da humanidade), embora ágeis na adoção de todas as outras invenções
ocidentais, “do clipe de papel ao reator nuclear” (De Soto, 2001, p. 22), terem sido
incapazes de alcançar maior riqueza e maior bem-estar social? Seria algum tipo de
conspiração monopolista ocidental, contra os países em desenvolvimento, a causa deste
indesejável efeito?
Não é assim que entendemos o problema.
O maior obstáculo para que o resto do mundo atinja os níveis de riqueza
alcançados pelos países desenvolvidos é a sua incapacidade de gerar capital (Soto, 2001,
p. 19).1 Nesse sentido, deve-se perscrutar pela fonte que, de modo mais eficiente,
conduz à geração de capital e, via de conseqüência, ao desenvolvimento econômico.
Alan Greenspan, Presidente da Reserva Federal americana (FED), por 18 anos
consecutivos, em sua A Era da Turbulência, cita que, de modo geral, o caminho mais
curto e mais direto para a prosperidade de um país contém os seguintes elementos
(Greenspan, 2007, pp. 242 e 243):
A extensão da concorrência na economia interna e, ainda mais para as
nações em desenvolvimento, a extensão da abertura de sua economia e a
integração com o comércio internacional;
As instituições de um país e sua qualidade para contribuir com o
funcionamento da economia;
A eficácia das medidas necessárias à estabilidade macroeconômica.
169
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Contudo, assevera Greenspan que a ordem de importância de tais elementos,
bem como a ênfase a ser dada a cada um deles varia, e que, de acordo com sua
experiência pessoal, a fonte precípua da prosperidade é a garantia dos direitos de
propriedade e o império da lei. Em assim sendo, pontifica que “sem essa certeza
[propriedade], de pouco adiantariam o livre-comércio, os enormes benefícios da
competição e as vantagens comparativas” (Greenspan, 2007, p.243)
Mas essa noção não é unissonamente compartilhada por todas as noções,
principalmente por aquelas em desenvolvimento. Alías, nas palavras de Greenspan
“Infelizmente, a noção de direito de propriedade ainda é fonte de conflitos,
sobretudo em sociedades que questionam a moralidade da busca pelos lucros.
(...). O direito de propriedade não é defensável em sociedades que ainda
mantenham qualquer resíduo significativo do conceito marxista de que
propriedade é roubo”(Greenspan, 2007, p.244).
Para ilustrar a conexão existente entre a proteção dos direitos de propriedade e
a geração de riqueza e bem-estar social, recorre-se ao exemplo das discrepantes
trajetórias percorridas pela comunista República Democrática da Alemanha (parte
oriental) e a República Federal da Alemanha (parte ocidental). Ao final da II Grande
Guerra, precisamente após a Conferência de Potsdam, de agosto de 1945 (Mota e
Braick, 1997, p. 517), a Alemanha resultou dividida em áreas de influência. Criou-se a
República Democrática da Alemanha, sob influência da União Soviética, e a República
Federal da Alemanha, conectada com o Ocidente. À época, ambas as Repúblicas
equivaliam-se em características, tais como, população e educação. Após quarenta anos
de divisão, as Repúblicas apresentaram situações econômicas distintas. Em período
antecedente à reunificação, o PIB per capita da Alemanha Oriental, sob influência
soviética e com a negação da propriedade privada, equivalia a 1/3 do PIB per capita da
Alemanha Ocidental, esta estribada em economia de mercado, com respeito à
propriedade (Cass, 2006, p. 88).2
Outrossim, ponto peculiar e “comprometedor” do planejamento central então
em voga na União Soviética referia-se à constatação de que a maior parte de suas
colheitas terem sido fruto de terras privadas, que representavam uma pequena fração da
área agricultável (Greenspan, 2007, p. 243). Ainda, na China, embora somente 250
milhões, do total de 1,3 bilhão de habitantes, sejam dotados de propriedade privada e
detenham o direito de titularizar ativos no setor privado, o país apresenta taxas de
crescimento real de 10% ao ano, e a conclusão a que chega De Soto sobre este fato é:
170
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
“os, relativamente, poucos têm sustentado 10% de crescimento real, enquanto que o
bilhão restante da população não faz parte do sistema legal” (Soto, 2004).3 Vale dizer,
25% da população fazem com que o crescimento econômico de sua economia seja de
10%. A questão, então, passa a ser não retirar a propriedade desses 25%, mas, ao
reverso, fazer com que os outros 75% tornem-se, também, proprietários.
Em vista disso, nevrálgica resulta a análise de como a propriedade privada tem
o condão de gerar capital e, por conseguinte, contribuir para a promoção do bem-estar
social. Esse é o ponto central do presente trabalho.
Para tanto, partiremos da análise de um ambiente institucional em que não há
direitos de propriedade, a fim de constatar a sua conseqüência no estímulo à produção e,
por conseguinte, na promoção de bem-estar social.
Ao depois, enfrentaremos o problema da diferença de riqueza e bem-estar entre
os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, apontando a sua causa e
observando que, principalmente no Brasil, o tratamento dado à propriedade tem o
condão, tão-somente, de ampliar, ao invés de reduzir, tamanha discrepância.
Nessa esteira, examinaremos as conseqüências da flexibilização dos direitos de
propriedade no desenvolvimento econômico, percebendo que tal atitude não é o meio
idôneo para atingir os fins a que se destina.
Por fim, versaremos sobre o direito da propriedade como um direito
fundamental do cidadão.
II - DIREITOS DE PROPRIEDADE: O PROCESSO DE CONVERSÃO DO
ATIVO SUBCAPITALIZADO EM CAPITAL ATIVO
Alguns países são mais desenvolvidos do que outros pelo fato de suas
economias crescerem mais do que a economia dos outros, vale dizer, há países em que
as instituições fornecem uma estrutura de incentivos que orienta a alocação de recursos
à atividade produtiva, ao passo que as instituições em outros países, geralmente menos
desenvolvidos, estimulam a alocação de recursos escassos à atividade apropriadora. Isso
significa que enquanto alguns países estimulam a sua população a inovar e a produzir,
outros incentivam os seus cidadãos a dissiparem renda na apropriação do pouco que é
produzido.
171
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Nesse sentido, com o intuito de demonstrar, ao final, a importância da
propriedade, como parte das instituições formais de um país, para conferir o necessário
incentivo à produtividade, partir-se-á da análise, primeiramente, de uma economia,
hipoteticamente considerada, na qual não há propriedade formalmente reconhecida e,
portanto, não respeitada pelo ordenamento jurídico.
Na hipótese de não haver direitos de propriedade, os indivíduos que se dispõem
a concretizar uma atividade produtiva terão, para além de alocar tempo e recursos à
produção, alocar tempo e recursos à preservação daquilo que possuem. Por não
existirem direitos de propriedade protegíveis pelo ordenamento jurídico, a dimensão da
propriedade de um indivíduo será proporcional à sua capacidade de fornecer proteção
àquilo sobre o que detém a posse. Por conseguinte, alguns indivíduos, ao invés de
produzir, preocupar-se-ão com a apropriação de recursos e aqueles interessados na
produção, deixarão de produzir mais porque o recursos à esta atividade destinados terão
de competir com a finalidade de assegurar aquilo que já possuem.
Dessa forma, os indivíduos produziriam até o ponto em que o benefício
marginal adveniente da proteção do montante produzido igualar-se-ia ao custo marginal
da atividade de proteger. Dito de outra forma, os recursos serão empregados na proteção
daquilo que os indivíduos possuem até o ponto em que proteger uma unidade adicional
seja igual ao benefício adveniente de manter esta unidade produzida.
Com base na figura 1, em anexo, intitulada Produção vs. Apropriação,
considere que os indivíduos desejam produzir PII, vez que este é o montante de
produção que julgam necessário para o atendimento de suas necessidades. A linha CMg
corresponde ao custo marginal de produzir uma unidade a mais do produto de sua
atividade. A linha BMg representa o benefício marginal adveniente da produção desta
unidade adicional. O eixo vertical representa o montante de recursos empregados na
atividade produtiva. O eixo horizontal representa a quantidade de produção.
Note-se que, se os indivíduos produzirem qualquer quantidade à esquerda de P,
não estariam maximizando a sua produção, vez que o benefício adveniente da produção
de uma unidade adicional superaria o custo de proteger esta unidade uma vez já
produzida. Então, poderiam continuar na atividade produtiva. Caso os indivíduos
desejarem produzir mais do que P, o montante de recursos necessários para proteger
esta unidade adicional produzida seria maior do que o benefício do resultado dessa
172
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
produção adveniente. Em outras palavras, para que pudessem proteger esta unidade a
mais, teriam de deixar desprotegida outra unidade produzida.4
Portanto, envidarão esforços até o montante em que consigam, ao mesmo
tempo, produzir uma unidade e protegê-la (CMg = BMg).
Mas, tal situação, em termos de eficiência produtiva, seria socialmente
eficiente? Cooter e Ulen demonstram que um processo produtivo é considerado
eficiente quando ocorre qualquer uma das seguintes situações (Cooter e Ulen, 2000, p.
12):
a) Não é possível manter o mesmo nível de produção valendo-se de menos ou
mais baratos insumos;
b) Não é possível aumentar o nível de produção com a mesma quantidade
insumos.
Em assim sendo, há algum mecanismo que permita aos indivíduos alocarem
menos recursos na defesa daquilo que possuem e, ainda assim, contarem com o mesmo
nível de proteção? Fatos reais demonstram que sim.
O economista Hernando De Soto, Presidente do Institute for Liberty and
Democracy, sediado em Lima, no Peru, assevera que em projeto que neste país realizou,
com o intuito de fazer com os que indivíduos pobres tivessem acesso à propriedade, a
ativos e ao capital, constatou que nas residências que estavam formalmente registradas,
ou seja, de cuja propriedade as pessoas eram titulares, havia, no mínimo, duas fontes de
renda (e, por conseguinte, as pessoas gozavam de maior bem-estar), ao passo que nas
residências sobre as quais não se reconheciam direitos de propriedade, havia, tãosomente, uma única fonte de renda (Soto, 2004). Por quê?
A resposta, embora simples, assume larga dimensão. As pessoas que têm
certeza de que a sua propriedade estará protegida e será respeitada não necessitam
deixar alguém (o marido deixar a mulher, ou o inverso) tomando conta da casa enquanto
trabalham. A partir do momento em que tal certeza se esvai, a melhor opção é deixar
alguém tomando conta da propriedade, o que reduz as possibilidades de trabalho desta
pessoa encarregada.
Destarte, as pessoas podem alocar mais tempo e recursos na atividade
produtiva e, ainda assim, terem os seus ativos protegidos. Fora de dúvida que uma
pessoa a mais trabalhando faz com que a renda da família recrudesça.
173
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Tal constatação reveste-se de grande importância, porquanto com a percepção
de maior renda (o que se refletirá em maior bem-estar social) os filhos dos proprietários
das residências registradas podem passar a freqüentar a escola, diminuindo, dessa
forma, o número de crianças praticantes de trabalho infantil (Soto, 2004).5
Com efeito, a situação fática da posse, sem assento registrário referente ao
imóvel ocupado, significa manejar “ativo morto”, incapaz de gerar capital. Pelo próprio
fato de os direitos de propriedade não poderem ser legalmente reconhecidos, os
respectivos ativos não comportam a transformação em capital e não se constituem como
bens de comércio, “senão em estreitos círculos locais, onde as pessoas se conhecem e
confiam umas nas outras” (Soto, 2001, p. 20).
Cabe notar, por oportuno, que nos Estados Unidos, as empresas iniciantes têm
como a mais importante fonte de captação de recursos a hipoteca da casa do empresário.
Nesse mesmo sentido, De Soto assevera que o título de propriedade privada significa
conferir a um ativo uma função profícua e que é invisível, concernente às oportunidades
que gera para o seu titular.
Assim, o direito de propriedade fornece, ao titular do bem correspondente, a
possibilidade de “ser utilizada com facilidade como garantia em empréstimos, como
endereço de cobrança de dívidas, impostos e taxas; como localização que identifica os
indivíduos para motivos comerciais, judiciais ou cívicos; ou como terminal responsável
para o recebimento de serviços públicos, tais como energia, água, esgoto, telefone ou
TV” (Soto, 2001, p.64).
Com tal diagnóstico, De Soto propugna pela inserção social de 80% da
população mundial que se encontra fora do sistema de comércio formal e legalizado,
através, em primeiro lugar, do reconhecimento de direitos de propriedade e, ao depois,
com o respeito ao mesmo.
Alan Greenspan comenta em seu livro, a Era da Turbulência, que, no ano de
2003, recebeu De Soto no FED, e que este lhe apresentou uma proposta “para elevar o
padrão de vida de segmentos significativos dos pobres do mundo” (Greenspan, 2007,
p.245). Asseverou De Soto, em tal oportunidade, que se fosse possível conceder a
propriedade sobre os bens que a maioria das pessoas já detinha a posse, “liberar-se-ia
muita riqueza”.
O montante total de “ativo morto”, i.e., sem expressão econômica e social, foi
estimado em US$ 9 (nove) trilhões. Esse é o valor que corresponde à integralidade dos
174
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
imóveis de posse extralegal dos pobres do Terceiro Mundo e nas nações do extinto
bloco comunista (Soto, 2001, p.47).
De posse de tais dados, nota-se que os países do chamado Terceiro Mundo
carregam alta dose de responsabilidade sobre a situação sócio-econômica de sua
população. Para ilustrar, corriqueiras mostram-se as manifestações dos países em
desenvolvimento contra a globalização, asseverando que os lucros de tal processo são
percebidos, tão-somente, pelos países ricos. Ressalta-se, nessa esteira, que o Presidente
da Tanzânia asseverou, em 2001, que o único benefício que o seu país recebe da
globalização é poder participar da Copa do Mundo. Todavia, ao se analisar a quantidade
de pessoas que exercem qualquer atividade no setor legal desse país, constata-se que o
número é de 2%. Vale dizer, 98% das pessoas atuam na ilegalidade. E como afirma De
Soto, não se pode comerciar a menos que o indivíduo seja capaz de assinar um bill of
lading (conhecimento de embarque) ou operar uma transferência bancária. Para tanto,
requer-se do comerciante, no mínimo, um endereço (Soto, 2006).
Por fim, o homem criou diversas formas de representação ao longo de sua
existência, com o intuito de compreender com a mente aquilo que, com as mãos, não se
consegue tocar. Nesse sentido, o direito de propriedade, segundo todas as funções que
exerce, não pode ser visto apenas em sua perspectiva estática, isto é, a dimensão que
expressa, tão-somente, a posse direta de um bem. Mas, ao reverso, a propriedade é
poderosa ferramenta que, principalmente por seus invisíveis atributos, capacita-se para
tornar os ativos, comercial e financeiramente, visíveis, retirando-lhes a condição de
subcapitalizados.
Após a análise e constatação da importância dos direitos de propriedade formal
e legalmente reconhecidos, passa-se a expor a relevância assumida pelas instituições no
desenvolvimento econômico de um país; instituições as quais os direitos de propriedade
compõem.
III
-
INSTITUIÇÕES
FORTES:
A
ADEQUADA
ESTRUTURA
DE
INCENTIVOS À ATIVIDADE PRODUTIVA
Com a introdução da propriedade privada, resulta elucidado quem é
proprietário do que. A alocação dos recursos à produção, o que é incentivado com a
proteção pelos direitos de propriedade, faz com que o bem-estar da população resulte
175
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
mais elevado do que quando, concomitantemente, ocorre a dissipação da renda (retirada
de recursos da produção). “Em especial, a formalização da propriedade privada e a sua
defesa pelo Estado permitem que, em vez de gastar parte do seu tempo defendendo o
que possuem, as pessoas podem se concentrar inteiramente em produzir e gerar renda”
(Pinheiro e Saddi, 2005, p. 95).
Por exemplo, Harold Demsetz, em um artigo seminal intitulado Toward a
theory of property rights refere uma experiência com índios no Canadá. Aduz a
existência de duas áreas, uma em que existiam direitos de propriedade e outra em que
tais eram ausentes. O resultado percebido foi o de que na área que foram assinalados
direitos de propriedade, os recursos eram mais bem explorados. Mais recentemente,
Douglass North, ganhador do Prêmio Nobel, em 1993, refere que as instituições de um
país são um fator mais importante para o desenvolvimento do que as riquezas naturais, o
clima favorável ou a agricultura. Afirma North que “as instituições são as regras do
jogo, tanto as formais quanto as informais e também as suas características de eficácia.
Juntas, definem a forma em que o jogo deve ser jogado (...)” (North, 2000). Em assim
sendo, as leis compõem as instituições e não há direitos de propriedade sem lei que os
protejam (North, 2004, p. 361).6
Como já referido supra, a previsão e a proteção dos direitos de propriedade têm
o condão de promover a eficiência produtiva. Aliás, Cooter e Ullen asseveram que o
regime de propriedade privada é criado visando a encorajar a produção, desincentivar o
roubo e reduzir os custos de proteger os bens (Cooter e Ulen, 2000, p.77).7
Nesse sentido, direitos de propriedade claramente assinalados fazem diminuir o
montante de externalidade gerado. A externalidade é um conceito econômico. Define-se
como a geração de um benefício (externalidade positiva) ou a causação de um dano
(externalidade negativa) em que o proveito (adveniente do benefício gerado) não é
usufruído por quem o gerou e o custo (decorrente de um dano) não é suportado por
quem o causou. Tratando-se de custos, quando não há a definição hialina dos direitos de
propriedade, aquele agente que causa o dano não leva em conta, ao agir (seja produtor
ou consumidor), os custos deste dano advenientes. E se não recair sobre o ofensor a
responsabilidade pelo dano causado não haverá incentivos para que o reduza. Dessa
forma, o nível de externalidade negativa gerado estará sempre acima de um ponto
ótimo, sendo o dano causado e ninguém pelo mesmo responsabilizado. Em assim sendo,
176
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
uma função da propriedade, que é a de satisfazer o princípio da reparação, não será
atendida caso os diretos de propriedade não sejam claramente definidos.
Além disso, cabe notar que a propriedade faz recair sobre o seu titular todos os
benefícios e os custos dela advenientes. Vale dizer, as externalidades, com a
propriedade, são internalizadas. Isso porque ao fazer parte do sistema formal de
propriedade, os indivíduos tornam-se individualmente responsabilizados e, então,
“pessoas que não pagam por serviços e bens que consumiram podem ser identificadas,
cobradas com juros, multadas, embargadas e ter suas taxas de crédito aumentadas”
(Soto, 2001, p.79).
Assim, tem-se que a propriedade exerce outras funções para além de, tãosomente, proteger a posse, como a de conferir segurança às transações, o que gera um
incentivo aos cidadãos no sentido de “respeitarem títulos, honrarem contratos e
obedecerem à lei” (Soto, 2001, p.79). Por isso, a assinalação objetiva da propriedade
tende a fazer com que o seu titular dê a melhor destinação àquilo que titulariza,
maximizando a sua utilidade, vez que preferirá mais gozar dos seus benefícios do que
suportar os seus custos.8 E a internalização é perfeita quando todos os custos e
benefícios entram no processo de tomada de decisão do titular da atividade que os gera.
Definir claramente direitos de propriedade tem por conseqüência promover esta
internalização.
Todavia, um regime puro de propriedade privada, no qual o direito de
propriedade é absoluto, jamais tomou assento na história da humanidade. Desde os
romanos, a propriedade é composta por um conjunto limitado de direitos. Assim,
restrições acerca do que um indivíduo pode ou não fazer com sua propriedade são
comuns em todos os sistemas jurídicos. Entretanto, as variações destas restrições
resultam em diferentes efeitos no desenvolvimento institucional e econômico de um
país.
É imbuído desse espírito que se passará à análise da função social da
propriedade.
IV - A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO SOCIAL NO BRASIL
As formulações do mundo jurídico não são circunscritas às suas fronteiras. O
Direito é um indutor de comportamentos. A tal conclusão, pode-se chegar
177
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
intuitivamente. Entretanto, a análise do direito a partir do ferramental da ciência
econômica fornece uma teoria científica capaz de explicar os impactos das formulações
jurídicas no comportamento dos indivíduos (Cooter e Ulen, 2000, p.3).9 O método da
análise econômica do direito (Law and Economics) vale-se dos instrumentos
econômicos para “resolver problemas legais e, inversamente, [predizer] como o direito e
as regras legais exercem impactos sobre a economia e o seu desenvolvimento” (Pinheiro
e Saddi, 2005, p.88).
Os agentes econômicos, ou os “jogadores”, na expressão de North, são seres
que reagem à referida estrutura de incentivos. A forma de jogar desses agentes é o
reflexo das oportunidades oferecidas pela matriz institucional. Dessa forma, se o
ambiente institucional recompensar, por exemplo, a pirataria, agentes econômicos
especializados em reproduzi-la surgirão. Por outro lado, caso as instituições de um país
recompensem a atividade produtiva, os agentes econômicos alocarão recursos e energia
à consecução da produção (Pinheiro e Saddi, 2005, p.88).
Como visto, as regras jurídicas compõem as instituições. Isso significa que se o
ordenamento jurídico emitir sinais de que não protegerá os direitos de propriedade, o
resultado será a dissipação de rendas através da competição entre os agentes
econômicos para se apropriarem (mais do que produzirem) dos escassos recursos
existentes.
Assim, para além de um ordenamento jurídico prever os direitos de
propriedade (law on the books), a prática jurídica deve esforçar-se para fazê-los válidos
(law in action). Um método para tanto se constitui na observação das conseqüências das
decisões judiciais, levando em conta os sinais que o subsistema jurídico envia aos
demais subsistemas sociais, principalmente o econômico (Carvalho, 2005, p. 100).
Com isso, cabe analisar as conseqüências sócio-econômicas de um
ordenamento jurídico que optou por conter cláusulas genéricas, como demonstra ser a
função social (Gama, 2007, p.19).10
A noção de função social emerge em contraposição à concepção individualista
e liberal do direito de propriedade (Tepedino e Schreiber, 2005, p. 102). Trata-se do
modelo solidarista de direito privado, cuja gênese, como já explicamos em outra
39
ocasião (Timm, 2006), encontra-se na sociologia de Durkheim. Acentuada influência
para o surgimento de tal noção, a doutrina social da Igreja Católica, por meio das
Encíclicas Rerum Novarum (do Papa Leão XIII), Quadragésimo Ano (do Papa Pio
178
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
XI), La Solemita e Oggi (do Papa Pio XII), Mager et Magistra (do Papa João XIII) e
Populorum Progressio (do Papa Paulo VI), propugnava pela harmonização entre os
interesses individuais e os anseios coletivos, chegando a asseverar que, sobre a
propriedade, deveria incidir uma espécie de hipoteca social, com os bens materiais
bastando apenas para o suprimento das necessidades básicas dos indivíduos, indo de
encontro ao fato de que estes pudessem valer-se do excedente em detrimento daqueles
que nada detinham (Gama, 2007, pp.5 e 6).
Em assim sendo, no proprietário não se reconhecia o titular de direito
subjetivo, mas, ao reverso, “o detentor da riqueza, mero administrador da coisa que
deveria ser socialmente útil” (Fornerolli, 2004, p. 200).
Já no século XIX, a concepção da função social era desenvolvida “pelas obras
socialistas e anarquistas da Europa Industrializada” (Gama, 2007, p.18), mas ganhou
status constitucional, tão-somente, com a edição da Constituição mexicana, de 1917 e,
ao depois, com a Constituição alemã, de 1919, a Constituição de Weimar, sendo estas
duas Cartas consideras o berço do Estado Social.
No Século XX, com o final da Primeira Grande Guerra, o Estado passa a ser
mais intervencionista, haja vista as mazelas trazidas pelo conflito. Da posição de
instrutor das regras do jogo, o Estado passa a ser jogador, atuando diretamente no
desenvolvimento econômico. Em razão, por exemplo, dos problemas habitacionais
advindos do referido confronto, as leis locatícias passam a favorecer os locatários. O
mesmo se dá com os empregados, em vista do problema de desemprego enfrentado,
principalmente, pelos países derrotados.
Assim, novas leis sobre acidente de trabalho e responsabilidade civil foram
promulgadas, à margem dos princípios estruturais do Código Civil, “sacrificando o
princípio da liberdade contratual e da responsabilidade civil subjetiva” (Timm, 2006, p.
237).
Após a Primeira Grande Guerra tem-se a elaboração de leis que prevêem o
remédio para casos que necessitam ser imediatamente sanados, ocorrendo aumento da
legislação especial, tanto no concernente ao setor privado, quanto ao setor público,
porquanto o Estado passa a intervir na economia, em prejuízo da sistematicidade do
Código Civil.
Desse modo, em que pese esteja, ainda, no centro do ordenamento jurídico, o
Código Civil vai passando de lei geral a lei residual, vez que a pletora de leis efêmeras
179
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
passam a sustentar as bases legislativas específicas para determinada situação, “as quais
são resultado de ativos grupos intermediários que pressionam no sentido de formulação
de leis particulares que lhe são
44
favoráveis” deixando para o Código Civil a previsão
geral da matéria. A especificação das leis, “como satélites autônomos procuram regiões
próprias na órbita incontrolada da ordem jurídica, (...) formando-se microssistemas
legislativos apartado do macrossistema do Código Civil”.11
A descodificação propriamente dita surge em diferentes países e em
discrepantes momentos, na medida em que vão caindo as potências militares totalitárias.
Sempre que há a mudança de regime, há a inauguração de uma nova ordem
jurídica. Pois, as ordens jurídicas pós-segunda guerra mundial, erigiram-se com a
Constituição garantidora dos direitos sociais no centro do ordenamento jurídico. É nesse
sentido que se fala em descodificação, para apontar a relativização do Código Civil,
submetendo os seus princípios aos princípios constitucionais, mais protetores, mais
interventores, menos individualistas, mais sociais.
No Brasil, após a Constituição de 1934, diversas leis especiais foram editadas
em conformidade com a concepção social da propriedade, subjugando a matéria
principiológica do então Código Civil, de 1916, como, por exemplo, o Estatuto da Terra
(1964), o Estatuto da Mulher (1962), a Lei do Inquilinato (1979/1991), a alienação
fiduciária em garantia (DL 911/69).12
No texto constitucional de 1946, no Brasil, a noção de propriedade resultou
vinculada ao bem-estar social, objetivando a sua justa distribuição em igualdade de
condições para todos. Na Carta de 1967, a função social foi erigida à categoria de
princípio da ordem econômica e social (Tepedino e Schreiber, 2005, p. 103).
Quanto à Constituição Federal de 1988, corriqueiro é o entendimento de que
nela está previsto, no inciso XII, de seu artigo 5º, o direito à propriedade, mas que, no
inciso imediatamente posterior, previsto está que a propriedade atenderá a sua função
social. A partir disso, declinam-se ilações do tipo que à propriedade o ordenamento
brasileiro não confere proteção, senão quando imbuída de sua função social. Vale dizer,
ou a propriedade cumpre a sua função social ou não é protegida.13 É aquela típica idéia
solidarista de Duguit de que a propriedade caracteriza dever e não direitos.
Ainda que não se concorde integralmente com a precisão dessas afirmativas
postas, é importante, então, questionar o que se entende por função social.
180
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Com efeito, preencher o conteúdo de tal cláusula genérica é tarefa árdua. A
propagação do entendimento de que o princípio da função social deve ser observado
alerta para a forma, mas descura do seu conteúdo. Ou seja, propugna-se por sua
aplicação imediata, fornecendo-se as eventuais bases propícias para tanto, mas não se
queda demonstrado o que, de fato, vem a ser a função social da propriedade e quando
realmente a coletividade aumenta o seu bem-estar no julgamento de um determinado
“caso concreto”.
Nesse sentido:
O efetivo controle desta conformidade somente pode ser feito em concreto,
pelo Poder Judiciário, no exame dos conflitos que se estabelecem entre os
interesses proprietários e aqueles não-proprietários. Os tribunais brasileiros
têm desempenhado seu papel, como se vê das decisões mais recentes (...)
(Tepedino e Schreiber, 2005, p.107).
E se a doutrina civil e constitucional mostra-se franca àquela interpretação
restritiva da propriedade individual em nome do “interesse coletivo”, a posição judicial
não parece ir em sentido diferente.
Veja-se, ilustrativamente, porque paradigmático, o julgamento de um órgão
fracionário do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, cuja ementa segue
transcrita:
AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO ATACADA: LIMINAR QUE
CONCEDEU
A
ARRENDATÁRIO
REINTEGRAÇÃO
EM
DE
DETRIMENTO
POSSE
DOS
DA
"SEM
EMPRESA
TERRA".
(...).RECURSO CONHECIDO, MESMO QUE DESCUMPRINDO O
DISPOSTO NO ART-526 CPC, FACE DISSÍDIO JURISPRUDENCIAL A
RESPEITO
E
PORQUE
DEMANDA
VERSA
DIREITOS
FUNDAMENTAIS. GARANTIA A BENS FUNDAMENTAIS COM
MÍNIMO SOCIAL. PREVALÊNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
DAS 600 FAMÍLIAS ACAMPADAS EM DETRIMENTO DO DIREITO
PURAMENTE PATRIMONIAL DE UMA EMPRESA. PROPRIEDADE:
GARANTIA DE AGASALHO, CASA E REFUGIO DO CIDADÃO.
INOBSTANTE SER PRODUTIVA A ÁREA, NÃO CUMPRE ELA SUA
FUNÇÃO SOCIAL, CIRCUNSTANCIA ESTA DEMONSTRADA
PELOS DÉBITOS FISCAIS QUE A EMPRESA PROPRIETÁRIA
TEM PERANTE A UNIÃO. IMÓVEL PENHORADO AO INSS.
CONSIDERAÇÕES SOBRE OS CONFLITOS SOCIAIS E O JUDICIÁRIO.
DOUTRINA LOCAL E ESTRANGEIRA. CONHECIDO, POR MAIORIA;
REJEITADA
A
PRELIMINAR
DE
INCOMPETÊNCIA,
A
181
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
UNANIMIDADE; PROVERAM O AGRAVO POR MAIORIA. (Agravo de
Instrumento Nº 598360402, Décima Nona Câmara Cível, Tribunal de Justiça
do RS, Relator: Elba Aparecida Nicolli Bastos, Julgado em 06/10/1998).
(grifo)
Trata-se do caso da Fazenda Primavera, uma área de terra produtiva no Estado
do Rio Grande do Sul que resultou invadida por 600 famílias integrantes do Movimento
dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST). A companhia arrendatária da terra
ingressou com ação de reintegração de posse e teve deferido o pedido para a concessão
de medida liminar. Contra esta decisão, os réus interpuseram o aludido Agravo de
Instrumento, cuja ementa transcreveu-se acima.
Do corpo dessa decisão que proveu o recurso interposto, reformando a decisão
de 1º Grau que concedera, liminarmente, a reintegração judicial na posse, extrai-se que
o Tribunal sopesou, de um lado, o dano inevitavelmente causado à propriedade,
adveniente da ocupação da terra e, de outro, a negativa de vigência aos direitos
fundamentais, referido como o mínimo social, das 600 famílias sem-terra que, sendo
daquele local removidas, não teriam para onde ir.
Dessa forma, resultou decidido que sendo necessário sacrificar um dos dois
aludidos direitos, que fosse, então, o direito patrimonial, para que vicejassem os direitos
fundamentais.
Cabe ressaltar, por oportuno, que a propriedade invadida não sofrera mediação
do INCRA, não tendo atestado de improdutividade, sendo, portanto, supostamente
produtiva. Aliás, na própria decisão há referência à produtividade da área em questão.14
Além da incerteza gerada por uma decisão como a referida, e conforme já
exposto na primeira parte do presente artigo, tal entendimento tem por conseqüência
prática a diluição do direito de propriedade do titular do imóvel, que ficará sem acesso à
sua terra por anos a fio, enquanto durar o julgamento do mérito de sua ação possessória.
Com efeito, em que pese ao proprietário esbulhado poder ser reconhecido, ao final de
um processo, o seu direito de propriedade, tem-se que, durante este tempo, a utilização
da propriedade pode resultar inviabilizada, interrompendo-se, assim, a atividade
produtiva, ocasionando uma espécie de desapropriação às avessas. Imagine-se o quanto
não desvaloriza o imóvel por conta da depreciação nesse período?
Não bastasse isso, tal situação caracterizar-se-ia por gerar elevado custo de
oportunidade. Por custo de oportunidade entende-se o custo econômico decorrente da
não alocação de recursos, tempo e energia em possível atividade alternativa à escolhida
182
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
para o emprego de tais fatores (Cooter e Ulen, 2000, p.30). Vale dizer, ao se realizar
uma determinada atividade, abre-se mão de outra, e, então, no verdadeiro custo da
atividade escolhida deve-se computar aquilo que se deixou de ganhar ao preterir a
atividade alternativa.
Essa noção apresenta-se de forma mais pungente ao se tomar conhecimento de
que, no Brasil, o total de recursos gastos com segurança alcança o montante de R$ 92
bilhões por ano, ou seja, 5% do seu PIB.15 Conforme já dito aqui, tais recursos geram
ineficiência, vez que ao invés de serem destinados à atividade produtiva, dissipa-se
renda, em primeiro lugar, na tentativa de realizar a apropriação indevida (invasores) e,
em segundo lugar, na tentativa de evitá-la (proprietários).
Com efeito, não se considere que uma decisão como a proferida pelo Tribunal
do Rio Grande do Sul seja isolada. O aspecto problemático desse modelo “social” ou
“solidarista”, como vem sendo denominado, é o alto risco da politização do Direito ou,
na linguagem de Luhmann (Luhmann, 1988, p.244) - e, talvez, também, na de Weber 16
e na de Parsons17 -, a tentativa da dominação da racionalidade jurídica pela
racionalidade política. Assim, o sistema jurídico, que possui a sua própria linguagem, o
seu próprio código binário (legal - ilegal), resulta contaminado pela linguagem política,
pelo código da política (poder - não poder), e, até mesmo, pela racionalidade política.
Tal “politização” do sistema jurídico ultrapassa os muros da Academia, devido
à predominância dos círculos acadêmicos sobre os mesmos (Engelmann, 2006). Nesse
sentido, um estudo desenvolvido por Armando Castelar Pinheiro demonstra que mais de
70% dos juízes que responderam à pesquisa preferiam fazer “justiça social” a aplicar a
letra fria dos artigos de lei e dos contratos (Pinheiro, 2005, p.100).
Em assim sendo, de acordo com esse modelo “solidarista”, a função social da
propriedade significaria a correção do desequilíbrio de poderes vigente na sociedade,
fazer justiça distributiva no âmbito do direito privado, de modo a neutralizar
desigualdades sociais, desconsiderando as conseqüências causadas ao sistema
econômico.
O corolário do subjetivismo, na hermenêutica de cláusulas genéricas, é a
incerteza jurídica, que se queda prejudicada e potencializada por um sistema processual
caótico, que não dispõe de suficientes mecanismos de uniformização jurisprudencial,
conduzindo o juiz ao extremo de sua liberdade de decidir, ainda que isso colida com o
interesse da maioria, em termos de previsibilidade.
183
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
Alan Greenspan afirma que “as pessoas, em geral, não se esforçarão para
acumular o capital necessário ao desenvolvimento econômico se não tiverem certeza de
sua propriedade.” (Greesnpan, 2007, p.243). À mesma conclusão chega a literatura
especializada de Law and Economics.18
Nesse sentido, a utilização econômica da área invadida, no caso acima referido,
não seria capaz de trazer benefícios substanciais aos seus ocupantes, vez que se
quedariam desincentivados à empregar esforços na atividade produtiva, por algumas
razões, tais como:19
(iv) Segundo o Relatório Doing Business 2008, do Banco Mundial, a terra e as
edificações são responsáveis por ½ a ¾ da riqueza gerada na maioria das
economias. Com títulos de propriedade, os indivíduos podem obter
financiamentos bancários, até mesmo porque a terra é o colateral preferido
dos bancos na realização de tais operações. Contudo, para tanto, deve-se ter
um título legalmente constituído de propriedade;
(v) No mesmo Relatório, refere-se que, no Brasil, são necessários 14
procedimentos para se registrar a propriedade, sendo apontado como um
dos países que mais regulam o ato de formalizar esse direito;
(vi) Se as famílias que tiveram o direito de invadir reconhecido não tiverem
delimitados, definidos e registrados o direito de propriedade, estar-se-á
diante de um caso de posse coletiva, na qual, pelo fato de o indivíduo não
ter certeza de que poderá se apropriar do valor social de seu trabalho, não
empregará esforços na consecução do mesmo. Vale dizer, os indivíduos só
se engajarão em atividades nas quais o benefício delas adveniente supera o
custo despendido para realizá-las.
Portanto, na análise da concretização da função social da propriedade, caberá
ao julgador observar e interpretar o sistema jurídico de fora para dentro, e não de dentro
para... mais dentro ainda. Nesse sentido, Flávia Santinoni propõe o seguinte
questionamento: “Quando os juízes irão se dar conta de que as suas decisões causam um
grande impacto para além das partes envolvidas na disputa, causando desincentivos à
produção ou incentivos à desordem ou novas invasões?”(Santinoni, 2006, p.9). Vale
dizer, uma decisão judicial em um caso concreto emitirá uma orientação a outros
agentes econômicos que se encontram na mesma situação das partes envolvidas no
litígio. Trata-se dos efeitos de segunda ordem das regras jurídicas.20
184
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
A fixação da propriedade como ativo capaz de ser convertido em capital é
mecanismo hábil para incluir os 4 bilhões de habitantes do mundo que se encontram à
margem do sistema formal e legal de trocas, vale dizer, da economia de mercado,
justamente pelo fato de não gozarem de direitos de propriedade. A inclusão (essa é a
verdadeira função social da propriedade) será de forma mais eficiente ao se conferir
direitos de propriedade àqueles que não os têm, sem radicalmente relativizar, em nome
de objetivos evanescentes, os direitos daqueles que produzem.
Por fim, transformar ativo morto em capital vivo é o mistério do capital (não o
inverso). Tal conversão, os países desenvolvidos conseguem fazer, ao passo que os
países do terceiro mundo e os antigos países comunistas não. Aí está a explicação para o
fato de o capitalismo ter florescido em alguns países e não em outros.
V - UM FUNDAMENTAL DIREITO COMO DIREITO FUNDAMENTAL
Há quem diga que a indelével lição do século XX tenha sido a de que, na
produção de riqueza social, a propriedade privada supera a propriedade coletiva (Cass,
2006, p.88). Hernando De Soto comunga de tal asserção, tanto que pesquisou a razão
pela qual o capitalismo vicejou em alguns países e não em outros, chegando à conclusão
de que a diferença residia na capacidade de os países prósperos converterem ativo
subcapitalizado em capital ativo.
Nesse sentido, tem-se que a fonte precípua para a geração do capital são os
direitos de propriedade privada. De fato, os exemplos históricos, já referidos no presente
trabalho, não deixam dúvidas.
Em que pese a previsão e proteção dos direitos de propriedade ser motivo de
controvérsia,21 principalmente entre os países nos quais a maior parte da população
encontra-se excluída do sistema formal e legalizado de trocas, e, via de conseqüência,
resultar flexibilizado (Fornerolli, 2004, p.200) em nome da consecução de pretensos
direitos fundamentais ao mesmo superiores, tem-se que o direito de propriedade é um
direito fundamental e, ainda, este direito tem o condão de promover outros direitos
igualmente fundamentais.
Com efeito, para além de o direito de propriedade ser um fundamental direito,
é formalmente reconhecido e previsto como um direito fundamental. Na Declaração
Universal dos Direitos Humanos, adotada pelas Nações Unidas, em 1948, está expresso,
185
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
em seu artigo 17, que “Toda pessoa, individual ou colectivamente, tem direito à
propriedade”. Outrossim, no mesmo artigo 17, mas em sua cláusula segunda, enuncia-se
que “Ninguém pode ser arbitrariamente privado da sua propriedade”.
Diante disso, percebe-se que a flexibilização do direito de propriedade em
nome de qualquer outro direito fundamental, merece minuciosa análise, vez que se
estará diante de duas garantias fundamentais, e a preferência por uma em detrimento da
outra exige sólida fundamentação.
Ademais, dotar um cidadão de direito de propriedade, para além das vantagens
supracitadas, permite-se a ele escolher, por exemplo, com base no sistema de preços, o
arranjo alocativo mais eficiente para ser empregado em sua atividade produtiva (Cass,
2006, p.88). Isso satisfaz um outro direito fundamental, a saber, a liberdade de escolha.
Então, ter-se-ia que a liberdade é corolário da propriedade. Aliás, é o que está dito no
artigo 6, da Convenção Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,
verbis:
“[each signatory nation] to recognize the right to work, which includes the
right of everyone to the opportunity to gain his living by work which he
freely chooses.”
Ora, não permitir que a pessoa que emprega recursos, tempo e energia em sua
atividade produtiva apodere-se dos frutos de seu próprio trabalho, constitu-se flagrante
negativa de vigência à própria dignidade do ser humano.
Referiu-se acima que, no Peru, no final da década de 90 do século XX, se
constatou situação na qual as residências cujos moradores tinham reconhecido o direito
de propriedade sobre a mesma, apresentavam o dobro de renda em comparação aos
moradores desprovidos de registro formal de propriedade sobre as suas terras. Logo
adiante, destacou-se que nas famílias com maior renda (não por acaso, titulares de
propridade reconhecida) o número de crianças que frequentava a escola era 28%
superior ao número de crianças que regularmente estudavam nas famílias que não
detinham direitos de propriedade (Soto, 2004).
Isso está diretamente conectado ao direito fundamental da criança estudar, ao
invés de ter de trabalhar, elevando consideravelmente a sua qualidade de vida. Além
disso, cabe notar que a segurança advinda do registro da propriedade e, por conseguinte,
da defesa da mesma, incentiva o seu titular a alocar mais recursos em sua atividade
produtiva, não sendo forçado a dissipar renda na atividade apropriadora, aumentando a
186
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
eficiência na produção e, dessa forma, potencializando a geração de riqueza.22 Uma
sociedade que não produz riqueza não é capaz de distribuir renda.
VI – CONCLUSÃO
Paradoxalmente, a função social da propriedade em um sistema de mercado
não diverge muito, em uma perspectiva de análise econômica do Direito, da função
privada. É protegendo e não relativizando a propriedade que há ganho de bem-estar
social. Por certo, podem existir exageros, mas para isso existe a função corretiva do
instituto do abuso de direito (cujo remédio jurídico é, tipicamente, perdas e danos e não
desapropriação às avessas).
Estudos de Hernando de Soto sugerem que a universalização dos direitos
individuais de propriedade teriam efeito multiplicador de renda muito superior a outras
alternativas de flexibilização da mesma, apontando, nesse sentido, que a disrepância, em
termos de riqueza, entre os países desenvolvidos e os países em desenvolvimento, tem
na capacidade daqueles em realizar, de modo eficiente, a conversão do ativo
subcaptilizado em capital ativo, a sua causa precípua.
A literatura de análise econômica parece confrontar as lições da communis
opinio doctorum de que o enfraquecimento da proteção da propriedade aumentará a
justiça social. É possível esperarmos o contrário, caso as decisões como a do TJRS
prosperem e conformem as expectativas dos agentes econômicos, tornando os custos de
monitoração e segurança impagáveis.
NOTAS
1
por capital entende-se a representação das potencialidades que um bem deve possuir, capacitando-o para
ser objeto de troca em uma economia de mercado. Nesse sentido, um bem que se encontra na
extralegalidade, somente portará a característica de ser um bem físico (um ativo morto, na expressão de
Hernando de Soto), subcapitalizado. Ao reverso, um bem que reúne condições de ser objeto de troca, por
estar devidamente registrado, assume uma dimensão dinâmica (invisível,mas profícua), em oposição à
mera situação física, estática. Assim, um bem pode ser usado como colateral em empréstimos bancários,
ser terminal de recebimento de serviços públicos (água, luz, telefone, TV, Internet), servir para
integralizar quotas ou ações em sociedade empresárias, ser fonte de tributos, etc. Vale dizer, com as
palavras De Soto: “o capital é a fonte que aumenta a produtividade e gera a riqueza das nações” (De soto,
2001, p. 19).
187
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
2
Parte I
Ver, também, RICHEL, Richard. Germany’s Postwar Growth: Economic Miracle or Reconstruction
Boom?,
em
Cato
Journal,
vol
21,
n.
3,
p.
440,
disponível
em
http://www.cato.org/pubs/journal/cj21n3/cj21n3-5.pdf
3
Alan Greenspan refere que “quando a China concedeu formas altamente diluídas de propriedade aos
residentes de áreas rurais que cultivavam lotes petencentes à comunidade, a produtividade agrícola e os
padrões de vida ostentaram aumentos substanciais”, em GREENSPAN, op.cit..p. 243.
4
Por esse motivo, de acordo com o gráfico apresentado, os indivíduos jamais chegariam ao nível PII de
produção, embora seja este o nível necessário para o atendimento das necessidades.
5
Essa conclusão foi referida por De Soto no International Development Seminar.The Hudson Institute,
2004.
6
O mesmo autor, Douglass North, assevera que as instituições são a estrutura de incentivos de uma
economia, vale dizer, as organizações que brotam em uma economia são o reflexo das oportunidades
conferidas pelas instituições. Nesse sentido, se as instituições incentivam a apropriação, os indivíduos e
organizações alocarão recursos para a apropriação. De outro lado, se as instituições lançam incentivos no
sentido da produção, os indivíduos alocarão os recursos na atividade produtiva, in NORTH, Douglass C.
Economic Performance Through Time, in The American Economic Review, Vol 84, No. 3, (Jun, 1994),
p. 361.
7
“To encourage production, discourage theft, and reduce the costs of protecting goods”, em COOTER,
Robert e ULEN, Thomas. Law and Economics. Addison Wesley, 3ª Ed, 2000, p.77.
8
A concentração de custos e benefícios na pessoa do titular dos direitos de propriedade cria um incentivo
para que utilize os recursos com maior eficiência, in DEMSTZ, Harold. Toward a Theory of Property
Rights, The American Economic Review, vol. 57, No. 2, Papers and Proceedings of the Seventy-ninth
Annual Meeting of the American Economic Association, May, 1967 p. 356. Ainda, se sobre o titular
recaem todos os custos e benefícios de ser proprietário, então, tentará alocar os recursos da forma que
maximize estes, reduzindo àqueles ao mínimo possível, cf SZTAJN, Rachel, ZYLERSZTAJN, Décio e
MUELLER, Bernardo. Economia dos Direitos de Propriedade, parte II, in ZYLBERSZTAJN, Décio;
SZTAJN, Rachel. Direito e economia: análise econômica do direito e das organizações. 1 ed. Rio de
Janeiro: Elsevier, 2005. p. 95
9
COOTER e ULEN asseveram que as sanções jurídicas equivalem aos preços e que as pessoas respondem
àqueles da mesma forma que reagem a estes. Isto é, quando os preços estão elevados, as pessoas reagem a
tal situação consumindo menos dos bens mais caros e, igualmente, as pessoas realizam menos as condutas
mais severamente sancionadas, in COOTER and ULEN, op. cit. p.3.
10
“(...) por si só, a expressão em destaque não apresenta alto nível semântico. Dessa maneira, ela pôde ser
utilizada por diversas teorias econômicas para justificar inumeráveis ações estatais limitadoras das
liberdades individuais”. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira Gama e CIDAD, Felipe Germano
Cacicedo, in GAMA, Guilherme Calmon Nogueira (org). Função Social no Direito Privado e
Constituição. São Paulo: Atlas, 2007, p. 19.
11
“Esta leitura leva-nos a constatar que a propriedade saiu das raízes do direito civil, mas que atualmente
encontra uma teia de normas (administrativa, consumerista, comercial, tributária etc.) que açambarca e
188
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
tem por fundamento as premissas insculpidas na Constituição Federal. Positivou-se, assim, um novo
regime jurídico para o entendimento do instituto da propriedade.” FORNEROLLI. Op. Cit., p. 203.
12
O Código Civil brasileiro, de 2002, no § 1º, do artigo 1.228, expressamente prevê que a propriedade
deve atender uma função social, verbis: § 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância
com as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o
estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas.
13
“Em outras palavras: não há, no texto constitucional brasileiro, garantia a propriedade, mas tão-
somente, garantia à propriedade que cumpre a sua função social”. (...) “A garantia da propriedade não tem
incidência, portanto, nos casos em que a propriedade não atenda a sua função social, não se conforme aos
interesses sociais relevantes cujo atendimento representa o próprio título de atribuição de poderes ao
titular do domínio.” Idem., p. 105. FORNEROLLI afirma que “Contudo, instalou no inc. XXIII um inciso
após a garantia da propriedade, a intenção socializante de que a propriedade deverá atender a sua função
social”, em FORNEROLLI, Luiz Antonio Zanini, op. cit., p. 203. No mesmo sentido, BOHEN FILHO,
Alberto. Cidade, propriedade e o novo paradigma urbano no Brasil. Revista Jurídica da Universidade de
Franca, 2005. HAJEL, Flavia Nassif. A função social da propriedade no código civil. Revista Jurídica
da Universidade de Franca, 2004; MARQUES, Benedito Pereira. Justiça agrária, cidadania e inclusão
social. Procuradoria-Geral da Justiça Militar, 2005; SALLES, Venicio Antonio de Paula. O direito de
propriedade em face do novo código civil. Revista do Tribunal Regional Federal, 2004; TEIZEN
JUNIOR, Augusto Geraldo. A função social no código civil. Revista dos Tribunais, 2004; TEPEDINO,
Gustavo José Mendes. Contornos constitucionais da propriedade privada. Revista Dialétic de Direito
Processual, 2004.
14
“Inobstante ser produtiva a área, não cumpre ela a sua função social (...)”.
15
GASPAR, Antônio. Brasil gasta R$ 92 bilhões com segurança. Reportagem para o Website Terra.
Notícia
veiculada
em
30/05/2008,
disponível
em
http://invertia.terra.com.br/sustentabilidade/interna/0,,OI2919101-EI10425,00.html.
16
Para leitura mais aprofundada deste tópico, que excede o propósito do presente artigo, ver WEBER,
Max. Economia e Sociedade. V.2. Brasília, Editora UnB, 1999, p. 1-153; FREUND, J.
La
rationalisation du droit selon Max Weber, in Archives de Philosophie du Droit, v. 23, 1968, p. 69 e ss.
17
O complexo sistema social ativo parsoniano aparece em PARSONS, Talcott. O sistema das sociedades
modernas. São Paulo, Editora Pioneira, p. 15 e ss.
18
Ver, nesse sentido, DEMSTZ, Harold. Toward a Theory of Property Rights, The American Economic
Review, vol. 57, No. 2, Papers and Proceedings of the Seventy-ninth Annual Meeting of the American
Economic Association, May, 1967.; ZYLBERSZTAJN, Decio e SZTAJN, Rachel. (Organizadores).
Direito e Economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005.; NORTH, Douglass C. Custos de Transação,
Instituições e Desempenho Econômico.Traduzido por Elizabete Harth. 3ª ed. Instituto Liberal: Rio de
Janeiro, 2006.; BARZEL, Yoram. Economic analisys of property rights. Cambridge: Cambridge
University Press, 2007.; SHAVELL, Steven. Foundations of Economic Analysis of Law. Belknap Press,
2004.
19
Todas as razões mencionadas resultam do exposto nas seções anteriores deste artigo.
189
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte I
20
Efeitos de segunda ordem
21
Ver introdução supra.
22
“O propósito fundamental dos direitos de propriedade, bem como a sua principal realização, é que
eliminam a concorrência destrutiva pelo controle de recursos econômicos. Direitos de propriedade bem
definidos e protegidos substituem a concorrência através da violência pela concorrência por meios
pacíficos”. KOGAN, Lawrence. Rediscovering the Value of Intellectual Property Rights H ow Brazil‘s
Recognition and Protection of Foreign IPRs Can Stimulate Domestic Innovation and Generate
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GRÁFICO – FIGURA 1
Figura 1. Produção vs. Apropriação
$
Cmg
CMg=BMg
Bmg
0
P
PII
Q
192
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
PARTE II
PROPRIEDADE E
MEIO AMBIENTE
193
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL: um novo paradigma para o século XXI
José Rubens Morato Leite1
Maria Leonor Paes Cavalcanti Ferreira2
SUMÁRIO
Introdução. 1. A proteção do meio ambiente no ordenamento brasileiro: uma breve
análise de sua evolução. 2. Estado Democrático de Direito Ambiental. 2.1. Conceito e
características. 2.2. Funções do Estado de Direito Ambiental. 2.3. Direito fundamental
ao meio ambiente no Estado de Direito Ambiental brasileiro. Considerações finais.
Introdução
O presente artigo discute a necessidade de concretização de um Estado de
Direito Ambiental diante da complexidade dos danos ambientais da sociedade
contemporânea e de risco, cujas lesões são primordialmente difusas, incertas, de difícil
comprovação do nexo causal e de reparabilidade peculiar, considerando-se as
características do sistema ecológico3.
1
Pós-Doutor de Direito Ambiental. Professor Adjunto de Direito Ambiental e Constitucional Ambiental
dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC,
Visiting Fellow at Macquarie University, Centre for Environmental Law, Sydney, Austrália. Diretor do
Instituto O Direito por um Planeta Verde. Coordenador do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e
Ecologia Política na Sociedade de Risco, cadastrado no CNPq. Autor de vários livros e artigos na área,
entre eles: Direito ambiental na sociedade de risco, 2. ed., Forense Universitária; Dano ambiental: do
individual ao coletivo extrapatrimonial, 2. ed., Revista dos Tribunais, e Organizador de Os novos
direitos no Brasil: natureza e perspectiva, Saraiva.
2
Mestranda em Direito, Estado e Sociedade. Subárea Direito e Meio Ambiente, pela Universidade
Federal de Santa Catarina. Membro do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental e Ecologia Política na
Sociedade de Risco, cadastrado no CNPq
3
De acordo com o sociólogo Ulrich Beck, vive-se, atualmente, numa sociedade de risco, na qual os riscos
sociais, políticos, ecológicos e individuais tornaram-se incalculáveis e seus efeitos passaram a ser
imprevisíveis, escapando cada vez mais das instituições de controle e proteção da sociedade industrial.
BECK, Ulrich. Risk Society and the Provident State. In: LASH, Scott; SZERSZYNSKI, Bronislaw;
WYNNE, Brian (orgs.). Risk, environment & modernity: towards a new ecology. Londres: Sage
Publications, 1998. p. 27.
194
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Inicialmente, a fim de se atingir o objetivo pretendido, examinar-se-á como a
proteção do meio ambiente tem sido positivada no ordenamento jurídico brasileiro. Essa
análise culminará com o estudo da Constituição da República Federativa do Brasil,
publicada em 5 de outubro de 1988, por ser este o documento que efetivamente
desenhou um modelo de Estado de Direito Ambiental ao adotar princípios como o da
precaução, por exemplo, e ao proteger o meio ambiente não apenas em virtude de sua
utilidade para a espécie humana4.
Em seguida, far-se-á um estudo do conceito, características e funções desse
Estado, uma vez que se entende ser este o paradigma a ser seguido a fim de se garantir
um ambiente ecologicamente equilibrado às presentes e futuras gerações, como
determina a Constituição Federal de 19885.
Diante dos grandes desafios que se impõem ao homem no sentido de se
resguardar um bem que é essencial à sadia qualidade de vida, o Estado de Direito
Ambiental, embora se trate apenas de uma proposta constitucionalmente positivada,
serve de parâmetro a ser seguido. Obviamente que o desafio maior é a realização no
plano fático dos postulados teórico-jurídicos desse modelo de Estado. No entanto,
entende-se que a sua discussão já pode ser considerada como um primeiro passo na
busca por transformações mais significativas em termos de proteção ambiental para o
século XXI.
1. A proteção do meio ambiente no ordenamento brasileiro: uma breve análise de
sua evolução
As Ordenações do Reino foram os primeiros corpos normativos que trataram da
proteção jurídica do meio ambiente brasileiro. Tratava-se de uma proteção mais restrita
na medida em que suas proibições tinham como foco um bem ambiental em específico,
desconsiderando-se a necessidade de proteger de maneira mais sistemática o meio
4
A Constituição Federal da República Federativa do Brasil adotou o princípio da precaução de maneira
implícita nos incisos IV e V, do § 1º, do art. 225. Outrossim, entende-se que as normas constitucionais
protegem o meio ambiente independentemente de sua utilidade para o homem ao, por exemplo, nos
termos do inc. VII, também do § 1º, do art. 225, vedar práticas que coloquem em risco a função ecológica
da fauna e da flora, provoquem a extinção das espécies ou submetam os animais à crueldade
5
Estabelece o caput do art. 225, da Constituição da República Federativa do Brasil: “Todos têm direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes
e futuras gerações”.
195
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
ambiente. Assim, as Ordenações Afonsinas, por exemplo, proibiam o corte deliberado
de árvores frutíferas, e as Ordenações Filipinas, por sua vez, protegiam as águas,
punindo com multa quem jogasse material que a sujasse ou viesse a matar os peixes6.
A proteção do meio ambiente no Brasil continuou a ser positivada, mesmo após
a sua independência, de maneira pontual e fragmentada. Assim, diversas foram as
legislações que procuraram proteger os microbens ambientais, desconsiderando a
amplitude e complexidade do macrobem ambiental7, a exemplo da Lei n° 4.771, de 15
de setembro de 1965, que instituiu o novo Código Florestal, preocupando-se de maneira
específica com um determinado bem, no caso as florestas8.
A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, promulgada quase vinte anos
depois do Novo Código Florestal, adotou uma visão mais sistêmica do meio ambiente
ao instituir uma política preocupada em preservar, melhorar e recuperar a qualidade
ambiental propícia à vida9. Com o objetivo de se assegurar uma gestão mais integrada
do meio ambiente, a Lei da Política Nacional do Meio Ambiental dispõe dos seguintes
instrumentos, entre outros: zoneamento ambiental, licenciamento e revisão de atividades
efetiva ou potencialmente poluidoras e o Sistema Nacional de Informações sobre o
Meio Ambiente10.
A Constituição Federal da República Federativa de 1988 adotou, assim como a
Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, dispositivos que protegem o meio ambiente
de maneira integrada e não apenas fragmentada como fizeram as legislações esparsas
ambientais anteriores. Sem dúvidas, o meio ambiente deve ser protegido de maneira
sistêmica, pois ele próprio é um sistema cujas partes são interdependentes.
Impende registrar que tanto a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente quanto
6
FREITAS, Wladimir Passos de. A Constituição Federal e a efetividade das normas ambientais.
2ªedição revista, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, pág. 19.
7
O meio ambiente considerado em sua amplitude (macrobem ambiental) é amplo, de natureza imaterial,
indivisível e difuso. O macrobem ambiental não se confunde com os elementos corpóreos que o integram,
a exemplo da árvore, do solo e dos animais. Esses são os chamados microbens ambientais.
8
O art. 1°, da Lei 4.7771, de 15 de setembro de1965, que instituiu o Novo Código Florestal, dispõe que:
“As florestas existentes no território nacional e as demais formas de vegetação, reconhecidas de utilidade
às terras que revestem, são bens de interesse comum a todos os habitantes do País, exercendo-se os
direitos de propriedade, com as limitações que a legislação em geral e especialmente esta Lei
estabelecem”.
9
A Lei 6.938, conhecida como Lei da Política Nacional do Meio Ambiente, foi promulgada em 31 de
agosto de 1981. Dispõe o art. 2° dessa lei: “A Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a
preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no País,
condições ao desenvolvimento sócio-econômico, aos interesses da segurança nacional e à proteção da
dignidade da vida humana, atendidos os seguintes princípios:[...]”.
10
Conforme o art. 9° da Lei 6.938.
196
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
a Constituição Federal sofreram intensa influência da Conferência de Estocolmo
realizada em 1972, na Suécia. Entre os princípios adotados pela Conferência de
Estocolmo encontram-se: 1) princípio da solidariedade intergeracional, devendo o meio
ambiente ser protegido para as presentes e futuras gerações 11, 2) princípio do uso
racional dos recursos naturais12 e 3) princípio da cooperação entre os Estados com o
objetivo de proteger o meio ambiente13.
Um outro documento que influenciou a Constituição Federal de 1988, em
especial, foi o Relatório denominado Nosso Futuro Comum, também conhecido como
Relatório Brudtland14, publicado em 1987, resultado das preocupações da Organização
das Nações Unidas com a necessidade de se efetivar o desenvolvimento sustentável15.
O documento apresenta um conjunto de recomendações focadas em cooperar
com a solução de problemas supranacionais, tais como a proteção de ecossistemas como
Antártica, oceanos e outros, a eliminação de guerras e a implementação de um programa
de desenvolvimento sustentável pela ONU.
Em virtude da publicação do Relatório Brundtland, a Assembléia Geral das
Nações Unidas decidiu realizar a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente
e Desenvolvimento em 1992, no Rio de Janeiro. Entre os documentos produzidos por
conta dessa Conferência, encontram-se a Convenção sobre Diversidade Biológica e a
11
Princípio 1 : “O homem tem o direito fundamental à liberdade, à igualdade e ao desfrute de condições
de vida adequada em um meio cuja qualidade lhe permite levar uma vida digna e gozar de bem-estar,
tendo a solene obrigação de proteger e melhorar esse meio para as gerações presente e futura. A este
respeito as políticas que promovem ou perpetuam o apartheid, a segregação racial, a discriminação, a
opressão colonial e outras formas de opressão e de dominação estrangeira continuam condenadas e devem
ser eliminadas”
12
Princípio 5: “Os recursos não renováveis da Terra devem ser empregados de maneira a se evitar o
perigo de seu esgotamento e a assegurar a toda a humanidade a participação nos benefícios de tal
emprego”.
13
Princípio 14: “Todos os países, grandes e pequenos, devem ocupar-se com espírito e cooperação e em
pé de igualdade das questões internacionais relativas à proteção e melhoramento do meio ambiente. É
indispensável cooperar para controlar, evitar, reduzir e eliminar eficazmente os efeitos prejudiciais que as
atividades que se realizem em qualquer esfera, possam Ter para o meio ambiente, mediante acordos
multilaterais ou bilaterais, ou por outros meios apropriados, respeitados a soberania e os interesses de
todos os estados”.
14 Note-se que Brundtland é sobrenome da primeira-ministra da Noruega, Gro Harlem Brundtland,
presidente da Comissão Mundial para o Meio Ambiente e o Desenvolvimento – CMMAD -, criada pela
ONU com o propósito de discutir as relações entre meio ambiente e desenvolvimento sustentável, bem
como de propor alternativas para que isso se viabilize.
15
O Relatório Brundtland define a expressão desenvolvimento sustentável como “[...] o desenvolvimento
que satisfaz as necessidades presentes, sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas
próprias necessidades”.
197
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, das quais o Brasil é signatário 16. Essas
convenções apresentam dois elementos significativos no tocante à necessidade de se
garantir que danos transfronteiriços e complexos sejam evitados e reparados, quais
sejam os princípios da cooperação entre os Estados e o da precaução17 .
Pode-se dizer que a partir da década de oitenta as normas adotadas pelo
ordenamento jurídico brasileiro passaram a gerir problemas ambientais de segunda
geração.
Assim como os direitos fundamentais em geral podem ser classificados como
direitos de primeira, segunda, terceira, e até quarta geração 18, também no campo do
direito ambiental é possível se falar em problemas ecológicos de primeira e de segunda
geração19.
No que se refere aos problemas ambientais de primeira geração, as normas
jurídicas objetivam, primordialmente, controlar a poluição e subjetivar o direito ao meio
16
A Convenção sobre Diversidade Biológica foi promulgada pelo Decreto Legislativo n. 2, de 03 de
fevereiro de 1994 e a Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, por sua vez, pelo Decreto nº 2.652,
de 1º de julho de 1998.
17
Nesse sentido, a Convenção da Diversidade Biológica estabelece em seu artigo 5º o princípio da
cooperação. Eis a íntegra do referido dispositivo: “Artigo 5 – Cooperação: Cada Parte Contratante deve,
na medida do possível e conforme o caso, cooperar com outras Partes Contratantes, diretamente ou,
quando apropriado, mediante organizações internacionais competentes, no que respeita a áreas além da
jurisdição nacional e em outros assuntos de mútuo interesse, para a conservação e a utilização sustentável
da diversidade biológica”. Na Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, o princípio da cooperação
apresenta-se de maneira implícita nos seguintes compromissos assumidos pelos Estados signatários: a)
“Transferir recursos tecnológicos e financeiros para países em desenvolvimento além da assistência que já
seja por eles oferecida, e apoiar os esforços desses países no cumprimento de suas obrigações sob a
Convenção” e b) “Ajudar países em desenvolvimento que sejam particularmente vulneráveis aos efeitos
adversos da mudança do clima para fazer frente aos custos de adaptação”. Outrossim, dispõe o princípio 3
da referida Convenção: “As Partes devem adotar medidas de precaução para prever, evitar ou minimizar
as causas da mudança do clima e mitigar seus efeitos negativos. Quando surgirem ameaças de danos
sérios ou irreversíveis, a falta de plena certeza científica não deve ser usada como razão para postergar
essas medidas, levando em conta que as políticas e medidas adotadas para enfrentar a mudança do clima
devem ser eficazes em função dos custos, de modo a assegurar benefícios mundiais ao menor custo
possível. Para esse fim, essas políticas e medidas devem levar em conta os diferentes contextos
socioeconômicos, ser abrangentes, cobrir todas as fontes, sumidouros e reservatórios significativos de
gases de efeito estufa e adaptações, e abranger todos os setores econômicos. As Partes interessadas podem
realizar esforços, em cooperação, para enfrentar a mudança do clima”(grifo nosso).
18
Há que se mencionar a existência de uma quarta dimensão de direitos fundamentais, composta pelos
direitos à democracia, à informação e ao pluralismo. Esta dimensão é o resultado da globalização dos
direitos fundamentais, no sentido de uma universalização no plano institucional, que corresponde, na
opinião de Paulo Bonavides, à derradeira fase de institucionalização do Estado Social. BONAVIDES,
Paulo. Curso de Direito Constitucional. 13ª ed. São Paulo: Malheiros, 2003.p.571.
19
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional ambiental português: tentativa de
compreensão de 30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português. . In: CANOTILHO,
José Joaquim Gomes (org.); LEITE, José Rubens Morato(org.). Direito Constitucional Ambiental
Brasileiro. São Paulo: Editora Saraiva, 2007. p. 1 e 2.
198
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
ambiente como direito fundamental do ser humano. Nesta primeira geração, a dimensão
antropocêntrica parece ainda ser o fundamento da proteção jurídica do meio ambiente.
Nesse sentido, verifica-se que as normas que antecederam à Constituição Federal
protegiam o meio ambiente principalmente em função de sua utilidade para o homem. É
o que se verifica, por exemplo, quando as Ordenações Afonsinas tipificam como crime
de injúria ao rei o corte de árvores frutíferas.
Diferentemente, os instrumentos jurídicos adotados pelo Brasil a partir da década
de oitenta, a exemplo da Constituição Federal de 1988, da Convenção da Diversidade
Biológica e da Convenção-Quadro sobre Mudanças Climáticas, demonstram uma maior
sensitividade para com a proteção do meio ambiente. Assim, para equacionar problemas
ecológicos de segunda geração foram estabelecidos princípios e regras ancorados nas
idéias de cooperação entre os Estados e de precaução, que oferecem instrumentos mais
aptos a equacionar os problemas ecológicos de segunda geração.
Um dos problemas ambientais de segunda geração é o que se refere aos efeitos
combinados dos vários fatores de poluição e das suas implicações globais e duradouras
como o efeito estufa, a destruição da camada de ozônio, as mudanças climáticas e a
destruição da biodiversidade. Tais efeitos atingem não apenas as presentes gerações,
mas também as futuras e, portanto, impõem a necessidade de adoção de uma nova ética,
qual seja a ética intergeracional20.
Compreende-se que o ordenamento jurídico brasileiro, através da Constituição
Federal de 1988 e dos demais instrumentos internacionais por ela adotados, dispõe de
mecanismos capazes de solucionar problemas ambientais de grande complexidade, tais
como os de segunda geração. Nesse sentido, a Constituição Federal, por exemplo,
incumbiu ao Poder Público o dever de preservar e restaurar os processos ecológicos
essenciais e prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas 21. Outrossim,
adotou, de maneira implícita, o princípio da precaução ao estabelecer que o Poder
Público é o responsável por “controlar a produção, a comercialização e o emprego de
técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e
20
A Constituição Federal de 1988 estabeleceu que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
é um direito intergeracional. Nesse sentido, dispõe o caput do art. 225, da C.F. Dessa forma, mitigou o
antropocentrismo ao colocar no foco de sua atenção a preocupação com o direito daqueles que estão por
vir. Entende-se que a Constituição Federal adotou uma ética intergeracional, pois, além do art. 225, caput,
erigiu como objetivo fundamental da República Federativa do Brasil a construção de uma sociedade livre,
justa e solidária (grifo nosso).
21
Conforme o inc. I, do § 1º, do art. 225, da C.F.
199
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
o meio ambiente”22.
Assim, observa-se que as normas jurídicas ambientais adotadas pelo
ordenamento jurídico brasileiro objetivam solucionar não apenas problemas ambientais
de primeira geração, mas, atentas à potencialidade dos danos ambientais, cujos efeitos
podem ser até mesmo transfronteiriços, dedicam sua atenção também aos problemas
ambientais de segunda geração, os quais, indubitavelmente, constituem-se o grande
desafio para todos os Estados, pois exigem deles ações em conjunto e não apenas que
cada Estado proteja o meio ambiente de maneira isolada.
Através da criação de um sistema jurídico dotado de instrumentos destinados a
solucionar problemas ecológicos de primeira e segunda geração, o ordenamento jurídico
brasileiro desenhou o Estado de Direito Ambiental. A seguir, estudar-se-á o conceito,
características e funções desse modelo de Estado.
2. Estado Democrático de Direito Ambiental
2.1. Conceito e características
O Estado de Direito do Ambiente é fictício e marcado por abstratividade. É, por si
só, um conceito abrangente, pois tem incidência necessária na análise da Sociedade e da
Política, não se restringindo ao Direito.
Diante de um mundo marcado por desigualdades sociais e pela degradação em
escala planetária, construir um Estado de Direito Ambiental parece ser uma tarefa de
difícil consecução ou até mesmo uma utopia, porque se sabe que os recursos ambientais
são finitos e antagônicos com a produção de capital e consumo existentes.
Nos ensinamentos de Santos, o Estado de Direito Ambiental é, na realidade, uma
utopia democrática, porque a transformação a que aspira pressupõe a repolitização da
realidade e o exercício radical da cidadania individual e coletiva, incluindo nela uma
Carta dos direitos humanos da natureza23. Em termos similares, Pureza24 enfatiza: “O
22
23
Conforme o inc. V, do § 1º, do art. 225, da C.F.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice. Porto: Afrontamento, 1994, p. 42.
24
PUREZA, José Manuel; FRADE, Catarina. Direito do ambiente. Coimbra: Faculdade de Economia
da Universidade de Coimbra, 1998, p. 8-9.
200
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Estado ambiental é um quadro de mais sociedade, mais direitos e deveres individuais e
mais direitos e deveres coletivos e menos Estado e menos mercantilização. Neste novo
contexto, não é prioritário o doseamento entre público e privado, mas sim o reforço da
autonomia (logo, dos direitos e das responsabilidades) individual e social frente à
mercantilização e à burocratização”.
Segundo Capela, o Estado de Direito Ambiental é definido como a forma de Estado
que se propõe a aplicar o princípio da solidariedade econômica e social para alcançar
um desenvolvimento sustentável, orientado a buscar a igualdade substancial entre os
cidadãos, mediante o controle jurídico do uso racional do patrimônio natural25.
Canotilho26 vislumbra quatro postulados básicos no que concerne à compreensão
do Estado de Direito Ambiental: o globalista, o publicista, o individualista e o
associativista. O postulado globalista centra a questão ambiental em termos de
“Planeta”, atentando para o fato de que a proteção ambiental não pode ser restrita a
Estados isolados, devendo ser realizada em termos supranacionais. O postulado
publicista centra a questão ambiental no “Estado”, tanto em termos de dimensão
espacial da proteção ambiental quanto em termos de institucionalização dos
instrumentos jurídicos de proteção ambiental. O postulado individualista, por seu
turno, restringe a proteção ambiental à invocação de posições individuais. Assim,
sendo o ambiente saudável contemplado na perspectiva subjetiva, os instrumentos
jurídicos de proteção ambiental utilizados seriam praticamente os mesmos referidos na
proteção de direitos subjetivos, possuindo, a proteção ambiental, acentuado caráter
privatístico. O postulado associativista procura formular uma democracia de vivência
da virtude ambiental, substituindo a visão tecnocrática com proeminência do Estado
em assuntos ambientais (postulado publicista) por uma visão de fortes conotações de
participação democrática.
A peculiaridade do debate do Estado de Direito Ambiental exige que a reflexão a
respeito da preservação do ambiente não possa restringir-se a Estados isolados apenas.
Assim, aumenta a complexidade da questão quando se constata que o ambiente é uno,
não se restringindo a realidades estanques diversas conforme fronteiras geográficas.
25
CAPELLA, Vicente Bellver. Ecología: de las razones a los derechos. Granada: Ecorama, 1994, p. 248.
26
CANOTILHO, José Joaquim Gomes, cit.
201
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
O postulado globalista, de forma exemplificativa, faz atentar para duas situações no
que concerne a uma efetiva proteção ambiental em termos globais. Em primeiro lugar,
nota-se discrepância entre as Constituições no tocante à configuração jurídica do
ambiente, como já ressaltado anteriormente. Além do mais, tem-se de atentar para a
extrema dificuldade que existe, entre os diversos países, para a necessária tomada
conjunta de medidas de cunho técnico que visem à qualidade do ambiente.
O problema, assim, já começa no próprio plano teórico, pois a caracterização do
ambiente por uma Constituição denota a existência ou inexistência de postulados de um
Estado Constitucional do Ambiente, bem como o grau de otimização para que se atinja,
no plano teórico-jurídico, tal Estado.
Havendo divergências notáveis entre o enquadramento do ambiente nas
Constituições, vislumbra-se a dificuldade em se tratar o ambiente de maneira uniforme
desde o plano teórico. Isso, incontestavelmente, traz prejuízos para a efetivação prática
das medidas de proteção ambiental. É importante frisar que essa dificuldade não
encontra como anteparo somente a questão da discrepância entre os tratamentos
constitucionais dispensados ao ambiente pelos Estados (originando, entre os diversos
Estados, imensa heterogeneidade e gradação na otimização dos postulados de um
Estado de Direito do Ambiente), mas também fatores constitucionais que preexistem à
própria concepção de Estado Constitucional do Ambiente, que, porém, são elementos
classicamente consagrados como indissociáveis da própria idéia de Estado
Constitucional, como, por exemplo, a soberania.
A bem da verdade, a construção do conceito de Estado de Direito Ambiental tem
de questionar elementos nos quais o próprio Estado se sustenta. É o caso, por exemplo,
das dúvidas acerca das perspectivas do bem ambiental nos Estados chamados de
“periféricos” que têm dificudades em abraçar disposições jurídicas do Estado de
Direito Ambiental pela necessidade de desenvolvimento, trazendo um elemento a mais
para sua efetiva implementação.
A abstratividade do Estado de Direito do Ambiente não pode induzir a pensar que
não existe importância em sua discussão. A definição dos pressupostos de um Estado de
Direito do Ambiente serve como “meta” ou “parâmetro” a ser atingido, trazendo à tona
uma série de discussões que otimizam processos de realização de aproximação do
Estado ficto.
202
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
2.2. Funções do Estado de Direito Ambiental
Podem-se sintetizar cinco funções fundamentais da discussão do Estado de Direito
do Ambiente27:
1) Moldar formas mais adequadas para a gestão dos riscos e evitar a
irresponsabilidade organizada28. Na sociedade de risco, o Estado não pode ser “herói”,
garantindo a eliminação do risco, pois este subjaz ao próprio modelo que serve de base à
sociedade. O Estado, então, busca a gestão dos riscos, tentando evitar a
irresponsabilidade organizada.
2) Juridicizar instrumentos contemporâneos, preventivos e precaucionais, típicos
do Estado pós-social. É aqui que se fornece especial atenção aos princípios da
prevenção e da precaução inscritos no art. 225 da Constituição. Faz-se necessário, numa
sociedade de risco, abandonar a concepção de que ao Direito só cabe se ocupar com os
danos evidentes. A complexidade do bem ambiental na sociedade de risco exige que
haja a introdução de aparatos jurídicos e institucionais que garantam a preservação
ambiental diante de danos e riscos abstratos, potenciais e cumulativos.
3) Trazer a noção, ao campo do Direito Ambiental, de direito integrado.
Considerando que o ambiente não é uma realidade naturalística segregada, sua defesa
depende de considerações multitemáticas, em que se considere a característica de
macrobem, pugnando-se por formas de controle ambiental, tanto no plano normativo
como fático, que atentem para a amplitude do bem ambiental.
4) Buscar a formação da consciência ambiental. É impossível o exercício da
responsabilidade compartilhada e da participação popular como forma de gestão de
riscos sem que haja profunda consciência ambiental.
5) Propiciar maior compreensão do objeto estudado. É vital a definição do conceito
27
LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso; JAMUNDÁ, Woldemar. Estado de direito ambiental no
Brasil. In: KISHI, Sandra Akemi S.; SILVA, Solange Teles da; SOARES, Inês V. Prado (orgs.). Desafios do direito
ambiental no século XXI: estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005. p.
611-634.
28
A irresponsabilidade organizada é uma das características da sociedade de risco e pode ser descrita
com sendo um fenômeno desencadeado a partir da pretensão dos atores vinculados ao processo de
modernização de não reconhecer a realidade do risco. Trata-se de conceito elaborado pelo sociólogo
Ulrich Beck. Agindo dessa forma, as instituições típicas da sociedade industrial buscam alcançar dois
objetivos principais: I) eximir-se da culpa e da responsabilidade diante da produção de riscos e de seus
possíveis efeitos secundários; e II) desviar e controlar os protestos que poderiam advir do conhecimento
da realidade da catástrofe.
203
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
de ambiente, pois possibilita a compreensão da posição ecológica do ser humano e das
implicações decorrentes de uma visão integrativa de ambiente. Verifica-se que o objeto
bem ambiental é dinâmico, envolvendo sempre novas conformações, como, por
exemplo, as novas tecnologias, tais como os OGMs. Assim, é importante um conceito
aberto, procurando trazer flexibilidade.
A otimização dos postulados do Estado de Direito do Ambiente não resolve os
problemas ambientais surgidos com a crise ecológica pela qual se passa. Serve,
entretanto, como transição da irresponsabilidade organizada generalizada para uma
situação em que o Estado e a sociedade passam a influenciar nas situações de risco,
tomando conhecimento da verdadeira situação ambiental e se municiando de aparatos
jurídicos e institucionais capazes de fornecer a mínima segurança necessária para que se
garanta qualidade de vida sob o aspecto ambiental.
O Estado de Direito Ambiental, dessa forma, é um conceito de cunho teóricoabstrato que abarca elementos jurídicos, sociais e políticos na busca de uma situação
ambiental favorável à plena satisfação da dignidade humana e harmonia dos
ecossistemas. Assim, é preciso que fique claro que as normas jurídicas são apenas uma
faceta do complexo de realidades que se relacionam com a idéia de Estado de Direito do
Ambiente29.Não obstante, a construção de um Estado de Direito Ambiental passa,
necessariamente, pelas disposições constitucionais, pois são elas que exprimem os
valores e os postulados básicos da comunidade nas sociedades de estrutura complexa,
nas quais a legalidade representa racionalidade e objetividade.
O status que uma Constituição confere ao ambiente pode denotar ou não maior
proximidade do Estado em relação à realidade propugnada pelo conceito de Estado de
Direito Ambiental, haja vista que o aspecto jurídico é muito importante para a
configuração e para a solidificação de estruturas efetivas, no âmbito do Estado e da
sociedade, que visem à proteção do ambiente.
A incorporação constitucional de proteção ao meio ambiente e a promoção de
qualidade de vida, em face da situação incipiente do Estado, parece trazer
conflituosidade entre os novos e os tradicionais fins (direitos), tais como crescimento
29
Os elementos jurídicos, políticos e sociais não fazem parte de realidades estanques. Há, na verdade, um
imbricamento de tais elementos, de forma que as manifestações jurídicas implicam em direcionamentos
na ordem social e política, ao passo que estas influenciam diretamente a produção e a eficácia das
próprias manifestações jurídicas.
204
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
econômico, pleno emprego e muitos outros. Esses novos fins (direitos) avançam no
sentido de propor mudanças na forma de desenvolvimento, com base em uma nova
fórmula econômica, e propugnam pelo uso racional e solidário do patrimônio natural. A
par dos avanços no plano constitucional, faz-se mister, para atingir um Estado de
Direito Ambiental, outras várias mudanças, como, por exemplo, um novo sistema de
mercado e uma redefinição do direito de propriedade.
A consecução do Estado de Direito Ambiental passa obrigatoriamente pela tomada
de consciência global da crise ambiental e exige uma cidadania participativa, que
compreende uma ação conjunta do Estado e da coletividade na proteção ambiental.
Trata-se, efetivamente, de uma responsabilidade solidária e participativa, unindo de
forma indissociável Estado e cidadãos na preservação do meio ambiente. Assim, para se
edificar e estruturar um abstrato Estado Ambiental pressupõe-se uma democracia
ambiental, amparada em uma legislação avançada que encoraje e estimule o exercício
da responsabilidade solidária.
A participação redunda na transparência do processo e legitima a decisão
ambiental, contribuindo de maneira profunda para conscientização da crise ambiental.
Com efeito, através da participação, observa-se uma via de mão dupla: Administração e
Sociedade Civil, considerando que o meio ambiente não é propriedade do Poder
Público, exigindo máxima discussão pública e garantia de amplos direitos aos
interessados. O apoio da coletividade nas decisões ambientais resultará em uma
Administração mais aberta e menos dirigista. Contudo, a democracia ambiental
participativa e solidária pressupõe, ainda, um cidadão informado e uma coletividade que
detenha como componente indispensável a educação ambiental.
Outro componente do Estado Democrático Ambiental é o amplo acesso à justiça,
via tutela jurisdicional do meio ambiente. Note-se que os meios judiciais são, de fato, o
último recurso contra a ameaça e a degradação ambiental. A sociedade atual exige que
as demandas ambientais sejam palco de discussão na via judiciária, pois essa abertura
resultará no exercício da cidadania e, conseqüentemente, maior conscientização.
Constata-se que, para se edificar um Estado de Direito Ambiental com justiça
ambiental, é necessário que se formule uma política de meio ambiente ancorada por
princípios que vão se formando a partir das complexas questões suscitadas pela crise
ambiental. Esse novo viés caracteriza-se pela responsabilidade do homem como
guardião da biosfera, independentemente de sua utilidade para a espécie humana, sendo
205
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
indispensável à construção de um Estado de Direito Ambiental.
2.3. Direito fundamental ao meio ambiente no Estado de Direito Ambiental
brasileiro
Pretende-se, agora, verificar como o Estado brasileiro desenhou, em sua
Constituição, o direito fundamental do ambiente, tendo como ponto referencial as novas
exigências do Estado de Direito Ambiental.
Com a superação do Estado liberal de Direito30 em sua forma clássica e com o
advento do Estado do bem-estar social31, houve o redimensionamento da importância dos
direitos fundamentais, enfatizando sua concepção multifuncional32. Superou-se, assim, a
noção restritiva de que os direitos fundamentais serviriam unicamente à defesa do
indivíduo contra o Estado; reconhecendo-se que os direitos fundamentais, além disso,
servem à proteção e à materialização de bens considerados importantes para a
comunidade. Diante disso, passou-se a verificar o fenômeno do esverdeamento das
Constituições33 dos Estados34, que consiste na incorporação do direito ao ambiente
equilibrado pelo ordenamento jurídico como um direito fundamental.
Analisando o reconhecimento do direito ao ambiente e a sua inserção nos textos
constitucionais,
pode-se
vislumbrar
a
existência
de,
precipuamente,
três
posicionamentos35. O direito ao ambiente aparece ora positivado numa dimensão
30
O Estado Liberal de Direito se consolidou a partir das Revoluções burguesas do século XVIII,
caracterizadas por defender as maiores cotas possíveis de liberdade do indivíduo diante do Estado,
modelo social este que substituiu o Antigo Regime (CRUZ, Paulo Márcio. Política, poder, ideologia e
Estado contemporâneo. Florianópolis: Diploma Legal, 2001, p. 89).
31
Estado de bem-estar é o produto da reforma do modelo clássico de Estado liberal que pretende superar
as crises de legitimidade que este possa sofrer, sem abandonar sua estrutura jurídico-política. Caracterizase pela união da tradicional garantia das liberdades individuais com o reconhecimento, como direitos
coletivos, de certos serviços sociais que o Estado providencia aos cidadãos, de modo a proporcionar iguais
oportunidades a todos (Ibid., p. 207).
32
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 3. ed. rev. atual. e ampl. Porto
Alegre: Livraria do Advogado Ed., 2003, p. 160.
33
LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso; JAMUNDÁ, Woldemar. Estado de direito
ambiental no Brasil, cit.
34
Todos
os
textos
constitucionais
referidos
neste
artigo
<http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions> (Acesso: 21 ago. 2003).
35
estão
disponíveis
em:
SAMPAIO, José Adércio Leite; WOLD, Chris; NARDY, Afrânio José Fonseca. Princípios de direito
206
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
objetiva, ora numa dimensão subjetiva, ora reunindo ambas as dimensões.
Pela dimensão objetiva, o direito ao ambiente equilibrado é protegido como
instituição. Embora a proteção do ambiente ainda esteja vinculada ao interesse humano,
ela se dá de forma autônoma, ou seja, sem que confira ao indivíduo um direito subjetivo
ao ambiente de forma exclusiva36.
Com relação à segunda dimensão de proteção do direito ao ambiente equilibrado –
apenas subjetiva –, vislumbra-se um caráter tão-somente antropocêntrico, em que o
ambiente é protegido não como bem autônomo, mas a serviço do bem-estar do homem,
conforme já mencionado. Para tanto, atribui-se um direito – o de viver em um ambiente
saudável – ao indivíduo (seja individual, seja coletivamente), a que corresponde uma
obrigação estatal de concretização. Nesse contexto, inserem-se as cartas constitucionais
do Chile37 (art. 19: “A Constituição assegura a todas as pessoas: VIII – o direito para
viver em um ambiente livre de contaminação. É dever do Estado trabalhar de forma que
este direito não seja afetado e impulsionar a preservação da natureza”) e do Paraguai38
(art. 7º: “Toda a pessoa é titular do direito de habitar um ambiente saudável e
ecologicamente equilibrado. Constituem objetivos prioritários de interesse social a
preservação, a conservação, a alteração e a melhoria do ambiente, assim como sua
harmonização com o desenvolvimento humano. Estes propósitos guiarão a legislação e
as políticas de governo pertinentes”).
A dimensão objetivo-subjetiva do ambiente é a mais avançada e moderna,
porquanto repele a proteção ambiental em função do interesse exclusivo do homem para
ambiental. Belo Horizonte: Del Rey, 2003, p. 99-101.
36
LEITE, José Rubens Morato; PILATI, Luciana Cardoso; JAMUNDÁ, Woldemar. Estado de direito
ambiental no Brasil, cit.
37
Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions>. Acesso em: 21 ago. 2003.
Tradução livre dos autores. “La Constitución asegura a todas las personas: VIII – El derecho a vivir en un
medio ambiente libre de contaminación. Es deber del Estado velar para que este derecho no sea afectado
y tutelar la preservación de la naturaleza”.
38
Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions>. Acesso em: 21 ago. 2003.
Tradução livre dos autores. “Toda persona tiene derecho a habitar en un ambiente saludable y
ecológicamente equilibrado. Constituyen objetivos prioritarios de interés social la preservación, la
conservación, la recomposición y el mejoramiento del ambiente, así como su conciliación con el
desarrollo humano integral. Estos propósitos orientarán la legislación y la política gubernamental
pertinente”.
207
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
dar lugar à proteção em função da ética antropocêntrica alargada 39. Pugna essa
concepção pelo reconhecimento concomitante de um direito subjetivo do indivíduo e da
proteção autônoma do ambiente, independentemente do interesse humano. Trata-se da
configuração mais completa. São exemplos dessa conformação as Constituições da
Colômbia40, da Espanha41 e do Brasil42.
Nota-se, até aqui, que o reconhecimento do direito constitucional ao ambiente e de
sua tutela jurídica é resultado de uma grande evolução do reconhecimento dos direitos
fundamentais e da organização jurídico-estatal. Verifica-se que, inicialmente, foi
ampliada a significação dos direitos fundamentais, atribuindo-lhes o caráter
prestacional43, em que ao Estado é imputada a responsabilidade de efetivar
determinados direitos dos cidadãos. Posteriormente, com a tomada de consciência da
crise ecológica, vislumbrou-se a necessidade de inclusão do bem ambiental nesse
âmbito de proteção constitucional, como direito fundamental. Atualmente, almeja-se
melhor efetividade na conservação das condições ambientais e a implementação do
postulado global na defesa do bem ambiental. Pode-se adiantar que a possibilidade de
concretização de uma defesa global do ambiente, dependente de instrumentos
39
LEITE, José Rubens Morato. Dano ambiental: do individual ao coletivo extrapatrimonial. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 80.
40
Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions>. Acesso em: 21 ago. 2003.
Tradução livre dos autores. “Todas las personas tienen derecho a gozar de un ambiente sano. La ley
garantizará la participación de la comunidad en las decisiones que puedan afectarlo. Es deber del Estado
proteger la diversidad e integridad del ambiente, conservar las áreas de especial importancia ecológica y
fomentar la educación para el logro de estos fines” (art. 79). “Son deberes de la persona y del ciudadano:
VIII – Proteger los recursos culturales y naturales del país y velar por la conservación de un ambiente
sano” (art. 95).
41
Disponível em: <http://www.georgetown.edu/pdba/Constitutions>. Acesso em: 21 ago. 2003.
Tradução livre dos autores. “Everyone has the right to enjoy an environment suitable for the development
of the person as well as the duty to preserve it. The public authorities shall concern themselves with the
rational use of all natural resources for the purpose of protecting and improving the quality of life and
protecting and restoring the environment, supporting themselves on an indispensable collective
solidarity” (art. 45).
42
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado
Federal, 2000, 512 p. Para ilustrar, far-se-á indicação dos principais dispositivos constitucionais
relacionados à proteção ambiental: art. 5º, XXIII, LXXI, LXXIII; art. 20, I, II, III, IV, V, VI, VII, IX, X,
XI, e §§ 1º e 2º; art. 21, XIX, XX, XXIII, a, b e c, XXV; art. 22, IV, XII, XXVI; art. 23, I, III, IV, VII,
IX, XI; art. 24, VI, VII, VIII; art. 43, § 2º, IV, e § 3º; art. 49, XIV, XVI; art. 91, § 1º, III; art. 129, III; art.
170, VI; art. 174, §§ 3º e 4º; art. 176 e § 1º; art. 182 e §§ 1º e 2º; art. 186; art. 200, VII e VIII; art. 216, V,
e §§ 1º, 3º e 4º; art. 225; art. 231; art. 232.
43
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais, cit., p. 195.
208
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
internacionais44, torna-se mais difícil à medida que se verificam divergências entre os
textos constitucionais.
A análise do caput do art. 225 da Carta Magna, já referido, demonstra, de maneira
clara, a concepção jurídica conferida ao bem ambiental pelo Estado brasileiro.
Diferentemente do que fizeram outras Constituições, não se restringiu a conferir o meio
ambiente saudável como direito subjetivo. Em que pese o fato de também ter adotado
tal aspecto (“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado”), a
Constituição brasileira contemplou o meio ambiente como bem que perpassa a
concepção individualista dos direitos subjetivos, pois o reputou como bem de uso
comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida.
Independentemente de qualquer posição jurídica pessoal firmada com relação ao
ambiente, o bem ambiental apresenta, na ordem constitucional brasileira, proteção
jurídica. O texto constitucional impôs ao Estado e à coletividade o dever de preservar o
ambiente para as presentes e as futuras gerações. Como se pode pensar que quem não
existe (futuras gerações) pode vir a ter qualquer direito subjetivo?
O direito intergeracional relacionado ao meio ambiente não pode ser concretizado
sem que se pense no meio ambiente como valor autônomo juridicamente considerado,
servindo, inclusive, como limite ao exercício de direitos subjetivos. Está, assim, a
garantia de preservação do meio ambiente dissociada da idéia de posição jurídica
individual, tanto no que se refere a um pretenso direito subjetivo ao meio ambiente
como a qualquer outro direito subjetivo.
44
Gerd Winter escreveu sobre a possibilidade de a futura Constituição da União Européia disciplinar, e em
que termos seria, a proteção ao meio ambiente: “O pensamento ecológico foi realmente consignado na
proclamação de objetivos da União, em dois tratados, o de Maastricht e o de Amsterdã. Na versão de
Maastricht, o preâmbulo do Tratado da União Européia (TEU) menciona a proteção ambiental. O art. B,
por sua vez, estabelece que „o progresso econômico e social é (...) sustentável‟. O art. 2º (EC) atenta para
„o crescimento sustentável com respeito ao meio ambiente‟. O preâmbulo do Tratado da União Européia,
na versão de Amsterdã, menciona uma vez a proteção do ambiente e avança citando „o princípio do
ambiente sustentável‟. O art. 2º (TEU) repete a necessidade para „desenvolvimento‟ equilibrado e
sustentável, e o art. 2 (EC) combina o „desenvolvimento equilibrado e sustentável‟ com „um alto nível de
proteção com vistas à melhoria da qualidade do meio ambiente‟. Em síntese, os objetivos aparentemente
consignam uma dupla abordagem: proteção do meio ambiente e sustentabilidade. Assim, nota-se que o
conceito tradicional de proteção foi ladeado pelo mais recente conceito de sustentabilidade. Isto não
significa que o conceito anterior se tornou obsoleto, pois ambos devem ser compreendidos como
complementares” (WINTER, Gerd. Constitutionalizing environment protection in the European Union. In:
SOMSEN, H.; SEVENSTER, H.; SCOTT, J.; KRÄMER, L. Yearbook of european environmental law.
Oxford: Oxford University Press, p. 70-72 – tradução livre dos autores).
209
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Nesse sentido, Ayala45 afirma: “o direito fundamental ao meio ambiente nas
sociedades de risco é definido a partir de uma compreensão social do futuro. Nesta, a
promessa do futuro evoca a atribuição de deveres, a imposição de obrigações e o
exercício de responsabilidades entre todos os membros da sociedade e do Estado, em um
modelo ético de compromisso, que se encontra expresso de forma inovadora em nosso
texto constitucional, como obrigação constitucional retratada no art. 225, caput, CRFB
de 1988”.
Questão interessante a observar no caput do art. 225 da Carta Magna diz respeito à
titularidade do dever de preservação ambiental. A Constituição, a par da essencialidade
do meio ambiente saudável, confere o que se pode denominar deveres fundamentais de
proteção ao meio ambiente. Tais deveres são acometidos tanto ao Estado quanto à
coletividade. Assim, o meio ambiente ecologicamente equilibrado não é finalidade do
Estado apenas, mas sim de toda a coletividade, podendo-se observar a adoção de uma
responsabilidade compartilhada, conforme já mencionado. Foi erigido, em termos de
proteção ambiental, um sistema de responsabilidade solidária e ética com vistas às
futuras gerações. Os deveres da coletividade provenientes da responsabilidade
compartilhada e solidária também se relacionam com a limitação de direitos subjetivos
dos sujeitos da coletividade, pois tendem a incidir reduzindo a manifestação de
determinadas liberdades, como, por exemplo, o direito de propriedade.
Pelo fato de o ambiente ser, conforme a Constituição, finalidade do Estado e,
conjuntamente, da coletividade, não se vislumbra uma preponderância estatal nos temas
ambientais. O Estado, então, pelas suas possibilidades materiais, deve assumir o papel de
gestor no direcionamento das medidas de efetividade de um ambiente sadio em
detrimento da visão que o reputa como único centro de poder das decisões concernentes
ao ambiente. Não se admite, assim, o postulado publicista, aproximando-se do postulado
associativista, levando em consideração a proposta de Canotilho, vista anteriormente.
Verifica-se, no caso da Constituição brasileira, que o direito fundamental ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado se insere ao lado do direito à vida, à igualdade, à
liberdade, caracterizando-se pelo cunho social amplo e não meramente individual. Da
45
AYALA, Patryck de Araújo. Direito e incerteza: a proteção jurídica das futuras gerações no estado de direito
ambiental. Florianópolis, 2002. Dissertação (Mestrado em Direito) – Universidade Federal de Santa Catarina.
210
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
leitura global dos diversos preceitos constitucionais ligados à proteção ambiental,
chega-se à conclusão de que existe verdadeira consagração de uma política ambiental,
como também de um dever jurídico constitucional atribuído ao Estado e à
coletividade46.
O Estado, dessa forma, deve fornecer os meios instrumentais necessários à
implementação desse direito. Além dessa ação positiva do Estado, é necessária também
a abstenção de práticas nocivas ao meio ambiente, por parte da coletividade47. O
cidadão deve, nesse sentido, empenhar-se na consecução desse direito fundamental,
participando ativamente das ações voltadas à proteção do meio ambiente. O que é
realmente inovador no art. 225 é o reconhecimento da indissolubilidade do vínculo
Estado-sociedade civil. Esse vínculo, entre os interesses públicos e privados, redunda
em verdadeira noção de solidariedade em torno de um bem comum.
No dizer de Rangel48, o direito do ambiente consubstancia uma pretensão de
conteúdo negativo ou de abstenção, pois exige do Estado e da coletividade
comportamentos não nocivos ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Surge,
desse caráter negativo do direito do ambiente, uma densidade reforçada, dando-lhe um
conteúdo similar próprio de direito, liberdade e garantia.
Deixe-se frisado que o direito fundamental do meio ambiente não admite retrocesso
ecológico, pois está inserido como norma e garantia fundamental de todos, tendo
aplicabilidade imediata, consoante o art. 5º, §§ 1º e 2º, da Constituição. Além do que o
art. 60, § 4º, IV, também da Carta Magna, proíbe proposta de abolir o direito
fundamental ambiental, nesse sentido considerado cláusula pétrea devido à sua
relevância para o sistema constitucional brasileiro, como direito social fundamental da
coletividade.
No tocante à proibição de recesso de direitos fundamentais, impende registrar
que se discute atualmente no Congresso Nacional projeto de lei cujo objetivo, entre
outros, é o de reduzir de 80% para 50% a área de reserva obrigatória nas propriedades
46
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Procedimento administrativo e defesa do ambiente. Revista de
Legislação e Jurisprudência. Coimbra, n. 3.802, p. 325-326, 1991.
47
RANGEL, Paulo Castro. Concertação, programação e direito do ambiente. Coimbra: Coimbra
Editora, 1994. p. 234-235.
48
Ibid., p. 234-235.
211
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
rurais da região da Amazônia, sob o argumento de que, dessa forma, garantir-se-á o
desenvolvimento auto-sustentável da agricultura brasileira49. Obviamente que a
aprovação de leis que admitam retrocessos ecológicos, como o projeto de lei acima
referido, impede, indubitavelmente, a concretização do modelo de Estado adotado pela
Constituição Federal: o Estado de Direito Ambiental.
Considerações finais
O presente artigo objetivou estudar a evolução da juridicidade ambiental no
Brasil, atentando-se para o fato de que com o Relatório de Brutdland, a promulgação da
Constituição Federal de 1988 e a ratificação de instrumentos jurídicos internacionais, a
exemplo da Convenção da Diversidade Biológica e da Convenção-Quadro sobre
Mudanças Climáticas, adotou-se no Brasil um modelo de Estado denominado Estado de
Direito Ambiental, que abarca normas destinadas a equacionar problemas ecológicos de
primeira e segunda geração.
Observou-se que as primeiras normas que protegeram o meio ambiente
brasileiro o fizeram de maneira pontual, sem se atentar para a complexidade do
macrobem ambiental, a exemplo das Ordenações Afonsinas e Filipinas, bem como do
Novo Código Florestal. A preocupação básica dessas legislações era proteger microbens sem se preocupar com a interdependência existente entre os elementos da natureza.
Essas normas estavam voltadas aos problemas ambientais de primeira geração, pois
objetivavam, basicamente, controlar a poluição e subjetivar o direito ao meio ambiente
como direito fundamental do ser humano. Nesse sentido, protegia-se o meio ambiente
em virtude, primordialmente, de sua utilidade para o homem. O fundamento de tais
49
O Novo Código Florestal, com alteração introduzida pela Medida Provisória nº 2.166-67, de 2001,
determina que as florestas e outras formas de vegetação nativa, ressalvadas as situadas em área de
preservação permanente, assim como aquelas não sujeitas ao regime de utilização limitada ou objeto de
legislação específica, são suscetíveis de supressão, desde que sejam mantidas, a título de reserva legal, no
mínimo: I - oitenta por cento, na propriedade rural situada em área de floresta localizada na Amazônia
Legal” . Maiores informações acerca do projeto de lei que objetiva aumentar a área de desmatamento na
região
da
Amazônia
no
site:
<
http://www.cidadesdobrasil.com.br/cgicn/news.cgi?cl=099105100097100101098114&arecod=18&newcod=633>.Acesso em 26 de maio de
2008
212
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
normas era, portanto, o antropocentrismo, ou seja, a preocupação única e exclusiva com
o bem estar do homem.
A partir da década de oitenta, verificou-se, no Brasil, uma crescente preocupação
com os problemas ecológicos de segunda geração, dentre eles os efeitos da chuva ácida,
das mudanças climáticas e os riscos oriundos da biotecnologia. Nesse aspecto, novos
instrumentos foram paulatinamente adotados pelo ordenamento jurídico brasileiro, a
exemplo do princípio da precaução e da cooperação entre os Estado. Observou-se,
ainda, que as normas destinadas aos problemas ambientais de segunda geração
fundamentaram-se
numa
ética
intergeracional
e,
por
conseguinte,
menos
antropocêntrica. É o que se infere do dispositivo constitucional brasileiro que obriga o
Poder Público a restaurar os processos ecológicos essenciais e prover o manejo
ecológico das espécies e ecossistemas. Entende-se que, com a adoção de normas
destinadas aos problemas ambientais de segunda geração, o ordenamento jurídico
brasileiro desenhou um Estado de Direito Ambiental, o qual apesar de ser ainda um
modelo fictício, pois adotado efetivamente apenas no papel, serve como modelo a ser
implementado ao dispor de normas capazes de equacionar problemas ambientais
complexos, que ultrapassam, muitas vezes, as fronteiras entre os Estados.
Obviamente que o grande desafio que se impõe é o de se efetivar esse modelo de
Estado no campo fático, pois muitas vezes os benefícios econômicos de curto prazo
fazem com que as normas ambientais não sejam efetivamente cumpridas ou até mesmo
sejam alteradas com o objetivo de se garantir maiores lucros. Nesse sentido, verificou-se
que, atualmente, discute-se no Congresso Nacional a possibilidade de se ampliar o
desmatamento das áreas rurais na região da Amazônia, muito embora o direito
fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado não admita retrocesso.
Dessa forma, constatou-se que, embora o ordenamento jurídico brasileiro tenha
desenhado um Estado de Direito Ambiental dotado de instrumentos legais aptos a
equacionar os problemas ecológicos de primeira e de segunda geração, falta vontade
política para que tais instrumentos sejam efetivados. Ainda assim, entende-se que
discutir o conceito, as características e as funções do Estado de Direito Ambiental pode
ser o primeiro passo na busca da conscientização da sociedade e do Poder Público no
tocante à necessidade de se concretizar esse modelo de Estado no século XXI a fim de
se salvaguardar o direito intergeracional a um meio ambiente ecologicamente
equilibrado.
213
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
PROPRIEDADE E MEIO AMBIENTE NO DIREITO
Rogério Portanova1
SUMÁRIO: Introdução. 1. A propriedade e sua função através da história. 2. A
propriedade e sua função social tutelada juridicamente. 2.1 Restrições administrativas.
2.2. Restrições civis e coletivas. 2.3. Restrições ambientais. 3. Perspectivas.
INTRODUÇÃO
O presente artigo é fruto de discussões que surgiram no curso da apresentação da
palestra sobre a função ambiental da propriedade promovida pelo projeto Casadinho que
envolve os cursos de pós-graduação em Direito da Universidade Federal de Santa
Catarina e a Universidade Federal do Ceará. A apresentação suscitou uma série de
intervenções e posterior diálogo com alunos e professores, muitos destes comentários e
os trechos que julguei mais pertinentes fazem parte deste artigo que tem uma dinâmica
mais fluida do que a proposta de esgotar o assunto ou analisá-lo sob um único aspecto e
se propõe a levantar pontos de discussão para facilitar a reflexão de tema tão atual e
palpitante que é a relação da propriedade com o meio ambiente.
A questão que envolve o tema propriedade é paradoxalmente um tema que ao
mesmo tempo é muito antigo e se renova a cada momento em que se lança um novo
olhar sobre a organização social e novas manifestações de poder.
A questão da propriedade estava no centro das discussões do direito civil
romano e atravessou a Idade Média com seu conceito de Direito Natural ou Direito
Divino ligado a terra, inclusive a economia em seu período de contestação Iluminista
apresentou os fisiocratas que defendiam os valores ligados a terra como base de uma
economia que estivesse relacionada ao conceito de riqueza e não de valor, como fizeram
1
Rogério Portanova é doutor em Sociologie Et Anthropologie Du Politique pela Universite de Paris VIII.
Professor Adjunto da Universidade Federal de Santa Catarina. Presidente da Fundação de Amparo à
Pesquisa do Estado de Santa Catarina.
214
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
os economistas neo-clássicos. Um dos problemas que fez com que esta corrente caísse
em desgraça, foi justamente a defesa de um Despotismo Esclarecido, que de certa forma
reavivava o Rei-Filósofo platônico com poderes quase ilimitados.
No curso da Revolução Francesa, a propriedade era vista como um direito
individual, fruto do trabalho e não como um direito natural ou divino, desta forma era
ela também objeto de apropriação pessoal e poderia ser dado a ela um valor computado
em pecúnia. Foi justamente em Marx que a propriedade individual foi identificada como
um elo de apropriação indevida por parte da burguesia que fazia dos proletários
extensão de suas máquinas e permanentes inquilinos de um bem que só aos que tinham
condições de aquisição poderiam ser proprietários. Desta forma a propriedade era mais
um instrumento de classe na opressão do proletariado e deveria ser suprimida pela
revolução socialista que instituiria a propriedade coletiva ou comum sem qualquer tipo
de distinção.
Com o desenvolvimento do capitalismo e os resultados deste processo
promovido pela modernidade industrial chegamos aos problemas contemporâneos que
ultrapassam a questão da luta de classes. O aquecimento global, a poluição
generalizada, a contaminação da águas e do solo, a concentração de armas atômicas e
mísseis balísticos de destruição de massa não eram um privilégio da classe dominante
ou do capitalismo imperial, mas o resultado de um modelo baseado na ciência e
tecnologia com valores neutros de uma sociedade que buscava o progresso ilimitado
seja pela via do capitalismo ou do socialismo distributivista. O resultado foi o atual
impasse civilizatório.
Eis que chegamos a discussão deste instituto jurídico milenar necessitando de
uma nova redefinição. A propriedade não pode ser vista apenas sob o aspecto de
apropriação “erga omnes” ou um bem de apropriação coletivista para maior
produtividade, seus limites não podem ser apenas pela capacidade produtiva e a
economia deve incorporar os valores que vão além do mercado chamados de
externalidades negativas (que é o custo ambiental dos produtos não contabilizado nos
preços dos mesmos e que causam a atual crise civilizatória que pesa sobre a
humanidade).
Trazer o tema da propriedade com uma visão jurídica e histórica com a
implementação da variável ambiental é uma primeira aproximação que pretendemos
neste breve artigo.
215
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
1 - A PROPRIEDADE E SUA FUNÇÃO ATRAVÉS DA HISTÓRIA
Falar de função social da propriedade não é algo novo que tenha sido inaugurado
por influência do pensamento marxista apenas. Esta afirmação pode-se considerar
verdadeira se restringirmos nossa análise histórica ao momento presente, mas já os
romanos entendiam que o exercício do Direito de propriedade era subordinado às
exigências do bem comum.
Se remontarmos a Idade Antiga, não somente os Romanos, mas também os
Gregos se debruçaram sobre esta questão. Podemos identificar as posições a respeito da
propriedade desde a Grécia antiga, através de dois dos seus filósofos maiores. Em
primeiro lugar o pensamento de Platão identificado com o idealismo, onde o que existia
era apenas uma deformação do objeto ideal que existia em seu estado perfeito, desta
forma o ideal de propriedade estaria sujeito a uma apropriação coletiva, pois nela
repousaria o ideal de sociedade, tendo inclusive os filhos como responsabilidade
coletiva de sua educação e a abolição da família, inclusive as mulheres pertenceriam a
todos os homens de uma polis, não devendo os filhos ter os pais identificados para que
melhor fossem educados. Desta forma a propriedade era um bem coletivo, não sendo
possível a apropriação individual. Uma visão coletivista de propriedade, que por óbvio
cumpria com sua função social ao servir o conjunto daquela sociedade.
Por outro lado encontramos Aristóteles, que mesmo sendo discípulo de Platão,
defendeu uma posição filosófica antagônica de seu mestre conhecida como realismo.
Aristóteles admitia a propriedade como objeto de apropriação individual, porém ele
deixava claro que esta deveria estar sujeita a um princípio ainda que embrionário
podemos chamar de função social, mesmo que o objetivo seja o de dar um sentido a
uma mera função econômica da propriedade, onde esta seria uma riqueza destinada à
produção de bens que satisfaria as necessidades materiais, esta atividade o autor
chamava de economia (onde Aristóteles diferenciava a economia – Oiko nomos –, da
crematística – administração meramente monetária de valores).
Na linha evolutiva do tempo histórico, podemos observar que na Idade Média a
propriedade apresentava três diferentes perspectivas, apenas para ficarmos numa
abordagem Tomista (São Tomás de Aquino), num primeiro plano estaria aquele que é a
própria imagem e semelhança de Deus: o homem. Como dotado de racionalidade tem
este um Direito Natural à posse dos bens ofertados por Deus e pela Natureza. Numa
216
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
perspectiva secundária, há a questão da apropriação dos bens, que poderíamos
interpretar como o Direito de propriedade lato sensu, e por fim São Tomás fala de um
condicionamento da propriedade conforme a história vivida de cada povo.
Na chamada Modernidade podemos citar como um exemplo da gênese da função
social da propriedade a desapropriação por interesse social inserida na Constituição de
Weimar, na Alemanha em 1919. Este principio de desapropriação por utilidade pública
também poderia ser encontrada na França no Código de 1791 e no Código Napoleônico,
porém não na perspectiva da construção do Bem Estar Social como podemos verificar
na referida Constituição alemã.
Um outro estatuto reconhecido com uma marca de nossa era no pós-guerra foi a
Declaração Universal dos Direitos do Homem de 1948 e nela podemos ver no seu artigo
XVII os seguintes enunciados:
1 - Toda pessoa tem direito a propriedade, individual e coletivamente;
2 - Ninguém será arbitrariamente privado de sua propriedade.
A título de ilustração podemos trazer nos nossos domínios latino-americanos, a
Declaração dos povos da América, aprovada em 1961 em Punta del Este, que deu
origem a Aliança para o Progresso e que podemos constatar que ela confere a limitação
do direito da propriedade da terra, advogando um programa de reforma agrária com
vistas à mudança social face às estruturas patriarcais e os injustos sistemas de
exploração dos trabalhadores e aquisição da terra.
2
-
A
PROPRIEDADE
E
SUA
FUNÇÃO
SOCIAL
TUTELADA
JURIDICAMENTE
De uma forma mais geral o tema propriedade foi objeto de análise de
praticamente todas as ciências sociais, dentre estas o Direito e fora do campo mais
amplo das Ciências Sociais, obviamente das Ciências Agrárias, do urbanismo,
engenharia, etc. a idéia de propriedade e sua transformação está intrinsecamente ligada à
idéia de evolução (ou retrocesso) da própria idéia de homem e civilização.
Desde as observações de Rousseau que sinalizou que os primeiros conflitos
ocorreram quando o primeiro homem disse “isso é meu”, até os tempos modernos, o
217
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
conceito de propriedade sofreu todo o tipo de influência, política, religiosa, ideológica,
sociológica, jurídica, tributária, financeira, administrativa, etc. O certo é que o conceito
de propriedade não pode ser aprisionado dogmaticamente e tem sua flexibilidade de
acordo com a própria dinâmica da evolução da sociedade e de sua forma de observar o
mundo e os fenômenos sociais.
Não é nossa intenção fazer um estudo exaustivo sobre a evolução histórica da
propriedade e suas implicações filosóficas, nem se, a partir de uma análise crítica da
propriedade, ela é de fato a pedra angular do pensamento marxista e do pensamento do
que tradicionalmente se resolveu denominar de esquerda. Assim como genericamente
podemos dizer que o conceito de liberdade está associado aos princípios liberais; os
referenciais que nos reportam ao conceito e a idéia de igualdade tem como valor geral o
pensamento socialista. Grosso modo, poderíamos dizer que a idéia de propriedade
privada pertence por excelência ao campo do pensamento dito de direita ou liberal,
assim como a coletivização da propriedade teria por fundamento sua antítese ou em
outras palavras o que tradicionalmente se convencionou chamar de esquerda.
Ao Direito cabe dentre outras funções específicas da ciência jurídica, regularizar
os conflitos fundiários e traduzir em uma organização normativa a vontade expressa
pelo conjunto da população através de sua lei maior que é a Constituição. Desta forma
veremos princípios que a rigor seriam antagônicos acolhidos pelo legislador
constitucional como o respeito à propriedade – principio liberal; função social da
propriedade – principio socialista, e mais recentemente a função ambiental da
propriedade – principio sustentabilista. Da interpretação, da correlação de forças da
sociedade e da sensibilização do judiciário é que vai se moldando o conceito levado a
cabo na realidade cotidiana do Brasil e aplicado de acordo com o caso concreto nos
diferentes pontos da federação.
Claro está que os princípios que regem um condomínio ou a partilha do solo
urbano para fins de habitação não devem ter os mesmos critérios legais que regem a
propriedade rural de grande extensão, nem de sua aplicação para a agricultura, pecuária
ou atividade extrativista. Entendemos que a propriedade é um conceito tão vasto e
elástico como o próprio pensamento e que ela está na origem e causa de boa parte de
conflitos e divergências de pensamentos por vezes inconciliáveis.
O chamado Direito de propriedade sempre foi presente na nossa civilização
Ocidental ainda que regulado de maneira diferenciada. Para ficarmos no Direito pátrio,
218
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
o Direito a propriedade está exposto como garantia constitucional através do art. 5°
XXIII da Constituição da República Federativa do Brasil, do ponto de vista do Direito
infraconstitucional ele está regulamentado pelo Código Civil, cito os artigos 524 a 648.
Em nossa carta civil está disposto no artigo 524 que o proprietário tem o direito
de usar e dispor de seus bens e de reavê-los do poder de quem quer que injustamente os
possua. Através da história esta regulamentação nos leva a crença liberal de que há um
Direito absoluto de utilização. Porém em sua evolução vimos que o Direito de
propriedade não pode ser considerado como um direito absoluto, uma vez que se ele
vier a interferir em direito alheio este pode ser oposto ou contestado, uma vez que o uso
recorrente da propriedade não pode implicar em extrapolar os seus limites legais,
havendo para sua utilização determinados limites, que são de diferentes ordens. Para
fins deste artigo vamos explicitar algumas destas ordens, em especial as administrativas,
cíveis e ambientais.
2.1. Restrições administrativas
São aquelas de atividade exclusiva do poder público no seu pleno exercício do
poder de polícia, o qual pode ser extrapolado, dentre eles o poder de fiscalização de
construções, de vigilância sanitária, de controle das águas, da atmosfera, plantas e até
zoonoses. Pode ainda exercer o poder de polícia dos logradores públicos, costumes,
pesos e medidas e por fim das amplas atividades urbanas em geral. Desta forma, vemos
que a propriedade, mesmo no seu pleno exercício comercial, tem o proprietário o dever
de respeitar estas e outras normas e atividades administrativas para a garantia da ordem
e do bem estar da população, não podendo o Direito de propriedade agredir ou perturbar
este conjunto de atividades administrativas.
2.2.
Restrições civis e coletivas
Deste ponto de vista temos os limites já consagrados em diferentes cartas
jurídicas que é a função social da propriedade, este princípio encontramos no enunciado
do art. 5º, XXIII da Constituição Federal, embora não havendo uma limitação
específica, ela representa a forma pela qual deve ser utilizada a propriedade, que visa
atingir mais que um valor, uma utilidade que na falta de melhor termo chamaremos de
219
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
universal, beneficiando aqueles hipo-suficientes economicamente, no sentido de
diminuir a pobreza, que se instalou em nossa sociedade e todas as conseqüências sociais
e ameaça a paz social que esta traz. Uma das constatações mais visíveis da chamada
injustiça social se encontra não só na concentração de riquezas, mas nos seus sinais
exteriores deste profundo abismo social que é a externalização da riqueza onde a
propriedade representa talvez o seu carro chefe. A resposta a este acinte contra o
conjunto da sociedade se deu na forma de movimentos organizados que lutaram e lutam
por acesso a terra e a propriedade, com objetivo de ocupação ou de assentamento,
exigindo desta forma a mudança do conceito meramente individualista e comercial da
propriedade.Observamos aqui que o exposto anteriormente não há o sentido socialista
de uma propriedade coletivista, mas a individualização da propriedade através da
garantia do título desta para moradia ou para a produção seja ela familiar ou individual e
que esta seja possível a todos.
Podemos por fim colocar as restrições que dizem respeito ao Direito de
vizinhança conforme o exposto no art. 554 do garante ao proprietário o Direito de
impedir o mau uso da propriedade vizinha que venha prejudicar a segurança, o sossego
ou a saúde podendo exigir a demolição ou a reparação através de ação cominatória ou
indenizatória. Encontramos o disposto no art. 572, enunciado que limita o Direito do
proprietário de construir em vista do Direito dos vizinhos e dos regulamentos
administrativos, podendo ser embargada a obra (art. 573).
2.3.
Restrições ambientais
Talvez aqui vejamos as maiores dificuldades de adaptação a propriedade, pois
este vai estar sujeito ao diversos princípios do Direito Ambiental, dentre os mais
relevantes, o principio da precaução, prevenção, irretroabilidade da lei ambiental, “in
dubio pro ambiente”, publicidade, etc. Mas neste momento, vamos nos ater a alguns
instrumentos jurídicos já consolidados, que restringem o Direito de propriedade, mas
não chegam a redefinir seu estatuto. Como primeiro exemplo podemos citar as áreas de
preservação como dos Parques Nacionais e Estações Ecológicas (Lei 6.902/81), do
disposto no art. 1º do Código Florestal (Lei 4.771, 15/9/65) e da constituição da Reserva
Legal obrigatória nos imóveis rurais (arts. 16 e 44 Cód. Florestal). Nesse sentido
podemos dizer que as limitações o pleno exercício do Direito de propriedade visa à
220
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
preservação das florestas, sendo estas consideradas bem de interesse comum de todos (e
não apenas público).
Podemos identificar limitações urbanísticas uma vez que os imóveis urbanos
devem respeitar além dos recursos naturais, o ambiente construído pelo homem também
chamado de antrópico, incluindo o paisagismo e a cultura como um todo.
Feita esta primeira observação quanto às restrições do Direito de propriedade,
vê-se que este evidentemente não é absoluto devendo o seu proprietário utilizá-lo sem
que venha afetar o equilíbrio ambiental e que cumpra a sua função social. Aliado ao que
estabelece o art. 225 da Constituição Federal, podemos dizer que esta limitação de
cunho ambiental não diz respeito apenas a utilização racional e equilibrada da
propriedade por parte do proprietário, mas uma outra relação deste Direito que
ultrapassa os limites ideológicos e a dogmática jurídica, por mais abundante que sejam
os seus institutos.
3 - PERSPECTIVAS
De todas as transformações que sofreu a propriedade, talvez a mais restritiva e a
que aponta para uma possibilidade concreta de Justiça Geracional, seja justamente as
restrições contemporâneas que tem por foco os temas ambientais do seu uso,
redefinindo o seu próprio sentido.
O sentido de restritiva, na verdade é paradoxal, pois ele não limita os
tradicionais direitos de usar, fruir e gozar da propriedade (jus utendi, jus fruendi, jus
abutendi), mas os insere numa possibilidade concreta de não abusar de algo que serve
de sustento para um ganho coletivo que permite a existência de humanos (para quem se
direciona as leis), como não humanos (vivos ou não). Tornando possível o equilibrio
homeostático da Terra. Comparativamente, mesmo não havendo a disponibilidade total
do direito de propriedade, sua correta utilização amplia a qualidade de vida, onde o
proprietário é diretamente o primeiro beneficiário. Ora, esta compreensão do fenômeno
limitador da propriedade só pode ser amplamente aplicado se vigorar o paradigma da
sustentabilidade, que julgo ser o denominador comum da possibilidade de convívio da
civilização no momento atual. Não é uma questão de abrir mão de Direitos, mas integrar
um conjunto de deveres que tornam possível a existência comum.
221
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Com nossa visão privatista, entendíamos que a propriedade estava diretamente
relacionada ao conjunto de bens adquiridos pelo individuo e que ela poderia ser disposta
de acordo com a sua própria vontade, desde que respeitasse os preceitos legais e
cumprisse com suas obrigações fiscais e administrativas com relação à propriedade. Por
outro lado vemos o Estado como guardião deste princípio e que a afronta ao direito de
propriedade seria uma afronta ao próprio Direito e a possibilidade de paz social, que
uma vez perturbada deveria ser acionado o conjunto de aparelhos legais e repressivos do
Estado.
Fosse a propriedade privada ou coletivista, a ação do Estado sempre foi a
garantia de que ele seria o garantidor dos seus princípios. Desta feita, não me parece que
há uma significativa mudança do papel do Estado com relação à propriedade, o que
existe é uma mudança dos valores que envolvem a propriedade que se choca com outros
valores que coexistem num pleno estado de legalidade, mesmo que trabalhando com
valores contraditórios. Nesse caso, o papel do poder público seria não só o de mediar,
mas o de inserir a qualidade de vida para as atuais e futuras gerações garantidas pelo art.
225 como o Direito Fundamental que se sobreporia a todos os demais, inclusive os que
ameaçassem este Direito como é o caso do sentido econômico da propriedade ou até da
sua função social.
Me explico melhor com um exemplo hipotético. Uma propriedade que venha a
ser utilizada em uma área sensível, a Amazônia, por exemplo, e que seu proprietário
queira destiná-la para a criação de gado (como já ocorreu no passado), não deveria ser
levado em conta apenas o aspecto econômico da produção, mas uma série de fatores,
sendo que o principal seria a questão da sustentabilidade do investimento e o dano
ambiental que o mesmo causaria caso viesse a ser instalado este tipo de atividade.
Poderíamos, da mesma forma, questionar um importante espaço de terra que seja
improdutiva e que seja destinada a reforma agrária, mas esteja situada em um local
ecologicamente sensível. Desta feita, estaria o Estado promovendo o afrontamento ao
principio anteriormente evocado de promover a Justiça Geracional, mesmo que com o
apoio de amplos setores da população e resolvendo um problema crônico no Brasil que
é a concentração de terras e os altos índices de concentração de riqueza e propriedade na
mão de poucos.
Entendo que o dano causado ao meio ambiente não é minimizado quando este é
perpetrado em nome de uma Justiça Social ou para amenizar o sofrimento de
222
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
populações carentes ou desprovidas de recursos financeiros. Além do que os exemplos
abundam no sentido de mostrar que não há casos de fim da miséria através de agressões
ambientais. O que garante uma qualidade de vida e a estabilidade financeira de
populações carentes é em primeiro lugar o acesso à educação e a capacidade de usufruir
da riqueza social e ter acesso aos meios científicos e tecnológicos que permitam uma
complementaridade de sua formação e enriquecimento como cidadão.
Os casos que podemos citar apenas como exemplificativos é o da extração ilegal
de madeiras nobres e principalmente o caso do garimpo do ouro na década de 70/80,
onde grandes fortunas foram adquiridas por pessoas sem instrução e da mesma forma
como elas foram conquistadas, se esvaíram por falta de uma cultura de investimento e
educação no sentido mais generalizado. Num caso e no outro, ficou a devastação, a
permanência da miséria de muitos e o ganho de poucos que se utilizaram tantos dos
meios que depredaram a natureza como da ingenuidade e boa fé de outros tantos. O
resultado é catastrófico, estes processos além de engordarem a concentração de renda,
deixaram um rastro de destruição que será sentido já nas atuais, mas principalmente
para as futuras gerações, com perdas concretas em resultados que só são
economicamente contabilizados porque não levam em conta as externalidades
ambientais no preço dos produtos que advém os seus lucros.
Alguns autores consideram a função ambiental da propriedade como elemento
da função social da propriedade, por ser este um conceito mais antigo e que seria mais
abrangente do que a função ambiental. Diversos autores defendem que estas categorias
não são antagônicas, mas sim complementares da necessária evolução dos princípios e
conceitos que envolvem o Direito de propriedade. Permito-me discordar e argumentar
no sentido que não há complementaridade entre função social e função ambiental no
caso da propriedade, e sim que a idéia da função ambiental está embutida o seu caráter
social principalmente na propriedade, se entendermos esta no quadro mais geral da
sustentabilidade. Não há que se falar em função ambiental se esta não cumprir a sua
função social, no caso disso vir a ocorrer teríamos apenas um mero marketing ambiental
para interesses privados ou simplesmente a transfiguração de um conceito que foi
construído a longo de inúmeras lutas e conflitos ligados à busca de um denominador
comum que poderíamos traduzir como a sadia qualidade de vida. Esta não pode ser
adquirida através de uma perspectiva individualista e privatista, por mais
ambientalmente correta que seja esta posição, pois ela careceria do elemento integrador
223
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
que vê as coisas, o planeta e nós mesmos interligados e interdependentes. Esta é claro é
minha opinião e a razão mesmo de escrever este artigo, já que expliquei no início que
não pretendi esgotar o tema nem fiz um detalhado apanhado das questões envolvendo a
propriedade e o meio ambiente, mas sim procurei apontar de como que sempre deu
margem a infindáveis discussões, pode ser visto sob a ótica contemporânea dos limites
impostos ao crescimento econômico, dados pelos limites materiais e de como o Direito
a propriedade deve se ater a este novo paradigma.
Hodiernamente podemos dizer que a natureza jurídica do patrimônio ambiental
tem diferentes graus de materialidade, porém pode-se identificar claramente que estes
são bens difusos, que dizem respeito a todos e não se restringem a uma divisão simplista
entre público e privado. Nesse sentido os bens públicos estariam sujeitos às mesmas
restrições, não havendo qualquer privilégio com relação às restrições ambientais, pois se
este a ferisse, mesmo em nome do público, estaria comprometendo algo mais amplo que
é o coletivo (incluindo neste conceito o preceituado no art. 225 da Constituição Federal
“as atuais e futuras gerações”). Esse bem da coletividade não pode ser considerado res
nullius, mas com suas limitações pode ser passível de apropriação privada. Eis aqui o
paradoxo e o desafio para investigações dos futuros pesquisadores jurídicos, algo que é
passível de apropriação, mas deve ser tratado como de interesse coletivo. Privado sim é
possível, mas para além do interesse e do conceito restrito ao Direito público.
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227
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
PROPRIEDADE, TRIBUTOS E MEIO AMBIENTE
Ubaldo Cesar Balthazar1
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Teoria geral do direito tributário. 3. Reflexões sobre mudança social. 4.
O ICMS ecológico. 5. Aspectos da legislação sobre o ICMS Ecológico aprovadas,
implantadas ou em implantação. 6. Referências.
1. Introdução
O estudo da história dos tributos nos mostra que a tributação originou-se
com a finalidade primordial de arrecadar recursos para custear os gastos indispensáveis
do Estado. Havia, inicialmente, uma finalidade apenas fiscal, não havendo, por parte do
Príncipe, qualquer intenção de mudança no comportamento dos súditos, ou, na
terminologia atual, sem intervenção na livre iniciativa, objetivando a um equilíbrio
orçamentário. Esse procedimento contribuía tão somente para o enriquecimento das
burras reais, constituindo-se, dessa forma, um sistema injusto. A neutralidade era algo
utópico, pois jamais toda a arrecadação era revertida ou compensada em benefícios dos
súditos contribuintes2.
A finalidade meramente fiscal permanece ainda hoje como uma forma de
tributação utilizada em alguns tributos, visto que a finalidade regulatória vem se
impondo cada vez mais como sistemática de política fiscal. Podemos conceituar a
tributação fiscal como a técnica que busca extrair do patrimônio dos particulares o
dinheiro necessário para que o Estado possa cumprir com suas finalidades voltadas para
o interesse público.
1
Doutor em Direito pela Université Libre de Bruxelles (1993). Professor Associado II da Universidade
Federal de Santa Catarina. Vice-Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC.
2
Ver nosso “História do Tributo no Brasil”, Fpolis: Ed.Boiteux, 2005, pp.17 a 23.
228
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Trata-se, portanto, do uso do tributo com fins tão somente arrecadatórios.
O Estado, porém, vem fazendo uso da atividade financeira não somente para adquirir
recursos, mas também para modificar estruturas sociais, obter resultados tanto políticos
quanto econômicos, impondo verdadeiras mudanças em padrões comportamentais,
realizando, através do uso orientado do tributo, mudanças sociais. Ricardo Lobo Torres
sustenta, discorrendo sobre o tema3, que a extrafiscalidade, como forma de intervenção
estatal na economia, apresenta uma dupla configuração: de um lado, a extrafiscalidade
se deixa absorver pela fiscalidade, constituindo a dimensão finalista do tributo; de outro,
permanece como categoria autônoma de ingressos públicos, a gerar prestações não
tributárias.
Dessa forma, a extrafiscalidade está diretamente relacionada com a
intervenção estatal, reordenando a economia e as relações sociais, ficando o caráter de
arrecadar recursos em um plano secundário. Em alguns impostos, inclusive, o caráter
arrecadatório (finalidade fiscal) praticamente desaparece, impondo-se o caráter
regulatório tendo em vista a finalidade principal da exação, que é regular
comportamentos e impor modificações de conteúdo econômico ou social.
Não podemos deixar de salientar que, notadamente, a função fiscal
(arrecadatória) dos tributos também é de extrema importância ao meio ambiente, pois,
desta forma, o Estado através da arrecadação das receitas tem como implementar ações
que visem a proteção do meio ambiente, como prega o art. 225 de nossa Carta Maior.
2. Teoria geral do direito tributário
As bases para o estudo da teoria geral do direito tributário, para Alberto
Nogueira, são três: quem tributa, o que e como tributa e quem sofre os efeitos da
tributação.4 Teorias gerais do direito tributário não são consenso em função da sua
complexidade e peculiaridade de determinadas regiões e épocas.
“Se temos o direito de propriedade sobre algo, aparece também o direito de
ser tributado na medida correta e razoável”.5
3
TORRES, Ricardo Lobo. Curso de direito financeiro e tributário. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p.167.
NOGUEIRA, Alberto. Globalização, regionalização e tributação: a nova matriz mundial. Rio de
Janeiro: Renovar, 2000, p. 89.
5
NOGUEIRA, Alberto. Op. cit., p. 94.
4
229
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
A propriedade, no sentido atual, não deve ser entendida em caráter absoluto,
como a via o direito romano. Muitos de nossos impostos sobre a propriedade, que a
doutrina mais conservadora entende como sendo tributos reais (temos aí o IPTU e o
ITR), podem perfeitamente ser entendidos como impostos pessoais, na medida em que o
imposto incide não sobre a coisa, a res, mas sobre o exercício de um direito a essa coisa.
Apesar de o STF ter “batido o martelo” acerca da impossibilidade de o IPTU incidir de
forma progressiva (anteriormente à Emenda Constitucional nº 29/2000), em razão do
valor do imóvel – vedando dessa forma a progressividade fiscal do tributo, cremos que é
perfeitamente possível aplicar-se um critério de capacidade contributiva, tributando-se
de forma mais elevada os imóveis de maior valor. Isso sem prejuízo da tributação
extrafiscal, com a utilização do tributo de forma a penalizar a má utilização do imóvel,
seu não aproveitamento, em prejuízo a um desenvolvimento ecologicamente coerente
com os interesses sociais.
Aliás, o poder de tributar não pertence ao Estado, como explica Alberto
Nogueira: ―(...) o Estado não é detentor dessa faculdade. É apenas a entidade
incumbida de exercer esse papel, de acordo com o direito da sociedade ou, mais
objetivamente, com o direito de cada contribuinte‖.6
Com a tomada do poder pela alta burguesia, após a Revolução Francesa, assistiu-se ao
domínio e à imposição desta classe. Não se pode negar, contudo, a influência de 1789
no campo dos direitos fundamentais. Como assevera Ricardo Lobo Torres, ―o poder de
tributar nasce do espaço aberto pelos direitos humanos e por eles è totalmente
limitado. O Estado exerce o seu poder tributário sob a permanente limitação dos
direitos fundamentais e de suas garantias constitucionais‖.7 Os fatos de 1789 também
influenciaram a Constituição brasileira de 1824, como a referência à capacidade
contributiva. Desse modo, o poder de tributar nasce a partir da liberdade de iniciativa e
do direito de propriedade, tornando-se legítimo na medida em que respeita os direitos de
liberdade.
O fenômeno da tributação é visto por alguns como poder unilateral; para outros, o
Estado, por ser composto por representantes do povo, é legítimo e justo ao satisfazer as
necessidades do povo. Portanto, muitas vezes a figura do Estado encobre a verdadeira
face da relação tributária. Destarte, nossa opinião é de que há uma necessidade absoluta
6
7
NOGUEIRA, Alberto. Op. cit. (1997), pp. 97.
NOGUEIRA, Alberto, Op. cit.(1997), pp. 99.
230
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
de se apresentar o tributo bem visível, dentro de uma teoria geral específica, que o
fundamente, explique e legitime.
3. Reflexões sobre mudança social
A principal finalidade de muitos tributos, portanto, não será a de um
instrumento de arrecadação de recursos para o custeio das despesas públicas, mas a de
um instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada8. É a partir
dessa noção, que cabe, ainda preliminarmente, uma reflexão sobre a idéia de mudança
social, com análise de alguns conceitos que lhe são próximos9. A estrutura social,
dependendo do momento em que for estudada, pode apresentar-se de forma dinâmica ou
estática. Uma organização social tende a uma maior estagnação com a criação de
estratos sociais. Contudo a interação entre as classes sociais torna capaz a mudança
social.
Ação social, por seu lado, refere-se a movimentos sociais e grupos de
pressão movidos por determinados interesses, retardando ou acelerando as mudanças
sociais. Os grupos de pressão não constituem necessariamente uma reunião de pessoas
de determinada elite ou classe social, mas podem ser também uma junção de diversos
estratos sociais com os mesmos interesses. Os movimentos sociais, de outro lado, são
organizações claramente estruturadas e identificadas, as quais reúnem membros com
uma finalidade explícita. Suas ações dependerão da quantidade dos componentes, do
poder econômico e do modo como agirão, se através de movimentos grevistas,
manifestações, sabotagem etc. A ação será eficiente quando feita sobre as massas,
conscientizando-as.10
Quando se aborda o conceito de mudança social, uma idéia provocadora
surge com a noção de revolução. Revolucionar é mudar, mas em rítmo acelerado. A
revolução não nasce de um único fator determinante, mas sim de vários aspectos, sejam
eles sociológicos, filosóficos, políticos, religiosos e econômicos. A pré-revolução, o
projeto do objetivo a ser alcançado, não se confunde com a revolução, a qual é um
movimento que busca uma mudança rápida, sendo, às vezes, considerada violenta, não
8
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, p.528 e ss.
FALCÃO, “Tributação e mudança social”, Rio de Janeiro: Forense, 1981.
10
FALCÃO, Raimundo Bezerra, op.cit., pp.57-60.
9
231
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
pela sua crueldade, mas pelo seu profundo grau de modificação. A partir daí, infere-se a
mudança como conseqüência da revolução.
Nessa análise, cabe ainda efetuar uma reflexão sobre o desenvolvimento
econômico como fator de progresso, e portanto, de uma mudança social de caráter
positivo. O sociólogo canadense Guy Rocher afirma que o desenvolvimento econômico
consiste na utilização dos diferentes fatores econômicos com vista a aumentar o
rendimento nacional, elevar o nível de vida geral da população dum país ou duma
região e favorecer o bem-estar geral11. Marcus de Freitas Gouvêa lembra que a idéia de
desenvolvimento tem ocupado os economistas há muito, e que tal discussão somente
tomou corpo com o início do século XX, devido principalmente a dois fatores, o
primeiro relacionado com o surgimento de seus principais teóricos (Keynes e
Schumpeter), e o segundo em função da maior crise econômica da história moderna,
“representada pela quebra da bolsa de valores de Nova Iorque”12.
Desenvolvimento
econômico,
regra
geral,
assume
um
caráter
dimensional, ou seja, é um progresso em todas as direções, implicando em benefícios
para toda a sociedade de um modo geral (educação, saúde, etc.). Por outro lado, no
crescimento econômico há um aumento na produção, nos investimentos e consumos,
acarretando uma maior concentração de renda nas mãos de determinadas elites. Para
Gouvêa, as preocupações com o desenvolvimento “trascendem aquelas voltadas para o
crescimento quantiitavamente considerado e para as correções do mercado”. Preocupase também, enfatiza o autor, “com os indicadores sociais e com qualidade de vida, de
forma que o tema deixa de ser exclusivamente matéria a cargo dos economistas”13
Pois bem, uma questão fundamental diz respeito ao problema ecológico. Tratase de uma mudança de paradigma e nossa análise volta-se então para o problema da
sobrevivência do planeta e consequentemente do Homem. Trata-se de uma reflexão
voltada para o surgimento de novos mecanismos dos quais devemos lançar mão na
proteção ambiental. Desta forma tentamos mostrar que o Direito, com suas múltiplas
disciplinas, deve, através da interdisciplinariedade, ser instrumento de ação neste
sentido.
11
ROCHER, Guy. Sociologia geral. Lisboa: Editorial Presença, v. 5, 1971, p. 109-117.
GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no direito tributário. Belo Horizonte: Del Rey, 2006,
p.88.
13
Idem, pp.88-89.
12
232
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Não é de hoje que ideais ambientalistas têm sido preocupação em nosso
cotidiano. Organizações não governamentais como o Greenpeace, demais instituições,
além de pessoas de todo o planeta têm mostrado ao mundo a problemática da
degradação ambiental. Interessante lembrar que em 1815, José Bonifácio - Primeiro
Ministro do Brasil Independente - já possuía esta preocupação: ―Se a navegação
aviventa o comércio e a lavoura, não pode haver navegação sem rios, não pode haver
rios sem fontes, não há fontes sem chuvas, não há chuva sem umidade, não há umidade
sem florestas‖14.
Não precisamos discorrer muito sobre a questão ambiental em si. Apenas cabe
lembrar alguns fatores responsáveis pelo problema ambiental. A Revolução Industrial
não pode deixar de ser mencionada como causadora de danos ambientais. A explosão
demográfica, a gerar uma demanda cada vez maior por alimentos, agricultura e pecuária
em franca expansão tomando o lugar de florestas, fatores acentuados pela
competitividade do capitalismo, são causas de danos ao meio ambiente.
As mudanças climáticas, efeitos da ação humana, têm provocado desastres
ecológicos cada vez mais freqüentes. O derretimento das geleiras, os ciclones cada vez
mais potentes, enchentes, calor e incêndios na Europa e secas, são eventos cada vez
mais constantes e danosos ao meio ambiente.
De tal feita, várias são as tentativas de desenvolver mecanismos, nacionais e
internacionais, que combatam tais danos ao meio ambiente, assim como propiciem um
desenvolvimento sustentável, prevalecendo a proteção ao meio ambiente sem que se
estanque o desenvolvimento necessário à humanidade.
Estabelecer
condições
para
que
a
equação
meio
ambiente
versus
desenvolvimento/ comércio nacional e internacional - baseada em princípios jurídicos
no âmbito interno e externo -, tem sido tarefa árdua e de extrema dificuldade aos
agentes do direito. Entretanto, tal engajamento é indispensável à vida, do Homem e do
planeta.
Na questão de indução de comportamentos, a tributação ambiental leva os
agentes a ações que visem a redução da poluição e a racional utilização dos recursos
14
SVIRSKY, Enrique; CAPOBIANCO, João Paulo R. (organizadores). Ambientalismo no Brasil –
passado, presente e futuro. São Paulo, Brazil: Instituto Socioambiente/Secretaria do Meio Ambiente do
Estado de São Paulo, pág. 16.
233
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
naturais15. Neste sentido, a tributação ecológica leva o agente a realizar sua atividade
buscando maior eficiência na proteção ao meio ambiente como também maximiza seus
lucros, recolhendo uma carga menor de tributos.
A utilização de agentes químicos menos nocivos ao meio ambiente, incrementos
tecnológicos e de instalações, novos métodos de produção, também são mecanismos
que podem levar a uma menor carga tributária e maior proteção ambiental. Isto posto,
verificamos que a tributação ecológica leva grande vantagem na proteção ao meio
ambiente em relação aos instrumentos normativos.
Desta forma, a ação ecológica pode utilizar-se de diversos instrumentos,
dentre eles a tributação. Em nível internacional, além da formulação de princípios com
esse caráter, já existe uma prática concretizada através de ações pontuais e está se
iniciando uma tendência à reformulação do próprio sistema tributário. Embora a luta de
pioneiros, o Brasil parece ter sido realmente despertado para a questão pela pressão
internacional, mais especificamente por ocasião da realização do Congresso
Internacional sobre Meio Ambiente (ECO-92), no Rio de Janeiro, em 1992, tendo em
vista o diagnóstico da necessidade de se preservarem as florestas tropicais para se obter
êxito na luta contra o "efeito estufa".
Na teoria econômica, a inclusão da solução tributária para os problemas
do meio ambiente tem sua origem em Pigou, que sugeriu, admitida a hipótese da
ausência de custos administrativos16, a instituição de um imposto para a correção das
externalidades negativas e o pagamento de um subsídio como compensação para os
efeitos externos positivos (Pigou, 1932, p.192, 381).
Quais seriam, então, os objetivos da tributação ecológica? Basicamente, e
em breve síntese, são a eficiência econômica e a proteção do meio ambiente. Segundo
Baumol e Oates (1971, p. 56, rodapé), por exemplo, o poder de tributar pode
representar, também, o poder de restabelecer as condições originais do meio ambiente.
Com Eugênio Lagemann, vamos buscar um pouco da experiência
internacional. A prática internacional pode ser dividida em duas estratégias: a instituição
isolada de contribuições e a reforma do sistema tributário. A tributação ecológica com
15
PACHECO FILHO, Eduardo Galvão de França. O Direito Tributário na proteção ao meio ambiente, in
http://www.advogado.adv.br/artigos/2006/eduardogalvaodefrancapachecofilho/odireitotributario.htm,
acesso em 03/05/2009.
16
Pigou, 1956, p. 99. apud LAGEMANN, Eugênio. Tributação ecológica. Ensaios FEE, vol.23, n.1,
2002, pág.301.
234
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
caráter parcial foi a primeira opção, e já se registram experiências em diferentes países
(Suhr, 1989, apud Lagemann, 2002).
No que se refere à poluição do ar, destacam-se as experiências do Japão,
da Holanda e da Noruega. É ainda Lagemann17 que lembra ter sido o Japão, em meados
dos anos 70, quem introduziu uma tributação cujo fato gerador é a emissão de dióxido
de enxofre (SO2). Sujeitos passivos são as empresas com uma emissão horária superior
a 10.000 m3. O valor do tributo é calculado segundo o método da repartição, sendo
fixado um valor equivalente aos prejuízos causados à saúde a serem cobertos. Como sua
receita se destina ao fundo para compensar os prejuízos causados à saúde, não é
garantido que seja alcançado um padrão adequado de qualidade do ar.
A Holanda e a Noruega escolheram como objeto de tributação,
respectivamente, um inpute e um produto ao invés das emissões. A Holanda tributa os
combustíveis e define o valor desse tributo de acordo com o tipo de combustível e não
de acordo com o seu potencial de prejudicar o meio ambiente. Sua receita objetiva
cobrir os custos de controle e de administração das emissões aéreas 18. A Noruega tributa
os produtos energéticos segundo o conteúdo de enxofre e tributa, assim, indiretamente,
o volume de emissões de SO2. Como ele é cobrado através de um valor fixo aplicado
sobre quantidades, seu efeito redutor da poluição declina com a elevação dos preços. No
que se refere à poluição das águas, registram-se as experiências da França, da Holanda e
da Alemanha Ocidental. A França foi pioneira na Europa Ocidental ao implementar a
tributação das emissões de águas com fins ecológicos em 1968. Sujeitos passivos são as
comunidades e as empresas.
O tributo é fixado com base na quantidade e na qualidade das emissões19.
As emissões são divididas em seis categorias que são diferentemente tributadas pelas
organizações responsáveis pelas águas. A fixação da tributação é realizada com o
auxílio de uma tabela de coeficientes de emissões, que considera o volume de emissões
segundo setores de atividade e processos de produção. Parte dessa receita é direcionada
para a construção e a manutenção de estações de tratamento de líquidos poluentes. O
objetivo é atingir determinado nível de qualidade das águas. Na Holanda, existe, desde a
década de 70, um sistema semelhante ao da França para a canalização de águas
17
LAGEMANN, Eugênio, “Tributação ecológica”, Ensaios FEE, vol.23, n .1, 2002, pág. 313
Idem.
19
LAGEMANN, op.cit., p.314
18
235
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
poluentes nas águas sob administração do Reino. No entanto, também as províncias, as
comunidades e as sociedades civis cobram contribuições sobre as emissões em águas
sob sua administração.
As receitas provenientes da tributação aplicada pela administração das
águas do Reino são direcionadas para um fundo de financiamento de estações de
tratamento, enquanto as receitas recolhidas pelas províncias, comunidades e sociedades
civis são aplicadas nas suas próprias estações. Na República Federal da Alemanha, a
tributação das emissões líquidas foi implementada a partir de 1981, com base na
legislação aprovada em 1976. Sujeitos passivos são apenas os poluidores diretos. O
valor do tributo é fixado com base nas quantidades de unidades poluentes emitidas.
Estas são calculadas, por sua vez, com base no conteúdo de materiais oxidáveis, de
metais pesados, de ligas halogênicas e de seu potencial de envenenamento dos peixes. A
receita decorrente da tributação é destinada para o financiamento de medidas que visam
à manutenção ou à melhoria da qualidade das águas.
Mesmo
enfrentando,
por
vezes,
dificuldades
em
estabelecer
empiricamente a relação causal devido às interdependências presentes na realidade,
parece que essas experiências de aplicação prática da receita tributária com fins
ecológicos atingem a esperada diminuição das emissões poluentes, reduzindo,
conseqüentemente, as externalidades negativas20. Importante sempre é a correta
definição do fato gerador e o alcance de todas as emissões.
4. O ICMS ecológico
O ICMS Ecológico tem representado um avanço na busca de um modelo
de gestão ambiental compartilhada entre os Estados e Municípios no Brasil, com
reflexos objetivos em vários temas, em especial a conservação da biodiversidade,
através da busca da conservação in-situ, materializada pelas unidades de conservação e
outros espaços especialmente protegidos21.
20
Suhr, 1989, p. 62-63, apud LAGEMANN, op.cit., p.314.
LOUREIRO, Wilson. “ICMS Ecológico - A consolidação de uma experiência brasileira de
incentivo
a
Conservação
da
Biodiversidade”,
in
http://www.ambientebrasil.com.br/composer.php3?base=./snuc/index.html&conteudo=./artigos/icms.
html, acesso em 03/05/2009.
21
236
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
De notar que não se trata de matéria tributária, eis que envolve a
repartição de receita dos Estados membros da Federação. Estes, após arrecadarem o
ICMS junto a seus contribuintes, valem-se de uma permissão constitucional, como visto
antes, para forçarem seus Municípios a adotarem políticas ambientais benéficas, do
ponto de vista social e ecológico. É matéria de conteúdo financeiro, portanto, a ser
tratada no âmbito do Direito Financeiro.
Trata-se de uma idéia, de difícil implementação, que vem sendo adotado
por vários Estados membros de nossa Federação. Como sabemos, o ICMS é o principal
imposto estadual. Segundo a lei, 25% da arrecadação do ICMS devem ser destinados
aos Municípios. Desse percentual, outros 25% podem ser repassados por critérios
estabelecidos pelos Estados. Simplificando: do total da arrecadação desse imposto,
6,25% deverão ser repassados aos Municípios por critérios particulares de cada Estado.
Considerando que a arrecadação nacional de ICMS em 2004 foi de 7,8% do PIB, ou
cerca de R$ 138 bilhões, isso equivale, hoje, a um montante de R$ 8,6 bilhões. Uma
soma substancial.
O ICMS ecológico canalizaria uma parte desses recursos para ressarcir e
incentivar os municípios pela boa conservação ambiental22. Funciona bem? Qual a
quantidade de recursos que deve ser empenhada para esse fim? Os critérios adotados
para a distribuição dos recursos são justos?
O estado pioneiro do ICMS ecológico foi o Paraná23, em 1991. Foi
definido que 5% do total de recursos repassados aos municípios obedecerão a critérios
ambientais. Metade desses recursos são distribuídos para municípios possuidores de
mananciais que abastecem outros municípios e a outra metade vai para aqueles que têm
unidades de conservação. Quanto cada um merece é definido por critérios qualitativos,
definidos pelo Instituto Ambiental do Paraná (IAP).
Criado no Paraná, foi adotado também em dez Estados brasileiros e está
em debate ou com anteprojetos de Lei em tramitação nas respectivas casas legislativas
em seis outros Estados.
22
PEGURIER, Eduardo. Debatendo o ICMS ecológico. In http://www.oeco.com.br/eduardo-pegurier/47eduardo-pegurier/17133-oeco_12009, acesso em 4/05/2009.
23
As informações sobre o ICMS ecológico foram obtidas nos artigos de Loureiro e Pegurier, cit.
237
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Trata da utilização de uma possibilidade aberta pelo artigo 158 da
Constituição Federal brasileira que permite aos Estados definir em legislação específica,
parte dos critérios para o repasse de recursos do Imposto sobre Circulação de
Mercadorias e Serviços – ICMS, que os municípios tem direito. Neste caso a
denominação ICMS Ecológico faz jus na utilização de critérios que focam temas
ambientais.
Nascido sob o argumento da compensação financeira aos Municípios que
possuíam restrição do uso do solo em seus territórios para o desenvolvimento de
atividades econômicas clássicas, o ICMS Ecológico tinha tudo para se transformar
numa ferramenta estéril, acrítica, uma espécie de “chancelador” puro e simples para o
repasse dos recursos, mas felizmente foi, e está sendo possível transformá-lo em muito
mais do que isto. O ICMS Ecológico tem representado um instrumento de
compensação, mas acima de tudo “incentivo” e em alguns casos, como “contribuição”
complementar à conservação ambiental.
Incentivo porque têm, por força da metodologia adotada, especialmente
no Paraná, estimulado os Municípios que não possuem unidades de conservação a criar
ou defender a criação destas, ou ainda aqueles Municípios que já possuem unidades de
conservação em seu território, que tomem parte de iniciativas relacionadas a
regularização fundiária, planejamento, implementação e manutenção das unidades de
conservação.
No caso paranaense, cabe realçar que entre 1992 e 2000 houve um
incremento de 1.894,94 por cento em superfície de das unidades de conservação
municipais, de 681,03 por cento nas unidades de conservação estaduais, 30,50 por cento
nas unidades de conservação federais e terras indígenas e de 100 por cento em relação
as RPPN estaduais. Houve ainda melhoria na qualidade da conservação dos parques
municipais, estaduais e das RPPN.
Este trabalho se ocupará em realizar uma descrição objetiva e uma
análise, a luz da experiência paranaense na execução do ICMS Ecológico em relação à
conservação da Biodiversidade, em relação às legislações já aprovadas e implantadas,
ou em implantação no Brasil, bem como das propostas em fase de discussão.
238
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
5. Aspectos da legislação sobre o ICMS Ecológico aprovadas, implantadas ou em
implantação.
No Estado do Paraná a Lei do ICMS Ecológico, em relação à
conservação da biodiversidade tem por objetivos: (a) aumento do número e da
superfície de unidades de conservação e outras áreas especialmente protegidas
(dimensão quantitativa); (b) regularização, planejamento, implementação e busca da
sustentabilidade das unidades de conservação (dimensão qualitativa); (c) incentivo à
construção dos corredores ecológicos, através da busca da conexão de fragmentos
vegetais; (d) adoção, desenvolvimento e consolidação institucional, tanto em nível
estadual, quanto municipal, com vistas a conservação da biodiversidade e, (e) busca da
justiça fiscal pela conservação ambiental.
Todo e qualquer município pode se beneficiar com recursos do ICMS
Ecológico quer seja através da criação pelo próprio município ou por outro ente
federado, de uma unidade de conservação, ou do aumento da superfície das unidades de
conservação já criadas, ou ainda pela melhoria da qualidade da conservação das
unidades de conservação, ou outra área especialmente protegida.Visando facilitar o
exercício do ICMS Ecológico, os índices percentuais definidos para cada município, são
calculados a partir da aplicação de fórmula, que visa mensurar Coeficiente de
Conservação da Biodiversidade – CCB.
Além do Paraná, nove outros Estados possuem legislações aprovadas.
São Paulo foi o primeiro Estado a adotar o ICMS Ecológico depois do Paraná, com a
aprovação da Lei n.o 8.510/93. A lei paulista estabeleceu que uma percentagem de 0,5%
dos recursos financeiros deve ser destinada aos Municípios que possuem unidades de
conservação e outros 0,5% aos Municípios que possuem reservatórios de água
destinados a geração de energia elétrica. Em relação às unidades de conservação, a
legislação prevê beneficiar os Municípios que possuem seus territórios integrando
unidades de conservação criadas pelo Estado, não considerando as áreas criadas e
geridas por outros níveis de gestão. Fixa ainda as categorias de manejo passíveis de
gerar os benefícios, deixando de fora as Reserva Particulares do Patrimônio Natural.
Além disto a Lei, auto-aplicável, limita a aplicação de variáveis ligadas à avaliação da
qualidade das unidades de conservação, que possibilitaria melhor aproveitamento do
239
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
mecanismo em favor da consolidação das unidades de conservação, a exemplo do que
acontece no Paraná24.
O Rio Grande do Sul aprovou, em 1997, a Lei n.o 11.038, que criou,
mesmo por “vias oblíquas”, seu ICMS Ecológico. O modelo gaúcho associa o critério
ambiental ao critério “área do município”, definindo no inciso III, do artigo 1º da
referida Lei, que deverá ser repartido entre os Municípios “7% (sete por cento) com
base na relação percentual entre a área do município, multiplicando-se por 3 (três) as
áreas de preservação ambiental e aquelas inundadas por barragens, exceto as
localizadas nos municípios sedes das usinas hidrelétricas, e a área calculada do
Estado....‖. A par de qualquer limitação, os profissionais do órgão ambiental
encarregados pelo cumprimento da Lei, tem procurado, com criatividade, tirar o
máximo proveito da oportunidade criada pela Lei em favor da consolidação das
unidades de conservação, utilizando, além da variável quantitativa, variáveis
qualitativas.
Minas Gerais colocou em prática o ICMS Ecológico, também
denominada de "Lei Robin Hood", através da criação da Lei n.o 12.040/95. A iniciativa
mineira foi extremamente importante pela contribuição para a consolidação do ICMS
Ecológico, colocando em prática além dos critérios unidades de conservação e
mananciais de abastecimento, outros ligados ao saneamento ambiental, coleta e
destinação final do lixo e patrimônio histórico. Do ponto de vista das unidades de
conservação os resultados em relação ao aumento da superfície de áreas protegidas
incentivadas pelo ICMS Ecológico tem sido contundentes. No Plano da criação de
unidades de conservação municipais, tem havido grande repercussão a criação das
Áreas de Proteção Ambiental, o que deve ser recebido com alguma cautela posto não
exigirem esta categoria de manejo de unidade de conservação desapropriação, o que
pode ativar o que se denomina “indústria das APAs”. O Estado de Minas não adotou
variáveis qualitativas para o cálculo dos índices que os Municípios têm direito a receber,
perdendo assim a oportunidade de utilizar mais efetivamente o ICMS Ecológico em
benefício da consolidação das unidades de conservação.
Rondônia criou o ICMS Ecológico em 1996, através da Lei n.o 147/96. O
modelo rondonense está calcado no critério ligado às unidades de conservação e terras
24
LOUREIRO, Wilson. op.cit.
240
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
indígenas. Aspecto importante da Lei rondonense diz respeito s possibilidade da
redução do ICMS Ecológico aos Municípios cujas unidades de conservação sofram
invasões ou outros tipos de agressões. Rondônia também não adota o critério qualitativo
e, na mesma linha de Minas gerais, perde a oportunidade incrementar o processo de
regularização, planejamento, implementação e manutenção das unidades de
conservação, além da busca, via ICMS Ecológico da melhoria da qualidade de vida dos
povos indígenas.
As Leis devem prever processo orgânico de articulação entre Estados e
Municípios e sempre que possível a União, de forma que se possa caminhar para a
construção e operacionalização da agenda 21, bem como de uma espécie de
Federalismo Conservacionista, a exemplo do que previa o Sistema Nacional do Meio
Ambiente.
Em relação à conservação da biodiversidade, os Estados quando da
adoção de suas Leis deveriam se orientar pelo SNUC, porém devem buscar a aprovação
de Lei sobre Sistemas Estaduais, com adoção de Planos do Sistema de Unidades de
Conservação, face não ser o ICMS Ecológico um fim em si mesmo, mas um
instrumento meio, não devendo funcionar de maneira isolada, mas em conjunto com
outras ações públicas.
Podemos concluir, dessa forma, que o ICMS ecológico é um mecanismo
que visa estimular os governantes a se preocuparem com o meio ambiente e, assim, a
adotarem o desenvolvimento sustentável como meta de governo. Trata-se de um
excelente exemplo de utilização de incentivos fiscais para promover a preservação
ambiental, que deveria ser adotado como um modelo de política tributária.
6. Referências
BALTHAZAR, Ubaldo Cesar. História do Tributo no Brasil, Fpolis: Ed.Boiteux, 2005.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário, SP: Forense, 1975.
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241
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
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242
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
ALGUNS COMENTÁRIOS COMPARATIVOS A RESPEITO DA RELAÇÃO
ENTRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E PROTEÇÃO
AMBIENTAL NOS SISTEMAS JURÍDICOS DO BRASIL E DA ALEMANHA
Andreas J. Krell1
SUMÁRIO
Introdução. 1. A função social da propriedade e a proteção ambiental no Brasil. 2.
Alguns dados sobre a função social da propriedade: definição, restrição e indenização
do sistema jurídico da Alemanha. 3. A situação doutrinária e jurisprudencial acerca da
definição e restritação da propriedade privada no Brasil: pontos de divergência.
Conclusão. Referências.
RESUMO
O presente artigo apresenta uma breve análise do instituto da função social da
propriedade e sua relação à proteção ambiental, através de uma abordagem comparativa
de alguns problemas, conceitos e instrumentos oriundos dos sistemas jurídicos da
Alemanha e do Brasil, onde o novo Código Civil prescreve que a propriedade privada
deve atender a valores ambientais consagrados na CF de 1988. Mostra-se que doutrina e
jurisprudência brasileira ainda não desenvolveram critérios objetivos para a delimitação
entre as normas que determinam o próprio conteúdo da propriedade (não indenizáveis) e
determinações de conteúdo e de restrição que merecem uma indenização, havendo uma
estagnação discussão da temática abrangente em torno dos conceitos da desapropriação
e do direito adquirido. Chega-se à conclusão que há experiências teóricas e práticas do
sistema jurídico alemão acerca da temática que poderão fornecer subsídios para o
progresso da discussão no âmbito nacional.
1
Professor Associado de Direito Ambiental e Constitucional e Diretor da Faculdade de Direito (FDA) da
Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió; Doutor em Direito pela Freie Universität Berlin;
Professor colaborador dos Cursos de Mestrado/Doutorado da Faculdade de Direito do Recife (UFPE);
Pesquisador bolsista do CNPq (Nível 1); Membro do Comitê da CAPES na área do Direito.
243
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
PALAVRAS-CHAVE: Função social da propriedade. Proteção ambiental. Sistemas
jurídicos brasileiro e alemão.
INTRODUÇÃO
O fenômeno da constitucionalização do Direito demanda uma rediscussão de
vários institutos que, a priori, tinham um caráter meramente privatístico. É o que
ocorre, notadamente, com a propriedade privada, que deve estar pautada no valor da
proteção ao meio ambiente, consagrado no art. 225 da Constituição brasileira. O
presente artigo tem como objetivo analisar, de forma não exaustiva, alguns instrumentos
e conceitos ligados ao tema “propriedade e meio ambiente”, como eles se apresentam
atualmente nos sistemas jurídicos brasileiro e alemão, para fins de uma comparação
produtiva das soluções desenvolvidas nesses dois países tão diferentes. A metodologia
utilizada é bibliográfica, teórica, exploratória, descritiva e jurisprudencial.2
1 A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE E A PROTEÇÃO AMBIENTAL NO
BRASIL
A utilização da propriedade, que é, a princípio, livre, deve – por expressa
previsão constitucional – atender à sua função social (art. 5°, XXIII, da CF) e se
conformar às restrições impostas pelo Poder Público, a fim de assegurar que o seu uso
não coloque em risco outros valores ou garantias asseguradas à coletividade. É de frisar
que “a função social da propriedade não tem inspiração socialista, antes é um conceito
próprio do regime capitalista [...], ao configurar a execução da atividade do produtor de
riquezas, dentro de certos parâmetros constitucionais, como exercida dentro do
interesse geral”. Portanto, ela “passou a integrar o conceito de propriedade,
justificando-a e legitimando-a.3
2
Algumas das idéias aqui desenvolvidas foram inspiradas pelo projeto de pesquisa intitulado “A
compatibilidade do direito de proteção à natureza com a garantia constitucional da propriedade na
Alemanha e no Brasil”, apresentado por Cláudia Jecov Schallenmüller ao CNPq, em 2005.
3
BERCOVICI, Gilberto. Constituição econômica e desenvolvimento: uma leitura a partir da
Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 147.
244
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Sob o novo paradigma da constitucionalização do Direito Civil, esta nova
ideologia foi confirmada pelo novo Código Civil brasileiro, que expressa a “redefinição
do conteúdo do direito da propriedade à luz dos valores constitucionais ecológicos ou
socioambientais, tendo em conta a carga de deveres e obrigações correlatas ao seu
exercício”.4 Nessa linha, a Lei 10.406/02 (CC), no seu art. 1.228, § 1°, estabelece que
[...] o direito de propriedade deve ser exercido em consonância com as suas
finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de
conformidade com o estabelecido em lei especial, a flora, a fauna, as belezas
naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico, bem
como evitada a poluição do ar e das águas.
Esta significativa mudança no mais importante diploma jurídico-civil do País
influencia também o seu Direito Administrativo, no sentido de que abre espaços
maiores para que medidas estatais possam definir os limites concretos do conceito da
propriedade nas diversas áreas. Há, por conseguinte, importantes efeitos para o uso de
imóveis urbanos e rurais, além da questão da obrigação de indenização dos respectivos
proprietários.
Já na época da vigência da Carta de 1967/69, Pontes de Miranda afirmava em
relação ao art. 180, § único, que colocava sob a proteção especial do Poder Público
(entre outros bens e objetos) as paisagens naturais notáveis, que este dispositivo era
“lei que limita o direito de propriedade, mas a lei-parte da Constituição, de modo que o
legislador ordinário nenhum poder tem para alterá-la, ou para interpretá-la, e já a
instituição da propriedade aparece, na Constituição mesma, com essa limitação”.5
Entretanto, foi somente a partir da Carta de 1988, que alguns doutrinadores
começaram a reconhecer que não cabia mais falar de “desapropriação” na esfera dos
limites internos da propriedade, “pois um ônus indissociável da propriedade não tem o
dom de ser, a só um tempo, seu elemento e uma intervenção desapropriatória”, não
sendo possível “compensar pela negação (= desapropriação) de um direito que não se
4
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do meio ambiente: a dimensão
ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008, p. 209.
5
PONTES DE MIRANDA, F. C. Comentários à Constituição de 1967; com a Emenda n. 1, de 1969 –
Tomo VI. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1987, p. 368 (destaques no original).
245
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
tem”, visto que os “figurantes internos colocam-se como condicionadores a priori do
direito de propriedade”.6
Pode-se constatar que surgiu no Brasil, nas últimas duas décadas, “um
movimento sócio-político e jurídico no sentido de substituir o reconhecimento
incondicional dos direitos individuais de propriedade plena pela noção da função social
e ambiental da propriedade e da cidade”.7 Isto significa que o exercício do direito de
propriedade será sempre limitado pela sua função ambiental; ultrapassada a noção da
propriedade privada que sofre restrições impostas pelo Direito Ambiental, percebe-se
que o seu próprio conteúdo está “funcionalizado” pelo meio ambiente.8
Tem-se, portanto, no âmbito dos bens e valores ambientais e urbanísticos, em
vez de um direito privado absoluto, a ser restringido posteriormente pelo poder de
polícia, mas um direito que “já nasce limitado”.9 A mais importante conseqüência dessa
nova ideologia constitucional da função ambiental da propriedade urbana10 foi a edição,
em 2001, do Estatuto da Cidade (Lei 10.257), que veio a regulamentar os artigos 182 e
183 da CF. Esta lei federal, logo no início de seu texto, mostra a íntima ligação entre a
proteção ambiental e o ordenamento dos espaços urbanos, quando ressalta, logo no seu
art. 1°, o estabelecimento de “normas de ordem pública e interesse social que regulam o
uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos
cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental”.
O Estatuto da Cidade desempenha papel essencial na fixação e efetivo
cumprimento da função social e ambiental da propriedade urbana, que antes ficava a
cargo do Município. Agora, este é obrigado, especialmente na elaboração do seu Plano
Diretor, a seguir as normas da Lei 10.257/01, que regulamentou os dispositivos
constitucionais sobre o assunto e trouxe significativas modificações no regime do uso
do solo urbano.
6
BENJAMIN, Antônio Herman. “Desapropriação, reserva florestal legal e áreas de preservação
permanente”. In: FIGUEIREDO, Guilherme J. Purvin de (coord.). Temas de Direito Ambiental e
Urbanístico. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 68.
7
FERNANDES, Edésio. Estatuto da Cidade: promovendo o encontro das Agendas “Verde” e “Marrom”.
In: FERREIRA, Heline S.; LEITE, José R. Morato. Estado de Direito ambiental: tendências – Aspectos
constitucionais e diagnósticos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2004, p. 308.
8
Cf. BENJAMIN, Antônio Herman. Função ambiental. In: BENJAMIN, A. H. (coord.). Dano
ambiental: prevenção, reparação e repressão. São Paulo: RT, 1993, p. 48ss.; CAMPOS JR., Raimundo
Alves de. O conflito entre o direito de propriedade e o meio ambiente. Curitiba: Juruá, 2004, p. 137s.
9
PINTO, Victor Carvalho. Plano diretor e direito de propriedade. São Paulo: RT, 2005, p. 215.
10
Vide DIAS, Daniella Santos. Desenvolvimento urbano. Curitiba: Juruá, 2002, p. 138ss.
246
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
A fixação de vários critérios de ordem ecológica que consolidam o entendimento
da atribuição de uma verdadeira função ambiental à propriedade imobiliária urbana faz
com que a política urbana municipal esteja diretamente ligada à sua política ambiental,
buscando-se conciliar crescimento urbano, infra-estrutura e função social das cidades
com qualidade ambiental.11
2 ALGUNS DADOS SOBRE A FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE:
DEFINIÇÃO, RESTRIÇÃO E INDENIZAÇÃO NO SISTEMA JURÍDICO DA
ALEMANHA
Na Alemanha, a garantia constitucional da propriedade encontra-se regulada no
art. 14 da Lei Fundamental (LF), de 1949, que possui dois principais elementos:
a)
as
“determinações
de
conteúdo
e
limites”
(Inhalts-und
Schrankenbestimmungen) do art. 14, inciso I, n. 2, LF, que concretizam a função social
da propriedade (art. 14, inciso II, n. 2), fixando possibilidades de uso e disposição desta.
Ocorrem por meio de leis parlamentares e dispositivos abstratos e gerais do Executivo.
Em regra, não há pagamento de indenizações em razão dessas medidas.
b) a desapropriação (Enteignung) do art. 14, n. 3, LF, que se dá quando um
direito patrimonial protegido é subtraído de um particular total ou parcialmente, por
meio de ato soberano, para realizar uma tarefa pública. Para tanto, é necessário que haja
sempre uma intervenção concreta e individual na propriedade, que cause a subtração
total ou parcial de posições concretas e subjetivas do proprietário. Além disso, é preciso
que uma lei desapropriatória regulamente o tipo e o montante da indenização.
Um bom exemplo para a concepção da função social da propriedade e seus
efeitos concretos é a área dos recursos hídricos.12 Em princípio, o sistema jurídico
alemão aceita a propriedade privada de corpos de água. Referido direito, no entanto, foi
fortemente delimitado pela Lei federal de Gerenciamento dos Recursos Hídricos
11
Cf. CAVEDON, Fernanda de Salles. Função social e ambiental da propriedade. Florianópolis:
Visualbooks, 2003, p. 74s.
12
Vide KRELL, Andreas J. Instrumentos básicos do gerenciamento e da proteção dos recursos hídricos na
Alemanha. Revista Brasileira de Direito Ambiental, vol. 5, São Paulo, p. 41-72, 2006.
247
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
(Wasserhaushaltsgesetz - WHG),13 que concretizou o conteúdo da propriedade hídrica,
sem, no entanto, “limitá-la”.
O BVerfG afirmou que o direito de livre disposição do dono de um imóvel seria
“afetado” pelo princípio constitucional da função social da propriedade, consagrado no
art. 14, II, LF, que reza, de forma lapidar: “Propriedade obriga. Seu uso deve, ao mesmo
tempo, servir ao bem da comunidade.”14 Num caso, julgado em 1981,15 denominado
“Decisão sobre a retirada de cascalho molhado” (Naßauskiesungsbeschluß), o
proprietário de um terreno retirava cascalho numa profundidade elevada, atingindo o
lençol freático. Negou-se que este ato seria coberto pelo direito de propriedade do
particular, com sujeição do mesmo à autorização ou até proibição do órgão competente,
como expressão do direito do Estado de definir “conteúdo e limites” da propriedade,
sem o dever de pagar indenização.
O Direito das Águas da Alemanha é um exemplo ilustrativo da tendência geral
do Direito Ambiental em direção de uma “desindividualização” da ordem jurídica. 16 Os
tribunais deste país dificilmente concedem indenização a particulares atingidos por
“medidas de concretização” da propriedade hídrica, que somente é possível em casos do
estabelecimento de verdadeiras “restrições” à propriedade privada. Todavia, nos
processos de concessão de outorgas hídricas, devem ser respeitados também os
interesses individuais de terceiros, na medida em que estes sempre podem impetrar
recursos administrativos e, posteriormente, judiciais contra as decisões tomadas pelo
Poder Público.
Prevalece no direito alemão o entendimento de que tanto leis parlamentares
como normas gerais editadas pelo Executivo são capazes de concretizar o conteúdo e
13
A WHG já foi alterada diversas vezes e novamente promulgada em 2002.
“Art. 14 (2) Eigentum verpflichtet. Sein Gebrauch soll zugleich dem Wohle der Allgeinheit dienen.” O
teor da norma corresponde praticamente ao do art. 153 (3), da Constituição da primeira República Alemã,
de 1919, elaborada por Assembléia Constituinte (diretamente eleita), cujas reuniões foram realizadas no
Teatro de Weimar, pequena cidade no Estado da Turíngia, como homenagem à herança dos valores
culturais e morais da Alemanha, representados por grandes poetas como Goethe, Schiller, Herder e
Wieland, que lá tinham atuado. Em 1949, os criadores da Lei Fundamental fizeram apenas pequenos
ajustes lingüísticos ao referido art. 14, sem alteração do conteúdo material, inserindo o verbo “servir”
(dienen) no lugar de “ser serviço” (Dienst sein) e a expressão “bem da comunidade” (Allgemeinwohl),
para substituir a expressão arcaica “o melhor geral” (das Gemeine Beste).
14
15
16
BVerfGE (Coletânea oficial das decisões do Tribunal Constitucional Federal), n. 58, p. 300ss., 335s.
KLOEPFER, Michael. Umweltrecht. München: C. H. Beck, 1998, p. 832.
248
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
definir os limites da função social da propriedade, podendo haver, também, restrições de
uso econômico de bens imóveis de particulares, as quais, em princípio, não devem ser
indenizadas por parte do Estado. Foi este o principal resultado da referida decisão do
BVerfG sobre o “cascalho molhado”, na qual foi estabelecido que uma “determinação
de conteúdo/limites” jamais poderia ser considerada uma desapropriação, haja vista que
sempre envolve casos concretos e deve incluir o pagamento de uma indenização.17
Em 1999, o BVerfG acrescentou importantes detalhes à sua jurisprudência sobre
os contornos jurídicos da propriedade e a sua função social, permitindo, em certas
circunstâncias, uma indenização também nos casos da concretização do conteúdo da
propriedade, chamado de “definição indenizável de conteúdo” (ausgleichspflichtige
Inhaltsbestimmung). Decidiu que, nos casos em que o legislador queira definir conteúdo
e limites da propriedade, este teria que fixar também as condições, a forma e o volume
da compensação de possíveis encargos desproporcionais de proprietários. Ao mesmo
tempo, determinou a obrigação da Administração Pública de decidir sobre esta
compensação já no momento da concretização da restrição da propriedade, sempre com
fundamento no respectivo diploma legal.18
A decisão sobre o “exemplar obrigatório” (Pflichtexemplarsentscheidung)19
tratou da obrigação legal das editoras alemãs a entregar, no mínimo, um exemplar de
cada livro publicado às respectivas bibliotecas estaduais, como uma forma de “definição
de conteúdo/limites” da propriedade, que concretiza a sua função social. A falta da
previsão legal de uma indenização foi julgada inconstitucional, já que o legislador era
obrigado de criar normas que equilibrassem os diferentes encargos, para preservar o
princípio da proporcionalidade. No caso, considerou-se desproporcional que uma
pequena editora, especializada em produzir livros de formato especial, de tiragem
reduzida e de valor elevado, fosse obrigada a entregar um exemplar gratuitamente à
biblioteca pública, visto que esse dever legal poderia inviabilizar economicamente a
edição.
Os referidos princípios também são aplicáveis aos atos públicos que criam áreas
de proteção aos mananciais em terrenos privados, bem como no âmbito das restrições e
17
Idem, p. 870s.
BVerfGE, n. 100, p. 226ss., 246, em decisão sobre a constitucionalidade de medidas legais estaduais de
proteção ao patrimônio histórico.
19
BVerfGE, n. 58, 137ss.
18
249
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
proibições de atividades particulares ligadas à agricultura e ao uso de florestas, que são
necessárias para garantir a qualidade dos recursos hídricos e outros recursos naturais.
O sistema alemão, contudo, reconhece que em casos específicos podem ser
cumpridas as condições materiais de uma desapropriação sujeita à indenização (art. 14,
III, LF), especialmente quando as medidas estatais de proteção ambiental “praticamente
inviabilizam ou tornam pouco rentáveis” as formas de uso agroflorestal nas respectivas
áreas, exercidas anteriormente de forma legal.20 Para estas medidas de “efeito
desapropriatório”, a legislação prevê o pagamento de uma indenização. Além disso,
introduziu-se uma “compensação de equidade” (Billigkeitsausgleich) para casos que não
atingissem o grau de uma desapropriação, mas nos quais os beneficiados (públicos ou
privados) pelas limitações do regular uso dos terrenos devam pagar uma justa
compensação financeira pelas desvantagens econômicas causadas aos proprietários.21
Para Kloepfer, este pagamento obrigatório de uma “compensação de
desvantagens” representa uma “quebra do princípio do usuário-pagador” capaz de levar,
inclusive, a uma redução da vontade do Poder Público de criar áreas de proteção da
natureza. Segundo o autor, estas “compensações” estão materialmente localizadas entre
aquilo que deve ser indenizado, por constituir uma desapropriação, e aquilo que deve
ser tolerado sem direito à indenização, por ter o caráter de uma “definição de conteúdo
de limites” da propriedade, nos moldes de sua vinculação social consagrada pela própria
Constituição.22
20
Cf. BREUER, Rüdiger. Umweltschutzrecht. In: BADURA, Peter et alii. Besonderes
Verwaltungsrecht. 5. ed. Berlin usw.: De Gruyter, 1992, p. 474s.
21
A Lei federal transfere a regulamentação detalhada deste instrumento, assim como a sua
implementação administrativa, ao encargo da legislação estadual, sendo este tipo de delegação legal uma
característica do sistema jurídico alemão; cf. KRELL, Andreas J. “A necessária mudança de foco na
implantação do federalismo cooperativo no Brasil: da definição das competências legislativas para o
desenho de formas conjuntas de execução administrativa”. In: SOUZA NETO, Cláudio P. de;
SARMENTO, Daniel; BINENBOJM, Gustavo (orgs.). Vinte Anos da Constituição Federal de 1988. Rio
de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 635-660.
22
A presente “definição indenizável de conteúdo” tem por base o raciocínio de que os princípios da
proporcionalidade e da igualdade, em conjunto com “aspectos de conveniência”, são capazes de impor ao
Estado a efetuação de prestação pecuniária ao particular atingido pela medida, para compensar o encargo
que este deve tolerar em virtude do art. 14, I, n. 2, LF; cf. KLOEPFER, Michael. Umweltrecht. München:
C. H. Beck, 1998, p. 871s.
250
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
3 A SITUAÇÃO DOUTRINÁRIA E JURISPRUDENCIAL ACERCA DA
DEFINIÇÃO E RESTRITAÇÃO DA PROPRIEDADE PRIVADA NO BRASIL:
PONTOS DE DIVERGÊNCIA
No Brasil, o princípio da função social da propriedade foi introduzido
formalmente pela Constituição Federal de 193423 e reforçado na de 1946.24 A Carta de
1988 prevê a garantia da propriedade em diferentes dispositivos: no art. 5o, são
prescritos os direitos e deveres individuais e coletivos, garantindo-se a propriedade
como bem juridicamente protegido como direito fundamental individual (inciso XXII).
Ao mesmo tempo, a observância de sua função social constitui um dever (inciso XXIII).
O art. 170 CF, por sua vez, inclui a propriedade privada, bem como a sua função
social, nos princípios gerais da ordem econômica do Estado brasileiro. Já a propriedade
urbana é regulamentada no art. 182, enquanto a propriedade rural encontra os seus
dispositivos mais importantes no art. 5.o, XXVI e nos arts. 184-186. Em relação à
desapropriação, deve-se fazer uma distinção entre a desapropriação por necessidade ou
utilidade pública, mediante uma justa e prévia indenização em dinheiro (art. 5.o, XXIV,
CF) e a desapropriação como meio de sanção, nos respectivos âmbitos normativos da
propriedade urbana e rural.
As limitações ao direito de propriedade ocorrem mediante de leis parlamentares
e por medidas do Executivo (limitações administrativas), estabelecidas por meio de
normas abstratas e gerais. Até hoje, há, porém, muitos autores, que, de maneira
equivocada, entendem a função social da propriedade apenas como meio para justificar
limitações da propriedade privada no interesse público, mediante o exercício do “poder
de polícia” dos órgãos estatais, desconhecendo que a função social não apenas limita o
direito de propriedade, mas o define e estrutura nas suas diversas áreas de incidência.25
Porém, os efeitos das limitações ao direito de propriedade no Brasil são
diferentes daqueles das “determinações de conteúdo/limites” da propriedade da LF
23
“Art. 113, n. 17 - É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse
social ou coletivo, na forma que a lei determinar. (...).”
24
“Art. 147 – O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá (...) promover a
justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”
25
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico brasileiro. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1995, p. 63ss.
251
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
alemã, sendo uma das principais razões para tal situação a aplicação da proteção do
direito adquirido (art. 5.o, XXXVI, CF) ao direito de propriedade.
Devido a um conservadorismo que, até hoje, costuma dar preferência aos
direitos individuais (em detrimento dos coletivos/difusos) e apesar do direito ao meio
ambiente ecologicamente equilibrado expressamente consagrado no art. 225 CF, “ainda
são numerosas as decisões judiciais baseadas em uma noção equivocada de direito
adquirido”. Ademais, referido conceito entra em contradição com a função ambiental
intrínseca do direito de propriedade e o respectivo dever constitucional em relação ao
meio ambiente.26 Assim, era vetado ao legislador brasileiro modificar as possibilidades
de uso e disposição da propriedade no decorrer do tempo, já que seu conteúdo era
definido no momento de sua aquisição, sem a possibilidade de alterações posteriores.
Embora essa corrente jurisprudencial seja ultrapassada, ainda não houve uma
modificação da maioria dos doutrinadores brasileiros em relação a todos os elementos
da garantia constitucional da propriedade. Por consequência, até hoje, “a teoria da
função social da propriedade não tem tido eficácia prática e previsível na realidade dos
operadores do Direito e no funcionamento do mercado”.27 Em geral, “a fórmula da
ampliação interpretativa da função social da propriedade mostrou-se insuficiente, tanto
no campo doutrinário como no terreno da jurisprudência” para mudar “todo um
paradigma de exploração não sustentável dos recursos naturais”.28
Não houve, em especial, um aprofundamento da teoria sobre as formas de
distinção dos diversos elementos do direito de propriedade, permanecendo a tendência
de transformar atos que determinam o conteúdo e os limites da propriedade em
desapropriações, com obrigação de indenização.
26
HARTMANN, Analúcia de Andrade. “Proteção do meio ambiente e direito adquirido”. In: Kishi,
Sandra; Silva, Solange Teles da; Soares, Inês (orgs.). Desafios do Direito Ambiental no Século XXI:
estudos em homenagem a Paulo Affonso Leme Machado. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 348, 351.
27
BENJAMIN, Antônio Herman. “Desapropriação, reserva florestal legal e áreas de preservação
permanente”. In: FIGUEIREDO, Guilherme J. Purvin de (coord.). Temas de Direito Ambiental e
Urbanístico. São Paulo: Max Limonad, 1998, p. 70.
28
BENJAMIN, Antônio Herman. “Direito Constitucional Ambiental brasileiro”. In: CANOTILHO, J. J.
Gomes; LEITE, José R. Morato (orgs.). Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 72.
252
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
No ramo da proteção à natureza, são comuns intervenções na propriedade
privada, principalmente na propriedade rural. No Brasil, o direito de proteção ambiental
é regulamentado por normas esparsas em leis federais, estaduais, municipais e decretos,
sendo os principais diplomas a Lei da Política Nacional do Meio Ambiente (6.938/81) e
o Código Florestal (Lei 4.771/65), cujos arts. 16 e 44 (A-C) regulamentam a reserva
legal que constitui uma limitação ao direito de propriedade, sem previsão de
indenização.
Entretanto, não há uniformidade na legislação brasileira em relação às normas
indenizatórias de proteção ambiental. Existem leis que prevêem indenizações para
limitações específicas, muitas vezes ligadas à localização da propriedade, sem
necessidade de um exame da (des)proporcionalidade da limitação sofrida. Determinamse, antecipadamente, quais tipos de limitações serão indenizados, e quais não serão.
A titulo de exemplo, cita-se o Decreto n. 10.251/77, do Estado de São Paulo, que
criou o Parque Estadual da Serra do Mar, desencadeando, por conseqüência, várias
ações de indenização por desapropriação indireta. O STJ, in casu, entendeu que as áreas
de preservação permanente (APPs) do Código Florestal, por serem insuscetíveis de
exploração econômica, não são indenizáveis. Já uma área de reserva legal “é
indenizável, todavia, com exploração restrita, sem equivalência ao valor da área
compreendida”.29
Sem dúvida, merecem aplausos os avanços recentes da jurisprudência dos
tribunais superiores sobre o tema. Assim, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgou
que a responsabilidade pela recomposição do proprietário de um terreno ecologicamente
degradado independe de sua culpa pessoal (obrigação civil propter rem).30 No entanto,
resta duvidoso condicionar a decisão sobre a indenização do proprietário de um imóvel
apenas do fato de que este tem sido enquadrado (ou não) em algum regime jurídico
especial de proteção ambiental (APP, reserva legal ou alguma unidade de conservação
da Lei 9.985/00).31
29
STJ, 1. T., REsp 139.096/SP, REsp 1997/0046.743-0, rel. Min. Milton L. Pereira, j. 7.6.2001, DJ
25.3.2002, p. 178.
30
STJ – Resp 343.741/PR, 2. T., rel. Min. Franciulli Netto, DJU 7.10.2002; STJ – Resp 263.383/PR, 2.
T., rel. Min. Otávio de Noronha, j. 16.6.2005; STJ – Resp 237.690/MS, 2. T., rel. Min. Paulo Almeida,
DJU 12.3.2002; STJ – Resp 282.781/PR, 2. T., rel. Min. Eliana Calmon, DJU 16.4.2002.
31
Cf. FENSTERSEIFER, op. cit., p. 218ss.
253
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Também não parece cabível a generalização de que a redefinição da propriedade
em determinada área (ex.: em razão da revogação de uma licença) sempre seja
inconstitucional, por ferir a garantias constitucionais da propriedade privada e o direito
adquirido. É imprescindível que o julgamento deve ser orientado pelos critérios
concretos do caso (se já houve investimentos após a licença, se o imóvel está
economicamente vinculado a uma atividade específica etc.).
Ao mesmo tempo, sempre deverá ser considerado o fato se a delimitação da
propriedade privada por ato público acontece num contexto onde todos os imóveis da
mesma área e/ou dotadas das mesmas características estão sujeitos às mesmas restrições
de uso e aproveitamento ou se o ônus imposto ao proprietário individual possui assume
a conotação de um “sacrifício especial” (Sonderopfer).32 Isto significa, por exemplo,
que todas limitações urbanísticas impostas por zoneamentos locais devem respeitar ao
princípio da igualdade.33
É tarefa dos tribunais efetuar uma ponderação racional e objetiva dos bens e
interesses envolvidos em cada caso, para poder decidir se a intervenção estatal concreta
de proibição ou restrição de uso da propriedade exige uma indenização do particular
(ex.: agricultor), se há uma delimitação restritiva de propriedade que merece uma
compensação na base da equidade ou, ainda, se existe “apenas uma delimitação de um
vínculo ecológico sem relevância indenizatória”.34
A referida concessão generalizada de indenizações leva, por um lado, à
existência de limitações que são declaradas como não indenizáveis, ferindo-se o
princípio da proporcionalidade. Destaca-se, outrossim, o aumento da “indústria de
indenizações”, visto que os tribunais enfrentam grandes dificuldades na fixação do valor
monetário das indenizações. O Poder Público brasileiro “vem sendo condenado
judicialmente a pagar quantias vultosíssimas aos proprietários de imóveis situados nas
áreas protegidas”, as quais “superaram absurdamente os valores do mercado
32
Carlos Ari Sundfeld faz uma análise bastante crítica das limitações do critério do sacrifício nesse
âmbito; cf. Direito Administrativo ordenador. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 86ss.
33
Cf. MUKAI, Toshio. Direito Urbano-Ambiental brasileiro. 2. ed. São Paulo: Dialética, 2002, p. 74s.
34
CANOTILHO, J. J. Gomes. Proteção do ambiente e direito de propriedade: crítica da jurisprudência
ambiental. Coimbra Editora, 1995, p. 100.
254
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
imobiliário”, através das figuras da desapropriação indireta e do apossamento
administrativo.35
CONCLUSÃO
Resta, à guisa de conclusão, destacar possíveis pontos de aproveitamento da
doutrina alemã sobre os conteúdo e os limites da propriedade privada por parte do
sistema jurídico brasileiro.
Com base no que foi discutido acima, pode-se constatar que a doutrina brasileira
sobre a garantia constitucional da propriedade ainda não chegou a um estado de firmeza
e pacificação. Tanto na CF Brasileira (art. 225) como na LF Alemã (art. 20a) assegurase que a proteção do meio ambiente deve ser objetivo (fim) dos atos realizados pelo
Poder Público em todos os níveis federativos. Este mandamento da Lei Maior deve
influenciar também nas formas de definição do conteúdo e na fixação de restrições à
propriedade privada, bem como na formulação de critérios concretos para concessão de
indenizações no âmbito da proteção, preservação e conservação ambiental.
Da mesma forma como aconteceu na Alemanha, seria recomendável que, no
Brasil, o legislador ordinário e os órgãos administrativos fossem obrigados a fixar, de
forma nítida, os critérios para a indenizabilidade de determinações sobre o conteúdo e
os limites da propriedade nas diferentes áreas da vida econômica. Nesse ponto,
certamente não satisfaz a figura abstrata da “desapropriação indireta”, amplamente
utilizada pelos tribunais e pela doutrina, visto que esta não corresponde à natureza deste
tipo de intervenção estatal, justamente por não poder ser equiparada a uma “verdadeira”
desapropriação.
Ainda não existe, no Brasil, uma clara divisão entre uma limitação
administrativa e uma norma desapropriatória, haja vista que uma limitação pode se
transformar, facilmente, num caso de desapropriação. Em virtude de uma exagerada
concentração nas tentativas abstratas de definição da função social da propriedade nos
diferentes setores (urbana, rural, intelectual, águas etc.), negligencia-se a discussão e
confrontação dessa figura com os demais elementos da garantia constitucional da
propriedade.
35
FIGUEIREDO, Guilherme José Purvin de. A propriedade no Direito Ambiental. 3. ed. Sao Paulo:
RT, 2008, p. 282s.
255
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Assim, acabam faltando critérios objetivos para a delimitação entre
determinações de conteúdo da propriedade não indenizáveis e determinações de
conteúdo que merecem uma indenização. Justamente nesse ponto, a análise do
posicionamento da jurisprudência e da doutrina alemã a respeito certamente poderá –
respeitadas as diferenças socioeconômicas, históricas e culturais – fornecer valiosos
subsídios para o progresso da discussão no âmbito doutrinário brasileiro.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
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257
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
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258
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
DA CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA FINS DE MORADIA EM ÁREAS
DE PROTEÇÃO: ESTUDO SOBRE A FUNÇÃO SOCIOAMBIENTAL DA
PROPRIEDADE PÚBLICA URBANA
Juliana Cristine Diniz Campos1
SUMÁRIO
1. Introdução. 2. Regramento Geral da Concessão de Uso Especial para Fins de
Moradia. 3. A Definição das Áreas de Preservação Ambiental. 4. Dever de Proteção do
Estado e Direito à Moradia: Alternativas. 4. Conclusão.
RESUMO
Este trabalho tem por objeto o estudo da concessão de uso especial para fins de moradia
como instrumento de regularização fundiária nos casos de ocupação irregular de
imóveis públicos, revelando-se como um dos mecanismos de funcionalização da
propriedade estatal. Diante da possibilidade da ocupação ocorrer em áreas de proteção
ou ambientalmente frágeis, verifica-se um nítido conflito de pretensões fundamentais
entre o direito ao meio ambiente equilibrado e o direito à moradia. Diante da norma do
artigo 5º da medida provisória 2.220/2001, sustenta-se o argumento de que, nesses
casos, a faculdade revela-se um poder-dever do estado em transferir os ocupantes para
uma área onde a ofensa ao meio ambiente não seja realizada. Define-se as áreas de
proteção ambiental para fins de interpretação da lei, associando a faculdade de
transferência do estado a um dever geral de proteção deduzido do artigo 225 da
constituição. Há, conforme se demonstra, uma tensão entre direitos fundamentais a
partir da ideia geral de função socioambiental da propriedade, que é solucionada pela
interpretação sistêmica da carta constitucional associada ao uso dos mecanismos
hermenêuticos de solução de conflitos entre pretensões fundamentais.
1
Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará. Professora de Direito
Urbanístico da Faculdade 7 de Setembro e de Introdução ao Direito da UFC.
259
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
PALAVRAS-CHAVES:
PROPRIEDADE
URBANA.
Parte II
FUNÇÃO
SOCIAL.
CONCESSÃO DE USO. REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA.
1. INTRODUÇÃO
O remodelamento do conceito de propriedade sofrido ao longo do século
XX tem ocasionado a transformação da disciplina básica oferecida a esse direito, para o
fim de condicionar o seu uso ao atendimento de alguns deveres básicos, compreendidos
sob a expressão genérica de “função social”. Desse modo, se é possível falar em
propriedade como uma pretensão fundamental protegida pelo artigo 5º, inciso XXII da
Constituição, é igualmente difundida a ideia de que, como principal fator de riqueza e
desenvolvimento social, a propriedade deve ter sua utilização condicionada pela
juridicidade, a partir da perspectiva do estado do bem-estar.
Nesse sentido, podemos associar a mudança sofrida na disciplina desse
direito ao processo de consolidação de uma forma de organização política que assume o
compromisso de reduzir as desigualdades sociais, a fim de concretizar o princípio da
dignidade da pessoa humana2. Sendo a desigualdade fundamentalmente econômica, os
meios mais efetivos para modificar essa realidade é uma sensível presença do estado no
direcionamento da economia nacional, a fim de realizar alguns objetivos fundamentais,
previstos no artigo 170 da Constituição, entre eles: a busca do pleno emprego, redução
das desigualdades regionais, a defesa do consumidor, etc.
Assim, tem-se a compreensão de que o regramento unicamente civilista da
propriedade – cujo enfoque é realizado a partir da perspectiva do interesse privado – não
atende de forma satisfatória ao projeto constitucional, especificamente no que se refere
à transformação da ordem econômica, dada a obrigação estatal de transformar a
realidade social. O reflexo dessa nova perspectiva é a criação, já na segunda metade do
século XX, de uma série de novos ramos do direito destinados a adequar o direito de
propriedade às novas relações sociais nascentes da compreensão política global.
O direito urbanístico surge, nesse contexto, da necessidade de transformar o
espaço urbano (a partir do condicionamento da propriedade imóvel), e disciplina
2
DIMOULIS, Dimitri. Fundamentação Constitucional dos Processos Econômicos: Reflexões sobre o
papel Econômico do Direito. In: SABADELL, Ana Lucia et ali. Direito Social, Regulação Econômica e
Crise do Estado. Rio de Janeiro: Revan, 2006, pg. 99.
260
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
aspectos como a ordenação do solo, o planejamento urbanístico, o controle do
crescimento da cidade, para o fim de proporcionar o bem-estar e a qualidade de vida nos
espaços habitáveis das grandes metrópoles do século XX. É por essa razão que, para
Silva, a formação do direito urbanístico,
(...) ainda em processo de afirmação, decorre da nova função do Direito,
consistente em oferecer instrumentos normativos ao Poder Público a fim de
possa, com respeito ao princípio da legalidade, atuar no meio social e no
domínio privado, para ordenar a realidade no interesse da coletividade. 3
Paralelamente à transformação da propriedade e à criação de ramos da
ciência jurídica, observa-se que a idéia de um direito à cidade desponta, já na década de
80 do século XX, como uma das dimensões da ideia geral de bem-estar que o estado
busca atender, dando ensejo à discussão sobre a reforma urbana, isto é, sobre a
necessidade de transformação das cidades em espaços agradáveis, que possibilitem o
desenvolvimento da convivência pública e o exercício dos demais direitos
fundamentais4. Esclarecem Rolnik et ali:
Durante o processo de consolidação da Constituição de 1988, um movimento
multissetorial e de abrangência nacional lutou para incluir no texto
constitucional instrumentos que levassem à instauração da função social da
cidade e da propriedade no processo de construção das cidades. Retomando a
bandeira da Reforma Urbana, este movimento reatualizava, para as condições
de um Brasil urbanizado, uma plataforma construída desde os anos 60 no
país. As tentativas de construção de um marco regulatório a nível federal para
a política urbana remontam às propostas de lei de desenvolvimento urbano
elaboradas pelo então Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano nos
anos 70, que resultaram no PL no 775/83.5
Nesse sentido, observamos a inclusão inovadora no texto constitucional de um
capítulo próprio para a política urbana, inserido no título da ordem econômica e
financeira, que estabelece a competência do município para executar as políticas de teor
urbanístico, destinadas explicitamente a ordenar o pleno desenvolvimento das funções
sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes, conforme a prescrição do
artigo 182 da Constituição. É a própria carta que estabelece – como condicionamento
3
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros: 2006, pg. 35.
SAULE JR. Nelson. Interfaces do Direito à Cidade e Direito Urbanístico no Brasil e na Órbita
Internacional. In: SAULE JR. Nelson (org.). Direito Urbanístico: Vias Jurídicas das Políticas
Urbanas. Porto Alegre: SAFE, 2007, pg. 29.
5
ROLNIK, Raquel et ali. Estatuto da Cidade: Guia para Implementação pelos Municípios e
Cidadãos. Brasília: Instituto Pólis, 2005, pg. 21.
4
261
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
geral à propriedade – o plano diretor enquanto instrumento básico de planejamento
urbanístico, estabelecendo que a propriedade urbana cumpre sua função social quando
atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor
(art. 182, §2º).
Verificamos, assim, que o uso da propriedade no espaço da cidade tem uma
importância relevante para a conquista do bem-estar e que a elaboração de uma lei geral
de desenvolvimento urbano (lei federal nº 10.257 de 2001) teve por finalidade
estabelecer novos condicionamentos à propriedade urbana, a partir da perspectiva de
três princípios fundamentais: o combate à especulação imobiliária; a democratização da
gestão da cidade e a ampliação das formas de regularização fundiária.
Verifica-se que o dever fundamental relacionado à função social ganha uma
densidade com a normatização infraconstitucional, que estabelece os parâmetros de
julgamento do uso da propriedade em relação a interesse geral. Nesse sentido, apesar da
constituição estabelecer o dever, é o plano diretor – elaborado a partir da lei federal nº
10.257/2001 – que expressa, na dimensão concreta e factível, as ações e usos adequados
à axiologia constitucional.
Nesse contexto, tem-se a criação da concessão de uso especial para fins de
moradia como mecanismo de regularização de ocupações irregulares em imóveis
públicos, a fim de concretizar o direito à moradia digna e, ao mesmo tempo, favorecer o
cumprimento da função social da propriedade. A previsão do instrumento na
constituição e o seu regramento infraconstitucional demonstram que o dever
fundamental de funcionalização alcança não apenas a propriedade privada, mas também
o domínio público, que também deve ser destinado ao bem-estar da coletividade6.
Problemas podem surgir quanto à aplicação do instrumento, especificamente
no que se refere à ocupação de áreas ambientalmente frágeis ou de proteção ambiental
permanente. Nesses casos, a criação de um conflito legítimo de pretensões fundamentais
surge: garante-se o direito à moradia ou o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado? Qual das funções – a especificamente social ou a ambiental – deve a
propriedade pública atender?
A discussão tem lugar na perspectiva do aprimoramento da função social,
que passa a ser compreendida não apenas em sua dimensão especificamente humana,
6
ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Função Social da Propriedade Pública. São Paulo: Malheiros, 2005,
pg. 66.
262
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
mas igualmente ambiental. O agravamento das ações prejudiciais ao meio ambiente tem
suscitado um movimento jurídico pelo aumento da efetividade do artigo 225 da
constituição, especificamente no que se refere ao uso racional da propriedade. Nesse
sentido, o significado do dever de funcionalização se consolida no sentido do artigo 186
da carta, segundo o qual a função social é cumprida quando a propriedade implica a
utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente,
além da observância dos demais requisitos.
Considerando essa nova realidade, o objeto deste artigo é analisar o instituto
da concessão de uso especial para fins de moradia, especificamente no que se refere à
ocupação de áreas inadequadas à habitação em virtude de sua importância ambiental.
Observamos a aplicação do princípio da função socioambiental em relação à
propriedade pública, especificamente no que tange a um dos instrumentos de
regularização fundiária.
2. REGRAMENTO GERAL DA CONCESSÃO DE USO ESPECIAL PARA
FINS DE MORADIA
A concessão de uso especial para fins de moradia é, em termos gerais, uma
modalidade de contrato administrativo através do qual a utilização de um espaço
público é cedida a particular para finalidade habitacional, uma vez atendidos alguns
requisitos expressos em lei. Segundo Araújo7, a concessão é a modalidade tradicional e
mais estável de instrumentalização jurídica do uso privativo de bens públicos por
particulares e até mesmo por outras entidades. Verifica-se, portanto, uma utilização
que tem finalidade precipuamente privada, daí a exclusividade do direito de uso
conferido via contrato, ainda que, indiretamente, deva o instrumento propiciar o
atendimento da função social da propriedade. Por essa razão:
Concede-se o privilégio de uso a um particular, seja porque o Estado não se
opõe a tal utilização e quer dar destinação produtiva a esse bem, ou porque
através dessa concessão quer o Estado fomentar certas atividades particulares
(turismo, p. ex.), ou ainda, seja com fundamento em objetivos sociais, sem
exclusão de outras hipóteses. 8
7
8
ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2007, pg. 701.
ARAÚJO, Edmir Netto de. Op. cit.
263
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
O instrumento representa a possibilidade de regularizar ocupações
irregulares em imóveis públicos, favorecendo a concretização do direito à moradia, ao
mesmo tempo em que destina à função social a propriedade urbana titularizada pelo
estado. O fundamento constitucional da concessão encontra-se no artigo 183, § 3º da
carta, que prevê a possibilidade de concessão de uso de imóveis públicos a homem ou
mulher, independentemente do estado civil. Na medida em que a própria constituição,
no artigo 183, §3º, impossibilita a aquisição por usucapião do domínio dos imóveis
estatais, a concessão de uso representa uma alternativa a esse instrumento nos casos de
posse irregular e mansa prolongada no tempo, facilitando a regularização quando o bem
público for vocacionado à moradia.
Inicialmente previsto nos artigos 15 a 20 do projeto de lei do estatuto da
cidade, o regramento infraconstitucional do instituto foi vetado (veto nº 730) pelo
presidente da república, em virtude da institucionalização do direito público subjetivo
do ocupante à concessão especial. A fim de amenizar os efeitos que a previsão nesses
termos pudesse ocasionar ao domínio do estado, findou-se por editar a medida
provisória nº 2.220 de 2001, a qual estabelece uma limitação temporal para a
configuração do direito subjetivo do ocupante: todos os requisitos para a concessão
devem ser observados até o dia 30 de junho de 2001 para que o direito à concessão se
configure.
O regramento oferecido pela medida provisória nº 2.220/2001 perdeu sua
precariedade normativa por força do artigo 22-A da lei federal nº 11.481 de 2007, que
ampara os requisitos da medida provisória, agora com status legal.
Para que a concessão especial de uso para fins de moradia seja possível, é
necessário o atendimento dos seguintes requisitos: posse mansa de imóvel público com
ânimo de domínio por um período mínimo de 5 anos, tendo o imóvel até 250m²;
utilização do bem para fins de moradia do ocupante e de sua família; não ser o
possuidor proprietário ou concessionário de qualquer outro imóvel urbano ou rural. É
imprescindível que o prazo prescricional da posse esteja cumprido até 30 de junho de
2001, sendo irrelevante, para fins de titularidade do direito, o sexo ou estado civil do
ocupante. A ocupação pode se dar de forma coletiva em imóveis com área superior a
250 m² quando seja impossível precisar a área ocupada por cada família, sendo o direito
concedido de forma comum, nos mesmos termos do usucapião coletivo.
264
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
A função do instrumento é, portanto, a de regularizar uma situação de fato
consolidada, a partir do reconhecimento da legitimidade da pretensão do ocupante, dada
a inércia do poder público em reclamar a posse do bem ocupado. Trata-se, pois, de uma
forma de conferir segurança jurídica9 à posse precária, quando a utilização do bem
atende um direito fundamental social. Nesse sentido, podemos perceber que a eficácia
do inciso XXIII do artigo 5º da Constituição irradia para a propriedade pública, que,
assim como a particular, deve estar condicionada pelo dever de funcionalização.
É possível que o imóvel ocupado irregularmente esteja localizado em áreas
ambientalmente frágeis ou de proteção legal. Nesse caso, mesmo que o prazo
prescricional e as demais condições sejam observadas, surge um nítido conflito de
pretensões fundamentais. De um lado, o direito à moradia do ocupante e, de outro, a
necessidade de assegurar o equilíbrio ambiental, na qualidade de direito difuso e
condição de sustentabilidade. O regramento do artigo 5º da medida provisória, nessa
hipótese, prevê a faculdade do poder público de assegurar o exercício do direito em
outro local, sempre que a ocupação ocorrer em imóvel de uso comum do povo,
destinado a projeto de urbanização, de interesse da defesa nacional, da preservação
ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais, etc.
Sustenta-se usualmente que a utilização do vocábulo “faculdade” indica
apenas uma autorização, isto é, o estado decide se realiza ou não a transferência dos
ocupantes, impedindo sua permanência nas áreas de interesse ambiental. Entretanto, é
importante ressaltar que a hierarquia constitucional da proteção ao meio ambiente
impede uma interpretação nesse sentido. A partir de uma idéia geral de razoabilidade,
há, em relação ao estado, o dever de, ao mesmo tempo, assegurar o direito à moradia
através da concessão e promover a preservação dos ecossistemas, evitando a ocupação
de áreas ambientalmente frágeis. Nesse sentido, a faculdade é compreendida como um
poder-dever.
Para Silva 10:
Quando uma medida estatal implica intervenção no domínio de proteção de
um direito fundamental, necessariamente essa medida deve ter como objetivo
9
HERMANY, Ricardo; BONELLA, Danielle Soncini. A Concessão de Uso Especial para Fins de
Moradia como Meio de Regularizar Posses de Terras Públicas frente ao Princípio Constitucional da
Dignidade da Pessoa Humana. In: Anais do XV Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis:
Fundação Boiteux, 2006, pg. 4.133.
10
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: Conteúdo Essencial, Restrições e
Eficácia. São Paulo: Malheiros, 2009, pg. 169.
265
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
um fim constitucionalmente legítimo, que, em geral, é a realização de outro
direito fundamental. Aplicar a regra da proporcionalidade, nesses casos,
significa iniciar com uma primeira indagação: A medida adotada é adequada
para fomentar a realização do objetivo perseguido?
Assim, é importante ressaltar a existência de um dever de proteção do
estado em relação às áreas de proteção ambiental, ao mesmo tempo em que é legítima a
pretensão fundamental à moradia, amparada no artigo 6º da constituição. Nesse caso, a
restrição conferida ao direito à concessão de uso para fins habitacionais mostra-se não
só adequada como necessária ao atendimento de outro direito fundamental, o direito ao
meio ambiente ecologicamente equilibrado. Esse é o condicionamento que a função
qualificada como socioambiental confere à propriedade, tanto privada quanto pública.
Por essa razão:
É de observar-se que não só a iniciativa dos particulares como os
empreendimentos do Poder Público devem respeitar as normas de
controle da poluição e de preservação dos recursos naturais,
sujeitando-se às respectivas limitações administrativas das entidades
estatais competentes. 11
Há, conforme o argumento desenvolvido, a impossibilidade de que se
conceda o direito à concessão especial em áreas protegidas por força de seu valor
ambiental, de modo que se faz necessário o esclarecimento sobre a definição dessas
áreas, a fim de conformar a aplicação do instituto da concessão, ao mesmo tempo em
que a ideia geral de função social ganha um corpo mais denso de sentido.
3. A DEFINIÇÃO DAS ÁREAS DE PRESERVAÇÃO AMBIENTAL
A questão ambiental, especificamente no que se refere à disciplina da
proteção dos ecossistemas, foi prevista pela lei federal nº 9.985/2000, que institui o
sistema nacional de unidades de conservação da natureza. A partir da leitura dessa
norma, tem-se por preservação o conjunto de métodos, procedimentos e políticas que
visem a proteção a longo prazo das espécies, habitats e ecossistemas, além da
manutenção dos processos ecológicos, prevenindo a simplificação dos sistemas
naturais (art. 1º, V).
11
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros, 2005, pg. 560.
266
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
A unidade de preservação ambiental pode ser compreendida como extensão
territorial qualificada, em virtude de suas particularidades naturais (relacionada à fauna,
à flora, aos recursos minerais, etc.), que merece uma atenção especial do direito dada
sua importância para o equilíbrio do planeta de uma forma geral. Igualmente valorosa
por sua contribuição ao bem-estar humano, a área de preservação constitui um espaço
salvo da ação irrestrita do homem, no sentido de impedir o esgotamento dos recursos. É
instituída pelo Estado, de modo que somente a análise técnica das condições ambientais
do local pode determinar a relevância ambiental da propriedade.
As áreas de preservação podem ser de várias espécies, conforme o grau de
relevância ambiental da localidade e as limitações administrativas impostas ao seu uso.
Um dos exemplos de unidades de conservação são as áreas de preservação permanente,
já delimitadas pelo artigo 2º da lei federal nº 4.771 de 1965, que admite a criação, por
lei especial, de APPs com características diversas daquelas enumeradas no dispositivo.
Como visto, a definição das áreas de relevância ambiental é bastante fluida,
a fim de permitir a atuação da administração no sentido de ampliar as unidades de
conservação quando haja interesse ecológico. Especificamente sobre as áreas de
preservação permanente – modalidade mais rigorosa do instituto – tem-se que:
As Áreas de Preservação Permanente - APP - são áreas nas quais, por
imposição da lei, a vegetação deve ser mantida intacta, tendo em vista
garantir a preservação dos recursos hídricos, da estabilidade geológica e da
biodiversidade, bem como o bem-estar das populações humanas. O regime de
proteção das APP é bastante rígido: a regra é a intocabilidade, admitida
excepcionalmente a supressão da vegetação apenas nos casos de utilidade
pública ou interesse social legalmente previstos.12
Haveria, assim, uma gradação de limitações referentes ao uso de áreas de
interesse ambiental que impediria, ainda que para fins de moradia, a utilização de
imóveis onde, por força da lei, há interesse de preservação – sempre definido
administrativamente, a partir da averiguação das condições particulares do local. Nesse
contexto, podemos afirmar que a análise do caso concreto pode indicar se a ocupação
irregular se deu em área que, por suas características, é impassível de ser utilizada,
12
ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães. As Áreas de Preservação Permanente e a Questão Urbana.
Brasília:
Câmara
dos
Deputados,
2002.
Disponível
em:
HTTP://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/doutrinas/arborizacao/as_areas_de_preservacao_per
manente_questao_urbana.pdf. Último acesso em: 10/08/2009.
267
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
havendo, nesse caso, um dever de proteção do estado que se manifesta na obrigação de
transferir os ocupantes do local.
No contexto da cidade, têm-se as áreas ribeirinhas como espaços
potencialmente propícios à ocupação irregular. Para Araújo:
As cidades, não raro, nascem e crescem a partir de rios, por motivos óbvios,
quais sejam, além de funcionar como canal de comunicação, os rios dão
suporte a serviços essenciais, que incluem o abastecimento de água potável e
a eliminação dos efluentes sanitários e industriais. Ao longo desses cursos
d´água, em tese, deveriam ser observadas todas as normas que regulam as
APP. Na prática, todavia, essas e outras APP têm sido simplesmente
ignoradas na maioria de nossos núcleos urbanos, realidade que se associa a
graves prejuízos ambientais, como o assoreamento dos corpos d´água, e a
eventos que acarretam sérios riscos para as populações humanas, como as
enchentes e os deslizamentos de encostas. 13
É necessário desenvolver argumentos favoráveis à funcionalização da
propriedade em benefício do bem-estar social, sem que isso implique uma ofensa à
sustentabilidade ambiental, a qual pode ter efeitos catastróficos a médio e longo prazo.
Verificamos, a partir da leitura da lei federal nº 9.985 de 2000, um papel relevante
atribuído à Administração Pública no sentido de determinar os limites das unidades de
conservação, em defesa do interesse público.
É perfeitamente lógico pensar, portanto, que o Estado tem o dever – e não
apenas a faculdade – de transferir os ocupantes dos imóveis localizados em áreas
urbanas de grande interesse ambiental, como as áreas ribeirinhas, por exemplo, na
qualidade de ambientes propícios a invasões com finalidades habitacionais. Sem retirar
a eficácia do direito fundamental à moradia, garante-se o direito à concessão especial de
uso, através da alteração do imóvel sobre o qual incidirá a pretensão do ocupante, a fim
de atender ao princípio da função socioambiental da propriedade.
4. DEVER DE PROTEÇÃO DO ESTADO E DIREITO À MORADIA:
ALTERNATIVAS
O direito à moradia apresenta-se como uma das espécies de direitos
fundamentais sociais previstos no artigo 6º da constituição. Sua relevância normativa é
13
ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães de. Op. cit.
268
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
orientada pelo princípio da dignidade da pessoa humana, na medida em que a habitação
apresenta-se como condição material de uma existência segura e adequada.
Para Organização das Nações Unidas, a moradia adequada corresponde ao
direito de viver com segurança, paz e dignidade, a partir da reunião dos seguintes
requisitos: segurança jurídica da posse, disponibilidade de serviços e infraestrutura,
custo acessível da moradia, habitabilidade, acessabilidade, localização e adequação
cultural.14 O âmbito de vivência dos sujeitos deve, portanto, atender a um padrão de
qualidade definido na carta constitucional e nos tratados internacionais sobre direitos
humanos, notadamente o Pacto Internacional Relativo aos Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais (PIDESC), aprovado em 1966.
A partir dessa perspectiva, criou o Estatuto da Cidade instrumentos que facilitam
os processos de regularização fundiária, a fim de garantir o direito à moradia a
ocupantes de imóveis particulares e públicos em situação irregular. Ao lado da
usucapião especial (art. 183, caput, da constituição) criou-se a concessão de uso
especial para fins de moradia, aplicável ao domínio público, tendo em vista a
impossibilidade de aquisição de bens estatais por usucapião.
A garantia do direito à moradia deve, entretanto, atender a uma série de
pressupostos qualitativos relacionados ao local da habitação, de modo que ocupações de
áreas de interesse ou fragilidade ambiental não são suscetíveis de concretizar
adequadamente o direito fundamental em referência.
Opta-se por uma interpretação sistêmica da constituição, no sentido de
compatibilizar o previsto no artigo 6º com o artigo 225, impedindo-se a concessão de
uso em áreas de preservação. Há, portanto, um dever de proteção do estado em relação
ao meio ambiente que impede a regularização de ocupações em áreas ribeirinhas, por
exemplo, dada a deficiência na habitabilidade do local ocupado.
Nessas situações, compreende-se a faculdade prevista no artigo 5º da medida
provisória nº 2.220/2001 como um dever – relacionado à obrigação de preservar o
equilíbrio do meio ambiente – e não como uma simples possibilidade. Para Saule Jr. e
Cardoso:
14
SAULE JÚNIOR, Nelson; CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no Brasil:
Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU 29 de maio a 12 de junho de 2004 –
Violações, Práticas positivas e Recomendações ao Governo Brasileiro. São Paulo: Instituto Pólis,
2005, pg. 22.
269
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
O Estatuto da Cidade integra os direitos humanos em seus aspectos políticos
e de cidadania, bem como econômicos, sociais, culturais e ambientais. Assim
como o direito à cidade, o Direito à Moradia também deve ser compreendido
em seu aspecto econômico, social, cultural e ambiental. 15
Desse modo, conclui-se pela necessidade da Administração Pública encontrar
alternativas às ocupações prejudiciais ao meio ambiente: sem ofender o direito subjetivo
à concessão, deve o estado deslocar os ocupantes para áreas adequadas à habitação,
garantindo-se o direito à moradia e o direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, sem desmerecer o princípio da função socioambiental da propriedade.
5. CONCLUSÃO
Este artigo foi desenvolvido a partir da releitura da propriedade, tendo em vista o
princípio da função socioambiental. Verificamos que, muitas vezes, mecanismos
constitucionais e legais criados para garantir direitos fundamentais, podem, se aplicados
em dissonância à interpretação sistêmica da constituição, implicar em ofensa à
preservação do meio ambiente, em claro descumprimento ao artigo 225 da carta.
Nesse caso, estudamos a concessão de uso especial, como instrumento de
regularização fundiária criado para garantir o direito fundamental à moradia.
Considerando a realidade das cidades, constata-se que muitas das ocupações irregulares
de imóveis públicos se dão em áreas ambientalmente frágeis (comunidades ribeirinhas)
ou em áreas de preservação ambiental (dunas, por ex.), razão pela qual a medida
provisória nº 2.220/2001 estabeleceu a faculdade da administração em deslocar os
ocupantes para outro local nas hipóteses em que sua permanência implique ofensa o
meio ambiente.
Nesse caso, tendo em vista o dever de proteção do estado, sustenta-se que o
artigo 5º da medida provisória mencionada deve ser interpretado como um poder-dever
e não como mera possibilidade, sob pena de se admitir o desrespeito institucional ao
equilíbrio ambiental no espaço urbano.
O princípio da função socioambiental tem, portanto, a importância de diretriz
hermenêutica para aplicação dos instrumentos de intervenção urbanística direcionados à
15
SAULE JR., Nelson; CARDOSO, Patrícia. Op. cit.
270
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
propriedade pública ou particular, a fim de que o seu uso seja condizente com o ideal de
sustentabilidade amparado pela carta constitucional.
6. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ARAÚJO, Edmir Netto de. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva,
2007.
ARAÚJO, Suely Mara Vaz Guimarães. As Áreas de Preservação Permanente e a
Questão Urbana.
Brasília: Câmara dos Deputados, 2002. Disponível em:
http://www.mp.ba.gov.br/atuacao/ceama/material/doutrinas/arborizacao/as_areas_de_pr
eservacao_permanente_questao_urbana.pdf.
DIMOULIS, Dimitri. Fundamentação Constitucional dos Processos Econômicos:
Reflexões sobre o papel Econômico do Direito. In: SABADELL, Ana Lucia et ali.
Direito Social, Regulação Econômica e Crise do Estado. Rio de Janeiro: Revan,
2006.
HERMANY, Ricardo; BONELLA, Danielle Soncini. A Concessão de Uso Especial
para Fins de Moradia como Meio de Regularizar Posses de Terras Públicas frente ao
Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana. In: Anais do XV
Congresso Nacional do CONPEDI. Florianópolis: Fundação Boiteux, 2006, pgs.
4.129 - 4.137.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros,
2005.
ROCHA, Silvio Luís Ferreira da. Função Social da Propriedade Pública. São Paulo:
Malheiros, 2005.
ROLNIK, Raquel et ali. Estatuto da Cidade: Guia para Implementação pelos
Municípios e Cidadãos. Brasília: Instituto Pólis, 2005.
271
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
SAULE JR. Nelson. Interfaces do Direito à Cidade e Direito Urbanístico no Brasil e na
Órbita Internacional. In: SAULE JR. Nelson (org.). Direito Urbanístico: Vias
Jurídicas das Políticas Urbanas. Porto Alegre: SAFE, 2007.
SAULE JÚNIOR, Nelson; CARDOSO, Patrícia de Menezes. O Direito à Moradia no
Brasil: Relatório da Missão Conjunta da Relatoria Nacional e da ONU 29 de maio
a 12 de junho de 2004 – Violações, Práticas positivas e Recomendações ao Governo
Brasileiro. São Paulo: Instituto Pólis, 2005.
SILVA, José Afonso da. Direito Urbanístico Brasileiro. São Paulo: Malheiros: 2006.
SILVA, Virgílio Afonso da. Direitos Fundamentais: Conteúdo Essencial, Restrições
e
Eficácia.
São
Paulo:
Malheiros,
2009.
272
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
PROPRIEDADE INTELECTUAL E AMBIENTALISMO CULTURAL
Afonso de Paula Pinheiro Rocha1
SUMÁRIO
Introdução. 1. Similaridades entre o direito ambiental e o direito de propriedade
intelectual. 2. Um meio ambiente cultural e intelectual. 3. Contraste entre as dinâmicas
de utilização dos bens naturais e dos bens intelectuais. 4. Considerações iniciais sobre as
aplicações dos princípios ambientais à propriedade intelectual. 4.1. Princípio da
Responsabilidade
Intergeracional.
4.2.
Princípio
do
Poluidor-Pagador.
5.
O
ambientalismo cultural na perspectiva do direito comparado. Considerações finais.
Referências.
RESUMO
O artigo tem por objetivo traçar um paralelo entre o Direito Ambiental e o direito da
Propriedade Intelectual. São apresentadas as similitudes de formação e tratamento
constitucional entre as duas searas jurídicas, com ênfase na estreita relação entre o Meio
Ambiente e a Cultura. Propõe-se a idéia de existência de um Meio Ambiente Cultural.
Apontam-se as possíveis repercussões que uma perspectiva ambiental pode ter sobre a
hermenêutica a ser utilizada nas questões envolvendo a propriedade intelectual e sobre a
dinâmica dos bens imateriais na sociedade. São apresentadas sugestões de aplicações
dos princípios ambientais à propriedade intelectual. Conclui-se que uma visão ambiental
pode ser extremamente útil para ressaltar os pontos comuns às diversas doutrinas da
Propriedade Intelectual, bem como para indicar soluções mais efetivas para garantir a
difusão do conhecimento através de um sistema equilibrado de incentivos e limitações
de direitos intelectuais.
1
Advogado da PETROBRAS. Mestre em Direito pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Pósgraduando – MBA em Direito Empresarial pela FGV/Rio. Ex-Bolsista CAPES.
273
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
PALAVRAS CHAVES: Propriedade Intelectual, Ambientalismo Cultural, Domínio
Público, Princípios Ambientais.
ABSTRACT
The article‟s purpose is to show a parallel between Environmental Law and Intellectual
Property rights. It presents the similarities in the formation and constitutional treatment
in the two fields of law, with emphasis in the close relation between Environment and
Culture. It proposes the idea of an existing Cultural Environment. It suggests possible
repercussions that an environmental view might have in intellectual property issues and
the dynamic of intellectual goods in society. It presents suggestions of possible
applications of environmental principles to intellectual property. It concludes that an
environmental view might be extremely useful to highlight the commonalities in the
several doctrines of intellectual property, as well as to point effective solutions to assure
the dissemination of knowledge through a balanced system of incentives and limitations
on intellectual rights.
KEYWORDS: Intellectual Property, Cultural Environmentalism, Public Domain,
Environmental Principles.
INTRODUÇÃO
O trabalho busca identificar os paralelos existentes entre o Direito da
Propriedade Intelectual e o Direito Ambiental, de forma a propor a existência de um
meio ambiente intelectual ou cultural e como instrumentos do direito ambiental podem
ser utilizados para aprimorar a tutela jurídica da propriedade intelectual.
Inicialmente
serão
apresentadas
algumas
similitudes
fáticas
e
epistemológicas entre essas duas searas jurídicas, para posteriormente sugerir formas de
aplicação de alguns princípios do direito ambiental para o campo da propriedade
intelectual. Por fim, demonstra-se que a idéia de um ambientalismo cultural já vem
sendo debatida no direito comparado e que o prisma ambiental sobre a propriedade
intelectual pode ser útil tanto para a hermenêutica destinada aos bens intelectuais como
para a definição de políticas públicas.
274
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
1 SIMILARIDADES ENTRE O DIREITO AMBIENTAL E O DIREITO DE
PROPRIEDADE INTELECTUAL
A idéia de um direito ambiental ou direito do meio ambiente, está
relacionado com a progressiva compreensão da existência de um bem comum
abrangente – o meio ambiente – que funcionaria como aglutinador do discurso de
diversos movimentos e interesses sociais correlatos – grupos focados na preservação de
animais, plantas, biodiversidade, preservação dos oceanos, preservação de parques
nacionais, etc.
Para James Boyle: ―A invenção do conceito de ‗ambiente‘ agrupou um
conjunto de questões de outra forma desconexas, ofereceu uma nova visão em face da
cegueira implícita nas concepções passadas e permitiu encontrar um interesse comum
nunca antes vislumbrado.‖ 2
Logo, o direito ambiental surge da convergência de diversas doutrinas
específicas relacionadas a bens ambientais específicos. No direito brasileiro, é preciso
fazer destaque à Constituição Federal de 1988 que passou a referenciar o meio ambiente
de forma expressa, no art. 225 e seguintes. Anteriormente, o direito ambiental era
referenciado apenas em legislações esparsas e de forma não específica.3
Assim, nas palavras de Paulo Affonso Machado:
O Direito Ambiental é um Direito sistematizador, que faz a articulação da
legislação, da doutrina e da jurisprudência concernentes aos elementos que
integram o ambiente. Procura evitar o isolamento dos temas ambientais e sua
abordagem antagônica. Não se trata mais de construir um Direito das águas,
um Direito da atmosfera, um Direito do solo, um Direito florestal, um Direito
da fauna ou um Direito da biodiversidade. O Direito Ambiental não ignora
que cada matéria tem de específico, mas busca interligar estes temas com a
argamassa da identidade dos instrumentos jurídicos de prevenção e de
reparação, de informação e de monitoramento e de participação.4
2
BOYLE, James. The Second Enclosure Movement and the Construction of the Public Domain. In:
Duke Conference on the Public Domain. Law and Contemporary Problems. Volume 66, p. 33-74.
Winter/Spring 2003. p. 52. No original: ―The invention of the concept of ―the environment‖ pulls
together a string of otherwise disconnected issues, offers analytical insight into the blindness implicit in
prior ways of thinking, and leads to perception of common interest where none was seen before.‖
3
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT,
2005. p. 57.
4
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 16ª. ed. Malheiros: São Paulo. 2008.
p. 54-55.
275
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Assim, a ausência de uma codificação única não retira do direito ambiental a
sua identidade, sendo facilmente perceptível, atualmente, que os diversos diplomas
legislativos que tratam de bens ambientais possuem um quantum comum, uma razão de
ser pautada por princípios comuns – a proteção do ambiente.
O direito da propriedade intelectual, por sua vez, também apresenta uma
formação similar, podendo ser classificada como uma expressão genérica,
correspondendo ao direito de apropriação sobre criações, obras e produções do
intelecto, talento e engenho humanos.
Funciona como um conceito “guarda-chuva”, que engloba uma série de
diferentes doutrinas, todas, porém, relacionadas com atividades intelectuais ou com a
implementação de idéias, dados e conhecimento em atividades práticas.
Carol Proner ressalta que a idéia de “propriedade intelectual” deve ser
entendida como categoria, respondendo aos estímulos econômicos e políticos de cada
período histórico, envolvendo: direitos autorais, desenhos e processos industriais,
marcas, patentes de invenção, denominações de origem, contratos de transferência de
tecnologia, saberes tradicionais - folclore, costumes populares, artes reproduzidas em
pintura e escultura -, enfim, temáticas diversas e abrangentes.5
Denis Borges Barbosa, da mesma forma, compreende-se a noção de
Propriedade Intelectual: ―(...) como a de um capítulo do Direito, altissimamente
internacionalizado, compreendendo o campo da Propriedade Industrial, dos direitos
autorais e outros direitos sobre bens imateriais de vários gêneros‖.6
De forma ainda mais abrangente, Bettina Augusta Amorim Bulzico entende
que a Propriedade Intelectual ―(...) envolve toda atividade humana de caráter
intelectual, que seja passível de agregar valores e que necessite de proteção jurídica‖.7
A expressão consagrou-se a partir da “Convenção de Estocolmo”, de 14 de
julho de 1967, com a constituição da Organização Mundial da Propriedade Intelectual –
OMPI (World Intellectual Property Organization – WIPO), que, posteriormente, veio a
5
PRONER, Carol. Propriedade Intelectual: Para uma outra ordem jurídica possível. São Paulo:
Cortez Editora, 2007. p. 3.
6
BARBOSA, Denis Borges. Uma Introdução à Propriedade Intelectual. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen
Juris, 2003. vol. 1. p. 5.
7
BULZICO, Bettina Augusta Amorim. Evolução da Regulamentação Internacional da Propriedade
Intelectual e os Novos Rumos Para Harmonizar a Legislação. Revista Direitos Fundamentais &
Democracia. Unibrasil. Vol 1. 2007. Disponível em: <http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br>.
Acesso em: 25.07.08.
276
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
se tornar uma agência especializada dentro do sistema das Nações Unidas, em 17 de
dezembro de 1974. No Brasil, o a convenção de constituição da OMPI foi promulgada
pelo Decreto nº 75.541, de 31 de março de 1975.8
Maristela Basso destaca a importância da OMPI para uma compreensão
unificada: “(...) a OMPI unifica os conceitos, abolindo a tradicional divisão existente
no modelo tradicional ou histórico, que separava os direitos dos autores e dos
inventores em duas categorias: direito de autor e conexos e propriedade industrial‖.9
Com efeito, vários doutrinadores apontam elementos comuns às diversas
doutrinas identificadas com a propriedade intelectual, o que permitiria a sua
classificação e estudo conjunto.
Para Robert Sherwood existem oito elementos comuns aos diversos regimes
de proteção: o conceito de um direito exclusivo; o mecanismo para a criação do direito
exclusivo; a duração do direito exclusivo; o interesse público correlato ao direito
exclusivo; a negociabilidade desse direito; os acordos informais e entendimentos entre
as nações; a vigência do direito exclusivo; e os arranjos de transação para efeitos de
mercado.10
Luis Otávio Pimentel, por sua vez, também vislumbra um núcleo comum a
tais direitos: ―(...) entre os elementos comuns, ou nucleares, de toda a propriedade
intelectual a imaterialidade do seu objeto (incorpóreo) e o tempo limitado da sua
proteção (...)‖.11
Contudo, para que a simetria com o direito ambiental se mantenha, é
necessário identificar qual o objeto comum ao qual se destina todo o conjunto de tutelas
e mecanismos jurídicos.
8
O art. 2º da Convenção indica de forma exemplificativa e ampliativa uma série de direitos que estariam
englobados pela noção de propriedade intelectual. No texto do Decreto 75.541/75: “(...)Para os fins da
presente Convenção, entende-se por: (...) viii “propriedade intelectual”, os direitos relativos: às obras
literárias, artísticas e científicas, às interpretações dos artistas intérpretes e às execuções dos artistas
executantes, aos fonogramas e às emissões de radiofusão; às invenções em todos os domínios da atividade
humana, às descobertas científicas, aos desenhos e modelos industriais, às marcas industriais, comerciais
e de serviço, bem como às firmas comerciais e denominações comerciais, à proteção contra a
concorrência desleal e todos os outros direitos inerentes à atividade intelectual nos domínios industrial,
científico, literário e artístico”.
9
BASSO, Maristela. A proteção da propriedade intelectual e o direito internacional atual. Revista de
Informação Legislativa. Brasília a. 41. n. 162. p. 287-310. abr./jun. 2004. p. 288.
10
SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo:
EdUsp. 1992. p. 37.
11
PIMENTEL, Luís Otávio. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento. In: Propriedade Intelectual –
Estudos em Homenagem à Professora Maristela Basso. Curitiba: Juruá Editora. 2005. p 41-60. p. 46.
277
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
No Direito Ambiental, não obstante os objetos de proteção nos casos
concretos sejam bens ambientais específicos – corpos d‟água; florestas, terrenos – o
objetivo do sistema, enquanto conjunto, é a tutela de um equilíbrio ambiental. O
objetivo maior do sistema é a tutela de um equilíbrio dinâmico nas interações da
humanidade com os elementos bióticos e abióticos de forma sustentável.
Para os propósitos deste trabalho, entenda-se essa sustentabilidade ambiental
como a durabilidade dos recursos frente às necessidades dos ecossistemas naturais e às
demandas dos ecossistemas sociais com destaque para os processos de produção e
consumo.12
Para a Propriedade Intelectual, os objetos específicos de proteção são
diversos, relacionando-se a cada doutrina especifica e englobando criações intelectuais,
expressões, informações, conhecimentos e tecnologias. O objetivo geral do sistema,
entretanto, não é tão claro, possivelmente porque o foco da tutela jurídica é mais
vislumbrado como o direito individual, eclipsando o interesse público subjacente.
Os direitos de propriedade intelectual relacionam-se diretamente com o
interesse público, pois tem sua existência justificada pelo interesse público simultâneo
de: a) reconhecer os autores e inventores pelas suas criações; e de b) estimular que os
mesmos produzam novos produtos e informações para a sociedade. Objetiva-se,
portanto, um ciclo contínuo de inovação que trará conhecimentos e tecnologias que
beneficiarão a sociedade e, ainda, o desenvolvimento econômico.13
Logo, tal qual no direito ambiental, deve existir uma dinâmica própria
relacionada à interação dos seres humanos com os conhecimentos, informações e
criações produzidas no ecossistema social. A sustentabilidade desse ambiente cultural
relacionar-se-á, portanto, com a produção e disseminação de conhecimentos.
Eliane Y. Abrão, discorrendo sobre o direito autoral, demonstra a dinâmica
dos bens imateirias que pode ser estendida à propriedade intelectual como um todo:
O privilégio temporário garantido por lei é, em si mesmo, enunciado e
solução: os autores, pessoas comuns e sensíveis frutos do meio social e
ambiental que habitam, recebem do meio ambiente histórico, geográfico e
cultural os estímulos necessários à sua singular criação. Esta, por outro lado
resulta de sua leitura pessoal do universo, decodificada pelos sentidos, razão
12
MILARÉ, Edis. Direito do Ambiente. 5ª. ed. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais. 2007. p. 69.
SHERWOOD, Robert M. Propriedade Intelectual e Desenvolvimento Econômico. São Paulo:
EdUsp. 1992. p. 46.
13
278
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
pela qual goza o autor de privilégio temporário e exclusivo em relação à obra.
E como é a coletividade que lhe fornece os ingredientes para a criação e a
confecção de seu trabalho intelectual, de modo justo e equânime, manda a lei
que ele devolva o uso e o gozo da obra criada a essa mesma coletividade,
após a extinção do privilégio temporário.14
Assim, da mesma forma, que existem ciclos naturais dos recursos
ambientais, existe um ciclo próprio dos bens imateriais que compõe o horizonte cultural
e científico da humanidade.
Da mesma maneira que o Direito Ambiental se pretende uma forma de
regulação da utilização dos bens ambientais de modo a salvaguardar a continuidade
desse ciclo e otimizar o aproveitamento social dos bens naturais, o Direito da
Propriedade Intelectual deveria atuar como um mecanismo de salvaguarda dos ciclos do
ecossistema social de produção de conhecimentos, bem como otimizar o
aproveitamento social dos mesmos.
A preocupação na preservação do meio ambiente natural não é meramente
ética. Os recursos naturais e as dinâmicas dos ecossistemas naturais são elementos
essenciais dos ecossistemas sociais, especialmente à economia moderna. David Bollier
ressalta essa relevância da natureza:
“A natureza proporciona, de forma silenciosa, inúmeros outros benefícios
para a economia. A biodiversidade representa uma biblioteca genética que
está sendo cada vez mais utilizada para desenvolver novos remédios e para
aumentar a produtividade de trigo e milho. Os oceanos do planeta são
importantes para a filtragem biológica de água, para desintoxicar poluentes,
proporcionar
alimentos e
encorajar
o
turismo.
Pesticidas
naturais
proporcionam um valioso serviço os agricultores ao melhorar as colheitas e
diminuir custos de produção (um benefício que fica mais aparente quando o
sistema ecológico está comprometido). No total, estima-se de forma grosseira
que os serviços que a natureza proporciona estão na ordem de US$ 39
trilhões de dólares para a economia – isto num PIB estimado em US$ 35
trilhões”.15
14
ABRÃO, Eliane Y. Conhecimento, Pesquisa, Cultura e os Direitos Autorais. In: ADOLFO, Luis
Gonzaga; WACHOWICZ, Marcos (Orgs.). Direito da Propriedade Intelectual – Estudos em
Homenagem ao Pe. Bruno Jorge Hammes. Curitiba: Juruá Editora, 2006. p. 165-182. p. 167-168.
15
BOLLIER, David. Silent Theft – The private plunder of our common wealth. New York:
Routledge, 2003. p. 65. No original: “Nature quietly provides countless other benefits to the economy.
Biodiversity represents a ―genetic library‖ that is increasingly used to develop new medicines and
increase de productivity of wheat and corn crops. The world‘s oceans are important in biologically
filtering water, detoxifying some pollutants, providing food, and encouraging tourism. Natural pests
279
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Marcos Wachowicz, por sua vez, faz bela comparação entre os bens
intelectuais na sociedade atual e a importância dos recursos naturais que foram base da
“Revolução Industrial”:
O bem intelectual na Sociedade da Informação paulatinamente passa a ser
considerado tão valioso quanto, para a Revolução Industrial, foram os
recursos das matérias-primas do carvão, do ferro e do óleo. Isto com nítida
vantagem e diferença em relação a estes últimos, por se tratar de recursos
naturais limitados e não-renováveis, ao passo que o bem intelectual é um
recurso indefinidamente renovável. 16
O ecossistema social, tanto nos seus processos produtivos como nos seus
processos de consumo, está cada vez mais voltado para os bens intelectuais. Quanto ao
aspecto produtivo, Aires Rover destaca que, “(...) para as empresas, a posse do capital
físico está se tornando marginal ao processo econômico e até desnecessário e
incômodo. Em contraposição, agora a fonte da riqueza é o capital intelectual:
conhecimentos
estratégicos,
marcas,
patentes,
conceitos,
enfim,
propriedade
intelectual‖.17 Os processos de consumo, por sua vez, tem os próprios bens consumidos
estreitamente ligados aos sistemas de propriedade intelectual, especialmente na vertente
dos direitos autorais e de copyright: músicas, filmes, shows, jogos eletrônicos, etc.
Desta forma, conjugando-se a importância do meio ambiente para a
economia – e para a própria sociedade – com a crescente relevância a importância dos
bens imateriais, são válidas as indagações: Será que existe uma universalidade tal qual é
o meio ambiente para os bens naturais em relação aos bens imateriais? Será que existe
algo como um meio ambiente imaterial, meio ambiente intelectual ou cultural?
A resposta é afirmativa, existe sim um horizonte cultural comum que
congrega todos os conhecimentos e informações da humanidade. Tal qual o ar que é
respirado, existe uma pletora de sentidos e significados que são utilizados por todos,
sem normalmente qualquer reflexão do grande valor social que possuem: a linguagem, a
matemática, os conhecimentos científicos básicos, etc.
provide a highly valuable service to farmers in improving crop yields and lowering costs (a benefit that is
most apparent when the ecosystem service has broken down). All told, it has been crudely estimated that
nature´s service provide some US$ 39 trillion of value to the economy – this in a global GDP estimated at
US$ 35 trillion‖.
16
WACHOWICZ, Marcos. Propriedade Intelectual do Software & Revolução da Tecnologia da
Informação. Curitiba: Juruá Editora, 2004. p. 96.
17
ROVER, Aires J. O Direito Intelectual e seus Paradoxos. In: ADOLFO, Luis Gonzaga;
WACHOWICZ, Marcos (Orgs.). Direito da Propriedade Intelectual – Estudos em Homenagem ao Pe.
Bruno Jorge Hammes. Curitiba: Juruá, 2006. p. 33-38. p. 36.
280
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Esse meio ambiente dos bens e recursos imateriais pode ser identificado com
a própria cultura humana. Outro aspecto curioso é perceber que também existem
importantes similitudes entre o meio ambiente e a cultura.
2 UM MEIO AMBINETE CULTURAL E INTELECTUAL
Da mesma forma que o Direito Ambiental vai determinar formas de
comportamento social em relação aos recursos naturais, o direito da Propriedade
Intelectual é um importante segmento da ordem jurídica que vai determinar como a
coletividade vai se relacionar com essa sua “ecologia do conhecimento”, em razão dos
recursos imateriais.
O equivalente ao meio ambiente natural no plano imaterial seria a cultura.
Esta última vista como a integralidade dos conhecimentos, informações e sentidos
existentes na sociedade.
Para Ana Maria Marchesan a cultura ―(...) é tudo aquilo que é criado pelo
homem. É também um conjunto de entes que, embora não sejam fruto da criação
humana (ex. as paisagens naturais) são valorados como bens culturais‖.18
Danilo Fontenele Sampaio Cunha, indica que é possível compreender ―(...) a
cultura como sendo a maneira pela qual os humanos se humanizam por meio de
práticas que criam a existência social, econômica, política, religiosa, intelectual e
artística.‖19
Logo, essa concepção abrangente permite reformular a idéia de cultura como
todos aqueles elementos imateriais ou o valor imaterial atribuído a coisas materiais que
compõe o horizonte comum da humanidade e constitui as interações intersubjetivas
humanas e as interações com a realidade natural.
Com efeito, a própria relação do homem com o meio ambiente é mediada
por informação, conhecimento. As revoluções tecnológicas colocam em evidência que a
relação do ser humano com a realidade circundante passa a ser cada vez mais
dependente da tecnologia, sendo esta entendida como o conhecimento aplicado.
18
MARCHESAN, Ana Maria Moreira. A tutela do patrimônio cultural sob o enfoque do direito
ambiental, Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 17.
19
SAMPAIO CUNHA, Danilo Fontenele. Patrimônio Cultural – Proteção Legal e Constitucional. Rio
de Janeiro: Letra Legal Editora, 2004. p. 25.
281
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Nessa perspectiva, justifica-se a interpretação ampliativa proposta por José
Afonso da Silva para o conceito de meio ambiente que deve ser “(...) globalizante,
abrangente de toda a Natureza original e artificial, bem como os bens culturais
correlatos, compreendendo, portanto, o solo, a água, o ar, a flora, as belezas naturais,
o patrimônio histórico, artístico, turístico, paisagístico e arqueológico‖.20
Logo, não seria de todo absurdo, defender a existência de um meio ambiente
cultural, no qual os recursos naturais seriam as idéias, conhecimentos e tecnologias do
horizonte cultural comum da humanidade, especialmente quando a Constituição Federal
de 1998, expressamente consagra, no caput do art. 216, o patrimônio cultural imaterial.
Há uma contraposição ao paradigma anterior, onde somente bens físicos e edificações
com valor histórico seriam integrantes do patrimônio cultural.21
Além disso, o inc. III do art. 216 da Constituição Federal ressalta que as
criações artísticas, científicas e tecnológicas compõem o patrimônio cultural. Logo,
devem ser protegidas de acordo com esta natureza, embora a tutela jurídica das mesmas
seja a da Propriedade Intelectual no que diz respeito aos interesses individuais dos
autores, artistas e inventores.
Há ainda algumas similitudes interessantes no tratamento constitucional
dispensado tanto ao Patrimônio Cultural22 como ao Meio Ambiente23. Primeiro, ambos
são tratados como direitos difusos da coletividade. O meio ambiente chega a ser
expressamente designado como bem de uso comum do povo. Logo, ambos passam a ser
direitos públicos subjetivos, oponíveis até mesmo contra o estado. Segundo, em ambos
20
SILVA, José Afonso da. Direito ambiental constitucional. São Paulo: Malheiros, 2002. p. 20.
GANDELMAN, Silvia Regina Dain. Propriedade Intelectual e Patrimônio Cultural Imaterial. In:
Anais do Seminário Patrimônio Cultural e Propriedade Intelectual: proteção do conhecimento e das
expressões culturais tradicionais. Belém/PA, 13-15 de out. 2004. MOREIRA, Eliane; BELAS, Carla
Arouca; BARROS, Benedita; PINHEIRO, Antônio. (Orgs.). p. 211-222. Belém: CESUPA/MPEG. 2005.
p. 216.
22
Constituição Federal de 1988: Art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza
material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à
ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, (...). § 1º - O Poder Público,
com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de
inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e
preservação. (...) § 3º - A lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores
culturais. § 4º - Os danos e ameaças ao patrimônio cultural serão punidos, na forma da lei.
23
Constituição Federal de 1988: Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. (...) §
3º - As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas
físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os
danos causados.
21
282
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
há a expressa previsão de participação da sociedade na proteção. Fica assim
caracterizada uma responsabilidade da própria sociedade em relação aos mesmos.
Ainda na linha defendida por José Afonso da Silva, seria possível até
mesmo enquadrar esse meio ambiente cultural dentro de uma idéia global de meio
ambiente.
Observe-se que o conceito legal de meio ambiente identificado no art. 3º,
inciso I da Lei 6.938/31 aponta para o meio ambiente como ―(...) o conjunto de
condições leis, influências e interações de ordem física, química e biológica, que
permite, abriga e rege a vida em todas as suas formas.‖(grifado e negritado).
A expressão abrangente do final do dispositivo torna possível argumentar
que a vida engloba inda um aspecto imaterial ou cultural que não só o biológico, pois as
interações do homem com os recursos naturais são, invariavelmente, mediadas pela
cultura.
Essa perspectiva de um meio ambiente cultural é relevante, pois serve para
colocar a ótica na proteção cultural integralmente considerada e não no direito
individual como usualmente acontece nos campos da propriedade intelectual.
Ao contrário do Direito Ambiental, onde os debates e discussões sempre
partem de um paradigma de proteção do interesse coletivo no equilíbrio ambiental, no
caso da Propriedade Intelectual a própria forma de raciocínio jurídico está marcada pela
perspectiva de um raciocínio privado de direitos individuais. Por exemplo, os debates
do direito autoral são vistos como questões de direito civil e os debates da propriedade
industrial vistos como questões de direito comercial, em todos os casos dissociados do
profundo impacto social que possuem sobre a cultura de determinada sociedade.
A própria expressão “propriedade intelectual” coloca-se em contraponto ao
a expressão “patrimônio cultural”. As duas palavras que compõe a primeira expressam
um aspecto individualista, vez que “propriedade” e “intelectual” evocam a idéia do
indivíduo e da criatividade individual. Já as palavras que compõe a segunda expressão
evocam uma noção de coletivo – patrimônio e cultura.
Colocar em evidência a importância de um espaço cultural comum é
necessário para evitar que uma lógica de tutela jurídica individualista venha a ser
extremada na atribuição progressiva de direitos individuais em detrimento do direito
difuso da coletividade de acesso aos bens culturais. Pertinente destacar a análise de José
283
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Oliveira de Ascensão, que embora se refira aos direitos autorais pode ser expandida para
toda a propriedade intelectual:
A defesa da cultura faz-se com a liberdade e não com a proibição.
A afirmação pareceria desnecessária, mas não é. Quando hoje se vem falar de
cultura, freqüentemente é apenas como pretexto para novas imposições a
título de direito autoral.[...] Infelizmente, assistimos a uma evolução
decepcionante. O hiperliberalismo selvagem em que vivemos manifesta-se,
no domínio do direito de autor, pelo que se chamaria a “caça as exceções”.
Toda a restrição é perseguida, invocando-se a qualificação do direito de autor
como propriedade – quando, mesmo que a qualificação fosse verdadeira, nem
por isso a “propriedade” deixaria de estar submetida às exigências da função
social. [...] É lamentável que assim se proceda. As restrições ao direito de
autor permitem a adaptação constante deste direito às condições de cada
época. Agora, não só não se prevêem as restrições adequadas à evolução
tecnológica como se impede toda a adaptação futura. O direito de autor tornase rígido, insensível a todo o devir.24
Além disso, outro ponto que a ótica sob um prisma ambiental coloca em
evidência é qual a ecologia natural dos bens imateriais, qual o comportamento dos
mesmos no âmbito social.
3 CONTRASTE ENTRE AS DINÂMICAS DE UTILIZAÇÃO DOS BENS
NATURAIS E DOS BENS INTELECTUAIS
Do paralelo traçado ao logo do trabalho verifica-se que um dos objetivos do
sistema de propriedade intelectual deve ser a manutenção de um equilíbrio na “ecologia
natural” dos bens intelectuais, além de promover um aproveitamento otimizado dos
recursos. É a nota característica da imaterialidade que vai diferenciar o tipo de tutela
jurídica que deve incidir sobre tais bens imateriais das tutelas jurídicas dispensadas aos
bens ambientais.
24
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito da Internet e da Sociedade da Informação. Rio de Janeiro:
Forense, 2002. p. 135-137.
284
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Um dos paradigmas para a definição das formas de proteção dos recursos
naturais é o problema econômico que se tornou famoso com o artigo The Tragedy of the
Commons25, publicado por Garret Hardin, na revista Science, em 1968.26
O problema procura ilustrar como a racionalidade individual importa num
incentivo natural para sobre-utilizar recursos naturais mantidos em regime comunal. O
exemplo prático utilizado foi o de pastagens comunais e um grupo de criadores de gado.
A tragédia que os terrenos vêm a sofrer é a sobre-pastagem. Segundo
Hardin, esta decorre da situação aonde os benefícios provenientes de cada cabeça de
gado adicional vão na sua totalidade para o proprietário – internalização dos benefícios
– ao passo que o ônus que aquele consumo sobre o recurso ambiental – pastagem – é
partilhado por todos os utilizadores do terreno – exteriorização dos custos. O resultado
lógico dessa dinâmica é a utilização excessiva do pasto comunal, com o conseqüente
esgotamento do próprio recurso.
Logo, direitos de propriedade, ou direitos de exclusividade sobre a
utilização de recursos naturais – no exemplo, propriedade sobre os terrenos de pastagem
– é uma forma de prover incentivos para que os criadores de gado procurem manejar de
forma eficiente os recursos que possuem, procurando extrair o máximo daquela área de
pastagem, até mesmo reduzindo a utilização para permitir sua conservação.
Contudo, esta lógica de atribuição de direitos exclusivos necessita ser
reformulada quando da aplicação sobre bens intelectuais. Com efeito, os bens
intelectuais são o que se pode chamar de “imperfeitamente exclusivos”27, pois é
possível excluir terceiros de determinada informação ou conhecimento enquanto estes
forem mantidos em segredo. Uma vez comunicados não é mais possível excluir aquele
conhecimento ou informação do terceiro.
A natureza imaterial ainda permite que o mesmo bem ou recurso –
informação – seja utilizada por múltiplos indivíduos sem esgotar o recurso original.
Uma mesma música, por exemplo, pode ser cantada por milhares de pessoas
simultaneamente sem que a música se esgota, ao passo que a pastagem consumida por
uma cabeça de gado não subsiste mais disponível para outros animais.
25
O termo “commons‖ refere-se a qualquer recurso natural que disponha de pouca ou nenhuma
regulação, ou seja, são recursos naturais que podem ser livremente utilizados pela comunidade.
26
HARDIN, Garret. The Tragedy of the Commons. Science Magazine. nº 162. p. 1243-1248. 1968.
27
LESSIG, Lawrence. The Future of Ideas – The Fate of the Commons in a Connected World. New
York: Vintage Books, 2002. p. 94.
285
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Assim, os bens imateriais são diferentes no que se relaciona aos critérios
econômicos de rivalidade e exclusividade dos recursos. Essas diferenças de
comportamento econômico implicam que o os equilíbrios do meio ambiente natural e
do meio ambiente cultural prestar-se-ão a dinâmicas diferenciadas, demandando lógicas
e formas de regulação próprias.
Lawrence Lessig explica as implicações da rivalidade na definição de um
sistema de controle sobre a utilização de recursos econômicos, naturais ou imateriais
1. Se o recurso é rival, então o sistema de controle é necessário para
assegurar que o recurso não será esgotado, o que significa que o sistema deve
assegurar que o recurso será tanto produzido como não sobre-utilizado;
2. Se o recurso é não rival, então o sistema de controle é necessário
simplesmente criado – um problema de provisionamento. Uma vez criado
não há qualquer perigo de que o recurso seja esgotado. Por definição um
recurso não rival não pode ser exaurido. [...] O que se segue é crucial: O
sistema de controle criado para recursos rivais (terra, carros, computadores)
não é necessariamente apropriado para recursos não rivais (idéias, música,
expressões). De fato, o mesmo regime para os dois tipos de recursos pode
ocasionar um dano real. Portanto, o sistema legal ou a sociedade em geral,
deve cuidadosamente delinear o tipo de controle ao tipo de recurso. Um só
tipo de regulação não serve para todos os casos.28
Logo, o sistema de propriedade intelectual não deveria ter, a priori, a
mesma formatação de um sistema de propriedade para bens materiais ou de recursos
naturais. Embora o que se persiga no Direito Ambiental e no direito de Propriedade
Intelectual seja o equilíbrio, no primeiro, uma preocupação deve ser a sobre-utilização
ou esgotamento dos recursos, no segundo a existência ou não de incentivos suficientes à
produção dos bens imateriais.
Uma vez produzidos, os bens intelectuais podem ser amplamente
difundidos, sem que o detentor originário veja-se diminuído no acesso ao bem. Essa
vocação para a difusão dos bens intelectuais torna-se ainda mais patente diante das
28
LESSIG, Lawrence. Idem. p. 94-95. No original: “1. If the resource is rivalrous, then a system of
control is needed to assure that the resource is not depleted which means the system must assure the
resource is both produced and not overused; 2. If the resource is nonrivalrous, then a system of control is
needed simply to assure the resource is created – a provisioning problem, (…). Once it is created, there is
no danger that the resource will be depleted. By definition, a nonrivalrous resource cannot be used up.
[...] What follows then is critical: The system of control that we erect for rivalrous resources (land, cars,
computers) is not necessarily appropriate for nonrivalrous resources (ideas, music, expression). Indeed,
the same system for both kinds of resources may do real harm. Thus a legal system, or a society
generally, must be careful to tailor the kind of control to the kind of resource. One size won´t fit all.”
286
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
tecnologias digitais e das redes de telecomunicação, cujo exemplo por excelência é a
Internet, que se consubstanciam em uma infra-estrutura que reduz os custos de
distribuição dos bens intelectuais à quase zero.
Contudo, essa facilidade de replicação ocasiona um problema que se
relaciona com os incentivos necessários à produção do bem intelectual em primeiro
plano. Surge o problema econômico conhecido como free riding, ou seja, a
possibilidade de “pegar carona” no esforço alheio. Se os custos com a cópia ou a
engenharia reversa de um determinado produto intelectual são muito menores do que os
custos com a criação ou desenvolvimento do mesmo, a racionalidade individual
sugeriria que todos os agentes aguardassem que outrem criasse o produto. Com todos
agindo dessa forma o produto sequer seria criado inicialmente.
O sistema de direitos de Propriedade Intelectual é a forma como a sociedade
busca resolver esse problema. Através da atribuição de direitos exclusivos, busca-se
equacionar tanto a questão dos incentivos para a produção como garantir uma
distribuição eficiente. Consoante Lévêque e Ménière,
Através da oferta de direitos exclusivos por um período de tempo limitado, a
propriedade intelectual trata desses dois problemas de forma seqüencial.
Inicialmente, o mecanismo legal de proteção torna o produto exclusivo.
Usuários devem pagar pelos serviços oferecidos, através de royalties.
Seqüencialmente, quando o trabalho passa para o domínio público, todos os
consumidores podem acessá-lo de forma gratuita. Propriedade Intelectual
procura encontrar um equilíbrio entre incentivos para a criação e inovação e
usos, traduzindo-se em linguagem econômica como uma troca entre
eficiências dinâmica e estática.29
Essa sistemática de atribuição de direitos exclusivos é comum às diversas
doutrinas da propriedade intelectual, seja no tocante às criações artísticas seja no que se
relaciona aos inventos industriais. Logo, traduz-se na própria dinâmica do equilíbrio
ecológico desse meio ambiente cultural.
29
LÉVÊQUE, François; MÉNIÈRE, Yann. The Economics of Patents and Copyright. Paris: Berkley
Eletronic Press, 2004. p. 5. No original: “By offering an exclusive right for a limited period, intellectual
property law addresses these two problems sequentially. Initially, the legal mechanism of protection
makes the good excludable. Users are required to pay for the services offered, through royalties.
Subsequently when the work passes into the public domain, all consumers can access it free of charge.
Intellectual property law thus attempts to strike a balance between the incentive to create and innovate
and use translates into economic language as a trade-off between dynamic and static efficiency.”
287
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Os direitos exclusivos são uma forma de permitir o controle da criação de
modo que o titular possa cobrar pelo acesso desse recurso intelectual para não só
recuperar os custos com a criação ou desenvolvimento, bem como se sentir estimulado à
criar em primeiro lugar.
Dessa concepção decorre importante constatação, a forma e a extensão do
controle é que delimitam o equilíbrio dessa ecologia informacional. Se o controle for
muito reduzido, não haverá incentivos suficientes para a produção de novos bens
intelectuais e o ambiente intelectual não estará a se expandir em toda a sua
potencialidade.
Por outro lado, se o controle for excessivo, estar-se-á limitando o acesso a
esses bens imateriais desnecessariamente em favor do interesse individual. Além disso,
não se está a permitir que outros indivíduos na sociedade elaborem sobre esse
conhecimento prévio, produzindo algo novo sobre fundamentos passados.
É possível dizer que as diferenças de dinâmica econômica entre os recursos
naturais e os recursos intelectuais determinam duas diferentes posturas em relação à
tutela dos respectivos meio ambientes.
O meio ambiente natural, composto de bens materiais, necessidade de uma
lógica de preservação e limitação da utilização de modo a promover a sustentabilidade
do mesmo frente à esgotabilidade dos recursos.
Já o meio ambiente cultural, composto de bens imateriais, necessita de uma
lógica de expansão progressiva, tendo em vista a inesgotabilidade dos recursos. Para
tanto, necessita de uma tutela que providencie tão somente os incentivos necessários a
um nível de produção ótimo para a posterior difusão dos bens produzidos. O equilíbrio
desse meio ambiente peculiar encontra-se na adequada atribuição da exclusividade tanto
em escopo, como em duração.
Os princípios ambientais, por sua vez, orientam tanto a construção de
políticas públicas, como a hermenêutica a ser aplicada às questões ambientais. Válido,
portanto, fazer algumas ilações de como transportar os principais princípios do direito
ambiental para o campo da Propriedade Intelectual.
288
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
4 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE AS APLICAÇÕES DOS PRINCÍPIOS
AMBIENTAIS À PROPRIEDADE INTELECTUAL
Os princípios ambientais têm grande importância para se obter a efetividade
do direito subjetivo a um meio ambiente ecologicamente equilibrado. São diversos os
princípios ambientais de índole constitucional: a) o princípio do acesso eqüitativo aos
recursos naturais; b) o princípio do usuário-pagador; c) o princípio do poluidor-pagador;
d) o princípio da precaução; e) o princípio da prevenção; f) o princípio da reparação; g)
o princípio da informação; h) o princípio da participação.30
Contudo, para os propósitos deste estudo, destacamos alguns princípios nos
quais é possível fazer paralelos e suscitar questões cuja análise pode se mostrar
relevante para a compreensão da propriedade intelectual.
4.1 Princípio da Responsabilidade Intergeracional
O princípio da responsabilidade intergeracional decorre da previsão
constitucional, no final do caput do art. 225, da necessária preservação do meio
ambiente para as gerações futuras. Tal princípio coloca em evidência que a tessitura
social não é pontual, mas sim um contínuo através da história, ligando as mais diversas
gerações. Nas palavras de Edmund Burke:
Sociedade é realmente um contrato. (...) É uma parceria em toda a ciência;
uma parceria em todas as artes; uma parceria em toda virtude e em toda a
perfeição. Como os objetivos dessa parceria não podem ser obtidos em várias
gerações, fica claro que essa parceria não é somente entre aqueles que estão
vivos, mas entre aqueles que estão vivos, aqueles que estão mortos e aqueles
que estão por nascer.31
O Direito Ambiental, portanto, objetiva salvaguardar as condições
ambientais para o futuro. Do contrário, o uso desregrado atual irá comprometer a
30
DELGADO, José Augusto. Aspectos constitucionais do direito ambiental. BDJur, Brasília, DF. 19
dez. 2007. Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/dspace/handle/2011/16087>.
31
BURKE, Edmund. Reflections on The Revolution in France. 1790. Disponível em:
<http://socserv2.mcmaster.ca/~econ/ugcm/3ll3/burke/revfrance.pdf>. Acesso em 08/08/08. No original:
―Society is indeed a contract. (…) It is a partnership in all science; a partnership in all art; a partnership
in every virtue and in all perfection. As the ends of such a partnership cannot be obtained in many
generations, it becomes a partnership not only between those who are living, but between those who are
living, those who are dead, and those who are to be born.”
289
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
quantidade e qualidade de recursos ambientais necessários para que as gerações futuras
possam exercer, no seu momento próprio, o direito a uma qualidade sadia de vida.32
Para José Rubens Leite, portanto:
(...) a defesa do meio ambiente está relacionada a um interesse
intergeracional e com necessidade de um desenvolvimento sustentável,
destinado a preservar os recursos naturais para gerações futuras, fazendo com
que a proteção antropocêntrica do passado perca fôlego, pois está em jogo
não apenas o interesse da geração atual. Assim sendo, este novo paradigma
de proteção ambiental com vistas às gerações futuras, pressiona um
condicionamento humano, político e coletivo mais consciencioso com
relação às necessidades ambientais.33
O tratamento constitucional da cultura, por sua vez, também aponta para a
preservação da história e memória cultural do povo. Com efeito, existe toda uma gama
de instrumentos jurídicos para a proteção do Patrimônio Cultural. Contudo, este é
normalmente vislumbrado como tão somente os bens materiais e imateriais de valor
histórico ou historiográfico, quando os incisos do art. 216 claramente indicam que os
elementos desse Patrimônio transcendem os bens de valor meramente historiográfico.
Particularmente no tocante aos bens do inciso III, as criações artísticas,
científicas e tecnológicas, o princípio da responsabilidade intergeracional no campo da
Propriedade Intelectual traduzir-se-ia em um imperativo de que, para as gerações
futuras, não seja repassado um horizonte cultural e intelectual mais reduzido em razão
da atribuição excessiva de direitos exclusivos sobre bens intelectuais.
De fato, uma expansão desmedida de direitos de Propriedade Intelectual
sobre bens intelectuais implica numa redução do horizonte cultural comum que estará à
disposição da humanidade para que novas descobertas científicas e novos trabalhos de
arte.
Esse horizonte cultural comum disponível à todos, pode ser identificado
com o domínio público, ou seja, um conjunto de bens ou recursos imateriais disponível
à todos para utilização independentemente de autorização ou controle. Trata-se,
portanto, de um commons cultural.
32
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT,
2005. p. 171.
33
LEITE, José Rubens. Dano Ambiental: do individual ao coletivo e extrapatrimonial. RT. São Paulo,
2003. p.74.
290
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Esse tipo de commons é normalmente negligenciado ou pouco estudado,
pois o foco da atenção social usualmente reside com a novidade, não com a ciência ou
conhecimentos básicos subjacentes. Peter Barnes assim se posiciona sobre este
commons cultural:
Por este eu me refiro aos presentes da linguagem, arte e ciência que
herdamos, mais as contribuições que fazemos enquanto vivemos. Cultura é
um trabalho conjunto – uma co-produção – de indivíduos e sociedade. As
sinfonias de Morzart, tal quais as canções de Lennon e McCartney, são
trabalhos de gênio. Mas elas surgem da cultura na qual tais gênios vivem. A
instrumentação, o sistema de partituras, as formas musicais prevalentes são a
massa da qual os compositores assam os seus bolos. Também com as idéias.
Todos os pensadores e escritoras evocam histórias e descobertas que foram
desenvolvidas por incontáveis homens e mulheres antes deles. Parafraseando
Issac Newton, cada geração vê um pouco mais longe porque está nos ombros
de suas predecessoras. Desta forma, todos os novos trabalhos absorvem do
coletivo e o enriquecem. Para manter a arte e a ciência florescendo, nos
devemos garantir que o commons cultural seja cuidado. [...] Hoje em dia,
infelizmente, este commons cultural, tal qual o commons da natureza e
comunidade está sendo enclausurado por corporações privadas. O perigo é
que estas corporações venham a esgotar o solo onde a cultura cresce. O
remédio é revigorar o commons cultural.34
A idéia de um meio ambiente cultural é importante para evidenciar a
importância dessa cultural básica na qual toda a inovação e criatividade são geradas.
A aplicação de um princípio de responsabilidade intergeracional à
Propriedade Intelectual, por sua vez, implica na inserção de um componente ético na
definição do que pode ou não ser apropriado, de que forma e por quanto tempo, para
que esse commons cultural que é passado através das gerações não seja
34
BARNES, Peter. Capitalism 3.0. San Francisco: Berret-Koehler Publishers, Inc. 2006. p. 117. No
original: “By this I mean the gifts of language, art, and science we inherit, plus the contributions we make
as we live. Culture is a joint undertaking—a co-production—of individuals and society. The symphonies
of Mozart, like the songs of Lennon and McCartney, are works of genius. But they also arise from the
culture in which that genius lives. The instrumentation, the notation system, and the prevalent musical
forms are the dough from which composers bake their cakes. So too with ideas. All thinkers and writers
draw on stories and discoveries that have been developed by countless men and women before them. To
paraphrase Isaac Newton, each generation sees a little farther because it stands on the shoulders of its
predecessors. In this way, all new work draws from the commons and then enriches it. To keep art and
science flourishing, we have to make sure the cultural commons is cared for. […] Today, unfortunately,
this cultural commons, like the commons of nature and community, is being enclosed by private
corporations. The danger is that corporations will deplete the soil in which culture grows. The remedy is
to reinvigorate the cultural commons.”
291
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
progressivamente enclausurado e controlado por uns poucos detentores de ativos
intelectuais, sufocando a criatividade futura e o acesso aos conhecimentos básicos para
que se possam conduzir novas pesquisas científicas.
Essa noção de um meio ambiente cultural que deve ser cuidado possui,
portanto, implicação direta para as diversas doutrinas da propriedade intelectual: a
necessidade de uma gestão racional dos recursos intelectuais.
Se para o Direito Ambiental a utilização racional é aquela que permite a
preservação e recuperação natural do ambiente, a utilização racional da Propriedade
Intelectual será aquela onde a exclusividade e o controle privado são atribuídos na
medida adequada para que haja um máximo de produção social de bens intelectuais e o
retorno dos mesmos ao patrimônio comum.
Foge aos propósitos deste trabalho delinear todas as possíveis aplicações
que a construção desse princípio no campo da Propriedade Intelectual permitiria,
contudo, fica patente que diversas questões atualmente debatidas poderiam ser
beneficiadas com uma ótica ambiental, por exemplo, a questão dos conhecimentos
tradicionais associados ao patrimônio genético.
4.2 Princípio do Poluidor-Pagador
Para Marcelo Abelha,
(...) o princípio do poluidor-pagador, juntamente com o do desenvolvimento
sustentável (utilização racional dos componentes ambientais, que também
constituem um direito das futuras gerações) e com a identificação do objeto
de proteção do Direito Ambiental (equilíbrio ecológico derivado da interação
de seus componentes – bens de uso comum), constituem os mais robustos
“pilares” do Direito Ambiental, sobre os quais devem se assentar todas as
normas do ordenamento jurídico do ambiente. 35
De fato, o princípio do polidor-pagador e do usuário-pagador além do viés
econômico, possuem uma dimensão de ordem repressiva, de índole reparatória e
ressarcitória, buscando internalizar ao processo produtivo os custos sociais que são
suportados com o desenvolvimento das atividades econômicas. Consoante Paulo
Affonso Machado: ―A atividade poluente acaba sendo uma apropriação pelo poluidor
35
RODRIGUES, Marcelo Abelha. Elementos de direito ambiental: parte geral. 2. ed. São Paulo: RT,
2005. p. 190.
292
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
dos direitos de outrem, pois na realidade a emissão poluente representa um confisco do
direito de alguém em respirar um ar puro, beber água saudável e viver com
tranqüilidade‖.36
Num nível bem básico, o que o princípio prevê é uma reparação tendo em
vista o valor do ambiente que é aproveitado ou degradado dentro de um processo
produtivo que gera lucros para determinado agente econômico.
O pagamento financeiro é apenas a forma residual de reparação, pois o
objetivo ideal do Direito Ambiental é a manutenção, recuperação ou reparação do
próprio bem ambiental.
No campo da Propriedade Intelectual é possível verificar uma dinâmica com
algumas possíveis analogias. Com efeito, os titulares de ativos intelectuais relacionamse com o meio ambiente ex ante e ex post à atribuição dos direitos exclusivos.
No caso do direito de propriedade industrial, por exemplo, ao solicitar a
patente o inventor deve expor a técnica e o conhecimento inerentes à sua invenção, de
modo que um técnico no assunto possa repetir o processo (art. 24 da Lei de Propriedade
Industrial37). Neste momento, ex ante à proteção patentária, já há um retorno de
conhecimento à coletividade. Ao expirar à patente, há um retorno mais significativo à
sociedade, pois o conhecimento subjacente àquele invento ou processo passa para o
domínio público, o que permite à qualquer indivíduo trabalhar com e elaborar sobre o
mesmo.
No direito autoral, o final da proteção dos direitos patrimoniais reflete a
possibilidade de uma disseminação muito mais fácil e abre-se a possibilidade de
elaboração de novos trabalhos sobre os bens intelectuais.
Com efeito, um exemplo icônico do problema a qual está sujeito o meio
ambiente cultural é a história da Disney Corporation. Lawrence Lessig informa que a
maior parte dos grandes sucessos da Disney foram histórias derivadas de trabalhos do
domínio público:
Em verdade, o catálogo de trabalhos da Disney derivados do trabalho de
outros é assombroso quando colocado em conjunto: Snow White (1937),
36
MACHADO, Paulo Affonso Leme. Direito Ambiental Brasileiro. 16ª. ed. Malheiros: São Paulo.
2008. p. 273.
37
Lei nº 9.279/96: “Art. 24. O relatório deverá descrever clara e suficientemente o objeto, de modo a
possibilitar sua realização por técnico no assunto e indicar, quando for o caso, a melhor forma de
execução”.
293
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Fantasia (1940), Pinocchio (1940), Dumbo (1941), Bambi (1942), Song of
the South (1946), Cinderella (1950), Alice in Wonderland (1951), Robin
Hood (1952), Peter Pan (1953), Lady and the Tramp (1955), Mulan (1998),
Sleeping Beauty (1959), 101 Dalmatians (1961), The Sword in the Stone
(1963), and The Jungle Book (1967) , Treasure Planet (2003). Em todos esses
casos, Disney (ou Disney, Inc.) retirou criatividade da cultura ao seu redor,
mixou essa criatividade com seu extraordinário talento e gravou essa mistura
na alma dessa cultura.38
Inegável que toda essa criatividade produzida corporativamente é uma
importante parte da nossa cultura e valorizada pela comunidade. Com efeito, muitas
dessas histórias passaram a se tornar elementos indissociáveis dos sentidos e
significados de várias comunidades pelo globo.
Contudo, essa criatividade está apenas disponível para consumo, nos termos
ditados pelo detentor dos direitos. Qualquer uso não autorizado pode ser reprimido pelo
aparato policial e jurisdicional do estado. Assim, é inegável que essa criatividade não
retornou efetivamente para commons cultural, não obstante o efetivo valor desses
trabalhos esta na apreciação do público. Através de progressivas expansões dos períodos
de proteção dos trabalhos expressivos, nenhum dos trabalhos acima listados ingressou
no domínio público.
Assim, retirou-se um grande valor do commons cultural e ocorreu apenas
um retorno parcial, com a elaboração de novos trabalhos, porém, esses novos objetos
permanecem no controle de alguns poucos titulares, que efetivamente passam a ditar
como a cultura pode ou não ser utilizada.
Esse problema da ausência de um efetivo retorno ao commons cultural fica
ainda mais cristalizado frente às novas tecnologias digitais que, através de tecnologias e
equipamentos de baixo custo, democratizaram a possibilidade dos indivíduos de
capturar sons e imagens da cultura ao seu redor e alterá-las para expressar novas
mensagens e significados. Contudo, a maioria das imagens, músicas e filmes da nossa
cultura são trabalhos protegidos pela Propriedade Intelectual, através da qual, os
38
LESSIG, Lawrence. Free Culture. New York: Penguin Books, 2004. p. 23-24. No original: ―Indeed,
the catalog of Disney work drawing upon the work of others is astonishing when set together: Snow
White (1937), Fantasia (1940), Pinocchio (1940), Dumbo (1941), Bambi (1942), Song of the South
(1946), Cinderella (1950), Alice in Wonderland (1951), Robin Hood (1952), Peter Pan (1953), Lady and
the Tramp (1955), Mulan (1998), Sleeping Beauty (1959), 101 Dalmatians (1961), The Sword in the
Stone (1963), and The Jungle Book (1967) , Treasure Planet (2003). In all of these cases, Disney (or
Disney, Inc.) ripped creativity from the culture around him, mixed that creativity with his own
extraordinary talent, and then burned that mix into the soul of his culture‖.
294
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
titulares detêm o controle de como tais bens e a criatividade subjacente aos mesmos será
utilizada.
Ainda na comparação entre o meio ambiente natural e o meio ambiente
intelectual, cumpre definir o que seria poluição que se pretende prevenir ou reparar no
Direito Ambiental para a Propriedade Intelectual.
A poluição é vista como uma externalidade negativa do processo produtivo,
logo o direito cria mecanismos para que esta externalidade seja internalizada, através da
imposição de custos, como por exemplo, necessidade de tratamento dos efluentes
industriais.
O equilíbrio que norma ambiental deve alcançar é a internalização dos
custos associados a uma atividade produtiva sem, contudo, se tornar tão excessiva ao
ponto de inviabilizar as próprias atividades econômicas necessárias à sociedade.
Para os bens intelectuais, o problema é inverso, há uma dificuldade de
internalizar os benefícios de determinada criação, uma vez que é da natureza desses
bens uma grande assimetria entre os custos de produção e os custos de reprodução. Essa
facilidade de reprodução gera, na verdade, externalidades positivas para a sociedade,
uma vez que determinado conhecimento ou informação pode ser utilizado pode ser
utilizado por terceiros, levando a novas descobertas.
Numa simetria interessante, a lógica subjacente à Propriedade Intelectual
deve ser a busca de um equilíbrio que permita a internalização dos benefícios oriundos
de determinado bem intelectual produzido sem, contudo, reduzir as externalidades
positivas ao ponto de anular qualquer benefício à sociedade. Logo, poderíamos entender
como “poluição” do ambiente cultural o desequilíbrio causado por utilizações abusivas
ou controles excessivos dos titulares de ativos intelectuais, uma vez, que a vocação
natural da informação e do conhecimento é a difusão.
A idéia de um poluidor-pagador, traduzir-se-ia, para a Propriedade
Intelectual, em um princípio pelo qual o deve-se valorizar o commons cultural, bem
como devem existir mecanismos jurídicos e institucionais através do qual o
conhecimento produzido e usufruído com base nesse manancial informacional coletivo
retorne para a sociedade de modo ainda útil e com potencial para permitir novas
criações. Um dos pagamentos desse “poluidor” – aquele que se apropria do
conhecimento através da ordem jurídica – seria o próprio novo produto cultural quando
do seu retorno ao domínio público.
295
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
5. O AMBIENTALISMO CULTURAL NA PERSPECTIVA DO DIREITO
COMPARADO
Embora as considerações sobre as possíveis formas de instrumentalização e
transposição de princípios ambientais à Propriedade Intelectual no direito brasileiro
sejam apenas iniciais, demandado uma maior reflexão e estudo doutrinário, essa
comparação e utilização do conjunto conceitual e metodológico do ambientalismo para
a construção de uma perspectiva unificada dos movimentos sociais relacionados com a
informação e o conhecimento já é presente no direito comparado.
A
idéia
específica
de
um
ambientalismo
cultural
(cultural
environmentalism) no campo da propriedade intelectual surgiu na doutrina americana a
partir dos trabalhos de James Boyle, professor da universidade de Duke.39 No livro
Shamans, Software, and Spleens, Boyle explicita a multiplicidade de campos
aparentemente díspares que tem como elemento comum a regulação sobre a informação.
A utilização do movimento ambientalista como um paradigma de estudo é
interessante para dotar os diversos movimentos em torno da regulação das informações
e do conhecimento de uma identidade. Desta forma, fortalecendo o discurso sobre a
necessidade de valorizar o commons cultural e informacional que tem cada vez maior
importância na sociedade.
Nas palavras do próprio Boyle:
Eu tenho defendido que, da mesma forma, temos que tornar visíveis as
invisíveis contribuições do domínio público, o “eco-sistema de serviços”
realizados pelo ignorado, porém vital, reservatório de liberdade na cultura e
na ciência. E, da mesma forma que com o ambientalismo, necessitamos não
só de um reconhecimento semântico ou um movimento devotado a este fim,
mas de um conjunto de ferramentas conceituais e analíticas. 40
39
LESSIG, Lawrence. Foreword. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law and Contemporary
Problems. Volume 70, p. 1-4. Spring 2006. p. 1.
40
BOYLE, James. Cultural Environmentalism and Beyond. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law
and Contemporary Problems. Volume 70, p. 5-22. Spring 2006. p. 7. No original: “I argued that, in a
similar way, we needed to make visible the invisible contributions of the public domain, the “eco-system
services” performed by the under-noticed but nevertheless vital reservoir of freedom in culture and
science. And, just as with environmentalism, we needed not only a semantic reorganization, or a
movement devoted to a goal, but a set of conceptual and analytic tools.”
296
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
O domínio público é o foco de uma grande valorização no trabalho de
Boyle, para quem o mesmo sofre problemas similares ao ambiente em seu processo de
afirmação social:
O ambiente era sub-valorizado por uma concepção estreita e formalista de
direitos de propriedade, que ignorava os efeitos da poluição e de outras
atividades na ecologia coletiva, não reconhecidos como danos legalmente
tuteláveis. Similarmente, existiam áreas da propriedade intelectual onde o
domínio público era sub-valorizado por uma ideologia romântica de autoria,
que pressupunha que a inovação surgia do éter – o autor não necessitaria de
materiais básicos para suas criações.41
Retirar o foco do debate da pessoa do criador de um bem intelectual é uma
forma importante para permitir a compreensão da importância do horizonte cultural
comum da comunidade para o próprio processo criativo. Valorizar a idéia e o estudo do
domínio público é uma forma de destacar a importância de um espaço de liberdade, seja
nas artes ou nas ciências:
A idéia do “ambiente” literalmente criou o “auto-interesse” ou conjunto de
preferência que torna o movimento coeso. O mesmo é verdade aqui.
Interesses aparentemente díspares são ligados pela idéia de proteção do
domínio público e da importância de equilíbrio entre proteção e liberdade na
ecologia cultural e científica.42
Essa ecologia da informação e do conhecimento necessita ser vislumbrada
em toda a sua extensão, especialmente para que os diversos problemas existentes nas
diversas doutrinas da Propriedade Intelectual possam ser entendidos como decorrência
de uma causa comum, o desequilíbrio entre o controle e a liberdade sobre os bens
intelectuais.
41
BOYLE, James. Cultural Environmentalism and Beyond. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law
and Contemporary Problems. Volume 70, p. 5-22. Spring 2006. p. 7. No original: “The environment was
undervalued by a narrow and formalistic conception of property rights that ignored the effects of
pollution and other activities on the collective ecology, not counting it as a legally cognizable harm.
Similarly, there were areas in intellectual property law where the public domain was undervalued by an
ideology of authorial romance, which assumed innovation sprang out of thin air—the great author needs
no raw material for his creations.‖
42
BOYLE, James. Cultural Environmentalism and Beyond. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law
and Contemporary Problems. Volume 70, p. 5-22. Spring 2006. p. 17. No original: “The idea of the
―environment‖ literally created the ―self-interest‖ or set of preferences that ties the movement together.
The same is true here. Apparently disparate interests are tied together by the ideas of the protection of
the public domain and of the importance of a balance between protection and freedom in the cultural and
scientific ecology.‖
297
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
O foco dos debates deve passar a ser o equilíbrio e não simplesmente a idéia
de proteção e regulação. A já assentada idéia de um direito fundamental a um meio
ambiente ecologicamente equilibrado, transposta à Propriedade Intelectual em relação a
um meio ambiente cultural, pode ser um importante fator para reformular o debate de
forma mais lúcida e racional.
É necessário, portanto, valorizar tanto o papel do indivíduo e seus interesses
como o indispensável papel da coletividade nos processos de produção cultural e
científica. Nas palavras de Lawrence Lessig:
Tal qual o meio ambiente global, cada vez mais percebemos como escolhas
relativamente específicas sobre como a informação será regulada possuem
efeitos radicais na saúde e diversidade da ecologia informacional. E da
mesma forma que precisamos levar em consideração os efeitos globais de
nossa decisão de usar como fonte de energia o carvão, ou a utilização de
gasolina nos carros, também devemos levar em consideração os efeitos
culturais globais do aumento radical na regulação característica legislação
sobre informação. O ponto não é anarquia. Ambientes informacionais, como
os ambientes físicos, necessitam de regulação. Ninguém duvida que certa
regulação é boa. Mas simplesmente porque alguma é boa, não segue que
quanto mais é melhor. Ou mesmo se mais for melhor para alguns propósitos,
não é necessariamente o melhor para a difusão do conhecimento ou progresso
da cultura.43
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O artigo procurou demonstras as similitudes de tratamento existente entre o
tratamento constitucional do meio ambiente e do patrimônio cultural, destacando que
este último é composto não somente dos bens de valor historiográfico. A dicção
constitucional expressamente indica que compõe esse patrimônio as criações artísticas,
científicas e tecnológicas. A Propriedade Intelectual, por sua vez, disciplina exatamente
43
LESSIG, Lawrence. Foreword. In: Cultural Environmentalism @ 10. Law and Contemporary
Problems. Volume 70, p. 1-4. Spring 2006. p. 4. No original: “For, like the global environment, more now
see how relatively specific choices about how information gets regulated have radical effects upon the
health and diversity of an information ecology. And Just as we need to account for the global effects of
our decision to heat with coal, or drive with oil, so too we need to account for the global cultural effects
of the radical increase in regulation that marks information law. The claim is not for anarchy.
Information environments, like physical environments, need regulation. None doubt that some regulation
is good. But just because some is good, it does not follow that more is better. Or even if more is better for
some purposes, it is not necessarily better for the spread of knowledge or the progress of culture”
298
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
os limites de apropriabilidade desses bens, bem como cria incentivos para a produção e
regula o retorno dos bens produzidos para o horizonte cultural comum da humanidade.
Conclui-se se possível traçar alguns paralelos entre o meio ambiente e um
commons cultural da sociedade, contudo, os respectivos bens formadores prestam-se a
dinâmicas de produção e consumo diferenciadas em razão da natureza material ou
imaterial. Essas diferenças, por sua vez, vão determinar sistemáticas e equilíbrios
próprios para o meio ambiente natural e o meio ambiente cultural.
A transposição de princípios do direito ambiental para a propriedade
intelectual encontra diversas aplicações. Primeiro, por traduzir para a propriedade
intelectual a noção de uma responsabilidade intergeracional relativamente à cultura que
é repassada às gerações futuras, que deve ser rica, farta e, principalmente, acessível para
que possa haver uma evolução e expansão do conhecimento humano. Segundo, a idéia
do direito a um meio ambiente equilibrado, onde os ônus impostos pela atividade
humana devem ser reparados, evoca a idéia análoga de um ambiente cultural onde o
acesso aos bens intelectuais não seja desnecessariamente limitado em favor da
apropriação individual do conhecimento, bem como haja um efetivo retorno dessa
cultura à coletividade.
O artigo ainda demonstra que a idéia de um ambientalismo cultural como
forma de unificar a visão dos diversos problemas e questões envolvendo a Propriedade
Intelectual em suas diversas doutrinas, já vem sendo construído no direito comparado.
A dignidade constitucional do meio ambiente é transportada para a seara intelectual
como a dignidade do domínio público e do commons cultural da humanidade.
Por fim, conclui-se que as analogias e o estudo das interações do Direito
Ambiental, com a Propriedade Intelectual podem apresentar relevantes insights para o
aprimoramento do debate, bem como para a construção racional e equilibrada do
sistema jurídico de tutela dos bens intelectuais e informacionais.
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Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
TRIBUTAÇÃO AMBIENTAL E PROPRIEDADE: possibilidade de uma política
fiscal adequada ao programa “Minha casa, minha vida”
Denise Lucena Cavalcante1
João Victor Porto Sales2
SUMÁRIO
1. Por uma teoria geral da tributação ambiental. 2. Política Nacional de Habitação. 3.
Programa “Minha Casa, Minha Vida”. 4. Aspectos Ambientais do Programa “Minha
Casa, Minha Vida”. 5. Conclusão. 6. Referências Bibliográficas.
RESUMO
O presente artigo tem como meta analisar as possibilidades de uma política fiscal
adequada ao programa habitacional do governo federal denominado “Minha Casa,
Minha Vida” através de um enfoque tributário-ambiental, buscando aferir as possíveis
medidas fiscais voltadas a proteção ambiental.
Palavras-chaves: Tributação ambiental. Política habitacional brasileira.
ABSTRACT
This article intends to examine the possibilities for an appropriate tax policy to the
federal government's housing program called "My House, My Life" through a
environmental tax approach, in order to the survey possible fiscal measures aimed at
environmental
protection.
Keywords: Environmental taxation. Brazilian housing policy.
1
Professora de Direito Tributário e Financeiro - Graduação e Pós-graduação. Doutora pela
PUC/SP. Líder do Grupo de Pesquisa em Direito Tributário e Meio Ambiente - UFC. E-mail:
[email protected] .
2
Aluno da graduação do Curso de Direito da Universidade Federal do Ceará. Membro do Grupo
de Pesquisa em Direito Tributário e Meio Ambiente - UFC. E-mail: [email protected].
303
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
1 Por uma teoria geral da tributação ambiental
No debate contemporâneo percebe-se uma crescente fusão das ciências e, mais
ainda, quando as questões referem-se ao meio ambiente. Os estudos não podem mais se
limitar a um único ramo do Direito, sendo o Direito Ambiental tópico prioritário em
praticamente todas as áreas jurídicas.
Em virtude dos graves problemas decorrentes da crescente deteriorização da
natureza, a proteção ao meio ambiente tem sido objeto de estudo de importantes
pesquisas jurídicas, sempre na tentativa de se fomentar novas condutas de proteção
ambiental ou buscar reparar os imensos danos já causados.
Diante deste contexto é que se defende aqui a criação de uma Teoria Geral da
Tributação Ambiental com o objetivo de adequar os conceitos do direito ambiental às
finanças públicas, viabilizando, assim, a elaboração de normas voltadas para as políticas
públicas ambientais, principalmente as referentes às atividades estatais regulatórias.
O Direito Tributário Ambiental3 exige uma sistematização dos princípios
ambientais no âmbito dos direitos financeiro e tributário.
Sendo o tributo um instrumento de intervenção na atividade econômica, ele pode
ser utilizado na esfera ambiental como um indutor de atividades ambientalmente
corretas, propiciando uma adequação do desenvolvimento sócio-econômico às
necessidades ambientais.4
3
Regina Helena Costa assim identifica a relação existente entre a tributação e a preservação do
meio ambiente: “A tributação ambiental pode ser singelamente conceituada como o emprego de
instrumentos tributários para orientar o comportamento dos contribuintes à protesto do meio ambiente,
bem como para gerar os recursos necessários à prestação de serviços públicos de natureza ambiental.”
(Tributação ambiental. In Direito ambiental em evolução. Curitiba: Juruá. 2. ed. 2003, p. 303).
4
“De igual modo, faz-se necessária a intervenção do Poder Público nas esferas do
desenvolvimento econômico e social, a fim de que seja realizado o controle efetivo do uso dos recursos
naturais. Nesse sentido é que a tributação ambiental surge como um dos instrumentos de controle para o
desenvolvimento econômico. Os padrões atuais de consumo revelam-se como sendo insuportáveis a
longo prazo, sendo que os tributos se apresentam como uma utilíssima ferramenta na tentativa de
manutenção de um meio ambiente saudável”. ( GREY, Natália de Campos. Tributação do meio
ambiente. In Revista jurídica tributária. Ano 2 – abril/junho de 2009, n. 5. Porto Alegre: NOTADEZ, p.
82).
304
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Conforme previsto no art. 170, inciso VI, da Constituição da República Federativa
do Brasil,5 tem-se uma autorização constitucional para a utilização do tributo como
indutor de atividades econômicas, através de tratamento diferenciado que se exprime
por estímulos ou desestímulos de determinadas condutas.
Assim dispõe o texto constitucional:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
(...);
VI - defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado
conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de
elaboração e prestação.
O Brasil destaca-se neste contexto de proteção ecológica que se instaura no século
XXI em virtude do seu imenso potencial de recursos naturais, tendo plenas condições
importantes projetos para a produção de energias alternativas renováveis, tais como,
energia solar, eólica e biomassa.
Para fomentar as atividades econômicas6 voltadas para a utilização de mecanismos
de desenvolvimento limpo, imperioso que se aprimore uma normatização adequada de
proteção ambiental, caracterizando, assim, este século, como o da Responsabilidade
Fiscal Ambiental, devendo, tanto as atividades estatais de arrecadação, como as
5
Registra-se, por oportuno, a contextualização do art. 170, inciso VI, da Constituição Federal, no
texto a seguir: “Diante do mundo globalizado e da ausência de fronteiras em relação ao problema
ambiental ver-se-á nesta questão uma atuação interdisciplinar, numa perspectiva de uma harmonização
comunitária e de acordos internacionais no sentido de reverter o quadro caótico de degradação ambiental
do planeta. O mais recente exemplo foi a aprovação do Protocolo de Kyoto (1997) que determinou o
compromisso por parte dos países desenvolvidos de atingir, entre 2008 e 2012 a meta de redução média
de 5,2% das suas emissões de dióxido de carbono. Seguindo este movimento mundial o Brasil, com a
Emenda Constitucional n. 42, de 19/12/2003, acrescentou o inciso VI, ao art. 170, adotando uma política
econômica intervencionista permitindo, assim, a adoção de benefícios fiscais as atividades econômicas
não poluidoras.” (CAVALCANTE, Denise Lucena. Políticas públicas ambientais no setor automobilístico.
In Direito tributário e econômico aplicado ao meio ambiente e à mineração. São Paulo: Quartier
Latin, 2009, p. 217).
6
Sobre a influencia do tributo na economia: “Assim, sendo a proteção ambiental uma dessas
finalidades, admite-se a utilização da extrafiscalidade dos tributos para ordenar ou reordenar a economia e
as relações sociais, através do incentivo ou desestímulo de determinados comportamentos em relação ao
meio ambiente. Este fenômeno, a que se convencionou chamar tributação ambiental, abriga um gênero do
qual fazem parte variadas espécies de tributos ecologicamente orientados.” (CAVALCANTE, Denise
Lucena e, MENDES, Ana Stela Vieira. Constituição, direito tributário e meio ambiente. In Revista
NOMOS. Vol. 28.2, jul/dez – 2008.2, p. 35).
305
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
programações orçamentárias da despesa, se voltar para atividades econômicas que
promovam o estímulo ao desenvolvimento econômico que resguarde o meio ambiente7.
Importante destacar aqui é a utilização de uma política fiscal ambiental voltada
para a indução de atividades que propiciem o desenvolvimento econômico visando à
proteção ambiental e, não no sentido de criar mais tributos ou mesmo gerar uma
´pressão fiscal adicional`8.
Nessa perspectiva é que se faz mais viável a utilização de incentivos fiscais para
proteção do meio ambiente do que a adoção dos chamados “tributos verdes”, pois
embora pareça a solução mais coerente aos olhos de boa parte de doutrina, a criação de
novos tributos (green tax - “imposto verde”), que tenham por hipótese de incidência um
ato potencialmente lesivo ao meio ambiente, só faria por agravar, ainda mais, os
encargos existentes sobre o contribuinte brasileiro - que, diga-se, é um dos mais
onerados em todo o mundo -, sem que isso importe na esperada quebra de paradigma,
reformulando a sistemática tributária nacional, há muito desiludida com promessas
falaciosas de reforma. 9
Outro motivo para a utilização de incentivos fiscais ao invés da instituição de
novos tributos é o fato de que ao se utilizar mecanismos que incentivem o empresário
ou o próprio consumidor a adotar práticas sustentáveis trabalha-se com a prevenção do
dano ambiental e não com a reparação do mesmo, o que para o meio ambiente é mais
7
Neste sentido argumenta Cristobal J. Borrero Moro: “Las medidas fiscales pueden, igualmente,
realizar, tanto una función estimuladora de aquellos comportamientos acordes con el medio, como una
función disuasoria de los contrarios. En estos casos, las medidas fiscales van a servir al cumplimiento del
mandato constitucional de protección del medio, bien a través del establecimiento de un tributo, sin
necesidad de utilizar su producto , bien a través del establecimiento de exenciones disminuyendo, total o
parcialmente, los recursos que, potencialmente, podría proporcionar el establecimiento de un tributo. El
legislador es plenamente consciente de la importancia de las medidas fiscales en orden a estimular o
desestimular conductas tanto en el desarrollo de sus actividades de consumo, como productoras. Por ello,
cuenta con dichos instrumentos tributarios a la hora de estimular conductas plenamente respetuosas con el
medio o desincentivar aquellas contraria a éste. De esta perspectiva, las medidas fiscales desarrollan una
función de intervención direccional.” (La tributación ambiental en España. Madrid: TECNOS, 1999, p.
87-88).
8
“A OCDE considera que a implementação da tributação ambiental deve ser feita de tal forma
que a carga fiscal global sobre determinada economia não se altere, ou seja, não obstante o limite
individual caracterizado pela capacidade contributiva, a tributação ambiental no contexto
macroeconômico deve ser aplicada de maneira a não gerar uma pressão fiscal adicional”. (MODÉ,
Fernando Magalhães. Tributação ambiental – a função do tributo na proteção do meio ambiente.
Curitiba: Juruá, 2003, p. 100).
9
FAZOLLI, Silvio Alexandre apud TRENNEPOHL, Terence Dornelles.
Incentivos fiscais no direito ambiental. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 94.
306
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
interessante, visto que a recuperação de um dano ambiental demanda um grande espaço
de tempo e dinheiro sem a certeza de retorno do meio ambiente às condições anteriores.
O professor Terence Trennepohl afirma que
pode-se concluir, ainda que parcialmente, que a via dos incentivos é cabível,
sem necessidade de maiores digressões, em todas as espécies tributárias.
Demais disso, é razoável a ponderação de que
àqueles que empreguem esforços
na utilização de tecnologias e
produtos, bens ou serviços ecologicamente
contraprestação do Estado.
corretos
haja
uma
10
A utilização do tributo como forma de proteger o meio ambiente, ainda que
incipiente no Brasil, é uma realidade que deve ser aprimorada e aplicada cada vez mais,
principalmente pela via da extrafiscalidade, com a cooperação entre Estado e sociedade
para uma tutela eficaz do meio ambiente.
2 Política Nacional de Habitação
Partindo do enfoque de uma atividade fiscal que fomente a proteção ambiental,
analisaremos aqui os instrumentos jurídicos da recente política nacional de habitação no
Brasil.
Como se sabe o mundo atravessa uma crise ambiental de grandes proporções,
causada pela interferência do homem no meio em que vive, tanto para dele retirar
recursos naturais que serão utilizados para a produção dos mais variados produtos e para
sua alimentação, bem como, para construir suas moradias e outros equipamentos para o
seu lazer, trabalho, educação, saúde etc.
A Constituição Federal de 1988 tutela o meio ambiente no artigo 225. Vejamos:
Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado,
bem de
uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida,
impondo-se ao Poder
Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo para as presentes e
futuras gerações.
A proteção expressa na Constituição Federal abrange não só o meio ambiente
natural, mas também ao meio ambiente artificial, cultural e do trabalho. As políticas
10
TRENNEPOHL, Terence Dornelles. Incentivos fiscais no direito ambiental.
São Paulo: Saraiva, 2008, p. 95.
307
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
habitacionais se relacionam principalmente com os dois primeiros, apesar de esta
divisão ser apenas didática, que podem ser definidos como abaixo:
O meio ambiente natural ou físico é constituído pela atmosfera, pelos elementos
da biosfera, pelas águas (inclusive pelo mar territorial), pelo solo, pelo subsolo
(inclusive recursos minerais), pela fauna e flora. Concentra o fenômeno da homeostase,
consistente no equilíbrio dinâmico entre os seres vivos e meio em que vivem.
O meio ambiente artificial é compreendido pelo espaço urbano construído,
consistente no conjunto de edificações (chamado de espaço urbano fechado), e pelos
equipamentos públicos (espaço urbano aberto). 11
O meio ambiente artificial ganha proteção também no art. 182, da Constituição
Federal, que trata da política urbana:
Art. 182. A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder
Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por
objetivo ordenar o
pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade
e garantir o bem-estar de seus habitantes.
Assim dispõe a Declaração Universal dos Direitos Humanos, proclamada pela
Resolução n° 217 A (III), da Assembléia Geral das Nações Unidas, em 10 de dezembro
de 1948:
Artigo XXV
1. Toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a
sua
família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário,
habitação, cuidados
médicos e os serviços sociais indispensáveis, e
direito à segurança em caso de
desemprego, doença, invalidez, viuvez,
velhice ou outros casos de perda de meios de
controle.
subsistência fora de seu
12
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 acata a determinação
da Declaração supra transcrita, estabelecendo no art. 6º o direito à moradia como um
dos direitos sociais. A inclusão desta previsão se deu através da Emenda Constitucional
nº 26, de 14 de fevereiro de 2000, após anos de luta dos movimentos que atuam nessa
11
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro.
8. ed. Revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 22-23.
12
Declaração Universal dos Direitos Humanos. Adotada e proclamada pela
Resolução 217 A (III) da Assembléia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro de 1948. Disponível
em: <http://www.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>. Acesso em: 25 jun. 2009.
308
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
área. Além da previsão do direito à moradia como direito social, a Constituição Federal
tratou no art. 182 e art. 183 da Política Urbana, tendo esta sido regulada pela Lei n°
10.257/2001, mais conhecida como Estatuto da Cidade.
Os direitos sociais,13 entre os quais está incluído o direito à moradia, são
incluídos, doutrinariamente, na categoria de direitos fundamentais de segunda geração,
conforme leciona Paulo Bonavides:
os direitos sociais de juridicidade questionada (...), foram eles remetidos à
chamada esfera programática, em virtude de não conterem para sua
concretização aquelas garantias habitualmente ministradas pelos instrumentos
processuais de proteção aos direitos da liberdade. 14
Ao analisar a crise de observância e execução dos direitos sociais, o referido
autor entende que tal crise será superada de tal forma que
os direitos fundamentais da segunda geração tendem a tornar-se tão
justificáveis quanto os da primeira; pelo menos está é a regra que já não
pode ser descumprida ou ter sua eficácia recusada com aquela facilidade de
argumentação arrimada no caráter programática da norma. 15
Apesar das ressalvas existentes em relação à eficácia dos direitos sociais, figurase mais do que importante a sua evolução para que os mesmos possam cada vez mais se
concretizar. Não se pode mais pensar em direitos sociais como normas programáticas,
onde o Estado escolheria o melhor momento para observá-las. É necessário vincular o
Estado ao cumprimento dessas normas, criando políticas públicas e destinando recursos
do orçamento para executá-las.
O problema habitacional no Brasil se agravou no século XIX com o crescimento
das cidades brasileiras se estendendo até a atualidade em níveis cada vez mais
alarmantes. Apesar das políticas habitacionais elaboradas e executadas durante o século
13
Ingo Wolfgang Sarlet, em relação aos direitos sociais, leciona que os mesmos são chamados de
direitos sociais em razão de estarem destinados a propiciar aos indivíduos a participação no bem-estar
social, mas também são direitos individuais, como os de primeira geração. In: GOSDAL, Theresa
Cristina. Dignidade do trabalhador: um conceito construído sob o paradigma do trabalho decente e
da honra. Curitiba: UFPR, 2006, p.59.
14
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. atual. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 564.
15
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 16. ed. atual. São
Paulo: Malheiros, 2005, p. 565.
309
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
XX, estas não foram capazes de solucionar essa problemática devido a falta de
planejamento, de execução adequada, de recursos etc.
Apesar de atingir primordialmente os mais pobres, que moram na maioria das
vezes em condições não dignas, interferindo essa condição numa série de outros
direitos, como o direito à saúde, ao lazer, à segurança, ao meio ambiente equilibrado, à
intimidade, a questão habitacional atinge também àquelas pessoas pertencentes a classes
economicamente e socialmente mais favorecidas, encontrando estas dificuldades de
adquirirem sua casa própria.
Em concorrência com o problema do déficit habitacional há a crise ambiental
que cada vez mais traz preocupações e interferências na vida das pessoas. Então, faz-se
primordial que toda política pública destinada à questão habitacional esteja em
conformidade com as preocupações em se garantir um ambiente ecologicamente
equilibrado.
As primeiras preocupações com a problemática da habitação no Brasil
ocorreram na denominada Era Vargas. Apesar de no final do século XIX ter havido uma
preocupação com a questão das moradias tal preocupação se deu por motivos
sanitários,16 como por exemplo o que ocorreu no Rio de Janeiro com os cortiços,17 onde
após a destruição dos mesmos a população dessas habitações não tiveram o suporte do
Estado, dirigindo-se para os morros da então capital do país, criando as primeiras
favelas. Na Era Vargas,
a questão da provisão habitacional é colocada pela primeira vez
(...), quando Estado
e setores técnicos passam a discutir a superação das condições
16
Com a crescente propagação de doenças ocorridas no final do século XIX no Rio de Janeiro, as
autoridades desenvolveram um projeto de saneamento e modernização da cidade. Houve uma imensa
insatisfação por parte da população atingida pela maneira como foi executado tal projeto, havendo uma
série de conflitos, que ficou conhecido com “A Revolta da Vacina”.
17
O fenômeno dos cortiços e da falta de habitação adequada na cidade do Rio de Janeiro no final
do século XIX foi retratado por Aluísio de Azevedo na obra “O Cortiço”, onde o autor em determinado
trecho diz: “Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças, socando-se de gente.
E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela exuberância brutal de vida, aterrado defronte
daquela floresta implacável que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores e
mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando rebentar o chão em torno dela,
rachando o solo e abalando tudo.”. Versão digitalizada retirada de AZEVEDO, Aluísio. O cortiço. 30. ed.
São
Paulo:
Ática,
1997.
Disponível
em:
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000015.pdf >. Acesso em: 29 jul. 2009.
310
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
precárias de moradia
Parte II
de aluguel, tendo como pressuposto a conquista da casa
própria.18
A primeira Política Nacional de Habitação foi instaurada em 1946 com a criação
da Fundação da Casa Popular, porém tal política
revelou-se ineficaz devido à falta de recursos e às regras de
financiamento
estabelecidas, o que comprometeu o seu desempenho no
atendimento da demanda,
uma produção pouco
que ficou restrito a alguns Estados da federação e com
significativa de unidades. 19
Após essa primeira tentativa de atacar o problema, várias outras políticas foram
instituídas tanto em governos civis como militares, sendo que a última delas está sendo
implantada desde 2003, com a criação do Ministério das Cidades, órgão responsável
pela Política de Desenvolvimento Urbano. Tal política está dentro do conceito de
desenvolvimento urbano integrado
no qual a habitação não se restringe a casa, incorpora o direito à
infra-estrutura,
saneamento ambiental, mobilidade e transporte coletivo,
equipamentos e serviços
urbanos e sociais, buscando garantir direito à cidade. 20
Com a instituição de uma nova concepção de política habitacional, faz-se
necessária a distinção entre necessidades habitacionais e déficit habitacional, onde
déficit habitacional deve ser entendido como "a necessidade de
construção de
novas moradias para a resolução de problemas sociais
detectados em um certo
as deficiências
momento e específicos de habitação". Ou seja, representa
propriamente habitacionais do estoque de moradias, de modo
que sua quantificação global resulta da agregação dos domicílios rústicos e
18
CYMBALISTA, Renato e MOREIRA, Tomás. Política habitacional: a
história e os atores de uma narrativa incompleta. In: ALBUQUERQUE, Maria do Carmo (Org.).
Participação popular em políticas públicas: espaço de construção da democracia brasileira. São
Paulo: Instituto Pólis, 2006, p. 33.
19
Política Nacional de Habitação. In: Caderno MCidades 4 Habitação.
Ministério das Cidades. Brasília: 2004, p. 9. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretariasnacionais/secretaria-de-habitacao/politica-nacional-de-habitacao/4PoliticaNacionalHabitacao.pdf>.
Acesso em: 25 de jun. 2009.
20
Política Nacional de Habitação. In: Caderno MCidades 4 Habitação.
Ministério das Cidades. Brasília: 2004, p. 12. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretariasnacionais/secretaria-de-habitacao/politica-nacional-de-habitacao/4PoliticaNacionalHabitacao.pdf>.
Acesso em: 25 de jun. 2009.
311
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
improvisados (habitações
Parte II
precárias) com a coabitação familiar. As necessidades
habitacionais englobariam, além do déficit habitacional as habitações inadequadas,
definidas como as moradias urbanas que apresentam deficiências graves de infraestrutura básica, adensamento
excessivo e um comprometimento elevado da
renda dos seus moradores com o
aluguel. Sendo assim, o déficit habitacional
apresenta-se apenas como uma parte
integrante das necessidades habitacionais,
que além da unidade habitacional stricto
sensu levam em consideração também as
condições de moradia vinculadas à qualidade de vida mais ampla, como os serviços de
infra-estrutura básica, ou seja, o
habitat. 21
Do exposto, infere-se que as novas concepções sobre política habitacional não
buscam resolver somente o problema daqueles que não tem casa, mas também daqueles
que vivem em condições precárias, devendo qualquer política se atentar para essas
diretrizes e, ainda, sempre ter em foco à adequação ambiental das moradias previstas
nesses novos projetos.
3 Programa “Minha Casa, Minha Vida”
O déficit habitacional no Brasil estimado em 2006 é de 7,935 milhões de
moradias, sendo a maior parte em áreas urbanas.22 Como se viu acima, a noção de
déficit habitacional está ligada à idéia da necessidade imediata e intuitiva da construção
de novas moradias. Nessa perspectiva foi criado o programa “Minha Casa, Minha Vida”
que prevê a construção de 1 (um) milhão de moradias, com investimentos no montante
de 34 (trinta e quatro) bilhões de reais, para as famílias que ganham até 10 (dez) salários
mínimos,23 sendo que para aquelas cuja faixa de renda é de 0 a 3 salários haverá um
21
Déficit Habitacional Brasileiro - Conceituação e Dimensionamento.
Câmara Brasileira da Indústria de Construção - Comissão de Economia e Estatística. Belo Horizonte:
1996, p. 2. Disponível em: <http://www.cbicdados.com.br/files/textos/047.pdf>. Acesso em: 25 de jun.
2009.
22
Déficit habitacional no Brasil 2006. Ministério das Cidades. Secretaria Nacional de Habitação.
Brasília, 2008, p. 20. Disponível em: <http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/secretaria-dehabitacao/biblioteca/publicacoes-e-artigos/Deficit%20-%202006%2006-05-2008.pdf>. Acesso em: 25 de
jun. 2009.
23
Mais informações sobre o programa “Minha Casa, Minha Vida” podem ser encontradas em:
<www.minhacasaminhavida.gov.br>.
312
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
subsídio integral e para aquelas cuja faixa de renda é de 3 a 6 salários mínimos o
subsídio será parcial.
No contexto de crise econômica mundial cujos efeitos são sentidos no Brasil, o
programa “Minha Casa, Minha Vida”, tem de um lado a finalidade de aquecer a
economia, garantindo empregos e que o país não venha a entrar em recessão, e de outro
lado a finalidade de enfrentar a questão da falta de moradias. E é nesse sentido, qual
seja, o de ser um indutor da economia, que o programa se restringe apenas à construção
de novas casas, com o objetivo de estimular a construção civil, um dos ramos mais
importantes da economia, não prevendo, assim, a melhoria daquelas moradias que se
encontram em situações inadequadas, o que provoca críticas daqueles que militam na
área.
O programa está incluído dentro das ações do PAC - Programa de Aceleração do
Crescimento - que conta com investimentos públicos e privados, atuando em várias
áreas da economia e que tem como finalidade a realização de obras em infra-estrutura
para que o país possa continuar a crescer.
Podem participar do programa pessoas com renda de até 10 salários mínimos,
dividindo-se estas em três categorias24: de 0 a 3 salários,25 de 3 a 6 salários e, por
último, de 6 a 10 salários. Os recursos serão garantidos pela União e pelo FGTS (Fundo
de Garantia por Tempo de Serviço), sendo que a União irá investir também em infraestrutura. Estima-se com o programa reduzir-se o déficit habitacional em 14% (catorze
por cento),26 prevendo a construção de quatrocentas mil casas para as famílias com
renda de até três salários, duzentas mil casas para famílias com renda de três a quatro
salários, cem mil casas para famílias com renda de quatro a cinco salários e outras cem
mil para famílias com renda de cinco a seis salários e mais duzentas mil casas para
famílias com renda de seis a dez salários mínimos.
24
As famílias de 0 a 3 salários, terão o subsídio integral com isenção do seguro; as de 3 a 6, terão
um subsídio parcial com redução dos custos do seguro e acesso ao Fundo Garantidor e as de 6 a 10, serão
beneficiadas com a redução dos custos do seguro e acesso ao Fundo Garantidor.
25
O déficit habitacional na faixa de renda de 0 a 3 salários mínimos, corresponde a 90,9%
(noventa, nove por cento) daqueles que podem ser abrangidos pelo programa, por isso o mesmo prevê
maiores benefícios e facilidades para essa faixa.
26
O programa trabalha com o déficit habitacional em 7,2 milhões de moradias, por isso a redução
de 14% com a construção de 1 (um) milhão de casas.
313
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
O programa foi apresentado para a sociedade através da Medida Provisória nº
459, transformada no Projeto de Lei de Conversão 11/09 e convertida na Lei
11.977/2009, e prevê a participação dos Municípios e dos Estados-membros que
cuidarão do cadastro dos beneficiários, da doação de terrenos, da infra-estrutura para o
empreendimento, da desoneração fiscal, da agilização na aprovação dos projetos,
alvarás, autorizações e licenças.
As medidas fiscais a serem implantadas pelos Estados e Municípios dever ser
muito bem planejadas, de forma a possibilitar a adoção de medidas fiscais indutoras
para a construção de casas ambientalmente corretas já no âmbito da construção civil,
como por exemplo, na escolha correta do material a ser utilizado nas respectivas obras.
4 Aspectos ambientais do programa “Minha Casa, Minha Vida”
Com o lançamento do Programa “Minha casa, minha vida” pelo Governo
Federal, têm-se uma excelente oportunidade de programar na consecução deste projeto a
adoção de uma política fiscal voltada para a proteção do meio ambiente27.
Interpretando sistematicamente os artigos 225 e 182 em conjunto com todo texto
constitucional, depreende-se que para a cidade desenvolver suas funções sociais e
garantir o bem-estar de seus habitantes, bem como a sadia qualidade de vida, é
necessária a proteção do meio ambiente natural bem como a estruturação das cidades se
dêem de forma organizada, utilizando racionalmente os espaços e os recursos naturais.
Celso Antônio Pacheco Fiorillo afirma que
dado o conteúdo pertinente ao meio ambiente artificial, este em
muito relaciona-se à dinâmica das cidades. Desse modo, não há
como desvinculá-lo do conceito de direito à sadia qualidade de
27
Sobre a política ambiental no Brasil explica Sérgio Abranches: “A política ambiental deixou de
ser uma política centrada na conservação da natureza e no combate à poluição. Seu foco central moveu-se
para as implicações das políticas públicas e privadas para o aumento das emissões de gases de efeito
estufa e o desenvolvimento do capital científico e tecnológico necessário para assegurar meios de
mitigação dessas emissões, bem como, para a adaptação às conseqüências climáticas inevitáveis do
aquecimento global. Avaliar o grau de vulnerabilidade do país, desenvolver mecanismos de gestão dos
riscos envolvidos e desenhar as políticas que permitam ao país adaptar-se aos eventos extremos aos quais
estará sujeito passaram a ser as premissas inarredáveis da política ambiental. Os critérios derivados dessa
política tornaram-se elementos-filtro de todas as demais políticas governamentais.” (In Interesse
Nacional. Política ambiental – O Brasil na contramão. Ano 2, n. 5, abril-junho 2009, p. 52).
314
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
vida, assim como do direito à satisfação dos valores da
dignidade humana e da própria vida. 28
A preocupação, portanto, com a organização das cidades está dentro do conceito
de tutela do meio ambiente, pois o crescimento desordenado e desenfreado das mesmas
atinge de maneira muito maléfica o ambiente como pode ser visto nos grandes centros
urbanos, onde há uma grande poluição dos recursos hídricos e do ar, bem como o
desmatamento das vegetações nativas e a extinção de várias espécies animais.
A construção civil é uma das grandes responsáveis pelos impactos ambientais
causados no planeta. Segundo Miguel Aloysio Sattler
entre os grandes responsáveis por tais impactos se inclui o setor de atividades
humanas conhecido como indústria da construção civil. Dados recentes (CIB;
UNEP-IETC, 2002) apontam que o ambiente construído, através das
atividades exercidas pela indústria da construção, absorve em torno de 50%
de todos os recursos extraídos da crosta terrestre e consome entre 40% e 50%
da energia consumida em cada país. 29
Continua o citado autor:
Conclui-se, portanto, que, além de consumir quantidades fantásticas de
recursos escassos, de gerar produtos cujos impactos desconhecem, ou
preferem ignorar, o homem e a indústria por ele criada para lhe propiciar
condições de conforto e de saúde, assim como as tecnologias desenvolvidas e
concebidas para resguardar a qualidade de vida, estão longe de fazê-lo.
Os impactos associados às atividades de construção estão, pois,
já bem identificados pela comunidade científica internacional, que os associa a danos
significativos ao meio ambiente, que comprometem seriamente os sistemas de
de vida: energia e qualidade do solo, do ar e da água. Apesar de esse
já existir, ainda são raras as escolas de engenharia e arquitetura
no
suporte
conhecimento
país
a
tratar
28
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 8. ed. Rev., atual.
e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 275.
29
SATTLER, Miguel Aloysio. Habitações de baixo custo mais sustentáveis: a casa Alvorada e
o Centro Experimental de tecnologias habitacionais sustentáveis. Porto Alegre: ANTAC, 2007, p. 13.
Disponível em: <http://www.habitare.org.br/pdf/publicacoes/arquivos/colecao9/livro_completo.pdf>
Acesso em: 10 ago. 2009.
315
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
adequadamente do tema no que concerne à formação dos futuros profissionais dessas
áreas. 30
Dessa forma, é preciso conformar a política habitacional com a proteção
ambiental, satisfazendo as necessidades humanas sem se esquecer do meio em que se
vive, buscando-se, assim, o chamado desenvolvimento sustentável. 31
E é dentro desse conceito de desenvolvimento sustentável que deve atuar a
política habitacional do programa “Minha Casa, Minha Vida”, pois se de um lado o
objetivo é aquecer a economia, incentivando a construção civil, e resolver parte do
problema da falta de moradia, por outro lado não se pode olvidar das questões
ambientais que tanto preocupam a humanidade.
O Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001), em seu artigo 2°, inciso I, assegura a
garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra
urbana, à
moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana,
ao transporte e aos
serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as
presentes e futuras gerações.
Assim, Celso Antônio Pacheco Fiorillo leciona que,
o direito à moradia, no plano das cidades sustentáveis, deve ser
compreendido portanto como o direito a um espaço de conforto e intimidade
destinado a brasileiros e estrangeiros residentes no País, adaptado a ser
verdadeiro reduto de sua família. Assegurado o PISO VITAL MÍNIMO, por
força do que estabeleceu a Emenda Constitucional n. 26, de 14-2-2000, o
direito a moradia tem previsão constitucionalmente estabelecida (art. 6°),
traduzindo de forma didática a determinação constitucional prevista no art.
225 de assegurar a todos o direito a um
meio
ambiente
ecologicamente
30
SATTLER, Miguel Aloysio. Habitações de baixo custo mais sustentáveis:
a casa Alvorada e o Centro Experimental de tecnologias habitacionais sustentáveis. Porto Alegre:
ANTAC,
2007,
p.
14.
Disponível
em:
<http://www.habitare.org.br/pdf/publicacoes/arquivos/colecao9/livro_completo.pdf> Acesso em: 10 ago.
2009.
31
A Declaração do Rio sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável estabelece em seu
Princípio 3 que o “direito ao desenvolvimento deve ser exercido de modo a permitir que sejam atendidas
equitativamente as necessidades de desenvolvimento e de meio ambiente das gerações presentes e
futuras”. Disponível em: <http://www.vitaecivilis.org.br/anexos/Declaracao_rio92.pdf> Acesso: 27 jun.
2009.
316
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
equilibrado, ou seja, um direito à vida da pessoa
Parte II
humana relacionada com
o local onde se vive. 32
O Estatuto da Cidade, ainda nas palavras do referido autor acima, é a mais
importante norma regulamentadora do meio ambiente artificial, devendo a execução da
política urbana estar consonante com as principais premissas e objetivos do direito
ambiental constitucional. Nas palavras do autor:
Depois de onze anos de tramitação, o Senado aprovou o Estatuto da Cidade
(Lei n. 10.257/2001), como instrumento que passou a disciplinar no Brasil,
mais que o uso puro e simples da propriedade urbana, as principais diretrizes
do meio ambiente artificial, fundado no equilíbrio ambiental (parágrafo único
do art. 1° do Estatuto) e em face de tratamento jurídico descrito nos arts. 182
e 183 da Constituição Federal. O objetivo do legislador (...) foi o de tratar o
meio ambiente artificial não só em decorrência do que estabelece
constitucionalmente o art. 225 da CF, na medida em que a individualização
dos aspectos do meio ambiente tem puramente função
didática,
mas
também em decorrência do que estabelecem os arts. 182 e 183 da
Constituição Federal no sentido de direcionar aos operadores de direito
facilidade no
manejo da matéria, inclusive com a utilização dos
instrumentos jurídicos trazidos
constitucional brasileiro.
fundamentalmente pelo direito ambiental
33
O Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA) através da Resolução n.
412, de 13 de maio de 2009, estabeleceu os critérios e diretrizes para o licenciamento
ambiental de novos empreendimentos destinados à construção de habitações de
Interesse Social, como as do programa “Minha Casa, Minha Vida”. A necessidade de
licenciamento ambiental é oriunda da Constituição Federal, que em seu artigo 225, §1º,
inciso IV, que exige estudo prévio de impacto ambiental para instalação de obra ou
atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente.
A Resolução n. 412 prevê o uso de licenciamento simplificado em única etapa à
empreendimentos habitacionais cuja área do parcelamento do solo seja de até 100 (cem)
hectares e cujo impacto ambiental seja pequeno (art. 1º), excetuados as que impliquem
em intervenção em Áreas de Preservação Permanente, excetuadas as previstas na
32
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro.
8. ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 291.
33
FIORILLO, Celso Antônio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro.
8. ed. Rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 286-287.
317
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Resolução CONAMA n. 369 ou seja localizada em áreas de risco, áreas alagadiças ou
sujeitas a inundações, aterros com material nocivo à saúde e áreas com suspeita de
contaminação e áreas que possuam declividade igual ou superior a 30%, salvo se
atendidas as exigências das autoridades competentes (art. 8° e incisos).
O licenciamento ambiental simplificado previsto na Resolução n° 412 exige a
apresentação do Relatório Ambiental Simplificado (RAS), que conterá estudos relativos
aos aspectos ambientais relacionados à localização, instalação e operação de novos
empreendimentos habitacionais, incluindo as atividades de infra-estrutura de
saneamento básico, viária e energia, apresentados como subsídio para a concessão da
licença requerida, que conterá, dentre outras, as informações relativas ao diagnóstico
ambiental da região de inserção do empreendimento, sua caracterização, a identificação
dos impactos ambientais e das medidas de controle, de mitigação e de compensação
(art. 4°, inciso II e art. 5°, inciso VI).
A Resolução n. 412 estabelece ainda que os empreendimentos habitacionais de
interesse social implantem sistemas de abastecimento de água potável e tratamento de
esgoto sanitário, captação, retenção, infiltração e lançamento das águas pluviais, a
coleta e disposição adequada de resíduos sólidos e a destinação de áreas verdes (art. 7° e
incisos).
Já a Lei n. 11.977/09 prevê, além da instituição do programa “Minha Casa,
Minha Vida”, a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas,
que é definido no art. 46 como o
conjunto de medidas jurídicas, urbanísticas, ambientais e sociais que visam à
regularização de assentamentos irregulares e à titulação de seus ocupantes, de
modo a garantir o direito social à moradia, o pleno desenvolvimento das
funções sociais da propriedade urbana e o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado.
A regularização fundiária, portanto, deve conter medidas que garantam a
proteção do meio ambiente frente aos possíveis danos que possam ser causados pelos
assentamentos irregulares, possibilitando a permanência daquelas pessoas na área
habitada, mas de forma que os impactos ambientais sejam reduzidos. Dessa forma, o art.
48, da Lei n.11.977/2009 dispõe ao estabelecer como princípio, além daqueles previstos
na Lei n. 10.257/2001, o seguinte:
Art. 48. (...)
318
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
I - ampliação do acesso à terra urbanizada pela população de baixa renda,
com prioridade para sua permanência na área ocupada, assegurados o nível
adequado de habitualidade e a melhoria das condições de sustentabilidade
urbanística, social e ambiental.
Da leitura da Resolução n. 412, bem como da Lei n. 11.977/2009, verifica-se
que um dos seus objetivos é retirar as populações de baixa renda das áreas de risco, das
favelas e das áreas sem infra-estrutura adequadas, que causam perigo não só a
integridade das pessoas que habitam esses lugares, mas ao próprio meio ambiente.
Conforme ressaltou o Ministro do Meio Ambiente no lançamento do programa “a
habitação popular, por si só, é ótima para o meio ambiente. A oferta de casas dignas em
áreas regularizadas é o melhor antídoto contra a favelização. Quem não tem casa
constrói na encosta dos morros e margens dos rios. Destroem e poluem e também são as
primeiras vítimas dos deslizamentos e inundações”.34
Porém, o que chama mais atenção na questão ambiental referente ao programa
“Minha Casa, Minha Vida” é a possibilidade de utilização de equipamentos de energia
solar cujo objetivo é reduzir a conta de energia para as famílias de baixa renda, a
emissão de gases do efeito estufa e evitar a construção de novos empreendimentos de
geração e distribuição de energia elétrica. A Lei n. 11.977/2009 prevê no art. 82 o
financiamento desses equipamentos. Vejamos:
Art. 82. Fica autorizado o financiamento para aquisição de equipamento de
energia
solar e contratação de mão de obra para sua instalação em
moradias cujas famílias aufiram no máximo renda de 6 (seis) salários
mínimos.
Segundo o Ministro do Meio Ambiente a utilização dos equipamentos de
aquecimento solar irá reduzir as emissões de gases poluentes em 830 toneladas e evitar
a necessidade de construção de uma usina hidrelétrica de 520 megawatts (MW).35
O engenheiro Carlos Faria, que auxiliou nos trabalhos do Ministério do Meio
Ambiente (MMA), prevê que a implantação de equipamentos de aquecimento solar em
34
LEÃO, Lúcia. Programa prevê habitações populares ambientalmente sustentáveis. Ministério
do Meio Ambiente, Assessoria de Comunicação. Brasília, 25 de março de 2009. Disponível em:
<http://www.mma.gov.br/ascom/ultimas/index.cfm?id=4654> Acesso em: 27 de jun. 2009.
35
MARQUES, Gerusa. Minc: plano de habitação prevê casas com energia solar. O Estado de São
Paulo.
São
Paulo,
25
de
março
de
2009.
Disponível
em:
<http://www.estadao.com.br/geral/not_ger344621,0.htm> Acesso em: 27 de jun. 2009.
319
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
500 mil habitações traria os seguintes benefícios: geração de 18 mil empregos, aumento
médio da renda familiar anual em R$ 300,00 a 500,00 reais, economia anual de 400
Gwh de energia elétrica, economia na geração, transmissão e distribuição de R$ 1,6
bilhões e redução do CO2, como já foi dito anteriormente, em 830 toneladas. 36
O reaproveitamento da água das chuvas como prevê a Resolução n° 412 também
é outro ponto importante no programa “Minha Casa, Minha Vida”, pois visa
economizar os recursos hídricos em atividades que possam utilizar as águas pluviais
como ao limpar pisos, lavar carros e banheiros, ao regar plantas entre outras atividades
em que o uso da água tratada não seja necessário. Além disso, outra forma de
economizar os recursos hídricos previsto no programa é a individualização dos
medidores de consumo de água em condomínios, o que certamente fará com que, por
questões econômicas, utilize-se de forma mais racional tal recurso.
Outra preocupação é em relação à madeira utilizada nas obras do programa
“Minha Casa, Minha Vida”. Os projetos dos empreendimentos habitacionais são
analisados pela Caixa Econômica Federal (CEF), responsável pelo financiamento do
programa, que desde 01 de janeiro de 2009 exige o uso de madeira nativa de origem
legal nos empreendimentos financiados pelo banco. Tal medida faz parte do “Acordo de
Cooperação Técnica para Ação Madeira Legal” firmado entre o Ministério do Meio
Ambiente, o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA) e a Caixa Econômica Federal (CEF) e que tem como objetivo coibir o uso de
madeira de origem ilegal nos empreendimentos financiados pela Caixa, definir medidas
para comprovar a origem legal da madeira utilizada, implantar ações e procedimentos
visando garantir a origem legal das madeiras utilizadas, criar um cadastro das
construtoras inadimplentes ou que descumprem as regras para comprovação da madeira
de origem legal, além de desenvolver ações educativas para o uso da madeira legal.37
Tal preocupação é importante, pois através da extração legal da madeira, utilizam-se
36
LOPES, Alessandra. O impacto do programa minha casa, minha vida no Brasil com o uso do
aquecimento solar térmico. M.C.O Comunicação Empresarial. 26 de março de 2009. Disponível em:
<http://www.maxpressnet.com.br/noticia-boxsa.asp?TIPO=PA&SQINF=367917>. Acesso em: 27 de
jun. 2009.
37
Caixa só financiará empreendimentos usuários de madeira legal. IBAMA, DBFLO. Brasília, 30
de dezembro de 2008. Disponível em: <http://www.ibama.gov.br/2008/12/caixa-so-financiaraempreendimentos-usuarios-de-madeira-legal/>. Acesso em: 27 de jun. 2009.
320
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
técnicas adequadas, que possibilitam o manejo correto e a recuperação da área
desmatada, o que não ocorre com a retirada ilegal da madeira. Outro ponto importante é
em relação ao efeito estufa, pois o desmatamento de madeira ilegal juntamente com as
queimadas na Amazônia, origem da maior parte da madeira utilizada nos
empreendimentos em geral, corresponde pela maior fatia das emissões de gases do
efeito estufa no Brasil. 38
O programa “Minha Casa, Minha Vida” dentro da perspectiva de adequação
ambiental dos projetos habitacionais estabelecidos no Plano Nacional de Habitação, na
Resolução n° 412, no Estatuto da Cidade (Lei n. 10.257/2001) e de forma mais geral na
Constituição Federal de 1988 em seus arts. 182, 183 e 225, busca criar medidas que
efetivem essa tutela e garanta aos beneficiados desse programa moradias dignas que
atentem para uma sadia qualidade de vida e pelo respeito ao meio ambiente em que se
vive.
Porém, o sucesso de tais medidas só poderá ser auferido com a implantação em
conjunto dos instrumentos previstos nesses dispositivos e se faz necessário o transcorrer
do tempo para que possa ser decretada a efetividade do programa, tanto no que diz
respeito à criação das moradias previstas, quanto à tutela do meio ambiente natural e
artificial.
Já na parte inicial de aprovação dos projetos para a construção das casas sugerese uma política fiscal que incentive as construtoras a utilizar materiais ambientalmente
corretos e projetos arquitetônicos que já sejam voltados para a economia de recursos
naturais, como água e energia elétrica. Sem esta prévia política fiscal direcionada para a
construção civil, o empresário não ficará motivado a mudar seus antigos paradigmas,
construindo casas ainda no modelo antigo, com baixo custo, pouca qualidade e
nenhuma preocupação ambiental.
Nesse sentido o ordenamento jurídico deve ser visto em sua função promocional,
logo que
a função de um ordenamento jurídico não é somente aquela de controlar o
comportamento dos indivíduos, o que pode ser obtido através da sanção
38
LÔBO, Irene. Queimadas na Amazônia são maior contribuição brasileira para aquecimento
global, diz cientista. Agência Brasil. Brasília, 04 de março de 2007. Disponível em:
<http://www.agenciabrasil.gov.br/noticias/2007/03/04/materia.2007-03-04.0981705236/view>. Acesso
em: 27 de jun. 2009.
321
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
negativa, mas também, aquela de dirigir os comportamentos em direção a
certos objetivos determinados. 39
Após a construção das casas outra medida fiscal importante será a promoção aos
moradores destes condomínios de uma educação ambiental proporcionada por
incentivos fiscais diretos, como por exemplo, postos de coletas de lixo reciclável,
diminuição da conta de energia para aqueles que participarem dos programas de
educação ambiental, tal qual já vem sendo desenvolvido pela COELCE – Companhia
Energética do Ceará40, redução de contas de água para os condomínios que tiverem
normas de utilização correta da água, enfim, inúmeras atividades que proporcionem
uma correta utilização dos recursos naturais, buscando minimizar a crise de energia e de
recursos renováveis que está já instaurada no Brasil e no mundo41.
5 Conclusão
O programa “Minha Casa, Minha Vida” talvez seja o primeiro passo para a
construção de uma nova política habitacional em âmbito nacional, onde a construção de
moradias populares seja feita de forma a garantir a qualidade de vida dos beneficiados e,
ao mesmo tempo, o respeito ao meio ambiente.
Nesse condão, novas políticas ambientais devem se somar ao programa para que
sejam desenvolvidos cada vez mais projetos que visem de um lado, garantir segurança,
39
BOBBIO, Norberto apud SEBASTIÃO, Simone Martins. Tributo ambiental:
extrafiscalidade e função promocional do direito. 1ª ed (ano 2006) 4ª reimp. Curitiba: Juruá, 2009, p. 37.
40
Os projetos de eficiência energética da COELCE podem ser encontrados em:
(i) Programa de Eficiência Energética: http://www.elsites.com.br/PEE/pagina.php .
(ii) Projetos: http://www.elsites.com.br/PEE/pagina.php?mod=projetos&pag=index .
(iii) Ecoelce - troca de resíduos por bônus na conta:
http://www.elsites.com.br/PEE/pagina.php?mod=projetos&pag=visualizar&codProj=2 .
(iv) Eficientização de consumidores baixa renda:
http://www.elsites.com.br/PEE/pagina.php?mod=projetos&pag=visualizar&codProj=10 .
(v) Sustentabilidade COELCE: http://www.coelcesites.com.br/sustentabilidade/desenvolvimento/ .
41
Cita-se, por oportuno, os exemplos a seguir: “Otra vertiente importante de las políticas de
eliminación de residuos es la constituida por las actuaciones de gestión en materia de envases y
embalajes. Así, siguiendo las experiencias de Suecia, Italia, Alemania y Estados Unidos las Comunidades
Autónomas podrían establecer tributos que gravasen aquellos modalidades de embalajes especialmente
perjudiciales para el medio ambiente. Ejemplos: Suecia - sigue aplicándose los impuestos específicos
sobre productos: envases de bebidas, baterías de níquel-mercurio-cadmio… y se extienden los sistemas de
depósito de reembolso (envases retornables, carrocerías de coches etc.).” MAILLÁ, María Ángeles
Guevos. El impuesto balear sobre instalaciones que coinciden en el medio ambiente. Madrid: Marcial
Pons, 2000, p. 82.
322
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
qualidade e economia na construção das habitações e, de outro, mitigar o impacto das
mesmas no meio ambiente. Medidas como a utilização de aquecedores solares nas
casas do programa aliam economia e respeito ao meio ambiente e necessita de um
tratamento diferenciado do Estado através de benefícios e incentivos. 42 Junto a ela
deveriam se somar outras medidas eficazes como a utilização de materiais recicláveis
que causem menos impactos, além de técnicas e processos na construção civil que
evitem o desperdício de energia e matérias-primas.
É necessária, porém, a diligência dos órgãos competentes na autorização,
financiamento e fiscalização do programa para que o mesmo possa alcançar os seus
objetivos.
A proteção ao meio ambiente é uma competência comum dos entes estatais (art.
23, inciso VI e art. 225, da CF) e um dever da coletividade (art. 225 da CF), obrigando
não só as políticas habitacionais, mas sim, todas as atividades, sejam públicas ou
privadas, a respeitarem as normas ambientais. É importante, portanto, que o Estado, em
todas suas esferas, juntamente com a sociedade civil ajam em consonância de objetivos
na defesa do meio ambiente.
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Disponível em: <http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000015.pdf >.
Acesso em: 29 jul. 2009.
42
Uma forma que o Estado tem de estimular condutas ambientalmente corretas é através da
tributação, sendo que no caso em questão, poderia os municípios, como forma de incentivar os
beneficiados do programa a utilizarem os aquecedores solares, estabelecer o chamado IPTU Ambiental,
que se conforma muito bem ao princípio ambiental da prevenção. Assim, poderia ser utilizado o IPTU
ambiental com a diminuição da alíquota ou da base de cálculo do IPTU para aquelas propriedades que se
adéqüem a proteção do meio ambiente através dos critérios a serem definidos na própria legislação que
regula IPTU. Mais informações sobre o IPTU Ambiental podem ser encontradas em: FARIA, Ana Maria
Jara Botton. O IPTU ambiental e a aplicação do princípio do fim social da propriedade urbana.
Curitiba: PUC-PR, fevereiro de 2005.
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326
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
A FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE COMO INSTRUMENTO DE
EFETIVAÇÃO DO ESTADO DE DIREITO AMBIENTAL
Germana Parente Neiva Belchior1
SUMÁRIO
Introdução. 1. O direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. 2.
Do estado democrático de direito ao estado de direito ambiental. 3. O equilíbrio
ambiental como elemento da função social da propriedade. 4. A função ambiental da
propriedade. Conclusão.
RESUMO
O homem, durante sua evolução histórico-econômica, valorizou o antropocentrismo
clássico, dispondo dos bens naturais de forma ilimitada. A degradação ambiental está
vinculada ao uso absoluto, desenfreado e abusivo do direito de propriedade, cuja
máxima se deu no Estado liberal. É nesse cenário que o direito ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado alcança patamar de direito fundamental, com a finalidade
de manter o equilíbrio entre as necessidades humanas e a preservação dos recursos
naturais, garantindo, dessa forma, a preservação da própria humanidade, por meio do
desenvolvimento sustentável. A metodologia é bibliográfica, descritiva e exploratória.
O objetivo deste artigo é investigar, de forma não exaustiva, a existência de uma função
ambiental da propriedade autônoma, em razão do § 1º, art. 1228, do Código Civil, como
instrumento de efetivação do Estado de Direito Ambiental. Pela leitura do referido
dispositivo, à luz de uma hermenêutica jurídica ambiental, constata-se que o ambiente
sadio não está dentro da função social da propriedade. O legislador foi mais longe, ao
1
Mestranda em Direito Constitucional pela Universidade Federal do Ceará – UFC. Pesquisadora do
Projeto Casadinho (CNPQ – UFC – UFSC). Professora de Hermenêutica Jurídica e Aplicação do Direito
e de Direito Ambiental e Ecologia, do curso de graduação em Direito da Faculdade Christus – Fortaleza,
onde, ainda, é professora orientadora do grupo de estudo “Meio Ambiente e Direitos Humanos: desafios e
perspectivas”. Professora colaboradora do Escritório de Direitos Humanos – EDH – da Faculdade
Christus. E-mail: [email protected].
327
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
impor uma função ambiental autônoma, nova, gerando outras obrigações ao proprietário
de qualquer bem, além daquelas já previstas com a função social, amadurecendo, pois, o
Estado de Direito Ambiental.
PALAVRAS-CHAVE: Meio ambiente. Estado de Direito Ambiental. Propriedade.
Função ambiental.
INTRODUÇÃO
Durante
sua
evolução
histórico-econômica,
o
homem
valorizou
o
antropocentrismo clássico, dispondo dos bens naturais de forma ilimitada. A degradação
ambiental está vinculada ao direito de propriedade. O uso absoluto, desenfreado e
abusivo do direito de propriedade, cuja máxima se deu no Estado liberal, é a principal
causa de desrespeito à natureza.
É nesse cenário que o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
alcança patamar de direito fundamental nas Constituições hodiernas com a finalidade de
manter o equilíbrio entre as necessidades humanas e a preservação dos recursos
naturais, garantindo, dessa forma, a preservação da própria humanidade, por meio do
desenvolvimento sustentável.
Com o novo paradigma do Estado de Direito Ambiental e o meio ambiente
equilibrado como direito fundamental, urge uma mudança em toda a ordem jurídica,
para atender ao princípio da solidariedade e ao valor da sustentabilidade, com o objetivo
de tentar minimizar os efeitos da crise ecológica que ora se enfrenta.
Diante disso, o presente artigo tem como objetivo investigar, de forma não
exaustiva, a existência de uma função ambiental da propriedade autônoma, em razão do
§ 1º, art. 1228, do Código Civil, como instrumento de efetivação do Estado de Direito
Ambiental. A metodologia utilizada é de natureza bibliográfica, descritiva e
exploratória.
328
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
1 O DIREITO FUNDAMENTAL AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE
EQUILIBRADO
Com a constitucionalização do direito ao meio ambiente, são criados novos
conceitos sócio-jurídicos com o intuito de regulamentar direitos e deveres ecológicos.
Por conta disso, o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado alcança patamar
de direito fundamental nas modernas Constituições por ser imprescindível à dignidade
da pessoa humana.
Dentre os direitos de terceira geração, Ferreira Filho 2destaca que o mais
elaborado é o direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, pois é um direito
assegurado à pessoa humana e é garantido pelo Poder Público como fundamental,
sobrepondo-se, inclusive, aos direitos de natureza privada. Acerca da sua titularidade,
ressalta Torres que o meio ambiente é oriundo de um direito natural que pertence a
todos, pois a natureza não possui direitos em nome próprio.
34
Ponto interessante que merece ser discutido é se existe um direito fundamental do
ambiente ou um direito fundamental ao meio ambiente. Em outras palavras, demanda
investigação, ainda que rápida, verificar as dimensões objetiva e subjetiva do meio
ambiente.
Ao analisar o tema, Canotilho arremata que a discussão não se refere mais às
positivações constitucionais do meio ambiente, momento este já praticamente superado,
uma vez que a sua constitucionalização, já foi realizada pela maioria dos Estados. O que
instiga questionamentos é como referido direito fundamental fora tutelado, uma vez que
“algumas constituições se preocuparam mais com o direito do ambiente do que com o
direito ao ambiente”. 5
2
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. São Paulo: Saraiva,
1988, p. 62.
3
TORRES, Ricardo Lobo. A Cidadania Multidimensional na Era dos Direitos. In: Teoria dos
Direitos Fundamentais. TORRES, Ricardo Lobo (org.). Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 295-296.
4
O direito ao meio ambiente é difuso, ou seja, sua titularidade é de todos e de ninguém em
exclusividade. De acordo com Fernanda Pereira, são interesses que não pertencem à pessoa alguma de
forma isolada, tampouco a um grupo de pessoas que não guardam qualquer laço de união entre si.
PEREIRA, Maria Fernanda Pires de Carvalho. Sobre o Direito à Vida e ao Meio Ambiente frente aos
Princípios da Dignidade da Pessoa Humana e da Razoabilidade. In: ROCHA, Cármen Lúcia Antunes
(coord). O direito à vida digna. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 272.
5
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Estudos sobre Direitos Fundamentais. Coimbra:
Coimbra, 2004, p. 179.
329
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Isto se deve pelo fato de o meio ambiente ter uma dupla acepção: objetiva e
subjetiva. A dimensão objetiva trata do ambiente como fim e tarefa do Estado e da
comunidade. Na medida em que o direito ao meio ambiente aparece na visão subjetiva,
possui natureza de direito subjetivo individual. Já quando se trata da perspectiva
objetiva, também chamada de “objetiva-valorativa” por Sarlet, significa que existem
elementos objetivos de uma comunidade que devem ser guiados pelo Estado. Assim,
releva-se como uma ordem objetiva de valores que irradia sobre o meio ambiente
ecologicamente equilibrado. 6
O que muda, afinal, em termos jurídico-dogmáticos? Ao considerar o meio
ambiente apenas em sua dimensão objetiva implica dizer que suas normas-tarefa ou
normas-fim
“não
garantem
posições
jurídico-subjectivas,
dirigindo-se
fundamentalmente ao Estado e outros poderes públicos. Não obstante isso, constituem
normas jurídicas objectivamente vinculativas”. 7
Quanto à acepção subjetiva do referido direito fundamental, é importante observar
que o corte jurídico-constitucional do meio ambiente como bem jurídico autônomo só
será possível caso a Constituição assim o preveja, sob pena de se dissolver na proteção
de outros bens constitucionalmente relevantes. Ou seja, caso exista apenas a dimensão
objetiva, explica Canotilho que
[...] a consagração constitucional do ambiente como tarefa dos poderes
públicos pode ser suficiente para impor responsabilidades ecológicas ao
Estado (e outros poderes públicos) mas não tem operacionalidade suficiente
para recortar um âmbito normativo garantidor de posições subjectivas
individuais no que respeita ao ambiente.
8
O direito ambiental brasileiro é um sistema aberto e em evolução, o que impede o
seu engessamento e a cristalização de seus princípios e de seus conceitos.
9
Nesse
sentido, o núcleo do direito fundamental ao meio ambiente é a sadia qualidade de vida,
determinando a sua dupla perspectiva, tese defendida também por Medeiros. Na lição da
autora, “existe uma dupla perspectiva quanto ao conteúdo dos direitos fundamentais, os
6
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2007, p. 147.
7
CANOTILHO, op. cit., p. 181.
8
Ibidem, p. 184-184.
9
TEIXEIRA, Orci Paulino Bretanha. O direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado
como direito fundamental. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 86.
330
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
quais podem ser considerados tanto direitos subjetivos individuais como elementos
objetivos fundamentais da comunidade”.10
No Brasil, referido direito fundamental encontra-se previsto no art. 22511, caput,
da Lei Maior. Ao analisar o art. 5º, CF/88, percebe-se que o direito ao meio ambiente
não foi por ele albergado, estando, assim, fora do seu catálogo. No entanto, a doutrina já
é uníssona ao defender que o rol dos direitos e garantias do art. 5º não é taxativo, na
medida em que o §2º, do art. 5º, traz uma abertura de todo o ordenamento jurídico
nacional ao sistema internacional de proteção aos direitos humanos e aos direitos
decorrentes do regime e dos princípios adotados pela Constituição. 12
De fato, a Carta Magna pátria reconhece expressamente o ambiente
ecologicamente equilibrado como meio para a preservação da vida humana, o que
implica dizer que referido direito fundamental tem status formal (pois está previsto no
Texto – art. 255, caput) e material (uma vez que seu conteúdo é imprescindível à
dignidade humana). Tem, por conseguinte, aplicabilidade imediata, com fundamento no
art. 5º, §1º, da Constituição de 1988, por possuir supremacia normativa conferida pela
ordem jurídica constitucional. Trata-se da coerência interna dos direitos fundamentais
baseada no princípio fundamental da dignidade da pessoa humana defendida por Sarlet,
sendo capazes de gerar efeitos jurídicos. 13
Ainda sobre a sua eficácia, Teixeira explica que são as próprias atitudes do
homem que geram a desarmonia ambiental, o que legitima o meio ambiente como
direito fundamental e justifica a sua aplicabilidade imediata, afastando definitivamente a
sua classificação de norma programática.
14
Fala-se, inclusive, em dimensão ecológica na dignidade humana, o que implica
numa matriz fundante dos demais direitos fundamentais. Acerca do tema, defende
Fensterseifer
10
MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de. Meio Ambiente: Direito e Dever Fundamental.
Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2004, p. 85.
11
“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum
do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de
defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
12
Segundo Rossit, “não é demais assinalar que o direito ao meio ambiente equilibrado constitui-se
em direito fundamental da pessoa humana, ainda que não figure expressamente no art. 5º da Carta Magna
de 1988, justamente porque visa à sadia qualidade de vida, ou, em outras palavras, visa a assegurar direito
fundamental que é a vida”. ROSSIT, Liliana Allodi. O Meio Ambiente de Trabalho no Direito
Ambiental Brasileiro. São Paulo: LTr, 2001, p. 55.
13
SARLET, op. cit., p. 78-79.
14
TEIXEIRA, op. cit., p. 88-89.
331
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
[...] o conceito jurídico de dignidade humana formulado por Sarlet como
moldura conceitual-normativa (aberta) e ponto de partida para pensar (e
reformular) referido conceito em face dos novos desafios existenciais
impostos pela degradação ambiental (mas também em vista da evolução
cultural e dos novos valores socioambientais legitimados no âmbito
comunitário), consagrando-se a sua dimensão ecológica. 15
Como direito fundamental, o meio ambiente possui ainda irrenunciabilidade,
inalienabilidade e imprescritibilidade, características
que, segundo Benjamin,
informarão os princípios estruturantes da nova ordem pública ambiental.16
2 DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO AO ESTADO DE DIREITO
AMBIENTAL
No sistema normativo pátrio, o direito ao meio ambiente integra o rol dos direitos
reconhecidos na Constituição e assume um caráter de direito formal e materialmente
fundamental, já que está previsto no texto constitucional.
Mas a proteção do meio ambiente não é apenas um dever do Estado, é dever de
todos, sem exceção, do Poder Público e da coletividade, conforme preceitua o art. 225,
da Carta Magna. O homem, na condição de cidadão, torna-se titular do direito ao
ambiente equilibrado e também sujeito ativo do dever fundamental de proteger o
ambiente, galgando, assim, passos para a estruturação de um Estado de Direito
Ambiental.
Partindo da premissa de que o direito ao meio ambiente equilibrado é a luz de
todos os direitos fundamentais e da existência de uma nova ordem pública ambiental, é
que se defende o fenômeno da Ecologização do Direito, fazendo com que “muitos
institutos jurídicos (preexistentes) sejam renovados e muitos institutos jurídicos (novos)
sejam criados dentro do ordenamento”. 17
15
FENSTERSEIFER, Tiago. Direitos fundamentais e proteção do meio ambiente: a dimensão
ecológica da dignidade humana no marco jurídico-constitucional do Estado Socioambiental de Direito.
Porto Alegre: Livraria do Advogado: 2008, p. 35.
16
BENJAMIM, Antônio Herman. Constitucionalização do ambiente e Ecologização da
Constituição Brasileira. In Direito Constitucional Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, José Joaquim
Gomes; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 98.
17
NUNES JUNIOR, Amandino Teixeira. O Estado Ambiental de Direito. Revista de Informação
Legislativa, Distrito Federal: Senado Federal, p. 295-307, a. 41, n. 163, jul./set. 2004, p. 299.
332
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
O fortalecimento do status material do direito fundamental ao meio ambiente
ecologicamente equilibrado nas legislações infraconstitucionais, os infortúnios
ambientais crescentes e a Ecologização do Direito demandam uma transformação
emergencial do papel do Estado. Manifesta-se Nunes Júnior na direção que
Isso implica o surgimento de um novo Estado e de uma nova cidadania, que
têm plena consciência da devastação ambiental, planetária e indiscriminada,
provocada pelo desenvolvimento, aspirando assim a novos valores como a
ética pela vida, o uso racional e solidário dos recursos naturais, o equilíbrio
ecológico e a preservação do patrimônio genético. 18
Notadamente, a cada dia aumenta o número de adeptos de um novo modelo de
Estado, que emerge a partir do redimensionamento do papel do Estado na sociedade, em
prol de um meio ambiente sadio. Destaca Canotilho que o Estado Constitucional
Ecológico foi defendido, inicialmente, pelo alemão Rudolf Steinberg, em sua obra “Der
Ökologische Verfassungsstaat”. 19 No Brasil, o Estado de Direito Ambiental vem sendo
fortemente sustentado por Machado, Leite, Benjamin, Morinaro, dentre outros.
Molinaro sustenta que é melhor caracterizá-lo como Estado Socioambiental e
Democrático de Direito, onde todos se obrigam, por conta do art. 225, em manter o
equilíbrio e a salubridade do ambiente. Como conseqüência, defende o autor:
[...] a garantia de um ´mínimo existencial ecológico´ e o mandamento da
´vedação da degradação ambiental´, núcleo e objeto do princípio de
proibição de retrogradação socioambiental, constituem, entre outras,
condições estruturantes de um Estado Socioambiental e Democrático de
Direito.20
A formulação do Estado de Direito Ambiental, segundo Canotilho, impõe que o
Estado, “além de ser um Estado de Direito, um Democrático e um Estado Social, deve
também modelar-se como um Estado Ambiental.” 21 Já Capella propõe que o Estado de
18
Ibidem, p. 297.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional Ambiental Português: tentativa de
compreensão de 30 anos das gerações ambientais no direito constitucional português. In: Direito
Constitucional Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens
Morato (org.). São Paulo: Saraiva, 2007, p. 6.
20
MOLINARO, Carlos Alberto. Direito Ambiental: proibição de retrocesso. Porto Alegre: Livraria
do Advogado, 2007, p. 103.
19
21
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito público do ambiente. Coimbra: Faculdade de
Direito de Coimbra, 1995.
333
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Direito deve ser construído para efetivar o princípio da solidariedade econômica e social
para alcançar um desenvolvimento sustentável. 22
Há quem defenda, como Leite, que o referido paradigma de Estado é fictício e
abstrato, sendo uma tarefa de difícil consecução. 23No entanto, a abstratividade que lhe é
pertinente não pode diminuir a importância da sua discussão. Afirma o autor que “a
definição dos pressupostos de um Estado de Direito do Ambiente serve como ´meta´ ou
´parâmetro´ a ser atingido, trazendo à tona uma série de discussões que otimizam
processos de realização de aproximação do Estado ficto.” 24
É fato. Não se pode ir contra o meio ambiente. Nem se pode voltar de encontro
com o sistema capitalista e globalizado. Até porque não há riqueza se não existir vida. E
não existe vida se não houver planeta. Ou seja, o meio ambiente sadio acaba sendo
condição para a efetivação do próprio Direito.
Na medida em que a sociedade reclama por anteparos, em virtude dos problemas
ambientais, o Direito e o Estado precisam se manifestar com o intuito de tentar resolver
ou, pelo menos, elaborar possíveis soluções. É exatamente isso que fundamenta a tese
do Estado de Direito Ambiental.
O Estado Ambiental continua sendo um Estado Democrático de Direito. A única
(e fundamental) diferença são os acréscimos do novo princípio da solidariedade e do
valor-base da sustentabilidade, implicando uma visão holística entre os elementos já
existentes. Assim, o princípio da solidariedade atuará de forma conjunta com o
princípio da legitimidade (“Estado Democrático”), em prol do valor justiça, e com o
princípio da juridicidade (“Estado de Direito”) ao manifestar o valor segurança jurídica.
3 O EQUILÍBRIO AMBIENTAL COMO ELEMENTO DA FUNÇÃO SOCIAL
DA PROPRIEDADE
A Constituição Federal de 1988, em seu o art. 182, § 2º, ao tratar da política de
desenvolvimento urbano, assevera que “a propriedade urbana cumpre sua função social
22
CAPELLA, Vicente Bellver. Ecologia: de las razones a los derechos. Granada: Ecorama, 1994,
p. 248.
23
LEITE, José Rubens Morato. Sociedade de risco e Estado. In: Direito Constitucional
Ambiental Brasileiro. CANOTILHO, José Joaquim Gomes; LEITE, José Rubens Morato (org.). São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 49.
24
LEITE, op. cit., p. 151.
334
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano
diretor”. Ainda no texto constitucional, seu art. 186, II, prevê a função ambiental da
propriedade, no que concerne à propriedade rural, como um dos elementos da função
social.25
No âmbito da propriedade urbana, a regulamentação da sua função social e do
plano diretor só veio com a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, intitulada de Estatuto
da Cidade. Acerca da referida norma, afirma Dallari que
[...] é importante destacar que o Estatuto da Cidade veio, de certa forma, dar
eficácia ao princípio constitucional, pois embora a função do plano diretor já
estivesse prevista pela Constituição, a carência de uma lei federal dispondo
expressamente sobre isso impedia que os Municípios dessem concreção ao
princípio da função social da propriedade.
26
A preocupação com o meio ambiente aparece como uma das diretrizes da política
urbana, dentro da função social da cidade, conforme estipulado no art. 2º, IV, da Lei n.
10.257. 27
A função social da propriedade rural, entretanto, veio à baila com a Lei n. 8.629,
de 21 de fevereiro de 1993, detalhando os preceitos constitucionais do art. 186. Dentre
os requisitos trazidos pela lei, o art. 9º, II, impõe a utilização adequada dos recursos
naturais disponíveis e preservação do meio ambiente.28
O equilíbrio ambiental, portanto, é tratado como um dos elementos da função
social da propriedade rural e urbana, de acordo com a Constituição Federal de 1988 e
legislações específicas.
25
Art. 186. A função social é cumprida quando a propriedade rural atende, simultaneamente,
segundo critérios e graus de exigência estabelecidos em lei, aos seguintes requisitos:
I – aproveitamento racional e adequado;
II – utilização adequada dos recursos naturais disponíveis e preservação do meio ambiente;
III – observância das disposições que regulam as relações de trabalho;
IV – exploração que favoreça o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores. (Destacado).
26
DALLARI, Adilson Abreu. Solo criado: constitucionalidade da outorga onerosa de potencial
construtivo. In Direito Urbanístico e Ambiental. DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO, Daniela Campos
Libório (coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 27.
27
Ar. 2º. A política urbana tem por objetivo ordena o pleno desenvolvimento das funções sociais
da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais:
[...]
IV – o planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e
das atividades econômicas do Município e do território sob sua área de influência, de modo a evitar e
corrigir as distorções do crescimento urbano e seus efeitos negativos sobre o meio ambiente. (Destacado).
28
Art. 9º. [...] § 3º - Considera-se preservação do meio-ambiente a manutenção das características
próprias do meio natural e da qualidade dos recursos ambientais, na medida adequada à manutenção do
equilíbrio ecológico da propriedade e da saúde e qualidade de vida das comunidades vizinhas.
335
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
4 A FUNÇÃO AMBIENTAL DA PROPRIEDADE
Depois de mais de vinte anos em debate, o Projeto do novo Código Civil foi
aprovado no dia 15 de agosto de 2001. No que concerne ao direito de propriedade, a
nova lei traz, de forma inédita, a função ambiental vinculada ao exercício deste direito
em geral. O novo Código Civil é o primeiro instrumento normativo brasileiro que trata
da função ambiental da propriedade, conforme seu art. 1.228, § 1º.29
Note-se, pois, que além de inserir a função social da propriedade, já prescrita no
Código Civil de 1916, a atual lei civil prevê a função ambiental, na medida em que trata
dos seus elementos, como a proteção à flora, à fauna, à preservação das belezas naturais,
à manutenção do equilíbrio ecológico e a preservação patrimônio histórico e artístico,
assim como o uso da propriedade em consonância com as determinações da legislação
ambiental.
A função ambiental é definida por Sant´Anna como o “conjunto de atividades que
visam garantir a todos o direito constitucional de desfrutar um meio ambiente
equilibrado e sustentável, na busca da sadia e satisfatória qualidade de vida, para a
presente e futuras gerações”.30
Acerca da importância do desenvolvimento sustentável como viés hermenêutico,
manifesta-se Krell:
O desenvolvimento sustentável representa, portanto, um autêntico princípio
da ordem constitucional brasileira, no sentido de que as normas da
legislação ordinária de todos os níveis federativos devam ser interpretadas
de acordo com a sua axiologia, especialmente as que tratam de assuntos
ligados à proteção ambiental e ao desenvolvimento urbano. 31
29
Art. 1228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la
do poder de quem quer que seja injustamente a possua ou a detenha.
§ 1º. O direito de propriedade deve ser exercitado em consonância com suas finalidades
econômicas e sociais e de modo que sejam preservados, de conformidade com o estabelecido em lei
especial, a flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio histórico e artístico,
bem como evitada a poluição do ar e das águas. (Destacado).
30
SANT´ANNA, Mariana Senna. Planejamento urbano e qualidade de vida: da Constituição
Federal ao plano diretor. In Direito Urbanístico e Ambiental. DALLARI, Adilson Abreu; DI SARNO,
Daniela Campos Libório (coord.). Belo Horizonte: Fórum, 2007, p. 153.
31
KRELL, Andreas J. Desenvolvimento sustentável às avessas nas praias de Maceió/AL: a
liberação de espigões pelo novo Código de Urbanismo e Edificações. Maceió: EdUFAL, 2008, p. 37-38.
336
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Pela leitura do referido dispositivo, à luz de uma hermenêutica jurídica ambiental,
constata-se que o ambiente sadio não está dentro da função social da propriedade. O
legislador foi mais longe, ao impor uma função ambiental autônoma, nova, gerando
outras obrigações ao proprietário de qualquer bem, além daquelas já previstas com a
função social.
Isto é de suma importância na medida em que o direito de propriedade vem se
transformando para acompanhar a globalização e o desenvolvimento tecnológico. O
novo dispositivo trata de uma norma geral do direito de propriedade, não se limitando à
urbana e à rural, como fazem as leis já citadas.
Assim, a propriedade intelectual, virtual, empresária, etc., todas as formas de
propriedade estão submetidas à função ambiental, em perfeita consonância com o
direito fundamental ao equilibro ecológico e com o Estado de Direito Ambiental.
Nessa linha, ao analisar o §1º, art. 1228, Código Civil, o intérprete deverá ter
como pré-compreensão a manifestação da sustentabilidade como forma de garantir um
desenvolvimento ecologicamente correto com equidade social, ou seja, um
desenvolvimento sustentável que terá por finalidade proporcionar a sustentabilidade
para as presentes e futuras gerações.
Outro ponto interessante é que o Código Civil traz uma cláusula aberta em prol do
meio ambiente, ao assegurar que a função ambiental deve ser assegurada também de
acordo com a legislação especial e não apenas com os componentes trazidos na redação
literal do diploma normativo.
O princípio da função sócio-ambiental da propriedade tem uma dupla dimensão.
Ao impor que o proprietário não pode prejudicar terceiros, assim como a qualidade
ambiental, visualiza-se o aspecto negativo. Com o viés positivo, a função social e
ambiental garante que a propriedade seja efetivamente exercida para beneficiar a
coletividade e o meio ambiente equilibrado.
Resta inconteste que a função social e ambiental da propriedade não constitui um
mero limite ao exercício do direito de propriedade, como aquela restrição tradicional,
por meio da qual se permite ao proprietário, no exercício do seu direito, fazer tudo o que
não prejudique a coletividade e o meio ambiente.
Não há dúvida de que o Estado de Direito Ambiental se torna fortalecido com a
nova disposição normativa infraconstitucional, o que comprova o reconhecimento do
status material do direito fundamental ao meio ambiente ecologicamente equilibrado.
337
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
Embora o Texto Constitucional permaneça o mesmo, remetendo apenas à função social
da propriedade, tendo o meio ambiente como um dos seus elementos, é necessária uma
leitura sistemática de toda a Constituição e da ordem jurídica em geral, tendo como précompreensão do intérprete o valor da sustentabilidade ambiental, como orienta uma
hermenêutica jurídica ambiental.
CONCLUSÃO
O processo acelerado de desenvolvimento visando o lucro a qualquer preço e a
concepção liberal de propriedade privada têm acarretado a desarmonia ambiental. É
necessária uma mudança de orientação que compatibilize a defesa dos recursos
ambientais com o desenvolvimento econômico.
O homem, na condição de cidadão, torna-se titular do direito ao ambiente
equilibrado e também sujeito ativo do dever fundamental de proteger o ambiente,
galgando, assim, passos para a estruturação de um Estado de Direito Ambiental.
A crise ambiental demanda de forma emergencial um novo papel do Estado e do
Direito. O Estado de Direito Ambiental é um paradigma estatal possível, não obstante a
dificuldade de efetivá-lo, com elementos integrantes sólidos e adequados, a fim de que
sejam implementados pelos Estados hodiernos na concretização do princípio da
solidariedade como fundamento teórico-constitucional e da sustentabilidade como
marco axiológico-constitucional.
Ao adotar referido paradigma, é necessário um novo viés hermenêutico da ordem
jurídica, tendo como valor a sustentabilidade, invadido a esfera pública e privada. Tratase da ecologização do Direito, impondo uma nova postura do Estado, imprescindível à
promoção da dignidade da pessoa humana.
Percebe-se que a função social da propriedade pretende não apenas impor
obrigações negativas ao proprietário, mas também um poder-dever de dar a sua
propriedade um destino em prol da coletividade.
No que tange à função ambiental da propriedade, o novo Código Civil, em seu art.
1228, §1º, aloca o equilíbrio ecológico de forma autônoma, fora da função social da
propriedade, comprovando o status material do direito fundamental ao meio ambiente
equilibrado. O legislador foi além, ao impor uma função ambiental nova, gerando outras
338
Estudos de Direito de Propriedade e Meio Ambiente
Parte II
obrigações ao proprietário de qualquer bem, além daquelas já previstas com a função
social.
O direito de propriedade vem se transformando para acompanhar a globalização, o
desenvolvimento tecnológico e a crise ecológica. O novo dispositivo trata de uma
norma geral do direito de propriedade, não se limitando à urbana e à rural.
A repercussão é tamanha no sentido que qualquer forma de propriedade, seja ela
intelectual, virtual, empresária, etc., todas estão submetidas à função ambiental, em
perfeita consonância com o direito fundamental ao equilibro ecológico e com o Estado
de Direito Ambiental.
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