revista completa - Observatório da Diversidade Cultural

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Revista Observatório da Diversidade Cultural
Volume 3 Nº1 (2016)
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Índice
Expediente.............................................................................................................................. 4
Editorial................................................................................................................................. 5
ARTE
A OBRA PARA PIANO SOLO DE CLAUDIO SANTORO: Ideologia, diversidade cultural e
idiossincrasia estilística.....................................................................................................8
ARTE-EDUCAÇÃO
IDENTIDADE CULTURAL, EDUCAÇÃO E MUSEUS: Desenvolvendo a educação patrimonial na escola...................................................................................................................21
COMUNICAÇÃO
MORTE AO FALSO METAL: Roko-Loko e a identidade headbanger na revista Rock Brigade ................................................................................................................................30
REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA E SEGREGAÇÃO CULTURAL: As várias facetas da violência
na Pequena África ..........................................................................................................44
REFLEXÕES SOBRE O CONSUMO DO CARD GAME: “MAGIC: THE GATHERING” a partir
dos depoimentos dos jogadores ....................................................................................59
CIDADE
A representação do espaço no funk Consciente .........................................75
REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CIDADE E CULTURA: O uso da cultura na nova
forma de gestão das cidades ..........................................................................................84
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Índice
CULTURAS TRADICIONAIS
EM MOVIMENTO: Recorte miúdo e singelo da tensão racial e da presença da mulher na
Capoeira Angola .............................................................................................................99
IRMANDADE DA BOA MORTE: A filosofia da ancestralidade como mecanismo de resistência à subalternidade feminina.............................................................................109
TRADIÇÃO E TRADUÇÃO: Afetações no/do Cariri.........................................................121
POLÍTICAS CULTURAIS
SOBRE A DESIMPORTÂNCIA DA CULTURA E A CULTURA BRASILEIRA ..........................136
POLÍTICAS CULTURAIS EM MUSEUS: Resgate e perspectivas do cenário brasileiro .....146
POLÍTICAS SETORIAS DE CULTURA NO RJ: Institucionalização e os dilemas da participação social ......................................................................................................................160
CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA CULTURAL DE BELO HORIZONTE: Avanços e desafios da participação social na formulação da política de cultura..................................174
A REPRESENTAÇÃO DA CULTURA NAS ESCOLAS PÚBLICAS DE SANTA MARIA: Um estudo
sobre o Programa “Mais Cultura” ................................................................................184
ECONOMIA DA CULTURA
FESTIVAL DIAMANTINA GOURMET:
Desenvolvimento turístico e valorização cultural ........................................................199
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EXPEDIENTE
ISSN: 2358-9175
Editor:
José Márcio Barros - UEMG e PUC Minas
http://lattes.cnpq.br/1604785658347017
Editora Associada:
Raquel Salomão Utsch - Observatório da Diversidade Cultural
http://lattes.cnpq.br/2207126908579051
Grupo de Pesquisa Observatório da Diversidade Cultural - CNPQ
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PPg Artes/UEMG
PPg Comunicação/Puc Minas
Diagramação: Dânia Lima
Imagem capa: : www.freepik.com - Designed by Freepik
Jornalista revisor: Leandro Luiz Ferreira de Andrade
​Patrocínio: Fundo Municipal de Cultura - Belo Horizonte
Apoio: UEMG - Pró-reitoria de Extensão
Pareceristas - Volume 3 Nº 1 (2016)
​Eduardo de Jesus (PUC Minas), Flavia Prando (CPF/SESC SP), Giselle Lucena (UFAC/ODC), Giuliana
Kauark (UFBa/ODC), Hirton Fernandes (ULHT/Lisboa), Jaqueline Silva (ODC), José Márcio Barros
(UEMG/PUC Minas/ODC), Juan Brizuela (UFBa/ODC), Katia Costa (UFBa/ODC), Lívia Espírito Santo
(FCS/UFOP), Maria Ângela Mattos (Puc Minas), Rachel Vianna (UEMG), Raquel Utsch (Fumec/ODC),
Renata Melo (UFBa/ODC), Simone Fernandes (IPHAN MG) e Tadeus Mucelli (UEMG)
Conselho Editorial – Revista ODC
Giselle Dupin – MINC
Giselle Lucena – UFAC
Humberto Cunha – UNIFOR
Isaura Botelho - SESC SP
Luis A. Albornoz - Universidad Carlos III de Madrid
Núbia Braga – UEMG
Paulo Miguez – UFBA
Observatório da Diversidade Cultural
Rua da Bahia, 1448 - Sala 1708 - Centro
Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil / CEP 30160-906
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EDITORIAL
CULTURA, PARTICIPAÇÃO E DESENVOLVIMENTO
Voltada à promoção da pesquisa e à socialização da informação e do conhecimento, a Revista
Observatório da Diversidade Cultural adota linha editorial comprometida com a abordagem
transversal dos temas da área da cultura, enfatizando a reflexão multidisciplinar e o debate
público, por meio da difusão de pesquisas, textos acadêmicos e não acadêmicos, estudos de
casos, práticas de experimentação e inovação e fontes informativas.
A publicação reúne pesquisadores e agentes culturais, em sintonia com a missão do
Observatório, em uma rede colaborativa que visa, em última instância, contribuir para efetivar
processos de participação e controle social, diretriz indispensável para que as políticas da
cultura alcancem a devida condição de legitimidade no espaço público de debate e deliberação.
A intenção é colaborar para a discussão sobre temas de interesse público, tendo em vista
a proteção e a promoção da diversidade cultural, permitindo, assim, que a sociedade civil
tensione as instâncias do mercado e Estado, em defesa dos direitos culturais.
Nesse sentido, as reflexões propostas associam-se à dimensão da cultura como eixo estruturante
da vida social e, portanto, na condição de bem e recurso criativo e inovador que constitui a
expressão simbólica de formas identitárias, assim como à potência dos modos de vida no que
se refere ao desenvolvimento econômico fundamentalmente comprometido com a superação
das desigualdades sociais.
A terceira edição da revista aborda, no campo da arte, a obra piano solo do artista Cláudio
Santoro. No universo da arte educação, a atenção volta-se à relação entre identidade cultural,
educação e museus, tendo em vista a inadiável discussão sobre a educação patrimonial na
escola. As relações entre comunicação e cultura modelam, por sua vez, as representações
sociais contemporâneas e, nesse sentido, destacam-se a identidade headbanger na revista
Rock Brigade; a representação midiática e a segregação cultural por meio da violência, no
curta “Pequena África” sobre a região da cidade do Rio de Janeiro; o consumo do card game a
partir dos depoimentos dos jogadores de “Magic: The Gathering”.
A representação do espaço no Funk Consciente e o papel da cultura na gestão das cidades
tematizam a estreita ligação entre as formas urbanas de vida e a vitalidade das expressões
culturais. A atualidade das manifestações tradicionais se faz presente na abordagem
sobre tensão racial e presença da mulher na Capoeira Angola; ao se tratar da filosofia da
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ancestralidade, como mecanismo de resistência à subalternidade feminina na Irmandade da
Boa Morte; por meio de reflexão sobre as noções de tradição e tradução, no contexto das
afetações no/do Cariri.
Na esfera das politicas culturais, trata-se de enfrentar desafios urgentes. Em debate, a
importância do Ministério da Cultura; as políticas culturais em museus nacionais; as políticas
setoriais de cultura no Rio de Janeiro sob o viés da institucionalização e dilemas da participação;
a participação social na formulação da política de cultura a partir dos avanços e desafios
do Conselho Municipal de Política Cultural de Belo Horizonte. O programa Mais Cultura é
observado por meio da experiência das escolas do município de Santa Maria e, no âmbito da
economia da cultura, análise sobre o Festival Diamantina Gourmet convida ao enfoque que
alia desenvolvimento turístico à valorização cultural.
Por fim, este número da revista só se tornou realidade com o apoio da Pro-reitoria de Extensão
da UEMG, na pessoa da Profa. Giselle Hissa Safar, a quem dirigimos, em especial, nossos
sinceros agradecimentos.
Desejamos a todos proveitosa leitura!
José Márcio Barros e Raquel Utsch
Editores
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Arte
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A OBRA PARA PIANO SOLO DE CLAUDIO SANTORO:
Ideologia, diversidade cultural e idiossincrasia estilística.
Victor Marquine da Fonseca 1
RESUMO
Este artigo discorre sobre a relação entre ideologia, idiossincrasia estilística e as diversas fases
composicionais encontradas na obra para piano solo de Claudio Santoro. O diálogo intercultural
entre compositor e mundo resulta em uma singularidade de estilo composicional, um estilo
idiossincrático, expresso pelas diversas fases composicionais. Este será exemplificado em obras
escolhidas e analisadas pela relação de uma estética universal, onde será compreendida pela
teoria dos topoi e busca identificar estruturas musicais que revelam essa relação dialética.
Palavra chave: Claudio Santoro. Diversidade de estilos. Obras para piano solo.
ABSTRACT
This article discusses the relationship between cultural ideology, stylistic idiosyncrasy, and
the diversity of compositional periods present in the work for piano solo by Claudio Santoro.
Intercultural dialogue between the composer and the world resulting in a compositional style
of uniqueness, one idiosyncratic style, are expressed by the various aesthetic compositional
stages, exemplified in the works selected and analyzed the ratio of universal aesthetic that will
be understood by topos theory and tries to identify the musical structures that exemplify this
dialectical relationship.
Keywords: Claudio Santoro. Style diversity. Works for solo piano.
1 Mestrando do Programa de Pós-graduação “Música em Contexto”, do Departamento de Música da Universidade de Brasília.
E-mail: [email protected]
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1. IDEOLOGIA, IDIOSSINCRASIA ESTILÍSTICA E AS FASES COMPOSICIONAIS
A relação entre o homem e o mundo se estabelece numa inter-relação complexa de micro
e macro dimensões, onde a propriedade fenomenológica, quando consubstanciada por
uma ideologia, não depreende fronteiras culturais nem estéticas limítrofes para a produção
de sentido numa intencionalidade comunicativa. Na verdade, transpassa-as com acuidade
emocional e dialética, visto que a essência do discurso e sua intencionalidade significativa
tornam-se objetivo principal e a estética se transforma no meio pelo qual a substância
ideológica é transmitida e comunicada. Por ideologia defino aqui:
[…] Em geral, portanto, pode-se denominar I. toda crença usada para o controle dos
comportamentos coletivos, entendendo-se o termo crença (v.), em seu significado
mais amplo, como noção de compromisso de conduta, que pode ter ou não validade
objetiva. Entendido nesse sentido, o conceito de I. é puramente formal, uma vez
que pode ser vista como I. tanto uma crença fundada em elementos objetivos
quanto uma crença totalmente infundada, tanto uma crença realizável quanto uma
crença irrealizável. O que transforma uma crença em I. não é sua validade ou falta
de validade, mas unicamente sua capacidade de controlar os comportamentos em
determinada situação. (ABBAGNANO, 2007) Na Pós-modernidade, o estudo das relações complexas e da ideologia na música adveio de
uma mudança de paradigma epistemológico na compreensão da própria música e da própria
musicologia, de forma mais abrangente, ao não se limitar ao objeto musical propriamente,
mas tentar evidenciar criticamente os detalhes e as teias de significado além da música. Uma
tentativa de comprender as vozes de interlocutores, outrora ocultos. O primeiro a fazer o
questionamento de uma mudança de paradigma foi Joseph Kerman no livro Contemplating
Music: Challenges to Musicology. Neste livro seminal, Kerman aborda questionamentos
sobre a pesquisa musicológica bem como a questão crítica além da obra musical:
[...] olhar para a arte que tentam levar em conta os significados que esta carrega, o
prazer que ela provoca, e os valores que assume para nós, hoje. Uma musicologia
crítica lida com peças musicais e com as pessoas que as escutam, com fatos e
sensações, com a vida do passado no presente [...] (KERMAN, 1985)
Ao se partir da premissa de que a música possui uma qualidade de semiose, permeada de
sentido e significado, ela pode ser compreendia como um discurso. Desta forma, a ideologia
está no cerne discurso musical do compositor brasileiro Claudio Franco de Sá Santoro (19191989), compositor de uma poiesis musical criativa e que teve em sua vida composicional
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6 (seis) períodos estéticos composicionais (MENDES, 2009) que exemplificam a relação de
influências estéticas e influências musicais de outros países e que demonstram a força e a
paixão em sua música: Serialismo dodecafônico (1939-1946); Período de Transição (19461948); Nacionalismo (1949-1960); Retorno ao Serialismo (1960-1966); Período Avant-Garde
(1966-1977); Período de Maturidade (1979-1989).
Denomino o discurso musical de Claudio Santoro aqui como idiossincrático devido à relação
complexa entre homem, ideologia e música, cuja inquietude e relação com diversos metiês
musicais e culturais resultaram numa multiplicidade de estilos expressos por distintos
paradigmas estéticos; uma idiossincrasia estilística. O principal intuito é compreender as
especificidades de cada momento estético do compositor em obras escolhidas e identificar
em seu discurso musical estruturas estéticas e musicais pertinentes a outros países e a outros
contextos estéticos.
A palavra topos significa, literalmente, lugar em grego. Os topoi (do latim, significa Tópico) ou
lugares retóricos, são expressos na Retórica e na Lógica Aristotélica como “lugares comuns”
para a produção de sentido e persuasão no discurso. Na música, a Teoria Tópica (MONELLE,
2000; 2006;) foi aplicada pela primeira vez por Leonard Ratner ao identificá-las como estilos,
tipos ou gestos na música europeia do século XVIII; pode ser compreendida como um meio
de análise hermenêutica complexa e intertextual entre as relações de lugares comuns
referenciais expressos num conjunto de léxico musical, sua propriedade de compreensão por
parte do ouvinte e a formação deste significado estabelecido por um nexus social ao longo do
tempo e pertencente a uma determinada época. Essa análise aborda fatores extramusicais
como o contexto sócio histórico e, inclusive, a produção de sentido mediante uma acuidade
persuasiva no atendimento de expectativas para convencer o ouvinte.
2. OS PERÍODOS COMPOSICIONAIS DE CLAUDIO SANTORO
2.1 Serialismo Dodecafônico
Na primeira fase, orientada pelo serialismo dodecafônico, Claudio Santoro dará início a sua
carreira como compositor, tendo a oportunidade de ver suas obras estreadas e de pertencer
a um metiê dotado de grandes artistas e compositores. Nessa fase destacam-se a utilização
de um serialismo particular e de atonalismo livre, oriundo de sua relação com H.J. Koellreuter
e a sua adesão ao Grupo Música Viva.
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O primeiro período estilístico de Santoro exibe, como característica mais destacada,
a recorrência das possibilidades estruturais inerentes ao método dodecafônico.
Ainda que lado a lado com a escrita serial estejam igualmente incluídos, tanto o
idioma cromático utilizado nas primeiras obras, ao qual o compositor se refere com
as expressões ― modernismo instintivo ou ― atonalismo espontâneo, quanto os
trechos em que as constrições impostas pela série são desconsideradas, prevalece,
neste primeiro período, como uma espécie de característica comum às três vertentes
aludidas, uma concepção musical marcada pelo rigor da construção. (MENDES, 2009,
pg. 17)
2.2 Período de Transição (1946-1948) O período de transição constitui-se pela introdução a novas perspectivas ideológicas,
estéticas particulares e divergentes, e programas sócio-políticos nortearam decisões de
caráter estético-estilístico em sua obra musical. As obras para piano solo que pertencem
ao período de Transição são: Sonatina n.°1 (01/01/1948); Prelúdio n°4 (1ª Série) (01/1948);
Sonata n°2 (03/1948); Prelúdio n°3 (1ª Série) (10/06/1948); Batucada (26/06/1948); Dança
(25/07/1950); Prelúdio n°5 (1ª Série) (23/08/1950); Miniaturas (30/10/1950). À segunda
fase, constituindo-se um período de transição, é possível identificar a adesão de estruturas
tradicionais como o tonalismo e o modalismo, mas constante ainda o uso da linguagem
serial dodecafônica, que neste momento tornou-se mais ortodoxa em comparação com a
fase inicial.
Por volta de 1946, adotando como bandeira o enunciado “humanização da nova
linguagem”, Santoro passa a investir na tese da simplificação estilística com o intuito
de proporcionar o acesso de um público mais amplo à sua arte. A partir deste
ponto, ao qual se refere como de “alta crise”, preponderaria uma aproximação
gradativa das práticas composicionais mais diretamente ligados à tradição, o que
pode ser considerado um prenúncio das características que se solidificariam na fase
nacionalista subseqüente. Abrandada em suas sonoridades mais “ásperas”, a técnica
dodecafônica ainda seria útilizada nas primeiras experiências, vindo a desaparecer
por completo nas últimas obras do período. (MENDES, 2009, pg. 69)
2.3 Período Nacionalista
O período nacionalista é marcado pelo Congresso de Praga de 1948 e sua proposta
ideológica, o rompimento com Koellreuter e novos materiais composicionais: modalismo,
cromatismo, ostinatos, intercâmbio modal e tonal, polimodalidade e cromatismo polimodal.
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As obras para piano solo que pertencem ao período de Nacionalista são: Dança Brasileira nº1
(05/1951); Dança Brasileira nº2 (05/1951); Peças Infantis (1 a 9) (1951/1952); Paulistanas (1 a
7) (1953); Frevo (08/1953); Toccata (1ª Versão) (18/10/1954); Sonata n.°3 (1955); Sonata n°4
(11/1957); Prelúdios 2ª Série – 1° Caderno (1 a 12) (1957 a 1963); *O trem (1958); Prelúdio
“Tes yeux” (20-05-1957); Prelúdio “Toada” (05/1957); Prelúdio (Lento) (12/1958); Estudo
n.º1 – 03/1959; Estudo n.°2 – 05/03/1960; Prelúdios 2ª Série – 2° Caderno (13 a 21) – 1963;
Prelúdio – 08/02/1963. A terceira fase compreende o período nacionalista, influenciado
pelo realismo-socialista do Congresso de Praga de 1948, e a adesão a uma linguagem mais
popular e representa uma mudança drástica nas estruturas formais e estéticas com vínculo
a uma linguagem tradicional, mas não menos idiossincrática que a anterior. Nessa fase, a
utilização do tonalismo, modalismo, de ritmos folclóricos, abarcou um costume de utilização
de um léxico musical tradicional, mediante os símbolos do que representam o Brasil ou a
brasilidade:
Lógica conseqüência das transformações estilísticas ocorridas durante o período de
transição, o ingresso de Santoro no movimento musical nacionalista está diretamente
relacionado à sua participação no II Congresso Internacional de Compositores e
Críticos Musicais, evento realizado em Praga, entre os dias 20 e 29 de maio de 1948.
Se por um lado, parte do material empregado nos anos imediatamente anteriores
já antecipava alguns dos elementos que se tornariam característicos nesta nova
fase, por outro lado, a conversão definitiva somente ocorreria após a realização do
Congresso, momento em que Santoro decide adotar as orientações estabelecidas
no evento, sedimentadas nos princípios estéticos do Realismo Socialista. (MENDES,
2009, pg 97)
2.4 Período de retorno ao Serialismo
A fase do retorno ao serialismo apresenta mudanças em relação à estética nacionalista e um
retorno particular e gradativo aos princípios seriais. As obras para piano solo que pertencem
ao período de Retorno ao Serialismo (1961-1966) são: Prelúdio n°14 – 23/04/1959; Prelúdio
n°15 – 25/04/1959; Prelúdio n°13 (ms. 16) – 1963; Prelúdio (Lento) (ms. 17) dedicado a
Gisele Santoro – 08/02/1963; Prelúdio n°16 – 03/02/1963; Prelúdio n°17 – 13/02/1963;
Prelúdio n°18 – 02/1963; Prelúdio n°19 – 30/08/1963; Prelúdio n°20 – 01/09/1963; Prelúdio
n°21 – 01/09/1963; Sonatina n°2 – 03/01/1964. Esta fase de retorno à estética serialista
possui em seu cerne a apresentação de uma técnica serial particular, não exemplificando o
caráter realmente postulado de um retorno veemente, mas de um trabalho com o material
semelhante ao realizado na primeira fase:
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Por volta do início da década de 1960, o percurso estilístico de Santoro seria
tomado por um novo ciclo de transformações. Tanto a preocupação em dar livre
curso à atualização estilística, quanto à descrença nas antigas convicções ideológicas
nutridas durante o transcorrer da fase nacionalista, gradativamente, o trariam
de volta à escrita dodecafônica da década de 1940. Seguro da autenticidade e do
caráter burlesco de suas constantes metamorfoses composicionais, Santoro não
deixaria de reconhecer, além da própria inevitabilidade da retomada do serialismo,
também o aspecto transitório representado por este novo momento, uma vez que as
transformações empreendidas nos discursos musicais terminariam por desaguar nos
primeiros ensaios vanguardistas da fase seguinte. (MENDES,2009,pg 141)
2.6 Período “Avant-Garde” (1966-1977)
O período denominado “Avant-Garde” apresenta mudanças contrastantes em relação ao
material sonoro com uma estética vanguardista, experimental, eletroacústica, aleatória,
improvisação e se constitui em um momento de renovação ideológica. As obras pertencentes
ao Período “Avant-Garde” são: Intermitências I – 05/07/1967; Balada – 07/11/1976. A Quinta
fase, “Avant-Gardes” (1966-1977), representa o período de experimentação e aleatoriedade
e compreende a criação de Intermitências I, para piano solo, obra de caráter aleatório de
preparação singela do piano com um papelão circular. Aqui Santoro terá possibilidades de
desenvolvimento de música eletroacústica, desenvolvendo também trabalhos para o cinema:
Prosseguindo com as transformações estilísticas verificadas ao longo da primeira
metade da década de 1960, Santoro voltaria sua atenção, por volta de 1966, para a
experimentação com os novos recursos composicionais surgidos com a expansão das
fronteiras da organização sonora, tendência a qual resumiria na expressão “filiação a
avant-garde extrema” (MENDES, 2009, pg 169).
2.7 Período da Maturidade (1978-1989) O período da Maturidade é marcado por tendências ao ecletismo, uma conjunção
final do discurso musical ao mesclar linguagens e propriedades musicais desenvolvidas
anteriormente. As obras pertencentes ao período de maturidade são: Fantasia Sul América
– 10/04/1983; Prelúdio n°26 – 12/10/1983; Noturno – 1984; Prelúdio n°27 – 14/07/1984;
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Prelúdio n°28 – 31/07/1984; Serenata – 14/06/1986; Sonata n°5 – 09/1988; Prelúdio n°29
(ms. 29) – 01/1989. Após o exílio na Alemanha, a última fase denominada “Maturidade”
compreende o retorno ao Brasil, tendo atuado como professor tanto como em Mannheim
e Schrisheim. Claudio Santoro e a família retornam à Brasília e desenvolve aqui, até seu
falecimento, uma produção eclética, reunindo não somente os princípios de experimentação
natural da primeira fase, mas a construção de um discurso musical envolvendo a maioria
das técnicas abordadas nos outros períodos e a consolidação de uma linguagem particular,
tendo características diversas:
O retorno definitivo de Santoro ao Brasil, em 1978, demarca o limite entre a
etapa vanguardista e o início da última transformação em seu percurso estilístico,
momento a partir do qual assumiria a retomada da experiência composicional das
fases anteriores como seu principal foco de interesse. Paralelamente à reutilização
de técnicas, como o desenvolvimento motívico e a polarização tonal, por exemplo, a
manipulação de células intervalares seria finalmente incorporada ao idioma tardio,
vindo a destacar-se como uma de suas principais ferramentas de trabalho, o que será
demonstrado oportunamente. (MENDES, 2009, pg 213)
3. A TEORIA DOS TOPOI
3.1 O Estilo Erudito na Sonata 1942
O presente trecho da Sonata 1942 exemplifica um topoi estilo erudito, herdado do trabalho
estético-formal das escolas de ensino europeu do século XVIII, aqui apresentado com a
estética dodecafônica serial, mas que pode ser compreendido na figura abaixo a relação
contrapontística, representado pela estrutura canônica e pelo diálogo motívico entre as
vozes.
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Figura1: Tópica Europeia: Estilo Aprendido. Sonata 1942. I° Movimento, c. 9-14. Fonte: Sonata 1942. Edição
Savart, 1942.
O presente trecho da Sonata 1942 exemplifica uma figura retórica, denominada conclusio e
que, mesmo fazendo parte do dispositivo, é encontrado aqui como recurso de periodicidade
e finalização de seção.
Figura 2: Figura Retórica: Estilo Aprendido. Sonata 1942. I° Movimento, c. 9-14.
Fonte: Sonata 1942. Claudio Santoro. Edição Savart, 1942.
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3.2 Período Nacionalista
A paulistana n° 2 apresenta uma tópica brasileira, aqui denominada de sertanejo, que
representam os ritmos culturais do interior do sertão, e simbolizando a figura dos boiadeiros
que guiavam o boi pelo trajeto descrito da estrada com o ritmo executado pelos cascos dos
animais, de melodia simples e caráter modal:
Figura3: Tópica Brasileira: sertanejo. Figuras Retóricas: Ex.3. Paulistana n°2, c. 1-12.
Fonte: Paulistanas 1-7. Claudio Santoro. Edição Savart, 1953.
A imitação do ritmo da catira, apresentando um contexto harmônico e melódico totalmente
distinto da obra apresentada anteriormente, com usos de modalismos, polimodalismos,
ostinatos e uma música tipicamente tradicional na história brasileira.
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3.3 Período Avant-Garde: topoi “Avant-garde”
Fig.4. Tópica Avant-Garde. Estética Aleatória: Intermitências I, pg.1.
Fonte: Intermitências I. Claudio Santoro. Editora Jobert, 1960.
A estética aleatória permite ao intérprete tornar-se liberdade controlada, e a própria
estrutura da partitura se apresenta formulada diferentemente do normal, exemplificando a
tentativa de uma música “à frente de seu tempo”, ao romper com estruturas tradicionais e
ao apresentar a bula do compositor, recurso inserido no início da partitura para se identificar
os símbolos ou recursos de importância na interpretação e execução da obra.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A diversidade estética e a complexidade composicional e estrutural do discurso musical de
Claudio Santoro, são apresentadas em sua obra para piano solo com acuidade inventiva e
com inter-relação entre princípios estéticos internos ou externos ao cotidiano da música
brasileira em sua época; essa externalização ou internalização à música tradicional brasileira
é deveras dialógica a função que sua música cumpriria em cada fase composicional, pois
cada léxico musical possui um significado social e particular na vida do compositor: na
primeira fase, o serialismo dodecafônico simboliza o excêntrico do “nacional” pelo moderno.
Um modernismo tardio, que encotrou seu fundamento no avançado mundo europeu présegunda guerra e que oferecia a técnica dodecafônica como uma bússola estética e, para
o refinado artista que teria que pertencer ao seu tempo com a mente no futuro, uma
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bússola para a substância do progresso e da modernidade cultural; o período de transição
que demonstra a queda berliniana estética particular e o abandono gradativo da linguagem
serial dodecafônica e o surgimento de uma ideologia social realista na terceira fase, talvez
um empoderamento heróico, que tinha a missão de cumprir uma música de caráter social,
uma música voltada para o povo brasileiro e de fácil entendimento. São dessa fase os topoi
brasileiros, dos sertanejos ou caipiras, de mais fácil reconhecimento devido à influência de
Mário de Andrade e a necessidade de uma pesquisa folclórica que embasasse e abraçasse a
noção de brasilidade e identidade nacional; A quarta e a quinta fase mostra um afastamento
do paradima nacional, mas não de forma ingênua. Claudio Santoro foi afastado fisicamento
pelo exílio. O compositor se perfaz em sua capacidade inventiva e laboral, abraçado nas
tendências estéticas que lhe aqueceram mais o ser estético do que sua própria pátria; a
última fase mostra uma maturidade composicional e uma inquietude social e inimizade
coletiva pela consituição de seu pensamento político e, principalmente, pela prolificidade de
sua música.
A análise da obra para piano solo de Claudio Santoro apresenta conexões complexas entre
a música, o homem e o mundo que o cerca e dessa forma, evidencia diversas cadeias ou
teias direcionais diante dessas relações que possibilitam uma construção argumentativa de
significados construídos ao longo do tempo, por meio da tradição e da aceitação social ou
pelo seu distanciamento e, mais específico, por sua ideologia ou ideologias, mediante sua
relação em suas particularidades composicionais. Essas idiossincrasias, apresentadas na
utilização de topoi específicos que cumprem uma funcão retórica, a de persuadir o ouvinte,
representadas pelas diversas fases composicionais, demonstram o anseio pela busca de
uma linguagem, que depreendesse sentido e tivesse significado, não somente para si, ou
para um país, mas para a própria humanidade. A acuidade do discurso musical permeado
pelo conteúdo ideológico, ou seja, pela luta do estabelecimento de paradigmas estéticos
ou técnicos, de significações idiossincráticas ou de funcionalidades sociais, guarda em seu
cerne uma premissa: as ações culturais são de certa forma, ações políticas. A idiossincrasia
estilística teve como conteúdo um sentido ideológico que ora comunicava ao mundo, ora dele
se afastava, e isso é a particularidade em Santoro: a vontade de sentido em sua honestidade
musical que, em todas as fases, foi deveras singular.
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Conjunção Final. Tese de Doutorado. UniCAMP, 2009.
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Arte-educação
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IDENTIDADE CULTURAL, EDUCAÇÃO E MUSEUS:
Desenvolvendo a educação patrimonial na escola
Janaina Couvo Teixeira Maia de Aguiar 1
Resumo
A partir de uma experiência desenvolvida com alunos do 8º ano do ensino fundamental,
na Escola Estadual Cônego Filadelfo de Oliveira, escola da rede pública estadual de Sergipe
localizada na cidade histórica de Laranjeiras, apresentamos neste trabalho uma análise sobre
um projeto desenvolvido na disciplina de Arte, enfatizando o patrimônio cultural do estado a
partir do conhecimento sobre os museus e sua função social. Entendendo que para o aluno
que está em processo de formação, projetos que enfatizem os elementos de sua identidade
cultural, contribuindo para o seu conhecimento, são importantes e devem ser desenvolvidos nas
salas de aula, o projeto “conhecendo os museus de Sergipe” vem contribuir significativamente
para aproximar o aluno da sua história, proporcionando o contato do mesmo com espaços
de memória que irão contribuir para a construção da sua identidade cultural, apresentando
elementos que são parte da memória coletiva da comunidade a qual ele faz parte.
Palavras-chave: Educação Patrimonial. Patrimônio Cultural. Identidade. Museus.
Abstract
From an experience developed with students of the 8th grade of elementary school, the State
School Cônego Filadelfo de Oliveira, a state school of Sergipe located in the historic city of
Laranjeiras, we present in this paper an analysis of a project developed at the Art discipline
emphasizing the cultural heritage of the state from the knowledge of the museum and its a
social function. Understanding that for the student who is in process of projects formation,
that emphasize the elements of their cultural identity, contributing to their knowledge are
important and should be developed in classrooms, the project “knowing the museums of
Sergipe” will contribute significantly to bring the student of history, providing contact with
the same memory space that will contribute to the construction of their cultural identity, with
elements that are part of the community’s collective memory which it is part.
Key-words: Education Equity. Cultural Heritage. Identity. Museums.
1 Mestre em Cultura e Sociedade-UFBA, Licenciada e Bacharel em História – UFS, Bacharel em Museologia- UFS. Professora
de História e Arte da rede pública do Estado de Sergipe e Professora da Faculdade Serigy/UNIRB, e-mail: janainacouvo@gmail.
com
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1. A EDUCAÇÃO PATRIMONIAL – UMA REFLEXÃO
“Entende-se patrimônio cultural como os bens de natureza material e imaterial, que
refletem a identidade, a ação e a memória dos diferentes grupos da sociedade. Dessa
forma, sua preservação justifica-se pela necessidade de se manter ou resgatar o
passado, a fim de manter as raízes e a identidade cultural, permitindo o conhecimento
e a reprodução pelas futuras gerações. ” (AZEVEDO, 2010, P.265)
Desenvolver a valorização do patrimônio cultural em sala de aula é algo necessário, pois
estamos trabalhando com cidadãos em formação, onde despertar para a necessidade da
preservação da sua história e sua identidade é fundamental. Estudos sobre esta relação
estão sendo desenvolvidos por diversos pesquisadores, que apresentam em suas análises a
necessidade de levar aos alunos um olhar amplo sobre os bens culturais, ultrapassando a ideia
de que esses bens estão apenas relacionados aos bens materiais. Assim sendo, elementos
relacionados a experiências vividas, formas de expressão diversificadas, saberes e fazeres,
celebrações, o meio ambiente, todos estes bens são de natureza imaterial e também fazem
parte do campo do patrimônio cultural.
Com isso, pensar o patrimônio cultural despertando a consciência da preservação entre os
jovens, torna-se muito importante e, quando estas ações estão associadas a práticas
educativas, sendo levadas para a sala de aula, transformam-se em verdadeiras
expressões de educação patrimonial. Assim, segundo Pelegrini (2009), educação patrimonial,
Constitui uma prática educativa e social que visa à organização de estudos e
atividades pedagógicas interdisciplinares e transdisciplinares. O objetivo da
interdisciplinaridade centra-se na tentativa de superar a excessiva fragmentação
e linearidade dos currículos escolares. A transversalidade, alcançada por meio de
projetos temáticos, é um recurso pedagógico que visa auxiliar os alunos a adquirir
uma visão mais compreensiva de crítica da realidade, bem como sua inserção e
participação nessa realidade. (2009, p.36)
A partir desta conceituação, pensar o desenvolvimento da educação patrimonial é pensar ações
educativas que, tendo um caráter interdisciplinar, possam proporcionar uma reflexão acerca
da diversidade cultural expressa em seu patrimônio, seja ele material ou imaterial, envolvendo
várias áreas. Estas ações partem do princípio de que se torna necessário aproximar o indivíduo
da sua comunidade, levando o conhecimento da sua história e de elementos importantes para
a construção da sua identidade. Assim, através de pesquisas e estudos sobre o patrimônio
local tem início uma proposta de educação patrimonial.
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Seja em áreas urbanas ou no campo, os educadores podem apresentar e desenvolver propostas
educativas relacionadas à diversidade patrimonial existente na região, a partir de pesquisa e
registros, resultando em apresentações e materiais importantes sobre a memória local. Desta
forma, estas atividades,
(...) irão prenunciar o quanto o patrimônio cultural é algo vivo e dinâmico, além
de indicar que nem tudo que é ativo constitui um bem patrimonial, mas somente
aqueles dotados dos sentidos de pertença e identidade, ou seja, de um valor cultural
mais amplo. (PELEGRINI, 2009, P.40)
É esta valoração, este sentimento de pertencimento que estas ações educativas visam promover
entre os alunos, a partir da aproximação destes com os elementos de sua identidade cultural
muitas vezes desconhecidos, mas que fazem parte do seu cotidiano. Assim sendo, a educação
patrimonial desenvolve um papel importante neste processo, pois promove o contato do
aluno com sua identidade, o conhecimento da sua história, a construção do sentimento de
pertença com o lugar de nascimento e assim, consequentemente, desperta a importância da
preservação do seu patrimônio cultural.
Assim, a educação patrimonial contribui significativamente para despertar nos estudantes
um olhar que ultrapassa a curiosidade, chegando a consciência de que existe a necessidade
de cuidar daquilo que é parte da sua história, da sua identidade. É o que representa a sua
herança cultural, onde, segundo SOARES (2003), “(...) os educandos passam a se entender
enquanto sujeitos do processo histórico em construção e a compreender que é possível atuar
nas mudanças” (2003, p.26). É este o sentimento que as propostas de educação patrimonial
levadas para as escolas devem despertar, ou seja, levar o aluno a ter consciência do seu papel
de protagonista na luta pela preservação do seu patrimônio.
2. O MUSEU, A CIDADE E AS AÇÕES DE EDUCAÇÃO PATRIMONIAL
Os Museus são espaços importantes de preservação do patrimônio cultural, pois reúnem um
acervo que traz muito da história e da memória do lugar, contribuindo significativamente para
proporcionar à comunidade ao qual estão inseridos, elementos importantes para a construção
da sua identidade. A partir de ações educativas desenvolvidas pelos Museus, a comunidade
pode ser inserida neste espaço, construindo uma relação de comunicação importante que se
reflete na própria dinâmica do museu, que pode proporcionar diversas atividades periódicas
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visando atrair este público.
Com isso é importante ressaltar que as ações educativas, tanto podem ser desenvolvidas
pelos espaços museais como também pelas escolas da região. O Museu, segundo Maria Célia
Santos (1993), é considerado “uma instituição que deve estar comprometida com o processo
educacional, desempenhando uma ação cultural e educativa no âmbito da educação formal
e informal” (p.24), assim sendo, propondo atividades que não estejam apenas centradas na
escola, como também na comunidade.
Com relação às atividades propostas a partir da escola, os projetos de educação patrimonial
podem ir além dos museus, abordando todo o espaço arquitetônico da cidade em que ambos
estão inseridos, indo além do patrimônio material, chegando as expressões do patrimônio
imaterial existentes no lugar. Assim, estas ações proporcionam aos alunos uma possibilidade
de ultrapassar o espaço da sala de aula, encontrando um aprendizado também no cotidiano
da cidade em que vive. Com isso, estes projetos resultam em
(...) um processo de descoberta em que os alunos, professores e toda a comunidade
podem e devem estar envolvidos. É através do diálogo permanente entre as
comunidades e os agentes responsáveis pela preservação dos bens culturais, que
será possível a formação de parcerias para a proteção e valorização desses bens.
(AZEVEDO, LIMA, BREDA, 2010, P.266)
As atividades voltadas à Educação Patrimonial contribuem significativamente para se
desenvolver, entre os alunos, a consciência de valorização e o sentimento de pertencimento para
com os bens culturais. Estas ações, quando desenvolvidas na escola, partem da sensibilidade de
professores ou equipe pedagógica, compromissados com o patrimônio cultural e que possuem
disponibilidade de ultrapassar a sua carga horária de trabalho cotidiana. São iniciativas desta
natureza que precisam acontecer constantemente nas escolas, pois contribuem para ampliar
a consciência coletiva em torno do conhecimento e da preservação da cultura local.
Sendo assim, as ações de educação patrimonial devem ser consideradas, segundo o documento
do IPHAN que norteia estas ações, enquanto
“um recurso fundamental para a valorização da diversidade cultural e para o fortalecimento
da identidade local, fazendo uso de múltiplas estratégias e situações de aprendizagem
construídas coletivamente. (...). Os diferentes contextos culturais em que as pessoas vivem
são, também, contextos educativos que formam e moldam os jeitos de ser e estar no mundo.
Essa transmissão cultural é importante, porque tudo é aprendido por meio dos pares que
convivem nesses contextos. Dessa maneira, não somente práticas sociais e artefatos são
apropriados, mas também os problemas e as situações para os quais eles foram criados.
Assim, a mediação pode ser entendida como um processo de desenvolvimento e de
aprendizagem humana, como incorporação da cultura, como domínio de modos culturais
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de agir e pensar, de se relacionar com outros e consigo mesmo. ” (IPHAN, 2014, p.22)
Com isso, é importante considerar que as ações educativas resultam em um processo de
interação entre a escola e a comunidade, na qual estas relações estabelecidas apresentam
diferentes formas de aprendizagem, construídas a partir de um trabalho coletivo, levando em
consideração o contexto do lugar, as expressões culturais cotidianas e demais elementos que
fazem parte dos contextos sociais estabelecidos.
3. O PROJETO: “CONHECENDO OS MUSEUS DE SERGIPE”
Esta proposta de Educação Patrimonial foi desenvolvida na turma do 8º ano da disciplina de Arte,
na Escola Estadual Cônego Filadelfo de Oliveira, localizada na cidade histórica de Laranjeiras,
a 18 km da capital. Cidade que no século XVIII se destacou como um importante centro de
referência na produção de cana de açúcar possui um importante legado deste período, com a
presença de casarios, igrejas e outros espaços que, no seu conjunto arquitetônico, é tombada
pelo IPHAN- Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Possui três espaços de
memória – o Museu de Arte Sacra de Laranjeiras, o Museu Afro-Brasileiro de Sergipe e a Casa
de Cultura João Ribeiro- importantes para a história do lugar.
Além de ricas expressões do patrimônio material, a cidade também abriga um número
considerável de grupos folclóricos, além de várias expressões do artesanato sergipano, como
a renda irlandesa, registrada como uma expressão do patrimônio cultural imaterial do Brasil.
Trata-se de uma região com uma grande representatividade de bens culturais, possíveis de
serem trabalhados em sala de aula.
A partir deste levantamento e de pesquisas, leituras e observações, foi construído um projeto
para ser desenvolvido na turma do 8º ano “A”, na disciplina de arte. Percebemos que a grande
maioria dos alunos não conhecia a história da cidade, dos monumentos e nunca tinham
visitado os dois museus existentes. Assim, partimos desta realidade para construir o projeto,
tendo como foco principal os museus, não apenas os de Laranjeiras, mas também os de São
Cristóvão e Aracaju. Com relação à estas duas cidades, também foi observado que os alunos
nunca tinham ido aos museus e demais espaços culturais existentes, o que tornou a viagem
marcada por muita expectativa. Como leciono a disciplina de arte nesta turma, foi discutido
inicialmente a função social do museu, apresentando a sua história e importância para a
memória e a construção da identidade cultural de um lugar.
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Após a discussão teórica sobre os museus, dividimos a turma em grupos e selecionamos os
museus a serem visitados, que foram os seguintes:
ØLaranjeiras:
o Museu de Arte Sacra de Laranjeiras
o Museu Afro-Brasileiro de Sergipe
ØSão Cristóvão:
o Museu Histórico de Sergipe
o Museu de Arte Sacra de São Cristóvão
o Museu dos Ex-Votos
ØAracaju:
o Museu da Gente Sergipana
Com esta definição, os grupos iniciaram uma pesquisa sobre os museus, de acordo com a
divisão feita em sala de aula. Esta determinou os grupos que ficaram responsáveis por
levantar as informações acerca da história de cada instituição cultural, em livros e na internet.
Em seguida, foram feitas as visitas a estes espaços, além de visitarmos os museus, as cidades
também fizeram parte do roteiro, sendo discutido um pouco sobre a importância do seu
espaço como expressão do patrimônio cultural.
As visitas aos Museus e também à cidade história de São Cristóvão, despertou a atenção dos
alunos, que até então muitos ainda não conheciam. O deslumbramento despertado nos
jovens visitantes ficou por conta do Museu da Gente Sergipana, por utilizar muita tecnologia
na apresentação de seu acervo, promovendo uma interação entre eles e as informações
presentes na expografia.
Assim, foram apresentados aos alunos os museus e seus acervos, objetos que fazem referência
à sua história, aos elementos culturais locais e do próprio estado, aspectos estes importantes
para a construção da sua identidade. Após a visita, todos prepararam relatórios expressando
os seus sentimentos com a visitação, como no trecho abaixo:
(...) eu visitei o Museu Afro-Brasileiro de Sergipe em Laranjeiras e entendi muito
sobre o Museu, que possui uma coleção de muitas peças, todas retratando os
mais diversos testemunhos de ação da nossa formação sociocultural. (...) o Museu
também tem o objetivo de pesquisar, preservar e mostrar através da sua exposição
permanente e a exposição temporária e tem muita coisa sobre a história de Sergipe
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no período da cana de açúcar. (...) (depoimento do aluno C.E.S.S.)
A partir desse depoimento percebe-se que o aluno consegue fazer uma leitura do acervo
visitado, construindo uma ponte com a sua importância para a história local, assim como
também a referência ao papel do museu enquanto espaço de pesquisa e preservação do
patrimônio cultural afro-brasileiro. Assim como este aluno, outros também expressaram em
suas observações este olhar para com a importância do museu, destacando o seu papel de
“guardião da memória”.
É importante ressaltar que outro museu visitado também despertou reações interessantes
dos alunos: foi o Museu dos Ex-Votos, localizado na Igreja da Ordem Terceira do Carmo, em
São Cristóvão, Igreja também conhecida como Igreja do Senhor dos Passos, por abrigar uma
imagem centenária deste santo, que possui uma das maiores festas religiosas do estado, que
acontece na segunda semana após o carnaval. Esta festa reúne pessoas de várias partes do
estado e do país, aonde alguns chegam em romarias pela estrada, trazendo imagens, coroa de
espinhos, túnicas, entre outros objetos que são deixados na igreja e, após a festa, colocados
no museu dos ex-votos. Durante esta visita, alguns alunos relutaram em entrar no museu,
despertando certo receio em ver estes objetos. Porém, depois de uma explanação do guia que
acompanhou os alunos durante a visita, eles entraram para conhecer o acervo.
Para que este projeto fosse colocado em prática é importante destacar que o mesmo teve
como importantes parceiros a Secretaria de Estado da Educação, que nos cedeu o transporte,
assim como também o Serviço Social do Comércio (Sesc), que disponibilizou o almoço para
os alunos no dia em que visitamos as cidades de Aracaju e São Cristóvão. Além disso, o
acompanhamento da Escola Estadual Cônego Filadelfo de Oliveira, eu, através da Coordenação
Pedagógica, auxiliei no trabalho de acompanhamento dos alunos durante o desenvolvimento
do projeto.
Assim, nossa atividade sobre os museus de Sergipe foi encerrada com essa visita, que despertou
nos alunos vários sentimentos, pois os mesmos conseguiram identificar festas que acontecem
em Laranjeiras, personagem de grupos folclóricos, costumes e tradições que fazem parte do
seu cotidiano e que estão ali referenciadas enquanto elementos importantes para a cultura
sergipana.
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4 CONSIDERAÇÕES
Considerando a Educação Patrimonial enquanto um caminho para levar o aluno a despertar
para a valorização e a preservação do seu patrimônio cultural, o projeto “conhecendo os
Museus de Sergipe” pode ser considerado uma importante ação educativa, desenvolvida
na Escola Estadual Cônego Filadelfo de Oliveira, pois proporcionou aos alunos envolvidos a
possibilidade de conhecer aspectos da sua história e da sua cultura através dos acervos de
cada museu visitado.
Além disso, contribuiu significativamente para levar os alunos a refletir sobre a importância do
museu enquanto um espaço que apresenta vários elementos importantes para a construção
da sua identidade cultural. Outro aspecto importante para o aprendizado da turma é que,
enquanto cidadãos, eles precisam preservar estes espaços assim como a cidade em que vivem,
pois trata-se de elementos importantes para a sua história, aspecto esse fundamental não só
enquanto elemento que traz referências ao passado, mas que também pode contribuir para
reflexões sobre o futuro.
REFERÊNCIAS
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Daniel Oliveira. Ação de Educação Patrimonial no Sertão do Pajeú. IN.: BARRIO, Ángel Estina
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Comunicação
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MORTE AO FALSO METAL:
Roko-Loko e a identidade headbanger na revista Rock Brigade
Fábio Gonçalves de Carvalho Ferreira 1
Giselle Xavier d Ávila Lucena 2
Resumo
Este trabalho realiza um estudo sobre a identidade do fã do estilo musical Heavy Metal,
conhecido como headbanger. Por meio da história em quadrinhos “Morte ao falso Metal”,
assinada pelo quadrinista Márcio Baraldi, para a revista especializada Rock Brigade, são
problematizados estereótipos e paradoxos do universo do headbanger como indivíduo
cultural contemporâneo. A popularização do estilo por meio da indústria cultural e os aspectos
dicotômicos entre “underground” e “mainstream”, apresenta um contexto de defesa de um
“verdadeiro” seguidor do estilo. Como referência, são utilizados autores como Zygmunt
Bauman e Stuart Hall, Moacir Cyrne, Isabel Lustosa, Leandro Campoy, entre outros.
Palavras-Chave: Identidade. Headbanger. Underground. Mainstream. Rock Brigade. RokoLoko.
Abstract
This work does a study on the identity of the fan of musical style Heavy Metal, known as
headbanger. Through the comic “Death to False Metal”, signed by the cartoonist Marcio
Baraldi, for the specialized magazine Rock Brigade, are problematized stereotypes and
paradoxes of headbanger’s universe as contemporary cultural individual. The popularization
of style through cultural industry and dichotomous aspects between “underground” and
“mainstream” presents a defense context of a “true” follower of style. For reference, authors
used are Zygmunt Bauman and Stuart Hall, Moacir Cyrne, Isabel Lustosa, Leandro Campoy,
among others.
Keywords: Identity. Headbanger. Underground. Mainstream. Rock Brigade. Roko-Loko.
1 Pós-graduando em Gestão de Políticas Públicas em Gênero e Raça, pela Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP. Possui
Licenciatura em Artes Visuais (UnB) e graduação em Comunicação Social/Jornalismo pela Universidade Federal do Acre –
UFAC. Email: [email protected]
2 Mestre em Interações Midiatizadas, pela PUC Minas. Professora do curso de Comunicação Social/Jornalismo, da Universidade Federal do Acre - UFAC. Email: [email protected].
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1. APRESENTAÇÃO
Este trabalho propõe uma análise das dinâmicas identitárias do fã de heavy metal, o
headbanger, por meio da leitura crítica do trabalho do quadrinista Márcio Baraldi, para a
revista Rock Brigade, com foco na história “Morte ao falso metal”3. Procura-se problematizar
dicotomias e paradoxos presentes na reprodução da representação social do público fã deste
estilo musical, no contexto da indústria cultural e da cultura de massa, e das dicotomias entre
underground e mainstream.
A fundamentação teórica está baseada em obras de estudiosos como Zygmunt Bauman e Stuart
Hall, além de pesquisadores das histórias em quadrinhos como Isabel Lustosa e pesquisadores
do heavy metal, como Tom Leão e Leandro Campoy. O objeto empírico do trabalho é a
representação do headbanger na história “Morte ao falso metal”, que tem o personagem
Roko-Loko acusado de não cumprir com as determinações identitárias do fã do estilo musical.
O quadrinista Márcio Baraldi transita entre vários assuntos além do rock, como religiosidades,
movimento LGBT, vídeo-games e política. Entre seus trabalhos estão os livros “Moro num
país tropiCAOS!”, publicado durante a 17a Bienal do Livro de São Paulo, em 2002; e “Todas as
cores do humor”, voltado para o público LGBT; além de diversas coletâneas com as tirinhas de
alguns de seus principais personagens, como o próprio Roko-Loko, da revista Rock Brigade;
TatooZinho, da MetalHead Tatoo; Rap Dez, da revista Viração; e Vapt e Vupt, da revista
Espiritismo e Ciência. Como reconhecimento do seu trabalho, Baraldi já ganhou 11 vezes o
troféu Ângelo Agostini, da Associação dos Quadrinhistas e Cartunistas (AQC); o Prêmio Humor
Popular, no VI Salão de Humor de Volta Redonda, no Rio de Janeiro; entre outros.
Roko-Loko é o principal personagem de Márcio Baraldi, e começou a ser publicado pela revista
Rock Brigade em 1996, com conteúdos que contribuem para a percepção de elementos
identitários e representativos do contexto histórico e social do heavy metal. O personagem,
junto com sua namorada Adrina-Lina, é reconhecido como um grande símbolo do circuito
cultural do heavy metal.
3 Disponível em: http://www.rockonstage.org/funonstage/hqrokolokomorteaofalsometal.htm
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2. DO UNDERGROUND AO MAINSTREAM: A BUSCA PELO HEAVY METAL DE ESSÊNCIA
Além de estilo musical, o heavy metal pode ser considerado um movimento cultural peculiar,
com regras e convenções próprias. Neste movimento, o fã é convidado não apenas a ouvir uma
música, mas sim, reproduzir costumes, falas e crenças, estabelecendo uma vivência que é, ao
mesmo tempo, tradicional e transgressora. Dentro deste circuito, está a ideia de “underground”.
Para Oliveira Júnior (2011), o underground é como circuito de relações caraterizado por ser
“marginal em sua essência”, ou seja, um estilo que vive à margem da sociedade.
O cenário underground não se resume somente aos shows – que seria o evento
máximo dos headbangers – mas a ele competem todos os locais de convivência e
vivência do Heavy Metal. Aqui estão as praças, lojas especializadas, bares, clubes,
centros comerciais, pubs, escolas de música, sejam eles palco de shows ou não.
(OLIVEIRA JÚNIOR, 2011, p. 27).
Por outro lado, há também o contexto do “mainstream”, caracterizado como o oposto desta
lógica, sendo um mero mercado consumidor, onde o mais importante é a quantidade de
CDs vendidos, a grandiosidade dos shows ou o alcance midiático das bandas inseridas nesta
classificação. No meio do heavy metal, esta dicotomia “underground x mainstream”, aparece
na associação de “verdadeiro” (ou true) às bandas do underground, rótulo que perdem
imediatamente ao conquistarem o mainstream, tornando-se “posers” (ou falsos-vendidos).
Para compreender melhor este paradoxo é importante considerar a identidade como conjunto
de características compartilhadas, seja com o semelhante, com o diferente, num processo
nunca finalizado ou esgotado e mais: fundada em fantasia, desejo, idealização e projeção, onde
“seu objeto tanto pode ser aquele que é odiado quanto aquele que é adorado” (HALL, 2005,
p. 107). Em outras palavras, as identidades são como narrativas de si, construídas conforme as
formas pelas quais desejamos e/ou imaginamos ser vistos pelos outros, pois “as identidades
são para usar e exibir, não para armazenar e manter” (BAUMAN, 2005, p. 96). No entanto, tal
processo é constantemente tumultuado por confrontos muitas vezes incoerentes, pois envolve
também um caráter imaginário e aprisionador presentes nos discursos e posicionamentos,
uma vez em que pode ser convocada para expressar marcas necessárias para localização
espaço/temporal de sujeitos coletivos.
Para Bauman (2005), em tal processo, as chances de desentendimento e conflito existem
porque “as identidades flutuam no ar, algumas de nossa própria escolha, mas outras infladas
e lançadas pelas pessoas em nossa volta, e é preciso estar em alerta constante para defender
as primeiras em relação às últimas” (BAUMAN, 2005, p. 19). Esse caráter fluido e imerso num
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jogo de disputa é enfatizado ainda mais quando consideramos que a identidade se revela
“como algo a ser inventado, e não descoberto, como alvo de um esforço, ‘um objetivo’; como
uma coisa que ainda se precisa construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então
lutar por ela e protegê-la lutando ainda mais” (BAUMAN, 2005, p. 21-22).
Na dicotomia underground-mainstream, uma das características manifestas no universo
roqueiro, encontramos uma dinâmica de defesa e acusação de um verdadeiro ou falso
headbanger. No que se refere à identidade roqueira, se a identidade não é descoberta, mas
inventada e construída, embora em algum momento o fã tenha que “descobrir” o heavy
metal, esta descoberta da existência e do gosto pelo estilo não torna o sujeito um headbanger:
é preciso construir, aos poucos, esta identidade, agregando diversos elementos de igual
importância para o “true headbanger”. E isso exige, como já falado inicialmente, não “apenas”
o apreço pelo estilo musical, mas, sim, a adaptação aos modos de se vestir, de falar, frequentar
lugares específicos etc. Ou seja, a identidade headbanger exige que se esteja inserido em seu
circuito cultural. Afinal, “em vez de falar da identidade como uma coisa acabada, deveríamos
falar de identificação e vê-la como um processo em andamento” (HALL, 2006, p. 39).
No entanto, tais escolhas não são simples. Na busca pela autenticidade, em vez de se alcançar
o “verdadeiro metal”, é possível que se atinja o seu oposto. Conforme Bauman (2004), a
identidade é uma construção e esse processo funciona
(…) como alvo de um esforço, “um objetivo”; como uma coisa que ainda se precisa
construir a partir do zero ou escolher entre alternativas e então lutar por ela e
protegê-la lutando ainda mais – mesmo que, para que essa luta seja vitoriosa, a
verdade sobre a condição precária e inconclusa da identidade deva ser, e tenda a ser,
suprimida e laboriosamente oculta. (BAUMAN, 2004, p. 21-22)
Tais dinâmicas podem ser localizadas nas vivências de Roko-Loko, conforme a sua identidade de
fã de heavy metal. Enquanto Roko-Loko é retratado como um sujeito fragmentado, “composto
não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas”
(HALL, 2006, p. 12), o rock é retratado por Márcio Baraldi como um estilo de vida, e não apenas
como um estilo musical.
Para entender melhor este paradoxo, propomos compreender o processo histórico do heavy
metal. Pela limitação do espaço aqui disponível, vamos nos ater aos acontecimentos no Brasil,
onde o heavy metal se caracterizou como um movimento a partir dos anos 80, época em que
o estilo já havia atingido seu ápice em outros países e já estava em sua segunda geração, como
na Inglaterra. A cena brasileira de heavy metal teve como seus grandes centros precursores, as
cidades de São Paulo e Belo Horizonte, onde estavam localizadas lojas de discos e gravadoras,
como a Woodstock, Devil e Baratos Afins, em São Paulo; e a Cogumelo, em Belo Horizonte. Elas
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desempenhavam um papel importante neste início de heavy metal no país, pois se firmaram
como locais onde os fãs se encontravam para trocar discos e fitas K7 e, principalmente, conversar
sobre o estilo. Naquela época era comum a comunicação via cartas, promovendo assim uma
grande rede para troca de material e de informações, além da circulação de fanzines.
Após o primeiro Rock In Rio, em 1985, o maior evento produzido no país até então, o heavy
metal chegou ao conhecimento do grande público. O sucesso do Rock In Rio e a consequente
popularização do heavy metal se deu por diversas razões culturais, históricas e mercadológicas.
No entanto, para Silva (2008) o sucesso do festival foi resultado, principalmente, da grande
cobertura da mídia de massa.
O grande marco para a popularização do heavy metal no Brasil, no entanto, foi o
festival Rock in Rio, promovido pela Rede Globo em janeiro de 1985 – o primeiro
evento gigantesco de música realizado no país, que recém saía de um período de
quase 21 anos de ditadura militar, reuniu dezenas de milhares de pessoas por noite
durante 10 dias. Boa parte das atrações internacionais do evento era formada por
algumas das maiores bandas de heavy metal da época, como Iron Maiden, Ozzy
Osbourne, Scorpions e AC/DC. Os shows transmitidos em rede nacional de televisão
e com ampla cobertura da mídia impressa tornaram o heavy metal conhecido em
todo o país, ainda que a cobertura o retratasse como algo exótico ou perigoso.
(SILVA, 2008, p. 31)
Embora o cenário do heavy metal já estivesse se consolidando desde o início dos anos 80,
com as principais bandas brasileiras sendo criadas antes do evento e, na época, o Kiss e o Van
Halen já terem feito shows no Brasil (1983), é inegável que o Rock In Rio foi um dos principais
colaboradores para a massificação do estilo, e por isso, o ano de 1985 é considerado um marco
para este segmento musical no país (LEÃO, 1997; SILVA, 2008). Por outro lado, o Rock In Rio
também colaborou para a consolidação de alguns estereótipos para o grande público e para
os fãs mais novos, que passaram a reproduzir algumas destas formas caricatas, como o termo
“metaleiro”, ao que antigos fãs do estilo abominam.
O termo é normalmente atribuído à cobertura da Rede Globo do primeiro Rock In Rio pelo uso
constante da palavra para definir os fãs de heavy metal4, que por sua vez acusam a emissora
de criar uma palavra que não os define e divulga ideias errôneas sobre este estilo de vida.
Entretanto, a palavra já era utilizada para designar fãs de metal, mesmo por “gente do meio”. A
própria revista especializada Rock Brigade, por exemplo, usou o termo antes do Rock in Rio. “(...)
a inflação “delfiniana” não nos perdoa por sermos metaleiros (...)” (Editorial, Rock Brigade, Vol
XIV, ANO III – 1984. Grifos nossos). Para os fãs esta palavra tem tom pejorativo, pois carrega o
peso dos estereótipos criados em torno do estilo e preferem se autodenominar “headbangers”.
A auto-referência como “metaleiro”, chega a ser utilizada no meio como identificação entre fãs
4 Ver os vídeos: (https://www.youtube.com/watch?v=KG7-HhKWyG4 e https://www.youtube.com/watch?v=bjrweld5GwM)
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antigos e novos, onde aquele que aceita e utiliza o rótulo é desconhecedor da “cultura metal”
e portanto um intruso, um falso.
A partir da metade dos anos 80, o estilo cresceu muito e bandas se consolidaram em diversos
estados do país, sobretudo em São Paulo e Minas Gerais. O Sepultura é o maior nome do estilo
até hoje, obtendo reconhecimento em todo o mundo, com seu auge nos anos 90. A partir desta
década, o heavy metal brasileiro se profissionalizou, tornando-se referência para o mundo e
exportando bandas de todas as subdivisões do metal e gerando uma prolífica cena, composta
por grandes produções, imprensa especializada e bandas influentes em todo o mundo.
A partir desta época, cresceu também o radicalismo e muitas bandas foram rotuladas como
“falsas” ao alcançarem públicos maiores. Neste pensamento, crescer equivale a uma negação
do underground numa lógica capitalista, que prioriza o lucro em detrimento da qualidade e
do fruir artístico, colocando o heavy metal numa lógica de consumo. Encontramos as raízes
desta ideologia em Adorno e Horkheimer (1997), que apontam o consumismo como parte
inerente à indústria cultural. O ideário do headbanger busca não se sujeitar à indústria cultural,
preservando a integridade artística das bandas underground.
Campoy (2010) realizou uma pesquisa5 sobre o heavy metal e, embora com foco no lado mais
extremo do estilo, o autor oferece uma série de reflexões sobre os conceitos de underground e
mainstream, contribuindo para a compreensão da dualidade que expõe o ideário da indústria
cultural no pensamento headbanger:
Porém, não podemos esquecer que essas relações underground são tecidas a
partir de uma representação dual do heavy metal. A participação e a prática do
underground são explicadas como, em parte, resultado de uma rejeição do outro
pólo, aquilo que chamam de mainstream. Seja porque falta metal extremo nele, seja
porque seu heavy metal não é apreciado, o mainstream é repelido e negado pelos
praticantes do underground. (CAMPOY, 2010, p.35)
Seja negando ou aceitando fazer parte desta indústria, de uma forma ou de outra, o conceito
se faz presente no underground, sendo que os ideais deste são, a princípio, avessos à lógica
de mercadoria e entretenimento puro ligados à indústria cultural. Conforme Silva (2002), a
contestação dos valores dominantes é característica do movimento underground, peculiar dos
grupos das contraculturas.
5 O autor só aceita a classificação de underground para as bandas extremas que não alcançam sucesso comercial. Para ele,
enquanto os objetivos do underground são a “ideologia e a atitude”, os do mainstream são “fama e lucro”.
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Um traço característico dessas tribos é sua atitude de contestação dos valores que
eles identificam como dominantes. Eles procuram, através de seu comportamento,
modo de vestir e, principalmente, pelo consumo de produtos culturais diferenciados,
afirmar identidade de grupo. (…) Dessa maneira, nota-se que a juventude continua
gerando movimentos de oposição, contraculturas. Observa-se que o desejo de
transformação da realidade social não se extinguiu e que os movimentos urbanos
juvenis apenas mudaram de feição e ideais. Talvez os hippies de ontem sejam,
guardadas as devidas proporções, as tribos urbanas de hoje. Novas realidades são
refletidas em novos posicionamentos diante do mundo. (SILVA, 2002, p. 29)
Outro ponto importante a se compreender neste universo é que, mesmo com o seu
amadurecimento a partir dos anos 90, com a profissionalização das bandas e a consolidação
do cenário, há um sentimento de nostalgia pelos anos 80. Hoje, existem tantas subdivisões e
novas bandas que seria preciso um estudo detalhado apenas para delinear as nuances deste
novo cenário, repleto de estilos diferentes como power metal, thrash metal, death metal, black
metal, new metal etc. Mas, a rigor, consideramos todas as subdivisões como heavy metal,
sendo que este, a partir do âmbito cultural e histórico, nessa pesquisa, também está inserido na
cultura denominada rock’n’roll e, portanto, quando falamos da cultura heavy metal, também
falamos da cultura rock, sendo utilizadas, nesse sentido, como sinônimos.
Dessa forma a cultura do heavy metal orgulha-se por ser parte do underground, sendo
independente da grande mídia. Entretanto, esta pretensa independência é relativa, pois além
dos fanzines, shows e lojas de discos, o estilo também possui uma mídia especializada, que
abre espaço tanto para as bandas mainstreans quanto para undergrounds. Há ainda websites
(ou webzines), programas de rádio e programas para internet, para o Youtube ou canais de
webtv etc. Dentro desta mídia dita especializada, interessa-nos, nesse momento, a revista Rock
Brigade. Nela, são publicadas as histórias do personagem Roko-Loko, criação do cartunista
Márcio Baraldi, que representa, através de suas HQs, a identidade do headbanger e o estilo de
vida que o envolve, temas aqui estudados.
3. ROKO-LOCO EM: MORTE AO FALSO METAL
Surgida em 1981 como um fã clube de heavy metal, em 1982 a Rock Brigade virou fanzine. Sua
pretensão era a mesma de todos os “zines”: abordar um assunto específico que não é valorizado
pela grande mídia, divulgando-o e enaltecendo-o. O primeiro editorial do informativo reflete
a cultura dos fãs de heavy metal, headbangers, e também a contradição já apontada de sua
postura: a dicotomia entre underground e mainstream.
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Hello, moçada, aqui estamos com nosso (inclusive vocês) primeiro informativo.
Parece que nossa intenção já é sabida, mas vale repetir: Procurar de todas as formas
possíveis divulgar o HEAVY METAL ROCK. Para tanto, este informativo será o ponto
de partida, para levar-lhes a idéias e as informações. (Editorial, Rock Brigade, n 01,
1982)
Ora, se por um lado os membros desta cultura não querem fazer parte da indústria cultural,
por outro, parecem desejar fazer parte dela, lutando para ser reconhecida e valorizada por ela.
Caso contrário, a intenção destes meios não poderia ser divulgar de todas as formas possíveis.
Em poucos anos, o fanzine começou a receber novos colaboradores, a aumentar o número de
páginas, ter capa colorida e manter periodicidade mensal. A Rock Brigade cresceu, se tornou
editora e também gravadora com o selo Rock Brigade Records, que assim como a revista é
especializado em heavy metal.
Desta forma a Rock Brigade passou de um simples fanzine fotocopiado à mais importante
revista do estilo durante os anos 90, sendo publicada inclusive na Argentina, tendo seu período
de maior êxito de vendas entre a década de 1990 e o começo dos anos 2000, quando chegou
a atingir a tiragem de 60 mil exemplares mensais (SILVA, 2008, p. 37). Ainda na década de 90,
novas revistas especializadas em heavy metal como a Valhalla e a Roadie Crew percorreram
os passos da Brigade, passando de fanzines à revistas, dividindo um nicho que até então
era dominado unicamente pela Rock Brigade. Os efeitos desta divisão de mercado, aliado à
popularização da internet e abertura de outros canais de produção e difusão de informações
especializadas, causariam grandes dificuldades para a Rock Brigade na década seguinte.
Assim, no final de 2007, sua tiragem caiu para 15 mil exemplares (SILVA, 2008, p. 37). Tais
mudanças mercadológicas e editoriais, porém, foram muito além da tiragem da revista. A
Rock Brigade criou um site e tentou se ajustar aos novos tempos e, devido à grande queda
de vendas, retirou a distribuição da revista em bancas, mantendo apenas uma distribuição
para assinantes e para compras via internet. Ao comemorar seus 30 anos, a editora adotou
nova estratégia e voltou a fazer distribuição da revista em pequenas quantidades e em locais
específicos. Estratégia similar à dos fanzines, o que, de certa forma, traz a revista de volta à sua
origem. E assim, com 33 anos de existência, a Rock Brigade se proclama a revista de rock mais
antiga do mundo em atividade.
Como já apresentado, entre as seções da revista, estão as histórias de Roko-Loko assinadas
por Márcio Baraldi. Para assinalar as dinâmicas identitárias do movimento headbanger aqui
apontadas, escolhemos a HQ “Morte ao Falso Metal” (FIGURA 01), que exemplifica a visão de
“falsos e verdadeiros”, de “underground e mainstream” do meio. A começar pelo título, que se
tornou um bordão do gênero e é comumente utilizado pelos fãs, “zineiros” e bandas. Mesmo
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de algumas que, pelos critérios de Campoy (2010), poderiam até serem qualificadas como
mainstream, como o Manowar6.
Figura 01: “Morte ao Falso Metal”
Fonte: BARALDI, 2009.
6 O Manowar é uma banda americana famosa por se considerar uma banda adepta do “verdadeiro metal”, bradando pela
morte ao falso metal em suas letras e em seus shows. Entretanto, a banda também sofre com seu próprio discurso, pois parte
do público heavy metal os considera falsos, seja por ser uma banda que alcança grande espaço na mídia ou pela forma quase
cômica que este discurso possui quando levado mais a sério por alguns fãs. Por outro lado, o Manowar é conhecido por ter
fãs extremamente fiéis, como pede o estilo.
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A história começa com o personagem Roko-Loko indo dormir. Para relaxar resolve ouvir uma
balada. O segundo quadro mostra um fã de metal extremo abrindo a porta com um pontapé
e um machado na mão. Embora Márcio Baraldi não use a palavra “metal extremo”, sabemos
que o invasor é um fã deste estilo pelas suas vestimentas e acessórios, com pulseira de pinos e
correntes, além do colete de balas de fuzil e a roupa preta, itens comuns no gênero. No balão
do invasor, desenhado para evidenciar um grito do personagem, encontramos uma tradicional
saudação entre os roqueiros: “Hail”, seguida pela acusação de “traidor”. Afinal, o verdadeiro
fã de metal não pode ouvir balada e, por isso, Roko-Loko deve ser punido pelo crime. Notamos
também a agressividade do personagem pelos tipos de balões usados por Baraldi, indicada
pelo formato dos balões de grito e na palavra destacada em vermelho (que remete à sangue).
Em seguida temos o julgamento, onde Roko-Loko é réu e o fã de metal extremo é acusação,
júri, juiz e executor. Roko-Loko é considerado culpado por “não ter usado roupas pretas sob
um calor de 40 graus, não ter sodomizado uma virgem, não ter invocado as legiões do inferno
e pior de tudo... por ter RIDO!!!”. Neste quadro, Baraldi aponta o radicalismo existente no
meio do heavy metal, criticando com humor o próprio meio, que em busca desta afirmação
de identidade, acaba reproduzindo determinados estereótipos e se assemelhando aos
movimentos que tenta negar.
O personagem que julga Roko-Loko continua com balões de grito, agindo agressivamente. As
palavras destacadas por Baraldi remetem aos valores do meio mais radical e extremista, que
julgariam não só Roko-Loko mas, também, o autor e seu humor: “CULPADO, PROIBIDO RIR!!!,
NÃO RIA!!!”. Além disso, numa figura de metalinguagem, no quadrinho do meio, o inquiridor
aponta o dedo para o leitor acusando-o do crime de rir da história: “E você que está lendo esta
história, não ria!!! Ou será executado também!!!”. Roko-Loko permanece em posição passiva,
com balões derretendo e suando, o que reforça esta ideia.
No último quadro, o fã radical está prestes a decapitar Roko-Loko, já que não é um “true” e, por
isso, deverá ser decapitado pelo “machado troll, aqui nas florestas norueguesas.” Aqui, Baraldi
faz referência também à uma crise de identidade que alguns fãs acabam tendo, agindo como
se vivessem na mesma realidade de seus ídolos. “Q-Que florestas norueguesas?!? Estamos no
Brasil, pô?!?”, comenta Roko-Loko.
Quando finalmente Roko-Loko será executado, a ação é interrompida por uma senhora que
segura o machado prestes a decepá-lo. Só então descobrimos que o executor é apenas um
garoto (Juninho), que é levado para casa pela mãe, puxado pela orelha. Descobrimos que o
malvado executor de Roko-Loko é, ironicamente, “só um filhinho da mamãe” que vai para
cama sem sobremesa. No último quadro, a revelação da mãe de Juninho, quando Roko-Loko
diz ter perdido o sono, muda toda a história: “Ah, bota uma baladinha para dormir que é fatal!
Meu filho sempre põe!”.
Nesta história, Márcio Baraldi usa o humor para criticar o próprio meio, evidenciando que, em
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alguns casos, esta postura radical pode ser apenas uma fachada (ou uma representação que
é acionada somente dentro do circuito do headbanger), uma tentativa de demonstrar uma
pretensa identidade underground “true”. Nesse caso, quem se apresentou como “true” é na
verdade um “falso”, de acordo com a própria definição do termo dada pelo fã de heavy metal
da história (não ouvir balada). Este pode ser um exemplo do tipo de fã que Bauman (2005)
chama de déclassé:
Como Jean-Paul Sartre afirmou de modo admirável, para ser burguês não basta
ter nascido na burguesia – é preciso viver a vida inteira como burguês! Quando se
trata de pertencer a uma classe, é necessário provar pelos próprios atos, pela “vida
inteira” - não apenas exibindo ostensivamente uma certidão de nascimento -, que de
fato se faz parte da classe a que se afirma pertencer. Deixando de fornecer essa prova
convincente, pode-se perder a qualificação de classe, tornar-se déclassé. (BAUMAN,
2005, p. 56)
Aqui devemos considerar também que este “poser” age de acordo com os estereótipos que
absorveu, acreditando que é um verdadeiro headbanger, quando reproduz intencionalmente
estas atitudes, para reforçar a imagem de si mesmo para os outros. “Tão importante quanto a
imagem que temos de nós ou que os outros têm de nós, é a imagem que nós imaginamos que
os outros têm de nós” (LUSTOSA, 2011, p. 60).
Márcio Baraldi não critica aqui o fã de metal extremo, mas este pseudo-fã, caricato, que finge
gostar de algo, mas vive mais pela aparência que pelo arrebatamento do estilo (Campoy,
2010). Embora não represente a totalidade dos fãs de metal, sendo o retrato de uma minoria
dentro desta minoria, esta imagem acaba sendo generalizada, e representando a todos os fãs
de metal para grande parte do público exterior ao meio do metal. A identidade do heavy metal
vai além da imagem e da negação ao popular. Contrapondo-se àqueles que tratam a música
como um produto alienável, uma “curtição” das horas vagas ou um som ambiente, Campoy
(2010) ressalta que a cultura roqueira está ligada à rejeição ao mainstream, mas também
aponta elementos que demonstram que essa afirmação da identidade vai além da simples
negação mercadológica, que coloca a música como produto, descartável e/ou utilitária, sendo
mais como um estilo de vida, um arrebatamento, onde busca-se estimular a circulação da
música como um som “efetivo e significativo”.
Os praticantes do underground relacionam sua inserção neste espaço com um
encantamento que o metal extremo teria lhes causado. Essa música ultrapassou a
condição de produto; ela dotou-se de um significado a mais para estes ouvintes,
para além de um bem comercializável. Ela se transformou em um sentido, em algo
pelo qual quiseram se dedicar de alguma maneira, fazendo-a também, ouvindo-a em
shows, produzindo esses shows e estimulando sua circulação. (CAMPOY, 2010, p. 38)
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Na verdade, este discurso reflete o forte desejo dessa comunidade em promover determinada
resistência cultural ao que eles identificam como modismo e consumismo (CAMPOY, 2010;
SILVA, 2002; LEÃO, 1997), ou ainda, possivelmente, ao que Bauman (2005) chama de
Modernidade Líquida, “uma “liquefação” das estruturas e instituições sociais”. Na identidade
do headbanger, percebe-se uma busca pela solidez das estruturas sociais, numa incessante
defesa da união dos “verdadeiros”, numa luta anti-modista, bem como a rejeição daquilo
pelo que os outros desejam que você seja. Neste contexto, notamos também rejeição da
autoafirmação e a negação das identidades anteriores ou que não sejam parte do status quo
do heavy metal e da fluidez apontada por Bauman (2005), ou seja, daquilo que não consegue
manter a forma por muito tempo, que muda constantemente.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
No trabalho aqui apresentado estudamos determinadas dinâmicas presentes nos processos
identitários do headbanger. Para isso percorremos um breve histórico do movimento do heavy
metal no Brasil, que se popularizou no país após o primeiro Rock In Rio, em 1985. Conhecemos
também a revista especializada Rock Brigade que, de fã-clube, virou fanzine, depois cresceu,
se tornando uma grande editora e gravadora do segmento.
Assim adentramos no cenário cultural em que Roko-Loko está inserido. Roko-Loko é o
personagem das histórias em quadrinhos publicados na Revista Rock Brigade, assinadas por
Márcio Baraldi. Na história “Morte ao Falso Metal”, acompanhamos o julgamento de RokoLoko, acusado de não seguir ou preservar as características peculiares de um verdadeiro fã de
heavy metal. A partir disso sugerimos uma reflexão sobre processos identitários na atualidade,
tendo como foco a identidade e o circuito cultural do heavy metal, enfatizando os paradoxos
entre as ideias de underground e mainstream.
Numa cultura onde a identidade tem sido cada vez mais fragmentada e fluida, notamos que,
no circuito do heavy metal, há uma busca ou defesa por uma tradição. Apesar disso, a partir
da história apresentada, observamos que a identidade headbanger é uma manifestação
em constante transformação. O headbanger, apesar de contraditório, com valores que
se confrontam entre as diversas identidades do seu grupo, possui alguns ideologemas
profundamente enraizados. Entre eles, podemos citar a resistência à indústria cultural,
identificada pelo segmento como oposta aos valores do underground e a existência de alguns
estereótipos, hora negados com veemência, hora reproduzidos numa tentativa de se mostrar
praticante do “real” underground.
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Podemos observar que Roko-Loko não se preocupa em seguir os rótulos identitários que
classificam os headbangers em falsos ou verdadeiros. Ele só quer curtir sua música em paz,
sem se preocupar se está seguindo regras e valores ou desvalores radicais, que poderiam
classificá-lo como falso ou verdadeiro entre os roqueiros, ainda que ele se oponha aos outros
estilos comumente associados à indústria cultural, como funk, axé e sertanejo. Assim como
seu criador, muitas vezes Roko-Loko critica a postura radical dentro dos subestilos do rock e
por isso parece ser um alter ego de Márcio Baraldi. Mas, com sua camiseta amarela, tênis e
jeans surrado pode ser também a expressão de uma identidade universalizada, representando
qualquer fã de heavy metal e rock “n” roll.
Se a identidade é composta pela maneira como nos vemos e pela forma como imaginamos
ser vistos pelo outro, percebemos que headbangers parecem se ver como sujeitos unificados
pelo seu ideologema de “true”, ou verdadeiro headbanger. Uma vez comprometidos com tal
identificação, precisam lutar continuamente pela sua defesa. Assim, como discurso identitário,
o movimento do heavy metal é, ao mesmo tempo, transgressor e aprisionador. Podemos
considerar o heavy metal, portanto, como um segmento que possui uma identidade de
classe, onde evidencia determinadas expressões que, se seguidas, confirmam o fã como um
verdadeiro entre aqueles que não seguem este código de conduta implícito.
REFERÊNCIAS
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Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/Zygmunt Bauman. Tradução
Carlos Alberto Menezes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
BARALDI, Márcio. Roko-Loko e Adrina-Lina. Hey Ho... Let’s Go! São Paulo: GRRR!..., 2009.
CAMPOY, Leonardo Carbonieri. Trevas sobre a luz: o underground do heavy metal extremo
no Brasil. São Paulo: Alameda, 2010.
HALL, Stuart. Quem Precisa de Identidade?. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (Org.). Identidade e
Diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2005.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
LEAO, Tom. Heavy Metal: guitarras em fúria. São Paulo: Editora 34, 1997.
LUSTOSA, Isabel. Imprensa, Humor e Caricatura: a questão dos estereótipos culturais. Belo
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OLIVEIRA JÚNIOR, Marcos Vinícius de Oliveira. Do underground ao mainstream: uma etnografia do
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Brasília, Brasília, 2008.
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SILVA, Jaime Luis da. O heavy metal na revista Rock Brigade: aproximações entre jornalismo
musical e produção de identidade. 2008. 128 f. Dissertação (Mestrado) – Programa de PósGraduação em Comunicação e Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Porto Alegre, 2008.
SILVA, Nadilson Manoel da. Fantasia e Cotidiano nas Histórias em Quadrinhos. 1. ed. São
Paulo: Editora Annablume, 2002.
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REPRESENTAÇÃO MIDIÁTICA E SEGREGAÇÃO CULTURAL:
As várias facetas da violência na Pequena África
Ana Luiza de Figueiredo Souza1
Resumo
Dialogando com os depoimentos e fatos apresentados no curta-metragem Pequena África
(2002), de Zózimo Bulbul, o presente ensaio discute como as representações midiáticas acerca
da região e seus moradores influenciaram um quadro de segregação da cultura negra no
imaginário carioca e por que esse processo classifica não apenas uma violência, mas também
a redução da diversidade cultural da cidade.
Palavras-Chave: Representação midiática. Segregação cultural. Violência.
Abstract
Throught the dialogue between the testimonials and facts presented in the short-movie
Pequena África (2002), by Zózimo Bulbul, the essay discusses how the media coverage of the
region and its residents has influenced the segregation of black culture in the carioca imaginary
and why it is possible to classify this process not only as a form of violence, but also as a
reduction of the city’s cultural diversity.
Keywords: Media representation. Cultural segregation. Violence.
1 Graduada em Publicidade e Propaganda pela UFRJ, possui publicações em sites, revistas e periódicos acadêmicos. Trabalha
como redatora publicitária e produtora de conteúdo. Escreve para a revista digital Afronte e no blog Check-in, do coletivo
Obvious. Premiada em diferentes concursos – entre eles o 26° Concurso de Contos Paulo Leminski, o Prêmio Off Flip de
Literatura 2015 e o IX Concurso de Redação Publicitária da ALAP-Rio –, participa de seis antologias literárias, uma delas
publicada na Espanha. Em março de 2016, lançou o livro e e-book infantil O Mirabolante Doutor Rocambole (Selo Off Flip).
E-mail: [email protected]
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1. INTRODUÇÃO
Filmado em 2002, Pequena África é um curta-metragem de Zózimo Bulbul, diretor brasileiro
dedicado à temática negra (BULBUL, Zózimo, 2007). O curta recebe o nome da região que
retrata, a Pequena África, muito importante no Rio de Janeiro entre 1850 e 1920, mas existente
desde antes de 1730.
O nome se deve ao fato da população predominante na localidade ser africana ou descente
de africanos. Consequentemente, escravos e escravos libertos. No curta, a Pequena África é
apresentada através de seus próprios moradores, introduzidos pelas crianças Flávia Souza da
Cruz e Douglas Silva, também residentes na região, e pelo ator e diretor Waldir Onofre, um dos
primeiros cineastas negros do Brasil.
Por meio dos relatos e informações providos pelo curta-metragem, o presente ensaio discute
a relação entre as representações midiáticas acerca dos habitantes da Pequena África e o
tratamento a eles oferecido pela sociedade e os órgãos oficiais, associando esse processo a um
quadro maior de marginalização e exclusão da população negra da memória cultural carioca.
2. UM PASSADO QUE SE DETERIORA
No século XIX, a assim chamada Pequena África tinha uma área bastante extensa. Começava no
Porto do Rio de Janeiro e abrangia os atuais bairros da Saúde, Estácio, Santo Cristo, Gamboa e
Cidade Nova, indo até a Praça XI – totalmente remodelada na década de 1940 para a abertura
da Avenida Presidente Vargas. O curta começa com as crianças Flávia e Douglas conversando
justamente sobre o passado da região.
Um dos marcos remanescentes do período em que existia a Pequena África é a Pedra do Sal,
no Morro da Conceição. Com o propósito de servir de mirante para acompanhar a chegada
dos navios à cidade, também era usada como local de depósito de oferendas por templos afrobrasileiros das redondezas, hoje extintos.
Outro marco é a Casa da Engorda, para a qual os africanos doentes que chegavam à cidade
eram trazidos. Após se recuperarem, seguiam para o Valongo (atual Rua Camerino), onde
eram vendidos no mercado de escravos. Recentemente também foi descoberto um cemitério
de escravos, chamado de Cemitério dos Pretos Novos da Gamboa.
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O Portal Arqueológico Pretos Novos é um site dedicado a compartilhar as descobertas
realizadas pelos profissionais que analisam e catalogam o material recuperado no cemitério.
Por enquanto, foram encontrados aproximadamente 5.563 fragmentos nas escavações do
sítio arqueológico. Após análise antropológica e biológica, foi possível identificar 28 corpos,
em sua maioria do sexo masculino, com idades entre 18 e 25 anos (Portal, 2016). Os corpos
haviam sido cremados, o que mais tarde os historiadores revelaram como um processo para
acelerar o sepultamento, evitando que ficassem expostos por muito tempo e cedendo espaço
para novos cadáveres.
Também foi possível identificar marcas de fraturas, infecções e desnutrição nas ossadas
examinadas, bem como modificações corporais que denunciavam sua procedência africana.
Entre elas, a presença de entalhes nos dentes da arcada superior dos crânios, atividade típica de
vários povos de origem Bantu para rituais de iniciação, identificação tribal ou embelezamento.
Por meio da correspondência entre as morfologias dos corpos encontrados e as características
físicas de determinados povos africanos – bem como seus respectivos artesanatos –, foi
possível estabelecer que no Rio de Janeiro predominavam as principais etnias Mina, Cabinda,
Congo, Angola, Kassange, Benguela e Moçambique (Portal, 2016).
Ao serem transportados pelos navios negreiros, pelo menos 20% dos africanos capturados não
suportavam as condições da viagem e faleciam. Por isso, logo no embarque, eram marcados
com ferro em brasa, a fim de identificarem a qual proprietário pertenciam. Em outras palavras,
seu falecimento ou sobrevivência indicava quanto prejuízo ou lucro teria o comerciante por
eles responsável. Também recebiam na pele o sinal da cruz, como prova de seu batizado no
ritual católico – o que, apesar de considerados cristãos, não garantia aos escravos falecidos
qualquer cuidado funerário durante seu enterro no Cemitério dos Pretos Novos. Era comum
que os sobreviventes fossem remarcados após o desembarque nos portos de destino.
Muitos desses cativos foram aprisionados pelos líderes de tribos africanas dominantes, que
organizavam expedições para capturar escravos nos povos vizinhos, trocando-os com os
europeus por armas, tecidos e ferramentas (Portal, 2016). Os reinos de Benin e de Daomé, por
exemplo, cresceram por meio dessa estratégia.
Quanto aos artefatos descobertos no sítio arqueológico, a maioria consistia em utensílios
de barro decorados com apliques e incisões de linhas. Também foram encontrados vestígios
de ouro, marfim, contas de vidro, metais e especiarias, reflexos do fluxo de mercadorias
introduzido pelos colonizadores na África (Portal, 2016).
A riqueza de informações levantadas pela pesquisa do material encontrado no Cemitério
dos Pretos Novos foi suficiente para classificá-lo como um dos mais importantes patrimônios
históricos da humanidade (Cemitério, 2011).
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Na metade do curta, a menina Flávia conversa com a responsável pela descoberta do cemitério,
Dona Merced Guimarães. Ela revela que o feito aconteceu por acaso, durante a realização de
uma obra para a ampliação de sua casa na Rua Pedro Ernesto, bairro da Gamboa, no ano de
1996.
Ao escavarem os buracos onde se apoiariam as colunas para o novo andar da residência, os
pedreiros descobriram várias ossadas na terra. Passado o choque, Dona Merced se lembrou
dos boatos que circulavam pela Pequena África acerca de um cemitério de escravos. Ela, então,
notificou o Centro Cultural José Bonifácio – uma organização que trabalha com o resgate da
memória do patrimônio negro da cidade –, que logo contatou o Departamento Geral do
Patrimônio Cultural, órgão da Secretaria de Cultura. Com a ajuda de arqueólogos, o cemitério
foi reconhecido como autêntico. A obra foi interrompida e o local foi oficialmente identificado
como um marco da escravidão. Anos mais tarde, transformou-se na sede do IPN, Instituto dos
Pretos Novos.
Em entrevista ocorrida em março de 2012 para o programa Campus, realizado pelo Centro de
Tecnologia Educacional da UERJ, o arqueólogo responsável pelas escavações do Cemitério dos
Pretos Novos, Reinaldo Tavares, esclareceu: “Em função das obras de revitalização da região
portuária, era importante delimitar agora esse sítio arqueológico, para que a gente [equipe de
pesquisadores] pudesse protegê-lo da especulação imobiliária e das obras que vão ocorrer na
via pública” (Programa, 2012).
Contudo, apesar da placa que o reconhece como local de comprovada relevância histórica, o
IPN ainda não faz parte das peças publicitárias da Cidade Maravilhosa, muito menos sofreu
alguma reforma significativa em sua estrutura. Assim como a Casa da Engorda e os antigos
armazéns de venda de escravos, não é mais do que uma casa velha consumida pelo tempo,
tão discreta que dificilmente um visitante se interessaria por conhecer as preciosidades que
abriga.
O curta prossegue com a menina Flávia apresentando o Cemitério dos Ingleses, localizado
diante do Cemitério dos Pretos Novos. Tombado e bem preservado, foi construído porque os
ingleses, por não serem católicos, não poderiam ser enterrados nos cemitérios já existentes na
cidade – assim como os escravos.
De acordo com o depoimento de Dona Merced para o curta-metragem, sempre existiram
rumores sobre o cemitério na região. Entretanto, nenhum órgão oficial da prefeitura se
empenhou em encontrá-lo ou pelo menos averiguar se a história era verídica. Considerandose que o local em que estaria localizado se chamava Pequena África, faria sentido encontrar
alguma coisa. Ao invés disso, optaram por preservar o cemitério inglês – talvez por se tratar de
um grupo que, apesar de minoritário, se faria ouvir mais facilmente do que os descendentes
dos escravos enterrados sob a casa velha.
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3. DESINFORMAÇÃO PLANEJADA
Segundo o sociólogo e jurista David Garland (2008), diferentes grupos sociais exercem
diferentes tipos de poder e influência. No caso da população interessada em reerguer o
cemitério de escravos, esse poder fica restrito a poucas pessoas, muitas delas habitantes da
própria localidade, humildes e sem muitos contatos – diferentemente dos interessados em
preservar o cemitério inglês, incluindo neste grupo boa parte da população carioca, que já
ouviu falar do local e sabe o quanto é antigo.
Em uma próxima cena do curta, um diálogo entre Waldir Onofre e um antigo morador revela
que o morro em que estão – localizado dentro da Pequena África – foi o primeiro morro do
Rio de Janeiro a ser habitado por escravos. Na cena seguinte, a menina Flávia comenta que as
autoridades, assim como a maioria das pessoas, não dão importância para a Pequena África.
Waldir Onofre, então, responde que elas não teriam como dar importância a algo que sequer
conhecem, sendo que quase ninguém tem conhecimento sobre a história da região.
Nas sociedades anônimas, frutos da urbanização, os processos de massificação se tornaram
necessários, já que a maioria dos integrantes dessas sociedades não pode ter acesso direto
aos acontecimentos. Nesse contexto, os meios de comunicação de massa não apenas surgem,
como ganham importância, à medida que levam até os indivíduos informações que eles não
conseguiriam alcançar por conta própria. Assim, os meios de comunicação de massa atuam
como entregadores e tradutores de acontecimentos que, por sua vez, passam a fazer parte dos
referenciais daqueles que os recebem (HOHLFELDT, Antônio, et al, 2010).
Como praticamente nenhuma informação relevante sobre a Pequena África circula na grande
mídia, o público em geral não a conhece, muito menos tem noção de sua riqueza cultural e
histórica.
4. CONSTRUINDO A OPINIÃO PÚBLICA
A cientista política Elisabeth Noelle-Neumann (1993) aponta a onipresença da mídia como
eficiente modificadora e formadora de opinião a respeito da realidade. Para ela, a influência
das mídias atinge tanto as atitudes quanto os discursos dos indivíduos.
Noelle-Neumann ainda diz que a mídia, em condições específicas em que alcance consonância,
pode ser um agente de mudança se as políticas governamentais influenciarem a população
naquela mesma direção. Ou seja, apenas a cobertura da mídia não basta, é preciso haver
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atitudes governamentais que façam com que a nova visão que se queira implementar
realmente passe a ser colocada em prática.
No caso do Brasil, as atitudes governamentais reforçam as opiniões e posturas segregadoras
existentes desde os primórdios do país em relação à população mais pobre, marginalizada, e
ao local onde moram, sendo estas atitudes reforçadas diariamente pela grande mídia através
de suas representações e abordagens. O artigo Rio de Janeiro: Estereótipos e Representações
Midiáticas (2004) demostra como as descrições estereotipadas das favelas e seus moradores
feitas por jornais de grande circulação coincidiam tanto com discursos de pânico das camadas
médias cariocas quanto com ações governamentais segregacionistas, promovendo inclusive a
repressão de práticas e atividades culturais nessas mesmas regiões.
O filósofo estadunidense Douglas Kellner (2001) classifica como política de identidade a
afirmação e defesa da singularidade cultural de grupos oprimidos ou marginalizados, o que
realça o papel crucial da mídia na formulação, reconhecimento e legitimação de critérios e
modelos daquilo que significa ser moral ou imoral, atraente ou feio, adequado ou inadequado.
No entendimento da pesquisadora Kathryn Woodward:
A representação, compreendida como um processo cultural, estabelece identidades
individuais e coletivas e os sistemas simbólicos nos quais ela se baseia fornecem
possíveis respostas às questões: Quem eu sou? O que eu poderia ser? Quem eu
quero ser? Os discursos e os sistemas de representação constroem os lugares a
partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir dos quais podem falar.
(WOODWARD, Kathryn, 2000, p. 17)
Segundo o teórico John Street, a avaliação que os indivíduos fazem de si mesmos e de seus
interesses, sob o influxo crescente dos referenciais midiáticos, interfere de forma substancial
nas demandas políticas que expressam ou deixam de postular (STREET, John, apud FREIRE
FILHO, João, et al, 2004, p. 2).
A veiculação maciça de representações desfavoráveis sobre os grupos menos privilegiados
costuma ser feita pelo uso de estereótipos (FREIRE FILHO, João, et al, 2004). Na definição
de Walter Lippmann (2008), estes seriam construções simbólicas contrárias à ponderação
racional e resistentes à mudança social.
Ao disseminarem representações inadequadas de classes sociais e outras comunidades,
os meios de comunicação de massa criam um problema para o processo democrático, que
demanda a opinião esclarecida de cada cidadão a respeito de questões da vida social e política.
Como os estereótipos amplamente divulgados são aquilo a que os membros das sociedades
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da informação têm mais acesso, é a partir deles que a esfera social será organizada.
Entretanto, tais estereótipos impediriam qualquer maleabilidade de pensamento na
apreensão, avaliação ou comunicação de uma realidade, visando reproduzir as já vigentes
relações de poder, exploração e desigualdade. Entre esses estereótipos estaria, por exemplo,
a predisposição natural dos negros para atividades físicas – trabalhos braçais, esportes ou
dança –, em detrimento de tarefas e ocupações intelectuais, numa tentativa de justificar sua
escassa presença nos níveis superiores de ensino em sociedades regidas pela democracia
racial. (FREIRE FILHO, João, et al, 2004).
Os estereótipos, então, reduziriam toda a variedade de características de um povo, etnia,
gênero, classe social e/ou “grupo desviante” (apud FREIRE FILHO, João, et al, 2004) a alguns
poucos atributos essenciais: traços de personalidade, indumentária, linguagem verbal e
corporal, almejos, entre outros fatores tomados como naturais. Tal conhecimento intuitivo
sobre o Outro desempenha papel central na construção dos discursos do senso comum,
ajudando a demarcar fronteiras simbólicas entre o normal e o anormal, o integrado e o
desviante, o aceitável e o inaceitável, enquanto condenam a um exílio simbólico tudo aquilo
que não se encaixa ou que é diferente (JAMESON, Fredric,1994).
Se, por um lado, a mídia pode promover uma integração sociocultural de caráter heterogêneo,
onde culturas locais ou minoritárias consigam espaço significativo de expressão, por outro
lado é nos meios de comunicação de massa que se desenvolve grande parte dos processos de
estigmatização (construção de estereótipos) ou mesmo de criminalização dessas culturas, já
que é ali onde a realidade social, com seus acontecimentos e rituais, ganha sentido (FREIRE
FILHO, João, et al, 2004).
Desse modo, as disputas em torno da representação social, que implicam necessariamente
discutir os estereótipos midiáticos, tornam-se questões ético-políticas. Nas palavras de
Norman Fairclough, um dos fundadores da análise crítica do discurso:
A prática discursiva é constitutiva tanto de maneira convencional como criativa:
contribui para reproduzir a sociedade (identidades sociais, relações sociais,
sistemas de conhecimento e crença) como é, mas também contribui para formá-la
(FAIRCLOUGH, Norman apud FREIRE FILHO, João, et al, 2004, p. 23).
Noelle-Neumann (1993) defende que o que causaria o alastramento de determinada versão
dos fatos (ou grupos) seria uma tendência de os jornalistas produzirem o que a pesquisadora
chamou de “uma consonância irreal” ao relatarem os acontecimentos. Segundo ela, as
pessoas teriam a capacidade de apreender o que ela denominou de “clima de opinião”,
independentemente de seu próprio posicionamento. Ao perceberem – ou imaginarem –
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que a opinião da maioria das pessoas difere da sua, os indivíduos em um primeiro momento
acabam se calando e, posteriormente, adaptam seus discursos – percebidos coletivamente
como opiniões – ao que eles imaginam ser o posicionamento da maioria da população.
Assim, a opinião pública é, na verdade, a opinião da maioria que pode e chega a se expressar
livremente, na medida em que tem acesso aos meios de comunicação. Evidentemente isso
exclui da grande mídia opiniões e discursos de grupos que não tenham tanto acesso ou
influência sobre os meios comunicacionais, permitindo que os estigmas e estereótipos sobre
eles continuem circulando com amplitude.
5. O LUGAR DO NEGRO
No mesmo diálogo entre Waldir Onofre e o habitante local, é revelada a origem da primeira
comunidade dentro da Pequena África a habitar um morro – o mesmo em que reside o
entrevistado. Carente e afastada, foi o lar de escravos que haviam lutado na Guerra do Paraguai
na esperança de, com isso, serem incorporados ao exército, como lhes fora prometido.
Percebendo que a promessa não se cumpriria, os escravos partiram para construir as primeiras
casas ao pé de um dos morros da Pequena África, gerando, assim, sua primeira favela.
Essa breve passagem já é uma amostra de como a população negra era tratada no Brasil
durante o regime escravocrata, bem como suas consequências após a abolição da escravatura.
O negro tinha um lugar pré-determinado na sociedade brasileira: servir a um senhor ou a um
fim. No caso, a finalidade em questão era aumentar o efetivo para enfrentar as tropas inimigas
na guerra. O embate, por sua vez, não era um dos muitos conflitos civis que assolavam o país
– sendo vários deles inclusive liderados por negros e escravos; era uma guerra oficial. Uma vez
cumprida esta finalidade, não havia motivos para que o negro ocupasse algum outro lugar na
vigente estrutura social. Assim, os combatentes viram-se forçados a se encaixar no único lugar
que lhes restava: o do marginalizado, o do excluído socialmente.
De acordo com os moradores entrevistados no curta, os habitantes das primeiras comunidades
da Pequena África constantemente sofriam perseguições, tanto da polícia quanto da população
de modo geral. Os ataques só não eram mais constantes porque no interior da Pequena África
a maioria dos moradores lidava com os mesmos problemas e, por isso mesmo, estava disposta
a se ajudar. Até porque havia muitos parentes e amigos entre os vizinhos.
Por temerem represálias, os moradores quase não saíam dos arredores da Pequena África,
o que lhes dava menos chances de se defenderem do modo como eram retratados tanto
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pelos jornais e folhetins quanto pelas autoridades e o senso comum. Constantemente eram
classificados como desonestos, vadios, disseminadores de doenças, articuladores de revoltas
ou qualquer coisa semelhante.
O modo como a vítima é descrita pela grande mídia – jornais, rádio e televisão – já a sentencia
culpada e exige medidas preventivas e punição (VAZ, Paulo, et al, 2006). Tal premissa pode
ser relacionada aos retratos rasos e preconceituosos sobre os moradores das comunidades
da Pequena África. Essas pessoas eram vítimas do abandono social ao qual a população negra
foi submetida durante e após o período de escravidão. Entretanto, os veículos de informação
e os discursos oficiais limitavam-se a dizer que eles estavam perturbando a ordem e, por isso,
alguma providência tinha de ser tomada.
Cabe refletir sobre como se deu esse processo. No documentário Abolição (BULBUL, Zózimo,
2012), também dirigido por Bulbul, o pesquisador e professor entrevistado Muniz Sodré
descreve a abolição da escravatura como uma farsa. De um grupo que tinha um lugar prédeterminado na sociedade – servir ao senhor –, os negros passaram a não ter lugar algum. O
trabalho manual que exerciam foi substituído pela mão de obra imigrante, em uma tentativa
de embranquecer a população e descartar um grupo que se tornara inútil.
Por mais que houvesse exceções à regra – inclusive, negros na política, senhores de terras,
comerciantes e intelectuais – a maioria dessa população foi deixada sem condições de
prosperar e ser independente.
No mesmo documentário, a pesquisadora e ativista Beatriz Nascimento revela que o Partido
Liberal, que estava no governo às vésperas da abolição, foi derrotado do dia 12 para o 13
de maio de 1888. O projeto liberal, que previa a doação de terras para os escravos libertos
e sua inserção no mercado de trabalho, foi substituído pelo projeto que facilitava a entrada
de trabalhadores imigrantes no país. Assim, a República teria sido uma tentativa de as elites
nacionais fazerem o país entrar no capitalismo sem o negro. Esse capitalismo, na verdade, fez
com o que o negro alforriado fosse excluído da sociedade brasileira, forçando-o a procurar
outras formas de resistência. A partir de então, a República passa a ser muito mais repressiva
frente ao negro do que a Monarquia, fazendo inclusive muitos deles defenderem a volta do
Império. “A questão principal da transação entre a Monarquia e a República era o negro sem
trabalho. E o homem sem trabalho não sobrevive”, finaliza Beatriz. (BULBUL, Zózimo, 2012).
Segundo Roberto Moura (1995), aos africanos trazidos diretamente para o Rio pelo tráfico
de escravos se juntaram negros baianos libertos, que, buscando emprego na capital, eram
acolhidos pelos habitantes locais. A primeira entrevista do curta Pequena África fala justamente
sobre a repercussão dessa convivência, com a entrevistada Tia Jurema contando ao menino
Douglas sobre as reuniões que aconteciam entre seus parentes – dos quais muitos eram
africanos – e os outros moradores do local.
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Além de receberem moradia e comida, os recém-chegados podiam exercer suas tradições,
principalmente na música e no culto aos orixás. Foi nesse contexto que surgiram as reuniões
entre amigos regadas a comidas típicas e a ritmos contagiantes, o que mais tarde, segundo
Moura, se transformou na feijoada de domingo e no batuque do samba.
Em um período em que a profissionalização era primitiva e a maioria da população da Pequena
África vivia do trabalho informal e mal pago, muitos se tornaram músicos e compositores para
buscar uma vida melhor e/ou preservar suas raízes. Era comum que os patrões chamassem seus
empregados para alegrarem as tardes monótonas. A abertura de contato com as elites se dava
majoritariamente por meio da música, permitindo outros tipos de aproximação posteriores.
6. O IMAGINÁRIO DAS FAVELAS
No que diz respeito à representação midiática das favelas da Pequena África, seguia-se a
mesma dualidade favela versus cidade na forma como esses locais passaram a ser descritos a
partir do século XX pela mídia, pensadores e pesquisadores, sob influência da obra de Euclides
da Cunha, Os Sertões (1902).
Segundo Licia do Prado Valladares (2007), o livro de Euclides teria influenciado as primeiras
visões sobre essas comunidades pela associação da Guerra de Canudos ao surgimento da
primeira favela reconhecida como tal, o Morro da Favela. Destarte, a maneira como o autor
descrevia a vida dos seguidores de Antônio Conselheiro no sertão baiano foi incorporada pelos
intelectuais e pela mídia para falar do estilo de vida nas favelas e do perfil da população que
as habitava.
Assim como ir para Canudos dependia da vontade de cada um, morar nas favelas passou a
ser apresentado como uma escolha, sendo que os moradores das favelas seriam ligados à
sua comunidade e não desejariam deixá-la, uma vez que esses locais fariam parte de sua
identidade. A questão da ‘identidade do favelado’ ganhou importância tanto nas ciências
sociais quanto no discurso midiático sendo, por isso mesmo, incorporada por boa parte da
própria população dessas comunidades.
Quando as favelas se tornaram um problema – primeiro por serem vistas como habitações
insalubres, logo, apresentando risco para a população; depois pela divulgação da ideia de
que se opunham esteticamente aos projetos arquitetônicos e estruturais da cidade e, mais
recentemente, por serem retratadas como locais propícios à violência e a atividades ilícitas – ,
diferentes medidas foram criadas, em diferentes épocas, para exilá-las ainda mais do restante
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da cidade, eliminá-las ou, no caso das favelas da Pequena África, ignorá-las, de modo a não ter
seu valor reconhecido pelas autoridades responsáveis.
Ao longo da história do Rio de Janeiro, a integração e a inclusão não faziam parte dos projetos
relativos à questão das favelas, muito menos a aproximação de entidades oficiais com seus
habitantes, em busca de informações que poderiam ajudar não apenas a aumentar sua
qualidade de vida e integrar as favelas à cidade, mas também a conhecer seu passado.
Um exemplo recente foi a remoção da Favela Metrô-Mangueira, localizada a cerca de 700
metros do estádio do Maracanã, onde ocorreria a final da Copa do Mundo de 2014. Mais de
600 famílias tiveram de deixar suas casas, que foram demolidas pela administração municipal.
Na época, a prefeitura justificou que a remoção da comunidade abriria espaço para o centro
comercial Polo Automotivo da Mangueira. No entanto, o Comitê Popular da Copa e Olimpíada
do Rio acreditava que o motivo das remoções era estético: a favela enfeava o entorno do
estádio mais importante da Copa (VILELA, Taís; KONCHINSKI, Vinicius, 2014). Era preciso livrarse dela.
Já as favelas da Pequena África – diretamente relacionadas à história da cidade, tão importantes
para entender a trajetória da população negra no Rio de Janeiro –, jamais fizeram parte
das visitas guiadas e passeios turísticos promovidos no entorno do recém-construído Porto
Maravilha.
7. ESQUECIMENTO E SEGREGAÇÃO
A conversa final do curta-metragem de Zózimo Bulbul acontece entre a menina Flávia, o menino
Douglas e o cineasta Waldir Onofre. Eles falam sobre a falta de informação dos cariocas em
relação à Pequena África.
Douglas diz que o local podia fazer parte do folclore da cidade. Com isso ele quer dizer que a
Pequena África poderia estar mais presente nas representações midiáticas que são feitas sobre
o Rio de Janeiro. Ele termina dizendo “Isso aqui tinha que ser um ponto turístico”, provocando
gargalhadas dos companheiros.
Eles sabem que isso é improvável, que não há interesse das autoridades e da mídia em
promover essa parte da história da cidade, uma vez que isso daria força a uma população
historicamente oprimida.
Ao não valorizar as construções que fizeram parte da trajetória da Pequena África, muito menos
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a cultura afro-brasileira moldada na região, mantém-se o negro em seu lugar de coadjuvante
histórico, renegado ao segundo plano da identidade cultural da cidade.
Esquecer quão marcante foi sua contribuição para a construção do Rio de Janeiro – sobretudo
no local que abrangia do porto de desembarque de escravos às casas onde seus descendentes
passaram a residir após a abolição –, é segregar um grupo tanto no âmbito espacial quanto no
imaginário coletivo.
Os monumentos da Pequena África só fazem sentido para seus habitantes, que conhecem sua
importância social e histórica. Fora dali essas referências não são compreendidas e o interesse
em conhecê-las é insosso. Para continuarem associando a trajetória de seus ancestrais à sua
identidade, é preciso que os moradores da Pequena África continuem a habitá-la, passando
para as gerações seguintes os relatos que escutaram de pais e avós. Instala-se então um ciclo
vicioso, no qual os conhecedores do valor da região acabam permanentemente presos a seus
limites, dificultando a saída desses relatos para além do lugar onde surgiram.
A última cena do curta é uma imagem de como está a Pequena África atualmente: desfigurada.
Reformas e alterações no planejamento urbano do Centro derrubaram casas, terreiros
e armazéns onde páginas tão importantes da história carioca foram escritas. As favelas
centenárias nas quais os escravos e seus descendentes inventaram músicas, cantos, ofícios
e formas de resistência não foram integradas aos programas de preservação ou mobilidade
urbana implementados ao longo das décadas. As edificações que marcaram o percurso dos
negros e negras na capital fluminense aos poucos foram sendo esquecidas e renegadas.
Um exemplo é o Porto Maravilha, resultado da revitalização da região portuária do Rio de
Janeiro. Mesmo erguido sobre o local que uma vez comportou o maior fluxo de tráfico de
escravos das Américas – o Cais do Valongo, renomeado como Cais da Imperatriz em 1843,
aterrado em 1911 e, atualmente, candidato a se tornar Patrimônio da Humanidade pela Unesco
(CAIS, 2016) – o projeto não considerava a possibilidade de encontrar, durante o período de
obras, tantos vestígios e objetos dos africanos que aqui chegavam na condição de cativos. O
próprio Cais do Valongo foi revelado durante as escavações de 2011, sem que antes tivesse
sido feito qualquer mapeamento da região em que, há poucos séculos, mais de um milhão de
africanos desembarcaram na cidade.
Apesar disso, o planejamento inicial do projeto não foi alterado. Mobilizações que exigiam a
preservação das descobertas realizadas foram basicamente de iniciativa popular, entre elas a
de Dona Merced, que cedeu sua residência para transformá-la no Instituto dos Pretos Novos
(IPN).
Após intervenção de instituições voltadas para a preservação e valorização da herança
africana no Brasil, O Cais do Valongo também se tornou um local protegido. Porém, tanto seu
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entorno quanto a pequena área restante do que já foi a construção original não contêm muitas
explicações sobre a história que comporta, nem o mesmo apelo visual ou publicitário recebido
por outras edificações dentro da nova região portuária.
Somando um custo estimado de 8 bilhões de reais, divididos ao longo dos quinze anos previstos
para o desenvolvimento do projeto (RIO, 2015), o Porto Maravilha possui um ponto central: o
gigantesco Museu do Amanhã, inaugurado em dezembro de 2015.
Contudo, o empreendimento não considerou a relevância da região em que foi erguido, sob a
qual foram enterrados milhares de escravos trazidos pelos navios negreiros.
Em depoimento publicado em suas redes sociais, Ronilso Pacheco, interlocutor social da ONG
Viva Rio, desabafa: “A construção do Museu do Amanhã é a afirmação de que se o passado é
de negros, ‘então não nos interessa’. Não há o que preservar. Deixem esses corpos esquecidos,
como lixo que se decompõe em aterro sanitário” (PACHECO, Ronilso, 2016).
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Violência é segregar o Outro, membro de um grupo historicamente colocado em posição de
subalternidade, não apenas em espaços físicos, mas também nos espaços culturais, na esfera
sentimental, na criação de valores e imagens; privá-lo dos próprios referenciais, bem como
impedir que o restante da população tenha o direito de conhecer mais sobre ele.
A falta de materiais sobre a cultura de um determinado grupo acarreta seu eventual
esquecimento, encerrando consigo todas as possibilidades culturais – diferentes estilos de
vida, vestimentas, danças, comidas, formas de organização social, entre outras – que nasceriam
da preservação de sua memória e importância histórica.
Através do curta-metragem Pequena África (BULBUL, Zózimo, 2007), é possível perceber que
a exclusão da cultura e da população negra do retrato nacional ainda não está extinta. Pelo
contrário, é fortalecida a cada demolição de patrimônios históricos, em cada livro didático que
não aborda passagens importantes da trajetória dos escravos cativos, fugidos e libertos, a cada
intervenção segregadora promovida por órgãos institucionalizados.
Enquanto essa exclusão permanecer tão próxima, intrínseca na esmagadora maioria dos
projetos de reestruturação da cidade, será complicado pensar em um Rio de Janeiro
culturalmente diverso ou socialmente integrado.
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REFLEXÕES SOBRE O CONSUMO DO CARD GAME: “MAGIC: THE GATHERING”
a partir dos depoimentos dos jogadores
Pedro Panhoca da Silva1
Resumo
O presente artigo analisa o perfil dos jogadores do card game “Magic: the Gathering”. Seus
motivos de seu consumo também foram avaliados, de forma qualitativa e quantitativa, por
meio de dados estatísticos recolhidos in loco e questionário respondido voluntariamente
por jogadores e fãs do jogo em questão. Tais ferramentas foram disseminadas através das
comunidades relacionadas ao mesmo nas redes sociais e com a colaboração de lojas virtuais
de cultura nerd2. Com isso, entendeu-se melhor como se criam os vínculos a este jogo de
cartas, considerado o pioneiro e preferido do público-alvo fiel a este gênero.
Palavras-chave: RPG, Jogos, Estudos do Consumo
Abstract
This article analyzes the profile of the card game players of “Magic: the Gathering”. Its reasons
for consumption were also assessed qualitatively and quantitatively, using statistical data
collected on site and questionnaires voluntarily answered by players and fans of it. These tools
were disseminaded through the communities related to the game on social networks and with
the help of virtual nerd and geek culture stores. Thus, it was better understood how to create
bonds to this card game, considered the pioneer and the preferred by its audience, loyal to
this genre.
Keywords: RPG, Games, Consumption studies
1 Especialista em Ensino de Português, Literatura e Redação (Ação Educacional Claretiana); Graduado em Letras (UNESP/
Assis). E-mail: [email protected]
2 Termo de origem desconhecida utilizado tanto para definir alguém muito dedicado aos estudos, como grande conhecedor
de determinado assunto ou até portador de conhecimento acima dos níveis previstos para a idade. É comum relacionar o nerd
a jogos de videogame, RPG, seriados de TV, filmes e desenhos animados, mas dificilmente a esportes e ambientes festivos.
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1. O QUE SÃO OS COLLECTIBLE CARD GAMES
Os famosos card games são jogos nos quais os participantes criam baralhos de jogo
personalizados buscando combinar estrategicamente suas cartas com os seus objetivos.
Geralmente, envolvem aritmética, leitura/interpretação, lógica e estratégia. O primeiro jogo
intitulado como o precursor do card game, pelo fato de apresentar os conceitos de construção
de baralho, foi o The Base Ball Card Game3.
Esses Jogos de Cartas surgiram da fusão deste conceito de cartas de colecionar com os jogos de
estratégia. Cada um possui um conjunto de regras próprias, definindo o objetivo dos jogadores,
os tipos de cartas existentes a serem usadas, e a forma como elas interferirão no curso do
jogo. Cada carta representa um elemento do jogo e possui uma caixa de texto explicativa
sobre seu(s) efeito(s) durante a partida, variando muito de jogo para jogo. O mais comum
é encontrar o padrão de jogabilidade do pioneiro Magic: the Gathering4 nos demais jogos,
no qual cada carta do baralho representa uma magia a ser executada que, de alguma forma,
interfere ou interferirá nos planos dos demais jogadores, em busca de seus objetivos. Durante
a partida algumas cartas são postas na mesa e representam elementos do jogo. Na maioria
deles as cartas simbolizam exércitos/hordas (monstros, guerreiros, criaturas mitológicas), itens
mágicos (armas, auras, veículos) e bases de controle (portais, fortalezas, castelos, esconderijos)
sob o comando do jogador, funcionando como “Gerenciamento de Recursos”.
Em Magic: the Gathering, por regra, as cartas têm um custo para serem postas na mesa. Para
pagá-lo há um tipo específico de carta que deve ser colocada em jogo antes e que paga este
custo, ou às vezes é necessário um alto preço, como o “sacrifício” de itens que se controla
(os quais podem ser “artefatos” (objetos e armas para os monstros que o jogador controla),
“encantamentos” (mágicas permanentes que o jogador controla), “criaturas” (os monstros que
compõem uma espécie de exército do jogador), “terrenos” (lugares que facilitam a entrada
das cartas das mãos do jogador para a sua mesa) quando não com parte dos próprios “pontos
de vida” (contadores que ilustram as chances do jogador sobreviver até o final da partida) que
o jogador possui.
Outra característica em comum nos diversos jogos dessa tipologia são as estampas ilustrativas
referentes ao tema do jogo, altamente desejadas e procuradas, sendo um dos maiores atrativos
de todos os card games.
3 Criado pela empresa americana The Allegheny Card Company e registrado em 05 de Abril de 1904, mas nunca publicado
oficialmente ou comercializado ao público.
4 Magic: the Gathering é um jogo de estratégia no qual os jogadores utilizam um baralho (chamado de deck) de cartas
construído de acordo com o seu modo individual de jogo a fim de vencer o baralho de seu(s) adversário(s). Criado por Richard
Garfield no ano de 1993 e comercializado pela Wizard of the Coast, a qual detém a patente da marca, é considerado o pioneiro
dos CCGs (collectible card games, ou Jogos de Cartas Colecionáveis). Todo o seu acervo de cartas pode ser visualizado em
diversos buscadores e lojas virtuais sobre o jogo, como por exemplo o site http://www.findmagiccards.com/.
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Diferente dos clássicos jogos de tabuleiro como Jogo da Vida, War, Banco Imobiliário, entre
outros, os card games dificilmente param na primeira edição de seu produto. Continuam com
expansões, atualizações, mudanças de layout, a fim de criar novas regras, cartas e produtos.
Tal novidade logo “roubou” muitos fãs do RPG de livros5, de tabuleiro6 ou Live-Action7, embora
muitos continuassem jogando o RPG simultaneamente. Eliminava-se, assim, o peso de se
transportar volumosos livros e enormes tabuleiros.
Após o sucesso comercial de Magic: The Gathering são lançados anualmente dezenas de
jogos. Este, assim como outros card games, surgiu de uma ideia de facilitar os já consagrados
RPGs e torná-lo mais dinâmico, simples e fácil de ser transportado. Como foi o pioneiro
dos CCGs (sigla comumente utilizada para Collectible Card Games), carrega a fama de ser o
CCG “clássico” e o mais jogado dentre todos os outros8. Para se jogar Magic: the Gathering,
assim como muitos outros jogos, basta apenas cada jogador ter o seu próprio baralho. Nele,
jogadores adultos “voltam” a ser jovens e vice-versa, uma verdadeira troca de estágios da
vida momentaneamente (BARBER, 2009, p. 16). O importante é ser cool, palavra amplamente
buscada e usada pelos jovens, “... o que se espera que os adolescentes sejam e tenham e que
os adultos não sejam e não possam ter” (BARBER, 2009, p. 384).
1.1 Um pouco sobre o consumo
Analisando os processos sociais como um todo, passou-se a compreender o consumo (LIMA,
2010, p. 23). Foi percebido que
...em sua mais recente fase de consumo, o capitalismo, preocupado em vender
bens a clientes que podem não precisar nem desejar o que está à venda, não é
bem servido pelas formas de identidades contidas no etos protestante nem pelas
políticas de identidade cultural dos últimos 40 anos. Com isso, o consumismo se ligou
a uma nova identidade política, na qual o próprio negócio desempenha um papel
de forjar identidades que levem a comprar e a vender. Aqui, a identidade tornou-se
um reflexo de “estilos de vida” intimamente associados a marcar comerciais e aos
produtos que elas rotulam, bem como a atitudes e comportamentos ligados a onde
5 Abreviação de Role-Playing Game, pode ser traduzido como “jogo de interpretação de personagens”, no qual os jogadores
interpretam papéis ou representam personagens em busca de um objetivo em comum através de narrativas, podendo
improvisar sempre que desejarem. Seguem-se regras pré-determinadas e o uso de dados é constantemente feito para se
determinar o (in)sucesso das ações dos mesmos. Essas determinam a direção que o jogo tomará.
6 Os primeiros a surgir nessa modalidade foram o Chainmail (1971) e o Dungeons & Dragons (1974). Os manuais originais
podem ser encontrados em https://www.dropbox.com/sh/1fkky7e0iuyx35u/0ivIzbM6yB
7 Modo de RPG mais próximo do teatro e do psicodrama, pois nele as ações extrapolam a mesa de jogo e o tabuleiro e são
encenados pelos jogadores
8 Magic: the Gathering foi também o primeiro card game a constar no hall da fama, e possui milhões de jogadores em todo
o mundo. Os outros jogos podem ser conhecidos em http://www.gamesmagazine-online.com/gameslinks/hallofame.html
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compramos, como compramos e o que comemos, vestimos e consumimos. Estes
atributos, por sua vez, estão associados à renda, classe e outras forças econômicas
que podem parecer permitir escolhas, mas que na verdade são determinadas
largamente pela demografia e pela socioeconomia, e estão além do controle de
consumidores individuais. No fim das contas, essa profunda comercialização da
identidade responde ao etos infantilista e o reflete de maneiras significativas. Como
as identidades comerciais tendem a ser simplistas e heteronômicas (determinadas
a partir de fora), bem como associadas à celebridade e aos caprichos (“Quero ser
um pop star!”), elas reforçam o etos infantilista, minando a ação, a comunidade e a
democracia (BARBER, 2009, p.190)
Mesmo sendo presas mais fáceis para o consumo, o público infantil que ingressa no jogo
precisa ter a orientação dos adultos sobre o “vício” que podem adquirir, e não serem proibidos
ou não de jogarem, pois “...são os menos complicados. São os que têm menos e, portanto,
os que querem mais. Consequentemente, estão numa posição perfeita para ser apanhados”
(BARBER, 2009, p. 41). Este vício reflete muito o comportamento do consumidor:
“...mesmo sem evocá-lo, podemos atribuir ao mercado de consumo uma ambição
de associar cada necessidade humana natural a um produto comercial artificial,
de modo que, para a necessidade ser satisfeita, o produto precisa ser comprado.
O objetivo é um vício baseado no produto, dia e noite (onipresença é sinônimo de
vício)” (BARBER, 2009, p. 267).
Com isso, “... todo estado mental e emocional exige um facilitador comercial, de preferência
que possa alimentar a dependência” (BARBER, 2009, p. 267). Aqui, nada pode ser imposto ao
jovem iniciante, seja para iniciar e permanecer na esfera consumista por muito tempo seja
para renegar seu prazer no jogar e no colecionar, e sim convidá-lo para uma reflexão sobre
o que se pretende fazer com e no card game, pois o vício não é tratado como patologia a
ser sanada, mas sim, para a esfera consumista, “... uma ambição industrial pedindo reforço”
(BARBER, 2009, p. 269), além do mesmo poder isolar o consumidor do seu ciclo de amizades
para manter, quando seu contato com o jogo chega num ponto doentio visto e analisado
por pessoas de fora desta realidade. Estes, normalmente fazem dívidas, sentem medo de
retaliação dos pais ou cônjuges e procuram esconder seu comportamento, e, aos que estão
ligados diretamente a tais consumidores, a vida se torna assustadora e imprevisível, crescendo
um sentimento de inutilidade e caos (BARBER, 2009, p. 271)
Para se entender tal consumo numa escala mais ampla, segundo Max Weber e Colin Campbell,
deve-se não só se concentrar nas motivações que levam os homens a consumir, mas considerar,
também, como se desenvolvem e se modificam seus desejos e gostos (LIMA, 2010, p. 35).
Como muitas vezes não conhecemos a intranquilidade frequente e a insatisfação generalizada
dos jovens, principalmente das crianças, ficamos incapazes de liderarmo-nas e acabamos por
culpar a indústria do consumo, gerando o estresse familiar e escolar (PAIVA, 2009, p. 41-42).
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2. METODOLOGIA
Para este estudo foi usado o método de Estudo de Casos sobre o consumo do card game
Magic: the Gathering. É importante salientar que o método é um conjunto de processos que
conduzem a investigação. Parte de uma realidade e segue procedimentos (OLIVEIRA, 1999;
FACHIN, 2001) que culminam respondendo ao objetivo do trabalho ou investigação.
Para esses procedimentos o estudo partiu do universo de jogadores desta modalidade de
card game. A amostra foi intencional e captada em locais previamente escolhidos através de
chamadas nas quais os jogadores foram convidados a participar.
O consumo em estudo foi caracterizado através de um questionário eletrônico disponível
em: <https://goo.gl/Sgoc1y>. Suas perguntas semiestruturadas e abertas sugeriram que o
respondente discorresse livremente sobre os assuntos. Esses depoimentos livres criaram uma
base complexa de ideias que foram absorvidas nos resultados e também para enriquecer a
discussão e aprofundar o conhecimento sobre o mundo dos jogadores e o consumo das cartas.
O questionário foi divulgado nos grupos fechados sobre Magic: the Gathering, nas redes
sociais e também nas lojas especializadas no gênero RPG/card game9. Os respondentes
aderiram ao trabalho por livre vontade e responderam as questões sem direcionamento ou
impedimentos do site (SALVATORE, 2010) ficando livres para responderem o que tiveram
vontade de responder.
Quanto à profundidade ou natureza da experiência, para Robert E. Stake (In DENZIN e LINCOLN,
2001) o que é condenado no método é justamente o aspecto mais interessante de sua natureza:
ele está epistemologicamente em harmonia com a experiência daqueles que com ele estão
envolvidos e, portanto, para essas pessoas constitui-se numa base natural para generalização.
Isto é especialmente importante na área de ciências sociais e sociais aplicadas nas quais os
estudos estão fundamentados na relação entre a profundidade e tipo da experiência vivida, a
expressão desta experiência e a compreensão da mesma (MYLÉNE e MAYER, 2010).
Procurou-se explorar a vivência dos inquiridos em relação aos jogos a serem investigados, o
conhecimento que se pretende alcançar e a possibilidade de generalização de estudos a partir
do método.
A elaboração do questionário seguiu um roteiro formulado através da revisão de literatura
e foi complementado após conversas com jogadores e pela vivência do autor desse artigo
nesses jogos.
9 A comunidade Magic: the Gathering Brasil do facebook (disponível em https://www.facebook.com/groups/magicthegather
ingbrasil/?fref=ts) e a ajuda das lojas Jambô (http://jamboeditora.com.br/) e Magichouse (http://www.magichouse.com.br/)
atuaram na divulgação do questionário.
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Os conceitos e bases teóricas se pautaram na literatura referente a história dos jogos, consumo
e comportamento de jogadores, mas também em revistas e manuais da literatura técnica
especializada e revistas de recreação10.
3. RESULTADOS
Foram obtidos 129 questionários respondidos durante o período em que este esteve on-line.
Pude observar que as idades dos respondentes variaram entre 15 e 55 anos, mas 80% tinham
idade entre 16 e 25 anos, sendo que a concentração máxima de jogadores foi na faixa etária de
20 a 24 anos que compôs 50% dos jogadores. A maioria deles, 86%, era solteira.
Declararam-se estudantes 39%, sendo que 56% destes não possuíam renda e outros 27%
indicaram rendas de até R$ 1.000,00. Dos não estudantes, 47% ganharam mais do que R$
1.500,00 mensais. Quanto ao grau de instrução 35% declarou cursar Ensino Fundamental e
62% Ensino Superior.
Os dois jogadores mais antigos, que começaram a jogar em 1993 e 1994, têm hoje, ano de
2016, respectivamente, 57 e 54 anos, sendo ambos casados.
81% aprenderam a jogar com os amigos e os demais compraram os seus decks (como são
conhecidos, pelos jogadores, os baralhos de jogo) e aprenderam sozinhos com leituras e
tutoriais. A maioria prioriza a própria casa e a dos amigos para as partidas, sendo que apenas
17% disseram jogar mais em lojas especializadas e em campeonatos do que em casa própria
ou de amigos.
Quanto ao momento (quando você joga?) 67% relataram jogar depois do término da aula e/
ou trabalho, 28% jogavam apenas nos finais de semana. Quanto à frequência 21% jogavam
diariamente e outros 64% semanalmente. Os demais, esporadicamente. Costumam jogar de 5
a 10 partidas, sendo que afirmam que uma partida dura em torno de 20 minutos à uma hora.
Sobre a intenção de parar de jogar, 71% dos respondentes não pretendiam parar. Quanto aos
possíveis motivos que levaram ou poderiam levar os jogadores a pararem de jogar, apareceram
citados os altos preços (59%), a falta de tempo (33%) e a falta de acompanhamento dos
lançamentos de novas cartas e edições (18%).
Apenas seis jogadores não compraram as suas cartas, os demais compraram em lojas
especializadas e 67% destes também acessaram lojas virtuais. No momento da compra quase
10 Um vasto acervo pode ser encontrado no site https://boardgamegeek.com/wiki/page/Game_Magazines
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todos foram atraídos pelas habilidades das cartas, mas 47% também foram atraídos por suas
ilustrações, e 18% além das anteriores, observaram sua raridade.
Para disputas de campeonatos 50% dos jogadores declararam possuir somente um ou dois
decks, e outros 29% afirmaram que possuem até no máximo quatro decks.
Encontrou-se que 10% dos jogadores possuíam mais de 10.000 cartas - um deles possui mais
do que 100.000 cartas -, apenas 42% dos jogadores possuíam menos que 1.000 cartas, e 50%,
de 1.000 a 10.000.
Foram preferidos os formatos Mirrodin11 por 40% dos jogadores, o Clássico12 1993 – 2003 por
35% e para 24% deles não existem preferências por tipo.
Sobre os jogos virtuais (online), apenas 19% comprou cartas para serem usadas exclusivamente
na Magiconline13.
61% acharam que os recursos virtuais como Magic Workstation14, Magiconline e Ligamagic15
estimulam o jogo presencial; 21% declararam que esses recursos não interferem e os demais
acham que são outro tipo de jogo. Somente um jogador acha que desestimula.
Quanto à memorabilia16, a maioria dos respondentes (51%) possui mais do que três itens dos
inúmeros listados.
Sobre as dificuldades para jogar que os levaria a abandonar o jogo, 65% consideraram os altos
preços, 16% citaram que seria melhor se reeditassem na íntegra os formatos antigos e 30%
reclamaram da falta de tempo que dispõem para os jogos, ou seja, as ameaças vêm do próprio
jogo.
No que se refere ao interesse por outros card games, 19% não tiveram interesse, enquanto os
demais demonstraram interesses em mais de um jogo, preferencialmente Pokemon17 e Yu-gi11 Expansão do jogo a qual introduziu um novo design nas cartas do jogo. Mais sobre esta expansão disponível em http://
magic.wizards.com/pt-br/game-info/products/card-set-archive/mirrodin e no buscador http://findmagiccards.com/Category/
Collectible-Card-Games/Magic-the-Gathering/Singles/Mirrodin.html.
12 Todas as expansões anteriores a Mirrodin, as quais possuíam o mesmo design desde o início do jogo, com poucas variações
de claridade nas imagens das cartas. Um bom exemplo pode ser visualizado em http://www.abugames.com/Magic_the_
Gathering_Edition_Guide.html.
13 Plataforma online do jogo. Informações sobre o seu funcionamento disponíveis no site https://accounts.onlinegaming.
wizards.com/AccountSignUp.aspx.
14 Software que auxilia o jogador a pensar na construção dos baralhos para jogo, além de lhe proporcionar testes online de
jogos. Informações mais detalhadas sobre o seu funcionamento disponíveis no site http://www.magicworkstation.com/.
15 Site sobre o jogo no qual há o “comércio” de cartas de jogo entre os jogadores, organização de torneios online e discussões
sobre assuntos do jogo. Seu endereço eletrônico é http://www.ligamagic.com.br/.
16 Itens dignos de serem guardados como lembrança ou memória.
17 Card Game baseado na série de desenho animado Pokemon. O jogo representa um duelo entre dois adversários os quais
desempenham a função de treinadores de Pokémon (criaturas similares a animais) concorrentes. A meta é vencer os Pokémon
do adversário com os seus próprios. Mais informações sobre este jogo disponíveis em http://www.copag.com.br/pokemon/
como-jogar/ e as regras completas em http://copag.com.br/pokemon/regras/Regras.pdf.
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oh18.
Dois jogadores chegaram a sugerir interessantes fórmulas para que um jogo fosse mais
completo (possivelmente “perfeito”) para um card game: “Sim, um (jogo) que seja simples
e competitivo e que não queira só ganhar dinheiro”, “precisaria ser muito inovador e rústico
(o respondente não foi claro) ao mesmo tempo”, “oferecer atrativos além de simplesmente o
jogo, como propaganda, desenhos animados, romances sobre a trama do mesmo, etc.”
Alguns mais esperançosos afirmaram que alguns jogos poderiam ser mais bem sucedidos
que o Magic: the Gathering e serem sérias ameaças ao “império” do mesmo: “Sim, Vampire:
the Eternal Struggle. Os jogadores são mais velhos e estáveis financeiramente, gastam mais
dinheiro porque podem”, embora o mesmo respondente reconheça que “(...) porém, o jogo
parou de ser reproduzido”. Um outro respondente sugeriu o “Spellfire, se a Wizard of the
Coast não tivesse comprado a TSR (Tactical Studies Rules Inc., uma das principais empresas
de jogos de RPG que funcionou entre os anos 1975 e 1999), seria um forte candidato”. Os
mais recentes Heartstone e Selene the Fantasy, ambos num formato impresso ou no próprio
virtual, por serem jogos de computador em plena ascensão e aceitação de público, mesmo
que muitos afirmaram ser um jogo paralelo que não influencia o Magic: the Gathering
diretamente. Poderiam também ser ameaças ao “pai dos card games” (como o Magic: the
Gathering é conhecido pelos seus fãs), mas os mesmos que levantaram tal hipótese também
reconheceram que a superação não acontecerá. Pokémon e Yugioh, por causa de suas séries
animadas, grandes propagandas através dos desenhos e pela simplicidade de jogo (no Japão,
por exemplo, Pokémon rivaliza a primeira posição de card game mais vendido e querido pelo
público ao lado do Magic: the Gathering, muitas vezes até o superando). Porém, os mesmos
respondentes que ofereceram as soluções e nos dão exemplos de card games “ameaçadores”
reconheceram que, se acaso o sucesso realmente viesse, com o tempo o bem-sucedido card
game passaria a ficar em segundo plano, superado, novamente, pelo Magic: the Gathering,
devido ao já consolidado mercado e fidelidade de seus consumidores.
O jogo passou por várias mudanças para se manter atraente e inovador ao seu público? A
maioria das respostas foi afirmativa. Muitos afirmaram que isso não interfere na temática do
jogo, que antes era separado por “cores” e agora por “guildas”, aumentando as combinações
possíveis entre baralhos e dinâmicas de jogo. O depoimento deste jogador explicou bem esta
grande mudança no jogo:
“Acirrou a rivalidade, dando nome a suas cores e um líder que o representa no card
game. Cada líder tem sua guilda antagônica (ou guildas, como por exemplo, Rakdos:
ele não tem inimigo declarado, todos são inimigos caso se coloquem no caminho
da diversão destrutiva). As guildas são um reflexo da personalidade “ingame” dos
18 Card Game baseado na série de desenho animado Yu-gi-oh. O jogo consiste na invocação de monstros e ativação de
magias e armadilhas, o que lembra muito o card game Pokemon. Mais informações sobre este jogo disponíveis e suas regras
completas em http://regras.net/jogo-yu-gi-oh/.
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jogadores (não é à toa que citei Rakdos)”.
Ou ainda “o jogo não se baseia mais em combinar cores e habilidades de cartas, pois agora as
pessoas podem combinar habilidades específicas de determinadas guildas e também o jogo se
torna mais divertido tendo duelos entre guildas nas partidas”.
Alguns até arriscaram adivinhar as intenções desta mudança: “Sim. A inserção de metagames
(ações ou estratégias utilizadas em um jogo, que vai além das regras pré-estabelecidas,
influenciando a disputa da partida) estimula cada vez mais a participar do jogo não apenas
como jogo em si, mas como parte de uma história, integrada aos efeitos das cartas.”
Os seguintes e empolgados depoimentos confirmaram esta admiração: “É como se fizéssemos
parte dela, e lutamos por ela, nos tornamos um personagem ativo da história de Ravnica
(expansão do jogo preferida entre muitos dos entrevistados exatamente pela aparição oficial
das “Guildas”)”, “Acredito que quanto maior for a ligação do público com as estórias internas
dos jogos maior será o interesse pelas cartas”, “você pode gostar de uma guilda como gosta de
um time de futebol”, “as guildas permitiram a identificação de cada jogador com suas cores e
combinações de cores favoritas”.
Acrescenta-se, também, outras temáticas como as “tribos” das expansões19 Investida20 e
Lorwyn21, a criação dos “planinautas”22 e a disponibilização das revistas em quadrinhos do
jogo23. Todas estas criações podem ter favorecido a entrada de novos players, porém tal
questão não foi aqui mencionada (apenas um jogador acrescentou esta questão). O certo é
que a expansão Ravnica: Cidade das Guildas, responsável pela criação das mesmas, facilitou
muito a inserção de neófitos: “O que é interessante é que cada uma tem uma habilidade única
e que dá para ser combinada com outras guildas. Isso torna o jogo mais fácil para pessoas
novatas que querem montar um deck base”.
19 Como são conhecidas as edições do jogo posteriores à inicial ou a uma edição principal de uma sequência, as quais dão
continuidade para que o jogo não acabe e sempre proporcione novidades aos fãs.
20 Seria preciso obter mais informação por parte do informante, pois “Investida” (Onslaught, em inglês) pode ser tanto a
expansão do jogo a qual introduziu o bloco “Investida” ou seu bloco inteiro, composto por três expansões (Investida [Onslaught],
Legiões [Legions] e Flagelo [Scourge]), cuja duração ocorreu entre os anos 2002 e 2003. Informações mais completas podem
ser encontradas em http://mtgsalvation.gamepedia.com/Onslaught (sobre a expansão), em http://mtgsalvation.gamepedia.
com/Onslaught_block (sobre o bloco completo) e em http://mtgsalvation.gamepedia.com/Onslaught_Cycle (sobre o romance
do enredo).
21 Seria preciso obter mais informação por parte do informante, pois “Lorwyn” (idem em inglês), pode tanto ser a expansão do
jogo a qual introduziu o bloco “Lorwyn” ou seu bloco completo, composto por duas expansões (Lorwyn [Lorwyn] e Alvorecer
[Morningtide]), cuja duração ocorreu entre os anos 2007 e 2008. Informações mais completas sobre esse bloco podem ser
encontradas em http://mtgsalvation.gamepedia.com/Lorwyn (sobre a expansão), http://mtgsalvation.gamepedia.com/
Lorwyn%E2%80%93Shadowmoor_block#Lorwyn_block em (sobre o bloco completo) e em http://mtgsalvation.gamepedia.
com/Lorwyn_Cycle (sobre o romance do enredo).
22 Tradução para o português de planeswalker, são magos poderosos que podem viajar através dos planos da existência. No
jogo, funcionam como fortes aliados do jogador contra seu(s) oponente(s). Mais informações em http://www.guiamagic.com.
br/planeswalker-planinauta/
23 Algumas das histórias em quadrinhos podem ser lidas gratuitamente do site http://tavernadosapopapao.blogspot.com.
br/2011/06/quadrinhos-magic-gathering.html ou mesmo adquiridas em segunda mão em sites de vendas online.
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Sobre qual(is) seria(m) a(s) edição(ões) favorita(s) dos entrevistados, as respostas variaram
demais, mas as principais entre os entrevistados foram Ravnica: Cidade das Guildas (justamente
por causa das Guildas), Theros24 (é notório como a imponência e admiração da cultura Grecoromana ainda funcionam bem como atrativo de jogos), Lorwyn e Zendikar25 pela introdução de
outra dinâmica de jogo, usando criaturas fortes como os Eldrazi26 e os Planeswalkers. Existe
tanto a preferência por cartas pelo seu uso em jogo como pelas ilustrações das mesmas.
A maioria dos respondentes demonstrou possuir um afeto pela(s) edição(ões) a(s) qual(is)
foi(ram) a(s) primeira(s) utilizada para o jogo, usada(s) para a construção de seus primeiros
decks ou coleções, com variados motivos e histórias sobre as mesmas. O mesmo vale para a(s)
carta(s) preferida(s) de cada respondente.
Os respondentes se definiram como:
5%
8%
31 %
13 %
9%
34 %
Colecionador
ex-jogador
Jogador
jogador competitivo
jogador competitivo/colecionador
jogador/colecionador
Supondo que alguém tenha seu(s) deck(s) prontos e está satisfeito com sua coleção particular,
o que será que o motiva a continuar comprando mais cartas? As respostas foram sempre
conjugadas de desejos e muitas não conseguiram exprimir corretamente o porquê, mas
72% expressaram querer melhorar os seus decks, 67% aumentar o número de cartas e 60%
atualizarem-se. Os próximos depoimentos ilustram melhor essas ideias: “melhorar meus decks/
aumentar a coleção, estocar cartas de troca, curiosidade para saber como serão as cartas das
novas edições”; “melhorar meus decks/aumentar a coleção, não sei por que, mas continuo
comprando”; “não teria interesse uma vez que minha coleção/deck me satisfaz”.
Em relação à compra avulsa (visando obter uma carta específica), 35 jogadores pagaram
24 Seria preciso obter mais informação por parte do informante, pois “Theros” (idem em inglês), pode tanto ser a expansão do
jogo a qual introduziu o bloco “Theros” ou seu bloco completo, composto por três expansões (Theros [Theros], Nascidos dos
Deuses [Born of the Gods] e Viagem para Nyx [Journey to Nyx]), cuja duração ocorreu entre os anos 2013 e 2014. Informações
mais completas sobre esse bloco podem ser encontradas em http://mtgsalvation.gamepedia.com/Theros (sobre a expansão),
http://mtgsalvation.gamepedia.com/Theros_block em (sobre o bloco completo) e em http://mtgsalvation.gamepedia.com/
Magic:_The_Gathering_-_Theros (sobre os quadrinhos do enredo).
25 Seria preciso obter mais informação por parte do informante, pois “Zendikar” (idem em inglês) pode tanto ser a expansão
do jogo a qual introduziu o bloco “Batalha por Zendikar” ou seu bloco completo, composto por três expansões (Zendikar
[Zendikar], Despertar do Mundo [Worldwake] e Ascensão dos Eldrazi [Rise of the Eldrazi]), cuja duração ocorreu entre os anos
2009 e 2010. Informações mais completas sobre esse bloco podem ser encontradas em http://mtgsalvation.gamepedia.com/
Zendikar (sobre a expansão), http://mtgsalvation.gamepedia.com/Zendikar_block em (sobre o bloco completo) e em http://
mtgsalvation.gamepedia.com/Zendikar:_In_the_Teeth_of_Akoum (sobre o romance do enredo).
26 De natureza incompreensível, são colossais criaturas sem estrutura física definida cujo sentido de existência é devorar
a energia de qualquer plano que encontrarem, dentre os muitos que transitam. Mais informações em http://mtgvortex.
blogspot.com.br/2010/03/eldrazi-arisen.html
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mais do que R$ 50,00 por apenas uma carta e sete pagaram mais do que R$ 500,00 por uma
unidade. Um comprador relatou ter pagado U$ 330,00 numa única carta e outro, o impensável
valor de R$ 12.000,00 por uma verdadeira preciosidade.
Ainda falando sobre os gastos financeiros com o jogo, obteve-se uma separarão dos jogadores/
compradores em cinco grupos diferentes, no que diz respeito ao total de gastos acumulados
por eles (aproximadamente) até o dia do preenchimento do formulário:
4%
46 %
1%
5%
44 %
alguns reais
centenas de reais
centenas de reais, milhares de reais
dezenas de reais
milhares de reais
Fechando o questionário, a pergunta mais crítica foi sobre se valeu a pena ter gastado todo
esse acumulado de reais no jogo, e apenas sete entrevistados se arrependeram (sendo que
dois destes apenas se arrependeram de terem gastado em cartas erradas, mas que comprariam
as cartas certas se pudessem voltar atrás).
3.2 Perfil dos seus jogadores
Quando os card games foram analisados em geral, o público-geral consumidor variou entre
6-24 anos sendo a maioria esmagadora os homens. Em sua maioria, também, possuem certo
respeito e carinho pelas lojas especializadas em seus card games preferidos, tornando-se fiéis
aos seus vendedores, bem como ilustradores e designers de suas cartas preferidas. Muitos
topariam trabalhar por pouco ou até de graça como playtesters (jogadores contratados
para testar um novo jogo a ser lançado no mercado), divulgadores, produtores, entre outras
atividades ou cargos relacionados apenas pelo prazer de serem mais envolvidos no(s) jogo(s)
que ama(m) (SUJARITTANONTA e WALSH, 2013, p. 794). Muitos deles são solteiros, o que
facilita a criação de laços com o jogo devido a uma maior ausência de responsabilidades
matrimoniais e/ou paternais, o que é bom para o consumo (BARBER, 2009, p.182).
De acordo com Mizuki Sakamto, Todorka Alexandrova e Tatsuo Nakajima, os jogadores dos
TCG (Trading Card Games, sigla também usada para os jogos de cartas colecionáveis, uma
variante do CCG – Collectible Card Games) tendem a se enquadrar em três categorias: aqueles
que se afastam das pessoas (dedicam-se às suas coleções particulares de cartas dandolhes valores vitais e tendem a se autossatisfazerem em seus espaços reclusos), aqueles que
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interagem com pessoas (procuram fazer amizades com os parceiros de jogo através do mesmo,
e obtêm sua satisfação juntamente aos parceiros) e aqueles que são contra as pessoas (jogam
agressivamente desejando destacarem-se como os melhores jogadores, buscando a satisfação
própria pela fama e respeito que impõem sobre os demais jogadores) (p. 350). Geralmente,
o primeiro tipo de jogador tende a ter uma paixão muito forte pelas cartas impressas, e
se diverte fazendo grandes e exclusivas coleções delas, desprezando o jogo virtual, pois
colecionar cartas digitais tende a ser muito monótono. Já o segundo tipo de jogador tende
a utilizar as duas formas de jogo para interagir com outros jogadores, virtual ou fisicamente,
embora o contato presencial entre dois ou mais players seja importante para se manter um
bom canal de comunicação durante o jogo (às vezes até presenteiam novos jogadores com
cartas e baralhos completos que sobraram de seus próprios para introduzi-los mais rápido no
jogo), além de muitos levarem suas coleções em seus fichários personalizados e oficiais nas
mesas de jogo, seja para trocá-las ou apenas expô-las por pura ostentação (WILLIAMS, 2006,
p. 92). Desta forma, confirma-se o que trocar objetos sob a forma de presentes são atividades
existentes em todas as sociedades cuja importância teórica foi muito grande (LIMA, 2010,
p.9). Os jogadores que continuam a jogar amistosamente e pelo menos uma vez por semana,
quando vistos e conhecidos por outros ex-jogadores (geralmente estes abriram mão do jogo
ao entrarem para a vida acadêmica), tendem, involuntariamente, a incentivar o retorno dos
ex-jogadores aos duelos (WILLIAMS, 2006, p. 90). Por sua vez, o terceiro tipo joga para ganhar
campeonatos, como um profissional, não tolera erros e tende a ser hipercompetitivo, gloriandose cada vez mais quanto melhor e mais conhecido for seu oponente por ele vencido, tanto no
meio físico como no virtual (p. 352), geralmente menosprezando os novatos através de seus
decks “apelões” com múltiplos e quase infinitos combos de jogo (p. 94). É muito comum estes
jogadores mais velhos e mais profissionais serem desprezados pelos jogadores “inautênticos”,
pois segundo estes os profissionais não têm o mérito de serem habilidosos por capacidade
própria, e sim um amontoado de caras e poderosas cartas juntas (WILLIAMS, 2006, p. 95)
Devido às alterações culturais na vida destes jovens, estas
“... possuem, em nossa contemporaneidade, um alcance global que transcende os
grupos, as classes sociais e as nações, repercutindo de maneira decisiva na qualidade
da vida urbana, na experiência do tempo e do espaço, assim como na construção de
nossa própria identidade” (SEVERIANO e ESTRAMIANA, 2006, p.38)
Quanto ao compromisso com outras questões, os jogadores são e reconhecem ser mais reclusos do
que extrovertidos, não têm o costume de divulgar amplamente que jogam, mas não aceitam
serem chamados de antissociais, pois os encontros para a jogatina constituem uma forma
de socialização, mesmo que para um grupo restrito de integrantes. Eles aceitariam jogadores
novos nas mesas, e até gostam, para acirrar a disputa pelas melhores posições nos grupos.
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Alguns têm receio de jogar com quem não conhecem, como em qualquer outro jogo, então
combinam previamente com outros conhecidos como realizar os jogos da melhor forma
possível: se todos jogarão com baralhos fracos, se disputarão com os melhores de cada, se
farão duelos, individuais ou coletivos, equilibrados, tudo isso de forma a garantir o deleite que
o jogo lhes oferece.
De acordo com SEVERIANO e ESTRAMIANA,
“...vale ressaltar que os hábitos de consumo e estilos de vida globalizados, pelos
quais as pessoas se identificam como pertencentes a distintos grupos sociais,
estão logicamente enraizados nas condições materiais de existência. (...) Por esse
motivo, é relevante destacar a importância dessas novas categorias de diferenciação
social baseadas nas preferências de consumo, dado que é por meio da adoção
de um “estilo de vida” e da utilização de determinados serviços que atualmente
se legitima a distância entre as classes sociais. Ao mesmo tempo,essas novas
categorias constituem elementos-chave para a compreensão das subjetividades
contemporâneas”. (SEVERIANO e ESTRAMIANA, 2006, p.66-67)
Com isso, afirma-se que a identidade humana passa a ser não resultado das interações
humanas, mas das interações mercantis (SEVERIANO e ESTRAMIANA, 2006, p.67), pois esta
“personificação” torna o consumo mais intenso, atrelando a identidade do indivíduo ao seu
modo de consumir (SEVERIANO e ESTRAMIANA, 2006, p.73). Durante os jogos, parece que
há uma dupla identidade em cada jogador, pois ao mesmo tempo em que o materialismo do
jogo é importante, se não houver interação humana, o jogo passa a ser mera coleção. Não foi
detectado, nesta pesquisa, o jogar por puro interesse ou segunda intenção.
Não há, aqui, a noção de bom ou mau gosto. Os jogadores respeitam todos os tipos de baralho
e estratégias, fazendo infinitas combinações com as seis cores de suas “mágicas” (verde, azul,
branco, preto, vermelho e incolor) em seus baralhos de jogo que podem (ou não) dar certo.
Muito mais importante, aqui, é valorizar se o baralho funciona (“joga bem”) ou não (“joga
mal”).
4. CONCLUSÃO
As crianças são os primeiros interessados nos card games, e os mais vulneráveis, mas à medida
que eles se envolvem e se encantam com as estratégias ampliam o seu rol de amizades em
torno do jogo e acabam por fixar o consumo e carregar consigo esse hábito para a idade adulta.
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É importante se reconhecer que os pais não conhecem o jogo e são induzidos pelos filhos à
compra. Mas o jogador tem consciência dos conteúdos, mesmo que ainda criança e, à medida
que alcança autonomia financeira, esse consumo se torna mais consciente, indo do impulsivo/
compulsivo ao consumo consciente e planejado.
O jogador adulto compra cards buscando o aperfeiçoamento do jogo sem se afastar do prazer
da brincadeira e, portanto, volta de algum modo à infância. Pode-se então enxergar o consumo
do Card Game “Magic: The Gathering” como um ato lúdico e ligado a uma grande fonte de
prazer tanto para a criança como para o adulto. Os jogadores costumam comprar muitas
cartas, chegando a ser relatada uma impensável quantidade de 100.000 cartas concentradas
em um único jogador. Esses jogadores compram independentemente de seus rendimentos e
continuam jogando até idades adultas.
Os consumidores de Magic: The Gathering retornam à infância não somente em termos
lúdicos, mas também sociais, talvez atenuando os pesares de suas rotinas e seus problemas
reais substituindo-os, mesmo que por alguns momentos, pela fantasia e inocência.
Desejamos ser parte deste consumo, pois, sendo-o, passamos a fazer parte da “casta”
consumidora, que passa a nos definir e confirmar o ditado que “somos o que consumimos”,
ou “somos o que tentamos ser” (BETTS apud ZILIOTTO, 2003, p.98). Mesmo sabendo que
consumimos algo ilusório, agimos como se não soubéssemos de tanto que gostamos daquilo
(FONTENELLE apud ZILIOTTO, 2003, p.106). Este consumo “... não significa tirar prazer da
brincadeira da criança, mas tirar lucro do prazer da criança. Porque simples prazeres envolvem
grandes lucros”. (BARBER, 2009, p. 113)
Não foi defendido que todos os seres são obrigados a participar de jogos. Estes são, antes
de tudo, voluntários, potenciais a quem por eles se interessarem. Porém é no jogo no qual
muitas vezes encontra-se a liberdade. “(...) As crianças e os animais brincam porque gostam
de brincar, e é precisamente em tal fato que reside sua liberdade” (HUIZINGA, 2012). Tais
participantes, quando sentem o prazer no jogo e seus momentos de liberdade nele embutidos,
passam a perceber uma necessidade de praticá-lo, geralmente no ócio, podendo até adiá-lo ou
suspendê-lo (muito a contragosto), mas normalmente o tornando um paradoxo de seriedade
e diversão. A partir do ponto que o mesmo se torna função cultural reconhecida, pode ser
classificado como um culto ou um ritual. Pouco se consegue distinguir entre um culto sagrado
e um culto de jogo, tamanha a dedicação e lealdade aos mesmos. Além de ser parecido com
cerimônias religiosas, estranhamente parece-se com festa, pois esta possui aquele caráter de
independência primeira e absoluta que se atribui ao jogo (KERÉNYI apud HUIZINGA, 2012). As
relações mais estreitas são percebidas, implicando a eliminação temporária da vida quotidiana
por meio de regras que criam uma complexa “liberdade regida por regras”. (HUIZINGA, 2012)
De qualquer forma, para quem for contra qualquer tipo de consumo deve recorrer à mobilização
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social. Outra possibilidade é aplicar nas salas de aula conferências imparciais sobre marketing,
as quais proporiam uma reflexão sobre o consumo do jovem em relação a determinado(s)
produto(s).
REFERÊNCIAS
BARBER, B. R. Consumido: como o mercado corrompe crianças, infantiliza adultos e engole
cidadãos. Rio de Janeiro: Record, 2009. 476 p.
HUIZINGA, J. Homo Ludens. São Paulo: Perspectiva, 2012. 7º ed. 256 p. (Estudos 4)
JACCOUND, M.; MAYER, R. A observação direta e a pesquisa qualitativa. In: (vários). A
pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis: Vozes, 2010.
Sociologias. N. 22.
LIMA, D. N. O.. Consumo: uma perspectiva antropológica. Petrópolis, Vozes, 2010. 64 p.
MANZATO, A. J.; SANTOS, A. B. A elaboração de questionários na pesquisa quantitativa.
[acesso em 17 set 2013]. Disponível em http://www.inf.ufsc.br/~verav/Ensino_2012_1/
ELABORACAO_QUESTIONARIOS_PESQUISA_QUANTITATIVA.pdf.
PAIVA, F. Eu era assim: Infância, Cultura e Consumismo. São Paulo: Cortez, 2009. 336 p.
SALVATORE, B.. Pesquisa de marketing: uma abordagem quantitativa e qualitativa. São
Paulo: Saraiva, 2010.
SEVERIANO, M. F.V.; ESTRAMIANA, J. L. A. Consumo, narcisismo e identidades
contemporâneas: uma análise psicossocial. Rio de Janeiro: EDUERJ, 2006.
SUJARITTANONTA, L.; WALSH, J. Game-Playing Culture in an Age of Capitalist Consumption:
Young Taiwanese and Collectible Card Games. Journal of Economics and Behavioral Studies.
v. 5, n. 11, nov. 2013), p. 792-7. [acesso em 2 set 2013]. Disponível em: http://ifrnd.org/
Research%20Papers/J5(11)7.pdf.
WILLIAMS, J. P.. Consumption and Authenticity in Collectible Strategy Games Subculture.
p. 77-99 In: J. Patrick Williams, Sean Q. Hendricks, and W. Keith Winkler (eds.) Gaming
as Culture: Essays in Reality, Identity and Experience in Fantasy Games. Jefferson, NC:
McFarland, 2006.
ZILIOTTO, D. M. Consumidor: o objeto da cultura. Petrópolis: Vozes, 2003. 168 p.
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Cidade
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A representação do espaço no Funk Consciente
Pedro Vasconcelos Costa e Silva 1
Resumo
O presente artigo faz uma breve apresentação do Funk Consciente. Um estilo musical que
se distingue dos demais Funks por meio de suas letras contestadoras e denunciativas. Nas
periferias de Belo Horizonte esta vertente musical é bastante disseminada. Neste estudo
aparece representada por MC Pablo, um jovem morador do Aglomerado da Serra. O objetivo
central do texto é lançar um olhar acerca deste universo, problematizando a discussão de
espaço e representação do mesmo por meio de autores como David Harvey e Jorge Luiz
Barbosa.
Palavras Chave: Funk. Consciente. Espaço. Música. Representação
Abstract
This article makes a brief presentation of Conscious Funk. A musical genre that differs from
other funk styles through its lyrics of political nature. In the suburbs of Belo Horizonte, this
subgenre of funk is very common. In this article it’s represented by MC Pablo, a young resident
of Aglomerado da Serra. The main objective of the text is to cast a look at this universe, to
problematize the discussion of space and the representation of it through the work of David
Harvey and Jorge Luiz Barbosa.
Keywords: Conscious Funk, Space, Music, Representation
1 Mestrando em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Email: pedrovasconceloscsilva@
outlook.com
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1. INTRODUÇÃO
A associação do gênero musical Funk à sua vertente Carioca é quase automática devido à
visibilidade midiática e a relação identitária intrínseca com a cidade do Rio de Janeiro. As
peculiaridades e similaridades rítmicas, melódicas e harmônicas constroem um gênero de fácil
identificação.
Palombini (2009)2, em uma pesquisa detalhada, descreve as origens deste estilo e discorre
sobre o processo de apropriação da cultura negra mundial pelas periferias brasileiras ao longo
do tempo, passando pelo soul e sofrendo mutações que culminaram nos subgêneros do Funk.
Este estudo propõe uma discussão a despeito de uma dessas vertentes. Aqui trataremos
da representação dos espaços da periferia de Belo Horizonte no Funk Consciente, além de
apresentar características peculiares a este estilo, distinguindo-a dos demais em uma breve
análise comparativa.
O conceito de espaço discutido por David Harvey (2012) conduzirá nossas reflexões que estão
voltadas para análise da música “Gente da nossa Gente” de MC Pablo.
De forma geral, pode-se afirmar que, grande parte destes subgêneros originalmente nasceram
nas periferias e morros das grandes cidades brasileiras, como destaca Laingnier (2008)3, e se
tornaram um movimento cultural que, além da música, envolve outros elementos como os
bailes, videoclipes e comportamentos sociais.
Ainda segundo Laingnier (2008) as vertentes mais conhecidas são: o “Melody”, um Funk
Romântico com batidas leves e dançantes, no qual predomina a temática do amor; o
“Pancadão/Proibidão”, que faz apologia ao crime organizado das comunidades de forma
clara; o Consciente, que têm por princípio a denúncia das mazelas sociais; e a versão mais
recente, o Ostentação, que traz à tona valores vinculados ao consumo de marcas famosas e
lida diretamente com os sonhos das populações jovens das periferias urbanas brasileiras.
2. UMA VISÃO DO GÊNERO
2 Carlos Palombini é professor doutor da UFMG e discorre sobre o tema no artigo “Soul brasileiro e funk Carioca”. Artigo disponível http://www.anppom.com.br/revista/index.php/opus/article/view/261/241, acesso em 10/02/2016 às 14:45
3 O pesquisador Pablo Laignier discorre sobre as diferenças e os subgêneros do funk no artigo “O lugar do Outro: situações de
estigma do funk carioca nas páginas do JB”. Artigo disponível nos anais da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação IX Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sul – Guarapuava – 29 a 31 de maio de 2008.
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Os subgêneros do Funk convivem pacificamente nos bailes que, geralmente, tocam diversos
estilos musicais. O universo simbólico compartilhado por eles normalmente é o mesmo, o
que os diferencia é a leitura de cada um sobre este espaço. No funk Consciente, a leitura e a
relação subjetiva do autor com estes elementos tornam-se fundamentais para a compreensão
deste espaço, uma vez que ele é constituído no processo relacional do sujeito com o objeto.
Parece-nos relevante lançar um olhar multiculturalista, na perspectiva que o faz Hall (2003),
sobre o universo e o espaço objetos de nossa investigação. Tal olhar só é possível a partir do
entendimento da cultura como elemento transformador que pode alterar a lógica ideológica
da verdade ocidental, do valor, da produção e, cada vez mais desde a segunda metade do
século vinte, do consumo, para o jogo de indeterminação menos excludente, para o diálogo e
para uma ressignificação simbólica da alteridade.
O sociólogo Dayrell (2001) aponta que o funk consciente é fruto da aproximação do funk com
o rap. “Em Belo Horizonte o Funk ganhou força no final da década de 80, quando os Mc’s
adaptaram as letras denunciativas do RAP à batida mais dançante dos funks que se destacavam
no Rio de Janeiro”. (DAYRELL, 2001 p.38).
Tal aproximação fez com que o Funk Consciente herdasse do RAP o caráter de denúncia. Suas
letras verbalizam a pobreza, a violência da e para com a juventude, o tráfico de drogas, além da
religiosidade na vida dos moradores. Com esta temática ele se diferenciou dos demais estilos,
não somente por suas letras, mas também pelo comportamento dos artistas envolvidos com
o “Consciente”.
Se por um lado o espaço urbano Rio de Janeiro aparece sempre de modo explícito no Funk
Carioca, por outro lado, em Belo Horizonte, o Funk Consciente traz à tona características da
periferia da cidade, contando histórias e ressaltando contextos específicos da capital mineira.
O eixo norteador de nosso estudo será a seguinte questão: em que medida o Funk Consciente
reproduz de maneira subjetiva o espaço que ele ocupa? Para tanto faremos uma breve análise
das letras da música Gente da nossa gente do Mc Pablo, um dos expoentes do funk em Belo
Horizonte, morador do aglomerado da Serra e defensor do Funk Mineiro.
O Consciente tem como ícones alguns MC’s com maior visibilidade que o próprio Pablo, tais
como: Mc Dodô, Jefinho BH, Mc Márcio e Mc Delano. Cabe aqui elucidar os aspectos que
justificaram nossa escolha. A música Gente de nossa gente foi gravada em 2014 e, desta
maneira, pode nos remeter à aspectos mais atualizados sobre o espaço de onde emergiu.
O vídeo4, criado pela produtora mineira Fluxo Produções, “viralizou” e atingiu a expressiva
4 https://www.youtube.com/watch?v=do1sLRS6Mpg/ Acesso em 09/02/2016, às 19:36.
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marca de três milhões e meio de visualizações. E por último cabe destacar a relevância
geopolítica do Aglomerado da Serra5, o maior de Minas Gerais e o segundo maior conjunto de
vilas e favelas da América Latina.
As práticas estéticas se constituem como um campo fértil para o desvendamento do espaço
socialmente construído. Incorporar a arte da representação neste estudo pode contribuir para
novas reflexões sobre os saberes geográficos e, ao mesmo tempo, entender um pouco mais
sobre os aspectos do reconhecimento do nosso ser e estar no mundo.
Partindo da noção de espaço discutida por Harvey (2012), é possível investigar de que
maneira o espaço é constituído e representado pelo funk de Pablo. O autor divide o
conceito de espaço em três aspectos fundantes: o espaço absoluto, o espaço relativo
e o espaço relacional, ambicionando integrar conhecimentos de diferentes campos em um
esforço unificador.
Se considerarmos o espaço como absoluto ele se torna uma “coisa em si
mesma”, com uma existência independente da matéria. Ele possui então
uma estrutura que podemos usar para classificar ou distinguir fenômenos. A
concepção de espaço relativo propõe que ele seja compreendido como uma
relação entre objetos que existe pelo próprio fato dos objetos existirem e se
relacionarem. Existe outro sentido em que o espaço pode ser concebido como
relativo e eu proponho chamá-lo espaço relacional – espaço considerado, à
maneira de Leibniz, como estando contido em objetos, no sentido de que
um objeto pode ser considerado como existindo somente na medida em que
contém e representa em si mesmo as relações com outros objetos. (HARVEY,
2012, p. 12).
A idéia de espaço relacional proposta por Harvey nos parece apropriada para delimitar
aspectos mais subjetivos que vamos analisar no funk. Harvey defende que os processos não
ocorrem no espaço, mas o espaço está embutido ou é interno ao processo. Assim podemos
inferir que o funk Consciente está inserido nessa relação processual que define o espaço da
periferia, no presente estudo, do Aglomerado da Serra.
5 O Aglomerado da Serra está situado na região Centro-Sul de Belo Horizonte, na encosta da Serra do Curral. A população,
de acordo com dados de 1998, é de 46.086 moradores, distribuídos em 13.462 moradias, numa área de 1.470.483 m². Dados
colhidos no site oficial da prefeitura. www.pbh.br acesso em 12/02/2016, às 17: 56.
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3. O ESPAÇO NA MÚSICA DO MC PABLO
A discussão proposta por Harvey é complexa. Aqui vamos nos ater à
possibilidade de
entender o espaço além da sua dimensão material e para fora das experiências que orbitam
seu aspecto tácito. Ele sugere que os elementos, momentos e eventos deste mundo são
constituídos da materialidade e, deste modo, nós procuramos as descrições apropriadas das
realidades materiais que nos circundam. Para isso, utilizamos representações abstratas como
palavras, imagens e gráficos. Por mais que a palavra seja abstrata, precisamos pensar no
espaço em uma dimensão ainda mais subjetiva e descolada de sua representação do material.
O autor chama a atenção para o fato de que as práticas estéticas e culturais possuem uma
determinada sensibilidade capaz de identificar os movimentos do espaço e do tempo, já que a
arte está diretamente envolvida com a construção de representações que expõem experiências
singulares.
Barbosa (2000) traz para essa discussão o conceito de representação destes espaços e nos
ajuda a entender de que maneira a música de Pablo representa e constrói, de maneira
subjetiva, o espaço que o Funk ocupa. Para ele, as representações possuem um caráter
construtivo e autônomo que comporta a percepção, interpretação e reconstrução do objeto,
além da expressão do sujeito. Segundo ele, “a representação é uma criação, por isso, plena
de historicidade no seu movimento de enunciar ou revelar pelo discurso e pela imagem o
movimento do mundo”. (BARBOSA, 2000, p. 67).
O tema central que permeia toda letra é a condição de oportunidades do jovem na favela,
que muitas vezes encontra no crime a oportunidade que a sociedade de uma maneira geral
não oferece. Pablo começa a canção descrevendo um local dotado de significado nos morros
brasileiros, fazendo um apelo para aqueles que estão nas bocas de fumo, locais onde se
comercializam as drogas nas favelas.
Essa é pra você que tá na boca de fumo. Falando pras ninfetas
que só quer o resumo/ De meia meia zero na pista de Citroen/
E pra você também que tá na boca/ Mó tempão e não tem nenhum vintém.
(MC PABLO, 2012).
Se por um lado o Funk Pancadão escancara o crime em forma de apologia, o Funk Consciente
também o tem como ponto centralizador das letras e histórias, entretanto, com um tratamento
sempre crítico e apocalíptico da vida bandida6. A história se assemelha a um conselho de
6 Vida bandida é uma gíria dos moradores representa o estilo de vida de quem vive fora da lei.
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alguém que compartilha dos mesmos anseios e angústias, mas que opta por um caminho
diferente.
Ainda no excerto da letra percebe-se que neste Funk as marcas e bens de consumo também
ganham outra conotação. O jovem próspero que consome e se relaciona com as novinhas7 do
Funk Ostentação é chamado à responsabilidade na música.
A perspectiva de representação de Lefebvre (1983), citado por Barbosa (2000, p. 19) destaca
que ela não pode ser reducionista e se limitar ao objeto externo representado, assim como
não pode ser um produto imediato da memória ou uma mimese da experiência. As marcas,
as gírias e a própria situação vivida pelo jovem da periferia cria um espaço simbólico, nem
sempre explícito. Um lugar construído por valores e experiências compartilhadas que podem
ser identificadas na letra.
Mais uma vez a guerra estourou todo mundo pede paz/ E graças ao nosso
senhor/ Mais uma vez ferindo um inocente/ E quem sofre é gente da nossa
gente/ (MC PABLO, 2012).
A canção descreve a rotina de uma comunidade que convive com a guerra de facções pelo
controle do tráfico de drogas na região. Observar a representação do espaço relacional do
Funk significa transcender a ideia de espaço fixo e ir além de seu universo simbólico.
Para Barbosa (2000), as representações interpretam a vivência e as práticas socioespaciais. Elas
passam a fazer parte destas experiências assumindo determinada importância e se tornando
uma realidade específica.
O Funk Consciente não reproduz as mazelas sociais da periferia de maneira simplista. A música
é objeto participante deste espaço, capaz de alterá-lo efetivamente. No excerto anterior, Mc
Pablo ressalta que quem sofre com a guerra do tráfico é a “gente da nossa gente”. Percebe-se
que a expressão “nossa gente” diz respeito a uma coletividade, trazendo à tona a questão da
identidade na representação.
De acordo com Barbosa (2000), na contemporaneidade, a sociedade não projeta sua identidade
codificada nas ruas, prédios e lugares. A obra de arte passa a ser sua referência. Torna-se um
ponto de visão e de observação importante desta identidade.
Nessa proposição, a representação não é a imediatez dos recortes mnésicos:
ela reinveste e reaviva estes, que não são em si mesmos nada mais do que
a inscrição de acontecimentos. Portanto, as representações não podem ser
concebidas como passivas e inertes, uma vez que se constituem de formas e
7 Novinha é o termo utilizado no funk para denominar as mulheres mais novas.
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momentos diversos que ganham superposições, alterações e transformações
historicamente determinadas. (BARBOSA, 2000, p. 12)
Ele aplica este conceito ao cinema; aqui transferimos sua reflexão para a música, que possui
um caráter de representação significativo.
E enquanto isso o menor vai maquinado/ Com o sorriso no rosto coração
dilacerado, sei que lá no fundo ele teme perder sua vida/Fazer o que? Vai
entender periferia/ Tem automática de pente alongado com o pino destravado
no mirante na Cardoso/ Não passa pela volta, que dá de vishi, maior revolta/
(MC PABLO, 2012).
A música conta a história de um jovem cooptado pelo crime. História comum nas periferias
brasileiras. A subjetividade desta música está na simbologia específica do funk feito na favela.
Quando o menor descrito na letra se encontra armado no mirante “na Cardoso”, o autor
faz referência à praça central do aglomerado, compartilhada por todos os moradores e com
múltiplas destinações.
A representação da “Cardoso” sublinha a sua percepção de espaço físico. A praça representada
na letra do funk ganha a conotação subjetiva de praça de guerra. Assim como os becos e vielas.
A guerra descreve de maneira real e metafórica a vida de quem vive no aglomerado.
O personagem “menor de idade descrito no funk” pode ser entendido de maneira abrangente.
O menino sem oportunidades que acaba no crime é uma representação de todo um contexto
que culmina nesta situação. No excerto abaixo o cantor denuncia a experiência de um jovem
em um contexto de desigualdade. Este jovem não tem nome e sobrenome, mas é real na
medida em que este contexto é experenciado por aqueles que constituem o espaço.
Dispensado do exército ele não estudou/ Tem aquele que sonhava em ser
jogador/ Aquele pequenininho a mãe que bebia abandonou/E o crime em
pouco tempo logo adotou/ (MC PABLO, 2012).
A música continua trazendo elementos específicos do Aglomerado da Serra. A seguir o autor se
refere à favela como “serrão”, apelido dado pelos próprios moradores devido a sua dimensão
geográfica.
Entre beco e vielas isto o é fato do Serrão/Falta oportunidades falta educação/
Noite após noite enche o bolso do patrão/ No meio da guerra pelo ponto/A
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biqueira faz de sua vida uma mera brincadeira/ (MC PABLO, 2012).
Além de autor, Pablo é o sujeito da música, o que reforça a ideia de espaço relacional, em que
o espaço se constitui na medida em que os objetos interagem para além da materialidade.
Deste modo, a dor da mãe e o sofrimento da “gente de nossa gente” não representa apenas
a situação factual vivida pela periferia, mas integra valores sociais e emocionais vividos por
quem faz parte deste espaço. Pablo aconselha o menor, levantando indagações acerca de
aspectos do consumo e das relações do crime no universo capitalista.
Menor eu te pergunto, aonde essa guerra vai parar? / O que você vai fazer se
uma bala te acertar/O carro não vai levar a moto vai ficar/ Nem a paixão da
novinha vai poder carregar/ Você me responde sou garoto isqueiro/” Fazer o
que né Pablo? Eu sou guerreiro/ (MC PABLO, 2012).
A violência é um aspecto importante para compreendermos o espaço que o funk ajuda a
constituir. As gírias de guerra, de armas aparecem o tempo inteiro nos funks “pancadão” e
“consciente”. Sinal de que o funk, de maneira geral, descreve um espaço comum, compartilhado
por favelas do Brasil inteiro. O que muda é o olhar que se tem sobre a violência, o referencial
subjetivo do funk Consciente que a condena e para isso sublinha valores morais como a religião
e a família, como exposto nos versos finais da música.
Guerreira é aquela que luta por você/ De joelhos pra Deus te proteger/ se
lembra dos derrames que você não tirava nada/ E ela que botava comida
dentro de casa/ Mais uma vez a guerra estourou todo mundo pede paz/ E
graças ao nosso senhor/ Mais uma vez ferindo um inocente/e quem sofre é a
gente de nossa gente. (MC PABLO, 2012).
4. CONCLUSÃO
Compreender o sentido do espaço representado pelo funk e como as diferentes espacialidades
funcionam na perspectiva deste estilo musical é fundamental para a construção de uma
imaginação geográfica diferente. A palavra espaço é complexa. Harvey (2012) diz que ela
em si possui múltiplas determinações, de modo que nenhum de seus significados pode ser
entendido de maneira isolada. O funk por sua vez possui especificidades simbólicas complexas
tornando seu total desvelamento uma tarefa que exige esforços e ferramentas que ficam
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além das possibilidades do autor deste estudo que o apresenta como um esforço inicial, uma
aproximação de um objeto deveras instigante e que se apresenta como um campo propício
para novas pesquisas e estudos.
REFERÊNCIAS
BARBOSA, Jorge Luiz. A arte de representar como reconhecimento do mundo: O espaço
geográfico, o cinema e o imaginário social. In: GEOgraphia, ano II. N.3. Rio de janeiro:
Universidade Federal Fluminense, 2000.
DAYRELL, Juarez. O rap e o funk na socialização da juventude. UFMG, departamento de
sociologia e antropologia, 2001. Tese (Doutorado).
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. In: HALL, Stuart. A identidade
Cultural na pós-modernidade. 11 ed. Rio de Janeiro: DP & A, 2006.
HARVEY, David. O espaço como palavra chave. Universidade de Nova York, 2012.
MC PABLO. Fluxo produções: gente da nossa gente, 2012.
PALOMBINI, Carlos. Soul brasileiro e funk Carioca. In: ENCONTRO DA AMPON: Música, sociedade e cultura, Universidade Federal de Minas Gerais 2009.
LANGNIER, Pablo. Lugar do Outro: situações de estigma do funk carioca nas páginas do JB. In:
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação IX Congresso de Ciências
da Comunicação na Região Sul – Guarapuava – 29 a 31 de maio de 2008.
YOUTUBE, (10/02/2014). Clipe Gente da nossa Gente: MC Pablo. Disponível em <http://
pt.fifa.com/>. Acesso em 07/02/2016.
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REFLEXÕES SOBRE A RELAÇÃO ENTRE CIDADE E CULTURA:
O uso da cultura na nova forma de gestão das cidades
Mônica Moreno-Cubillos1
RESUMO
Hoje, é comum o uso do planejamento cultural dentro de Planos Estratégicos que servem
como guia na gestão das cidades para atingir a competitividade global. Assim, a cultura é
usada como elemento para criar identidades, competir por recursos e vender mercadorias
relacionadas com a cultura popular. Isso mostra o caráter econômico que a cultura toma
porquanto procura reforçar a atratividade das cidades como centros de lazer, turismo e
consumo, gerando benefícios monetários, mas produzindo outros efeitos sociais como
marginalização de comunidades, gentrificação e desincentivo de expressões culturais.
Palavras-Chave: Cidade. Cultura. Estratégias de desenvolvimento urbano com base na cultura.
ABSTRACT
Today, it is common the use of cultural planning within Strategic Plans that guide the cities’
management to achieve global competitiveness. Thus, culture is used as an element to set up
identities; compete for resources; and sell products related to popular culture. This shows the
economic character that culture takes because it seeks to reinforce the attractiveness of cities
as centers of leisure, tourism and consumption, generating monetary benefits but producing
other social effects as marginalization of communities, gentrification and disincentive of
cultural expressions.
Keywords: City. Culture. Urban development based-culture strategies.
1 Administradora de empresas, especialista em análise de políticas públicas – Universidade Nacional da Colômbia. Mestranda
em Políticas Públicas – Universidade Federal do Maranhão. Bolsista do CNPq e membro do Núcleo África e o Sul Global. E-mail:
[email protected]
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1. INTRODUÇÃO
As cidades, como forma de organização social, têm sido amplamente estudadas nos últimos
anos. O modo do governo, sua distribuição espacial, sua forma de crescimento e as estratégias
utilizadas para tal fim, são algumas das questões analisadas. A Gestão Urbana envolve todos
estes assuntos e a relação que estes têm com o Estado, ou seja, a possibilidade deste para
intervir na questão urbana e a forma como esta intervenção orienta certos tipos de resultados.
Os objetivos da gestão urbana têm mudado com o tempo, pelo que é preciso diferenciar as
ações desenvolvidas em diferentes períodos como a Revolução Industrial, o Estado de BemEstar, ou a globalização e o neoliberalismo. Esta reflexão se concentrará na gestão urbana
deste último período.
Desta maneira, as principais perguntas que se pretendem responder são: quais as bases para
gestão das cidades neste período? Quais as estratégias implementadas para atingir seus
objetivos? Finalmente, dado este estilo de gestão, é possível falar de cidades inclusivas? Para
respondê-las, o texto está divido em quatro partes. No primeiro, apontam-se elementos
para compreender o conceito de cidade e a mudança de paradigma em seu crescimento. Em
seguida, coloca-se em evidência o papel central da cultura e seus componentes na gestão
urbana do período da globalização e do neoliberalismo explicando a evolução do seu uso,
os determinantes que fizeram dela fundamental, as estratégias comumente utilizadas e as
implicações a nível discursivo. Depois, mencionam-se alguns efeitos que as estratégias de
desenvolvimento com base na cultura provocam e certas dificuldades para sua medição.
Finalmente, apresentam-se as conclusões. O procedimento técnico utilizado foi a pesquisa
bibliográfica de textos sobre a cidade, a gestão urbana e as estratégias de desenvolvimento
urbano centradas na cultura.
2. ALGUNS ELEMENTOS PARA ENTENDER O CONCEITO DE CIDADE
Atualmente, uma das principais formas de organização social são as cidades. Estas podem ser
consideradas como ambientes artificiais que aglomeram homens e seus modos de trabalho
no que diz respeito à apropriação, construção e usos de dado espaço / território e os recursos
ambientais presentes nele.
Indiscutivelmente, não é possível falar de cidade sem o território e suas características
específicas. Este é um determinante do seu desenvolvimento através de fatores tais como a
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topografia, o tipo de solo, os materiais disponíveis na zona circundante, o clima, entre outros
(MAGNANO-LAMPUGNANI, 2003), os quais estabelecem formas particulares de ordenação e
crescimento que fazem com que exista uma pluralidade de sociedades (e cidades) mesmo que
compartilhem espaços com traços similares.
Lembrando a Lefebvre (2001), diz-se que cada sociedade cria seus espaços, os quais produzem
e reproduzem as bases da organização social e econômica. As relações sociais comportam
necessariamente uma relação com o espaço e como resultado dessas, as sociedades constroem
suas cosmogonias, tradições, costumes, crenças e estilos de vida próprios, ou seja, a cultura no
sentido antropológico do termo (BOTELHO, 2001). Assim, cultura, sociedade e ambiente são
componentes de uma triada na qual um depende dos outros (LEACH, 1965, p. 26).
Desta forma, a cidade não só pode ser pensada como uma estrutura econômica, mas também
como um centro para o intercâmbio social e cultural (ORNÉS VÁSQUEZ, 2014); portanto, o
modo como o espaço urbano é construído e está organizado influencia a vida econômica,
social, política e cultural dos cidadãos e vice-versa.
Amin (2008) descreve diferentes tipos de espaços públicos na cidade. Existem espaços abertos
como parques, mercados, ruas e praças; fechados como shoppings, bibliotecas, museus,
clubes e bares; e intermediários confinados a públicos e atividades específicos (por exemplo,
clubes de xadrez, academias ou parques para skateboards). Cada um tem regras de uso e
regulamentações que mudam frequentemente dependendo do tempo e das circunstâncias.
Em palavras de Amin:
A praça que está vazia à noite, mas lotada de pessoas na hora do almoço; a rua
que está amplamente confinada a esquipação e o trânsito, mas torna-se o centro de
protestos públicos; a biblioteca pública geralmente de sons abafados que ressoa com
o barulho de visitas escolares; o bar que muda regularmente de ser um lugar para
uma conversa a um do barulho ensurdecedor e corpos esmagados. Não há espaço
público arquetípico, apenas variegados espaços-tempos de agregação2 (AMIN, 2008,
tradução própria).
À vista disso, nestes espaços se geram dinâmicas que permitem às pessoas interatuar e criar
vínculos, além de moldar comportamentos coletivos, que como Boas propõe (PEREIRA, 2011)
está diretamente ligado ao ambiente. Em outros termos, pode-se falar que com a convivência
nestes lugares compartilhados se produzem formas de planejamento e controle da vida
coletiva, sociabilidade e cultura particulares, coesão e fragmentação.
2 The square that is empty at night but full of people at lunch-time; the street that is largely confined to ambling and transit,
but becomes the centre of public protest; the public library of usually hushed sounds that rings with the noise of school visits;
the bar that regularly changes from being a place for huddled conversation to one of deafening noise and crushed bodies.
There is no archetypal public space, only variegated space-times of aggregation.
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As cidades sempre reuniram as condições gerais para favorecer o modo de produção desde
a Revolução Industrial, especificamente a produção capitalista, (LEFEBVRE, 2001), porém
seu papel dentro da economia mundial se intensificou ao longo do tempo. Como explica
Queirós (2007) “sob o capitalismo, a estruturação do espaço urbano tende a articular-se
com os principais traços do regime de acumulação dominante, facilitando a consolidação e
aprofundamento das relações sociais que lhe são características”. No entanto, com o “boom”
da globalização, as cidades passaram a ser vistas como cenários flexíveis que concentram
serviços de cultura, educação, saúde, transportes, finanças, comércio, entre outros, mediante
o cruzamento de fatores como pessoas, mercadorias, processos e informação (HARRIS, 2006).
Por conseguinte,
pode se afirmar que o processo de globalização característico do século XXI assinala
uma clara tendência para a dispersão ou a deslocalização de processos produtivos
nas cidades ou centros populacionais, estando sua direção e gestão orientada à
integração global3 (ORNÉS VÁSQUEZ, 2014, p. 150, tradução própria).
Com tal característica, o progresso das cidades foi baseado na passagem da economia de
produção industrial para outro sustentado no fornecimento e distribuição de bens e serviços.
Com a globalização e o neoliberalismo, as cidades se desenvolvem como novos centros
cosmopolitas refletindo a parceria inovadora entre a economia e a produção de bens culturais
(RISH LERNER, 2005).
Aqui, cabe ressaltar outro aspecto relacionado com a diversidade de formações culturais
que, como conceito, tem origem no afastamento ou proximidade geográfica dos homens, nas
propriedades particulares do meio e no nível de relação que estes têm com outros grupos
(LÉVI-STRAUSS, 1980), mas com a intensificação dos processos de diáspora vividos nos últimos
tempos resulta ser um traço comum da cidade gerando efeitos políticos, econômicos, sociais e
culturais marcados pela marginalização, exclusão social, estigmatização de certas camadas da
população, desigualdade, iniquidade no acesso aos serviços e equipamentos urbanos, entre
outros.
Contudo, a diversidade da cidade não se reduz às diferenças étnicas, etárias, de gênero,
sexuais, etc. Neste caso, é preciso considerar a diversidade urbana associada a noções como
(BRANDÃO & BRANDÃO, 2013): a diversidade do espaço físico (ligada às formações topográficas
e arquitetônicas); o mix de usos do espaço, apropriações sociais ou por estilos de vida (usos
residencial, comerciais, industriais ou mistos do solo); a sobreposição ou interação de fluxos da
3 Se puede afirmar que el proceso de globalización característico del siglo XXI marca una evidente tendencia hacia la dispersión
o relocalización de los procesos productivos en ciudades o centros poblados, estando su dirección y gestión orientadas hacia
la integración global.
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mobilidade urbana e da informação; e eventos, momentos ou ciclos, em que a cidade adquire
outro tipo de diferença e significado (por datas festivas ou realização de cerimônias especiais).
3. A CULTURA NA GESTÃO URBANA NA ERA DA GLOBALIZAÇÃO E DO NEOLIBERALISMO
Como se observa, a globalização e o neoliberalismo motivaram uma mudança de paradigma
na gestão das cidades a qual tem que lidar não só com questões de ordem econômica, mas
também social e cultural. Conforme Vainer (2000, p. 77) a problemática central da questão
urbana deste período se baseia na competitividade urbana onde é preciso que as cidades
concorram (mediante elementos como o preço, a infraestrutura e a qualidade dos serviços)
pelo investimento de capital, tecnologia, e a atração de novas indústrias, negócios e força de
trabalho qualificada. Desta forma, a nova função básica dos governos municipais é a “venda”
da cidade através do marketing urbano o qual se constitui em um determinante do processo
do planejamento e da gestão, procurando que a cidade seja atraente para seus moradores
como para as pessoas de fora, razão pela qual a imagem da cidade reclama especial relevância.
No conceito de Arantes (2000, p. 11), esta geração urbanística se baseia no “gerencialismo”
que exige que as cidades sejam dotadas de um Plano Estratégico capaz de dar respostas
satisfatórias aos desafios da globalização. Este Plano tende a concentrar políticas imagemarketing ou bussiness-oriented de modo tal que a cidade se insira no nó da rede internacional,
procurando torná-la chamativa para o capital humano e financeiro privado e estrangeiro.
Neste contexto, tanto a diversidade urbana como a “cultura” e sua imensa gama de produtos
derivados são vistos como ingredientes indispensáveis da governabilidade (que nada tem a ver
com a cidadania ou a legitimidade) numa nova modalidade de gasto público (ARANTES, 1996).
Como Lysgård explica (2012) a utilização da cultura como elemento estratégico para o
desenvolvimento urbano não é um fenômeno novo. Em uma perspectiva histórica, inicialmente
seu uso pode ser percebido na Europa, no século XIX, quando a arte e a cultura foram utilizadas
na construção de nações fortes e homogêneas, esperando que estas contribuíssem para a
melhora da situação social e o nível cultural das pessoas através da construção da identidade
e da preservação do patrimônio cultural (LIMA et al., 2013). Já no século XX, a cultura foi usada
no desenvolvimento urbano antes de 1960 com menor importância na política local.
Desde 1970, a política cultural (ou seja, a intervenção entendida como a relação entre o Estado,
a sociedade e o mercado no campo cultural) ganhou um novo papel em uma administração
pública radicalizada e um regime de planejamento com foco nas comunidades locais e nos
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direitos dos grupos culturais minoritários. Como resultado, a cultura adquiriu uma posição
central como um meio para a criação de uma política de bem-estar mais justa que daria acesso
aos espaços públicos, entre outras.
Finalmente, a partir de 1980 e em diante, com o declínio do modelo do Estado de BemEstar em grandes partes do mundo ocidental e a expansão de uma ideologia neoliberal, que
resultou em cortes nos subsídios estatais (BOTELHO, 2001, p. 11), a motivação para a utilização
da cultura virou um meio para a criação de crescimento econômico, inovação e progresso
urbano, levando em conta que a eficiência do setor público e a rentabilidade se tornaram
princípios fundamentais. Porém, o debate cultural se focaliza no reconhecimento e proteção
da diversidade cultural dos povos com o que as políticas culturais foram apreciadas como
instrumento para intervir na cultura política, fundamentalmente das classes populares.
Há um consenso sobre o surgimento da cultura como estratégia principal de desenvolvimento
a partir de 1980. Por exemplo, para Arantes (2000), a mudança no paradigma se deu nos
meios de esquerda dos campi anglo-americanos quando tudo se tornou “cultural”, ideia que
se expandiu e se infiltrou por todos os domínios relevantes das arenas econômica, política e
social. Hoje em dia, a cultura não é um instrumento neutro dentro das práticas mercadológicas,
mas é parte decisiva do mundo dos negócios, e de fato, o é como grande negócio.
Por outro lado, segundo Arvanitaki (2007), durante esta década mudou a concepção de
“subsidiar” o setor cultural por “investir” no mesmo, e dez anos depois, a implementação de
políticas culturais como estratégia de desenvolvimento abrangeu uma ampla variedade de
objetivos que vai desde a geração de benefícios econômicos (mediante a criação de empregos,
o estímulo do turismo, a integração de segmentos econômicos marginalizados e a regulação,
a dinamização e a organização do consumo de bens simbólicos oferecidos pela indústria) até
a melhoria da qualidade de vida das pessoas (através da recuperação de espaços urbanos
deteriorados; a redução de infrações acometidas, a contenção da violência, etc.), a luta contra a
exclusão social, o reforço do espírito comunitário, o acesso a espaços públicos e manifestações
autóctones, entre outros (CALABRE, 2013; SIMÕES & VIEIRA, 2008; BAPTISTA, 2008; DURAND,
2001; BARBALHO, 2000; OLIVEN, 1984).
Existem diversas explicações para entender porquê as cidades optaram por usar a cultura
como base de suas estratégias de mudança e desenvolvimento. Lysgård (2012, 2013) expõe
alguns dos determinantes principais. Em primeiro lugar, o progresso baseado na cultura foi
escolhido como uma alternativa para o desenvolvimento industrial e econômico tradicional,
que não apresentou crescimento e prosperidade em muitas cidades ocidentais, o que terminou
gerando sociedades com altos níveis de desigualdade, pobreza e segregação. Neste caso, os
centros urbanos deixaram de ser vistos como núcleos industriais a ser considerados centros de
serviço e entretenimento que incorpora a diversidade urbana para atingir seus fins.
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Em segundo lugar, a economia global como um todo se transformou de forma tal que a
cultura e a economia estão mais fortemente interligadas através do economizador da cultura,
mas também de uma culturalização da economia. Em terceiro lugar, a globalização levou à
introdução de estratégias orientadas à concorrência com o que a competição entre cidades e
regiões se tornou um tema de relevância política. E, em quarto lugar, a noção do neoliberalismo
de que “tudo funciona melhor em mercados abertos” também foi significativo para a base
ideológica do planejamento que converteu as cidades em mercadorias que são embelezadas
e comercializadas da mesma maneira que outros produtos.
Portanto, os Planos Estratégicos adotados pelas cidades contêm estratégias notavelmente
encaminhadas à gestão e à promoção da cultura com atividades que incluem as artes clássicas,
os museus, o patrimônio (tangível e intangível), o turismo, a regeneração urbana, a arquitetura,
a mídia, a propaganda e o progresso social (RISH LERNER, 2005, p. 68). Esta vinculação do
desenvolvimento local com a cultura é denominada planejamento cultural (ARVANITAKI, 2007,
p. 7), o qual não só implica a análise da cultura das regiões, mas projeta o território desde a
cultura.
Assim, algumas das estratégias que vêm sendo implementadas envolvem, como primeira
medida, o uso da cultura para revitalizar a vida social pública e criar um sentido de coerência
e orgulho comum entre os cidadãos, com ênfase nos processos internos das cidades através
da criação de valor e a formação de identidades e estilos de vida, incorporando a dimensão da
diversidade como parte da tolerância e do entendimento entre todos os habitantes.
Como segunda medida, a cultura é utilizada como dinamizador econômico mediante: 1) a
atração de turistas, investidores, empresários e forças de trabalho altamente competitivas,
servindo-se de campanhas de marketing para venderem-se a si mesmas; 2) a disponibilização
de diferentes ofertas culturais e de entretenimento, assim como locais de encontro social
(equipamentos culturais, áreas de lazer e consumo e parques empresariais); 3) a candidatura
a festivais e eventos internacionais de tipo cultural, artístico e esportivo; 4) a requalificação
da arquitetura e dos monumentos artísticos e patrimoniais; e 5) a reabilitação dos centros
urbanos em declínio (QUEIRÓS, 2007).
Finalmente, como terceira medida, tem-se a cultura como bem comercial associado à cultura
popular enfocado na circulação de bens e na difusão de manifestações culturais por meio da
produção e do consumo de produtos e da aquisição e divulgação de conhecimento e informação
(LYSGÅRD, 2012, 2013), que como o classifica García Canclini (1983) estaria voltada a uma
visão do nacional-popular desde uma perspectiva mercantil que se vale do étnico desprovido
de qualquer significado social e cultural para a obtenção de receitas e o posicionamento da
imagem e o nome da cidade.
As implicações que têm este tipo de estratégias para as políticas culturais urbanas se refletem
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nas formações discursivas, que como Lysgård (2013) explica, definem o conteúdo do campo
cultural e sua relação com os sujeitos envoltos nela. Um dos discursos enfatiza no papel do
Estado como garantidor da cultura e da política cultural como o mecanismo para fortalecer
normas sociais e moldar comportamentos, que poderia estar demarcada dentro de uma visão
do nacional-popular na perspectiva estatista (GARCÍA CANCLINI, 1983).
Outro discurso ressalta a política cultural como motor econômico da sociedade apoiando o
capitalismo social através da produção, da distribuição e da comercialização de produtos e
serviços. Por último, um terceiro discurso destaca o papel da política cultural como meio para o
desenvolvimento de uma sociedade civil democrática, na inserção entre o Estado e o mercado,
com a participação dos cidadãos na tomada de decisões e execução de atividades. Esta última
resgata elementos do debate focado na democracia cultural que “tem por princípio favorecer a
expressão de subculturas particulares e fornecer aos excluídos da cultura tradicional os meios
de desenvolvimento para deles mesmos se cultivarem, segundo suas próprias necessidades e
exigências” (BOTELHO, 2001, p. 24), em outras palavras, a proteção e promoção da diversidade
cultural.
4. ALGUNS EFEITOS DO USO DA CULTURA COMO ESTRATÉGIA DE DESENVOLVIMENTO NAS
CIDADES
Como foi visto, o uso da cultura como estratégia de desenvolvimento urbano tem um caráter
fortemente econômico porquanto é um reforço da atratividade das cidades enquanto centros
de cultura, lazer, turismo e consumo (QUEIRÓS, 2007).
Desta forma, consoante com David Pratley (apud QUEIRÓS, 2007), os impactos econômicos da
cultura no contexto urbano podem se manifestar de sete formas distintas:
1. Sob a forma de receitas diretas: venda de objetos culturais, venda de bilhetes para
espetáculos, etc.; 2. Sob a forma de receitas indiretas: gastos em hotéis, restaurantes,
transportes, etc., tanto da parte dos produtores como da parte dos consumidores de
atividades culturais; 3. No mercado de trabalho, através da criação direta e indireta
de novos empregos; 4. Na atração de investimento, através da transformação da
imagem e do perfil cultural da cidade; 5. Na promoção e legitimação de operações
de reestruturação física dos espaços urbanos; 6. Na reconfiguração dos ambientes
urbanos: reabilitação urbana dos centros históricos, conservação do patrimônio
edificado, desenvolvimento de usos alternativos para edifícios devolutos, projetos
artísticos no espaço público; 7. No desenvolvimento do turismo cultural e de todas
as atividades a ele associadas (QUEIRÓS, 2007).
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Resumindo, com as políticas culturais urbanas tal como se vêm gerando, as cidades assumem
principalmente três formas descritas por Vainer (2000). Primeiro, a cidade é reificada sendo
transformada em uma coisa a ser vendida e comprada, ou seja, passa a ser considerada
uma mercadoria, porém de luxo, pois seus potenciais compradores são um grupo de elite
que inclui o capital internacional, e visitantes e usuários solváveis. Segundo, a cidade é
subjetivada, convertendo-se em uma empresa que precisa aumentar seu poder de atração
para manter sua capacidade de inovação e difusão. Para isso, além de reformas administrativas
e condicionamentos de ordem gerencial e operacional, o poder local é redefinido.
O conceito de cidade, e com ele os conceitos de poder público e de governo da cidade
são investidos de novos significados, numa operação que tem como um dos esteios
a transformação da cidade em sujeito/ator econômico [...] e, mais especificamente,
num sujeito/ator cuja natureza mercantil e empresarial instaura o poder de uma
nova lógica, com a qual se pretende legitimar a apropriação direta dos instrumentos
de poder público por grupos empresariais privados (VAINER, 2000, p. 89).
Terceiro, para poder avançar no Plano Estratégico e fazer da cidade um projeto bem-sucedido,
é preciso criar consensos sobre o quais a cidade esteja unificada. Por conseguinte, um dos
elementos primordiais para a construção deste projeto ideológico é o patriotismo de cidade.
Com esta visão de pátria, tal como Borja (apud VAINER, 2000) expõe
Os monumentos e as esculturas (pelo que representam e pelo prestigio de seus
autores), a beleza plástica e a originalidade do desenho de infraestrutura e
equipamentos ou o cuidadoso perfil de praças e jardins proporcionam dignidade à
cidadania, fazem a cidade mais visível e reforçam a identidade, incluído o patriotismo
cívico de sua gente (VAINER, 2000, p. 95).
Se bem que na maioria dos casos sejam mais valorizados os impactos nos dois primeiros tipos
de formas descritos acima, não se podem minimizar os benefícios do último. “A superação
das violências urbanas, a rejeição das diferenças ou a falta de expectativas não podem ser
combatidas unicamente através de declarações ou de campanhas públicas”4 (PAÜL I AGUSTÍ,
2013, tradução própria); contudo, ainda existem dificuldades para a avaliação deste tipo de
resultados das políticas culturais urbanas devido a, segundo Paül I Agustí (2013), a ausência
de indicadores para medir o sucesso, sendo comum o uso mais fácil para explicar tudo: o
aumento ou a diminuição do número de visitantes. Além disso, é possível acrescentar que em
4 La superación de las violencias urbanas, el rechazo a las diferencias o la falta de expectativas no se pueden combatir
únicamente mediante declaraciones o campañas públicas.
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muitas ocasiões existe uma pressão da cidadania, da mídia ou das entidades de controle em
registrar rendimentos imediatos dos gastos ou investimentos obtidos a partir de este tipo de
atuação, o que restringe a elaboração de estudos de mais longo prazo e não leva em conta que
Um dos grandes desafios da gestão pública da cultura na avaliação das ações
implementadas tem relação com os objetivos e à multiplicidade de efeitos buscados
ou por ele alcançados. As ações públicas têm que demonstrar minimamente
coerência entre o que se diz buscar e as ações postas em prática. Não existe relação
direta de causa e efeito no campo da ação cultural, o que torna complexa a avaliação.
Parte das ações interagem com o campo das mentalidades, das práticas culturais
enraizadas, necessitando de um tempo mais longo para gerarem resultados visíveis.
Nesse caso o grande desafio é o de criar projetos que não sejam desmontados a
cada nova administração, gerando um ciclo contínuo de desperdício de recursos e de
trabalho (CALABRE, 2007, p. 12).
Por isso, é necessário melhorar as ferramentas de monitoramento que, por um lado, ponham
em contexto os estados quantitativos dos impactos e externalidades encontrados, e por outro,
qualifiquem os mesmos dando conta dos aspectos secundários gerados especialmente para os
próprios moradores (BOTELHO, 2001).
Mesmo que sejam amplamente reconhecidos os impactos econômicos positivos das políticas
culturais urbanas, é importante mencionar que estas podem repercutir não tão favoravelmente
na totalidade da população. Evidentemente, quando as políticas culturais são utilizadas para
a geração de rendimentos de tipo econômico, estas terminam sendo direcionadas para um
setor socioeconômico específico capaz de consumir os bens ou os serviços produzidos. No
entanto, para Rish Lerner (2005), o desenvolvimento de uma estratégia cultural baseada no
consumo poderia trazer graves problemas no nível da comunidade local como os reduzidos
benefícios econômicos dos quais alguns moradores tiram proveito; a gentrificação vista
como o deslocamento de um grupo socioeconômico para outra área marginalizada devido ao
aumento da renda em uma área onde se aprecia crescimento do comércio ou mudança em
seus usos; e a marginalização ocasionada pela utilização da cultura para vender espaços cuja
lógica de exploração comercial leva a oferecer e promover o comércio maciço, com o apoio
dos governos locais e dos principais patrocinadores, a preços pouco permissivos.
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5. CONCLUSÕES
Como o expressa Lysgård, é evidente que “a preocupação do desenvolvimento urbano com base
na cultura, atualmente, é a articulação da economia neoliberal com a ‘cultura cool’”5 (2013, p.
185, tradução própria). Esta ligação se vale de diferentes elementos como a diversidade urbana
e submete a atenção das demandas sociais da população pobre das cidades orientada por
uma racionalidade instrumental, onde a democracia termina sendo reduzida a um “modelo
de gestão” que invisibiliza os sujeitos e a arena pública em que se expressam e defendem seus
interesses (IAMAMOTO, 2001).
Esta sujeição da cultura à lógica de mercatilização implica que esta seja só percebida através
de sua mediação por serviços ou bens físicos que devem ser produzidos e consumidos. Sendo
assim, pode se afirmar que
Os espaços da cultura e do consumo obedecem crescentemente às formas de
regulação características do “espaço cultural do mercado”, sugerido por Boaventura
de Souza Santos (1995) como o contexto em que a ação social se sujeita ou
princípio do “fetichismo da mercadoria”. Neste contexto, o cidadão converte-se em
um consumidor objeto, cuja condição social é cada vez menos uma condição de
participação cívica e cada vez mais uma condição alienada e atomizada (FORTUNA
et al., 1999, p. 93).
Como Cunningham (2012) analisa, estas políticas do lado do consumo tendem a responder
à demanda do capital internacional e da classe profissional (e turística) que têm renda
disponível para serviços culturais mais sofisticados, os quais (em alguns casos) procuram
cultivar gostos cosmopolitas e globais em vez de locais. No entanto, quando as políticas são
focadas na produção e estas recebem apoio direto do Estado ou dos privados, o dilema se
encontra na eleição das atividades, bens ou manifestações a serem subsidiadas/financiadas,
com o qual um grupo de pessoas com determinado poder financeiro termina definindo ou
dando mais importância a uma expressão em detrimento de outras (CALABRE, 2007; DURAND,
2001; BOTELHO, 2001). Sob este ponto, é evidente que as políticas para a produção exigem a
intervenção de particulares que se apresentam como parcerias entre o Estado e os privados
organizados.
Agora, nos processos de gentrificação que foram discutidos, Arantes (2000, p. 32) põe em
evidência que a requalificação dos espaços cria novos consensos para seu uso, mas também
desencadeia uma migração dos moradores tradicionais (que terminam sendo confinados em
zonas marginais) e uma reconversão dos proprietários que decidem permanecer, mas que
5 Culture-based urban development actually concerns is the articulation of neoliberal economics with ‘cool culture’.
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devem se adaptar aos padrões do gosto e do consumo impostos pelos novos residentes, então,
À medida que a cultura passava a ser o principal negócio das cidades em vias de
gentrificação, ficava cada vez mais evidente para os agentes envolvidos na operação
que era ela, a cultura, um dos mais poderosos meios de controle urbano no atual
momento de reestruturação da dominação mundial (ARANTES, 2000, p. 33).
Finalmente,
A maioria das pesquisas que se concentram em estratégias de desenvolvimento
com base em cultura tem se, no entanto, focado no potencial econômico desde uma
perspectiva cultural, enquanto as posições discursivas sobre o tipo de cultura e para
quem a cultura é destinada não têm sido discutidas e analisadas na mesma medida6
(LYSGÅRD, 2013, p. 182, tradução própria).
Isto representa um problema por quanto mesmo que se diga que as políticas culturais urbanas
pretendem a inclusão social, estas podem estar gerando o efeito contrário que, ao tornarse invisível, resulta se intensificando com o tempo. Em conclusão, como o uso da cultura
para o desenvolvimento das cidades na nova gestão urbana é determinado a partir de fluxos
comerciais, um modelo deste tipo é excludente em termos de acessibilidade, participação e
consumo (RISH LERNER, 2005, p. 89).
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6 Most research that focuses on culture-based development strategies has, however, focused on economic potential from a
culture perspective, while discursive positions concerning the type of culture and for whom the culture is intended have not
been discussed and analysed to the same extent.
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Culturas Tradicionais
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Em movimento: Recorte miúdo e singelo da tensão racial e da presença da
mulher na Capoeira Angola
Cidinha da Silva1
Oyá, Oyá, Oyá ê / Oyá Matamba de kakoroká zinguê / Oyá, Oyá, Olha
ê / Oyá Matamba de Kakoroká zinguê ô2. Eparrei Oyá!!!
RESUMO
Este texto nasceu com o propósito de um artigo para tratar a presença da mulher na Capoeira
Angola, com base em entrevistas de dois angoleiros negros seguidores da tradição de Mestre
Pastinha - Nildes Sena e Fábio Mandingo. Entretanto, os dois abordaram de maneira espontânea,
aberta e objetiva um tema que muito me inquieta: a assimetria racial nessa modalidade de
capoeira, o que serviu de mote para mudar a direção da reflexão e buscar compreender a
tensão racial presente na Capoeira Angola, além da novidade representada pelas mulheres
no período de 1990 a 2015. Essa guinada transformou o então nascente artigo em um ensaio,
permeado por subjetividades da autora e dos entrevistados.
Palavras-chave: Capoeira Angola. Gênero. Assimetria racial.
ABSTRACT
The initial purpose of this text was to write an article to address the presence of women
in Capoeira Angola based on interviews of two Black angoleiros followers of the tradition of
Mestre Pastinha- Nildes Sena and Fabio Mandingo. However, they have talked spontaneously,
openly and objectively on a topic that is very unsettling: a racial asymmetry in Capoeira
Angola. Their thoughts changed the direction of my reflection to the racial tension present in
Capoeira Angola, besides the novelty represented by women from 1990 to 2015. This shift has
transformed the nascent article in an essay permeated by subjectivity of the author and the
two respondents.
Keywords: Capoeira Angola. gender. racial asymmetry.
1 Cidinha da Silva é escritora. Tem nove livros de literatura publicados, entre eles, Racismo no Brasil e afetos correlatos (Conversê
Edições, 2013) e Sobre-viventes (Pallas, 2016). É organizadora de Africanidades e relações raciais: insumos para políticas
públicas na área do livro, leitura, literatura e bibliotecas no Brasil (FCP, 2014). É doutoranda no Programa Multi-Institucional e
Multidisciplinar em Difusão do Conhecimento – DMMDC, na Universidade Federal da Bahia – UFBA. Email: cidinha.tridente@
gmail.com
2 Ponto de Iansã - domínio público.
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1. INTRODUÇÃO
Em minha convivência com comunidades angoleiras, percebo nas pessoas brancas um
incômodo muito grande quando o tema assimetria das relações raciais entre negros e brancos
se impõe, posto que ele desestabiliza a paz racial - em minha opinião, ilusória -, criada pela
prática e convivência de pessoas diferentes no ambiente da Capoeira Angola, que tem Mestre
Pastinha3 como referência. Como lembra Muniz Sodré:
Nada disso é idílico, nem cheira a flor de laranjeira, como dizem os antigos. Por mais
peculiar que seja, toda cultura é atravessada por relações de dominação, mais ou
menos opressivas entre classes e funções sociais, e há uma história de lutas acerbas
entre povo e estamentos dominantes na Bahia (SODRÉ, 2008, p.30).
A meu ver, a tensão racial está presente todo o tempo, e mestras e mestres negros também
são refratários a discuti-la, preferindo, quando inevitável, promover o debate racial extra roda.
As reflexões de Fábio Mandingo4 e Nildes Sena5 no decorrer das entrevistas6 foram alentadoras
e robusteceram nosso lugar de fala, o do protagonismo negro nas manifestações culturais
herdadas de africanos e recriadas na Diáspora. Oxalá a leitura provoque cortes finos de adaga,
iansânicos, que tenham o poder de renovar e curar.
Por falar em Iansã, ela nos guiará no trajeto desta escrita. A cantora Maria Bethânia, emocionada
ao final do desfile da campeã Mangueira, que a homenageou no carnaval de 2016, em resposta
inteligente a mais uma pergunta tola, rogou para que Iansã nunca nos esqueça, pois sem ela
não se anda!
3 Mestre Pastinha é um dos mestres mais representativos da Capoeira Angola no século XX. Para saber mais, sugerimos a
quem nos lê um passeio pelo sítio do Instituto Nzinga de Capoeira Angola http://nzinga.org.br/pt-br/instituto_nzinga , onde
estão organizados diversos tipos de informação sobre o mestre, incluindo monografias, dissertações, imagens e teses.
4 Fábio Mandingo é um jovem senhor de 38 anos, de acordo com sua autodefinição. Pratica a Capoeira Angola desde o ano
2000, quando era anarco-punk e militava no Quilombo Cecília, organização social autogestionada, localizada nas ocupações
do Pelourinho, em Salvador (BA). É discípulo do mestre Jogo de Dentro, radicado em Campinas, SP. É professor de História,
apaixonado pelo ofício na rede pública de ensino do Estado e mestrando em Educação. A respeito do sobrenome, Fábio nos
conta que os Mandingo são uma etnia do Mali, aos quais são associados conhecimentos ocultos. São mandingueiros, plenos
de malícia e segredo para viver a vida.
5 Nildes Sena tem 47 anos, mestrado em Educação, e é arte-terapeuta junguiana. Sua dissertação versa sobre tema fulcral
nos processos de transformação da Capoeira Angola contemporânea, a presença da mulher. Não incorporamos a análise do
texto a este artigo em razão da defesa recente e da fase de ajustes posterior à avaliação da banca, pela qual passa a maioria
dos trabalhos acadêmicos antes de serem disponibilizados ao público. Sobre tema similar, sugerimos a leitura de GINGA
DE VALOR: reflexões sobre o perfil e aspectos motivacionais da mulher na capoeira, de Alessandra Gama, arte-educadora,
capoeirista e ativista da cultura na área de patrimônio imaterial. Em monografia de conclusão do curso de Educação Física
na PUC-Campinas, SP, a autora investigou o perfil sociocultural e aspectos motivacionais da participação de mulheres na
capoeira.
6 Entrevistas realizadas na casa da pesquisadora, no bairro Barris, Salvador, BA, em 14 e 20 de julho de 2015, respectivamente.
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É que Iansã é movimento. A mais pura e contraditória expressão do movimento.
É a senhora dos ventos, das tempestades, dos raios e trovões. Da mudança. Da
transformação. Da impermanência. Por isso, sem ela não se anda (DA Silva, 2016).
E como seguiremos o caminho riscado por sua adaga no ar, vejamos um pouco mais da Senhora
dos Ventos, dos Raios e das Tempestades pelo olhar do antropólogo Marlon Marcos. Assim ele
nos introduz ao seu reino:
Dos orixás cultuados no Brasil, um dos mais populares é Oyá, mais conhecida como
Iansã. Esta deusa africana começou a ser cultuada primeiramente entre os iorubás.
E a sua adoração passou a atingir toda a extensão das diversas etnias do mundo
iorubano, fincando-se destacadamente em cidades como Oyo, Kossô, Irá, Ifé, Ketu,
regiões que hoje compreendem uma parte da Nigéria e do atual Benin. Oyá é o orixá
dos grandes movimentos e das várias formas. Formas estas que representam seu
domínio sobre vários elementos da natureza, a sua essência é a liberdade inclinada
à constante transformação. E apesar de ser essencialmente aérea, e de dominar o
tempo atmosférico, Oyá é uma das poucas divindades africanas conhecidas por nós,
que se faz presente em todos os elementos primordiais do planeta (PASSOS, 2008,
p.26).
Nessa representação múltipla, quando mulher, Iansã é bela, forte, sedutora, senhora do
próprio destino. Quando animal, é um búfalo irascível a derrubar matas, animais e pessoas.
Quando água, venta, domina a chuva, irrompe em tempestade. Quando fogo, determina a
ação dos raios e relâmpagos. É a mais budista dos orixás, Senhora da Impermanência7.
Façamos o percurso deste texto guiadas pela Senhora Iorubudista do Movimento, da
Impermanência. Ela nos oferece bambuzal e ventania para respirar aprendizados e compreender
processos de tensão racial entre negros e brancos e de transformação na Capoeira Angola
praticada na Bahia, conduzidos por negros e mulheres nas décadas de 1990 a 2015. O corpus
de análise, como dito, são as entrevistas dos angoleiros da escola pastiniana, Fábio Mandingo
e Nildes Sena.
Sena tem vivência múltipla de capoeira em algumas cidades do Brasil, a começar pelo
Recôncavo da Bahia, em Cruz das Almas, sua cidade natal. Os pais contavam histórias sobre o
avô paterno que cantava muitas músicas de capoeira. Seu primeiro contato efetivo com esta
arte se deu via Fábio Bonfim, conhecido na capoeira como Fábio Sansão. Para que ela treinasse,
foi preciso pedir autorização a “mainha” e a “painho”, como contou, pois era muito menina,
17 anos. Posteriormente o professor a apresentou a Mestre João Pequeno de Pastinha, que à
época desenvolvia um trabalho com crianças no Forte Santo Antônio. Nildes Sena começou a
7 Ideia desenvolvida por Cidinha da Silva na orelha do livro de crônicas Sobre-viventes, ao criar o neologismo iorubudista=
ioruba (etnia africana de onde se origina o mito de iansã) + budismo (prática religiosa oriental baseada em valores de
flexibilidade como a impermanência).
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trabalhar com as crianças e precisou aprender capoeira para valer.
As observações feitas por Nildes Sena serão incorporadas ao longo do texto. As de Fábio
Mandingo serão destacadas agora, porque ajudam a demarcar o lugar de onde emitimos nossas
vozes, ou seja, o do protagonismo negro nas manifestações culturais herdadas de africanos e
reinventadas na Diáspora. O entrevistado afirma de maneira categórica e substantiva, na longa
citação que segue:
A cultura africana é iniciática. Quem se inicia tem acesso aos bens comunitários. Isso
é nossa fortaleza e também nossa fraqueza. A cultura europeia é étnica. Os saxões
são saxões, os francos são francos, ucranianos são ucranianos. Então, os brancos na
Capoeira Angola têm mais do que preparo técnico-administrativo, eles são iniciados.
Mas, se você me perguntar se eu gostaria que isso acontecesse, não gostaria, não.
Nós perderemos o poder depois do falecimento dos mestres que hoje estão com 70,
80 anos. Eles é que ainda dizem o que é certo e o que é errado. É doído isso (a perda),
porque como disse Ruey Newton, ideólogo dos Panteras Negras, “nós queremos
o poder negro e, por poder, entendemos a capacidade de definir um fenômeno
e conduzir o fenômeno a partir da nossa definição”. A perspectiva holística da
Capoeira Angola atrai os brancos. Só que na Europa o cardápio holístico já se tornou
uma gôndola de supermercado desde os anos 1970. Os brancos encantados pela
Capoeira Angola são aquelas pessoas que não se adaptaram aos próprios modelos
civilizacionais e elas vêm para a Capoeira Angola ávidas por ancestralidade, por
vivência comunitária. Capoeira para elas é uma atividade cultural barata, mas para
muitos mestres que saíram do Brasil e foram viver na Europa nos anos 1980, 1990
e mesmo 2000 foi um aporte econômico significativo. No Brasil, esses mestres
eram frentistas de postos de gasolina, carregadores, pedreiros. Hoje eles vivem de
Capoeira Angola e são doutores honoris causa em várias universidades europeias.
A caracterização que Mandingo faz da assimetria racial no ambiente angoleiro é corajosa e
contundente e oferece pistas para pensar o fascínio pela internacionalização pelos grupos de
capoeira, bem como o despudor da construção de uma cena “branco-friendly” para acolher
os “primos ricos” que vêm periodicamente ao Brasil com o objetivo de imergir no útero da
capoeira.
Pensemos juntas: esses mestres são desprovidos de recursos financeiros, majoritariamente
negros, donos de acachapante histórico de discriminação racial, ocupantes de um lugar sóciohistórico herdado do sistema escravista. Exercem funções subalternizadas, mal remuneradas e
pouco diferentes da precarização vivenciada por seus pais e avós. Migram para a Europa e são
tratados de forma digna, como reis até, se tomarmos por referência as condições precárias em
que viviam no Brasil. Além disso, são reconhecidos por instâncias de legitimação do saber, como
as universidades que não economizam títulos de doutor honoris causa em reconhecimento a
seus saberes.
Como resultado, talvez aprofundem a gratitude (no mais cristão dos mundos) ou o senso de
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oportunidade (no mundo mais real) para extrair dos brancos o que eles têm a oferecer. Talvez
faça sentido. São mandingueiros, esses mestres. Se lermos essa prática de muitos mestres
negros à luz da definição de Muniz Sodré para Mestre Bimba, aparentemente paradoxal,
teremos que:
Aquele negro, Bimba, merecia ter sido Doutor Honoris Causa em vida, pois, embora
longe do mundo das letras, era uma das figuras mais cultas que já conheci (SODRÉ,
2008, p.14).
Mantive apenas uma conversa com cada um dos entrevistados, portanto, vários temas
mereceriam aprofundamento, mas me valerei também da percepção da Capoeira Angola
desde 1985, quando a conheci em Belo Horizonte, MG, na convivência com o Mestre João
Angoleiro8. Embora não tenha me tornado capoeirista, fui encantada pela Capoeira Angola e a
vejo com olhos de leitora desde então.
Diz a canção que Iansã comanda os ventos / a força dos elementos / na ponta do seu florim
/ é uma menina bonita / quando o céu se precipita / sempre o princípio e o fim9. A meu
ver, a presença das mulheres no campo masculino e machista da Capoeira Angola se vale do
dinamismo iansânico. A ponta do florim em tela é a ginga das mulheres, não só para jogar o
jogo, mas, principalmente, para sobreviver num meio hostil.
A ginga é a assinatura da pessoa que pratica a Capoeira Angola. É o jeito pessoal, único e
intransferível de cada pessoa jogar o jogo. É o que liga no jogo de capoeira, a argamassa. É
deriva que espalha, espanta, encanta e ludibria. Água que finge ser mansa e é redemoinho.
Força motriz do moinho da roda.
Só a ginga para enfrentar a hostilidade demarcada pela invisibilidade ou “apendicização”
das mulheres quando os homens são os donos da fala. Percebemos em diversas conversas
mantidas com capoeiristas homens ao longo dos últimos anos que a politização da presença
das mulheres, algo muito forte a partir do final da década de 1990 e protagonizado pelas
praticantes residentes na Europa, é ignorada ou intencionalmente abafada por eles. O assunto
não é tema corrente, não aparece de maneira espontânea como resposta esperável e previsível
ao questionamento sobre as transformações mais importantes da Capoeira Angola nos últimos
anos.
8 Vale lembrar que este foi um período anterior à constituição do GCAP em Belo Horizonte. O Mestre João Angoleiro e outros
mineiros migraram para Salvador para beber na fonte de Mestre Moraes, condutor de um processo de fortalecimento da
Capoeira Angola, bem como de outros mestres, tais como, João Pequeno de Pastinha, João Grande e Cobra Mansa. Quando o
grupo retorna a Belo Horizonte constitui o GCAP. Para acessar o papel do mestre na Capoeira Angola, bem como um panorama
de algumas linhagens mais representativas e conhecidas, sugerimos a leitura de A capoeira e os mestres, de Ilnete Paiva.
9 “Inhansã”. Letra de Gilberto Gil e Caetano Veloso cantada por Maria Bethânia no álbum O canto do pajé (Maria Bethânia 25
anos), CD, Universal Music, 1990, Faixa 9.
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O entrevistado Fábio Mandingo, por exemplo, falou de várias situações e temas de maneira
espontânea, tais como a convivência harmoniosa e sincrética entre praticantes de Angola e de
Capoeira Regional, verificada nos bairros e periferias; elitização da Capoeira Angola, sobre a
qual já discorremos; produtos gerados e vendidos pela capoeira, lucro e financeirização dos
grupos; todos considerados importantes por Mandingo e mencionados mais de uma vez nas
respostas a perguntas que não tratavam diretamente desses temas. Contudo, as mulheres na
Capoeira Angola só foram citadas quando o inquiri, e a resposta foi bem sintética e pontual,
diferentemente de outros assuntos sobre os quais discursou com mais vigor e animação. Disse
ele:
A participação das mulheres cresceu muito e de maneira bastante qualificada. Hoje
existem várias mulheres que dão aula, que já têm 15, 20 anos de capoeira. Existem
mulheres responsáveis pela condução de grupos, contramestres e mestras10.
Mas, as mulheres transformam o mundo para viver melhor e também porque querem o poder,
pois que, sem poder, a capacidade de construção de um vivente fica limitada. Quando essas
mulheres são conduzidas pelo espírito autônomo e guerreiro de Iansã, a chapa esquenta e a
transformação é inevitável, ainda que nem sempre mereça as luzes da ribalta. Como conta
Pierre Verger no episódio em que Iansã roubou o fogo de Xangô:
Oyá é a divindade dos ventos, das tempestades e do rio Níger que, em iorubá,
chama-se Odò Oya. Foi a primeira mulher de Xangô e tinha temperamento ardente e
impetuoso. Conta uma lenda que Xangô a enviou em missão na terra dos baribas, a fim
de buscar um preparado que, uma vez ingerido, lhe permitiria lançar fogo e chamas
pela boca e pelo nariz. Oyá, desobedecendo às instruções do esposo, experimentou
esse preparado, tornando-se também capaz de cuspir fogo, para grande desgosto de
Xangô, que desejava guardar só para si esse terrível poder (VERGER, 1981, p.168).
Na Capoeira Angola as mulheres têm insistido em roubar o preparado destinado aos homens e
a cuspir fogo, pois só assim, se tiverem mando, conseguirão, efetivamente, se não transformar,
pelo menos desestabilizar as relações de poder, manejadas pelos homens.
Mestra Janja11, em entrevista para um livro no qual são sabatinados outros 25 mestres de
capoeira, narra sobre os primórdios da chegada das mulheres à Capoeira Angola:
Começamos a levar amigas e outras mulheres para a capoeira, tornando a presença
destas uma realidade marcante já naquele momento (início da década de 1980),
tanto do ponto de vista da prática da capoeira quanto das ações que passaram a
10 Entrevista concedida à autora. Op. cit.
11 Mestra Janja é a primeira mestra de Capoeira Angola do Brasil e do mundo. É fundadora do Instituto Nzinga de Capoeira
Angola e professora na Universidade Federal da Bahia, onde também dirige o Núcleo de Estudos Interdisciplinares Sobre a
Mulher - NEIM.
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organizar os grupos, até porque não existiam treinos diferentes para eles e para elas.
Ao contrário, desde o início nos mobilizamos para eliminar diferentes formas de
rebaixamento das mulheres no interior da capoeira (ABREU, 2003, p.198-199).
Na entrevista, a Mestra utiliza constantemente as palavras “coragem” e “capacidade” para
se referir à atuação das mulheres, que, segundo ela, sempre estiveram presentes na capoeira,
mesmo quando não entravam nas rodas. Por isso, a meu ver, é realmente emblemático que os
homens só toquem nas questões de gênero quando indagados.
Por outro lado, a capoeirista que sabe gingar mata o adversário alimentando o ego que julga
ser apenas dança e drama o que é trama, enredo, estudo, planta baixa do golpe vindouro. Ou
seja, como afirma a Mestra Janja, “a mulher traz para a roda seu próprio universo” (ABREU, 2003,
p.204).
Nildes Sena, por sua vez, reflete sobre a presença da mulher na Capoeira Angola a partir da
memória afetiva de sua convivência com Mestre João Pequeno de Pastinha. Ela conta que por
volta de 1986 chegou a um espaço muito amplo e bonito mantido pelo Mestre em Fazenda
Coutos, subúrbio ferroviário de Salvador. Tratava-se de um grande salão localizado no térreo
da casa onde o Mestre ensinava capoeira a crianças, entre elas, sua neta chamada Cristiane
Miranda, a quem ele ensinou a ser professora, ou seja, a ensinar Capoeira. A menina ficou
conhecida como professora Nane e a narrativa de Nildes Sena destacou várias situações em
que a professora foi desrespeitada por mestres e outros homens pelo simples fato de ser
mulher.
De acordo com a entrevistada, entre 2000 e 2004 havia cerca de 12 mulheres e dois homens,
todos brancos e estrangeiros, a treinar na academia de Mestre João Pequeno. Além dela, talvez
houvesse mais uma ou duas mulheres baianas. Segundo Nildes Sena, o Mestre foi muito
assessorado por mulheres e as respeitava muito.
Raras foram as vezes em que Nildes Sena teve oportunidade de treinar com outras mulheres
negras, e isso provavelmente a levou a criar o grupo Mandinga de Mulher (2011/2012),
exclusivamente composto por mulheres negras, no qual desenvolveu elementos de
arteterapia junguiana, ligados a seu ofício primeiro como arte-terapeuta e que objetivavam
uma apropriação da Capoeira para obtenção de saúde integral (mental, psíquica, emocional,
física e espiritual). A proposta de Sena é pensar o corpo da mulher negra “encapoeirado”,
inspirada pela memória do Mestre João Pequeno: “a Capoeira é a onda do mar, o movimento
das coisas”.
Em relação à transmissão de conhecimentos na Capoeira, Nildes Sena alerta para o objetivo
finalístico de ordem sexual que muitas vezes orienta a atitude dos homens mais graduados,
mestres e outros, dirigida às mulheres, ou seja, alguns detalhes técnicos são repassados no
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intento de alcançar benesses sexuais. Mestra Janja também chama a atenção para o tema:
O que encontramos ainda é o olhar às vezes despreocupado e, às vezes irresponsável,
com relação ao desenvolvimento das mulheres por parte de algumas lideranças
de grupo. Muitas vezes não se acredita que elas possam chegar em algum lugar
idealizado e, portanto, não se investe na formação das mulheres tanto quanto
na formação dos homens. Isso se manifesta de várias formas, nos treinos, muitas
reclamam que não lhes corrigem os erros, tendendo a naturalizar aquele erro, ou
não encorajando devidamente as mulheres, que ficam deslocadas nesse universo
ainda muito masculinizado. Dentro da estrutura do jogo, quando a mulher passa
a se desenvolver bastante, buscam impedir que ela desenvolva seu repertório,
seja a partir da força bruta, da força física, ou mesmo usando formas de torná-la
alvo de ridicularizações e/ou rebaixamentos morais, com posturas e insinuações
preconceituosas. Vimos coisas dentro do mundo da Capoeira que são extremamente
violentas; abuso sexual, estupro, chantagem, abusos no relacionamento (quando a
mulher termina um relacionamento com parceiro dentro da Capoeira dificilmente
ela consegue permanecer no mesmo grupo), abuso patrimonial, etc. Existem várias
formas de violência que são explícitas e outras que atuam com a mesma eficácia
porque atuam pelas omissões (ABREU, 2003, p.201).
Os caminhos que Mestra Janja tem adotado para transformar essa realidade passam pela
perspectiva do Instituto Nzinga de Capoeira Angola12 e do Grupo Nzinga em particular, que
professa a noção africana de convivência em comunidade. Mulheres, homens, crianças e demais
pessoas se educam juntos, se transformam e constroem um mundo melhor conjuntamente.
Para concluir essa abordagem breve do Odu da Transformação Na Capoeira Angola pelo
universo próprio que as mulheres levam para a roda, afirmamos que as mulheres têm sido
aprendizes do tempo, o verdadeiro grande alquimista, como definido por Gilberto Gil, mais do
que discípulas dos mestres.
O compositor maior sintetiza a alquimia iansânica que nos tem socorrido nessa empreitada:
Essa música que eu canto agora eu fiz com Caetano, chama-se Iansã. Bethânia gravou
e eu gosto muito dela, porque ela é muito da gente, do jeito que a gente intui a
existência da imanência e da transcendência. Um dia ainda vou me redimir por inteiro
do pecado do intelectualismo, se Deus quiser (...) não vou ter mais necessidade de
falar nada, de ficar pensando em termos dos contrários de tudo, pra tentar explicar
às pessoas que eu não tô querendo fazer sozinho uma obra que é de todos nós, e de
mais alguém que é o tempo, o verdadeiro grande alquimista, aquele que realmente
transforma tudo13 (GIL, 1973).
Cavalgando no raio de Iansã, as mulheres seguem gingando. Ora fogo, ora água, ora búfalo que
12 Para mais informações sugerimos acessar o sítio do Grupo Nzinga http://www.nzinga.org.br/ cofundado e codirigido pela
Mestra Janja.
13 Gravação ao vivo de Gilberto Gil na Escola Politécnica da USP, em 1973. Disponível em https://www.youtube.com/
watch?v=Q03QjHyDyMw
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rasga com os chifres o bucho dos mestres que lhes roubaram a indumentária animal. Ginga na
deriva que espalha, espanta, encanta e ludibria. Ginga com o tempo, por excelência o mestre
da transformação. O verdadeiro grande alquimista.
Nzaambi ye kwatesa Oyá Matamba!
REFERÊNCIAS
ABREU, Fred e CASTRO, Maurício de Barros. Encontros Capoeira. Rio de Janeiro: Azougue
Editorial, 2009.
________ As Ayabás. Intérprete: Maria Bethânia. In. Pássaro Proibido. Universal Music, 1976.
Disponível em http://www.vagalume.com.br/maria-bethania/as-ayabas.html Acesso em 01
de agosto de 2015.
GAMA, Alessandra. GINGA DE VALOR: reflexões sobre o perfil e aspectos motivacionais da
mulher na capoeira. Monografia [Graduação]. Campinas: Departamento de Educação Física/
PUC, 2008.
GIL, Gilberto. Gravação ao vivo de Gilberto Gil na Escola Politécnica da USP. São Paulo: 1973.
Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=Q03QjHyDyMw Acesso em 01 de agosto
de 2015.
GIL, Gilberto, VELOSO, Caetano. Inhansã. Intérprete: Maria Bethânia. In. Maria Bethânia. O
canto do pajé ( Maria Bethânia 25 anos). Universal Music, 1990. Disponível em https://www.
youtube.com/watch?v=gWFMEcTK13Q Acesso em 01 de agosto de 2015.
INSTITUTO NZINGA DE CAPOEIRA ANGOLA (sítio). http://nzinga.org.br/pt-br/instituto_nzinga
MANDINGO, Fábio. Entrevista realizada pela autora. Salvador: 14 de julho de 2015.
PAIVA, Ilnete Polpino de. A capoeira e os mestres. Tese [Doutorado em Ciências Sociais]. Natal:
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2007. Disponível em PDF ftp://ftp.ufrn.br/pub/
biblioteca/ext/bdtd/IlnetePP.pdf . Acesso em 15 de fevereiro de 2016.
PASSOS, Marlon Marcos Vieira. Os mitos de um orixá nos ritos de uma estrela. Dissertação
[Mestrado]. Salvador: FFCH/UFBA, 2008.
SENA, Nildes. Entrevista realizada pela autora. Salvador: 20 de julho de 2015.
SILVA, Cidinha da. A menina dos olhos de Oyá exuzilhou o racismo religioso na avenida.
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Disponível em http://www.revistaforum.com.br/2016/02/16/a-menina-dos-olhos-de-oyaexuzilhou-o-racismo-religioso-na-avenida/. Acesso em 18 de fevereiro de 2016.
SILVA, Cidinha da. Sobre-viventes. Rio de Janeiro: Pallas, 2016.
VERGER, Pierre. Orixás. Salvador: Corrupio, 1981.
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IRMANDADE DA BOA MORTE: A filosofia da ancestralidade como mecanismo
de resistência à subalternidade feminina
Ana Maria Silva Oliveira1
RESUMO
O respeito à ancestralidade é um dos preceitos preponderantes das religiões de matrizes
africanas, pois a família é considerada o centro da organização social e religiosa e os seus
membros mais antigos a fonte de conhecimento oral. Na Irmandade da Boa Morte, a
ancestralidade, além de servir como mecanismo de preservação religiosa, atua também
como resposta ao comportamento subalterno e submisso imposto às mulheres negras pela
sociedade patriarcal brasileira, possibilitando a reconstituição da identidade feminina já tão
fragmentada e discriminada e constrói um espaço de resistência e luta que lhes proporciona
maior visibilidade no cenário social. Esse artigo pretende analisar como a ancestralidade é
adotada na Irmandade da Boa Morte na preservação religiosa e como base ideológica para
luta de gênero.
Palavras-chave: Ancestralidade. Gênero. Resistência.
ABSTRACT
Respect for ancestry is one of the overriding principles of religions of African origin, because
the family is considered the center of social and religious organization and its oldest members
the source of oral knowledge. The Brotherhood of the Good Death, ancestry, besides serving
as a religious preservation mechanism also acts in response to the subordinate behavior and
submissive tax to black women by Brazilian patriarchal society, enabling the reconstitution
of female identity already so fragmented and broken down and build a space of resistance
and struggle that gives them greater visibility on the social scene. This article aims to analyze
the ancestry is adopted in the Good Death Brotherhood religious preservation and as an
ideological basis for gender struggle.
Keywords: Ancestry. Gender. Resistance.
1 Graduada em Letras pela UFBA. Técnica em Assuntos Educacionais da PROPAAE/UFRB. Contato: 71 98761-1650. ana.silva@
ufrb.edu.br
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1. INTRODUÇÃO
Um dos preceitos fundamentais das religiões de matrizes africanas existentes no Brasil é a
reverência a ancestralidade. O núcleo familiar tem um papel preponderante na construção
social e religiosa e os mais velhos são fonte de conhecimento oral imprescindível à preservação
e manutenção das raízes identitárias.
A ancestralidade, em aspecto amplo, não se refere apenas aos descendentes diretos e indiretos
de um indivíduo e, sim, a um conjunto de ancestrais, ou seja, a relação com os indivíduos
vivos pode ser estabelecida tanto por genealogias genéticas, composta por ancestrais diretos,
quanto por genealogias fictícias derivada de ancestrais míticos:
Não precisa ser uma pessoa ou espírito que conhecemos ou imaginamos. Pode
ser uma árvore (...). É possível que seja um riacho correndo longe. O que importa
é compreender que qualquer pessoa que perdeu o corpo físico é um potencial
ancestral (SOMÉ, 2003, p. 28).
Como mecanismo de resistência cultural e de sobrevivência de grupo, a ancestralidade está
presente nas religiões afro-brasileiras e refere-se a uma noção de família, clã e egbé2 essencial
para a manutenção ideológica dentro das senzalas, pois nesses espaços de confinamento
e exploração, diversos povos e culturas africanas se misturavam e perdiam parte de sua
identidade.
Desde a chegada dos primeiros povos de negros ao Brasil até o fim do tráfico clandestino,
estes eram, intencionalmente, desconsiderados por suas origens étnicas, linguísticas e
culturais. Eram como mercadorias acabadas das quais a identidade e a origem era “apagada”
ou menosprezada. Este artifício era conveniente, pois acirrava ainda mais as divergências e
rivalidades entre os diversos grupos étnicos confinados e, assim, dificultava a implementação
de alianças de resistência.
Durante o complexo período de escravidão ocorrido no Brasil, os negros perceberam nas
irmandades e confrarias religiosas um espaço de socialização, resistência e reunião de
indivíduos com afinidades ideológicas ou genealógicas. Em uma sociedade escravocrata,
preconceituosa e excludente, as confrarias e irmandades eram importantes espaços que
permitiam “fragmentos de liberdade” (EUGENIO, 2010, p. 20).
2 Egbé significa Sociedade. Designa a Sociedade dos Espíritos Amigos e se refere, simultaneamente, a um orixá e a uma
irmandade ou corporação de seres espirituais.
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A religião teve um papel crucial na resistência à dominação étnica imposta aos negros no Brasil.
A fé era como um bálsamo diante do cenário opressor e dominador imposto aos escravos e
espaço para luta e sobrevivência ideológica.
As religiões afro-americanas foram ponto de agrupamento, elemento de organização
e fontes de proteção e orientação do africano na diáspora, na luta contra o sistema
escravista e os sistemas subseqüentes (NEVES, 1986, p. 172).
É importante ressaltar que a aparente aceitação da implementação das irmandades e
confrarias no Brasil possuía objetivos implícitos e estava muito além do mero respeito aos
cultos religiosos:
Negar-lhes totalmente os seus folguedos, que são o único alívio do seu cativeiro,
é querê-los desconsolados e melancólicos, de pouca vida e saúde. Portanto, não
lhes estranhe os senhores o criarem seus reis, cantar e bailar por algumas horas
honestamente em alguns dias do ano, e o alegrarem-se inocentemente à tarde
depois de terem feito, pela manhã, suas festas de Nossa Senhora do Rosário, de São
Benedito e do orago da capela do engenho (ANTONIL, 1967, p. 159)
Muitas irmandades de negros e negras foram criadas no Brasil como associações corporativas
e, um de seus objetivos subjacentes, era representar socialmente e politicamente grupos
nas hierarquias sociais. Porém, similar às irmandades judaico-cristãs, o senso comum era o
exercício da dominação sobre a mulher, concebendo-a como incapaz de exercer papéis que
extrapolassem o ambiente doméstico. A submissão feminina reverberava no imaginário
masculino como imposição de poder e marca da estrutura patriarcalista. Neste aspecto, a
Irmandade da Boa Morte destaca-se como diferencial, pois além de preservar a religiosidade
atuava como resistência de gênero, reconstruindo a identidade feminina e proporcionando
visibilidade social à mulher.
Como irmandade afro-brasileira, composta exclusivamente por mulheres negras, a Irmandade
da Boa Morte sofreu discriminações étnicas e de gênero dos mais diversos setores sociais até o
seu reconhecimento pela preservação cultural e religiosa. Este estudo pretende analisar como
a filosofia da ancestralidade é adotada na Irmandade da Boa Morte para a manutenção de
suas matrizes religiosas e como base ideológica para luta de gênero.
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2. Irmandades afro-brasileiras
As irmandades de negros criadas no Brasil, principalmente a partir do século XVII, eram
associações corporativas direcionadas a solidariedade e a realização de rituais de devoção a
um determinado santo. É importante ressaltar que, embora essas irmandades tomassem parte
do catolicismo, religião dominante, na sua maioria, estas instituições não perderam os traços
mais significativos de suas matrizes africanas. Um dos preceitos identitários que permaneceu
foi a ancestralidade.
Presente na maioria das irmandades afro-brasileiras, a ancestralidade preconiza o respeito às
genealogias sanguíneas e míticas e delega aos membros mais antigos os cargos hierarquicamente
superiores e a missão de transmitir às novas gerações a base ideológica cultural e religiosa.
Diante do contexto que oprimia e desconsiderava a ancestralidade e a estrutura familiar dos
negros, as irmandades buscavam resgatar noções de identidade em seus ambientes, mesmo
que clandestinamente. Em relação a isso, Loureiro (2004, p. 49) afirma que “o conceito de
identidade está originalmente relacionado ao fato de um indivíduo construir a sua própria
história [...] À identidade passam a ser articuladas a interação, autonomia e processos sociais”.
Ainda segundo o autor (2004, p. 51), “a identidade, conforme a concebemos, envolve a
relação de aspectos subjetivos, sociais e históricos e está em constante construção”. Então, a
identidade é algo dinâmico e associado às vivências e valores que possuímos e adquirimos em
nossa caminhada: “A identidade nunca é estabelecida como uma realização, na forma de uma
armadura da personalidade ou de qualquer outra coisa estática e imutável, é um processo em
permanente construção” (LOUREIRO, 2004, p. 51).
Estruturalmente, as irmandades implantadas no Brasil seguiam o modelo português
conservando desde o catolicismo barroco às manifestações populares, como as procissões e
os rituais fúnebres. Existiam duas alas: a masculina, responsável pela representação jurídica
perante as autoridades eclesiásticas e governamentais, e a ala feminina, responsável pela
efetivação da maior parte das obrigações sociais e religiosas. Reis acrescenta que,
As irmandades negras, via de regra, tinham uma mesa composta de mulheres e outra
de homens. O compromisso de 1820 do Rosário das Portas do Carmo rezava: “se
elegerão as Juízas que forem suficientes de uma e outra nação” quer dizer angolas
e crioulas. Mas esta e outras irmandades de pretos e de brancos discriminavam
politicamente a ala feminina. A regra dos irmãos do Rosário, que proibia a escravos
de serem juízes, procuradores e mordomos, fazia exceção às mulheres escravas,
porque “pela qualidade do sexo não exercitam ato de mesa” (REIS, 1992, p. 58).
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Como se observa no trecho acima, a presença feminina nas irmandades sofria limitações e
restrições quanto a aspectos etnicorraciais e de gênero. Em algumas irmandades, as mulheres
não podiam exercer cargos, como se observa no compromisso da Irmandade do Bom Jesus
dos Martírios, da cidade de Cachoeira/BA, que não hesita em registrar o direito de ocupar
cargo na mesa como restrito às crioulas.
Há discursos e práticas preconceituosas tanto quanto à etnia como quanto ao gênero. A
imagem sexualizada da mulher enquanto objeto para satisfação masculina está presente em
muitos estatutos da irmandade, até como reflexo de ideologias propagadas no meio social.
O preconceito e o machismo não emergem apenas de homens brancos, mas está presente
também nos discursos e imaginários socializados pelo homem negro. Muitos textos deixam
claro que a crioula gozava de privilégios nas irmandades, em comparação a outras etnias
negras, mas tais “regalias” apareciam como contrapartida à estética erótica de seus corpos.
A estrutura mais comum nas irmandades e confrarias constituía-se de duas alas: a masculina,
responsável pela representação jurídica e social, e a ala feminina, responsável pela organização
das missas, procissões, cuidados com os irmãos doentes e limpeza dos espaços físicos. Saffioti
acrescenta que
As representações de gênero de uma sociedade falocrática não cobrem todo
o espaço social. Isto equivale a dizer que há espaços sociais vazios do ângulo do
androcentrismo nos quais a mulher é não-representada e irresponsável, também
perspectiva masculina. A impossibilidade da representação é posta pelo discurso
hegemônico (2001).
Enfim, a participação das mulheres nas irmandades estava sobre a égide do patriarcalismo
e a submissão feminina era um dos preceitos impostos como condição para permanência.
Embora tanto homens como mulheres, negros e negras, estivessem em situação de exploração
e subjugação, ainda assim a ala masculina exercia o poder de gênero, dominando as mulheres
e excluindo-as da cúpula responsável pelas decisões e atitudes de maior prestígio social.
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3. A luta de gênero na Boa Morte
O convívio nas irmandades não foi notadamente harmônico, face às reivindicações das
mulheres que queriam participar das decisões da irmandade e não apenas atuar em atividades
de menor relevância política. A socióloga Carla Cristina Garcia comenta:
Cada vez que a mulher entra no espaço masculino sofre muito mais pressão; se faz
algo para o bem ou para o mal, a cobrança é maior, como se estivesse se metendo
em algo que não lhe cabe. A questão é de gênero, e porque elas precisam ser
quatro, cinco ou seis vezes melhores do que os homens para que tenham o mesmo
reconhecimento deles, é que temos a impressão de que estão mais suscetíveis e
sensíveis aos julgamentos (GARCIA apud GEROLLA 2013).
Como um enquadramento comportamental, espera-se que a mulher aceite posições de
subserviência sem contrapor e criar objeções. O enfrentamento é visto como atitude subversiva,
e se a submissão não é aceita espontaneamente é imposta coercitivamente: “não haveria
oprimidos se não houvesse uma relação de violência que os conforma como violentados,
numa situação objetiva de opressão” (FREIRE, 1975, p. 45).
Como interface de ideologias e práticas da sociedade, as irmandades costumavam delegar às
mulheres espaços de atuação limitados e que reproduziam a noção de dominação e poder
do gênero masculino. A rebeldia era punida com advertência e até expulsão. Dentre os que
aceitavam e defendiam imposições de gênero estavam muitas mulheres, o que aparentemente
é uma contradição, entretanto, como ressaltado por FREIRE (1975), a mente do oprimido
hospeda o opressor. Historicamente construiu-se uma identidade subalterna para as mulheres
que perpassa classes sociais e culturas e que evidentemente é agravada por questões étnicas
e econômicas.
A partir de conflitos de poder que reverberavam nas irmandades, houve dissensões de
membros que, ao contraporem com as imposições machistas propagadas nesses espaços, vão
compor uma nova irmandade: a da Nossa Senhora da Boa Morte.
As protagonistas da fundação da Irmandade da Boa Morte se negaram a aceitar as regras
impostas pela sociedade patriarcal como, por exemplo, a determinação de que o cargo de
presidente deveria ser ocupado somente por homens, mas lavar as roupas brancas usadas
nas missas, cozendo-as ou reformando-as, visitar enfermos e orientar-se do tratamento que
os doentes deveriam receber eram delegações tipicamente femininas. Embora o estatuto
de algumas irmandades dissesse estender direitos, independente do gênero, a prática
demonstrava a negação do discurso igualitário. Exemplo disso está no estatuto da Irmandade
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do Rosário que rezava que “a mulher tomaria parte da mesa administrativa e gozaria das
mesmas regalias que os homens, em tudo que estivesse de acordo com o seu sexo” (REIS,
1997, p. 58). Acontece que, “de acordo com o sexo” para a sociedade machista é designar
práticas subservientes às mulheres.
Nesses termos, concentra-se o grande diferencial: a participação da mulher na mesa
administrativa estava limitada à parte assistencial nas irmandades e confrarias e a Boa Morte
lança-se como propulsora da luta de gênero, delegando as funções de direção às mulheres.
Encontra-se nesse aspecto grande parte das dificuldades e percalços que as irmãs enfrentaram
para a implementação e reconhecimento de sua Irmandade. Se a sociedade contemporânea
registra constantemente relatos de violências e agressões à mulher negra e imposições de
submissão feminina nos espaços de poder, imagina-se então o quanto dificultoso não foi o
enfretamento do domínio masculino na época da criação da irmandade – aproximadamente
3 séculos atrás.
Quanto a sua gênese, a Irmandade da Boa Morte é uma organização formada por negras
africanas alforriadas, oriundas das Jeje-Nagô. Está entre as confrarias mais antigas do Brasil e
surgiu provavelmente nas primeiras décadas do século XIX, possivelmente por volta de 1820,
na Igreja da Barroquinha, em Salvador, de onde, anos mais tarde, migrou para o município
baiano de Cachoeira.
Há muita especulação e divergências quanto à história da Irmandade da Boa Morte. O incêndio
ocorrido em março de 1984 deixou a Igreja da Barroquinha em ruínas. Com este episódio, foi
destruída considerável parte de seus arquivos que poderiam auxiliar na elaboração de uma
investigação mais sistemática sobre a gênese desta Irmandade. A escassez de documentos
da Irmandade, a trajetória de perseguição, a carência de recursos de parte de suas irmãs, a
ausência de uma sede até 1995 e outros fatores contribuíram para a falta de dados precisos.
Resistindo há quase três séculos, a Irmandade da Boa Morte destaca-se por ser uma instituição
composta exclusivamente por mulheres negras que, mesmo quando libertas da escravidão,
viviam sob o jugo de uma sociedade patriarcalista que tentou por vários meios impor a
dominação masculina como condição para seu funcionamento e reconhecimento jurídico.
Não meras mulheres religiosas, elas eram mulheres politizadas que perceberam na religião uma
lacuna para resistência a imposição do poder masculino e um espaço que lhes proporcionava
visibilidade social. Dentro da Irmandade encontravam um espaço para alianças e negociações
imprescindíveis para a luta contra o comportamento submisso e subalterno imposto pela
sociedade. Preconizam que
Nós não somos usuários passivos de fontes de discursos pré-fabricados. É verdade
que elas existem e limitam-nos e formam o que nós dizemos, mas quando nós
falamos, nós as usamos sempre em combinações novas e variadas. Nesse sentido,
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nós podemos ser considerados autores genuínos (PETRO, 1997, p. 160).
Para o ingresso na Irmandade eram feitas várias exigências como ser mulher, ser negra, possuir
idade superior a 40 anos, ser consagrada a um orixá, além da devoção a Nossa Senhora da Boa
Morte. Esses requisitos foram imprescindíveis para preservar as essências religiosas advindas
de matrizes africanas e resistir, mesmo em condição de desigualdade, frente à dominação e
exploração de gênero a que estavam sujeitas.
Como as irmandades eram um dos poucos espaços de poder acessíveis à população negra, é
evidente que a hegemonia masculina se contrapôs a criação de uma irmandade exclusivamente
feminina. Porém, como a filosofia da ancestralidade é um elo entre as variantes confrarias e
irmandades negras brasileiras e está acima dos conflitos de gênero, as irmãs da Boa Morte,
muitas consagradas por orixás, eram respeitadas e consideradas fonte de sabedoria e de
perpetuação da religião de matriz africana. Em respeito à ancestralidade, mesmo os mais
intolerantes, viam-se “obrigados” a admitir o funcionamento da Irmandade.
Esse é um dado da africanidade, essa questão da ancestralidade. Está em todas
as sociedades africanas, em todas as culturas africanas. O que é um ancestral?
O ancestral nada mais é do que um criador. Pode ser um ancestral feminino ou
masculino, dependendo da sociedade, se é uma sociedade matrilinear ou patrilinear.
Quer dizer, o ancestral é aquele que tem o estatuto de fundador, fundador do clã,
da linhagem, que foi uma personagem importante, que é a origem, a fundação, o
fundador de tudo, da nação, uma pessoa cuja memória é simplesmente rememorada,
retualizada em todos os momentos (MUNANGA, 2008).
Assim, a filosofia da ancestralidade foi essencial como mecanismo de preservação e
autoafirmação sendo, por grande parte de sua história, o pertencimento genealógico um dos
requisitos para aceitação na Irmandade. Observe o que afirma Lody a esse respeito:
Escravos trazidos de Angola estavam, preferencialmente, nas irmandades de Nossa
Senhora do Rosário; os vindos do Bein (antigo Daomé) ficavam na irmandade de
Nossa Senhora da Redenção; os de Ketu na irmandade de Nossa Senhora da Boa
Morte ou ainda na irmandade de Bom Jesus dos Martírios (LODY, 1987, p. 53).
A Bahia estabeleceu por muitos anos com a região de Daomé, atual Benim, na África, um
acordo comercial, próximo do que seria um contrato de exclusividade, para realização de
tráfico de escravos. Segundo VERGER,
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Esses contratos foram particularmente intensos com Angola e Congo, até
aproximadamente o final do século XVII, desviando-se, mais tarde, em direção à
costa do leste do Forte São Jorge de Mina, situado no golfo do Benim, entre o rio
Volta e o rio Lagos (1997).
As fundadoras da Boa Morte têm suas raízes desses encadeamentos e convergências geográficas,
e a filosofia da ancestralidade serviu como elo entre o sentimento de pertencimento e o desejo
de preservação das matrizes culturais e religiosas.
Apesar da ausência de documentações, que poderiam esclarecer melhor as origens genealógicas
da Irmandade, escritos afirmam que a nação Ketu ou nagôs-sudaneses dividiam-se em três
subgrupos: iorubas, jejes e fanti-ashantis, trazidos do sudoeste do continente africano do que
hoje é representado pela Nigéria, Daomei e Costa do Ouro, e seu destino geralmente era a Bahia.
Como já citado, as irmãs da Boa Morte são oriundas das Jeje-Nagô. Mais especificamente, os
Jejes são um povo africano que habita o Togo, Gana, Benim e regiões vizinhas, representado,
no contingente de escravos trazidos para o Brasil, pelos povos denominados fon, éwé, mina,
fanti e ashanti. O pertencimento territorial ou sanguíneo não é o único elemento articulador
da ancestralidade, mas é uma de suas vertentes e, durante muitos anos, foi considerada como
relevante para o pertencimento à Irmandade.
Como a ancestralidade é uma das raízes organizadoras do Candomblé, a Irmandade soube
sabiamente utilizar o respeito aos mais velhos como meio de quebrantar o machismo
presente nas irmandades implementadas no Brasil. O fato de ser uma Irmandade composta
exclusivamente por senhoras e, como preconizada pela ancestralidade, detentoras de
conhecimento e dignas de respeito, não impediu o preconceito e discriminação, mas propiciou,
mesmo que com olhares de menosprezo, o direito de continuar funcionando.
A Boa Morte reivindica condição de igualdade para os gêneros e, para isso, enfrentou muitas
dificuldades. Dentre muitos fatores, isso se deve também à Igreja por trazer em seu legado
uma trajetória marcada pela superioridade do homem em relação à mulher e seus ensinos
delegam há séculos a condição de subalternidade às mulheres. Desta forma, até hoje não se
tem notícia de que a Boa Morte tenha possuído estatuto, ou seja, ela não era legítima segundo
a Igreja Católica, já que as protagonistas da Boa Morte se negaram a aceitar as regras que lhes
foram impostas e explicitamente reverberavam o domínio coercitivo do homem.
As mulheres na Irmandade chamam para si tudo o que antes era considerado apenas privilégio
dos homens como o direito de ser juíza ou presidente de uma irmandade. Contrariando as
normativas culturais da época que perpassam todas as áreas da convivência social, a Boa
Morte, desde sua formação, é um espaço eminentemente feminino, construído na história.
Observe a afirmação de uma das irmãs quando indagada sobre a não participação do homem
na Irmandade:
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Não podem, porque é uma tradição vinda da áfrica, além da mulher da Boa Morte é
como se fosse um homem, pois se preciso for, ela corta de machado, carrega peso,
fazemos tudo isso como homem, assim posso dizer que sou homem e mulher porque
nós temos o poder que é dado aos homens3.
Dessa forma, as mulheres da Boa Morte empreendem forças para lutar contra as estruturas
dominantes que delegam às mulheres os “papéis menores” e enfrentam por meio de seu
trabalho e união a sociedade preconceituosa e excludente em que estão inseridas. É uma
dupla batalha, pois, além de serem vítimas de um sistema preconceituoso do ponto de vista
etnicorracial, enfrentam também lutas de gênero nas quais o homem impõe submissão à mulher
por meio da força. Os algozes não são apenas homens brancos e favorecidos economicamente.
Como já citado, historicamente o homem negro tem também exercido posturas machistas e
contribuindo para a construção da sociedade que violenta mulheres em seus corpos e almas.
É admirável o espírito de resistência e enfrentamento dessas mulheres que, apesar de tantas
adversidades, suor e lágrimas, conseguiram espaço e respeito.
FIGURA 1: Festa da Irmandade da Boa Morte
Fonte: Bahiatursa
3 Entrevista realizada por Joanice Conceição com uma integrante da Irmandade da Boa Morte, em março de 2003 e
apresentada em seu artigo Irmandade da Boa Morte: a contradição do Patriarcado. O nome da entrevistada foi preservado.
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Como reconhecimento às relevantes contribuições para cultura e religiosidade da Bahia,
desde 2010, a Festa da Boa Morte é considerada patrimônio imaterial da Bahia. Realizada em
Cachoeira, a festa atrai todos os anos baianos e turistas que prestigiam a tradição secular de
reverência a Nossa Senhora da Boa Morte pelas ruas da cidade.
Muito além de uma festa, há os discursos dessas irmãs. É evidente o empoderamento e a
consciência política facilmente verbalizada pelas componentes da Irmandade e que não
constituem momentos pontuais, como os que ocorrem nas celebrações. A ancestralidade que
tem os mais velhos como fonte de conhecimento e merecedores de respeito e a luta por
espaços de poder, para as mulheres constituem embates diários dessas irmãs.
4. Considerações finais
Durante a realização desse estudo, podem-se perceber as muitas faces que o conceito de
gênero pode esconder e como está presente em diversas esferas sociais. Mais que um problema
remoto, a subjugação da mulher ainda é evidente em nossa sociedade. Assim, longe de ser o
patriarcado ontológico, ele é, sobretudo, histórico. Dada a importância de se compreender as
razões pelas quais a sociedade pôs a mulher sob o domínio masculino, nos defrontamos com a
Irmandade da Boa Morte que é referência na luta de gênero no Brasil, sobretudo, pelo período
em que se formou. Período esse no qual o negro não possuía visibilidade social e, até mesmo,
a criação das irmandades negras estava atrelada a estratégia de romanização e controle de
massa escravocrata pela Igreja.
Assim, a Boa Morte além de enfrentar discriminações étnicas, enfrentou também questões
de gênero, pois a sociedade, a Igreja, o Estado e as outras irmandades não aceitavam uma
instituição na qual o poder fosse exercido por uma mulher. Soube, porém, sabiamente empregar
a ancestralidade e criar brechas na sociedade patriarcalista para sobreviver e conseguir
posteriormente reconhecimento por seu relevante papel na manutenção da cultura e religião
afro-brasileira e por sobrepujar o machismo criando espaços de acolhimento, resistência e
politização de suas irmãs.
Por estar acima dos conflitos de gênero, a ancestralidade foi fundamental para a implementação
e perpetuação da Boa Morte. Como um elo comum entre as diversas confrarias e irmandades
religiosas, não como algo romântico e estático, mas sim como uma de suas raízes identitárias,
a ancestralidade contribuiu para a valorização das irmãs por serem fonte de conhecimento
cultural e religioso e perpetuadoras das matrizes africanas. A ancestralidade é um dos princípios
que organiza o candomblé e está na essência dos preceitos valorizados na dinâmica religiosa,
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sendo um signo fundamental para a resistência étnica e de gênero da Irmandade.
Assim, a Boa Morte assume um contra discurso em relação à hegemonia masculina,
ultrapassando esferas discriminatórias de poder. As irmãs da Irmandade rejeitam as imposições
de uma sociedade falocrática, ao tempo em que criam um espaço fora das relações de gênero
prevalecentes. Esse comportamento que representa subversão, desrespeito e prepotência,
segundo a ideologia patriarcal, observada de outro ângulo, representa uma postura de
coragem e possibilidade de transformação e libertação das amarras da hegemonia masculina.
Referências
ANTONIL, André João. Cultura e Opulência do Brasil. São Paulo: Nacional, 1967.
GEROLLA, Goivanny. A mulher é mais julgada do que o homem? Especialistas analisam.
Disponível em:
http://mulher.uol.com.br/comportamento/noticias/redacao/2013/09/26/a-mulher-e-maisjulgada-do-que-o-homem-especialistas-analisam.htm Acesso: 28/04/2016.
LODY, Raul. Candomblé: Religião e Resistência Cultural. São Paulo: Ática, 1987.
LOUREIRO, Stefânie Arca Garrido. Identidade étnica em re-construção. Belo Horizonte: O
lutador, 2004.
NEVES, Amélia Tavares C. (org). Identidade negra e religião. São Bernardo dos Campos, 1986.
MUNANGA, Kabengele. Entrevista aberta concedida a Julvan Moreira de Oliveira. São Paulo.
2008.
REIS, João José. Rebelião escrava no Brasil: a História do Levante dos Malês. São Paulo:
Brasiliense, 1986.
SAFIOTI, I. B. Heleieth. Gênero e Patriarcado. Inédito, 2001.
TAVARES, Odorico. Bahia- imagens da terra e do povo. Rio de Janeiro: Civilização brasileira,
1964.
VERGER, Pierre Fatumbi. Orixás, deuses iorubas na África e no Novo Mundo. Tradução: Maria
Aparecida da Nóbrega, 5º edição. Salvador: Corrupio, 1997.
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TRADIÇÃO E TRADUÇÃO: Afetações no/do Cariri
Keila Almeida Gonçalves1
RESUMO
Esse artigo pretende introduzir o leitor no universo cultural da Região do Cariri Cearense,
com ênfase em Crato e Juazeiro do Norte. Ambas as cidades são comumente relacionadas ao
cangaço de Lampião e Maria Bonita e/ou ao catolicismo de Padre Cícero. Porém, a partir de
derivas pelas ruas é possível visualizar a diversidade cultural e o contraste entre o passado e
a modernidade. Assim, revisamos os conceitos de identidade cultural e memória. Em seguida
destacamos algumas obras visualizadas durante derivas, finalizando com a problematização da
tradição, hibridismo e tradução cultural.
Palavras-chave: Cariri. Tradição. Tradução cultural.
ABSTRACT:
This article intends to introduce the reader into the cultural universe of Cariri Region Cearense
emphasizing in the cities of Crato and Juazeiro do Norte. Both of the cities are related with
Lampião and Maria Bonita’s “cangaço” and/or to the Priest Cicero’s Catholicism. However,
while we drift through the streets we can see the cultural diversity and the contrast between
the past and the modernity. This way the concepts of cultural identity and memory can be
seen. Then, we bold some works displayed in the drifting’s to finish with the questioning
between the tradition, hybridism and the cultural tradition.
Keywords: Cariri. Tradition. Cultural tradiction.
1 Mestranda em Artes Plásticas, Vínculo Institucional com a Universidade Federal de Minas Gerais. Graduada em Serviço
Social, Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Telefone: 31 99339-3298. E-mail: [email protected]. Orientação
de Elisa Campos.
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1. INTRODUÇÃO
O presente texto traz reflexões acerca da tradição e da tradução cultural, juntamente com o
hibridismo. Destarte, toma como ponto de partida a Região do Cariri Cearense, centrando-se
principalmente nas cidades do Crato e Juazeiro do Norte. Sendo assim, o objetivo principal
desse trabalho consiste na apresentação – embora incipiente – de algumas obras artísticas
evidenciadas nessa região durante derivas realizadas pelo espaço urbano nos meses de
outubro e dezembro de 2015, bem como janeiro de 2016. Por vezes, a narrativa poderá se
revelar enquanto diário de bordo, uma vez que as reflexões partem da experiência em campo.
Para que seja possível tecer esse panorama, considerando o complexo contexto da Região do
Cariri, identificamos a necessidade de nos ater aos conceitos de identidade cultural, memória,
hibridismo, tradição e tradução cultural. Portanto, no primeiro momento nos dedicaremos a
essa tarefa, recorrendo ao referencial teórico específico para cada conceito. Na sequência,
sinalizaremos obras artísticas evidenciadas nas derivas e demais obras que compõem as
manifestações artísticas que nos afetaram, conforme fomos adentrando no “lugar Cariri”.
Posteriormente tentaremos problematizar o que fora evidenciado, em contraste com os
conceitos trabalhados.
Tendo em vista que não pretendemos nos distanciar integralmente da pesquisa de mestrado,
adotamos como parte da metodologia a concepção de lugar, bem como sua relação com a
produção do que denominamos como minha poética própria (Machado, 2015, p. 53-67), e que
está intrinsecamente associada às afetações do “lugar Cariri”. Com isso, enquanto metodologia,
utilizamos a análise dos conceitos supracitados e as reflexões advindas das afetações, dos
diálogos e das trocas adquiridas junto à comunidade do Crato e Juazeiro do Norte, que vem
ocorrendo desde outubro de 2015.
Essa troca se dá por meio das derivas nas ruas e nos espaços culturais, em conversas com
integrantes de coletivos, na participação em seminários, comunicações e festas populares no
cenário da Região de Cariri, bem como por meio do olhar, do diálogo com os moradores, e
leituras de blogs e livros sobre a temática. Espera-se, portanto, ultrapassar a porta de entrada
dessa Região, tão rica em pluralidade e complexidade cultural, que de forma nenhuma se
esgotará nesse artigo.
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2. TRADUÇÃO E/OU TRADUÇÃO
2.1. Identidade cultural, memória, hibridismo, tradição e tradução cultural
Ao analisar o sujeito pós-moderno no contexto contemporâneo, o antropólogo Stuart Hall
(2006) defende que este não possui uma identidade fixa ou permanente. Em seu entendimento:
“A identidade torna-se uma ‘celebração móvel’: formada transformada continuamente
em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados nos sistemas
culturais que nos rodeiam. E definida historicamente, e não biologicamente. O sujeito
assume identidades diferentes em diferentes momentos, identidades que não são
unificadas ao redor de um ‘eu’ coerente”. (HALL, 2006, p.12-13).
Dentro disso, é possível afirmar que a identidade cultural se encontra ligada aos elementos
da vida contemporânea, como aqueles provenientes da tecnologia, da industrialização, do
sistema capitalista e seus reflexos, bem como do perfil identitário de uma população onde
a diversidade e a pluralidade cultural podem ser visualizadas por meio de suas expressões
artísticas e produções mercantis.
Constatamos então, que a identidade cultural se caracteriza pelo diálogo entre o passado e o
futuro, revelando o contexto globalizado, onde o diverso pode ser experimentado por meio de
trocas culturais facilitadas pela tecnologia, tecendo constantes diálogos que se unem na teia
da vida contemporânea.
Nesse sentido, a identidade cultural é dinâmica, traz em si a memória do ontem, mas o devir
do amanhã. Portanto, a memória enquanto tradição está correlacionada ao passado e ao
presente, tida como elemento constituinte da identidade. Essa perspectiva é importante
quando analisamos o conceito de tradição, uma vez que este não se refere especificamente ao
que é velho, pois está vinculado a identidade, aos costumes e representações.
Por sua vez, com o advento da globalização somos compelidos a necessidade da preservação
da memória. Nisso, a arte torna-se um elemento constituinte para esse processo. Desse modo,
a arte enquanto lugar-de-memória2 preserva o sentimento de pertença a um dado espaço
social, sobretudo no contexto do efêmero, do transitório.
Ora, embora o “lugar Cariri” contenha traços específicos da Região ele também se insere no
plano contemporâneo, e esses coexistem simultaneamente, numa dialética contínua. Assim,
2 Na concepção de Pierre Nora, os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que
é preciso criar arquivo, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas,
porque essas operações não são naturais (NORA, 1993, p. 13).
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a arte criada a partir dessas referências invoca uma nova relação entre o ver e o interpretar, o
interstício entre significante e significado, que pode ser compreendido como tradução cultural
e/ou hibridismo (Rodrigues, 1992, p. 141-156). E, uma vez que a tradução cultural traduz o
que não está acabado, sendo um fragmento de uma imagem da totalidade, abarca memória,
tradição e contemporaneidade.
3. LUGAR CARIRI
Ao discorrer acerca das afetações experimentadas a partir das derivas no território de Crato e
Juazeiro do Norte, torna-se importante que primeiramente analisemos o conceito de lugar, ora
aqui proposto. Nesse sentido, entende-se que ao nos apropriarmos desse conceito, pretendese compreender o próprio ser humano, em suas múltiplas dimensões. Para Ana Carlos, a
geografia contribui nesse vislumbre, possibilitando “pensar o homem por inteiro em sua
dimensão humana e social que se abre também para o imprevisto, criando cada vez mais novas
possibilidades de resistir/intervir no mundo de hoje. ” (CARLOS, 2007, p.13). Compreende-se,
portanto, que a ambição da geografia cultural por meio do conceito de lugar:
“[...] é compreender o mundo tal qual os homens o vivem: ela fala da sensibilidade
de uns e de outros, das paisagens que eles modelaram, dos patrimônios aos quais
estão vinculados, dos enraizamentos ressentidos; ela descreve ao mesmo tempo
a mobilidade crescente dos indivíduos, a confrontação das culturas, as reações de
retorno que ela provoca, regionalismos, nacionalismos ou fundamentalismos, mas ela
destaca também a exploração dos multiculturalismos e a fecundidade dos contatos
renovados. ” (CLAVAL, 2001, p. 379).
Nestas condições, compreende-se que o lugar “guarda em si e não fora dele o seu significado
e as dimensões do movimento da vida, possível de ser apreendido pela memória, através dos
sentidos e do corpo” (CARLOS, 2007, p. 14). Em outras palavras, ele se refere a um conjunto
de signos, símbolos, trocas, identidades, histórias de vida, narrativas, lembranças/memórias
afetivas e imaginárias.
Sendo assim, dialeticamente construímos esse lugar, visto que somos afetados pelos lugares,
bem como os afetamos. Portanto, o lugar diz da afeição, do pertencimento, das afetações, dos
encontros, da experiência. Nosso estar no mundo, existência e coexistência. O lugar se refere
às nossas relações, mas por se tratar de um espaço complexo também diz das negações, da
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resistência, das mudanças. Por sua vez, o nordeste é construído a partir de imagens tradicionais (coronelismo, messianismo,
cangaço, seca) e dentro desse universo o “lugar Cariri” expressa essas características. No
entanto, historicamente, o Cariri é composto por contrastes de diversidade cultural, além da
disparidade de interesses e formas de representações culturais. Na coexistência de projetos
apoiados na ideia da modernidade sem, no entanto, negar a tradição é que se tornou possível
aproximar o antigo do moderno. (MARQUES, 2004).
Nesse contexto, como lugar de experiências e expressões de sensibilidades, o “lugar Cariri”
projeta identidade, tradição, memória, transformações, hibridismo, traduções. Num breve
relance (ao estar disponível para a experimentação), observamos que o tempo caminha de uma
forma peculiar. Vestígios de uma identidade étnica, sertaneja, religiosa, artesanal (dos couros,
cordéis, esculturas, xilogravuras), relacional (do oficio que é repassado para os familiares e
das trocas entre os diversos personagens que integram a região, por meio da presença da
universidade e romeiros). A memória encontra-se viva, reverberando nas casas, nas ruas, no
artesanato, na arte, no cotidiano vivenciado, nos circuitos e caminhos. O “lugar Cariri” traduz
a identidade dinâmica, orgânica e plural que se faz presente nesse cenário, nas interseções
entre o passado e o presente.
Por sua vez, no artesanato é possível enxergar a complexidade dessa identidade, que é
provocada pelo novo, adequando-se sem perder-se. E, nas ruas, esse mesmo contraste pode
ser apreendido nos muros, nos postes, nos coletivos e manifestações artísticas. Referências à
memória coletiva do homem/mulher sertanejo, dos recortes do couro, que convergem com o
contemporâneo. Essa presença nas peças artesanais e artísticas revela o hibridismo, o caminho
de uma tradução.
Dentro desse universo, o contexto da Região demonstra-se complexo e diverso, sobretudo
em relação às produções culturais. No entanto, observa-se que as artes contemporâneas da
Região do Cariri são pouco conhecidas. Fala-se dos calçados, das bolsas, dos cordéis, do forró,
do reisado. Na constância, fala-se de Lampião e/ou “Padim Ciço” e por vezes, encontramos
quem fale das xilogravuras. Contudo, durante as derivas é possível encontrar a presença do
graffiti, dos lambe-lambes, da fotografia, do rap, da performance, entre outras linguagens
artísticas.
Assim, por meio do contato mais próximo com a Região verificamos que há uma presença
marcante de coletivos envolvidos em comunidades vulneráveis e que dialogam com as artes
contemporâneas, sobretudo contrastando entre o passado e o presente, revelando um
hibridismo único.
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3.1. Afetações no/do Cariri
A Região do Cariri compreende os municípios do Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, entre
outras. Essa região é marcada por intenso comércio, que varia do industrial ao artesanal. Isso
ocorre, pois Cariri concentra todo tipo de arte, sendo reconhecida como um polo produtor da
cultura cearense.
Juazeiro do Norte, cidade que reúne maior centro de romarias, é rica em artesanato e tem
como principal atividade a produção dessas peças. Tendo a forte característica religiosa,
muitos artistas buscam inspiração em personagens como “Padim Ciço” ou nas influências
nordestinas oriundas das romarias ao longo dos anos. Percebe-se, portanto, que a referência
em personagens da cultural local e regional é um traço marcante na produção artesanal.
Dentro disso, observa-se peças em madeira, palha, couro, barro, ferro, gesso e literatura de
cordel, que dá força à xilogravura.
Nesse contexto, existem evidências para a confecção, por exemplo, de imagens do Padre
Cícero desde miniaturas até o tamanho natural. O Centro de Cultura Mestre Noza abriga
vasto acervo de peças artesanais. Quanto a literatura de cordel e a xilogravura, destaca-se
principalmente na Gráfica da Lira Nordestina. Encontramos ainda o repente, que conta com
grandes artistas fazendo versos e desafios de rimas. A cidade também possui uma orquestra
de rabecas. Atualmente o teatro vem ganhando força, contando com três teatros, enquanto
os grupos teatrais proliferam.
Reduto cultural, o munícipio do Crato exala cheiros, cores, texturas e sonoridades que capturam
o observador. O cotidiano do Crato - e não de Crato, como seus moradores fazem questão de
dizer - é caracterizado pelas manifestações artísticas. Historicamente, a cidade é conhecida
como a “Cidade da Cultura. (MARQUES, 2004). Uma semana de estadia na cidade é suficiente
para germinar amores que transcendem o tempo, demonstrando que somos cidadãos do
mundo, mas, sobretudo, do Crato. Todos somos Crato. Unificados, em amor.
Ao andar pelo centro esbarramos em lojas de peças artesanais e industrializadas, muros
grafitados, postes contendo lambe-lambes afixados, música regional ao fundo, pessoas com
o típico chapéu do sujeito sertanejo, comidas típicas que deixam saudades. Em cada esquina
somos arrebatados pelos sorrisos que acolhem a alma, e o sentimento de pertencimento –
verdadeiramente sentimo-nos parte desse lugar. Deixamos de ser estranhos ao primeiro olhar,
no primeiro bom dia. No entanto, paulatinamente também somos ocupados pela tecnologia
e globalização.
Todavia, no decorrer das derivas percebe-se que esse lugar acolhedor é mais complexo do
que as primeiras percepções. Encontramos um universo que não é divulgado nacional ou
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internacionalmente.
Durante as derivas programadas e/ou livres fui adentrando nesse complexo tecido cultural,
desbravando o novo e o velho, sentindo cheiros e sabores que não integram meu cotidiano. O
som do tambor, da rabeca, do repente e do canto gregoriano se fizeram presentes. Contudo, foi
no campo da experimentação estética que fui mais afetada, a surpresa ao observar a presença
da tradição nos muros e postes das ruas ganharam destaque e me remeteram para algumas
reflexões, dentre elas interrogações: “será que as produções visualizadas representam a arte
contemporânea? Há diálogo entre a tradição e a modernidade nas expressões artísticas ali
evidenciadas? Será a Região do Cariri um reduto de tradução ou hibridismo? ”.
Essas perguntas ainda se fazem presentes e não pretendo esgotá-las por meio de respostas
concretas, mas subjetivas, que partem da relação estabelecida com o “lugar Cariri, seus signos,
símbolos, memórias, trocas, identidades. Assim, se por um lado observo a manutenção do
passado por meio da tradição dos cordéis, das festas de reisado, do repente, da representação
de “Padim Ciço” e Lampião, também contemplo a presença de novos temas que perpassam
a contemporaneidade. Eles são desenvolvidos pela tradição dessas artes e pela modernidade
presente nas novas linguagens artísticas, tais como o graffiti, o lambe-lambe, a fotografia e
performance. Destarte, as ruas de Crato e Juazeiro do Norte revelam a dialética que ocorre das
trocas entre os sujeitos que por ali circulam, suas narrativas e produções
Para exemplificar, numa tarde de feriado em Crato, em plena sexta-feira, 1° de janeiro de 2016,
durante uma deriva não pré-agendada foi possível ouvir canto gregoriano na Igreja da Praça da
Sé e me emocionar com o contraste entre a beleza sonora da música e a beleza visual da dança
das árvores. Também foi possível me divertir com o vai e vem do bumerangue e as crianças
que se encontravam na praça. Na sequência, fiz cafuné nos gatos que por ali rodeiam. Nesse
contexto, assisti ao desfile de moda de quem vai para missa, encontrei com a turma intelectual
da região e observei os artistas populares que por ali transitam. Por fim, comi a melhor tapioca
do universo.
Nos demais dias, circulei entre igrejas, centros culturais, museus, bares, mercados, lojas,
mas, sobretudo, conversei com seus habitantes. Nas paredes dos muros, contemplei técnicas
plásticas diversas, que revelam a Região e outros lugares3. No coração, fui arrebatada pelas
histórias de vida, pela fé, pela imaginação e criatividade de cada morador, pelo acolhimento,
pelo calor humano e do sol, que aquece o sertão.
3 É comum encontrar parcerias entre os coletivos de Cariri e coletivos de outros municípios, estados e países.
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3.2. URCA
A Universidade Regional do Cariri (URCA), localizada nos municípios do Crato, Juazeiro do
Norte e Santana do Cariri é um reduto das manifestações artísticas da Região. Por vezes, revela
o papel político da arte, que se contrapõe ao contexto educacional, local ou não.
Foto 1: Mural na URCA
Stencil produzido por forças políticas do movimento
estudantil
Fonte: Imagem coletada in loco
Foto 3: Muros na URCA
Stencil produzido por forças políticas do movimento
estudantil
Fonte: Imagem coletada in loco
Foto 2: Mural na URCA
Trabalhos do Coletivo Oaxaca do México em parceria
com o Coletivo Xicra (xilogravos do Crato)
Fonte: Imagem coletada in loco
Foto 4: Muros na URCA
Trabalho desenvolvido por estudantes do curso
de história mediado pelo professor Dr. Titus e o
artista Carlos Henrique Soares
Fonte: Imagem coletada in loco
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Foto 5: Mural na URCA
Trabalho desenvolvido no PIBID com alunos do
Ensino Médio que reflete criticamente a imagem/
palavra.
Fonte: Imagem coletada in loco
Foto 6: Mural na URCA
Trabalho desenvolvido no PIBID com alunos do
Ensino Médio que reflete criticamente a imagem/
palavra.
Fonte: Imagem coletada in loco
3.3 Coletivo Camaradas
Nas palavras de Alexandre Lucas, artista, educador e coordenador do Coletivo Camaradas, o
coletivo é uma organização política que atua no campo das artes, da pesquisa, da produção
e difusão cultural e das lutas por políticas públicas para cultura. Sendo assim, o coletivo é
formado por estudantes, artistas, brincantes e professores.
Compreendemos que o Coletivo Camaradas pode ser apreendido nas ruas do município do
Crato, nos muros, nos postes, nas imagens e palavras. Encontramos o coletivo na Comunidade
do Gesso, nas manifestações culturais, nas parcerias com outros coletivos, na rede social.
As linguagens artísticas são diversas, bem como seus integrantes, que tem em comum, o
empoderamento social.
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Foto 7: Comunidade do Gesso
Roda Poesia na Comunidade do Gesso /Crato
Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas
Foto 8: Comunidade do Gesso
Trabalho de intervenção desenvolvidos com
crianças da Comunidade do Gesso/Crato
Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas
Foto 9: Escola da Rede Estadual
Performance desenvolvida pelo performer
Alexandre Lucas do Coletivo Camaradas com
cerca de 50 alunos numa aula sobre arte urbana,
performance, tecnologia e empoderamento social
Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas
Foto 10: Ruas do Gesso
Trabalho
de
lambe-lambe
desenvolvido
mensalmente na Comunidade.
Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas
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3.4. Outras afetações
Foto 11: RFFSA
O muro do Centro Cultural do Araripe - RFFSA é
uma espécie de galeria a céu aberto que serve para
experimentação de técnicas de arte urbana.
Fonte: Imagem coletada in loco
Foto 12: Ato 2 – A transfiguração do santo
Série violência simbólica.
Trabalho desenvolvido em Cariri e exposto na
cidade de Icó
Fonte: Imagem cedida pelo fotógrafo e estudante
de artes visuais, Rafael Vilarouca
Foto 13: Juazeiro do Norte
Stencil desenvolvido durante Mostra Sesc.
Fonte: Imagem coletada in loco
Foto 14: Ação Poluição
Intervenção Urbana desenvolvida em período
eleitoral que consistiu em colocar cavaletes nas
proximidades das propagandas dos candidatos e
registrar. Os registros em fotos foram encaminhados
para a Justiça Eleitoral junto com documento e para
a imprensa com release.
Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas
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Foto 15: Parangolé Coletivo
Foto 16: Pelo direito de brincar
Trabalho desenvolvido com alunos de Lambe-lambe que aborda a questão de gênero a
Escola Pública que abordou questões do partir do lúdico.
homem nordestino e a sua relação com a Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas
contemporaneidade a partir de uma releitura
da obra de Helio Oiticica.
Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas
Foto 17: Mostra a sua cara
Lambe-lambe desenvolvido com crianças
Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas
Foto 18: A manifestação
Trabalho desenvolvido com cerca de 500 alunos
de uma escola pública aonde foram abordadas
questões de muralismo, arte urbana, unidade
visual - o trabalho tinha cerca de 50 metros de
extensão.
Fonte: Imagem cedida pelo Coletivo Camaradas
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4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
O tema desse artigo surgiu a partir do contato com a Região do Cariri durante o ano de 2015.
Desde então tenho realizado visitas constantes na Região, sendo que a última ocorreu em
janeiro de 2016. No primeiro contato já foi revelada a diversidade cultural do Crato e Juazeiro
do Norte e o diálogo entre tradição e modernidade, sinalizando a complexidade do Cariri.
Entre o lá e o cá, na ponte aérea Belo Horizonte – Juazeiro do Norte e Crato eu vou paulatinamente
me misturando de forma heterogênea nesse contexto. Em cada viagem adquiro uma nova
peça para a construção do meu mosaico. Minha obra final será repleta de contrastes: o velho,
o novo, o passado, o presente, o futuro. Tradição e modernidade são confundidas, uma vez
que confluem, culminando num hibridismo e, sobretudo, numa tradução da cultura local e sua
relação com a contemporaneidade.
O “lugar Cariri” pode representar “Padim Ciço”, Lampião e Maria Bonita, o sujeito sertanejo,
os cordéis, os repentes, o reisado e a xilogravura. Porém, também representa o hip-hop, a
performance, o graffiti, o lambe-lambe, a fotografia e tantas outras expressões artísticas que
dialogam com temáticas que perpassam questões contemporâneas. Por meio da intensa
romaria, que culmina no turismo regional, a Região troca experiências com o Brasil e o mundo.
No entanto, poucos adentram mais intimamente no universo cultural permeado de hibridismo,
que é o lugar Cariri”.
Os espaços observados expressam sensibilidade estética, construções sociais concretas e
subjetivas, imaginários, apropriações, negações e exclusões. O “lugar Cariri diz do acesso, do
posicionamento político e das narrativas históricas. Nesse território, passado e futuro dialogam
a fim de alimentar o presente. Entretanto, essa realidade é evidenciada principalmente nas
ruas. Nas palavras do artista e educador Cratense, Alexandre Lucas:
“O Cariri não pode ser visto como um fragmento isolado dentro de uma totalidade, mas
compreendido como parte entranhada desta totalidade, recheada por antagonismos
e confluências nos mais diversos aspectos. Em tempos de globalização, o processo e
as formas de produção e reprodução da existência humana, ocorre numa velocidade
quase que instantânea e não estamos inertes a esses acontecimentos. É deste Cariri
do campo e da cidade, da indústria e da oficina de fundo de quintal, do operário e
do empresário, da Igreja Católica e dos terreiros das religiões de Matriz Africana, das
brincadeiras populares, do imaginário que se mistura com o real, da diversidade e da
pluralidade que nos alimentamos.” (SILVA, 2009).
Considerando a fala do autor, juntamente do que é historicamente marcado na região, em
conjunto com nossa experiência durante as derivas, percebe-se a complexidade que permeia o
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“lugar Cariri. Portanto, para que a introdução no assunto fosse possível, revisitamos – embora
incipientemente - conceitos outrora trabalhados, dentre eles identidade cultural, memória e
tradição, agregando novos conceitos que estão intrinsicamente correlacionados a estes, entre
eles tradução e hibridismo cultural. Por fim, temos consciência que as obras apresentadas,
bem como a reflexão desenvolvida não é suficiente para abarcar a potência cultural da Região
do Cariri, sobretudo, considerando suas especificidades, que tornam a Região tão peculiar.
No entanto, espera-se que a partir desse breve relato, aqui ilustrado por meio das fotos ou
das reflexões acerca da problematização entre tradição, tradução e hibridismo, seja possível
instigar outros sujeitos a conhecerem o “Oásis do Sertão, suas referências históricas e culturais.
Do passado, do presente e do futuro. Porque todos somos Crato, Juazeiro do Norte, Cariri.
REFERÊNCIAS
CARLOS, Ana Fani Alessandri. O Lugar no/do mundo. São Paulo: FFLCH, 2007, 87p.
CLAVAL, Paul. De Haussmann au Musée social. In: V. Berdoulay; P. Claval (dir.), Les débuts de
lurbanisme français, op. cit, 2001, p. 11-23.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Tradução Tomaz Tadeu da Silva,
Guaracira Lopes Louro, 11. ed., Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
MACHADO, Marina Marcondes. Só Rodapés: Um glossário de trinta termos definitivos
definidos na espiral de minha poética própria. Rascunhos: Uberlândia v. 2 , n. 1, P. 53-67,
jan./Jun. 2015.
MARQUES, Roberto. Contracultura, tradição e oralidade: (re) inventando o sertão
nordestino da década de 70. São Paulo: Annablume, 2004. 168 p.
NORA, Pierre. Entre memória e História: a problemática dos lugares. Projeto História, São
Paulo, n. 10, dez. 1993.
RODRIGUES, Adriano D. O dispositivo da enunciação. In: RODRIGUES, Adriano Duarte.
Comunicação e cultura: a experiência cultural na era da informação. Lisboa: Presença, 1994.
p. 141-156.
SILVA, Alexandre Lucas. Cariri: Um todo de uma parte ou uma parte de um todo. Cariri, 05
dez. 2009. Disponível em: http://blogkariri.blogspot.com.br/2009/12/cariri-um-todo-deuma-parte-ou-uma.html. Acesso em: 05 jan. 2016.
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Políticas Culturais
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Sobre a desimportância da cultura e a cultura Brasileira
Cleise Campos1
RESUMO:
Breve reflexão sobre a importância e a prática da cultura, considerando o artigo 215 da
Constituição Brasileira, que assegura a Cultura como direito inalienável para todos, traçando
paralelo com a importância do Ministério da Cultura para assegurar o cumprimento previsto na
Constituição, na garantia do acesso e direito à cultura, onde a União assume papel norteador
na efetivação de políticas culturais, com um padrão que integre e articule os entes federados.
Cito os sistemas de cultura– municipais, estaduais e nacional, com seu fundamental conjunto
de instrumentos envolvendo sociedade civil e poder público, como elemento estratégico para
que aquele desejo – estabelecido na Constituição Brasileira, tenha mecanismos reais de se
materializar.
Palavras Chaves: Cultura. Cidades. Políticas Culturais. Direitos culturais. Desenvolvimento
cultural.
ABSTRACT:
A brief reflection on the importance and practice of culture, considering Article 215 of the
Brazilian Constitution, which ensures the Culture as an inalienable right for all, drawing
parallel to the importance of the Ministry of Culture to ensure the expected compliance by
the Constitution, ensuring access and the right to culture, where the Union has a guiding role
in the effectiveness of cultural policies, with a pattern that integrates and articulates federal
entities. I quote the culture systems - local, state and national, with its fundamental set of
instruments involving civil society and public power, as a strategic element to that desire established in the Brazilian Constitution, have real mechanisms to materialize.
Key words: Culture. Cities. Cultural Policy . cultural rights. cultural development.
1 Cleise Campos: Atriz-Bonequeira e historiadora, atualmente coordena o setor de Políticas Culturais da Secretaria de Estado
de Cultura do RJ (maio de 2016/São Gonçalo-RJ)
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A imagem de uma espiral, um círculo, onde se vê o cidadão, o município, o Estado, e a União,
é imagem interessante para visualizar o conceito de Articulação Federativa, tendo a política
cultural como foco balizador. Estamos vivendo, nesse momento da História, uma curva, com
indagações pontuais sobre a importância (ou não) da cultura, especialmente nestes dias,
quando da publicação da Medida Provisória Nº 726,12 de Maio-2016/Casa Civil-Governo
Provisório, com força de lei, que extinguiu o Ministério da Cultura.
Renan, meu sobrinho de nove anos, é um menino muito “perguntador”. Faz milhares de
perguntas. Outro dia mencionou que ia “desistir” de perguntar porque nem sempre tem as
respostas que deseja, ou no tempo que deseja. Enfatizei que era importante manter suas
perguntas e repeti a lição recebida de um professor da graduação em História (FFP-UERJ), nos
idos de 1984: “O melhor das perguntas não são as repostas, e sim o processo de investigação
e vivência que atravessamos para chegar até elas. ” Cito Renan e o ex-professor para enfatizar
a importância das nossas repetidas indagações no campo da política cultural, em especial, a
mesma que muitos repetimos, recentemente – A Cultura é importante? Para que Ministério
da Cultura?
A Constituição, no seu artigo 215, assegura a Cultura como direito inalienável para todos.
Estabelece o que deve ser cumprido no tocante à cultura. Podemos afirmar que o Ministério
da Cultura existe para assegurar o cumprimento dessa determinação. Para dar conta da
tarefa, podemos pensar na utilidade do sistema de cultura justamente para que o direito à
cultura se efetive, para que seja uma realidade sob guarda e proteção dos seus respectivos
protagonistas – conhecedores de sua realidade local (nos municípios e estados), onde a União
assume papel norteador, com um padrão que integre e articule todos os entes federados.
Os sistemas de cultura seriam, sob este ponto de vista, o conjunto de instrumentos para
que aquele desejo – estabelecido na Constituição Brasileira, tenha mecanismos reais de se
materializar. Com os sistemas, temos mais chance de aprimorar o que já existe, a partir da
Constituição, considerando a institucionalização da cultura como política de estado, tendo
na potência do Ministério da Cultura a condução desse processo. Bernardo Mata Machado,
pesquisador mineiro, destaca que ao instituir os Sistemas mantendo harmônica articulação
federativa integrando municípios, estados e a união, em especial na elaboração dos Planos
de Cultura “ (…) é possível ter uma real radiografia do que temos, o que queremos ter, e o
que é preciso fazer para ter, para chegar lá, para onde orienta nosso desejo. ” (PUBLICAÇÕES
Pólis; 48. 2005)
Perseguindo esse objetivo unificador aos diversos entes federados e da sociedade - a promoção
do acesso e a democratização da cultura, como um dos benefícios diretos a ser considerado
pelos municípios quando da instalação dos seus sistemas de cultura, e mesmo os estados
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brasileiros, como o fluminense, a partir da Lei 7035/2015 – que instituiu o Sistema Estadual
de Cultura do RJ, é possível operar a transposição do discurso institucional para execução da
ação. Estabelecer diálogo entre os entes federados e a sociedade é um exercício novo, uma
prática recente, considerando a própria história política brasileira, sobretudo nas políticas
culturais, permeada durante séculos pelo dirigismo, sem qualquer condição de diálogo ou
participação social nas esferas de poder.
A presença da sociedade civil é um dos mais importantes aspectos nesse processo de
efetivação das políticas culturais, ampliando a prática da participação e escuta da sociedade
civil, garantindo o controle social (fiscalização das ações e efetivação das decisões tiradas
nos conselhos, fóruns e conferências de /cultura). Considerando o alerta de Albino Rubim,
pesquisador baiano que presidiu o Conselho de Estadual de Cultura da Bahia e ocupou a
cadeira de secretário estadual em seu estado, é preciso estar atento à lição do passado:
“A trajetória brasileira das políticas culturais produziu tristes tradições e enormes desafios.
Estas tristes tradições podem ser emblematicamente sintetizadas em três palavras: ausência,
autoritarismo e instabilidade” (RUBIM, 2015)
Enfrentando a tradição do autoritarismo, que tem como um dos traços (ainda presentes nas
gestões culturais) a ausência de diálogo, é justamente a partir das trocas e das parcerias com
a participação de vários atores que o processo tende a ser efetivado.
Cabe ao poder executivo atenuar a condição de inibição – e em alguns casos de desconfiança
- de boa parte dos participantes da sociedade civil nas discussões e encaminhamentos
sobre políticas e ações culturais. Em rápida contextualização do período “inaugurador” das
políticas culturais no Brasil, destacando as principais características da pioneira e inovadora
experiência de gestão pública cultural implementada no município de São Paulo, com a
presença de Mario de Andrade no Departamento de Cultura (1935-1938). Ter a cultura
embasada em um conceito mais amplo, antropológico, com efetividade da democratização
da gestão e das políticas públicas, tem espaço recentíssimo na história republicana do Brasil,
em uma sucessão de fatos, ao longo das últimas oito décadas.
Outros marcos emblemáticos, além da gestão de Mário de Andrade, merecem atenção:
·
As transformações no final da década de 1970, no âmbito federal - em plena ditadura
militar, sob a direção de Aloísio Magalhães na Secretaria Nacional de Cultura (Ministério
da Educação e Cultura – MEC). O gestor, um prestigiado designer, galgou espaço na
estrutura do governo, após realizar e estimular pesquisas no Centro Nacional de
Referência Cultural;
·
A criação do próprio Ministério da Cultura – MinC (1985);
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·
A promulgação da Constituição em 1988 – contribuindo com uma estrutura um pouco
mais democrática, combinando com o período político de redemocratização iniciado em
1985;
·
Marilena Chauí como titular na Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo (19891992) e as formulações de cidadania cultural que orientam diversos programas culturais
no Brasil;
·
Gilberto Gil no Ministério da Cultura (2003), ampliando em escala nacional a discussão
da política cultural, antes restrita as áreas de Artes e do Patrimônio, incorporando outras
dimensões como a simbólica, econômica e a cidadã, como vimos ao longo do curso;
·
Realização nos diversos estados brasileiros dos seminários “Cultura para Todos” (2003
e 2004), provocando debates e discussões sobre políticas e ações estruturantes para o
setor;
·
Convocação das conferências municipais, estaduais e setoriais de cultura, bases para
a 1ª Conferência Nacional de Cultura e discussão do Plano Nacional de Cultura – PNC
(2005).
Foram estas articulações que possibilitaram a consolidação do PNC e o começo de maior
integração das ações do Poder Público com a sociedade civil. A partir desse conjunto de
marcos, foram sendo estabelecidas outras ações significativas em uma perspectiva sistêmica
e estruturante para o setor cultural. O rico processo das demais conferências nacionais de
Cultura realizadas em 2010 e 2013, foi decisivo para o avanço das políticas culturais no Brasil
e potencializou a escuta e a fala do cidadão (importante destacar que os delegados eleitos
pela sociedade civil foram maioria nessas conferências em todas as suas etapas – municipais,
estaduais e na nacional, em uma conta percentual propositadamente estabelecida pelo
MinC).
O Conselho Nacional de Política Cultural (Decreto Nº 5.520/24 de agosto de 2005 –
Presidência da República), inova com a eleição de seus representantes da sociedade civil,
mudando a antiga tradição da indicação, estabelecendo uma nova composição paritária governo e sociedade, com caráter consultivo e deliberativo. Vários estados e municípios
passam a aderir esse novo formato para os Conselhos – a exemplo do Estado do Rio de
Janeiro, que teve seu processo eleitoral finalizado em março do ano corrente, após seis
meses de eleição dos conselheiros das dez regionais do estado fluminense e segmentos
artísticos, que vão se somar a outros 16 (dezesseis) nomes na composição final de 32 (trinta
e dois) conselheiros de cultura do estado e respectivos suplentes, que tomam posse em 30
139
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de maio na Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro - ALERJ.
É nesse novo cenário de participação social e ampliação do debate e do raio de ação sobre
as políticas de cultura no Brasil que tem sido construído o Sistema Nacional de Cultura - SNC,
que articula oficialmente uma agenda de planos e ações no/para o país onde cada ente
federativo, nos três níveis, estrutura o seu próprio sistema.
Fortalecendo os sistemas de cultura no estado do Rio de Janeiro, com expediente de
estimulo a qualificação da gestão cultural, mais de 30 (trinta) prefeitos assinaram termos
de compromisso com a secretária de estado de cultura do estado do Rio de Janeiro, Eva
Doris Rosental, para ação articulada entre municípios, SEC, e Ministério da Cultura, no apoio
à elaboração dos Planos Municipais de Cultura, através da dinamização dessas tarefas nas
cidades fluminenses2.
Quanto à dinamização proposta pela Secretaria de Estado de Cultura do Rio de Janeiro,
apoiando a elaboração de planos de cultura nos municípios, em parceria com o Ministério
da Cultura, além do executivo (prefeituras, governo estadual e federal), a sociedade civil
tem papel estratégico quando assume participação decisiva, pactuadas entre todos. Toda
essa prática, recente e nova, é a própria democracia brasileira em evidência, onde as
conferências, os conselhos, as trocas entre os órgãos culturais, a destinação de recursos,
o acesso à fruição aos bens e meios de produção culturais, consolidam as articulações
possíveis para que o direito à cultura seja materializado, se tornando uma realidade. Na
cultura do estado fluminense esse processo percorreu mais de sete anos, iniciado na gestão
Adriana Rattes em 2008.
Nessa soma/contexto, fica fácil compreender a extensão e importância da recente prática
de trocas, evidenciada pela articulação federativa, explicitada no verbete da Secretaria de
Articulação Institucional do Ministério da Cultura, a saber:
(…) exercício da relação com a sociedade, envolvendo instituições públicas executivas,
em função de profícua interlocução, tendo o diálogo como elemento primordial de
sua prática para formulação de pactos. É o entendimento de um conjunto de regras
de cooperação que, interligadas entre si (junto aos seus componentes integrantes –
como municípios, estados e União), objetivam tornar possível a distribuição coerente
e justa de tarefas, ações e recursos entre os entes federados. Uma vez articulados,
os vários atores podem exercitar o compartilhamento das decisões administrativas,
aprimorando a prática da transparência, da moralidade e da legalidade, conceitos
recentes no Brasil pós-ditadura. Tal exercício tende a estimular a cooperação com
variados setores, movimentando os espaços de interlocução público-privada com a
criação de novos mecanismos de gestão entre as instâncias de governo e dos diversos
setores da sociedade civil (CASA CIVIL/Presidência da República-DF, Maio 2012)
2 Mais informações em: http://sec.cecierj.edu.br/dinamizadores.php
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Quando enxergamos as peças integradas com a forma de um conjunto harmônico (conselho,
plano, fundo, e instrumentos de ação - participação social, levantamento de dados, ofertas
de formação), o quebra-cabeça montado com a devida localização das atribuições de cada
um, o processo, ainda que recente, tende a avançar. Identificar nesse tempo de “primeiras
vezes” o que cabe aos municípios, ao Estado do Rio de Janeiro e a União, é aliviar em parte
as tensões. Passada mais de uma década da atual fase de debate das políticas culturais,
iniciada em 2003, é bom refletir sobre o atual cenário cultural.
Neste tempo contemporâneo, onde a linha do tempo do Facebook deixa escapar informações
que nunca param de “passar” na tela do seu computador, notebook, tablet, ou celular, onde
os eventos digitais que alimentam as redes sociais exigem pressa, tamanha a rapidez e
pulverização da notícia acontecimento, ou mesmo pelo acúmulo de tantas informações, sem
às vezes potencializar de fato a própria informação, no avesso do objeto da comunicação em
si, é fundamental manter interessante à pauta cultural nos municípios, alimentando o já
citado Sistema Estadual de Cultura.
Isto posto, como integrar mais os municípios fluminenses nesta pauta estadual, frente
a este cenário de pressa e imediatismo, mantendo a “tarefa” produtiva sem gosto de
inservível?
Em resposta a estas urgências devemos considerar a necessidade de um planejamento,
tarefa indiscutível de uma boa gestão cultural. Em especial na gestão pública, equilibrar o
abstrato da arte com a formalidade dos ritos burocráticos é tarefa espinhosa.
Com a necessidade da elaboração de projetos desenvolvidos e “aplicados” dentro de
programas culturais, na prática, dando corpo as ações contínuas de médio e longo prazo,
como preveem os Planos de Cultura, o artista também está sendo “convidado” a repensar
seu papel, transitando entre um e outro campo. A prática de “organização de eventos”, ou
a espera/expectativa de apoios relâmpagos para essa ou aquela atividade, que marcaram
por um bom tempo a gestão cultural nos municípios, deve ser aprimorada para a efetivação
de programas contínuos nos quais os projetos – devidamente planejados, serão o objeto da
ação cultural em si.
Nesse movimento de articulações o Estado tem atuado, sobretudo, como um motivador, um
mobilizador, incentivando gestores públicos e agentes culturais, comunidades e sociedade
em geral. No cenário de urgências apresentado pelos municípios, a descentralização das
ações e competências do “fazer cultural” deve ser assumido por todos os atores. As trocas e
parcerias no mapa local, regional, estadual e nacional (e internacionalmente), é a articulação
federativa na prática, considerando o objetivo comum na defesa dos bens culturais. Um
pacto de adesão real com regras para todos, com propostas integradoras observando o
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tempo de cada ente federado, no seu próprio tempo de construção, é uma das respostas às
últimas indagações dando conta de manter integrada as cidades na pauta cultural, mesmo
com esse tempo de pressa e imediatismo.
Aloísio Magalhães (1976) sempre potencializou o tamanho dos municípios, destacando que
é na cidade o lugar primeiro de se pensar a cultura, buscando proteger, apoiar, promover e
garantir o acesso e a manutenção dos bens culturais, como pontua:
É na cidade que estão os blocos de rua, as manifestações culturais populares,
os artistas, os artesãos.... É na cidade que vivenciamos o despertar das artes, onde
preservamos a memória, que nos apropriamos dos saberes e fazeres culturais, nas
suas diferentes expressões. É na cidade que a determinação de resolver os problemas
deve ser o primeiro pré-requisito da ação de proteção do bem cultural, desenhando
um caminho, mais do que detalhar uma trilha. (MAGALHÃES, Aloísio. 1997)
Reconhecendo que uma das dificuldades para efetivação de tais ações articuladas entre os
entes federados é a falta e/ou a inexistência de atuação nos próprios governos (municipais,
estaduais e federal), em função de realidade semelhante nas três esferas, desde a ausência
de pessoal qualificado, falta de estrutura e recursos, descontinuidade das ações, ou
ainda, ausência de vontade política ou personalismo extremado, é necessário localizar as
fragilidades que dificultam a ação para superação das lacunas que emperram o processo,
que não “deixam a máquina” andar.
Para ampliar as condições de ações culturais em nossos municípios, saindo da solidão que
às vezes limita e enquadra o extrato simbólico potencial da cultura frente às dificuldades
que se repetem de “sem” (sem recursos, sem equipamentos culturais, sem equipe, sem
planejamento, sem espaço nas pautas dos chefes do executivo, sem alternativas eficientes
de comunicação e estrutura), é necessário conversar, dialogar, ver, visitar, buscar, se articular,
enfim, estar em movimento, gerar movimento. Se movimentar. Se a nossa maior riqueza
são as nossas diferenças, e o município – ponto chave onde a cultura “começa”, é o melhor
guardião do seu próprio patrimônio - conforme nos ensinava o já citado Aloísio Magalhães em
seus discursos, valorizar potencialmente a identidade cultural local, é atribuição primordial
dos órgãos e entidades municipais, cabendo ao Estado criar as condições para proteger os
seus bens culturais e não só os materiais, assim como os imateriais.
Uma terceira indagação pode ser colocada: Como fazer sobreviver o Jongo, o Mineiro Pau,
o Candomblé, a Folia de Reis, as diversas manifestações culturais populares diante da
invasão eletrônica, que quase atropela a cultura dos municípios em tempos do III Milênio?
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O empobrecimento que representa para cada município a perda de parte da sua identidade
cultural, deveria ser “medido” e exposto em um gráfico para conhecimento de todos, a
tal ponto que tal exposição promovesse imediata ação para salva-guarda do patrimônio
cultural.
Tomando como referência a premissa da preservação do patrimônio cultural, dois exemplos
de ausência de uma prática articulada entre os entes federados pesam na condição primária
de proteção de importantes patrimônios culturais: A Fazenda Colubandê, situada no
município de São Gonçalo, Região Leste Fluminense, onde prefeitura, governo estadual, e
união ainda não avançaram na composição de ações em prol da preservação do patrimônio
de posse do Estado do RJ, tombado pelo IPHAN desde 1940. Com a saída do Batalhão Florestal
da PMERJ, em 2012, o valioso patrimônio construído em 1618 apresenta preocupante
cenário de abandono. Mesmo cenário é realidade no Solar Del Rey, na Ilha de Paquetá,
patrimônio estadual mas cedido ao município do Rio de Janeiro por tempo indeterminado
desde 1976. O prédio histórico, que recebeu o tombamento Federal em 1938, encontra-se
interditado desde 2009 e a comunidade reivindica, desde então, que além de restaurado
seja transformado no primeiro centro cultural público da ilha.
Já um bom exemplo de ação articulada entre os entes federados, no mesmo expediente de
preservação do patrimônio cultural, destaca-se a Casa Casimiro de Abreu, em Barra de São
João/Casimiro de Abreu, na Regional Baixada Litorânea, onde município, estado e União,
desempenham com êxito a divisão de tarefas, na especificidade das atribuições de cada um.
O cientista social e produtor cultural Flavio Aniceto, aborda em suas pesquisas propostas de
ação fruto de processos construídos a partir do diálogo, destacando as parcerias criativas
institucionais, públicas ou da sociedade civil, que combinadas tendem a contribuir para o
desenvolvimento, a gestão e as ações culturais em suas realidades socioculturais. Aniceto
destaca que as redes e coletivos culturais, como uma forma contemporânea de organização
fazem, na prática, valer os conceitos de cidadania e autonomia cultural e as relações entre
os direitos à cultura e à cidade.
Associar tal conceito às práticas de produção de ações culturais comunitárias, ou à criação
de redes (fóruns presenciais ou nas redes sociais, e mais recentemente, no chamado “what’s
up”), é buscar como estes conceitos podem contribuir para as realidades socioculturais de
gestores públicos e conselheiros de cultura, agentes e animadores culturais, investindo em
retornos mais consistentes e efetivos para as políticas culturais. Bom destacar a historiadora
Lia Calabre, que explora na sua linha de pesquisa os ensinamentos da Filósofa Marilena
Chauí (2006), que oferece uma cartilha “guia” para a nova administração/gestão da cultura
pautada na “cidadania cultural” como alternativa possível para implementação de políticas
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culturais de caráter mais universal, do “direito a ter direitos”.
Com todas as constatações do lugar de importância da cultura no mundo, e o que temos
lavrado na Constituição Brasileira, que estabelece a cultura como direito, última indagação:
o que é necessário fazer para que a cultura saia do patamar de desimportância nas pautas
e decisões políticas?
Como uma medida provisória de um governo provisório não reconhece a legitimidade de
um processo rico e amplo articulado entre tantos atores das cidades brasileiras, e extingue
o Ministério da Cultura, guardião primeiro do Artigo 215 da Constituição? Nas publicações
do especialista em políticas culturais, Teixeira Coelho, a provocação de que “todos querem
a cultura, mas ninguém quer pagar pela cultura”, é um alerta na contramão do que aponta
o relatório da UNESCO, que trata da importância da Cultura como ferramenta estratégica de
desenvolvimento. É uma provocação frente à constatação de cientistas sociais das grandes
nações europeias, em 2001, que potencializa a cultura como 4ª pilar de crescimento e
desenvolvimento mundial, atrás da economia e do meio ambiente.
O jovem diretor do singelo Museu Casa do Pontal, Lucas Van de Beuque, tem trabalhado
no processo de gestão e produção do setor cultural com questionamentos que remetem à
manutenção e sustentabilidade de grupos e espaços culturais. Ele é mais um resistente na
defesa da cultura popular e responde a esta última reflexão: está atuando, seguindo, sem
desistir. Não existe uma fórmula, um “pulo do gato” para “dominar” os assuntos da cultura.
Até pouco tempo antes se aprendia “fazendo”. Agora existem instrumentos com mais solidez
para atuar, tanto na gestão pública, como nas instituições e entidades da sociedade civil.
Hoje temos uma nova prática no nosso espaço-local de atuação. Desta feita, acreditando
que “que o caminho se faz entre o alvo e a seta” (ABRUNHOSA), é impossível pensar o Brasil
hoje, sem o Ministério da Cultura.
Justamente pelo que já foi conquistado e pelo que ainda existe para ser consolidado, frente o
recuo de alguns setores e políticas culturais, nos últimos cinco anos, não é possível acreditar
que se efetive o retrocesso de acabar com o Ministério da Cultura. O lugar que chegamos,
envolvendo estados, municípios e os tantos protagonistas do setor (agentes e animadores
culturais, artistas e produtores culturais, gestores públicos de cultura, conselheiros de
cultura e pesquisadores da cultura), e até mesmo parte da população, não é patrimônio que
se joga fora, não há como regredir: É para frente, ou para frente.
A outra parte do Brasil, que não perde noites de sono com alguma biblioteca, teatro,
circo, museu, ou centro cultural fechado (por falta de verba para funcionar), até mesmo
esse “pedaço” do Brasil reconhece a importância da cultura. O que temos de mais valioso
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nesse tenso momento da História Brasileira, para nós, atuantes na cultura, vivendo o
caminhar sólido da construção das políticas culturais, é focar no “FICA MinC”. O legado de
indiscutível importância dos Governos Lula e Dilma, construído com a participação social,
está consolidado e o retrocesso de apequenar o Ministério da Cultura em uma secretaria
nacional, vinculada ao Ministério da Educação, é diminuir seu tamanho, é desvalorizar o que
o Brasil tem de mais rico e poderoso – sua Cultura.
Referências
BOTELHO, Isaura. Romance de Formação: FUNARTE e Política Cultural. 1976-1990. Rio de
Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa, 2000.
Casa Civil, Presidência da República. DECRETO Nº 7.743/Artigo 21. -DF, Maio 2012.
CHAUÍ, Marilena. Cidadania Cultural: o Direito à Cultura. São Paulo: Fundação Perseu Abramo,
2006. COELHO, Teixeira. Dicionário Crítico de Política Cultural. São Paulo: Iluminuras, 1997.
CALABRE, Lia. Políticas públicas culturais de 1924 a 1945: o rádio em destaque. Revista
Estudos Históricos. Rio de Janeiro, 2003.
MAGALHÃES, Aloísio. E Triunfo? A questão dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro. Nova
Fronteira; Fundação Roberto Marinho, 1997.
Programa das Nações Unidas
Desenvolvimento Humano
para
o
Desenvolvimento
(PNUD).
Relatório
do
- UNESCO, 2005.
RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições, enormes
desafios. In: RUBIM, Antonio Albino Canelas Rubim e BARBALHO, Alexandre. Políticas
Culturais no Brasil. Salvador, EDUFBA, 2007. Governo do Rio de Janeiro, Sistema Estadual de
Cultura - Lei 7053/2015, Rio de Janeiro. 2015.
Você quer um bom conselho? Conselhos municipais de cultura e cidadania cultural /Vários
autores. - São Paulo: Instituto Pólis, 2005. - (Publicações Pólis; 48)
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POLÍTICAS CULTURAIS EM MUSEUS:
Panorama e perspectivas do cenário brasileiro.
Mélodi Ferrari1
RESUMO:
O artigo proposto apresenta um breve resumo histórico das políticas culturais implementadas
no Brasil, buscando compreender como elas influenciaram no campo museal. Além disso, com
vista no cenário atual, analisa-se uma proposta de atuação baseada no modelo americano de
gestão de instituições culturais que possa ser implantada visando a ampliação do conceito de
museus como instituição formadora da identidade cultural brasileira, em toda sua pluralidade.
Palavras-chave: Economia da cultura. Museus. Políticas culturais
ABSTRACT: This article aims to present a brief historic outlook of the cultural policies implemented in
Brazil, in search of understanding how they influenced the museum landscape. Furthermore, in
regards to the current scenario, it analyzes a proposal of museum functionality, based on the
American model of managing cultural institutions, that can be implemented with the goal
of amplifying the concept of museum as an institution that plays a part in forming Brazilian
cultural identity, in all its plurality.
Keywords: Cultural economy. Museums. Cultural policy
1 Formada em Comunicação Social e com pós-graduação em Economia da Cultura, ambas pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS), atualmente cursa a graduação de História da Arte na mesma instituição.
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1. Introdução
Mausoléus, depósito de velharias, vácuo de profissionais qualificados, péssimas condições de
infraestrutura, desinteressantes. É com esses adjetivos pejorativos que a população costuma
descrever os museus brasileiros. Mas afinal, como e por que chegamos a essa situação?
Instituições museológicas na Europa e Estados Unidos são reconhecidas internacionalmente
pela qualidade de acervo e programação, e atraem milhões de visitantes anualmente. Casos
como o Louvre em Paris, ou o MoMA em Nova Iorque, são importantes atrativos turísticos
que movimentam a economia local e divulgam a identidade nacional. O que impede que esse
panorama se desenvolva no Brasil?
De acordo com dados do relatório Museu em Números2, o país possui mais de 3 mil unidades
museológicas, dentre essas 67,2% são geridas pela esfera pública, cerca de 5,7% encontramse fechadas e somente 22,3% declaram possuir fonte de recursos próprios. Se o papel de
financiador da cultura pertence ao governo, seria ele o responsável pela situação vigente?
Assim, o enfoque desse artigo não será a demanda por cultura, mas sim a oferta. A questão
central é compreender, através de uma breve análise histórica, qual o papel e o entendimento
que o Estado tem acerca da cultura e como isso afeta a gestão dos equipamentos culturais,
principalmente os museus. Em um país com um contexto político e social como o nosso,
que sofreu períodos de colonização e de ditaduras, as políticas públicas funcionam como
estabilizador e propagador da autoridade vigente. Os últimos vinte anos que vivemos são
importantes para compreendermos a mudança desse paradigma. A ampliação do entendimento
do conceito de cultura e a criação de mecanismos para a desburocratização do campo museal
serão pontos discutidos no artigo. Como exemplo apresento o caso do Museu de Arte do
Rio de Janeiro (MAR), um dos primeiros no país a seguir o modelo de Organização Social,
administrado através de parceria público-privada que vem recebendo um público considerável
e exibindo exposições de qualidade.
2. Políticas Culturais e Financiamento da Cultura
Como ponto de partida, utilizaremos o conceito de “cultura” apresentado por Coelho (1997),
que utiliza a definição provinda da antropologia, entendendo ser aquela que melhor se enquadra
ao objeto de estudo em questão – políticas culturais contemporâneas. Para o autor, cultura
2 INSTITUTO BRASILEIRO DE MUSEUS (IBRAM). Museus em Números. Brasília: Instituto Brasileiro de Museus, 2011; vol. 1 e 2.
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diz respeito a tudo aquilo que resulta da produção humana, seja ela material ou simbólica, em
um processo sociológico de constituição. Ou seja, cultura é manifestação popular produzida
com ou sem a intervenção do Estado. Contudo, o modo como a administração governamental
trata o tema é relevante para ampliar e difundir a cultura. As políticas culturais têm função
de desenvolver o setor, fortalecendo a produção, formação, difusão e consumo da cadeia
cultural, articulando planos, estratégias e diagnósticos que corrijam as falhas nesse sistema
(BARBALHO, 2005). Segundo Botelho (2001), o financiamento é determinado pela política,
e não ao contrário; assim, o Estado possui papel fundamental de regulamentador desse
processo. Para a compreensão do funcionamento das políticas públicas culturais no Brasil, fazse necessária uma breve revisão histórica acerca do tema.
As intervenções na área cultural podem ser observadas desde o período colonial no Brasil.
Segundo Rubin (2012), quando o Estado, ainda sob formato de monarquia, persegue as
culturas indígenas e africanas e proíbe a instalação da imprensa nacional e a criação de
universidades, está indiretamente interferindo na política cultural, apesar de tratar-se de
tempo anterior a essa caracterização. Sob esse contexto, observa-se uma doutrina autoritária,
utilizada para preservar e legitimar uma cultura dominante. O panorama não irá mudar nem
com a Independência do país nem com o advento da República.
Será somente na década de 30, com a ascensão de Getúlio Vargas ao poder e a criação do Estado
Novo, que as políticas culturais oficialmente tomam forma. Fatores como a industrialização,
urbanização e a construção de um Estado nacional centralizado favoreceram a criação das
primeiras organizações públicas voltadas para a preservação das identidades culturais. Dentre
elas se destaca o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (SPHAN)3 e outros
órgãos destinados a regulamentar áreas específicas da cultura como o Serviço Nacional de
Teatro (SNT), o Instituto Nacional do Livro (INL) e o Instituto Nacional do Cinema Educativo
(INCE), todos veiculados ao Ministério da Educação e Saúde durante a gestão de Gustavo
Capanema. Contudo, esses mecanismos ainda possuíam a visão de cultura caracterizada
pelo autoritarismo. Naturalmente, pelo caráter totalitário do instituto, esse meio era
orquestrado pelo Departamento de Informação e Propaganda (DIP), que articulava censuras
às manifestações culturais, próprias de qualquer ditadura. O Estado utilizava a cultura como
instrumento para a construção de uma nação, “valorizando o nacionalismo, a brasilidade, a
harmonia entre as classes sociais, o trabalho e o caráter mestiço do povo brasileiro” (RUBIN,
2012, p. 33), moldando o discurso da forma com que melhor lhe conviesse. No período de
redemocratização, não houve significativas intervenções governamentais no que tange
políticas culturais.
Em 1964, apesar da intervenção militar no país, as políticas relacionadas à cultura não sofrem
3 O SPHAN posteriormente se transformará no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), existente até os
dias de hoje que é uma autarquia do Governo do Brasil, vinculada ao Ministério da Cultura, responsável pela preservação do
acervo patrimonial tangível e intangível do país.
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grandes transformações, inicialmente; o momento político atribulado fertilizou a articulação
de diversos segmentos de cultura popular nos variados cantos do Brasil, como os centros
populares de cultura (CPC) e o movimento dos estudantes nas universidades. Porém, quanto
mais duro tornava-se o regime, maior era a censura e opressão a esses segmentos, e crescia
a imposição de uma cultura midiática sofisticada e reprodutora da ideologia oficial (RUBIN,
2012). No período denominado abertura, sob o governo de Geisel e Figueiredo, a produção
cultural volta a ter papel essencial como formadora da identidade nacional – inclusive, houve
uma ampliação dos investimentos na área, a criação da Fundação Nacional de Artes (FUNARTE)4
e do primeiro Plano Nacional de Cultura (PNC)5, em 1975. Fernandes (2013) conclui que essas
articulações foram importantes, pois marcaram uma mudança na destinação dos recursos para
a cultura: se, antes, a prioridade era a preservação do patrimônio histórico, agora, passam-se a
incentivar atividades culturais. Esses movimentos culminaram na autonomia do Ministério da
Cultura, criado como órgão independente em 1985, já no governo Sarney.
Uma importante medida tomada pelo Ministério da Cultura foi a criação da Lei Sarney. Para
Rubin (2012), essa iniciativa caracterizou um movimento paradoxal, pois, ao mesmo tempo em
que diversos órgãos eram criados para centralizar a administração da produção cultural, a lei
propunha o financiamento indireto da área. O Estado diminui sua participação, e estabelece que
as verbas sejam buscadas no mercado. Inaugura-se, assim, a forma de financiamento cultural,
com incentivos fiscais. Segundo Durand (2013), a Lei Sarney sofreu diversas críticas, e até hoje
seus resultados quantitativos não foram propriamente divulgados e avaliados. Além disso, a
lei não distinguiu as iniciativas culturais, sem processo de aprovação técnica, dos projetos
propriamente ditos; assim, não houve controle de onde os recursos estavam sendo investidos,
podendo-se financiar espetáculos puramente comerciais. O aprimoramento dessa lei deu-se
no governo de Fernando Collor de Melo, realizado em 1991, dentro do Programa Nacional de
Apoio à Cultura (Pronac)6, com a chamada Lei Rouanet – um dos principais mecanismos de
financiamento cultural utilizados no país até os dias de hoje.
Essas propostas foram decorrentes da onda neoliberal surgida a partir da década de 80. A política
de enxugamento do Estado pela redução dos investimentos nas áreas sociais impulsionou o
governo a revisar as políticas públicas, atingindo, principalmente, a cultura. A problemática
atual relativa ao incentivo cultural no Brasil é a não-revisão dessa proposta desatualizada,
representada pela vigência praticamente inalterada da lei Rouanet. Para Durand, a lei de
incentivo fiscal não muda a dependência do setor pelos recursos públicos, pois o mecenato
aqui imposto tornou-se um mero repasse de verbas públicas. Assim, os setores de marketing
4 Órgão existente até hoje responsável pelo desenvolvimento de políticas públicas de fomento às artes visuais, à música, ao
teatro, à dança e ao circo.
5 O PNC é um conjunto de diretrizes estratégicas formuladas a partir de amplos debates com a sociedade, cujo fim é o de
articular sistemicamente atores, ações e políticas públicas de cultura.
6 O PRONAC prevê o financiamento por três vias: o direto, através do Fundo Nacional de Cultura (FNC) previsto por editais;
o indireto, renúncia fiscal; e o misto, Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart) até hoje não implantado, que prevê
recursos privados para a realização de projetos artísticos com participação dos investidores nos possíveis lucros.
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das empresas atuam como distribuidores dos patrocínios da área cultural, privilegiando
somente um segmento seguro de mercado, no qual projeta-se retorno pecuniário aos seus
investimentos.
Os problemas existentes hoje no Brasil, quanto à captação de recursos via leis de
incentivo fiscal, relacionam-se ao fato de produtores culturais de grande e pequeno
portes lutarem pelos mesmos recursos, num universo ao qual se somam as
instituições públicas depauperadas, promovendo uma concorrência desequilibrada
com os produtores independentes. (BOTELHO, 2001, p. 78)
Contudo, a Constituição de 1988 reserva uma seção específica para a Cultura: “o Estado
garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional,
e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais” (BRASIL, 1988,
artigo 215). Além disso, firmam-se como patrimônio cultural brasileiro bens de natureza
material e imaterial, valorizando memórias e identidades de diferentes grupos formadores da
nação. Ou seja, responsabiliza-se o Estado pela produção cultural nacional, em sua pluralidade
de manifestações.
Foi a partir de 2003, com a ascensão do Partido dos Trabalhadores ao poder, que novas diretrizes
para a cultura foram aplicadas. O presidente Luis Inácio Lula da Silva nomeia como Ministro da
Cultura o artista baiano Gilberto Gil, cuja marca como gestor, em suas próprias palavras, seria
a abrangência. Deste modo, prioriza-se o diálogo com a sociedade – maneira de combater o
unilateralismo vigente na área, e ampliar o escopo de políticas culturais democráticas na área
da cultura (RUBIN, 2012).
Além disso, adota-se o conceito antropológico de cultura, fundamental para esse novo
momento. Segundo essa concepção, não só os artistas, mas todos os indivíduos são produtores
de cultura, e é através das suas relações interpessoais que se constroem sentidos, valores e
identidades, permitindo a estabilidade social. Direcionando as políticas culturais a partir desse
caráter abrangente, coloca-se em foco a diversidade de culturas existente no país, dando voz
às manifestações populares, de gênero, afro-brasileiras, indígenas, dentre outras.
Embora as duas dimensões – antropológica e sociológica – sejam igualmente
importantes, do ponto de vista de uma política pública, exigem estratégias diferentes.
Dadas suas características estruturais, devem ser objeto de uma responsabilidade
compartilhada dentro do aparato governamental em seu conjunto. A distinção entre
as duas dimensões é fundamental, pois tem determinado o tipo de investimento
governamental em diversos países, alguns trabalhando com um conceito abrangente
de cultura e outros delimitando o universo específico das artes como objeto de sua
atuação. A abrangência dos termos de cada uma dessas definições estabelece os
parâmetros que permitem a delimitação de estratégias de suas respectivas políticas
culturais. (BOTELHO, 2001, p. 74)
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Na mesma linha, outro importante mecanismo construído foi o Sistema Nacional de Cultura
(SNC), que prevê a gestão dos investimentos na área de forma transparente, democrática
e inclusiva; as políticas culturais devem, assim, serem realizadas de forma participativa,
abrangendo as três esferas governamentais – município, estado, nação. Também, expressase respeito às inúmeras culturas que compõem a matiz nacional. O SNC é regulamentado
pelo Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), órgão colegiado, integrante do Ministério
da Cultura, ao qual compete a formulação de políticas públicas para a cultura a partir da
articulação de diferentes níveis do governo e da sociedade civil organizada. Seus membros são
acadêmicos, empresários e representantes do setor artístico.
Também, em 2013, o MinC instituiu o Programa de Cultura do Trabalhador, cujo principal
projeto é o Vale Cultura. Trata-se de um benefício no valor de 50 reais mensais destinado aos
trabalhadores que recebem até cinco salários mínimos. O vale pode ser utilizado em serviços
e produtos culturais como teatro, exposições, cinema, concertos, shows e compra de livros,
CDs e DVDs. As empresas que se cadastrarem no programa podem abater o valor até 1%
do imposto de renda devido. O objetivo desse programa é colocar a decisão de escolha no
que tange o consumo da cultura nas mãos do trabalhador, incentivando o acesso às práticas
culturais, visando a democratização do setor.
Apesar do Partido dos Trabalhadores se manter no poder, as mudanças no setor cultural vêm
sendo graduais, e sujeitam-se a um panorama internacional de crise financeira em todos
setores; muito vem sendo realizado, contudo ainda há muito que ser feito. Botelho, em 2013,
afirmou que uma das principais limitações das políticas culturais públicas no Brasil é o fato
delas nunca alcançarem, por si próprias, a dimensão antropológica.
3. Os Museus Brasileiros e o Modelo Americano
O campo museal passou por diversas transformações nas últimas décadas. No início do século
XX, os museus foram criticados por representarem somente a história oficial e o patrimônio
das elites. Nos anos 60, com o advento da indústria cultural, decretou-se a sua morte. Contudo,
a partir do movimento denominado Nova Museologia, seu conceito amplia, o museu se
consolida como importante instrumento de difusão e democratização cultural.
Os museus conquistaram notável centralidade no panorama político e cultural do
mundo contemporâneo. Deixaram de ser compreendidos por setores da política e
da intelectualidade brasileira apenas como casas onde se guardam relíquias de um
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certo passado ou, na melhor das hipóteses, como lugares de interesse secundário
do ponto de vista sociocultural. Eles passaram a ser percebidos como práticas sociais
complexas, que se desenvolvem no presente, para o presente e para o futuro,
como centros (ou pontos) envolvidos com criação, comunicação, produção de
conhecimentos e preservação de bens e manifestações culturais. Por tudo isso, o
interesse político nesse território simbólico está em franca expansão. (MINC, 2010,
p.24)
No Brasil, a partir da década de 30, foram criados diversos museus com o intuito de valorizar
a identidade nacional, seguindo os parâmetros das políticas culturais propostas pelo Estado
Novo. Esse movimento resultou em um esforço para o desenvolvimento do setor. Nas décadas
seguintes, impulsionado pelo período pós-Segunda Guerra, houve a articulação para a criação
do Conselho Internacional de Museus (ICOM) consolidando a área museológica – inclusive no
Brasil, país membro dessa organização desde sua fundação.
Segundo Santos (2004), os regimes ditatoriais da década de 70 na América Latina fomentaram
as discussões acerca do papel do museu na sociedade, refletindo na multiplicação dos
museus na década de 80. “O aumento dos museus locais representaria a abertura de lugares
de convívio, dando espaço tanto para o fortalecimento de auto-estima e criatividade, como
para manifestações solidárias” (2004, p.71). Enquanto no cenário mundial – Europa e EUA –
buscava-se o processo de comercialização de narrativas e dos elementos simbólicos, captando
grandes investimentos e atraindo o maior número de visitantes possíveis, no Brasil a situação
era diferente. O modelo neoliberal pouco contribuiu para o desenvolvimento do setor, pois
aliou a infraestrutura estatal precária com o modelo de incentivo fiscal, ocorrendo uma
centralização dos museus nas capitais que possuíam maiores investimentos.
Como já mencionado, o campo cultural rearticulou-se no Brasil nos anos 2000, e novas
perspectivas para os museus foram propostas. Na administração cultural de Gilberto Gil, em
2003, previsto dentro do Sistema Nacional de Cultura, foi lançado o documento que estipulou
o processo de construção da Política Nacional de Museus. Dentro de suas diretrizes está a
criação do Sistema Brasileiro de Museus (SBM), o fomento de capacitação de recursos humanos
para área, informatização, melhorias da infraestrutura, fomento para aquisição e preservação
de acervo e a criação do Cadastro Nacional de Museus.
O SBM tem como objetivo desenvolver e promover as diversas instituições museológicas
existentes no país. A iniciativa representa uma importante ferramenta de articulação da Política
Nacional de Museus, pois consolida e amplia a rede de parcerias institucionais, promovendo
a capacitação de servidores e divulgando ações regionais em nível nacional. Atuando em
conjunto com o SBM, o Cadastro Nacional de Museus estabelece uma plataforma unificada
com amplitude nacional dos museus, formando o primeiro censo museológico. Essa iniciativa
é fundamental para conhecer e mapear as diferentes instituições existentes pois, a partir desse
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cenário, é que as políticas culturais da área serão construídas.
Em 2009 foi criado o Instituto Brasileiro de Museus (IBRAM), uma autarquia vinculada ao
Ministério da Cultura. Atua em substituição ao Iphan nos direitos, deveres e obrigações
relacionados aos museus federais. O órgão tornou-se responsável pela Política Nacional de
Museus, implementando melhorias no setor – aquisição e preservação dos acervos, aumento
de arrecadação e da visitação. O Ibram representa um marco histórico, pois é fruto das
articulações culturais que ocorrem no país e da nova formulação de conceito ampliado de
museu, valorizando seu papel na consolidação das diversas culturas nacionais. Além disso,
agora, as instituições museais possuem órgão próprio de regulamentação, fiscalização e
fomento ao turismo na área.
Apesar das articulações a nível político, a situação da maioria dos museus no Brasil ainda é
precária. O próprio MinC, através do Relatório de Gestão das Políticas de Museus especifica
alguns fatores que contribuem para o cenário atual: precariedade no nível jurídico e
administrativo, falta de fomento aos investimentos, má gestão, falta de público e a nãovalorização das pesquisas e dos acervos. Aqui, não se pretende abordar as questões relativas
a público e pesquisa, mas, sim o caráter gerencial e a captação de recursos, pois acredita-se
que somente com investimento em ações significativas o museu será um espaço vivo, aberto
e de diálogo com a sociedade.
Como já ficou claro no capítulo anterior, no Brasil, o Estado tem o papel de financiador da
cultura, com base no modelo francês. Contudo, não é assim que funciona na prática; as leis
de incentivo, como a Lei Rouanet, representam uma grande parcela do investimento: 25,7%,
segundo dados do Museu em Números. Para Abreu (2010), apesar da iniciativa privada ter
assumido o papel de investidor da cultura, o apoio se dá em situações pontuais, onde visa-se
retorno em termos de imagem institucional – diferente de uma cultura de mecenato, que se
baseia na noção de filantropia (investimento em benefícios sociais que não necessariamente
necessitam de uma contraposta de benefício fiscal).
Quando tratamos da dependência da política de marketing das empresas, temos
instituições com pouca autonomia, que demandam a captação de patrocínios de
curto prazo, em geral a cada temporada, a cada exposição, a cada nova turnê de uma
orquestra ou a cada novo ciclo de um programa educativo. (SCHULER, 2012, p.130)
O modelo americano baseia-se no oposto do francês: a opinião pública coloca-se contra o
patrocínio governamental das artes e a política de mecenatos é extremamente forte. Contudo,
não se pode dizer que não haja a intervenção do Estado; há políticas culturais muito bem
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definidas para esse sistema funcionar7. Abreu (2008) irá identificar duas concepções que
embasam essa sistemática: primeiro, historicamente, houve a criação de organizações e
associações que servem como fiscalizadoras e que acompanham as ações do poder público; e,
segundo, há forte tradição de envolvimento do empresariado e da sociedade civil, que veem a
importância do investimento em áreas culturais, a fim de valorizar a identidade nacional.
Uma das principais estratégias utilizada nos EUA foi a criação do National Endowment for
the Arts, que serve para fomentar a sustentabilidade financeira de instituições culturais, além
de financiar pesquisas, incentivar o intercâmbio de artistas e profissionais da área (DURAND,
2012). Segundo Schuler os endowments são:
Fundos permanentes de aplicação financeira, que uma determinada organização
faz crescer continuamente, apenas retirando (para o cumprimento dos objetivos da
instituição) os resultados líquidos obtidos, isto é, o rendimento alcançado menos a
inflação do período de apuração. O foco é fazer o fundo crescer consistentemente
ao longo do tempo, de modo que os resultados por ele gerados possam custear uma
parcela recentemente significativa do orçamento da organização. (2012, p. 131)
Ainda segundo o autor, o fundo patrimonial, como é denominado no Brasil, é uma garantia
de permanência e ampliação contínua dos serviços culturais de um museu. Sabendo
antecipadamente a fatia de orçamento que poderá ser resgatada, é mais fácil gerir os recursos
e estipular quais são as prioridades a serem tomadas e o planejamento entra em foco.
Normalmente, o endowment de certa instituição é constituído por doações de pessoas físicas,
possuidoras de grandes fortunas. No caso americano, os endowments constituem-se pelo forte
sentimento filantrópico que existe: o objetivo, pessoal, é a garantia de uma herança cultural
que será preservada. Ou seja, a doação tem um caráter perpétuo, vinculada ao dever social.
Durand questiona a existência do mecenato no Brasil. Para ele, o modelo vigente de redução
fiscal faz com que as empresas se tornem as principais financiadoras, e não o empresário e sua
família. Para Abreu, o Estado já adotou alguns incisos claros com respeito ao mecenato no país,
como instituir a doação incentivada – ou seja, a transferência, sem finalidade promocional,
de recursos financeiros para projetos culturais previamente aprovados pelo MinC. Mas,
segundo Botelho, a real dificuldade está em criar a cultura de compromisso das elites com a
responsabilidade sócio/cultural.
A escolha do indivíduo é por aquilo que lhe é mais próximo, por aquilo com o qual
mais se identifica e pelo qual ele se dispõe não só a investir, mas também a lutar.
7 Não existe nenhuma estrutura administrativa semelhante ao Ministério da Cultura nos EUA. Contudo, há uma multiplicidade
de agências reguladoras que são fiscalizadas por comitês do poder legislativo e respondem pelos segmentos políticos. A
principal no ramo cultural está o National Endowment for the Art. (DURAND, 2013)
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Por isso o investidor individual é a fatia que o Brasil precisa conquistar na ampliação
dos parceiros do jogo nesta articulação de esforços que, cabe insistir, têm de ser
articulados por uma política pública criteriosamente escolhida. (BOTELHO, 2001,
p.79)
No Brasil, ainda não há nenhum modelo de lei para endowments. Schuler destaca, também,
que, além do problema do financiamento, há a questão da política de gestão dos museus. A
rede brasileira é composta por museus que são, em sua maioria, geridos por e como órgãos
públicos. Assim, os museus brasileiros financiam-se mediante recursos orçamentários e editais
das leis de incentivo fiscal. O Estado repassa apenas os recursos mínimos para a manutenção
e administração desses institutos, mas a função-fim dos museus é negligenciada. Ou seja,
projetos educativos, museografia e exposições têm seus aportes financeiros dependentes
de iniciativas políticas, em cada uma das esferas de governo. Mesmo os museus privados
requerem de fundos dessa espécie para seu funcionamento. Segundo dados do Museu em
Números, 77,7% dos museus brasileiros não possuem orçamento próprio.
Muitas vezes, os museus, para ter uma fonte extra de recursos, optam pela criação das
Associações de Amigos – parcerias entre o poder público e a sociedade civil. Contudo, outros
fatores, além da falta de financiamento, não podem deixar de serem revistos no modelo atual
de administração museal. Cita-se, entre eles, a rigidez burocrática, a permanente instabilidade
política na gestão e a imobilidade e estabilidade dos empregados públicos, que não possuem
incentivos.
Segundo Schuler, há um modelo administrativo brasileiro que tem dado resultado, quando se
trata de instituições culturais: a Organização Social (OS). As OS, criadas por lei federal número
9.637 em 1998, funcionam como uma gestão compartilhada entre o governo e a sociedade
civil; esta, através de organizações culturais privadas sem fins lucrativos, assume a gestão dos
equipamentos culturais. A relação é regida por um contrato de metas, regras e valores; as
primeiras devem ser alcançadas, e as segundas obedecidas, para que o repasse financeiro se
concretize integralmente. Dessa forma, governo e sociedade civil criam um acordo simbiótico,
sustentado pelo interesse mútuo na preservação e no fomento do patrimônio cultural.
Assim, ainda de acordo com o autor, com a possibilidade dessa forma de administração jurídica,
a instituição ganha autonomia cultural, organizacional e financeira; ou seja, passa de uma
gestão voltada aos meios para uma que prioriza os fins. Além disso, esse modelo possibilita a
multiplicação das fontes de financiamento através de ferramentas que outrora, sob o modelo
burocrático de gestão estatal, não eram possíveis, como: o aluguel dos espaços para eventos, a
venda de produtos próprios (loja e café), a venda de ingresso e o aumento do patrocínio direto
e das parcerias institucionais. Importante ressaltar que a OS não se trata de privatização e, sim,
publicização, pois não envolve lucro.
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4. O Museu de Arte do Rio de Janeiro
Criado em 2012, o Museu de Arte do Rio de Janeiro (MAR) é uma instituição pública de arte e
cultura visual administrado por uma Organização Social, o Instituto Odeon. Aberto ao público
em março de 2013, o MAR faz parte do projeto de revitalização da região portuária do Rio de
Janeiro, uma iniciativa da Prefeitura.
Segundo o relatório de gestão de 2013, o foco da instituição é na educação e aquisição e
preservação de acervo, visando a democratização do público, consolidando o museu como um
equipamento cultural da cidade. Programas de atendimento às escolas públicas e a capacitação
de professores são importantes instrumentos utilizados pelo MAR para a consolidação de sua
missão, só possíveis graça a autonomia de gestão.
Apesar da recente abertura, o MAR já possui números invejáveis para qualquer museu
brasileiro, são mais de 300 mil visitantes em 2013 e 200 mil em 2014. Além disso, segundo
pesquisa da Datafolha a instituição é conhecida por mais de 60% dos habitantes do Rio de
Janeiro8.
FIGURA 1 – Percentual de fontes orçamentárias MAR
FONTE: Relatório de Gestão MAR 2013
Segundo dados do Relatório de Gestão de 2013 é possível identificar as fontes orçamentárias
do MAR (FIGURA 1). Apesar da maior parte do investimento ainda ser proveniente do poder
público – o repasse governamental foi de R$ 24 milhões durante os dois anos de gestão – e
através da captação pelo patrocínio da Lei Rouanet, que aumentou de R$ 5,2 milhões em
2013 para R$ 8,1 milhões no ano seguinte, é interessante observar a porcentagem de recursos
provenientes de doações sem incentivos fiscais. Apesar de tímida, na primeira fase em 2014,
8 Fonte: Pesquisa Hábitos Culturais dos Cariocas - Instituto Datafolha, Secretaria Municipal de Cultura e J. Leiva Cultura &
Esporte. Outubro de 2013.
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somaram mais de R$ 88 mil.
O repasse governamental, segundo o Relatório de Gestão, dá conta das despesas relativas
ao funcionamento e operação do museu. Sendo assim, pode-se afirmar que o restante das
fontes orçamentárias – as não-estatais – financiam a manutenção das atividades-fins do MAR,
como a programação expositiva e as atividades educativas. Para os próximos anos, segundo a
própria instituição, projeta-se um incremento do percentual orçamentário advindo das fontes
privadas.
5. Considerações finais
Revisando o processo histórico das políticas culturais brasileiras, pode-se compreender a atual
situação em que o país se encontra, no que toca as manifestações culturais financiadas pelo
Estado. A cultura é ainda um setor que sofre grande influência quanto ao panorama econômico
mundial; porém, em meio à crise econômica, os avanços que os últimos governos conquistaram
nessa área específica não podem ser esquecidos. A discussão deve continuar crescendo, no
sentido da valorização da cultura, da memória e das identidades locais e regionais.
O modelo de gestão através de OS não traz soluções imediatas, mas é um passo positivo em
direção à desburocratização dos processos de viabilização financeira dos museus. Deve-se
desmistificar a concepção de que os brasileiros não se interessam por institutos deste caráter
– de que museus são prédios velhos e empoeirados, esquecidos e abandonados por definição.
A nova articulação de museus trata-os como espaços vivos e democráticos, e acreditamos
que, ampliando-se os escopos de programação, amplia-se a participação do público e,
consequentemente, a relevância cultural e ideológica das instituições museológicas para a
sociedade.
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POLÍTICAS SETORIAS DE CULTURA NO RJ:
Institucionalização e os dilemas da participação social
Juliano Borges1
Simone Amorim2
RESUMO
O artigo critica a tentativa de desenvolvimento de Planos Setoriais de Cultura no estado do
Rio de Janeiro (2012-2015), a partir de uma reflexão sobre o processo de institucionalização
de políticas participativas, no contexto da gestão pública. Expressa um dilema da ação
coletiva, derivado da dificuldade do Estado de engajar setores da sociedade civil em processos
participativos, uma vez que a gestão pública quase nunca é capaz de responder coerentemente
às demandas da sociedade. Procura-se explicitar os desafios a partir de uma análise construída
no calor da hora, sobre processos ainda em construção no estado.
Palavras-Chave: Participação Social. Rio de Janeiro. Plano Setorial de Cultura
ABSTRACT
The article criticizes the attempt to Cultural Sectorial Plans development in the state of Rio
de Janeiro (2012-2015) from a reflection on the institutionalization process of participatory
policies in the context of public administration. Expresses a dilemma of collective action,
derived from the state’s difficulty of engaging sectors of civil society in participatory processes,
since the public administration is almost never able to respond coherently to the demands
of society. Tries to explicit challenges from an analysis built in the heat of the moment, on
processes still under construction in the state.
Keywords: Social Participation. Rio de Janeiro. Culture Sectorial Plan
1 Juliano Borges é doutor em Ciência Política (IUPERJ) e professor adjunto do curso de Comunicação Social do IBMEC-RJ.
Telefone: (21) 2265.3113 e e-mail: [email protected]
2 Simone Amorim é Gestora Cultural, Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ). E-mail:xsimoneamorimx@
gmail.com
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1. Apresentação
Há mais de uma década, em 20 de outubro de 2005, durante a 33ª Conferência Geral das
Partes da UNESCO era aprovada, internacionalmente, a Convenção sobre a Proteção e
Promoção da Diversidade das Expressões da UNESCO. Com o propósito de consolidar um
espaço necessário à implementação de políticas culturais em defesa da diversidade cultural,
tratou-se de um momento ímpar no campo cultural, em âmbito internacional, no qual o Brasil
exerceu protagonismo decisivo nas negociações para que a Convenção fosse aprovada e, em
2007, entrasse definitivamente em vigor sob a ratificação de mais de 50 países.
De fato, este protagonismo só foi possível tendo em vista o redirecionamento estratégico que
desde 2003 pode ser percebido no âmbito de atuação do Ministério da Cultura brasileiro,
quando assume conceitualmente a cultura a partir do tripé que orientaria todas as suas políticas
doravante. É a partir de então que os gestores públicos à frente da pasta passam a conceber a
cultura enquanto produção simbólica, direito de cidadania e como um setor econômico, capaz
de gerar riquezas e participar ativamente do desenvolvimento do país. Foram essas bases que
permitiram que o país exercesse papel fundamental no debate para a construção do marco
internacional sobre a diversidade cultural, aprovado em 2005.
Ao ratificar a convenção, assume-se o compromisso de continuar avançando na criação
e no fortalecimento de políticas que posicionem a cultura como um fator estratégico de
desenvolvimento. De certa forma, o episódio sinaliza a emergência de uma série de novas
abordagens e conceitos que passaram a figurar no campo cultural, mobilizando agentes e
instituições em todas as regiões brasileiras.
É nesse contexto que no âmbito nacional os últimos dez anos assistiram à criação de novos
mecanismos institucionais implementados pelos órgãos públicos de gestão da cultura no
Brasil, de forma a tornar o Estado mais organizado e mais permeável à participação cívica. Essa
nova postura expressa uma importante inflexão política, protagonizada pelos órgãos da gestão
pública, como uma possibilidade de romper com o histórico de autoritarismos, ausências e
descontinuidades que, desde a década de 1930, caracterizam as políticas culturais brasileiras
(CALABRE, 2009, RUBIM, 2007, BOTELHO, 2001).
O sucesso da implementação de mecanismos participativos nas políticas públicas costuma
ser indicado como o resultado bem-sucedido da conjugação de três fatores (AVRITZER, 2011):
vontade política dos governos na implementação desses mecanismos; existência de arranjos
institucionais democráticos de deliberação pública; e, por fim, efetivo engajamento da
sociedade civil nas questões relativas à vida pública. A democracia participativa não deveria ser
entendida apenas como um arranjo institucional inovador, mas, antes como uma conjugação
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de disposições em que cada um desses elementos é crucial para que o modelo funcione.
Assim, não basta que regras e instituições sejam criadas sem que o cidadão assuma o
compromisso do engajamento cívico, ou que os governantes que as estabeleceram, de fato,
não as internalize na racionalidade burocrática da administração pública, o que demanda
um aumento substancial do investimento público no fortalecimento institucional de tais
estruturas. Por fim, não basta que os atores políticos desse processo se engajem no movimento
de ampliação da política se as instituições e regras adequadas não sejam experimentadas,
avaliadas e aprimoradas continuamente no ciclo da política.
A realização da I Conferência Nacional de Cultura, em 2005, demarca o início de um
diálogo cada vez mais intenso que tem aproximado os governos federal, estaduais e locais
de produtores, gestores, artistas e pesquisadores do campo cultural, via novas formas
institucionais estimuladas e implementadas em parte considerável das regiões brasileiras.
Sob o guarda-chuva da articulação e costura de um Sistema Nacional de Cultura, políticas de
financiamento, gestão de equipamentos, de ampliação da participação popular na definição
da agenda do setor, entre uma série de outras iniciativas; têm possibilitado a criação e o
fortalecimento de espaços deliberativos mais plurais, como conselhos paritários entre o poder
público e a sociedade, a realização de conferências de políticas, um debate sobre os fundos de
cultura, além da criação de planos decenais; que permitem a negociação das prioridades no
investimento dos recursos públicos, de modo que políticas de gabinete, pensadas “para e não
“com a população possam gradualmente deixar de ser a característica desse campo.
No contexto fluminense, esse movimento teve início no final de 2009, quando pela primeira
vez o órgão gestor de cultura estadual (SEC-RJ) propôs a construção de um novo paradigma da
gestão da cultura no estado do Rio de Janeiro, nas palavras da própria secretária de Estado de
Cultura3. Tratava-se de construir políticas culturais participativas, abertas e de longo prazo - por
meio de um plano decenal, sujeitas a revisões periódicas, não restritas à classe artística e em
conjunto com os municípios do estado. Desde então essa dinâmica sofreu avanços importantes,
naquele que vem a ser um dos principais efeitos desse movimento; qual seja ampliar, de fato,
o número de interlocutores e segmentos representados, bem como a quantidade de canais de
comunicação entre as partes interessadas nas políticas públicas de cultura, em um sentido de
arejamento e democratização da gestão pública.
Animada por esse rico processo de mobilização para a construção coletiva dos mecanismos
daquela que seria a Lei Estadual de Cultura, além das diretrizes e estratégias do Plano Estadual
de Cultura, a SEC-RJ decidiu avançar também, em paralelo, na construção participativa de
Planos Setoriais de Cultura, entre abril de 2012 e o ano de 20154.
3 Um Plano para nossa cultura” Adriana Rattes, secretária de Estado de Cultura (2008-2014). http://www.cultura.rj.gov.br/
apresentacao-projeto/plano-estadual-de-cultura Acesso em 15/01/2016.
4 Planos Setoriais de Cultura In: http://www.cultura.rj.gov.br/planos-setoriais Acesso em 15/01/2016.
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Componentes do sistema de cultura, os planos setoriais estaduais foram concebidos como uma
tentativa de conferir mais transparência e previsibilidade ao trabalho das Superintendências
da SEC-RJ, que passariam a se orientar não somente pela disposição dos seus gestores, mas
a partir de diretrizes e estratégias definidas com a cooperação dos agentes da cultura com
o objetivo de incutir formas mais democráticas na ação pública. Adicionalmente, esperavase também que os planos setoriais pudessem contribuir como um catalisador político para
a mobilização e organização de segmentos artístico-culturais, derivando em instituições de
representação tais como fóruns setoriais, estes também componentes do Sistema.
Essa iniciativa, uma inovação recente em nível estadual no Brasil, encontrou pela frente uma
série de dificuldades: da precariedade da administração pública à desconfiança da sociedade
civil, além da resistência dos próprios gestores, que precisariam incorporar o elemento de
participação social às suas formas trabalho, o que implicaria em abrir mão de poder relativo,
que passaria a ser compartilhado, em parte, com grupos organizados da sociedade civil.
A baixa institucionalização dos procedimentos da gestão pública da cultura, de fato,
acaba por torná-la demasiadamente dependente das vontades dos gestores, e principalmente
nas estruturas tecnoburocráticas de chefia, que na estrutura político-administrativa da SECRJ era ocupada por superintendentes e assessores-chefe. Essa autonomia, se por um lado
permite que processos decisórios sejam mais rapidamente definidos, insere, porém, um
fator de insegurança política porque tende a tornar as justificativas das ações tomadas
menos transparentes (e assim menos legítimas). Em um contexto de crescente pressão da
sociedade civil, isso contribui negativamente com redução de confiança pública, limitando
as possibilidades de desenvolvimento de formas mais participativas de formulação e de
implementação dessas políticas.
Argumentamos que a possibilidade de concretização das políticas setoriais de cultura pela
SEC-RJ esbarrou em sua incapacidade de generalizar internamente procedimentos racionais
e critérios impessoais necessários para produzir maior nível de institucionalização, de forma
a garantir a concretização integral da política proposta à sociedade. Pelo menos até este
momento, dos 12 planos setoriais propostos apenas dois alcançaram o nível operacional de
programas setoriais.
Isso se deveu em parte a um dilema político em que o potencial de participação cívica fica
reduzido em função de um quadro prévio de baixa institucionalização do poder público,
incidindo sobre a própria possibilidade futura de fortalecimento das instituições do Estado.
Adicionalmente, os planos setoriais de cultura promovidos pela SEC-RJ expressam uma
contradição política que marcou aquela gestão da pasta, dúbia em suas ações e discursos, ora
dirigindo-se às forças de mercado (como na lei das OS e na ênfase à ampliação do uso das leis
de incentivo pelos produtores de cultura no estado), ora acenando para um sentido público
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(como a implantação de um Sistema Estadual de Cultura de forma participativa e colaborativa).
Internamente, essa ambiguidade garantiu margem política para que os gestores da Secretaria,
mormente alguns de seus superintendentes, assumissem um compromisso para a forma com
a política setorial, mais alinhados que estavam com a ideologia de mercado ou mesmo com
práticas arcaicas de tipo clientelista.
Além de avaliar por que a maioria dos planos setoriais não foi desenvolvida a contento,
interessa-nos, particularmente, compreender como dois deles puderam ainda assim ocorrer,
já que operavam dentro da mesma instituição e, portanto, regidos a priori pelos mesmos
dilemas e enfrentando dificuldades semelhantes.
Essa análise foi construída a partir de um duplo local de fala, já que os autores foram
coordenadores técnicos do Plano Estadual e dos Planos Setoriais de Cultura, e são também
pesquisadores do tema. É sobre as contradições geradas por essas novas institucionalidades
que passam a conviver entre velhas estruturas que esse artigo pretende refletir, ainda que se
trate de reflexões produzidas quase que simultaneamente aos acontecimentos aqui analisados.
2. Confiança pública e participação social
O caso fluminense dos planos setoriais de cultura foi um processo particularmente
demarcado por descontinuidades cujas contradições relativas encontram eco no debate
teórico neoinstitucionalista sobre associativismo, dedicado a compreender como o regime
democrático pode ser aprimorado por meio da atuação da sociedade civil no interior das
instituições do Estado.
Preocupada com a insuficiência da teoria democrática tradicional em oferecer um modelo
político capaz de estimular a cooperação e a igualdade social, Carol Gould ressalta a
necessidade de encontrar formatos institucionais capazes de proteger e de ouvir a diversidade
de interesses de minorias (GOULD, 1988). Pela crítica do comportamento auto interessado
dos indivíduos defendido pelo modelo neoliberal de associativismo, Gould, como também
Benjamin Barber (BARBER, 1984), baseiam-se na concepção de política como processo. Isto é,
à parte da estática institucional e através de uma dinâmica de interação, os indivíduos tendem
a aprimorar seu comportamento. Há, nesses autores, um entendimento da necessidade de
abertura de espaços institucionais capazes de arejar o Estado com democracia, tanto mais
fortalecida quanto mais capaz for de assegurar diversidade cultural ao sistema político.
A opção pelo estímulo à participação ampla e direta dos indivíduos pretende, nesse mesmo
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sentido, romper com a tendência de oligarquização dos regimes democráticos identificada por
Robert Michels. Afinal, se a democracia exige formas políticas bem definidas e organizadas
capazes de garantir o bom funcionamento do sistema, essa organização, entretanto, favorece
uma concentração de poder frequentemente vinculada a interesses de mercado. Contra esse
ciclo vicioso, Gould defende o controle da esfera econômica pela esfera social de forma a tomar
da primeira sua capacidade de hegemonização e autonomização sobre as demais esferas.
Ora, o conflito apresentado é particularmente significativo no processo de redemocratização
do Brasil, que acabou por antagonizar forças emergentes de mercado e uma sociedade civil
incipiente. Se o regime democrático garantiu igualdade formal entre os cidadãos, a autonomia
das forças de mercado produziu desigualdades econômicas que estabeleceram formas
diferenciadas de participação e, com elas, um paradoxo na jovem democracia brasileira:
aqueles que mais necessitam participar são os que detêm menos recursos para fazê-lo
(instrução, capacidade de mobilização, recursos econômicos propriamente ditos). O móvel da
participação é uma exclusão anterior, mas, sem canais de vocalização suficientes e eficientes,
não há meios que a viabilizem.
Para superar esse impasse seria preciso garantir que as esferas social e cultural possam servir de
veículos paralelos capazes de assegurar uma participação política ampla. É pela multiplicação
de formas de expressão que surgem do processo associativo e da organização de grupos
sociais que a política pode se converter de campo universalizante em uma forma que abrigue
e estimule a heterogeneidade dos gêneros de discurso como alternativa de manutenção e
aprimoramento da democracia.
A proposta de construção de políticas setoriais de cultura no estado do Rio de Janeiro
estava, no geral, alinhada a esses princípios. Ela sinaliza a intenção do Estado em abrir
espaços institucionais à participação cívica com forte investimento político na diversidade
de expressões político-culturais, articulada, mormente, através de segmentos artísticos e
culturais. Ela guarda também, ainda que de forma relativa, certa preocupação pedagógica,
pois espera que o engajamento dos setores da cultura possa contribuir para qualificar o debate
público, trazendo à tona visões ignoradas pelo Estado e pelos próprios agentes de cultura. A
promoção de escuta e debate teria a virtude de revelar à própria sociedade demandas por
ela mesma desconhecidas. Adicionalmente, a estruturação de perspectivas sobre problemas
próprios de cada setor da cultura poderia contribuir para aumentar o grau de politização e de
organização de seus agentes, eventualmente redundando em fóruns setoriais mais ou menos
institucionalizados, diversos e desconcentrados.
Porém, se considerarmos que a discussão em torno da revitalização da sociedade civil traz nela
a possibilidade de se verem grupos representados em fóruns extragovernamentais, incapazes,
muitas vezes, de dar vazão a essa necessidade de representação, cabe questionar, porém,
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qual a qualidade de representação que pode garantir a sociedade civil a esses grupos e como
o Estado deve lidar com essa circunstância. Este foi um problema rapidamente identificado
quando da abertura dos processos setoriais: uma discrepância de graus de organização
existente entre os diversos segmentos culturais no estado do Rio e de como este fator traria
implicações adiante ao andamento do processo.
Cabe discutir neste momento, então, quem e como são representados os grupos. Num cenário
de baixa institucionalização, baixo capital social e falta de credibilidade das instituições, de
onde parte a mobilização e como pode ela dar-se sem a intervenção de outros grupos mais
experimentados nessa dinâmica, ou do próprio Estado, permitindo um nível suficiente de
autonomia e autenticidade?
Jean Cohen e Andrew Arato (1992) oferecem uma perspectiva reativa e otimista para esses
dilemas. Nela, os movimentos sociais funcionam de acordo com os limites impostos pelas
instituições, circunstância que instaura uma dinâmica de tensão entre objetivos sociais
diferentes. De uma forma ou de outra, a sociedade civil encontrará limitações externas impostas
pelas instituições vigentes. Seu problema é que, estando dentro de um quadro institucional,
as transformações formuladas no seio da sociedade civil tendem a funcionar como limites
institucionais, gerando, em muitos casos, uma mera reprodução daquele quadro. Em sua
dinâmica, o associativismo acaba muitas vezes por reproduzir práticas políticas que desejava
corrigir, estabelecendo novos fracionalismos, relações verticalizadas e disputas intergrupos
por recursos, no âmbito estatal.
Além disso, a existência de grupos cujo capital social é baixo ou nulo leva, invariavelmente, para
sua própria organização, à necessidade de apoio por outros grupos dotados de melhores meios
de atuação e maior experiência associativa. Nesse contexto, como garantir a autenticidade de
suas demandas, já que elas não são diretamente expressas, mas mostram-se a partir de um
processo de interpretação externa? Quais as possibilidades para avançar na qualificação de
processos participativos como os propostos pela política setorial de cultura fluminense?
Há duas respostas para esse dilema. A primeira, de cunho pessimista-conformista. Segundo
ela, dado que não há legitimidade na vocalização de grupos dotados de reduzido capital social,
seus interesses não estarão, verdadeiramente, sendo pleiteados e suas demandas atingidas.
Existiria aí, de fato, a reprodução de um sistema de desigualdades, onde as demandas trazidas
por esses grupos mostram-se desfiguradas pela interpretação alheia.
A segunda visão, de tipo otimista-realista, aposta que maiores avanços serão feitos pela
organização do maior número de grupos possível, ainda que contaminados pela visão de
outros. Ela prefere crer que o processo de interpretação de demandas não necessariamente
haverá de deturpá-las, subsistindo aí a possibilidade de um amplo debate sobre causas e
reivindicações que estimula e revigora a sociedade civil.
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Nossa posição é a de que tais práticas, mesmo que incipientes e inaugurais, podem
potencialmente configurar uma nova dinâmica organizativa do campo cultural, desde que
institucionalizadas no interior da administração pública como componente regular do processo
da política.
Pretende-se, portanto, encontrar mecanismos que equilibrem igualdades formais
promovendo a redução de desigualdades existentes. O meio, de forma consensual, é a
participação. Se pelo estímulo à construção de uma comunidade cidadã, para Barber, pelo
gerenciamento do capital pelo trabalho, para Gould, ou se pelo reforço dos mecanismos de
ação e a preocupação com a autolimitação da sociedade civil, para Cohen e Arato, todos
pretendem equilibrar as relações de poder, bloqueando comportamentos omissos pelo
alargamento do debate público.
Defendemos que formas de atuação que contemplem maior grau de participação da
sociedade civil contribuem favoravelmente para o aumento da institucionalização da gestão
pública. Contudo, as limitações do próprio Estado - políticas, administrativas e institucionais
– prejudicam a construção de relações confiáveis com a sociedade. Esse contexto negativo
favorece que grupos com maior capacidade de organização e mobilização hegemonizem ou
mesmo controlem o processo, estabelecendo uma assimetria que tende a restringir a adesão
e a participação de novos grupos, limitando o conjunto de demandas culturais vocalizadas e
restabelecendo, por outra via, a possibilidade de concentração de recursos para certos setores
ou frações intra-setoriais.
3. Avanços e descontinuidades: reflexões do processo fluminense
Para dar conta da tarefa inédita de desenvolver 12 planos setoriais de forma participativa
no estado, a SEC-RJ elaborou uma metodologia que organizou o trabalho em duas etapas.
Na primeira, ocorrida entre abril de 2012 e outubro de 2013, foram produzidas análises,
por agentes da cultura dos segmentos setoriais, com diagnósticos e propostas para as
áreas - representando visões diversas da sociedade civil, além de um documento adicional
apresentado pela Secretaria; com consulta dessas propostas pela internet e apresentação
pública em encontros abertos e presenciais.
Os segmentos foram escolhidos em função da importância relativa das linguagens artísticas;
da experiência de interlocução da SEC-RJ com determinadas áreas da cultura, notadamente as
de responsabilidade direta de Superintendências, e dos limites de infraestrutura e de recursos
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humanos existentes para organizar e conduzir um processo com essa complexidade. Esse
dilema implicou recortes convencionais que contemplaram originalmente os seguintes setores
ou linguagens artísticas: Artes visuais, Circo, Cinema, Dança, Livro e Leitura, Museus, Música
de Concerto, Música Popular, Patrimônio Imaterial, Patrimônio Material, Teatro e TV e Novas
Mídias.
Criticada ao apresentar a proposta à sociedade civil, a Secretaria tratou de reorganizar os
segmentos, promovendo rearranjos, como plano único para a Música e uma política unificada
para o Patrimônio Cultural. O Audiovisual também agregou Cinema e TV e Novas Mídias. Já as
especificidades de certos segmentos culturais foram trabalhadas no interior de outros setores.
Artesanato e culturas populares, por exemplo, acabaram sendo abordados no âmbito do
plano do Patrimônio Cultural, da mesma forma que as artes digitais foram tratadas pelas Artes
Visuais e pelo Audiovisual. Entretanto, quando o processo foi aberto à consulta, arte urbana,
arquitetura, culturas afro-brasileira e indígena, além da capoeira, do design, da moda e da
gastronomia foram segmentos reivindicados pela sociedade como merecedores de planos
específicos. O plano setorial de Design acabou sendo objeto de um plano próprio, concluído
em todas as etapas com particular engajamento de agentes da cultura. Porém, a partir de
certo ponto, questões internas relacionadas à estrutura profissional da SEC-RJ (ausência de
um gestor claramente responsável por conduzir a política) condenaram o documento ao
abandono, com grande prejuízo político junto aos que participaram do processo. Já o plano
setorial da Moda esbarrou, desde o início, na falta de quadros disponíveis para orientar e
acompanhar o desenvolvimento de uma política para o setor, ironicamente no momento em
que a Secretaria se empenhava em constituir o Museu da Moda.
Na segunda etapa, as contribuições recebidas foram harmonizadas pela SEC-RJ de modo a
construir um documento-base, estruturado sob a forma de diretrizes (objetivos) e estratégias
(meios para alcançá-los), para que outras contribuições e críticas fossem incorporadas tanto
pela internet quanto em nova rodada de reuniões presenciais que definiriam políticas setoriais
decenais.
Embora o processo como um todo fosse coordenado por uma assessoria ligada diretamente
à secretária de Estado, os planos setoriais propriamente ditos foram produzidos pelas
Superintendências do órgão gestor, que detiveram autonomia na condução do processo. As
Superintendências foram também as responsáveis diretas pela mobilização da participação
dos grupos, agentes de cultura e personalidades ligadas aos respectivos segmentos, por serem
as áreas mais dotadas de informação e conhecimento específicos sobre os setores.
Como não poderia deixar de ser em um ambiente culturalmente tão diverso, o processo
evidenciou grandes diferenças entre os setores culturais quanto ao engajamento (grau
de adesão e de contribuição política) e quanto à qualidade das contribuições (o nível de
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organização e maturidade dos setores implicou em formulações com maior ou menor clareza
de propostas). Esses fatores, porém, foram diretamente afetados com o esforço de mobilização
empregado pelas superintendências5 e com seu empenho particular em dar forma final aos
documentos6. Foi, contudo, na fase seguinte, de operacionalização dos planos construídos,
que a política setorial encontrou sua principal barreira para avançar.
Desde o começo, a política setorial fluminense de cultura foi alavancada por força da vontade
política da então secretária de Cultura Adriana Rattes. Ocorre que, mesmo pelo ineditismo da
política proposta (e de como ela implicaria, se bem-sucedida, em novas formas de trabalho nas
áreas-fim da secretaria), as superintendências gozaram de ampla liberdade para estabelecer o
ritmo e a forma de construção dos planos setoriais que lhes cabiam. Embora essa autonomia
fosse desejável para permitir que os processos pudessem ser adaptados às características
culturais de cada setor, não foi previsto nenhum mecanismo formal para forçar o cumprimento
integral da política pelos gestores, nem sempre verdadeiramente comprometidos. Nesses
casos, a assessoria que coordenou a produção dos planos (futura Coordenação de Políticas
Culturais) viu-se limitada a uma instância de mobilização interna, a realizar um trabalho de
sensibilização de gestores resistentes e de convencimento da própria SEC-RJ da relevância
política de adoção de formas participativas de atuação pelo poder público.
Lamentavelmente, dez segmentos da cultura objetos da política setorial não chegaram ao
estágio operacional. Os setores vinculados à Superintendência de Artes, a metade deles sequer
tiveram seus documentos finais apresentados. Isso ocorreu por motivos diversos, que em nossa
análise estão relacionados, em primeiro lugar, à generalizada falta de qualificação de pessoal
na área da cultura, mas também à reduzida participação e cobrança de agentes da cultura de
certos segmentos (Artes Visuais, Música e Teatro, em especial). Além disso, o descompromisso
político ou inação de alguns gestores foi fator decisivo para explicar o mau resultado geral,
aliado à falta de instrumentos institucionais de responsabilização. Os setores de Circo e Dança,
por exemplo, foram especialmente atuantes e participativos, mas encontraram pela frente
uma superintendente pouco convencida pela proposta de política participativa. Sua posterior
indicação como secretária de Estado na administração de Luiz Fernando Pezão contribuiu para
sepultar a iniciativa.
Embora a sanção da Lei Estadual de Cultura, em 7 de julho de 2015, torne compulsória a
adoção de políticas setoriais participativas pela SEC-RJ, já que previstas no âmbito do Plano
Estadual, na diretriz 2.2., não há garantias objetivas que assegurem sua execução ou, pelo
menos, sua implementação nos termos dessa experiência, mesmo que eles também estejam
mencionados na estratégia 2.2.1 (Implementar planos, programas e ações de desenvolvimento
5 “Semana dos Realizadores discute Plano Setorial do Audiovisual”. In: http://www.cultura.rj.gov.br/materias/semana-dosrealizadores-discute-plano-setorial-do-audiovisual. Acesso em 15/01/2016.
6 “Participação: grupos de trabalho aprimoram documento setorial de Livro e Leitura”. In: http://www.cultura.rj.gov.br/
materias/participacao-grupos-de-trabalho-aprimoram-documento-setorial-de-livro-e-leitura Acesso em 15/01/2016
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de setores da cultura, como participação dos agentes culturais de todo o estado, contemplando
os diferentes elos das cadeias produtivas). O recorrente risco de descontinuidade das políticas,
nesse caso, repousa na inexistência atual de fóruns setoriais de cultura institucionalizados e
na duvidosa capacidade do futuro Conselho Estadual de Política Cultural para exigir o pleno
cumprimento do Plano Estadual.
Com todas essas dificuldades, os planos setoriais do Audiovisual e de Livro e Leitura foram
capazes de avançar até o estágio de desenvolvimento de programas. Não por acaso, foram
também os processos particularmente marcados por maior participação da sociedade civil
na feitura dos planos, melhor qualidade dos documentos e amplo compromisso político das
superintendências responsáveis. Mesmo enfrentando mudanças na chefia durante o período,
houve continuidade da política setorial. Elas souberam tirar proveito da disposição política
dos agentes de cultura de suas áreas para constituir comitês gestores, no início de 2015,
formados por integrantes externos à SEC-RJ, de diversas origens e diferentes atuações em
seus respectivos campos. Tendo como referência direta as diretrizes dos planos setoriais, o
comitê gestor de Livro e Leitura se dedicou a formular um programa, constituído de ações
e metas, voltadas para a formação para mediação de leitura, identificada como a maior
lacuna da atuação do órgão gestor. Já o Audiovisual foi mais ambicioso e estabeleceu três
comitês7, que construíram três programas diferentes voltados para a formação; a inovação em
audiovisual; e a preservação e memória8. De forma bastante democrática, esses programas
foram ainda submetidos a uma avaliação final, em 30 de abril de 2015, para discutir e aprovar
em audiência pública os termos presentes nos programas formulados9. No novo desenho
institucional proposto, o comitê gestor passa a ser o responsável por colaborar na definição
de termos de editais públicos; acompanhar a implementação do programa, com avaliação
periódica, publicação dos resultados e revisão de metas.
4. Considerações finais
Os planos setoriais de cultura promovidos pela SEC-RJ exemplificam um paradoxo político ao
expressarem um choque de concepções sobre a ação pública no interior da própria engrenagem
burocrática, ficando sua implementação mais condicionada ao sabor do voluntarismo de
7 “Reunião dá início à elaboração dos primeiros programas do Plano Setorial do Audiovisual”. In: http://www.cultura.rj.gov.br/
materias/reuniao-da-inicio-a-elaboracao-dos-primeiros-programas-do-plano-setorial-do-audiovisual Acesso em 15/01/2016.
8 Programas setoriais do Audiovisual In: http://www.cultura.rj.gov.br/publicacao-setoriais/programas-setoriais-doaudiovisual Acesso em 15/01/2016.
9 “Audiovisual discute programas setoriais para a área” In: http://www.cultura.rj.gov.br/materias/audiovisual-discuteprogramas-setoriais-para-a-area Acesso em 15/01/2016.
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gestores do que com o compromisso institucional com os valores democráticos – cidadania
expandida por garantia de direitos, por meio de participação social – ensejados na linha política
assumida discursivamente por aquela gestão. Dessa forma, grupos mais organizados tendem
a liderar, mas o nível de organização dos setores, de maneira geral, ainda é muito incipiente,
tendo em vista a baixa reserva de experiências vivenciadas no território fluminense no campo
cultural.
Por outro lado, uma questão que se coloca é a de que, se a ideia de cultura como campo
transversal por excelência prevalece nessa nova etapa das políticas culturais brasileiras, faz
sentido conceber políticas com corte setorial? Essa é uma questão que deve ser debatida na
pluralidade de aspectos que engloba, e não apenas do ponto de vista da racionalidade da
administração pública, onde, de fato, os ganhos institucionais de interiorização da visão desses
grupos setoriais agregam qualidade às escolhas burocráticas nos processos das políticas.
Concretamente, a dubiedade da linha de atuação da SEC-RJ deu margem às contradições
apontadas. Acenando, de um lado, para uma gestão mais pública e participativa e, de outro,
entregando importantes equipamentos culturais para a gestão privada, a Secretaria de Estado
de Cultura do RJ permitiu que alguns gestores responsáveis por implementar a política setorial
assumissem um compromisso pró forma, já que preponderou entre esses o alinhamento com
a visão de mercado e ou com formas de relacionamento clientelistas com grupos particulares
da classe artística, historicamente atendidos pelo poder público fluminense. Gozando de
ampla autonomia de trabalho, nesses casos, acabou prevalecendo um trabalho de mobilização
fraco e pouco empenho na efetivação das diretrizes e estratégias apresentadas pelos grupos,
com espaço para o não cumprimento integral da política setorial costurada nas malhas de um
discurso frágil, que não resistiu ao tempo da política no estado.
Por outro lado, a crise fiscal do estado reduziu drasticamente os recursos disponíveis, criando
uma motivação objetiva para justificar o abandono das políticas setoriais (e sobretudo sua
metodologia participativa). O próprio MinC teve uma série de dificuldades para fazer avançar
seu planos setoriais (CALABRE, 2013), que no plano federal não se desenvolvem com o mesmo
dinamismo com que o Plano Nacional de Cultura vem se concretizando, sobretudo no que diz
respeito à definição de metas claras e um acompanhamento transparente à toda a sociedade,
de sua consecução no tempo, que no caso do PNC cobre o período 2010-202010.
Conforme destacamos no início deste texto, e à luz do processo de criação de Planos Setoriais
de Cultura no RJ, reforçamos a ideia de que o nível de confiança e de organização dos setores
culturais exerce impacto sobre o andamento do processo, mas somente se a gestão pública
estiver efetivamente comprometida e materialmente fortalecida no que concerne às estruturas
técnicas e orçamentais para o planejamento de políticas públicas. Entretanto, dada a baixa
10 As 53 metas do PNC podem ser acompanhadas na plataforma http://pnc.culturadigital.br, atualizada pela equipe técnica
do MinC. Acessado em 11/2/2016.
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institucionalização do Estado, em especial da pasta da cultura, associada ao baixo estoque
de capital social de grupos organizados no campo cultural; a organização e a pressão desses
grupos não foram suficientes para constranger os gestores recalcitrantes a executar o discurso.
A ampla e justificável autonomia dos superintendentes na execução dos planos setoriais de
cultura garantiu espaço para o seu não cumprimento, sem responsabilização, já que não havia
instrumentos institucionais disponíveis capazes de obrigar os gestores a executar integralmente
as políticas assumidas pela Secretaria. Algumas superintendências não estavam convencidas
da relevância política do processo e por isso não contribuíram integralmente com ele. Como
parte de um governo estadual, a gestão de Adriana Rattes refletiu no campo da cultura (ainda
que não exclusivamente) uma faceta privatista marcante na administração do governador
Sérgio Cabral Filho e na visão pragmática de seu partido, o PMDB. Isso colocou sua linha de
atuação política em uma posição curiosa e dúbia: entre os esforços de institucionalização da
cultura alinhados com a política democratizante do MinC, no plano nacional; e a liberalidade
com que a administração Cabral lidou com os interesses de mercado, no contexto doméstico.
Os planos setoriais exemplificam, como caso específico na cultura, essa contradição política,
materializada empiricamente no desenvolvimento parcial e até aqui incompleto de políticas
públicas com alto potencial de democratização do campo cultural no país.
REFERÊNCIAS
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MONTEIRO, Jorge Vianna. Burocratas. In: MONTEIRO, Jorge Vianna. Como funciona o governo:
escolhas públicas na democracia representativa. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007. p. 75-79.
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CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA CULTURAL DE BELO HORIZONTE:
Avanços e desafios da participação social na formulação da política de cultura
Caroline Craveiro 1
RESUMO
Este artigo busca apontar os principais avanços e desafios da atuação do Conselho Municipal
de Política Cultural de Belo Horizonte, a partir de considerações relativas aos atributos da
composição, natureza deliberativa, objetivos e funcionamento. Os Conselhos de Políticas
Culturais correspondem a instâncias de articulação, pactuação e deliberação, conforme o
MINC (2011) e a análise de sua eficácia e efetividade torna-se fundamental para a reflexão
sobre os espaços e mecanismos da participação social na formulação da política de cultura.
Palavras-Chave: Conselho de cultura. Participação social. Política cultural.
ABSTRACT
This article seeks to identify the main achievements and challenges of the work of the Municipal
Council for Cultural Policy of Belo Horizonte, from considerations relating to the attributes
of the composition, deliberative nature, objectives and operation. Councils Cultural Policy
correspond to joint instances, agreement and resolution as the MINC (2011) and the analysis
of their efficiency and effectiveness it is essential to reflect on the spaces and mechanisms of
social participation in cultural policy formulation.
Keywords: Council of culture. Social participation. Cultural policy
1 Técnica Nível Superior da Fundação Municipal de Cultura de Belo Horizonte- PBH. Mestranda em Geografia-Tratamento da
Informação Espacial PUC-Minas. Geógrafa pela UFMG e especialista em Estudos Ambientais PUC—MG e Gestão Pública PUCMG. E-mail: [email protected] /3277-4157
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1. INTRODUÇÃO
Um Conselho de Cultura, seja municipal, estadual ou nacional, corresponde a um dos
elementos constitutivos dos Sistemas de Cultura, também de âmbitos municipal, estadual ou
nacional, e baseado nos princípios da política nacional de cultura, corresponde a uma instância
de articulação, pactuação e deliberação (MINC, 2011). Enquanto uma instância colegiada
permanente, de caráter consultivo e deliberativo, o Conselho de Cultura deve integrar a
estrutura político-administrativa do Poder Executivo, ser criado por Lei e ser constituído por
representantes do poder público e da sociedade civil. A representação da sociedade civil deverá
ser de, no mínimo, 50% dos membros e deve ser eleita democraticamente pelos respectivos
segmentos. Segundo o MINC (2011), os Conselhos de Cultura têm como atribuições gerais
propor e aprovar diretrizes para os Planos de Cultura, acompanhar sua execução, apreciar as
diretrizes dos Sistemas de Financiamento à Cultura, além de fiscalizar a aplicação de recursos
e as ações do órgão gestor da cultura.
Segundo Teixeira (2005), a composição (principalmente no que tange à paridade), a natureza
deliberativa, os objetivos e o funcionamento dos conselhos são atributos fundamentais ara a
análise de sua eficácia e efetividade enquanto espaços de partilha de poder, explicitação de
conflitos, democratização da democracia e resultados de melhor gestão da política pública
de cultura.Para a autora, os Conselhos apresentam problemas e desafios vinculados a estes
atributos que devem ser superados com medidas que busquem olhar para os setores que não
estão presentes no conselho. Torna-se necessário estimular sua participação, criar e valorizar
arenas e espaços da sociedade civil para que esta se fortaleça para integrar o conselho. Além
disso, dentre estas medidas está a criação de mecanismos para a articulação entre conselhos
de políticas públicas da cidade, a produção de dados e o acesso a informações para subsidiar
as decisões do conselho (não se limitando aos dados do órgão gestor, mas incluindo estudos
de ONGs e universidades). Também são medidas importantes e que são grandes desafios, são
o desenvolvimento de estratégias de articulação entre os conselhos dos entes federados e a
articulação com outros espaços participativos da própria esfera (como por exemplo, os fóruns
de Orçamento Participativo). Por fim, a medida fundamental de viabilizar recursos para os
Conselhos e sua atuação nas deliberações orçamentárias.
O COMUC, como é chamado o Conselho de Política Cultural de Belo Horizonte, configurase como um espaço instituído legalmente, ordenado por meio de lei, decreto e Regimento
Interno, apresentando composição de 50% de membros da sociedade civil, eleitos por seus
pares e segmentos e que busca empreender o que dispõe o Ministério da Cultura em relação ao
papel do Conselho. No entanto, como apontou Teixeira (2005), ao avaliarmos sua experiência
desde 2011, verificamos que muitos problemas estão presentes e se colocam como desafios
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para a gestão pública municipal e para a própria sociedade.
Para Faria e Moreira (2005), a garantia, do ponto de vista legal e formal, a organização do
conselho, sua agenda periódica e atividades, a convocação de conferências, o estímulo aos
fóruns, nem sempre corresponde ao que chamam de cultura participativa. A Cultura, segundo
eles, é central para as práticas e reflexões da governança e é fundamental que se trabalhe
com a transversalidade. Assim, o estabelecimento de uma cultura participativa pressupõe ir
além da cultura como espaço de arte, abrangendo outras esferas da cidadania, tais como a
ambiental, a mobilidade, a cultura alimentar, valores éticos, os hábitos de saúde, a cultura
da paz, o que pressupõe, inclusive, outros formatos de gestão. Assim, segundo os autores, a
cultura participativa de uma cidade é mais abrangente do que a constituição de um conselho e
envolve outras dimensões para além do formal e institucionalizado. No entanto, neste artigo,
buscaremos, ainda que considerando tais limitações, reconhecer nos conselhos de cultura
espaços possíveis para a participação social.
Como aponta Teixeira (2005), os conselhos correspondem a espaços de partilha do poder, nos
quais alguns níveis de decisão são acessados a partir de interesses diversos que se confrontam,
posto que são também estes espaços de exposição de conflitos e nos quais a visibilidade das
tomadas de decisão já se mostram como um avanço diante daquelas tomadas em gabinetes
fechados. Para a autora, os conselhos também se constituem espaços para democratização
da democracia, o que segundo ela, corresponde à forma como os conselheiros aprendem a
escutar uns aos outros, respeitar divergências, perceber contradições e estabelecer acordos e
consensos. Outro ponto ressaltado por Teixeira (2005) é que os conselhos de cultura podem
promover melhorias na forma da gestão da política de cultura quando consolidam mecanismos
de avaliação, fiscalização, estabelecem diretrizes para atender a um número maior de pessoas,
otimizam recursos e evitam corrupção. Para Faria (2005), a partir da avaliação da atuação dos
conselhos, é necessário buscar compreender os novos rumos que deveremos tomar, a fim
de instituir novas dinâmicas participativas, avaliando os impasses na construção democrática
e na construção de uma nova cultura política que sirva à formação de cidadãos plenos e ao
desenvolvimento da vida nas cidades (Faria, 2005, 122).
2. CONSTITUIÇÃO DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA CULTURAL DE BELO HORIZONTE
O Conselho Municipal de Política Cultural de Belo Horizonte – COMUC, foi instituído pela
Lei 9.577, de 02 de julho de 2008, a partir de demandas da sociedade civil legitimadas por
conferências municipais de cultura e movimentos culturais da cidade. O decreto 13.825, de
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28 de dezembro de 2009 que o regulamentava, no entanto, dispôs uma composição que
fora ampla e intensamente questionada pela sociedade civil, posto que se configurava de
34 membros, dos quais 17 seriam indicados pelo poder público, representando pastas da
administração e 17 seriam representações da sociedade civil, das quais 06 dos setores artísticos
eleitos por entidades, 09 por representantes das regionais administrativas do município e 02
representantes de notório saber que seriam indicados pelo Prefeito. Esta composição e a forma
de indicação dos representantes da sociedade civil via entidade e via indicação do Prefeito
foram alvo de críticas e debates que resultaram na revogação deste decreto e sua substituição
pelo Decreto 14.424, de 18 de maio de 2011. Esta alteração foi resultado do trabalho de uma
comissão de estudos criada a partir de uma reunião pública, com membros do poder público
e da sociedade civil e instituída pela Portaria FMC 48, de 27 de dezembro de 2010. O trabalho
desta comissão resultou na realização de consultas públicas e na elaboração do novo decreto,
que dispôs nova composição para o Conselho a ser formado por 30 membros, dos quais 15
são do poder público indicados pelos respectivos órgãos e 15 da sociedade civil, sendo 06 dos
setores artísticos eleitos pelos seus pares e 09 representantes das regionais administrativas
eleitos pelos moradores destas áreas. Houve, portanto, a partir dos debates promovidos e pelo
trabalho da comissão, a retirada da indicação dos representantes artísticos pelas entidades
e dos 02 notórios saberes indicados pelo Prefeito, buscando-se assim, maior abertura à
participação do cidadão, não restringindo a inserção no conselho via entidade e eliminando a
tradicional indicação de notórios saberes pelos prefeitos, como se dá em conselhos tradicionais
do Patrimônio, por exemplo. A principal questão em pauta e ressaltada durante o processo de
reformulação foi a garantia da ampla e diversa participação do cidadão. A partir daí, com o
novo decreto, foi instaurado em 2011, o primeiro processo eleitoral para o então Conselho
Municipal de Cultura (a alteração do nome para Conselho Municipal de Política Cultural se deu
em 2014). Este momento foi importante para estabelecer o que foi disposto pelo MINC (2011)
relativo ao processo democrático na escolha dos membros do conselho de representantes
da sociedade civil e como aponta Faria e Moreira (2005), inibir conselhos que se estruturem
com características corporativistas, relacionadas às áreas que, de fato, não representam, sem
vínculos com as dinâmicas da sociedade civil e restritos a grupos que não abarcam a cidade,
mas que podem forçar a lógica das relações políticas para apoio de eventos ou espaços.
Em 2011, todas as representações da sociedade civil tiveram candidaturas e, após as eleições,
foi iniciado o trabalho do colegiado, com a instauração sistemática de seu funcionamento,
a partir da discussão do Regimento Interno, que durou cerca de seis meses e representou
um momento rico de debates que iam além das matérias regimentais, além da definição da
agenda de reuniões ordinárias. A partir de então, o Conselho veio atuando junto à Fundação
Municipal de Cultura na formulação do Plano Municipal de Cultura, finalizado em 2013 e
aprovado pela Câmara Municipal de Belo Horizonte em 2015, na colaboração para realização
da 3ª e 4ª Conferências Municipais de Cultura, em 2013 e 2015, respectivamente, além de
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promover debates em torno de temas pertinentes às representações setoriais e regionais,
como a revisão da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, os usos dos espaços públicos, a atuação
e manutenção dos equipamentos culturais públicos (Centros Culturais, Teatros, Museus, etc. ),
além de ações específicas como editais, festivais e outros projetos da gestão pública de cultura
da cidade.
3. ATUAÇÃO DO CONSELHO MUNICIPAL DE POLÍTICA CULTURAL – AVANÇOS E DESAFIOS
Durante os dois primeiros mandatos do Conselho Municipal de Política Cultural (2011-2013
e 2013-2015), destacam-se os trabalhos relacionados à formulação do Plano Municipal de
Cultura e a instauração dos debates em torno da revisão da Lei Municipal de Incentivo à Cultura,
tendo como referência a implantação do Sistema Municipal de Cultura. O Sistema Municipal de
Cultura também foi tema deste período resultando em sua instituição através da Lei 10.901, de
11 de janeiro de 2016. Estes resultados, mais a colaboração do conselho na realização da 3ª e 4ª
Conferências Municipais de Cultura, em 2013 e 2015, além da Conferência Extraordinária em
2013 com foco no Plano Municipal de Cultura, podem ser considerados resultados efetivos da
atuação do conselho na formulação da política. Durante todo o processo, houve a possibilidade
de inserção de questionamentos, sugestões e verificação de informações pelos conselheiros
que se destacaram também pelo perfil de indução de alguns procedimentos pela instituição,
tais como o aumento no número de realização de reuniões públicas para definição de projetos
e ações específicas, como festivais e editais. O acompanhamento do Conselho de Política
Cultural também em comissões de trabalho da instituição, como, por exemplo, na Comissão
do Edital Mestres da Cultura Popular (2014 e 2015) promoveu a inserção de conselheiros no
exercício mais próximo da execução da política, possibilitando um contato mais direto na
formulação do mecanismo e no processo de avaliação. Houve a inserção da participação de
conselheiros nas comissões de elaboração do Plano Municipal de Leitura, Livro, Literatura e
Bibliotecas, no Comitê de Acompanhamento da Lei Municipal de Incentivo à Cultura, além
da constituição de grupos de trabalho específicos do colegiado com temas pertinentes às
discussões promovidas. Desta forma, buscou-se ampliar a participação do Conselho em vários
âmbitos de formulação das políticas no âmbito da Fundação Municipal de Cultura.
Muitos são os desafios que o Conselho Municipal de Política Cultural ainda tem a superar em
seu percurso. Um dos desafios atuais é a ampliação da atuação do conselho no processo de
acompanhamento na elaboração orçamentária definida pela Lei de Diretrizes Orçamentárias
(LDO) e pela Lei Orçamentária Anual (LOA), assim como no entendimento destes instrumentos
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na estrutura do Plano Plurianual de Ação Governamental (PPAG). Nos últimos anos, o
Conselho Municipal de Política Cultural foi consultado sobre as possibilidades de projetos
e avaliação das propostas, mas não consolidou proposições relativas ao tema nos prazos
estabelecidos. Verifica-se, portanto, a necessidade de definir as estratégias e mecanismos para
que esta atuação se efetive com mais qualidade e não se disperse ao longo do ano através de
resoluções ou recomendações fragmentadas. Como aponta Teixeira (2005), os conselhos que
não discutem o orçamento, as contas públicas e não acompanham o gasto público, podem se
perder em assuntos muito genéricos e se dispersarem do poder que teriam de fato.
Outro desafio é ampliar a capilaridade e mobilização dos conselheiros junto a seus setores
e regionais. Percebe-se uma fragilidade, em algumas representações, na interlocução com
seus pares a fim de consolidação de propostas, questionamentos e encaminhamentos.
Alguns conselheiros, nas eleições de 2015, foram eleitos com apenas um voto, o que revela
um esvaziamento do processo de participação e pouca articulação com os segmentos que
buscam representar. As ações de descentralização no território, através dos fóruns regionais e
setoriais, visam criar espaços para que coletivos se constituam e tenham representação com
base mais ampla e diversa.
A constituição dos fóruns consultivos setoriais e regionais, já pautado durante os últimos anos
pelo colegiado e por grupo de trabalho constituído para sua definição, ainda está em curso, o
que pressupõe o necessário investimento nos próximos anos a fim de efetivá-los nos moldes
descritos pela política nacional, para o âmbito municipal. Já foram realizadas reuniões para
incrementar fóruns já existentes, como os do Audiovisual, Música, Leitura, Manifestações da
Cultura Popular, além de se identificar, no âmbito das regionais, a realização de Comissões
Locais de Cultura pelos centros culturais. O conselho tem buscado, ao longo deste processo,
ressaltar a implantação do Sistema Municipal de Informações e Indicadores Culturais, com
a fundamental ação de Mapeamento Cultural como ferramenta para a gestão da política de
cultura. A visibilidade dos territórios culturais e artísticos é uma pauta constante no âmbito
do conselho e já resultou também na constituição de um grupo de trabalho voltado para a
interlocução com os centros culturais dispostos nas regionais da cidade, além de representação
no grupo institucional para implantação do Mapeamento cultural. Além disso, conforme
afirmam Faria e Moreira (2005), os conselhos devem descentralizar a ação no território,
capilarizando também as políticas públicas, buscando integrar espaços da cidade.
Outro grande desafio para o Conselho Municipal de Política Cultural, desde o segundo processo
eleitoral, realizado em 2013, é a ampliação e diversificação para sua composição. O aumento
das vacâncias de algumas representações, o baixo número de participantes do processo,
seja como eleitor ou como candidatos, aponta para um esvaziamento e desinteresse em ser
designado como conselheiro municipal de cultura. A principal justificativa para esta queda
no interesse de integrar o conselho está no impedimento do conselheiro em participar dos
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mecanismos de incentivo e fomento no âmbito municipal, dada sua condição como agente
público municipal pelo Decreto 14.635, de 10 de novembro de 2011. Estas restrições inibiram
a participação de muitos agentes culturais do município (artistas, produtores, técnicos de arte,
etc.) que concorrem no acesso, principalmente, à Lei Municipal de Incentivo à Cultura.
Também foi constatado outro ponto que reduz a potencialidade de participação social no
conselho referente aos critérios estabelecidos para os candidatos regionais que, diferentemente
do que ocorre em outros conselhos de políticas do município, impede a participação do
cidadão comum, do usuário da cultura, uma vez que requer comprovação, por meio formal, de
02 anos de atuação na área artística ou cultural de sua regional, em moldes do que é exigido
das representações artísticas. Este requisito tem impedido que o cidadão comum, usuário da
cultura, e também agente cultural no sentido mais abrangente e antropológico, insira-se como
candidato no processo de eleição do conselho e possa integrá-lo e formular, em conjunto com
as demais representações, a política cultural da cidade. Esta análise também vai ao encontro
do que propõe Moreira e Faria (2005) em relação à composição de um conselho para além das
linguagens artísticas, mas com a inclusão de outros e diversos atores que convivem na cidade.
O Conselho Municipal de Política Cultural também tem como desafio ampliar os instrumentos
de comunicação a fim de dar maior visibilidade aos seus trabalhos para a cidade. A Prefeitura
Municipal de Belo Horizonte, por meio da Secretaria Adjunta de Gestão Compartilhada, possui
um Portal para abrigar as informações de todos os conselhos e colegiados de políticas públicas
da cidade. Nele, estão dispostas as legislações, agendas, pautas, atas, integrantes, resoluções,
e outras informações gerais sobre os conselhos. No entanto, o Conselho Municipal de Política
Cultural já pautou a necessidade de buscar criar, junto à Fundação Municipal de Cultura,
outros canais de comunicação, inclusive, para superar outro grande desafio que é o de renovar
e inserir novos agentes culturais e cidadãos nos processos de participação.
Em relação ao papel e atuação, muitos conselheiros, tanto alguns representantes do
poder público como da sociedade civil, demandam ações de formação e capacitação para
a participação, debate político e sobre instrumentos da administração pública. No âmbito
da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte, foram realizados cursos junto à ESAF – Escola
de Administração Fazendária, anualmente, a partir de 2013, a fim de contemplar todos os
conselhos de políticas públicas. Este tipo de ação, inclusive, é apontado por Teixeira (2005),
como um exemplo de medida para articular conselhos de políticas por meio de programas de
capacitação integrados. No entanto, a participação dos conselheiros municipais de cultura foi
pequena, justificada pela maioria, pela incompatibilidade de datas e horários. Cabe ressaltar
que a atuação do conselheiro municipal de cultura pelos representantes da sociedade civil
é caracterizada como uma atividade de interesse público, sem remuneração e que o tempo
dispendido para esta atuação concorre diretamente com o seu trabalho, fonte de renda,
além das atividades familiares. Isto remete a uma questão posta por Teixeira (2005) relativa
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à paridade que, formalmente existe, mas na prática é comprometida em função de condições
distintas e desiguais de participação entre os membros do poder público e os da sociedade
civil, visto o diferente acesso às informações e o tempo disponível para a participação. As
dificuldades dos membros da sociedade civil comprometem a efetividade da paridade como
um atributo do conselho. Outro ponto que também pode ser ressaltado é que muitos membros
do poder público não têm, de fato, um compromisso com o conselho, não se envolvendo nas
discussões, proposições ou encaminhamentos.
As ações de capacitação no âmbito da própria Fundação Municipal de Cultura foram realizadas,
esporadicamente, a partir dos temas relativos ao orçamento, aos Sistemas Nacional e Municipal
de Cultura, Agenda 21 da Cultura, além de seminários específicos para os quais o conselho
é convidado. Foram realizadas visitas técnicas aos equipamentos culturais do órgão gestor
para que os conselheiros tivessem conhecimento e acesso a informações diretas por parte
dos gestores e equipes. Estas ações promoveram um envolvimento maior também por parte
dos servidores da Fundação Municipal de Cultura com o conselho. Cabe ressaltar que uma das
demandas por parte dos servidores é a garantia de que 03 dos 07 membros representantes
do órgão sejam eleitos pelo conjunto dos servidores. Esta eleição já acontece desde 2011, no
entanto, sem ter sido incorporada na normativa do colegiado.
Dentre tantos desafios, o Conselho Municipal de Política Cultural também se depara com
a necessidade de desenvolver capacidades de gestão de tempo, de conflitos, de instituir
procedimentos para melhor definir prioridades num contexto complexo, heterogêneo e
diverso da Cultura, por meio da inscrição de suas pautas, proposições e deliberações.
Aliar o trabalho do conselho a outras instâncias da esfera pública também é um desafio para
efetivar proposições e encaminhamentos, como por exemplo, a necessária interlocução
com a casa legislativa, esta que, muitas vezes, tem receio da atuação de conselhos fortes e
incisivos. A elaboração do Plano Municipal de Cultura e da Lei do Sistema Municipal de Cultura
demonstrou a importância de um conselho que não restrinja o olhar ao poder executivo e que
saiba operar com as estruturas dos poderes da administração pública.
No entanto, há que se ampliar o suporte para que o conselho se muna de conhecimentos,
instrumentos e ferramentas que fortaleçam suas atribuições de análise, avaliação, formulação
e deliberação.
Ao analisar as atividades, proposições, resoluções e trabalhos do Conselho, é possível levantar
problemas e desafios relativos à eficácia e efetividade de alguns de seus atributos. Os resultados
efetivos, relativos à formulação do Plano Municipal de Cultura, outro elemento constitutivo do
Sistema de Cultura, além da instituição deste, representaram um avanço para consolidação da
política pública do município e concretizou também as demandas e proposições consolidadas
ao longo de 4 conferências municipais (2005, 2009, 2013 e 2015). É importante destacar que o
conselho passou a ser reconhecido como uma instância na estrutura da política pública, sendo
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solicitado para análise e pauta por parte de vários setores e grupos da cidade. As recomendações,
moções e resoluções aprovadas desde 2011, tiveram resultados naquilo que o órgão gestor
detinha governabilidade. A exemplo da Resolução aprovada em 2013 que pautava a diretriz de
equilíbrio na distribuição do recurso da Lei Municipal de Incentivo à Cultura nas regionais do
município, que gerou a formulação de um edital diferenciado denominado Descentra Cultura
a fim de possibilitar maior capilaridade do recurso, com maior possibilidade de acesso por
produtores de outras regionais da cidade. Este edital, no entanto, apontou que outras medidas
deverão ser tomadas, mas representou uma ação decorrente de deliberação do conselho.
A baixa de resultados efetivos pode, segundo Teixeira (2005), desestimular a participação
e gerar a sensação de frustração. No entanto, é necessário informar aos conselheiros quais
são as reais possibilidades orçamentárias disponíveis para o setor e para a execução pela
instituição. O entendimento dos trâmites administrativos e legais no âmbito da gestão pública
também são fundamentais para que o conselho compreenda o cenário orçamentário no qual
a cultura está inserida na cidade e os alcances de governabilidade do órgão gestor. Um ponto
importante a ressaltar é que, à medida que os elementos constitutivos do Sistema de Cultura
se consolidarem e se fortalecerem, o próprio Conselho terá maior possibilidade de ampliar
a eficácia e efetividade de sua atuação, a exemplo da implantação do Plano Municipal de
Cultura, agora uma referência para a política cultural da cidade para os próximos 10 anos,
com revisão a cada Conferência Municipal. Estes instrumentos reforçam-se e contribuem para
o fortalecimento de toda a estrutura sistêmica da política. Desta forma, o entendimento do
funcionamento do Conselho de Cultura passará pela compreensão e análise do funcionamento
dos demais elementos constitutivos do sistema e as deliberações do conselho devem abrangêlo, em especial, o acompanhamento do Plano de Cultura e do Fundo Municipal de Cultura.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
A partir das leituras dos relatórios anuais do Conselho Municipal de Política Cultural de
Belo Horizonte, verificou-se que o colegiado, desde 2011, buscou constituir-se conforme as
prerrogativas do Ministério da Cultura, no contexto da adesão ao Sistema Nacional de Cultura
e implantação do Sistema Municipal de Cultura. Juntamente com a Conferência de Cultura
estabeleceu-se como instância de articulação, pactuação e deliberação. Estas três competências
que definem, inclusive, sua natureza, demandam constantes ajustes na gestão pública destes
conselhos para que se garanta o reconhecimento da diversidade, de conflitos, de invisibilidades,
para que se promovam espaços e tempos de pactuação, exposição de divergências, exposição
de interesses e para que se negocie, construam-se consensos, definam-se prioridades, enfim,
se efetivem os direitos de saber, falar, ouvir, perguntar, avaliar, duvidar, propor, decidir. Deste
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modo, espera-se que a articulação se constitua a partir de laços com as escalas do local e se
ampliem para alçar propósitos com outros níveis de governo; que a pactuação se institua a
partir de instrumentos democráticos, transparentes e éticos, envolvendo os contextos diversos
da Cultura e que a deliberação seja eficaz e efetiva, resultando em mudanças para o interesse
coletivo da cidade. Os conselhos, a partir de suas experiências, se deparam com a necessidade
constante de repensar seu funcionamento, seu formato, seus suportes, linguagens, o que
reflete uma dinâmica vívida da cidade, da sociedade, da cultura.
REFERÊNCIAS
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bom conselho? Conselhos municipais de cultura e cidadania cultural. São Paulo: Instituto Pólis,
2005. 128p
FARIA, Hamilton, MOREIRA, Altair. Cultura e governança: um olhar transversal de futuro para
o município. In: FARIA, Hamilton, (Org.); MOREIRA, Altair; (Org.); VERSOLATO, Fernanda, (Org.)
Você quer um bom conselho? Conselhos municipais de cultura e cidadania cultural. São Paulo:
Instituto Pólis, 2005. p.9-18
FARIA, Hamilton. Conselhos municipais de cultura e cultura participativa: reavaliar caminhos e
buscar horizontes. In. FARIA, Hamilton, (Org.); MOREIRA, Altair; (Org.); VERSOLATO, Fernanda,
(Org.) Você quer um bom conselho? Conselhos municipais de cultura e cidadania cultural. São
Paulo: Instituto Pólis, 2005 – p. 114-122
FUNDAÇÃO MUNICIPAL DE CULTURA, 2013, 2014 e 2015. Relatórios do Conselho Municipal de
Política Cultural 2013, 2014, 2015 – manuscritos – [email protected]
MINISTÉRIO DA CULTURA, 2011. Guia de Orientações para os Municípios – Sistema Nacional
de Cultura – cartilha – p.80
TEIXEIRA, Ana Cláudia. Formação dos conselhos no Brasil. In. FARIA, Hamilton, (Org.);
MOREIRA, Altair; (Org.); VERSOLATO, Fernanda, (Org.). Você quer um bom conselho? Conselhos
municipais de cultura e cidadania cultural. São Paulo: Instituto Pólis, 2005 - p.19-25
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A REPRESENTAÇÃO DA CULTURA NAS ESCOLAS PÚBLICAS DE SANTA MARIA:
Um estudo sobre o programa “Mais Cultura”
Ângela Sowa 1
RESUMO
O trabalho tem como objetivo mapear e analisar o processo de implantação e desenvolvimento
da política pública “Mais Cultura” nas escolas públicas de Santa Maria/RS. A metodologia
utilizada é composta pela pesquisa bibliográfica, análise documental de cartilhas fornecidas pelo
MEC/MINC e entrevistas estruturadas com gestores. Concluímos que os projetos incentivam o
desenvolvimento de individualidades e a produção colaborativa de jovens, contribuindo para a
compreensão da diversidade cultural presente na sociedade e o quanto a cultura está atrelada
ao descobrimento do “eu“ e do “outro“.
Palavras-Chave: Representação. Cultural. Mais Cultura. Cidadania Cultural.
ABSTRACT
The study aims to map and analyze the implementation process and development of public
politic Mais Cultura in public schools in Santa Maria – RS. The methodology consists of the
bibliographic research, documentary analysis of the booklets provided by the MEC / MINC
and application of structured interviews with managers of developed projects in Schools. We
conclude that the projects encourage the development of individuals and the collaborative
production of children and adolescents helping them understand the cultural diversity present
in society and in the community and how culture is linked to the discovery of “self” and “other“.
Keywords: Representation. Cultural. Mais Cultura. Cultural Citizenship.
1 Mestranda em Comunicação Midiática pela Universidade Federal de Santa Maria. Email: [email protected]
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1. CULTURA E EDUCAÇÃO: VAMOS FALAR DE DIREITOS CULTURAIS?
Educar é introduzir o indivíduo na sua cultura, ensiná-lo a agir de forma com que siga as
normas e valores coletivos, para que ele possa participar de grupos sociais e continuar sua
educação. Porém, são as culturas que diferem os povos, os seres-humanos e fazem com que
esses entrem em conflito desde o começo do tempo até a atualidade. Divergências culturais,
religiosas, comportamentais, brigas de egos, todos defendendo que a sua cultura é a correta,
sem pensar na miscigenação e aprendizado que uma poderia ter com a outra (SODRÉ, 2012). O
direito à cultura está ligado ao pertencimento e as diferenças de cada grupo que defende o seu
idioma, a história e solo, um sentimento que vai além da demarcação territorial, uma distância
espacial que acaba resultando nas diferenças sociais e temporais, pela falta de identificação e
aceitação.
Estudo do CEPAL (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), citado no livro
Diferentes, Desiguais e Desconectados de García Canclini (2004), refere-se à ampliação da
noção de direitos culturais, ligando a valorização das diferenças com os direitos conectivos. A
conexão entre os direitos culturais, sociais e econômicos é responsabilidade do Estado vigente,
pois está ligado ao exercício da cidadania, assim como a atuação dos sujeitos está ligada às
oportunidades oferecidas pelo Governo.
Para Canclini (2009), cultura é o conjunto de processos sociais de produção, circulação
e consumo da significação da vida social, conceito escolhido para o entendimento desse
trabalho. Dessa forma, entende-se que pela cultura identificamos os signos equivalentes
para que os indivíduos criem relações e produzam conhecimentos a partir das informações
trocadas, resultando na interação social.
Bourdieu (1979) considera que as diferenças de gostos para apropriação cultural se dão a
partir da distinção dos públicos, pelo tipo de obra produzida e pela ideologia política adotada,
formando um sistema coexistente dentro de uma sociedade capitalista que organiza a
distribuição desigual desses bens materiais e simbólicos. Para que ações de acesso à cultura
contribuam de uma forma coerente, precisa-se educar para entender o “capital cultural do
que está sendo passado.
Segundo Bourdieu (2007) capital cultural é a herança puramente social que contém o
conhecimento, informações, linguística, atitudes e posturas, que cada pessoa tem acesso no
seu núcleo familiar. Bourdieu também relaciona a formação de redes e núcleos familiares com
o capital cultural, dizendo que é partir do histórico cultural que o indivíduo vai definir seu
capital cultural, mas que [...] só a escola pode criar uma aspiração à cultura, mesmo a cultura
menos escolar” (BOURDIEU, 2007, p.60), sendo assim a escola pode educar e modificar o
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capital cultural dos alunos.
Marilena Chauí (2006) em seu livro Cidadania Cultural: o direito a cultura, apresenta um
estudo de caso em que, durante (1889-1992), como Secretária Municipal da Cultura de São
Paulo, pretendeu focar na cidadania cultural, para reger sua administração e seus valores.
Nesse sentido ela considera que, para que um órgão possa ser criador e multiplicador de
símbolos, ele precisa colocar cultura como um direito do cidadão. Para estas definições, o
direito à cultura se entenderá como:
O direito a produzir à cultura, seja pela apropriação dos meios culturais existentes,
seja pela invenção de novos significados culturais; -o direito de participar das
decisões quanto ao fazer cultural; -o direito de usufruir dos bens de cultura, criando
locais e condições de acesso aos bens culturais para a população; -o direito de estar
informado sobre os serviços culturais e sobre a possibilidade de deles participar ou
usufruir; -o direito à formação cultural e artística pública e gratuita nas escolas e
oficinas de cultura no município; -o direito à experimentação e à invenção do novo
nas artes e humanidades; -o direito a espaços para reflexão, debate e crítica; - o
direito à informação e à comunicação. (CHAUÍ, 2006, p. 70)
Para Chauí (2006) cidadania cultural é caracterizada por quatro perspectivas determinantes
da proposta do conceito de cultura: não limitado a uma vertente de pesquisa, mas ligado a
uma visão macro; uma visão de cultura pelo cunho democrático, de acessibilidade a todos os
cidadãos; uma definição conceitual de cultura como trabalho de criação e uma definição dos
sujeitos sociais como sujeitos históricos com a ênfase na historicidade.
O conceito de Cidadania Cultural é guiado por duas diretrizes: “[...] a cultura como direito
dos cidadãos e como trabalho de criação dos sujeitos culturais” (CHAUÍ, 2006, p.75). Neste
sentido, podemos relacionar os sujeitos culturais indicados pela autora, com o conceito de
sujeito denominado por Touraine (1998), que entende o entorno social em que vive e tem
criticidade para se mobilizar e lutar por uma sociedade democrática.
O que diferencia as linhas de pensamento de Touraine (1998) e Chauí (2006) é o papel do
Estado nessa relação. Nos relatos de Chauí, o mediador da cidadania cultural é o Estado, em
concordância com Eagleton (2005) que considera que o cultivo ou mediação da cultura poder
ser feito pelo Estado e não só pelos cidadãos, mas “[...] para que isso aconteça, o Estado já
tem que ter estado em atividade na sociedade civil, aplacando seus rancores e refinando suas
sensibilidades” (EAGLETON, 2005, p. 16), inserindo-se na cultura da sociedade.
No caso do Brasil, a intervenção estatal nos processos comunicacionais, caminhando para a
cidadania cultural, por meio das políticas públicas, como uma forma de democratizar os meios
e criar o capital cultural apresentado por Bordieu (1998). Essas políticas, como é o caso do
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Programa Mais Cultura, voltam-se à redução das desigualdades sociais, utilizando a escola
como mediadora dessa relação por ser um local de formação e de desenvolvimento humano.
Essas políticas visam garantir o direito humano e de cidadania a cultura, em igual nível de
importância com os demais direitos.
1.1. A cultura nas políticas públicas educacionais
As políticas públicas sociais são implantadas para garantir os direitos ao bem-estar social,
como saúde, educação, cultura. Segundo Demo (2011, p.41), as características principais de
políticas participativas e emancipatórias são “[...] reconhecer que bem estar não é dádiva, mas
conquista”, indicando a questão da democracia, tornando-a componente fundamental e parte
do bem-estar social.
Nesse mesmo movimento, o governo federal vem investindo em políticas públicas educacionais
e culturais como uma estratégia para implantação gradativa do ensino integral na rede pública.
Em 2007, foi implantado o Programa Mais Educação2 e em outubro de 2009 foi instituído pela
portaria nº9713 o programa Ensino Médio Inovador.
Já em 2013, foi implantado o Programa Mais Cultura, para fomentar a valorização da cultura
brasileira e inclusão de projetos culturais no ensino regular, voltado ao desenvolvimento de
cidadãos críticos, criativos e com percepção artística. Trata-se de uma iniciativa de caráter
interministerial entre os Ministérios da Cultura (MinC) e da Educação (MEC), que objetiva
incentivar práticas culturais e artísticas em escolas públicas que já integram os Programas Mais
Educação e Ensino Médio Inovador.
Essas políticas (Mais Cultura, Ensino Médio Inovador e Mais Educação), se diferem pelo
rigor de periodicidade. No Programa Mais Cultura não há exigência de carga horária regular
semanal, as atividades podem ser realizadas conjuntamente com as aulas regulares e também
nos finais de semana, com durabilidade mínima de seis meses. Cada escola tem liberdade
de escolher os eixos temáticos e modalidade mais adequados a sua realidade. Já as escolas
integradas aos Programas Mais Educação e Ensino Médio Inovador, ativas no ano de 2012,
puderam participar do Programa Mais Cultura, lançado em 2013. Considera-se que essas já
adotam práticas de diversificação de espaços e tempos, bem como estão familiarizadas com a
metodologia de projetos em turno integral. Nesse contexto, cinco mil projetos culturais foram
selecionados das Escolas inscritas a serem implantados a partir do primeiro semestre de 2014.
2 Passo a passo mais educação. Disponível em: <www.portal.mec.gov.br/dmdocuments/passoapasso_maiseducacao.pdf>
Acesso em: 30 de ag. 2014
3 Ensino médio inovador. Disponível em: <www.portal.mec.gov.br/dmdocuments/ensino_medioinovador.pdf> Acesso em:
30 de ag. 2014.
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O axioma é desencadear o diálogo entre a iniciativa cultural e o projeto político pedagógico,
tratando-se de um processo colaborativo entre a Escola e Entidades Culturais, decentralizando
e democratizando a cultura. A Escola tem a liberdade na escolha do tema, da atividade,
da periodicidade e aplicabilidade que melhor se adequar a realidade da sua comunidade
educativa, cujo planejamento é concebido em conjunto com a entidade cultural selecionada.
Segundo Touraine (1998) o papel da educação é fundante para formar o que “[...] podría
ser la escuela del Sujeto” (TOURAINE, 1998, p. 22). Nessa Escola o aluno seria preparado
para compreender outras culturas e os direitos sociais e assim partiria para o entendimento
da democracia e da cidadania. Nesse mesmo contexto, Touraine (1998, p.263) aborda a
importância da democracia cultural, uma vez que ela luta “[...] por um lado para permitir a
utilização das técnicas e dos meios de comunicação pelo maior número possível de culturas”
e por outro para preservar a alteridade cultural a fim de torná-las não só criadoras, mas sim
produtos da coletividade real. Para o autor (TOURAINE,1998 p.219), só conseguiremos viver
juntos se nos construirmos como “sujeitos da nossa própria existência”.
1.2. O Programa Mais Cultura
O Mais Cultura segue a perspectiva do Programa Mais Educação que objetiva a educação
integral e tem como princípio o diálogo entre os macrocampos para um ensino de qualidade
voltado à redução das desigualdades sociais. Dessa forma, a escola pode contribuir na
compreensão do direito de aprender e desenvolver-se intelectualmente, direito congênere ao
direito à vida e a saúde.
Segundo o Manual de Orientações do Programa Mais Cultura nas Escolas (2014), o objetivo da
parceria entre o Ministério da Educação e Ministério da Cultura é de fazer com que a escola
seja reconhecida como um espaço de circulação e produção da diversidade cultural brasileira.
Entre os pontos objetivados estão a promoção e consolidação de territórios educativos, com a
valorização do diálogo entre saberes comunitários de escolares, na perspectiva da pedagogia
das diferenças.
Outro ponto assinalado é das relações de vivências e manifestações artísticas fora do contexto
escolar, podendo ocorrer a ampliação repertórios que abrangem a diversidade cultural para
a promoção da interculturalidade, que segundo Candau (2012, p.14) são processos que
reconhecem “[...] o direito à diferença e a luta contra todas as formas de discriminação e
desigualdade social”, além de estar presente no documento do MinC/MEC:
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- Promover o reconhecimento do processo educativo como construção cultural em
constante formação e transformação; - Fomentar o comprometimento de professores
e estudantes com os saberes culturais locais; - Contribuir para a ampliação do
número dos agentes sociais responsáveis pela educação no território, envolvendo
iniciativas culturais dos territórios nos processos educativos em curso nas escolas; Proporcionar aos estudantes vivências artísticas e culturais promovendo a afetividade
e a criatividade existentes no processo de ensino e aprendizagem. (MANUAL DE
DESENVOLVIMENTO - MAIS CULTURA NAS ESCOLAS, 2014).
Com estes objetivos os Ministérios acreditam que a cultura nas escolas será democratizada,
promovendo incentivo à cultura, cooperando para a construção da igualdade. Como Escobar
(2005) apresenta no conceito de participação cidadã, quando diversas partes utilizam
percepções comuns para construir e negociar um ponto comum que beneficiará a todos, dessa
forma, a cultura na escola se torna uma chave para o diálogo em diversas atividades e ações,
desde o aprendizado até as relações humanas.
Para que esses conceitos atinjam a práxis educativa, as propostas de projetos elaboradas
a partir da sinergia entre a coordenação escolar e entidade cultural devem estar afinadas
com o projeto político-pedagógico da escola e deve seguir o Plano de Atividade Cultural
concebido e desenvolvido em parceria entre a Escola e a organização promotora ou promotor
cultural: pontos de cultura, museus, produtores culturais, artistas, mestres de cultura popular
e tradicional, cinemas, bibliotecas, coletivos culturais. O Mais Cultura está estruturado em
eixos temáticos: Residências de Artistas para Pesquisa e Experimentação nas Escolas; Criação,
circulação e difusão da produção artística; Promoção cultural e pedagógica em espaços
culturais: atividades aplicadas em pontos de cultura, centros culturais, museus e cinemas;
Educação patrimonial - patrimônio material e imaterial, memória, identidade e vínculo social;
Cultura digital e comunicação; Cultura afro-brasileira; Culturas indígenas; Tradição oral;
Educação Museal.
Nesses eixos podem ser incluídas quaisquer linguagens de arte e manifestações culturais que
aportem assuntos que necessitam da abertura para diálogo nas escolas e nas comunidades
escolares colaborando para uma reflexão crítica dos conteúdos. Assim, o Programa Mais
Cultura possibilita que produtores culturais, pontos de cultura, museus e manifestações
culturais criem projetos com aplicabilidade no ambiente escolar ou fora dele, que tenham
relevância e proporcionem o diálogo com o conteúdo abordado nas disciplinas curriculares.
O diálogo cultura-escola pode ser aproveitado de forma criativa, desenvolvendo potenciais
efetivos, colaborando para um melhor aprendizado. Os profissionais, ao desenvolver os
projetos culturais, partem da elaboração de um Plano de Atividade Cultural em conjunto com
a escola e professores, para que a experiência contribua para as práticas de ensino e estímulo
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interdisciplinar ao aluno que frequenta o ensino público voltado a uma educação cidadã.
Em abril de 2014, com atraso de três meses, saiu o resultado do edital selecionando 5000
projetos para serem implementados em todo país pelo Programa Mais Cultura. Segundo
dados do Portal Brasil4 o programa tem investimento de R$ 100 milhões, sendo que cada
projeto selecionado recebe entre R$20 mil e R$ 22 mil do Programa Dinheiro Direto na Escola
do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação para executar os Planos de atividade
elaborados durante o ano de 2014 por no mínimo seis meses.
Foram 14 mil propostas enviadas à Diretoria de Educação e Comunicação para a Cultura, cerca
de 63% das escolas5 escolheram apenas um eixo temático, contabilizando cerca de 10.070
projetos no eixo mais procurado, o de Criação, Circulação e Difusão de Produção Artística.
O segundo eixo com mais inscrições foi o de Cultura- Afro-brasileira, com 3.937 projetos
apresentados, seguido do eixo de Promoção Cultural e pedagógicas em Espaços Culturais com
2.890 projetos e o eixo de Educação Patrimonial com 2.386 submissões.
O eixo Tradição Oral foi o quinto mais procurado, com 1.685 projetos inscritos, e em seguida,
o eixo Cultura Digital e Comunicação, com 1.580 inscrições. Em sétimo lugar, ficou o eixo
Educação Museal, com 982 projetos apresentados, seguido pelo eixo Culturas Indígenas
com 834 inscrições. O eixo menos procurado foi o de Residências Artísticas para Pesquisa e
Experimentação nas Escolas com 777 projetos inscritos.6
Segundo dados fornecidos pelo Ministério da Cultura, no Rio Grande do Sul foram apenas
setenta e três planos de atividade selecionados, sendo que 50 projetos apresentaram como
eixo temático Criação, Circulação e Difusão de Produção Artística.
Em Santa Maria foram sete escolas selecionadas, sendo elas a Escola Estadual de Educação
Básica Augusto Ruschi, Escola Estadual de Ensino Fundamental João Link Sobrinho, Escola
Estadual de Ensino Fundamental Marechal Rondon, Escola Estadual de Ensino Médio Dr.
Walter Jobim, Escola Municipal de Ensino Fundamental Duque de Caxias, Escola Municipal de
Ensino Fundamental São Carlos e Escola Municipal de Ensino Fundamental Pão dos Pobres –
Santo Antônio.
Esse trabalho tem como base analisar cinco das sete escolas selecionadas com aplicação de
questionários e análise dos projetos em desenvolvimento nas escolas de Santa Maria. As
escolas escolhidas para a aplicação são: Escola Estadual de Educação Básica Augusto Ruschi,
Escola Estadual de Ensino Fundamental João Link Sobrinho, Escola Estadual de Ensino Médio
4 Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cultura/2014/02/mais-cultura-nas-escolas-divulga-lista-de-selecionados.>
Acesso em 03 de Outubro de 2014.
5 Fonte: Portal Brasil. Disponível em: <http://www.brasil.gov.br/cultura/2014/02/mais-cultura-nas-escolas-divulga-lista-deselecionados>. Acesso em 03 de outubro de 2014.
6 Fonte: Portal Brasil. Disponível em:<http://www.brasil.gov.br/cultura/2014/02/mais-cultura-nas-escolas-divulga-lista-deselecionados>. Acesso em 03 de outubro de 2014
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Dr. Walter Jobim, Escola Municipal de Ensino Fundamental Duque de Caxias, e Escola Municipal
de Ensino Fundamental Pão dos Pobres – Santo Antônio, priorizadas pela localização e pesquisa
da realidade local.
1.3. Análise das entrevistas aplicadas aos Coordenadores Escolares
Nome do Projeto
Escola
A
Escola
B
Escola
C
Escola
D
Escola
E
Área do
Projeto
Atividades
desenvolvidas
Duração
Carga
horária
semanal
Oficinas
2 meses
4 horas
Oficinas
2 meses
3 horas
*
*
*
Mais Cultura nas
escolas
*1
Música
Arte
Audiovisual
Música
Arte
*
Projeto Circo
do Duque e
Sustentabilidade
Dança
Teatro
Música
Oficinas
2 meses
6 horas
Música
Aulas de música,
oficinas, ensaios
coletivos.
Cerca de
1 ano
sem o
edital,
30 horas
Vós na Escola
Orquestrarium
Tabela 1- Dados informativos do projeto fornecidos pelo Coordenador Escolar
Fonte: Autor
Durante o mês de setembro e outubro ocorreu a coleta de dados da pesquisa, dessa forma
percorreu-se as cinco escolas para aplicação de questionários com o Coordenador Escolar e
com a Iniciativa Cultural a fim de conhecer melhor o trabalho e entender qual a perspectiva de
cada um sobre o Programa Mais Cultura nas Escolas. Os Projetos e os planos de trabalho foram
solicitados para análise e leitura, para mapear o trabalho realizado nas escolas.
Algumas questões foram utilizadas em comum para ambas as partes, para verificar se ocorre
o conhecimento do projeto tanto pela escola, quanto pela entidade cultural. Além disso,
esperou-se compreender com os questionários a ligação que cada um entende entre educação
e cultura e qual a ligação entre os termos igualdade e diferença ao se tratar de cultura, para
entender se há dispositivos para tratar da cidadania cultural.
Como Boaventura de Sousa Santos (2003, p.10) apresenta as “[...] pessoas e os grupos
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sociais tem o direito a serem iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a serem
diferentes quando a igualdade os descaracteriza”. Entende-se aqui a possibilidade de ocorrer
a interculturalidade respeitando a alteridade de cada cultura, pensando que a percepção
igualitária pode ser vista de forma equitativa na ambiência cultural.
Quanto às escolhas dos eixos temáticos nas escolas, três dos coordenadores escolares
responderam que já haviam tido contato com a Entidade cultural, e por isso, selecionaram o
eixo temático de acordo com as atividades anteriormente realizadas. Um ponto a se observar
é que todas as escolas já tiveram algum tipo de contato com atividades culturais vindas de
entidades da cidade, entendendo que o Programa Mais Cultura se tornou uma alternativa para
firmar parceria e formalizar as atividades.
Referindo-se ao conhecimento do Programa, os responsáveis pelas escolas responderam que
conheceram via internet (Portal SIMEC/MEC) e por informações repassadas pela Secretária da
Educação, afirmando estarem sempre a par das atualizações via órgãos localizados na cidade.
Michel de Certeau explica que a cultura tem uma autonomia flexível, caracterizando-se como
um não lugar representativo, onde há possibilidade de circulação do que quer que seja,
trazendo o conceito de cultura plural sob a ideia de “[...] quanto mais a economia unifica, mais
a cultura deve diferenciar” (1970, p.10). Trazendo a crítica a uma sociedade homogeneizada
pelo capitalismo, inserindo a escola como um espaço de reeducação social, para que o ensino
saia do entrincheiramento da sabedoria e do jogo de força, dando ênfase à diferença e também
à alteridade de cada experiência.
Nessa perspectiva da relação entre cultura e educação, todos os representantes escolares
definiram que há uma grande importância na ligação entre os dois conceitos frente a uma
educação integral. Quando questionados sobre a cultura como direito humano representado
na escola, comunidade, família, desenvolvimento humano da criança participante como
futuro cidadão, engajamento dos professores e participação dos alunos, todos responderam
que consideram muito importantes todos os aspectos.
Quanto à percepção dos coordenadores nesses dois meses de projeto, todos afirmaram estar
em estágio inicial, mas os resultados, ainda que tímidos, são positivos, sendo que um dos
coordenadores afirmou: “[...] ainda não temos uma avaliação, mas os alunos da Rima passam
mais tempo na biblioteca” (Coordenador da Escola A, 2014). Indicando ainda no questionário
que o nível de motivação/participação das crianças nas atividades é alto, contribuindo para a
melhora nas notas, concentração, socialização e responsabilidade.
No questionamento sobre qual seria a contribuição desses Programas (Mais Cultura e Mais
Educação) para a formação de um cidadão político, crítico e emancipado, capaz de contribuir
na construção de uma democracia participativa e de uma cultura de paz, o coordenador
escolar da Escola D apresenta:
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A escola é o melhor lugar para a criança depois da família, cada vez mais é evidente
que com a mãe trabalhando fora, a escola supre a esse papel de educar com cultura
o novo cidadão do mundo em permanente evolução. Esperamos o turno integral
com condições físicas para exercer o direito do educando e o reconhecimento dos
profissionais com dedicação exclusiva, comprometidos e adaptados às necessidades
das novas gerações num novo tempo. (Coordenador Escolar, Escola D, 2014).
Em concordância, o Professor da escola A relata a educação integral presente, retomando a
ideia de formar indivíduos críticos e cidadãos a partir do contato com diferentes saberes e
convivências.
1.4. Análise das entrevistas aplicadas às entidades Culturais
Quanto às entrevistas aplicadas às entidades culturais, foram 05 entrevistas semiestruturadas
aplicadas, um para cada responsável pela aplicação dos projetos na escola, com questões
divididas entre a fase informativa e reflexiva, sendo que na fase informativa pediram-se
informações do contato com a escola e do projeto e nas questões reflexivas de compreensão
da importância do projeto e concepção sobre o andamento deste.
Contato para atuar
na escola
Experiência
Como conheceu
o Programa Mais
Cultura
Metodologia utilizada
Local de
Nível de
motivação
Escola A
Já haviam
trabalhado com a
escola
Dois anos
Pelo site do
Ministério da
Cultura.
Oficinas dialógicas e
trabalho de formação a
partir de debates.
Alto
Escola B
O contato se deu a
partir da procura da
escola pela entidade.
Dois anos
A escola forneceu
informações e
apresentou o
Programa.
Escola C
A escola conhecia
o trabalho e
manifestou
interesse.
Onze anos
Site do MinC/MEC e
escola
Trabalho em conjunto
com os alunos,
mesclando exercícios
técnicos com ritmos
conhecidos do folclore
brasileiro e oficinas
teóricas.
Trabalho de formação
a troca de saberes,
entendendo que o aluno
é co-produtor, por meio
de aulas expositivas,
debates e oficinas
técnicas.
Em sala de
aula e nas
localidades da
escola.
Espaço
destinado a
oficinas do
Mais Educação
– Ginásio.
Sala de
audiovisual e
dependências
da escola para
gravação.
Médio
Outros:
Muito cedo
para definir.
193
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Escola D
Já trabalha com
projetos culturais em
escolas desde 2005
e foi chamada pela
escola.
Quinze
anos
A escola forneceu
as informações e
posteriormente na
internet.
Roda de conversa,
explanação multimídia,
práticas de expressão
corporal, terapia
comunitária e oficinas.
Sala de aula,
pátio, ginásio
e Sala dos
Professores.
Alto
Escola E
Projeto já era
desenvolvido
na escola
anteriormente.
Seis meses
Via internet e sites
do MinC.
Processo dialógico por
meio de oficinas de
música com prática
instrumental e canto
coral.
Salão da Igreja
do Bairro Alto
da Boa Vista
Alto
Tabela 2- Análise reflexiva e informativa com as entidades culturais.
Fonte: Tabela formulada por autora
Como visto na Tabela 2, as cinco entidades culturais pesquisadas foram procuradas pela escola,
possuindo alguma relação anterior de trabalho com as unidades escolares, como já havíamos
comentado, reforçando a ideia de que é recorrente atividades periódicas relacionadas à cultura
em escola de Santa Maria. Outro ponto a ressaltar é que todas as entidades conhecem o
Programa Mais Educação e conheceram o Programa Mais Cultura por meio da escola parceira
ou por sites.
Percebemos pelas respostas das entidades culturais que os projetos são amplos quanto às
questões metodológicas, valorizando a participação do aluno, chamando atenção para a
entidade cultural da Escola C que utilizou termos coprodução, protagonismo, troca de saberes,
fortalecendo a imagem da educação intercultural que busca a participação do aluno e a
abertura do conhecimento para amplas culturas.
Nessa perspectiva, Banks (1999, apud Candau, 2012, p.39) indica que a falta de desempenho
escolar está ligada a dois paradigmas: o primeiro de privação cultural que indica que o
fracasso dos alunos está ligado à cultura em que foram socializados, que não os enriqueceu
com experiências positivas quanto ao desempenho escolar e que indica cultura inferiores e
superiores. E a de diferença cultural, que entende que cada cultura tem suas especificidades
que devem ser entendidas na sua originalidade, sem uma definição hierarquizadora, dessa
forma, a mudança deve estar na cultura escolar em passar a valorizar as diferenças de uma
forma não monocultural.
Quanto às mudanças apontadas pelos Coordenadores culturais, estão as questões
comportamentais, estruturais no que tange à família, destaque para o interesse pelo
aprendizado, boas maneiras, participação e troca de saberes entre os alunos, que passaram a
ser preocupar com o aprendizado de seus colegas, a partir da percepção do pertencimento a
um lugar. Segundo a coordenadora cultural da Escola E (2014), “[...] as escolas mandam
os alunos com problemas para cá, e eu digo: “podem enviar”; essas crianças precisam de
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compreensão, de que seus problemas sejam entendidos, tivemos alunos que não sabiam ler
com nove anos e hoje temos esses mesmos lendo partituras musicais”.
Como observa Candau (2012),
[...] uma das implicações mais perversas para os alunos/as, principalmente aqueles
oriundos de contextos culturais habitualmente não valorizados pela sociedade e pela
escola, é excessiva distância entre suas experiências socioculturais e a escola, o que se
traduz em elevados índices de fracasso escolar e na multiplicação de manifestações
de desconforto e mal-estar em relação à escola (CANDAU, 2012, p. 76).
Assim entendemos que a escola vê alguns alunos como “problemas” por não entender suas
experiências socioculturais, estando ele em um não-lugar de pertencimento, se sentido mal
compreendido e deslocado frente aos seus colegas. O que temos presente hoje é a falta de
preparo quanto aos educadores e uma educação monocultural, que entende que as diferenças
são negativas e devem ser anuladas.
Ao questionarmos as entidades culturais sobre a importância dessas Políticas Públicas para a
classe cultural, os produtores independentes e entidades culturais, podemos entender que
eles buscam espaço no meio escolar para promover e diversificar culturas, como afirma a
coordenadora cultural da Escola E, “ [...] a disseminação da música orquestral com um perfil
mais jovial e menos formal, possibilitando o acesso a um público que em momentos anteriores
não teria tal possibilidade”, promovendo assim o capital cultural dessas crianças, ensinando
que a sua cultura não é inferior a outra, educando para a cidadania cultural.
2. Considerações finais
O ponto de reivindicação geral, tanto dos coordenadores escolares, quanto das entidades
culturais, foi a falta de infraestrutura, algumas escolas estão em reforma, outras sofrem com a
falta de sala de aula e falta de espaços na escola. Verificamos que parte dos alunos está tendo
aulas na sala de professores, por falta de salas disponíveis em decorrência de destelhamentos
em época de tempestade na cidade.
Outro ponto em comum foi a falta de equipamentos, muitos projetos enfrentam a falta de
material e a impossibilidade de comprá-los por meio do edital, pedindo uma reconfiguração
na distribuição de verba na proposta de trabalho. Percebe-se que parte dos projetos tinha
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seus equipamentos por meio do Mais ou Educação e utilizou-os para ampliar seu uso com o
Mais Cultura.
Também há preocupação quanto à rotatividade dos alunos que enfrentam inúmeras
dificuldades e distanciamento entre a entidade parceira e a escola durante o desenvolvimento
do projeto. Essa segunda observação foi verificada nas visitas e na dificuldade de encontrar
informações na direção, quanto ao andamento no projeto, evidenciando a falta de percepção
da importância do projeto e a valorização da cultura na escola, percebendo-se ambientes
escolares monoculturais (Candau, 2012).
A partir das análises dos cinco projetos, entendemos que há uma prática de relacionar os
conceitos de cultura e educação nas escolas de Santa Maria, visto que todas as escolas já
haviam recebido projetos direcionados às temáticas culturais. Dessa forma, a aplicação de
um projeto como o Programa Mais Cultura tornou-se viável por dois motivos: pela prática
recorrente na cidade e pelo Programa Mais Educação ter iniciado a ideia de oficinas extraclasse
nas escolas.
Os professores das escolas pesquisadas demonstraram-se interessados em receber projetos
culturais, geralmente com a justificativa de ajudar as crianças na sociabilidade e na dedicação
durante os estudos, demonstrando uma pré-disposição por parte dos alunos a mudar seu
comportamento com atividades culturais realizadas periodicamente. O Programa Mais Cultura
é mais uma das iniciativas que abrem espaços culturais na cidade e fazem o diálogo entre
educação e cultura, encaminhando para a alteridade social e cidadania cultural.
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Economia
da Cultura
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FESTIVAL DIAMANTINA GOURMET
Desenvolvimento turístico e valorização cultural
Débora Sales Gomes 1
Thais Mendes Alves 2
Tânia Mirailce Mendes Oliveira 3
Jorge Gabriel Gomes Simões 4
RESUMO
A gastronomia vem, gradualmente, sendo aproveitada para a formatação de produtos turísticos possibilitando ao turista e a população local o reconhecimento e afirmação da identidade
através da culinária. Na cidade de Diamantina - MG o festival Diamantina Gourmet, desde
2010, ano de sua criação, tem se destacado como alternativa para atrair turistas em épocas de
menor ocupação. Esse estudo visa entender a contribuição desse festival da culinária, para o
desenvolvimento do turismo no município e na valorização da identidade local.
Palavras-chave: Gastronomia. Turismo. Festival. Diamantina.
ABSTRACT
The gastronomy is gradually being exploited for formatting tourism products and enabling
tourists and the local population the recognition and identity affirmation by means of the local food. Since 2010 the Diamantina Gourmet festival has been prominent as an alternative to
attract tourists in lower occupancy periods. This study aims to understand the contribution of
this festival for the development of tourism in the town and the appreciation of local identity.
Keywords: Gastronomy. Tourism. Diamantina.
1 Turismóloga formada pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. Telefone:
(31)988073039
2 Mestranda em Estudos Latinoamericanos pela Universidade da Integração Latino-Americana. Turismóloga formada pela
Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]. Telefone: (31)996366340
3 Formada em normal superior pela Universidade Estadual de Montes Claros. Pós-graduação em educação no campo pela
Universidade Estadual de Montes Claros. E-mail: [email protected]. Telefone: (31)71346548
4 Mestrando em Geografia pela Universidade Estadual de Campinas. Geógrafo formado pela Universidade Federal de Minas
Gerais. E-mail: [email protected]. Telefone: (31)996366340
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1. APRESENTAÇÃO
Os festivais gastronômicos são uma forma de promoção do turismo e da gastronomia de uma
dada localidade. Segundo Fagliari (2005), através desses os turistas têm a possibilidade de descobrir e experimentar parte da história de um determinado local. De forma direta ou indiretamente os eventos gastronômicos têm buscado valorizar a culinária local e resgatar elementos
históricos e culturais de um povo.
Nos últimos anos a gastronomia tem se tornado um importante atrativo turístico e cultural em
vários destinos espalhados pelo Brasil e mundo afora. Os benefícios dessa prática se expressam por meio da valorização da identidade revelada em seus pratos típicos e festivais gastronômicos. Essa valorização por parte dos moradores, de acordo com a Organização Mundial
do Turismo (2010), promove a preservação e reabilitação de monumentos, edifícios e lugares
históricos, revitalizando costumes locais como: artesanato, folclore, festivais e gastronomia.
Na cidade de Diamantina, o Festival Gastronômico e Cultural Diamantina Gourmet, acontece
anualmente desde o ano de 2010, sendo hoje, um evento integrado ao calendário cultural da
cidade. O festival surge como estratégia de fomento ao associativismo local. Ao longo do seu
desenvolvimento muitos temas foram abordados afim de resgatar um pouco da grande diversidade das manifestações culturais de Minas Gerais e do Brasil.
Por receber o título de Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO (1999), Diamantina
se estabelece como um dos principais municípios componentes da Estrada Real, e é considerada polo turístico na região do Circuito Turístico dos Diamantes. Dessa maneira, a realização
do Festival Gastronômico caracteriza-se como uma tentativa de incrementar o turismo do município, a fim de aumentar seu quadro de oferta e diversidade de seus atrativos turísticos.
Visando a cultura local como o foco principal do fomento à atividade turística em Diamantina,
é necessário discutir através de pesquisas a importância dos festivais gastronômicos na valorização do patrimônio e das tradições além, é claro, do desenvolvimento no âmbito social, cultural e econômico da atividade turística no município. Dessa forma o presente estudo espera
avaliar a contribuição do Festival Diamantina Gourmet para o desenvolvimento do turismo na
cidade, resgatando da população local, dos turistas, dos organizadores e empreendimentos
participantes do festival, as opiniões e anseios sobre os rumos e possibilidades que o festival
vem tomando.
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2. METODOLOGIA
Essa pesquisa segue uma abordagem qualitativa de caráter exploratório que tem como foco
a cidade de Diamantina e a compreensão que seus habitantes, empresários e instituições do
ramo turístico têm sobre a contribuição do festival gastronômico Diamantina Gourmet para o
turismo desenvolvido no município.
A imagem 1 representa o processo metodológico realizado no desenvolvimento desse artigo.
Imagem1: Etapas metodológicas realizadas.
Fonte: Elaboração própria
Primeiramente foi necessária uma análise através de jornais, revistas e sites que pudessem
contribuir para a caracterização do objeto de estudo e da área trabalhada. Nessa fase o objetivo era fazer uma análise geral do município de Diamantina, bem como delimitar a atuação
dos empreendimentos turísticos envolvidos no Festival Gastronômico Diamantina Gourmet,
explicando também sua origem e como se deu a construção do festival.
Posteriormente duas etapas se configuram como principais na metodologia desse estudo. São
elas: a fundamentação teórica e a pesquisa de campo. Na fase de fundamentação teórica
foram utilizadas referências de autores que já tenham dissertado sobre a temática da gastronomia através de publicações, livros, jornais, artigos e sites. O trabalho foi desenvolvido
relacionando o turismo e a gastronomia mostrando a importância dos festivais gastronômicos
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para a afirmação e valorização da cultura ou identidade local. Para tal foram postas reflexões
que abarquem os termos gastronomia, cultura, festival gastronômico e turismo no referencial
teórico desse estudo.
A pesquisa de campo foi realizada no período em que o festival de 2014 ocorreu, do dia 07 a 16
de novembro do mesmo ano e teve como um dos objetivos principais a coleta de informações
através do levantamento de dados sobre o festival junto a órgãos governamentais ligados a
atividade turística, tendo em vista a baixa disponibilidade de estudos sobre o tema.
Para avaliar a contribuição do festival para o turismo de Diamantina foram realizadas entrevistas abertas mediante gravadores e/ou questionário semiestruturado. Foram entrevistados
cinco dos empreendimentos participantes do festival. Três órgãos públicos, entidades e associações do ramo turístico: a Associação Diamantinense de Empresas ligadas ao turismo (ADELTUR), o Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas de Minas Gerais (SEBRAE-MG) e a
Secretaria de Turismo de Diamantina. E quinze questionários foram direcionados à população
local.
Foram trabalhados quatro eixos principais: 1- contribuição do festival para o turismo; 2-benefícios do festival para o município; 3- relação da população local com o festival; 4- o festival e
a identidade cultural de Diamantina.
A última etapa percorrida se dá na análise dos dados obtidos com as entrevistas no trabalho
de campo, através da tabulação dos dados convertidos em textos conclusivos, a partir do cruzamento dos dados arranjados também em gabinetes. Essas etapas concluem a configuração
metodológica dessa pesquisa.
3. GASTRONOMIA, CULTURA, TURISMO E FESTIVAL GASTRONÔMICO: Inter-relacionando
tais práticas
A gastronomia cumpre uma das necessidades primordiais do ser humano que é a de alimentação, entretanto o costume relacionado à arte de preparar alimentos está atrelado a uma ação
cultural que une histórias, crenças, religiões, classes, etnias, hábitos culturais, localização geográfica, dentre diversas outras expressões que se propagam através da comida. Para Santos
(2010) o gosto de alimentar é
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“determinado não apenas pelas contingências ambientais e econômicas, mas também pelas mentalidades, pelos ritos, pelo valor das mensagens que se trocam quando se consome um alimento em companhia, pelos valores éticos e religiosos, pela
transmissão inter-geração (de uma geração à outra) e intra-geração (a transmissão
vem de fora, passando pela cultura no que diz respeito às tradições e reprodução de
condutas) e pela psicologia individual e coletiva que acaba por influir na determinação de todos estes fatores” (SANTOS, 1997, p. 160).
Autores como Barbosa (2012) reforçam como o ato de comer está relacionado naturalmente
ao modo social e cultural do homem. Se o alimento é indispensável para a sobrevivência, a
forma de utilização será adotada de acordo com as características de hábitos e costumes locais. Pode-se considerar assim que para além de adotar as técnicas, o material e a forma de
produção de acordo com os costumes da área e do período, a gastronomia será convertida no
valor cultural e de identidade da região. Logo, conhecer a gastronomia de um determinado
lugar é valorizar a cultura de um povo (CUNHA e OLIVEIRA, 109, p.4).
Ao relacionar a gastronomia a um modo de manifestação cultural, por refletir aspectos que
enfatizam os modos tradicionais da área, a sensibilidade gastronômica vai ganhando espaço,
sobretudo no turismo, como um atrativo natural, relacionando até mesmo a paisagem local.
Além disto, a gastronomia, segundo Barbosa (2012), também reflete elementos de inclusão
ou exclusão dos indivíduos, ou grupo sociais. Para se ter uma noção, Carneiro (2008) aponta
que no distrito de Padre Viegas o saber tradicional é ligado a comida típica do cuscuz. Esta realidade é um reflexo do período colonial na região, na dieta dos habitantes no período a base
de milho, carne de porco e toucinho, e por ter vantagens calóricas, o cuscuz era servido para
alimentação dos escravizados. Apenas neste exemplo vemos como a gastronomia se adaptou
aos modos locais do período sendo por assim, um reflexo cultural.
A gastronomia, enquanto atividade dos sentidos é importante para o desenvolvimento do
turismo, uma vez que oferece experiências sensoriais e psicológicas e expressa ao consumidor
os modos de vida de um povo através da comida. Ao recorrer aos estabelecimentos de alimentação as pessoas almejam a possibilidade de conhecer um pouco mais da cultura de um determinado lugar através da culinária, além, é claro, do prazer da degustação de um alimento.
Partindo do contexto de mudanças ocorridas no mundo, como por exemplo, a globalização,
novas tecnologias, o aumento da concorrência do mercado, o aumento expressivo de algumas
atividades socioeconômicas, principalmente o turismo, nota-se, cada vez mais, uma busca por
coisas novas que propiciem experiências significativas ou únicas tanto para o turista, como
para a população local. Nesse cenário, a gastronomia como atrativo turístico surge e é apropriada como produto turístico a partir da importância que o papel da alimentação desempenha na sociedade moderna enquanto necessidade fisiológica, prática prazerosa e prática de
socialização.
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Gastronomia e o Turismo são indissociáveis, pois é impossível pensar em turismo sem prever
a alimentação para curta ou longa permanência. Em qualquer destino, o viajante precisa da
alimentação e assim acaba experimentando a cozinha da localidade (CORNER, 2006).
O ato de alimentar-se ganhou tamanha importância para a atividade turística que hoje o turismo gastronômico se configura enquanto segmento dentro da modalidade de turismo cultural,
podendo ser muitas vezes o fator principal a influenciar na escolha de um destino. De acordo
com Schluter:
As identidades podem ser representadas pelas pessoas através da gastronomia, que
reflete suas preferências e aversões, identificações e discriminações, e, quando imigram, a levam consigo, reforçando seu sentido de pertencimento ao lugar de origem.
Dessa forma vai-se criando uma cozinha de caráter étnico, explorada com muita frequência no turismo para ressaltar as características de uma cultura em particular.
(SCHLUTER 2003, p.32),
É importante compreender que o que mantém viva a gastronomia local é a valorização
da própria população que reconhece nos alimentos a representação de seus costumes,
diferenciando-o de uma região para a outra. Dessa forma, segundo Santos (2010), o que está
sendo valorizado são as particularidades, nada mais apropriado para “experimentar” a cultura
do outro do que por meio de sua comida.
Para Gimenes (2010), existem diversas formas de se dar a relação entre turismo e gastronomia, destacando estabelecimentos especializados (como bares e restaurantes), rotas e roteiros turísticos (sendo crescente no Brasil tanto o número de vinícolas abertas ao público como
de cachaçarias, queijarias, dentre outros) e acontecimentos programados como festivais e
eventos gastronômicos. Por tal motivo turismo e gastronomia:
[...] podem e devem caminhar lado a lado. Esse aproveitamento de elementos gastronômicos de diferentes localidades turísticas pode ser feito de forma vantajosa
para todas as partes envolvidas: turistas, gestores, planejadores e comunidade. Ao
mesmo tempo em que se trabalha a questão da valorização da cultura por meio
da valorização de culinárias tradicionais e da criação de novos empregos, também
se disponibiliza oferta maior e diferenciada de atrativos turísticos para os visitantes
(FAGLIARI, 2005, P. 16).
Embora intrínseca a relação entre turismo e gastronomia, o turismo gastronômico enquanto
segmento é bastante recente, polêmico e controverso, uma vez que diversos pesquisadores
se dividem com relação à percepção do turismo gastronômico como segmento específico do
turismo.
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Nesse contexto, os festivais gastronômicos surgem como forma de promover e fortalecer a
gastronomia de modo também a atrair turistas, bem como fortalecer a compreensão enquanto atrativo turístico. Para Schluter (2003) um bom exemplo disso são as cidades turísticas que
tem como atrativo principal a gastronomia local, com restaurantes que trabalham com o que
está a sua volta, nos campos e regiões agradando aos que procuram por excelência dos produtos frescos e regionais e também pela autenticidade na experiência.
Os festivais quando promovidos de forma ordenada são excelentes instrumentos da atividade
turística de uma localidade, podendo possibilitar a divulgação do destino e da cultura local,
através da inclusão de vários aspectos em sua oferta (como: dança, artesanato, folclore, etc.)
e o desenvolvimento da economia local.
Para Cunha (2009) os festivais gastronômicos “ocorrem, justamente, para a valorização gastronômica no viés cultural de um local como uma maneira de oferta de produto turístico. Esses
festivais aproveitam as potencialidades de produtos locais além de uma alternativa para aquecer o turismo em épocas de sazonalidades”.
Igualmente, Cardoso (1993) salienta que “colocar a gastronomia em evidência em experiências turísticas, especialmente nas de cunho cultural, seria também preencher essa vivência
com sabor e aroma que tornariam o produto turístico único, permeando as lembranças do
visitante sobre tão peculiar ponto de cultura de localidades visitadas”.
Entretanto é importante salientar que apesar da gastronomia ter ganhado bastante atenção
no viés da cultura, sendo nos últimos anos apropriada enquanto produto turístico, seu significado não deve se limitar a uma visão mercantilista e sim resgatar as principais capacidades
dessa prática que acaba por “perpetuar hábitos e modos de fazer de várias gerações e garante a continuidade das tradições de um povo e, também, a sua história” (CUNHA e OLIVEIRA,
2009, p.4).
4. FESTIVAL DIAMANTINA GOURMET
O Diamantina Gourmet é um festival de gastronomia e cultura que teve sua primeira edição
realizada no ano de 2010. O festival foi idealizado através do envolvimento do empresariado
local associado à Associação Diamantinense das Empresas Ligadas ao Turismo (ADELTUR), à
Rede de Empresários da Estrada Real (ROTA ER) e ao Projeto de Turismo do SEBRAE-MG de
Diamantina.
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Diamantina é uma cidade que emergiu no período colonial e, hoje, beneficia de sua história
através da prestação de serviços, sobretudo turismo, sendo esta uma das atividades principais na geração de renda do município. Assim esse festival emerge enquanto estratégia de
desenvolvimento turístico incrementando o calendário cultural da cidade em período de baixa sazonalidade.
O festival Diamantina Gourmet, como supracitado surge, enquanto estratégia de fomento ao
associativismo local. Os associados envolvidos participaram de reuniões periódicas em que
foram discutidas as necessidades e oportunidades da cidade em face ao turismo. Em uma
destas reuniões foi enfatizada a importância da realização de eventos em períodos de baixa
temporada. Ressaltado isso foi realizada uma parceria entre a Rota Estrada Real, o SEBRAE-MG
Diamantina e a ADELTUR para que, em conjunto, fosse realizado um evento que aliasse a gastronomia à cultura da cidade.
O público alvo do festival é o turista e a própria população diamantinense, apreciadora da
gastronomia. Os empreendimentos participantes do Festival utilizam ingredientes vindos diretamente do quintal de moradores locais na elaboração dos pratos. Essa foi uma das formas
encontradas para valorizar o traço marcante da figura do quintal para a população diamantinense.
Os assuntos trabalhados no festival durantes os anos de 2011, 2012 e 2013 foram todos relacionados à temática musical: chorinho, Clube da Esquina e bossa nova foram os temas trabalhados nessas três edições do festival, respectivamente. Os empreendimentos que participam
do Diamantina Gourmet oferecem pratos que remetem a algum ícone da cultura da música, e
organizam a decoração do estabelecimento de acordo com o tema escolhido.
No ano de 2014, o tema trabalhado foi o da viola caipira (Imagem 2). Os estabelecimentos criaram pratos contextualizados com a temática. Cada estabelecimento recebe o nome de uma
música onde o prato deve ser trabalhado.
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Imagem 2: Folder de divulgação do festival Diamantina Gourmet, 2014.
Fonte: http://zip.net/bxrt4L.
A diversidade gastronômica é a principal atração do Diamantina Gourmet, como pode ser
percebido nas apresentações dos estabelecimentos “O Relicário” (Imagem 3) e “O Diamante”
(Imagem 4).
Imagem 3: Prato do Restaurante O Relicário, participante do festival de 2014.
Fonte:http://zip.net/bsrtpn.
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Imagem 4: Prato do Restaurante O Diamante, participante do festival de 2014.
Fonte: http://zip.net/bdrtzT.
O festival também oferece uma ampla programação cultural com atrações locais, como apresentações teatrais e musicais que vão desde o popular até o erudito, com destaque para artistas locais e regionais.
Imagem 5: Apresentação do canto Rubinho do Vale no Mercado Velho, condizente com a temática do festival de
2014 (Viola caipira) / Fonte: http://zip.net/bnrtcp.
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5. DIAGNÓSTICO
Para nortear o diagnóstico desta pesquisa e também como forma de facilitar a abordagem nas
entrevistas realizadas foi preciso definir alguns grupos de entrevistados para semiestruturar as
perguntas trabalhadas. Dessa forma foram divididos três grupos principais: grupo 1 - Órgãos
públicos, entidades e associações do ramo turístico; grupo 2 Empreendimentos participantes
do festival; Grupo 3 - População local. A tabela 1 traz as informações acopladas das entrevistas
realizadas durante a visita a campo.
Além dessas informações fez-se uso de relatórios avaliativos do evento elaborados pela Adeltur, bem como da plataforma virtual de divulgação do facebook, para melhor embasar o diagnóstico dessa pesquisa.
REGISTRO DAS ENTREVISTAS
GRUPO 1: ASSOCIAÇÕES, ÓRGÃOS PÚBLICOS E ENTIDADES
Perguntas
1. Percepção sobre o Festival Gastronômico Diamantina Gourmet
2. Como se dá a relação do festival com a população local
3. Benefícios advindos do festival
4. Contribuição do festival para o turismo no município.
- O papel do SEBRAE é fomentar o evento e contribuir na formação de mão de obra qualificada;
- O evento surge numa tentativa de diversificar e ampliar o calendário cultural de Diamantina, para atrair turistas em
períodos de sazonalidade;
- A população não está inserida nos processos de tomada de decisão sobre o festival;
SEBRAE
- A participação do festival é muito mais da população local do que para o turista;
- O evento ainda está no início e tem muito a contribuir para o turismo de Diamantina. Assim como a Vesperata, o evento
não está tendo muita visibilidade nesses primeiros anos. É a primeira iniciativa de um evento gastronômico em Diamantina,
logo existe aí um processo de maturação ainda. Com o tempo o evento vai se profissionalizando;
- Por questões financeiras a programação desse ano foi reduzida.
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- A prefeitura apoia de forma diferente a cada ano, tendo em vista que não quer assumir a responsabilidade por si só de
levar o evento;
- Em 2011, por exemplo, a prefeitura captou recurso com o banco do Brasil para promoção do festival;
- Em 2011 também a prefeitura fechou parceria com a Universidade para promover a identidade visual do evento;
- No ano de 2011 a divulgação foi melhor; O festival ainda caminha devagar. Possui pouco investimento. É um evento com
enorme potencial, mas ainda pouco conhecido no município e nos arredores o que cria pouca visibilidade.
Circuito dos
Diamantes
- Esse ano a prefeitura está contribuindo 10 mil pelo fundo municipal de turismo e 24 mil captado na caixa;
- Esse ano o SEBRAE não está apoiando financeiramente o festival, mas nos anos anteriores ele apoiou;
- O festival traz benefícios para a cidade e tem muito potencial de crescimento;
- O festival não conseguiu atingir a população ainda e a população não está inserida no processo de decisão;
- Os benefícios do festival são diretos aos empreendimentos participantes que contam com aumento do número de clientes
e consequente aumento dos lucros. Para o município de modo geral, a maior contribuição do festival é a divulgação do
destino e a atração de maior número de turistas para conhecer a cidade durante o evento.
- A ideia de produzir um festival gastronômico vem desde o projeto caminhos do saber (setor de alimentação) do Min. Do
turismo.
- O SEBRAE atuou dando assessoria para averiguar o perfil do público alvo desse projeto;
Secretaria
Municipal
de Turismo
- Na época em que o projeto estava sendo pensado também estava sendo construído o plano de marketing de Diamantina,
então foi identificado que a parte cultural de Diamantina era muito forte e que um festival elitizado na era o objetivo. O
objetivo era envolver os cozinheiros da cidade com elemento que remeta a identidade da cidade. Por isso o festival foi
definido como gastronômico e cultural;
- Também foi identificado que a história de Diamantina está fortemente relacionada a música. Então resolveu trabalhar a
musicalidade dentro do festival reforçando o pape da música na história de Diamantina;
- O tema desse ano é viola caipira que homenageia a localização de Diamantina no sertão.
- O Diamantina Gourmet foi mais uma das ações realizadas como estratégia de fomento ao associativismo local e ao
desenvolvimento de atividades de comercialização do destino Estrada Real.
- Incremento no calendário de eventos na cidade em época de baixa temporada (fim das vesperatas) e início do período de
chuvas. O evento oferece uma programação dentro dos restaurantes participantes (Músicas para degustação) e em espaços
públicos que possuam alguma infraestrutura capaz de proteger da chuva.
Adeltur
- A Adeltur é a promotora e organizadora do festival, é a associação quem decide tema, apresentações, programação,
porém como o foco da Adeltur não é a promoção de eventos, contamos com a contratação de especialistas na área de
produção, organização e assessoria de imprensa.
- Acredito que é um evento que tente a crescer e começar a atrair turistas para a cidade, não acho que o evento já seja
um gerador de fluxo turístico, a profissionalização do evento também é importante e necessária, como a Adeltur não é
especialista em produção de eventos alguns erros, como divulgação fraca são recorrentes, uma empresa com expertise à
frente do Diamantina Gourmet com certeza ajudaria no desenvolvimento e crescimento do festival.
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GRUPO 2: EMPREENDEDORES
Entrevistados
Perguntas
1 - Idade
2 - Qual o número de Funcionários?
3 - Quantos funcionários são da comunidade local?
4 – A empresa se vê relevante pra atividade turística?
5 - A empresa mantém relações de cooperativismo com outras empresas do ramo
6 - É necessário contratar mais funcionários no período do festival.
7 - O festival tem trazido benefícios para seu empreendimento?
1
Restaurante
Apocalipse
2
24
anos
Sushi Barroco
10
3
23
Sim
7
Apenas um.
Dificuldade
em
encontrar
4
5
Sim
Sim. Adeltur
e Associação
Comercial e
industrial de
Diamantina
(ACID).
Não
Sim.
contrata 2
Sim.
Não
É o primeiro ano da empresa.
A empresa tem apenas dois
meses. Nunca participaram do
festival antes. Acreditam que
não podem contribuir com
muitas informações pelo pouco
tempo de existência.
9
Sim
Sim
Livraria e Café
Espaço B
12
anos
5
Sim
Sim
Sim. Adeltur
Sim
Não
Como é a primeira vez que o
bar participa do festival não
conseguem dimensionar ainda
os benefícios do festival para o
empreendimento
O festival tem grande potencial
e ainda está no início. Os
outros anos foram melhores
que esse. Mas o festival está
no caminho certo. Esse a rede
social foi bastante utilizada na
divulgação.
10
anos
6
Sim
Sim. O festival está no início,
mas tem uma perspectiva
muito grande de melhora.
O festival ainda não é capaz
de atrai um público turístico
relevante. Mas ainda está no
início.
Sim. Adeltur.
Recanto do Antônio
2
7
Sim
Sim. Adeltur
e Associação
Brasileira
de Bares e
Restaurantes
(Abrasel).
Relicário
Gastronômico
6
Sim
Sim. Adeltur.
GRUPO 3: POPULAÇÃO LOCAL
Perguntas
Você conhece
o festival
Você acredita que o
evento contribui para a
valorização cultural da
cidade?
Qual sua avaliação sobre o evento?
A
Não
-
-
B
Não
-
-
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E
Não
-
-
F
Não
-
-
G
Não
-
-
H
Não
-
-
I
Sim
Sim.
O evento traz uma programação diversa com músicas e isso é um atrativo não
apenas para o turista como também para a população local.
J
Sim
Sim. A comida, os
pratos, tudo remete a
identidade local.
O evento tem uma temática interessante por que traz a questão da música envolta
e diamantina é uma cidade tipicamente musical. Mas falta mais divulgação pra
população conhecer mais e participar
K
Não
-
-
L
Sim
Sim por que o evento
aborda a música
e a comida. Isso é
identidade.
O evento é muito bacana, mas a divulgação é muito falha. Esse ano não vi quase
nada nas ruas sobre o evento.
M
Sim
Sim
O evento promove o turismo e divulga Diamantina para fora.
N
Não
-
-
O
Não
-
-
Tabela 1 – Registro das entrevistas.
Fonte: Elaboração própria
Através da análise das entrevistas realizadas, foi possível entender que o Diamantina Gourmet
se configura como o primeiro e único festival gastronômico da cidade, necessitando de maior
atenção por parte das entidades públicas e privadas. Além disso, o evento tem potencial para
se configurar como importante polo gerador de fluxo turístico, capaz de movimentar significativamente o contexto econômico e social de Diamantina. Entretanto, para que o evento
consiga alcançar seu objetivo de atrair um fluxo turístico considerável se faz necessário maior
esforço e diálogo entre os empreendimentos participantes e a iniciativa pública no tocante à
organização, divulgação e financiamento, do mesmo.
O festival tem importância para a cidade e para a valorização da identidade local, entretanto
as críticas quanto à forma como este está sendo realizado foram constantes. Para a maioria
dos empreendimentos entrevistados a divulgação foi apontada como a maior falha do evento.
Para a população local a divulgação é tão ineficiente que dos quinze atores entrevistados apenas cinco tinham conhecimento do festival gastronômico. E ainda assim a população local é
reconhecida como o público que mais usufrui do festival, embora também, reconheçam, como
falha, o fato da população diamantinense não participar dos processos de escolha e tomada
de decisão sobre o evento.
Vale ressaltar que o turismo gastronômico atua majoritariamente em destinos consolidados,
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como, por exemplo, alguns destinos consolidados que são referências em conhecer vinícolas,
processos de produção de determinado alimento etc. De tal forma é inserido na programação
determinado evento / festival um pouco do processo de produção, dos modos de fazer, abraçando assim traços específicos da cultura da cidade representados na elaboração da comida.
O Diamantina Gourmet, falha em não incluir na programação parte do que se propõe ao falar
da elaboração dos pratos. É bom frisar que partilhar a experiência do processo de preparação
dos pratos viria a ser um diferencial onde o turista e a própria população local estariam interagindo.
A grande maioria dos estabelecimentos acredita que o baixo valor da verba destinada para
o festival foi o motivo principalmente pela falha na divulgação e na programação do evento.
A ADELTUR, acredita que alguns erros, como a fraca divulgação do evento, são recorrentes
ainda, tendo em vista que a mesma não é experiente no que diz respeito à organização de
eventos. Sabe-se que o tempo de apenas cinco anos é ainda pequeno no ciclo de vida do
produto turístico, entretanto isso não pode se configurar como justificativa para problemas
decorrentes na organização do mesmo, principalmente quando se analisa que o evento desse
ano teve uma avaliação inferior ao dos anos anteriores. Essa fragilidade técnica na execução
do evento necessita ser mais bem analisada e revistada.
No que tange a musicalidade a relação com a comida acaba sendo deixada de lado. Parece
que os estabelecimentos criaram os pratos relacionados às letras das músicas, mas muitos não
utilizam da musicalidade em nenhuma outra forma de atração. A falta ou baixa disponibilidade
de explicação sobre a relação entre a música e a gastronomia, contextualizando a realidade de
Diamantina deixa ao festival um saldo negativo que necessita ser revisto.
De modo geral o Festival ainda não cumpre a função de fomentar o turismo no município,
entretanto, parte dos estabelecimentos e órgãos públicos entrevistados acredita que o evento
está em fase de maturação e se posicionam otimistas quanto às futuras edições.
Em relação à contribuição que o festival tem gerado para a valorização da cultura, percebe-se
que esse viés vem, por vezes, sendo negligenciado pelos fomentadores e organizadores do
festival. A não inserção da população nos processos deliberativos, o pouco conhecimento que
seus habitantes têm sobre o evento e a ausência de atividades interativas que abarquem a
história dos pratos ofertados contextualizados à realidade local são confirmações disso.
Embora a maioria dos entrevistados demonstrem uma avaliação positiva sobre o festival, seu
sucesso só será de fato alcançado quando a população local estiver inserida em seu planejamento e gestão reconhecendo o mesmo como atrativo que representa e preserva a cultura
Diamantinense.
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6. CONCLUSÃO
Sabe-se que a gastronomia, cada vez mais, vem sendo incorporada e aproveitada para a formatação de produtos turísticos, seja como atrativo principal ou complementar de um determinado destino ou localidade. Para Cunha (2009) os festivais, sobretudo os gastronômicos,
são potencializadores da economia e cultura, entretanto, para que os festivais consigam ser
melhores geridos e usufruídos, faz-se necessário amplo investimento para o planejamento e
gestão dos mesmos.
Como apresentado neste artigo, as falhas no planejamento e gestão do Diamantina Gourmet
o impedem de se configurar enquanto atrativo capaz de movimentar um fluxo turístico considerável na cidade. Sua contribuição para o desenvolvimento do turismo tem sido parcial e sem
grandes efeitos, inclusive no que diz respeito à movimentação da economia. Nesse sentido
percebe-se que há entraves sociais no festival. A melhoria econômica, por exemplo, têm sido
uma realidade centralizada somente para o empresariado local, que ainda assim, usufrui de
poucos efeitos.
Um fator importante para que as edições de um festival não sejam massivas e repetitivas é
pautado através da criatividade e diversidade dos festivais. É necessário diversificar a programação construindo espaços que possam proporcionar ao turista maior vivência nessa experiência de contato com a gastronomia local. Criar variações de repertórios possibilitando o
contato através de workshops, e cursos pode ser uma forma de atrair visitantes e envolver a
população local nesse processo. Tais experiências favorecem a percepção sobre a essência da
gastronomia ao proporcionar maior entendimento e conhecimento dos hábitos alimentares
locais, contribuindo para sua preservação.
Conforme ressaltado por Cunha e Oliveira (2009) a gastronomia é uma arte que deve estar
em perfeita sintonia entre quem a executa e quem a aprecia e, por isso, não deve ser compreendida apenas como quem oferece algum alimento ao ser humano, pois nela está contido
o cotidiano e a história de quem a criou. Nesse sentido o envolvimento da população nos
processos de planejamento e gestão de um evento gastronômico contribui significativamente
para o reconhecimento da gastronomia enquanto patrimônio valorizador da identidade local.
Sem o envolvimento da população a gastronomia pode se tornar símbolo mercantilizado da
cultura Diamantinense.
Embora as críticas sejam permanentes, o festival tem grande potencial como mobilizador da
economia local, e pode ser socialmente viável e culturalmente diversificado respeitando as
identidades locais. Problematizá-lo é fundamental para compreender seus impactos e falhas,
apontando novas alternativas e resgatando a principal essência que um festival gastronômico
pode gerar para seus turistas e sua população local: a valorização cultural.
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REFERÊNCIAS
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