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A arte na publicidade: Paintings
Sandra Trabucco VALENZUELA1
Resumo: O presente artigo examina o vídeo publicitário do whisky Johnnie
Walker, intitulado Paintings, concebido pela agência BBH London (2005), que
propõe a releitura de pinturas de artistas que vão do romantismo ao surrealismo.
São identificadas as obras e os artistas que servem como referência às imagens,
justificando sua associação com a história do produto. Identifica-se o leitmotiv
presente nas obras selecionadas dentro da História da Arte, as quais foram trabalhadas de forma a ajustar-se a uma narrativa audiovisual publicitária, vinculada ao conceito da marca do produto promovido. O entendimento do contexto
histórico, cultural e artístico das obras citadas no comercial é fundamental para
compreender sua inserção, isto é, para identificar os motivos pelos quais foram
selecionadas para formar a narrativa; na ausência de tal compreensão, as imagens
perdem parte de seu sentido, pois dificultam a apreensão das ideias norteadoras
dessa proposta que integra arte e linguagem audiovisual.
Palavras-chave: Artes Plásticas. História da Arte. Publicidade. BBH London.
Criação Publicitária.
Sandra Trabucco Valenzuela. Pós-doutoranda em Estudos Comparados de Literaturas de Língua
Portuguesa pela Universidade de São Paulo (USP). Doutora e Mestre em Letras pela mesma instituição,
onde também se licenciou em Letras. Especialista em História da Arte pelo Centro Universitário
Claretiano. Docente da Universidade Anhembi Morumbi. E-mail: <[email protected]>.
1
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Art in advertising: Paintings
Sandra Trabucco VALENZUELA
Abstract: This article examines the advertisement of Johnnie Walker whisky,
with the title Paintings, conceived by the BBH London agency (2005), which
proposes the rereading of paintings by artists ranging from romanticism to
surrealism. Artists and their works are identified, which are used as reference
to the images, justifying their association with the history of the product. Also
is identified the leitmotiv present in the selected works within the history of art
and that were manipulated in order to be adjusted to an advertising audiovisual
narrative, associated to the branding concept of the promoted product. The
understanding of the historical, cultural and artistic context of the works cited in
the advertisement is essential to understand its insertion, that is, to identify the
reasons why they were selected to form the narrative; without such understanding,
the images lose part of their meaning, as they hamper the following of the guiding
ideas of this proposal that integrates arts and audiovisual language.
Keywords: Plastic Arts. History of Art. Advertising. BBH London. Advertising
Creation.
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1.  INTRODUÇÃO
Ao assistir pela primeira vez ao filme publicitário de 2005
Paintings, promovendo o whisky Johnnie Walker, o impacto visual
e a criatividade da produção provocam um impacto imediato no espectador. No entanto, para compreender a mensagem desse comercial, além da necessidade de conhecer previamente as obras citadas, o “alfabetismo visual” é componente fundamental (DONDIS,
2007, p. 227-228).
Ao desvendar significados por meio de um processo de conscientização dos sentidos, do reconhecimento dos elementos estéticos, é possível apreciar, desfrutar e compreender para além da
materialidade de uma obra.
2.  METODOLOGIA
A proposta do presente trabalho é realizar estudo descritivo
sobre o comercial Paintings, produzido em 2005 pela agência BBH
London, para o whisky Johnnie Walker. O problema proposto é:
qual o leitmotiv1 presente nas obras selecionadas dentro da História da Arte e que foram manipuladas de modo a ajustar-se a uma
narrativa audiovisual publicitária, atrelada ao conceito da marca do
produto promovido, o whisky Johnnie Walker?
A metodologia para a execução da pesquisa seguiu as seguintes etapas: assistir ao comercial, coletar dados a partir de teóricos
da História da Arte, com a identificação das imagens, seus períodos
de elaboração e os artistas responsáveis, para, em seguida, estudar
as obras que serviram como fonte. A hipótese da investigação é que
o entendimento do contexto histórico, artístico e cultural das obras
que servem de referência para o comercial é fundamental para compreender sua inserção e identificar os motivos pelos quais foram
selecionados para formar a narrativa audiovisual.
Para estudo da marca Johnnie Walker, utilizamos o site oficial <http://www.johnniewalker.com.br>, que conta a história e a
1
Do alemão, “motivo condutor”; trata-se de “motivos repetitivos” que se apresentam num texto, filme,
música ou produção audiovisual (WELLEK; WARREN, 1985, p. 156).
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evolução da marca, e o blog sobre histórias das marcas, intitulado
Mundo das Marcas2. Para o estudo da história das obras presentes
no comercial, consultamos as obras de E. H. Gombrich (2012), Carol Strickland (1999), Maria Carla Prette (2008) e Wendy Beckett
(1997). Para estudo da linguagem visual, utilizamos o livro de Donis A. Dondis (2007) e, para apoio teórico para estudo da linguagem
audiovisual, nos valemos da obra de Gustavo Mercado (2011). Para
o estudo específico de obras do século XIX e XX, utilizamos os
textos de Juan José Balzi (1992), Renato Barilli (1991) e a coleção
Mestres da Pintura (1977). Para conhecer a história da publicidade,
utilizamos como referência a obra de Domingos (2003). Para estudo do comercial, obtivemos material no site oficial da produtora
BBH London3 e no YouTube4, no link que disponibiliza o comercial. Para recursos de teoria literária, recorremos à obra de René
Wellek e Austin Warren (1985).
3.  DA ARTE PARA A PUBLICIDADE
As artes são um componente fundamental para formação, estudo e análise de toda cultura.
Cultura pode por um lado referir-se à alta cultura, à cultura
dominante, e por outro, a qualquer cultura. No primeiro
caso, cultura surge em oposição à selvageria, à barbárie;
cultura é então a própria marca da civilização. [...] No segundo caso, pode-se falar de cultura a respeito de qualquer povo, nação, grupo ou sociedade humana. Considera-se como cultura todas as maneiras de existência humana
(SANTOS, 1988, p. 35).
A publicidade atual foi desenvolvida a partir dos conceitos
propostos pela primeira agência de publicidade organizada como
uma indústria, em 1871: a norte-americana empreendida por J.
Walter Thompson, a JWT, uma das maiores agências do mundo até
os dias de hoje.
2
DIAS, K. Johnnie Walker. 2006. Disponível em: <http://mundodasmarcas.blogspot.com/2006/05/
johnnie-walker-keep-walking.html>. Acesso em: 07 maio 2015.
3
Site da BBH London. Disponível em: <http://www.bbh.com/wps/portal/ourfirm/history>. Acesso em:
08 jun. 2013.
4
Disponível em: <http://www.youtube.com/watch?v=XsQKIZC4DIc>. Acesso em: 07 maio 2015.
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Em 1891, Henri de Toulouse-Lautrec (1864-1901) encarrega-se da criação o primeiro cartaz publicitário – Moulin Rouge, La
Goulue5 –, destinado a divulgar atrações de um dos principais cabarés de Paris, a pedido de Charles Zidler.
A publicidade impressa durante a Belle Époque (1871-1914)
privilegiava o uso de imagens referendadas pelo movimento inglês Arts and Crafts (fundado em 1883) e, posteriormente, pelo
Art Nouveau, cujos traços estilísticos são as formas fluidas e as
linhas entrelaçadas e coleantes, que propunham a representação do
interminável processo da criatividade natural, com a preferência
por formas orgânicas e vibrantes (BARILLI, 1991).
Historicamente, portanto, a publicidade esteve em seu nascimento associada à arte, mas não às obras-primas do passado, e sim
àquela voltada para a classe média, que encontrava no Art Nouveau
a tradução do conceito de beleza, da moderna elegância e da arte
decorativa.
O advento das vanguardas, no início do século XX, proporcionou às artes uma renovação de valores artísticos e culturais, instigados pela Primeira Guerra e por movimentos políticos e econômicos que geraram tensões que culminaram com uma atitude de
contestação e radicalismo. O impacto provocado pela desestabilização dos pressupostos clássicos e pela permanente experimentação
gerou um afastamento do público não iniciado, que não encontrava
nas obras o figurativismo e a estética renascentista unida, muitas
vezes, a uma linguagem informativa ou narrativa.
No entanto, a publicidade, que até então se valia da ilustração
da Belle Époque, volta-se para a fotografia, em primeira instância,
para revelar os produtos e suas benesses. A linguagem da publicidade exige uma aproximação ao público e, nesse afã, faz-se necessário trazer soluções, esperanças, fazer com que o consumir compreenda o produto e os benefícios a serem obtidos por meio dele.
Ao final da Segunda Guerra Mundial, a percepção que as
sociedades têm das artes e dos meios de comunicação de massa
5
TOULOUSE-LAUTREC, H. A Goulue no Moulin Rouge. 1891. Primeiro cartaz publicitário de
Lautrec, 125 x 122 cm. In: ______. Toulouse-Lautrec. Pesquisa e texto: Alfredo Guilherme Galliano.
São Paulo: Abril, 1977. (Mestres da pintura). Prancha 18.
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produz novos movimentos: a Pop Art é consequência dessa
mudança de visão de mundo (STRICKLAND, 1999).
A exemplo de Marcel Duchamp (1887-1968), que trouxe,
com a Arte Dadá, o conceito de ready-made para as artes, Andy
Warhol (1928-1987) introduz a produção em massa, os signos do
cotidiano impostos pela mídia e a ilustração publicitária como crítica ao esvaziamento da cultura industrializada concebida numa linha de montagem. A publicidade, para Warhol, era matéria-prima
para a arte, embora a primeira tenha como objetivo a venda de um
produto ou serviço.
Para compreender o comercial Paintings, da Johnnie Walker,
além de conhecer previamente as obras citadas, é fundamental o
chamado “alfabetismo visual”, que consiste em:
Compreensão, e meios de ver e compartilhar o significado a
um certo nível de universalidade. [...] Infelizmente, não existe
nenhum atalho que nos permita chegar, através da multiplicidade de definições e características do vocabulário visual, a
um ponto que não ofereça quaisquer problemas de elucidação
e controle. [...] Cada uma das unidades mais simples da informação visual, os elementos, deve ser explorada e aprendida
sob todos os pontos de vista de suas qualidades e de seu caráter e potencial expressivo. Não há por que pretender que esse
processo seja mais rápido que o aprendizado do abecedário.
Uma vez que a informação visual é mais complexa, mais ampla em suas definições e associativa em seus significados.
(DONDIS, 2007, p. 227-228).
4.  BREVE HISTÓRIA DA MARCA JOHNNIE WALKER
A história da Johnnie Walker remonta a 1820, quando John –
ou Johnnie, o filho de catorze anos do fazendeiro Alexander Walker,
falecido em 1819 – teve de vender sua fazenda. Com o montante
obtido, um total de £537.15, o jovem instalou uma mercearia na
cidade de Kilmarnock, na parte oeste da Escócia, na qual comercializava comidas secas, chás e bebidas.
Observando as oportunidades que se apresentavam, Johnnie
lançou-se a um novo empreendimento: o mercado de uísque. Foi
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então que, em 1825, Johnnie Walker propõe um novo estilo de negócio, o das destilarias profissionais, que ofereceriam aos clientes
produtos de alta qualidade. Inicialmente conhecido como Walker’s
Kilmarnock Whisky, a qualidade do whisky escocês começa a ganhar fama.
Mais tarde, em 1857, com a morte de John, seu filho Alexander Walker assume os negócios e populariza a marca Johnnie
Walker. Em 1860, a partir da legalização da produção de blended
whisky, Alexander cria a tradicional garrafa quadrada, um diferencial com relação às outras marcas.
Cinco anos depois, Alexander produz o Walker Old Highland
Whisky, precursor do Black Label, resultante da mistura de quarenta maltes e grãos, e posteriormente envelhecidos por doze anos.
Inovando mais uma vez, em 1867, a John Walker & Sons
rotula suas garrafas com um adesivo inclinado em 24 graus, destacando-o visualmente da concorrência. Esses diferenciais – garrafa
quadrada, rótulo inclinado de cores preta e dourada – são oficialmente registrados em 1876.
Londres, Sidney, Paris, Índia, África do Sul e Estados Unidos
tornaram-se sedes de distribuição mundial dos produtos a partir de
1880. Com a morte de Alexander, os filhos Alexander II e George
assumiram os negócios em 1889. Ampliando cada vez mais sua
participação no mercado mundial, os irmãos adquiriram, em 1893,
a Cardhu, famosa destilaria que manteve seus produtos bem à frente da concorrência.
Figura 1. The Striding Man: a evolução do logo da Johnnie Walker.
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Durante um almoço, em 1909, com George e Alexander II,
o cartunista Tom Browne propôs a figura do “Striding Man”, o
“homem caminhante”, que foi adotado como logotipo a partir dos
anúncios natalinos daquele ano. Diversos artistas plásticos redesenharam o logotipo – Basil Partridge, Leo Cheney, Clive Upton e
Michael Peters –, mas sempre mantendo o conceito do “homem que
caminha”. Os slogans adotados ao longo da história foram: “Born”
(1820); “Still going strong” (1920); “Taste life” (1996); “Keep
Walking” (2000).
Sinônimo de excelência e qualidade em seu segmento, a
empresa Johnnie Walker foi adquirida em 1986 pela cervejaria
irlandesa Guinness, a qual formaria, mais tarde, em 1997, o grupo
Diageo, com sede em Londres.
5.  ANÁLISE DO COMERCIAL PAINTINGS
Paintings é o título da campanha em vídeo do whisky Johnnie
Walker, lançada em 2005, para celebrar o 200º aniversário de John
Walker, que fundou a empresa em 1820.
A primeira imagem do vídeo apresenta uma releitura do
quadro Batalha de Taillebourg (1835), do pintor francês Eugène
Delacroix (1798-1863), que está representado na Figura 5. A ideia
é trazer um soldado comum que, em meio a uma batalha, decide
mudar sua vida, deixando a guerra e partindo em busca de uma
nova perspectiva de vida, sem mortes, sem lutas. O desafio que
se apresenta é mudar, crescer, avançar. Assim, para assombro do
oponente, o soldado deixa o campo de batalha e segue seu caminho.
A obra de Delacroix propõe um herói romântico e idealista.
A escolha do quadro como obra inicial do vídeo justifica-se pelo
conteúdo e pelo período artístico a que ele pertence, ou seja, o
Romantismo, movimento contemporâneo à fundação da empresa
Johnnie Walker.
Vale notar que, na Figura 2, o personagem parece ouvir um
chamado, que se situa fora da diegese fílmica, ou seja, fora da tela.
Na Figura 3, o personagem encara o público, na forma de quesLing. Acadêmica, Batatais, v. 5, n. 1, p. 33-56, jan./jun. 2015
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tionamento direto ao receptor; não se trata de um questionamento
por meio de palavras, mas sim pelo olhar, que inquere o público,
questionando-o a respeito da postura assumida por ele-personagem
e pelo público: manter-se na batalha ou buscar um novo caminho?
Figura 2. Paintings, cena 1, plano geral da apresentação da cena.
Apresentação do personagem.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
Figura 3. Paintings, cena 1, plano 2. O personagem prestes a destruir o inimigo.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
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Figura 4. Paintings, cena 1, plano 2. O personagem muda sua postura, torna-se herói, encara o receptor e abandona a luta.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
Figura 5. Eugène Delacroix, Batalha de Taillebourg6.
Fonte: Delacroix (1835).
A obra está exposta na Galeria das Batalhas, no Palácio de Versalhes, França. Imagem disponível em:
<http://en.wikipedia.org/wiki/File:The_Battle_of_Taillebourg,_21st_July_1242.png>. Acesso em: 08
maio 2015.
6
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A Figura 6 mostra o personagem já como um herói, num percurso diferente, após abandonar a batalha e escolher o caminho da
aventura. Sobre uma prancha de snowboard, o herói se transporta
ao Monte Fuji e desliza por ele numa imagem que traz atualidade
à narrativa fílmica, por meio da citação de um esporte radical. O
personagem dá início à jornada pelo tempo e pelo espaço.
Figura 6. Paintings, cena 2. O personagem faz um sobrevoo com
uma prancha de snowboard e desliza pela encosta do Monte Fuji.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
Figura 7. Paintings, cena 2. Imagem do Monte Fuji.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
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A imagem citada na Figura 7 é de uma gravura de Katsushika
Hokusai (1760-1849), um artista plástico japonês do período Edo,
especialista na técnica de pintura chinesa no Japão (GOMBRICH,
2012). Sua introdução no comercial justifica-se por sua importância
no panorama das artes plásticas europeias do século XIX: obras
de Hokusai ganharam espaço na Exposição Universal de 1867, em
Paris, trazendo ao Ocidente a arte japonesa da gravura e dos mangás.
O “japonismo” – termo introduzido em 1872 pelo colecionador
Philippe Burty em artigos do jornal La Renaissance Litteraire
et Artistique7 – passou a fazer parte dos preceitos artísticos dos
impressionistas e da fase pós-impressionista. Monet, por exemplo,
formou uma coleção de xilogravuras com 231 obras de 36 artistas
diferentes, entre os quais se encontravam Hokusai, Hiroshige e
Utamaro. Os principais interesses das gravuras eram o afastamento
do real, por meio da ausência de perspectiva e despreocupação
em retratar imagens com realismo, o uso da cor e da ilusão de
movimento, com a captação de flashes de realidade. A imagem
da Figura 7 faz parte de uma coleção de 36 vistas do Monte Fuji
produzidas por Hokusai no período Edo (1830-1831) e faz parte
das citações presentes no comercial analisado.
7
MOREL G. Petit Gazette. La Renaissance Litteraire et Artistique, Paris, ano 1, n. 20, p. 160, 07 set.
1872. Disponível em: <http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k6268814m/f8.image.r=Burty.langPT>.
Acesso em: 11 maio 2015. O trecho sobre japonismo é o que segue: “Nous sommes forcés, à notre
grand regret, d’interrompre la série, si intéressante et si remarquée, des études que M. Philippe Burty
nous donnait sous le titre commun de Japonism”.
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Figura 8. Katsushika Hokusai, O monte Fuji com tempo claro8.
Fonte: Hokusai (1823-1829).
A música apresenta uma carga semântica importante para o
comercial. Trata-se do tema “Which side are you on?”, escrita em
1931 por Florence Reece (1900-1986) e aqui interpretada por Nathalie Merchant9. Reece era esposa do sindicalista e minerador Sam
Reece, que, juntamente com os demais mineradores, travavam naquele ano uma luta contra a empresa de Harlan County (Kentucky).
Ao saber que seria preso, Sam fugiu, mas a esposa e os filhos tiveram a casa invadida de forma aterrorizante. Florence teria escrito
a música após a violência cometida contra sua família; posteriormente gravou-a com a melodia do hino batista “Put a Lily Low”. A
música tornou-se um libelo da luta e da vitória dos trabalhadores.
A letra da música é extensa, porém apenas o verso principal que
dá título à canção foi usado na edição. Sua função no comercial
é questionar o público receptor sobre sua postura, ou seja, levar o
público a refletir sobre uma possível acomodação à situação vivida
ou à falta de ação/reação diante do cotidiano.
8
A obra pode ser vista no Freer Gallery of Art and the Arthur M. Sackler Gallery, no Smithsonian’s
Museums of Asian Art, Washington. Imagem disponível em: <http://www.hokusaionline.co.uk/images/
fullsize/fuji3.jpg>. Acesso em: 11 maio 2015.
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“Which side are you on?” faz parte do álbum The House Carpenter’s daughter, produzido em 2003
por Natalie Merchant e lançado pela Myth America Records.
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Como é possível observar, as imagens do comercial seguem
uma linearidade temporal, isto é, inicialmente há uma citação ao
Romantismo; a seguir, ao período impressionista (sem, no entanto,
mencioná-lo explicitamente); e agora é a vez do Pós-Impressionismo, por intermédio da obra divisionista – também chamada pontilhista – do pintor francês Georges Seurat (1859-1891) (BECKETT,
1997).
A técnica pontilhista desenvolvida por Seurat e Paul Signac
(1863-1835) consistia na justaposição de pontos coloridos minúsculos e brilhantes, sem o uso de linhas, que a certa distância permitia a visualização do todo. Era o início da ideia do pixel. No comercial, o herói, após sobrevoar o Monte Fuji, viaja no tempo e no
espaço caindo sobre um espaço ficcional criado a partir da obra de
Seurat. O terço lateral direito da Figura 9 mostra esse espaço criado
para a diegese do comercial, já que o mesmo inexiste no quadro
original, como mostra a Figura 10.
Figura 9. Paintings, cena 3. Após deslizar pela encosta do Monte
Fuji, o personagem cai na Ilha de Grand Jatte.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
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Figura 10. Georges Seurat, Uma tarde de domingo na Ilha de
Grand Jatte.
Fonte: Seurat (1884-1886).
Figura 11. Paintings, cena 4. Espaço ficcional: piquenique.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
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Figura 12. Paintings, cena 4. Após sobrevoo, o personagem cai
sobre o piquenique.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
Nesse espaço ficcional, o herói cai sobre o piquenique feito
pelas duas moças na Ilha de Grand Jatte (Figura 11), as quais se
mostram inicialmente assustadas (Figura 12), mas que, em seguida,
parecem ficar satisfeitas e compreender que se trata da interação
com um viajante do tempo. O herói deixa sua marca em todos os
tempos e espaços que percorre, despertando a admiração pela proeza ou pelo gesto que realiza. É interessante observar como se dá
a passagem de tempo por meio da ação do herói: ao observar as
moças, ele tira o elmo que ainda conserva desde a primeira cena
e coloca-o na cabeça de uma das moças. A lateral do elmo parece
apresentar uma flor (Figura 13) e lembra os chapéus usados na década de 1920, inspirados nos capacetes militares usados na 1ª Guerra Mundial (1914-1918). A mudança visual provocada pela substituição do chapéu encarrega-se de marcar a passagem do tempo: o
herói inicia seu caminho para sair do século XIX e chegar à década
de 1920, período das vanguardas.
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Figura 13. Paintings, cena 4. O personagem agrada as moças, retira o capacete e coloca-o na cabeça da moça à direita.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
O herói dá as costas ao passado, deixa o século XIX rumo às
mudanças radicais propostas pelas vanguardas europeias do século
XX; a figura se desintegra (Figura 14) e alcança o surrealismo das
obras do pintor catalão Joan Miró (1893-1983).
O surrealismo propõe a valorização do inconsciente, do sonho, do delírio, da imaginação e da psicologia freudiana. Miró destaca-se pela representação e simplificação de formas que remetem à
infância, com uma composição livre das amarras da representação
racional (Figura 15), conectando-se com:
[...] o “pensamento primitivo” das artes tribais, já que os
artistas consideravam que pessoas não aculturadas fossem
capazes de exprimir com sinceridade a voz interior que
existe em cada homem (PRETTE, 2008, p. 343).
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Figura 14. Paintings, cena 5. O herói começa a se dissolver, transformando-se numa imagem surrealista.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
Figura 15. Joan Miró, Personagem Atirando uma Pedra num Pássaro (1926)10. No filme, o herói “doma” o animal surrealista criado
por Miró.
Fonte: Miró, 1926.
10
A obra está exposta no MoMA em Nova York. Imagem disponível em <http://www.moma.org/
collection/object.php?object_id=79341>. Acesso em: 11 maio 2015.
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O herói vence mais um obstáculo e doma o monstro proposto
por Miró. A seguir, o herói continua seu caminho, também a partir
do surrealismo, mas dessa vez valendo-se de uma imagem do artista belga René Magritte (1898-1967).
Magritte trabalhou como designer gráfico, elaborando
trabalhos publicitários, até que, em 1926, passou a dedicar-se à
sua produção artística. Um de seus temas recorrentes é o voo e
a queda, efetuados por homens usando chapéu coco. No entanto,
a queda se assemelha a um pouso tranquilo, consciente de que a
realidade é diferente do mundo da imaginação praticado durante o
voo (FARTHING, 2011).
No comercial, a associação a duas obras surrealistas pode trazer a ideia metafórica da ebriedade dos sentidos, do descolamento
do real a partir da sensação provocada pelo whisky. Tanto Miró
como Magritte trabalham com o afastamento radical da realidade
física, sendo que o último dedica-se à criação de um realismo mágico, incorporando aspectos do real de modo inusitado. Assim, o
herói do comercial voa – embora sem o chapéu coco tradicional de
Magritte (Figura 16) – e pousa diante da porta, outra referência ao
pintor.
Figura 16. Paintings, cena 7. O personagem voa pelo céu azul.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
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Figura 17. René Magritte, A vitória (1939)11. Em Paintings, cena 8,
o personagem chega à mesma porta do quadro.
Fonte: Magritte, 1939.
A imagem traz o herói à obra A vitória, de Magritte (Figura
17). Como o título sugere, trata-se de uma referência aos portais
míticos construídos pelos romanos para receber os heróis (soldados) que chegavam vitoriosos das batalhas. São exemplos dessas
construções o Arco de Tito e o Arco de Septímio Severo, no Foro
Romano (DELL’ORTO, 1993). Construções semelhantes foram erguidas posteriormente por toda a Europa, com a mesma finalidade,
isto é, a recepção mítica dos soldados vitoriosos, como é o caso do
Arco do Triunfo, em Paris, encomendado por Napoleão Bonaparte
em 1806.
6.  CONSIDERAÇÕES FINAIS
O herói do comercial enfrenta sua jornada pelo tempo e
pelo espaço, sagrando-se vencedor e digno de passar pelo “arco
da vitória”, representando pela porta de Magritte. O leitmotiv
presente nas imagens é o caminhar em busca de novas experiências
e desafios. Qual a recompensa o herói encontrará ao atravessar
11
Imagem disponível em: <http://totallyhistory.com/rene-magritte-paintings/>. Acesso em: 11 maio
2015.
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o arco? Considerando que se trata de um comercial de whisky
Johnnie Walker, é provável que o vencedor possa obter seu prêmio.
No entanto, esse final seria muito óbvio e extrairia a mágica já
formulada ao longo da narrativa. Assim, cabe ao herói escolher seu
prêmio, longe dos olhos de quem está assistindo ao comercial. A
narrativa assume um caminho diferente: traz o público que assiste
ao comercial para dentro de uma sala com réplicas das obras citadas
no filme, com o uso do slogan: “Change your World” (“Mude
seu mundo”). Só então, diante das oportunidades apresentadas
visualmente, aparece o logo do whisky, ancorando a ideia de que
a bebida é direcionada a pessoas empreendedoras, que determinam
seu destino com ações ousadas, inovadoras e decididas. O perfil
idealizado do consumidor do whisky é, portanto, delineado a partir
dessas perspectivas: refinado (já que se trata de um conhecedor
de artes), ousado, empreendedor, inovador, determinado, capaz de
grandes realizações. A ideia narrativa do comercial é um desafio
para o receptor, já que só é possível compreendê-lo com base em
conhecimentos da História da Arte e da cultura.
Figura 18. Paintings, cena 9. Quadros do comercial expostos como
se estivessem num museu ou galeria.
Fonte: Paintings (BBH London, 2005).
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