do Arquivo

Transcrição

do Arquivo
Feitiço do tempo e do conatus
Edson Renato Nardi1
Resumo: Buscamos neste artigo realizar uma análise filosófica da obra cinematográfica
Feitiço do Tempo (Groundhog Day). Para tanto, utilizamos como referencial filosófico a
produção do filósofo holandês Baruch de Espinoza e, mais especificamente, o conceito
de conatus, utilizado pelo pensador em sua grande obra Ética demonstrada segundo a
maneira dos geômetras. Em nossa abordagem, demonstramos que as tramas pelo qual
passa o personagem principal do filme analisado podem ser utilizadas para ilustrar
o conceito de conatus formulado pelo pensador holandês e as várias formas de sua
manifestação na vida humana.
Palavras-chave: Feitiço do Tempo. Espinoza. Conatus.
Doutorando em Educação pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP). Mestre
em Educação pela mesma instituição. Licenciado em Educação Física e Filosofia pelo Claretiano - Centro
Universitário. Coordenador do curso de Graduação em Filosofia e Pós-Graduação em Filosofia e Ensino de
Filosofia pela mesma instituição. Professor da Rede Pública de Ensino do Estado de São Paulo (SP). E-mail:
<[email protected]>.
1
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
67
Muito se fala sobre a relação entre Cinema e Filosofia. Fato é que não
se pode negar a inovação comunicativa proporcionada pelo Cinema e, por
outro lado, a importância da Filosofia para analisarmos o mundo humano
e esse subproduto da cultura humana manifestada em sons e imagens.
Diante desses elementos iniciais que consideramos ponto de partida
para este artigo, procuraremos, ao longo desse texto, tratar de Filosofia
por meio do Cinema. Para tanto, escolhemos, por um lado, como fonte cinematográfica a obra Feitiço do Tempo (Groundhog Day), produção americana realizada em 1993 e conduzida pelo diretor Harold Ramis e, por
outro lado, a produção filosófica do filósofo holandês Baruch de Espinoza
e, mais especificamente, o conceito de conatus, cunhado em sua magnífica
obra intitulada Ética segundo a maneira dos geômetras.
Os caminhos que iremos trilhar buscarão inicialmente contextualizar o filme e o filósofo escolhido para, logo a seguir, realizar a vinculação
entre ambos.
Especificamente em relação à obra cinematográfica escolhida, certamente poderá chamar a atenção do leitor o fato de que o filme trataria,
segundo algumas análises da época, de uma típica produção de humor e,
como tal, veio a receber o prêmio da British Academy Awards.
No entanto, na medida em que avançarmos em nossa análise, procuraremos demonstrar que, sob o verniz de uma típica comédia romântica
americana, existem elementos profundos e interessantes sobre as várias
possibilidades de construção de um ethos humano.
Inicialmente, poderíamos dizer que o filme, em linhas gerais, buscava
retratar as desventuras e aventuras do jornalista Phil Connors (interpretado de maneira memorável pelo ator Bill Murray), que exercia a função de
“homem do tempo” em um canal de TV na cidade de Pittsburgh e que, ao
se dirigir à cidade de Punxsutawney, no estado da Pensilvânia, para cobrir
o evento intitulado de dia da marmota2, se depara com a situação inusita
O dia da marmota ou groundhog day possui influências alemãs e é comemorado em várias regiões do
estado da Pensilvânia, nos Estados Unidos. É celebrado no dia 2 de fevereiro e, segundo o folclore, se está
nublado, quando uma marmota sai de sua toca neste dia, então a primavera vai chegar mais cedo; se o dia
for ensolarado, a marmota supostamente vai ver sua sombra e recuar em sua toca, e, se isso acontecer, o
tempo de inverno vai continuar por mais seis semanas.
2
68
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
da de ver todos os seus dias se desdobrarem contínua e repetidamente no
dia 02 de fevereiro, ou seja, o dia da marmota.
Essa situação pitoresca, que veio inclusive a gerar alguns desdobramentos inusitados e variados3 na cultura americana, busca tratar da relação do homem com o tempo e as escolhas que realiza para usufruir desse
mesmo tempo.
Quanto a Espinoza, este é tido como um dos mais importantes filósofos modernos. Excomungado pela comunidade judaica de Amsterdã,
teve sua obra alvo de nossa análise incluída no Índex Librorum Prohibitorum4 e é referência obrigatória se quisermos tratar das mais importantes
obras da História da Filosofia que lidam com a temática da Ética.
Delimitada, então, essa característica inicial dos personagens, convém que já apresentemos o conceito central que dá título a este artigo
e que será o alvo de nossa análise no filme: referimo-nos ao conceito de
conatus. Encontramos a referência a esse conceito na proposição número
VI da obra de Espinoza, quando o pensador afirma que “[...] cada coisa
se esforça, quando está a seu alcance, por perseverar em seu ser” (ESPINOZA, 1980, p. 131). Vejamos a demonstração que Espinoza apresenta
a respeito desse conceito:
Com efeito, todas as coisas singulares são modos, pelos quais os atributos de Deus se expressam de certa e determinada maneira, isto é, coisa
que expressam de certa e determinada maneira a potência de Deus, pela
qual Deus é obra e nenhuma coisa tem em si algo em cuja virtude possa
ser destruída, ou seja, nada que o prive de sua existência, mas que, pelo
contrário, se opõe a tudo aquilo que possa privá-lo de sua existência, e,
desta sorte, se esforça quanto pode e está a seu alcance para perseverar em
seu ser (ESPINOZA, 1980, p. 131).
Dentre estes, podemos destacar o fato de que o filme foi escolhido para ser preservado pelo National Film
Registry, uma instituição criada para a Livraria do Congresso americano e que tem por função selecionar
“filmes culturalmente, historicamente ou esteticamente significantes”. Outro desdobramento interessante
é a associação que se criou para o termo “groundhog day” para exemplificar as situações desagradáveis pelas
quais alguém passa e que se repete continuamente.
3
Ou simplesmente Índex; era uma lista de livros proibidos pela igreja católica por serem considerados como
atentatórios à fé e à moral. Especificamente em relação a Espinoza, seus livros póstumos foram proibidos e
colocados no Índex no ano de 1690.
4
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
69
Especificamente em relação ao conatus, este é a definição que o pensador atribui a esse esforço, potência, para perseverar em nosso ser, ou seja,
existe em nós uma propensão para nos esforçarmos ou exercitar o conatus
de modo que o que nós somos continue existindo. Certamente é possível
percebermos esse conatus, agindo a todo momento, quer seja em um ser
minúsculo e invisível aos olhos humanos ou ainda nos enormes mamíferos que nos rodeiam, em todas essas manifestações singulares, está presente a tentativa de que o ser persevere.
O mesmo ocorre com o ser humano e com os personagens do filme
escolhido por nós; isso porque, cada um, à sua maneira, busca existir, ampliar suas possibilidades de existência e isso pode ser percebido desde os
cuidados básicos que possuem para a manutenção de suas vidas, ou ainda
nos seus hábitos diários, quer eles sejam sociais, alimentares, culturais etc.
Em relação a Phil Connors, de imediato é possível perceber, a partir
das cenas iniciais, que a forma com que exercita o conatus, no contato com
as demais pessoas, gera uma espécie de aversão dessas pessoas por ele; isso
porque atua de modo a diminuir o conatus dos outros e isso se dá quer seja
pelo seu ego exageramente inflado, que faz com que sinta superior aos
demais, ou ainda, pelo seu desinteresse pelas coisas e pessoas que estão ao
seu redor.
De modo geral, poderíamos dizer que a forma com que o conatus de
Connors se manifesta demonstra que ele não tem conseguido perseverar
adequadamente em seu ser, visto que é possível perceber sua insatisfação
ou desinteresse pelas coisas e por si mesmo e que, por outro lado, essa incapacidade também tem influído negativamente no modo como as pessoas
ao seu redor exercitam seu próprio conatus.
Essa última afirmação nos obriga a tratarmos de outros dois conceitos centrais na Ética de Espinoza para entendermos essa relação que o personagem Phil Connors cria com as pessoas e as coisas ao redor e estes são
os conceitos de afeto e paixões. Em relação ao conceito de afeto, Espinoza
propõe o que se segue:
70
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
Por afetos, entendo as afecções do corpo, pelos quais aumenta ou diminui, é favorecida ou prejudicada, a potência de agir desse mesmo
corpo, e entendo, ao mesmo tempo; nos outros casos, uma paixão
[...] O corpo humano pode ser afetado de muitas maneiras, pelos
quais sua potência de agir aumenta ou diminui, e também de outras
maneiras, que não fazem maior nem menor essa potência de agir.
(SPINOZA, 1980, p. 124).
Dito de outro modo, os afetos são toda e qualquer coisa que influi
em nosso conatus, ou seja, somos afetados a todo momento por toda e
qualquer situação que se nos apresenta e esta pode diminuir ou aumentar
nosso conatus. Antes que continuemos, é necessário que se diga, que Espinoza inova radicalmente ao tratar dessa questão; isso porque, ao longo
da História da Filosofia, é possível percebermos uma cisão entre corpo e
alma/ mente e corpo5 e, em Espinoza, ambos são um só, ou seja, eu sou
meu corpo, o que este sente eu sinto, o que eu penso é uma manifestação
de meu corpo e o meu corpo manifesta o que penso.
Na medida em que sou afetado, ou seja, eu não sou a causa desses
afetos, o resultado deles pode nos ocasionar paixões e estas poderão ser
paixões tristes ou paixões alegres e elas são esclarecidas por Espinoza conforme se segue:
Vemos, pois, que a alma pode padecer grandes mudanças, e passar a
uma maior ou a uma menor perfeição, e estas paixões nos explicam
os afetos da alegria e da tristeza. De agora em diante, entenderei por
alegria: uma paixão pelo qual a alma passa a uma maior perfeição.
Por tristeza, por outro lado, uma paixão pelo qual a alma passa a uma
menor perfeição. Ademais, chamo o afeto de alegria, referido por
sua vez a alma e ao corpo, “prazer” ou “regozijo”, e a de tristeza, “dor”
e “melancolia” (ESPINOZA, 1980, p. 133).
Essa cisão é marcadamente presente nas obras do pensador grego Platão, que afirma a superioridade da
alma imortal em detrimento do corpo mortal ou ainda no pensador moderno René Descartes que, tal como
Platão, afirma a diferença radical entre mente e corpo e a preponderância daquela em relação ao corpo.
Atualmente muitos autores têm buscado acabar com essa dicotomia, propondo que a junção de ambas em
um todo indiviso fará com que o ser humano deixe de estar esfacelado e se torne pleno.
5
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
71
Especificamente em Phil Connors, percebemos de imediato a existência dessas paixões tristes e, além disso, que sua forma de se conduzir ou
afetar as pessoas ao redor acabam também por proporcionar paixões tristes. Essa geração de paixões tristes pode ser percebida na forma como lida
e trata as pessoas, quer seja a proprietária da pousada onde se instala, na
medida que a trata com profundo desdém, um ex-amigo que o reencontra
e que lhe propõe a venda de seguros de vida ou como lida com Rita e seu
outro assistente, ele acaba por gerar nessas pessoas paixões tristes e isso os
leva a ter uma experiência negativa diante da presença pura e simples de
Phil Connors ao seu redor.
Contudo, tudo muda radicalmente quando Connors é forçado a
pernoitar na cidade em razão de uma nevasca que chega inesperadamente,
surpreendendo o “homem do tempo” e impede a todos de voltarem para
sua cidade de origem. Ao acordar no dia seguinte, algo está estranho, a
música no rádio despertador é a mesma, as situações são as mesmas do
dia anterior, uma espécie de déjà vu o incomoda e, nos dias seguintes, o
personagem se percebe como que aprisionado no dia 02 de fevereiro; isso
porque todos os dias, às 6:00 da manhã uma espécie de feitiço do tempo
ocorre, Connors retorna dia a dia, semana a semana, mês a mês, ano a ano,
a esse mesmo dia.
Superada a surpresa e insatisfação inicial, Connors se convence de
que o melhor a fazer é aproveitar-se dessa situação e a primeira possibilidade que lhe vem à mente seria a de fazer uso de todas as possibilidades
hedonistas manifestadas em desejos, fantasias e possibilidades que lhe
ocorrerem; isso porque não haverá consequências, ou seja, não importa
o que quer que venha a fazer, o dia seguinte sempre será o mesmo e não
haverá qualquer espécie de “ressaca”, quer ela seja etílica, moral ou jurídica.
72
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
Essa primeira decisão de Connors tem inclusive alguma similaridade
com um mito muito interessante produzido pelo filósofo grego Platão6 e,
na medida em que se dedica a realizar os seus desejos, aparentemente essa
opção apresenta ao espectador a ideia de que tudo está indo muito bem;
isso porque muitos desses desejos remetem a alguns dos ideais de felicidade atuais que muitos de nós possuímos e que se manifestam na posse de
bens raros, a saciação de nossos desejos e fantasias sexuais ou ainda a posse
de uma quantidade infinita de dinheiro que nos permita poder comprar
qualquer objeto ou pessoa que esteja à venda.
Nas cenas seguintes, os desejos se realizam uns após os outros, mas,
quando realizados, geram em Connors a necessidade de satisfação de
outros e outros e outros, até que, por fim, deseja seduzir sua colega de
trabalho e assistente, a personagem Rita. Contudo, esse desejo começa
a apresentar uma dificuldade inesperada. Para conseguir seduzi-la, ele
busca fazer uma sondagem de todas as características que ela gostaria ver
manifestadas em um único homem e, munido dessa informação, busca
travestir-se de um verdadeiro “príncipe encantado”, mas, para surpresa de
Connors, todas as suas tentativas, que se repetem às centenas e com todas
a estratégias possíveis, terminam com a manifestação inconteste de que
Connors não é o amante desejado por Rita.
Essa situação se repete diariamente e, como não tem a satisfação daquilo que considera que fosse o único elemento (a sedução de Rita) que,
de fato, deseja e que lhe motiva a viver, Phil não vê outra possibilidade
para seu infortúnio que não seja a extinção do feitiço. No entanto, essa
tarefa da qual se encarrega não se mostra fácil e, ao perceber que não seria
possível a extinção dessa situação, busca extinguir sua própria vida.
Contudo, para a infelicidade do personagem, por mais que
se esforce, a cessação de sua vida não ocorre, independente das estratégias que use para cessá-la e uma melancolia trágica o acomete.
A história de Giges, o Lídio se encontra no livro II da obra A República, de Platão. Nele temos a defesa
argumentativa de que as pessoas não praticam a justiça por si mesmas, mas tão somente por medo das
punições que receberiam caso não o fizessem. Giges é um pastor que encontra um anel que lhe dá o poder
da invisibilidade. Ao receber esse poder, o pastor, que até então cumpria fielmente com suas obrigações,
imiscui-se dentro do palácio real, seduz a esposa do rei e juntos tramam a morte do soberano e assume o
poder no reino.
6
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
73
Nesse momento, convém que façamos uma breve pausa na narração dessa
história e nos dediquemos a analisar o que ocorreu até o momento. Fazendo uso da terminologia espinozana poderíamos dizer que Phil Connors
busca exercitar seu conatus afetando e sendo afetado pelo ambiente que o
cerca e, ao fazê-lo, não percebe nesse exercício uma realização perene e as
estratégias de saciação mudam paulatinamente. Por fim, busca na sedução
de Rita como que a possibilidade última e única que venha a ampliar seu
potencial para agir, mas, como não ocorre, não vê nas condições com que
se depara elementos suficientes para continuar manifestando seu conatus
e sua existência.
Nesse momento é importante que nos dediquemos a analisar todo
esse processo, porque consideramos que esses desdobramentos sejam esclarecedores de um aspecto importante manifestado por Espinoza e este é
o de que muitas vezes consideramos que nós sejamos os autores de nossas
escolhas que buscam ampliar nosso conatus, mas, na verdade, não o somos.
Para exemplificar esse aspecto, convém que apresentemos um leitor de
peso de Espinoza, o filósofo francês Gilles Deleuze e seu alerta instrutivo
a respeito de nossa afirmação:
Encontramo-nos numa tal situação que recolhemos apenas “o que
acontece” ao nosso corpo, “o que acontece” à nossa alma, quer dizer,
o efeito de um corpo sobre o outro, o efeito de uma idéia sobre a nossa. Mas o que é o nosso corpo sob sua própria relação, e nossa alma
sob sua própria relação, e os outros corpos e as outras almas ou idéias
sob suas relações respectivas, e as regras segundo as quais todas essas
relações se compõem e decompõem – nada sabemos disso tudo na
ordem de nosso conhecimento e de nossa consciência. Em suma, as
condições em que conhecemos as coisas e tomamos consciência de
nós mesmos condenam-nos a ter apenas idéias inadequadas, confusas e mutiladas, efeitos distintos de suas próprias causas. (DELEUZE, 2002, p. 27).
Dito de outro modo, Phil Connors acredita saber o que promove seu
conatus e se põe a realizar ações que busquem promovê-lo, mas, na verda 74
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
de, não é capaz de captar aquilo que de fato seu ser é e o que se relaciona
com ele, confunde efeito com causa, acredita estar seguindo seus próprios
desejos, no entanto nada mais faz que realizar um papel de joguete de forças internas e externas que atuam sobre ele. Nesse sentido, é sintomática
a opção de Connors por buscar ser aquilo que Rita deseja. Ao fazê-lo, o
personagem manifesta concreta e literalmente a função de joguete dessas
forças. A essa condição, Espinoza considera como sendo de servidão e este
é o entendimento que Espinoza confere a esse conceito:
Chamo “servidão” a impotência humana para moderar ou reprimir
seus afetos, pois o homem submetido aos afetos não é independente,
mas que está sob a jurisdição da fortuna, cujo poder sobre ele chega
a tal ponto que muitas vezes se sente obrigado, ainda que veja o que
é melhor para ele, a fazer o que é pior. (SPINOZA, 1980, p. 184).
Podemos dizer, ainda, que o mesmo acontece com a personagem
Rita: essa personagem acredita informar a Connors o que deseja e anseia;
no entanto, quando Connors busca incorporar em seus gestos, falas e condutas os desejos que Rita acredita possuir e desejar, não a satisfaz, porque
Rita também não percebe as ilusões das quais também é vítima o seu conatus. Com isso, temos um feitiço do tempo que põe à prova a pretensa ideia
de que os personagens possuíam a respeito do que poderia potencializar
o seu conatus.
Contudo, nem tudo está perdido para nossos personagens e a grande
reviravolta se dá quando Connors tem uma rara conversa com Rita e essa
conversa é isenta de outras intenções que tão somente discutir a situação
pela qual o personagem passa. Phil é provocado por Rita a pensar a possibilidade de ampliação do seu conatus de outro modo, não mais de um
modo confuso ou mutilado tal, como informado por Deleuze referente
às ideias inadequadas, mas que viesse a ter ideias adequadas, ou seja, que
buscasse sair de sua situação de servidão.
Essa saída da servidão ocorrerá, segundo Espinoza, quando o indivíduo passa a ter uma idéia clara e distinta do afeto, ou seja, quando
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
75
captamos o que o afeto nos provoca por meio do uso de nossas capacidades de análise e, assim, “[...] com efeito, vemos que a tristeza ocasionada
pelo desaparecimento de um bem se mitiga tão pronto como que o perdeu considera que esse bem não poderia ser conservado de modo algum”
(SPINOZA, 1980, p. 256).
Phil Connors muda radicalmente quando percebe o que os afetos fazem com ele e, sobretudo, o quanto a passividade e submissão a esses afetos
e suas respectivas paixões tristes retiram de sua capacidade de ampliar seu
conatus e, diante disso, opta por agir na realidade, tendo como referência
as ações que, de fato, ampliariam seu conatus, ao invés de enfraquecê-lo.
Não mais o personagem insiste no caminho da sedução de Rita, pois
percebe necessariamente que tal caminho enfraquece seu conatus e o torna vítima de seus apetites e, em razão disso, se põe a realizar atividades
que ampliem seu conatus. Nesse sentido, se põe a ler e amplia seu conhecimento, aprende música e escultura e passa a agir ativamente junto às
demais pessoas de modo a ampliar o conatus delas, pois percebe que, ao
fazê-lo, também amplia o seu próprio conatus, ou seja, sai do torvelinho
das paixões e da passividade e se põe a agir conscientemente e de forma
deliberada.
Tal atitude leva-o a não mais ser serviçal de suas paixões e, ao mesmo
tempo, sua conduta para com os outros acaba por gerar um círculo virtuoso de ampliação do conatus, não somente dele, mas de todos os demais
que estão à sua volta.
Por fim, quando finalmente Phil Connors realiza essa que seria talvez uma aprendizagem, o feitiço do tempo se desfaz. Quando isso ocorre,
muitas possibilidades podem ser utilizadas para concluirmos uma análise
desse processo todo e uma delas consideramos pertinente para finalizarmos nossa análise.
Phil Connors era o apresentador de um programa cuja função seria
“prever” as condições meteorológicas do tempo e, na trama, é lhe dado a
possibilidade de agir diariamente por meio dessa capacidade premonitória, pois todos os eventos serão conhecidos por ele na medida em que os
dias se repetem; no entanto, embora saiba como os eventos ocorrerão, a
forma como lida com isso demonstra que as nossas respostas costumeiras
76
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
para a nossa realização pessoal, inclusive em situações extraordinárias, tais
como a que se apresentam no filme, talvez estejam equivocadas.
Nesse sentido, concluímos que, mais que um feitiço do tempo, talvez
tenhamos, nesse filme, um feitiço do conatus e, nesse feitiço, é dado a nós,
por meio análogo ao dos caminhos trilhados pelo personagem, a possibilidade de que conheçamos e percebamos nosso conatus, verifiquemos as
ilusões pelas quais o conatus é acometido e, por fim, ajamos concretamente de modo que possamos sair das tramas da paixão e da ilusão e possamos,
de fato, perseverar mais e mais em nosso ser.
REFERÊNCIAS
DELEUZE, Gilles. Espinosa: filosofia prática. São Paulo: Escuta, 2002.
ESPINOZA, Baruch de. Ética: demostrada según el orden geométrico. Madrid:
Ediciones Orbis S.A. 1980.
FEITIÇO DO TEMPO. Direção: Harold Ramis. Fotografia John Bailey. [S.l.]:
Columbia Pictures Corporation, 1993. 1 DVD (103 min), NTSC, color. Título
original: Groundhog Day.
PLATÃO. A república. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005.
Title: The groundhog day and the conatus.
Author: Edson Renato Nardi.
ABSTRACT: This article performed a philosophical analysis of the cinematographic
work Groundhog Day. We used as a reference the philosophical production of dutch
philosopher Baruch Spinoza, and more specifically, the concept of conatus used by this
thinker in his great philosophical work Ethica Ordine Geometrico Demonstrata. In our
approach, we demonstrate that the situations for which passes the main character of the
film analyzed can be used to illustrate the concept of conatus formulated by this thinker
and the various forms of its manifestation in human life.
Keywords: The Groundhog Day. Spinoza. Conatus.
Educação, Batatais, v. 3, n. 1, p. 67-77, junho, 2013
77

Documentos relacionados

Comentários

Comentários passou, no qual uma fase é seguida de outra e outra e assim por diante, como se fossem etapas de um processo. Essa maneira de abordar a questão pressupõe uma mente como uma unidade e a aprendizage...

Leia mais