LITERATURA E EXÍLIO, Gilbert Chaudanne
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LITERATURA E EXÍLIO, Gilbert Chaudanne
Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 LITERATURA E EXÍLIO* Gilbert Chaudanne é francês, formado em biologia, com mestrado em geologia, porém escritor e pintor. Desde que saiu da França, tendo viajado por vários países, exerceu diversas funções, de ajudante de pedreiro a entregador de cerveja, foi diretor e professor do Colégio Sinjacy (Laos), diretor da Aliança Francesa de Teresina (PI), professor de Literatura Francesa da Universidade Federal do Piauí, professor de Língua Francesa no Centro de Línguas do Piauí e, por último, professor de Literatura do Curso Universitário Nancy (França) na Aliança Francesa de Vitória-ES. Tem vários livros publicados, na França e no Brasil, além de colaborar, nesses países, para revistas, cadernos e jornais de cultura. Atualmente, realiza palestras de arte e literatura. WILSON COELHO – Monsieur Gilbert Chaudanne, tomando emprestada a ideia de Léon Tolstoi sobre a possibilidade de dizer do mundo a partir da sua aldeia, e levando em conta sua condição de francês radicado no Brasil, depois de um grande período de sua existência vivendo uma espécie de peregrinação, como você vê a relação entre literatura e exílio? GILBERT CHAUDANNE – Primeiro, não concordo com a afirmação de Tolstoi de dizer o mundo a partir da sua aldeia. Em francês tem uma expressão: “l’idiot du village” (o idiota da aldeia) que é esse tipo de pessoa que talvez tenha problemas mentais, mas que é aceito e não perseguido pela população, ele faz parte da aldeia e sobretudo de seu folclore. Quer dizer, esse fechamento do lugar – lugarzinho – aldeia sobre si fabrica mais a idiotice que o gênio literário. Essa maneira de ver é uma espécie de romantismo a la George Sand, onde os matutos rudes têm delicadezas proustianas. Se os aldeões têm virtudes não é nesse * Entrevista realizada por Wilson Coelho - Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense, bolsista CAPES. 128 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 sentido, mas no sentido de uma espécie de bom senso poético, às vezes até cômico, às vezes profundo, às vezes muito quadrado. Ao oposto, você tem o escritor cosmopolita que seria de uma certa maneira o grande opositor de Tolstoi na literatura russa: Dostoiévski vivendo em vários países, porém sua obra é essencialmente localizada na Rússia. No Brasil, esse debate de literatura e identidade nacional foi muito importante na época do modernismo (1922), mas isso por razões históricas de libertação de uma imitação submissa do modelo europeu, sobretudo francês. Mas a longo prazo, isso é um falso problema porque a literatura é um discurso de ruptura em relação a identidade nacional e até ao sujeito que a produz. WILSON COELHO – E como você se enquadra nisso? GILBERT CHAUDANNE – No meu caso, estou cansado de escutar as pessoas dizerem que minha arte na pintura, mas não tanto na literatura, é tipicamente francesa. Ora, tenho uma influência evidente na pintura do ícone bizantino e do expressionismo alemão. Pergunto: onde está minha identidade francesa e respondo: a arte e a escrita não têm passaporte. A literatura é um exílio nesse sentido. Porém um exílio que produz lucidez e não alienação. Eu sou minha própria ilha e já morei em São Luis, que é uma ilha, moro em Vitória, que é uma ilha e pensei em morar em Florianópolis que também é uma ilha. Mas não foi intencional. Minha cidade na França, Besançon, é quase uma ilha, já que está presa na curva meandro do rio que tem uma forma acentuada de uma ferradura. WILSON COELHO – Você acredita que esta mistura de linguagens não provocaria uma espécie de babelização? GILBERT CHAUDANNE – Não necessariamente, pois acho que isso não pode ser qualificado de babelização. Esse cosmopolitismo, essa multidimensionalidade é uma maneira de aprender a abrir os olhos. Quem fica o tempo todo na sua cidade/ aldeia/ país, acha que o mundo é igual a sua aldeia. Ora, o mundo – vasto mundo – é mais complexo: “Verdade desse lado dos Pireneus, mentira do outro lado”, escrevia Pascal. Os países são tão diferentes como as pessoas e, às vezes, são até da ordem do impossível – no sentido de 129 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 aceitar certos costumes, tipo antropofagia! Mas não se pode cair na armadilha de pensar: minha cultura é melhor que a daqui. Também há sempre uma espécie de retenção diante de certos costumes de um país que não é seu e, aliás, até no seu. WILSON COELHO – Nesse suposto encontro ou desencontro de culturas, qual é o lugar do escritor? GILBERT CHAUDANNE – O lugar do escritor é o exílio. Antes de tudo, um exílio interior e não “administrativo” ou geográfico (Camus: O exílio e o reino). A escrita é uma atividade de convento e não é por acaso que havia nos conventos da Idade Média o scriptorium, onde se copiava os grandes livros da humanidade, como Aristóteles, Platão etc. WILSON COELHO – Então, independente do lugar, seria o escritor um solitário por excelência? GILBERT CHAUDANNE – De certa forma, sim, considerando que escrevo a partir da minha solidão ou da singularidade do meu eu e não como solidariedade ao gênero humano. Ou algo assim. A literatura não tem uma função educativa, pedagógica; ela é como uma pedra, você pode tropeçar, chutar ou se machucar ou não percebê-la. Mas ela pode funcionar como o despertar da consciência, seja na dor, seja na ausência, porém ela não tem nenhuma boa intenção: não se faz literatura com bons sentimentos, mas também não se faz literatura com maus sentimentos; se faz literatura com distração e não como distração. Não como divertimento. E sempre achei meio mentiroso aquele negócio de Flaubert reescrevendo eternamente sua Madame Bovary, fazendo correções, riscando para chegar numa sobriedade quase seca, como Stendhal, cujo ideal era o código civil ou penal e isso, ao contrário de Proust que sempre acrescentava alguma coisa, até nas provas impressas que o editor mandava para a sua revisão, e isso deixava o editor num estado de nervo, perto da histeria. 130 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 WILSON COELHO – O que significa você insistir na ideia de distração, ao afirmar que o escritor escreve pela distração e não como distração? GILBERT CHAUDANNE – Quero dizer que seu espírito tem que ser leve tipo “tô nem aí” e, ao mesmo tempo, altamente concentrado, como o arqueiro zen, ou jogador de futebol que vai cobrar o pênalti. Escrever não é um trabalho artesanal, mas não exclui o treinamento, como o atleta. Escrever é algo que se faz apesar de mim. E esse apesar de mim é o melhor que eu não tenho. WILSON COELHO – Você nasceu em Besançon, terra de Victor Hugo, irmãos Lumière, Proudhon, mas como é muito comum em sua fala afirma que Artaud não é francês, como explica esse estado de não lugar ou a busca de pertencimento a um lugar? GILBERT CHAUDANNE – Minha cidade é realmente uma terra de escritor – (pode acrescentar Charles Nodier que está na origem do romantismo francês), uma terra de cinema (lumière quer dizer luz, nome predestinado para inventar a arte da luz que é por excelência o cinema. Proudhon, o anarquista, Fourrier, o socialismo utópico, uma tradição libertária, aliás, antiga já que quando os franceses invadiram a região, o franco-condado, os habitantes organizaram uma resistência. Mas meu grande mestre da escrita e até da vida “meu mestre de vida” é Artaud. E realmente afirmo que ele tem pouco a ver com o espírito francês. Por isso também que ele passou quase despercebido no seu tempo que, além de sua escrita transtornada, ele revolucionou o teatro, quebrando os paradigmas do teatro clássico francês. WILSON COELHO – Mas Artaud não foi muito aceito na França, pelo menos, no seu tempo. GILBERT CHAUDANNE – Ele foi mais entendido nos Estados Unidos (Living Theatre, de Julian Beck e Judith Malina), no Japão (butoh, de Kazuo Ohno) e no Brasil (Grupo Tarahumaras, com Wilson Coêlho). É o que eu estava falando anteriormente: o passaporte de um escritor, de um artista, não é um passaporte nacional. Ele pode ser francês e ter um espírito chinês, já que o seu trabalho pode ser uma ruptura com a identidade nacional, mas 131 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 não obrigatoriamente. Artaud no teatro não foi entendido, foi considerado exagerado e de “mau gosto”, porque na França o mau gosto mata, já no Brasil, o mau gosto, o cafona, é poesia (Nelson Rodrigues, Waldick Soriano, Sidney Magal, Tropicália). Artaud foi procurar se encontrar na Irlanda e, sobretudo, no México, entre os índios Tarahumaras e seus rituais no peyote, um cacto alucinógeno. Nada mais anticartesiano, antifrancês, apesar dos paraísos artificiais, de Baudelaire, belo exemplo de experiência literária e não existencial-ontológico como Artaud no meio dos Tarahumaras. WILSON COELHO – Tendo em vista sua formação em biologia, matemática e geologia, além de artista plástico, pintor, escritor, poeta, romancista, cenógrafo e amante da filosofia, um homem que contempla o mundo na medida em que o contempla, como concebe a diferença entre o exilado e o estrangeiro? Ou será que estes não passam de duas formas de ver o mesmo? GILBERT CHAUDANNE – O exilado é aquele que não está em casa em lugar nenhum, até no seu próprio país, até no seu próprio eu. Ele é o estrangeiro no sentido do romance de Camus, O estrangeiro. Ele não adere às coisas, nem ao amor, por exemplo, mola essencial da existência. Há nele algo que diz não, que recusa o mundo, que se recusa a ser o que ele é, do mundo. E ele também. “Eu não sou eu”, posso dizer, retomando de outra maneira “eu é um outro”, de Rimbaud, ou “eu sou o outro”, de Nerval. Agora, o estrangeiro, no sentido comum, administrativo da palavra e não no sentido de Camus, é alguém que vem de outro país e, como tal, pode não se sentir tão conivente com os costumes deste novo país de acolhimento. Esse efeito existe realmente, mas com o tempo vai diminuindo até quase desaparecer. Há uma osmose-identificação com o país acolhedor, hospedeiro. Mas depende do estrangeiro. Até aí falei mais do meu caso, mas há estrangeiros que vivem no Brasil e que continuam com a cabeça e o coração na França, na China, na Alemanha, no seu país de origem. É só olhar a dificuldade dos descendentes de alemães e pomeranos de serem assimilados pela brasilidade. Mais de 150 anos depois da imigração, ainda se fala a língua germânica, o que pode ser uma riqueza cultural para o Brasil, mas também uma espécie de fechamento de uma comunidade. O italiano casou mais com a brasilidade. É 132 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 completamente compreensível que se deve conservar a cultura do estrangeiro, mas não se pode aceitar um país dentro do país. Todo país busca sua unidade “espiritual”, senão ele corre o risco de explosão. A pluralidade é fecunda se ela se mantém na cultura e não politicamente. WILSON COELHO – E onde está a fronteira entre sua formação científica e sua prática artística? GILBERT CHAUDANNE – Minha formação científica, eu a reneguei e, hoje, sou escritor e artista, apesar de ter sido apaixonado pelas ciências. Mas – talvez – essa formação científica ainda me ajuda a ter um senso, acho eu, agudo da observação. E também tento estabelecer pontes entre razão e intuição artística; e isso faz parte do meu trabalho na crítica de arte e crítica literária. Uso tanto uma racionalidade não-delirante como um certo discurso poético, às vezes, mal aceito. WILSON COELHO – Como artista plástico (estudioso de matemática) num certo sentido você pode ser entendido como um geômetra, entendendo que este tem por objeto o estudo do espaço e das formas, considerando as figuras e corpos que estes contêm. Por outro lado, na condição de andarilho, você também como navegante compartilha com a possibilidade de ruptura com essa determinação de espaços. Que lugar é reservado à memória para que você possa estabelecer uma espécie identidade entre os pontos de partida e de chegada? GILBERT CHAUDANNE – O lado “matemática” que foi uma paixão intelectual muito forte se refletiu numa fase do meu trabalho na pintura de Berlim (1971) até Natal-RN (1979) já que tinha influência do cubismo. Depois, isso se diluiu mais e hoje talvez ainda exista, porém por influência do ícone que é também uma geometrização (dessa vez, sacra mística e não como marca registrada da objetividade científica como no cubismo). Agora, o andarilho é o contrário do geômetra. O andarilho não gosta de auto-estrada tipo Via Dutra. O andarilho gosta de caminhos com curvas, serpentinas, caminhos para flanar. Ele gosta de curvas e do aleatório e é justamente nestas curvas que atua o fenômeno da memória: se lembrar é voltar e voltar quer dizer curva, espaço pois não euclidiano reto, mas espaço 133 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 curvo como o de Riemann e da relatividade geral de Einstein, como também a busca do tempo perdido, de Proust. Há uma só entidade que é o espaço-tempo curvo. WILSON COELHO – No que diz respeito à escrita, qual é a relação entre a viagem e a memória? GILBERT CHAUDANNE – A relação memória-viagem é imbricada, pelo menos no meu caso. Consigo escrever sobre minhas viagens 20 ou 30 anos depois. Às vezes, não, é logo depois. Parece então que há dois tipos de memória. Uma que trabalha no que acabou de acontecer (meu livro Crepúsculo dos Cormorões) e outra, mais lenta, que amadurece, que se curte como um vinho na adega do seu eu profundo e vai ressurgindo como a Madeleine de Proust, subrepticiamente. É um tempo-espaço que fica curvo, permitindo a memória: a volta. WILSON COELHO – E como você vê a relação entre a memória e a identidade? GILBERT CHAUDANNE – Se a gente considera a memória como o alicerce da identidade e, a viagem, ligada à memória, as memórias de viagem têm uma radical importância. Eu sei agora porque não entendia porque se falava no Brasil que um país sem memória não tem identidade. Eu sei agora porque fiquei amnésico e a consequência de minha amnésia é que eu não sabia quem eu era, quase esqueci até meu nome, e eu não sabia sobretudo onde eu estava. No hospital, aqui em Vitória, o médico perguntou onde eu estava e eu respondi: no Nepal! O doutor preencheu logo 40 páginas num sopro só. WILSON COELHO – Mas isso não é uma questão do andarilho? GILBERT CHAUDANNE – O perigo do andarilho é o de cair na errância de se tornar um errante, não no sentido de estar errado, mas no sentido de estar de uma certa maneira sem destino, até metafisicamente falando. A estrada flutua, o que é sua poesia de ser, mas há um certo momento que se sente a necessidade de um novo enraizamento. O que era impossível na França, porque me sentia mais estrangeiro lá, juntamente, no meu país! E assim fiquei seduzido pelo Brasil e pela Índia e, finalmente, me radiquei (raiz) no Brasil: Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda. 134 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 WILSON COELHO – E nesse processo de “sedução”, até que ponto você se sente “afetado” pela brasilidade? GILBERT CHAUDANNE – De uma certa maneira, quis ser brasileiro, mas não consegui, só em partes. E quando voltei da França, em 1983, as pessoas me perguntavam de que país eu era, porque eu falava francês com sotaque nordestino. Aí, eu percebi que eu não era mais da França e, também não era do Brasil. Esse país que não é um país, se chama na estratégia militar de “terra de ninguém”, que é o espaço, por exemplo, entre a trincheira francesa e a trincheira alemã na primeira guerra mundial. Não há ponto de partida e não há ponto de chegada. Eu fico suspenso. O que é exatamente a situação aqui em Vitória, do viaduto Caramuru, no estilo eclético pré-modernoso, e no qual passam os trilhos dos antigos bondes que não existem mais. E esses trilhos começam no início do viaduto e terminam no fim do viaduto. Assim, eles vêm de lugar nenhum e não chegam a lugar algum: suspensão. WILSON COELHO – A estrutura do viaduto já é uma espécie de suspensão... GILBERT CHAUDANNE – Assim sou eu como suspenso, mas isso não é sofredor, traumático, é o que é – sem espaço, sem tempo – entretanto, não é exatamente a eternidade. É algo que é realmente da ordem do que é e não é ao mesmo tempo. WILSON COELHO – E... GILBERT CHAUDANNE – Agora estou falando diretamente com quem está me lendo: você se sente suspenso? WILSON COELHO – E o que pensa, hoje, o escritor na condição de exilado com tendências de andarilho? Como imaginava o devir? GILBERT CHAUDANNE – Pensei que, quando velho, e é o caso hoje, talvez eu pegaria a estrada de novo, tipo velho andarilho, velho-monge, meio louco. Mas sintomaticamente, como fiquei paralisado das pernas, ando sim, mas com muita dificuldade e a estrada é totalmente excluída. O andarilho está morto. Só dá para andar dentro de minha cabeça, quer dizer, escrevendo. Há de dizer também que junto à paralisia fiquei louco e, mesmo sendo 135 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 louco, a posteriori observei a semelhança do processo de loucura e do processo de escrita: os dois são deslizes semânticos. WILSON COELHO – Mas há um processo de escrita que parece ser policiada ou, melhor, auto-policiada... GILBERT CHAUDANNE – Sim, concordo, mas mesmo numa escrita policiada, como a de Machado de Assis, Stendhal, Flaubert, não deixa de carregar deslizes. Se Madame Bovary Emma, em francês, pode ser “aima”, verbo amar no passado simples. Foneticamente é a mesma coisa, que significa em francês “amar no passado” e é uma ação breve, rápida. O que é justamente o que acontece com Madame Bovary. O sobrenome Bovary, em francês, foneticamente, “le beau varie” (o belo varia): ela tem vários belos amantes. Acaso ou inconsciente ou intenção de Flaubert? Acho mais que aquele deslize semântico está simplesmente como princípio da escrita. Ninguém, sobretudo nenhum escritor escapa da doce traição da língua. E é até isso que faz a literatura. O que o sujeito quer dizer não é tão importante. O importante é o que ele não quer dizer, mas diz. O milagre da literatura é isso, essa traição que é uma forma superior de sinceridade. WILSON COELHO – Tendo em vista a arte e a ciência como uma possibilidade de diálogo para expressar a ideia de mundo, como é esse processo na relação com a ideia de conhecimento? GILBERT CHAUDANNE – Hoje, o conhecimento é como as pinturas antigas: cheio de craquelé. A ciência cresceu tanto que até nela tem divisões enormes e a arte literatura fica isolada complicando-se ainda com o problema da técnica. A psicanálise, de certa maneira, às vezes desajeitada ou abusiva, tenta fazer essa ligação ciência-arte-literatura. O nosso sistema de ensino ocidental criou um vício mor: a especialização. E não se encontra mais, ou raramente, uma pessoa capaz de navegar entre a teoria dos conjuntos (matemática) e a poesia de Rimbaud ou Ezra Pound, bem como a teoria da deriva dos continentes. Formamos técnicos robôs e não seres pensantes. O projeto é metrópoles, os robôs tecnológicos não só perderam seu coração, mas também seu pensamento livre. Nisso tanto o capitalismo selvagem como antigamente as ditaduras comunistas concordam: eles 136 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 fabricam o homem unidimensional (Marcuse). E, se o comunismo quebrou a cara, o capitalismo agressivo e seus executivos jovens lobos estão famintos para alienar a cultura. WILSON COELHO – Até que ponto, como estrangeiro, sua condição de andarilho e viajante contribuiu para o seu pensamento? GILBERT CHAUDANNE – Acho que ter sido andarilho foi, claro, uma realidade inalienável e uma verdadeira escola da estrada. Mas também, de uma certa maneira, foi estar diante de algo que é da ordem do impossível: quando vi na Índia os hindus adorarem um elefante vivo todo maquiado com arabescos brancos, quando percorri o Saara, mais de 2 mil quilômetros de caminhão sem ver um oásis. Esse tipo de experiência funciona como o despertar interno, despertar da consciência. A paisagem se torna paisagem da consciência. Ter consciência que o elefante é sagrado significa o quê? Ter consciência do que quer dizer carnalmente deserto e a palavra deserto do Saara. Obviamente, só aprende na viagem aquele que se desnuda do seu próprio eu. Da sua própria cultura e consegue assim, NU, entrar no mundo que fala outra língua, mas que – paradoxalmente – termina sendo compreensível além das linguagens. WILSON COELHO – E como vê a academia nesse processo? GILBERT CHAUDANNE – O conhecimento universitário fornece uma estrutura, mas não o espírito que deve rechear essa estrutura, uma espécie de carne espiritual. A viagem pode fazer isso. Só pode, mas não o faz obrigatoriamente. Um imbecil em Paris continua um imbecil no Tibet. Há de ter uma disponibilidade, um poder de se abrir e de saber receber (é importante saber se dar, mas também é importante saber receber). Ora, os meios intelectuais estão bastante percorridos por alguns histriões que fazem muito barulho e elaboram pouco pensamento substancial. Isso é facilitado por um certo tipo de mídia que gosta do espetáculo oco e escandaloso. 137 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 WILSON COELHO – Quais são os lugares por onde você passou? GILBERT CHAUDANNE – Na França não passei, porque nasci lá, surgi ou brotei. Estive na Suécia, Noruega Lapônia, Suíça, Alemanha, Luxemburgo, Holanda, Dinamarca, Itália, Mônaco, Vaticano, Espanha, Portugal, Ex-Iuguslávia, Bulgária, Grécia, Turquia, Irã, Afeganistão, Paquistão, Índia, Nepal, Barbados, Venezuela, Colômbia, Equador, Uruguai, Peru, Bolívia, Argentina, Guiana Francesa, Tailândia, Laos, Morrocos, Argélia, Saara. Agora estou no Brasil. WILSON COELHO – E, nessas andanças, que países mais lhe impressionaram? GILBERT CHAUDANNE – Os dois países que mais me marcaram foram o Brasil e a Índia. Fiz até uma palestra comparando os dois países, aparentemente tão diferentes senão, opostos. WILSON COELHO – De certa forma, pode-se pensar em Brasil e Índia como uma espécie de contraste com sua condição europeia, mas na Europa que não é francesa? GILBERT CHAUDANNE – Na Europa, do que eu mais gostei foi Itália e Portugal (praticamente Lisboa, na época da Revolução dos Cravos, em 1975. Ainda, fora da Europa, o Saara e até as montanhas do centro desse deserto, o Hoggar, onde vivem os tuaregues: os homens azuis, os “senhores do deserto”. A Europa sempre me deu um certo arrepio pelo delírio da industrialização e o fechamento das pessoas sobre si. Saí da Europa e fui respirar melhor, às vezes, até com uma certa dor, porém com mais sensação de estar vivo. Dostoievski (não tenho a certeza de que é dele) fala que a Europa era um cemitério, o que se confirmou nas duas guerras mundiais sobretudo com os campos de extermínio dos nazistas. A Europa cultiva a morte. WILSON COELHO – Sua escrita é ligada à viagem? GILBERT CHAUDANNE – Minha escrita, minha literatura é ligada só em parte à viagem, sobretudo, à narração meio autobiográfica de “O crepúsculo dos Cormorões”, publicado na França, pelas edições Hors, mais ou menos em 1978. Também outros livros, 138 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 “As fontes vivas”, “Tribulações”, “Transmutações”, “A guerra improvisada”. No Brasil, publiquei em tiragem limitada, livros artesanais, feitos por mim, por exemplo: “A busca do Santo Graal” e, com tiragem grande, “A passagem de Marina”, com segunda edição pelo Núcleo Tipográfico da UFES. Nas minhas viagens fui várias vezes ajudante de pedreiro na Marsille e Berlim (1971). Trabalhei em fábrica de produtos químicos “Inferno Notável”, em Sedan, próximo de Charleville, a cidade de Rimbaud. Em fábrica de cerveja, na cidade de Karlruhe, Alemanha. E de engarrafamento de vinho na França, em Besançon. Trabalhei duas vezes na vindima, na França (Beaujolais e Champagne). Trabalhei como lenhador, perto de Besançon, jardineiro em Paris. Professor do primário, na Alsacia (França), professor de literatura francesa e diretor do Colégio Sinjacy (Vientiane, no Laos). Professor de literatura e língua francesas na Universidade Federal do Piauí e curso da Universidade de Nancy, na Aliança Francesa de Vitória. Fui diretor da Aliança Francesa de Teresina-PI, representante de seda natural na Índia. Fui artesão (pulseiras, colares, brincos), entre 1977 a 1979. Minhas viagens foram feitas de carona, de trem, de navio, de avião e de ônibus. As três regiões do mundo que mais me marcaram, que me formaram foram a Índia, o Brasil e o Saara. WILSON COELHO – Como você mesmo salientou, em determinada época, numa de suas palestras, tentou estabelecer uma relação entre Brasil e Índia, como se dá essa possibilidade de refletir sobre algo em comum entre estes dois países? GILBERT CHAUDANNE – A Índia por ser um país continente, cuja riqueza cultural é superior a do ocidente, sem desprezar nossa cultura que não deixa de ser grandiosa. Mas que insiste em não entender certas coisas e que hoje se mercantiliza de uma maneira tétrica: o espírito não tem preço e, hoje, por exemplo, os editores não se interessam com livro que não tenha grandes vendas: daí uma falsa literatura de supermercado: Paulo Coelho, Sidney Sheldon e outros. O Brasil é um pouco o complemento da Índia. A Índia, olhando para dentro e, o Brasil, olhando para fora (barroco). O Brasil, como a Índia, é muito rico culturalmente e é o país que contribuiu mais para minha formação como escritor e pintor. De uma certa maneira, mas não totalmente, renego a França, pelo menos os franceses. Mas não a cultura francesa, porque a França é um país que não me deu nada e que sempre me repeliu quando precisei dela. Por isso, só me sinto francês como o primo de Rimbaud, de 139 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 Artaud, e não como súdito de De Gaulle, Miterrant ou Sarkosi: a França é rançosa (françosa) e não sabe amar. WILSON COELHO – E você trocou a França pelo Brasil. Trata-se de um quase paradoxo entre o exílio e o asilo... GILBERT CHAUDANNE – O Brasil provocou também em mim uma reflexão sobre minha própria identidade, sobre a identidade francesa e sobre a identidade brasileira. E nesse último caso, quero dizer, essa reflexão, teve uma boa aceitação do meu trabalho com algumas incompreensões, mas estou certo do que eu estou fazendo tanto na literatura como na pintura e outras atividades culturais. Porque eu sou autêntico no meu amor pela cultura e isso, pela sua transparência e simplicidade, desarranja os que usam a cultura como jogo de poder e jogo financeiro. WILSON COELHO – Pode-se dizer de uma liberdade de pensamento? GILBERT CHAUDANNE – A liberdade de pensamento está sempre em perigo e se ela existe na constituição, ela não existe sempre na prática, porque há certas coisas que o público não quer ouvir, não quer entender. WILSON COELHO – Voltando a um tema que lhe é muito caro, o que você chama o “espírito do lugar”? GILBERT CHAUDANNE – É isso: eu me encanto com a beleza de uma rua. Beleza que talvez não corresponda aos critérios conhecidos da beleza, por exemplo, a Rua Dom Fernando, aqui em Vitória, tem uma presença que me fala muito enquanto as belas avenidas fartas da Praia do Canto podem despertar um certo deslumbramento formal, mas não uma intimidade, quase visceral com as coisas. A partir de 83-84, desenvolvi na França uma visão do mundo em relação a esse problema do lugar. Usa-se pouco a expressão “espírito do lugar”, mas é isso que eu retratei no meu livro “Les Chants de Marie-Ganja”, doze textos poemas que falam de doze lugares de vários países. Índia, Brasil, França, talvez mais um ou dois países, ah, sim, a Colômbia. 140 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 WILSON COELHO – Sim, mas e o “espírito do lugar”? GILBERT CHAUDANNE – O que é o “espírito do lugar”? É algo que é da ordem do imponderável, do que não se pode definir como Deus e a Mulher, mas que existem mais que qualquer coisa com “marca registrada”. É algo assim como flutuante e que penetra, uma cidade, uma montanha, o mar, como uma marca d’água numa nota. O lugar tem espírito? Sim, o lugar pensa pelas suas montanhas, a cidade pensa pelas suas ruas. WILSON COELHO – E é o caso de Vitória, Guananira, a Ilha do Mel? GILBERT CHAUDANNE – E aqui em Vitória, encontrei uma cidade que me fala através das suas ruas, seu mar, suas madonas, mas também seus demônios: a “Gruta da Onça” produz emanações de hemoglobina que de vez em quando e com certa frequência se derramam pelos becos da cidade, nas avenidas, e sobe o morro com a agilidade de um macaco ou de uma onça. WILSON COELHO – Então, o lugar se define pelo olhar? GILBERT CHAUDANNE – A viagem, a literatura, sobretudo a poesia, a pintura são antes de tudo uma escola do olhar e a viagem, sobretudo, porque quando você vai num país que não é o seu, você o vê pela primeira vez: quer dizer, é uma espécie de virgindade do olhar, por isso que, às vezes, um estrangeiro faz observações sobre seu país que lhe deixam espantado por tanta justeza (mas, às vezes, fala besteira). Mas nessa escola do olhar/viagem/literatura/pintura há uma armadilha: é o lugar que eu vejo ou é meu próprio eu? Isso é o grande perigo porque certas pessoas vão a Paris, Katmandu ou Veneza e não vêem Paris, Katmandu ou Veneza. Eles veem os postais, só. Ou eles veem o seu próprio eu, eles veem seus devaneios exóticos e não uma epifania. Chegando à fase final da existência, eu não me arrependo de minhas viagens e de minhas escolhas para a literatura e a arte. 141 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 WILSON COELHO – E, no universo da liberdade que tanto defende, você acredita que escolheu ou foi escolhido pelos caminhos que transitou e transita? GILBERT CHAUDANNE – Eu não escolhi, fui escolhido. Por isso que escrevo livros tão bons e pinto quadros notáveis. Eu fui um homem livre e isso incomoda todos aqueles que não viveram e se mumificaram num papel determinado precisando ser marionetes para aparecerem. Puro parecer de onde é excluído o existir: criar, pensar, tentar ser livre: condicionalmente. E entre a Torre Eiffel e o Hoggar-Saara, escolho esse último porque o deserto do Saara tem uma pureza mítica/mística/poética que a Torre Eiffel (apesar de sua elegância) não tem. A Torre Eiffel pode ser bela, mas o Hoggar – Saara é sublime. É a diferença estabelecida por Kant. Da mesma maneira que a “Triste Partida” de Patativa do Assaré/Luiz Gonzaga é belíssima, mas a nona sinfonia de Beethoven é sublime. Eu sempre tomei partido do sublime, até às vezes flertando com a morte que, além de seu caráter terrível, tem esse lado sublime. A Dama branca te ama, meu filho! Não se faz arte/literatura/poesia com talento. Se faz arte/literatura com uma espécie de transtorno mental, melhor, espiritual. Os que não o tem, esse transtorno, são “fazedores” e não criadores. São artistas de sala de espera de dentista. WILSON COELHO – E, nessa sua trajetória em que atua tanto na pintura quanto na literatura, como você se sente mais “compreendido”? GILBERT CHAUDANNE – No meu trabalho como artista e escritor, há um pequeno paradoxo: é que tanto na França como no Brasil (nordeste e aqui) minha pintura sempre foi mais aceita, ou até festejada que minha escrita. WILSON COELHO – E por que isso? GILBERT CHAUDANNE – Há um problema de ordem geral. Estamos numa “civilização” da imagem (e do som): televisão, cinema, rádio, celular. Assim, a escrita recua como sendo algo chato, intelectualóide, cansativo. Um rapaz chegou a me dizer que não leu meu artigo em A Gazeta (Vitória) porque era grande demais. E o texto era um pouco mais que a 142 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 metade de uma página, formato tabloide. Estamos vivendo um novo analfabetismo e consequentemente um recuo do pensamento associado à escrita. Há um pensamento também na oralidade. Por isso, atualmente, tenho feito. WILSON COELHO – Mas como se dá então a pintura? GILBERT CHAUDANNE – No meu caso, a minha pintura é de fácil leitura para o brasileiro porque de uma certa maneira desposei a mentalidade/o espírito brasileiros: pinto Madonas, cristos, santos e cenas de boemia, nu feminino, casarios, temas que são familiares para os brasileiros, mesmo quando o faço de uma maneira que, às vezes, surpreende. No lugar de cristos “açucarados”, pinto cristos gritando de dor-agonia, no horror e muitas vezes os “fiéis” ficam horrorizados porque como diante do Cristo morto de Holbein, eles vão ter, como Dostoievski uma crise epilética. (No caso desse gênio literário, a epilepsia, no caso do nosso cidadão, ele vai ter medo). Mas ele não sabe que onde há medo, é lá que está o Ser, Deus, a Essência. Mas observei com surpresa na última exposição que fiz recentemente na Justiça Federal. Os quadros mais vendidos foram os “Cristos de Dor” e não as Madonas da ternura. O público se educa com os artistas. Eu o fiz mudar de ponto de vista. Mas sou um educador sem querer sê-lo. WILSON COELHO – Então, vamos voltar à literatura. GILBERT CHAUDANNE – Agora, o caso da literatura é da ordem do suicídio. Já que não há leitor e quando há são analfabetos, mesmo com um doutorado debaixo do braço. WILSON COELHO – Por que isso? GILBERT CHAUDANNE – Porque para ler tem que ser virgem, o que, obviamente, não é o caso de muita gente adulta. Na verdade, quero dizer que tem de ter uma virgindade interna, espiritual. A carnal sendo apenas um cadeado se quebra. Mas a virgindade espiritual é algo que não se quebra ou não deve se quebrar – é um cristal. E os leitores foram basicamente idiotizados por Descartes = elas procuram um sentido racional. Ora, a vida não sabemos o que ela é. Mas temos uma certeza: ela não é racional. E, para viver, tem 143 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 que ser louco, o que todo mundo é, inclusive, os que pretendem curar a loucura (ver O alienista, de Machado). A ciência, a ciência sim é uma forma de delírio altamente sofisticado, mas um delírio que toca o real (em parte), aliás, como a loucura justamente. Além de todos os conceitos, filosóficos, científicos, há a parte da noite, o prepúcio do diabo que está rindo de tanto saber e se embriagando com o Dr. Fausto, enquanto Gretchen está se prostituindo na próxima esquina. Aleluia Gretchen! WILSON COELHO – E onde fica a teoria do conhecimento? GILBERT CHAUDANNE – A bela construção da episteme ocidental é um bordel do espírito e poucos o aceitaram, esse bordel, a não ser Nietsche que não por acaso foi internado como louco declarado. Os outros pensadores construíram paredes para impedir o dionisismo epidêmico de Nietsche e a peste artaudiana de se expandir no ocidente. WILSON COELHO – Seus escritos têm um caráter autobiográfico? GILBERT CHAUDANNE – Sim, mas eu faço meus escritos pular por cima de minha biografia para entrar no imaginário puro, para sonhar de olhos abertos. E no nordeste, encontrei essa ausência de limite entre o real e o imaginário, o ponto sintético onde a realidade e o sonho deixam de ser percebidos de uma maneira contraditória (surrealismo, alquimia, Jung e ying e yang). Há como uma visão sintética do real ou do chamado tal. Quem sou eu? O que é o real? O que é devaneio, o imaginário? WILSON COELHO – Convenhamos que a literatura não tem compromisso com o absoluto. GILBERT CHAUDANNE – A literatura não busca a verdade, ela busca as imagens (por isso, para mim a importância da pintura, e uma completa a outra, quero dizer, a literatura completa a pintura e a pintura completa a literatura: ilustro meus livros e escrevo um texto atrás de meus quadros). 144 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 WILSON COELHO – Você é um artista de grande fertilidade. GILBERT CHAUDANNE – Tenho muitos trabalhos literários inéditos por falta de editores, mas consegui publicar alguma coisa importante na FCCA (Fundação Ceciliano Abel de Almeida) e Núcleo Tipográfico de Sandra Medeiros, ambos na UFES. WILSON COELHO – Onde tem publicado ultimamente? GILBERT CHAUDANNE – Escrevo nos jornais A Gazeta e A Tribuna. Houve uma redução do espaço cultural, mas agora está crescendo de novo. Escrevi entre 80 e 83 nos jornais e revistas culturais do Piauí. Na nossa sociedade, o papel da mídia é muito importante e, às vezes, ela não divulga uma cultura de qualidade, o que condena o escritor ao gueto ou ao alcoolismo. O papel das escolas e sobretudo das universidades é capital, mas a televisão, ou uma certa televisão, fabrica os gurus de lanchonete tipo Paulo Coelho e isso é bastante prejudicial à saúde mental da juventude. E até a doença mental dessa juventude. Até a loucura pode ser pervertida pelos gurus de lanchonete. Não temos mais verdadeiros loucos e, por isso, não temos mais verdadeiros poetas. WILSON COELHO – Parece que sua obra, sobretudo, literária, o problema do conhecimento é algo essencial. Você está de acordo? GILBERT CHAUDANNE – É sim, quando minha consciência foi se despertando no inicio da adolescência, tive quase simultaneamente uma paixão pela pintura, pela escrita e pelas ciências, entre os 13 e 15 anos. Mas na verdade essas três paixões recobria uma só: a do conhecimento. Saber é a grande ânsia do ser humano. Por isso que tem muita gente burra porque o que você sabe é que você não sabe nada (Sócrates) e isso dá uma angústia radical. É a consciência infeliz de Hegel, de Sartre, mas na prática da criação artística e na pesquisa científica há também uma alegria: o saber feliz (Gaia Ciência dos poetas provençais da Idade Média) retomado por Nietzsche. O ocidente sempre gostou da dor. O oriente sempre procurou a abolição da dor. O Cristo é dor, Buda está sorrindo! E essa complacência em relação à dor não criou um homem melhor, criou o homem sádico: inquisição, nazismo, comunismo. O oriente sabe dizer sim, o ocidente sabe dizer não. E é por isso que eu fui várias vezes no oriente e aprendi um pouco a dizer sim. Porque o não145 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 europeu da revolta também (apesar de meus esforços) está muito enraizado em mim. Tentei calar a boca do cão, mas ele continua latindo. Talvez ele tenha que latir e até morder, sobretudo quando você é vítima de uma injustiça. A revolta pode ser uma mensagem de otimismo, Albert Camus: “Je me révolte donc nous sommes”. Mas no que se trata do conhecimento, hoje, depois de ter percorrido muitos caminhos possíveis, cheguei num ponto que chamo de in-conhecimento. Sei que a palavra não existe, na verdade, seria desconhecimento, mas gosto de in-conhecimento, há a idéia da impossibilidade do conhecimento. E desconhecimento é apenas uma impossibilidade temporária. Um dia vai ser conhecido, a coisa ou as Américas. Se usa também o termo incognoscível. WILSON COELHO – Mas a arte e a literatura podem ser consideradas como conhecimento? GILBERT CHAUDANNE – Claro, mas nesse caso o conhecimento não é feito através dos conceitos, mas através de relâmpados-intuição. A arte e a literatura têm uma percepção intuitiva do real. Exemplo: a psicanálise colocou na moda palavras como sadismo e masoquismo. Só que essas noções não são de Freud ou de um outro psicanalista. Elas veem do nome de dois escritores: Sade e Sacher-Masoch que escreveram livros onde descrevem o que é considerado como perversão: o sadismo e o masoquismo. Nesse caso, a literatura teve um conhecimento anterior ao da ciência. WILSON COELHO – Como se dissesse que a arte antecipa a ciência? GILBERT CHAUDANNE – Colocaria hoje a arte e a literatura como um tipo possível de conhecimento feliz (Nietzsche) deixando de lado as lamúrias neo-românticas e as macaquices narcísicas. WILSON COELHO – E então, o que pensar de 50 anos de literatura, pintura e viagens? GILBERT CHAUDANNE – No que se trata da viagem, vou fazer uma observação complementar. Às vezes, não são os lugares famosos como a Torre Eiffel, o Taj Mahal, as igrejas de Ouro Preto, que marcam sua sensibilidade, mas uma rua anônima, uma cidade 146 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 anônima, um olhar de um segundo no ônibus, uma palavra. Claro que o Taj Mahal é deslumbrante, claro que Stambul é deslumbrante, mas a relação com o lugar depende também de você e do seu olhar e, assim, o lugar é e não é você. E essa sintonia pode se criar ou não e é filosoficamente falando fenomenológica e não essencialista. WILSON COELHO – Criava diários de bordo? GILBERT CHAUDANNE – O que eu nunca consegui fazer é um diário de viagem. Até escrevia durante as viagens e tentei fazer um diário numa viagem à Índia que durou quase um ano. Mas não funcionou. Escrevi mas não foi bom. WILSON COELHO – Melhor, então, recorrer à memória? GILBERT CHAUDANNE – Escrevo sobre minhas viagens depois e, em geral, muito tempo depois, como se precisasse de uma espécie de digestão do que foi visto e vivido. WILSON COELHO – Parece que muitos dos relatos de viagens se perdem na fantasia. GILBERT CHAUDANNE – Duas armadilhas nos relatos de viagens: a folclorização ou “cor local”, o pitoresco e o estilo “blasé” que diz que, finalmente, Veneza ou Rio de Janeiro não é essa coisa toda: é a perda do poder de se deslumbrar como a criança. Viajei na Itália com um compadre que era capaz de estragar da beleza ímpar desse país à imperial de Veneza. Esse “impoder” (Artaud) de ficar deslumbrado é mais comum do que se pensa. Falo do verdadeiro deslumbramento e não do deslumbramento de encomenda como certos brasileiros que, automaticamente, ficam deslumbrados em Paris ou Nova York. Por que não em Baixo Guandu ? E eles ficam deslumbrados porque é Paris ou Nova York e não porque ficam simplesmente deslumbrados. E é chique ficar deslumbrado em Paris e em Nova York, mas não em Baixo Guandu. 147 Revista dos Alunos dos Programas de Pós-Graduação do Instituto de Letras UFF www.revistaicarahy.uff.br Edição n.06/2011 ISSN:2176-3798 WILSON COELHO – E então, o que pensar de 50 anos de criação literária e artística e de 10 anos de viagem? GILBERT CHAUDANNE – Primeiro, não sei se há de pensar alguma coisa. Nós fazemos e nós vamos embora. Na verdade, não vivemos, somos vividos. Se acredito na liberdade, falei de uma liberdade condicional. E o que quer dizer uma liberdade condicional? Uma liberdade condicional quer dizer que eu tenho de viver o que eu sinto e não o que os outros querem que eu sinta. Parece bobo, sim, mas a liberdade é boba, porém gostosa, às vezes, dolorosa também. A liberdade tem um lado Lolita e um lado Joana D’Arc. Condicional, porque não sou dotado de asas, como um anjo para me abstrair da minha condição pessoal e humana. Sou limitado mesmo se pretendo assinar um contrato com o infinito. Esse vai surgir, mas só na obra de arte, se ele surge na vida, ele me mata. E ele já tentou fazer isso três vezes e meia. Não posso dizer como. WILSON COELHO – Fico contente que tenha contribuído com a Revista Icarahy, considerando que o tema deste número tem muito a ver com sua trajetória entre a literatura e o exílio. GILBERT CHAUDANNE – Pois espero ter respondido e não respondido às suas perguntas e agradeço a curiosidade porque ela é intelectual e não voyeur. Assim, você me proporcionou a possibilidade de preservar meu pudor e, ao mesmo tempo, me deu a possibilidade de expressar uma espécie de amor torto que me liga à vida. 148