O Tigre que não vingou

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O Tigre que não vingou
TAILÃNDIA - O TIGRE QUE NÃO VINGOU
Amaury Porto de Oliveira
A Tail€ndia vem ocupando negativamente o notici•rio internacional, neste ano
de 2010. De mar‚o a maio, manifestantes da Frente Unida pela Democracia e Contra a
Ditadura (UDD), conhecidos popularmente como “os camisas vermelhas”, ocuparam
ruidosamente pontos centrais da capital, Bangcoc, dos quais s… seriam desalojados
violentamente, pelo Ex†rcito, no dia 19 de maio. Treze pessoas morreram na ocasi‡o,
oitenta foram feridas, muitas foram presas, mas os manifestantes atearam fogo nas suas
barricadas e, em continua‚‡o, incendiaram a Bolsa de Valores e o Central World,
moderno shopping da capital, sˆmbolo m•ximo do consumismo da elite local. O estado
de emerg‰ncia, em vigor desde abril, foi prolongado no m‰s de julho, de modo a cobrir
elei‚Šes parlamentares que se realizaram no final desse m‰s, com resultados favor•veis
aos partidos governistas.
Desde 2009, vinham ocorrendo surtos de agita‚‡o dos “camisas vermelhas”,
com dezenas de mortos, tudo em protesto pela remo‚‡o do poder, num golpe militar em
2006, do Primeiro Ministro Thaksin Shinawatra. Um dos homens mais ricos do paˆs,
Thaksin fora eleito Primeiro Ministro em 2001. Quatro anos mais tarde, seu partido
venceu com larga margem novas elei‚Šes, conquistando 377 cadeiras das 500 do
Parlamento. Por tr•s disso, estava a enorme popularidade que ele viera a construir entre
os camponeses destituˆdos das provˆncias do Norte e a massa prolet•ria da capital, em
fun‚‡o de medidas populistas. Thaksin passou a incomodar muita gente, come‚ando
inclusive a lan‚ar sombra sobre a figura tutelar do Rei, e as for‚as conservadoras do
paˆs, baseadas maci‚amente em Bangcoc e em regiŠes sulistas, mobilizaram-se contra
ele. O Parlamento eleito em 2005 nunca chegou a instalar-se. Novas elei‚Šes foram
marcadas para outubro de 2006, mas em setembro, aproveitando uma viagem de
Thaksin a Londres, sobreveio a interven‚‡o militar. A Tail€ndia, que durante quinze
anos vivera livre da tradicional sucess‡o de golpes, voltou a ver partir o governo civil.
O ano de 2007 instalou-se sob a determina‚‡o dos conservadores de
desmontarem a arquitetura polˆtica que havia sido posta de p† por Thaksin. Cuidou-se
de elaborar uma nova Constitui‚‡o, concebida de maneira a impedir novas
concentra‚Šes de poder polˆtico. A elabora‚‡o da Carta foi conflituosa, por†m, e o texto
de compromisso afinal aprovado n‡o foi capaz de solucionar os problemas centrais. Na
realidade, n‡o conseguiu sequer impedir nova vit…ria eleitoral das correntes fi†is a
Thaksin, reorganizadas num novo partido. Thaksin continuava exilado , sem condi‚Šes
de voltar ao paˆs, e os grupos que ocupavam o governo tiveram tamb†m de atender a um
recrudescimento do movimento secessionista que lavra no extremo Sul. Em 1909, o
ent‡o Reino do Si‡o absorveu um pequeno Estado malaio, de popula‚‡o mul‚umana,
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Embaixador aposentado membro fundador do GACINT, da USP.
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que nunca se integrou no contexto budista da Tail€ndia de hoje. Nas d†cadas dos 1960 e
1970, tomou corpo um movimento armado pela secess‡o do Estado de Patani, que j•
conta no seu passivo mais de 4.200 mortos. No final do s†culo passado, uma polˆtica
conciliadora do governo de Bangcoc com a elite malaia de Patani logrou acalmar muito
a situa‚‡o, mas o novo s†culo, talvez como reflexo da agita‚‡o produzida por Thaksin
entre as classes populares, assistiu a um novo surto de luta armada, conduzida por
militantes entre 17 e 25 anos, conhecidos como juwae. O Ex†rcito Real da Tail€ndia,
corpo sem tradi‚‡o de combate, n‡o se vem mostrando capaz de tomar a situa‚‡o sob
controle.
A Tail€ndia est•, assim, a consumir-se no fogo de duas fogueiras – conforme
observa Duncan McCargo, o Professor brit€nico que † talvez a maior autoridade atual
nos assuntos tailandeses. Para McCargo, os dois conflitos est‡o muito mais ligados do
que pode parecer. Eles expressam, em conjunto, a derrocada de um regime mon•rquico
ao estilo do s†culo XIX e a substitui‚‡o do domˆnio imperial europeu sobre o Sudeste
Asi•tico por colonialismos dom†sticos. Os governos que se sucedem em Bangcoc
tentam controlar os conflitos com mensagens de “reconcilia‚‡o”, uma constru‚‡o
palaciana que tem como premissa a id†ia de que todos os tailandeses partilham de um
sentimento de identidade, edificado sobre o trˆplice pilar de “Na‚‡o, Religi‡o, Rei”. A
defici‰ncia central do discurso da Reconcilia‚‡o † a cegueira diante da deteriora‚‡o do
quadro polˆtico do paˆs. Enquanto esse quadro se polariza e radicaliza, numa das
sociedades mais desiguais da Œsia Oriental, os governantes insistem em ver a popula‚‡o
nacional repartida entre pessoas boas e pessoas m•s, consoante elas amem ou n‡o a
monarquia e se regozijem na condi‚‡o de tailandeses. Em 2008, coortes de “pessoas do
bem”, come‚aram a aglomerar-se em movimentos tolerados, e mesmo discretamente
ajudados, pela c•pula conservadora, com a finalidade precˆpua de faze face aos
“camisas vermelhas”. Usam, simbolicamente, “camisas amarelas” (a cor do Budismo e
da Monarquia) e t‰m procurado emular os m†todos ruidosos dos rivais, ocupando
reparti‚Šes p•blicas e inclusive, num certo momento, os dois aeroportos de Bangcoc.
Os impasses e contradi‚Šes que caracterizam o quadro polˆtico tailand‰s podem
tamb†m ser encontrados no plano econŽmico. A regi‡o de Bangcoc, onde se concentram
mais de 50 por cento da riqueza da Tail€ndia, apresenta sem d•vida uma moderniza‚‡o
de vitrina, suficiente para impressionar entusiastas que desde os anos 1980 teorizam em
torno da irresistˆvel ascens‡o do paˆs a “Quinto Tigre” (tˆtulo de um livro de Robert
Muscat, publicado nos EUA, em 1997). A refer‰ncia, aˆ, † • eclos‡o dos “Quatro Tigres
Asi•ticos”, tema muito em voga nas d†cadas finais do s†culo XX. Mas a esperada
inclus‡o da Tail€ndia no grupo nunca se concretizou. Vale a pena examinar um pouco
as razŠes da esperan‚a e a realidade da frustra‚‡o.
Ap…s a esmagadora vit…ria dos EUA na Guerra do Pacˆfico, com o Jap‡o
erigido em aliado-chave de Washington na conten‚‡o da RPC, os americanos cuidaram
de organizar a Œsia Oriental, no que se chamou “A Esfera Comercial do Oriente”. O
Estado desenvolvimentista que comandara a primeira industrializa‚‡o do Jap‡o foi
deixado reaparecer, e o Nordeste Asi•tico (Jap‡o, Cor†ia do Sul e Taiwan) recebeu
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impulsos de v•rio tipo para sua moderniza‚‡o em termos capitalistas. Os EUA ajudaram
t†cnica e financeiramente, por exemplo, a realiza‚‡o de reformas agr•rias radicais
nesses tr‰s paˆses, da mesma forma que permitiram a edifica‚‡o de ind•strias de car•ter
militar na Cor†ia do Sul e Taiwan, com o objetivo de habilitar os regimes autorit•rios, l•
mantidos, a financiarem sua pr…pria participa‚‡o no dispositivo estrat†gico de
conten‚‡o da China. Na outra ponta da “Esfera Comercial”, vale dizer, no Sudeste
Asi•tico, terras ainda n‡o de todo liberadas do colonialismo europeu foram
encaminhadas a tornarem-se fontes de mat†rias primas para as nov†is industrias do
Nordeste e mercados para as manufaturas que iam come‚ar a ser produzidas l•.
Sempre foi possˆvel apontar semelhan‚as entre a experi‰ncia da Cor†ia do Sul e
de Taiwan e a de paˆses como a Tail€ndia, dando margem •quelas expectativas em
rela‚‡o ao “Quinto Tigre”. Mas um exame mais detido mostra diferen‚as fundamentais
no funcionamento dos regimes. O elemento central nos “Tigres” era o papel do Estado,
dos homens que o dirigem, na formula‚‡o de objetivos desenvolvimentistas,
transformacionais, que t‰m a industrializa‚‡o como meta. Conforme acentuou Chalmers
Johnson, um dos melhores estudiosos do tema: “N‡o h• Estado desenvolvimentista sem
uma elite desenvolvimentista”, vale dizer, uma hoste de dirigentes determinados a
arrancar o paˆs do atraso, ainda que com o sacrifˆcio dos seus privil†gios elitˆsticos.
Houve isso na Cor†ia do Sul; ainda n‡o aconteceu na Tail€ndia. Mesmo que institui‚Šes
tecnocr•ticas possam ter sido aˆ criadas, geridas por tecnocratas de forma‚‡o moderna e
pessoalmente competentes, t‰m-se apenas bolsŠes de compet‰ncia, num mar de
corrup‚‡o administrativa e de pr•ticas tendentes • extra‚‡o de renda num ambiente
patrimonialista. A Tail€ndia pŽde por vezes parecer estar avan‚ando na passagem da
substitui‚‡o das importa‚Šes para um desenvolvimento puxado pelas exporta‚Šes, mas a
burocracia tailandesa mostrou-se incapaz de constranger os interesses polˆticos na
ado‚‡o de medidas efetivamente desenvolvimentistas.
Voltando aos acontecimentos de 2010. Ap…s o esmagamento dos “camisas
vermelhas”, as autoridades puseram em marcha uma nova tentativa de “reconcilia‚‡o”.
V•rias comissŠes foram criadas com esse prop…sito, envolvendo
advogados,
professores de Direito, jornalistas e militantes dos direitos humanos. Negocia-se a
realiza‚‡o de novas elei‚Šes, possivelmente em abril de 2011. Indecisa segue a quest‡o
de qu‰ atitude tomar em rela‚‡o a Thaksin, ainda no exˆlio.
Campinas, setembro de 2010.
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