roDrigo santoro albert aDrià filipe jarDim herbert

Transcrição

roDrigo santoro albert aDrià filipe jarDim herbert
Revista do Itaú Personnalité n o 22 | Ano 6
rODRIGO sANTORO
abril | maio | junho
rodrigo santoro | ALBERT ADRIà | filipe jardim | herbert vianna
“A internet afasta as
relações humanas, a
coisa do olho no olho”
albert adrià
filipe jardim
herbert vianna
exemplar distribuído nas
agências personnalité
EDITORIAL
N
filipe jardim
ossa primeira edição do ano traz, entre seus personagens principais, um
nome inspirador: Rodrigo Santoro. De personalidade reclusa, o ator é avesso
a entrevistas e não costuma falar de si. Mas, com a delicadeza com que temos feito
esta revista há seis anos, trouxemos Rodrigo para dividir com você, leitor, as passagens de vida que transformaram a carreira desse ator. Ele nos concedeu uma longa
entrevista e gravou um vídeo exclusivo para nossa edição no aplicativo para iPad.
Rodrigo Santoro é a capa de uma edição especial. Comemoramos também o
fato de termos nos encontrado com o chef Albert Adrià, em Barcelona. Irmão do
festejado Ferran, com quem ele mudou a gastronomia mundial, apesar de sempre
ter estado longe dos holofotes da mídia, Albert é o nome estrangeiro no quarteto de
personagens principais. Ele fala de reconhecimento, do El Bulli (aclamado durante
anos como o melhor restaurante do mundo) e do Brasil – a cereja do bolo é o texto
assinado por Ferran sobre o irmão caçula especialista em doces.
Outro destaque é o músico Herbert Vianna. Além do perfil sobre o líder da banda que sai em turnê em abril para celebrar 30 anos de história, trazemos dois textos
reveladores de seus parceiros no Paralamas do Sucesso: Bi Ribeiro e João Barone
contam passagens e facetas de Herbert que só quem é muito íntimo sabe. Em nosso
quarto perfil, o artista plástico Filipe Jardim nos empresta seus traços e detalha como
os lugares que visitou no mundo foram determinantes na formação de seu caráter.
Prepare-se ainda para a reportagem em que questionamos atores e artistas sobre quais suas personagens preferidas criadas pelo diretor de cinema Pedro Almodóvar. De alguma forma, as musas de Almodóvar explicam questões importantes que movem a sociedade atual. Surpreendentes,
as mulheres moldadas pelo diretor viram referências não só no universo artístico,
mas, também, para nós, meros mortais. Seja lá qual for o seu filme e personagem
favoritos do cineasta espanhol, a leitura dessa enquete (bem como de toda a edição) pretende alcançar nosso objetivo desde 2007: compartilhar experiências de
pessoas que podem nos incitar a ter um cotidiano cada vez mais instigante.
ilustração feita por filipe jardim
na maison hennessy, frança
Um abraço e boa leitura,
André Sapoznik
Itaú Personnalité
Colaboradores
expediente
Colaboradores
Editor Paulo Lima Diretor Superintendente Carlos Sarli Diretor
Editorial Fernando Luna Diretora de Criação Ciça Pinheiro Diretor
de Núcleo Tato Coutinho Diretor Financeiro Renato B. Zuccari
Diretora de Publicidade e Circulação Isabel Borba Diretora de
Eventos e Projetos Especiais Proprietários Ana Paula Wehba
A jornalista Maria Lúcia Rangel começou
no jornal Última Hora, passou pela TV Globo e
pelos jornais Folha de S.Paulo e Jornal do Brasil.
Atualmente está envolvida em um projeto para
encenar a peça Orfeu, de Vinicius de Moraes, no
Morro do Cavalão, em Niterói. Nesta edição, Maria
Lúcia assina o perfil de Rodrigo Santoro, ator que
já entrevistou há exatos dez anos. “Rodrigo agora
é um astro internacional, mas continua lindo e
cada vez mais profissional.”
Nascido em Londres, Richard Jensen, 35 anos,
começou a fotografar em 2004. Formado em
filosofia e administração, foi morar em Barcelona
e lá encontrou tempo para estudar fotografia,
algo que sempre gostou. Para esta edição, fez o
retrato do chef Albert Adrià. “A personalidade
dele é muito ativa, inquieta, dinâmica e se traduz
em todo o ambiente do restaurante. Mesmo
assim ele é muito simpático, aberto e solícito.
Foi um prazer conhecê-lo.”
fotos: arquivo pessoal / josé terra nogueira / lulu melo / arquivo pessoal
Daniel Setti, 34 anos, trocou São Paulo por
Barcelona há sete anos. O jornalista começou a
vida profissional redigindo biografias de músicos e
atualmente colabora com publicações como Piauí,
Trip e Folha de S.Paulo. Entre os seus projetos
atuais, o principal é cuidar do filho, André, 3 anos.
Nesta edição, ele entrevistou o chef espanhol Albert
Adrià: “Um cara acessível e nada afetado que está
sempre a mil, mas mesmo assim consegue dar
atenção a quem quer falar com ele”.
fotos: beti niemeyer / marcia bonfadini / arquivo pessoal / arquivo pessoal
Com 16 anos de carreira, o fotógrafo carioca
Daryan Dornelles, 42 anos, atualmente toca o
projeto de um livro de retratos de grandes nomes
da MPB. Formado em cinema e em jornalismo pela
Universidade Federal Fluminense, colabora para
publicações como Bravo!, Rolling Stone, Alfa, Marie
Clarie e Status. Nesta edição, é o responsável pelos
cliques do ator Rodrigo Santoro. “O Rodrigo é um
cara altamente profissional e sabe o que quer.”
Diretor de Redação Décio Galina Editora Lia Bock Direção de Arte
Vanina Batista Editora de Arte Kiki Tohmé Produtora Executiva
Kika Pereira de Sousa Assistentes de Produção Bruna Serrano e
Juliana Carletti Departamento Comercial Diretor de Publicidade
Heitor Pontes [email protected] Supervisora de Projetos
Especiais e Planejamento Comercial Ana Carolina Costa Oliveira
Gerente de Publicidade Mercado Segmentos Claudia Atala
Assistente Comercial da Diretoria Bruna Ortega Coordenadora
Comercial e Atendimento Vanessa Soares Assistente de Arte
Marketing Publicitário Fabiana Cordeiro Gerentes de Contas Paulo
Paiva Roberta Rodrigues Executivos de Contas Marcelo Milani
Thais Meneghello Vivian Viviani Gerente de Contas On-line Marco
Guidi Executiva de Contas On-line Fernanda Siqueira Assistente
Comercial On-line Sharon Ajzental Para anunciar publicidade@
trip.com.br Representantes Internacionais Sales Multimedia, Inc.
(USA) [email protected] Argentina Roberto Rajmilevich
[email protected]; BA Romário Júnior DF Alaor Machado MG Rodrigo
Freitas PE Wladmir Andrade PR Raphael Muller RJ Juliana Rocha
RJ (Trip e Tpm) X² Representação RS/SC Ado Henrichs SE Pedro
Amarante SP Interior Daniel Paladino Pesquisa de Imagens
Coordenador Aldrin Ferraz Pesquisador de Imagem Valmir Simões
Assistente de Pesquisa de Imagens Marina Leonaldo Bibliotecário
Daniel de Andrade Estagiária Nataly Rodrigues e Camila Gomes
Produção Gráfica Walmir S. Graciano Produtor Gráfico Cleber
Trida Assistente de Tráfego Comercial Aline Trida Tratamento de
Imagens Roberto Longatto e Roberto Oliveira Revisão Ecila Cianni
(coordenação), Adriana Rinaldi, Janaína Mello e Marcos Visnadi
Projetos Especiais e Eventos Diretora Ana Paula Wehba Assistentes
Pedro Toledo e Mariana Beulke Editora de Arte Ana Luiza Gomes
Trade e Circulação Diretora Daniela Basile Analista de Trade Renata
Vilar Assistente de Trade Fábio Pinheiro Gerente de Circulação
Adriano Birello Assistente de Circulação Vanessa Marchetti Projetos
Digitais Diretor de Mídias Eletônicas de Custom Publishing Beto
Macedo Editora de Arte Débora Andreucci Gerente de Negócios
Izabella Zuanazzi Núcleo de Vídeo Coordenação Ana Rosa
Sardenberg Videomaker Marco Paoliello e Lucas Kiler Assistente de
Produção e Finalização Viviane Galhanone Editor de Vídeo Pitzan
Oliveira Produção Bruno Oliveira TV Trip Direção Joana Cooper
Diretora Assistente Anice Aun Editora Daniela Guimarães Produção
Ricardo Rezende Relações Públicas Taís Neri Assessora Executiva
Samara Ramos Assistentes de RP Rafael dos Santos e Monalisa de
Oliveira Estagiária Verônica Centeno Colaboraram nesta edição
Edmundo Clairefont (edição), Adriana Del Ré, Bell Kranz, Daniel
Setti, Fernanda D´Angelo, Josélia Aguiar, Luiz Henrique Brandão,
Millos Kaiser, Ricardo Calil, Roberto Kaz, Rosane Queiroz, Thiago
Iacocca (texto) Daryan Dornelles, Kiko Ferrite, Nelson Mello, Renata
Ursaia, Richard Jensen, Romulo Fialdini, Victor Affaro (fotos)
Filipe Jardim, Mauricio Pierro, Miguel Montaner (ilustração) Alê
Duprat (styling) Ana Hora, Renato Telles (Produção) Comitê Itaú
responsável por esta edição Fernando Chacon, André Sapoznik,
Cristiane Portella, Danielle Sardenberg, Ligia Benavente e Mariana
Couto de Arruda Colaboradores Marcello Barcelos, Maria Pestana e
Mariana Salles – DPZ Propaganda
Capa Rodrigo Santoro fotografado por Daryan Dornelles
Revista Personnalité é uma publicação trimestral da Trip
Editora e Propaganda em parceria com o Itaú Personnalité.
Endereço para Correspondência: rua Cônego Eugênio Leite,
767, 05414-012, São Paulo, SP.
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A Trip Editora, cons­ci­en­te das questões am­bi­en­tais e sociais,
utiliza papéis Suzano com certificado FSC
(Forest Stewardship Council) para
impressão deste material.
A Certificação FSC garante que uma
matéria-prima florestal provenha de
um manejo considerado social,
ambiental e economicamente
adequado. Impresso na Gráfica
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Custódia – FSC
A jornalista paulistana Adriana Del Ré
trabalhou no Estadão em 1998 e mais tarde
integrou a equipe do “Caderno 2”, onde foi
repórter por seis anos. Em 2007, em Londres,
colaborou com publicações brasileiras e na
volta foi editora de cultura do extinto Jornal da
Tarde. Uma de suas metas é manter o espírito
curioso e atento de jornalista e a paixão por
boas histórias. Nesta edição, perfilou Herbert
Vianna. “Não por acaso, é um cara que admiro
e respeito desde minha adolescência.”
A jornalista baiana Josélia Aguiar migrou
para São Paulo em 1997 para trabalhar na Folha
de S.Paulo, onde foi repórter, redatora, colunista
e correspondente em Londres. Agora, prepara
seu primeiro livro, a biografia de Jorge Amado,
que sairá em breve pela editora Três Estrelas.
Nesta edição, escreveu justamente sobre alguns
biógrafos e a relação com seus biografados. “Foi
com compadecida cumplicidade que escutei os
relatos de biógrafos que tanto admiro. Escutar os
veteranos é um alento para uma novata como eu.”
Ilustrador há 14 anos, Maurício Pierro,
que começou como designer em agências, já
colaborou com diversos títulos entre revistas
e livros. Hoje, aos 37 anos, planeja fazer uma
HQ, morar em um sítio nas montanhas de
Joanópolis e dar aulas. Nesta edição, ilustrou
o mapa dos roteiros do motoqueiro Rodrigo
Fiúza. “Esse mapa tinha alguns desafios, como
resolver uma paleta de cores bem limitada e
encontrar um jeito de mostrar a divisão política
dos países sem poluir demais.”
Formada em arquitetura e urbanismo pela USP
e fotógrafa há mais de 15 anos, a paulistana
Renata Ursaia recentemente fez a direção de
fotografia do documentário Muito além do peso,
sobre obesidade infantil. Nesta edição, fotografou
o Instituto Baccarelli. “Foi emocionante. Todos
muito envolvidos com a música. Quando você
vê um trabalho como esse, fica muito evidente
o poder de transformação da cultura numa
sociedade como a nossa. É animador!”
sumário
10 Cá entre Nós
Música, gastronomia, filmes e futebol –
dicas de quem sabe viver bem
15 Prestígio
BABY DE NOVO
Depois de duas décadas, a cantora retoma os shows, volta
a cantar seus sucessos e revê a imagem do momento em que,
ao lado dos filhos, iniciou a grande fase de sua carreira
16 Doce bárbaro
Para os críticos, o catalão Albert Adrià é o gênio das sobremesas.
Ele reinventou a gastronomia ao lado do irmão, Ferran: “Se quatro
pessoas me dizem que eu errei em um prato, eu mudo o prato”
24 As mulheres de Almodóvar
16
62
80
Impossível pensar no cineasta espanhol e não lembrar da força
das personagens. Nanda Costa, Elke Maravilha, Laerte, Luana
Piovani e Beto Brant revelam suas favoritas
30 Herança compartilhada
Irmãos, eles já dividiram o lar. Adultos, viraram parceiros de trabalho:
os produtores de cinema Caio e Fabiano Gullane, os arquitetos Pedro,
38 camaleão
Rodrigo Santoro, 37 anos, 20 de carreira, 29 filmes e 7 novelas. Na
vida real, tem destino: “Deparei com uma casinha em Capri, no topo
de um desfiladeiro. Olhei e pensei: ‘É aqui que quero terminar...’”
48 a vida dos outros
Ao se aprofundar nos feitos dos biografados, escritores alteram suas
rotinas. Josélia Aguiar conta as histórias por trás das biografias de
Garrincha, Dorival Caymmi, Ronaldo Fenômeno e Noel Rosa
54 “que raios estou fazendo aqui?!”
Escondido dos pais, aos 17 anos, Rodrigo Fiúza pedalou de Belo
Horizonte a São Paulo. “Percebi que tudo era possível.” Hoje,
aos 36, cruzou mais de 60 países acelerando uma motocicleta
38
richard jensen / daryan dornelles / Clara Oh / Cecilia Acioli/Folhapress
João e Lua Nitsche e os músicos Supla e João Suplicy
62 A VOLTA AO MUNDO EM 1 filipe jardim
80 “Me sinto completo no palco”
Rio de Janeiro, Lisboa, Paris, Japão e São Paulo explicam os
Ao lado do baixista Bi Ribeiro e do baterista João Barone, Herbert
traços de Filipe Jardim, o ilustrador brasileiro mais importante
Vianna celebra 30 anos de Os Paralamas do Sucesso em uma turnê
do mundo da moda
nacional que começa este mês em São Paulo
72 “eu sou o copacabana palace”
86 Instrumento de transformação
Copacabana Palace faz aniversário em agosto e recorda histórias do
Alunos e funcionários relembram como o mineiro Sílvio Baccarelli
Rio de Janeiro de uma época em que entrar no mar dava cadeia
criou das cinzas de um incêndio a Orquestra Sinfônica de Heliópolis,
que dá emprego e formação a 1.200 jovens
90 Primeira Pessoa
O ELO E O TODO
Reconhecido por seus feitos marítimos solitários, Amyr Klink
escolheu uma corrente para representar a si mesmo
cá entre nós
cá entre nós
viagem, gastronomia e cultura – convidados especiais abrem suas preferências
_
Alex Flemming, multiartista
o filme da minha vida
_
arthur nestrovski, músico
trilha sonora
Paulistano radicado em Berlim, o fotógrafo, escultor e poeta aponta O pagador
de promessas como uma de suas produções cinematográficas favoritas
O diretor artístico da Osesp destaca os principais concertos
da Série Osesp Personnalité, que começa em abril
por Luiz Henrique Brandão
por rosane queiroz
“É crueldade pedir para o
diretor artístico escolher
tão poucos concertos”,
confessa Arthur Nestrovski
sobre a missão proposta pela
Revista Personnalité. Afinal,
a série deste ano tem 33
apresentações, sendo 16 no
ambiente principal da Sala
São Paulo – as demais estão
divididas entre concertos
de câmara, recitais e os
debates Música na Cabeça.
As indicações de Nestrovski
incluem Chopin, Stravinsky e
Wagner. Escolha suas favoritas
e bom espetáculo!
Marco do cinema brasileiro
Único filme nacional a conquistar a Palma
de Ouro em Cannes, foi o primeiro longa
dirigido pelo então ator e galã Anselmo
Duarte (1920-2009). O enredo da obra de
1962 conta a história de Zé do Burro, um
homem do sertão baiano que faz uma promessa em um terreiro de candomblé para
tentar salvar seu burro de estimação, atingido por um raio. Com a recuperação do
animal, Zé precisará carregar uma pesada
cruz da vila onde mora até Salvador, a 40
quilômetros dali. No meio do caminho, o
protagonista tem sua fé posta em prova.
2. Sinfonias nº 1 e nº 100,
Joseph HaYdn
As sinfonias do compositor austríaco Joseph Haydn
foram escritas com 35 anos de diferença. Serão
regidas por Rafael Fruhbeck de Burgos, um dos
maiores em atividade nas últimas cinco décadas.
A apresentação inclui ainda duas belas obras
de outros compositores: a irresistível La Mer,
do francês Claude Debussy, e o sedutor El Sombrero
de Tres Picos: Suite nº 2, do espanhol Manuell de Falla.
Quando: 2 de agosto
3. Concerto nº 2 para Piano, Chopin
O mais consagrado solista brasileiro, o pianista
Nelson Freire, apresenta este clássico de Chopin.
A regente titular da Osesp, Marin Alsop, estará
no comando deste concerto, que será
apresentado pela orquestra em sua turnê europeia
(início dia 7 de outubro, em Paris). O repertório
conta ainda com a estreia mundial de uma peça
encomendada à compositora carioca radicada
nos Estados Unidos, Clarice Assad, e a Sinfonia
nº 1, de Gustav Mahler.
Quando: 3 de outubro
10
4. Sinfonia nº 2 – Réquiem para um Poeta
Sob o comando de Celso Antunes, regente
associado da Osesp, um programa dedicado à
música da compositora visitante Lera Auerbach
inclui esta sinfonia para soprano (Zoryana
Kushpler), violoncelo (Narek Hakhnazaryan),
coro e orquestra.
Quando: 16 de novembro
5. Sagração da Primavera, Stravinsky
Para fechar a temporada esta instigante
composição de Stravinsky. A Sagração da primavera
(Le Sacre du Printemps) foi apresentada no
Théâtre des Champs-Elysées em maio de 1913.
Sob a regência de Marin Alsop, inclui também a
estreia mundial de uma obra do brasileiro Eduardo
Guimarães Álvares e peças de Debussy e Varèse.
Quando: 12 de dezembro
Leticia Moreira/Folhapress / Photos12.com/OtherImages / divulgação
1. Sinfonia para Violoncelo,
Benjamin Britten
Britten é o maior compositor inglês do século
20 e, neste ano, completaria 100 anos. Sua Sinfonia
para violoncelo será apresentada pelo jovem
alemão Daniel Müller-Schott, um dos mais
proeminentes solistas de sua geração. Este será
o primeiro programa da segunda temporada do
maestro Yan Pascal Tortelier, regente convidado
de honra da Osesp.
Quando: 20 de abril
divulgação/Alessandra Fratus / divulgação
Saiba mais sobre a programação:
itaupersonnalite.com.br/experiencia
duplo pecado
“A sequência final é inesquecível”, diz Flemming, artista que despontou nos anos 70 e
atua na fotografia, na poesia e no cinema.
“O Zé, vivido pelo ator Leonardo Villar, vem
chegando do sertão a Salvador com aquela
cruz imensa nas costas e depois de passar
por diversas provações. Ele quer entregá-la
à igreja, como havia prometido. Mas o pároco o impede de entrar. O padre considera
que Zé cometeu um duplo pecado: veio de
um terreiro de candomblé e usou o nome
de um santo para salvar seu burro – um
pedido que julga indigno.”
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A cara do Brasil
Alex vê na obra uma metáfora da briga entre
o poder e o indivíduo. As dificuldades desse
homem simples em conseguir entregar sua
cruz à igreja falam muito da cultura brasileira,
assim como o sensacionalismo da imprensa
personificada pelo repórter interpretado por
Othon Bastos. Ele não poupa esforços para
celebrizar Zé colocando palavras em sua
boca. Tudo isso, para Alex, é muito simbólico.
“Ele acaba conseguindo o que queria, mas o
preço que paga é altíssimo.”
cá entre nós
cá entre nós
_Passe a passe
JUCA KFOURI, jornalista
_
luiz melodia, compositor e cantor
sonhos
Para o comentarista esportivo, o gol de Carlos Alberto em 1970 trouxe mais
do que um título, mas o direito de torcer pelo Brasil em plena ditadura militar
O autor de canções marcantes, como “Negro gato”, conta que conhecer
Angola foi como voltar às origens. Seu sonho? Algumas noites no Marrocos
por Edmundo Clairefont ilustração miguel montaner
por rosane queiroz
Marrocos
próxima parada
“É um país altamente sedutor. Soube que
Jimmy Hendrix passava férias lá e fiquei com
ainda mais vontade de conhecer. O Marrocos
tem um lado musical muito forte. E tem o
cenário, a cultura, a culinária. Gosto demais de
comida picante. Quero conhecer esse pedaço
da África. E não precisa ser por mil e uma
noites. Ficaria feliz com algumas apenas.”
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divulgação / ilustração miguel montaner
divulgação / Zute Lightfoot/Alamy / istockphotos
Angola, 2005
jornada inesquecível
“Fiquei surpreso e impressionado com Angola. Estive lá com
a Zezé Motta (cantora e atriz), para uma série de shows. Tive
uma sensação forte e difícil de explicar. Era algo como voltar às
origens. Só sei que eu e Jane, minha mulher, chorávamos. Zezé
me disse depois que sentiu a mesma coisa. Fiquei emocionado
com aquela negritude, vi ali a origem da beleza negra, a alegria
das pessoas mesmo em condições adversas. Passamos um
tempo com a filha de Djavan, que tinha uma casa lá. Lembro que
nos hospedamos em um resort de luxo e que houve um almoço
promovido pelo governo, em um clube bacana, da alta sociedade.
Fiquei boquiaberto com a fartura, enquanto lá fora a situação
era precária. Fiz questão de circular pelas ruas, pelas feiras de
artesanato. Comprei vários quadros de artistas angolanos, estão
na parede de minha casa até hoje. Não foi uma simples viagem,
foi um reencontro comigo mesmo, com minhas origens.”
“O gol mais marcante da seleção em minha vida foi o do 4 a 1 contra a
Itália, na decisão da Copa do Mundo de 1970, no México. Desde o momento
em que Clodoaldo dribla os italianos, ainda no campo brasileiro, até a bola
chegar aos pés de Pelé e, dele, para Carlos Alberto Torres fulminar e fechar
a campanha do tricampeonato com chave de ouro.
Vivia um momento particularmente importante. Era o primeiro
semestre de minha vida profissional e eu atuava clandestinamente no
combate à ditadura, que se instalara seis anos antes no país. Vivia-se o
tempo do ‘Brasil, ame-o ou deixe-o’ e a esquerda brasileira pregava que
se torcesse contra a seleção, um erro de análise grave, porque permitia
que a ditadura nos roubasse até o que tínhamos de mais íntimo. E, além
do mais, uma inutilidade, porque ninguém aguentou torcer contra.
Eu, além de estar começando a trabalhar na editora Abril, para a
revista Placar, era aluno da faculdade de ciências sociais da USP e visto
como alienado por meus colegas, por torcer pelo Brasil. Pior ainda
aconteceu no ano seguinte, quando, no basquete masculino, torci pelo
time nacional contra o cubano...”
FICHA TéCNICA
BRASIL 4 X 1 ITÁLIA
Domingo, 21/6/1970, Estádio Azteca
Brasil Félix; Carlos Alberto, Brito, Piazza,
Everaldo; Clodoaldo, Rivellino, Gérson;
Jairzinho, Tostão, Pelé
Itália Albertosi; Burgnich, Cera, Rosato,
Facchetti; Bertini (Juliano), Domenghini,
De Sisti; Mazzola, Boninsegna (Rivera), Riva
Gols Pelé aos 18 e Boninsegna aos 37
minutos do 1º tempo; Gérson aos 21,
Jairzinho aos 26 e Carlos Alberto Torres
aos 41 do 2º tempo
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Prestígio | BABY do brasil
cá entre nós
Por Rosane Queiroz
_
LOLA VINAGRE, chef
Água na Boca
_
BABY DE NOVO
Responsável pela criação do menu do restaurante Trindade, em Alphaville,
a chef portuguesa Lola Vinagre ensina uma receita especial de bacalhau
Depois de duas décadas, a cantora retoma os shows, volta a cantar seus sucessos e revê
a imagem do momento em que, ao lado dos filhos, iniciou a grande fase de sua carreira
por Fernanda D’Angelo
5. COMO SURGEM SUAS INSPIRAÇÕES?
No Trindade Alphaville há muitos sabores
indispensáveis que resultam no toque final do prato:
um bom azeite, a batata, o coentro, o vinho...
A minha inspiração começa exatamente quando
me aproximo do público brasileiro e passo a
entender suas exigências. Preocupo-me bastante
com a qualidade da matéria-prima e em respeitar
o sabor dos ingredientes. Gosto de cozinhar com
simplicidade e amor.
2. NÃO PODE FALTAR EM SUA CULINÁRIA.
O coentro. É um tempero característico do Alentejo, o
que realça pratos típicos de Portugal, como as açordas
(espécie de sopa à base de pão), o molho à bulhão
pato (feito com moluscos) e as saladas.
3. NO TRINDADE, O TRIVIAL DA COZINHA É...
Satisfação.
6. O QUE causa surpresa a você diante
da CULINÁRIA BRASILEIRA?
Hum... Eu adoro a culinária brasileira. É variada,
exótica, divertida. O que me chama mais a
atenção são as frutas, os peixes de rio, as pimentas
e a mandioquinha.
Ingredientes
4 postas de lombo de bacalhau
no ponto ideal de sal
2 cebolas cortadas à Juliana
(tiras finas)
500 ml de azeite extravirgem
500 g de queijo da Serra da Estrela
2 dentes de alho
200 g de vagem
200 g de ervilhas-tortas
5 batatas cortadas em rodelas
grossas previamente assadas no
azeite e no sal
2 tomates sem pele e sem sementes
cortados em 4 gomos
Modo de preparo
Grelhar os lombos de bacalhau e
reservar. Ferver os legumes al dente.
Levar a cebola ao fogo com o
azeite até dourar. Em uma forma,
colocar as batatas previamente
assadas em azeite e sal. No mesmo
recipiente, colocar os lombos
de bacalhau e o queijo. Regar o
bacalhau com a cebola e o azeite
e deixar cozinhar até derreter o
queijo. Saltear a vagem, as
ervilhas-tortas e o tomate.
Depois, está pronto para servir!
Experimente
Trindade Alphaville
www.trindaderestaurante.com.br
Tel.: (11) 4209-1720
O Trindade alphaville faz
parte do Menu Personnalité.
Conheça os pratos em:
itaupersonnalite.com.br/experiência
4. UM PRATO PORTUGUÊS.
O bacalhau. A receita, originalmente portuguesa, é
preparada de várias maneiras, para agradar a todo
tipo de paladar.
14
arquivo pessoal
1. UM SABOR INDISPENSÁVEL.
BACALHAU
AO QUEIJO DA SERRA
divulgação / nelson mello
Nascida em Lisboa e criada no Alentejo – região famosa por
seus vinhos e boa gastronomia – Lola Vinagre, 34 anos, é a
responsável pelo cardápio do Trindade em Alphaville (São Paulo).
Foi ela quem inseriu a combinação de paladares portugueses.
Filha da chef Ilda Vinagre, Lola sempre preferiu as panelas aos
brinquedos. Aos 20 anos, a paixão pela culinária a afastou dos
estudos de artes cênicas e a levou a cozinhas na França, Itália,
Inglaterra e Tailândia. Residente na Espanha, Lola desembarca
de três em três meses no Brasil para elaborar saborosos pratos,
como a receita que divide com a Revista Personnalité.
Baby do Brasil tinha 26 anos quando posou para a foto acima, vestindo um bustiê
e cercada por seus quatro filhos (mais
tarde ela teria outros dois). O retrato
marca um daqueles momentos especiais,
quando tudo precisa mudar para que todo
o resto da vida dê certo. Era 1978 e a cantora carioca, ainda conhecida como Baby
Consuelo, desligara-se havia pouco tempo dos Novos Baianos, a banda de rock
com quem gravou discos como Acabou
chorare (1972) e Novos baianos F.C. (1973).
Baby vivia um casamento apaixonado
com o guitarrista Pepeu Gomes. “Essa
foto foi tirada no Rio de Janeiro, no apartamento do Leblon, logo que Pepeu e eu
nos mudamos com as crianças”, recorda
da esquerda para a direita: Nana Shara,
pedro no colo de baby, Zabelê e sarah Sheeva
Baby. “Nós dois começávamos a fazer
bastante sucesso individualmente, participando cada um do disco do outro, como
compositores, na arte gráfica. Enfim, cuidando um do outro.”
Seu primeiro álbum solo, O que vier
eu traço (1978), foi o resultado prático
dessa guinada. “Era um momento de
muita fé e confiança. Tinha a convicção
de que o futuro seria excelente”, conta. Ela estava certa. Aquele álbum foi o
precursor de uma carreira pontuada por
hits como “Telúrica”, “Menino do Rio”
e “Sem pecado e sem juízo”. “Eu tinha
muita alegria de viver”, diz. “Sabia que
tinha filhos maravilhosos e que viveria
festejando todo o meu tempo na Terra.”
Trinta e quatro anos depois, Baby,
agora de cabelos roxos aos 60 anos, vive
um novo momento de mudanças. No ano
passado, a cantora decidiu partir para
um retorno às origens. Voltou aos palcos
com o show Baby sucessos, produzido
por seu filho Pedro Baby (na foto, no colo
da mãe) e que reúne 18 clássicos que andavam escanteados desde os anos 1990,
quando Baby se tornou pastora.
Ao rever Pedro bebê, Baby repensa
a vida e sua união nos palcos com o filho. “Como uma mãe artista, cantora e
popstora, fico honrada. A música é um
dom que Deus derramou sobre eles”, diz.
“Temos essa comunhão grande porque
somos uma família musical.”
Por Daniel Setti, de Barcelona Fotos Richard Jensen
Doce
bárbaro
albert adrià em seu restaurante tickets,
onde funciona também o 41 grados
16
Para os críticos, o catalão
Albert Adrià é o gênio das
sobremesas. Ele reinventou a
gastronomia ao lado de seu irmão
mais velho, Ferran. Ao vivo, é
tão simples que nem parece um
mestre: “Se quatro pessoas me
dizem que eu errei em um
prato, eu mudo o prato”
“Q
ue carne é esta? Está duríssima!”
O autor do veredito improvisado no balcão é
um homem de estatura média, olhos esverdeados, cabelo
crespo curto e orelhas levemente de abano que, sem
levantar muito a voz, toma incessantes providências
em seu local de trabalho. Da reprovação ao ponto do
pincho (espeto de carne espanhol) ele passa à barganha
com fornecedores, não sem antes aceitar presentes e
cumprimentar pessoas que julga já ter visto antes. Tudo
isso enquanto atende a repórteres e fotógrafos.
O agitado anfitrião, que dentro de meia hora estará a
todo vapor circulando entre a cozinha e as mesas de seu
concorridíssimo Tickets Bar, em Barcelona, anônimo em
meio a uma eclética clientela multinacional, se chama
Albert Adrià. É um desses sujeitos a quem se pode pregar
o rótulo de gênio (a revista britânica Restaurant pregou:
“Albert é o gênio das sobremesas [pâtisserie]”).
Nascido na cidade vizinha Hospitalet de Llobregat, é
cozinheiro desde 1985, quando largou os estudos, aos 15
anos de idade. O precoce primeiro emprego era na verdade
uma vaga no El Bulli. O restaurante, cuja cozinha seu
único irmão, Ferran, sete anos mais velho, assumira um
acima, à esquerda, Albert adrià na época de experimentações do el
bulli. o lema do restaurante sempre foi: investigar, testar e provar
ano antes, exibia à época duas de três estrelas do Guia
Michelin, a lista de referência mais importante do setor.
Juntos, mas tendo Ferran como o “capitão”, os irmãos
Adrià promoveram uma revolução sem precedentes na
culinária, colocando no cardápio de críticos e gourmets
do mundo inteiro uma tal de cozinha molecular (ou
tecnoemocional). Ferran detesta o rótulo. Prefere algo
que batizou de Nueva Nouvelle Cuisine. Na prática, a
gastronomia dos Adrià partia de uma premissa parecida com
a da ciência: investigar, testar, provar. E aí, valia quase tudo,
incluindo truques de cientista maluco, em nome de uma
nova experiência de sabores. E bota parafernália tecnológica
e conhecimentos de química e física nisso. Algumas
receitas famosas incluíam um ravióli líquido, uma azeitona
gelatinosa, espumas salgadas, um crème brûlée de lavanda
e um “ar de parmesão” (o prato, servido dentro de um pote
de isopor, quando aberto, recendia suavemente a queijo. E,
acredite, isso era bom).
Ferran, o cérebro, a voz e a imagem dessa new age do
garfo, se transformaria na maior lenda viva da cozinha. Sob
sua tutela, o El Bulli receberia a terceira estrela Michellin
em 1997, desatando uma explosão midiática e rendendo ao
18
albert adrià
fotos arquivo pessoal
Personnalité
estabelecimento, escondido na cidade litorânea Roses (a 157
quilômetros de Barcelona), o inédito pentacampeonato na
lista de melhores do mundo da revista britânica Restaurant
(2002 e 2006 a 2009) e o status de meca definitiva do paladar.
Mas Albert, ainda que na dele, sempre esteve lá. Nos
primeiros três anos, passou por todas as áreas da cozinha
bulliniana – pela ordem: entradas frias, entradas quentes,
peixes e carnes – antes de se especializar nas sobremesas.
Estudou com grandes mestres doceiros, como os pasteleros da
Escribà, de Barcelona, aventurou-se com sucesso no mercado
editorial – começando pelo livro Los Postres de El Bulli (1998)
– e continuou firme ao lado do irmão.
Administraram em dupla a criação do elBullitaller, espécie
de laboratório instalado em 2000 em casarão do século 18
no centro de Barcelona. Ali, seus comandados dedicam-se
ao ofício-xodó do El Bulli, que a estrutura do recinto já não
comportava após a terceira estrela, tamanha a badalação:
experimentar freneticamente ingredientes, técnicas e
abordagens à procura do novo prato perfeito e surpreendente.
É com essa pegada de centro de pesquisas, aliás, que o mítico
reduto dos sabores reinventados, fechado em 30 de julho de
2011, retornará no ano que vem como elBulli Foundation.
no alto, à esquerda, abraçado pelo irmão, ferran, na cozinha
do el bulli, nos anos 1980; à direita, vestido com o uniforme do
barcelona, do qual é torcedor fanático
“não tenho
problema em
ser irmão do
ferran. o irmão
do messi não se
incomoda em
ser irmão do
messi. sei disso.
eu o conheço”
19
Personnalité
albert adrià
Ainda assim, Albert é um empresário-chef peculiar. Não
veste avental. Não atende um telefonema aos domingos e
segundas-feiras – “nem que tenha 27 restaurantes”. Ele dedica
as folgas à mulher e ao filho de 6 anos. Em dias de labuta,
acorda cedo, vai ao Tickets e ao 41 Grados, onde atendeu,
num final de tarde, à reportagem da Revista Personnalité.
De lá, ele só sairia no fim do expediente, bem tarde da noite.
Diariamente, frequenta a “maior geladeira da Espanha” –
que é como define o Mercado de la Boquería, nas famosas
Ramblas, um coloridíssimo e lotado conjunto de barraquinhas
de comidas, frutas, carnes, legumes, verduras e ingredientes.
Quando viaja ao exterior, a primeira coisa que quer comer na
volta à Catalunha é um simples jamón. É um homem simples,
relaxado. Diz-se totalmente tranquilo por ser o irmão menos
conhecido de Ferran Adrià. Albert está tranquilo, garante que
em sua profissão todos sabem quem ele é.
_
Palavra de irmão
Por Ferran Adrià
“Se no El Bulli eu era o yin e o Albert era o yang, agora, no Tickets e no 41 Grados, ele é o yin, e eu sou o
yang. O colaborador sou eu. Esses projetos são muito
pessoais do Albert e eu estou para ajudá-lo em tudo
que possa. Para mim é uma grande sorte que um dos
cozinheiros mais completos e criativos do mundo seja,
ao mesmo tempo, meu único irmão. Se no El Bulli criamos juntos uma linguagem nova de cozinha, o Albert
está trazendo uma nova visão prêt-à-porter ao mundo
da restauração. Em outras palavras, ele está aproveitando toda a vanguarda que se criou no El Bulli para
fazê-la chegar peneirada ao grande público.”
Você gostava de trabalhar no El Bulli no começo?
Eu não achava ruim. Mas o amor pela cozinha, pela magia que
torna essa profissão diferente a cada dia, por ser algo muito
criativo, veio mais tarde. A vida no El Bulli era muito bonita,
muito naïve, nós parecíamos uma comunidade hippie. Só
tínhamos o Bulli para sobreviver. Nada a ver com os últimos
anos. Naquela época já era um dos melhores restaurantes
da Espanha, mas estava muito longe de tudo: quem iria, em
uma terça-feira, jantar a 180 quilômetros de Barcelona, onde
não existe nada? No inverno não fazíamos coisa alguma, e
o meu irmão dizia: “Cruzamos os braços? Vamos cozinhar,
experimentar”. Abríamos na terça e até sexta não ia ninguém.
Então, ficávamos testando coisas e aprendendo.
Você continua fazendo esse tipo de teste?
Mudou. Agora eu gosto de ir aos lugares não para aprender
a preparar as coisas, mas pela psicologia de grupo, o trato
humano. Isso me interessa muito.
_
“O Brasil é a viagem
que me falta”
“Tenho vários amigos brasileiros”, diz Albert Adrià.
“Muitos trabalharam no Bulli e alguns, no Tickets.” Ele
aponta para o balcão-cozinha em frente ao televisor
do Tickets, que só exibe jogos do Barça ou clipes do
El Bulli. E começa a rir: “Colocávamos eles aqui, para
poderem assistir ao futebol”.
duas vezes no Rio de Janeiro – uma de férias. Ainda
assim, acha que, profissionalmente, o Brasil “é a viagem que me falta”. Cita os talentos do recifense Bruno
Didier Pérez – que ralou no El Bulli e no Tickets –, a
vitoriense Bárbara Verzola, também ex-bulliniana, os
paulistanos Atala (“meu companheiro de quarto nos
eventos, sempre me traz frutinhas da Amazônia”)
e Bel Coelho (“muito bonita”).
É ela, Bel, quem explica a importância do colega. “Não
existe Ferran sem Albert, nem Albert sem Ferran; os
dois trabalharam juntos todo esse tempo”, diz. “Em
uma conversa dá para sentir que seu cérebro trabalha
a mil por hora e as ideias são abundantes. Ele é um
típico catalão vanguardista, pensa em cozinha, mas
pensa sempre além. É um visionário.”
“é uma sorte
que um dos
cozinheiros
mais criativos
do mundo seja
meu irmão”, diz
ferran adrià
20
divulgação
Albert é um entusiasta dos chefs brasileiros. Esteve
Temporariamente cansado das invenções que
consagraram mundialmente o sobrenome, Albert mudou
um pouco de rumos em 2006. Aventurou-se no bar de tapas
Inopia, no qual abria mão do nitrogênio líquido dos pratos do
El Bulli em favor da cozinha tradicional ibérica. A empreitada,
segundo Albert, “morreu de sucesso” após quatro anos
superlotados – e especialmente estressantes.
Tramou com Ferran logo depois, em fevereiro de 2011, a
abertura do Tickets, um bar de tapas de espírito informal e
decoração chamativa na avenida Paral-lel (entre os bairros
Poble Sec e Sant Antoni, região central de Barcelona), e o
restaurante anexo 41 Grados, um pequeno e estiloso rincón
para apenas 16 comensais que lembra os speakeasy da Lei
Seca Americana (a trilha sonora passa por standards do jazz).
Graças também a um sistema de reservas automático por
internet – “muito mais democrático”, diz – ambos os negócios
estão sempre cheios. O bar deve ganhar outra sede, do outro
lado da rua, ainda este ano. A semente Adrià se espalhará mais
pela vizinhança com a inauguração, em março, do japonês
com toques peruanos Patka, enquanto em junho ou julho o
bairro adjacente, Raval, onde Albert mora, abrigará outro de
seus projetos, o mexicano Yaguarcan.
ao lado, os irmãos adrià, Albert e ferran; no alto, o preparo de
um dos pratos servidos no menu do tickets, o bar que traz várias
das invenções célebres do el bulli
Como assim?
Sabe como no futebol, em que você pode driblar sem tocar na
bola? Pois eu gosto de fazer trabalhar, sem que eu trabalhe.
O exemplo são eles [aponta para os empregados em ação
na cozinha]. Quando começamos, havia apenas um grupo
de garotos que sabia pouco de culinária. Agora, eles sabem
um pouco mais. Como equipe, são uma tropa de elite. Isso
é importante para eles e para mim. Eu os melhoro, eles me
melhoram. Você deve transmitir alguns valores: humildade,
trabalho, esforço, disciplina, profissionalismo, cultura.
21
Personnalité
albert adrià
_
“Meus ibéricos
favoritos”
pinturas, para então passar ao cubismo, ao
expressionismo. Não dissemos um belo dia:
“Agora vamos mudar a cozinha!”.
Como será o futuro da gastronomia?
Não se pode revolucionar o mundo a
cada minuto. Precisamos entender que
a tecnologia mais inovadora é o cérebro.
Vão surgir novas técnicas, máquinas,
produtos. É como um chicote estendido
ao máximo e que agora retrocede por
havermos ido muito rápido. Nossa
geração teve três fatores importantes para
descobrir: o mundo se tornando pequeno,
a aparição de novas tecnologias e
maquinaria e o diálogo com a física e a química.
E agora? Usaremos a cabeça.
Por que fechar El Bulli?
Por diferentes fatores. Havíamos dado o melhor de nossas vidas
ao El Bulli, e era algo que nos exigia muito. Como um monstro
que não parava de comer. Eu dizia que havia que matar a besta,
antes que ela acabasse conosco. A paixão era o que nos movia,
e sem paixão... Além do mais, todos os empregados se casavam
e tinham filhos, e com o El Bulli não havia família fora: você ia
na terça e voltava na segunda. Dezesseis horas por dia. Eu vivo
mais tranquilo desde então. Devo tudo ao Bulli, não renego
nada. Não é melhor reinventá-lo e mantê-lo vivo?
Você diz que no Tickets oferece diversão às pessoas, e no 41
Grados, emoção. Prefere qual tipo de reação?
Eu tento ser libra, racionalizar tudo o que faço. Uns dizem:
“Eu cozinho como sou e não mudo”. Eu não, se quatro pessoas
me dizem que eu errei em um prato, eu mudo. Minha geração
acima, reunião da equipe de cozinheiros e atendentes do tickets,
um grupo que albert gosta de chamar de “tropa de elite”
22
atualmente, se come mais e melhor do que nunca.
Abaixo, indico meus (na verdade, de outros colegas!)
bares de tapas e restaurantes ibéricos favoritos, todos
nos bairros centrais de Barna e com um enfoque na
culinária ibérica tradicional.”
BARES DE TAPAS
• Cañota Investe no conceito de “arte das tapas”,
mas sem inventar moda: o menu é repleto de
clichês ibéricos, como croquetas de jamón ibérico,
só que “feitos com amor”.
Qual o seu cardápio em casa?
Massa e verduras. Gosto de frutas, maçã,
manga, banana, também, mas tenho preguiça
de comê-las. Aprendi muito quando nasceu o
meu filho, deixei o El Bulli e fiquei dois anos
cozinhando em casa. Não tem nada a ver com
cozinhar em um restaurante. Preparava cinco
ou seis pratos pequenos, como os chineses.
se abriu muito ao experimentar coisas, mas os jovens de
hoje, além de serem mais incultos por causa de tanto acesso
a informação – motivo pelo qual não se centram –, voltam a
estar mais fechados quanto ao paladar. E acho que cultura
geral e gastronômica caminham juntas. Eu pergunto aos
garotos sobre cultura geral e é impressionante, eles não têm
ideia. Eu deixei a escola aos 15, mas entendo que você deve
viajar, se aculturar, poder manter uma conversa...
• Paco Meralgo Moderninho, mas apto a clássicos do
pedaço, como o pa amb tomàquet (pão com tomate),
além de delícias “estrangeiras”, como steak tartar.
• Tapaç 24 Tradição com qualidade impecável por
Carles Abellán, outro discípulo dos Adrià.
• Lolita Com a saída de Albert em 2010, o Inopia,
situado a uma quadra do Tickets/41 Grados,
Ser irmão do Ferran Adrià é como ser
irmão do Messi...
[Interrompe] Eu conheço o irmão do Messi, e tampouco
ele está tão preocupado. Está contentíssimo.
transformou-se em Lolita, sob a batuta do ex-sócio –
e aprendiz – Joan Martínez. A linha “básico, mas
excelente” do cardápio permanece na mesma toada
que conquistou celebridades como Gwyneth Paltrow
e Michael Stipe, ex-vocalista do R.E.M.
E você viaja muito?
Agora não. Mas com o El Bulli viajava. Uma das tarefas era
trazer coisas. Como nos diferenciávamos? Enquanto os outros
tentavam encontrar o que já havíamos realizado, eu estava
no Peru, procurando novos produtos. Eram expedições. Ia
a Nova York, aos mercados, e comprava tudo. Trazia, sei lá,
uma mala de framboesas crocantes. Todos éramos um pouco
espiões, e trabalhávamos para o capitão, o Ferran. Acho que,
com o tempo, se apreciará ainda mais o que se fez no El Bulli.
Foi uma onda criativa, uma capacidade brutal de reinventar a
cozinha. Fizemos cada loucura, cada besteira. Mas as pessoas
se esquecem que lá nós dominávamos os sucos, os molhos,
as bases. Era como se soubéssemos fazer todos os tipos de
fotos divulgação
Vocês então pregam uma filosofia de formar craques
semelhante à de outra instituição catalã, o Barcelona...
É parecido. Inclusive o Pep Guardiola, quando era técnico do
Barça, quis conhecer o nosso trabalho há dois anos. Ficou muito
surpreso. Ele foi ao elBullitaller comer e conversamos.
“É uma questão de sorte, mas aqui em Barcelona,
E quais são as coisas boas e as más?
Tudo é bom, não há problema. Dentro da
minha profissão, todo mundo sabe quem
eu sou, tenho o meu ego mais do que
coberto. Tenho a sorte de meu irmão ser
a pessoa mais generosa do mundo, um
gigante. Só tenho a agradecer e devolver,
em certa maneira, com esses negócios
nossa parceria. Pensamos igual, são 25
anos juntos. Algumas pessoas falam
“você é o filho, né?”. Mas não, começamos juntos.
Agora ele está mais de stand-by, mas voltará logo.
Com mais força do que nunca.
RESTAURANTES DE COMIDA
ESPANHOLA E CATALÃ
• Casa Paloma Especializado em carnes
e, claro, clássicos hispânicos de toda la vida.
• Suculent “Casa de comida, e não restaurante.”
Assim se autodefine o Suculent. Uma combinação
de coisinhas para picar e suculentos pratos,
como a liebre a la royal.
Baixe a Revista Personnalité no iPad e assista
ao vídeo exclusivo com Albert Adrià
23
Personnalité
Por Ricardo Calil
Impossível pensar no cinema espanhol e não lembrar da força das
personagens de Pedro Almodóvar. Nanda Costa, Elke Maravilha,
Laerte, Luana Piovani e Beto Brant revelam suas favoritas
24
“Almodóvar oferece ao
homem um pouco de doçura”
Luana Piovani
Personagem: Ángel/Juan/Zahara (Gael García Bernal)
Filme: Má educação (2004)
divulgação/Rede Globo/Alex Carvalho / Everett Collection/Grupo Keystone
As
mulheres
de
Almodóvar
“A vida do homem não está fácil. É muita pressão, muita cobrança. Ele não
pode chorar, não pode mostrar que é fraco. E aí precisa vestir todas aquelas
máscaras. O que o Almodóvar faz é oferecer ao homem a chance de um
pouco de doçura, de vulnerabilidade.” Mas, se a pauta é sobre as mulheres
de Almodóvar, por que Luana Piovani está discorrendo sobre as agruras do
macho contemporâneo? Porque seu personagem feminino preferido na obra
do cineasta é... um personagem masculino – o que, em se tratando de Almodóvar, faz todo sentido. A atriz e apresentadora não tira da cabeça o trabalho
de Gael García Bernal em Má educação. O mexicano faz três papéis no filme,
incluindo a femme fatale Zahara, travesti que busca vingança contra o padre
que abusou dele na infância. Com sua escolha, Luana contempla um grupo
de figuras que sempre foram fundamentais na obra do cineasta: os travestis
e transexuais. “Eles dão ainda mais cores à paleta dele. Nos filmes de outros
diretores, os personagens muitas vezes parecem ser em preto e branco. O
Almodóvar tem essa capacidade de colorir a humanidade”, diz Luana, que
pretende encomendar em breve o calhamaço The Pedro Almodóvar Archives
(editora Taschen), com 600 fotos sobre a vida e a obra do espanhol.
25
“Quem não deseja estar
no lugar da Marina?”
Elke Maravilha
divulgação
Personagem: Marina (Victoria Abril)
Filme: Ata-me! (1990)
“Pepa taca fogo na cama
e apaga o cigarro nas chamas”
Nanda Costa
“Já vou logo avisando que gosto mais do Tarantino do que do Almodóvar”, esclarece
a atriz Elke Maravilha, soltando sua clássica gargalhada ao telefone. “Desde pequena,
me interesso mais pelo universo masculino do que pelo feminino. Eu ficava com a turma do meu pai, olhando as mulheres em volta. Aí, perguntava: ‘Mulher é aquilo? Eu
sou mulher? E não posso ser homem? Então, prefiro ser só gente!’.” Mas Almodóvar,
eu comento, é justamente o cineasta que melhor soube representar as pessoas que não
se encaixam em gêneros tradicionais, que querem ser só gente, como você, Elke. “Isso
é verdade. No fundo, gosto dele. Gosto muito. É o tipo de homem que a gente quer
conhecer ao vivo, ficar amiga, conversar”, diz a atriz, que se reconhece como uma
mulher almodovariana, intensa, exagerada, na vida real. Das personagens femininas
do cineasta, ela escolhe Marina (Victoria Abril), de Ata-me!, a atriz pornô sequestrada
por um fã psicótico e amoroso (Antonio Banderas). “A situação é muito sexy. Que mulher vê o filme e não deseja estar no lugar da Marina? Mas já vou logo avisando: meu
tipo de homem é o Danny Trejo”, ela esclarece, referindo-se ao ator musculoso, tatuado e mal-encarado de Machete. Então, pergunto: “Mas o jovem Antonio Banderas
quebrava um galho, não é?”. Ela responde: “Um galho, não. Uma árvore!” – e gargalha.
26
divulgação
“Eu anotei uma frase incrível dela aqui no meu celular. Peraí.” Nanda Costa
some do telefone e volta com a citação: “Cansei de ser boa! Estou muito magoada para ser clara, objetiva e justa”. A frase original saiu da boca de Pepa
(Carmen Maura), a atriz e dubladora abandonada pelo amante em Mulheres
à beira de um ataque de nervos. Primeiro grande sucesso internacional do
cineasta espanhol, o filme celebrizou Maura como sua musa
e Pepa como a arquetípica mulher almodovariana: espalhafatosa, escrachada, melodramática, neurótica, extravagante e adorável – tudo ao mesmo
tempo e em altas doses. “Parece que ela está com uma TPM eterna”, resume
Nanda. Fã de Almodóvar, a protagonista da novela Salve Jorge e do filme
Febre do rato nunca tinha visto Mulheres à beira... Mas, quando lhe perguntamos sobre sua personagem preferida na obra do cineasta, ela decidiu
preencher a lacuna, achou um tempinho entre as gravações e acabou se
apaixonando por Pepa. “Ela taca fogo na cama e depois apaga o cigarro nas
chamas! Eu queria um papel desses para extravasar a vontade de quebrar
tudo de vez em quando”, confessa Nanda – esquecendo que outro dia estava
distribuindo sopapos nas vilãs de Salve Jorge.
divulgação/Rede Globo/Raphael Dias / Photos12.com/OtherImages
Personagem: Pepa (Carmen Maura)
Filme: Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988)
27
Personagem: Kika (Verónica Forqué)
Filme: Kika (1993)
Personagem: Raimunda (Penélope Cruz)
Filme: Volver (2006)
“Vamos acabar com esse papo de que Almodóvar entende a alma feminina.
Ele entende a alma humana! Com toda a ampla faixa de gêneros que isso
envolve. Falam a mesma coisa do Chico [Buarque]: ‘Ah, ele escreve como se
fosse mesmo uma mulher’. Mas, pô, ele também escreve lindamente como
homem!” A frase vem com conhecimento de causa: seu autor é o cartunista
Laerte Coutinho, que, depois de 40 anos de uma consagrada carreira, passou
a se vestir de mulher em público e ampliou o debate sobre as definições de
gênero no Brasil. Pergunto a Laerte se Almodóvar antecipou em sua obra
algumas das questões que ele levaria para sua vida pessoal anos mais tarde:
“Hum, será que isso não é forçação de barra de jornalista? Talvez não. De
certa forma, ele antecipou, sim”, diz o cartunista, que já desenhou o cineasta
como personagem de uma história em quadrinhos dos Piratas do Tietê. De
bate-pronto, Laerte diz que a mulher almodovariana que mais o marcou foi
Kika (Verónica Forqué), no filme de mesmo nome. A maquiadora trabalha no
polo oposto das tradicionais heroínas do cineasta: em vez de ter um ataque
de nervos, ela se mantém positiva e operante nas mais tragicômicas situações. “É um exemplo para todas nós”, afirma Laerte.
“Não tem pra ninguém. A maior musa do cinema hoje é Penélope Cruz, e
seu melhor trabalho é Volver”, diz Beto Brant. Para escolher sua personagem
feminina preferida na obra de Almodóvar, o cineasta reviu três filmes antes
de cravar a Raimunda. “Ela é sexy, forte, feminina, batalhadora, honesta. Na
hora de enterrar o marido, que matou para proteger a filha, escolhe um lugar
que ele gostava. Não é toda mulher que tem essa delicadeza”, afirma o diretor
de Eu receberia as piores notícias de seus lindos lábios. “O Almodóvar merece
todos os elogios pelos papéis femininos que criou, mas sempre contou com
atrizes excepcionais, que se entregaram muito aos personagens.” No trono de
musa maior de Almodóvar – que já foi ocupado por Carmem Maura, Victoria Abril, Cecilia Roth e Marisa Paredes –, hoje está sentada Penélope Cruz.
Depois de Volver, ela protagonizou Abraços partidos e o inédito Os amantes
passageiros, que vai ser lançado este ano. Na dedicatória final de Tudo sobre
minha mãe, Almodóvar dá a medida de seu amor pelas mulheres: “Para Bette
Davis, Gena Rowlands, Romy Schneider... a todas as atrizes que interpretaram
atrizes, a todas as mulheres que atuam, aos homens que atuam e se convertem em mulheres, e a todas as pessoas que querem ser mães. A minha mãe”.
28
FAbio Guinalz/Fotoarena / Divulgação
“Não tem pra ninguém.
A maior musa é Penélope Cruz”
Beto Brant
FAbio Guinalz/Fotoarena / other images
“Kika é um exemplo
para todas nós”
Laerte
29
Por Bell Kranz Fotos Victor Affaro
Herança
compartilhada
Irmãos, eles já dividiram o mesmo lar. Adultos, viraram parceiros de
trabalho: os produtores de cinema Caio e Fabiano Gullane, os arquitetos
Pedro, João e Lua Nitsche, e os músicos Supla e João Suplicy
“Às vezes eu quero te socar, mas eu te amo”
Supla e João Suplicy, músicos
arquivo pessoal
A
dupla Brothers of Brazil é um
exemplo acabado de que sangue
de irmão tem poder. Ou, no mínimo,
reforça a tese de que não existe barreira
para a música, essa linguagem universal
que, além de unir, transforma. O músico
Supla, roqueiro punk, de visual extravagante e que encarna o gênero furioso,
provocador, formou uma banda com o
singelo e doce irmão caçula, mais ligado à
bossa nova e ao samba. O resultado é um
som eclético e original que está dando
muito certo. Com cinco anos de vida e
três CDs lançados, o Brothers of Brazil,
que canta bastante em inglês, já fez mais
de 200 shows nos Estados Unidos.
Como se deu essa inesperada convergência? Ideia do mais velho. Estavam há
um bom tempo morando distantes um
do outro. João, quando casou, mudouse para o Rio, onde ficou por sete anos.
Supla, na época, vivia em Nova York. “Raramente a gente se via”, conta Supla, cuja
influência sobre o menor começou na
infância, quando o fantasiava de Johnny
Rotten, vocalista da clássica Sex Pistols.
O pequeno João, que é oito anos mais
novo que Supla, assistia na casa da família aos frequentes ensaios de Os Impossíveis, banda cover dos Beatles, de Supla,
na época com 15 anos. “Meu primeiro
professor de violão era o guitarrista da
banda dele”, conta João, para quem a
ideia de tocar com Supla não passava
pela cabeça. “Os universos, musicalmente, são muito diferentes”. Porém, reunir
a bagagem musical de cada um, com as
semelhanças e diferenças, culminou em
um resultado harmônico. “Esse contraste
é o que as pessoas gostam. Se fossem dois
Suplas ou dois Joões, não teria a mesma
graça”, diz o caçula, hoje com 38 anos.
“Eu achava que só a música importava. O Supla me ajudou a valorizar a
expressão artística como um todo.” Também questionado sobre o que aprendeu
na página ao lado, o brothers of brazil em estúdio no
apartamento de supla, na praça da república; à direita,
Camarim do latitude, em são paulo (1986): supla, à esquerda,
e o irmão joão, de camisa aberta, em show da banda tokyo
com o irmão, Supla foi bastante sincero:
“Acredito que não aprendi, ainda estou
aprendendo a respeitá-lo e a aceitar mais
ideias dele. Dá muito prazer trabalhar
com meu irmão”. De fácil esse processo
de fusão não tem nada. “Rola muita briga,
cada um quer puxar a sua sardinha”, conta Supla, definido pelo irmão como dono
de “uma personalidade muito forte, que
gosta de impor o que acredita”. Os embates viraram até mote de uma das músicas,
“Punch You”, que os irmãos compuseram
um para o outro. Diz o refrão: “Sometimes I wanna punch you/ But I love you/
But I love you” (algumas vezes eu quero
te socar, mas eu te amo, mas eu te amo).
“Parece continuação da infância”
arquivo pessoal
Pedro, João e Lua Nitsche, arquitetos
32
Difícil negar a influência da educação e
do ambiente familiar quando três irmãos
crescem e, como profissionais, vão se
reunir em torno do mesmo interesse.
E mais: ainda abrem uma empresa juntos. “Parece continuação da infância. E
não foi nem combinado!”, diz rindo João
Nitsche, o irmão caçula. Será? A história
parece ter tramado tudo.
Filhos dos artistas plásticos Carmela Gross e Marcello Nitsche, os irmãos
Lua, Pedro e João, sócios do premiado
escritório de arquitetura Nitsche, tiveram
a criatividade e a verve artística muito
estimuladas pelos pais na infância. E não
bastava desenhar, pintar, criar teatrinho,
fazer avião... Depois tinha que explicar, conceituar:
“Por que avião, e
não casinha?”.
O ambiente
de galeria de arte
e Bienal fazia as
vezes de playground do trio ao
acompanhar os
pais nas atividades profissionais.
“Na Bienal, a gente andava de patins na
montagem dos trabalhos. Isso influenciou a nossa escolha”, diz João, artista
plástico, 33 anos. Sem contar a arquitetura da casa onde moravam: um projeto
de Paulo Mendes da Rocha.
Até o segundo marido da mãe, que
não era artista, mas advogado, integrou
a rede de influências. “Ele deu a visão
empresarial que a gente precisava para
montar o nosso escritório”, conta Pedro,
37 anos, irmão do meio e arquiteto como
Lua, 40. Ao se autodefinirem, eles revelua, joão e pedro em frente a um prédio comercial projetado por
eles (2008) na rua joão moura, em pinheiros; Na foto acima, os
irmãos (joão é o mais loiro) no lar onde moraram, em city butantã,
são paulo (1984) – a casa é um projeto de paulo mendes da rocha
33
lam que Lua é a “brava, mais direta, impulsiva”; “Pedro é o diplomata, cordato”,
explica João, que por sua vez assume ser
o irmão que polemiza – e também o bagunceiro. “Mais caótico”, diz Pedro. “Ele
é o caçula, meio folgado”, declara Lua,
que foi a responsável por juntar os três
na empresa. Eles trabalhavam individualmente, e ela sempre insistia na união.
O trio compartilha de uma intensa
sintonia de ideias, a qual é proporcional
aos tradicionais embates entre irmãos.
As brigas não são frequentes, mas sempre acaloradas. Por se conhecerem profundamente, desenvolveram ferramentas de contra-argumentar e persuadir.
A existência de
orçamentos,
prazos e clientes
é o que ajuda a
pôr fim à discussão. Mas
nem sempre.
“Já aconteceu
de brigarmos
na frente do
cliente”, conta
Lua. No mais,
é só vantagem.
“A gente foi vendo que esse processo
aberto de debate de ideias resulta numa
concepção mais assertiva; a união é
mais produtiva”, diz Pedro. Tanto que
eles buscam estender para a equipe o
princípio de que o coletivo é importante
sempre, de fazer o melhor, independentemente de quem é o autor. Afora isso,
sócios de sangue podem bater boca à
vontade e também sair batendo porta,
pois no dia seguinte vai estar tudo bem.
Lua sabe: “Não precisa nem pedir desculpa, não fica rancor”.
“Descobrimos como valorizar as diferenças”
Caio e Fabiano Gullane, produtores de cinema
Eles são igualmente divertidos, mas
de estilos e talentos distintos. E aí está
a graça do negócio: “A gente se complementa muito bem”, garante Fabiano.
Caio, 40 anos, responde pela área da
produção dos filmes. É mais espiritualizado, da turma da ioga, da busca pelo
autoconhecimento. Já Fabiano, 42, é
o criativo da comercialização e mais
ligado ao mundo externo, ao futuro –
sua agenda está em 2015. A visão dos
dois sobre o mundo e as pessoas muitas
vezes diverge. “Mas descobrimos como
valorizar as diferenças de uma maneira
inteligente e emocionalmente equilibrada para encontrar a solução com o
melhor dos dois, o caminho do meio.
Foi a luz divina que o nosso pai mandou
do além”, afirma Fabiano.
fabiano e caio em são paulo durante as filmagens do curta
João Brasil, em idos dos anos 90
Mas isso não impede que eles briguem feito quaisquer irmãos e compartilhem dos inconvenientes da intimidade. Exemplo: ficar interrompendo
o outro enquanto fala porque acredita
saber o que ele quer dizer, reconhece
Caio. Em público, a dupla se policia
para controlar a emoção e, como diz Fabiano, “deixar um tom mais Excell nas
discussões”, pois os debates inflamados
às vezes assustam as pessoas.
Por outro lado, defender o ponto
de vista intensa e livremente ajuda no
alinhamento de ideias na empresa e
gera um terceiro ponto de vista que leva
para a frente, faz crescer. “A liberdade
é o que nos une. Seguimos a vida juntos
porque gostamos e colhemos bons frutos”, conclui Fabiano.
arquivo pessoal
Já na faculdade, essa poderosa dupla de
profissionais e irmãos mostrava a que
veio. Sua história de união, porém, começou muito antes, quando Caio, com apenas 11 anos, e Fabiano, com 13, perderam
o pai, Adolfo Gullane. O fato doloroso
levou-os a desenvolver uma cumplicidade enorme e muito especial. “Sempre
trocamos bola sobre tudo”, conta Caio.
Além disso, começaram a trabalhar cedo.
Na faculdade, Fabiano foi estudar cinema. Passados seis meses, o irmão entrou
no mesmo curso. Como já tinham uma
vivência profissional, começaram a se
envolver com projetos dos alunos que
estavam se formando. “Fazíamos todos
os curtas”, lembra Caio. Assim, identificaram o nicho de mercado e decidiram
se apresentar como pessoa jurídica,
estreando em grande estilo, com a produção do longa Bicho de sete cabeças,
de Laís Bodansky, seguido de Carandiru
e muitas outras obras de sucesso.
A relação dos Gullane é “como a de
um casamento: profunda e constante”,
diz Caio. Por constante entenda-se
estar junto não apenas no horário de
expediente, mas também nas viagens
de férias e feriados e nos fins de semana
regados a churrascos em família. A questão que não cala: esse grude não cansa?
“Não muito. As priminhas têm que se ver
[para reforçar a liga, ambos têm filhas,
cinco no total] e temos que falar dos assuntos familiares porque no trabalho não
dá”, explica Fabiano.
34
35
o maestro silvio baccarelli, fundador da orquestra sinfônica
de heliópolis, acompanha ensaio em fevereiro de 2009
ALBERT ADRIÀ pergunta:
de Qual
comida
você
sente
falta em
Hollywood?
Rodrigo Santoro responde:
Sinceramente, do tradicional arroz, feijão e farofa.
Gosto muito desse prato. E não existe lá, de jeito
nenhum, um feijão como o que é feito no Brasil.
32
33
Por Maria Lúcia Rangel, do Rio de Janeiro
Fotos Daryan Dornelles
camaleão
Rodrigo Santoro, 37 anos, 20 de
carreira, 29 filmes e 7 novelas. Nas
telas, já foi travesti, rei persa, craque de
futebol, vilão e mocinho. Na vida real,
já sabe aonde quer chegar: “Me deparei
com uma casinha em Capri,
no topo de um desfiladeiro. Olhei aquilo
e pensei: ‘É aqui que quero terminar...”
Personnalité
poucos amigos
O negócio é que Rodrigo Santoro é um sujeito reservado. E que
encara o paradoxo de uma vida desabotoada pela imprensa; da
vida que não pode esconder, por mais que ele queira. Pergunto
como é que se protege desse tipo de assédio agressivo?
rodrigo santoro brincando ao telefone, aos 4 anos
40
Santoro pensa um bocadinho. E então diz: “Olha, eu
tento preservar minha privacidade. Saio, mas não me
exponho tanto. Janto fora, vou ao cinema, namoro, só que
isso não sai na mídia...”. E ri. Aí, completa: “Não adianta
brigar nem querer apedrejar os paparazzi. Na era do
Facebook, eu me pergunto quem é seu amigo de verdade.
Conto nas mãos os meus. Eles não estão na rede. E olha que
curioso: mesmo não fazendo parte do Facebook, sei que há
quem se passa por mim lá”.
Ouço suas palavras e penso sobre o peso de toda essa
atenção do público e da imprensa. De não ter o direito a não
ter uma conta no Facebook. Se isso não seria uma espécie
de solidão. “Claro!”, Santoro diz. “Mas a solidão é minha
melhor amiga. Estou sempre sozinho pelo mundo. Mas
uma coisa é estar sozinho, outra é se sentir sozinho.” Ele
não se sente. Santoro não é solitário,
apenas não deixa que os outros vejam
seu universo particular com muitos
detalhes. Acontece que, às vezes,
algo escapa. E é aí, nesse momento
da entrevista, que o ator revela, sem
perceber, um surpreendente bocado de
sua intimidade: Rodrigo Santoro acaba
de descobrir o lugar onde quer morrer.
é aqui que quero terminar
Durante uma tarde de bate-papo no
Rio de Janeiro, onde vive no Alto
Leblon, Rodrigo Santoro contou à
Revista Personnalité uma história.
Em setembro passado, o ator juntou
a família e foi em férias à Calábria, no
sul da Itália. “Fomos eu, meu pai, minha mãe, minha irmã,
meu tio, tia e primos. Fomos à italiana”, diz, ri e gasta uns
minutos explicando o “à italiana”: almoços intermináveis,
brindados a vinho. “Depois, conheci Positano e Capri,
na Costa Amalfitana. Ali, deparei com uma casinha no
topo de um desfiladeiro. Numa ruazinha cheia de flores,
a coisa mais linda. Olhei aquilo e pensei: ‘é aqui! É aqui
que quero terminar...’.” Terminar num cantinho da Itália
tem, é bem verdade, muito a ver com sua origem. E com
as memórias de infância. Toda vez que o trabalho permite
– e o trabalho anda permitindo pouco –, Rodrigo vai a
Petrópolis, a cidade serrana onde nasceu. Lá, ele sempre
pode contar com a macarronada feita por seu pai, o italiano
Francesco. Quando o trabalho permite, e quando não está
_
Sonhou em ser pescador,
quase virou jornalista
mandar o roteiro de seu próximo filme. Achou que era trote. Um
segundo telefonema convenceu-o. Morou durante dois meses no
set de filmagem, no interior da Bahia, cortou cana, fez rapadura e
Ele era um rapazinho bonito e irrequieto que vivia longe da praia
emagreceu 9 quilos. Usou a mesma roupa do personagem dias a
em Petrópolis. Pensou um dia em ser pescador. Flertou com a ideia
fio, e lavar o cabelo, só com água. Candidato ao Oscar de melhor
de virar médico. No fim, quase foi jornalista. Rodrigo Santoro tinha
filme estrangeiro, Abril despedaçado levou-o a Hollywood.
17 anos quando desceu a serra para estudar comunicação social na
ARQUIVO pessoal / divulgação
m janeiro, Rodrigo Santoro encontrou-se com o jogador
Kaká em um estúdio. Fizeram embaixadinhas e trocaram
passes de cabeça. Em seguida, os dois gravaram um comercial.
O atleta mais tarde diria sobre o ator: “Esse cara é um craque”.
Alguns dias depois, Rodrigo Santoro viajou aos Estados Unidos.
Das mãos do prefeito de Miami, o sorridente Tomás Regalado,
o artista brasileiro, que estreava um filme ao lado de Arnold
Schwarzenegger (O último desafio), recebeu a chave da cidade.
Dali a um tempo, coisa de dias, Rodrigo atravessou o
país de avião. Desembarcou em Los Angeles, onde mantém
um apartamento alugado. Foi fotografado no aeroporto – na
descrição de um site de fofocas – “com a cara amassada”.
Ele vestia um pulôver marrom, jeans, óculos de grau e
conversava ao celular. E, sim, tinha a cara amassada. Seguiu,
então, para um shopping center. Lá, chamou atenção de mais
paparazzi por “sua barba grisalha”.
Deu entrevista – em inglês – a
programas de TV. Contou amenidades
e confessou, por fim, que está esgotado
(“Preciso descansar um pouco”).
Ainda na Califórnia, em outros
papos com a imprensa, adiantou uns
poucos detalhes sobre 300: A ascensão
de um império, sequência do arrasaquarteirão 300 (dirigido em 2006 por
Zack Snyder). O filme, que será lançado
mundialmente em 2 de agosto, é, nas
palavras de Rodrigo, “a primeira vez
que repito um personagem no cinema
[o imperador persa Xerxes]”. Ele
explicou quão interessante foi atuar
ao lado de Eva Green e detalhou a
construção de seu papel como protagonista da superprodução
hollywoodiana cujo orçamento bate nos US$ 162 milhões.
Narrou a aborrecida necessidade de raspar os pelos do corpo
quase todos os dias. E de lhe enfiarem alguns piercings.
Durante os meses de filmagens na Europa, “eram cinco, seis
horas diárias de maquiagem!”. A rotina de Rodrigo Santoro, 37
anos, 20 deles de carreira, é assim: aberta, cheia de aspas, de
fotos, de detalhes e exclamações.
ARQUIVO pessoal / divulgação
E
rodrigo santoro
A estreia no cinema americano foi em Em Roma na primavera,
PUC. No quinto período, trancou matrícula. Ingressou rapidamente
dirigido por Robert Allan Ackerman. De lá pra cá vem alternando
no seleto grupo de galãs das novelas da Globo. O primeiro destaque
trabalhos no Brasil e no exterior. Só na TV são 16 (sete novelas e
foi em Explode coração (1995), como o namorado da quarentona
nove minisséries, além da internacional Lost), 29 filmes (16 interna-
Renée de Vielmond. A partir daí, engrenou.
cionais) e uma peça de teatro. A última novela é de 2003, Mulhe-
Cinco anos depois, Walter Salles procurava o protagonista de
res apaixonadas, dirigida por Ricardo Waddington. No final deste
Abril despedaçado. Um encontro com Laís Bodanzky, em Paris,
ano começa a gravar a série Homens de bem, com Jorge Furtado
permitiu que assistisse a algumas cenas de Bicho de sete cabeças,
e Guel Arraes, para exibição em 2014. “Meu foco sempre esteve
que ela montava na capital francesa. Na Califórnia, onde surfava e
na construção do personagem”, diz Rodrigo. “Mas penso em
estudava inglês, Rodrigo não levou a sério o recado com sotaque
talvez produzir mais, como fiz em Heleno, sem, necessariamente,
francês na secretária eletrônica dizendo que o diretor gostaria de lhe
atuar nessa produção. O importante é que faça sentido pra mim”.
41
aos 4 anos, conduzido a cavalo por seu avô
Personnalité
1
em Petrópolis, Rodrigo vai a Ribeirão Preto, interior de São
Paulo, onde vive o avô materno, Neném. “Meu avô vive na
fazenda e está com 96 anos. Foi quem me ensinou a montar
a cavalo quando eu tinha uns 4 anos”, diz. “Ele é um homem
sensível, espirituoso, bem-humorado. Me lembra muito
um escritor que descobri recentemente, o poeta Manoel
de Barros [também com 96 anos].” Essa faceta carinhosa e
familiar é mais uma revelação da vida íntima. Outra: “Gosto
de cozinhar. Aprendi porque tive de me virar sozinho desde
os 18 anos. Minha culinária é a italiana. Risotos, massas.
É uma espécie de terapia, um prazer que exerço ouvindo
música e tomando um vinho”. Todas as calorias adquiridas
ele perderá mais tarde, em sessões quase diárias de futebol
e surf na Barra da Tijuca.
Mais tarde, converso com Flávia, única irmã de Rodrigo,
uma arquiteta de 35 anos. Pergunto como é o Rodrigo dentro
de casa. “Ele é bom diante das câmeras e atrás delas!”, ela
diz. “É um bom filho. Muito melhor do que eu... Desses que
não limitam a atenção ao pai e mãe. O Rodrigo costuma fazer
encenações com os primos menores. Monta peças, fantasia
as crianças. Ele tem um lado engraçado, uma coisa cômica
que a família conhece muito bem.”
2
_
“Ele mergulha
de cabeça nos projetos”,
3
4
diz Walter Salles
5
6
Um traço de Rodrigo Santoro: disciplina. Ouro traço: dedicação.
Desde a adolescência, essas duas qualidades – que fizeram do
carioca um atleta (surf é sua onda de sempre; a mais recente? Escalada) – movem Rodrigo em seus trabalhos. Jorge Furtado, que o
dirigiu no especial para televisão Homens de bem (2011), lembra o
DEZ ANOS DEPOIS...
que chama de “a técnica incrível” de Santoro, “um realismo raro no
Estamos no cais do porto carioca, num dos camarins da
produtora onde Rodrigo acabou de ser fotografado para
esta edição. Ele está bem à vontade. Há dez anos tivemos
um primeiro encontro, numa longa entrevista. Mais tarde,
retomamos o contato em 2011, quando ele terminou de filmar
Heleno. Falo daquela primeira entrevista, quando o ator
sonhava trabalhar com diretores como Walter Lima Jr., Jorge
Furtado e Júlio Bressane. Ele dizia isso, mas brincava que
“não acharia nada mal” ser dirigido por Scorsese, Coppola ou
Tarantino. Se Fellini fosse vivo, seria sua primeira escolha.
“Gosto também do Oliver Stone e do Steven Soderbergh.”
Lembro a Rodrigo que alguns desses sonhos se realizaram.
Ele filmou com Walter Lima Jr. (Os desafinados, de 2008), fez
um especial para TV com Jorge Furtado (Papai Noel existe,
em 2010) e foi dirigido por Soderbergh em Che (lançado
em duas partes em 2008). Trabalhou também com outros
grandes diretores estrangeiros, como David Mamet (Cinturão
vermelho, de 2008), Roland Joffé (Encontrarás dragões:
segredos da paixão, de 2012) e Philip Kaufman (Hemingway
& Gellhorn, de 2012). Rodrigo, então, se anima a revelar o que
pensa de seus diretores e colegas de Hollywood.
ator brasileiro”. Prossegue Furtado: “Ele interpreta bem comédia,
7
drama, aventura e é bonito, alto, ótimo ator, tudo extra, over”.
Foi Paulo Autran, impressionado com a atuação do jovem
ator, quem o indicou para seu primeiro grande papel no cinema,
Bicho de sete cabeças (2001), dirigido por Laís Bodanzky. “Ele
tinha lido o roteiro e na época trabalhava com Rodrigo na minissérie Hilda Furacão”, conta a diretora. “A dica do Paulo foi direta:
‘Presta atenção neste rapaz’.” Rodrigo recebeu um cachê simbólico e a recompensa: elogios da crítica e o prêmio de melhor ator
no Festival de Brasília de 2001.
Hector Babenco, diretor de Carandiru (2003), não pensava em
Rodrigo para seu filme. “A Lady Di, sua personagem, é uma vitória
dele e uma alegria minha. O Paulo Autran dizia que nunca viu no
Brasil um ator fazer o que Rodrigo fez no filme. Gero Camilo e ele
chegaram a dormir duas noite no presídio, comendo arroz e feijão
do boteco da esquina.” Walter Salles, diretor de Abril despedaçado
nos projetos, pesquisam muito, saltam sem rede. É um prazer trabalhar com ele”. Gero Camilo: “Há em Rodrigo o que todo ator gosta
de encontrar nos parceiros: entrega, carisma, inspiração, ousadia e
compromisso com a obra”.
42
fotos divulgação
(2001), é um fã: “O Rodrigo é daqueles que mergulham de cabeça
8
9
1. na pele do craque heleno; 2. com helen mirren nos bastidores
de em roma na primavera; 3. ouvindo instruções de david mamet em
cinturão vermelho; 4. na pele de xerxes, em 300; 5. em bicho de sete
cabeças; 6. com benicio del toro em che;
43
7. dirigido por walter salles em abril despedaçado;
8. montado como a lady di de carandiru, de hector babenco; 9. com
patrícia de sabrit e flávia bonato na novela olho no olho (1993)
Personnalité
rodrigo santoro
Você já trabalhou com esses diretores grandes.
Me conta como foi com o Mamet.
Sempre achei o Mamet um gênio. É um cara muito radical
na forma de pensar. Costuma dizer que o autor faz todo o
trabalho de criação do personagem. O ator deve ficar de pé
e dizer as falas, sem inventar nem acrescentar nada. Isso me
deixou intrigado. Ele é um macho-man, faz jiu-jítsu. Vi o
Mamet pela primeira vez quando visitei o set dois dias antes
de começar a filmar Cinturão vermelho. Presenciei uma cena
inesquecível: ele meio agachado, olhando pra baixo, com as
mãos em concha acima do fone de ouvido. No fundo uma cena
estava sendo filmada. Pensei: “E ele não está vendo? Uau! Isso
vai ser interessante!”. Mamet escutando os atores para sentir
como as palavras funcionavam...
_
MacGyver na infância,
James Joyce no iPad e o
som do cantor Rubi
E o Soderbergh?
Soube que ele faria um filme sobre Che Guevara e comecei
a fuçar se estavam fazendo testes. Eu queria muito entrar
numa produção que juntaria Steven Soderbergh e Benicio
Del Toro. Mas eu tinha uma desvantagem: todos os latinos
do planeta queriam fazer o filme e eu não falava espanhol,
só portunhol. Consegui uma reunião com o Steven e a
produtora, que tinha visto Abril despedaçado e Carandiru.
Nenhum dos dois falava espanhol! Foi a minha sorte. Quando
me perguntaram se eu falava, disse que sim, deixando claro
que era brasileiro. As filmagens começariam dali a dois
meses. Garanti a eles que até lá estaria com o espanhol
perfeito. Algum tempo depois, a produtora me telefonou
avisando que Steven tinha gostado do meu material e me
queria no papel de Raúl Castro, o irmão do Fidel.
Rodrigo Santoro vive com música ao alcance da mão. Ele leva
um iPad para onde quer que vá. E o usa sempre. Enquanto
posava para as fotos desta entrevista, o aparelho estava num
canto ligado numa trilha escolhida por ele. Sua coleção inclui
óperas (“adoro a Tosca, assisti na Bulgária enquanto filmava
a sequência de 300”), rock, o citarista indiano Ravi Shankar,
Pavarotti, MPB (“Caetano Veloso e Rubi, você conhece o
Rubi? É um cantor goiano. Foi o Gero Camilo que me apresentou. Ouve só, que voz! Não conheço Rubi pessoalmente, mas
gostaria de ajudá-lo a gravar um disco!”).
Pergunto o que mais ele leva no tablet. “Ah, aqui estão
mais de 20 roteiros que tenho que ler, livros de filosofia,
Era o personagem que você queria?
Na verdade, eu queria qualquer coisa. Foi assim também em
Carandiru, do Hector Babenco. Queria fazer parte da história,
sem saber exatamente como. Voltei ao Brasil e fui aprender
espanhol. Depois viajei para Havana. Fui fazer um laboratório
por conta própria. Fui a Sierra Maestra e Comandancia de La
Plata, de onde Fidel comandou a revolução. Andei de jegue
na serra e me apaixonei por Cuba. Sobretudo por coisas que
só existem lá, como o taxista falando de Nietzsche – era, na
verdade, um advogado ganhando algum dinheiro por fora.
E tinha uma lavadeira que conversava sobre Platão.
poemas, Victor Hugo, James Joyce, Darwin, Dostoiévski, Aristóteles, Martin Luther King, Kant, Maquiavel. Me perguntam se
li tudo isso. Claro que não! Mas, vira e mexe, abro o aparelho e
vou em busca de um deles.”
Rodrigo se apressa a mostrar outros atrativos do aparelho, com um sorriso de menino. “Olha só! Tenho aqui uns
joguinhos. Sempre gostei de brincadeiras com papel, coisas
de menino, como fazer uma catapulta, por exemplo. Adorava
o personagem daquela série dos anos 80, o MacGyver. Ele
pegava um elástico e um clipe e fazia uma bomba atômica.
Minha infância foi assim.”
44
45
Personnalité
Há alguns anos eu lembro de você censurando as pessoas
que substituíam o encontro com amigos por troca de
e-mails. Continua pensando assim?
Não acho negativo o mundo digital. É uma ferramenta
incrível e respeito quem usa isso. Mas as pessoas precisam
ter cuidado ou a internet toma conta da vida delas.
Afasta as relações humanas, a coisa do olho no olho, da
simplicidade, tudo a ver com as coisas que me atraem na
poesia do Manoel de Barros e que me lembram minha
relação com meu avô. Um negócio muito direto, simples.
Eu prefiro me expressar dessa forma.
Algum desses atores e diretores se mostrou curioso em
relação ao Brasil?
Todos! “Brasil!”, com ponto de exclamação, é o que sempre
ouço. Depois vem aquela imagem horrível: “Não é perigoso?
Ouvi falar que morreram 300 e tantas pessoas no ano tal”.
E começam as estatísticas. Falam de violência e Carnaval.
Respondo que existem muitas coisas além disso. Acabei de
voltar do Amapá, onde fui surfar uma onda da pororoca com
Baixe a Revista Personnalité no iPad e assista
ao vídeo exclusivo com Rodrigo Santoro
46
agradecimento: emporio armani / ricardo almeida / seven / wöllner / daslu / sergio k
Em seu primeiro trabalho no exterior, o telefilme Em
Roma na primavera, você contracenou com duas grandes
estrelas do cinema: Helen Mirren e Anne Bancroft. Como
foi recebido por elas?
No primeiro dia de filmagem eu cheguei às quatro da manhã,
ainda escuro, entrei no trailer de maquiagem e deparei
com a Helen Mirren, uma das minhas musas, a Fernanda
Montenegro inglesa. Ela sentada, ereta, diante de uma xícara
de chá e um jornal. Ao me ver, deu um “good morning”;
respondi e me sentei atrás, bem quietinho, enquanto ela
se olhava no espelho com uma expressão completamente
neutra. E eu não acreditando que estava ali. Até que ela
começou a puxar papo, com a maior naturalidade: “Dormiu
bem? Está descansado? A gente vai começar uma história
hoje”. Descobri ali que os grandes são grandes por fora e por
dentro. A Fernanda é assim. Com Anne Bancroft foi a mesma
coisa. Saíamos sempre para jantar quando filmamos na Itália:
eu, ela e o marido, o diretor Mel Brooks.
“a internet
afasta as
relações
humanas, a
coisa do olho
no olho, da
simplicidade”
executiva Kika Pereira de Sousa / Assistente de produção Juliana Carletti / Produção executiva Rio de janeiro Ana Hora
Você e Nicole ficaram amigos?
Ficamos, sim. Não temos contato grande porque nossa vida não
permite, mas nos encontramos nas festas de cinema, Oscar e
Globo de Ouro.
Luciano Huck, Marcelo Serrado e Marcello Novaes. Não
conhecia o Amazonas de cima. Pegamos um helicóptero
em Macapá e fomos até a beira do rio, onde ficamos
hospedados num barco. Que maravilha observar a flora e a
fauna do alto! Só que a Amazônia acaba virando estereótipo
igual ao Carnaval. Se um estrangeiro me pergunta sobre o
Carnaval, digo que é animado e tal, mas prefiro recomendar
que ele tome água de coco numa praia deserta.
Muitos atores e diretores estrangeiros estão fazendo
o caminho inverso ao seu, migrando do cinema para a
televisão. O que pensa da TV?
Não penso, por exemplo, em fazer uma novela. Fiz várias
[a primeira em 1993, Olho no olho, dirigida por Ricardo
Waddington] e não tenho nada contra, mas toma um ano de
sua vida. Estou numa idade em que posso viajar e prefiro
trabalhos curtos. Vejo pouco os seriados americanos. Sei
que são bem-feitos, mas o tempo que me sobra dedico à
leitura e ao cinema.
O que você gosta de ler?
Até alguns anos atrás minha leitura era direcionada para o
trabalho do momento. Depois passei a viver fases de leitura.
Há pouco tive a fase Clarice [Lispector]. Me apaixonei
completamente. Imagino-a como uma rainha, bonita, uma
mulher forte. Atualmente ando numa fase de poesia, o
Manoel de Barros. Gosto de biografias. O [diretor] Jorge
Furtado me indicou uma recente sobre o Chaplin. Chaplin
foi provavelmente a figura mais genial do século 20.
Assistente de fotografia Ana Rovati / Beleza Rita Fischer / Styling Alê Duprat / Produção de moda Renato Telles / Produção
E, no ano passado, você participou de Hemingway &
Gellhorn, dirigido por Philip Kaufman, ao lado de bastante
gente interessante.
É. Passei uma semana lendo arquivos sobre a Guerra Civil
Espanhola, período em que se passa esse filme. Fiquei pasmo.
É a tragédia mais tocante da história mundial. O filme tem um
time ótimo de atores. O Robert Duvall aparecia somente numa
cena, por exemplo. Mas passei um dia com o Kaufman e o Clive
Owen, que fez o Hemingway e com quem trabalhei direto. Com
a Nicole Kidman, que fez Gellhorn, eu já tinha trabalhado [em
um comercial de perfume, em 2006].
rodrigo santoro
47
Personnalité
Por Josélia Aguiar
a vida dos
F
Stella Caymmi
outros
48
Jorge Caldeira
Jorge William/Agência O Globo / Jorge Bispo / Leonardo Aversa/Agência
ruy castro
O Globo / > Eduardo Knapp / Folha Press
João Máximo
Ao se aprofundar nos
biografados, escritores
até assumem hábitos
do objeto de estudo.
Leia as histórias das
biografias de Garrincha
(Ruy Castro), Dorival
Caymmi (Stella
Caymmi), Ronaldo
(Jorge Caldeira) e Noel
Rosa (João Máximo)
icar íntimo de alguém com quem
nunca conviveu, encontrar seus
amigos e desafetos para escutar histórias, vasculhar acervos à procura de coisas que nem sabe se estão lá. Para enfim
montar um quebra-cabeça com número
infindável de peças. Estas já seriam as
tarefas óbvias de um biógrafo: pesquisar, entrevistar e escrever. Óbvias, mas
não suficientes. Na empreitada, que
exige fôlego, gogó e humor, o sujeito vai
se desdobrar em papéis tão absurdos
quanto os de detetive e psicólogo. Sem
limite de caquinhos para catar, o jogo,
que parece à primeira vista adaptável,
acaba sendo exasperante.
É verdade e dou fé: nas próximas
semanas, coloco o ponto-final numa biografia de Jorge Amado para o selo Três
Estrelas, do grupo Folha, que sai ainda
este ano. O romancista brasileiro mais
popular em seu tempo não parava: haja
gente para ouvir, episódios a reconstituir.
Com sorte, contei com o alerta e a proteção de entes de outro mundo, como o
espírito protetor dos arquivos e o anjo da
arapongagem. Com a ajuda de um, encontrei intactos os originais de uma obra
inédita que o autor dizia ter jogado fora
70 anos antes. A bênção de outro fez
cair em meu colo o relato de uma boa
história de amor secreto do tempo de
louca juventude.
A empatia leva a extremos curiosos.
Não será loucura um biógrafo beber o
mesmo tipo de suco ou ler os poetas que
seu biografado gostava – a curiosidade
pode dar em alguma coisa. No mínimo,
amplia seu repertório de experiências.
As quatro histórias que ouvi de biógrafos tarimbados têm o mesmo tipo
de obstinação e entrega. A seguir, Ruy
Castro diz o que o aproximou de Garrincha; Stella Caymmi fala como foi
ouvir e retraçar a vida do próprio avô;
João Máximo narra as peripécias para
desvendar o mito Noel Rosa; e Jorge
Caldeira explica como foi fazer um
retrato de Ronaldo sob medida para
o tempo globalizado.
Stella Caymmi, sobre o avô Dorival Caymmi (1914-2008)
Ruy Castro, sobre
o craque Garrincha
(1933-1983)
Stella e o avô gostavam muito de conver-
seu problema com a bebida, superado a
sar. Quando começou a entrevistá-lo para
partir dos anos 1960, foram temas difíceis de
escrever sua biografia, “juntou”, como diz,
tratar. Mesmo que os acontecimentos este-
“a fome com a vontade de comer”. Seu avô
jam distantes no tempo, explica a neta, falar
Contar uma história como a do popular Mané
não só era bom de prosa como tinha muito
deles os traz de volta. “Quando se é parente
Garrincha, o controverso ponta-direita de
para contar. Um dos maiores nomes da
do biografado, o sofrimento é inevitável, mas
pernas tortas que se tornou o maior dribla-
música popular brasileira, Dorival Caymmi
sei de biógrafos que, mesmo não sendo da
dor da história do futebol, exigiu do seu bió-
também não era só um avô: servia como
família, têm tal empatia com seus biografa-
grafo obstinação em dosagem máxima para
sua principal referência paterna. Aos 3 anos,
dos que sofrem muito ao escrever sobre seus
desfazer os mitos que persistiam por déca-
Stella voltara para o Brasil com a mãe, a
dramas.” Para recontar esse período compli-
das. Estrela solitária (Companhia das Letras,
cantora Nana Caymmi, e os irmãos depois
cado, buscou um tom natural, sem esconder
536 págs.) revela um personagem intuitivo,
da separação do pai, venezuelano que
nada. “Abordei os assuntos, mesmo os mais
porém longe do tipo ingênuo, quase débil,
continuou a viver em Caracas. “Minha avó
complicados, de maneira simples e natural.
como o pintavam. “Ao contrário, era até mui-
achava que o livro não iria sair nunca. Nosso
Como ele teria feito, penso eu.” Livro pronto,
to esperto a respeito do que o interessava:
papo não levava menos de três horas. Isso
emoção extra: Stella o leu em voz alta para o
mulheres e birita”, resume Ruy Castro.
nos aproximou de uma maneira que eu não
avô, que já não enxergava bem. Depois, o via
Quando começou o projeto, em 1993, o
poderia nunca imaginar.”
conservar carinhosamente o exemplar, com
jornalista mineiro (autobatizado carioca)
A imersão na vida do compositor baiano
Dorival Caymmi:
o Mar e o Tempo,
Stella Caymmi,
Editora 34.
630 páginas.
várias coisas guardadas – retratos, convites,
era já autor experiente no ramo, com obras
a levou a uma descoberta surpreendente
recortes –, com cuidado redobrado. Um
Baixe a Revista Personnalité no iPad
como Chega de saudade, uma biografia da
que diz respeito a toda uma geração: a tão
exemplar que ninguém podia mexer.
e assista ao vídeo com Stella Caymmi
Bossa Nova, e O anjo pornográfico, a de
propalada “época de ouro” do rádio, nos
Nelson Rodrigues. Nos quase três anos de
anos 1940, musicalmente extraordinária, foi
entrevistas e pesquisas para reconstituir a
também uma barra. Como relata Stella, havia
vida do craque, surgiram surpresas, como a
os contratos absurdos, as sabotagens, a com-
descoberta de sua origem indígena, da tribo
uma doença, e é isso que continua matando
petição e a inveja que os artistas tiveram de
dos fulniôs, de Alagoas, e foram evaporados
os alcoólatras, tanto quanto o álcool.”
enfrentar. Histórias que não costumam apa-
equívocos, como o de que a cantora Elza
recer nos depoimentos sobre aqueles anos.
Insistir era preciso: o tema não só tinha
Soares teria contribuído para a destruição
relevância como partira daí o mote para fazer
“Me impressionei muito com esse outro lado,
do marido. “Foi o contrário, ele é que quase
o livro. O começo: Ruy queria reconstituir
desconhecido”, diz a biógrafa, que depois
a destruiu. E, se não fosse Elza, ele teria ido
a trajetória de um alcoólatra, mas não de
de lançar Dorival Caymmi – o mar e o tempo
para o buraco muito mais cedo”, afirma.
alguém que fosse um derrotado, e sim de
(Editora 34, 630 págs.) dedicou-se a recontar
um vencedor, que, apesar da glória, sucum-
esses bastidores do período em O que é que
biu. “Trinta segundos depois de formular
Garrincha, e quando Ruy iniciou a empreita-
mentalmente esse quadro, o nome piscou
da estava havia cinco anos sem beber, enten-
automaticamente.” Entre o biógrafo e seu
dia por isso os mecanismos da dependência.
personagem, havia outra coincidência – des-
E esse foi justamente o ângulo mais difícil de
ta vez de boa lembrança: o período em que
capturar. Não por causa dele, Ruy. Os entre-
o jogador se consagrou no Botafogo e na
vistados é que não gostavam de tocar no as-
seleção, de 1957 a 1963, foi aquele em que
sunto – há quem ainda negue que Garrincha
Ruy mais acompanhou futebol. “O fato de eu
bebia. “Se ainda é difícil hoje, imagine há 20
ser Flamengo não atrapalhou em nada, por-
anos”, conta o escritor. “As pessoas veem o
que, como todo mundo da minha geração,
alcoolismo como uma falha moral, não como
eu também era louco por Garrincha.”
50
a baiana tem? – Caymmi na era do rádio, que
Estrela Solitária,
sai ainda este ano pela Civilização Brasileira,
Ruy Castro,
Companhia das Letras.
536 páginas.
do grupo Record.
As intempéries que Caymmi atravessou
não surgiam nas entrevistas que concedia.
Primeiro, porque teve uma carreira de sucesACERVO JB / divulgação
seu biografado. O alcoolismo foi o que matou
TopFoto/Grupo Keystone / divulgação
Uma empatia particular ligava o autor ao
so, com começo meteórico gravando com
Carmen Miranda. Depois por seu próprio
temperamento, boa-praça e otimista. A separação dos pais de Caymmi na década de 1920,
desavenças com a mulher Stella e sobretudo
51
João Máximo, sobre Noel Rosa (1910-1937)
Jorge Caldeira, sobre Ronaldo Fenômeno
O caso em que Ronaldo passa mal na final da
do teve naquele dia foi um distúrbio de sono.
que, além de ter atendido Ronaldo, tem um
Morador da Vila Isabel desde os 3 anos – há
conceder a entrevista que confirmou o episó-
Copa do Mundo de 1998 é conhecido mesmo
Para contar a história do Fenômeno, o
pai que sofre de convulsões. “Por isso foi ca-
70 anos, portanto –, João Máximo sempre
dio: era o já famoso ator Mário Lago, para quem devido a uma ação movida por sobrinhas do
a história não teve tanta importância assim.
compositor (um problema que Ruy Castro
por brasileiros que não acompanham futebol.
sociólogo, autor de obras históricas elogia-
paz de descrever os sintomas diferenciais que
conviveu com o mito de Noel Rosa. Em 1980,
Para esse capítulo controverso da história
das como Mauá, empresário do império e O
confirmaram o diagnóstico”, garante Caldeira.
era redator no Jornal do Brasil quando iniciou
esportiva, as versões mais desencontradas
banqueiro do sertão, tomou duas decisões.
Quando a obra ficou pronta, o que
aos capítulos previstos. Fora de catálogo hoje,
Como não havia computador quando a
também precisou superar com Garrincha),
sua busca pelo ilustre compositor do bairro,
biografia foi escrita, o jornalista lembra que ba-
Noel Rosa – uma biografia, enquanto não é
tucava na Olivetti do jornal ou na Olympia semi- liberada, vale hoje uma pequena fortuna nos
circularam, até a de um inverossímil complô
Antes de começar, escolheu se concentrar
disse Ronaldo? “O único comentário que
o gênio que morrera precocemente, aos 27,
envolvendo patrocinadores – tudo lorota.
em um período: o livro giraria em torno da
escutei, numa rádio, foi assim: ‘O livro é
quase meio século antes, deixando um con-
portátil de casa. Avesso a guardar “páginas
sujas”, com correções a caneta, passava a limpo beu o convite de uma editora para escrever
e fazia cópias à mão. A cada depoimento trans-
o making of da biografia, tão rico quanto a
crito, distribuía em pastas que correspondiam
própria história que contaram.
vitória de 2002 e seu oposto, o desastre de
interessante porque tem muitos capítulos’.
junto de inesquecíveis obras-primas, como
naldo – glória e drama no futebol globalizado
1998 e as contusões nos anos intermediários.
É típico do estilo dele, bem Conselheiro
“Seu Jacinto” e “Pra que mentir?”.
(Editora 34, 320 págs.). Disposto a desvendar
Esse, o retrato que se propôs a fazer.
Acácio [o dizedor de obviedades criado por
Quem garante é Jorge Caldeira, em Ro-
Logo passou a ter um parceiro na emprei-
A outra escolha foi deixar de ouvir Ro-
Eça de Queirós]. Achei ótimo, me deixou
tada, o músico Carlos Didier, 20 anos mais
páginas de depoimentos para encontrar as
naldo pessoalmente. O que tinha nas mãos
tranquilo.” Caldeira conta que escreveu o
jovem. “Deu certo, e olha que era um troço
contradições. “Não teve convulsão alguma,
era já depoimento suficiente. Com um robô
livro de sua posição, a de torcedor da ar-
mais arriscado que casamento”, diz o jorna-
como tanto se fala até hoje”, diz. “Consegui
de busca na internet, fez o que chama de
quibancada. “Há 50 anos vejo jogos, nunca
lista. Até aquele dia, recolhera quantidade
ordenar os sintomas ao ponto em que pude
“uma pesquisa dos novos tempos”: “Havia
falei com jogador, nunca entrei no vestiário
razoável de reportagens em que encontrara
discuti-los com neurologistas.” Caldeira levou
declarações do atacante a cada dia de sua
nem sinto falta disso. Gosto da arquibanca-
mais perguntas que respostas. Nem o livro
a investigação até o encontro de uma solução.
vida”. Para esclarecer o episódio da Copa de
da, da conversa da galera.”
considerado à época como o definitivo, escri-
“As conversas foram se repetindo, até que
1998, realizou apenas uma entrevista de 10
consegui um diagnóstico seguro de mais de
minutos, por telefone, com o volante César
pelo Cruzeiro não o fez mudar de time:
tempo, foi tomado como palavra final. “Era
um desses médicos.” Resultado: o que Ronal-
Sampaio, que considerava figura-chave, por-
continua torcedor da Portuguesa.
preciso ir além do que se sabia. Não seguir
to por Almirante, outra grande figura daquele
O mergulho na vida do artilheiro revelado
roteiros dos primeiros biógrafos. Não tomar
cada coisa afirmada por eles como verdade, a
fim de ampliar”, explica Máximo.
Noel Rosa viveu pouco, mas a intensidade
com que viveu não facilitou a pesquisa. Foi
quase uma década de entrevistas com gente
que, por sorte, ainda estava viva. Nomes importantes da música popular brasileira, como
Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso, Ismael
Ronaldo: Glória e
drama no futebol
52
João Máximo
contribuíram com informações valiosas: um
Jorge Caldeira,
e Carlos Didier,
advogado que fora amigo de juventude do
LGE Editora.
compositor ajudou, por exemplo, a recuperar
534 páginas.
melodias de duas dezenas de sambinhas de
que restavam apenas as letras. Um general,
provavelmente sob influência dos turbulentos
últimos anos da ditadura, duvidou do propósito dos dois pesquisadores. Ele achou que
podia ser um atentado, e não uma conversa
divulgação
320 páginas.
uma biografia,
das. Personagens desconhecidos também
globalizado,
Editora 34.
Noel Rosa:
Silva, Mario Reis, Moreira da Silva, Silvio Cal-
Philippe Caron/Corbis/LatinStock / divulgação
o mistério desse episódio, juntou quase 800
sebos. João Máximo diz que há pouco rece-
para uma simples biografia. Mandou cercar o
prédio. Um rapaz que tomou uma namorada
de Noel Rosa demorou o quanto pôde para
53
“que raios estou
fazendo aqui?!”
Escondido dos pais, aos 17 anos, Rodrigo Fiúza pedalou de
Belo Horizonte a São Paulo. “Percebi que tudo era possível.”
Hoje, aos 36, cruzou mais de 60 países acelerando uma motocicleta:
“O que se aprende em uma viagem ninguém tira de você”
ARQUIVO pessoal
ARQUIVO pessoal
Por Millos Kaiser Ilustração Mauricio Pierro
Q
uando tinha 17 anos, Rodrigo Fiúza
burlou a vigilância dos pais, pegou
sua bicicleta e pedalou de Belo Horizonte, cidade onde nasceu e cresceu, até São
Paulo. Ele e o primo, seu cúmplice na
fuga, venceram mais de 600 quilômetros
só no pedal. “Foi quando percebi que era
capaz de qualquer coisa, que tudo era
possível”, diz. Nesse momento, a compulsão por aventuras, viagens e adrenalina se
instalou em Fiúza para nunca mais sair.
Hoje, aos 36 anos, ele já cruzou mais
de 60 países em cima de uma motocicleta. “Só falta ir até a Lua”, brinca – e, na
verdade, não falta tanto: os cerca de 236
mil quilômetros que já percorreu equivalem a dois terços da distância que separa
a Terra de seu satélite natural. Fiúza fez
55
cinco grandes expedições pelo globo (ver
mapa na pág. 56). Em 2004, desbravou –
em alguns trechos, de bicicleta –
o Oriente Médio, entregando aos governos de Israel e da Palestina uma mensagem de paz assinada por Lula da Silva,
presidente na época. Em 2008, pilotando
uma 250 cilindradas, deu a volta ao mundo em 89 dias, proeza que lhe rendeu o
recorde de homem mais veloz do mundo
em percursos longos, reconhecido pela
Federação Internacional de Motocicleta.
O fim da odisseia foi em Nova York, no
dia do Brazilian Day, a festa dos brasileiros na metrópole. Fiúza foi da moto
direto para o palco, juntando-se a Lulu
Santos e Banda Eva, onde discursou para
mais de 1 milhão de pessoas.
à esquerda, rodrigo fiúza posa diante de camelos no egito.
No alto, passando frio em chamonix, nos alpes franceses
_
As andanças de Rodrigo Fiúza
Oito dias sem banho
“O clima é sempre o meu principal oponen-
Acompanhe no mapa os principais roteiros do motociclista pelo mundo
te. Na Sibéria, além do frio, tive que vencer
3 mil quilômetros de estrada de terra sem
nenhuma cidade no meio, posto de gasoli-
Um urso no meio do caminho
na, lugar para dormir, nada. Imagine ter de
“Cheguei no Canadá e todo mundo me
montar a barraca depois de rodar 500 quilô-
falava para tomar cuidado com os ursos
metros. Fiquei oito dias sem tomar banho.”
na estrada. Não deu outra: avistei de longe um urso bem no meio da pista. O que
eu fiz? Virei bicho também. Levantei o
capacete, fiquei em pé na moto, comecei
a gritar e a buzinar. Ele foi embora.”
Namorada em Vladivostok
“Cansei de ir viajar namorando e voltar
solteiro. Não dá. É muito tempo longe.
Mas, mesmo assim, arranjei duas namoradas na estrada. Uma árabe, com burca e
tudo, e outra em Vladivostok. Com essa,
foi sério, até voltei para visitá-la dois anos
depois. Mas não deu certo, ela queria casar
e, na verdade, minha namorada é a moto.”
56
Peso pesado
Templo dos ratos
“Nunca caí da moto. Mas ela já caiu em
“A coisa mais louca que vi na vida foi o Tem-
cima de mim. Estava parado em um
plo de Karnimata, no norte da Índia, onde
posto de gasolina na Itália e ela tombou.
há mais de 20 mil ratos vivendo com as
Por causa da força que fiz para segurá-la,
pessoas. Eles acreditam que o ser humano
rompi o tendão do bíceps. Ele foi parar
vira rato quando morre e vice-versa. Vi um
no meio do braço, um horror. Mas segui
senhor bebendo leite do mesmo pires de
viagem assim mesmo, estavam me espe-
um dos animais. Quando estranhei, ele disse
rando no Brazilian Day, em Nova York.”
que aquele rato era um familiar.”
57
_
Escolha seu roteiro
de motocicleta
São Paulo ao Rio de Janeiro
O caminho que liga as duas capitais tem
como pano de fundo a Serra da Mantiqueira. No percurso, há duas boas paradas,
uma para cada gosto: Campos do Jordão
(e seu clima de montanha) ou Ilhabela
(com boas praias).
Estrada Real
Refaça a histórica via que servia para a
escoação de metais preciosos durante a
época do Brasil colonial. Saindo do quilômetro 213 da Dutra, ela passa por Passa
Quatro, Pouso Alto, Caxambu, Baependi,
Cruzília, São Tomé das Letras, Carrancas e
São João del Rei. Durante o percurso, há
diversas fontes de água mineral e cachoeiras para se refrescar.
São Paulo a Florianópolis
“na sibéria,
foram 3 mil
quilômetros
de terra:
oito dias sem
banho”
Flow Feeling
De acordo com Renato Miranda, doutor
em psicologia do esporte, Fiúza não é
maluco. É apenas um apaixonado pelo
58
Pela estrada Regis Bittencourt, a viagem
acima, moto estacionada em trecho da transiberiana, na rússia
dura apenas dois dias. Mas, como para os
motoqueiros o que importa é o caminho, dá
para ir fazendo aos poucos. Curitiba e seus
diversos pontos turísticos – como a Ópera
de Arame, o Museu Oscar Niemeyer e o
Jardim Botânico – são uma opção. Muitos
gostam de pegar a Rodovia do Café, que
passa por trechos de serra e cidades como
Guaruva e Joinville até chegar em Floripa.
Chile e Argentina
É o roteiro feito por Che Guevara. Cruze os
Andes e passe por cidades como Osorno,
San Carlos e Bariloche. Prepare-se para ver
vulcões, montanhas nevadas e desertos
em uma mesma viagem.
ARQUIVO pessoal
“Completamente doido” é como o
publicitário Sérgio Almeida, 42 anos,
define o amigo Rodrigo. “Mas ele é um
louco consciente, que sabe até onde
pode ir.” Almeida é responsável por formatar as ideias de Fiúza em projetos e
apresentá-los para empresas em busca
de patrocínio. “Agora, com as leis de incentivo à cultura, fica mais fácil custear
as viagens. Produzimos documentários
e fotos durante os trajetos, então temos
um produto para apresentar”, explica. E
Almeida pega a estrada também? “Vou
em certas etapas, mas sou aventureiro
de butique. No final do dia, preciso tomar meu banho.”
ARQUIVO pessoal
Para cada dia de glória, no entanto,
houve muitos outros de puro aperto, de
frio e calor extremos, de desgaste físico
e de solidão. “Passo o tempo quase todo
em cima de duas rodas, não dá para
conversar com as pessoas. Muitas vezes
fico mais de uma semana sem falar com
ninguém. Mas fui aprendendo a diferenciar estar só de ser só. Sempre que abro o
e-mail e vejo mensagens de gente de todo
o Brasil, me sinto renovado.”
Ele confessa: em todas as viagens, há
sempre o momento em que o arrependimento bate. “Fico me perguntando: que
raios estou fazendo aqui?! Por que não
escolhi uma vida normal, um emprego
formal?!” Mas, no fim, o esforço compensa. “O que se aprende em uma viagem
ninguém tira de você. Pego a estrada porque não conseguiria fazer outra coisa. É
um impulso que vem de dentro.”
Rota 66
O clássico dos clássicos, graças ao filme
Easy Rider. A estrada vai do Novo México
até a Califórnia, passando por Santa Fé.
que faz. “A teoria do flow feeling explica
o comportamento dele. É um estado
mental em que as pessoas parecem fluir,
daí o nome. Quando ela descobre algo
de que gosta e mergulha nisso, produz
um comportamento supermotivado, no
qual a noção de tempo e a tolerância a
dor, por exemplo, são alteradas. A pessoa
sente tanto prazer dedicando-se a tal
atividade, quer tanto vivenciá-la, que
aceita os riscos”, explica. E emenda: “É
o que chamamos de experiência autotélica: a finalidade é o próprio processo. É
comum em bons esportistas, artistas ou
na pessoa imersa em alguma prática”.
Mesmo assim, a família de Fiúza
também já usou adjetivos semelhantes
a maluco para classificá-lo. Principalmente quando ele, aos 19 anos, largou
59
a faculdade de economia, o emprego, o
terno e a gravata para se jogar na vida
de aventureiro. “Meu pai até parou de
me dar dinheiro quando tomei a decisão. Tive que ir na cara e na coragem
até São Paulo tentar vender meus projetos”, conta. Hoje, sua sandice virou
business. Fiúza fundou a Loucos por
Aventura, empresa de turismo que inicia leigos em esportes radicais.
Claro que ele já tem uma nova viagem
programada: quer explorar Austrália,
Indonésia, Cingapura, Tailândia, Camboja, Malásia, Laos, Vietnã e Japão durante
dois meses a partir de agosto. Assim,
completará os cinco continentes. Nem no
motociclismo nem no jogo War alguém
já fez coisa igual. Depois, talvez, só falte
mesmo a Lua para Fiúza visitar.
a partir do alto, abastecendo a moto em posto no saara, no norte
da áfrica; a namorada árabe que fez na viagem; o aventureiro
com o tendão do bíceps rompido; diante do kremlin e da catedral
de são basílio, em moscou; e posando para foto no canadá
RODRIGO SANTORO pergunta:
Como
faria um
símbolo
para o
Rio de
Janeiro
da Copa?
60
Filipe Jardim responde:
Faria desenhos inspirados na ilustração da capa do disco Baden
Powell à vontade (1964), criada pelo designer Cesar Villela, em que
o músico surge sentado, de pernas cruzadas, tranquilo, à vontade
olhando para cima, tocando seu violão. Simplesmente tudo a ver
com o espírito carioca e brasileiro, algo mais descontraído!
61
Por Edmundo Clairefont, de São Paulo Ilustrações Filipe Jardim, do Havaí
A VOLTA AO MUNDO EM 1
filipe
jardim
Lisboa, Paris, São Paulo, Rio de Janeiro e Japão explicam os traços
de Filipe Jardim, o ilustrador brasileiro mais importante do mundo
da moda. O autorretrato enviado do Havaí também ajuda
a entendê-lo: “Aqui estou vivendo uma fase em que posso equilibrar
o ar livre e o trabalho. E tem a questão de uma certa solidão”
Personnalité
F
ilipe Jardim é um homem famoso. Não do tipo Gisele, Pelé
e Elvis. Filipe Jardim é mais como se fosse um Sepultura,
um Vik Muniz, um Carlos Saldanha. É uma fama modesta e tipo
exportação: seu nome toca mais sinos lá na Europa, lá no Japão,
lá nos Estados Unidos do que no Brasil.
Filipe Jardim é ilustrador. Seus trabalhos, quase sempre
relacionados ao olimpo da moda, já coloriram produtos da
Hermès, da Tiffany & Co., da Issa London. Assinou uma
linha de tênis para a Converse. É o único brasileiro a ter sido
contratado pela Louis Vuitton para desenhar um dos festejados
carnets de voyage. Um carnet de voyage é um caderno ilustrado
com roteiros, cenas e monumentos de um local específico.
Espécie de diário, agenda, bloquinho de notas e objeto de
desejo, um carnet é como um big bang na carreira de um
ilustrador. Tem tiragem reduzida e as edições esgotadas são
vendidas em sites de leilão por mais de US$ 1 mil. “E, cara, eu
fui muito bem pago”, diz Filipe. “Bem pago pra andar pelo Rio
de Janeiro, a minha cidade, de chinelo e ficar lá, só desenhando,
olhando tudo, uma beleza...”
Filipe Jardim já desenhou uma porção de vezes (“eu não
lembro quantas”) para a revista The New Yorker e outras tantas
para a Wallpaper. Foi convidado a idealizar tapumes que
cobriram o aeroporto Charles de Gaulle, em Paris, durante
uma reforma. E, mesmo no Brasil, é um benquisto do São Paulo
Fashion Week. Por dez anos, convidaram Filipe para criar
ilustrações que decoravam os bastidores dos desfiles. Concebeu
estampas para a Amapô e a Neon, “a minha turma de belasartes, do modernismo, do avant-garde, do tropical e do urbano
que não tive no Brasil quando era moleque”.
Aos 45 anos, Filipe Jardim já morou ou gastou temporadas
em São Paulo, Londres, Milão, Nova York, Paris e Tóquio.
Passou dias em camarins de desfiles, “vendo as mulheres mais
lindas do mundo ali, nuas, se trocando, aquela coisa natural,
meio inacreditável”. Estilistas, diretores, gente com grana, gente
com fama, gente com roupas caras, gente importante. Tudo isso
gravita em torno do traço de Filipe Jardim.
O traço de Filipe Jardim, aliás, é um outro negócio
interessante. É como se o Oscar Niemeyer desenhasse suas
coisas aboletado numa rede e vestindo regata, gostasse de
gibis de Corto Maltese e ganhasse a vida fazendo – em vez
de cidades, parques e prédios – croquis para um Clodovil ou
64
filipe jardim
um Dener no auge da forma. Mesmo muito coloridas, as
ilustrações são cheias de brancos e linhas tortas. O artista
parece ter pressa de ir ao próximo desenho. Essa velocidade
é um naco de personalidade essencial para entender Filipe
Jardim: ele gosta de movimento.
ESCONDIDO NO HAVAÍ
Filipe Jardim é um cara estranho porque surpreende.
Na entrevista, é capaz de ficar em genuína dúvida consigo
em relação ao mecanismo consumista da moda (“as pessoas
compram roupa demais, cara. Acho isso maluco”). Ele fala
palavrão e gíria o tempo todo, mas um palavrão e uma gíria
não do tipo afetado, agressivo, mas no feitio malandro,
engraçado e carioca. É surfista. Quando surfa, diz coisas como
“altas ondas” e “pico maneiríssimo”. Até por isso, nos últimos
três anos, passa os verões no Havaí, um pico maneiríssimo.
Alugou um quartinho no arquipélago onde montou
um dormitório/escritório/estúdio rústico. Ali, pendura
ilustrações, fotos, estudos e colagens nas paredes. Não revela
o nome da ilha em que está. A explicação: “Olha só: é respeito,
sabe? Eu sou um viajante, não um turista. Venho pra cá e
fico morando... É diferente. Só tem os locais na área. Eles são
bem discretos, que é pra coisa não estragar, não ter invasão
turística. E eu entendo isso, cara. Eu entendo. Diz aí na revista
que aqui é o Havaí, ponto final”.
Filipe Jardim é também fotógrafo amador, usa camisetas
de US$ 3 e torce para o Fluminense. Gosta de fazer analogias
futebolísticas: “Eu adoro surfar, né? Mas não é como se eu
fosse um craque surfando. Os caras aqui são de outro nível.
E se você não pode jogar igual ao Neymar e ao Fred, você faz
o quê? Vai ao estádio e assiste aos caras. Aqui no Havaí, eu
faço isso: fico às vezes ‘no estádio’, na areia, e vejo esses caras
surfando, alucinante. Agora, eu também bato a minha pelada e
pego a minha ondinha, né? Eu jogava futebol no Rio, né, cara?
Fui meio pereba, mas dava pro gasto. Era aquela coisa de jogar
na praia com os amigos. Eu gosto de praia”.
Filipe Jardim não tem filhos, já foi casado duas vezes, fala
bastante sobre mulheres “gatas”, diz que não tem medo de
morrer, mas de como vai morrer. Uma reflexão sobre o fim
da vida: “Não sei, mas acho que o melhor lugar pra ser velho,
mesmo, no mundo, é o Posto 6 em Copacabana. Aqueles
“aqui no havaí
tem a questão
da solidão, mas
é bem-vinda,
é produtiva”
velhinhos jogando carta, as babás carregando eles pra lá e pra
cá, e tem aquele monte de mulher passando, aqueles biquínis
todos, aquela gente, aquela vida toda”.
Filipe Jardim está feliz do jeito que está. “Aqui no Havaí,
estou vivendo uma fase em que posso equilibrar o ar livre e o
trabalho. E tem a questão de uma certa solidão, que é muito
bem-vinda. É uma solidão produtiva.” Quando fica muito longe
do Brasil, sente falta das cabrochas e da folia do Carnaval.
“Cabrocha” é um jeito de dizer “mulher brasileira”. Ele
pretende publicar dois livros em breve, mas ainda não fechou
os temas e as datas. Embarca agora no primeiro semestre para
uma temporada no Japão. Depois, não sabe. Imagina, no futuro,
que vá fazer a transição das ilustrações encomendadas por
clientes importantes para as paredes das galerias. Resiste a esse
movimento porque tem “muita preguiça dos processos das artes
plásticas. A coisa do curador, a produção, a galeria pedindo pra
fazer algo. Acaba parecido com um escritório. Acho que deveria
ser um formato mais livre. Não acho muito sedutor como as
desenhos feitos no havaí mostram o estilo de vida local:
caminhonetes para carregar todo o equipamento de praia;
e as casas simples dos colonos do north shore, em Oahu
65
Personnalité
filipe jardim
coisas são. Aquele mundo elitista das bienais me parece pouco...
livre. Eu só quero ver um jeito de fazer do meu jeito”.
Filipe Jardim tem jeitos. Ele gosta, por exemplo, do jeito da
natureza pela manhã. E tem um jeito curioso de registrar suas
experiências viajantes: desenha símbolos que servem como
gatilhos de memória. Se vai jantar em uma cidade nova, rabisca
o logo do restaurante. Quando o vê, anos depois, recorda de
detalhes, como o prato que comeu, se era uma omelete ou uma
salada. “É um diário gráfico”, diz.
agitado, mas centrado
Filipe Jardim é inteligente e profissional. Responde e-mails
rapidamente. Explica que não é muito de ler livros ou ir a
museus, mas cita sem afetação Júlio Verne, Hugo Pratt e
Murakami. Sua rotina atual: acorda antes das 9 horas, trabalha
um pouco, pega onda, almoça, sai para resolver coisas e ficar
“ao ar livre”. Volta para desenhar. Janta com a família com
quem divide a casa entre 18 e 20 horas. Dorme às 22 horas.
É generoso e ganha bem, embora menos do que parece:
ele não tem casa própria, só um apartamento alugado no Rio
de Janeiro, nem pode parar de trabalhar. Mas já levou uma
empregada que nunca havia entrado num avião para conhecer
Paris. Vive em trânsito, o que é um reflexo extremado de sua
personalidade. Ele não para porque não quer parar.
É agitado, mas centrado. Faz uma vitamina de açaí
enquanto dá uma entrevista via Skype (“Me dá um minutinho.
Eu vou só ali bater um açaí no liquidificador. Daí a gente
volta”). Estanca a conversa e um raciocínio para mostrar uma
música dos Novos Baianos ou falar sobre o rap de Frank Ocean.
Elogia Fela Kuti, Miles Davis, Naná Vasconcelos e Luciano
Berio. E, depois disso tudo, retoma a conversa e o raciocínio
exatamente do ponto em que parou. É como se fosse um
monge que faz esporte e gosta de festa. Até porque “eu gosto
de festa”, ele diz.
À Revista Personnalité, Filipe elegeu cinco locais que
representam aspectos de sua personalidade, momentos e
traços de sua vida. Fez um autorretrato exclusivo e desenhou
cada um desses destinos como o roteiro de uma volta ao
mundo e à sua história. Antes de encerrar a entrevista,
esticou o mindinho e o polegar, girou o pulso e fez o bom
e velho hang loose, um sinal universal de irreverência e
saudação. E, aí, levantou e disse: “Valeu”.
66
Independente: romance em Lisboa
“Fui pra lá estudar na Belas-Artes aos 18 anos. Isso de 1986 até 1992. Sem cartão de crédito, sem internet, longe da família.
Foi o corte total do cordão umbilical. E ganhei asas pra grandes aventuras por Europa, norte da África e ilhas do Atlântico.
Anos de formação cultural profunda. Muitos shows do Egberto Gismonti, do Naná Vasconcelos, do Fela Kuti, do Miles Davis.
Vi Pina Bausch, ouvi Luciano Berio, Stockhausen etc. etc. E as inúmeras viagens de surf pelas ondas geladas do continente.
Foi em Lisboa, vivendo na charmosa rua Século, que vivi meu primeiro romance. Vida boa.”
A vista da cantina das freiras, em lisboa, de onde se vê o rio tejo
servido de boa comida. Na página ao lado, backstage do desfile
de alexandre herchcovitch no São paulo fashion week
67
Personnalité
Ambicioso: na melhor em Paris
filipe jardim
Mutante: agitos em São Paulo
“Recebi de uma amiga o convite para desenhar os backstages do São Paulo Fashion Week em 2002. E, durante quase
“Fui morar em Paris em 2003. A Louis Vuitton havia lançado o carnet de voyage do Rio de Janeiro com meus desenhos
dez anos, eu vinha de onde estivesse para cobrir a semana de moda. Sempre desenhando. São Paulo tem essa coisa do tra-
no ano anterior. Foi o meu turning point. Decidi que era hora de voltar à Europa. Dessa vez escolhi Paris, por ser o centro
balho, de funcionar. Foi bem importante pra minha carreira, aonde precisei ir pra fazer o meu trabalho começar a engrenar.
de moda, do comportamento. Escolhi como desafio pessoal, pra expandir meus horizontes culturais. Deu certo. Saí dos tra-
Fiz muitos amigos, fui às festas mais divertidas, sobretudo as da turma da Neon... Nada se compara às noites de São Paulo.
balhos domésticos e passei para os internacionais. A internet e o Fedex já funcionavam como ferramentas de envio
Sua agitação, seus restaurantes, o universo urbano sofisticado. A arquitetura modernista. Eu sou mutante.
de trabalhos para qualquer lugar. O estúdio podia ser rapidamente improvisado na casa de amigos, em hotéis e em casas
Em São Paulo, o meu bicho muda. É também o meu canal profissional no Brasil, onde rolam os melhores trabalhos.
de praia. A cidade oferece o prazer da ausência do carro. Dá pra fazer tudo de bicicleta, metrô.”
Um lugar sério, bom pra trabalhar e pra mergulhar de cabeça na cultura. Grandes amigos!”
68
Prédios da avenida paulista, em são paulo. na página ao lado, a
Rua charlot, no 3eme, em paris, área repleta de pequenas lojas,
restaurantes e galerias de arte
69
Personnalité
filipe jardim
Generoso: jardim japonês
“O Japão é a mistura dos hábitos milenares, da tradição, da delicadeza, da extrema educação, da comida dos deuses,
da limpeza, do respeito, da tecnologia avançada. Um lugar superpopuloso com aqueles jardinzinhos delicados.
O Japão também é os onsens (as águas termais), os livros, a impossibilidade de compreensão. Nunca gostei do filme
Encontros e desencontros, da Sofia Coppola. Os personagens ficam no hotel. A minha pegada é outra: viver como as
pessoas vivem no lugar. Sou uma pessoa muito privilegiada. Sou remunerado pra poder viajar. O lance do dinheiro é isto:
acho quase um milagre viver estes últimos dez anos só do meu desenho. E viver bem. Mas não sou rico. Não comprei
apartamento. É que tive uma educação generosa. E caixão não tem gaveta. E a gente leva da vida o que a vida leva.
São clichês, mas são verdades. Viver bem é viver bem com quem tá do seu lado. Eu divido a minha grana. E sou muito feliz.
É só olhar em volta agora. Agradeço aos deuses. Como qualquer um, tenho as minhas angústias e meus momentos de
infelicidade. Mas não tenho medo de ficar velho. Tem coroa aqui surfando com 60 e tantos anos. Tenho medo é de sofrer.
Você quer viver o máximo, né? Esta é a grande questão filosófica: o máximo... Viver o máximo. Conseguir o máximo.”
Curioso: menino no Rio
“A cidade onde nasci, fui criado. Minha mãe é uma professora de línguas e de piano. Ela estimulou esse meu lado cultural. Já até brinquei de tocar bateria. Meu pai é aposentado do BNDES, símbolo total do burocrata, aquela coisa zero
sonho, pé no chão. Vivi ali, com eles, até os meus 18 anos. É a cidade que mistura cultura sofisticada, popular e natureza
alucinante. Um mix quase imbatível, se comparado às outras grandes cidades do mundo que conheci ou em que morei.
Quase nenhuma delas oferece tantas possibilidades de esportes ao ar livre. O surf nasce pra mim ali. E o que dizer
da música? Samba, funk, grandes movimentos inovadores saíram do Rio. A contracultura, a Tropicália, o rock Brasil.
A renovação dos sambas de rua, o samba na Lapa, os bailes funks. O Rio sabe se divertir. E sabe fazer arte.
Artistas de peso moram e criam na cidade. Consigo entender por quê.”
70
vista do antigo restaurante rio’s, no aterro do flamengo, rio de
janeiro: prédios dos anos 50 e o jardim de burle marx. na página ao
lado, piquenique no dia da festa do templo de asakusa, em tóquio
71
Por Roberto Ferreira
Às vésperas do aniversário de 90 anos, o hotel mais conhecido
do Rio de Janeiro recorda histórias de uma época em que entrar
no mar dava cadeia. “Parabenizo-me desde já”
DIVULGAÇão
“eu sou o
copacabana
palace”
Copacabana palace, na década de 1920
S
o interior do hotel em 1975; e os convites de inauguração
do hotel e da piscina do copa
DIVULGAÇão / FolhaPress / Photos12.com/Other Images
enhor de 89 anos, poliglota, caucasiano, de posses, gosto refinado,
família tradicional, bons modos à mesa
procura hóspedes de igual valia para
celebrar importante data. Cartas para
avenida Atlântica, 1.702, Copacabana, Rio
de Janeiro, Brasil.
Sim, sou nascido no Brasil. Digo
nascido porque, no âmago, no que há de
mais profundo em minha alma, sintome europeu. É lá, na costa francesa, que
estão meus irmãos Carlton e Negresco
(obviamente não me refiro à cigarrilha
ou à guloseima). Em Paris, habita Lutetia;
em Londres, Ritz: primos distantes. Nunca nos vimos que não por fotografia, mas
quem nos conhece atesta a similaridade.
São carne da minha carne, mármore do
meu mármore, sangue do meu sangue.
Cresci numa cidade de calor e desregramento. Pouco importa. Como convém
a um senhor da minha estatura, tenho
normas. Estritas. Imutáveis. Inapeláveis. São 18, servem aos serviçais, estão
anotadas no Código de Empregados da
Companhia de Hotéis Palace. Quem a
mim se subordina, há de sabê-las: evitar
dar opiniões, não contradizer os clientes,
ignorar excentricidades alheias, pouco
conversar, mesmo se solicitado. Quem
em meus aposentos se hospeda, também
deve seguir certo padrão. A saber: a fidelidade conjugal. O que de selvagem habita o homem, faz-se fora. Repudio, e impeço, sem delongas, a entrada das senhoras
da vida. Aqui se preza a família.
Nasci em 13 de agosto de 1923, por
desejo de Epitácio Pessoa e obra de
Octávio Guinle. Epitácio era presidente
da república, na época em que a capital
era o Rio de Janeiro; Octávio era empresário, e dono do hotel Palace, no Centro.
A ideia era que eu estivesse pronto um
ano antes, para a Exposição do Centenário da Independência. Não se fez possível. O bom vinho amadurece no barril.
O bom hotel amadurece nas fundações.
74
Quando vim à luz, houve baile,
houve festa: empetequei-me com lustres tchecos, mobiliário sueco, tapetes
ingleses, porcelanas de Limoges, mármore de Carrara. Guardo comigo um
exemplar do Jornal do Commercio que
descreveu tão nobre data: “Nossa alta
sociedade lançará hoje, através dos ventos e dos mundos, por intermédio dos
touristas que por ali passarem, o que a
América do Sul possui de mais grandioso e luxuoso na architectura moderna”.
Tenho predileção pela seguinte parte:
“Os ‘diner dansands’ e os ‘thé’ elegantes
e as demais reuniões que nosso ‘grand
monde’ tanto aprecia serão ali realizadas com carinho e grande ‘chic’”. Não se
escreve mais como de outra feita. Saudoso fico quando leio da boa imprensa.
O grand monde, de fato, a mim se
curvou. Aos 2 anos de idade, conheci
Albert Einstein, que elogiou-me a cidade
e o Jardim Botânico. Na adolescência,
recebi Orson Welles, que, em desavença
conjugal, atirou parte dos móveis em
minha piscina (quem não teve um
mínimo atrito no lar? Perdoei-o). No meu
salão de música – para os íntimos, Golden
Room –, dei voz a Jospehine Baker, a Ella
Fitzgerald, a Edith Piaf (como cantava a
francesa). Também ouvi Tom Jobim, Nat
King Cole e Charles Aznavour. Nos meus
leitos, deitei Anita Ekberg (voluptuosa), a
princesa Diana de Gales (discreta, nadava
às duas da manhã, para evitar a balbúrdia)
e Ava Gardner (estava triste, recémseparada de Sinatra).
Fiz concessões a Bill Clinton: permiti
que Marco, um cão farejador de bombas, o acompanhasse no lobby do hotel.
Fui duro com Francis Ford Coppola: o
proibi de entrar no Cipriani (meu salão
de repasto) até que trocasse bermuda
por calça. Me mantive irredutível com
Rod Stewart: nos anos 1980, neguei-lhe
quarto quando tentou hospedar-se pela
segunda vez. Da primeira, transformara
quatro suítes presidenciais numa quadra
de futebol. Expulsei-o.
Homens do rock, faz-se dizer, nunca
me foram caros. Alice Cooper obrigoume, por dois dias, a esvaziar a piscina
para retirar copos e garrafas atirados da
janela. Keith Richards exigiu um maço de
acima, cena do filme Copacabana Palace (1962), do diretor steno,
com trilha sonora de joão gilberto e tom jobim. na foto, estão
Gloria Paul, Walter Chiari, Paolo Ferrari e Sylva Koscina
75
“nos meus
leitos,
deitei anita
ekberg,
diana de
gales e ava
gardner”
Juan Carlos da Espanha exigiu hospedarse no apartamento cativo de Mariazinha Guinle (viúva do falecido Octávio),
empertiguei-me. De tudo, ao meu criador
sempre fui atento. E como não sê-lo?
Nos idos anos 1920, Copacabana era um
bairro ermo; edifício outro ali não havia.
A praia mal se frequentava, salvo por motivos médicos (lembro-me que em 1917 o
prefeito Amaro Cavalcanti estipulou uma
pena de cinco dias no cárcere a quem
mergulhasse após as oito da manhã; à
época, pareceu-me correto). A vida se
vivia no Centro e, mesmo por lá, casa,
sobrado ou prédio nenhum voltava suas
portas ao mar. Fui, na cidade, um dos primeiros a encarar, sem medo, o horizonte.
Nasci como uma aposta da cidade,
do estado, da pátria e da família Guinle
– e como tal fui progredindo. Quando,
na primeira infância, apenas seis dos
meus 241 quartos se fizeram ocupar,
“george
michael
enviou-me
55 páginas
de vontades
antes de
hospedar-se”
Bettmann/CORBIS/LatinStock / A Veiga /CPDOC jB / Evandro Teixeira/CPDOC jB / Gil Rodrigues/Foto Rio News
cigarros a cada um metro e meio em seu
quarto. George Michael enviou-me 55
páginas de vontades antes de hospedarse. Filas serem cumpridas; ele parece ter
aprovado. No período de estadia, veio a
conhecer um estilista brasileiro, a quem
muito se afeiçoaria nos anos vindouros.
Na política, primei pela discrição.
Tenho, da porta para fora, minhas opiniões. Tenho, da porta para dentro, minhas obrigações. Acolhi Nelson Mandela,
recebi Getúlio Vargas, conheci o comandante Castro. Fernando Henrique esteve
aqui; Luiz Inácio esteve aqui. (A atual
prefere casas rivais, é assunto que não
entendo e do qual escolho me abster.)
Quando Tom Cruise reservou duas
suítes presidenciais para sua filha Suri,
aceitei. Quando o roqueiro Gene Simmons atravessou a porta giratória de tamanco e maquiagem, como se aqui fosse
palco do Kiss, ignorei. Mas quando o rei
brigitte bardot (1964); rod stewart e a noiva (1978); princesa
diana na piscina do hotel (1991); e tom cruise (2013)
Octávio em nada reclamou. Quando, na
adolescência, exigi os cuidados de 1.400
serviçais, Octávio os contratou. Quando,
na vida adulta, sugeriram minha debacle
(para me verter em hediondos prédios
comerciais envidraçados), Mariazinha
Guinle, já então viúva, foi peremptória:
patrício nasci, patrício morreria.
Mas não morri. Vinte e quatro anos
atrás, já tombado, passei-me aos cuidados
de uma rede internacional (na verdade,
fui vendido, mas precificar-me é fato
ignóbil que prefiro não lembrar). Perdi
serviçais (hoje são 520), ganhei clientela
(90 mil me visitaram no último ano),
tornei-me rentável. Mariazinha morou
até o fim da vida em meus aposentos.
Jorginho, seu filho, também num quarto
padeceu. Hoje há uma única senhora
com residência sob meus cuidados. Tem
mais de 100 anos. Será a última.
Os nomes da música pop continuam
a me visitar. As madames de oncinha,
com seus bebês e suas babás, continuam
a me visitar. Os senhores do gado, do
aço, do óleo, da soja, do jogo, da bossa
continuam a pagar R$ 6.800 pelo direito de, por uma noite, no mais alto dos
meus andares, poderem me visitar.
Nos meus 89 anos de vida, vi mulheres em traje de núpcias às centenas
e estrangeiros, em traje de estrangeiros,
aos milhares. Vi o casario de Copacabana
cair, o emaranhado de prédios vizinhos
O interior do hotel recentemente, depois da última reforma
77
subir, a avenida que me margeia aumentar. Acompanhei o Rio de Janeiro perder
o posto de capital federal ( jamais perdoarei JK), entristeci-me quando as ruas se
tornaram um lupanar a céu aberto (tem
melhorado). Sou testemunha da história.
Daqui de cima presenciei a multidão
se unir em protestos políticos, passeatas
libertárias, passagens de ano catárticas.
Enciumei-me quando um cavalheiro alto
e envidraçado da concorrência ganhou
uma cascata de fogos. Passado um tempo,
insuflei-me com desprezo: quem reina
todo dia não carece de uma noite de principado. Assim tem sido nos últimos anos,
assim será. No dia 13 de agosto, me torno
nonagenário. Desde já, parabenizo-me.
FILIPE JARDIM pergunta:
Como a
música
brasileira
influenciou o Paralamas?
HERBERT VIANNA responde:
Nós chegamos à música brasileira via Jamaica e África.
Primeiro, nos interessamos pelo reggae. Depois, pela música
africana dos anos 80. Daí vimos semelhanças com o que
acontecia no Brasil e fomos naturalmente incorporando e
misturando tudo isso. O Hermano [irmão] sempre foi muito
curioso e me mostrava muitas coisas, assim como o Bi [Ribeiro].
78
79
Por Adriana Del Ré
“Me sinto
completo
no palco”
Antonio Cunha/C.B./DA Press
Herbert Vianna celebra 30 anos de Os Paralamas do Sucesso
em turnê nacional que começa em São Paulo. Para a Revista
Personnalité, o baixista Bi Ribeiro e o baterista João Barone
dão depoimentos exclusivos sobre o guitarrista e líder da banda
herbert vianna fazendo o que mais gosta na vida: se
apresentando, no palco. show em brasília, dia 25 de
janeiro de 2013, no estacionamento do ginásio nilson nelson
Personnalité
herbert vianna
M
Mauricio Valladares
anter a guitarra por perto lhe traz reconforto. E têla em punho o faz transcender, se reconectar com
antigas memórias, continuar em frente. Foi em companhia
dela que Herbert Vianna criou uma identidade musical com
versos tão populares como “Se as meninas do Leblon não
olham mais pra mim, eu uso óculos...”. Preservando o espírito
do jovem músico ávido por estar no palco, Herbert celebra
agora 30 anos de sua banda Os Paralamas do Sucesso, ao lado
do baixista Bi Ribeiro e do baterista João Barone, com uma
turnê comemorativa que começa este mês em São Paulo.
“É no palco que me sinto completo. Esse contato
olho no olho com nosso público, essa troca de energia
me fascina muito”, conta o vocalista e guitarrista de um
dos mais queridos e longevos grupos do rock brasileiro.
Paralelamente, ele acaba de lançar seu quarto disco solo,
Victoria, em que imprime a própria versão a canções suas
gravadas por outros intérpretes.
Aos 51 anos, Herbert percorreu um longo caminho até
aqui, marcado por recomeços, readaptações. Natural de João
Pessoa (Paraíba) e filho de pai militar, ele, junto com seus
irmãos Hermano e Helder, passou anos mudando de cidade
para cidade. Ao morar em Brasília, ainda moleque, conheceu Bi
Ribeiro. Em 1977, Herbert se mudou para o Rio, mas Bi estava
sempre lá e, certa vez, levou um baixo a pedido do amigo.
Os ensaios de final de semana ganharam endereço fixo: a
casa de dona Ondina, avó de Bi. Foi lá que o guitarrista Dado
Villa-Lobos, ex-Legião Urbana, então com 15 anos e amigo
de Bi, conheceu Herbert, quatro anos mais velho. “Herbert
já ali virou ídolo. Era o cara que eu mais tinha visto tocar
guitarra ao vivo, um músico extremamente sensível, técnico
e emocionante”, lembra Dado, hoje com 47 anos. “Além
da questão da musicalidade, me chamava atenção a
determinação dele, a força que ele transmitia quando estava
tocando, cantando.”
Nascido em uma família de classe média, Herbert
pensou em uma opção profissional segura quando chegou
a hora de decidir o que fazer da vida. Ele entrou na
faculdade de arquitetura na Universidade Federal do Rio de
Janeiro, e Bi, na de zootecnia da Universidade Rural. E foi
justamente em um festival de música na Rural que os dois
foram apresentados a João Barone, que substituiria Vital –
homenageado na canção “Vital e sua moto” – na bateria.
Empresário dos Paralamas desde o início, José Fortes era
da mesma turma de Herbert na faculdade. Ele lembra que o
amigo era bom aluno de arquitetura, mas que o que gostava
_
“Ele espera voltar a andar”
mesmo era de música. “Ele se dividia bem entre as duas
áreas, mas, na hora que começou a acontecer alguma
coisa na música, ficou difícil e ele largou a faculdade
antes de terminá-la.”
Principal compositor da banda, Herbert se considera
um perfeccionista no trabalho. “Procuro sempre ir ao
limite, até onde eu consiga, para fazer o melhor”, admite.
O caminho ascendente de seu grupo encontrou percalços,
mas o pior estava por vir no início dos anos 2000. A banda
já se dedicava ao álbum Longo caminho quando, em 4 de
fevereiro de 2001, o ultraleve pilotado por Herbert caiu no
litoral de Mangaratiba, sul do estado do Rio. Com Lucy, ele
voava para a festa de aniversário de Fernanda Villa-Lobos,
mulher de Dado.
Lucy se foi. Herbert beirou a morte, mas sobreviveu.
Sua rápida recuperação impressionou. “Tanto fisicamente
quanto espiritualmente, ele sempre foi muito forte. Ficou
não sei quantos minutos debaixo d’água, com uma lesão
na coluna e, em pouco tempo, estava de volta aos palcos”,
diz Dado. Com ajuda de família, amigos e, claro, da música,
Herbert readaptou toda a rotina para sua nova condição
de cadeirante, cuida dos três filhos que teve com Lucy –
e torna cada riff de guitarra um novo capítulo de sua vida.
Bi Ribeiro, baixista, 52 anos
“A primeira coisa que vem à minha cabeça quando se fala em
Herbert Vianna é a perseverança. Ele é um cara determinado,
que dá tudo para conseguir o que quer. É também um cara paciente, comigo principalmente. Eu não tocava baixo muito bem
no começo e ele me ensinou muita coisa. Assim, se não fosse
um cara como ele, não tínhamos ido em frente.
Nos conhecemos em Brasília, aos 13 anos. Andávamos
de skate no mesmo lugar e vivíamos nos esbarrando. Logo reparamos que tínhamos interesses musicais parecidos. Jimi Hendrix,
Eric Clapton, aqueles músicos que nos encantavam e nos motivavam a tocar.
Herbert sempre gostou de colocar apelido nos outros, de
fazer música para o colega, sacaneando determinada pessoa.
Era da turma dos engraçados. Na escola, fazia música para os
professores, por brincadeira. Às vezes, ele elege uma determinada pessoa da banda e fica fazendo várias versões de músicas
em cima desse personagem.
Ele passa o dia inteiro tocando, sempre foi assim. Para leválo ao cinema era difícil, porque ele queria ficar em casa tocando.
Ele faz o estilo ‘vai ao restaurante e come sempre o mesmo prato’. Ele mesmo diz que é um cara que, se deixar por ele, não vai
mudar os hábitos. Sempre creditou muito a mim e a Lucy o fato
de lhe abrirmos as janelas, de mostrarmos novidades, e ele aceitava. Ao mesmo tempo, ele não gosta de quem chega nele com
muita confiança quando essa pessoa não tem tal intimidade. Por
ser uma figura pública, muitas vezes, o cara acha que o conhece,
mas Herbert não o conhece.
Após o acidente, ficamos apreensivos para saber o quanto
“Realizamos
hoje de dois a
três shows por
semana, mas
herbert quer
todo dia”
82
Herbert ia aguentar da rotina das turnês. Atualmente, realizamos de dois a três shows por semana, mas ele quer todo dia.
Para ele, é bom estar no palco, fazendo o que gosta. Antes,
tínhamos cinco shows na semana. Mas agora está bom. Dá mais
tempo de nos juntarmos para tocar, de continuar o trabalho
de criação, de compor. Além disso, Herbert faz fisioterapia, ginástica, precisa fazer um determinado número de sessões por
semana. E ele faz questão de cumprir as tarefas, tem esperança
de voltar a andar. Está muito empenhado.
Ao longo dos anos, vi Herbert crescer como artista, como compositor. Até hoje, ele nos surpreende pela maneira como coloca em
palavras o que está sentindo. É gratificante estar a seu lado e assistir a isso a vida inteira. Ele é um irmão, um amigo para toda vida.”
no alto, herbert vibra com o sucesso do show no rock in
rio (1985); na foto menor, o guitarrista rodeado por músicos
(sentido horário): marcelo fromer, samuel rosa,
Lelo Zaneti, bi ribeiro e tony bellotto
83
Personnalité
herbert vianna
_
“Pedíamos iogurte no camarim”
_
Sete destaques da discografia
dos Paralamas e de Herbert
João Barone, baterista, 50 anos
“A primeira coisa que vem à cabeça quando se fala em Herbert
é a guitarra. Ele personifica o instrumento, que está sempre perto
2
1
dele. Com a guitarra, ele nunca foi muito acadêmico, prefere ir
atrás de coisas curiosas, é espontâneo. Ele está mais para Keith
Richards do que para algum virtuoso do rock progressivo.
Herbert já era muito amigo do Bi [Ribeiro] antes de nos
conhecermos, no festival da Universidade Rural, no Rio, e
acabamos fazendo essa história. Nossa amizade é um dos fatores
que melhor explica a razão pela qual ainda estamos juntos.
Vejo no Herbert um cara que, na essência, não mudou desde
3
o primeiro dia que eu o encontrei, é muito inteligente.
Ele tem também um humor ácido. Às vezes, perde a amizade,
mas não perde a piada [risos]. Há uma história pitoresca: estávamos
em Buenos Aires, em 86 ou 87, fazendo um show e, por alguma razão,
não saí com a turma de noite. Eles foram ao bairro da Boca e entraram num daqueles restaurantes de roda de tango. Foram identifican-
5
do os personagens que estavam ali, alguns senhores de idade,
e deixaram o lugar com a escalação da ‘seleção da Boca’ na ponta
da língua. Isso virou uma piada interna que dura até hoje. Os nomes
são incríveis: Tia, Boca Chupada, Vermelhão, Tonto, Treme, Vinicius
4
Pai, Peruquinha, Mister Magoo, Fantone, Bolinha e Balão.
Após a tragédia com o Herbert, estávamos nos agarrando a
1. O Passo do Lui (1984)
qualquer esperança de que ele fosse se reerguer. Um belo dia,
Superando a “síndrome do segundo ál-
estávamos lá no hospital, com o Mauricio [Valladares, fotógrafo],
bum”, o disco trouxe diversos hits, como
“Óculos” e “Meu erro”. “A gente apostou
tentando fazer contato com ele. Estávamos lembrando da
7
tudo para fazer como queria”, diz Barone.
seleção da Boca quando, de repente, Herbert começou a falar
6
e mandou os nomes da escalação na lata. Nos abraçamos
Inspirada pelo rock inglês, a banda sem-
4. Vamo Batê Lata (1996)
6. Longo Caminho (2002)
pre buscou uma identidade brasileira
Marcou o fim do inferno astral dos Para-
Simbolizou a retomada da carreira de
para o gênero. Aqui, deu uma guinada,
lamas com o mercado brasileiro. Arreba-
Herbert à frente da banda após a queda
misturando Brasil, África e Jamaica. “Ala-
tou uma legião de jovens fãs. Destaque
de seu ultraleve, em 2001. O disco já esta-
gados” se tornou hino dessa transição.
para “Uma brasileira”, parceria com Carli-
va sendo preparado antes do acidente.
nhos Brown e participação de Djavan.
3. Severino (1994)
O álbum chegou em uma fase em que a
5. Hey Na Na (1998)
7. Victoria (2012)
banda mal tocava nas rádios brasileiras
Dá continuidade a experiências acústicas,
Após 12 anos sem lançar um trabalho solo,
e já não vendia tanto como outrora, mas
iniciadas por Herbert em Santorini blues,
Herbert reuniu 20 composições em seu
era aclamada pelos argentinos. Por lá,
seu segundo disco solo. Daqui saíram
quarto álbum. “Sempre quis mostrar mi-
“Dos margaritas” fez imenso sucesso.
sucessos como “Ela disse adeus”.
nhas versões, como pensei as canções”, diz.
84
e choramos de emoção. Foi quando achamos que ele estava
Divulgação / Marcio Mercante/Ag O Dia / Mauricio Valladares
2. Selvagem? (1986)
lá, que o cara ia voltar.
No dia a dia, Herbert preza pela espontaneidade, não gosta
de coisas artificiais. Vive uma vida muito na medida. É um grande
apreciador da comida nordestina. E uma das coisas que mais
gosta é sorvete de tapioca. Ele detesta cerveja e não gosta muito
de café. Quando começamos com Os Paralamas, nenhum de nós
bebia – talvez fôssemos a única banda do Brasil que pedia para
ter nos camarins iogurtes, achocolatados [risos]. Para mim,
Herbert é tudo. Ele é um cara genial, talentosíssimo, carismático,
superamigo. Costumamos dizer que uma das grandes qualidades
do Herbert é ser um cara superlativo, tudo para ele é o máximo
do máximo. Então, é a minha vez de falar que o Herbert é
o máximo do máximo.”
No alto, a primeira foto oficial dos paralamas, feita em 1982,
em um elevador no rio de janeiro; Acima, o trio em 2003
85
Personnalité
Por Thiago Iacocca Fotos Renata Ursaia
M
Instrumento
de
Alunos e funcionários relembram como o mineiro
Silvio Baccarelli criou das cinzas de um incêndio
a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, grupo que já
tocou no Rock in Rio, passou pela batuta de Zubin
Mehta e dá emprego e formação a 1.200 jovens
transformação
ais ou menos às sete da manhã do
dia 17 de junho de 1996, um incêndio acordou Heliópolis, bairro que abriga
a segunda maior favela de São Paulo, com
cerca de 150 mil moradores. O fogo torrou um edifício de cinco andares. Quatro
pessoas morreram, uma delas, um bebê.
Mais ou menos como qualquer pessoa
que viu a coisa toda pela TV, o maestro
Silvio Baccarelli parou diante da tela e
ficou profundamente impressionado.
A correria de gente tentando salvar o que
tinha, a correria de gente tentando salvar
a família, a correria de gente correndo
porque correr era a única coisa a fazer.
Mas, diferentemente de quase todas as
pessoas, ele não seguiu a rotina quando a
notícia esfriou. Ele a desviou para a favela.
O regente mineiro reformou um casarão na Vila Mariana de modo que ali houvesse um auditório para o instituto que
fundou e leva seu sobrenome. Reuniu,
então, 36 crianças que moravam e estudavam em Heliópolis. Passou a ensinar a
elas instrumentos. Sua ideia era iniciar o
grupo na música erudita, proporcionar
um pouco de diversão cultural e, as coisas dando certo, talvez uma carreira.
E as coisas deram tão certo que, nos
17 anos seguintes, a Orquestra Sinfônica
de Heliópolis, resultado máximo da
investida do maestro, tornou-se uma
referência no Brasil e no mundo.
SONHO INTERNACIONAL
Maryana Cavalcanti, 21 anos, entrou
ainda menina no instituto, em 2002.
Passou por todas as etapas até se tornar
a única percussionista mulher da orquestra. “Muitas crianças que poderiam
estar na rua estão aqui”, diz. Ela resume
o impacto que a iniciativa teve na ambição (hoje internacional) de seus sonhos.
“A música é metade de mim. Se me
tirassem a música, eu ficaria perdida.
Quero muito estudar fora do país. Nos
EUA, na Suíça, na Alemanha...”
Até 2000, o sonho internacional de
Maryana e o projeto eram mantidos apenas com recursos de Baccarelli, que alugava um ônibus para pegar as crianças
em Heliópolis. Mas, a partir daí, entraram em cena os irmãos Edilson Ventureli
e Edmilson Venturelli (a diferença nos
sobrenomes foi um erro do cartório).
Um, diretor executivo, e maestro assistente, e o outro, diretor de relações
institucionais. Com o auxílio da dupla,
Baccarelli passou a contar com o incentivo da Lei Rouanet, o que elevou para 111
o números de crianças do projeto.
Sentiram a necessidade de migrar
para dentro da comunidade. Essa mudança aconteceu em 2004, quando foram
para um prédio alugado em Heliópolis.
No começo, houve resistência.
Ninguém acreditava ser possível ensinar
música de concerto para crianças de
no alto, o violoncelista alexandre santos na saída do
ensaio, com heliópolis ao fundo. ao lado, de cima para baixo,
edilson Ventureli rege ensaio da Orquestra; a percussionista
Maryana cavalcanti; e a contrabaixista Thais meira
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Danilo Verpa/FolhaPress
A formação excursionou pela Europa, tocou no Rock in Rio, no SWU ao
lado da banda Pink Floyd, se submeteu
à batuta de gente como Zubin Mehta e
Peter Gülke e se apresentou nos palcos
históricos da Sala São Paulo e do Theatro Municipal do Rio de Janeiro.
favela. O maestro e sua equipe precisaram insistir. “Hoje a comunidade reconhece que o instituto é uma entidade
séria. Eles sabem que é um trabalho
realmente preocupado com a educação
dos filhos deles”, afirma Edilson. “Até
algumas pessoas ligadas à criminalidade
acabaram vendo no instituto uma alternativa para a formação do caráter e da
personalidade de suas crianças. Elas não
querem para os filhos o caminho que tomaram.” Vindo de Phoenix, nos Estados
Unidos, Willian Anthony Brichetto, 26
anos, há três toca contrabaixo na Sinfônica. Ele tem planos de escrever um livro
sobre a experiência. “A qualidade da
música aqui é excepcional, quero contar
isso para todos”, diz.
O instituto mudou mais uma vez, em
2009, para o prédio atual, que fica na estrada das Lágrimas, na zona urbanizada
do bairro. “Uma favela, para deixar de ser
favela, não precisa só de casa”, diz Edilson. “Precisa ter um bairro bem estruturado, precisa ter lazer, entretenimento,
cultura. As nossas instalações são comparáveis às das grandes escolas de música
dos Estados Unidos e da Europa.”
Por conta de restrições causadas por
problemas de saúde, o maestro Silvio
Baccarelli, 81 anos, já não é mais tão ativo
em Heliópolis. Os ensaios são realizados
sob a batuta de Edilson. Nas apresentações, quem conduz é o paulista Isaac Karabtchevsky, 78 anos, um dos principais
regentes do Brasil. Mas, antes de passar a
batuta para a mão de assistentes, Baccarelli deixou a entidade funcionando sob
uma engenhosa organização.
São quatro os níveis de orquestra:
desde o iniciante de cordas, o infantojuvenil, o juvenil, até, por fim, o Heliópolis.
A porta de entrada é a musicalização, que
recebe crianças de 4 a 6 anos de idade.
Depois, elas passam pelos corais infantis.
Na próxima etapa, os alunos estudam um
instrumento, primeiro de forma coletiva.
“se me
tirassem
a música,
eu ficaria
perdida”,
diz uma dos
1.200 alunos
do instituto
As aulas individuais são o último degrau
antes da formação orquestral.
A partir dos 13 anos, a garotada pode
começar a ser remunerada pelo próprio
instituto. O motivo, simples: é comum
que haja pressão familiar nessa idade
para que o jovem ajude no orçamento de
casa. Há bolsas para estudantes e para
os membros da Sinfônica de Heliópolis a
partir de R$ 1.100. Existem alunos recebendo mais de R$ 3 mil por mês.
Thais Meira Plastina, 20 anos, toca
contrabaixo acústico. Ela é uma dos
1.200 integrantes do instituto, que conta com jovens de 4 a 25 anos. Há cinco
anos participando do projeto, do qual
também é monitora, Thais explica o
tamanho da iniciativa na vida carente
de uma comunidade da periferia. “Sem
a bolsa, como é que eu iria estudar?”,
diz. “O mais importante na história do
instituto é esse legado de poder estudar
gratuitamente. Isso é uma coisa muito
bonita. Funciona”, afirma. “Aqui a gente
trabalha com o coletivo, a gente aprende
a olhar para o colega, para o outro.”
Assista ao concerto da Sinfônica Heliópolis
na Série Osesp Personnalité no dia 12 de outubro
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o maestro silvio baccarelli, fundador da orquestra sinfônica
de heliópolis, acompanha ensaio em fevereiro de 2009
primeira pessoa | Amyr Klink
Por Rosane Queiroz foto Romulo Fialdini
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O ELO E O TODO
Reconhecido por seus
feitos marítimos solitários,
Amyr Klink escolheu uma
corrente e uma âncora para
representar a si mesmo
Em 2012, o explorador paulistano
levou seu veleiro polar, o
Paratii 2, até a Geórgia do Sul,
uma ilha britânica que fica a
pouco mais de 1.000 quilômetros
das Ilhas Falkland (Malvinas,
para os argentinos). De lá, trouxe
pedaços de uma antiga corrente,
ainda presa à âncora, que pertenceu
a um baleeiro norueguês do
começo do século 20. “A corrente
é uma cadeia em que cada elo
tem a importância do todo.”
a corrente e a âncora trazidas das ilhas falkland
ficam no escritório de amyr, em são paulo
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