constituição, estamento e patrimonialismo
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constituição, estamento e patrimonialismo
Derecho y Cambio Social CONSTITUIÇÃO, ESTAMENTO E PATRIMONIALISMO: AS VICISSITUDES POLÍTICO-JURÍDICAS NA FORMAÇÃO DO MODELO DE CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE NO BRASIL Rafael Tomaz de Oliveira 1 Danilo Pereira Lima 2 Fecha de publicación: 01/10/2015 SUMÁRIO: 1. NOTAS INTRODUTÓRAS – INSPIRAÇÕES A PARTIR DE UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL; 2. O CONSTITUCIONALISMO NO CONTEXTO DAS GRANDES REVOLUÇÕES; 2.1. Indicações metodológicas; 2.2. As Revoluções do Século XVIII e a formação dos três movimentos constitucionais: França, Inglaterra e Estados Unidos; 2.3. O Constitucionalismo estadunidense e a consagração do judicial review of legislation: a Constituição como pré-compromisso; 2.4. A formação do Judicial Review e o papel dos Tribunais: A Suprema Corte como “Tribunal da Federação”; 3. A RECEPÇÃO DESTA TRADIÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1891: A ADOÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE; 3.1. Paradoxos constitucionais: os desvirtuamentos que os postulados constitucionalistas sofreram no Brasil desde o império; 3.2. Questões importantes em torno do STF; 4. À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS; REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS. RESUMO: As revoluções burguesas, ocorridas no contexto europeu do século XVIII, foram fundamentais para a elaboração de diversos mecanismos jurídicos de contenção do despotismo 1 Advogado. Mestre e Doutor em Direito Público pela UNISINOS-RS. Professor do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unaerp. 2 Mestre em Direito Público pela UNISINOS-RS e Professor Universitário www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 1 monárquico. No mesmo sentido, a independência das treze colônias americanas exerceu uma influência extremamente importante no constitucionalismo moderno, ao favorecer o fortalecimento da doutrina da supremacia constitucional e apresentar instrumentos jurídicos que evitam as arbitrariedades tanto do Poder Executivo, como do Poder Legislativo. Contudo, no Brasil, estas questões foram incorporadas de maneira incoerente pelo estamento burocrático, que, após a proclamação da República, importou da experiência estadunidense seu modelo de Jurisdição Constitucional. Aqui, o domínio estamental se sobrepôs ao direito, utilizando este mecanismo de controle de constitucionalidade em causa própria. Dessa maneira, é possível perceber que a permanência de uma dominação estamental prejudicou por muito tempo o fortalecimento de uma jurisdição constitucional no contexto brasileiro, impedindo que o direito alcançasse a autonomia necessária para limitar o exercício do poder político. Palavras-chave: constitucionalismo; jurisdição constitucional; controle difuso; estamento; patrimonialismo. ABSTRACT: The bourgeoise revolutions that occurred in Europe in the eighteenth century were paramount to the development of a myriad of judicial mechanisms with the goal of controlling monarchical despotism. Also, the independence of the Thirteen Colonies exerted a elementary influence in modern constitutionalism, as it favoured the power of the Constitution as a juridical document and developed systems of controlling the acts of both the Executive and Legislative branches of government. However, in Brasil, these questions were absorbed without questioning within the legal system by the bureaucracy. Here, bureaucracy had more power as the Rule of Law, utilising the constitutional review on its favour. Based on that, one may argue that bureaucracy and its dominance in the beginning of the Brazilian Republic had consequences on the consolidation of a strong constitutional jurisdiction in Brazil, jeopardising the necessary autonomy law needs to limit the exercise of political powers. Keywords: Constitutionalism, constitutional judicial review, bureaucracy, patrimonialism. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ jurisdiction, Depósito legal: 2005-5822 2 1. NOTAS INTRODUTÓRAS – INSPIRAÇÕES A PARTIR DE UMA INTERPRETAÇÃO DO BRASIL No momento em que a Constituição de 1988 completa vinte anos, algumas questões se impõem para reflexão. Muitas delas podem dizer respeito a problemas concretos, de operacionalização do direito constitucional. Podemos discutir, nesse sentido, quais as conseqüências das súmulas para a (nova) dogmática da Constituição ou, ainda, os novos quadros traçados para o Judiciário a partir da Emenda Constitucional 45 de 2004. É possível, ainda, realizar uma reflexão mais profunda – porém ainda de teor dogmático – para saber o que representa para a estabilidade democrática do país as sucessivas reformas que foram realizadas no texto da Constituição nestes seus vinte anos de existência. Todavia, queremos apontar para um outro problema. Trata-se de mostrar o fato de que nossa tradição constitucional só se formou, de maneira sólida e efetiva, a partir de uma institucionalidade democrática conquistada à duras penas. Antes disso, nossa história institucional é marcada por sucessivos golpes e investidas por parte da massa que governa o país (o estamento, como dirá Faoro) no sentido de cooptar os instrumentos liberais de governo e usá-los como álibi para consagração de seus próprios interesses privados. É preciso estar vigilante para que esse tipo de investida não apareça, a socapa e a sorrelfa, e fragilize a estabilidade institucional conquistada em 1988. Nesse sentido, é importante efetuar uma “repetição fenomenológica” 3 em torno de alguns temas importantes para a história do constitucionalismo brasileiro. 3 Preparando o caminho para o que será abordado logo mais, é importante esclarecer que essa “análise fenomenológica” dos movimentos históricos, não é apenas um jogo de palavras, mas indica uma consciência de método da investigação proposta. Com efeito, no ambiente da fenomenologia – de corte heideggeriano que, portanto, se manifesta de modo hermenêutico – fala-se em historicidade e não meramente em historiografia. Isso porque essa historicidade que a fenomenologia hermenêutica reivindica aparece como horizonte no qual o saber das ciências humanas acontece e não apenas com uma espécie de consciência historiológica, entendida como conhecimento acumulado dos eventos do passado. Note-se: em Ser e Tempo, iniciando a analítica existencial do Ser-aí, Heidegger precisa estabelecer um aceno prévio do modo-de-ser deste ente. No § 6°, onde o filósofo anuncia a tarefa de uma destruição da história da ontologia, Heidegger afirma que o Ser-aí ‘é’ seu passado. O Ser-aí é seu passado na forma própria do seu ser, ser que acontece sempre desde seu futuro. O filósofo mostra algo que pode soar estranho: ele afirma que o passado do Ser-aí não se situa atrás deste ente, mas sempre e a cada vez lhe antecipa. Ou seja, as possibilidades do Ser-aí são limitadas por aquilo que de alguma forma ele já é. Esse ter que ser o que já é, Heidegger denomina estar-jogado-no-mundo, ao passo que sua www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 3 Nesse artigo a proposta é analisar a (pato)gênese do controle difuso de constitucionalidade em terrae brasilis na perspectiva de apontar para dois fatores: 1) de como há uma função estratégica na jurisdição constitucional nos quadros das democracias contemporâneas. Reflexo disso é que todas as Constituições do segundo pós-guerra prevejam Tribunais Constitucionais para efetuar a fiscalização da constitucionalidade das leis; 4 2) de como há existência, enquanto possibilidade, se denomina estar-lançado. No seu ter que ser, ou estarjogado-no-mundo, o Ser-aí se encontra já sempre imerso em uma tradição, embora disso ele não seja necessariamente consciente. Esse ser histórico que atravessa o Ser-aí por todos os lados é o que propriamente designa sua historicidade. Como diz Gadamer: “ele só possui uma tal consciência porque é histórico. Ele é seu futuro, a partir do qual ele se temporaliza em suas possibilidades. Todavia, o seu futuro não é o seu projeto livre, mas um projeto jogado. Aquilo que ele pode ser é aquilo que ele já foi” (Hermenêutica em Retrospectiva. Vol. I. Petrópolis: Vozes, 2008, 143). Daí que surge a necessidade de se diferenciar, através da linguagem, essa especificidade do Ser-aí. Heidegger joga, então, com a palavra alemã Geschehen que significa acontecer. De Geschehen o filósofo deriva Geschichte e Geschichtlichkeit. Com o termo Geschichte Heidegger determina a história enquanto acontecer humano, diferente de Historie que designa ciência dos eventos históricos. Já Geschichtlichkeit, que se traduz tradicionalmente por historicidade, se refere ao caráter de acontecencia que reveste a própria existência humana. Isso permitirá ao filósofo mostrar que, a ausência de um saber histórico não é, de forma alguma, prova contra a historicidade do Ser-aí. Isto é sim, enquanto modo deficiente desta constituição de ser, uma prova a seu favor, pois, uma determinada época somente pode carecer de sentido histórico (unhistorisch sein) na medida em que é historial (Geschichtlich). Assim, o universo de fundamentação e limites das ciências humanas devem ser pensadas a partir da historicidade do humano, a partir de uma apropriação positiva do passado e da plena posse de suas mais próprias possibilidades e questionamentos (Cf. Ser y Tiempo. Trad. Jorge Eduardo Rivera. Madrid: Trotta, 2006, pp. 43/50). É nesse sentido que encaminhamos nosso trabalho. Sobre o método fenomenológico e seu desenvolvimento no Direito. Cf. STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. 10ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011; bem como: OLIVEIRA, Rafael Tomaz de. Decisão Judicial e o Conceito de Princípio. A hermenêutica e a (in)determinação do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. 4 De se consignar que esse papel estratégico exercido pela jurisdição constitucional pode (e deve) ser controlado pela exploração do elemento hermenêutico que reveste a experiência jurídica. Ou seja, não se trata de defender ativismos judiciais irresponsáveis por parte do Poder Judiciário no exercício do controle difuso de constitucionalidade. O ativismo judicial representa uma ação que ultrapassou os limites que a atividade do juiz deve receber. Sendo assim, não afirmamos – em hipótese alguma – a possibilidade de uma intervenção não autorizada do Judiciário no tecido social, nem para o bem, nem para o mal. Aliás, discutir sobre ativismos “bons” ou “maus” é algo parecido com a discussão que Érico Veríssimo retrata em seu clássico Incidente em Antares. Era comum entre os antareses o questionamento e o debate sobre que tipo de ditadura era melhor: a de direita ou a de esquerda (é bom lembrar que a trama tem seu apogeu nos momentos que antecedem o golpe militar de 1964). Ora, ditadura é ditadura, seja ela de esquerda ou de direita. Também ativismos judiciais são ativismos judiciais. Não cabe decidir qual deles é melhor, mas combatê-los, no sentido de procurar estabelecer qual a medida da legitimidade de qualquer intervenção que o direito deva realizar na política e na sociedade. Por fim, cabe salientar que ainda é precoce uma avaliação das principais características do ativismo judicial que emana de nossa experiência jurídica. Isso porque, não há sentido de se colocar em debate questões de ativismo judicial antes de 1988. Antes da Constituição atual, não tínhamos implantado um controle de constitucionalidade efetivo, o que prejudica a colocação de qualquer questão relativa à intervenção de nossos tribunais em questões políticas e sociais (quanto ao www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 4 um problema estrutural no surgimento do controle difuso de constitucionalidade no Brasil, que não passa apenas por questões de uma Teoria do Direito (uma incompatibilidade genética entre os sistemas de civil law – controle difuso – e de common law – judicial review), mas também pelo modo como o próprio sistema político opera com esse ferramental de limitação do poder e de garantia das liberdades criados ainda pelo primeiro constitucionalismo. Faremos isso a partir de uma consagrada interpretação do Brasil. Com efeito, em 1958, Raymundo Faoro publicou a primeira edição de Os donos do poder, um longo ensaio de inspirações weberianas que apresentava uma interpretação original da formação do patronato brasileiro. Não é a primeira obra a se inspirar em Max Weber para efetuar uma interpretação da formação político-social do Brasil, mas é, sem dúvida nenhuma, aquela que irradiou uma maior influência nos estudos posteriores. Antes de Faoro, Sérgio Buarque de Holanda já havia utilizado as principais categorias weberianas – como é o caso do patrimonialismo – para construir a identidade de seu homem cordial. A idéia central residia no fato de que esse homem cordial brasileiro – em sua vida pública – não distinguia entre o privado e o coletivo; em outras palavras, agia em meio a uma confusão entre o público e o privado. 5 Muito embora a construção de Buarque de Holanda seja revestida de um indiscutível brilhantismo, recheada de intuições preciosas e de grande perspicácia, ele mesmo reconheceria anos depois que o projeto teórico de Raízes do Brasil – que buscava definir a personalidade ou o caráter do homem brasileiro, fato que seria duramente criticado pelo antropólogo paulista Dante Moreira Leite – acabou fracassado. Ao contrário de Raízes do Brasil, o livro de Faoro encontra em Weber apenas uma “inspiração”. Este particular foi ressaltado pelo próprio autor que, já no prefácio à segunda edição, afirma: “Advirta-se que este livro não segue, apesar de seu próximo parentesco, a linha de pensamento de Max Weber. Não raro, as sugestões weberianas seguem outro rumo, com novo conteúdo e diverso colorido”. 6 De fato, Os donos do Poder propiciam um novo manejo dos conceitos weberianos, relidos a partir de um outro lugar histórico, que se situa na periferia da modernidade européia. Com efeito, os principais conceitos debate sobre a questão dos ativismos judiciais no Brasil, ver: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas da Possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito. 4ª ed. São Paulo, Saraiva, 2011). 5 Cf. HOLANDA, Sergio Buarque de. Raízes do Brasil. 4ª ed. Brasília: UNB Editora, 1963. 6 Cf. FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. Formação do patronato brasileiro. 3 ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001, p. 13. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 5 weberianos trabalhados no texto de Faoro, tais quais: feudalismo, patrimonialismo, estamento, carisma, etc., são colocados de tal modo que às vezes lembram apenas de forma muito distante o modo como Weber os trabalhou para descrever a sociedade européia. Mas do que isso, o livro de Faoro inaugura um outro tipo de abordagem quanto à formação histórica do Brasil contemporâneo. Há nele uma preocupação com o todo: nele convergem questões econômicas, políticas, sociais e jurídicas, ao contrário de outras tantas interpretações – que certamente influenciaram muito o pensamento político-sociológico brasileiro – mas que ficavam presas a um aspecto preciso, como é o caso das abordagens realizadas por Caio Prado Jr. (o problema demográfico e da transição do campo para as cidades) 7 e Celso Furtado (a questão da formação econômica). 8 De todo modo, é preciso ter presente que a obra de Faoro – escrita em estilo de ensaio – representou/representa, uma alternativa ao modelo teórico que então se impunha e acabou por dominar por décadas as ciências sociais no Brasil. Trata-se daquilo que é chamado por alguns autores de “marxismo convencional”, que se firmou principalmente a partir dos trabalhos de Caio Prado e das projeções do famoso grupo de leitura de O Capital, instalado ainda na década de 50 na USP e que contou com a participação de nomes famosos, como é o caso do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. 9 Esse domínio exercido pelas interpretações marxistas da história do Brasil e de sua formação econômica e social é também lembrado por Ernildo Stein em seu excelente Orfãos de utopia.10 De todo modo, a tese de Faoro é que o poder político no Brasil não era exercido nem para atender aos interesses das classes agrárias, ou latifundiárias, nem àqueles das classes burguesas, que mal se haviam constituído como tal. O poder político era exercido em causa própria, por um grupo social cuja característica era, exatamente, a de dominar a máquina política e administrativa do país, através da qual fazia derivar seus benefícios de poder, prestígio e riqueza. Era, em termos de Weber, um “estamento burocrático”, que tinha se originado na formação do Estado português e fora incorporado em terrae brasilis desde que a primeira nau portuguesa aqui atracou. Esse corpus político se reencarnaria depois 7 Cf. PRADO JUNIOR, Caio. Formação do Brasil contemporâneo. 23ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1999; PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil e outros estudos. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1972. 8 Cf. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 30ª ed. São Paulo: Nacional, 2001. 9 Cf. SORJ, Bernardo. A construção intelectual do Brasil contemporâneo: da resistência à ditadura ao governo FHC. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. 10 Cf. STEIN, Ernildo. Órfãos de utopia: a melancolia da esquerda. 2ª ed. Porto Alegre: UFRGS, 1996. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 6 naquilo que ele chama de o “patronato político brasileiro”. O estamento burocrático tinha tido sua origem no que Weber denominava de “patrimonialismo”, uma forma de dominação política tradicional típica de sistemas centralizados que, na ausência de um contrapeso de descentralização política, evoluiria para formas modernas de patrimonialismo burocrático-autoritário, em contraposição às formas de dominação racional-legal que predominaram nos países capitalistas da Europa Ocidental. A construção de Faoro denuncia(va) como o Estado no Brasil é, historicamente, patrimonialista no conteúdo e estamental na forma. Ou seja, há entre nós uma concepção político-econômica que liga umbilicalmente os interesses de um grupo político ao Estado, de modo que este último acaba sendo apenas o espaço para realização destes interesses. Efetua-se, assim, uma confusão entre o que é público e o que é privado, o que revela um verdadeiro Estado patrimonialista, que emprega o fruto de um empreendimento coletivo na solução de problemas particulares daqueles que permanecem juntos com os agentes do poder (estamento). Trata-se de uma espécie parasitária de capitalismo que Faoro nomeia “capitalismo politicamente organizado”. A contribuição de Faoro aqui vai além da utilização dos conceitos weberianos e da interpretação que deu do sistema político brasileiro: ela consiste, fundamentalmente, em chamar a atenção sobre a necessidade de examinar o sistema político nele mesmo, e não como simples manifestação dos interesses de classe, como no marxismo, onde uma estrutura econômica dominada por uma classe acaba determinando a formação da superestrutura – sistema político, organização jurídica e ideologia – de uma sociedade. Inspirado nesta leitura do Brasil, este trabalho procura apresentar como essa interpretação que Faoro realiza em Os donos do poder pode esclarecer muitos dos desvios que levaram o controle difuso de constitucionalidade ao fracasso nos anos que sucederam a promulgação da Constituição Republicana de 1891. Para isso, passaremos primeiro por uma rápida análise das principais questões em torno da construção do constitucionalismo liberal do século XVIII que – como é cediço – serviu de inspiração para os constitucionalistas brasileiros de 1891. Em um segundo momento, procuraremos mostrar como o estamento burocrático incorporou todas as construções do movimento constitucionalista de modo a acomodar seus interesses, mantendo, assim, a velha estrutura patrimonialista, que já revestia o Estado no tempo do império. É importante assinalar que a própria Constituição fica imersa nesse pernicioso emaranhado de coisas, o que gera uma obstrução de seus sentidos. Ou seja, o estamento instrumentaliza a Constituição a partir de seus interesses próprios, e tudo aquilo que se constrói por meio dela acaba www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 7 desvirtuado por isso. Daí o título desse artigo: A Constituição e o Estamento, para se referir a essa dimensão quase-patológica com que a classe política lida com os instrumentos liberais e racionais de institucionalização do poder. Isso gera uma série de conseqüências graves para a construção de um espaço constitucional e de um constitucionalismo nacional, que acaba numa concepção enfraquecida de Constituição e, de maneira correlata, de jurisdição constitucional. 2. O CONSTITUCIONALISMO NO CONTEXTO DAS GRANDES REVOLUÇÕES 2.1. Indicações metodológicas São muitas as formas através das quais podemos descrever movimentos históricos ou explorar as estruturas impressas no ambiente cultural que define a história. No caso do constitucionalismo, e do verdadeiro caldo de cultura que se forma a partir dele, essas múltiplas possibilidades de abordagens assumem uma tonalidade específica, dado o caráter plurifacetado assumido pelas diversas realidades sociais que o cunhou. Dessa forma, o primeiro problema com o qual o pesquisador do direito se depara quando pretende estudar o constitucionalismo é com o modo como ele irá acessar esse âmbito da cultura e projetar suas análises. É preciso estar de posse de uma ferramenta que permita escavar, nas estruturas culturais que conformam a história, elementos teóricos interessantes e significativos para pensar o próprio presente. Nessa medida, Nicola Matteucci propõe uma definição tipológica em torno do constitucionalismo. Definição essa que serve como uma espécie de pressuposto de análise dos movimentos históricos que o compõe, de modo que seja possível encontrar elementos comuns e heurísticos nas diversas experiências constitucionalistas. Na definição proposta por Matteucci, esse elemento é dado pela arquitetônica e pela formatação de um poder limitado. Portanto, nessa perspectiva, o constitucionalismo está ligado, diretamente, a um movimento político-jurídico que procura, em alguma medida, tornar possível o ideal de limitação do poder e a consequente garantia das liberdades. 11 É com esse ferramental, oferecido pelo pesquisador italiano, que iremos investigar a formação do constitucionalismo estadunidense e a conformação do Judicial Review. 11 Cf. MATTEUCCI, Nicola. Organización del poder y libertad. constitucionalismo moderno. Madrid: Trotta, 1998, em especial a introdução. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 Historia del 8 2.2. As Revoluções do Século XVIII e a formação dos três movimentos constitucionais: França, Inglaterra e Estados Unidos Antes, porém, é salutar contextualizar a experiência do constitucionalismo norte-americano no universo das três revoluções do século XVIII, que representam, de modo mais evidente, a construção do constitucionalismo e suas vicissitudes. Os instrumentos de limitação do poder e de racionalização do governo obedecem a um eixo histórico que liga a revolução inglesa; a revolução francesa; e a revolução americana. Do ponto de vista global, é possível afirmar que as revoluções inglesa e francesa tiveram que lidar, guardadas as peculiaridades de cada uma das realidades históricas, com o problema das guerras civis religiosas no contexto da conformação do governo estatal; ao passo que, nos Estados Unidos, a revolução está mais ligada ao desligamento das colônias com relação à metrópole e a necessidade de afirmação de um governo autônomo, desvinculado do Rei e do parlamento inglês. Essa constatação não descarta a influência que cada um destes movimentos exerceu entre si. Pelo contrário, é certo que há uma mútua influência na construção dos ideais constitucionalistas. Todavia, cada uma destas realidades irá criar mecanismos muito específicos para o controle do exercício do poder. Vejamos mais de perto como essa teia de acontecimentos se desenvolve. Para isso, teremos que passar em análise, ainda que de modo superficial, ao primeiro momento de afirmação do Estado Moderno: O Absolutismo. É nele que se encontram as raízes da experiência constitucionalista que por ora estamos a investigar. Nos termos propostos por Reinhart Koselleck, O Estado Moderno europeu ergue-se como resposta às guerras civis religiosas. 12 Essa resposta se dá de maneiras diferentes nos principais expoentes da construção deste novo modelo institucional: a Inglaterra e a França. É possível dizer que na Inglaterra as guerras religiosas e as revoluções burguesas coincidem. Há uma imbricação constante entre a formação de uma monarquia absoluta, do ideal de monarquia limitada com a afirmação do poder do parlamento (veja-se nesse sentido, a paulatina construção das 12 Cf. KOSELLECK, Reinhart. Crítica e Crise. Uma contribuição à patogênese do mundo burguês. Rio de Janeiro: Contraponto, 1999, p. 19. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 9 cartas de direitos) e um contexto de disputas religiosas que se perpetuam até a consagração da revolução gloriosa. 13 Já na França, o Estado Absolutista permaneceu um acontecimento ligado aos conflitos posteriores à reforma religiosa. No caso francês, o Estado Absoluto é fruto especificamente de uma guerra religiosa – que tem como ponto de eclosão o massacre dos principais expoentes da aristocracia Hugnote, no evento conhecido como noite de São Bartolomeu (1572) – na qual se encontravam presentes dois extremismos: o católico e o hugnote. Surgido gradativamente como resposta a esse conflito, o Estado Absoluto francês será aniquilado por um outro tipo de “guerra” civil, que foi a revolução francesa. Independentemente destas vicissitudes, é possível encontrar um fio condutor para a formação do Estado na experiência extrema das guerras civis religiosas. Portanto, para compreender tais movimentos, torna-se necessário um emergir histórico das situações políticas, filosóficas e sociais que levaram às guerras e aquelas que ofereceram uma resposta a esse problema. O ponto de partida, evidentemente, será a perda da unidade da igreja, conquistada nos tempos do papa Gregório VII e que teve sua capitulação final com a reforma protestante. No século XVI, a ordem tradicional – como se costuma nomear o medievo – estava em declínio. 14 Como a igreja perdia a centralidade que até então exercia na vida das pessoas, a ordem social como um todo perdeu o pólo de atração e saiu dos eixos. Alianças foram quebradas, laços antigos desfeitos e, como diz Koselleck, “alta traição e luta pelo bem comum tornaram-se conceitos intercambiáveis, conforme as frentes de luta e os homens que nelas se locomoviam”. 15 Disso, seguiu-se uma anarquia generalizada, cujas conseqüências são conhecidas: violência e assassinatos. 13 Nesse sentido Cf. MATTEUCCI, Nicola. op., cit., pp. 113 e segs. KOSELLECK, sobre esta questão, afirma o seguinte: “na ilha o Estado Absolutista foi destruído pela guerra civil religiosa, e as lutas religiosas já significavam a revolução burguesa” (op. cit., p. 20). 14 Para entender como se dava essa unidade do poder oferecida pela igreja, são importantes as lições de Marcelo Neves que, baseado no conceito de diferenciação funcional de Niklas Luhmann, afirma: “o poder legitimava-se mediante o direito sacro, que era indisponível. Essa indisponibilidade não significava, a rigor, uma limitação jurídica do poder. O direito sacro servia antes como justificativa da investidura, titularidade e exercício do poder pelo soberano (individual ou coletivo). Mas prevalecia a máxima princeps legibus solutus est. [...] não havia limitações jurídico-positivas referentes ao soberano no exercício do jus imperium, ou seja, limitações normativas estabelecidas e impostas por outros homens à sua ação coercitiva” (Cf. NEVES, Marcelo. Transconstitucionalismo. São Paulo, 2009, p. 8, inédito). 15 Cf. KOSELLECK, op. cit., p. 21. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 10 A pluralização da Igreja, que a luta pela liberdade religiosa instalou, fez com que tudo aquilo que antes era coeso passasse por um profundo processo de exaustão e depravação. Países, estamentos, famílias e povos – tudo passava pelo enfrentamento de igrejas intolerantes que se perseguiam mutuamente, de modo cruel e completamente destrutivo, em meio a frações estamentais ligadas pela religião. Num contexto como esse, a pergunta que pairava no ar era a seguinte: como era possível restabelecer a paz? O que fazer para se construir uma nova ordem para as coisas humanas? O Estado Absolutista foi essa resposta. Mas como? Basicamente através de uma política baseada em critérios seculares que expurgava de seu âmbito de ação os conceitos religiosos que tradicionalmente povoavam esse campo. Ou seja, nesse espaço aberto pelo absolutismo, criou-se o ambiente propício para a separação entre direito e política, de modo que o direito, principalmente no que tange a experiência inglesa,16 passou a agir como elemento limitador da atividade política. 17 Mas tudo isso num contexto em que o ambiente intelectual ainda era dominado pela estrutura do medievo, no interior do qual as discussões políticas eram monopolizadas por teólogos e letrados, em ambos os casos ligados à Igreja. 18 16 É sempre importante lembrar que na Inglaterra houve, durante todo o período de transição do medievo para o Estado absoluto e desta para o Estado liberal, uma constante tensão entre monarquia e parlamento. Isso é extremamente importante para que se possa ter presente que, no caso inglês, os instrumentos de limitação do poder do monarca são frutos de uma paulatina construção histórica. Esse fator é completamente singular com relação à experiência francesa, por exemplo, onde o Absolutismo despótico atingiu o paroxismo. No continente – mas especificamente na França – somente com a revolução francesa é que os ideais de limitação do poder poderão efetivamente tomar forma. 17 Nesse sentido, GRIMM, Dieter. Constituição e Política. Belo Horizonte: Del Rey, 2008; também sobre esta questão, mas falando em diferenciação funcional entre direito e política, Cf. NEVES, Marcelo. op., cit.. 18 É neste ponto que surge a importância de Hobbes. Com efeito, como afirma Renato Janine Ribeiro, Hobbes é um pensador contra o seu tempo (Cf. RIBEIRO, Renato Janine. Ao Leitor Sem Medo. Hobbes escrevendo contra seu tempo. Belo Horizonte: UFMG, 1999). Ele escreve contra seu tempo exatamente porque pretende tratar o problema da política e do governo sem o pressuposto teológico que condicionava todas as reflexões de então. Desse modo, baseado em um modelo metodológico inspirado pela geometria (more geometrico), Hobbes constrói um fundamento racional para o Estado, sendo, por isso, o fundador da Teoria do Estado. Mas há algo que precisa ser lembrado: Hobbes não é o justificador da monarquia despótica, como querem alguns intérpretes apressados. A construção do Estado para Hobbes está ligada mais a uma possibilidade, do que a uma realidade. Explico: no Levitã, Hobbes não se propõe a desenvolver uma justificativa para o Estado Absoluto que – faticamente – existia na Inglaterra, mas demonstrou, matematicamente poderíamos dizer, que é possível construir um governo exercido pela centralidade de uma figura não-teológica: o Estado e o soberano que o personifica (importante lembrar que – e isso não se dá apenas em Hobbes, mas em todas manifestações do Estado Absolutista – o rei será, ao mesmo tempo, o sujeito que personifica a soberania; o protagonista da política e aquele responsável pela unidade política da nação, Cf. MATTEUCCI, Nicola. op. cit., pp. 29/30). www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 11 Portanto, o Estado Absolutista têm sua razão de ser pelo (necessário) enfrentamento do estado de caos gerado pela fragmentação religiosa e as guerras que daí se seguiram. Assim, é possível notar uma relação de conexão entre a conquista da liberdade religiosa – forjada a partir de duras lutas históricas, conforme ressaltado acima – e a formação do Estado Absolutista. Há um duplo embate nesta intricada relação. De um lado, o desenvolvimento do mercantilismo e as descobertas promovidas pela expansão marítima, exigem uma nova estruturação social, a criação de novos ofícios, propiciando o aparecimento de uma burocracia estatal que, aos poucos, se descola da figura do rei e se autonomiza; por outro lado, a afirmação da liberdade religiosa acaba por reivindicar um controle de uma instância superior aos indivíduos tendo como mote, ou palavra chave, a idéia de segurança: existe Estado para garantir a segurança individual dos súditos. Um outro tipo de excesso fará com que as estruturas do Estado Absolutista sejam remodeladas para que os limites do poder possam ser aperfeiçoados. Com efeito, o abuso do poder do monarca, seja ao dilapidar os súditos com leis que instituíam tributos de toda ordem, confisco de bens, etc., temos, como no caso francês, um rei que se locupletava com os lucros obtidos por outra classe social, que então se afirmava e se definia: a burguesia. A partir disso, a discussão sobre os modos de limitação do poder se torna mais clara e precisa, e as figuras assumidas pelas idéias constitucionalistas começam a se parecer muito mais com aquelas que vivenciamos contemporaneamente. Jon Elster propõe um modo bastante elucidativo para compreender essas estratégias limitadoras desenvolvidas nesse período. O autor estabelece uma sequência de três estágios, que podem ser visualizados de modo distinto nos três modelos constitucionais: No primeiro, há uma forte monarquia que é percebida como arbitrária e tirânica. No segundo, esta é substituída por um regime parlamentar sem restrições. No terceiro, quando se descobre que o parlamento pode ser tão tirânico e arbitrário quanto o rei, são introduzidos freios e contrapesos. 19 O primeiro e o segundo estágios descritos por Elster representam a experiência francesa. Isto porque, a revolução francesa é uma resposta ao poder arbitrário do monarca absoluto. Mas a resposta que ela oferece, como freios ao poder do rei, é uma aposta total no regime parlamentar de formação da volunté generale. Com efeito, na França, a particular 19 Cf. ELSTER, Jon. Ulisses Liberto. Estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. São Paulo: Unesp, 2009, p. 167. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 12 desconfiança com relação aos juízes advém do fato de que eles eram braços estendidos do rei. Isso é de grande importância. Note-se que, ao tempo das revoluções, o termo magistrado servia tanto para se referir ao monarca quanto para os juízes itinerantes do rei, que constituíam o embrião do moderno Poder Judiciário. Isso indica, não apenas uma proximidade política entre a pessoa do rei e a pessoa do juiz, mas, também, uma proximidade institucional, na medida em que a execução da lei e sua aplicação eram tarefas quase indistintas. Daí a desconfiança revolucionária em torno dos juízes e a necessidade da criação de instrumentos que separassem completamente a atividade executiva da jurisdicional, colocando como grande epicentro do poder o parlamento (poder legislativo). Somente muitos anos depois é que a França irá incorporar o modelo de freios e contrapesos e, mesmo assim, de modo muito incipiente.20 20 Importante lembrar que, no exemplo paradigmático da Europa continental, a desconfiança existente em torno dos juízes – herança da revolução francesa – obstruiu por muito tempo a consagração de um verdadeiro controle jurisdicional de constitucionalidade, que significa um importante instrumento de freios e contrapesos. Assim, ilustrativa a lição de Álvaro Ricardo de Souza Cruz, que, na esteira de Mauro Cappelletti, assevera: “no fim do século XVII e princípio do século XVIII, as antigas Cortes Superiores de Justiça, denominadas Parlaments, ao reconhecerem a superioridade das leis fundamentais do Reino, passaram a examinar a validade de éditos reais e de outras leis. Esses tribunais adotaram a teoria da heureuse impuissance, ou seja, feliz impotência do soberano em violar leis fundamentais. Contudo, essa ação explicava-se muito mais como uma postura retrógrada do Judiciário rejeitar qualquer iniciativa real de limitar os poderes/direitos da Nobreza e do Alto Clero. Essa conduta conservadora marcou profundamente o povo francês, gerando enorme desconfiança a respeito de sua parcialidade. Este contexto cultural ajuda a explicar por que as visões jusnaturalistas de Montesquieu e Rousseau tiveram tanta repercussão. Logo, a idéia de uma separação de poderes, na qual inegavelmente predominava o poder legislativo; a concepção de que a lei como regra abstrata e universal, fruto da racionalidade da vontade geral, era incontrastável, sendo, portanto, intocável e, finalmente, uma visão mecanicista do Judiciário, que se expressou na escola da exegese, constituíram os elementos que colaboraram para que não fosse possível a consagração, na França, do surgimento do controle judicial da constitucionalidade. A despeito disso, Bon anota duas iniciativas favoráveis à introdução do controle da constitucionalidade no período revolucionário. A primeira, menos conhecida, o ‘Projeto Kersint’, de 1792, apresentado à Assembléia Nacional. A segunda, proposta pelo Abade Sieyés aos 2 e 18 de Thermidor, do ano III. Ambas foram rejeitadas. Em verdade, o constituinte francês não viu justificativa para tanto, pois uma lei, fruto da vontade do povo, não poderia ser injusta, ilegítima ou inconstitucional, porque ninguém poderia ser injusto para consigo próprio.”(Cf. CRUZ, Álvaro Ricardo de Souza. Jurisdição Constitucional Democrática. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 81-82). Tendo em vista ainda a preponderância do parlamento sobre os demais poderes, sendo inclusive despido de qualquer limitação, Streck preleciona que “as primeiras Constituições do mundo (com exceção do constitucionalismo americano) tratam de dar resposta ou submeter ao controle o poder do monarca absoluto. Elas respondem ao esquema do princípio monárquico, através do qual, frente ao poder absoluto deste, o parlamento aparece como um limite à garantia da propriedade e da liberdade dos cidadãos; é compreensível, assim, que esse parlamento, que representa o povo e lhe representa para controlar e limitar o poder do monarca absoluto, não www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 13 Na Inglaterra, por outro lado, o parlamento se impôs gradativamente contra a ordem do rei. E não só. Também o Judiciário desafiava o poder do monarca ao afirmar, em diversas oportunidades, que as ordens do rei não poderiam confrontar com a common law. 21 Muito embora os elementos gestores de um sistema complexo de freios e contrapesos tenha suas remotas origens no direito inglês e no desenvolvimento do ideal de “monarquia limitada”, esse sistema só ganhará forma nítida com o desenvolvimento do constitucionalismo estadunidense. 22 Portanto, o terceiro estágio descrito por Elster só toma forma quando as idéias constitucionalistas atravessam o oceano e adquirem novos contornos a partir da experiência norte-americana. O próximo item analisará de perto esta questão. 2.3. O Constitucionalismo estadunidense e a consagração do judicial review of legislation: a Constituição como précompromisso Do ponto de vista constitucional, é preciso reconhecer nos Estados Unidos um certo pioneirismo. Isso não apenas em virtude de que as Constituições escritas, inventadas pela modernidade, nasceram de uma progressiva construção que teve seu momento de afirmação com a tenha, em princípio, nenhum tipo de limitação”. (Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. 2ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 97). 21 Isso antecipa algo que será demonstrado mais adiante: a decisão de Marshall em Marbury v.s. Madison não pode ser considerada como um marco inicial absoluto da judicial review. Indubitavelmente, as raízes mais remotas do controle de constitucionalidade das leis, ao menos em seu aspecto teórico-dogmático, são encontradas em Edward Coke, Juiz inglês, que, em 1610, desafiava o poder do rei e do parlamento com a construção de uma teoria da limitação do poder público por normas jurídicas superiores e intangíveis, sem revelar qualquer preocupação com a natureza, a origem ou a legitimidade política do governo. Neste caso, as normas utilizadas pela corte judicial para sustentar a invalidade de um ato do governo adviriam da comum law, sendo considerada como limite externo à ação do governo. Em Coke, a decisão que tornou celebre sua doutrina e influenciou o constitucionalismo americano em todas suas vertentes, encontra-se lapidado no Bonham’s case, datado exatamente do ano de 1610 (sobre o assunto, Cf. BALL, David T. The Historical Origins of Judicial Review, 1536 – 1803. Nova York: Edwin Mellen Press, 2005). Nessa ordem de idéias, também Matteucci afirma que: “para Coke los jueces eran los leones que debían custodiar, frente al rey, los derechos de los ciudadanos: para defender los derechos de los ingleses, a menudo nego los derechos del rey” (Cf. MATTEUCCI, Nicola. op., cit., p. 89) 22 Definindo contextualmente a análise dos três estágios de limitação do poder (ou do governo da maioria), Elster afirma o seguinte: “em 1789, a França foi do primeiro para o segundo estágio. As patologias e a transição para o terceiro estágio vieram mais tarde. Essa é a razão principal para a diferença de tom entre os dois debates. Os norte-americanos estavam preocupados em se proteger contra a solução que os franceses estavam no processo de inventar, ou reinventar” (Cf. ELSTER, Jon. op., cit., p. 168). www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 14 independência das treze colônias, mas também porque muitos dos instrumentos de governo e de controle do poder foram inventados em terras americanas. É evidente que isso se deve a uma certa “posição privilegiada” que desde o início marcou a história norte-americana. No que tange especificamente à engenharia constitucional, este privilégio se deu basicamente por dois motivos concomitantes: 1º) Os Estados Unidos não viveram os problemas dos conflitos religiosos que marcaram a experiência constitucional européia. De algum modo, os imigrantes que se instalaram nas colônias encontraram ali o ambiente propício para uma convivência “pacífica” entre as diversas crenças e religiões. E esse ideal de liberdade religiosa, que de algum modo inspirou todos os membros dessa sociedade em formação, possibilitou a formação de uma sociedade plural e multifacetada, o que tardou a acontecer na Europa; 2º) Os norte-americanos conheciam as construções teóricas do iluminismo inglês e francês e sabiam das medidas que a Inglaterra e a França vinham tomando para moderar o poder do Rei. Nesse particular, a experiência inglesa é importante, sobretudo em face da inexorável influência que a metrópole exercia sobre a então colônia. Nessa medida, a revolução americana representa a construção de uma série de aportes teóricos que transformam profundamente o constitucionalismo: a) em primeiro lugar, a afirmação de um sistema federalista de governo que garantiu autonomia administrativa e legislativa aos Estados (treze colônias independentes); b) a criação de uma nova modalidade de limitação do poder com a construção de instrumentos que procuram travar a “vontade” das maiorias eventuais – prevenindo um possível governo arbitrário por parte destas maiorias, uma vez que os representantes eleitos pelo voto majoritário poderiam se tornar um tipo de “aristocracia de fato” 23 – a partir da garantia dos direitos da minoria. Estratégia justificada na desconfiança de Madison formulada no seguinte enunciado: “em todos os casos em que a maioria está unida por um interesse ou paixão comum, os direitos da minoria estão em perigo”. c) A criação de um ambiente cultural no interior do qual a lei ocupa o lugar do rei, em contraposição aos modelos absolutistas em que o rei é a lei. Desse modo, a afirmação de Thomas Paine de que “uma Constituição não é um ato de um governo, mas sim o ato de um povo que cria um 23 A expressão é de Mirabeau e utilizada por Elster (Cf. ELSTER, Jon. op., cit., p.169). www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 15 governo”, ou, em outras palavras, “um governo sem Constituição é um poder sem direito”, encontra terreno fértil para brotar e dar frutos. 24 Estas três características permitem visualizar o caráter de précompromisso de que se reveste a Constituição, a partir dos contornos que lhe dá o constitucionalismo estadunidense. Ou seja, com Stockton, é possível dizer que “Constituições são correntes com as quais os homens se amarram em seus momentos de sanidade para que não morram por uma mão suicida em seu dia de frenesi”. São, portanto, restrições que os próprios autores políticos estabelecem para si e para as gerações futuras, para garantir um governo que esteja sob o direito e não sobre ele. Como assevera Cass Sunstein: “as estratégias de pré-compromisso constitucionais poderiam servir para superar a miopia ou a fraqueza da vontade da coletividade”. 25 Desse modo, a jurisdição constitucional – no caso em análise, o exercício do judicial review – é a garantia de que esse pré-compromisso será devidamente cumprido. E isso é conseqüência da verdadeira soberania da lei; mas não de qualquer lei, mas daquela que passa a ser entendida como a lei das leis, a paramount law, dotada de supremacia e rigidez: a Constituição. Nas palavras de Matteucci: “em lugar da velha lei consuetudinária, uma Constituição escrita, que contém os direitos garantidos aos cidadãos por um juiz, que fixa e declara a lei”. 26 Vejamos, então, os contornos que essa jurisdição – constituidora deste elo précompromissório – receberá na formação da federação americana. 24 Cf. MATTEUCCI, Nicola. op., cit., p. 164. 25 Ambos citados por Elster (Cf. ELSTER, Jon. op., cit., p. 120). Aliás, é importante anotar, que foi Elster quem melhor trabalhou a aproximação entre a idéia de pré-compromisso que aparece na Odisséia de Homero e as modernas Constituições, principalmente aquela que representa a consagração do constitucionalismo norte-americano. Com efeito, no épico de Homero, Ulisses, durante seu regresso a Ítaca, sabia que enfrentaria provações de toda sorte. A mais conhecida destas provações é o “canto das sereias” que, por seu efeito encantador, desviava os homens de seus objetivos e os conduzia a caminhos tortuosos, dos quais dificilmente seria possível voltar. Ocorre que, sabedor do efeito encantador do canto das sereias, Ulisses ordena aos seus subordinados que o acorrentem ao mastro do navio e que, em hipótese alguma, obedeçam qualquer ordem de soltura que ele venha a emitir posteriormente. Ou seja, Ulisses sabia que não resistiria e, por isso, cria uma auto-restrição para não sucumbir depois. Do mesmo modo, as Constituições poderiam ser vistas como as correntes de Ulisses, através das quais o corpo político estabelece algumas restrições para não sucumbir ao despotismo das futuras maiorias (parlamentares ou monocráticas). Todavia, Elster revisitou essa sua construção e a entende, atualmente, apenas parcialmente correta. Isso por uma série de questões que não cabem serem aqui analisadas. Para efeitos do que aqui pretendo encaminhar, entendo continuar correta a idéia de pré-compromissos constitucionais tal qual Elster havia descrito em Ulisses and the Sirens. 26 Cf. MATTEUCCI, Nicola. op., cit., p. 169. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 16 2.4. A formação do Judicial Review e o papel dos Tribunais: A Suprema Corte como “Tribunal da Federação” De tudo o que foi dito, ao menos uma coisa parece ficar clara: a decisão de Marshall no leading case Marbury v.s. Madson é mais um ponto de chegada do que um ponto de partida. Ou seja, nesta decisão, a Suprema Corte afirmou um mecanismo que já vinha se sedimentando no interior da construção histórica do constitucionalismo e que encontrou as condições adequadas para seu desenvolvimento em solo norte-americano. É importante lembrar, que nos debates sobre a unificação das treze colônias e na redação da Constituição em 1788 27 já estavam desenhados os contornos de um necessário controle dos atos do parlamento e do executivo com relação à Constituição Federal. Isso se deu, como ressaltei no item anterior, a partir da idéia de pré-compromissos constitucionais. Como lembra Matteucci, a consagração do judicial review pelo chief justice John Marshall representa o acabamento da construção constitucional norte-americana. Sem ele, o modelo de freios e contrapesos que, com Elster, podemos dizer que caracteriza o constitucionalismo estadunidense, não estaria completo. Nesse sentido, são ilustrativas as palavras do próprio Matteucci: la construccíon constitucional no estaba acabada: faltava todavia uma institución que permitiera el gobierno limitado y que impediera peligrosas tensiones en el Estado federal; faltaba, por tanto, el juez sobre la tierra. La exigencia avanzada por James Otis em 1761, según la cual ‘uma ley contraria a la constitución es nula’, y luego repetida em numerosos panfletos y en la Circular letter de Massachusetts (1768), tardó em afirmarse institucionalmente, aunque estaba en plena sintonia con toda la orientación política de la revuleta de las colônias americanas contra la omnipotencia del Parlamiento inglés. [...] Este rol, confiado al poder judicial a través de um recto funcionamiento del sistema constitucional, estaba bien claro para los americanos que redactaron la constitución, pero la Constitución de los Estados Unidos no preveía expresamente el judicial review, la revisión de las leys a través de um juicio, si bien los artículos 3, sección II y 6, sección II constituyen su presuposto necesario. Fue la misma jurisprudencia del Tribunal Supremo la que dio 27 De se lembrar que, com a independência das treze colônias, colocou-se em pauta o debate pela união ou separação de cada um dos territórios. Evidentemente que o problema passava pela afirmação de uma autonomia administrativa de cada uma das colônias. É em 1778, com a ratificação da Constituição pela maioria dos Estados, que se culmina o processo histórico de unificação, ou melhor, de federação das colônias, que fora iniciado desde o congresso de Albany em 1754. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 17 cuerpo y realidad a este principio; y el mérito corresponde a su presidente, John Marshall [...] cuyas sentencias forman um corpus imponente, que tuvo gran influencia en el desarrollo del derecho americano. 28 Agora, é importante para nossa pesquisa esclarecer alguns pontos no que tange ao papel que a corte desempenha no exercício do judicial review. Quero dizer, além do tradicional juízo de constitucionalidade – determinar se a lei do parlamento esta ou não de acordo com a paramount law – a Suprema Corte cumpre algumas funções deverás importantes. Entre estas funções está o caráter de fechamento do sistema federativo e sua participação nos problemas envolvendo questões da federação na administração dos Estados. Isso significa que, acima de tudo, a Suprema Corte assume o papel de um Tribunal da Federação. Essa questão fica claramente explicada em Tocqueville: No momento em que a Constituição federal foi elaborada, já havia nos Estados Unidos treze cortes de justiça julgando sem apelação. Hoje são vinte e quatro. Como admitir que um Estado possa subsistir se suas leis fundamentais podem ser aplicadas de vinte e quatro maneiras diferentes ao mesmo tempo? (...) Os legisladores da América convieram pois em criar um poder judiciário federal, para aplicar as leis da União e decidir certas questões de interesse geral, que foram previamente definidas com cuidado. Todo poder judiciário da União foi concentrado num só tribunal, chamado corte suprema dos Estados Unidos. Mas, para facilitar a tramitação das causas, foram-lhe agregados tribunais inferiores, encarregados de julgar causas pouco Cf. MATTEUCCI, Nicola. op., cit., p. 167/169. Em tradução livre: “A construção constitucional não estava acabada: faltava uma instituição que permitisse um governo limitado e que impedisse perigosas tensões no Estado federal; faltava, portanto, um juiz sobre a terra. A exigência antevista por James Otis em 1761, segundo a qual ‘uma lei contrária a constituição é nula’ e logo repetida em numerosos panfletos e na Circular letter de Massachusetts (1768), tardou a afirmar-se institucionalmente, embora estivesse em plena sintonia com toda a orientação política da revolta das colônias americanas contra a onipotência do Parlamento inglês. [...] Esse complexo de coisas, confiado ao poder judiciário através de um correto funcionamento do sistema constitucional, estava bem claro para os americanos que escreveram a Constituição. Mas a Constituição não previa expressamente o judicial review, a revisão das leis por meio de um juízo judicial de constitucionalidade, muito embora os artigos 3, seção II e 6, seção II, constituíssem um pressuposto necessário. Foi a mesma jurisprudência da Suprema Corte que deu corpo e realidade a este princípio; e o mérito corresponde a seu presidente, John Marshall [...] cujas sentenças formaram um corpus imponente, que teve grande influência no desenvolvimento do direito americano”. 28 www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 18 importantes ou estatuir, em contestações mais graves. 29 primeira instância, sobre Tocqueville anota, também, a sensível diferença que existe entre o modelo judicial norte-americano e aquele que se praticava na Europa, procurando indicar como que, em um regime de garantias das liberdades – portanto de efetivo poder limitado – há uma certa tendência no sentido da ampliação dos poderes dos tribunais: Em todas as nações civilizadas da Europa, o governo sempre mostrou grande aversão em deixar a justiça ordinária decidir as questões que interessavam a ele. Essa aversão é, naturalmente, maior quando o governo é mais absoluto. Ao contrário, à medida que aumenta a liberdade, o círculo das atribuições dos tribunais vai sempre se ampliando, mas nenhuma nação européia ainda pensou que qualquer questão judicial, independente de sua origem, pudesse ser deixada aos juízes de direito comum. 30 Em arremate, o autor esclarece, ainda, quais funções são desempenhadas pela Corte, tendo como pano de fundo o exercício constante da afirmação da Constituição. In verbis: Nas mãos dos sete juízes federais repousam incessantemente a paz, a prosperidade, a própria existência da União. Sem eles, a Constituição é obra morta; é a eles que recorre o Poder Executivo para resistir às intromissões do corpo legislativo; a legislatura, para se defender das empreitadas do poder executivo; a União para se fazer obedecer pelos Estados; os Estados, para repelir as pretensões exageradas da União; o interesse público contra o interesse privado; o espírito de conservação contra a instabilidade democrática. Seu poder é imenso, mas é um poder de opinião. Eles são onipotentes enquanto povo aceitar e obedecer a lei; nada podem quando ele a despreza. Ora, a força de opinião é a mais difícil de empregar, porque é impossível dizer exatamente onde estão seus limites. Costuma ser tão perigoso ficar aquém deles, quanto ultrapassálos. 31 Todo esse poder conferido ao Judiciário não se apresenta isento de problemas. Se era necessária a criação de um mecanismo de controle dos 29 Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na América. Livro 1. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 159. 30 Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. op., cit., pp. 168/169. 31 Cf. TOCQUEVILLE, Alexis de. op., cit., pp. 169/170. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 19 pré-comprimissos constitucionais, também é certo que os limites dessa atividade de controle passam a ser um problema. No livro de Christopher Wolfe, The rise of modern judicial review, o autor coloca com precisão esse problema, ao alertar que, com o passar dos anos, o papel desempenhado pela suprema corte foi significativamente alterado, de modo que – de intérprete privilegiado da constituição – o Tribunal passou a agir como uma variante do poder legislativo. Agora, é preciso pensar como isso repercute em terras brasileiras. E com que custo! 3. A RECEPÇÃO DESTA TRADIÇÃO PELA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1891: A ADOÇÃO DO CONTROLE DIFUSO DE CONSTITUCIONALIDADE No Brasil o judicial review passa a se chamar controle difuso, uma referência ao caráter abrangente do controle, que se pulveriza por todas as esferas do poder Judiciário. No contexto atual, há também outros modos de se referir a essa modalidade de controle da constitucionalidade: via de exceção; via de defesa; controle concreto; incidenter tantum. De qualquer modo, as raízes de todas essas nomenclaturas estão arraigadas na tradição que conforma o modelo norte-americano de judicial review. 32 Aliás, não é apenas a função de revisão judicial dos atos do parlamento que a Constituição Republicana de 1891 irá incorporar do modelo constitucional norte-americano, mas na verdade haverá uma pretensão de incorporação global da engenharia constitucional estadunidense. Isso fica claro pela posição firmada por aquele que foi o grande articulista do projeto constitucional de 1891: Rui Barbosa. Nas palavras do autor, a Constituição brasileira é “filha do direito americano”, sendo que este estado de influência é notado inclusive na legislação da época que prescrevia, nos artigos orgânicos da justiça federal, a seguinte 32 Apenas a título ilustrativo, cabe lembrar que, no Brasil, se construiu nas últimas cinco décadas, um verdadeiro sistema misto de controle de constitucionalidade que alberga em seu bojo elementos de todas as tradições constitucionais. Há em nossa sistemática um controle político – exercido pelas comissões de constituição e justiça da câmara e do senado, e pelo veto do presidente da república – e um controle jurisdicional que engloba uma jurisdição constitucional difusa e uma concentrada. Daí o caráter misto do controle. O que pretendo demonstrar a partir de agora é que, muito embora exista essa pluralidade de formas e instrumentos de controle, a institucionalização de nossas constituições sempre se deu de forma precária e frágil. Isso porque, a importação dos mecanismos de controle desenvolvidos em outras culturas foi, de algum modo, adaptado ao padrão cultural vivenciado em terras tupiniquins que, no mais das vezes, não estava/está comprometido com a sustentação das garantias que o pré-compromisso constitucional impõe, mas sim com a conservação de interesses privados de certos grupos politicamente influentes. Nesse sentido, conferir também STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica. op., cit.. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 20 disposição: “os estatutos dos povos cultos, especialmente os que regem as relações jurídicas na República dos Estados Unidos da América do Norte, os casos de common law e equity serão subsidiários da jurisprudência e processo federal”. 33 A influência do constitucionalismo estadunidense na construção da Carta Constitucional de 1891, também aparece nesta outra passagem de Rui: Os autores de nossa Constituição, em cujo nome tenho algum direito de falar, não eram alunos políticos de Rousseau e Mably [...], eram discípulos de Madison e Hamilton. Não queriam essa ilusória soberania do povo, da qual dizia o insigne professor de legislação comparada no Colégio de França que nunca foi, em seu país, “senão um grito de guerra explorado por ambiciosos”. E, sabendo que essa soberania tumultuária, inconsciente e ludibriada “não serve senão para destruir”, querendo utilizar com sinceridade a soberania do povo como peça regular, como força conservadora no mecanismo político, embeberam a sua obra exclusivamente no exemplo americano; porque a doutrina das revoluções francesas, onde a democracia aparece apenas um nome. 34 Essa questão fica muito clara, no momento em que, enquanto a Constituição norte-americana trazia apenas de forma implícita o fundamento de legitimidade do judicial review, a Constituição brasileira de 189135 – fortemente influenciada por Rui Barbosa – introduziu expressamente uma cláusula que previa a possibilidade de revisão judicial dos atos da legislatura e da administração pública. 33 Cf. BARBOSA, Rui. Atos Inconstitucionais. Campinas: Russel, 2003, p. 19. Este livro traz, na verdade, as peças, minutas e manifestações de uma única causa, patrocinada por Rui Barbosa, em defesa de alguns funcionários públicos (civis e militares) exonerados por decretos presidenciais, uma situação contrária àquela que a Constituição de então previa. Neste contexto, na construção de sua argumentação, Rui apresenta toda a tradição constitucional, destacando as diferenças entre as tradições inglesa, francesa e estadunidense, no sentido de demonstrar duas coisas: que a supremacia constitucional era o princípio nuclear da nova ordem jurídica republicana; e que os tribunais tinham o dever de declarar nulas as leis que descumprissem a Constituição Federal. Nesse importe, é sempre ao lado das construções do direito norteamericano que ele firmará sua posição, com destaque para o caráter imponente assumido pelo poder judiciário, criando algo que chegou a ser conhecido no Brasil como “democracia judicialista” (Cf. STRECK, Lenio Luiz. Jursidição Constitucional e Hermenêutica. op., cit., em especial o capítulo VIII; ROCHA, Leonel Severo. A institucionalização do republicanismo no Brasil: o papel de Rui Barbosa na Constituição de 1891. In: Entre Discursos e Culturas Jurídicas. José Joaquim Gomes Canotilho e Lenio Luiz Streck (orgs.) Coimbra: Coimbra Editora, 2007). 34 Cf. BARBOSA, Rui. op., cit., pp. 30/31. 35 Previsão esta encontrada no art. 60, a e art. 59, § 1º, a da Constituição de 1891. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 21 De todo modo é certo que, o cultivo de um poder limitado que garantisse as liberdades individuais, não logrou grande êxito em terras brasileiras. Há uma série de acontecimentos que levaram à distorção daquilo que, nas outras tradições constitucionalistas, eram mecanismos de freios ao exercício monolítico do poder. É preciso passar, ainda que de maneira superficial, a alguns destes pontos desvirtuantes. 3.1. Paradoxos constitucionais: os desvirtuamentos que os postulados constitucionalistas sofreram no Brasil desde o império O aparecimento da primeira Constituição brasileira ocorreu quase dois anos após a declaração de independência, em 25 de março de 1824. Nasceu envolvida em uma grande contradição. Em vez de submeter o imperador acabou sendo submetida por ele. Esta tragédia teve início em junho de 1822, quando o imperador D. Pedro I expediu um decreto convocando uma Assembléia Constituinte. Foram eleitos 100 deputados, que se reuniram pela primeira vez em maio de 1823 não para limitar o poder de D. Pedro I, mas para ouvir do imperador um discurso esclarecedor do tipo de constitucionalismo que seria inaugurado no contexto brasileiro a partir daquele momento. Segundo ele, a nova Carta constitucional teria que ser merecedora de sua imperial aceitação. 36 Dessa maneira, logo após o processo independência, predominou aqui um governo autocrático, livre de todos os mecanismos que o constitucionalismo moderno havia elaborado para limitar, controlar e frear o poder arbitrário. 37 Diferentemente do constitucionalismo praticado na Europa continental – que havia sido construído a partir das revoluções burguesas do século XVIII para limitar o poder político exercido no âmbito das monarquias absolutistas –, no Império brasileiro o constitucionalismo foi incapaz de cumprir esse papel de controle dos atos políticos praticados pelo imperador, o que acabou favorecendo uma espécie de mandonismo capaz de sufocar tanto a atuação institucional do Parlamento como a do Poder Judiciário. 36 Cf. VILLA, Marco Antonio. A História das Constituições brasileiras. São Paulo: Leya, 2011, p. 14 e 15. Após a instalação da Assembléia o imperador começou a entrar em choque com o projeto constitucional formulado pelos deputados constituintes. De acordo com Villa, em novembro de 1823 o imperador recebeu alguns oficiais das guarnições militares do Rio de Janeiro, que exigiam o afastamento de alguns deputados opositores do imperador. Assim, após diversos protestos dos deputados, a Assembléia acabou dissolvida por centenas de soldados comandados por D. Pedro I, iniciando dessa maneira a histórica tradição golpista e autoritária da política brasileira. 37 Cf. FAORO, Raymundo. Assembléia constituinte: a legitimidade resgatada. In: A República Inacabada. Rio de Janeiro: Globo, 2007, p. 174. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 22 Na Europa, o Parlamento estava encarregado de limitar o monarca. Nos Estados Unidos, o Poder Judiciário estava encarregado de limitar os poderes do presidente da república e do Poder Legislativo, a partir da doutrina da supremacia constitucional. Já no Império brasileiro, o imperador se encarregava de limitar o Parlamento e o Poder Judiciário, utilizando-se do poder moderador para aumentar a sua própria arbitrariedade. Nesse sentido, é possível afirmar que a ausência do controle jurisdicional de constitucionalidade, nesse primeiro momento, acabou reforçando ainda mais os atos arbitrários praticados pelo imperador, já que não havia no contexto brasileiro a ideia de uma supremacia constitucional sustentada pela atividade de um tribunal, que por sinal também se encontrava ausente no Estado de Direito formado na Europa continental do século XIX, assentado nessa época principalmente na supremacia do Parlamento e na legalidade dos Códigos. 38 No entanto, se isso havia servido para limitar o poder político dos monarcas absolutistas; no Império brasileiro prevaleceu à supremacia da vontade do imperador, suprimindo a eficácia institucional de todos os outros Poderes constituídos pela Constituição outorgada em 1824. Raymundo Faoro, para se referir à estrutura política do Brasil Imperial, pós Constituição de 1824, afirma o seguinte: “na realidade, o Brasil não é uma monarquia Constitucional, mas uma oligarquia absoluta”. 39 Isso é sintomático: ao tempo do império, profundamente influenciada pelas idéias de “monarquia limitada” construída pelo constitucionalismo inglês e pela idéia de separação dos poderes, que inspirava a revolução francesa, a elite política brasileira criou uma carta que contrafazia os ideais liberais que estavam na base dos postulados ingleses, de modo que, se na Inglaterra a soberania parlamentar não era objeto de discussão, no Brasil imperial esta mesma soberania sucumbe em favor de um “poder moderador” exercido pelo príncipe-imperador. 40 38 Cf. FIORAVANTI, Maurizio. Los derechos fundamentales. Apuntes de historia de las Constituciones. 4ª ed. Madrid: Editorial Trotta, 2003. 39 Cf. FAORO, Raymundo. Machado de Assis: A Pirâmide e o Trapézio. 4ª ed. Rio de Janeiro: Globo, 2001, p. 72. Portanto, os estamentos, vistos a partir de Os Donos do Poder de Raymundo Faoro nos mostra que, em determinadas circunstâncias, o Brasil é ainda pré-moderno. Temos uma sociedade de estamentos, que “ficam de fora” da classificação tradicional de classes sociais. Nas palavras de Faoro: “sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma camada social, comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa, em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova, mas não representa a nação, senão que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-lhes os seus valores” (Cf. FAORO, Raymundo. Os donos do poder. op. cit., p. 824) 40 Um exemplo desta constatação é trazido por Bonavides e Paes de Andrade, que, em comento à Constituição de 1824, asseveram: “Ali o Absolutismo, por disposição voluntária ou www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 23 Também é do tempo do império a singular criação dos “Senadores Vitalícios” que sedimentavam as estruturas oligárquicas do governo, com uma blindagem contra a transitoriedade do poder. Ora, um dos principais instrumentos de contenção do poder é exatamente o fato de que, a partir das revoluções constitucionalistas, este passou a ser exercido de forma transitória pelos seus mandatários. A vitaliciedade dos membros do parlamento apenas cristalizou, durante quase um século, o patrimonialismo que caracteriza o modo como a política brasileira se desenvolve. Mesmo com a instituição de cargos transitórios para o senado, no início do período republicano, as elites patrimonialistas brasileiras continuaram a exercer a mentalidade da vitaliciedade, a partir de estratégias de perpetuação na gestão dos negócios públicos, tais quais, manipulação de eleições, compra de votos e edição de leis e regulamentos que preservavam seus próprios interesses, em flagrante ofensa à ordem constitucional. involuntária do primeiro Imperador, deixara estampado o selo de suas prerrogativas sem limites mediante a singular criação do Poder Moderador, instituído de forma que contra fazia os princípios de contenção de poderes da concepção de Constant e Montesquieu” (Cf. BONAVIDES, Paulo; ANDRADE, Paes de. História Constitucional do Brasil. 5 ed. Brasília: OAB editora, 2004, p. 257). Desta forma, pode-se concluir que, em território brasileiro, existe uma tradição histórica de “simular” o reconhecimento pleno dos direitos fundamentais. Com efeito, o exemplo descrito acima marca o início de uma história constitucional em que os direitos sempre foram relegados a um plano secundário, sempre submetidos à vontade daqueles que detêm o poder central. Em um breve inventário é possível mencionar: a adoção de um mecanismo de controle da constitucionalidade incompatível com o sistema jurídico brasileiro (controle difuso com ausência do stare decisis) pela Constituição de 1891, manipulado por uma Corte Constitucional de nítidas feições imperiais, como relata Lenio Streck (STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. op. cit., p.415 e segs.); a consagração dos direitos sociais pela Constituição de 1934, em pleno Estado Novo; a representação de inconstitucionalidade – embrião da atual ação direita de inconstitucionalidade – que aparece em 1965, em pleno regime militar e que possuía como único legitimado o Procurador Geral da República! Esses fatos representam apenas as linhas gerais dos motivos que ensejam a baixa densidade normativa que pode ser verificada nos textos constitucionais brasileiros, que acarretaram, no mais das vezes, a suspensão indeterminada da efetiva outorga dos direitos fundamentais de primeira, segunda e agora também os de terceira dimensão. Neste contexto, agravando ainda mais a situação apresentada, esses primeiros dezesseis anos da Constituição de 1988 foram marcados por sucessivas emendas que “retalharam” o texto original, além das edições inconsequentes de medidas provisórias, em regime explicitamente inconstitucional, mas que eram (são) passivamente confirmadas pelo Poder Judiciário. Esta realidade foi veementemente criticada por Fábio Comparato, que, em artigo publicado no jornal Folha de São Paulo (14.05.98, p. 1-3) destacou: “Não sejamos ridículos. A Constituição de 1988 não está mais em vigor. É pura perda de tempo discutir se a conjunção ‘e’ significa ‘ou’, se o ‘caput’ de um artigo dita o sentido do parágrafo ou se o inciso tem precedência sobre a alínea. A Constituição é hoje o que a Presidência (da República) quer que ela seja, sabendo-se que todas as vontades do Planalto são confirmadas pelo Judiciário”. (COMPARATO, Fábio Konder. Uma Morte Espiritual. Folha de são Paulo, 14/05/1998, caderno 1, p.3 Apud OLIVEIRA, Marcelo Andrade Cattoni de. Jurisdição Constitucional: Poder Constituinte permanente? In: Jurisdição Constitucional e Hermenêutica. José Adércio Leite Sampaio e Álvaro Ricardo de Souza Cruz (orgs), Belo Horizonte: Del rey, 2001, p.72.). www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 24 Neste contexto, a pergunta de Faoro – no âmbito das obras de Machado de Assis – aponta para uma reflexão instigante: “Acima da ordem jurídica, há um fator que decide e elege, com o qual não atina o inconformista discurso liberal do tempo. Onde está, acima dos que governam, a lei, a simétrica Constituição de 1824?” E o mestre gaúcho completa, respondendo sua própria pergunta: “a Constituição reduz-se a uma promessa, a um painel decorativo”. No fundo, a verdade da ordem imperial se reduzia a um feixe de fórmulas vazias, atrás da qual, menos o governador e mais a oligarquia, mandam mais do que governam – ou seja, professam uma espécie despótica de um absolutismo patrimonial – exercendo o domínio acima da autoridade. 41 3.2. Questões importantes em torno do STF E quanto ao Supremo Tribunal Federal? Qual seu papel nesta intrincada relação? A Constituição de 1824 criou o Supremo Tribunal de Justiça – embrião do STF –, que tinha muito mais uma função de preservação dos esforços de mando imperial, do que propriamente de uma Corte de Justiça, garantidora dos direitos do cidadão, como já aduzi, acontecia na Inglaterra e nos Estados Unidos. Essa corte imperial operava muito mais no sentido do Judiciário francês pré-revolução, no sentido de conservação dos interesses da estrutura oligárquica que mandava no país. A Constituição de 1824 não previu um controle de constitucionalidade a ser exercido por uma corte jurisdicional. O Supremo Tribunal de Justiça atuava mais como uma corte de cassação, nos moldes desenhados pelo constitucionalismo francês, o que criou, de algum modo, o ambiente a que Faoro se refere, ao dizer que a Constituição, nos tempos do Império, constituía uma mera lista de propósitos, sem condições de ordenar e reger a estrutura política do Estado que se afirmava a partir de então. O próprio Faoro argumenta que, o remédio que a república aplicou a esse mal foi simples e ineficaz: criou o Supremo Tribunal Federal e deu a ele o poder de julgar a constitucionalidade das leis criadas pelo parlamento e dos atos do presidente da república. Mas, segundo o autor, essa investida no nível da política, não conseguiu transformar o caldo de cultura na qual a articulação das relações de poder no Brasil já estavam imersas. Convém transcrever as palavras do próprio Faoro no que tange a essa questão: Criaram um Supremo Tribunal Federal e deram a ele o poder de julgar a inconstitucionalidade das leis. Com isso, estaria 41 Cf. FAORO, Raymundo. op., cit., pp. 74/75. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 25 garantida a eficácia da Constituição, cujas violações poderiam ser objeto de controle. Os críticos da lei superior, lei meramente de papel, combateram um vício político com outra ação apenas política, desatentos à profundidade do mal. Rui Barbosa definiu bem o escopo da reforma, ambiciosamente planejada. “Formulando para nossa pátria o pacto de regionalização nacional, sabíamos que os povos não amam as suas constituições senão pela segurança das liberdades que elas lhes prometam; mas que as constituições, entregues como ficam, ao arbítrio do parlamento e à ambição dos governos, bem frágil anteparo oferecem a essas liberdades, e acabam quase sempre, e quase sempre se desmoralizam pelas invasões graduais ou violentas do poder que representa a legislação e do poder que representa a força. Nós, os fundadores da Constituição, não queríamos que a liberdade individual pudesse ser diminuída pela força, nem mesmo pela lei. E por isto, fizemos deste tribunal (o Supremo Tribunal Federal) o sacrário da Constituição, demo-lhe a guarda da sua hermenêutica, pusemo-lo como um veto permanente aos sofismas opressores das razões de Estado, resumimos-lhe a função específica nesta idéia”. 42 Muito embora as intenções políticas de Rui Barbosa estivessem em sintonia com as conquistas da experiência constitucional estadunidense, o papel desempenhado pelo STF nos anos que seguiram a promulgação da Constituição de 1891 foi num sentido contrário às considerações que vimos acima. Já na sua inauguração estavam presentes alguns elementos estranhos a própria ideologia republicana. Muitos ministros, indicados nesse primeiro período, pertenciam aos quadros do extinto Supremo Tribunal de Justiça do Império, sendo quatro deles ainda portadores de títulos de nobreza do ancien régime: o visconde de Sabará e os barões de Sobral, Pereira Franco e Lucena. 43 Esses primeiros ministros eram considerados quadros experientes da vida política, da administração e da magistratura imperial. 44 42 Cf. Cf. FAORO, Raymundo. op., cit., pp.76/77. 43 Cf. COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2ª ed. São Paulo: Ed. Unesp, 2006, p. 25. 44 Cf. ADORNO, Sérgio. Os aprendizes do poder: o bacharelismo liberal na política brasileira. São Paulo: Paz e Terra, 1988, p. 157. Os primeiros ministros do Supremo Tribunal Federal haviam sido formados em instituições pouco propícias ao ensino jurídico. Na verdade, o principal objetivo dessas primeiras Faculdades de Direito era a formação dos bacharéis que tomariam assento na estrutura burocrática do Império. Desse modo, a criação em 11 de agosto de 1827 das Academias de São Paulo e Olinda – mais tarde transferida para o Recife – serviu fundamentalmente para moldar os aprendizes de estadistas do ancien régime que ocupariam os cargos mais importantes do Conselho de Estado, do Senado, da Câmara dos Deputados e da magistratura. Nesse sentido, num importante estudo sobre as atividades dos bacharéis e professores da Faculdade de Direito de São Paulo, Sérgio Adorno chega a destacar que, no século XIX, predominava neste ambiente a baixa produção de conhecimento e a indisciplina www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 26 Por outro lado, desconheciam completamente as questões de jurisdição constitucional incorporadas pela Constituição republicana de 1891, gerando um grande problema para os primeiros anos de vida do Supremo Tribunal Federal, já que constantemente eram provocados a desempenharem suas respectivas funções institucionais num contexto político agitado pelo estado de sítio, pelas prisões arbitrárias, pelo desterro e pelo exílio dos opositores do novo regime. Considerando estes acontecimentos, Faoro, continua: Óbvio que, atribuindo-lhe função de tal maneira relevante e irrealística, concluíssem seus propugnadores que a instituição mais infiel à República teria sido o Supremo Tribunal Federal. “O órgão que a Constituição criara para seu guarda supremo, e destinado a conter, ao mesmo tempo, os excessos do Congresso e as violências do Governo, a deixava desamparada nos dias de risco ou de temor, quando, exatamente, mais necessitada estava ela da lealdade, da fidelidade e da coragem dos seus defensores”. Rui viu no malogro apenas a covardia dos juízes. “medo, venalidade, paixão partidária, respeito pessoal, subserviência, espírito conservador, interpretação restritiva, razão de Estado, interesse supremo, como quer que chames, prevaricação judiciária, não escaparás ao ferrete de Pilatos! O bom ladrão salvou-se. Mas não há salvação para o juiz covarde”. 45 Portanto, O resultado da defesa republicana ao arbítrio foi exatamente o contrário do pretendido. Se é certo que se temperou, em alguns casos, o excesso legislativo e o abuso da força, de nenhuma forma o novo mecanismo fixou a consciência e a prática da supremacia da Carta Magna, para que esta regulasse as relações do poder, sem margem ao residual capricho. 46 entre professores e estudantes. Havia pouquíssimos jurisconsultos entre eles e suas atividades estavam voltadas principalmente para o periodismo e a militância político-partidária. Segundo ele, “A vida acadêmica e a formação cultural e profissional do bacharel em São Paulo, durante a vigência da monarquia, nunca se circunscreveram às atividades curriculares e sequer se sustentaram às expensas das relações didáticas entre alunos e professores. A interferência das doutrinas difundidas no curso jurídico não residiu no processo de ensino-aprendizagem. Ao contrário, essa formação foi tecida nos intrestícios dos institutos acadêmicos e do jornalismo literário e político”. 45 Idem, ibidem. 46 Idem, ibidem. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 27 Não obstante sua extensão era importante transcrever essa interpretação de Faoro sobre o problema da supremacia da Constituição e o papel do Supremo Tribunal Federal na (des)construção deste princípio. Também é interessante para comparar a descrição de Tocqueville sobre o importante papel que a Suprema Corte desempenha no âmbito da estrutura constitucional norte-americana. Note-se que o Supremo Tribunal Federal nem de longe desempenha papel parecido para a manutenção das estruturas federativas e democráticas, bem como para a preservação das liberdades individuais. Isso é de extrema importância para que o problema do controle difuso seja compreendido corretamente e colocado em seu devido lugar. Como controlar o poder político quando a arbitrariedade se sobrepõe a própria Constituição? O passado recente apresenta diversos casos de instrumentalização do direito e do STF para objetivos políticos nada democráticos, demonstrando a enorme dificuldade para o fortalecimento de uma efetiva jurisdição constitucional no contexto brasileiro. A maior parte da história do Brasil foi atravessada por conspirações, golpes de estado e regimes políticos autoritários. Constituições eram derrubadas e o direito constantemente acabava suprimido pelos donos do poder, perdendo completamente sua autonomia de dirigir e controlar o sistema político. Nesse sentido, algumas instituições elaboradas pelo constitucionalismo moderno para coibir o arbítrio do poder político – como foi o caso do judicial review – acabaram incorporadas pelo constitucionalismo brasileiro apenas pro forma, sem abalar o tipo de dominação política instalado aqui a partir da colonização portuguesa. Após a proclamação da República, esse tipo de dominação tradicional não sofreu grandes alterações. O autoritarismo continuou vigorando e os governos do novo regime passaram a exercer suas funções institucionais apenas por meio do estado de sítio e do estado de emergência, tornando praticamente impossível o bom funcionamento de uma jurisdição constitucional. Para o historiador Marco Antonio Villa, “[...] o STF acabou, ao longo de mais de 120 anos de história, representando uma síntese das mazelas da Justiça brasileira”. 47 Isso explica o porquê o órgão de cúpula do Poder Judiciário não foi capaz de impedir as constantes violações dos pactos constitucionais estabelecidos pelos regimes políticos anteriores a Constituição de 1988, sendo vilipendiado por aqueles que encontravam nele a possibilidade de uma barreira à sua própria arbitrariedade ou ambição. 48 47 Cf. VILLA, Marco Antonio. A História das Constituições brasileiras. São Paulo: Leya, 2011, p. 148. 48 Cf. COSTA, Emília Viotti da. O Supremo Tribunal Federal e a construção da cidadania. 2ª ed. São Paulo: ed. Unesp, 2006, p. 188. Dessa forma, a respeito da atuação do Supremo www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 28 Foi nesse sentido que, com base no princípio da legitimidade revolucionária, alguns ministros favoráveis ao regime militar de 1964 procuraram sustentar os atos arbitrários praticados pelos generais, defendendo que seria praticamente impossível conceber uma revolução de profundidade sem que o STF passasse por qualquer tipo de mudança. 49 Os responsáveis pelo golpe haviam se investido do Poder Constituinte, colocando-se numa posição alheia a qualquer responsabilidade perante o Poder Judiciário. Um bom exemplo dessa situação foi a alteração do número de ministros do STF pelos generais que governaram o país naquele momento. De fato, em 1965, o Ato Institucional nº 2 atingiu diretamente a estrutura do tribunal, modificando o número de ministros de onze para dezesseis e formando uma composição interna mais favorável as posições ideológicas do próprio regime. A justificativa do governo militar para tal mudança surgiu após uma entrevista do ministro Ribeiro da Costa – na época presidente do STF – condenando as constantes interferências do Poder Executivo no Poder Judiciário. Assim, o presidente Castelo Branco encontrou a oportunidade para nomear mais cinco ministros alinhados ideologicamente a política daquele momento. Foram eles: Adalício Coelho Nogueira, José Eduardo Prado Kelly, Osvaldo Trigueiro de Albuquerque Melo, Aliomar de Andrade Baleeiro e Carlos Medeiros Silva. Mais tarde, com o Ato Institucional nº 6, o STF novamente voltou a ter sua formação anterior, aposentando compulsoriamente os ministros que vinham divergindo ideologicamente dos generais. Desse modo, o tribunal teve sua composição alterada conforme os anseios políticos daqueles que detiveram o poder naquele momento. Por todos esses motivos, é possível afirmar que a incorporação do judicial review, pelo estamento, pode ser encarada como um belo exemplo de distorção do constitucionalismo moderno pelo autoritarismo praticado ao longo da história constitucional do Brasil. Em regimes políticos onde vigoram a arbitrariedade de quem governa, a Constituição e a jurisdição constitucional são praticamente desconsideradas. Ditaduras não respeitam o direito. Em ambientes políticos autoritários o direito e os tribunais sempre acabam instrumentalizados de acordo com as conveniências ideológicas de Tribunal Federal em contextos autoritários, a historiadora Emília Viotti da Costa afirma que, “Durante seu longo percurso, a instituição não pôde deixar de sofrer as influências autoritárias que caracterizaram o processo histórico brasileiro. No próprio Supremo, essas ideias encontraram guarida entre alguns ministros. Assim como houve ministros liberais ou progressistas, também houve os conservadores e até os retrógrados. Inevitavelmente, reproduziram no Supremo as linhas dominantes na política brasileira do século XX e operaram dentro dos limites definidos pelo Executivo e pelo Judiciário”. 49 Cf. BALEEIRO, Aliomar de Andrade. O Supremo Tribunal Federal, esse outro desconhecido. Rio de Janeiro: Forense, 1968, p. 131. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 29 quem está exercendo o poder, sendo dissimulado em instituições supostamente legais ou jurídicas para perpetuar um regime de exceção. Ao contrário dessa situação, no Constitucionalismo Contemporâneo a autonomia do direito e o papel contramajoritário de uma jurisdição constitucional são considerados elementos fundamentais para o afastamento de qualquer tipo de instrumentalização ideológica da Constituição, seja ela mais conservadora ou mais progressista. 50 Por certo, o correto manejo da jurisdição constitucional difusa ou concentrada pode contribuir para solidificação de nossa democracia e para a efetividade dos direitos fundamentais. Mas isso precisa ser feito tendo presente que há um inimigo mais profundo para se combater. Um inimigo simbólico que impede a penetração do espectro cultural que permeia todo o constitucionalismo, nas veredas da estrutura social brasileira. Como afirma Faoro, é preciso saber que o mal que acomete as instituições de controle do poder é muito mais profundo do que a simples alteração da cartilha política. 4. À GUISA DE CONSIDERAÇÕES FINAIS Nesses quase duzentos anos de história do constitucionalismo brasileiro inúmeras contradições e incoerências acompanharam a atuação institucional do Supremo Tribunal Federal. Marcado fundamentalmente pela constante intervenção política do Poder Executivo em temas e assuntos de sua exclusiva competência, este tribunal foi descrito na primeira metade do século XX, pelo jurista João Mangabeira, como o Poder que mais havia falhado na República. E não foi sem motivação que o jurista baiano apontou suas baterias para criticar a atitude subserviente do órgão de cúpula do Poder Judiciário. Vítima da arbitrariedade política do Estado Novo, João Mangabeira foi preso pelos órgãos de segurança da 50 Cf. ABBOUD, Georges. STF vs. Vontade da Maioria: as razões pelas quais a existência do STF somente se justifica se ele for contramajoritário. In: Revista dos Tribunais, vol. 921, p. 191. Nesse mesmo sentido, diante da recente polêmica em torno da função contramajoritária do STF, que surgiu no julgamento de constitucionalidade da Lei da Ficha Limpa, Georges Abboud se manifestou de maneira crítica a posição sustentada pelo ministro Luiz Fux, que, na ocasião, chegou a defender a necessidade do STF levar em consideração a vontade da maioria para proferir seu julgamento, questionando o papel contramajoritário exercido pelo tribunal no atual estágio do constitucionalismo. De acordo com Abboud, a existência do STF é justificável somente se ele puder atuar de maneira contrária a vontade de maiorias eventuais que coloquem em risco a incolumidade do texto constitucional e dos direitos fundamentais. Assim, ele afirma que “[...] o STF não precisa conquistar e agradar a sociedade, muito pelo contrário, em alguns casos, faz-se necessário que os 11 ministros tenham a coragem e a independência de proferir julgamento que contrarie a maior parte da população, se isso for necessário para assegurar a preservação do pacto constitucional. Desse modo, uma atuação imparcial e independente do STF impede que ele viva em constante lua de mel com a opinião pública e a maioria da população”. www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 30 ditadura Vargas e por diversas vezes teve seu pedido de habeas corpus negado pelo tribunal que deveria zelar pela defesa dos direitos fundamentais. Por motivos como este, é possível afirmar que a persistência de regimes autoritários foi capaz de sufocar durante muito tempo a atuação da jurisdição constitucional no contexto brasileiro, prejudicando, logo no início do regime republicano, a incorporação do modelo estadunidense de controle de constitucionalidade. Desse modo, a partir da análise que Faoro faz da formação do patronato político, foi possível avaliar as deficiências do controle difuso de constitucionalidade na conjuntura institucional brasileira, onde elementos pré-modernos de dominação acaba(ra)m dificultando a incorporação de instituições formadas pelo constitucionalismo moderno. Segundo ele, acima das classes sociais prevalece o domínio do estamento burocrático, sempre instrumentalizando o direito e controlando o espaço público para seu próprio proveito. É nesse tipo de dominação política que se desenvolve o chamado capitalismo politicamente orientado, com as instituições públicas sempre servindo aos interesses daqueles que dominam o Estado. Nesse sentido, instrumentos constitucionais elaborados para aumentar o controle do direito sobre o poder político perdem toda a sua eficácia, sendo completamente distorcidos pelo poder arbitrário. Diferentemente do caso brasileiro, a história do constitucionalismo inglês, frances e estadunidense se destacou pelo fortalecimento de algumas instituições comprometidas com o controle do poder político. Cada um a sua maneira elaborou mecanismos próprios, em concordância com suas particularidades históricas, para limitar o exercício arbitrário do poder político. Dessa forma, nos casos da Inglaterra e da França, o problema encontrava-se no âmbito das monarquias absolutistas, formadas no século XVI para superar a fragmentação do poder político predominante no contexto da Idade Média e, ao mesmo tempo, sufocar as constantes guerras religiosas entre facções e grupos rivais que haviam surgido após o grande cisma ocorrido na Igreja Católica durante a reforma protestante. Acontece que – e isso ocorreu com maior vigor no caso frances – após o processo de secularização da política e de pacificação dos grupos religiosos, o poder exercido pelos monarcas absolutistas tornou-se arbitrário frente a ausência de separação das funções legislativa, executiva e judicial. Desse modo, em ambos os casos, Inglaterra e França foram obrigadas a rearticular as relações entre as três funções, criando um novo equilíbrio institucional que afastava completamente o poder arbitrário do monarca. A função judicial ocupou um papel secundário nas duas situações. Assim, na experiência inglesa, a resposta oferecida pela Revolução Gloriosa foi a supremacia do Parlamento; na experiência francesa, os revolucionários primeiramente www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 31 apostaram na volonté générale exercida no âmbito do Poder Legislativo, para depois – já no período contra-revolucionário – receberem das mãos de Napoleão Bonaparte a segurança e a certeza dos Códigos. Por outro lado, no caso dos Estados Unidos, a guerra de independência ofereceu novas condições para o desenvolvimento da engenharia constitucional moderna. Ao contrário do contexto europeu, o maior inimigo dos colonos não foi um monarca absolutista, mas um Parlamento que, há poucos anos atrás, havia derrotado todas as pretensões arbitrárias do rei da Inglaterra. Dessa forma, o equilíbrio político criado pelo federalismo, após o processo de independência, exigiu um Poder Judiciário muito mais presente no cenário político nacional, capaz de assegurar a supremacia constitucional contra qualquer tipo de arbitrariedade praticada tanto pelo Poder Executivo, como pelo Poder Legislativo. Com isso surgiu a Suprema Corte, um verdadeiro tribunal da federação com a função de assegurar a unidade do direito estadunidense e, ao mesmo tempo, proteger os direitos fundamentais do cidadão. Nascia assim o judicial review, um modelo de jurisdição constitucional aperfeiçoado pelas necessidades da nova nação independente, já que elementos do constitucionalismo inglês, presentes na doutrina da supremacia do common law do juiz Edward Coke, haviam influenciado grandemente a elaboração deste importante mecanismo de controle de constitucionalidade. Como foi possível perceber, em todos estes casos descritos acima há uma grande autenticidade na construção de mecanismos constitucionais de enfrentamento contra o poder arbitrário. Inglaterra, França e Estados Unidos elaboraram verdadeiras barreiras contra a arbitrariedade presente em suas respectivas realidades políticas. Certamente, outros problemas surgiram mais tarde, como o autoritarismo baseado na volonté générale dos Parlamentos europeus e o ativismo judicial presente no contexto estadunidense. No entanto, a criação desses primeiros mecanismos constitucionais de controle do poder político foi fundamental para o fortalecimento da democracia. E é dessa maneira que o funcionamento do judicial review e da Suprema Corte estadunidense devem ser compreendidas no Brasil. Sem a supremacia constitucional e o domínio do direito fica praticamente impossível o funcionamento de uma jurisdição constitucional. Governos autoritários não submetem seus atos a nenhum tipo de controle jurisdicional ou filtro constitucional. Seria um grande contra-senso imaginar que esse tipo de controle pudesse funcionar em regimes políticos autoritários como os que ocorreram no Brasil logo após a proclamação da República. Assim, além do problema político e sociológico que sempre esteve presente na história constitucional brasileira – o que gera uma crise de www.derechoycambiosocial.com │ ISSN: 2224-4131 │ Depósito legal: 2005-5822 32 efetividade de nossas Constituições – a adoção pela Constituição de 1891 do modelo de judicial review norte-americano gerou um problema de ordem técnico-jurídico. Isso porque, o modo de dar unidade à declaração de inconstitucionalidade no direito norte-americano faz parte da própria carga genética do sistema do common law. Ou seja, se um ato do congresso é declarado nulo pela Suprema Corte, a decisão que o declarou entrará na cadeia de precedentes e, desse modo, deverá ser respeitada em todos os demais tribunais da federação. No modelo brasileiro, gerou-se um perigoso ecleticismo. Isso porque a ausência do sistema de precedentes impedia que a declaração de inconstitucionalidade, mesmo que efetuada pelo Supremo Tribunal Federal, alcançasse o efeito unitário da qual era dotada em seu país de origem. Os inconvenientes decorrentes deste improviso sistêmico são de várias ordens, que vão desde a instabilidade institucional – decorrente da falta de previsibilidade que acarreta insegurança jurídica – até um problema democrático, porque, no sistema romano germânico, a produção judicial do direito entra de modo enviesado no sistema. Dessa maneira, a resposta do constitucionalismo brasileiro só apareceu com a Constituição de 1934, com a criação do instituto da intervenção/remessa ao senado. 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