Baixar Revista Dia-Logos 2010 - XI Semana de História Política

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Baixar Revista Dia-Logos 2010 - XI Semana de História Política
Dia-Logos
REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Nº 4 | OUTUBRO DE 2010
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Reitor
Ricardo Vieiralves de Castro
Vice-Reitora
Maria Christina Paixão Maioli
Sub-Reitora de Graduação
Lená Medeiros de Menezes
Sub-Reitora de Graduação e Pesquisa
Monica da Costa Pereira Lavalle Heilbron
Sub-Reitora de Extensão e Cultura
Regina Lúcia Monteiro Henriques
Diretor do Centro de Ciências Sociais
Domênico Mandarino
Diretor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
José Augusto de Souza Rodrigues
Coordenadora Geral do Programa de Pós-Graduação em História
Maria Teresa Toríbio B. Lemos
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / CCS / A
D536
Dia-Logos - RJ. - vol.1 nº1 (2004) . - Rio de Janeiro:
UERJ, Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, 2004 -
v.
Anual
Dia-Logos - Revista dos alunos de Pós-Graduação em História da UERJ, nº4, 2010.
ISSN 1414-9109
1. História - Periódicos. I. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.
CDU: 981 (05)
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Dia-Logos
REVISTA DOS ALUNOS DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
Nº 4 | OUTUBRO DE 2010
UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
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Conselho Consultivo (UERJ)
André Nunes de Azevedo; Antônio Edmilson Martins Rodrigues; Edgard Leite
Ferreira Neto; Eliane Garcindo de Sá; Lená Medeiros de Menezes; Lúcia
Maria Bastos Pereira das Neves; Lucia Maria Paschoal Guimarães; Márcia de
Almeida Gonçalves; Maria Regina Cândido; Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos;
Marilene Rosa Nogueira da Silva; Miriam Gomes Saraiva; Ricardo Antônio
Souza Mendes; Silvio de Almeida Carvalho Filho; Tânia Maria T. Bessone da
Cruz Ferreira; Williams da Silva Gonçalves.
Conselho Consultivo (professores convidados)
Adriano de Freixo (PPGEST-UFF); Álvaro de Araujo Antunes (UFV/UFOP);
Antonio Marcelo Jackson Ferreira da Silva (UFOP); Carlos Fico da Silva Júnior
(UFRJ); Célia Cristina da Silva Tavares (UERJ-FFP); Francisco Carlos Palomanes
Martinho (USP); Guilherme P. C. Pereira das Neves (UFF); Helena Miranda
Mollo (UFOP); Marco Antônio Silveira (UFOP); Maria Letícia Corrêa (UERJ/
FFP); Ricardo Henrique Salles (UNIRIO); Rebeca Gontijo Teixeira (UFRRJ);
Ronaldo Vainfas (UFF); Silvia Carla Pereira Brito Fonseca (UNIRIO).
Conselho Editorial
Gustavo Pinto de Sousa, Isadora Tavares Maleval, Júlia Ribeiro Junqueira,
Roberta Ferreira Gonçalves, Sheila Conceição Silva Lima e Veronica Castanheira
Machado.
Projeto gráfico editorial
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Desenho de capa
Gabriel Costa Labanca
Revisão
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Correspondência
Rua São Francisco Xavier, 524 - Bloco F - 9º andar - sala 9037
Maracanã - Rio de Janeiro - RJ - CEP 20550-013
Tel./Fax.: 21 2587-7746 - e-mail: [email protected]
Todos os textos são de responsabilidade dos autores e não refletem
necessariamente a posição da editoria ou da instituição responsável por esta
publicação.
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ÍNDICE
7 Apresentação
9 Editorial
11 Criminosos, polícia e políticos em letras impressas: jornais
cariocas, criminalidade na cidade do Rio de Janeiro e
fraudes eleitorais no início do século XX.
Ana Vasconcelos Ottoni
Universidade Federal Fluminense
27 A Restauração na Bahia: um estudo sobre as relações
entre os poderes do centro e o poder local (1644-1645).
Érica Lôpo de Araújo
Universidade Federal Fluminense
41 Cultura Política e Cidadania no Brasil (1986-2002): A
construção de uma visão de mundo neoliberal.
Flávio Henrique Calheiros Casimiro
Universidade Federal de São João Del-Rei
55 Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro: espaço de
tradição e de modernidade nas primeiras décadas do
século XX.
Luciene Pereira Carris Cardoso
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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69 O homem, o papel e a estrela: de como o exército
revolucionário do povo escreveu aos argentinos.
Marina Maria de Lira Rocha
Universidade Federal Fluminense
85 A Ordem Beneditina e o Governo: acordos e conflitos na
Corte Imperial.
Paulo Henrique Silva Pacheco
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
101 Nas Sombras da Libertinagem - reflexões iniciais sobre a
trajetória de Francisco de Mello Franco (1757-1822).
Rossana Agostinho Nunes
Universidade Federal Fluminense
115 Práticas Políticas e Sociabilidade Intelectual na Bahia:
1940-1950.
Vanessa Magalhães da Silva
Universidade Federal da Bahia
131 Resumos | Abstracts
139 Normas Editoriais
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APRESENTAÇÃO
A Revista DIA-LOGOS, produção do corpo discente do Programa de
Pós-Graduação em História Política da UERJ, está classificada no Qualis da área
de História da Capes no extrato B5. A publicação consiste, exclusivamente,
na produção das pesquisas de mestrandos e doutorandos do Programa. A
atuação do corpo discente do Programa de Historia da UERJ foi reconhecida
na ultima avaliação trienal da Capes (2007/2009), com a qualificação de Muito
Bom. E essa atuação se revela no número atual da Revista DIA-LOGOS.
DIA-LOGOS consolida o coroamento do êxito da Semana de História
Política organizada anualmente pelo corpo discente do Programa. O evento
realizado pelos alunos envolve também a participação de discentes de diversos
cursos de Pós-Graduação do país. Da articulação entre a Semana de História
Política e a apresentação dos resultados dos estudos realizados emerge a
Revista DIA-LOGOS, representando uma proposta inovadora e a eficácia dessa
associação para o sucesso do PPGH e da Revista discente.
Entre os 100 artigos apresentados, 21 foram selecionados pelos
pareceristas e oito indicados para a publicação. Os artigos atendem às diversas
propostas teórico-metodológicas da História Política, revelando a excelência
da natureza da pesquisa histórica desenvolvida no país e especialmente, no
Estado do Rio de Janeiro, apontando questões singulares da renovada História
Política.
Entre os artigos contemplados destacam-se os seguintes: Ana
Vasconcelos Ottoni, que escreveu sobre Criminosos, polícia e políticos em
letras impressas: jornais cariocas, criminalidade na cidade do Rio de Janeiro.
Nesse artigo, a autora discute questões sobre criminalidade e fraudes
eleitorais no Rio de Janeiro. Destaca a relação da imprensa com a expansão da
criminalidade e o relacionamento dos criminosos e da polícia com os políticos
por meio de fraudes eleitorais.
O texto de Flávio Henrique Calheiros Casimiro - Cultura Política e
cidadania no Brasil (1986-2002): a construção de uma visão de mundo neoliberal - trata da temática cultura política, cidadania e neoliberalismo. O autor
enfatiza a problemática da redefinição do conceito de cidadania no Brasil,
fundada na valorização da imagem e do consumo.
Marina Maria de Lira Rocha, em seu texto O homem, o papel e a
estrela: de como o exército revolucionário do povo escreveu aos argentinos,
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Apresentação
discute questões sobre a Argentina, a Guerrilha e a Subversão, através das
publicações do ERP, em 1975 e o Golpe Militar em 1976.
Em seu texto Nas sombras das Libertinagens: reflexões iniciais sobre
a trajetória de Francisco de Mello Franco, a autora Rossana Agostinho Nunes
discute os problemas referentes ao Iluminismo.
Érica Lôpo de Araújo - Em A Restauração na Bahia: um estudo sobre
as relações entre os poderes do centro e o poder local (1644-1645), a autora
trata de questões pontuais como poder e negociação, a partir de um conflito
envolvendo membros do poder eclesiástico.
Luciene Pereira Carris Cardoso em a Sociedade de Geografia do Rio
de Janeiro: espaço de tradição e modernidade nas primeiras décadas do século
XX, analisa questões relativas à história institucional, território e a sociedade
de geografia nas primeiras décadas do século XX.
As questões sobre Política, Sociabilidade Intelectual na Bahia no
século XX são objeto de discussão de Vanessa Magalhães da Silva em seu
artigo Práticas políticas e sociabilidade intelectual na Bahia: 1940-1950.
Paulo Henrique Silva Pacheco reflete sobre a congregação Beneditina,
a crise monástica no Rio de Janeiro em A Ordem Beneditina e o Governo:
acordos e conflitos na Corte Imperial.
O Conselho Editorial foi formado pelos alunos Gustavo Pinto de
Sousa, Isadora Tavares Maleval, Júlia Ribeiro Junqueira, Roberta Ferreira
Gonçalves, Sheila Conceição Silva Lima e Veronica Castanheira Machado. O
Conselho foi ampliado para atender ao desafio de manter a periodicidade
da Revista. Assim, durante a Abertura da V Semana de História será lançado
o quarto número da DIA-LOGOS, contemplando os trabalhados do simpósio
anterior.
A expressiva participação dos professores do colegiado e de
professores convidados tornou-se fundamental para a avaliação dos artigos e
viabilização deste número da Revista.
A Coordenação Geral sente-se honrada em apresentar mais uma
produção do corpo discente do Programa e parabeniza a integração acadêmica
entre professores e alunos do PPGH/UERJ por essa iniciativa.
Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos
Coordenadora Geral do PPGH/UERJ
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Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.4, Outubro de 2010
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EDITORIAL
É chegada a hora de mais uma edição da revista Dia-Logos.
Alegramo-nos por mais um triunfo em nosso Programa de Pós-Graduação em
História Política da UERJ. Esse esforço que se deve ao trabalho voluntário e
árduo de alunos, professores e servidores do supracitado programa, como a
colaboração de docentes de outras instituições que nos privilegiam com sua
presença e participação.
Esse longo caminho, que a cada ano está mais consolidado, começa
com a organização da Semana de História Política dos alunos do PPGH/UERJ,
que nesse ano de 2009 alcançou o patamar de Seminário Nacional de História,
pois envolveu não apenas pesquisadores do Estado do Rio de Janeiro e suas
instituições de Ensino Superior, mas, pesquisadores de todo o Brasil.
Evento que cresce a cada ano e que neste, de 2009, alcançou a
marca de 180 inscritos. Trabalhos que denotam qualidade e diálogo com a
História Política, o que muito nos tem feito avançar enquanto Programa e
espaço de difusão, discussão e consolidação de novos pesquisadores, já que
a Semana é um evento voltado para pesquisadores discentes. É importante
salientar, que essas variedades de proposições contribuem diretamente para
o aprimoramento das trocas intelectuais, feitas no Seminário, o que influencia
diretamente na qualidade da Revista Dia-Logos. Aqui se encontram os artigos
de maior qualidade, selecionados após criteriosa análise realizada por nosso
Conselho Consultivo, formado por professores doutores de instituições de
excelência.
Como revista discente, a Dia-Logos cumpre o papel de difundir e fazer
circular alguns dos melhores trabalhos historiográficos, apresentados pelos
nossos jovens pesquisadores. Dessa forma, não se delimita temáticas para
esse periódico. A nós cabe o papel de promover o conhecimento dos novos
trabalhos que se desenvolvem na academia, as mais interessantes pesquisas
desenvolvidas por jovens talentos, da mais variada gama de assuntos, de
acordo com os pareceres de especialistas nos mesmos temas. Sendo assim,
a Dia-Logos comporta artigos que tratam da abordagem da História Política,
como dos demais domínios da História. Da mesma forma, é possível encontrar
pesquisas cujo enfoque se aproxima da História Moderna ou da História
Contemporânea, sobre conceitos, idéias ou movimentos de longa duração.
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Editorial
Ambientados na América, na Europa ou na África. Não podemos negar que
os artigos, em sua maioria, ainda sejam artigos referentes às pesquisas
realizadas no âmbito de nosso Estado do Rio de Janeiro. Estamos crescendo
e nesse quarto ano de revista, somos brindados com dois textos de Estados
co-irmãos: Bahia e Minas Gerais. Dessa forma, acreditamos que cresceremos
ainda mais nas próximas edições.
Imprimir uma revista acadêmica no mundo virtual de hoje pode
parecer ultrapassado. Contudo, sem nostalgias e retrocessos, queremos
resguardar a história como há milênios os papiros do Egito e do mar Morto
se conservam. Apesar da importância do aparato tecnológico, o livro ainda
guarda todo o seu encanto e permanece como o maior suporte de memórias.
No entanto, também não queremos nos afastar do processo da internet, pelo
contrário. Estamos trabalhando, com muito empenho para a indexação da
revista no portal da UERJ. Processo aprovado e conquistado nesta gestão de
2009/2010. Como também a Dia-Logos já conta com seu site próprio www.
revistadialogos.net, onde, igualmente, se disponibilizará os números das
revistas passadas e as novas produções. E hoje, a Revista Dia-logos conta com
a recomendação B5 de acordo com a avaliação do Qualis da Capes.
Portanto, é muito relevante imprimir, anualmente esse periódico,
difusor de novas pesquisas e pesquisadores, e distribuí-lo entre os principais
programas de pós-graduação em História do país e quiçá do exterior.
Esperamos que apreciem a revista e mais uma vez agradecemos
a todos que participaram desse imenso e árduo trabalho, mas de grande
importância para a divulgação da pesquisa científica no Brasil, através da
revista Dia-Logos.
Boa Leitura!
Conselho Editorial
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Dia-Logos, Rio de Janeiro/RJ, n.4, Outubro de 2010
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Criminosos, polícia e políticos em letras impressas:
jornais cariocas, criminalidade na cidade do Rio de
Janeiro e fraudes eleitorais no início do século XX
Ana Vasconcelos Ottoni*
“Bandidagem à solta”. “Paraíso dos ladrões” . “Roubos
sobre roubos”1 . Títulos de notícias de crimes como esses eram
estampados com freqüência nas primeiras páginas da Gazeta de
Notícias, Jornal do Brasil e Correio da Manhã no início do século
XX. Nestas notícias, os repórteres policiais buscavam mostrar que
o Rio de Janeiro, Capital da República, estava sendo infestado por
ladrões, salteadores e criminosos que efetivavam seus crimes
a qualquer hora do dia, nos mais variados espaços da cidade.
Segundo tais jornalistas, os crimes ampliavam-se e sofisticavamse devido a fatores como o que classificavam de “ lado perverso
da modernidade” que teria engendrado no Rio “uma classe de
ladrões aperfeiçoados”2 . A falta ou deficiência no policiamento
também seria uma das razões dessa expansão, o que facilitava a
ação dos criminosos na cidade3 . Mas como os repórteres policiais
eram profissionais sintonizados com o universo político da época
-como veremos mais adiante deste texto-, atribuíam também à
expansão da criminalidade no Rio de Janeiro ao relacionamento
dos políticos com os criminosos e a polícia. Isso porque alegavam
que os “chefes políticos”, ao buscarem conquistar votos a todo
custo por meio das fraudes eleitorais, contratavam ladrões e
bandidos para provocar “desordens” em épocas de eleição e, em
troca disso, esses políticos lhes davam proteção, o que estimulava
os criminosos a cometer mais crimes no Rio. Por sua vez, a polícia,
por convivências políticas e por manter relações “escusas” com
determinados políticos , protegeria a mando destes últimos, tais
criminosos, absolvendo-os da prisão4.
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Ana Vasconcelos Ottoni
Mas afinal quem eram os repórteres policiais que
escreviam essas notícias? Tal questão é difícil de ser respondida
na medida em que os jornalistas policiais não assinavam suas
reportagens. Contudo, através da obra de Eduardo Coutinho sobre
as crônicas carnavalescas da Primeira República5, o autor nos
oferece pistas sobre quem eram os repórteres de crimes. Neste
estudo, Coutinho identificou em muitas crônicas carnavalescas
da época-que eram assinadas-que alguns repórteres policiais
eram cronistas carnavalescos e possuíam em geral uma origem
humilde, a exemplo do repórter Francisco Guimarães (18771947) - conhecido pelo pseudônimo Vagalume -, jornalista do
Jornal do Brasil, negro e filho de pais pobres.
Apesar de não terem tido formação acadêmica de nível
superior, tais jornalistas conheciam os problemas políticos e
eleitorais que assolavam o país. Possivelmente adquiriram tal
conhecimento a partir de suas próprias vivências cotidianas
com a política e de seus contatos com os populares nas ruas,
através das entrevistas que faziam com diferentes tipos de
personagens (vítimas, criminosos, testemunhas etc) envolvidos
nos crimes, dos múltiplos relatos que circulavam na cidade e de
informações da polícia. Ao fazerem suas reportagens nas ruas
do Rio de Janeiro a partir dos anos de 1900, - período no qual
os repórteres passaram a se deslocar do prédio da redação para
as ruas em busca de acontecimentos e personagens criminais6 -,
iam em épocas eleitorais até os locais de votação da cidade, para
procurar notícias sobre bandidos que estariam mancomunados
com determinados chefes políticos. Afinal, os jornalistas sabiam
que as eleições na Capital da República eram decididas por
bandos que atuavam em determinados pontos da cidade e
alugavam seus serviços aos políticos7.
Contudo, os jornalistas policiais não só conheciam bem
tais fatos, como também muitos deles comentavam as ocorrências
de fraudes eleitorais da época, condenando-as e estabelecendo
relações intrínsecas entre a expansão da criminalidade do Rio
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Criminosos, polícia e políticos em letras impressas: jornais cariocas, criminalidade na cidade do
Rio de Janeiro e fraudes eleitorais no início do século XX.
de Janeiro e o relacionamento de certos políticos- que segundo
eles cometiam tais fraudes- com os criminosos e a polícia. Diante
disso, propunham mudanças eleitorais e políticas no país, além
de reformas na polícia da época como a adoção no Rio de Janeiro
de uma polícia de carreira, o que na opinião de tais repórteres,
acabaria com a politicagem na organização policial e garantiria
uma atuação mais rigorosa das autoridades policiais no combate
ao crime, como veremos mais adiante deste texto. Assim, podese dizer que esses jornalistas utilizaram muitas de suas notícias
de crimes publicadas nos jornais cariocas como instrumentos
de ação política8 e não somente como meios para entreter a
população com histórias sensacionalistas de fugas espetaculares
de bandidos ou de policiais que corriam atrás dos assaltantes,
criminosos e ladrões da cidade.
Ao partirmos de tal perspectiva de análise, este estudo
busca examinar como a imprensa carioca, através dessas
publicações, tratava a relação entre a expansão da criminalidade
no Rio de Janeiro do início do século XX e o relacionamento dos
criminosos e da polícia com os políticos, em meio às fraudes
eleitorais da época. Investiga também como os jornais articulavam
a discussão sobre tal relacionamento e a criminalidade com
as suas posições em relação às candidaturas presidenciais
de marechal Hermes da Fonseca e Rui Barbosa na campanha
eleitoral de 1909 e 1910. Para examinarmos estes dois objetivos,
selecionamos como corpus documental do estudo os jornais
“populares” Correio da Manhã , Jornal do Brasil e Gazeta de
Notícias9 por serem uns dos principais periódicos da cidade que
divulgavam com vigor as notícias de crimes, chegando por vezes
a ocupar a primeira página do jornal, com títulos muitas vezes
redigidos em letras grandes e em negrito para chamar atenção
de seus leitores. Assim, essas notícias serão as principais fontes
deste trabalho. Além delas, utilizaremos também os artigos
do advogado e redator-chefe do Correio da Manhã Gil Vidal jornalista de confiança do proprietário do Correio da Manhã , o
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advogado Edmundo Bittencourt10 - sobre os crimes na cidade
carioca publicados no referido impresso em 1909 e 1910.
Através da leitura dessas fontes, percebemos como os
jornalistas se preocupavam com o crescimento da criminalidade
na capital, uma vez que tal a expansão foi vista na época como um
entrave à construção de um Rio de Janeiro que se queria moderno,
europeizado, capaz de ser o cartão-postal da República.11 Porém,
os repórteres policiais não somente se preocupavam com tal
questão, mas também com a situação política pela qual passava
a cidade. Isso porque alegavam que a capital estava sendo
habitada por políticos corruptos que por interesses eleitorais, se
aliavam aos criminosos e a polícia para conseguir efetuar ações
fraudulentas nas eleições.
Diante de tal situação, os jornalistas, em muitas de suas
publicações, buscavam atacar com veemência a falta de punição
na sociedade no que tange às ocorrências de fraudes eleitorais
da época . Além disso, salientavam como essa impunidade fazia
aumentar o número de crimes no Rio. Segundo os repórteres
policiais, os políticos corruptos que se candidatavam às eleições
na capital sempre contratavam os serviços dos criminosos para
fraudar as eleições, pois estavam cientes de que não seriam
punidos , e os bandidos por sua vez, sabedores de que seriam
protegidos por tais políticos, cometiam os mais variados crimes
no Rio , inclusive nas ruas mais centrais da cidade, sem temer a
prisão.12
Um dos jornalistas do período que escreveu sobre tal
relacionamento dos políticos com os criminosos foi Gil Vidal.
Através de títulos sugestivos publicados no Correio da Manhã
como a “Impunidade triunfante”13, Vidal chamava atenção da
falta de punição no Brasil em relação aos políticos que fraudavam
as eleições e aos criminosos da cidade. Falava com tom de
indignação sobre os “malfeitores e desordeiros” que praticavam
na capital “toda a sorte de crimes”, porque eram “instrumentos
de chefes políticos” que lançavam “mão da intimidação e da
violência” para conquistar votos a todo custo.
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Criminosos, polícia e políticos em letras impressas: jornais cariocas, criminalidade na cidade do
Rio de Janeiro e fraudes eleitorais no início do século XX.
As relações entre políticos e criminosos e, a ocorrência
das fraudes eleitorais da época eram assim acompanhadas com
vigor pela imprensa, que se dizia indignada diante da dissolução
dos princípios democráticos no país. Segundo um repórter
policial da Gazeta de Notícias, tais princípios estavam sendo
“substituídos por hábitos e práticas que só se podiam se filiar ao
caudilhismo manejador do suborno, da prepotência de todas as
perigosas armas ilícitas”que viciavam a administração.14 Nestas
publicações, os repórteres buscavam intervir politicamente na
sociedade, já que ressaltavam a necessidade de se moralizar os
costumes políticos, eleitorais e administrativos vigentes.Vale notar
que esse discurso circulava pelos impressos há pelo menos uma
década antes do movimento tenentista da década de 1920 ter
reivindicado tal moralização na política brasileira.Em tal discurso,
muitos repórteres policiais propunham a reformulação da lei
eleitoral para que houvesse punição aos envolvidos nas fraudes
e violências eleitorais da época, como salientou um repórter da
Gazeta de Notícias em 1909.15 Com isso, alegavam que os políticos
teriam mais temor de se aliar e proteger a bandidagem em troca
de “favores eleitorais”. Em conseqüência disso, a criminalidade
no Rio- ressaltavam os repórteres- diminuiria drasticamente.
Além das severas críticas que faziam à falta de punição no
Brasil em relação às práticas eleitorais fraudulentas e aos “políticos
corruptos” que orquestravam tais fraudes, os jornalistas também
chamavam atenção da polícia, já que segundo eles, esta ajudava
os políticos a cometer tais atos contra a Nação. Isso porque
“inspirada em conveniências políticas”, a polícia “concedia as
mais escandalosas proteções a facínoras perigosos”, deixandoos livres para provocar desordens eleitorais e efetuar os mais
diversos crimes na cidade.16
Nestas publicações, os jornais enfatizavam o envolvimento
da polícia na política, e de como isso repercutia no aumento da
criminalidade no Rio. O Correio da Manhã e Jornal do Brasil,
por exemplo, como eram folhas de clara oposição ao governo,
destacavam que a polícia por estar “apadrinhada” ao governo e,
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Ana Vasconcelos Ottoni
os delegados por bajularem o presidente da República, protegiam
“os mais perigos assassinos e ladrões”17 da cidade, pois estes
seriam os aliados de políticos influentes. Em conseqüência disso
- alegavam os impressos-, os criminosos se sentiam à vontade
para cometer cada vez mais crimes na cidade, e de forma
cada vez mais audaciosa, roubando e assaltando a população
em plena luz do dia e nas ruas mais movimentadas do centro.
Segundo os repórteres desses jornais, tais fatos deviam-se, entre
outros motivos, a ausência da polícia de carreira na cidade, uma
vez que tal ausência provocava a interferência da politicagem
na organização policial, já que os cargos eram preenchidos por
elementos de confiança do governo.
Os jornalistas alegavam que certos chefes políticos
tiravam vantagens eleitorais do fato de não se ter na cidade uma
polícia de carreira, uma vez que ao prometerem cargos à polícia
ou ao intimidá-la através de ameaças de demissão de cargos,
lhe ordenavam que deixasse impunes os ladrões e bandidos da
cidade, já que estes ajudariam os referidos políticos a vencer
as eleições, através de quebras e roubos de urnas nas seções
em que esses chefes tinham minoria.18 Diante dessa situação
considerada lastimável, os jornalistas cobravam a moralização da
polícia, salientando que esta “não se deixasse levar pelas ameaças
dos politiqueiros, sem escrúpulos, que têm nos desordeiros, os
seus guarda-costas”.19 Muitos desses jornalistas acreditavam que
a adoção de uma polícia de carreira no Rio de Janeiro seria muito
importante para a cidade, já que a polícia estaria mais atuante
para combater à criminalidade, uma vez que não perderia mais o
seu tempo em bajular políticos em troca de benesses e cargos e,
nem estaria mais ameaçada pelos mesmos para fazer o que eles
mandavam.20 Assim, como podemos perceber, muitos jornalistas
policiais da época fizeram de suas reportagens de crimes
instrumentos de ação política .
Além disso, fizeram destas publicações, em certas ocasiões,
instrumentos de ação partidária. Um exemplo disso foram as
notícias de crimes publicadas na imprensa carioca durante a
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Criminosos, polícia e políticos em letras impressas: jornais cariocas, criminalidade na cidade do
Rio de Janeiro e fraudes eleitorais no início do século XX.
campanha eleitoral de 1909 e 1910. Nesta campanha, alguns
jornais fizeram questão de emitir opiniões e outros calar-se no
que tange à discussão acerca da criminalidade no Rio de Janeiro
e do relacionamento dos políticos com criminosos e a polícia da
época em consonância com os assuntos ligados à eleição. Tais
posturas tinham a ver com as diferentes posições dos impressos
em relação às candidaturas presidenciais de Hermes da Fonseca
e Rui Barbosa, como explicaremos mais adiante deste texto.
Antes de refletirmos sobre tal questão, é importante dizer que
a eleição presidencial de 1910 , conforme salientou José Murilo
de Carvalho21, foi uma das poucas competitivas da Primeira
República. Nela, Hermes da Fonseca foi apoiado pelo então
presidente da República, Nilo Peçanha. Na época, os dois grandes
estados Minas Gerais e São Paulo, tinham-se desentendido.
Segundo José Murilo de Carvalho, “o candidato da oposição,
Rui Barbosa, apoiado por São Paulo, levou a cabo a primeira
campanha eleitoral dirigida à população”.22 Foi neste contexto,
que os diferentes jornais cariocas se posicionaram de formas
distintas em relação à eleição, de acordo com os seus interesses
econômicos, -era comum na época a compra da opinião de parte
da imprensa pelos governos constituídos23 - ideológicos, políticos
e entre outros. Assim, devido a fatores de diversas ordens que
aqui não serão discutidos, o Jornal do Brasil optou por apoiar a
candidatura de Hermes da Fonseca, e a Gazeta de Notícias e o
Correio da Manhã, a candidatura de Rui Barbosa.24 No que diz
respeito ao Correio da Manhã, tal impresso como apoiava Rui
Barbosa, recorreu à temática criminal para atacar diretamente à
candidatura de Hermes da Fonseca e o governo de Nilo Peçanha.
Por sua vez, a Gazeta de Notícias apesar de ter apoiado Rui Barbosa
em tal campanha, elogiando sua postura democrata e liberal25,
não utilizou muitos casos de crimes na cidade em associação aos
assuntos relativos à disputa presidencial . Mas nas matérias que
veiculavam essa associação, o jornal articulava indiretamente
a questão da criminalidade no Rio de Janeiro com o governo e
Hermes da Fonseca. Nestas publicações, a Gazeta de Notícias
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atacava o então chefe de polícia, Leoni Ramos, como uma forma
indireta de atingir Nilo Peçanha - já que quem nomeava o chefe
de polícia da época era o presidente26 – e, por conseqüência
atacar a candidatura de Hermes da Fonseca. Sem mencionar os
nomes desses dois políticos, o jornal ressaltava que a polícia por
estar envolvida na campanha política da época negligenciava a
segurança pública, deixando a cidade entregue aos assaltos e
roubos, como salientou um repórter do impresso em 1910.27
Já que no que diz respeito ao Jornal do Brasil, este
impresso não mencionou em nenhum momento no seu
noticiário policial assuntos relativos à disputa presidencial de
1910, pois possivelmente sabia que se tocasse nessa temática
em associação à questão da criminalidade na cidade, prejudicaria
o candidato Hermes da Fonseca; candidato este que foi, como já
ressaltado anteriormente, apoiado pelo presidente. Isso porque
o jornal certamente sabia que ao longo do período republicano
a população estava insatisfeita em relação às ações policiais e
governamentais para combater os crimes no Rio de Janeiro devido
as freqüentes reclamações do povo acerca de tal questão.28
Assim, o silêncio dos repórteres policiais do Jornal do
Brasil sobre a questão da criminalidade na cidade em associação
aos assuntos relativos à eleição durante a campanha presidencial
de 1909 e 1910, pode ser lido como um instrumento de ação
político-partidária do impresso, ou seja, como uma forma desta
folha assumir politicamente seu apoio à candidatura de Hermes
da Fonseca. Mas sem dúvida em termos de grau de intensidade,
o Correio da Manhã foi o jornal que, em relação aos outros
impressos pesquisados, mais utilizou a temática da criminalidade
como instrumento de ação política e partidária durante tal
campanha, já que publicou várias notícias que estabeleciam
explicitamente a relação intrínseca entre a expansão dos crimes
na cidade carioca e o suposto relacionamento de Nilo Peçanha
e Hermes da Fonseca com os criminosos e a polícia do Rio de
Janeiro como uma forma de atingir diretamente a candidatura
militar.
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Criminosos, polícia e políticos em letras impressas: jornais cariocas, criminalidade na cidade do
Rio de Janeiro e fraudes eleitorais no início do século XX.
Contudo, devemos nos perguntar o motivo pelo qual o
Correio da Manhã utilizava, de forma bem mais intensa que a
Gazeta de Notícias, a temática criminal como instrumento político
e partidário para atacar a candidatura de Hermes da Fonseca, se
ambos apoiavam Rui Barbosa. Para explicarmos esta questão, é
importante dizer que ao contrário da Gazeta de Notícias que teve
sua história marcada por posicionamentos ambíguos em relação
ao governo, já que ora o criticava ora o enaltecia29, o Correio da
Manhã desde a sua fundação, em 1901, era um jornal de clara
oposição ao governo e um impresso que fazia uma sistemática
oposição aos grupos políticos dominantes30, dizendo-se defensor
da “inviolabilidade de todos os direitos concernentes à liberdade,
à segurança individual e à propriedade31, e que propugnava por
mudanças nas estruturas políticas do país, como bem ressaltou
Américo Freire.32 A nosso ver, tal passado histórico do Correio da
Manhã explica, em parte, a sua intensa participação política na
campanha eleitoral de 1909 e 1910 que, através de seu noticiário
criminal e artigos escritos por Gil Vidal sobre crimes no Rio de
Janeiro- e possivelmente de outros tipos de textos publicados
no jornal- , atacava com veemência os grupos políticos então
dominantes da época-no caso o governo de Nilo Peçanha -e
seus aliados- no caso Hermes da Fonseca, que era apoiado
pelo presidente. Assim, o Correio da Manhã por ter participado
de forma mais ativa -que os outros jornais pesquisados- da
campanha eleitoral de 1909 e 1910 em suas publicações sobre
crimes na cidade carioca, optamos por nos concentrar na análise
dos discursos do referido periódico.
Durante a campanha, os repórteres policiais do jornal
buscavam acentuar a idéia de crescimento da criminalidade na
cidade, através de títulos sensacionalistas como “Crime e mais
crime”33, alegando que tal expansão devia-se à negligência da
polícia “hermista” para combater os “desordeiros”, já esta só
estaria preocupada em proteger os criminosos da cidade- que
eram, segundo os repórteres, os aliados de marechal e Nilo
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Peçanha- para com isso receber benesses e cargos do governo,
caso Hermes da Fonseca ganhasse a eleição.
Como uma forma de atingir a candidatura militar, os
jornalistas do Correio da Manhã alegavam ainda que o marechaljuntamente com o presidente da República-buscaria vencer a
eleição de 1910 a todo custo por meio da contração de ladrões
e bandidos para fraudar a eleição. Segundo os repórteres, em
troca das ações violentas que seriam feitas por tais criminosos
para obrigar o povo a votar em Hermes da Fonseca, o marechal
e Nilo Peçanha lhes dariam proteção, o que incentivaria os
bandidos a cometer mais crimes no Rio de Janeiro. Nesta linha de
argumentação, um repórter do Correio da Manhã, por exemplo,
logo depois de veicular tal tipo de discurso, buscava em tom
quase que panfletário, convencer os leitores de não votarem no
candidato militar, embora em nenhum momento da reportagem
mencionasse quais eram os motivos pelos quais a população
deveria votar em Rui Barbosa. Sua estratégia era somente atacar
o candidato adversário, como indica o trecho abaixo:
O Brasil não quer o marechal Hermes da Fonseca para presidente
da República devido a sua impopularidade e do seu desprestígio.
O governo pretende impô-lo brutalmente pela violência, pela
fraude e pelo crime: é o governo quem conspira contra a Nação.34
Além de reportagens como essa, o Correio da Manhã
contou com a colaboração de Gil Vidal , que através de suas
matérias sobre o relacionamento da polícia com os políticos,
buscava igualmente atingir a candidatura de Hermes da Fonseca.35
Nelas, Vidal ressaltava que a polícia por estar tão somente
“empenhada na vitória na capital da república do candidato
militar”, não policiava devidamente a cidade, “entregue aos
assaltos e às desordens”.36 Apesar de intensa campanha política
promovida por Vidal e pelos repórteres policiais do Correio da
Manhã contra Hermes da Fonseca , Rui Barbosa saiu derrotado
da eleição de 1910.37
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Criminosos, polícia e políticos em letras impressas: jornais cariocas, criminalidade na cidade do
Rio de Janeiro e fraudes eleitorais no início do século XX.
Mesmo assim, isto não desanimou de maneira alguma
tais jornalistas de continuar fazendo severas críticas à Hermes da
Fonseca. Em suas matérias, voltavam a argumentar que, durante
a candidatura do referido militar, a polícia “hermista” “estava
toda entregue ao empenho de fazer vencedor o marechal”, como
afirmou Gil Vidal38, e por isso os ladrões campeavam livremente
pela cidade, sem nenhuma punição. Os repórteres policiais do
Correio da Manhã também voltavam a atacar com veemência
Nilo Peçanha, alegando que durante a campanha eleitoral de
1909 e 1910 os criminosos da cidade do Rio de Janeiro eram os
seus instrumentos políticos .
Essas notícias indicam como os repórteres policiais do
Correio da Manhã e Gil Vidal utilizavam a temática criminal
como instrumento da ação político-partidária na eleição de
1910, mesmo depois do término desta, através da relação
intrínseca que estabeleciam explicitamente entre a expansão da
criminalidade e o suposto relacionamento de Hermes da Fonseca
e Nilo Peçanha com os criminosos e a polícia da cidade. Ainda que
de uma forma bem menos intensa que o Correio da Manhã, os
jornalistas da Gazeta de Notícias também ressaltavam tal relação
como uma maneira de atingir a candidatura militar, embora ela
fosse tratada de forma indireta, sem menção aos nomes de
Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca. Já os jornalistas do Jornal
do Brasil nem sequer mencionavam esta relação, o que a nosso
ver, parecia ser uma forma de o impresso apoiar a candidatura
militar. Mas antes mesmo dessa disputa eleitoral, os repórteres
policiais do Correio da Manhã , Gazeta de Notícias e Jornal do
Brasil já utilizavam muitas de suas notícias como instrumentos
de ação política, embora não da mesma forma que durante a
campanha presidencial de 1909 e 1910, pois, como vimos, nesta
campanha tais impressos se dividiram no que tange à discussão
da criminalidade em associação aos assuntos relativos à eleição.
Porém, em outras eleições ocorridas nas décadas de 1900 e
de 1910, parece não ter havido tal divisão entre os jornais
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estudados, pois, em geral, seus jornalistas policiais convergiam
em estabelecer uma associação intrínseca entre a expansão
da criminalidade na cidade carioca e o relacionamento dos
criminosos e da polícia com os políticos, em meio às fraudes
eleitorais da época, buscando em muitas de suas publicações,
reivindicar a moralização da política e da polícia do Rio de Janeiro.
Isso tudo nos revela que esses personagens da história buscaram,
à sua maneira e por meio de muitas de suas reportagens, intervir
politicamente na sociedade, e não somente entreter a população
com histórias sensacionalistas de crimes na cidade carioca.
Notas e Referências
* Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade
Federal Fluminense (UFF).Orientadora: Profa. Dra. Martha Campos Abreu.
Contato: [email protected]
Gazeta de Notícias, 3/11/ 1909, 3; Jornal do Brasil, 6/07/1911,6 ; Correio da
Manhã, 7/10/1905, 2.
2
Ver: “ Assaltos e roubos: uma casa arrombada e roubada”, Gazeta de Notícias,
6/11/1906, 3; “Uma quadrilha de ladrões”, Gazeta de Notícias, 12/11/1907,
2.
3
Ver: “ Uma escalada: O Rio de Janeiro está sem polícia”, Correio da Manhã,
11/02/1913, 3.
4
“ O fim de uma fera”, Gazeta de Notícias, 7/11/1909, 1.
5
COUTINHO, Eduardo. Os cronistas de momo: imprensa e carnaval na Primeira
República. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2006.
6
VELLOSO, Mônica Pimenta. A cultura das ruas no Rio de Janeiro (1900-1930):
mediações, linguagens e espaços.Rio de Janeiro: Edições Casa de Rui Barbosa,
2004,p.22.
7
BARRETO, Lima. Os Bruzundangas,1917,p. 114 apud, CARVALHO, José Murilo
de. Os bestializados. O Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo: Cia.
das Letras, 1987,p.88.
8
Ressalta-se que nossa hipótese se inspira em um dos capítulos da tese
de doutorado de Carolina Dantas sobre intelectuais na Primeira República,
no qual a autora argumenta que tais setores da sociedade utilizaram seus
textos publicados nos jornais do Rio de Janeiro no início do século XX como
instrumentos de ação política e pública, já que defenderam, por exemplo,
ações objetivas negligenciadas pelo Estado e demandas não cumpridas pelos
sucessivos governos republicanos vigentes até então, como a implementação
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Criminosos, polícia e políticos em letras impressas: jornais cariocas, criminalidade na cidade do
Rio de Janeiro e fraudes eleitorais no início do século XX.
da educação primária em massa. DANTAS, Carolina. “Café com leite”: história,
folclore, mestiçagem e identidade nacional em periódicos (Rio de Janeiro,
1903-1914). Niterói: PPGH-UFF, 2007, Tese de Doutorado, p. 58-76.
9
Vale notar que não analisaremos aqui as características específicas de cada
um desses jornais, uma vez que visamos trabalhá-los de forma conjunta.
10
BORGES, Vera Lúcia Bogéa. “ A dramaticidade da eleição presidencial (19091910): traços da cultura política na Primeira República”. Anais do I Seminário
Nacional de Pós-graduandos em História das instituições: instituições, cultura
e poder. Rio de Janeiro: Numem, Cd-Rom, UNIRIO, p, 8. 2008.
11
MATTOS, Rômulo Costa. “ A aldeia do mal: o morro da favela e a construção
social das favelas durante a Primeira República”. Niterói: PPGH-UFF, 2004,
Dissertação de mestrado, p.34.
12
“ Assalto de ladrões”, Gazeta de Notícias, 25/10/ 1909, 2.
13
Correio da Manhã, 9/11/ 1909, 1.
14
“ As eleições municipais: cenas vergonhosas”, Gazeta de Notícias, 1/11/
1909, 1.
15
IDEM, Ibidem.
16
“ O fim de uma fera”, Gazeta de Notícias, 7/11/ 1909, 1.
17
“ Polícia criminosa”, Correio da Manhã, 10/05/1905, 1.
18
“ As eleições municipais: cenas vergonhosas”, Gazeta de Notícias,
1/11/1909,1.
19
“ O chefe de polícia determina a abertura de um rigoroso inquérito”, Correio
da Manhã, 6/11/ 1915,3.
20
Vale notar que os jornais cariocas por vezes faziam comparações entre a
polícia do Rio de Janeiro e a de São Paulo, tendendo a enaltecer a segunda,
já que em São Paulo havia sido introduzida a polícia de carreira no início do
século XX. Sobre os discursos da imprensa paulista sobre tal questão, ver:
BERNARDI, Célia de. O lendário Meneghetti: imprensa, memória e poder. São
Paulo: Annablume, 2000, p.28-29.
21
CARVALHO, José Murilo de. “ Os três povos da República”. In: República
no Catete.(org) Carvalho, Maria Alice Resende. Rio de Janeiro: Museu da
República, 2001, p. 74.
22
IDEM, Ibidem,p.74-75.
23
BORGES, Vera Lúcia Bogéa. “ A dramaticidade da eleição presidencial (19091910)”. Op.cit,p. 9
24
Sobre as razões do apoio de jornalistas e diferentes jornais cariocas à
candidatura de Hermes de Fonseca ou à de Rui Barbosa, ver: BORGES, Vera
Lúcia Bógea. “ A dramaticidade da eleição presidencial (1909-1910). Op.cit, p.
7-8; LOPES, Antonio Herculano. “ Do monarquismo ao “populismo”. O Jornal
do Brasil na virada para o século XX”. In: História e imprensa: representações
culturais e práticas de poder. (orgs) BASTOS, Lúcia; MORES, Marco, FERREIRA,
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Tânia Maria. Rio de Janeiro: Faperj, 2006, p.343-344.
25
Ver: “ Sr. Rui Barbosa: chegada de São Paulo”, Gazeta de Notícias, 25/12/1909,
2.
26
Segundo Marcos Bretas, o chefe de polícia, além de nomeado pelo presidente,
era escolhido entre os advogados com mais de dez anos de prática ou com
notório saber no campo policial.BRETAS, Marcos Luiz. Ordem na cidade: o
exercício cotidiano da autoridade policial no Rio de Janeiro: 1907-1930. Rio
de Janeiro: Rocco, 1998,p. 50.
27
“ Os ladrões campeiam: assaltos e roubos”, Gazeta de Notícias, 8/01/
1910,2.
28
Estas reclamações eram publicadas com freqüência pelo Jornal do Brasil
na coluna “Queixas do povo”. Contudo, vale notar que durante a campanha
eleitoral de 1909 e 1910 o jornal publicou poucas queixas em relação às ações
governamentais e policiais no combate ao crime. Sobre a coluna “Queixas do
povo”, ver : SILVA, Eduardo. As queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1988.
29
Um exemplo de enaltecimento do governo pelo jornal foi a reportagem de
1903, na qual um repórter policial ressaltou que o poder público velava pela
felicidade e tranqüilidade do povo, pois pagava bem a polícia “não poupando
dinheiro para que a gente urbana” não tivesse a “vida em perigo” e para que
“os galinheiros dos subúrbios” não fossem roubados. “ A cidade”, Gazeta de
Notícias, 27/11/1903, 2. No que se refere às críticas da Gazeta de Notícias
ao governo, ver por exemplo a reportagem publicada em 1920 , na qual um
repórter ressaltou que o governo era o grande culpado pelo aumento do
número de crianças que entravam para o mundo do crime, uma vez que não
se preocupava com o problema da assistência à infância no Brasil. “ O Rio,
jardim da infância delinqüente!”, Gazeta de Notícias,12/07/1920, 3.
30
FREIRE, Américo. “ Fazendo a República: a agenda radical de Irineu Machado”.
Revista Tempo, Rio de Janeiro, vol.13, n.26,p.121, 2009.
31
“ Dez anos”, Correio da manhã, 15/06/1911, 1. Matéria assinada por Gil
Vidal, com o pseudônimo de Leão Veloso Filho.
32
FREIRE, Américo. “ Fazendo a República”. Op.cit, p.121.
33
Correio da Manhã, 27/01/1910,2.
34
“Polícia criminosa”, Correio da Manhã, 28/02/1910,1.
35
Vale notar que, segundo Vera Lúcia Borges, Gil Vidal em sua primeira matéria
acerca da disputa presidencial de 1910 apoiou a candidatura do marechal
Hermes e cobrou do candidato militar elementos que confirmassem o caráter
renovador do lançamento do seu nome. Porém, segundo a autora, ele obteve
como resposta apenas o silêncio. Assim, Gil Vidal “interpretou esta conduta
como sinal de obediência à senha do silêncio que possivelmente Hermes da
Fonseca recebera dos principais políticos.” Borges assinala então que esta
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Criminosos, polícia e políticos em letras impressas: jornais cariocas, criminalidade na cidade do
Rio de Janeiro e fraudes eleitorais no início do século XX.
lhe pareceu ser o primeiro sinal para Gil Vidal apoiar a candidatura de Rui
Barbosa. BORGES, Vera Lúcia Bogéa. “ A dramaticidade da eleição presidencial
(1909-1910). Op.cit,p.8.
36
“ A polícia e a politicagem”, Correio da Manhã, 8/11/1909, 1.
37
Sobre a análise dos fatores da derrota eleitoral de Rui Barbosa em 1910, ver:
CARVALHO, Maria Alice Rezende de. “ A crise e a refundação republicana, em
1930”. In: República no Catete. (org) CARVALHO, Maria Alice Rezende de. Rio
de Janeiro: Museu da República, 2001,p.100-101.
38
“ Polícia da cafraria”, Correio da Manhã, 4 /05/1910, 1.
39
“ Uma série de crimes: uma quadrilha de facínoras”, Correio da Manhã,
4/02/1911, 3.
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A Restauração na Bahia: um estudo sobre as relações
entre os poderes do centro e o poder local
(1644-1645)
Érica Lôpo de Araújo*
Os estudos sobre o relacionamento entre Portugal e
Brasil durante o período colonial tem ocupado lugar de destaque
no debate historiográfico contemporâneo. Novas pesquisas vem
alargando o universo de discussão que, para além de tratar de
questões chaves como o sentido da colonização e a existência
ou não de uma acumulação interna do capital1, propõe análises
que enfocam, entre outros assuntos, numa história políticoadministrativa. Embora uma obra como Burocracia e sociedade
de Stuart Schwartz, que data de 1979, já apontasse para a
importância de uma história administrativa e institucional ao
tratar do Tribunal da Relação, muitas lacunas ainda mostram-se
presentes nessa área de estudo da história.2
Discutir as relações entre centro e periferia: pacto e
negociação política na administração do Brasil colonial é um
dos objetivos de Maria Fernanda Bicalho, que, tentando fugir da
tradicional dualidade colônia-metrópole, discorda da idéia de
ser a colônia um espaço sem lei, no qual a distância inviabilizaria
a administração.3 Bicalho defende a idéia de que se desenvolveu
uma relação contractualista entre súditos e soberano, pautada
por constante negociação. Essa nova proposta traz ainda novos
conceitos que, ultrapassando o campo da história político
econômica encontram lugar num estudo que é também jurídico e
tem como um dos seus maiores expoentes o trabalho de Antônio
Manuel Hespanha.4 De acordo com essa nova historiografia, para
que as relações colônia-metrópole pudessem se concretizar foi
necessário o estabelecimento de um pacto que envolvesse a
concessão régia de honras e privilégios. Mais uma vez, seguindo
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os fundamentos teóricos de Antônio Manuel Hespanha, seria
chamada sociedade beneficial àquela que tivesse como cimento
do império o que ele chamou de “economia da graça” ou
“economia da mercê.”5
A parceria travada entre historiadores portugueses e
brasileiros tem-se mostrado bastante renovadora, lançando um
novo olhar sobre o império ultramarino luso. Tais estudos, ao
partirem de uma estrutura polissinodal portuguesa, conseguem
ponderar de forma mais equilibrada a possibilidade de
“autoridades negociadas” não apenas no reino, mas também
no seu universo colonial.6 É dentro dessa perspectiva de revisão
dos limites do “pacto colonial” que se insere o presente trabalho
ao propor um estudo sobre a capitania da Bahia no período
imediatamente posterior à restauração Portuguesa de 1640.
Embora os anos compreendidos entre 1581-1640 tenham
constituído um momento singular da história do Brasil, pouca
atenção foi dedicada pela historiografia aos impactos da União
Ibérica no ultramar. A “Era dos Filipes” produziu significativas
transformações, sobretudo na Bahia – então capital do Brasil, que
foram acompanhadas por uma extensão burocrática que tinha
como objeta ampliação de poder sobre os novos territórios.
O adensar da rede de oficiais régios no Brasil, a reorganização
das capitanias, a criação de novas circunscrições administrativas,
e, ainda a fundação de um tribunal na cidade da Bahia,
são fenômenos que remetem, todos eles, para um dado
fundamental: as mutações ocorridas no Brasil, durante a
União Ibérica, possuem uma incontornável dimensão política.7
De acordo com Rafael Valladares, durante o segundo
decênio dos seiscentos, a própria história hispânica também
teria sido objeto de poucos estudos. Isso se daria à consciência
de ser esse um período de perdas e fracassos, idéia ratificada,
sobretudo, no século XVIII, com o objetivo de legitimar a dinastia
dos Bourbons através da difamação daquela que a antecedeu.
O fenômeno da Restauração Portuguesa de 1640, apontado por
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A Restauração na Bahia: um estudo sobre as relações entre os poderes do centro
e o poder local (1644-1645).
Valladares como resultado de uma arrogante anexação espanhola
que, em certo momento, chegara a reduzir o conselho Português
a duas juntas governativas, ainda carece de estudos que melhor
expliquem um acontecimento de tão grande singularidade no
século XVII. Afinal: “Ódios e malquerenças, queixas e reparos
não conduziam à ruptura política com o soberano...” Pois “a
fidelidade e lealdade ao rei não eram discutíveis.”8
Mas se os impactos da intrigante Restauração de 1640 se
mostravam bastante confusos no reino, o seu reflexo na colônia
não seria muito diverso. Passaram-se três meses até que chegasse
aos súditos da capitania da Bahia a notícia da aclamação de D.
João IV (1640-1656). A Restauração, ocorrida em dezembro de
1640, foi motivo de muitas incertezas para o novo monarca que
receava possíveis manifestações contrárias à sua Coroa. Temeu,
em grande medida, a reação do então governador-geral do Brasil,
D. Jorge de Mascarenhas – o marquês de Montalvão, primeiro
vice-rei do Brasil, nomeado, naquele ano de 1640, pela Coroa de
Castela.
D. João IV, para além das expectativas, contou com
a adesão dos governadores e capitães-gerais do Brasil e foi
aclamado, inclusive, pelo referido governador-geral. Isto não
impediu que Montalvão fosse vítima de um golpe, que o depôs e
colocou no governo um triunvirato composto pelo Bispo do Brasil,
D. Pedro da Silva, pelo Mestre de Campo Luiz Barbalho Bezerra,
e pelo provedor-mor Lourenço de Brito Correa. Ao que parece,
o rei D. João IV mandara duas cartas com diferentes disposições:
a primeira, de fevereiro de 1641 – e que acompanhava as
boas novas da Restauração, determinava que caso Montalvão
aderisse à Coroa Bragantina, deveria continuar a exercer o
cargo; a segunda, de março do mesmo ano, afirmava que, não
aquiescente, deveria ser deposto e substituído pelo já referido
triunvirato.9
Essa curta apresentação exemplifica algumas das
dificuldades a serem transpostas pelo novo monarca, que, para
além da necessidade de reconhecimento da Coroa, contava ainda
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com o problema da distância do reino dos domínios de ultramar
e a necessidade de nomear ministros que agissem de acordo
com suas determinações, conciliando esta ação à vontade dos
vassalos. Não apenas durante o reinado de Dom João IV, mas
ainda no tempo de D. Afonso VI, a ação da Coroa Bragantina
deveria ser empreendida de forma mais negociada e discutida,
recordando que o apoio dos vassalos era imprescindível no
povoamento, defesa e pagamento de impostos na colônia. Os
anos que se seguiram à Restauração poderiam ser caracterizados
como um universo de conciliações e promoções, concessões e
mercês.10
Para melhor compreender de que forma se davam as
negociações entre os agentes do poder na Bahia, bem como
ilustrar um pouco da liberalidade por eles alcançada, será útil
narrar um conflito ocorrido entre os anos de 1644-1645. Trata-se
de uma querela que envolveu Manuel Pereira Franco, ouvidorgeral (?-1648), alguns membros do poder eclesiástico e Antônio
Telles da Silva, que foi governador-geral entre 1642 e 1647.
Manuel Pereira Franco foi funcionário do reino de Portugal
durante grande parte de sua vida. Natural de Elvas trabalhou
nessa comarca como procurador e definidor de contas antes de
ser nomeado ouvidor-geral do Estado do Brasil. Em carta sua,
de agosto de 1644, dirigida a el rei, Franco afirmou já servir a
Sua Majestade por longos 31 anos.11 Sendo ele funcionário tão
antigo, é possível que tenha sentido o peso das anteriormente
referidas reformas implementadas na “Era dos Filipes”. Não se
sabe quando Franco iniciou suas atividades como ouvidor, mas
teria concluído seu mandato em 1648, sem, contudo, deixar a
Bahia antes de 1653. Este caso, que provocou a suspensão e
prisão do ouvidor, será analisado a seguir e, em certa medida,
pode servir como exemplo dos conflitos usuais entre os
diferentes agentes do poder no império português. O primeiro
sinal de conflito foi identificado a partir de uma carta régia de
julho de 1645, quando o rei fez um breve histórico do caso, a fim
de explicar algumas deliberações por ele empreendidas antes do
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A Restauração na Bahia: um estudo sobre as relações entre os poderes do centro
e o poder local (1644-1645).
parecer final. Nesse parecer, D. João IV fez referência a uma carta
enviada pelo governador em 16 de junho de 1644, que falava
sobre os procedimentos “inadequados” de Manuel Pereira
Franco. Não foi possível localizar tal carta; e é somente a partir
do mês de agosto do referido ano, quando a confusão já parece
consolidada, que se encontra documentação mais esclarecedora
sobre o caso.
Através da leitura de uma consulta do Conselho
Ultramarino que data de 25 de outubro de 1644, é possível
inferir o relato do governador Antônio Telles em carta de agosto
do mesmo ano. De acordo com Antônio Telles da Silva, tivera
lugar o seguinte episódio: o conservador dos padres (Nicolau
Viegas) fez auto do cônego Phillippe Baptista que o tratou mal,
sob sua jurisdição, e prenunciou prendê-lo. Para poder realizar
tal feito, entretanto, pediu auxílio de braço secular ao ouvidor
(Manuel Pereira Franco), que a isto se recusou, por ser Viegas
juiz apostólico, justificando que a sua ordenação não dava lugar
a esse tipo de auxílio. Uma vez não atendida sua solicitação, o
conservador dos padres decidiu excomungar o ouvidor, embora
esta excomunhão tenha sido imediatamente anulada pelo bispo.
Ao longo de toda a carta, Silva mostrou-se muito insatisfeito com
a postura de Franco e apresentou ainda outro caso no qual o
ouvidor mais uma vez não teria procedido como convinha na
defesa da jurisdição de Vossa Majestade.12
Tratava-se do caso de Phillippe de Moura, que matou a
própria mulher, detentora de grande dote e herdeira de fortuna
invejável. De acordo com o governador, convinha ao ouvidor tirar
devassa e dar vista ao procurador da fazenda de Vossa Majestade,
uma vez que a herança da falecida pertencia a esta mesma
fazenda. No entanto, o ouvidor sentenciou o caso sem dar a vista
e mesmo sendo advertido mais de uma vez que deveria fazêlo, não o fez e ainda publicou a sentença. Em razão desses dois
episódios de “mau cumprimento de suas funções”, o governador
decidiu punir o ouvidor, afirmando estar embasado no capítulo
44 de seu regimento que, segundo ele, dizia que no caso de
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algum de seus ministros de justiça faltar com sua obrigação, este
mereceria suspensão de seu ofício e ordenado por alguns dias.
Penalidade esta que não parecera suficiente ao governador, que
alegou a reincidência como justificativa para manter o ouvidor
preso em sua própria casa.13
A fim de comprovar as suas queixas e justificar sua ação,
o governador enviou em anexo uma certidão de Antônio da
Silva de Souza (procurador da fazenda) e outra de João Borges
(escrivão da ouvidoria geral) que comprovavam sua versão sobre
o caso. A carta do escrivão trouxe, como elemento novo, uma
resposta de Franco, quando este foi questionado pelo escrivão
sobre dar vista no caso do assassinato. Franco teria respondido
que só ele era juiz de si próprio, e que Phillippe de Moura não era
soldado, nem recebia soldo de Vossa Majestade. Disse também
que na sentença e autos não tratava da fazenda da defunta e sim
da causa crime e que ele, ouvidor, já havia reiteradamente se
justificado sobre tal feito.14
Uma rápida análise do caso evidencia que o governador
foi no mínimo precipitado ao punir o ouvidor. Se ainda havia
dúvida (na primeira acusação) sobre ser esse um caso eclesiástico
ou secular, era preciso uma investigação prévia para determinar
a melhor forma de punição. Alguns indícios podem comprovar
também que o governador agiu de maneira arbitrária ao mandar
prender o ouvidor. A justificativa que apresentou para proceder
contra o ouvidor pode ser facilmente refutada através da leitura
do capítulo 44 de seu regimento que, apesar de prever suspensão
do cargo e ordenados em caso de reincidência de má conduta,
afirma que esses casos deveriam ser enviados para o reino
para que o monarca pudesse julgá-los. O regimento tampouco
prevê a prisão de qualquer ministro de justiça como pode ser
comprovado a partir da leitura desse documento.
E acontecendo que os letrados julgadores e pessoas que tem obrigação
de administrar justiça ou alguns delles tenhão algum descuido porque
mereção suspenção de seus cargos per alguns dias, e que nelles
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e o poder local (1644-1645).
não venção seus ordenados os admoestareis e não se emendando
os suspendereis e tirareis os ordenados e sendo comprehendidos
em alguns delitos graves procedereis contra elles até por os autos
em final e assy conclusos sem se dar nelles sentença mos enviareis
para eu os mandar sentença neste reino e em tudo o mais que
tocar aos letrados e julgadores guardareis e fareis cumprir o que
pello regimento de seus cargos são obrigados e vo los hey por muy
encomendalos para os favorecerdes como he devido a ministros de
justiça e sendo necessario aconselhardesvos ou saberdes algua couza
dos ministros da relação ou de minha fazenda de qualquer qualidade
que sejão os podereis mandar chamar a vossa caza em todo tempo e
horas sem lhes admitir escuza para tratar com elles o que convier.15
Ao fim da exposição da carta de Antônio Telles da Silva,
o Conselho Ultramarino dá o seu parecer sobre o caso. Esse
conselho mostra-se claramente a favor do ouvidor Manuel
Pereira Franco, apresentando a seguinte justificativa:
...se conclue que o dito ouvidor não excedeo, nem dezobedeceo
ao governador, porque julgou conforme ao que lhe pareceo
justiça, e na obrigação de a fazer, e não poder nenhû superior dos
inferiores sogeitalo, nem o Regimento que o governador toma
por seu fundamento, tem nestes cazos lugar, e asy Vossa Magde.
deve mandar soltar ao dito ouvidor geral e que se lhe paguem seus
ordenados na comformidade da consulta que se fes a Vossa Magde.16
O caso pode ser melhor compreendido a partir da leitura
de uma carta enviada por Manuel Pereira Franco ao rei D. João
IV, em 26 de agosto de 1644: podemos comparar sua versão com
a do governador. Franco inicia a carta dizendo que o rei já deveria
estar a par do absurdo de ter sido ele suspenso e preso pelo
governador (coisa que nunca se viu e que só Antônio Telles da
Silva poderia fazer). Na seqüência, esclarece, de maneira breve,
que se recusou a dar auxílio de braço secular ao conservador dos
padres por ser ele juiz apostólico, o que ia contra a ordenação
do livro 2, título 8 de Gabriel Pereira de Castro (Tractatus de
Manu Regia). Essa recusa teria contrariado o governador “que
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tem o conservador dos padres como sua menina dos olhos”17
e para mostrar sua “potência”, Silva havia decidido puni-lo
arbitrariamente com suspensão do cargo, dos ordenados, ainda
fazendo-o prisioneiro. De acordo com Franco, Silva não lhe
poderia ter aplicado tais penalidades, uma vez que no ponto 9
de seu regimento como ouvidor está claro que o governador não
pode tirá-lo do ofício nem suspendê-lo, mesmo em caso grave,
antes de se dar libelo. Também a ordenação se encontraria em
seu favor, pois no seu livro 9, título 119, afirma-se que não se
pode prender a ninguém sem que aja contra ele culpas formadas
de devassa ou querelas. Segue dizendo que o governador rompeu
com todas essas leis e não estando satisfeito com a suspensão e
prisão do ouvidor escolhido por Sua Majestade, escolheu outro
e colocou em seu lugar, realizando, portanto, uma nomeação
que não era de sua alçada. Ao concluir, o ouvidor fala da sua
trajetória como fiel servidor do rei e pede que seja solto, retorne
ao seu ofício, tenha os seus ordenados restituídos e que seja
considerada nula a eleição do novo ouvidor.18
Mas essa história não teria um fim tão breve. Mesmo
após a carta do ouvidor e do parecer do Conselho Ultramarino
favorável a este, Franco ainda teria um longo caminho de luta pela
liberdade, ainda que não estivesse sozinho nessa empreitada. Em
2 de setembro de 1644, os oficiais da Câmara da Bahia enviaram
uma carta a D. João IV que, entre outros assuntos, recriminava
a conduta do governador para com o ouvidor. Essa carta iniciava
com o relato destes oficiais sobre a ação despótica do governador
que não permitia que se enviassem cartas para Sua Majestade.
Ilustraram suas queixas narrando o episódio em que alguns
oficiais da câmara, aliados ao ouvidor no descontentamento
frente ao governo de Silva, ensaiaram enviar uma carta queixosa
endereçada ao rei. A missiva, entretanto, foi extraviada pelo
governador, que a teria aberto e lido, ameaçando de prisão e
castigos esses oficiais. Inconformados e sem alternativas para
resolver o problema, os oficiais pediram que o ouvidor fosse solto
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e o poder local (1644-1645).
para que pudesse ministrar justiça. Alertavam o rei para a ação
indevida do governador; alerta que poderia ser resumido com a
seguinte questão: o que poderiam fazer os pobres membros da
câmara e os simples vassalos de Vossa Majestade se até mesmo
o ouvidor havia sido preso?19
Em 22 de dezembro de 1644, o Conselho Ultramarino
fez uma consulta em resposta a duas cartas: aquela da câmara
anteriormente citada, e outra do ouvidor geral Manuel Pereira
Franco, de 27 de setembro passado. Embora não tenha
conseguido localizar esta última, o seu conteúdo encontra-se
bastante evidente a partir da leitura dessa consulta. Ratificando
o conteúdo da carta anterior, Franco resume dizendo que foi
suspenso e preso simplesmente por administrar justiça e diz
que o governador agiu contra o regimento e ordenação de Sua
Majestade ao puni-lo. O conselho responde que já existem duas
consultas sobre o caso, uma de 25 de outubro e outra de 23 de
novembro do ano de 1644, ambas em defesa do ouvidor. Por isso,
pede que se defira o caso com a maior brevidade, uma vez que
não parece correto a esse Conselho que o ouvidor em questão
padeça por fazer o que manda o serviço do rei. E quanto às cartas
da câmara, o Conselho Ultramarino também se mostrou contra a
postura do governador, pois não considerou adequado que este
desejasse atalhar as queixas dos vassalos do rei.20
Uma vez que o monarca ainda não se havia pronunciado
sobre o caso, em primeiro de abril de 1645, pareceu ao Conselho
Ultramarino fazer nova consulta, pressionando uma decisão real.
Nesta consulta, o Conselho fez não apenas um breve resumo do
caso, mas também um pedido que favorecia o ouvidor Manuel
Pereira Franco. Pediam ao rei que mandasse estranhar21 o dito
excesso do governador, soltando o suplicante e permitindo que
ele exercesse o seu cargo, sendo restituídos também todos os
ordenados do tempo em que este fora suspenso. Informava
também da necessidade de lhe satisfazer as perdas e danos que
tal encarceramento havia resultado – pediam rapidez, pois em
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função do longo período de reclusão (que já contava oito meses),
fora o ouvidor, para garantir o próprio sustento, obrigado a vender
móveis que trouxe do reino. Ratificou mais uma vez este Conselho
que consultas anteriores já haviam informado que a prisão era
“mal feita”, contra a justiça e ordens de Sua Majestade. Afirmava
ainda que, por ser o ouvidor um homem velho, nobre e muito
antigo no serviço de Sua Majestade, não merecia semelhante
tratamento. Relembrou sobre a carta enviada pelos oficiais da
câmara em sua defesa (que provocou a prisão do vereador mais
velho Francisco Roiz de Araújo e do juiz Luis Pereira de Aguiar) e
informou sobre uma carta, enviada pelo bispo daquele estado,
que falava sobre seus bons procedimentos e que essas eram mais
razões para que ele fosse solto imediatamente. A Consulta referiuse mais uma vez à má conduta do governador (de abrir a cartaprotesto dos oficiais da câmara), justificando que para o bom e
justo governo dos estados do ultramar, é necessário ao monarca
total conhecimento das informações enviadas por seus ministros
e vassalos, sejam as notícias boas ou más. A consulta termina por
recomendar que se seguisse a conduta adotada alguns anos antes
num caso ocorrido na Índia quando o rei mandou repreender o
vice-rei (Conde Almirante) que havia mandado que seus vassalos
não escrevessem contra os ministros.22
Foi apenas no dia 25 de julho de 1645 que o rei Dom
João IV se pronunciou sobre o caso, enviando uma carta ao
governador Antônio Telles da Silva. Nesta carta, o rei repreendeu
Silva, dizendo que por este ocupar o lugar de governador geral
do Brasil, tinha a obrigação de evitar discórdias entre o poder
eclesiástico e o poder secular, em virtude de constituírem um
mau exemplo para o gentio e os hereges vizinhos. Pediu a Silva
que notificasse o conservador dos Padres (Nicolau Viegas)
em seu nome, e comunicou que este deveria ser julgado pelo
Bispo, na forma que o Concílio Tridentino tem para administrar
justiça. Da mesma forma se deveria proceder com os demais
eclesiásticos, que teriam obrigação de tratar de seus direitos pela
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e o poder local (1644-1645).
via ordinária, requerendo as demarcações e sesmarias. Aquele
que não obedecesse deveria ser enviado ao reino. Concluiu
mandando soltar o ouvidor e demais presos assim que a carta
fosse recebida, e ordenou que tudo voltasse ao que era antes até
que ele tomasse uma resolução final.23
A análise desse conflito pode trazer à tona muitas questões
que permeavam o universo colonial, sobretudo, indagações
sobre os limites do ofício do governador-geral (usos e abusos
de poder) e seu relacionamento, por vezes conflituoso, com o
poder eclesiástico.24 O “cargo” de governador-geral foi definido
por Francisco Cosentino como um ofício régio superior. Segundo
o autor, “a natureza superior de seu ofício deve-se ao fato de esse
servidor exercer, em nome do rei, e por sua delegação, alguns
dos poderes próprios do ofício régio.” Mas a natureza superior
desse ofício encontrava-se limitada por seu caráter temporário
e pelo fato de que suas decisões encontravam-se submetidas,
em última instância, à decisão do monarca; o que terminava por
conceder função de qualidade inferior a esse ofício. Cosentino
nos recorda que outras concepções encontram-se agregadas
a esse ofício, tais como a idéia do cargo público como uma
função. Esse ofício estaria, portanto, atrelado a um “conjunto de
direitos e deveres exercitáveis no interesse público”- caberia ao
governador agir sempre em nome da causa pública. Dessa forma,
“a nomeação para esses ofícios era uma mercê concedida pelo
soberano, por isso mesmo, honrava e nobilitava aqueles que
foram tocados pela sua graça. Em decorrência dessa nobilitação,
o recebimento de um ofício de governo envolvia a concessão de
vantagens de natureza patrimonial.”25
Se recordarmos que a justiça era um dos pilares das
obrigações régias, juntamente com a religião e a garantia de paz,
esta deve ser entendida como “princípio de dar a cada hum o
que é seu”, seja esse “seu” prêmio ou castigo.26 Dessa forma,
o desempenho de um serviço era quase sempre acompanhado
de expectativas de premiação, ainda que nem sempre fossem
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“justas” as recompensas. “Servir a coroa, com objetivo de
pedir em troca recompensas, tornara-se quase um modo de
vida, para diferentes sectores do espaço social português. Era
uma estratégia de sobrevivência material, mas também de
promoção.”27 Conhecendo o pressuposto do dever régio para
com a justiça, podemos imaginar que, por vezes, o rei utilizasse
como justificativa a distância do reino e o aparelho burocrático
para não empreender medidas de promoção, ou rigor para com
seus vassalos de ultramar, tentando manter-se sempre aliado de
todos, e deixando seus vassalos cheios de expectativas de mercês
por receber. Da mesma forma, o governador, conhecedor da
“justiça” régia, por vezes poderia usurpar o poder alheio ao crer
que um feito maior seu não apenas apagaria tal mancha, mas lhe
recompensaria com justa mercê. Não pretendemos aqui explicar
ou justificar a atitude de Antônio Telles da Silva no referido caso,
afinal são conhecidos muitos outros casos que condenam a sua
conduta. No entanto, vale ao menos tentar compreender a sua
“falta de temor.”
Notas e Referências
* Mestranda em História pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
orientada pela professora Doutora Maria Fernanda Bicalho. Contato:
[email protected]
Sobre as idéias de sentido da colonização e acumulação interna do capital
ver: PRADO JÚNIOR, Caio. “O Sentido da Colonização” In: Formação do Brasil
Contemporâneo. 15 ed., São Paulo: Brasiliense, 1977. NOVAIS, Fernando.
“A crise do Antigo Sistema Colonial” In: Portugal e Brasil na crise do Antigo
Sistema Colonial (1777-1808). São Paulo: Hucitec, 1979. CARDOSO, Ciro F.
“As concepções acerca do ‘sistema econômico mundial e do antigo sistema
colonial’: a preocupação obsessiva com a ‘extração do excedente’. In: LAPA:
José Roberto do Amaral. Modos de Produção e realidade brasileira. Petrópoles:
Vozes, 1980.
2
SCHWARTZ, Stuart B. Burocracia e Sociedade no Brasil Colonial: A suprema
corte da Bahia e seus juízes (1609-1751). São Paulo: Perspectiva, 1979.
3
BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Centro e periferia: pacto e negociação
política na administração do Brasil Colonial” In Leituras: Revista de Biblioteca
1
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A Restauração na Bahia: um estudo sobre as relações entre os poderes do centro
e o poder local (1644-1645).
nacional, nº 6, Primavera, 2000, pp. 17-39.
4
Para melhor conhecer a obra desse autor, ver: http://www.hespanha.net/.
5
HESPANHA, Ver Antônio Manuel. Porque foi “portuguesa” a expansão
portuguesa? Ou O revisionismo nos trópicos. Disponível em http://www.
hespanha.net/, Acessado em 20/09/2008 p. 12.
6
Sobre esse estudo ver: BICALHO, Maria Fernanda Baptista. “Centro e
periferia: pacto e negociação política na administração do Brasil Colonial”
In Leituras: Revista de Biblioteca nacional, nº 6, Primavera, 2000, pp. 17-39.
Centro e periferia no sistema político português do Antigo Regime. Disponível
em: http://www.hespanha.net/
7
MARQUES, Guida. O Estado do Brasil na União Ibérica: Dinâmicas políticas
no Brasil mo tempo de Filipe II de Portugal. In: Revista Penélope, n 27, 2002,
pp.7-35.
8
VALLADARES, Rafael. A independência de Portugal: guerra e restauração. São
Paulo: Hucitec, 1997.
9
O triunvirato teve fim com a chegada de Antônio Telles da Silva (primeiro
governador escolhido por D. João IV), em agosto de 1642. O novo governador
geral trazia correspondências com as punições para os componentes do
triunvirato com exceção do bispo. O provedor foi conduzido ao cárcere em
Lisboa, enquanto o mestre de campo foi condenado ao exílio no sul daquela
capitania. Mais tarde, o Marques de Montalvão que se encontrava em cativeiro
na cidade de Salvador, foi nomeado conselheiro do recém fundado e ilustre
Conselho Ultramarino. Ver: RUY, Affonso. História política e administrativa da
cidade do Salvador. Salvador: Beneditina, 1949, pp. 170-201.
10
Sobre esse sistema de concessão de mercês ver: FRAGOSO, João,
BICALHO, Maria Fernanda, GOUVÊA, Maria de Fátima. O antigo Regime nos
Trópicos: A dinâmica Imperial Portuguesa (Séculos XVI-XVIII). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2001. Ver também: CUNHA, Mafalda Soares. “Governo
e governantes do Império português do Atlântico (século XVII). In: Modos de
governar: Idéias e práticas políticas no Império Português séculos XVI a XIX. 1ª
ed., São Paulo: Alameda Editorial, 2005.
11
AHU. Luisa da Fonseca. Cx.9/Doc. 1096.
12
AHU. Luisa da Fonseca. Cx.9/Doc.1079.
13
AHU, Luisa da Fonseca. Cx.9/Doc.1095.
14
AHU, Luisa da Fonseca. Cx.9/Doc.1095.
15
AHU, Bahia Avulsos. Documento 40. Regimento do Governador Geral do
Brasil Antônio Telles da Silva- Junho1642.
16
AHU, Luisa da Fonseca. Cx.9/Doc.1079.
17
AHU, Luisa da Fonseca. Cx.9/Doc.1095.
18
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AHU Luisa da Fonseca. Cx. 9/Doc. 1094
AHU Luisa da Fonseca. Doc 1093.
21
Suspender a sentença.
22
AHU, Luisa da Fonseca, Documento 1128.
23
AHU, Luisa da Fonseca, Documento 1129.
24
Sobre querelas entre religiosos e seculares na Bahia setecentista ver:
BEHRENS, Ricardo Henrique B. A capital colonial e a presença holandesa de
1624-1625. Dissertação de Mestrado. UFBA, 2004.
25
COSENTINO, Francisco Castro Cardoso. Governadores gerais do Estado do
Brasil (Séculos XVI e XVII): ofícios, regimentos, governação e trajetórias. Tese
de Doutorado, UFF, 2005.
26
OLIVAL, Fernanda. As ordens militares e o Estado Moderno. Honra, mercê e
venalidade em Portugal (1641-1789). Lisboa, Ed. Estar, 2001. P. 20.
27
OLIVAL, Fernanda. Op. Cit. P. 21.
19
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Cultura Política e Cidadania no Brasil (1986-2002):
A construção de uma visão de mundo neoliberal
Flávio Henrique Calheiros Casimiro*
A relação entre história e memória constitui-se em
permanente reflexão para o historiador preocupado com o
mundo contemporâneo, na medida em que o Tempo Presente
é o Tempo da Memória, isto é, o presente é um conteúdo da
memória que constitui o substrato identitário das diferentes
sociedades e a memória possibilita o desvendamento do
presente. Muito se discute sobre o papel do historiador diante
das questões relacionadas ao presente. Assim sendo, a proposta
que se segue consiste em articular a memória social do presente
a um exercício de inteligibilidade da História.
Na década de 1980, a sociedade brasileira passou por
um importante processo de politização que pode ser percebido
na organização e mobilização das diferentes forças sociais do
País, assim como na luta política que se desenvolveu por meio
de uma série de movimentos tais como a Campanha das Diretas,
em 1984; a eleição indireta de Tancredo Neves; a instauração
da Nova República, em 1985; as eleições para a Constituinte,
em 1986; o debate que se travou no Congresso Constituinte
até a promulgação da nova Carta, em 1988; a campanha para
a Presidência da República, em 1989; o impeachment de Collor,
em 1992; para citar apenas os fatos políticos mais difundidos
nos meios midiáticos.
Esse processo abriu no Brasil fortes expectativas de que
a abertura no bloco de poder permitisse avanços no processo de
democratização do Estado e de socialização da política, além de
ampliar o espaço de debate político, nas dinâmicas decisórias e
no processo de repartição dos recursos de poder. Contrariando
tais expectativas, a conjuntura dos anos 90 aponta para uma
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mudança no referencial de cidadania e o crescimento de uma
mentalidade extremamente consumista, pautada na valorização
demasiada da imagem e da performance individual. Nessa
perspectiva, temos, de um lado, a concepção do Estado como o
espaço do atraso, incompetência administrativa e privilégios; de
outro, uma grande valorização da esfera privada e do mercado
como reduto da liberdade e eficiência, atributos fundamentais
para a modernização do país. Essas idéias ganharam um caráter
de verdadeiro “senso comum”, sendo amplamente difundidas
no conjunto da sociedade brasileira.
Quais elementos teriam sido responsáveis para esse
deslocamento do conceito de cidadania? De que forma operouse, na sociedade brasileira, a construção e a difusão dos valores
desta concepção de mundo?
O cerne deste trabalho consiste em analisar essa
redefinição do conceito de cidadania no Brasil no período
compreendido entre 1986 a 2002, entendendo esse processo
como uma construção ideológica de uma visão de mundo.
Nesse sentido relacionamos o desenvolvimento de uma cultura
pautada na supervalorização da imagem e do consumo, ao
discurso da doutrina neoliberal, que se porta como um alicerce
teórico e ideológico fundamental para a difusão desta concepção
de mundo, assim como para sua materialização política. É
importante perceber a constituição de uma cultura histórica
cujo propósito é compreender a relação entre os sujeitos e a
temporalidade, ou seja interpretar como os agentes lidam com
seu passado, presente e futuro.
Pautados na concepção de História do Tempo Presente e
nas noções de “cultura política” e “cultura histórica”, procuramos
perceber a construção de um discurso neoliberal no Brasil. No
início da década de 1990 acompanhamos a adesão da política
brasileira ao discurso hegemônico neoliberal, que, segundo os
defensores desta concepção, garantiria aos grandes países da
periferia uma nova era de prosperidade, a partir das políticas de
“abrir, privatizar e estabilizar”, receituário batizado na América
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Cultura Política e Cidadania no Brasil (1986-2002):
A construção de uma visão de mundo neoliberal.
Latina como “Consenso de Washington”. A “Dama de Ferro”,
Margaret Thatcher, sintetiza bem o sentido do novo credo
neoliberal: “Não há e nem nunca houve essa coisa chamada
sociedade, o que há e sempre haverá são indivíduos”. Fórmula
que ela completou com um princípio lapidar de fundo moral para
abençoar o consumismo e o espírito da concorrência agressiva:
“A ganância é um bem”.1 Entretanto essas idéias liberais já
circulavam em certos setores da sociedade brasileira desde
o início dos anos 80. De acordo com a cientista social Denise
Barbosa Gros:
A argumentação liberal vem sendo utilizada periodicamente
por frações dessa burguesia para clamar contra a intervenção
do Estado na economia. Os meios acadêmicos e políticos
também produziram pensadores liberais do peso de Eugenio
Gudin, Roberto Campos e José Merquior, dentre outros.2
Buscamos analisar a significação do passado e as
estratégias de construção discursiva desta visão de mundo
utilizando as memórias de um dos mais importantes intelectuais
liberais do Brasil, o economista Roberto Campos. Por outro lado,
apontamos a difusão midiática deste discurso, tendo como fonte
a revista Veja. O exame crítico destas fontes não difere de outras
épocas históricas no que tange à ação do tempo, do poder, da
produção e tampouco das interpelações de seu próprio momento.
Por conseguinte, podemos perceber, a partir da análise dos
discursos, a construção midiática de uma memória coletiva,
tendo em vista essa memória como espaço fundamental para o
embate das relações de poder na sociedade. Esse diálogo entre
memória e mídia possibilita-nos, então, uma série de reflexões
para compreender as relações entre imprensa e poder.
O passado é ressignificado no intuito de funcionar como
alicerce de sustentação de um discurso no presente. Um dos
grandes representantes intelectuais do pensamento liberal no
Brasil, o economista Roberto Campos em suas memórias aponta
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Flávio Henrique Calheiros Casimiro
como responsável por todas as mazelas do século XX, o que ele
chama de coletivismo. Segundo Campos o breve século XX teria
começado com a revolução russa de 1917 e terminado com a
queda do muro de Berlim em 1989. Para Campos, o “século do
coletivismo” foi responsável tanto pela morte de milhões de seres
humanos pelo experimento socialista e pelo nazi-fascismo, como
pelo nacionalismo que inviabilizou o desenvolvimento de países
como o Brasil.3 Desta forma, esse coletivismo, em sua mobilização
de setores sociais, que, para algumas linhas interpretativas, como
o marxismo, representou um avanço no sentido de politização e
aumento do espaço de reivindicação de direitos, é ressignificado
como o grande mal do século. A intervenção do Estado na
economia, o nacionalismo e a mobilização de massas figuram
nessa releitura do passado como elementos que inviabilizaram,
em diversos momentos de nossa história, uma inserção na
“marcha do progresso”. A memória do passado é restituída tanto
para caracterizar os infortúnios do presente como para legitimar
as propostas e projetos para o futuro.
Passagens importantes da história nacional são
relembradas e ressignificadas com o intuito de dar sustentação
aos argumentos liberais. O passado se configura como um
instrumento fundamental de justificação do discurso. Como
exemplo, podemos apontar a posição de Roberto Campos em
relação ao programa de desenvolvimento do petróleo brasileiro
nos anos 50. O economista critica com veemência a política
adotada pelo Brasil em relação à produção de petróleo, onde
o slogan “o petróleo é nosso” seria um discurso característico
daquilo que, para ele, havia de pior na cultura política brasileira
que foi o nacional-populismo. “Nunca entendi por isso, durante
as discussões do Estatuto do Petróleo, no governo Dutra, os
devaneios nacionalistas, segundo os quais a exploração do
petróleo por empresas estrangeiras significaria uma espécie de
penhora da independência”.4
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A construção de uma visão de mundo neoliberal.
Entre as irracionalidades brasileiras se destacava a campanha do
petróleo é nosso em favor do monopólio petrolífero, que acabaria
sendo votado pela Lei 2.004, de outubro de 1953.(...) As restrições
à remessa de lucros já haviam desencorajado o ingresso de
capitais, e a discussão sobre o monopólio do petróleo configurava
uma tendência de proibição do ingresso de capitais numa área
crítica para restauração da solvência brasileira. Éramos um país
de endividados e insolvente, que rejeitava capitais estrangeiros,
numa das poucas áreas para as quais seria possível atraí-los.5
Segundo Campos esta concepção nacionalista em relação
à produção mineral fora responsável, na época, pelo atraso do
Brasil em seu desenvolvimento de programas de exploração
dessas riquezas e, por conseguinte, impediu que o país se
modernizasse e desenvolvesse economicamente. Desta forma, a
defesa de uma produção nacional e independente dos recursos
internacionais é requalificada por Campos como uma política
populista que teria comprometido uma grande oportunidade
de abertura internacional e a integração do Brasil a uma política
modernizadora liberal.
A idéia de desenvolvimento independente da intervenção
estrangeira é apontada pelo economista como um grande
equívoco. Ele relembra que nos anos 50 foi intenso o debate
em torno dos modelos para o desenvolvimento econômico
brasileiro. A tônica da discussão girava em torno de perspectivas
que defendiam um desenvolvimento independente, com uma
economia regulada pelo Estado e, por outro lado, modelos que
defendiam o desenvolvimento econômico pautado na abertura
econômica ao capital estrangeiro. Roberto Campos classifica
como desnecessária essa discussão e ao defender uma abertura
internacional é enfático em sua crítica à posição protecionista da
política brasileira.
A falácia dessas diferentes taxonomias só viria a ser contundentemente
demonstrada na década de oitenta, com o espetacular sucesso das
economias periféricas do leste asiático, que, numa estranha reversão
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de posições, passariam a provocar, nos países do centro, o receio de
desindustrialização. A experiência asiática demonstrou que a diferença
relevante não é aquela entre desenvolvimento espontâneo ou derivado,
central ou periférico, dependente ou independente. A diferença
relevante é entre o desenvolvimento orientado para a exportação,
que impõe o constrangimento da eficiência, ou o desenvolvimento
introvertido, que acoberta ineficiências através do protecionismo.6
A experiência de desenvolvimento dos países asiáticos
demonstra, na argumentação de Roberto Campos, que, o que
realmente importava era a abertura internacional. Toda essa
discussão em torno do nacionalismo e da defesa de uma produção
e desenvolvimento independente das pressões internacionais
era, não só, uma discussão desqualificada, como acabava por
promover uma condição de ineficiência e inércia da economia
nacional. No entanto, Campos critica que o começo dos anos 50
foi vincado por essa irrupção nacionalista que acabou sendo uma
marca tradicional do pensamento varguista. O efeito perverso
desse nacionalismo de Vargas estaria em que, ao tentar proteger
a produção nacional da entrada de capitais estrangeiros, acabava
por preferir financiamentos a investimentos diretos. Nesse
sentido o economista afirma, “como costumava dizer à época, os
investimentos diretos geram sócios complacentes, enquanto que
os empréstimos podem gerar credores implacáveis”.7
Já na fase preparatória do governo Kubitschek, foi proposto
por Roberto Campos e Lucas Lopes (conselheiro técnico da
Comissão Mista Brasil – Estados Unidos / CMBEU) um programa de
reforma cambial com a idéia de preservar a viabilidade do balanço
de pagamentos e um programa de estabilização monetária de
modo a evitar explosão inflacionária. “Ambos esses programas,
despertaram pouco interesse em Juscelino, mais um tocador de
obras que um estadista de perspectivas”.8 Campos critica que o
Brasil não tinha um planejamento macroeconômico atendo-se
exclusivamente a propostas setoriais e classifica o ex-presidente
Juscelino Kubitscheck como um tocador de obras. Esses discursos
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A construção de uma visão de mundo neoliberal.
apontam para a idéia de como o Brasil, em diversos momentos e
circunstâncias, perdera a oportunidade de “deslanchar” e partir
para um desenvolvimento realmente consistente, em virtude de
posições políticas equivocadas e falta de visão administrativa de
seus dirigentes.
O conceito de cultura política mostra-se extremamente
pertinente na análise destes discursos, uma vez que permite
reconstruir o comportamento político de indivíduos e grupos,
tendo em vista suas próprias representações e visões de mundo,
com as quais definiriam suas memórias, vivências e sensibilidades.
A posição contrária aos monopólios estatais e ao nacionalismo é
enfatizada por Roberto Campos em vários processos e discussões
políticas.
Estatal sem monopólio era o meu lema da época. Modelos de
mobilização restritiva nunca foram, aliás, de minha simpatia. Lutei
contra o monopólio da Petrobrás por julgá-lo um modelo de mobilização
restritiva. Lutei depois contra a lei de informática, de 1984, porque
se baseava no mesmo princípio de rejeição de capitais estrangeiros,
numa pretensão irrealista de autonomia tecnológica. Descambamos
para uma espécie de isolamento tecnológico extremamente
detrimentoso. Lutei também, na constituinte de 1988, contra o terceiro
modelo excludente – a exigência de maioria de capitais nacionais
na exploração mineral. Essa exigência é particularmente irrealista
na fase de pesquisa, extremamente arriscada e pouco atraente.
Em todos os três casos fui derrotado. Em todos os três casos estava
redondamente certo. (...) Estive certo quando tive todos contra mim.9
Neste trecho, também podemos perceber uma posição
teleológica na argumentação de Campos. O economista trata
dos embates políticos discutidos a partir de sua posição no
presente. O fracasso de um modelo econômico do presente é
utilizado para dar sentido a suas posições políticas no passado. É
importante perceber a forma com que indivíduos e grupos lidam
com a temporalidade, ou seja, como interpretam sua relação com
o passado, presente e futuro dentro de uma “cultura histórica”.
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Além disso, como esses atores fazem uso dessa memória como
critério de legitimação dos discursos.
Ao criticar enfaticamente a interferência política na esfera
social, econômica e cultural, os neoliberais questionam a própria
noção de direito e a concepção de igualdade que serve (ao
menos teoricamente) como fundamento filosófico da existência
de uma esfera de direitos sociais nas sociedades democráticas.
Desta forma o próprio conceito de cidadania em que se baseia
a concepção universal e universalizante dos direitos humanos
(políticos, sociais, econômicos, culturais e etc.) teria gerado,
segundo os neoliberais, um conjunto de falsas promessas que
orientam ações coletivas e individuais caracterizadas pela
improdutividade e pela falta de reconhecimento social no valor
individual da competição. É neste quadro que se reconceitualiza
a noção de cidadania, através de uma revalorização da ação do
indivíduo enquanto proprietário. O modelo de homem neoliberal
é o cidadão privatizado é o cidadão consumidor.10
A busca de um passado não pode ser desvinculada das
demandas e exigências de um tempo presente e, por esta razão,
sua compreensão é também parte da inteligibilidade de uma
cultura histórica que aciona experiências, imagens e atores do
passado para uma contemporaneidade que procura nesse tempo
que ficou para traz referências para imaginar o mundo em que
vive.11 Essa noção de cultura histórica tendo em vista a relação
que uma sociedade mantém com seu passado, encontrada em
Jacques Le Goff12, se mostra enriquecedora na compreensão
de como certas interpretações do passado são produzidas e
consolidadas através do tempo, integrando-se ao imaginário e
à memória coletiva de grupos sociais. Nesse sentido, Roberto
Campos revisita o passado para demonstrar que suas concepções,
outrora rechaçadas, foram legitimadas, a posteriori, pelo próprio
curso da história.
Em nenhum momento consegui a grandeza. Em todos os
momentos procurei escapar da mediocridade. Fui um pouco
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A construção de uma visão de mundo neoliberal.
apóstolo, sem a coragem de ser mártir. Lutei contra as marés
do nacional-populismo, antecipei o refluxo da onda. Às vezes
ousei profetizar, não por ver mais que os outros, mas por ver
antes. Por muito tempo ao defender o liberalismo econômico, fui
considerado um herege imprudente. Os acontecimentos mundiais,
na visão de alguns, me promoveram a profeta responsável.13
A reconstrução histórica é necessária mesmo quando
a memória social preserva o testemunho direto de um
acontecimento, pois cabe ao historiador questionar e problematizar
este testemunho, não por duvidar do relato, mas por dispor de
um olhar crítico no sentido de apontar as estratégias discursivas
que introduzem informações fundamentais, na medida em que
essas narrativas se constituem como signos ideológicos. “O
domínio do ideológico coincide com o domínio dos signos: são
mutuamente correspondentes (...). Tudo que é ideológico possui
um valor semiótico”.14 Nesse sentido, na análise dos discursos
é preciso articular memória e conhecimento histórico, a fim de
levantar e problematizar os artefatos ideológicos inseridos na
narrativa. A concepção de culturas políticas propõe um sistema
de representações capaz de compreender os sentidos que
determinado grupo atribui a uma dada realidade social, bem
como o papel fundamental exercido por uma cultura histórica
para a significação e legitimação de um dado discurso.
Os meios de comunicação exercem um papel fundamental
para a construção e a difusão destes valores na sociedade. Como
exemplo de discurso midiático alicerçado em uma ressignificação
do passado, com o objetivo de uma doutrinação ideológica do
presente, podemos apontar a entrevista da revista Veja na edição
de 21 de junho de 1989, com o economista Roberto Campos,
que frisa: “Estamos perdendo a oportunidade de participar
da corrente mundial de desenvolvimento. Vivemos num país
mercantilista, pré-capitalista. (...) Faltam aos nossos governantes
idéias mobilizadoras que acabem com a letargia em que estamos
imersos”.15 Mais adiante, o entrevistado aponta com mais clareza
sua concepção:
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Acho que o Brasil precisa de duas visões mobilizadoras. A primeira
é a do capitalismo democrático, quer dizer o casamento da
democracia política com a economia de mercado, isso que se chama
de neoliberalismo. A segunda visão está na integração do país no
mercado mundial. O Brasil não faz nenhuma dessas duas coisas
e está fora da corrente do progresso. Nosso país não apresenta
hoje as características essenciais da modernidade, (...). Essas
características se centram sobre alguns princípios – privatização,
desregulamentação da economia, abrandamento fiscal e integração
no mercado mundial. O Brasil faz tudo ao contrário. (...) O fato é que
a economia mundial marcha para uma integração e só o Brasil parece
não ter descoberto isso. O país está fora de moda . (Grifos meus).16
Podemos perceber, tanto na análise das memórias de
Roberto Campos, como em sua entrevista para a revista Veja,
a idéia de uma necessidade de “modernizar” o Brasil, de inserir
o país na grande “corrente do progresso” em que todo mundo
estaria mobilizado e o Brasil estaria de fora, como afirma
Campos, “fora de moda”. Essa idéia de tirar o Brasil de uma
condição histórica de letargia e inserir o país em uma aliança
mundial de progresso, se posta como uma recorrente estratégia
de legitimação do discurso liberal.
A dicotomia entre retrocesso e modernização mostrase sempre presente nessas argumentações. O Brasil é sempre
apontado como o campo do atraso e das idéias ultrapassadas,
ao passo que os países que adotaram uma política de mercado
neoliberal, são vistos como inseridos na “marcha do progresso”,
munidos de idéias inovadoras características de sociedades
“modernas”. Essas questões podem ser verificadas em
publicações como em “Ponto de Vista” de dezembro de 1988,
onde, em matéria intitulada “Já estamos no socialismo”, o
jornalista Luciano Suassuna defende que: “O Brasil já é, há muito
tempo, um país socialista. (...) O Brasil já tem a economia nas
mãos do Estado, os propinodutos, a burocracia e até as dachas”.
E conclui enfatizando: “Como sê vê o socialismo já chegou,
disfarçado num capitalismo arcaico e ineficiente ”. Em entrevista
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de dezembro de 1989, o então Ministro da Fazenda Maílson da
Nóbrega destaca que “O Estado precisa ter o seu papel redefinido
no Brasil para que sejamos um país moderno. (...) Até mesmo os
países socialistas estão concordando com isso e alterando seus
rumos”.18 Percebe-se, nos fragmentos, o discurso que relaciona
a política brasileira à dos países socialistas, qualificando-os como
símbolos do sucateamento e de uma mentalidade retrógrada. A
saída para a modernização, mais uma vez, estaria na concepção
de mundo neoliberal. Essas declarações expressam e sintetizam,
na verdade, um ambicioso projeto de reforma ideológica por meio
da construção e difusão de um novo senso comum que fornece
coerência, sentido e uma pretensa legitimidade às propostas de
reforma impulsionadas pelo bloco dominante.
Por meio do exame destas fontes, procuramos analisar a
construção de uma hegemonia do pensamento liberal. Isso não
quer dizer que não exista forças sociais de resistência em relação
a essa doutrinação. Ao contrário, é importante perceber a tensão
constante entre as diferentes culturas políticas. Os meios de
comunicação são importantes trincheiras na luta pelo consenso
na sociedade civil. A idéia de hegemonia implica a permanência
de tensões e projetos contra-hegemônicos. “Competindo
entre si, complementando-se, entrando em rota de colisão,
sua multiplicidade não impediria, contudo a possibilidade
de emergência de uma cultura política dominante em certas
conjunturas específicas”.19
O que esses discursos apontam não são apenas questões
relacionadas ao universo político-econômico nacional, mas,
em grande medida, a construção de uma visão de mundo
neoliberal. Fica clara a importância de se perceber a influência
do neoliberalismo no Brasil, não simplesmente como adoção de
políticas impostas por países centrais do capitalismo, partindo
do centro político decisório para, posteriormente, chegar à
sociedade, mas sim como uma matriz ideológica que foi difundida
por setores da sociedade e, posteriormente, instrumentalizada
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em políticas adotadas pelo Estado, nos anos 90. Esse processo é
resultado da ação de agentes, grupos sociais e instituições, que,
por meio de estratégias de legitimação ideológica buscaram
estabelecer seus valores como consenso. Desta forma, o
importante aqui é que ressaltar a implicação do neoliberalismo
enquanto ideologia. Anderson afirma que o neoliberalismo é
(...) um movimento ideológico, em escala verdadeiramente mundial,
como o capitalismo jamais havia produzido no passado. Trata-se de
um corpo de doutrina coerente, autoconsciente, militante, lucidamente
decidido a transformar todo o mundo à sua imagem, em sua ambição
estrutural e sua extensão internacional. Política e ideologicamente,
(...) o neoliberalismo alcançou um êxito num grau com o qual seus
fundadores provavelmente jamais sonharam, disseminando a simples
idéia de que não há alternativas para os seus princípios, que todos, seja
confessando ou negando, têm de adaptar-se a suas normas (...) Este
fenômeno chama-se hegemonia, ainda que, naturalmente, milhões de
pessoas não acreditem em suas receitas e resistam a seus regimes.20
Conclusão
Ao converter a memória em objeto da história no
presente, a história do presente nos oferece novas chaves de
inteligibilidade do passado, na medida em que se vincula à
atualidade e a demanda social, bem como aos objetos concretos
da lembrança. Diante dos discursos analisados, fica claro que
o historiador deve, além do estudo dos acontecimentos em si,
analisar como são elaborados, transmitidos e percebidos no
processo de reconstrução ideológica do passado que condiciona
a própria percepção do presente pelos diferentes grupos sociais.
É perceber por traz da narrativa as estratégias de construção
ideológica de uma concepção de mundo. Sua tarefa, então, não se
restringe em narrar acontecimentos, mas realizar uma profunda
reflexão sobre eles, apontando as representações e a função de
elementos integrantes de um determinado imaginário coletivo,
pois, apesar de se estabelecer um reconhecimento mútuo da
importância de determinado acontecimento histórico, há que se
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A construção de uma visão de mundo neoliberal.
perceber a reapropriação dele a partir dos valores e da posição
que ocupa determinada corrente de opinião no jogo político.
Diante disso, entendemos que o pensamento liberal
conseguiu impor determinados significados ao termo
“modernização”, por oposição ao que qualificam como “atraso”.
Essa dicotomia tem longa tradição nas interpretações do Brasil
e foi sistematicamente criticada por, entre outros, Francisco de
Oliveira.21 Nesse sentido, a existência de um ambiente político,
social e econômico favorável às atividades empresariais não pode
ser vista como fruto de uma emanação espontânea da economia
de mercado, mas, em grande medida, como o resultado da ação
consciente e metódica de instituições e agentes, entre os quais
os próprios empresários. Por meio da análise qualitativa dos
periódicos destacados e das memórias de Roberto Campos, foi
possível perceber as estratégias de legitimação e difusão de uma
concepção de mundo, assim como o embate travado entre as
forças sociais em torno da construção de uma memória coletiva,
visto que memória é espaço de poder. Assim, esses instrumentos
midiáticos trazem a constituição de uma memória das classes
dominantes que objetiva utilizar determinada visão de história
para impor seus valores à sociedade como um todo.
Entendemos, por fim, que entre essa concepção
de mundo extremamente consumista e a característica
desarticulação política dos anos 90 no Brasil interpõe-se uma
hegemonia ideológica neoliberal que amparou teoricamente e
reconfigurou o conceito de cidadania. A construção desta visão
de mundo fundada na valorização demasiada da imagem e do
status social, promovido por meio de símbolos de consumo,
encontra na ideologia neoliberal seu embasamento teórico e
veículo fundamental.
Notas e Referências
* Mestrando do Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal de
São João Del-Rei - UFSJ. Orientador: Doutor Eder Jurandir Carneiro. Contato:
[email protected]
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Flávio Henrique Calheiros Casimiro
SEVECENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha
russa. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. p. 36.
2
GROS, Denise Barbosa. Institutos Liberais e Neoliberalismo no Brasil da
Nova República. Porto Alegre: Fundação de Economia e Estatística Siegfried
Emanuel Heureser, 2003. p. 41.
3
CAMPOS, Roberto de Oliveira. A Lanterna na Popa: memórias. Rio de Janeiro:
Topbooks, vol.I, 1994.
4
Ibidem, p. 74.
5
Ibidem, p. 172.
6
Ibidem, p. 166.
7
Ibidem, p. 182.
8
Ibidem, p. 164.
9
Ibidem, p. 75.
10
GENTILI, Pablo. Pedagogia da Exclusão: crítica ao neoliberalismo em
educação. Petrópolis: Vozes, 2001.
11
GUIMARÃES, Manoel L. S. “O presente do Passado: as artes de Clio em
tempos de memória”. In: ABREU, Martha, RACHEL, Soihet e GNTTIJO, Rebeca
(orgs.). Cultura Política e Leituras do Passado: historiografia e ensino de
história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007.
12
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Ed. Unicamp, 2003. O
autor faz uma substancial reflexão sobre a noção de “cultura histórica”.
13
CAMPOS, op. Cit. p. 20.
14
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo, 1995.
p.32.
15
CAMPOS, Roberto de Oliveira. “Um país fora de moda”. Revista Veja. São
Paulo, Editora Abril, fascículo 1084, p.5, 1989.
16
Ibidem, p.6.
17
SUASSUNA, Luciano. “Já estamos no socialismo”. Revista Veja. São Paulo,
Editora Abril, fascículo 1058, p.170, 1988.
18
NOBREGA, Maílson da. “Sair é um alívio”. Revista Veja. São Paulo, Editora
Abril, fascículo 1110, p.6. 1989.
19
GOMES, Angela de Castro. “Cultura Política e Cultura Histórica no Estado
Novo”. In: ABREU, Martha, RACHEL, Soihet e GNTTIJO, Rebeca (orgs.). Cultura
Política e Leituras do Passado: historiografia e ensino de história. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 48. Angela de Castro Gomes discute que
do mesmo modo que as culturas políticas são plurais, pode haver o confronto
de mais de uma cultura histórica.
20
ANDERSON, Perry. Balanço do neoliberalismo. In: GENTILI, Pablo; SADER,
Emir (Orgs.). Pós-neoliberalismo: as políticas sociais e o Estado democrático.
Rio Janeiro: Paz e Terra, 1995. p. 22-23.
21
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica a razão dualista - O Ornitorrinco. São Paulo:
Boitempo, 2003.
1
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Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro: espaço de
tradição e de modernidade nas primeiras
décadas do século XX
Luciene Pereira Carris Cardoso*
Negligenciada por longo tempo, a história institucional
vem sendo retomada pela historiografia francesa recente. De um
lado, influenciada pela revisão de alguns autores anglo-saxões,
de outro, pelo sopro de renovação que tem impulsionado
os estudos de história política, desde o final dos anos 1980,
conforme aponta Georg G. Iggers, no livro Historiography in the
Twentieth Century: from scientific objectivity to the postmodern
challenge (1997).1 As instituições públicas e privadas constituem
hoje um novo objeto de estudo que pode ser abordado pela
convergência de fatores políticos, sociais e culturais. Já em 1989,
na comemoração do bicentenário da École Normale Supérieure,
diversos historiadores dedicaram-se à problemática da história
institucional, ao examinarem a atuação das “Grandes Escolas” na
Europa. As discussões ali travadas encontram-se publicadas na
obra coletiva L’apprentissage de Savoir (1995), em particular, o
texto de Jean Starobinski, intitulado “Le partage de savoirs”.2
Criada em 1883, a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro
transformou-se numa estrutura elementar de sociabilidade
da Corte Imperial.3 Por lá, circulavam advogados, médicos,
engenheiros militares e funcionários públicos. Indivíduos que
estavam antenados com as principais correntes teóricas da
época, na esteira do que Silvio Romero denominou como um
“bando de idéias novas”. Defendiam um projeto pragmático de
ciência, com a valorização das ciências para solucionar problemas,
com incorporação de modelos do exterior, adaptando-os e
desenvolvendo-os em consonância com a realidade nacional.4
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Luciene Pereira Carris Cardoso
Nos primeiros anos de atividade, empreendeu um
programa de trabalho que buscava responder às demandas
do Estado monárquico, por meio de práticas ou atividades
científicas, direcionadas para o melhor conhecimento do espaço
físico do Império e de seus habitantes, a exemplo da publicação
de seu periódico a Revista ou Boletins da Sociedade de Geografia
do Rio de Janeiro. Apesar da queda da monarquia, em 1889,
e das atribulações que sofreu com a instauração do regime
republicano, a Sociedade permaneceu desenvolvendo atividades
que pudessem auxiliar no aperfeiçoamento da sociedade,
consoante o ideário positivista. Esse pragmatismo ganhou
um reforço, impulsionado pelo “patriotismo à moda 1914”. O
fenômeno identificado pelo historiador francês Maurice Agulhon
corresponde ao período entre 1910 e 1920, caracterizado pela
reafirmação dos sentimentos cívicos e o interesse pelas questões
nacionais.5
O deslumbramento e a glorificação da natureza, ao
lado da ênfase na preservação do espaço físico, resenhavam
o papel da geografia, cabendo-lhe promover a reconciliação
entre a nação e a sua história. Se antes o saber geográfico era
tomado como uma ciência auxiliar da história, doravante o
discurso sobre o espaço torna-se o centro do debate intelectual,
fornecendo-lhe a moldura capaz de re-enquadrar o passado.6
A visão imponente de um território de dimensão continental
assentado em referências geográficas substantivas insuflava,
portanto, o sentimento nacionalista nas reuniões da Sociedade,
ao mesmo tempo estimulava a proposição de atividades que
buscavam descortinar o país aos brasileiros. Não se tratava de
uma ação sistemática, mas sim de iniciativas esporádicas, que
se aproximavam ao que o historiador Eric Hobsbawn, na divisão
da história dos movimentos nacionais, identificou como um
momento em que uma minorité agissante representada por um
conjunto de pioneiros militantes da idéia nacional atua por meio
de campanhas e de movimentos em prol dessa mesma idéia.7
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Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro: espaço de tradição
e de modernidade nas primeiras décadas do século XX.
O governo passou a conferir maior importância à
atuação de entidades como a Sociedade de Geografia do Rio
de Janeiro, reconhecida como órgão de utilidade pública, por
decreto assinado pelo presidente Wenceslau Braz Pereira Gomes
em 1917. A SGRJ envolveu-se, ainda, nas comemorações do
centenário da independência, em 1922. Idealizou um projeto de
natureza enciclopédica, a Geografia do Centenário, planejado
para alcançar dez volumes. Dirigida ao grande público, a coleção
de pretendia, didaticamente, descortinar o Brasil aos brasileiros.
Seguiram-se outros projetos de cunho pedagógico, como o Curso
Superior Livre de Geografia, que funcionou entre os anos de
1926 e 1927, destinado à atualização de professores primários,
organizado por um corpo de especialistas de escol, que reuniu
nomes como Fernando Raja Gabaglia, Everardo Backheuser e
Delgado de Carvalho.8
Além disso, a Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro
empenhou-se na realização de atividades acadêmicas, na
divulgação de trabalhos e na publicação de textos inéditos, que
lançavam luz sobre aspectos ainda não revelados do território
e da população brasileira. Neste sentido, tornou-se um espaço
de discussão, recebendo estudiosos como o engenheiro Vicente
Licínio Cardoso, então redator-chefe da Revista da Sociedade.
Em duas ocasiões, ele apresentou uma síntese das suas
investigações sobre o rio São Francisco, assunto que há muito
o instigava, apesar de pouco privilegiado pelos estudiosos de
então. Acentuava que apesar da sua comprovada importância, a
região atravessada pelo São Francisco permanecia obscura para
a maioria dos brasileiros, no seu entender: “(...) a ignorância do
presente daquele vale exprime e exemplifica, ao mesmo tempo,
esse perigo largo em que temos incorrido tantas vezes, vivendo
no litoral, mas pensando, de contínuo, como se a nossa cabeça
estivesse...na própria Europa”.9
A partir dos anos 1930, significativas transformações
afetaram a vida política, econômica, social e cultural da Nação,
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tais mudanças já se prenunciavam na década anterior, marcada
pela crise do sistema oligárquico, a emergência do movimento
tenentista, a comemoração do Centenário da Independência do
Brasil e a realização da Semana de Arte Moderna em 1922. Ao
mesmo tempo, as conseqüências da Primeira Guerra Mundial
indicavam que o ideal cosmopolita cedia lugar a passos largos
ao nacionalismo exacerbado. A busca pelas raízes brasileiras
constituiria, assim, uma das principais preocupações dos homens
públicos e letrados da época: “(...) seja através dos ideais da
ciência ou da racionalidade (geração de 1870) da arte ou da
intuição (geração de 1920), imbuídos de vocação messiânica,
senso de missão ou dever social, os intelectuais se auto-elegeram
sucessivamente consciência iluminada do nacional”.10
O golpe de Estado que pôs fim à Primeira República,
em 1930, não afetou o funcionamento da SGRJ. Aliás, desde
o primeiro momento, a Sociedade mostrou-se favorável ao
movimento que deu início à chamada Era Vargas, o que não é de
estranhar, uma vez que por lá transitavam figuras que apoiaram
a Aliança Liberal.11 A associação carioca, entre outros temas que
mais tarde seriam objeto da atenção do governo, empenhouse em examinar a questão do reordenamento geopolítico do
território brasileiro. A exemplo da “Grande Comissão Grande
Comissão Nacional de Redivisão Territorial e Localização da
Capital Federal”, coordenado por Everardo Backheuser, então
vice-presidente da Sociedade de Geografia. O projeto deveria
somar esforços para “(...) servir bem, sem o menor laivo e
preocupação subalterna ou regionalista, os supremos interesses
do Brasil”. 12 No fundo, buscava-se diminuir o poder das unidades
mais expressivas da Federação, a propósito de promover
o equilíbrio entre os estados. Previa a adoção de um quadro
geopolítico menos fragmentado, formado de vinte unidades
federativas e dez territórios lindeiros, cobrindo praticamente
toda a área de fronteira com as nações vizinhas, entre o extremo
norte e o sudoeste do país, o que revela forte preocupação com
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e de modernidade nas primeiras décadas do século XX.
a defesa da soberania nacional. Sugeria, ainda, substituir a
denominação de “estado” pela de “província”, de acordo com a
tradição histórica da autonomia política nacional. Para legitimar
tais alterações, a “Comissão” advertia para necessidade de se
realizar uma campanha de esclarecimento junto à população, de
forma a conscientizá-la da sua importância. Por sinal, algumas
das sugestões oferecidas pela “Grande Comissão” apareceriam
incorporadas ao novo mapa político brasileiro de 1943. Além do
projeto encabeçado pela SGRJ, ocorreram iniciativas individuais
de alguns associados, como Everardo Backheuser, Raul Bandeira
de Mello e Ezequiel Ubatuba.
Outros trabalhos voltaram-se para a ocupação dos
espaços vazios do interior do país e a discussão da problemática
da imigração. Os associados Raimundo Saladino de Gusmão,
José Wanderley de Araújo Pinho, João Ribeiro Mendes e José
Magarinos não viam com bons olhos a introdução do imigrante
japonês. Considerava-se aceitável o seu ingresso no país, desde
que direcionado exclusivamente para o povoamento de áreas
inóspitas. Ponderava-se que a “arianização” da população
brasileira, sobretudo por meio do elemento europeu, era
primordial para o desenvolvimento econômico.13 De fato, a
política de povoamento implementada por Getúlio Vargas
evitou o estabelecimento de imigrantes nas cidades, procurando
assentá-los, prioritariamente, nas áreas de fronteira do extremo
Oeste.14
A implementação de políticas públicas que buscavam
articular iniciativas científicas com a conformação de uma
cultura política, na qual a temática do território nacional, a
exploração racional dos seus recursos naturais e sua ocupação
ordenada ganhariam um espaço singular. Isto redundou naquilo
que decidimos denominar de “cultura geográfica”, ou seja, um
conjunto de ações sistemáticas com o objetivo de utilizar o
conhecimento geográfico para subsidiar as ações do governo de
Getúlio Vargas.15 É evidente que para desenvolver essa “cultura
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geográfica” procurou-se suporte nas experiências e estudos
anteriores, empreendidos também pela “(...) prestigiosa
Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro que de longa data vem
liderando no país as iniciativas e as realizações geográficas”.16
Estabeleceu-se, assim, uma espécie de via de mão dupla
entre os órgãos federais que reconheciam a contribuição do
tradicional reduto, recebendo em troca apoio e colaboração na
implementação dos seus programas de trabalho. Não houve,
portanto, inicialmente, um conflito de interesses entre a
“associação de diletantes” e os organismos que seriam criados
ao longo aos anos 1930, ou disputas, uma vez que o sistema
geográfico instituído em 1938 integrava antigos e modernos.
No desenvolvimento dessa “cultura geográfica”, a
experiência da Sociedade seria valorizada e seus associados
desempenhariam papéis de primeira grandeza. Nomes como
Everardo Backheuser, Carlos Delgado de Carvalho, Fernando
Raja Gabaglia e Mario Augusto Teixeira de Freitas. Deste modo,
apesar de instituição de caráter privado, foi integrada ao sistema
geográfico oficial do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
estabelecido por Vargas, em 1938, o que estreitaria ainda mais
a sua colaboração com os órgãos federais, inclusive, as recém
criadas faculdades de filosofia.
Em 1931, por indicação do Governo Provisório e com
o seu patrocínio, a Sociedade de Geografia participou do
Terceiro Congresso Internacional de Geografia em Paris, quando
se estabeleceu o primeiro contato com a União Geográfica
Internacional (UGI).17 Como representante da SGRJ, foi enviado
o sócio Alberto José de Sampaio, membro da Academia Brasileira
de Ciências, professor de Botânica do Museu Nacional, antigo
integrante da Comissão Rondon e reconhecido especialista na flora
mato-grossense.18 Ao retornar ao Brasil, Sampaio assinalava que
o país fora convidado a se filiar à União Geográfica Internacional
pelo professor Emmanuel De Martonne, secretário-geral daquele
evento e diretor do Instituto de Geografia da Universidade de
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e de modernidade nas primeiras décadas do século XX.
Paris.19 Em 25 de julho de 1933, em sessão conjunta da Sociedade
de Geografia do Rio de Janeiro, do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro e da Academia Brasileira de Ciências, De Martonne
recebeu o título de membro honorário da Sociedade. Naquela
oportunidade, sugeriu a entrada do país na UGI.20 De fato, o
ingresso do Brasil naquele organismo suscitou imensa atividade
que culminou num movimento de renovação da disciplina com
a vinda de professores franceses, a criação das universidades de
São Paulo e do Distrito Federal, bem como o estabelecimento
de um organismo oficial de coordenação e de sistematização
dos conhecimentos geográficos e estatísticos sobre o território
nacional, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.21
De qualquer maneira, a Sociedade de Geografia do Rio
de Janeiro assumiu a vanguarda da convocação dos congressos
brasileiros de geografia entre 1909 e 1944. O estudo dessas
reuniões científicas revelou não apenas a preocupação com
o estado da arte ou a evolução da disciplina. Eles constituem
um bom termômetro para se avaliar as transformações que se
operavam no país, nos âmbitos social, econômico e político. Os
certames realizados entre os anos de 1909 e 1926 tiveram lugar
em diversas capitais brasileiras, contaram com financiamento
de órgãos públicos e maior participação de entidades estaduais
que os acolhiam, dando margem ao acentuado aparecimento
de contribuições que privilegiavam temáticas locais. Em 1940, a
Sociedade retomou a prática de promover reuniões periódicas da
disciplina, interrompida em 1926. De acordo com as Resoluções
nº 42 e 48, respectivamente, de 7 de julho e de 30 de outubro de
1939, do Conselho Nacional de Geografia, “(...) a Sociedade de
Geografia do Rio de Janeiro e o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística, num entendimento cívico, deliberaram reiniciar
a série dos Congressos Brasileiros de Geografia, realizandoos trienalmente.”22 Cabe distinguir que as jornadas de 1940 e
de 1944, cuja programação atendia às demandas da “cultura
geográfica” do Estado Novo, evidenciam, ainda, a predominância
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de um saber geográfico de caráter pragmático e utilitário,
direcionado para o reconhecimento do espaço nacional e para
subsidiar a ação governo de Getúlio Vargas. Por conseguinte, não
é de estranhar a sua dimensão política.23 Porém, isto não significa
afirmar que sua contribuição ao conhecimento geográfico deva
ser minimizada. Como atestam as discussões travadas, sobretudo
na reunião de 1944, é importante assinalar, o campo da geografia
no Brasil já se encontrava em franca delimitação. Não por acaso,
se pleiteava a sua separação da história nos cursos das faculdades
de filosofia. Para além disso, despontava a preocupação em
definir um perfil para o geógrafo profissional, cuja formação se
presumia diferente daquela destinada aos docentes de ensino
médio.
Os dois congressos realizados durante o Estado Novo
reforçaram a visibilidade da Sociedade de Geografia do Rio de
Janeiro. Como integrante do sistema geográfico, as atividades
e iniciativas da associação carioca seriam divulgadas na seção
“Noticiário”, da Revista do IBGE. A par disso, outros fatores
contribuíram para lhe granjear maior prestígio. Ao longo
da década de 1930, a Sociedade passou por uma fase de
rejuvenescimento, com a incorporação de novos filiados, na
maior parte, funcionários do IBGE e professores que atuavam
nas recém criadas faculdades de filosofia, além de militares e
políticos, categorias que tradicionalmente freqüentavam a SGRJ,
desde a sua fundação. Neste processo de renovação, assumiria
um papel de vanguarda nas relações de gênero, ao abrir os
seus quadros sociais para o sexo feminino. Para se ter uma
idéia, em 1944, ingressaram sete sócias, inclusive, a professora
Maria da Conceição Vicente de Carvalho24, umas das pioneiras a
defender tese de doutorado na Universidade de São Paulo, sob
a orientação de Pierre Monbeig, naquele mesmo ano.25 Mas, o
reduto científico ainda se beneficiaria da proteção que desfrutava
de homens públicos como os ministros José Matoso Maia Forte,
Oswaldo Aranha, e o ex-chanceler José Carlos Macedo Soares,
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este último alçado à condição de presidente honorário em 1940.
Por sinal, ao receber a deferência, o embaixador vislumbrou
a possibilidade do reduto científico comemorar o seu 60º
aniversário de fundação no prédio que idealizara construir para
acolher as instituições técnicas e culturais do país, denominado
de Palácio do Silogeu Brasileiro.
O decreto-lei 2326 de 10 de junho de 1940 determinava
a centralização de sedes de diversos órgãos técnicos e culturais,
com a criação de um edifício, no espaço onde já se encontrava
o IHGB, na Avenida Augusto Severo. A “Casa do Brasil” como
também era chamada, reuniria a SGRJ, o IBGE, o IHGB, o DASP,
o DIP, o INEP, a Liga da Defesa Nacional, a Academia Nacional
de Medicina, a Associação Brasileira de Educação, o Instituto da
Ordem dos Advogados, além de instituições que desenvolviam
atividades ligadas aos serviços de estatística subordinados aos
Ministérios da Justiça, da Fazenda, da Agricultura, do Trabalho, da
Previdência, da Educação e Saúde, e da Viação. Previa-se, ainda,
a criação do Planetário Cruzeiro Sul com objetivos de “recreio e
de educação popular.”26
Animada com o impulso dos últimos tempos, no final
de 1944, a Sociedade elegeu uma nova diretoria para o biênio
seguinte, encabeçada pelo ex-chanceler José Carlos Macedo
Soares. A escolha de Macedo Soares para o cargo da presidência
não foi aleatória. Macedo Soares já ocupava a direção de outras
entidades, a exemplo, do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
(1939-1968), do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística (19361951 e 1955-1956) e do Instituto Pan-Americano de Geografia e
História (1944-1949)27, além de haver exercido a presidência da
Academia Brasileira de Letras (1942-1943). O ex-chanceler era um
homem de governo, possuía excelentes relações com o Palácio
do Catete, o que poderia facilitar o livre trânsito da Sociedade
nas esferas de poder, iluminando-a publicamente.28 A posse de
José Carlos de Macedo Soares parecia cercada por bons augúrios.
Aguardava-se a assinatura presidencial do decreto de doação
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de um terreno para a construção de sua sede, possivelmente
para 23 de outubro em 1945.29 Assim, estimulada pelos novos
rumos que ganhava, a Sociedade participou da organização dos
“Cursos de aperfeiçoamento para professores de geografia do
ciclo secundário”, entre 21 e 30 de junho de 1945. Os “Cursos”
foram planejados e desenvolvidos em parceria com o Conselho
Nacional de Geografia, com a aprovação pelo Ministério da
Educação, de acordo com a Lei Orgânica do Ensino Secundário,
a Reforma Capanema, promulgada em 1942. Vinha de longe
a preocupação da Sociedade com o magistério. Se, em 1926,
promoveu cursos para melhorar a qualidade dos professores
de ensino primário, consoante a Reforma Capanema, voltouse para o aprimoramento dos professores de ensino médio. O
diploma conferido aos concluintes era reconhecido como título
para admissão no “segundo ciclo de extensão de professorado”.
Sem dúvida, na preparação do programa, pesou a
experiência pioneira desenvolvida pela Sociedade de Geografia,
na década de 1920, uma vez que o corpo docente seria
capitaneado pelos mesmos Everardo Backheuser, Fernando
Antonio Raja Gabaglia e Carlos Delgado de Carvalho. A
esses nomes uniram-se os técnicos do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística, Jorge Dodsworth Martins, Jorge Zarur,
J. C. Junqueira Schmidt, João Capistrano Raja Gabaglia, Alírio
de Matos, Cristóvão Leite de Castro, e os estrangeiros Giorgio
Mortara e o Francis Ruellan. Participaram da cerimônia inaugural
do curso, o presidente da Sociedade, José Carlos Macedo Soares,
a professora Lúcia Magalhães, diretora da Divisão do Ensino
Secundário e o engenheiro Cristóvão Leite de Castro, secretário
geral do Conselho Nacional de Geografia, além do corpo de
professores e alunos.30
Impulsionado pelos sucessos recentes, iniciou-se
na Sociedade um movimento em prol da reforma dos seus
estatutos. Diga-se de passagem, desde a fundação, seus
diplomas legais da sofreriam apenas ligeiros acréscimos, mas
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nada que afetasse a estrutura básica fixada em 1883.31 Os novos
estatutos definiam os fins da entidade; a formação dos seus
quadros sociais; a composição da diretoria e do conselho diretor,
das assembléias ordinárias e extraordinárias; e dispunham
sobre a estrutura e o funcionamento, deliberando que o reduto
científico seria dissolvida, caso o cadastro social atingisse menos
de dez membros, devendo o seu patrimônio ser incorporado ao
Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Introduziram, ainda,
uma mudança decisiva: deliberavam o fim da Sociedade de
Geografia do Rio de Janeiro. Substituíam-na por uma entidade
de âmbito nacional, com a denominação de Sociedade Brasileira
de Geografia. Esperava-se desse modo ampliar o seu espectro de
atuação no sistema geográfico. O destino, porém, não favoreceu
aquelas pretensões. Getúlio Vargas, o grande patrono da extinta
SGRJ, já havia sido deposto, em 29 de outubro de 1945. Nem
mesmo tivera tempo de assinar o tão almejado decreto de
doação do terreno para a sua sede. Com a instalação do governo
provisório, outras tentativas se sucederam, sem sucesso. 32
Desde a sua fundação até a sua extinção, em 1945, a
Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro atuou como um lócus
para o debate e a reunião de estudiosos da matéria. As práticas
científicas desenvolvidas, os empreendimentos acadêmicos
realizados, do mesmo modo que o conhecimento acumulado
na coleção das suas publicações, atestam que as iniciativas
da Sociedade, embora carecessem de sistematização e de
continuidade, anteciparam-se ao conjunto de medidas tomadas
na década de 1940, contribuindo para a formação da geografia
como um campo disciplinar autônomo no Brasil.
Notas e Referências
* Este artigo é um resumo da tese de doutorado Sociedade de Geografia do
Rio de Janeiro: espelho das tradições progressistas (1910-1945), defendida
em 2008, no Programa de Pós-Graduação em História Política da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro, sob a orientação da Professora Dra. Lúcia Maria
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Paschoal Guimarães. A pesquisa recebeu o apoio financeiro da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Rio de Janeiro (Faperj). O trabalho constitui uma
continuidade à dissertação de mestrado, defendida na Universidade do
Estado do Rio de Janeiro, em 2003, na qual analisamos a fundação e atuação
da Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro (SGRJ), entre 1883 e 1909, no
contexto do movimento que ensejou o aparecimento de entidades congêneres
na Europa e no Novo Mundo.
Cf. Georg G. Iggers, Historiography in the Twentieth Century: from scientific
objectivity to the postmodern challenge. Hanover: Wesleyan University Press
& London: University Press of New England, 1997.
2
Cf. Paul Viallaneix (dir.). L’apprentissage du savoir vivant: Bicentenaire de
la fondation de l’Ecole Normale Supérieure. Paris: Presses Universitaires de
France, 1995.
3
Cf. Jean François Sirinelli, “Os intelectuais”. In: René Rémond (org.), Por uma
História Política. RJ: UFRJ, FGV, 1996, p. 231-270.
4
Silvia Fernanda de Mendonça Figueirôa, As ciências geológicas no Brasil: uma
história social e institucional, 1875-1934. São Paulo: HUCITEC, 1997, p.19.
5
Cf. Maurice Agulhon, Histoire Vagabonde III. (La politique em France, d’hier
à aujourd’hui). Paris: Gallimard, 1996, p. 12.
6
Tânia Regina de Luca, “História e geografia: revalorização da nação”. In:
__________. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a nação. São Paulo:
Unesp, 1999, p. 97.
7
Eric Hobsbawn, Nações e nacionalismos desde 1780: programa, mito e
realidade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, p. 21.
8
O empreendimento pedagógico da Sociedade de Geografia do Rio de
Janeiro reuniu figuras expressivas, recrutadas não apenas entre os membros
da instituição, mas também em outras entidades, como a Escola Politécnica
do Rio de Janeiro, o Colégio Pedro II, a Escola Normal e o Museu Nacional,
tais como: Edgar Sussekind de Mendonça, Honório de Sousa Silvestre, Luiz
Caetano de Oliveira, Heloísa Alberto Torres, Luis Caetano de Oliveira, Abel
Pinto, Jorge Machado e Roberto Freire Seidl.
9
Vicente Licínio Cardoso, “O rio São Francisco: base física da unidade do
império”. SGRJ, Revista da SGRJ, Rio de Janeiro, t. 30, 1925, p. 38.
10
Mônica Pimenta Velloso, “Os intelectuais e a política cultural do Estado
Novo” In: Jorge Ferreira & Lucilia de A. Neves Delgado (orgs.), O tempo do
nacional-estatismo: do início da década de 1930 ao apogeu do Estado Novo.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003, p. 148.
11
General Waldomiro Pimentel. “Comentários sobre os projetos da redivisão
territorial política do Brasil”. Conferência proferida na sessão de 6 de abril de
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Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro: espaço de tradição
e de modernidade nas primeiras décadas do século XX.
1934. SGRJ, Revista da SGRJ. Rio de Janeiro, tomo 40, 1935, 1º semestre, p.
60-61.
12
SGRJ, “Grande Comissão Nacional de Redivisão Territorial e Localização da
Capital Federal”. Revista da Sociedade, Rio de Janeiro, t. 37, 1933, p.71.
13
José Wanderley de Araújo Pinho, “Fixação de imigrantes e assimilação do
imigrante estrangeiro”. Discurso pronunciado na Câmara dos Deputados em
sessão de 29 de junho de 1935. SGRJ, Revista da Sociedade de Geografia, Rio
de Janeiro, t. 40, 1935.
14
Angela de Castro Gomes, “O trabalhador brasileiro”. In: ______, Lúcia Lippi
Oliveir &, Mônica Pimenta Velloso, Estado Novo: ideologia e poder. Rio de
Janeiro: Zahar, 1982, p.162.
15
Cf. Ângela de Castro Gomes, “Cultura política e cultura histórica no Estado
Novo”. In: Martha Abreu, Rachel Soihet e Rebeca Contijo (orgs.), Cultura
política e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 49. A noção utilizada inspira-se na
definição de Ângela de Castro Gomes, ou seja, entendida como um sistema
de representações complexo e heterogêneo capaz de permitir a compreensão
dos sentidos que um determinado grupo atribui a uma dada realidade social,
em determinado momento e lugar.
16
IBGE, “Resolução n. 22 de 18 de julho de 1938”. Revista Brasileira de
Geografia, Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, v. 1,
n.3, jul./set., 1939, p. 143. A Resolução aprovada pela Assembléia Geral do
Conselho Nacional de Geografia integra a Sociedade de Geografia do Rio de
Janeiro, o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, a Academia Brasileira de
Ciências, o Clube de Engenharia e a Associação dos Geógrafos Brasileiros ao
sistema geográfico do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
17
A entidade fora criada em 1922 na Bélgica, com o propósito de incentivar o
estudo dos problemas geográficos; iniciar e coordenar investigações geográficas
que requeriam a cooperação internacional, por meio da discussão científica
e da publicação de obras, incitar a padronização e a compatibilidade de
métodos, nomenclaturas e simbologias empregadas na geografia e promover
encontros internacionais a cada três anos. O 1º Congresso Internacional de
Geografia realizou-se no Egito, em 1925, e o 2º na Inglaterra, em 1928.
18
Cf. José Luiz de Andrade Franco & José Augusto Drummond, “Alberto José
Sampaio: um botânico brasileiro e o seu programa de proteção à natureza”.
Varia História, Minas Gerais, UFMG, n. 33, 2005, p. 153.
19
Ver, Alberto José Sampaio, “Terceiro Congresso Internacional de Geografia”.
Anais da Academia Brasileira de Ciências. Rio de Janeiro: Academia Brasileira
das Ciências, t. 3, n. 4, 1931, p. 202.
20
Emmanuel De Martonne, “Resposta do professor”. Rio de Janeiro, Anais da
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Luciene Pereira Carris Cardoso
Academia Brasileira de Ciências, t. 6, n. 1, 1934, p. 41.
21
Cf. Luciene Pereira Carris Cardoso, Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro:
espelho das tradições progressistas (1910-1945), op. cit., p. 87-91.
22
Cf. Conselho Nacional de Geografia. “Resolução nº 22, de 18 de julho de
1838”. Revista Brasileira de Geografia. Rio de Janeiro: IBGE, v. 1, nº 3, p. 143,
jul. set. de 1939. Ver, também, SGRJ. Anais do 9º Congresso Brasileiro de
Geografia, Rio de Janeiro, Serviço Gráfico do IBGE, vol. 1, 1941, p. 64.
23
Ver Sérgio Luiz Nunes Pereira, Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro:
origens, obsessões e conflitos (1883-1944). Tese (Doutorado) - Programa de
Pós Graduação em Geografia, Universidade de São Paulo, 2002.
24
Além de Maria da Conceição, em 1944, foram admitidas as seguintes sócias:
Iolanda Rabelo de Sousa Ferreira, Judite Valadares Salgado, Maria de Lourdes
Jovita, Julieta de Aragão Silveira, Isa Adonias e Isabel D’ Aartayette Dias.
25
Ver, SBG, “Relatório das atividades da Sociedade durante o ano de 1945”.
Revista da SBG, Rio de Janeiro, t. 53, 1946, p. 130 e p. 139.
26
Cf. Mário Augusto Teixeira de Freitas, “Carta de (...) aos jornais do Brasil
sobre a Construção do Silogeu Brasileiro, 13 de julho de 1940”. Arquivo
Nacional, Coleção Mário Augusto Teixeira de Freitas, SG.D/1.828; Ver também,
“Decreto-Lei n. 2326 de 10 de junho de 1940”. Revista Brasileira de Geografia,
Rio de Janeiro, Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, v. 2, n.3, jul./set.,
1940, p. 504.
27
Vale acrescentar que Macedo Soares também participou de outras
associações científicas e culturais brasileiras e estrangeiras, a exemplo da
Academia Internacional de Diplomacia, da Ordem dos Advogados de São
Paulo, da Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnografia, do Liceu Literário
Português, da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Paulista de
Letras, do Instituto Histórico y Geográfico del Uruguai, da Academia Uruguaya
de Letras, da Academia Argentina de Letras, da Academia das Ciências de
Lisboa, da Real Academia de História de Portugal e da Sociedade de Geografia
de Lisboa, entre outras.
28
Enéas Martins Filho, “Resenha Biográfica”. IHGB, Revista do IHGB, Rio de
Janeiro, v. 279, abr./jun., 1968, p. 47.
29
SBG, “Relatório das atividades da Sociedade durante o ano de 1945”. Revista
da SBG, Rio de Janeiro, t. 53, 1946, p.133.
30
SBG, “Cursos de aperfeiçoamento para professores de geografia do ciclo
secundário”. Revista da SBG, Rio de Janeiro, 1946, t. 53, p.74.
31
As modificações foram realizadas nos anos de 1886, 1910, 1918, 1924, 1936
e 1940.
32
SBG, “Relatório das atividades da Sociedade durante o ano de 1945”. Revista
da SBG, Rio de Janeiro, t. 53, 1946, p.133.
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O homem, o papel e a estrela: de como o exército
revolucionário do povo escreveu aos argentinos
Marina Maria de Lira Rocha*
BREVE RELATO SOBRE O EXÉRCITO REVOLUCIONÁRIO NA ARGENTINA
Refletir sobre o Partido Revolucionário de los Trabajadores
- Ejército Revolucionário del Pueblo (PRT-ERP) é conjeturar
sobre políticas e práticas na América Latina dos anos 1970. As
guerrilhas e ideias de libertação pela guerra popular surgem
como estratégias à singularidade do território latino-americano,
mobilizando a denominada segunda geração castrista –
Tupamaros, no Uruguai, o MIR, no Chile, o ERP, na Argentina, etc.
– que reacendem a luta por liberdade, principalmente, a partir
da concepção de Che Guevara.1
Na Argentina, é o Cordobazo2 que guia a confirmação da
alternativa de alguns grupos políticos pela luta armada, como o
caso do PRT, partido este conformado, em 1965, por uma junção
do movimento indoamericanista FRIP e a corrente trotskista
Palabra Obrera. Em 1970, durante o V° Congresso do Partido,
uma fissura, ocasionada pela oposição entre duas vertentes
discordantes quanto os meios de promoção da revolução
socialista - El Combatiente (PRT-EC), ala que transitava entre a
concepção trotskista, guevarista e militarista, aproximando-se
do castrismo, e La Verdad (PRT-LV), orientada pelo trotskismo e
contrária à guerrilha – originou o PRT-ERP. O grupo EC instituiu,
então, o Exército Revolucionário, afirmando a necessidade do
proletariado de armar-se para contestar à violência capitalista:
[…]
nuestras
acciones
tienen
un
objetivo
principal:
despertar la consciencia popular y mostrar a todos los
patriotas el camino para acabar con la explotación, el
hambre, la miseria a que nuestro pueblo se ve sometido.3
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Estes “Desobedientes Armados”4 necessitavam, assim,
investir na propagação dos ideários e no convencimento da
população para integrar-se à luta política, seja em seu desempenho
legal, através do Partido e de suas frentes de mobilização, ou
clandestino, pelo Exército Revolucionário. Logo, o objeto de
análise deste trabalho são os impressos como vinculação entre
esta organização política e os argentinos, principalmente em um
período essencial de crise, entre junho de 1975 e março de 1976,
no qual se desempenha uma aprofundada disputa pelo apoio
da opinião pública.5 Um dos principais argumentos expostos,
na época, e utilizados por diversos contingentes nessa disputa
referia-se a violência como método de ofensiva ou repressão dos
movimentos políticos.
Após a morte de Perón6 , em julho de 1974, as associações
de luta armada argentinas tornaram-se mais combativas,
investindo em uma maior militarização, a fim de intensificar
suas ações contra o governo e acelerar a insurreição das massas.
Nesse momento, o ERP realiza diversas atividades para angariar
recursos à guerrilha, instalada em Tucumán, desde maio de 1974,
com a Companhia Jamón Rosa Jimenez, e propagar o movimento
junto à população, com assaltos a bancos, seqüestros, roubos
para redistribuição, tomadas de quartéis, ajusticiamentos, etc.
A fim de conter a refutação, o governo de Isabel Perón
aprofunda e oficializa a proposta de aniquilação dos “elementos
subversivos” presentes na sociedade. Em setembro de 1974,
cria a Lei Anti-subversiva, impondo penalidades às “atividades
subversivas em todas as suas manifestações”, a fim de promover
uma maior “segurança nacional”. Tal lei estabelecia prisões para
aqueles que alterassem com finalidade ideológica, por qualquer
meio, a ordem constitucional e a paz social da Nação; àqueles
que divulgassem e propagassem instruções com o objetivo
de doutrinamento; aos que tornassem público a apologia da
subversão; indivíduos que possuíssem, imprimissem, editassem,
distribuíssem ou subministrassem qualquer material impresso
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do povo escreveu aos argentinos.
ou gravado que propagava feitos, comunicações ou imagens das
condutas subversivas; aos que, sem autorização, possuíssem
meios de comunicação ou emblemas, insígnias ou distintivos
das Forças Armadas e organizações subversivas; aos membros
do conflito laboral que não cumprissem as determinações
de ilegalidade das greves; às pessoas que por qualquer
razão dissimulassem sua identidade; e aos responsáveis pela
comunicação que informassem ou propagassem feitos, imagens
ou comunicações das condutas subversivas.7
Declara-se, em novembro, o Estado de Sítio no país (cuja
duração perpetuou toda a Ditadura até 1983) sob a alegação de
que os feitos destes “elementos subversivos” se agravavam com
“ameaças à vida, à tranqüilidade e ao bem-estar de todos os lares
argentinos” e de que era dever do Estado Nacional “erradicar
expressões de uma barbárie patológica que havia desatado como
forma de plano terrorista e criminal.”8
No mesmo mês, estipulou-se à polícia funções de
perseguição imediata a delinqüentes ou suspeitos de delitos
graves, de realização de observações e vigilância, tal como
a qualificação de pessoas dedicadas a uma atividade que a
polícia precisaria prevenir ou reprimir, e a prisão daquelas com
antecedentes ou vida duvidosa, quando não identificadas.9
Esta legislação foi ampliada em setembro de 1975 na qual se
estabeleceu maiores funções às Direções Gerais dos serviços de
Segurança, de Investigações e de Informações.10
Assim, aprofundaram-se ações de repressão em pontos
específicos do país, principalmente a partir de intervenções
em sindicatos e universidades fundamentadas em decretos
governamentais.11 Em 5 de Fevereiro de 1975, as atuações
expandiram-se para o campo, levando à província de Tucumán
operações militares conjuntas as polícias federal e provincial
– Operativo Independencia – com o objetivo de erradicar a
subversão promovida pelo ERP,12 inaugurando a instituição de
Centros Clandestinos de Detenção.
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Mais três outros decretos são instituídos, em 6 de
outubro de 1975, nos quais se cria o Consejo de Seguridad
Interna presidido pela presidente, ministros e generais
das Forças Armadas. Ao conselho era designada a direção,
coordenação e execução de todos os esforços pela luta contra
a subversão, subordinando as instâncias de repressão para este
fundamento.13 Com a finalidade de por em prática o Conselho,
o Exército desenvolve uma diretriz para luta contra a subversão,
em outubro de 1975, que analisa a situação do inimigo, suas
estratégias e manifestações na Argentina. Neste sentido,
estabelece a missão e as prioridades de ações, dividindo o país
em zonas para operações, sendo Tucumán o grande alvo.
A repressão institucional foi alargada com a participação
de grupos clandestinos paramilitares, que se dedicavam ao
aniquilamento do “inimigo subversivo” utilizando-se de métodos
de extermínio e desaparecimento. Entre eles, o mais conhecido
é a Alianza Anticomunista Argentina (Triple A ou AAA), cujo líder
era o ministro de Bem-Estar Social do governo, López Rega; o
homem-chave, o chefe da Polícia Federal e oficial especializado
em contra-insurgência, Alberto Villar; e os integrantes, membros
do governo, das Forças Armadas e das polícias. A campanha
contra a subversão foi impulsionada também por diversas
organizações legais, dentre elas essencialmente empresas e
sindicatos de trabalhadores aliados ao governo, que divulgavam
a rejeição deste “mundo terrorista”.
No final de 1975, a guerrilha rural, que jamais havia obtido
o controle do território provincial tucumano, estava desarticulada,
as baixas no PRT-ERP aumentavam e a unidade do Partido em
torno de forças democráticas, através da Frente Antiimperialista
y por el Socialismo e do Movimiento Social de Base, tornavam-se
inoperáveis devido a repressão. O ERP, em 23 e 24 de dezembro
de 1975, intentou uma intervenção de assalto ao quartel de
Monte Chingolo e a tentativa de controle da zona sul de Buenos
Aires, que possuía mais de dois milhões de habitantes. Houve
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o fracasso da operação, pois foi descoberta, transformando a
derrota militar e a morte de diversos combatentes em derrota
política.
En los últimos meses empezamos a recibir un reflujo de
masas. Las huelgas y movilizaciones se fueron reduciendo.
La represión hizo cada vez más dura. Eso dificulta
enormemente las células del Partido en la ciudad.14
Em 19 de julho de 1976, em Villa Martelli, os membros
fundadores e parte da Direção Central do PRT, Mario Roberto
Santucho (Robi) e Benito Urteaga (Mariano), foram assassinados,
enquanto Domingo Menna, sequestrado e levado ao Centro de
Detenção Clandestino Campo de Mayo, onde desapareceu. Para
os elementos do PRT, depois do golpe militar permaneceu a
espera pelo risco, pelo medo ou pela morte.
O HOMEM COMBATENTE
Instrumento de formação de militantes de vanguarda,
El Combatiente foi um jornal criado em 1968, dirigido a
setores ativos politicamente e distribuído em clandestinidade,
excetuando os períodos de junho a setembro de 1973, no
qual, aproveitando a legalidade, foi vendido em vias públicas.
Era editado em impressões próprias do Partido, havendo uma
campanha de se chegar aos 10000 periódicos e melhorar a
repartição no país.
Este periódico publicava regularmente artigos afirmando
a vanguarda do Partido na luta revolucionária argentina,
explicando intervenções em outras realidades e justificando suas
ações armadas com casos concretos como a guerra do Vietnã,
a Revolução Russa, Chinesa, Cubana. Concomitantemente,
exaltava o heroísmo e os sacrifícios do povo para atingir o
socialismo, disseminando textos de Lênin, Che Guevara, Mao,
Ho Chi Min, entre outros.
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En este marco consideramos que el Partido Revolucionario de los
Trabajadores (PRT) surge como el Partido marxista-leninista de
combate que ha sabido, a través de una línea correcta, ligarse a
las masas, nutrirse de ellas y comenzar a gestar los estratégicos
instrumentos revolucionarios. El Ejército Revolucionario del Pueblo
(ERP) ha fortalecido las armas populares, logrando pasar a etapas
superiores de combate como son las tomas de cuarteles y la existencia
de la Compañía de Monte, hito histórico de la revolución socialista
en Argentina. Los revolucionarios debemos analizar rigurosamente
las diferencias que han impedido hasta hoy nuestra incorporación
a esta organización, encuadrando en ese análisis cuál es el rasgo
principal de la línea del PRT de su conducción y su programa.15
Diversos incisos propunham a moral do homem
combatente, condenando o individualismo e isolacionismo de
diversos outros movimentos, os desvios pequeno-burgueses de
alguns partidos, e a falta de democracia no país, recomendando
um modelo de nova moral para o novo homem. Nesta construção
da nova sociedade, rememorava diversas vezes El Combatiente a
necessidade do Partido e do Exército Revolucionário, remetendoos ao papel de vanguarda na luta política, canalizando o
potencial revolucionário e propagando as ideias socialistas para
impulsionar as massas:
Es tarea fundamental del presente fortalecer las perspectivas de
democratización en torno de un programa básico por la libertad
de los presos políticos, la derogación de la legislación represiva, la
eliminación del terrorismo de las Tres A y salarios dignos para los
trabajadores. […] es tarea primordial de los revolucionarios forjar y
fortalecer la unidad, creando un núcleo frentista proletario y popular
[…] Mantener e intensificar la lucha política y armada, hostigando al
enemigo para obligarlo a ceder. Multiplicar la difusión de las ideas
revolucionarias del Partido, llevando su línea a las masas en forma
intensa y variada. […] Nuestro Partido y nuestro Ejército Guerrillero
rebosantes del ardor y combatividad, pondrá todo de sí para canalizar
con efectividad el inmenso potencial revolucionario de las masas,
pondrán todo de sí por estar a la altura de las circunstancias.16
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do povo escreveu aos argentinos.
O PRT coloca-se, portanto, como impulsionador e
multiplicador da verdadeira luta política revolucionária (“as
ideias revolucionárias do Partido”) em oposição às distintas
posições políticas democráticas ou não. Denuncia a repressão e
a violência promovida por ela como terrorista tornando inverso
o discurso oficial de “luta contra a subversão”. Assim, justifica
a intensificação da luta política e armada que teria como fim
“obrigar o inimigo a ceder”, um inimigo identificado como Trés
A, Forças Armadas e governo (através da legislação repressiva), e
dirigindo as ideias revolucionárias da massa.
O PAPEL DAS SOLICITADAS
As solicitadas são espaços para comunicados comprados
ou obtidos por relações políticas em periódicos de lógica
comercial, que propagam discursos e discussões abertas entre
organizações ou pessoas físicas. Estão constantemente se
dirigindo à opinião pública, desenvolvendo seus argumentos,
com o objetivo de convencer o destinatário da mensagem.
Elas devem ser analisadas, portanto, diferentemente
do conteúdo e da linha editorial do jornal e como forma de
expressão mais ampla das organizações publicadoras que se
dirigiam a um público nem sempre participante da atividade
política que é movida. Este é o caso dos comunicados publicados
pela Frente Antiimperialista y por el Socialismo (FAS) encontrados
no periódico La Opinión.17
A referida Frente Popular, criada em 1973, na cidade
de Villa Luján, em Tucumán, era composta inicialmente pelos
movimentos da Frente Revolucionaria Peronista, Ejército
Libertacion Nacional, Partido Intransigente, Partido Comunista
Marxista Leninista, Partido Socialista de los Trabajadores,
Politica Obrera, Peronismo de Base, Grupo Espartaco,
Orientación Socialista, El Obrero, e PRT-ERP. Seu programa
continha demandas antiimperialistas, democráticas e socialistas,
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propondo, principalmente, o rompimento dos compromissos e
pactos econômicos, políticos e militares feitos com o Império
Norte Americano.
Com a obtenção, contudo, por membros do PRT de sua
liderança e as diferenças entre este Partido e outros integrantes,
foram delineando-se atitudes sectárias e reconhecendo-se na
FAS as propostas do PRT-ERP. Este, por sua vez, utilizava-a como
estrutura legal, ferramenta política do partido, que o permitia
utilizar os espaços democráticos.18 Segundo Antognazzi, a frente
foi um acionar político menos conhecido, conjuntamente ao
Movimiento Social de Base de 1974.19
Durante o governo de Isabel, a FAS, já liderada pelo
PRT-ERP, passa a descrever o peronismo como entreguista e
repressivo, afirmando sua luta pela democracia e contra a classe
exploradora.20 Desta forma, a Frente publica no La Opinión, em
duas oportunidades, durante o período estudado: 13 de agosto
e 22 de outubro de 1975.21 Em ambas solicitadas explicitam suas
concepções sobre a democracia, associando o governo e ações
repressivas à arbitrariedade e à necessidade de uma frente de
massa para combatê-las.
La Argentina vive momentos de importantes definiciones. Las voces
oscuras de la reacción, las voces de los monopolios imperialistas, claman
en todas partes por más y más represión, exigen que no se aumenten
los salarios de los trabajadores y utilizan apocalípticas invocaciones o
derramar sangre de argentinos reincidiendo en la insensata amenaza
de militarizar la vida nacional. […] Las Tres A y las bandas asesinas, que
se pensó quedarían en el triste recuerdo de lo que nunca debió existir
en el país, pese el escandaloso retiro de su ex jefe continúan gozando de
impunidad mientras esparcen su saña criminal por toda la República. No
hay democracia en un país donde hay una violencia protegida. […] No
hay democracia donde un delegado obrero no puede reclamar por las
reivindicaciones salariales y laborales sin ser salvajemente asesinado.
Recientemente cegaron la vida de un político y abogado radical rosarino,
una pareja de médicos en Córdoba, a una joven embarazada en la
Federación Juvenil Comunista y asesinaron con bombas destruyendo y
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do povo escreveu aos argentinos.
saqueando domicilios y sedes gremiales, como la casa del Maestro en
Rosario y sembrando cadáveres por todo el país. No hay democracia
cuando la prensa, la cultura y el arte se deben ejercer bajo amenazas
constantes y atentados. No hay democracia cuando toda una familia es
asesinada por haber tenido un hijo guerrillero hace tres años. No hay
democracia cuando miles de argentinos están privados de su libertad
sin que juez alguno haya determinado sus condenas y padeciendo los
sistemas carcelarios más inhumanos y las torturas más crueles que se
tenga conocimiento en nuestra historia. […] Todo el espejismo represivo
en el que se crea como posible salida, sobre la base de desconocer los
derechos humanos y negar la democracia es la derrota segura de quien
lo intenten. Comenzaron reprimiendo a unos y terminaron reprimiendo
a todos, y por ella, tendrán la respuesta de todos. […] Ningún
argentino cualquiera sea su condición ha de seguir por lo desfiladero
suicida a que pretenden conducirnos los mentores de la represión.22
A Frente defende, então, que a violência dos monopólios
imperialistas é indiscriminada e injusta, pois não promove nada
além da repressão, da queda do bem-estar social, da militarização
da vida dos indivíduos e da quebra da legalidade democrática. Ao
promover o outro político como “bandas assassinas”, praticantes
de uma “violência protegida”, “inumanos”, “torturadores”,
“desconhecedores dos direitos humanos” e “negadores da
democracia”, legitimam sua própria luta política, instigando uma
resposta. Vê-se, então, a inversão do discurso de “terrorismo”,
passando o terror a ser praticado por aqueles que se diriam
protetores da sociedade, enquanto os contingentes reprimidos
por serem “subversivos” (sindicalistas, comunistas, guerrilheiros),
vítimas desse “derramamento de sangue”.
A ESTRELA VERMELHA NO UNIVERSO REVOLUCIONÁRIO
O Estrella Roja, instrumento oficial do ERP para
propagandear a Revolução e vincular a guerrilha ao povo, foi
publicado entre os anos 1970 e 1977 na Argentina. O jornal era
clandestinamente distribuído nas portas das fábricas e nas ruas
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das cidades pelos militantes, como parte das tarefas que lhes
eram apontadas, com exceção do período de legalidade entre
junho e setembro de 1973.23 Suas tiragens e distribuição eram
proporcionadas pelo Partido, com grandes falhas na regularidade
da publicação.24
O jornal possuía a clara posição de condução ao apoio da
população para o referido Exército, como personagem coletivo
principal da luta pela Revolução Socialista na Argentina. Neste
sentido, o Estrella Roja reforça em suas reportagens a campanha
de vinculação da imagem do inimigo aos agentes repressores que
ora são as Forças Armadas, ora o patrão e, por vez, o imperialismo
norte-americano – setores estes nitidamente comportados
dentro da luta de classes.
A população é estimulada, pois, em suas matérias não
assinadas, a ingressar na luta intercontinental contra o inimigo
ou apoiar àqueles que pegavam em armas para libertá-los.
Desta forma, o guerrilheiro era exposto com a imagem do
homem jovem, praticante da justiça social e detentor da moral
revolucionária. Homens que haviam lutado pela libertação da
América e guerrilhas exteriores eram anunciados pelo jornal,
criando uma imagem do guerrilheiro heróico e valorizando o
emblema “Vencer o morir por la Argentina”.
Esta imagem integralizava a luta e mobilizava a
publicação, cujo incentivo ao ingresso na luta armada nem
sempre possibilitava uma compreensão da política proposta
pelo Partido.25 Há, por exemplo, objetos de publicação com estilo
passo-a-passo e figuras explicativas que ensinavam a população a
construir coquetéis molotovs ou armamentos de variados portes
sem explicar o porquê de realizá-los.
Suas reportagens descreviam também operações
realizadas com sucesso e distribuições ao povo de materiais
apropriados pelos guerrilheiros, que confirmavam a proposta
de humanidade do Exército Revolucionário. Tal ideia era
reafirmada, ainda, pelas publicações de cartas na seção
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do povo escreveu aos argentinos.
Cartas desde el Monte, enviadas por indivíduos que lutavam
na guerrilha tucumana enaltecendo a luta e a vida guerrilheira.
Havia ainda cartas escritas por moradores da região agradecendo
a existência da guerrilha e seus homens que lutavam contra a
opressão ou relatando a relação amistosa entre eles e o povo, em
contraposição ao ódio pelo inimigo que lhes roubava, torturava e
ameaçava.
Allí donde la camarilla de delincuentes en el poder ha fracasado, los
mandos castrenses, olvidando las derrotas sufridas recientemente
a manos del pueblo, creen poder triunfar. Pero frente a ellos y sus
siniestros planes se levantan hoy en nuestra Patria […] la fuerza
revolucionaria de la guerrilla y de las masas argentinas movilizadas.26
Sob a analogia de “delinquentes fracassados com planos
sinistros para o país”, o Estrella Roja propalava o caráter contrarevolucionário do governo peronista, dos militares e daqueles que
o apoiavam, afirmando haver uma institucionalização da violência.
Afiançando que “Ao terror se respondia com terror”, contestava
os crimes contra o povo com a execução de empresários,
funcionários do governo, burocratas sindicais, oficiais das Forças
Armadas e da polícia, e juízes; assaltos a quartéis para obtenção
de armamentos e seqüestros de pessoas para angariar fundos à
guerrilha.27 Objetando violentamente, contudo fundamentados
na justiça, diferencia os meios propalados dos fins propostos.
CONCLUSÃO: COMO PRT-ERP ESCREVEU AOS ARGENTINOS
Frente a la mentira sistemática y reaccionaria utilizada por el
enemigo para ocultar sus derrotas y evitar que nuestro pueblo
tome conocimiento de los avances de la guerrilla, debemos
desplegar más enérgica y masiva propaganda revolucionaria
[…] haciendo circular audazmente la prensa clandestina.28
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Concebe-se nos três momentos analisados a proposta do
PRT-ERP em pretender figurar-se como dirigente no processo
revolucionário, com o papel de realizar a guerrilha e promover
a educação e a organização das massas. Educar e conscientizar a
população eram, pois, tarefas centrais do partido para vencer a
guerra contra a burguesia e, neste sentido, a produção de jornais
e a publicação de comunicados eram os componentes que
tornavam público o Partido e o Exército, ambos clandestinos por
impetrar a natureza bárbara prevista na Lei Anti-Subversiva.
O homem combatente era instruído pelo jornal El
Combatiente e suas análises teóricas mais aprofundadas, que
interpretavam a situação do país a partir da perspectiva do
Partido. Neste sentido, trazia textos mais extensos e reportagens
sobre revoluções socialistas em todo o mundo. Além disso,
as análises políticas feitas no Editorial, seja por Urteaga ou
Santucho, explicavam a situação contemporânea e incitavam
aos membros do PRT perceber-se enquanto vanguarda da luta
socialista no país.
Àqueles leitores, que desnecessariamente estavam
ligados ao Partido, o PRT-ERP utilizou sua ferramenta legal
(FAS) para assinar textos teoricamente menos densos, contudo,
explicativos e alusivos a fatos contemporâneos. Estes textos, não
remissivos explicitamente às tarefas e ações do Partido, podem
ser explicados pelo caráter de proibição de circulação das
publicações de imagens, feitos ou comunicações das “condutas
subversiva”, tácito no texto da Legislação.
Utiliza-se, entretanto, de um vocabulário em disputa
na época, como democracia, violência, liberdade, direitos
humanos, e etc., para marcar a posição sem propagandear suas
ações, mostrando-se ciente do momento decisivo que se vivia na
época. Assim, descreve situações presentes no país, indicando a
face de uma violência injusta e cruel, em oposição à democracia
e liberdade defendida pelo Partido.
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O homem, o papel e a estrela: de como o exército revolucionário
do povo escreveu aos argentinos.
Com o Estrella Roja, criava-se o imaginário da guerrilha:
heróis lutando pelo povo em uma guerra que se dava em
toda América Latina. As reportagens, menores, algumas com
fotografias outras com desenhos ou listas de apropriações,
levavam a imagem da moralização e justiça do guerrilheiro e da
luta que o exército revolucionário estava travando. Assim, a forma
de escrita recorria constantemente a vocabulários militares, que
incitavam a visão nítida da dicotomia entre nós (bem) versus eles
(mal/inimigos).
Todas as três publicações traziam a concepção da
violência como um meio importante para a vitória da revolução.
Entretanto, vivenciada enquanto um fim, como no caso dos
“repressores do povo”, ou como um meio de manter o sistema
capitalista – originalmente violento – é observado por ato injusto
e desumano, tomando as propostas da luta antisubversiva ao
revés - o inimigo perigoso não seria o perseguido, mas aqueles
que propunham a perseguição.
Grupos sociais distintos utilizam-se das mesmas palavras
para designar elementos diferentes, criando significações
dialéticas para um mesmo termo, já que o uso destes remetese sempre a refração da atividade ideológica.29 É neste sentido
que se analisa a utilização de termos semelhantes, entretanto
com significações opostas, que ora propagam a transformação
do homem e do coletivo social, ora convencem das condições
ideais sob o capitalismo. Portanto, refletir sobre os discursos
da Argentina sob o governo de Isabel Perón, em pleno contexto
de disputas, é elaborar a dialética dos signos escritos, como
materiais para a constituição da ideologia, e verificar que neles
se refratam as lutas reais e contemporâneas.
Notas e Referências
* Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da UFF. Pesquisa
financiada pela CAPES.
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SANTUCHO, Julio. Los últimos Guevaristas: la guerrilla marxista en la
Argentina. Buenos Aires: Artes Gráficas, 2005.
2
Manifestações de massa ocorridas em 1969, na cidade de Córdoba, contra
políticas econômicas tomadas pelo governo de Onganía. Tais atividades de
luta tiveram como formas de ação o combate direto e as barricadas.
3
ERP, “Resoluciones del V Congreso del PRT”, El Combatiente, 1973.
4
Termo utilizado por Pilar Calveiro para designar grupos que promoviam
guerrilhas urbanas ou rurais na Argentina. Ver: CALVEIRO, Pilar. Política e/o
violência: una aproximación a la política de los 70. Buenos Aires: Grupo
editorial Norma, 2005.
5
Em junho de 1975, ocorrem diversas manifestações contra o governo
peronista e suas políticas econômicas – denominado Rodrigazo – que
culminam na crise social, finalizando-se com o golpe de março 1976.
6
O governo é assumido por María Estela Martínez de Perón (Isabel Perón),
como “herdeira política” do Partido Justicialista e do Peronismo.
7
Lei N°20840 de 30 de setembro de 1974.
8
Decreto N°1368 de 7 de novembro de 1974.
9
Lei N° 8268 de 13 de Novembro de 1974.
10
Lei N° 9102 de 12 de setembro de 1975.
11
Houve intervenções por decretos, por exemplo, nas universidades de La
Plata, Salta, Córdoba, Entre Rios, San Juan e Buenos Aires.
12
Decreto N°261 de 5 de fevereiro de 1975.
13
Decretos N°2770; 2771 e 2772 de 6 de outubro de 1975.
14
Parte da conversa que Julio Santucho teve com seu irmão Mario Roberto
em 31 de dezembro de 1975. SANTUCHO, Julio. Op. Cit. pp.199-200
15
PRT, “Documento de incorporación al PRT de las FAL Columna Inti Peredo
2”, El Combatiente, 02/06/1975.
16
PRT, “Ante las posibilidades democráticas forjar y fortalecer la unidad”, El
Combatiente, 21/07/1975.
17
Fundado em 1971 pelo jornalista ucraniano Jacobo Timerman, teve
duração de 6 anos. Era um periódico diário, com exceção da segunda-feira,
voltado para a classe média, principalmente, jovens universitários. Em 1977,
foi fechado pela ditadura por praticar “terrorismo periodístico”.
18
FLORES, Sebastián Levia. Teoría y páactica del poder popular: los casos
de Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR, Chile, 1970-1973) y Partido
Revolucionario de los trabajadores – Ejercito Revolucionario del Pueblo (PRTERP, Argentina, 1973-1976). 2007. 237 f. Tese (Mestrado em História da
América). Universidad Santiago del Chile, Santiago del Chile. (pp.207-216)
19
ANTOGNAZZI, Alicia. Op. Cit.
20
FLORES, Sebastián Levia. Op. Cit.
1
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O homem, o papel e a estrela: de como o exército revolucionário
do povo escreveu aos argentinos.
Em 16 de agosto houve um enfrentamento entre ERP e Exército na
localidade de Las Mesadas, e em 17 de outubro, o ERP emboscou um pelotão
em atividades de patrulhagem nas proximidades de Los Sosas. Não há,
entretanto, indicações nas solicitadas dessas operações.
22
FAS, “Sin democracia no habrá pacificación”. Solicitada no La Opinión em
22/Outubro/1975. p.21.
23
Os exemplares trabalhados tratam-se da edição feita, posteriormente, pela
INFOBAE e que se encontram na Biblioteca Nacional de Buenos Aires.
24
SANTUCHO, Julio. Op. Cit.
25
POZZI, Pablo. Histórias del PRT-ERP II. Entrevistas con Humberto Tumini.
Buenos Aires: Imago Mundi, 2008.
26
ERP, “Ante un nuevo intento golpista”, Estrella Roja, 29/12/75.
27
Um estudo completo sobre os ajusticiamento foi feito por Vera carnovale,
intitulado “En la mira perretista: las ejecuciones del largo brazo de la justicia
popular”.
28
ERP, “Generalización de la guerra revolucionaria”, Estrella Roja,
17/11/1975.
29
BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC,
1981.
21
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­ Ordem Beneditina e o Governo:
A
Acordos e Conflitos na Corte Imperial
Paulo Henrique Silva Pacheco*
Em 1581 a Ordem de São Bento chegou ao Brasil,
expandindo-se por diversas capitanias. Até o século XVIII essa
ordem regular possuía conventos na Bahia (1581), Espírito Santo
(1589), Rio de Janeiro (1590), Olinda (1596), Parahíba do Norte
(1596), São Paulo (1598) e Brotas (1670). Esses mosteiros eram
administrados de forma independente pelos abades locais,
estando subordinados a um superior geral, também chamado
por provincial, que residia no mosteiro da Bahia, instituído como
“cabeça”. Entretanto, a administração do abade geral respondia
diretamente as intenções da Congregação Portuguesa e por isso
o Breve Apostólico de 1612 determinou que o provincial “teria
todas as regalias de abade sem o ser de abadia alguma”1.
No Rio de Janeiro a Ordem de São Bento adquiriu
diversas propriedades. Inicialmente, a maior parte de suas
aquisições foram adquiridas por meio de verbas testamentárias,
como capelas, casas, e terras. A Ordem possuiu as chamadas
“propriedades rúticas”, distribuídas nas regiões do recôncavo
da Guanabara, Inhumerim e Iguaçú, em Campo Grande, na Ilha
Grande e Angra dos Reis, em Cabo Frio, Maricá, Campos Novos,
Camorim, Ilha do Governador e Pasto de São Domingos (hoje
Niterói).
As propriedades rústicas dos beneditinos tiveram como
objetivo suprir as necessidades materiais e econômicas da
Ordem, o que contribuiu para torná-la mais independente da
Congregação Portuguesa. A construção de engenhos, sítios
e fazendas proveram os monges de recursos financeiros que
possibilitaram, além das várias reformas realizadas no mosteiro
da cidade do Rio de Janeiro, aumentar ainda mais o seu território.
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Tais rendimentos provinham da produção de açúcar, arroz, farinha
de mandioca, aguardente, tijolo, criação de gado e também do
arrendamento de terras.
Todo esse ordenamento monástico foi transformado a
partir das medidas aplicadas pelo governo português às ordens
religiosas brasileiras. Vale considerar que, a conquista econômica
e o grande número de monges nos claustros durante o século XVIII
proporcionaram certa autonomia política a essas instituições. As
aquisições territoriais, a prestação de serviços à população e a
regulamentação de algumas ações sociais atribuíram à Igreja
a possibilidade de executar um poder paralelo ao do Estado.
Neste caso, coube à administração do ministro Sebastião José
Carvalho e Mello (futuro Marquês de Pombal) intervir no poder
eclesiástico.
A partir das medidas impostas ao longo da segunda
metade do século XVIII é que analiso a relação estabelecida
entre o mosteiro de São Bento e o governo ao longo do século
XIX. Uma época de desordem para a organização beneditina.
Uma crise para além do século XVIII
Durante o século XVIII a conquista econômica e o grande
número de monges nos claustros brasileiros proporcionaram uma
autonomia política às ordens religiosas. As aquisições territoriais,
a prestação de serviços à população e a regulamentação de
algumas ações sociais atribuíram à Igreja a possibilidade de
executar um poder paralelo ao do Estado2. Neste caso, coube
à Coroa intervir no poder eclesiástico. As disposições aplicadas
visavam restringir a participação dos religiosos na jurisdição
administrativa do governo, a curto e a longo prazo. O exemplo disso
foi a expulsão da Companhia de Jesus (cuja consequência exigiu
uma ampla reforma religiosa e educacional), a subordinação do
Tribunal da Santa Inquisição ao Estado, as várias tentativas para
obter o controle das propriedades eclesiásticas e a proibição da
renovação dos claustros.
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A Ordem Beneditina e o Governo: acordos e conflitos na Corte Imperial.
Essa última medida acarretou na escassez de religiosos e
é a partir dela que estudo o início de uma série de determinações
que condicionaram vários acontecimentos descritos em alguns
registros e outras produções monásticas como desfavoráveis
ao cotidiano das propriedades beneditinas na Corte Imperial.
Para tratar desse assunto, inicialmente trabalhei com as Atas
Capitulares e com uma crônica publicada em 1879, produzida
por Benjamim Flanklim Ramiz Galvão.
O Capítulo Geral era a assembleia de dignitários
eclesiásticos que tratavam dos assuntos referentes à organização
e a unificação dos mosteiros. A partir de 1829, dois anos após a
constituição da Congregação Beneditina do Brasil, essa reunião
era formada apenas a um superior, um abade geral, também
eleito nessa reunião. Os resultados dessas assembleias eram as
Atas dos Capítulos Gerais e das Juntas Capitulares, mantidas na
Abadia de São Sebastião da Bahia e encaminhadas aos mosteiros,
onde cada Secretário deveria fazer uma cópia.
Manda o presente Capítulo, em conformidade do que determinou o
passado, que o Secretário mande tirar duas cópias das Atas do Capítulo
Geral, um que mandará para o Rio de Janeiro, que depois de escriturada
no Livro competente remeterá ao mais vizinho, este fará o mesmo, e o
passará a outro Mosteiro, e assim por diante a última Presidência; outra
mandará para Pernambuco, que fará o mesmo, que fica determinado3.
O objetivo desse “regulamento capitular” foi o de
registrar as ações do governo geral da Congregação, o regimento
interno pertinente a situação de cada mosteiro, “as eleições,
tratarem e resolverem [de] tudo o que [for para o] bem do
regime e aumento”4 da Congregação. Os assuntos tratados
foram distribuídos por sessões, no primeiro momento ocorria
as eleições e uma sindicância para averiguar se o monge estava
ou não hábil a ocupar tal função. Em seguida, era realizada a
leitura dos Estados, relatórios trienais realizados ao final de cada
governo ao qual resumia a contabilidade geral dos mosteiros e
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das suas propriedades rústicas, do Guião do Estado e a eleição de
cinco Definidores para então ser tratado das questões relativas
ao espiritual e temporal de toda a Congregação.
Uma fonte que possibilita uma introdução ao assunto
da escassez de religiosos, assunto que será tratado no decorrer
desse artigo, nos claustros beneditinos é a publicação do Dr.
Benjamim Franklin Ramiz Galvão5, Aponctamentos Históricos
sobre a Ordem Benedictina em Geral6. Dividida em duas partes,
a obra se dedicou à Ordem de São Bento instalada no Brasil. No
entanto, ainda não encontrei nenhuma informação que explique
a relação do autor com o mosteiro para redigir essa obra, a
princípio, tão particular aos interesses de um grupo religioso.
A primeira parte apresenta uma biografia do patriarca
Bento de Núrcia, durante a construção e instituição da Regra
Beneditina a partir do desenvolvimento da vida monacal na
Europa. A segunda e que mais nos interessa aqui, está dividida
em duas seções, ambas tratando do Mosteiro de Nossa Senhora
de Monserrate, no Rio de Janeiro. A divisão proposta por Ramiz
Galvão não é cronológica, mas pautada pelos “primeiros sinais
de animosidade contra as ordens regulares em Portugal.”7A dita
“animosidade” pode ser entendida como as medidas restritivas
que tinham como objetivo controlar o poder exercido por
essas instituições. Essa segunda seção trata das consequências
das medidas aplicadas no século XVIII e das novas relações
estabelecidas entre a Ordem e o Governo Imperial, no período
de 1808 a 1869. A narrativa utilizada parte de um sentimento
escatológico para com o cotidiano monástico, no qual identifiquei
que a publicação de Ramiz Galvão atuou como uma reivindicação
para a situação da Ordem, denunciando o constante interesse do
governo sobre os bens dos beneditinos.
O fim do chamado período pombalino não possibilitou
a completa revogação da medida que restringiu a entrada de
noviços nos claustros brasileiros, como esperavam os religiosos.
Ao assumir o trono de Portugal em 1777 D. Maria I, revogou este
e alguns outros avisos instituídos.
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A Ordem Beneditina e o Governo: acordos e conflitos na Corte Imperial.
Em 1780, pela assinatura de um decreto, entraram os
primeiros novatos após a interdição. Uma “conquista”, na visão
dos religiosos, que não passou de 1789, quando foi instituída
a Junta do Exame do Estado Atual e Melhoramento Temporal
das Ordens Regulares. Esta Junta, que deveria se encarregar de
melhorar o desempenho das ordens diante da nova organização
do Estado e da sociedade, “alimentou a crítica de seus detratores
que a acusavam de se autoperpetuar, quando tinha sido criada
como comissão temporária, e de se imiscuir em matérias que
não eram da sua alçada.”8.
Laurinda Abreu, professora da Universidade de Évora,
cuja produção acadêmica restringe-se na analise social, política e
religiosa do século XVIII, trabalhou com o Resumo das consultas
especiaes da Junta (sic). Esta fonte caracteriza-se por ser uma
síntese, um relatório, da Junta que avaliava o estado temporal das
ordens e propunha soluções para a sua sobrevivência. Segundo a
pesquisadora, em 1834 um plano geral de reestruturação previu
a
redução dos encargos pios e a substituição dos dotes por
prestações regulares, passando a exercer um controle direto sobre
os religiosos, nomeadamente em relação à entrada de noviços,
aos processos de secularização e às estadas fora dos conventos.9
Tais medidas acarretaram na “racionalização de recursos,
a contenção nos gastos, o equilíbrio do número de casas e de
religiosos que as ocupava, a moralização de hábitos e o respeito
por compromissos sociais assumidos, nomeadamente em relação
ao ensino”.10
A Junta atuou de 1789 a 1834. Com o seu processo de
extinção, entre os anos de 1829 a 1834, a medida foi novamente
revogada voltando a ser autorizado o ingresso de noviços. A razão
indicada por Ramiz Galvão para esse ato foi o reconhecimento da
Coroa para com os serviços prestados pela Ordem beneditina,
durante as invasões francesas em Portugal (1807-1810).
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Segundo a historiadora Maria Rachel Fróes da Fonseca dos
Santos, houve um intento do Governo imperial para a formação
de um clero nacional. Para tal, havia sido determinado que “as
ordens religiosas deveriam se desvincular de suas ‘matrizes’
europeias, para assim poderem permanecer no país”.11 Para
os beneditinos essa medida não traria desvantagens por duas
razões: esta separação já havia sido objetivada em 1656, quando
alguns monges da Província expuseram que as suas necessidades
distinguiam-se das que envolviam o Reino. Por conseguinte, com
o direito de se autogovernarem, os religiosos acreditavam no
restabelecimento do número de monges nos seus claustros.
A instituição da Congregação Beneditina do Brasil
e a crise nos claustros
Com a iniciativa de se separar da Congregação Beneditina
de Portugal é que, a partir de 1826, os monges brasileiros
iniciaram o processo de separação. O primeiro passo foi o envio
de uma representação pelo então abade do Mosteiro do Rio de
Janeiro, fr. Francisco de Sancta Thereza Machado, ao governo
de D. Pedro I. Após o seu falecimento o sucessor, fr. Antônio
do Carmo, reiterou a sua representação, em 1825, e por esse
motivo lhe foi atribuído a organização da ordem no Brasil. Nessa
representação identifiquei um discurso que valorizou a tradição
dessa ordem no território brasileiro, ao mesmo tempo em que
apontava para a sua expansão e a legitimidade dos seus bens,
assim como a importância deles para a economia do Estado e
para a sociedade.
Com o objetivo de organizar os claustros e se separarem
das determinações portuguesas, os monges beneditinos
construíram vários argumentos que atendessem aos seus
interesses.
Debaixo de tão eficazes auspícios, intentando o suplicante
preencher aqueles fins louváveis de seu santo instituto,
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A Ordem Beneditina e o Governo: acordos e conflitos na Corte Imperial.
sempre protegido pelos impetrantes, considera necessário
organizar o governo claustral no Brasil, de um modo análogo
as atuais circunstâncias da independência deste Império, e
desmembrando da congregação de Portugal a que era sujeita.12
O requerimento só foi entregue em setembro de 1826.
Em virtude da mudança do Ministro de Estrangeiros, fr. Antonio
Carmo dirigiu outra representação, em fevereiro de 1827,
pedindo ao Marquês de Queluz que fosse dado andamento a
liberação da bula. Meses depois o Governo Imperial passou a
tratar das proposições alegadas pelos religiosos, ocasião em que
o pedido foi entregue ao Ministro do Brasil, Francisco Correa
Vidigal, e autorizado junto a Santa Sé, em Roma através da bula
Inter Gravíssima Curas, em 7 de junho de 1827. Esta autorização
somente chegou às mãos do frei requerente em novembro do
mesmo ano, acompanhado do Beneplácito Imperial.
O Beneplácito, autorização do Império para a execução da
bula, dava plenos direitos ao exercício das atividades religiosas
dessa ordem nos 11 conventos existentes. Contudo, não foi
consentido gratuitamente, os monges deveriam arcar com o valor
de 504$401 réis, relativo às despesas do Ministro em Roma, para
a expedição do documento.
Nós, portanto, considerando a distância dos lugares, havendo o
Oceano Atlântico de permeio, desejando prover ao bem da dita
Ordem e Congregação, e condescender aos desejos do egregio
Imperador, em virtude da ciência certa de madura deliberação e do
pleno poder Apostólico, feita primeiro a absoluta desmembração
e separação da Congregação Lusitana da O. S. B., erigimos e
constituímos pela presente Carta a nova Congregação da mesma
Ordem de S. Bento, a chamar-se dora avante brasileira, havendo
de formar-se de todos e quaisquer mosteiros do Império brasileiro,
com as mesmas leis, direitos privilégios e prerrogativas, contidas e
expressas na mencionada Carta do Papa Clemente X, com a inteira
faculdade de celebrar Capítulos Gerais a bem não somente do
governo geral da Congregação, como também da disciplina interna
espiritual, e da administração financeira dos mosteiros.13 (Grifo meu)
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A nova Congregação Beneditina no Brasil contou com 7
abadias e 4 presidências, respectivamente:
- Abadia de S. Sebastião da cidade do Salvador;
- Abadia de Nossa Senhora do Monserrate do Rio de Janeiro;
- Abadia de Olinda (Pernambuco);
- Abadia da Paraíba;
- Abadia de Nossa Senhora Assunção da cidade de São Paulo;
- Abadia de Nossa Senhora da Graça (Bahia);
- Abadia de Nossa Senhora das Brotas, vizinha da Vila de S.
Francisco na mesma região;
- Mosteiro da Vila de Santos;
- Mosteiro em Sorocaba;
- Mosteiro em Jundiaí;
- Outro Mosteiro na Paraíba.
Todo esse investimento serviu para atender apenas um
dos objetivos mencionados, a conquista de uma administração
desvinculada dos interesses da Congregação Portuguesa. Quanto
ao segundo, de regularizar os claustros, foi mais uma frustração.
As relações estabelecidas entre a Ordem de São Bento e o
Governo Imperial tiveram como intermediários os religiosos
do Mosteiro do Rio de Janeiro. Além do destaque econômico,
nos áureos tempos das propriedades rústicas, essas transações
políticas o elevaram, mediante a aprovação em Capítulo a ter “o
segundo lugar entre os mais da Congregação”14.
Ao abade geral foi entregue o mandamento para execução
da bula de separação, em 15 de novembro de 1827. Nele, o
Imperador instituiu a nova Congregação Brasileira e exigiu sua
formalização por meio de um regulamento capitular:
Sua Magestade o Imperador foi servido mandar-nos pela Secretaria
de Estado dos da justiça e Eclesiásticos, munida com o seu Imperial
Beneplácito, uma Bulla do Sumo Pontífice Leão XII, ora Presidente na
Santa Igreja Católica, pela qual Sua Santidade houve por bem separar
esta nossa antiga Província Beneditina da Congregação de S. Bento
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A Ordem Beneditina e o Governo: acordos e conflitos na Corte Imperial.
de Tibães, criando nela a nova Congregação de S. Bento do Brasil, o
que tudo será presente a Vossa Reverendíssima, logo que se imprima a
referida Bulla, e Beneplácito Imperial. (...) e formalizem um regulamento
capitular, análogo ao nosso estado presente para nos dirigirmos na
celebração deste primeiro Capítulo Geral, (...).15 (sic) (Grifos meu)
No primeiro Capítulo Geral, em junho de 1829, a
assembleia contou com um número reduzido de monges,
portanto, houve a preocupação quando a distribuição das tarefas.
A reunião iniciava-se com a escolha do Relator, responsável
pela produção e distribuição da ata capitular. Em seguida, era
promovida uma eleição entre os capitulares, para a atribuição
das funções, para depois haver uma sindicância para saber o grau
da virtude dos monges. Considerando a falta de escolha para as
tarefas, os monges aboliram essa medida: “(...) a nossa lei proíbe
eleger Relator todo o Vogal sujeito a sindicância e ponderando
o Capítulo, a falta de Monges hábeis para este lugar, dispensou
unanimemente este ponto da Lei.”16
Na falta de administradores para os seus bens localizados nas
áreas rurais, a Ordem optou por vendê-las. A justificativa também
estava embasada pelo alto custo da manutenção das fazendas e
as muitas ameaças de invasões, feitas por produtores leigos, além
da infidelidade dos procuradores das abadias. Questões que não
respondiam ao fim principal da comunidade monástica. A intenção
dos capitulares era reduzir as “rendas incertas e falíveis a um produto
certo, ou ao menos aproximado”, que desse aos prelados “meios
fáceis de sustentar a sua comunidade com fartura, e aumentar os
rendimentos dos mosteiros com novas edificações, ou reedificações
de prédios urbanos.”17
Considerando o Capitulo Geral como vantajoso ao bem espiritual
e temporal do Mosteiro, a venda de algumas terras, e fazendas,
convertendo o seu produto em Patrimônio mais sólido na Cidade,
que, tornando-se de mais fácil [a] Administração não só nos poupe
os poucos monges que temos, como no[s] livre de uma infinidade
de pleitos, que é preciso sustentar para rechaçar as continuas
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invasões dos ambiciosos. Manda principiando pelas mais remotas
ao N. R.mo P. M. G. que obtida a licença da Assembleia Provincial
(Ver ata de 1832), ponha a venda o mais breve que lhe for possível
todas as terras e Fazendas [...] Manda porém em virtude de Santa
obediência q. este dinheiro seja imediatamente recolhido ao cofre
donde não o poderá tirar algum Prelado a não ser para pagamento de
dívidas, ou melhoramento do Patrimônio em casas na Cidade18. (sic)
Mesmo tornando-se uma Congregação independente, os
mosteiros beneditinos brasileiros continuaram a seguir as “Leis”
comuns aos conventos de Portugal, no qual estavam submetidos
à observância do Núncio Apostólico, que em 1830 estava
de passagem pela Corte. Entre esse conjunto de normas foi
determinado que houvesse três visitas em cada triênio, realizada
pelos Visitadores, um determinado número de empregados, sem
que houvesse acúmulo de funções e a proibição de reeleição para
as funções de Abades, Definidores, Visitadores, Secretários e
Companheiro Geral. Todos infringidos pelos monges capitulares
devido à falta de religiosos.
A disponibilidade de funcionários nunca foi possível, pois
o próprio Capítulo autorizou que o religioso ocupasse mais de
uma vez um lugar na assembleia, e até mesmo que fosse reeleito.
Em relação a isso, pode-se mencionar a medida que dispensou
o limite de idade às atividades monásticas: “O Capítulo Geral
dá Comissão ao Nosso Reverendíssimo para poder dispensar
com ordenados a idade a Lei, atendida a falta de monges, tendo
porém os mais requisitos necessários”19. Pela narrativa do D.
Joaquim Granjeiro de Luna, no ano de 1833, a Congregação
possuía 52 religiosos em todo o território brasileiro20. Logo, essa
alteração atingiu as práticas litúrgicas, o que resultou em um
breve, registro que contém decisão de caráter particular, para a
redução das missas.
Em junho de 1832 aconteceu a segunda assembleia
da Congregação, mantendo o Abade Geral, fr. José de Santa
Escolástica. Esse foi um triênio dado como o dos mais difíceis.
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A Ordem Beneditina e o Governo: acordos e conflitos na Corte Imperial.
As ações governamentais foram meticulosamente arranjadas e
firmes no seu propósito, que já não era mais o de obter o controle
das organizações regulares, mas a apropriação dos seus bens.
Após o insucesso do Breve de Concessão, de junho de 1833, o Governo pediu, por meio de um aviso, que as ordens
religiosas inteirassem o Conselho Imperial da sua atual situação.
O abade do Mosteiro do Rio de Janeiro, fr. José Polycarpo
e Santa Gertrudes, respondeu ao conselheiro Aureliano de
Souza e Oliveira Coutinho, em 23 de setembro de 1833. Para a
decepção de todos, em 8 de agosto de 1834, esse Ministro da
Justiça apresentou uma nova proposta à assembleia, dessa vez,
sugerindo a cessão imediata dos bens monásticos em benefício
da nação. Por tal medida, caberia ao Governo:
(...) dar a cada religioso uma pensão anual e dois escravos para
serviço: prometia breve de perpétua secularização aos que o
quisessem, asilo aos religiosos valetudinários e mentecaptos,
emprego em benefícios ou cadeira de ensino público aos
secularizados idôneos. (...) Ficavam para a manutenção do culto
divino os vasos, utensílios e mais preparatórios que havia nas igrejas;
(...) Quanto aos conventos, que em virtude desta lei revertiam aos
domínios da nação, seriam aplicados pelo governo a objetos de
utilidade pública, segundo julgasse mais conveniente.21 (Grifo meu)
Sobre a carência de monges, foi encontrada uma carta,
escrita pelos freis Arsênio da Natividade Moura, Secretário da
Congregação, e pelo D. Abade Geral Fr. José de Santa Escolástica,
datada de 9 de outubro de 1829, dirigida ao Procurador Geral,
Fr. Luiz de S. Theodora, que nesse ano encontrava-se no Rio de
Janeiro. Nesse registro, o Secretário explicou que a função a
qual ocupava na Ordem não lhe foi atribuída por mérito, mas
por falta de quem a ocupasse e expôs o seu descontentamento
à conjectura do estado monástico com a separação de Portugal,
já que coube ao mosteiro da Corte arcar com o pagamento da
bula.
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O frei Arsênio da Natividade Moura tentou convencer o
abade do Rio de Janeiro de que ele seria o “único que poderia
vencer a maior dificuldade da aceitação de noviços”, contudo,
esse superior parecia não ter conhecimento disso:
V. Reverendíssimo parece ignorar o estado de penúria em que se
acha este mosteiro; de três engenhos que temos [refere-se a abadia
de S. Salvador], só um tem padre, e assim mesmo é Visitador 1º;
o Padre Mestre Dom Abade de Pernambuco ainda não foi tomar
posse de sua casa, porque o N. Reverendíssimo não tem um
religioso que o vá suceder nas fazendas do Rio de São Francisco. O
procurador do Mosteiro é justamente o Prior; e não houve religioso
para Superior. O Coro é frequentado pelos Reverendíssimos ExProvinciais e sexagenários, que fazem a Terça e o Hebdômadas
[espaço de 7 dias]. À vista disto julgue V. Reverendíssimo, em que
angústia se tem visto o N. Reverendíssimo para providenciar os
Mosteiros da Congregação, e com especialidades os do Sul!!22
Era preciso pensar na solução para que as contrariedades
às leis, executadas no primeiro Capítulo, pudessem ser evitadas
na segunda reunião capitular. Por esse motivo, o atual Abade
Geral fr. José de Santa Escolástica, representado pelo Ministro da
Justiça e Regente do Império, Padre Diogo Antônio Feijó, enviou
um requerimento, em agosto de 1831, pedindo a solução para
algumas irregularidades. Era mais um breve de aprovação quanto
às nulidades do Capítulo a respeito das medidas transgredidas,
pois a Congregação reduziu a duas as viagens dos visitadores,
sendo uma realizada por dois abades juntos, o acúmulo de
cargos e, por fim, um pedido de autorização para reeleger alguns
empregados.
O Núncio Apostólico, em setembro do mesmo ano,
concedeu a sanção pedida, mas aconselhou que houvesse a
troca de funções na necessidade de reeleição, a fim de que fosse
evitado o favorecimento nas funções, devido à permanência
no cargo. Dois meses depois, o Padre Diogo Feijó pedia ao
Monsenhor Ostini o melhoramento necessário para as ordens
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A Ordem Beneditina e o Governo: acordos e conflitos na Corte Imperial.
religiosas no Brasil, tendo sido respondido, dias depois, com uma
circular, que pedia mais informações do necessário para que os
institutos dos regulares “florescessem”.
Com o retorno desse Monsenhor à Roma, em janeiro
de 1832, Domingos Scipião Fabrini o substituiu nos Negócios da
Santa Sé, propôs esforçar-se para salvar a instituição, sugerindo
orações, confiança e observância nas práticas, ou seja, disciplina.
Conselhos que não foram distintos do Núncio Ostini. Em resposta,
o Abade José de Santa Escolástica se comprometeu a continuar
as obras religiosas, de “muita importância para o país”, enquanto
houvesse forças, e o lembrou da solicitação de licença feita ao
Governo, para a admissão de noviços.
Após a instituição da Congregação Brasileira, somente
em 1835 foi concedido às ordens religiosas um ato adicional
da Constituição, autorizando a admissão de 30 noviços. Estes
deveriam ser divididos igualmente entre os mosteiros de São
Bento, São Francisco e Nossa Senhora do Carmo. Um paliativo
eficaz à “debilidade” da religião.
O ingresso desses religiosos nos claustros recuperou
parte do vigor pela observância monástica, pois indicava aos
monges a continuidade dos seus preceitos. Uma impressão que
não durou por muito tempo, já que, em 1855, foi decretado o
Aviso do Ministro da Justiça, José Thomaz Nabuco de Araújo, que
cassava as licenças outorgadas: “S. M. o Imperador há por bem
cassar as licenças concedidas para a entrada de noviços nessa
Ordem Religiosa até que seja resolvida a Concordata que à Santa
Sé vai ao Governo Imperial propor”23.
A “concordata” esperada entre o Estado e a Igreja foi
mais uma promessa sem cumprimento, diante das medidas que
promoveram a limitação social e econômica dos beneditinos. A
determinação que, tinha o seu caráter intermitente, passou a ser
definitiva, foto que só teve alteração quando houve a da Igreja
como o Estado.
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Paulo Henrique Silva Pacheco
Notas e Referências
* Mestre em História (PPGH/UERJ).
1
LUNA, Joaquim G. de. Os monges beneditinos no Brasil – Esbôço Histórico.
Rio de Janeiro. Edições “Lumen Christi”, 1947. p. 20.
2
WELHING, Arno; WELHING, Maria J. C. Ação regalista e ordens religiosas
no Rio de Janeiro pós-pombalino (1774-1808). In: Actas do Congresso
Internacional de História Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas. Vol.
3 – Igreja, Sociedade e Missionação. Braga: Universidade Católica Portuguesa,
1993, passim.
3
(AMSB/RJ). Códice 1143. Livro de Atas dos Capítulos Gerais e das Juntas
Capitulares, 1829-1866. Folha 20v.
4
Ibid. Folha 1.
5
Ramiz Galvão foi médico, professor, filólogo, biógrafo e orador, esse autor
atuou nas principais instituições brasileiras. Foi presidente da Biblioteca
Nacional do Rio de Janeiro, sendo responsável pela publicação dos Anais,
diretor da Academia Brasileira de Letras, onde sucedeu Carlos de Laet, em
1928, e também dirigiu o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro.
6
GALVÃO, Benjamim F. R. Aponctamentos Históricos sobre a Ordem Benedictina
em Geral e em particular sobre o Mosteiro de N. S. do Monserrate da Ordem
do Patriarcha S. Bento d’esta cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro. Typ. de
G. Leuzinger & Filhos, 1879.
7
Ibid. p. 66.
8
ABREU, Laurinda. Um padecer da Junta do Exame do Estado Actual e
melhoramento Temporal das Ordens Regulares nas vésperas do decreto de
30 de Maio de 1834 In: Estudos em Homenagem a Luís Antônio de Oliveira
Ramos. Faculdade de Letras da Universidade do Porto, 2004, pp. 119-120.
9
Ibid. p. 119.
10
Ibid. p. 120.
11
SANTOS, Maria Rachel Fróes da Fonseca. Contestação e defesa: A
Congregação Beneditina Brasileira no Rio de Janeiro (1830-1870). 1986. 170p.
Dissertação de Mestrado em História. Universidade Federal Fluminense. Rio
de Janeiro. s/d. p. 15.
12
CARMO, 1825 apud GALVÃO, Dr. Benjamim F. R. Aponctamentos Históricos
sobre a Ordem Benedictina em Geral e em particular sobre o Mosteiro de N.
S. do Monserrate da Ordem do Patriarcha S. Bento d’esta cidade do Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro. Typ. de G. Leuzinger & Filhos, 1879. p. 81.
13
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (BN-RJ). LEÃO BISPO. Bulla do S.P.
Leão XII. “Inter Gravissimas Curas” de 1 de julho de 1827 relativa á Separação
da Provincia do Brasil da Congregação Beneditina de Portugal. In: MOSTEIRO
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A Ordem Beneditina e o Governo: acordos e conflitos na Corte Imperial.
DE SÃO BENTO do Rio de Janeiro. Abbadia Nullius de N. S. do Monserrate: o
seu histórico desde a fundação até o anno de 1927. Papelaria Ribeiro, 1927.
p. 269(sic). A respeito da celebração dos Capítulos Gerais tratarei no próximo
item.
14
(AMSB/RJ) Códice 1143. op. cit., Folha 9.
15
(BN-RJ) LEÃO BISPO. Bulla do S.P. Leão XII. “Inter Gravissimas Curas” de 1
de julho de 1827 relativa á Separação da Provincia do Brasil da Congregação
Beneditina de Portugal. In: MOSTEIRO DE SÃO BENTO do Rio de Janeiro. Op.
cit., p. 271. (sic)
16
(AMSB/RJ) Códice 1143. op.cit., Folha 1v.
17
Ibid. Folha 4.
18
Ibid. Folha 33v.
19
(AMSB/RJ) Códice 1143. op.cit., (sic). Folha 7v.
20
LUNA, Dom Joaquim G. de, (O.S.B). op.cit., p. 34.
21
GALVÃO, Dr. Benjamim F. R. op. cit., p. 95.
22
(BN-RJ). MOURA, Fr. Arsênio da Natividade. Cartas do Secretario da
Congregação. In: MOSTEIRO DE SÃO BENTO do Rio de Janeiro. op. cit., p. 276.
(sic)
23
ARAÚJO apud BETTENCOURT, D. Estevão. (O. S. B). A reestruturação dos
Mosteiros Beneditinos do Brasil em fins do século XIX. In: ALMEIDA, D.
Emanuel (org.). Coletânea Tomo II: 400 anos Mosteiro de São Bento Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro. Edições “Lúmen Christi”, 1991. pp; 9-10.
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Nas Sombras da Libertinagem
reflexões iniciais sobre a trajetória de Francisco de
Mello Franco (1757-1822)
Rossana Agostinho Nunes*
Coimbra, 1779. Um grupo de jovens estudantes da
Universidade de Coimbra é denunciado à Inquisição. A acusação:
defesa de proposições heréticas e dos filósofos ilustrados.
Segundo Francisco Cândido Chaves, responsável pela denúncia,
os estudantes teriam discutido, a partir da leitura de autores
ilustrados, temas religiosos de forma nada ortodoxa. Às leituras
de autores proibidos pela censura portuguesa e às proposições
contrárias aos dogmas católicos somavam-se algumas práticas
desviantes, dentre as quais, o comer carne em dias proibidos.
Dos estudantes implicados no processo, um em especial merece
ser destacado: Francisco de Mello Franco.1
A participação do então estudante de medicina, natural
de Minas Gerais, no processo inquisitorial de 1779 não passou
ilesa. Após ter sido sentenciado herege, naturalista, dogmático
e que negava o sacramento do matrimonio, foi condenado, em
auto de fé de Agosto de 1781, a 4 anos de prisão em Rilhafoles,
além de confiscação de bens e Sambenito.2 Dos 4 anos cumpriu
apenas um, sendo solto já em 1782, após o que retornou à
Universidade de Coimbra, graças a uma aviso régio assinado por
D. Maria I, para concluir o curso de medicina.3
O contato de Mello Franco com a repressão oficial não parou
em sua passagem pela Inquisição. Ainda que de forma indireta e
revestida sob a capa do segredo, a personagem prosseguiu com
atividades, consideradas por muitos, subversivas. Em 1785, um
ano antes de finalizar o curso de Medicina na Universidade de
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Coimbra, circulou, em uma festa acadêmica, a sátira O Reino
da Estupidez. Os manuscritos anônimos, somente publicados
décadas mais tarde, causaram alarde à época ao satirizar a
Universidade de Coimbra. As investigações e perseguições aos
supostos autores da sátira não alcançaram o sucesso pretendido,
livrando assim Mello Franco e José Bonifácio de Andrada e
Silva, que também colaborou com a escrita do poema, da
repressão oficial e das subseqüentes ações legais que tamanha
afronta demandavam.4 Três anos depois, em 1787, outra obra
anônima intitulada Resposta ao filósofo solitário em abono da
verdade por hum amigo dos homens circulava em Lisboa. Pouco
se sabe sobre esse livro. Os autores costumam atribuir, sem
muita certeza, a sua escrita a Francisco de Mello Franco, fato
que ainda merece a devida averiguação.5 Por fim, já em 1794
vinha a luz, com autorização da Real Mesa de Comissão Geral o
livro, igualmente anônimo, Medicina Theologica. Alvo de uma
investigação policial levada adiante pelo Intendente Geral de
Polícia de Lisboa, Diogo Ignácio de Pina Manique, as repercussões
sociais geradas pela publicação do livro incluem ainda a extinção
da Real Mesa de Comissão Geral, sendo substituída por outro
sistema de censura6 e a publicação, cinco anos depois, de um
livro-resposta intitulado Dissertações teológico-medicinais pelo
frade Francisco Manuel de Santa Anna.7
De qualquer forma, não é possível esquecer que a
trajetória da personagem foi muito além da passagem pela
Inquisição e da publicação de obras anônimas. Cumpre,
portanto, considerar a trajetória do médico Francisco de
Mello Franco. A intersecção dos dois campos de análise lança
questões fundamentais, ainda que extremamente complexas,
sobre o período histórico em questão. Membro da Academia
Real de Ciências de Lisboa, onde teve participação ativa junto à
instituição vacínica, médico da Câmara real, acompanhante da
Princesa Leopoldina ao Rio de Janeiro por ordem de D. João VI,
foi ainda provedor dos defuntos e ausentes de Paracatu, ofício
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de Francisco de Mello Franco (1757-1822).
que obteve através de uma graça régia, além de requerente ao
Hábito da Ordem de Cristo em favor de seu filho. Do mesmo
modo é fundamental destacar que a sua atividade literária não
se encerrou nas obras anônimas, muito pelo contrário. Aos livros
publicados de forma anônima somam-se as obras científicas,
publicadas de forma legal e aberta: Tratado da Educação Física
dos meninos para uso da Nação Portuguesa (1790), Elementos
de Higiene (1814) e Ensaio sobre as Febres (1829).8
No fundo a trajetória da personagem é marcada, entre
outros, por uma tensão entre a repressão oficial, direta e indireta,
e a conquista de reputação e mercês. Desta percepção conjunta
emergem vários problemas. Caso sejam analisados apenas os
discursos publicados de forma anônima em paralelo com as
repercussões e representações construídas sobre eles encontrarse-á, no fim, uma personagem sediciosa que, no limite, poderia
ser simpatizante, ou então, adepta dos princípios franceses.
Contudo, ao ampliar o olhar para além das representações
contemporâneas, e englobar os demais discursos produzidos
por Mello Franco, assim como a sua trajetória, percebe-se que
o processo era muito mais complexo. Sendo assim, dentro dos
limites deste trabalho, pretendo apresentar a trajetória do
médico luso-brasileiro Francisco de Mello Franco de modo a
refletir sobre a tensão que a perpassa. Não é um mero desejo
de reconstrução biográfica que move este trabalho, mas a
preocupação de, a partir do estudo de um caso específico e das
possibilidades históricas oferecidas pelo mesmo, refletir sobre o
contexto de efervescência política e intelectual de Portugal ao
final do Setecentos.
Idéias Libertinas
Em 1768 era criada, em Portugal, a Real Mesa Censória,
substituindo assim o antigo sistema tríplice de censura (o Ordinário,
a Inquisição e o Desembargo do Paço). A remodelação do aparato
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censório, cujo cerne era a política regalista implementada no
Reinado Josefino, implicou em uma transferência da censura,
antes sob responsabilidade dos eclesiásticos, para as autoridades
régias através da atuação do Desembargo do Paço.9 De qualquer
forma, esse processo de secularização não significou o fim da
proibição às obras consideradas perniciosas do ponto de vista
religioso10: a preocupação régia em coibir a entrada de obras
consideradas ofensivas à religião católica esteve presente não
somente no Reinado Josefino como no Reinado Mariano. De
modo que, se por um lado há de se considerar todo o processo
de embate entre as autoridades régias e religiosas no âmbito do
processo do regalismo, por outro a progressiva afirmação das
primeiras sobre as últimas não significou a eliminação da religião
enquanto elemento fundamental de estruturação da ordem
política monárquica. Daí o caráter pernicioso atribuído a todos
aqueles que, de alguma forma, atentavam contra os altares,
abalando assim os fundamentos do Trono e da sociedade.
Das 17 regras estabelecidas, em 1768, para designar
quais livros deveriam ser proibidos, uma destacava o caráter
pernicioso dos livros tendentes à incredulidade, à impiedade ou
à libertinagem, “pertendendo reduzir a Omnipotencia Divina, e
os seus Misterios, e Prodigios á limitada esfera da comprehensão
humana”11. Nos anos seguintes outros editais enfatizariam o
problema representado pelas idéias libertinas: o edital de 1770,
no qual vários livros foram proibidos, ressaltava que muitos
destes escritos, “abominaveis producções da incredulidade, e da
libertinagem de homens temerarios, e soberbos”, atacavam os
princípios sagrados da religião, invadiam os sólidos fundamentos
do Trono e rompiam os vínculos com que mutuamente se
sustentavam.12 Cinco anos depois, outro edital destacava o
perigo que representava os erros dos filósofos libertinos, os
quais em função do espírito de irreligião, levariam à corrupção
dos costumes.13 Em 1794, ao abolir a Real Comissão Geral como
inútil, o governo de d. Maria I aludia a existência de uma temível
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de Francisco de Mello Franco (1757-1822).
Revolução Literária e doutrinal que, tendo se voltado contra as
opiniões estabelecidas, causaria a ruína da religião, dos impérios
e das sociedades.14 Não convém esquecer que o cenário em que
veio a luz o edital de 1794 era marcado por um acontecimento
especial, responsável pela intensificação da repressão à circulação
de determinadas idéias: a ocorrência da Revolução Francesa e,
sobretudo, do Terror Jacobino, com a morte do Rei Luis XVI na
guilhotina em 1793.15
Se, por um lado, Portugal não conheceu a intensa e
radical movimentação intelectual vivida por locais como a França,
onde floresceu uma literatura libertina que minou os valores
ortodoxos do Antigo Regime16, nem por isso a circulação dessas
idéias consideradas subversivas foi inexistente. O que, noutro
plano, deu vida aos temores das autoridades régias lusas quanto
as implicações práticas e funestas que o alastramento de tais
ideais significaria para a estrutura social do reino. Preocupação
esta presente, inclusive, em algumas obras que circularam em
Portugal por volta do último quartel do século XVIII e início do
XIX: em 1778 a obra Dissertação sobre a alma racional buscava
defender a religião dos ataques sofridos pelos chamados espíritos
fortes, naturalistas, apóstolos da Incredulidade, libertino,
perturbadores da tranquilidade pública. Associando, inclusive,
os incrédulos e os libertinos às necessidades das provas da razão
e da experiência em contraponto a uma sociedade instruída com
a verdade, para quem importava a autoridade das escrituras. Já
em 1815 o Glossario de Palavras, publicado nas Memórias da
Academia Real de Ciências de Lisboa, definia os termos libertino/
libertinagem como licenciosidade com irreligião: homem devasso
em costumes, com erradas opiniões religiosas17 Também na
América Portuguesa visualiza-se o emprego do termo libertino.
Em 1790, um indivíduo é denunciado como sendo um homem
libertino por um familiar do Santo Ofício por reduzir a importância
das missas, das esmolas e da confissão.18
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No final do século XVIII, o termo libertino assumiu, em
Portugal, uma conotação política.19 Sendo assim, o libertino/
libertinismo entendido, entre outros, como um movimento maior
de crítica à religião, a partir dos novos referenciais filosóficos
em voga pela Europa, significaria um perigo à manutenção da
estabilidade do Trono. O termo, por sua vez, associava-se a outros,
como: espíritos fortes, filósofos, materialistas, deístas e etc. Mas,
em sua maioria, a partir da conotação maior da irreligiosidade e
das implicações que essa postura de irreligiosidade traria sobre
os costumes e sobre a ordem social maior. Como definiu Villalta,
o libertino seria
todo livre-pensador influenciado pelas novas idéias dos filósofos e
enciclopedistas, que por suas leituras, ações e omissões, punha em
xeque alguns dogmas cristãos, assumindo abertamente o deísmo ou
o ateísmo, ou ridicularizando o ritual e a hierarquia eclesiástica.20
A trajetória de Mello Franco encontra-se, ainda que
indiretamente, marcada por essa noção de libertinagem. Se não
chegou a ser acusado publicamente de libertino – pelo menos
não temos nenhum conhecimento a respeito –, em sua biblioteca
não eram poucos os livros proibidos pelas autoridades régias em
função de seu caráter pernicioso e prejudicial. De modo que os ditos
filósofos libertinos estavam presentes em número considerável,
tendo em vista os riscos que implicavam sua posse – um pouco
menos de 40 autores, sendo que em alguns casos indicava-se a
existência de obras completas, o que totalizava vários volumes
como é o caso de Helvetius, possuindo 10 volumes. Além de sua
passagem pela Inquisição em 1779, quando, em conjunto com
outros estudantes, assumiu posturas heterodoxas em matérias
de religião, há ainda a obra Medicina Theologica onde procurou
defender a racionalização do sacramento da Penitência através
do recurso a teorias médico-científicas existentes à época.
Assim, a personagem, a partir de seus escritos, procurava criticar
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de Francisco de Mello Franco (1757-1822).
não somente práticas supersticiosas e desregradas de muitos
religiosos, vide, por exemplo, a sátira Reino da Estupidez onde
o bispo luxuoso é pintado de forma pejorativa, como defender
uma postura que, indo além da autoridade, buscasse através da
indagação o conhecimento. Neste plano o exame da Natureza
emergia ao primeiro plano, suplantando Deus e a revelação
como fontes essenciais de conhecimento, ainda que sem negar a
existência divina e a importância do cristianismo.
Submerso nessa preocupação em combater à difusão
dos escritos filosóficos em Portugal encontra-se não somente
os esforços de manutenção da ordem social do Antigo Regime,
que para alguns parecia vacilar diante do contexto cada vez mais
crítico pintado, sobretudo, pelo Terror Jacobino, mas o processo
de construção de representações sobre o sedicioso, as quais
englobariam libertinos, espíritos fortes, materialistas, deístas,
maçons e, posteriormente, jacobinos. De qualquer forma, nos
limites deste trabalho parece válido pensar o termo sedição,
a partir da definição proposta por Darnton, a saber: como “um
desvio que, mediante o texto e no texto, se instaurava com relação
às ortodoxias do Ancien Régime”.21 Ou seja, o desvio em relação
às ortodoxias do Antigo Regime que se visualiza na mensagem
de alguns livros, transcendia o livro em si, uma vez que constituía
modelos ou indícios de práticas alternativas. Sendo assim, o
processo de ruptura com os paradigmas religiosos tradicionais,
através da crítica de alguns milagres, atos, rituais e etc, parecia
indicar não apenas padrões diferentes de percepção da realidade,
mas, sobretudo, a proposição de modelos de ação alternativos, os
quais, poderiam significar, dentro dos padrões consagrados pela
tradição religiosa, uma licenciosidade de costume, ou seja, uma
prática desviante. O que possuía implicações profundas numa
ordem em que o monarca, tendo recebido o poder diretamente
de Deus, se dizia responsável pela conservação da pureza do
cristianismo, da qual dependia, para alguns, a manutenção da
estabilidade do Trono e da sociedade.22
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Assim, a passagem de Mello Franco pela Inquisição e os
problemas envolvidos em torno de suas obras anônimas devem
ser entendidos a partir desses referenciais expostos acima. O
próprio recurso utilizado pelo autor, ao publicar a obra de forma
anônima, demonstra claramente que a personagem sabia que
estava falando sobre algo que era melhor silenciar. Evidenciando
não somente que tinha consciência da existência de limites
formais à crítica dentro da sociedade portuguesa de sua época,
mas que sabia extrapolá-los, a partir da utilização de certos
mecanismos, como o segredo, por exemplo.
O médico Francisco de Mello Franco
A trajetória de Mello Franco não se encerra nas críticas
a um pensamento religioso tradicional pautado na autoridade
e acrítico ou no modo de vida desregrado e luxuoso de muitos
religiosos, muito pelo contrário. Para além dessa dimensão,
a sua trajetória é marcada por uma preocupação com o
desenvolvimento da ciência, em particular da ciência médica, em
Portugal, de modo a permitir a promoção do progresso do reino.
A defesa do conhecimento racional e da experiência encontra-se
no cerne deste propósito.
Era 1786 quando Mello Franco finalizou o curso de
Medicina na Universidade de Coimbra. Os estudos ocorreram
em uma Universidade de Coimbra já reformada, o que no âmbito
dos estudos médicos trouxe algumas transformações: a exaltação
do conhecimento prático em detrimento do estudo livresco
do corpo, a importância da história natural, do conhecimento
da física e da química para o estudo do corpo humano e etc. A
reforma do ensino médico procurou valorizar o experimentalismo
e os preceitos racionalistas, ressaltando a importância de uma
“medicina empirico racional.” Para isso novos referenciais foram
introduzidos. Nomes como Harvey, Borelli, Boerhaave, entre
outros, passaram a ser destacados, numa tentativa de inserir
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de Francisco de Mello Franco (1757-1822).
a Universidade nos princípios da ciência médica moderna
européia.23
A trajetória médica de Mello Franco é profundamente
marcada por esses referenciais reformistas da Universidade de
Coimbra. A defesa constante de uma prática médica pautada
pela razão e pelo experimentalismo atravessa os seus escritos. O
que pode ser visualizado, por exemplo, a partir dos livros Tratado
da Educação Física dos meninos para uso da Nação Portuguesa
(1790) e Elementos de Higiene (1814). Obras que, apesar de
abordarem temáticas diferentes, eram marcadas pelo apreço ao
pensamento racional e à observação, elementos característicos
do método científico moderno, os quais não estavam de todo
ausentes de seus escritos anônimos, pelo contrário. Seja a partir
da crítica aos métodos vigentes na Universidade de Coimbra
apresentada através da sátira O Reino da Estupidez24, seja através
da proposição de novos métodos na emenda dos pecados,
ressaltados na obra Medicina Theologica, a motivação inicial, que
levara à construção de ambas argumentações, parecia convergir
para um mesmo ponto comum: o desejo de superação da
superstição e de uma dimensão mais religiosa do conhecimento
e a subseqüente introdução e/ou afirmação, dentro de alguns
limites, dos métodos científico-racionais, vigentes à época, em
Portugal.
A sua trajetória, contudo, não é uma exceção, antes
apresenta traços similares a de outros médicos contemporâneos.
Antônio Gonçalves Gomide, médico luso-brasileiro formado pela
Universidade de Edimburgo, e contemporâneo de Mello Franco,
procurava defender as concepções científicas das doenças em
detrimento de concepções mágico religiosas que as encaravam
a partir de dimensões sobrenaturais. Numa postura similar
aquela adotada por Mello Franco na obra Medicina Theologica
que considerava os pecados da cólera, lascívia e bebedice como
doenças do corpo, Gomide analisava o caso de uma beata no
interior de Minas, para muitos considerada uma santa em
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função dos êxtases apresentados, como fruto de uma doença
física: sofria de catalepsia convulsiva25. Em ambas as personagem
a doença sai do âmbito do religioso para entrar no campo da
ciência médica moderna, a qual seria pautada pela experiência e
observação.
José Pinto de Azeredo (1766?- 1810) foi outro médico
luso-brasileiro cuja correspondência com Mello Franco é notória.
Formado em Medicina pela Universidade de Leiden, a sua atuação
como médico em Portugal e seus domínios revelava o apreço por
uma medicina baseada no conhecimento científico e na ciência
experimental. Ressaltava-se, assim, a importância da experiência
e da observação no exercício da prática médica.26
Se por um lado a defesa da observação e da experiência
atravessa a trajetória de alguns médicos luso-brasileiros da
segunda metade do século XVIII, por outro as correspondências
não param por aí. O arcabouço referencial, a partir do qual eles
procuravam alicerçar as suas práticas médicas e análises, não
diferiam muito de um caso para o outro. Os autores citados
demonstram a familiaridade dessas personagens com os
referenciais médicos em voga pela Europa, os quais pautavamse justamente por uma preocupação racional e experimentalista:
Harvey, Willis, Borelli, Boerhaave, Hoffman, Cullen, Tissot,
Sydenham e etc.27
A atuação de Mello Franco junto a Academia Real das
Ciências de Lisboa, criada em 1779 por D. Maria I com o intuito
de promover a ciência e utilidade pública em Portugal, da qual
foi vice-secretário em 1816, é outro ponto fundamental em
sua trajetória médica. Na Academia participou ativamente da
Instituição Vacínica, criada em 1812, com o objetivo de difundir
a vacina contra a varíola em Portugal28. Atuação esta que acabou
por lhe render uma menção crítica nos versos satíricos do poema
Os Burros, anonimamente publicado por José Agostinho de
Macedo.29 Foi também sob o aval da Academia que imprimiu
tanto o Tratado de Educação Fysica quanto Elementos de
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Nas Sombras da Libertinagem - reflexões iniciais sobre a trajetória
de Francisco de Mello Franco (1757-1822).
Hygiene. Os dois trabalhos apresentam uma preocupação com
o adiantamento do Reino: enquanto no primeiro Mello Franco
ressalta a importância da educação física para a promoção das
artes e das ciências no Reino30, no segundo deixa transparecer
uma preocupação com a conservação da saúde e prolongamento
da vida31. Tendo sempre como protagonista principal a Natureza,
as idéias médicas defendidas por Mello Franco apresentam-se
não apenas como um projeto de valorização da vida terrena,
mas como um fator crucial para o desenvolvimento do Estado e
do progresso público. Afinal, como ele mesmo destacou “desde
que houve algum systema de Medicina, os Médicos entrárão
a dar certos dictames para a felicidade dos povos”32. Sendo
assim, sua trajetória médica, para além das críticas de alguns
contemporâneos, acabou por lhe render graças e mercês junto
à Coroa Portuguesa: além de Provedor dos Defuntos e Ausentes
da Vila de Paracatu e médico da Câmara real, fez o requerimento
do hábito da Ordem de Cristo para o seu filho, em função de seus
serviços prestados à Coroa Portuguesa.33
Libertinagem e Promoção do progresso público
O libertino que, a partir de algumas leituras, refletia
de forma heterodoxa sobre a religião, criticando dogmas
tradicionalmente aceitos pelo catolicismo e o médico ilustrado
que, a partir dos referenciais médico-científicos modernos,
procurava promover o adiantamento e o progresso do reino,
conviviam na figura de Francisco de Mello Franco. Se, por um
lado, as implicações sociais contidas em sua passagem pela
Inquisição e nas obras anônimas levam, talvez precipitadamente,
a figura de um subversivo, por outro a sua atuação profissional e
os demais escritos demonstram que a crítica à religião e a defesa
dos princípios racionais não foram acompanhadas por nenhuma
crítica à monarquia ou à ordenação social da sociedade, nem
tampouco traduziu em uma adesão total aos princípios difundidos
a partir da Revolução Francesa.
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Cumpre, portanto, efetuar um atento exercício de
contextualização que, prestando atenção às diversas linguagens
em jogo em um mesmo contexto34, seja capaz de perceber
como ocorreu o relacionamento, sempre complexo, entre essas
linguagens, as práticas e as representações sociais. A tarefa não
é fácil, mas o seu exame possibilitará compreender não apenas
a tensão social e as disputas de poder resultantes do encontro
dessa diversidade de perspectivas, como o limite tênue, e
por vezes intercambiável, entre as idéias proibidas e aquelas
defendidas e aprovadas pela Coroa Portuguesa em seu desejo
de promoção do progresso do Reino e seus domínios, lançando
luz assim sobre o contexto de efervescência política e intelectual
de Portugal ao final do Setecentos.
Notas e Referências
*Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense e mestranda
pela mesma Universidade sob orientação de Guilherme Pereira das Neves.
Luiz Carlos Villalta. “Dos usos em geral à inventividade e à Heresia.” In:
Reformismo Ilustrado, Censura e Práticas de Leitura: Usos do Livro na América
Portuguesa. Tese de doutorado. São Paulo: USP, 1999.
2
Idem; Agradeço à sra. Odete Martins que, através de email, enviou os dados
descritos sobre Mello Franco no Auto de 26 de Agosto de 1779 sob a seguinte
notação: Torre do Tombo, Inquisição de Coimbra, liv. 433, fl. 417, microfilme
7460.
3
Afonso Arinos de Melo Franco. Um Estadista da República. Rio de Janeiro:
Livraria José Olympio Editora. 1955; Alberto Dines. “A Inquisição como farsa.”
In: Francisco de Melo Franco. Medicina Teológica. São Paulo: Editora Giordano,
1994, p. XXXIII.
4
Inocêncio Francisco da Silva. “Francisco de Mello Franco”.In: Dicionário
Bibliográfico Português. Tomo II. Lisboa: Imprensa Nacional, 1859-1860, pp.
10-1
5
Augusto Vitorino Alves Sacramento Blake. Dicionário Bibliogáfico Brasileiro.
Rio de Janeiro. 1893-1902, pp. 44-7.
6
Luiz Carlos Villalta. Op. Cit.
7
Manuel de Santa Anna. Dissertações theologicas medicinaes. Lisboa: Regia
officina typografica, 1799.
8
Inocêncio Francisco da Silva. Op. Cit.
1
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Nas Sombras da Libertinagem - reflexões iniciais sobre a trajetória
de Francisco de Mello Franco (1757-1822).
Kenneth Maxwell. “Reforma.” In: Marquês de Pombal: Paradoxo do
Iluminismo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996; Luiz Carlos Villalta. Op. Cit.;
Maria Adelaide Salvador Marques. A Real Mesa Censória e a Cultura Nacional:
aspectos da geografia cultural portuguesa no século XVIII. Coimbra, 1963.
10
Kenneth Maxwell. Op Cit, p. 108; Maria Adelaide Salvador Marques. Op.
Cit, p. 8.
11
Alvará de 18 de Maio de 1768. In: www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt Capturado
em 19/01/08.
12
Edital de 24 de Setembro de 1770. In: www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt
Capturado em 19/01/08.
13
Edital de 5 de Dezembro de 1775. Proibindo e condenando um livro
intitulado Le vrais sens du Systeme de la Nature. In: www.iuslusitaniae.fcsh.
unl.pt, Capturado em 19/01/08
14
Lei de 17 de Dezembro de 1794. In: www.iuslusitaniae.fcsh.unl.pt,
Capturado em 19/01/08
15
Lúcia Maria Bastos Pereira das Neves. “Portugal e as Invasões Francesas”.
In: Napoleão Bonaparte: Imaginário e Política em Portugal (1808-1810). São
Paulo: Alameda, 2008, pp. 71-4.
16
Robert Darnton. Os best-sellers proibidos da França Revolucionária. São
Paulo: Companhia as Letras, 1998, p. 12
17
Francisco de S. Luiz. “Glossário das Palavras e Frases da Língua Franceza”.
In: História e Memorias da Academia das Sciencias de Lisboa. Tomo IV, parte
II, 1816, p. 84
18
David Higgs. “Linguagem perigosa e a defesa da religião no Brasil na
segunda metade do século XVIII.” In: SILVA, Maria Beatriz Nizza da. A cultura
portuguesa na terra de Santa Cruz. Lisboa: Editorial Estampa, p. 158.
19
Luiz Carlos Villalta. Libertinagens e livros libertinos no mundo brasileiro
(1740-1802). Material inédito, gentilmente cedido pelo autor.
20
Idem, pp. 1-2.
21
Robert Darnton. Edição e Sedição: o universo da literatura clandestina no
século XVIII. São Paulo: Companhia das letras, 1992, p. 21.
22
Edital de 24 de Setembro de 1770, Op. Cit.; Edital de 5 de Dezembro de
1775, Op. Cit; Lei de 17 de Dezembro de 1794, Op. Cit.
23
Jean Luis Neves Abreu. “A educação física e moral dos corpos: Francisco de
Mello Franco e a medicina luso-brasileira em finais do século XVIII”. Estudos
Ibero-Americanos. PUCRS, V. XXXII, n. 2, pp. 65-84, dez. 2006.
24
Francisco de Melo Franco. O Reino da Estupidez. São Paulo: Editora
Giordano, 1995.
25
Simone Santos de Almeida Silva. Iluminismo e ciência luso-brasileira: uma
semiologia das doenças nervosas no período joanino. Dossie doutorado.
9
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Rossana Agostinho Nunes
Orientadora: Cristiana Facchetti. Co-orientadora: Lorelai Kury. Rio de Janeiro:
FioCruz, 2009.
26
M. S. Pinto; M. G. Cechini; I. M. Malaquias; L. M. Moreira-Nordemann;
J. R. Pita. O médico brasileiro José Pijnto de Azeredo (1766?-1810) e o
exame químico da atmosfera do Rio de Janeiro. História, Ciências, Saúde –
Manguinhos, V. 12, n.3, p. 617-73, set-dez. 2005.
27
Roy Porter & Georges Vigarello. “Corpo, Saúde e Doenças”. In: VIGARELLO,
G. (dir.). História do Corpo. Da Renascença às Luzes. Editora Vozes: Petrópolis,
2008.
28
História e Memórias da Academia Real das Sciencias de Lisboa. Lisboa: Na
typografia da mesma Academia. 1815-1819
29
José Agostinho de Macedo. Os Burros. In: Satyricos Portugueses. Collecção
selecta de poemas herói-comico-satyricos; illustrada com notas. Em casa de J.
P. Ailaud na Officina Typografia de Casimir.
30
Francisco de Mello Franco. Tratado de educação fysica dos meninos para
uso da nação Portugueza. Lisboa: [s.n.], 1790.
31
Francisco de Mello Franco. Elementos de hygiene ou Dictames theoreticos,
e practicos para conservar a saúde e prolongar a vida. Lisboa: Academia Real
de Ciências, 1814.
32
Idem, p. X.
33
Requerimento encaminhando ao Ministério do Império. BNRJ, Divisão
de Manuscritos, C-0036,01; Francisco de Melo Franco. ANRJ, Graças
Honoríficas.
34
J.G.A. Pocock. Linguagens do Ideário Político. São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 2003.
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Práticas Políticas e Sociabilidade Intelectual na
Bahia: 1940-1950
Vanessa Magalhães da Silva*
Práticas políticas e intelectuais
A atuação intelectual não pode ser dissociada da atuação
política. Para compreender a ação política de determinados
grupos é necessário, também, observar sua atividade intelectual,
e vice-versa. As diversas gerações de intelectuais geralmente
estiveram à frente das grandes mudanças políticas do Brasil.1
Nosso trabalho se baseia em uma proposta de abordar as
atividades intelectuais enquanto atitudes políticas. Se um
sistema político-econômico e social cria camadas de intelectuais
que o legitimem, como foi o caso do Estado Novo – e não só
dele –, há que se considerar também que a estrutura em vigor
anteriormente deixa intelectuais depositários e defensores de
suas prerrogativas.2
As décadas de 20, 30 e 40 do século XX foram marcadas
pelo surgimento de estabelecimentos de ensino superior com
o nome de universidade3, pois existiam, anteriormente, apenas
faculdades isoladas. Segundo Lucia Lippi Oliveira, “o discurso
ideológico dos anos 30 apresenta um nível de organização
específica, extraindo seu êxito da coerência simbólica, passível
de transformar-se em um projeto político.”4
O investimento na educação – e na cultura de forma geral
– buscava modelar um novo padrão de identidade nacional, que
trazia em seus rastros os anseios de fortalecer o Estado nacional.5
Segundo Dulce Pandolfi, essa proposta reuniu um número
considerável de intelectuais em torno do projeto de elaboração
de um novo ideal de nação.6 Um exemplo do olhar voltado para
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Vanessa Magalhães da Silva
a política educacional – e, não pretendemos aqui fazer uma
avaliação política destas iniciativas – é a criação do Ministério da
Educação, em 1930.
Daniel Pécaut salienta que os intelectuais deste período
não estavam vinculados à instituições. “Não se situavam em um
campo autônomo, com suas hierarquias e estratégias alicerçadas
em critérios relativamente estáveis. Não atuavam, tampouco,
no sentido de consolidar as liberdades e os direitos tocantes à
condição universitária.”7 Segundo Pécaut,
o
intelectual
brasileiro
apresentava,
comumente,
três
perfis: o de advogado (eram numerosos os doutrinários de
tendência autoritária com formação jurídica); o de engenheiro
(freqüentemente caracterizado pelo positivismo e inclinado para
uma visão técnica do poder) e, é claro, o de homem de cultura.8
Nós acrescentamos, no caso da Bahia, os homens da
Medicina. E são esses homens – bacharéis em Ciências Jurídicas,
engenheiros e médicos – que irão formar o quadro docente da
Faculdade de Filosofia da Bahia. É importante salientar que esses
intelectuais compunham os quadros docentes de faculdades
e possuíam, paralelamente, uma atuação destacada na vida
pública, formando as bases de uma elite que além de letrada era
também política.
Esta geração fazia parte de uma rede de sociabilidade
baiana que transitava entre o Instituto Geográfico e Histórico da
Bahia, a Academia de Letras da Bahia, além das faculdades em
que atuavam, principalmente como professores catedráticos. Para além disso, estavam inseridos na política estadual, alguns
também na política nacional, exercendo cargos políticos, ou
atuando indiretamente.
A Faculdade de Filosofia da Bahia foi criada em
1941, a Universidade da Bahia em 1946 com a anexação
das faculdades existentes, adequando-se, assim, à política
educacional estado-novista. Através da análise de trajetórias
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Práticas Políticas e Sociabilidade Intelectual na Bahia: 1940-1950
dos professores fundadores da Faculdade de Filosofia da Bahia
é possível identificar suas posturas políticas e atrelá-las a seus
comportamentos intelectuais, quando cultura e política tornamse “componentes indissolúveis do mesmo processo”.9
Ângela de Castro Gomes nos adverte que os locais de
sociabilidade intelectual de uma determinada geração “podem
ser indicadores valiosos pra análise de movimentos de produção
e circulação de idéias”.10 No caso da Bahia estado-novista dois
destes lugares são o IGHB e a ALB – além da própria Faculdade de
Filosofia. A análise destes locais privilegiados enquanto centros
produtores e difusores de saber, e da atuação desta geração
específica e das suas condições particulares de produção – além
do seu comprometimento político – em suas estruturas permite
“elucidar aspectos da constituição de uma formulação intelectual,
de sua vitalidade e continuidade através do tempo.”11
Um estudo que traz reflexões importantes é o de Michel
Trebitsch. Primeiro quando indaga sobre as formas pelas
quais um universo intelectual produz suas idiossincrasias.12
Depois, ao defender a idéia de que arenas de sociabilidade são
imprescindíveis para a produção intelectual.13 As premissas
estabelecidas por este autor oferecem a perspectiva de enaltecer
as especificidades deste grupo de intelectuais baianos em seus
centros de sociabilidade que se conformam como bancadas para
o debate erudito e para disputas políticas.
Jean-François Sirinelli, por sua vez, conclama o historiador
que estuda a sociabilidade intelectual a construir um mosaico
de possibilidades de forma que toda e qualquer circunstância de
produção ou atuação intelectual seja inteligível.14 Assim, propor
uma história dos intelectuais pautada nas redes de sociabilidade
significa
seguir as trajetórias de indivíduos e grupos buscando mapear suas
idéias, tradições, comportamentos, formas de organização, de
modo que seja possível caracterizar e compreender seus esforços de
reunião e de afirmação de identidade em determinados momentos.15
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Vanessa Magalhães da Silva
Paulo Santos Silva informa que, para além dos diversos
laços de parentescos, longas amizades, credos políticos,
casamentos, apadrinhamentos e outros, um aspecto importante
“é que os baianos sempre se dedicavam a escrever uns sobre
os outros, traço comum a qualquer agrupamento que busca
unidade ou pretende manter-se coeso.”16 Havia os discursos de
posse da Academia de Letras da Bahia e textos biográficos. Ainda
sobre a coesão, Silva acrescenta:
A produção intelectual veiculada pelas revistas do IGHB e da ALB
revela o quanto esta comunidade era auto-centrada: a maior parte
dos textos publicados entre 1930 e 1945 refere-se a personalidades
locais, traçando-lhes os perfis biográficos, o que, de resto, significava
cumprir os objetivos programáticos dos dois referidos periódicos.
Assim, os intelectuais baianos mantinham viva a memória e
construíam para si, a partir de cada membro, uma imagem
positiva, reforçadora da coesão dessa pequena comunidade.17
É necessário ressaltar a importância das revistas
para difusão de ideias e instrumentos constitutivos de uma
sociabilidade intelectual e institucional. Elas foram também
utilizadas pela Universidade da Bahia como meio de difundir as
produções universitárias e mesmo dar continuidade ao habitus
da sociedade baiana daquele momento.18 As práticas não se
modificaram, apenas foram adaptadas a partir do surgimento
da nova instituição, os intelectuais eram os mesmos e apenas
alguns anos depois essas redes foram inovadas, ainda assim, com
a permanência de muitos da geração anterior. O que significa
dizer que os modos de ação e atuação não mudaram, as revistas,
os discursos, os debates apenas tomaram novos espaços. Esses
intelectuais não estavam assumindo uma nova categoria, mas
o que se processava era uma extensão daquilo que faziam
anteriormente.
Se Trebitsch está correto ao defender que a história dos
intelectuais se pauta em representações de uma comunidade
idílica19, os intelectuais são vistos como produtores de bens
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simbólicos e como mediadores culturais que têm sua atuação
atrelada ao surgimento de um espaço público que, como afirma
Roger Chartier, dá sentido às suas atividades culturais ao tempo
em que lhes confere doses de autonomia.20
É preciso considerar a relevância do papel social e
histórico que uma coletividade desempenha, neste caso, na
conformação de instituições e/ou de grupos sociais específicos
e da prosopografia21 como elemento a ser utilizado para
apreensão dos significados das representações que marcam as
ações destes grupos. A prosopografia é uma ferramenta que
auxilia a análise dos intelectuais enquanto grupo (coletividade)
institucionalmente (IGHB, ALB, Faculdade de Filosofia)
articulada.
A coletividade pode ser associada à construção de
uma identidade letrada, mesmo que endogenamente haja
todos os tipos de cisões. Embora apresentando dissidências
em diversos departamentos, o grupo pode se tornar coeso
(“coletivo”) na medida em que apresenta um projeto intelectual
integrado.22 Seriam as formas particulares de “pensar e agir
de uma comunidade intelectual”23 específica, caracterizadas
conjunturalmente pelas possibilidades de um contexto que
circunscreve suas faculdades de captar a realidade e refletir
sobre ela. Daí nasce a necessidade de entender as suas práticas
intelectuais enquanto práticas de um grupo específico, “seu
modo de ser (...), suas estratégias, seus habitus.”24
É importante refletir sobre as funções sociais que estes
intelectuais poderiam assumir – suas posições não apenas na
Faculdade, mas também nas outras instituições intelectuais de
prestígio da época, IGHB e ALB, especificamente – graças à sua
competência e erudição25, assunto tão recorrente em suas pastas
pessoais.
Apresenta-se como sendo de fundamental importância
o devido estabelecimento das relações entre o contexto estadonovista e as instituições culturais – como IGHB e ALB – que
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Vanessa Magalhães da Silva
muitas vezes se configuraram como instrumentos do Estado. Não
nos esqueçamos que a própria Faculdade foi idealizada por um
dos mais eminentes integralistas do cenário político baiano, o
educador Isaías Alves. Esse pano de fundo histórico é fulcral para
o entendimento das tentativas e possibilidades de interferência
desses intelectuais na conformação de sua sociedade.
A ALB foi fundada em 07 de março de 1917, data em
que, 193 anos antes, havia sido criada a Academia Brasílica dos
Esquecidos, a primeira academia deste gênero no Brasil. Fundada
em Salvador, a Academia dos Esquecidos durou menos de um
ano, seus trabalhos foram retomados depois, em 1759, pela
Academia Brasílica dos Acadêmicos Renascidos – assim chamada
por conta da retomada da proposta da academia anterior – que
também teve duração efêmera. Por ter sido criada na Bahia a
primeira academia, Austregésilo de Athayde sugeriu que fosse
escrito no emblema da nova instituição o seguinte: “Primeira
Academia de Letras do Brasil”. A iniciativa de criar a Academia
foi de Arlindo Fragoso, engenheiro, que também esteve ligado à
ideia de criação da Escola Politécnica da Bahia, em 1897.26
O IGHB é uma entidade anterior à ALB, surgiu em 13
de maio de 1894. Segundo Aldo Silva, a instituição fora criada
para servir como espaço de interlocução das elites, centro
privilegiado para a reflexão e produção de um saber específico,
absolutamente articulado às idiossincrasias locais.27
Os locais de sociabilidades eram também ambientes
favoráveis às discussões e debates políticos. Algumas instituições
se destacavam como núcleo de oposição ou a favor dos governos.
Segundo Sirinelli, “todo grupo de intelectuais organiza-se também
em torno de uma sensibilidade ideológica ou cultural comum
e de afinidades mais difusas, mas igualmente determinantes,
que fundam uma vontade e um gosto de conviver.” O autor
acrescenta, ainda, que essas “são estruturas de sociabilidade
difíceis de apreender, mas que o historiador não pode ignorar ou
subestimar”.28 A USP foi um dos núcleos de oposição ao Estado
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Novo,29 assim como a Faculdade de Direito da Bahia, que trazia
em seu quadro docente membros da Concentração Autonomista,
grupo político baiano de oposição ao governo Vargas. Orlando
Gomes e Nestor Duarte, por exemplo, eram professores da FDB
e faziam parte dos Autonomistas.
Luiz Viana Filho, Aloysio de Carvalho e Antônio Balbino de
Carvalho Filho, professores fundadores da Faculdade de Filosofia
da Bahia, também fizeram parte da Concentração Autonomista
da Bahia, partido político que fez oposição ao governo Vargas e
ao interventor Juracy Magalhães (que era cearense) e defendia,
como sugere o próprio nome, uma autonomia política da Bahia e
aspirava à volta à democracia. Apesar de ter feito parte da CAB,
Antônio Balbino tornou-se Ministro da Educação e Saúde do
segundo governo Vargas.
A ocupação de cargos políticos consiste em outro campo
de atuação intelectual. Dentre os professores que exerceram
cargos políticos, destacamos Antônio Balbino de Carvalho Filho,
que foi Governador da Bahia, Deputado Federal, Ministro da
Educação e Saúde do governo Vargas, Ministro dos Negócios
da Indústria e Comércio do governo João Goulart; Lafayette de
Azevêdo Pondé, Secretário do Interior e Justiça na interventoria
federal de Landulpho Alves, Presidente do Tribunal de Contas
do Estado da Bahia, Promotor de Justiça, Procurador-Geral do
Estado da Bahia; Luiz Viana Filho atuou como Chefe do Gabinete
Civil do governo Castelo Branco, Governador da Bahia, Deputado
Federal, Senador. Além disso, ficou conhecido como ‘príncipe
dos biógrafos’, expressão cunhada por Alceu de Amoroso Lima,
por conta das tantas biografias que escreveu: Rui Barbosa, Anísio
Teixeira, Joaquim Nabuco, Barão do Rio Branco, Machado de
Assis, Eça de Queiroz, José Bonifácio, José de Alencar. Assim, Luiz
Viana Filho30 corporifica as múltiplas funções que os acadêmicos
poderiam assumir, tendo sido professor, político, jornalista,
acadêmico, escritor, biógrafo.
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Vanessa Magalhães da Silva
Apesar de trabalharmos com aproximações, não
queremos – tampouco podemos – homogeneizar esse grupo.
Destacamos que existiam as peculiaridades. Nem todos os
professores atuavam na política baiana. Um exemplo que
corrobora com essa perspectiva é o do professor Thales de
Azevedo que não tinha relação próxima com a política. Ao
ser perguntado qual figura política ele admirava, o professor
responde:
Não tenho a lembrança mais viva, quem eu possa
recordar. O Getúlio sempre me chamou atenção pelo
personalismo, por aquela tendência ditatorial (...). Eu não
participava da política na Bahia, aquilo pouco me tocava.31
O que não o impediu de escrever sobre política em seus
escritos jornalísticos, como os artigos publicados no jornal A
Tarde: “Contradições de conjuntura política”, 12 de setembro
de 1961; “Eleitos e eleitores”, 14 de novembro de 1986 e
“Governo e povo na democracia” de 28 de julho de 1989, além
de outros.
Os intelectuais estavam envolvidos em partidos políticos
e muitos produziram a partir de suas experiências políticas.
Herbert Parentes Fortes foi catedrático de Literatura Latina e
um líder da Ação Integralista Brasileira na Bahia. O professor
Godofredo Filho também foi integralista, como ele mesmo
apontou na carta enviada a Anísio Teixeira, em 27 de maio se
1933.
– Em fins de Junho darei um salto até aí (Rio de Janeiro).
Levo um livro definitivo para editar. E com ele ficará encerrado
o ciclo poético. Trabalho, agora, “As Razõis do Integralismo”.
É doutrina. Ia esquecendo de lhe dizer, Anisio: fórmo, aqui, na
vanguarda integralista. Hoje, tem que ser assim. Estamos na hora
das afirmaçõis supremas: direita ou esquerda. Os cépticos a Jayme
Ayres, não ha logar para eles. Ou servirão de arena onde nós
devoraremos os nossos inimigos ou seremos engulidos. Cave leonem.32
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Práticas Políticas e Sociabilidade Intelectual na Bahia: 1940-1950
Representação simbólica: os quadros
Há no universo político e intelectual uma representação
simbólica. No caso em estudo, além dos discursos e da produção
intelectual, há uma busca do simbólico representado através de
quadros que retratam alguns dos mais eminentes professores
da Faculdade de Filosofia da Bahia. Estes quadros, que se
configuram, a um só tempo, como parte da cultura material da
Faculdade de Filosofia da Bahia e da sua história intelectual,
podem, sem dúvida, contemplar a agenda proposta por Ulpiano
Meneses de temas que enriqueçam as relações analíticas que
colocam história e campo visual frente a frente.33
Os quadros eram uma das formas através das quais
a perenidade – talvez imortalidade seja um termo carregado
demais, mesmo considerando que expresse melhor o anseio dos
envolvidos – da atuação intelectual dos professores poderia ser
celebrada. Ela se associava à produção intelectual completando-a
na condição de memória visual34 e desempenharia o papel
de enaltecer, o retratado, em locais e contextos diversos.
Concordamos com Simões Filho que “o fato de estabelecer uma
imagem pública e institucional foi o que conferiu valor social para
esse gênero de representação”.35
É possível encontrar em algumas pastas36 informações
sobre datas de inauguração dos retratos. O professor Carlos
Chiacchio faleceu em 1947 e em sua pasta consta um documento
da Conferência realizada no Salão Nobre da Reitoria por ocasião
da inauguração de seu retrato, no dia 28 de outubro de 1948.
Leda Jesuíno37 fez a conferência de inauguração e definiu o que
se pretendia com a colocação do retrato: “Esses aqui estão,
lamentando tão cedo tivesse findado a curva biológica, e por isso
mesmo desejando materializar vossa presença.”38
Assim, refletimos sobre como uma fonte visual, que
integra os quadros da cultura material de uma universidade
baiana, pode se transformar em informação sobre o passado
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Vanessa Magalhães da Silva
e elemento a partir do qual signos possam ser identificados,
tornando inteligíveis caracteres desta sociedade na qual o retrato
era uma arte distintiva.
A recepção, elemento que não pode ser desconsiderado
em suas diversas formas possíveis, entra em jogo atrelada a
um dos objetivos da produção material-imagética: a criação de
locais de memória, nos quais os mais proeminentes intelectuais
– ainda que seja difícil a distinção dos selecionados a serem
retratados – seriam relembrados por suas ações/produções,
pelo seu pertencimento ao grupo específico de homens de saber
que fizeram parte do universo de professores da Faculdade de
Filosofia da Bahia. Estes locais, além de invocar a identidade
local, evocariam “os tempos pretéritos consolidando a memória
institucional”.39 Desta forma, a Faculdade sacramentava sua
temporalidade na condição de espaço cultural através da
lembrança.40
Há alguns traços nos quadros que podem ajudar a
comprovar isso, como por exemplo, as roupas que trajam os
retratados. Elas obedecem a uma linearidade e os docentes
portam suas becas que servem para distingui-los de outros que
não fazem parte desta coletividade específica. Na condição de
retratados, os professores são a representação do corpo docente
da Faculdade de Filosofia da Bahia e, portanto, abandonam
momentaneamente suas particularidades para se transformar
em membros de uma corporação em nome da qual falam.41
Cabe, então, estabelecer os diversos propósitos que
motivaram os realizadores do processo de confecção dos
quadros dos professores da Faculdade de Filosofia da Bahia em
suas múltiplas fases, diferenciando idealizadores e executores,
tentando entender as ambivalências de seus anseios e a medida
em que a idealização foi cumprida quando da execução das
tarefas encomendadas. Mesmo que tenham acatado ordens
diretas e restritas, os pintores sempre carregam doses variadas
de subjetividade que marcam seu estilo, suas preferências e
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Práticas Políticas e Sociabilidade Intelectual na Bahia: 1940-1950
influências artísticas e o resultado, por mais pragmático que
pareça, está impregnado pela mundividência do autor.
Três pintores foram contratados para execução dos
quadros. Emídio Magalhães Lima, Manoel Ignácio de Mendonça
Filho e Oscar Caetano da Silva eram nomes expressivos da arte na
Bahia. O primeiro, nome conhecido na Bahia por ser um retratista,
recebia diversas encomendas e seu trabalho era voltado para os
retratos. Autointitulava-se como pintor realista. Mendonça Filho
não era um pintor de retratos, sua arte estava mais próxima do
impressionismo, com linhas esvoaçantes, sem maiores detalhes.
Oscar Caetano foi engenheiro e arquiteto, responsável por
inúmeras construções civis em Salvador e no interior do estado.
Interessante assinalar que os três eram componentes do quadro
docente da Universidade da Bahia, o que estimula a formulação
de uma pergunta: qual a relação entre artista e modelo?
Esses pintores, que recebiam encomendas para fazer os
retratos, faziam parte do mesmo ambiente universitário que seus
retratados. Às vezes tinham a mesma formação – Oscar Caetano,
desempenhando sua função de engenheiro e arquiteto, trabalhou
em locais que professores da FFB trabalharam. A maior parte do
conjunto arquitetônico e urbanístico da Estância Hidromineral
de Cipó foi construída por ele, na década de 30.42 O professor
Aristides Gomes foi prefeito da dessa mesma Estância, em 1938,
o que indica, de alguma forma, a relação desses profissionais.
Porém, não sabemos até que ponto essas relações favoreceram
a contratação desses pintores. Não podemos afirmar que todos
os retratos foram encomendados, apesar de ser uma prática da
época, não dispomos de documentos e fontes que nos permitam
afirmar essa hipótese.
As obras dos três autores têm características próprias.
Os retratos pintados por Emídio Magalhães carregam detalhes
nas formas, nos traços dos rostos, nas linhas de expressão
de cada retratado. O olhar nos retratos feitos por esse pintor
tem uma expressão muito forte, cuidadosamente traçado.
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Vanessa Magalhães da Silva
A pintura se aproxima muito da fotografia. Os retratos são
sóbrios e minuciosos, características do realismo. Linearmente,
a obra de Oscar Caetano se aproxima de Emídio Magalhães,
porém com menos destaque nas expressões, nas linhas. As
pinturas do professor Mendonça Filho não retratam as formas
minuciosamente, os traços aparecem com pouca nitidez,
característica do impressionismo, no qual as figuras não
deveriam ter formas nítidas. O contraste das cores, sem traços
definidos marca a obra desse pintor.
Quanto ao modelo dos retratos, eles seguem o mesmo
padrão. Ao que parece, a intenção era única: retratar o professor
e expor esses quadros na Galeria de Mortos Ilustres, local
disposto na Faculdade anteriormente. A referência a essa galeria
encontramos na pasta do professor Manuel Peixoto, em um
documento enviado à senhora Irene Baker, no qual a Faculdade
a convidava para a inauguração do retrato do professor Peter
Baker na referida Galeria, no dia 22 de abril de 1966.
Características como a paisagem não podem ser
analisadas, já que os retratistas pintavam os quadros a partir de
retratos, e estes, geralmente, eram feitos num mesmo padrão,
com um tom acinzentado ao fundo, não representando nenhum
tipo de ambiente. Todos os docentes retratados estão de becas,
com nuances de cor entre o azul marinho e o roxo, que era a cor
original da beca e da Filosofia. Essa indumentária é um distintivo
daquele grupo, podemos justificar essa afirmação comparando os
retratos dos docentes como o de um único funcionário retratado,
que está trajado de paletó e camisa branca. O professor Carlos
Chiacchio foi retratado de perfil e não é possível observar seu
olhar, os outros docentes nem sempre estão de frente, mas
apenas um pouco de lado, o que permite perceber seus rostos e
seus olhares.
Para além do simbólico e das representações, as atuações
intelectuais permeiam outros campos. As práxis podem ser
políticas, culturais, educacionais ou artísticas. As sociabilidades
estão presentes em diversos ambientes e instituições, bem como
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múltiplas inserções e vínculos. Traços da cultura material que,
produzidos sob os auspícios de uma elite política num contexto
antidemocrático e conservador por excelência, apontam os
mecanismos utilizados por elementos destas elites que buscavam
prestígio social através da atuação intelectual para sacramentar
suas ações e preservar sua memória, num período em que o
culto da personalidade era a tônica da atuação na vida política.
Considerações finais
A partir da dinâmica de participação e inserção nos meios
intelectuais, fossem eles acadêmicos ou não, percebemos que a
atuação política era emblemática. Poder e legitimação estavam
em constante diálogo, estabelecendo, assim, as vivências, as
disputas e as atuações dentro de um mesmo grupo e de diversos
espaços intelectuais. A essas práticas políticas acrescentamos
as práticas intelectuais, responsáveis por criar redes de
sociabilidades nem sempre homogêneas, mas com interesses
específicos.
O trânsito por instituições de saber na Bahia da primeira
metade do século XX é característico da elite letrada local. Fazia
parte da identidade intelectual e política. Uma atitude legitimava
a outra, ao tempo em que esses personagens atuavam em um
determinado espaço, estavam diretamente ligados a outros. Se a
erudição era um diferencial desses grupos, esta era demonstrada
nos jornais locais. Artigos, contos, poesias, crônicas e críticas
estavam estampados nos impressos baianos diariamente.
O Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, a Academia de
Letras da Bahia e as faculdades de Medicina, Direito, Engenharia
e Filosofia – posteriormente a Universidade da Bahia – eram
nichos de debates, disputas, representação e legitimação de
uma postura própria, intelectual, política e, principalmente,
mantenedora do status quo, no qual o poder e o saber estavam
muito bem definidos dentro daquela sociedade baiana.
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Vanessa Magalhães da Silva
Notas e Referências
* Graduada em História pela Universidade Federal Fluminense e mestranda
pela mesma Universidade sob orientação de Guilherme Pereira das Neves.
1
Sobre as transições políticas e os intelectuais ver PÉCAUT, Daniel. Os
intelectuais e a política no Brasil: entre o povo e a nação. Tradução: Maria
Júlia Goldwasser. São Paulo: Ática, 1990.
2
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. Tradução:
Carlos Nelson Coutinho. 4.ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p.
3-23.
3
Ver CUNHA, Luiz Antônio. A Universidade Temporã: o ensino superior da
Colônia à Era de Vargas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira/UFC, 1980.
4
OLIVEIRA, Lúcia Lippi (coord.). Elite intelectual e debate político nos anos 30:
uma bibliografia comentada. Brasília/Rio de Janeiro: INL/FGV, 1980, p. 52.
5
PANDOLFI, Dulce Chaves (org.). Repensando o Estado Novo. Rio de Janeiro:
FGV, 1999, p. 10.
6
Ibidem.
7
PÉCAUT, op. cit., p. 34.
8
Ibidem.
9
MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira. São Paulo: Ática,
1980, p. 19.
10
GOMES, Ângela de Castro. História e historiadores. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 1999, p. 41-42.
11
GOMES, op. cit., p. 42.
12
TREBITSCH, Michel. “Avant-propos: la chapelle, le clan et le microcosme”.
Le Cahiers de l’Institut d’ Histoire du temps présent. Paris: CNRS, nº 20, mars,
1992, p. 15-18.
13
Ibidem, p. 17-20.
14
SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In: REMOND, René (org.). Por
uma história política. Tradução: Dora Rocha. 2.ed. Rio de Janeiro: Editora FGV/
UFRJ Editora, 1996, p. 250-255.
15
GONTIJO, Rebeca. “História, cultura, política e sociabilidade intelectual”. In:
SOIHET, Rachel, BICALHO, Maria Fernanda Baptista, GOUVÊA, Maria da Fátima
Silva (orgs.). Culturas políticas: ensaios de história cultural, história política e
ensino de história. Rio de Janeiro: Mauad, 2005, p. 277.
16
SILVA, Paulo Santos. Âncoras de Tradição: luta política, intelectuais e
construção do discurso histórico na Bahia (1930-1949). Salvador: EDUFBA,
2000, p. 103.
17
Ibidem.
18
Essas publicações estavam previstas no próprio estatuto da UBa: “Art. 72º –
A universidade publicará Arquivos, que serão constituidos de tantos volumes
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quantas as unidades universitárias e destinados á divulgação de trabalhos
originais de natureza exclusivamente técnico-cientifica.” In: “Estatuto da
Universidade da Bahia”. Arquivo Clemente Mariani, CMa mes ce 1947.05.2112,
documento 38. FGV/CPDOC. Rio de Janeiro-RJ.
19
TREBITSCH, op. cit., p. 20-21.
20
CHARTIER, Roger. História cultural: entre práticas e representações.
Tradução: Maria Manuela Galhardo. Lisboa: Difel, 1991, p. 15-20.
21
BULST, Neithard. “Sobre o objeto e o método da prosopografia”. Revista
Politéia: História e Sociedade. Vitória da Conquista: Edições UESB, v. 5, nº 1,
2005, p. 47. Para uma análise pormenorizada ver HEINZ, Flávio Madureira. Por
outra história das elites. Rio de Janeiro: FGV, 2006.
22
EL FAR, Alessandra. A encenação da imortalidade. Rio de Janeiro: Editora
FGV, 2000, p. 69.
23
SILVA, Helenice Rodrigues de. “A história intelectual em questão.” In: LOPES,
Marcos Antônio. Grandes nomes da história intelectual. São Paulo: Contexto,
2003, p. 16.
24
Ibidem.
25
VERGER, Jacques. Homens e saber na Idade Média. Tradução: Carlota Boto.
Bauru: Edusc, 1999, p. 17.
26
Sobre a fundação da ALB, ver http://www.academiadeletrasdabahia.org.br/
Pdf/Historia_ALB.pdf (Texto de Jorge Calmon). Sobre a Academia Brasílica dos
Esquecidos, ver MORAES, Carlos Eduardo Mendes de. A Academia Brasílica
dos Esquecidos e as práticas de escrita no Brasil Colonial. 1999. 271 f. Tese
(Doutorado em Letras) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1999. Sobre a Academia Brasílica dos
Acadêmicos Renascidos, ver PESSOTI, Bruno Casseb. Ajuntar manuscritos,
e convocar escritores: o discurso histórico institucional no setecentos lusobrasileiro. 2010. 282 f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2009. Sobre a fundação da Escola Politécnica, ver http://www.eng.ufba.br/
aescola.htm.
27
SILVA, Aldo José Morais. Instituto Geográfico e Histórico da Bahia: origens
e estratégias de consolidação institucional (1894-1930). 2006. 250 f. Tese
(Doutorado em História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2006, p. 15-16.
28
SIRINELLI, in RÉMOND, op. cit., p. 248.
29
Nobre apud VELLOSO, Mônica Pimenta. “Cultura e poder político: uma
configuração do campo intelectual”. In: OLIVEIRA, Lúcia Lippi; VELLOSO,
Mônica Pimenta; GOMES, Ângela de Castro. Estado Novo: ideologia e poder.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 105 (nota 18).
30
Para uma biografia de Luiz Viana Filho ver FONSECA, João Justiniano da. A
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vida de Luiz Viana Filho. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2005.
31
“Thales de Azevedo: desaparece o último dos pioneiros dos antropólogos
brasileiros de formação médica”. Entrevista de Thales de Azevedo a Marcos
Chor Maio. Revista Manguinhos. Rio de Janeiro: Casa de Osvaldo Cruz/Fiocruz,
v. 3, n. 1, mar./jun. 1996, p. 146 (grifos nossos).
32
Correspondência entre Anísio Teixeira e Godofredo Filho sobre assuntos
de cunho pessoal. Bahia. Arquivo Anísio Teixeira. AT c 1928.05.17, c
Correspondência, 17/05/1928, rolo 36 fot. 764, documento 4. FGV/CPDOC.
Rio de Janeiro-RJ. (Mantivemos a grafia original).
33
MENESES, Ulpiano T. Bezerra de. “Fontes visuais, cultura visual, história
visual. Balanço provisório, propostas cautelares”. Revista Brasileira de
História, vol.23, nº45, São Paulo, Julho, 2003, p. 11-36.
34
EL FAR, op. cit., p. 93.
35
SIMÕES FILHO, Afrânio Mário. Retratos baianos: memória e valor de culto
na Primeira República (1889-1930). 2003. 187 f. Dissertação (Mestrado em
Artes Visuais) – Escola de Belas Artes, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2003, p. 8.
36
Uma de nossas fontes são as pastas administrativas dos docentes que se
encontram no Arquivo da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas/UFBA.
37
Leda Jesuíno foi aluna da primeira turma de Filosofia da Faculdade da Bahia,
formando-se em 1945, tornou-se, posteriormente, professora da FFB.
38
Leda Jesusino. “Conferência realizada no Salão Nobre da Faculdade de
Filosofia da Universidade da Bahia por ocasião da inauguração do retrato
do prof. Dr. Carlos Chiacchio no dia 28 de outubro de 1948”, p. 28. Pasta
administrativa do Professor Carlos Chiacchio que se encontra no Arquivo da
FFCH/UFBa. Este texto parece ser o original datilografado, mas esse mesmo
texto foi publicado nos Arquivos da Universidade da Bahia – Faculdade de
Filosofia. Salvador, vol. II, 1953, com o título “Chiacchio, o Mestre”.
39
EL FAR, op. cit., p. 96.
40
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. “Vendo passado: representação e escrita
da história”. Anais do Museu Pau1ista, vol.15, nº2, São Paulo, Jul/Dez. 2007.
41
EL FAR, op. cit., p. 102-103.
42
Disponível em: http://www.cidades.gov.br/secretarias-nacionais/
programas-urbanos/Imprensa/reabilitacao-de-areas-urbanas-centrais/
noticias-2008/marco/ipac-inicia-tombamento-de-conjunto-arquitetonicourbanistico-de-cipo/. Acesso em abril de 2009.
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RESUMOS | ABSTRACTS
Criminosos, polícia e políticos em letras impressas: jornais
cariocas, criminalidade na cidade do Rio de Janeiro e fraudes
eleitorais no início do século XX
Ana Vasconcelos Ottoni
Resumo: Este trabalho analisa como a imprensa carioca tratava
a relação entre a expansão da criminalidade no Rio de Janeiro
do início do século XX e o relacionamento dos criminosos e da
polícia com os políticos, em meio às fraudes eleitorais da época.
Investiga também como os jornais articulavam a discussão sobre
tal relacionamento e a criminalidade com as suas posições em
relação às candidaturas presidenciais de marechal Hermes da
Fonseca e Rui Barbosa na campanha eleitoral de 1909 e 1910.
Palavras-chave: Imprensa, criminalidade no Rio de Janeiro,
fraudes eleitorais
Abstract: This paper analyses how the local press dealed with the
relation between the criminality expansion in the city of Rio de
Janeiro of the XX century beginning and the relationships involving
criminals and the police with politicians and electoral frauds of
that time. It also investigates how the newspapers managed
the discussion about such relationships and the criminality
concerning their positions with respect to the presidential
candidacy of marshal Hermes da Fonseca and Rui Barbosa in the
1909 and 1910 electoral campaign.
Keywords: Press, criminality in Rio de Janeiro, electoral frauds
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Resumos | Abstracts
A Restauração na Bahia: um estudo sobre as relações entre os
poderes do centro e o poder local (1644-1645).
Érica Lopo
Resumo: A partir da reconstituição de um conflito que envolveu
membros do poder eclesiástico, o ouvidor-geral Manuel
Pereira Franco e o governador-geral Antônio Telles da Silva na
capitania da Bahia (1644-1645), este trabalho tem como objetivo
compreender como se davam as negociações entre os agentes
do poder na capital do Brasil após a Restauração Portuguesa
de 1640 pretende-se analisar as relações estabelecidas entre
Coroa, governo-geral, justiça e poder local através da leitura de
correspondências régias, regimentos e Consultas do Conselho
Ultramarino
Palavras-Chave: Conflito, poder, negociação.
Abstract: From the reconstruction of a conflict involving
ecclesiastical power, the general-ouvidor Manuel Pereira Franco
and the general-governor Antônio Telles da Silva, in captaincy of
Bahia (1644-1645), this work has the purpose to understand how
negociation took place among the agents of Power in the capital
of Brazil after the Portuguese Restauration in 1640. Through the
reading of Royal mail, regiments and consults of the Ultramarino
Council, this paper intends to analise the relationship among
Crown, general-government, justice and local power.
Keywords: Conflict, power, negociation.
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Resumos | Abstracts
Cultura Política e Cidadania no Brasil (1986-2002): A
construção de uma visão de mundo neoliberal.
Flávio Henrique Calheiros Casimiro
Resumo: O artigo discute o processo de redefinição do conceito
de cidadania no Brasil, de 1986 a 2002. Essa cultura, fundada
na forte valorização da imagem e do consumo encontra no
neoliberalismo seu embasamento teórico e veículo ideológico
fundamental. Entendemos que o pensamento liberal conseguiu
impor determinados significados ao termo “modernização” por
oposição ao que qualificam como “atraso”, por meio de um
processo de ressignificação do passado, condicionando a própria
percepção do presente pelos diferentes grupos sociais.
Palavras-chave: Cultura política, cidadania e neoliberalismo.
Abstract: The paper discusses the process of redefinition of
the concept of citizenship in Brazil, from 1986 to 2002. That
culture based on the strength valorization of the image and
consume finds in the neoliberalism its theoretical basement and
its fundamental ideological medium. We understand that the
liberal thought achieved to impose determined meanings to the
“modernization” term by the opposition to what is qualified as
“backwardness” by means of a re-signification process of the
past, bringing the perception of the present by different social
groups.
Keywords: Political culture, citizenship and neoliberalism.
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Resumos | Abstracts
Sociedade de Geografia do Rio de Janeiro: espaço de tradição
e de modernidade nas primeiras décadas do século XX .
Luciene Pereira Carris Cardoso
Resumo: O artigo aborda a atuação da Sociedade de Geografia do
Rio de Janeiro nas primeiras décadas do século XX, ressaltando
as suas relações com o governo republicano. A instituição
criada no final dos Oitocentos empenhou-se na promoção de
atividades acadêmicas e na publicação de obras voltadas para
despertar sentimentos cívicos, que buscavam descortinar o país
aos brasileiros.
Palavras-chave: história institucional – território – sociedade de
geografia
Abstract: The article intends to approach the performance of
the Society of Geography of Rio de Janeiro in the first decades
of century XX, standing out its relations with the republican
government. The institution created in the end of the Eight
hundred, was pledged in the promotion of academic activities and
the publication of directed workmanships to awake civic feelings,
that they searched to disclose the country to the Brazilians.
Keywords: institucional history
society
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– territory – geographical
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Resumos | Abstracts
O homem, o papel e a estrela: de como o exército
revolucionário do povo escreveu aos argentinos.
Marina Maria de Lira Rocha
Resumo: Este trabalho pretende analisar as publicações do ERP
argentino entre Junho de 1975 e o golpe militar de 1976. Anseiase comparar discursos, críticas e estratégias de convencimento
da opinião pública a partir de três publicações produzidas
pelo grupo – El Combatiente, Solicitadas e Estrella Roja. Tentar
perceber, assim, a elaboração, vinculada a sua posição ideológica,
de argumentos comuns e disputados na época, referentes,
principalmente, a violência, a subversão e a repressão.
Palavras-Chave: Argentina, Guerrilha, Subversão
Abstract: This paper aims to analyze the publications of the ERP
Argentina between June 1975 and the military dictatorship of
1976. It’s anxious to compare speeches, critics and strategies to
convince the public opinion based on three publications produced
by the group - El Combatiente, Solicitadas and Estrella Roja.
Therefore, find the development of the common arguments and
disputes at the time, especially, referring of violence, subversion
and repression.
Keywords: Argentina, Guerilla, Subversion
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Resumos | Abstracts
A Ordem Beneditina e o Governo: Acordos e Conflitos
na Corte Imperial.
Paulo Henrique Silva Pacheco
Resumo: O cotidiano das ordens religiosas no Brasil adquiriu um
novo ritmo a partir do século XVIII. Ameaças externas abalaram
as bases da crença católica, favorecendo a instituição de alguns
acordos com o Governo Imperial, gerando esperanças e também
descontentamentos. No caso dos beneditinos, principalmente a
política de restrição dos monges nos claustros, propiciou uma
crise no mosteiro do Rio de Janeiro no período oitocentista.
Caberá analisar neste artigo as decisões tomadas pelos religiosos
ante as medidas imperiais.
Palavras-chave: Congregação Beneditina, Crise monástica, Rio de
Janeiro.
Abstract: The daily life of religious orders in Brazil has acquired a
new pace from the 18th century. External threats have shaken the
foundations of Catholic belief, favouring the imposition of some
agreements with the imperial government, generating hopes and
also discontent. In the Benedictine’s case, especially the policy of
restriction of the monks in cloisters, at the beginning of a crisis in
Rio de Janeiro monastery in the eighteenth century. This article
shall be to examine the decisions taken by the religious before
measures imperial.
Keywords: Benedictine Congregation, Crisis as monks, Rio de
Janeiro.
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Resumos | Abstracts
Nas Sombras da Libertinagem - reflexões iniciais sobre a
trajetória de Francisco de Mello Franco (1757-1822)
Rossana Agostinho Nunes
Resumo: O trabalho tem por objetivo lançar reflexões sobre a
trajetória do luso-brasileiro Francisco de Mello Franco (17571822). Condenado pela Inquisição em 1779 e autor de obras
anônimas (1785-1794), foi ainda membro da Academia Real
das Ciências de Lisboa, médico da Câmara Real e obteve graças
régias. Deste modo, pretendo refletir sobre a tensão entre a
repressão oficial e a conquista de mercês que marca a trajetória
da personagem.
Palavras-chave: Francisco de Mello Franco. Libertino. Iluminismo
Luso-Brasileiro.
Abstract: The paper aims to reflect about the trajectory of
the Luso-Brazilian Francisco de Mello Franco (1757-1822).
Condemned by Inquisition in 1779 and writer of anonymous
books (1785-1794), was also member of the Royal Academy of
Science of Lisbon, Royal physician and received Royal’s grace.
Thus, the objective of this article is to reflect about the tension
between the official repression and the conquest of graces which
involve his trajectory.
Keywords: Francisco de Mello Franco. Libertine. Luso-Brazilian
Enlightenment.
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Resumos | Abstracts
Práticas Políticas e Sociabilidade Intelectual na Bahia:
1940-1950.
Vanessa Magalhães da Silva
Resumo: A Faculdade de Filosofia da Bahia foi fundada por
nomes da elite baiana. Alguns dos docentes foram membros
da Academia de Letras da Bahia e do Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, formando, assim, redes de sociabilidades.
Enquanto homens de saber, alguns exerceram cargos políticos,
e é esse campo de atuação que pretendemos discutir neste
artigo, analisando como esses intelectuais estavam envolvidos
na política baiana, ao tempo em que atuavam como educadores
e, por quais meios buscavam legitimar suas atuações.
Palavras-chave: Política; sociabilidade intelectual; Bahia século
XX.
Abstract: The Faculdade de Filosofia da Bahia was founded by
names of the Bahia elite. Some of the teachers were members
of the Academia de Letras da Bahia and Instituto Geográfico e
Histórico da Bahia, thus forming a network of sociability. While
men of knowledge, some occupied political positions, and it is
this field of activity we want to discuss in this article, analyzing
how these intellectuals were involved in the Bahia politics at the
same time they working as educators, and the means they used
to legitimize their actions.
Keywords: Politics; intellectual sociability; Bahia XX century.
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NORMAS EDITORIAIS
1. Só serão aceitos artigos de pós-graduandos e pós-graduados
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12. Os autores serão notificados da aceitação dos artigos.
13. Serão desclassificados automaticamente aqueles artigos que
não se adequarem às normas de publicação, incluindo os artigos
cujos autores não se apresentaram na Semana de História Política
(proponente de comunicação faltoso).
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