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CHAPEUZINHO VERMELHO EM MANHATTAN: DIÁLOGOS E
INFLEXÕES SOBRE A TRADUÇÃO DE RUTH ROCHA1
Ceura Farias Borges∗
RESUMO: O universo ficcional do romance Caperucita en Manhattan, recriado por Carmen
Martín Gaite a partir do conto maravilhoso Chapeuzinho Vermelho. Suas características
plurais e o seu evidente caráter polifônico permite muitas leituras. São as diferenças
culturais refletidas na tradução dessa obra que serão tratadas neste artigo...
PALAVRAS-CHAVE:
DIALOGIA.
TRADUÇÃO,
CHAPEUZINHO
VERMELHO,
INTERTEXTUALIDADE,
RESUMEM: Carmen Martín Gaite nos recrea magistralmente el mundo maravilloso de
“Caperucita roja”. La novela Caperucita en Manhattan, bosque ficcional que permite
multiples lecturas, ya por su pluralidad, ya por su evidenciado carácter polifónico. En ese
artículo trataremos de enseñar las diferencias culturales espejadas en su traducción en
portugués...
PALABRAS-CLAVE: TRADUCCIÓN, CAPERUCITA ROJA, INTERTEXTUALIDAD, DIALOGIA.
Às vezes penso que é verdade o que sonho, e o que me acontece
de verdade penso haver sonhado antes... Além do mais, o que
acontece não está escrito em nenhuma parte e, ao final, se
esquece. Por outro lado, o que está escrito é como se houvesse
ocorrido sempre. (MARTÍN GAITE, 1996 – Chapeuzinho Vermelho
em Manhattan, tradução de Ruth Rocha – do livro de Elena Fortún
em Célia no Colégio).
INTRODUÇÃO
A partir da segunda metade do século XX, foi possível verificar uma
renovação dos estudos da tradução de uma forma geral, renovação essa
ocorrida no campo da teoria e da crítica, mas que, na prática tradutora
entre a língua espanhola e a língua portuguesa, cada vez mais importante
na América Latina, não obteve desenvolvimento paralelo ou equivalente.
Muito pelo contrário, pouquíssimas são as pesquisas de grande porte em
que se estuda a tradução entre estas duas línguas. Impossível é não
perceber a necessidade cada vez mais premente de um trabalho profundo e
frutuoso de análise contrastiva entre idiomas co-irmanados como o
Português e o Espanhol, justamente por derivarem do mesmo “pai”, o latim
(ou se preferirem, da mesma “mãe” a língua latina).
As modificações sofridas influenciaram de forma abrangente o pensamento
teórico e crítico de estudos nessa área, fazendo surgir outros campos do
saber literário. Um claro exemplo desta renovação é apontado por Sandra
Nitrini (1997) em relação à Literatura Comparada como parte da teoria da
intertextualidade, conforme Julia Kristeva (1974), a qual foi amplamente
discutida por Mikhail Bakhtin em estudos do romance de Dostoievski. O
romance dialógico e polifônico, como queria Bakhtin, encontra-se nas obras
contemporâneas, como a novela espanhola; dentre elas, a obra ímpar de
Carmen Martín Gaite, publicada em 1990, Caperucita em Manhattan. Em
estudo recente2, foi possível analisar algumas reelaborações do conceito de
intertextualidade, as quais se justificaram, principalmente, em face da
releitura que fez a escritora brasileira Ruth Rocha ao traduzir para a língua
portuguesa o romance de Martín Gaite, Chapeuzinho Vermelho em
Manhattan (ROCHA,1996).
A relação entre os dois textos leva-nos a rever os conceitos até agora
citados como uma relação intertextual. Além dos estudos de Kristeva e
Bakthin, consideramos também o estudo feito por Laurent Jenny em La
stratégie e la forme, no qual a “[...] intertextualidade não é uma adição
confusa e misteriosa de influências, mas o trabalho de transformação e
assimilação de vários textos operado por um texto centralizador que
mantém o comando do sentido” (apud NITRINI, 1997, p. 163), existindo,
para tanto, a inserção de três elementos importantes no jogo dialógico
(intertextual). Porém, para este artigo, trataremos especialmente da
tradução, como elemento dialógico, como quer Bakthin. Trataremos de
levantar “suspeitas” nas relações existentes entre o texto-fonte, o romance
de Gaite, e o texto traduzido para a língua portuguesa por Ruth Rocha.
Com isto, pretendemos mostrar que no intertexto Chapeuzinho Vermelho
em Manhattan (ROCHA, 1996), o enunciado estranho que foi incorporado e
o texto de onde este último foi extraído não poderão mais ser tratados
somente como um caso de “influência”. Neste caso, há dois tipos de
relações a considerar na problemática intertextual: as convergências, que
ligam o texto traduzido ao de origem; e as divergências, elementos que
separam o texto-fonte do texto traduzido quando incorporado a uma nova
cultura: a brasileira. Elementos que, muitas vezes, são retirados do textofonte, não sem uma razão explicável, porém modificados no novo contexto
em razão do novo leitor, o qual, ao ler o novo texto, alheio ao contexto da
obra de Gaite em espanhol, fica “perdido”. Sem nenhuma dúvida, o
entendimento que este leitor fará depende, preponderantemente, de um
perfeito ajuste na sua reelaboração, pois sem isto, muitas vezes, o leitor
perde o “fio da meada”, isto é: o enredo do romance. Sendo assim,
levamos em conta as relações que unem o texto-fonte e os novos
elementos incorporados por Ruth Rocha, transformando-o em novo texto, o
qual, conseqüentemente, também se liga ao texto assimilado.
1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS SOBRE O ROMANCE DE MARTÍN
GAITE
Neste espaço, primeiramente, tratar-se-á de contextualizar o estudo do
romance Caperucita en Manhattan (MARTÍN GAITE, 1990), tema defendido
no Mestrado em Letras, área de Estudos Literários, na Universidade Federal
do Paraná (BORGES, 2004). Nos capítulos um e dois da dissertação de
mestrado, tratávamos da compreensão e da leitura da história Chapeuzinho
Vermelho, desde as narrativas orais até as versões escritas por Perrault, na
França, e pelos irmãos Grimm, na Alemanha. Ali, a comparação dos
elementos intertextuais eram analisados considerando-se os elementos
existentes no romance Caperucita en Manhattan (1990) como obra
contemporânea e os elementos do passado que fizeram parte dos contos
de fadas. Oportunamente, surgiu-nos o interesse por um estudo da
aproximação dos contextos de produção dos textos de Ruth Rocha (nos
anos 80) e os textos de Carmen Martín Gaite (depois da guerra civil
espanhola), estudo este que, naquele momento, devido ao curto espaço de
tempo, não nos foi possível realizar plenamente. Porém, a idéia, agora em
pleno vigor, não pode ser abandonada, ressurgindo sempre nas discussões
sobre tradução, principalmente durante as aulas ministradas na UFMS
como professora do Curso de Tradutor e Intérprete.
A partir de então, um estudo neste sentido mostrou-se uma grande
contribuição ao nosso estudo da tradução; é necessário, porém, esclarecer
que este artigo é um trabalho delineado no entendimento que se faz da
tradução como leitura. Leitura é aqui entendida como um processo que se
faz pela compreensão dos sentidos no texto, que só poderão ser mostrados
na passagem do eu para o outro, isto é, as diferenças, tanto quanto (ou
mais) que as semelhanças, também revelam sentidos que valorizam e
atualizam uma obra. Desta forma, o que está no original poderá ser
desvelado (para alguns) ou desconstruído (para outros), para ser
reconstruído, ou, como propôs Haroldo de Campos, recriado, porque se
pressupõe que o ato de traduzir é também uma maneira de criar, ou
superar criticando.
2
O
ROMANCE
CONTEMPORÂNEO
E
A
COMPREENDENDO OS ESTUDOS LITERÁRIOS HOJE
TRADUÇÃO:
Modernamente, tem-se estudado a obra literária como um voltar-se sobre
si mesma, como se houvesse uma história dentro da história, procedimento
que, de um modo geral, aparece na obra de Martín Gaite. A obra, assim, é
elaborada num processo que não cessa de chegar. A autora
constantemente teoriza sobre sua obra, produzindo ensaios reflexivos e
críticos, em um exercício intratextual de seus textos. Tal processo,
sabemos, numa obra literária, não consiste apenas em voltar-se sobre si
mesma, ela compreende e interpreta o outro texto, relaciona-se com outros
textos do passado reinterpretando-os, em uma maneira de ler o texto da
realidade. Por isso, nos ocuparemos também desse fenômeno, que tem
sido largamente denominado de intertextualidade. Assim, trataremos de
compreender os conceitos de tradução e de paráfrase pela aproximação
que eles têm entre si e a relação que eles têm com outras teorias da leitura
intertextual.
Ao pensarmos a questão da tradução, pensamos também em paráfrase,
pois, muitas vezes, não sabemos bem se o que estamos fazendo em um
texto é tradução ou paráfrase. Por paráfrase, compreendemos, de acordo
com Affonso de Sant’Anna, “[...] a reafirmação, em palavras diferentes, do
mesmo sentido de uma obra escrita” (1991, p. 17). Nesse sentido, o
conceito de paráfrase aproxima-se da tradução, porque entendemos que o
texto resultante da tradução é uma nova leitura, uma interpretação, e o
seu tradutor, como um músico, faz o seu arranjo, introduzindo no novo
texto a sua crítica, sua forma de interpretar o texto-fonte, recriando-o. Em
nosso trabalho, alcançamos um exemplo simples deste tema: quando
parece que nos afastamos do assunto trazendo citações para o nosso texto,
estamos absorvidos na leitura, traduzindo, reescrevendo os trabalhos do
outro, e trazemos para o nosso texto a voz do outro. Não um eu, porque
estamos na inter-relação com o outro. O trabalho resultante poderá ser
denominado uma (re)leitura ou, de outro modo, uma diversa maneira de
querer dizer com outros meios o que já foi dito antes. Afastamo-nos do
original para recriá-lo, transformando-o com outro significado, pois a
tradução (leitura) “[...] remete à tradição dos significados e à passagem”
(KRAMER, 1999, p. 213).
O diálogo intertextual é muito evidente entre as duas obras, porém,
também fundamenta o conceito de (re)leitura de Chapeuzinho Vermelho
em Manhattan como uma forma de verificar que tipo de relação ocorre
entre a obra traduzida e o texto original, seja pela semelhança ou
diferenças existente entre as duas, e de como questiona, de certa forma, o
próprio processo de traduzir. O texto em espanhol de Martín Gaite e o texto
em português, tradução de Ruth Rocha, podem ser encarados como
leituras diferentes. Gaite leu os contos de fadas e criou ou recriou uma
nova versão para aquela história, Chapeuzinho Vermelho, tornando-a
atualizada para o nosso tempo? Ruth Rocha, ao traduzir Gaite, fez sua
leitura como uma recriação do texto de Gaite? Questões que levam para o
leitor um certo grau de complexidade conceitual sobre o que é escrever/ler
e do que é traduzir/ler, tudo desembocando numa rede de linguagens em
que não há um centro, nem mais um texto primeiro, adâmico, segundo os
passos de Bakhtin, mas uma intrincada tessitura de fios que se entrelaçam
formando um inigualável, inédito desenho.
Estudos de Haroldo de Campos enfatizam que “[...] a tradução de um
texto criativo se tornará sempre uma recriação, ou criação paralela,
recíproca” (CAMPOS, 1992). Partindo dessa afirmação, podemos dizer que
existe a permanência de um laço familiar muito forte entre os textos de
Perrault/Grimm, Gaite e Ruth Rocha, mas que, ao mesmo tempo, o novo
texto recebe um traço diferenciado. Ele é recriado em outra língua, o que o
transforma numa nova obra de arte. A obra resultante é, ainda para
Campos, o avesso da chamada tradução literal – é a arte recriadora:
Quanto mais inçado de dificuldades esse texto, mais recriável,
mais sedutor enquanto possibilidade aberta à criação. Numa
tradução dessa natureza, não se traduz apenas o significado,
traduz-se o próprio signo, ou seja, sua fisicalidade, sua
materialidade mesma (propriedades sonoras de imaginética visual,
enfim tudo aquilo que forma, [...] a iconicidade do signo estético,
entendido por signo icônico aquele “que é de certa maneira
similar àquilo que ele denota”. O significado, o parâmetro
semântico, será apenas e tão somente a baliza demarcatória do
lugar da empresa recriadora. (CAMPOS, 1992, p.35-36, grifos do
autor).
Enquanto fala da questão da dificuldade de se traduzir a poesia, Campos
afirma
que, desta dificuldade, poderá nascer um criador. No texto
narrativo, é comum apresentarem-se problemas ao se traduzir expressões
idiomáticas, que podem ser definidas como expressões cujo significado não
é outro senão a união dos significados isolados das palavras. Uma tradução
literal de termos como esses desfiguraria o conteúdo traduzido. Porém,
torna-se possível pelo entendimento de seus sentidos, não desmanchando
o desenho fio a fio, mas compreendendo no seu todo, aquilo que foi
possível reproduzir a partir do já estabelecido. Tentemos compreender a
citação de Haroldo de Campos em um exemplo na tradução de Ruth Rocha
para o texto de Martín Gaite em Caperucita en Manhattan:
Abuela, ¿es bonito por dentro Morningside?
¡Bah, ni fu ni fa! Mucho más bonito Central, dónde va a parar. A
mí me encantaría tener dinero y vivir por la parte sur de Central
park. Menudos edificios hay allí... Este parque, si quieres que te
diga la verdad, lo único que tiene es el misterio que ha cogido con
lo del vampiro del Bronx. Pero nada más. Está en un grado de
descuido que da pena. (MARTIN GAITE, 1990, p. 78, grifos meus)
A expressão que indica desprezo em espanhol ... ni fu ni fa... é impossível
de ser traduzida literalmente, palavra por palavra, pois a expressão de
enfado/desprezo expressado no texto não existe na língua portuguesa. A
tradutora optou por substituí-la por uma expressão equivalente mais usual
em nossa língua, que nos mostrou um significado mais amplo e
significativo, bastante aproximado ao que Gaite utilizou na sua obra em
espanhol. Não é somente um bom resultado obtido no texto em português
para aproximar-se à ênfase dada por Gaite no seu texto. Ruth Rocha
procurou recriar, em nossa língua, uma expressão carregada de significado
para os leitores que ela conhece e para os quais escreveu tantas vezes. Ao
substituí-la por ...que nada! – expressão muito comum entre os falantes
da língua portuguesa –, o fez consciente dos novos sentidos que daria ao
texto de outrem. Evidentemente, a expressão... ¡Bah, ni fu ni fa! ...
também poderia ser traduzida por... não, de forma alguma..., porque o
contexto permite, porém esta segunda expressão carece do tom que Gaite
dá a seu texto e que lhe é peculiar, assim como o é nos textos de Ruth
Rocha.
Não contentes com o que alcançamos, buscamos um segundo exemplo. E o
encontramos ainda no mesmo trecho do romance de Gaite. No referido
trecho, parece-nos haver certa dificuldade em encontrar uma equivalência
significativa para a expressão menudos edificios (MARTÍN GAITE, 1990).
No texto original, mesmo um bom leitor de espanhol reconheceria o alto
grau de dificuldade em perceber a metáfora escondida: o termo poderia
estar sendo usado de forma irônica e enfaticamente no sentido de grande,
enorme, grave – como em: menudo porrazo, lío, negocio –, mas a autora o
usa como desdém ou menosprezo. Aparentemente, poderiam ser
encontradas nos dicionários outras equivalências, com as quais o resultado
não alcançaria o sentido irônico necessário para o seu entendimento sem a
sutileza da tradutora e as aproximações entre os contextos vividos pelas
duas escritoras. O sentido para a palavra menudo (ou menuda), em
espanhol, pode ser pequeno, pouco (quantidade relacionado a dinheiro),
adjetivo derivado do latim minutus, e muitas vezes usado no sentido de
alguma coisa que tem pouca importância, ou menos valor, em comparação
com outros, conforme o dicionário Larousse no exemplo: gente menuda,
como um sinônimo de débil, sinônimo de fraqueza (GARCÍA-PELAYO, 1995,
p. 675), não correspondendo, portanto, a pessoa de pequeno
porte/tamanho, mas poderia ter o sentido de miserável, sem valor, ou de
pequeno valor. No texto de Gaite, significa que, em Morningside, ao
contrário do lado sul do Central Park, que tem edifícios de grandes valores
arquitetônicos, os prédios não são tão bonitos e, portanto, não possuem o
mesmo valor, por isso o tom irônico nas palavras da personagem. O que
Ruth Rocha procurou foi equivaler o sentido com o uso de um termo mais
aproximado para o entendimento do leitor no texto traduzido em Língua
Portuguesa: a palavra vulgar, sem a perda do tom irônico e enfático dado
ao termo no texto de Gaite.
Vovó, o Morningside por dentro é bonito?
Que nada! O Central Park é muito mais bonito. Eu adoraria ter
dinheiro para viver na parte sul do Central Park. Aqui os edifícios
são vulgares... Quer saber a verdade? A única coisa que tem este
parque é o mistério que ganhou com a história do “vampiro do
Bronx”. Nada mais. Está tão abandonado que dá pena. (MARTÍN
GAITE, 1996, p. 42, grifos meus).
Outro exemplo da tradução de expressões idiomáticas, agora em outro
trecho do texto de Gaite: a falta de pan, buenas son las tortas (MARTÍN
GAITE, 1990, p. 79), a que a tradutora deu sentido com a expressão:
quem não tem cão caça com gato, muito usual em português, e que
resultou num equilíbrio mais adequado, ainda que as duas expressões não
correspondam metaforicamente. Neste exemplo, encontraríamos uma
tradução literal da expressão como... na falta de pão, boas são as
tortas, parodiando a rainha francesa – se o povo não tem pão que coma
brioches – que não corresponderia a uma expressão usual no Brasil. Ao
contrário da primeira, muito utilizada e reconhecida pelos leitores
brasileiros:
– E você entra lá dentro?
– Claro que entro. Eu gostaria mesmo é de passear no Central
Park de charrete. Mas quem não tem cão caça com gato. Pelo
menos respira-se ar puro à vontade, sem que ninguém incomode.
(MARTÍN GAITE, 1996, p. 43, grifo meu).
Considerando-se os exemplos estudados, podemos perceber porque o
entendimento que faz o leitor de um texto traduzido depende do grau de
criatividade de seu tradutor. Nesse sentido, o texto Chapeuzinho Vermelho
em Manhattan insere-se no conceito da tradução como arte recriativa. A
informação estética dessa recriação não poderá ser considerada somente
como uma imitação da obra traduzida; as duas obras estarão sempre
interligadas pelas divergências e convergências inerentes à sua
condição. Seus textos são diferentes porque escritos em línguas diferentes,
mas se igualam porque ambos são textos literários.
A finalidade da tradução literária é a expressão mais a comunicação. Só
comunicar não resolve. Parafraseando Sônia Kramer, se não estamos
fazendo ciências naturais, buscamos o sentido no texto e para nós importa
muito mais a compreensão que a explicação. Porque, ao contrário da
explicação, a compreensão é ativa, isto é, está em ação, está trabalhando,
e estando em devir abre a possibilidade da contra-palavra ou da réplica, e
um novo texto crítico poderá surgir. Haroldo de Campos ainda verifica a
problemática da tradução como obra de arte e criação literária citando
Paulo Rónai: “[...] o objetivo de toda arte não é algo impossível? O poeta
exprime (ou quer exprimir) o inexprimível, o pintor reproduz o
irreproduzível, o estatuário fixa o infixável. Não é surpreendente, pois, que
o tradutor se empenhe em traduzir o intraduzível” (CAMPOS, 1992, p. 3435). É nesse sentido que entendemos que o tradutor é um criador e crítico
do texto que lê. Ele não ignora que a versão lida hoje pode ser reinvenção
(extratextual e intratextual) de inúmeras outras (re)leituras feitas por
outros autores ao longo do tempo.
3 CHAPEUZINHO VERMELHO: DIÁLOGOS E INFLEXÕES
Por quê um autor decide traduzir este e não aquele texto literário? Se o faz,
por quê agora, neste tempo? Considerações sobre estas questões podem
ser tecidas a respeito do trabalho de Ruth Rocha, como tradutora de
Chapeuzinho Vermelho em Manhattan, trabalho este que não se destaca
somente pela retomada de um texto (ou mais textos), mas também pelas
razões que a levaram a transpor para nossa língua um contexto
sociocultural diferente do seu, sendo a tradução um elemento dialógico no
texto literário, pois toma a palavra do outro, reelaborando-a no seu
próprio discurso, num diálogo claro com o outro texto.
Podemos partir dessas perspectivas para tentar justificar um estudo da
tradução como elemento da intertextualidade: na retomada desses textos,
sabemos que o leitor também traz consigo uma universalidade, o seu
conhecimento de mundo, que interfere e adapta-se ao texto lido. Este tipo
de leitor, quando em contato com o texto Chapeuzinho Vermelho em
Manhattan, não verá somente a história de uma menina dos tempos
modernos, mas estará em contato com a fragilidade humana, que caminha
por um bosque muito diferente – Manhattan, em Nova York, uma cidade
cheia de mistérios e pessoas de hoje com velhos problemas –, que tem a
função estética de simbolizar os bosques de travessias a que todos nós
estamos sujeitos...
No entanto, se traduzir é ler, o texto de Ruth Rocha é, de fato, recriação no
sentido proposto por Haroldo de Campos? Há que se considerar que não se
pode conceber um universo literário caracterizado como plural, sem
perceber a relação de diálogo entre textos como um conceito indispensável
para a compreensão da leitura, pois, nessas relações textuais, segundo
Graça Paulino, Ivete Walty e Zilda Cury, o texto literário também pode ser
entendido como:
[...] Objeto cultural, que tem uma existência física podendo ser
apontada e delimitada por nós: um filme, um romance, um
anúncio, uma música. Entretanto, esses objetos não estão ainda
prontos, pois se destinam ao olhar, à consciência e à recriação dos
leitores. Cada texto constitui uma proposta de significação que não
está inteiramente construída. A significação se dá no jogo de
olhares entre o texto e seu destinatário. Este último é um
interlocutor ativo no processo de significação, na medida em que
participa do jogo intertextual tanto quanto o autor. (PAULINO;
WALTY; CURY, 1995, p. 15, grifo meu).
Esse modo de caracterizar o diálogo, introduzindo um novo modo de ler o
texto, procura significados nas relações existentes entre o texto-fonte e o
novo texto produzido e impele o jogo de olhares entre eles. Nesse sentido,
diz-se, do texto traduzido, que não somente vai buscar significados, mas,
também, identificar o referencial dialógico e alternativo de um texto,
transformando-o em outro texto. Chapeuzinho Vermelho em Manhattan
revisa os conceitos de dialogia de Mikhail Bakthin (1992), ao propor uma
leitura que busca na memória uma forte corrente com as emoções próprias
do público para quem se escreve. Ao fazê-lo, recusa a idéia de que existe
um modelo estático de interpretação de textos. Mostra que um texto, nesse
sentido, tem idéia de movimento na história, uma história sem fim, para
ser complementada pelo conceito intelectual de quem a lê.
Carmen Martín Gaite escreve consciente dos labirintos que oferece aos seus
leitores e, quando dialoga com outros textos, seja por epígrafe, ou
paráfrase, estes labirintos se ampliam. Como tradutora de obras
tradicionais da Literatura francesa, ou como leitora das obras famosas
como La Celestina, procura atualizá-la, trazendo para a sua obra o mote,
...a quien dices tu secreto, das tu libertad. Um diálogo claro com a
literatura clássica que remete à Tragicomedia de Calisto y Melibea, na voz
de Pármeno, enquanto discutia com Calisto – vejamos o trecho na obra de
Fernando de Rojas:
[...] Digo, señor, que estarían mejor empleadas tus monedas en
presentes y servicios a Melibea, que en hacerte prisionero de
Celestina. [...] Porque a quien dices tu secreto, le das tu libertad.
(ROJAS, 1996, p. 9-20).
Cabe ao leitor, portanto, desvelar, tanto em seu espectro histórico e
literário quanto ideológico, os sentidos presentes nessas relações
intertextuais estabelecidas pelo texto. Pressupor que o leitor reconheça o
texto na obra La Celestina – ou Tragicomedia de Calisto y Melibea (MARÍN;
REY HAZAS, 1992, p. 32 ), não é incomum para o leitor espanhol juvenil de
Carmen Martín Gaite, porém impossível de se pensar para o público
brasileiro de Ruth Rocha. O mote fica descontextualizado e o leitor
brasileiro terá que subtendê-lo, uma vez que não conhece a obra La
Celestina. Vale lembrar que esta condição prévia e necessária de
conhecimento de mundo na leitura de textos literários não é prerrogativa
dos problemas de tradução. Muito antes, faz parte dos objetivos gerais das
atividades de compreensão de textos; afinal, o que é entender um texto
escrito? Para estabelecer o entendimento do conteúdo escrito, os sentidos
do texto, deve haver uma série de condições que vão desde o
conhecimento do sistema gramatical, de vocabulário, de grafia, etc; a
conhecimentos socioculturais, sem nos esquecermos do necessário
conhecimento de mundo – ou pelo menos do tema proposto – por parte do
leitor. Sem esta inter-relação entre os três elementos, não seria possível
sanar os equívocos ou carências de qualquer uma das duas condições
anteriores.
Na tradução de Ruth Rocha, o leitor brasileiro não identifica a referência a
Celestina, ao contrário do público espanhol, já que ela não faz parte de
nossa tradição literária, à exceção talvez de alguns alunos dos cursos
universitários de graduação (com habilitação em Língua e Literatura
Espanhola). Sem isso, o universo literário oferecido ao leitor perde a
ligação com a tipologia de leituras e não estabelece a relação de prazer
com os textos. A literariedade não tem que ser, obrigatoriamente, privilégio
de uma cultura, mas de muitas, transformando-se em lugar de exercício
de maturação discursiva; isto é, o conhecimento que os leitores
desenvolvem torna-se mais transparente à medida que os jovens leitores
adquirem um maior número de informações: amplia-se o jogo da leitura,
aumenta-se a capacidade crítica e produtiva do leitor ao se disponibilizar
traduções de romances como os de Carmen Martín Gaite.
Uma leitura de Chapeuzinho Vermelho em Manhattan nos possibilita
antever o diálogo textual e transtextual, se relacionado às variantes
textuais apresentadas anteriormente; aquelas permitem reconhecer,
também na tradução de Ruth Rocha, o jogo intertextual, uma vez que
traduzir, neste caso, não significa somente transpor, transladar textos de
uma língua para outra, mas também um processo mais complexo que
envolve questões lingüísticas e culturais. É, portanto, um trabalho de
(re)criação literária. Esta é a noção de Haroldo de Campos (1984, p. 242),
para quem a tradução é um ato (re)criativo, e a prática da tradução uma
arte de recriação. Esse fenômeno de recriação é resultado de uma mudança
de visão sobre a tradução que relativizou as fronteiras entre o texto
original e o resultado do diálogo mantido com ele.
Neste sentido é que consideramos a tradução como um processo
intertextual, baseados também na observação de Tânia Carvalhal (1986, p.
51), para quem essa acepção contribui para a renovação do estudo das
fontes e desvincula a obra literária da concepção tradicional de influência
(conceitos de obra superior e imitação). O nosso estudo procura novas
formas de compreender as relações de sentido provocadas pela
aproximação dos contextos de produção entre tradutor e autor, porque
delas depreendemos que um romance como Chapeuzinho Vermelho em
Manhattan mantém uma relação de (in)dependência com o texto de
partida, que poderá ser compreendida hoje como um procedimento natural
e contínuo de reescrita dos textos.
Portanto, compreendemos que a leitura do texto literário no romance
Chapeuzinho Vermelho em Manhattan, nessa perspectiva, conduz à análise
dos procedimentos que caracterizam as relações significativas entre eles,
assim como dos sentidos produzidos por seus criadores. Essa é uma atitude
de crítica textual que o comparativismo incorporou nos últimos anos,
fazendo com que o profissional não estagne na simples identificação de
relações por semelhança entre obras diversas, mas que as analise em
profundidade, chegando às interpretações dos motivos que geraram essas
relações.
Em síntese, poder-se-ia considerar as relações estabelecidas entre os
textos como o processo de incorporação de um texto em outro, que
reproduz seus sentidos, transformando-os. O exemplo de leitura, neste
estudo, permite observar, ainda, como algumas características se
manifestam: seja pela explicitação, como as epígrafes e as citações, que
independem do conhecimento integral do texto, ou a alusão, mais evidente,
porém menos explícita que a citação; todas elas são formas de se
concretizar pontes entre as mais diversas linguagens e entonações. Nesse
processo, geralmente não se citam as palavras, mas se reproduzem
algumas construções sintáticas e suas relações. A reminiscência, que não
evidencia a outra obra ou autor de forma tão evidente como a explicitação,
é um traço de estilo, repetição de ritmo, de parte expressiva do texto de
partida para o texto de chegada. Já a paráfrase ou a paródia consistem na
retomada do texto anterior; a primeira, pela reprodução do texto com
outras palavras e a segunda, pela inversão de sentido, provocando a ironia
ou ridicularização do texto de partida. Assim como a tradução, sobretudo
de textos literários,
que pode ser percebida como uma forma de
intertextualidade, na afirmação de Eneida Maria de Souza (1993, p. 36):
“principalmente quanto à possível liberdade do tradutor de se nutrir de
outros textos – além do original – livrando-se, conseqüentemente, da
prisão à fórmula única e redutora” (SOUZA, 1993, p. 36, grifo nosso).
Também Afonso Romano de Sant’Anna afirma que, na literatura, existe
uma certa aproximação entre tradução e paráfrase. Neste sentido,
concordamos que, no texto traduzido por Ruth Rocha, ela assumiu a
liberdade, não apenas de variar a palavra e o sentido, quando isto foi
necessário, mas, também, a de abandonar a ambos quando houve a devida
oportunidade, moldando um texto outro que ecoa o de Gaite, porém
oferece ao leitor a tintura pessoal de Ruth Rocha, a qual, por sua vez, é
mescla de muitas vozes, discursos, ideologias que enformam seu
pensamento em seu status de escritora.
Finalmente, entende-se o conceito de Campos sobre a tradução como
criação e crítica até o limite (se houver) de recriação. O texto que surge
desta nova leitura, a tradução, em literatura já é criação e corresponde à
estilização de Bakhtin. Ruth Rocha, ao traduzir Chapeuzinho Vermelho em
Manhattan, não se limitou a compreender o texto de Gaite, mas o
interpretou, acrescentando as diferenças que lhe eram necessárias para o
seu devido entendimento pelo leitor brasileiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalmente, neste artigo, procuramos trabalhar somente algumas questões
sobre a tradução, intertextualidade e as relações contextuais entre autor e
tradutor, texto-fonte e texto-meta, na tradução literária. Porém,
consideramos importante recapitular o todo de nosso estudo e demonstrar
como chegamos até aqui. Foi um longo caminho, que partiu de um estudo
mais profundo, desde as narrativas orais até a escrita de Chapeuzinho
Vermelho por Perrault , na França do antigo Regime, aos irmãos Grimm,
na Alemanha. Por meio dos contos de fadas, contos maravilhosos,
compreendemos como era vista a criança como personagem da história.
Estas histórias, muito embora nem sempre tenham sido escritas para ele,
quase sempre foram usadas para educar o público mirim. Além disto, ao
retomar o conto tradicional nos dias de hoje, a história poderá ganhar em
atrativos e guardar também a força, o simbolismo que Bruno Bettelheim
tanto preza, relacionados à sedução, à descoberta da vida, possibilitandonos ver como pode ter surgido a literatura para crianças e as suas
diferentes origens nas mais diversas tradições culturais. A literatura infantil
e juvenil que conhecemos hoje nasceu dos contos folclóricos europeus (mas
também dos orientais) e delineia uma história de como a sociedade via a
sua própria vida. Nesse sentido, buscava consolidar valores sociais e
princípios religiosos, predominantemente de origem judaico-cristã.
Aquelas histórias, contadas de boca em boca e ouvidas ao calor do fogo,
ajudaram as pessoas a enfrentar seus medos, que tinham as mais diversas
fontes: religião, superstições, política, ignorância etc. Em Perrault, as
personagens se confrontavam dualisticamente: eram boas e más, fracas e
fortes, bonitas e feias, uma estrutura polar e atitudes antagônicas. E
terminavam com uma lição de cunho moral. Em Chapeuzinho Vermelho, a
personagem é determinada e com adjetivos da natureza: bela, vivaz e
intrépida. Também nos contos de Grimm subjaziam as raízes históricas da
narrativa russa, enquanto suas personagens eram transportadas para o
contexto alemão.
Compreendemos também as tradições orais na história Chapeuzinho
Vermelho, o conto clássico da literatura infantil que, assim como Caperucita
en Manhattan, também fala sobre a iniciação à vida adulta. Nele
percebemos os perigos que a criança enfrenta e as exigências para
enfrentá-los em liberdade ou solidão. Ao revisarmos os contos de fadas,
refletimos não somente sobre a brutalidade que podem ter vivido muitas
crianças naquele tempo, mas também entendemos que, do século XVII ao
século XXI, a criança – menina ou menino, portanto Chapeuzinhos da vida
real – ainda pode ser vista como vítima, e o lobo, não só como o homem
sedutor de meninas inocentes, mas como de fato a fera desumanizada de
hoje, estuprador e violador do direito da criança. Neste sentido é que
trabalhamos o estudo na sua totalidade, de que resultou a dissertação de
mestrado na UFPR. Porém, consideramos que ainda temos um árduo
caminho pela frente. Permitimos que adentrassem nossos estudos os
meandros de uma fonte inesgotável de conhecimentos: a tradução, que
mesmo sendo um tema que teve seu auge nas traduções bíblicas, tem,
hoje, um novo alcance, mais frutuoso e gratificante.
Em Chapeuzinho Vermelho, Charles Perrault, ao ouvir as histórias
contadas, provavelmente, pela ama de seus filhos, escreveu sobre a
brutalidade de um período de fome e miséria dos camponeses; apesar de
modificar e adaptar a narrativa para o gosto de uma classe burguesa e que
não passava fome, permanece um final negativo na história da menina que
morre engolida pelo Lobo, muito aproximado ao que se imagina que a
criança viveu na época. Por outro lado, na história dos irmãos Grimm,
temos um final positivo, quase uma celebração dos novos tempos: a
miséria deixada para trás, come-se o bolo, toma-se o vinho, o caçador unese às duas, menina e avó, numa visão de união, de juntar forças para
enfrentar o mal. Em Caperucita en Manhattan, o alimento é banalizado,
Sara-Chapeuzinho repudia a torta de morangos que sua
mãe tanto
aprecia, uma alusão à fartura de alimentos de hoje e à ambivalência
relacionada aos que têm muito, enquanto outros nada têm. Percebemos
que as relações familiares também se distanciam cada vez mais: em
Caperucita en Manhattan, há um choque de gerações entre SaraChapeuzinho, a mãe Vívian e a avó Rebeca. O romance mostra com isto
uma busca de sentimentos mais profundos, mas que também permitam
comunicação e liberdade entre todos membros familiares. Mister Wolf é o
industrial rico que tem como única preocupação a realização de seus
negócios; nele vemos a incomunicação e a solidão torná-lo introspectivo a
ponto de ter como únicos amigos um antigo empregado de sua empresa e
uma menina – Sara-Chapeuzinho – desconhecida que ele encontra ao
acaso no parque de Manhattan. Países ricos vivem na fartura, mulheres
fazem regimes para permanecer esbeltas, enquanto crianças morrem de
fome na Etiópia. Como vemos, uma releitura dos contos de fadas também
reflete a sociedade em que vivemos e nos remete além das fronteiras do
nosso próprio umbigo.
No Brasil não é diferente, traduz-se para a literatura a realidade de muitos
pais que abandonam os filhos para tentar uma vida mais digna na cidade
grande, como a que foi retratada por Graciliano Ramos em Vidas Secas,
que, no cotidiano nordestino, ainda se repete hoje. Assim, de fato, a
miséria obriga muitos pais a abandonar seus filhos. No interior do Brasil,
as crianças trocam a escola pelas poucas moedas que um trabalho duro
como o de cortar canas oferece, ou em minas de carvão, pedreiras e outros
trabalhos que já são difíceis para um adulto, e imaginamos impossíveis
para uma pequena criança. Provavelmente, são experiências como aquelas,
narradas por Perrault e pelos irmãos Grimm no ficcional, que uma família
ou grupo de camponeses na Europa poderiam ter vivido de fato, pouco
diferente de como vivem outras famílias em vários países, no presente. E
se assim foi no passado, também é bem possível que aqueles camponeses
pobres tenham-se utilizado do imaginário como forma de enfrentar o medo,
transformando a experiência, pois aquilo que apavora, aparentemente
desvanece quando conhecido por muitos que compartilham do mesmo
sofrimento, e muitas vezes riem da própria desgraça, carnavalizando e
parodiando seu sofrimento. Mas a triste realidade continuará presente: por
mais que leiamos os contos, nenhuma fada-madrinha irá aparecer e
transformar meninas pobres em belas princesas, nem meninos famintos
encontrarão nas grandes cidades casinhas de chocolate para saciar sua
fome. Porém, veremos que a narradora de Martín Gaite propõe um final
diferente dos demais contos para a sua Chapeuzinho Vermelho.
Por outro lado, ao verificarmos como o romance se constitui do dialógico e
polifônico, conforme o conceito de Bakthin, percebemos que havia no texto
traduzido um universo único e inexplorado que poderemos estudar melhor
em uma tese mais ampla e com melhores oportunidades. Portanto,
percebemos que, entre tradução e intertextualidade, não há fronteiras, não
há linhas divisórias – como não o há entre o eu e o outro. Intertextualidade
pode ser a retomada consciente, intencional da palavra do outro, mostrada,
mas não demarcada no discurso da variante, mas também pode ser o não
dito. Por isso, nos contos, como os lemos hoje, somente podemos perceber
seus significados de valorização do popular, do elemento nacional e das
raízes históricas se os compararmos aos textos contemporâneos. Enquanto
percebemos nas histórias de Perrault e dos irmãos Grimm, dos séculos XVII
e XVIII, uma forma de consolidação dos valores burgueses ou instrumento
para doutrinar uma sociedade hierárquica e repressiva, também
percebemos nas histórias atuais uma ruptura com esta instrumentalização,
um indicio da liberdade de expressão adquirida com o passar dos séculos.
Independentemente da época ou da cultura em que foram escritos os
contos de fadas, veremos em seus textos indícios de suas raízes,
representadas sob a forma de imagens simples, fortes e permanentemente
atrativas, mas que também indicam experiências de um determinado
contexto histórico-social.
Por fim, a tradução, que é parte do grande jogo sociocultural que se
revela no romance Chapeuzinho Vermelho em Manhattan, enquanto
processo da linguagem literária em diálogo com as outras linguagens,
distanciando-se do modelo romântico que privilegiou a originalidade autoral
em detrimento do jogo dialógico.
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*Professora de Espanhol Instrumental no Curso de Turismo da UNIGRAN – Dourados.
Professora substituta nas disciplinas de Estágio Supervisionado e Língua Espanhola no
Departamento de Comunicação e Expressão, Curso de Letras – Modalidade Bacharelado –
Tradutor e Intérprete Esp./Port. e Secretário Bilíngüe Esp./Port., UFMS – Câmpus de
Dourados.
1
O presente artigo é o resultado parcial de um estudo do romance Caperucita en
Manhattan de Carmen Martín Gaite e da tradução de Ruth Rocha para o romance, para
dissertação de Mestrado em Letras, área de Estudos Literários, sob a orientação do
Professor Dr. Paulo Venturelli, defendida em agosto de 2004 na Universidade Federal do
Paraná – Curitiba.
2
Conforme referência já citada: Dissertação de mestrado defendida em agosto de 2004,
sob o título de Caperucita en Manhattan: Diálogo e inflexões.

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