Sentimento do mundo

Transcrição

Sentimento do mundo
Sentimento do mundo
Carlos Drummond de Andrade
Resumo de Obras Literárias
Sentimento do mundo
[1940]
Carlos Drummond de Andrade
1. Apresentação:
Drummond encontra o
mundo
O sentimento do mundo é também uma tomada de consciência do universo histórico concreto.
Sem ser absolutamente um texto de depoimento, este livro – o primeiro que o poeta escreveu no
contexto social mais vasto e mais complexo do Rio, leva a marca da consciência literária do final
dos anos 30, sensibilizada pelas tensões e conflitos do período pré-guerra. Diante do aguçamento
geral das contradições sociais, a crítica drummondiana das alienações burguesas passa por uma
crispação radicalizante.
(José Guilherme Merquior. Verso Universo em Drummond)
Sentimento do mundo, terceiro livro de Carlos Drummond de Andrade, apresenta 28 poemas escritos, em
sua maioria, durante a segunda metade da década de 1930, reunidos e publicados em 1940.
Foi o primeiro livro escrito e publicado por Drummond no Rio de Janeiro, para onde se mudara em 1934,
para trabalhar como chefe de gabinete do então ministro da Educação, seu amigo Gustavo Capanema.
O crítico John Gledson chamou a atenção para o quanto os poemas do livro são “dependentes de uma
paisagem concreta – a carioca”.
Trata-se de uma obra de transição: da poesia ainda presa a modelos do modernismo inicial, que dominou
a primeira fase da obra drummondiana, para a poesia comprometida com questões históricas e sociais,
com tendência a reflexões existenciais de cunho mais universal que meramente pessoal, características da
segunda fase, da idade madura do poeta.
Em linhas mais detalhadas: dos retratos humorísticos do cotidiano da vida burguesa para a reflexão crítica
ou sentimental sobre os problemas do mundo; do humor tendente à piada típico da primeira geração para o
humor tendente à provocação e até ao grotesco; dos retratos das paisagens geográficas e culturais mineiras
para a paisagem urbana e praiana do Rio de Janeiro e uma visão ampla dos problemas e angústias do
mundo em crise; da linguagem coloquial e do tom descompromissado para uma linguagem mais “séria”,
frequentemente elevada, de tom reflexivo, às vezes dramático; dos poemas de formas breves e versos mais
livres para outros em que é perceptível um maior domínio e variedade das formas de versificação, chegando
a adotar modelos incomuns como o poema em prosa ou clássicos como a ode e a elegia.
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Enfim, um livro em que ocorre a passagem da poesia centrada no “eu” para uma poesia que se abre para o
mundo; um mundo, como veremos, dominado por uma realidade não muito animadora, a exigir o engajamento
do poeta.
2. Negação do individualismo, busca da
solidariedade
Contexto histórico: cada vez mais dentro da noite
“O ‘sentimento do mundo’ é também um sentimento de culpa, de onde uma certa tendência à
autocrítica (...).”
(José Guilherme Merquior. Verso Universo em Drummond)
A década de 1930 inicia-se sob o signo da Grande Depressão causada pela quebra da bolsa de Nova
York em 1929. A recuperação americana virá com a política do New Deal implantada por Franklin Delano
Roosevelt. Apesar dos problemas, o american way of life começa a se disseminar pelo mundo, levado pelos
produtos da indústria cinematográfica hollywoodiana e pela música popular americana divulgada pelo rádio.
Na Europa, as feridas não cicatrizadas da Primeira Guerra Mundial e as dificuldades econômicas do
continente levam a uma radicalização política sem precedentes, com a ascensão e/ou consolidação de
regimes totalitários de extrema esquerda ou extrema direita: o comunismo de Stalin na URSS, o nazismo
de Hitler na Alemanha e diversos regimes de tintas fortes fascistas: Mussolini na Itália, Franco na Espanha,
Salazar em Portugal.
A Guerra Civil Espanhola (1936-1939) torna-se um sangrento palco de ensaios para os horrores da
Segunda Guerra Mundial, que parecia cada vez mais inevitável. Neste conflito, muitos intelectuais e artistas
do mundo todo se engajam ferrenhamente, muitas vezes dispondo-se a lutar nas fileiras republicanas contra
o avanço dos radicais conservadores adeptos de Francisco Franco, que afinal revelaram-se vitoriosos.
No Brasil, a Revolução de 30 leva ao poder Getúlio Vargas, representante das oligarquias rurais do Rio
Grande do Sul. A Revolução Constitucionalista de 1932, liderada por São Paulo, apesar de derrotada, força
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a convocação de uma Assembleia Constituinte, instaurada em 1933 e que promulga uma nova Constituição
em 1934. Mas o regime varguista, de nítida inspiração fascista, ao mesmo tempo em que se esforçava
para promover uma modernização econômica do país, inclusive assegurando direitos básicos para os
trabalhadores (o que valeu ao líder o epíteto de “Pai dos Pobres”) e fazendo avançar a industrialização,
radicaliza no campo político, avançando sobre as liberdades individuais, perseguindo opositores, muitos
deles artistas e intelectuais simpatizantes de ideias socialistas.
Em 1937, o governo Vargas endurece, promulga o Estado Novo e instaura uma ditadura no país, que só
terminaria com sua deposição, em 1945.
Carlos Drummond de Andrade, vivendo no Rio de Janeiro desde XXX, acompanha da capital do país
os fatos que transtornam o país e o mundo. O jovem mineiro tímido, um tanto orgulhoso e irônico, aos
poucos sente necessidade de abandonar a poesia ensimesmada, em que expressava seu sentimento de
desconforto egoísta com a vida, para expressar em versos uma nova postura, um novo “sentimento do
mundo”.
Sentimento do mundo
Tenho apenas duas mãos
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.
Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.
Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.
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Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desafiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer
esse amanhecer
mais noite que a noite.
Neste poema, que abre e intitula o livro, percebe-se uma constante de vários poemas da obra: uma
autocrítica do poeta sobre sua poesia anteriormente publicada e uma declaração de compromisso com a
realidade crua que o rodeia.
Na primeira estrofe, o poeta confessa certa impotência perante essa realidade (tenho apenas duas mãos
/ e o sentimento do mundo). Os escravos talvez sejam os pecados cotidianos, os atos desonestos, as
pequenas e grandes mentiras e falsidades às quais cedemos na nossa vida; as lembranças que escorrem, a
incapacidade de livrar-se de um passado seguro e/ou alienante; o corpo cede (transige), então, no momento
em que lhe é ofertado o prazer do amor.
Quando se livrar (segunda estrofe) dos escravos, lembranças e desejos que o dominam e prostram, talvez
seja tarde demais, a vida terá passado (eu mesmo estarei morto) e o mundo será terra arrasada (o pântano
sem acordes).
Mas na terceira estrofe o poeta, enfim, desperta (Os camaradas não disseram / que havia uma guerra /
e era necessário / trazer fogo e alimento) e o “sentimento do mundo” revela-se, também, “sentimento de
culpa”: humildemente vos peço / que me perdoeis.
Na quarta estrofe, assume-se a missão de, mesmo na solidão (eu ficarei sozinho), guardar a memória
(desafiando a recordação) dos que desapareceram na guerra citada anteriormente: do sineiro, da viúva e do
microscopista / que habitavam a barraca / e não foram encontrados / ao amanhecer.
O final do poema é desalentador: o amanhecer, que a princípio poderia trazer a esperança (a luz que
iluminaria a amedrontadora escuridão), anuncia-se apenas como negro porvir: esse amanhecer / mais noite
que a noite.
(Mais adiante, analisaremos como as metáforas da noite e do amanhecer são usadas repetidamente ao
longo dos poemas do livro, sendo que a segunda, às vezes, assume conotações positivas, outras vezes,
negativas.)
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A negação do individualismo, o sentimento de arrependimento pela postura alienada e burguesa do
passado (que causa no poeta um “mal estar moral” como bem definiu José Guilherme Merquior), o desejo
de solidarizar-se com os homens e de fazer parte da luta contra as forças da opressão aparecem em muitos
dos mais conhecidos poemas do livro.
Privilégio do mar
Neste terraço mediocremente confortável,
bebemos cerveja e olhamos o mar.
Sabemos que nada nos acontecerá.
O edifício é sólido e o mundo também.
Sabemos que cada edifício abriga mil corpos
Labutando em mil compartimentos iguais.
Às vezes, alguns se inserem fatigados no elevador
e vem cá em cima respirar a brisa do oceano,
que é privilégio dos edifícios.
O mundo é mesmo de cimento armado.
Certamente, se houvesse um cruzador louco,
fundeado na baía em frente da cidade,
a vida seria incerta... improvável...
mas nas águas tranquilas só há marinheiros fiéis.
Como a esquadra é cordial!
Podemos beber honradamente nossa cerveja.
Em “Privilégio do mar”, Drummond retrata e, implicitamente, critica a ilusão de segurança da vida tranquila e
alienada da burguesia.
No “terraço mediocremente confortável” do “edifício sólido”, alguns homens fatigados (entre os quais se
inclui o eu lírico) desfrutam da “cerveja”, do “privilégio do mar” e sua brisa e da segurança (“sabemos que
nada nos acontecerá).
Sente-se o mundo como algo seguro, sólido e cheio de certezas: “O edifício é sólido e o mundo também”,
“O mundo é mesmo de cimento armado”. Daí que os privilegiados podem “beber honradamente” sua
cerveja, tendo seu mar e sua brisa protegidos pela “esquadra cordial” e seus “marinheiros fiéis”.
Mas essa insistência na solidez do mundo parece apenas disfarçar um sentimento de apreensão pelo perigo
cuja possibilidade se enuncia na penúltima estrofe: “se houvesse um cruzador louco / fundeado na baía”. A
distância entre o real e o “improvável”, a contradição da vida alienada e em segurança em um mundo cujo
mar está verdadeiramente coalhado de “cruzadores loucos”, revela-se no contraditório jogo de palavras:
“Certamente, [...] a vida seria incerta”.
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Recusando a alienação, o poeta reconhece o quanto se sente pequeno em face dos acontecimentos do
mundo e busca engajar-se na luta e a união com seus companheiros.
Mundo grande
Não, meu coração não é maior que o mundo.
É muito menor.
Nele não cabem nem as minhas dores.
Por isso gosto tanto de me contar.
Por isso me dispo,
por isso me grito,
por isso frequento os jornais, me exponho
[cruamente nas livrarias:
preciso de todos.
Sim, meu coração é muito pequeno.
Só agora vejo que nele não cabem os homens.
Os homens estão cá fora, estão na rua.
A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.
Mas também a rua não cabe todos os homens.
A rua é menor que o mundo.
O mundo é grande.
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
Fecha os olhos e esquece.
Escuta a água nos vidros,
tão calma, não anuncia nada.
Entretanto escorre nas mãos,
tão calma! Vai inundando tudo...
Renascerão as cidades submersas?
Os homens submersos – voltarão?
Meu coração não sabe.
Estúpido, ridículo e frágil é meu coração.
Só agora descubro
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como é triste ignorar certas coisas.
(Na solidão de indivíduo
desaprendi a linguagem
com que homens se comunicam.)
Outrora escutei os anjos,
as sonatas, os poemas, as confissões patéticas.
Nunca escutei voz de gente.
Em verdade sou muito pobre.
Outrora viajei
países imaginários, fáceis de habitar,
ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando ao suicídio.
Meus amigos foram às ilhas.
Ilhas perdem o homem.
Entretanto alguns se salvaram e
trouxeram a notícia
de que o mundo, o grande mundo está crescendo todos os dias,
entre o fogo e o amor.
Então, meu coração também pode crescer.
Entre o amor e o fogo,
entre a vida e o fogo,
meu coração cresce dez metros e explode.
– Ó vida futura! Nós te criaremos.
Neste poema encontram-se os versos Não, meu coração não é maior que o mundo / É muito menor que
ecoam e rejeitam a afirmação da penúltima estrofe do “Poema de sete faces”, talvez o mais importante
da primeira obra de Drummond, Alguma poesia (1930): Mundo mundo vasto mundo / se eu me chamasse
Raimundo / seria uma rima, não seria uma solução. / Mundo mundo vasto mundo, / mais vasto é meu
coração.
Ao se ver tão pequeno diante da enormidade de uma realidade difícil de suportar (“sabes como é difícil
sofrer tudo isso, amontoar tudo isso / num só peito de homem... sem que ele estale”), o poeta decide
abandonar o isolamento egocêntrico do passado, sai de si para a rua e da rua para o mundo. Sua nova
poesia abre-se à expressão e comunhão com os outros homens: “por isso me dispo / por isso me grito, / por
isso frequento os jornais e me exponho cruamente nas livrarias: preciso de todos”.
Há uma vigorosa autocrítica no poema: o “coração maior que o mundo” do passado agora é definido como
“estúpido, ridículo e frágil”.
O desaprendizado da linguagem com que “homens se comunicam”, consequência da alienação (“Outrora
escutei os anjos, / as sonatas, os poemas, as confissões patéticas. / Nunca escutei voz de gente”; “Outrora
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viajei / países imaginários, fáceis de habitar, / ilhas sem problemas, não obstante exaustivas e convocando
ao suicídio”) leva à confissão de um sentimento de pobreza quanto a sua produção poética anterior (“Só
agora descubro / como é triste ignorar certas coisas”; “Nunca escutei voz de gente. / Em verdade sou muito
pobre”).
Mas a mensagem final é de esperança e renovação. Se alguns amigos “foram às ilhas” e se perderam
(“ilhas” aqui são uma metáfora para o isolamento, a alienação, a fuga da realidade), “alguns se salvaram
e / trouxeram a notícia” de um mundo que cresce cada vez mais “entre o fogo e o amor”. Em sintonia com
esse mundo, o coração do poeta “também pode crescer / Entre o amor e o fogo, / entre a vida e o fogo” e
explodir, estilhaçando-se e penetrando na realidade para ajudar a criar um novo mundo: - Ó vida futura” Nós
te criaremos.”
Mas como criar essa “vida futura”? A solidariedade entre os homens é a saída proposta pelo poeta, como
podemos ver em outro poema antológico, a seguir:
Mãos dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
O poeta recusa prender-se ao mundo do passado (“caduco”) ou do futuro; seu compromisso é com a “vida”
e os “companheiros”. Novamente a realidade é descrita como “enorme”, o presente como “grande”, para o
homem, bicho da terra tão pequeno (como o define Camões em Os Lusíadas), como resistir? A saída é a
solidariedade: “Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas”
Na segunda estrofe, vemos novamente a recusa da alienação romântica (“não serei o cantor de uma mulher
(...) / não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela, / não distribuirei entorpecentes ou
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cartas de suicida” e/ou simbolista (“não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins”). Repete-se
aqui, inclusive, a imagem das “ilhas” como símbolos de alienação.
Por fim, na última estrofe, o eu lírico reitera o compromisso da sua poesia com o tempo, os homens e a vida
do presente.
Por outro lado, o poeta desconfiado e solitário que Drummond nunca deixou de ser sabe que – se a
solidariedade entre os homens para enfrentar esses tempos difíceis é um imperativo moral – a solidariedade
total é impossível. Sem maniqueísmos, Drummond reconhece, no poema em prosa “O operário no mar”,
as dificuldades de romper as barreiras entre as classes e ser reconhecido como um “igual” pelos mais
oprimidos. O poeta descreve um olhar trocado com o operário que vê caminhar em direção ao mar; desde
o início, o poeta gostaria de aproximar-se do operário, solidarizar-se com ele, pelo menos naquele olhar,
mas reconhece que a distância que a realidade interpõe entre eles torna isso impossível: “Teria vergonha
de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me
despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos”.
No limite, o que o poema expressa é uma persistência daquela postura tipicamente drummondiana: uma
consciência individual que acaba por isolar-se do mundo ao seu redor. Ocorre que, como vimos, esse
isolamento é praticamente impossível e moralmente inaceitável na conjuntura desta “enorme realidade”
do “presente tão grande”, marcado por tensões e conflitos incontornáveis. Aflora então esse paradoxal
individualismo participante: um agudo sentimento individual dos dramas coletivos associado a uma
necessidade moral de participar deles.
Daí a condenação direta da alienação em versos de poemas como “Inocentes do Leblon”:
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
ou “Madrigal lúgubre”, em que a burguesia (ou talvez a poesia) alienada é personificada na imagem de
uma donzela encastelada em uma “casa feita de cadáveres”, cujas escadas vão sendo cobertas de sangue
(“sutil flui o sangue nas escadarias”). São os cadáveres e o sangue dos que morrem cotidianamente em um
mundo que “está velho”, “em ruínas”, coberto de “lagartas mortas” e “ervas crescendo”.
3. Dentro da noite, esperança do
amanhecer
“A noite é, de longe, a mais importante das imagens que tem esse papel central na estrutura
dos poemas. [...] A noite é coisa que separa e aniquila os homens, mas dentro da qual podem
comunicar-se. [...] A noite ‘dissolve os homens’, unindo-os, portanto, ao mesmo tempo que os separa
espalhando ‘o medo e a incompreensão’. [...] Leva consigo uma atmosfera poética mais que um
significado preciso e inequívoco.”
(John Gledson. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade)
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Como bem notou o crítico citado acima, a palavra noite (que aparecera em 2 dos 46 poemas do primeiro
livro de Drummond [Alguma poesia] e em 3 dos 26 poemas do segundo [Brejo das Almas]) aparece em 10
dos 28 poemas de Sentimento do Mundo. Ao lado do mar, é a imagem que mais se repete, e com múltiplos
significados.
Três poemas do livro trazem a ideia de “noite” no título. O primeiro é uma obra-prima intitulada “Menino
chorando na noite”.
Menino chorando na noite
Na noite lenta e morna, morta noite sem ruído, um menino chora.
O choro atrás da parede, a luz atrás da vidraça
perdem-se na sombra dos passos abafados, das vozes extenuadas.
E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio caindo na colher.
Um menino chora na noite, atrás da parede, atrás da rua,
longe um menino chora, em outra cidade talvez,
talvez em outro mundo.
E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça
e vejo o fio oleoso que escorre do queixo do menino,
escorre pela rua, escorre pela cidade (um fio apenas).
E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando.
Na noite “lenta e morna” (arrastada), “morta” e “sem ruído”, a atenção é atraída pelo choro de uma criança
da qual o eu lírico se sente completamente alienado (“chora na noite, atrás da parede, atrás da rua / longe
[...], em outra cidade talvez, / talvez em outro mundo”).
Mas é impossível desvencilhar-se desse choro; ele se impõe com uma força que domina todo o ambiente
da noite: “se ouve até o rumor da gota de remédio caindo na colher”, torna-se tão forte que é como se o eu
lírico estivesse vendo a cena: “E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça / e
vejo o fio oleoso que escorre do queixo do menino”.
Por fim, o choro, como “o fio oleoso que escorre do queixo do menino” e aos poucos inunda os espaços
(“escorre pela rua, escorre pela cidade”), toma conta de tudo: “E não há ninguém mais no mundo a não ser
esse menino chorando”.
O poema capta primorosamente o progressivo domínio da cena do menino chorando sobre a imaginação e
atenção do poeta. O polissíndeto (repetição da conjunção “E”) nos versos 4, 8 e 11 parece ecoar e ampliar o
choro do menino sobre o ambiente da noite.
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Esse “choro” talvez seja uma representação da solidão do eu lírico (ou de qualquer homem) que cresce a
ponto de abarcar o mundo, ou do sofrimento humano que já não é possível deixar de escutar. A “noite”, essa
situação de profunda alienação ou o delicado e opressivo momento que o mundo atravessa.
Se nesse poema o sentido da “noite” ainda pode ser ambíguo e sua caracterização remete a recolhimento
e alienação (“lenta”, “morna”, “sem ruído”), no segundo poema que traz a palavra no título está claramente
associada ao momento histórico tenebroso em que os poemas foram escritos.
A noite dissolve os homens
A Portinari
A noite desceu. Que noite!
Já não enxergo meus irmãos.
E nem tão pouco os rumores
que outrora me perturbavam.
A noite desceu. Nas casas,
nas ruas onde se combate,
nos campos desfalecidos,
a noite espalhou o medo
e a total incompreensão.
A noite caiu. Tremenda,
sem esperança...Os suspiros
acusam a presença negra
que paralisa os guerreiros.
E o amor não abre caminho
na noite. A noite é mortal,
completa, sem reticências,
a noite dissolve os homens,
diz que é inútil sofrer,
a noite dissolve as pátrias,
apagou os almirantes
cintilantes! nas suas fardas.
A noite anoiteceu tudo...
O mundo não tem remédio...
Os suicidas tinham razão.
Aurora,
entretanto eu te diviso, ainda tímida,
inexperiente das luzes que vais acender
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e dos bens que repartirás com todos os homens.
Sob o úmido véu de raivas, queixas e humilhações,
adivinho-te que sobes, vapor róseo, expulsando a treva
noturna.
O triste mundo fascista se decompõe ao contato de teus dedos,
teus dedos frios, que ainda se não modelaram
mas que avançam na escuridão como um sinal verde e
peremptório.
Minha fadiga encontrará em ti o seu termo,
minha carne estremece na certeza de tua vinda.
O suor é um óleo suave, as mãos dos sobreviventes se enlaçam,
os corpos hirtos adquirem uma fluidez,
uma inocência, um perdão simples e macio...
Havemos de amanhecer.
O mundo se tinge com as tintas da antemanhã
e o sangue que escorre é doce, de tão necessário
para colorir tuas pálidas faces, aurora.
As duas estrofes do poema demarcam duas posturas, dois estados de espírito e dois tempos diferentes.
A primeira parte (primeira estrofe) descreve o mundo do presente, marcado por uma noite absoluta, cuja
magnitude é reiterada ao longo de toda a estrofe: “A noite desceu. Que noite!”; “A noite caiu. Tremenda, /
sem esperança”; “A noite é mortal, / completa, sem reticências”; e a sentença final, em forma de pleonasmo
hiperbólico: “A noite anoiteceu tudo...”. Esta noite é metáfora, provavelmente, para o contexto histórico
da ditadura do Estado Novo, do avanço do fascismo no mundo e da guerra mundial que então já parecia
iminente. É uma noite que impede mesmo a comunicação e a solidariedade entre os homens (“Já não
enxergo meus irmãos”, “a noite espalhou (...) / a total incompreensão”; “o amor não abre caminho”), que
espalha o medo (“a noite espalhou o medo”, “paralisa os guerreiros”) e acaba por conduzir a uma postura
de completa desesperança, de nihilismo avassalador: “a noite dissolve os homens”; “O mundo não tem
remédio... / Os suicidas tinham razão”.
A segunda parte do poema constrói-se como uma longa epanadiplose, figura de estilo que consiste na
repetição de uma palavra no início e no fim de uma sequência de versos: “Aurora, / (...) / para colorir tuas
pálidas faces, aurora.” A intenção clara é reforçar a ideia expressa por essa palavra, metáfora para o tempo
do futuro, o “amanhecer” carregado de esperança e mudanças que sucederá a “noite”.
Apesar de “tímida”, “inexperiente”, escondida sob “o úmido véu de raivas, queixas e humilhações”, a aurora
é inevitável.
A certa altura, ela é personificada na deusa da mitologia grecoromana, irmã de Hélios (o Sol) e de Selene
(a Lua), que todos os dias abria os portões das estrebarias do Olimpo com seus dedos rosados e voava
rápida e suavemente pelos céus, anunciando a passagem do carro de seu irmão (o círculo de fogo do
sol). Daí as referências ao “vapor róseo” que expulsa a “treva noturna” e aos “dedos frios, que ainda não
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se modelaram”, mas já tem força suficiente para avançar na escuridão e iniciar a decomposição do “triste
mundo fascista”.
Com a chegada da aurora, deste novo tempo, a “fadiga” terminará, os “corpos hirtos” estremecerão e
adquirirão fluidez, “as mãos dos sobreviventes se enlaçam” – imagens que revelam um relaxamento sensual
que substituirá o medo paralisante destacado na primeira estrofe.
Nos versos finais, ocorre a completa mutação: o sangue que se derrama na noite do presente é “doce de
tão necessário” para colorir as “pálidas faces” da aurora do amanhã – de onde se deduz que o sangue
derramado na resistência às forças sombrias da história – as ditaduras, o fascismo - não será em vão.
A noite ambígua, como uma grande esfera que envolve o poeta e sua solidão, os enigmas do mundo
e os fluidos vitais, aparece no último poema do livro, em que novamente Drummond capta de maneira
impressionante a atmosfera de “integração na noite” e “contemplação”.
Noturno à janela do apartamento
Silencioso cubo de treva:
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.
Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado
A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.
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Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.
Triste farol da Ilha Rasa.
O poema tem uma estrutura circular. Inicia-se de modo melancólico: em seu apartamento, o eu lírico sentese envolvido pela solidão, que não deixa de ser também uma atitude de isolamento e alienação do mundo:
“silencioso cubo de treva”. Tal solidão conduz ao pessimismo niilista e à ideia de suicídio: “um salto, e seria
a morte”.
A conjunção adversativa (“Mas”) que inicia o verso 3 expressa a recusa, porém, à saída extrema: o que
resulta da solidão não é o suicídio, mas a integração ao mundo misterioso (“Mas é apenas, sob o vento, /
a integração na noite”), mesmo que nele o poeta não encontre mais o seu passado nem vislumbre o seu
futuro (“Nenhum pensamento de infância, / nem saudade nem vão propósito”), mesmo que reste apenas a
indagação sem respostas: “Somente a contemplação / de um mundo enorme e parado. // A soma da vida é
nula”.
A repetição da conjunção adversativa no verso 10 (“Mas”) faz girar novamente a roda e expressa a
resistência da vida: “Mas a vida tem tal poder: / na escuridão absoluta, / como líquido circula.” Na última
estrofe, outro giro retoma a melancólica incerteza quanto ao sentido de todas as coisas na vida: “Suicídio,
riqueza, ciência... / A alma severa se interroga / e logo se cala. E não sabe / se é noite, mar ou distância.”
O verso solitário que fecha o poema, aparentemente mera descrição da visão à janela do apartamento
(o “farol da Ilha Rasa”) associada ao estado de espírito dominante no poema (“triste”), resume de modo
brilhante esta personalidade dividida entre a angústia e a esperança. Personalidade, aliás, tão bem
escondida pela impessoalidade dos versos, nos quais não aparece em nenhum momento referência direta
ao “eu” do poeta.
Um farol é uma fonte de luz que serve de orientação aos navegantes para que não naufraguem. Mas, no
farol da Ilha Rasa, o que o poeta vê é apenas tristeza...
4. A angústia perante a passagem do
tempo; a força da memória
“Ora o conteúdo sociológico do lirismo drummondiano é tanto mais rico pelo fato de sua aventura
pessoal – o filho do fazendeiro tornado burocrata na grande cidade – coincidir com a evolução social
do Brasil. É, com efeito, em torno da década 1920-30 que se inicia a modernização da sociedade
brasileira; só nessa época as estruturas sociais e culturais do velho colosso agrário e patriarcal
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começam a ceder, irreversivelmente, à pressão das classes urbanas, concentradas nas cidades cada
vez mais povoadas e poderosas.”
(José Guilherme Merquior. Verso Universo em Drummond)
Em Sentimento do Mundo, percebe-se que o encontro com a sociedade urbana moderna (no Rio de
Janeiro) e com os dramas nacionais e internacionais, sentidos nas ruas e estampados nos jornais,
provocaram na poesia de Drummond um movimento em direção a temas mais históricos, políticos e sociais,
que atendessem ao seu sentimento moral de necessidade de participação. Mas, como já vimos, isso não
significa que o desassossego e a timidez de sua vida interior, bem como suas raízes mineiras, tenham
simplesmente desaparecido de sua poesia.
Esse cordão umbilical que teimava em ligá-lo a Minas Gerais e ao passado aparece de maneira direta ou
indireta em vários poemas, mas especialmente no que segue:
Confidência do Itabirano
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil,
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
Apenas o fato de nascer em Itabira já seria o suficiente para marcar indelevelmente a personalidade do
poeta (“Principalmente nasci em Itabira”), que incorpora da cidade os proverbiais recatos e timidez dos
mineiros, representados pela cerceadora paisagem montanhosa e pelo minério de ferro abundante na
cidade: “Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. / (...) / E esse alheamento do que na vida é porosidade e
comunicação. / A vontade de amar, que me paralisa o trabalho / vem de Itabira, de suas noites brancas, sem
mulheres e sem horizontes”.
16
A cidade está a sua volta, nas “prendas diversas” (a pedra de ferro, o São Benedito, o couro de anta) que
enfeitam sua casa, mas também incrustada em sua personalidade: “este orgulho, esta cabeça baixa...”.
Observe-se aqui o traço típico do estilo de Drummond, ao mesclar, na enumeração das prendas, elementos
concretos (a pedra, o couro, a estátua de santo) a abstratos (orgulho, cabeça baixa).
Ao final, Drummond repassa a história da família, cujo sobrenome tem origem nos ingleses que vieram para
Minas no tempo da mineração, tornando-se depois fazendeiros para desaguar nele: o poeta funcionário
público, exilado no Rio de Janeiro, sem contacto físico com seu passado, que lateja doído em seu sangue:
“Itabira é apenas uma fotografia na parede. / Mas como dói!”.
O “hábito de sofrer, que tanto me diverte” é um exemplo da autoironia drummondiana, que recusa o
derramamento emotivo típico dos românticos. Mas, mesmo sem sentimentalismo, poemas como esse
revelam a profunda ligação de Drummond a suas origens interioranas, agrárias e patriarcais. O filho de
fazendeiro que se estabeleceu no Rio de Janeiro nunca mais voltou a Minas Gerais, mas Minas Gerais
nunca saíram dele. E sua desconfiança do progresso e dos “tempos modernos” (veja análise do poema
“Dentaduras duplas”) – traço marcante de sua personalidade – reflete bem sua trajetória pessoal, como
analisou José Guilherme Merquior na epígrafe a esta seção.
A questão da memória e do passado aparece também em outro poema importante do livro, que analisamos
a seguir:
Os mortos de sobrecasaca
Havia a um canto da sala um álbum de fotografias intoleráveis,
alto de muitos metros e velho de infinitos minutos,
em que todos se debruçavam
na alegria de zombar dos mortos de sobrecasaca.
Um verme principiou a roer as sobrecasacas indiferentes
e roeu as páginas, as dedicatórias e mesmo a poeira dos retratos.
Só não roeu o imortal soluço de vida que rebentava
que rebentava daquelas páginas.
Na primeira estrofe do poema, o tom é irônico, beirando o sarcástico, contra aquilo que significa o passado:
as fotografias do álbum “velho de infinitos minutos” são “intoleráveis”; os que se debruçam sobre ele fazem
isso para “zombar dos mortos de sobrecasaca”.
Mas, as sobrecasacas (metonímia para os que a vestiam quando vivos) eram “indiferentes” a essa zombaria
e a tudo mais (verso 5), inclusive ao “verme” (metáfora para o tempo que tudo apodrece) que devora as
páginas do álbum, sua poeira e seus retratos.
E, no entanto, a nota final é de uma melancolia ímpar: o verme tudo pode roer, menos “o imortal soluço de
vida que rebentava / que rebentava daquelas páginas” (a essa repetição, no início de um verso, de palavra
17
ou expressão que finaliza o verso anterior, chamamos de anadiplose; aqui, ela serve para expressar
magistralmente o “soluço” mesmo de que falam os versos).
O que começou irônico termina tristemente reflexivo: a passagem do tempo tudo pode devorar, mas o
passado teima em “soluçar” (repercutir) de alguma maneira no presente da memória.
5. Humor: entre o escracho e o
refinamento
O humor, quase sempre a partir da prática da ironia, é outra constante
da poesia de Carlos Drummond de Andrade. Até Sentimento do Mundo,
predomina na poesia do Autor um humor mais direto, até mesmo
escancarado, afinado com o escracho com que os modernistas da primeira
geração (principalmente Oswald de Andrade) castigavam nossa herança
parnasiana, os bons modos burgueses e a história do Brasil.
Dois exemplos são mostrados a seguir:
Brinde no juízo final
Poetas de camiseiro, chegou vossa hora,
poetas de elixir de inhame e de tonofosfã,
chegou vossa hora, poetas do bonde e do rádio,
poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil.
Em vão assassinaram a poesia nos livros,
em vão houve putschs, tropas de assalto, depurações.
Os sobreviventes aqui estão, poetas honrados,
poetas diretos da Rua Larga.
(As outras ruas são muito estreitas,
só nesta cabem a poeira,
o amor
e a Light.) Aqui são homenageados os poetas populares: “poetas de camiseiro”, “poetas de elixir de inhame e de
tonofosfã”, “poetas do bonde e do rádio”, “poetas diretos da rua larga”.
(John Gledson aventa a possibilidade de Drummond, ao escrever o poema, estar pensando em Noel
Rosa (1910-1937), excepcional compositor brasileiro “que assimilou os costumes, condições de vida e os
sentimentos da gente da Zona Norte do Rio às suas obras”).
18
Ao fazer um “brinde” aos poetas que conseguem conciliar em sua poesia “a poeira, / o amor / e a Light” (isto
é, aproximar a poesia da vida, preenchê-la com temas aparentemente banais), Drummond critica os poetas
acadêmicos, particularmente os parnasianos, distantes da vida e do cotidiano que os cerca.
Tristeza do Império
Os conselheiros angustiados
ante o colo ebúrneo
das donzelas opulentas
que ao piano abemolavam
“bus-co a cam-pi-na se-re-na
pa-ra li-vre sus-pi-rar”,
esqueciam a guerra do Paraguai,
o enfado bolorento de São Cristóvão,
a dor cada vez mais forte dos negros
e sorvendo mecânicos
uma pitada de rapé,
sonhavam a futura libertação dos instintos
e ninhos de amor a serem instalados nos
arranha-céus de Copacabana, com rádio e telefone automático.
O passado do Brasil aparece aqui retratado em uma cena tristemente cômica: os conselheiros, no tempo
do Império, da guerra do Paraguai e da escravidão (“a dor cada vez mais forte dos negros” que desaguaria
na Abolição da Escravatura e, em seguida, no fim do Império), entediam-se até a angústia naquele mundo
paralisado, caquético, onde o prazer se resume às “donzelas opulentas” de “colo ebúrneo” e à “pitada de
rapé”.
De maneira súbita (como numa “libertação dos instintos”), o poema transporta-se para uma cena do
presente: no sonho anacrônico dos conselheiros, aparecem os “ninhos de amor” nos “arranha-céus de
Copacabana, com rádio e telefone automáticos”.
A partir de Sentimento do mundo, o humor em Drummond se torna cada vez mais refinado e amargo: às
vezes, sutilmente irônico, outras vezes apelando para o cinismo ou o grotesco, em imagens de significado
agressivo que surpreendem o leitor.
O humor aparece em vários poemas do livro, umas vezes melancólico, outras ambíguo, outras provocador.
Ele pode ser encontrado em poemas como “Indecisão do Méier”, “La possession du monde”. Mas, na
nossa opinião, o poema do livro em que o humor é mais evidente (já a partir do título) e bem realizado é
“Dentaduras duplas”.
19
Dentaduras duplas
A Onestaldo de Pennafort
Dentaduras duplas!
Inda não sou bem velho
para merecer-vos...
Há que contentar-me
com uma ponte móvel
e esparsas coroas.
(Coroas sem reino,
os reinos protéticos
de onde proviestes
quando produzirão
extraídos sem dor.
E a boca liberta
das funções poético
sofístico-dramáticas
de que rezam filmes
e velhos autores.
a tripla dentadura,
dentadura múltipla,
a serra mecânica,
sempre desejada,
jamais possuída,
que acabará
com o tédio da boca,
a boca que beija,
a boca romântica?...)
para envelhecer.
Desfibrarei convosco
doces alimentos,
serei casto, sóbrio,
não vos aplicando
na deleitação convulsa
de uma carne triste
em que tantas vezes
me eu perdi.
Resovin! Hecolite!
Nomes de países?
Fantasmas femininos?
Nunca: dentaduras,
engenhos modernos,
práticos, higiênicos,
a vida habitável:
a boca mordendo,
os delirantes lábios
apenas entreabertos
num sorriso técnico,
e a língua especiosa
através dos dentes
buscando outra língua,
afinal sossegada...
A serra mecânica
não tritura amor.
E todos os dentes
Largas dentaduras,
vosso riso largo
me consolará
não sei quantas fomes
ferozes, secretas
no fundo de mim.
Não sei quantas fomes
jamais compensadas.
Dentaduras alvas,
antes amarelas
e por que não cromadas
e por que não de âmbar?
de âmbar! de âmbar!
feéricas dentaduras,
admiráveis presas,
mastigando lestas
e indiferentes
a carne da vida!
Dentaduras duplas:
dai-me enfim a calma
que Bilac não teve
20
Neste poema conciliam-se diversas características da poética de Drummond, a começar pelo tema.
Aparentemente, os versos tratam de um objeto banal do cotidiano (as “dentaduras duplas”), mas isto é
apenas ponto de partida para uma reflexão sobre a passagem do tempo, a escravização aos desejos ou sua
conformação (“a boca mordendo, / os delirantes lábios / apenas entreabertos / (...) / e a língua especiosa /
através dos dentes / buscando outra língua, / afinal sossegada...”; “na deleitação convulsa / de uma carne
triste / em que tantas vezes / me eu perdi”). Trata-se, portanto, de uma reflexão bem humorada sobre a
velhice (“Dentaduras duplas: / dai-me enfim a calma / que Bilac não teve / para envelhecer”).
Outro tema tipicamente drummondiano é a desconfiança do progresso tecnológico expressa de maneira
irônica (“Resovin! Hecolite! / Nomes de países? / Fantasmas femininos? / Nunca: dentaduras, / engenhos
modernos, / práticos, higiênicos”). Drummond expressa seu descrédito nos progressos da civilização
tecnológica, então em plena expansão, seja em virtude dos avanços científicos advindos da ciência
frenética e mortífera das guerras (que gera tantos subprodutos para consumo de massas), seja pela entrada
do Capitalismo mundial em uma nova fase, dominada agora por uma agressiva potência manufatureira, os
EUA.
A ironia atravessa todo o poema, beirando o grotesco em alguns momentos, principalmente nas imagens
de caráter surrealista, muitas delas aproximando elementos concretos e abstratos (“tédio da boca”, “coroas
sem reino”, “reinos protéticos”, “A serra mecânica / não tritura amor”, “fomes ferozes secretas / no fundo de
mim”; “feéricas dentaduras, / admiráveis presas, / mastigando lestas / e indiferentes / a carne da vida!”).
6. Qual poesia?
A reflexão metalinguística (quando o poema trata da própria poesia) é uma constante da poesia da
modernidade, e talvez o tema de maior destaque na literatura do século XX. Drummond não foge à regra.
Desde os seus primeiros livros até os últimos, os poemas que se referem à própria prática poética estão
presentes.
Já vimos em alguns momentos dessa análise que Drummond assume para sua poesia, a partir de
Sentimento do Mundo, um compromisso com a realidade, isto é, torna-a instrumento de expressão dos
problemas e angústias do mundo em que vive. A reflexão poética está presente em peças do livro como
“Brinde no juízo final”, “Ode no cinquentenário do poeta brasileiro”, “Mãos dadas”, “Mundo grande” e outros.
Alguns desses poemas foram abordados detidamente nesse estudo. Falaremos aqui de outro título bastante
conhecido:
Congresso internacional do medo
Provisoriamente não cantaremos o amor,
que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.
Cantaremos o medo, que esteriliza os abraços,
não cantaremos o ódio, porque este não existe,
existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,
o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,
21
o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das igrejas,
cantaremos o medo dos ditadores, o medo dos democratas,
cantaremos o medo da morte e o medo de depois da morte.
Depois morreremos de medo
e sobre nossos túmulos nascerão flores amarelas e medrosas.
John Gledson assim analisa este poema: “O título (...) alude aos muitos congressos de escritores que
tiveram lugar nos anos 30, no intento vão de impedir o crescimento do fascismo. Mostra o ceticismo de
Drummond perante as supostas soluções políticas, a sua consciência das forças que nos limitam. Aqui o
medo físico (‘o medo dos sertões, dos mares, dos desertos’) transforma-se, imperceptivelmente, num medo
político (‘o medo dos ditadores, o medo dos democratas) e finalmente num medo metafísico da morte e do
que pode haver além da morte.“
A ambiguidade presente entre os versos 6 a 9 (os sertões, mares, desertos, soldados, mães etc. tanto
podem ser causadores ou vítimas do medo) torna esse sentimento absoluto: tudo e todos o causam, tudo e
todos o sofrem.
Aqui, mesmo as flores, uma metáfora normalmente utilizada por Drummond para simbolizar a esperança e a
resistência (isso ocorre muito em A Rosa do Povo, de 1945) sucumbem ao medo.
“Cantar o medo” (seja ele causado pelas ditaduras, pelo fascismo, pela guerra que virá) é, portanto, o
que resta à poesia (“Cantaremos o medo”) e, como vimos anteriormente, é mesmo sua obrigação. Mas a
mensagem não é de completa desesperança: a primeira palavra do poema – “provisoriamente” – projeta um
futuro em que a poesia talvez possa voltar a cantar o amor.
7. Questões de estilo
Não temos, aqui, obviamente, nenhuma pretensão de esgotar a apresentação ou o estudo de aspectos
peculiares da expressão poética de Carlos Drummond de Andrade; nem mesmo de deter-nos em minúcias
(apenas o estudo das figuras de linguagem frequentemente empregadas por Drummond demandaria
um espaço e um tempo que não condizem com a finalidade desta análise). Nossa intenção com os
apontamentos breves a seguir é simplesmente chamar a atenção para alguns aspectos formais relevantes
nas composições de Sentimento do Mundo que podem ser úteis ao estudante que entra em contato
22
pela primeira vez com a obra do poeta. Vejamos então alguns de seus procedimentos estilísticos mais
relevantes.
1. Drummond revela no livro um excepcional domínio técnico da versificação. Em geral, como afirmou
José Guilherme Merquior, “(...) encontra-se aqui um novo instrumento de estilo: o verso livre bem flexível,
plenamente rendido enfim ao império das frases longas, ao ritmo da prosa” (veja “Confidência do Itabirano”,
“Menino chorando na noite”, “Morro da Babilônia”, “Congresso internacional do medo”, “Canção do berço”,
“Ode no cinquentenário do poeta brasileiro”, “Madrigal lúgubre”, ”Elegia 1938”, “Mundo grande” etc.), mais
adequado ao tom elevado, discursivo e quase épico de alguns poemas.
Mas também aparecem poemas em que predominam versos tradicionais, particularmente a redondilha
maior/heptassílabos (“Sentimento do mundo”, “Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte” etc.) e mesmo
a menor/pentassílabos (“Dentaduras duplas”). Em alguns poemas, ocorre o emprego de versos não tão
usados em língua portuguesa, mesclados aos tradicionais, como a variação de octossílabos e eneassílabos
que acontece em “Poema da necessidade”.
Há também um belo poema em prosa, no qual Drummond revela excepcional domínio do ritmo: “O operário
no mar”.
Os poemas não apresentam rimas regulares, mas ocasionalmente aparecem rimas internas e em final de
versos; além de refrões. Na maioria dos poemas, predomina mesmo o verso modernista livre e branco.
2. Entre as figuras de linguagem empregadas, para além das metáforas, chama a atenção a grande
quantidade de anáforas (figura de linguagem que consiste na repetição da mesma palavra ou grupo de
palavras no princípio de frases ou versos consecutivos):
É preciso salvar o país,
É preciso crer em Deus,
É preciso pagar as dívidas,
É preciso comprar um rádio,
É preciso esquecer fulana.
(“Poema da necessidade”)
Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
(“Os ombros suportam o mundo”)
23
Aparece também um tipo especial de anáfora, a epífora (que consiste na repetição da palavra ou grupo de
palavras ao final dos versos), presente em versos distantes entre si de “Canção do berço”:
“O amor não tem importância.
(...)
Mas também a carne não tem importância.
(...)
Também a vida é sem importância.”
Outra figura de repetição comum é o polissíndeto (repetição de conjunções coordenativas que ligam série
de palavras ou frases):
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.
(“Os ombros suportam o mundo”)
E no entanto se ouve até o rumor da gota de remédio caindo na colher.
(...)
E vejo a mão que levanta a colher, enquanto a outra sustenta a cabeça
(...)
E não há ninguém mais no mundo a não ser esse menino chorando.
(“Menino chorando na noite”)
3. Uma das características de maior impacto do estilo de Drummond é o que José Guilherme Merquior
definiu como um “estilo mesclado”: a combinação de um tom elevado, um “lirismo puro”, as referências
prosaicas e vulgares; muitas vezes apelando mesmo para imagens e vocabulário que remetem ao grotesco,
o que ocorre em poemas como “Dentaduras duplas” e “Madrigal lúgubre”.
Em Sentimento do Mundo, no entanto, para Merquior, em comparação com as obras anteriores do poeta,
predomina a “inclinação para o sublime”, seja porque a temática mais “séria” e o momento histórico mais
angustiante o exigem, seja porque é uma maneira de atingir mais diretamente a sensibilidade do leitor. Tal
característica é notável em poemas como “A noite dissolve os homens”, “Ode no cinquentenário do poeta
brasileiro”, “Sentimento do mundo” etc.
4. Imagística fantástica, surrealista. Como já assinalamos anteriormente, em alguns poemas do livro
aparece um “humor surrealizante” (Merquior), como no abrupto deslocamento temporal (dos tempos
bolorentos do Império para os arranha-céus de Copacabana) ao final de “Tristeza do Império”, na sátira
amarga de “Elegia 1938” (“Heróis enchem os parques a cidade em que te arrastas, / e preconizam a
virtude, a renúncia, o sangue frio, a concepção. / À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze /
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas”) ou nas imagens carregadas de risível grotesco de
“Dentaduras duplas” e “Canção da moça-fantasma de Belo Horizonte”.
24
O uso de imagens aparentemente alógicas por Drummond está ligado não só à influência da poesia de
seu tempo (Murilo Mendes, por exemplo), mas à intenção de registrar plasticamente o absurdo da vida
contemporânea ou das obsessões do poeta. Além disso, as imagens que fogem de uma compreensão
imediata criam em torno de si uma zona de mistério e silêncio, de ambiguidade e incerteza, bem ao gosto
do poeta.
8. Índice comentado
Além dos poemas transcritos e analisados anteriormente, faremos a seguir um breve comentário sobre os
demais poemas de Sentimento do mundo (no caso dos já trabalhados, o “índice” remeterá à seção em que
aparecem nesta análise). Vale aqui, mais que nunca, um alerta para os leitores estudantes: os comentários
pretendem ser apenas auxiliares na leitura e compreensão da obra de Drummond. Privar-se da leitura
integral dos poemas de Sentimento do mundo seria perder a chance de entrar em contacto com uma das
principais obras poéticas da literatura do século XX, sobre a qual as anotações que seguem são pálida
sombra de admirador e curioso.
1- Sentimento de Mundo
Veja análise na seção “II – Negação do individualismo e busca da solidariedade”.
2- Confidência do Itabirano
Veja análise na seção “IV – A angústia perante a passagem do tempo; a força da memória”.
3- Poema da Necessidade
Poema que trata da opressão do cotidiano sobrecarregado. Aparece aqui um desejo urgente de “consertar
o mundo” antes que ele “acabe” que podemos associar ao sentimento de obrigação moral de participar dos
problemas da vida real.
4- Canção da Moça-Fantasma de Belo Horizonte
A paisagem e o ambiente da capital mineira, Belo Horizonte, onde já não vivia o poeta quando da
publicação deste livro, aparece em destaque. O eu lírico é a própria “moça-fantasma” que, com humor, fala
de seus desejos insatisfeitos em vida, que permanecem e a deixam inconformada após a morte.
5- Tristeza do Império
Veja análise na seção “V – Humor: entre o escracho e o refinamento”.
25
6- O Operário no Mar
Belo poema em prosa no qual Drummond descreve, à distância, um operário que entra e “caminha” no mar
(assemelhando-se, portanto, ao Cristo que andou sobre as águas) e assinala a distância entre o intelectual
(o próprio poeta) e a classe operária. Trata-se, como já comentamos, de uma expressão consciente
dos limites do engajamento: “Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos
nunca”, mas resta a esperança de, algum dia, ser possível a aproximação: “Sim, quem sabe se um dia o
compreenderei?”.
7- Menino Chorando na Noite
Veja análise na seção “III – Dentro da noite, esperança do amanhecer”.
8- Morro da Babilônia
Outro poema em que a distância entre o “povo” (no caso, os habitantes do morro) e o mundo burguês
habitado pelo poeta (e pelos leitores...) parece intransponível. Inicialmente, “À noite, do morro / descem
vozes que criam o terror”, terror que reproduz o passado escravista do país (“que veio de Luanda ou se
perdeu na língua geral”) e a violência (“Quando houve revolução, os soldados se espalharam no morro, / o
quartel pegou foto, eles não voltaram. / Alguns, chumbados, morreram”). Mas o clima lúgubre associado ao
morro não se sustenta; ao final, o que desce do morro são as vozes da alegria e gentileza dos divertimentos
do morro: “Há mesmo um cavaquinho bem afinado / que domina os ruídos da pedra e da folhagem / e desce
até nós, modesto e recreativo, / como uma gentileza do morro”.
9- Congresso Internacional do Medo
Veja análise na seção “VI – Qual poesia?”.
10- Os Mortos de Sobrecasaca
Veja análise na seção “IV – A angústia perante a passagem do tempo; a força da memória”.
11- Brinde no Juízo Final
Veja análise na seção “V – Humor: entre o escracho e o refinamento”.
12- Privilégio do Mar
Veja análise na seção “II – Negação do individualismo e busca da solidariedade”.
13- Inocentes do Leblon
Descrição da alienação dos privilegiados que não enxergam o mundo ao seu redor e se refugiam no prazer
estimulante, mas ao mesmo tempo, anestésico: “Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram, /
mas a areia é quente, e há um óleo suave / que eles passam nas costas, e esquecem.”
26
14- Canção do Berço
Poema que reflete o pessimismo determinista e fatalista inspirado pela época. O bebê no berço, sobre cujo
futuro o poeta reflete, talvez seja a própria filha do poeta, Maria Julieta Drummond de Andrade (1928-1987).
A criança dorme, protegida em sua inocência, mas seu futuro parece comprometido neste mundo em que
o amor, a carne, a vida, os beijos, enfim “tudo acontece, menina, / e não é importante, menina”. O leite
que alimenta hoje será substituído pelo álcool que entorpece e alivia: “Em tua boca, menina / ficou o gosto
de leite? / ficará o gosto de álcool?”. Também a visão irônica e desconfiada sobre os progressos técnicos
da humanidade se impõem: “Os lábios serão metálicos, / civil, e mais nada, será o amor / dos indivíduos
perdidos na massa”.
15- Indecisão de Méier
Poema cujo humor assemelha-se mais ao da primeira fase modernista brasileira. Há uma atenção ao
cotidiano, mas também uma angústia típica do homem moderno: o cinema, lenitivo para o cotidiano
massacrante do homem comum, é mera mercadoria (“Ambos com a melhor artista e a bilheteira mais bela”),
cuja escolha gera indecisão.
16- Bolero de Ravel
Referência à célebre composição, “Bolero” (1928) de Maurice Ravel (1875-1937). Sugerimos a audição
da música para melhor captar o sentido e o ritmo do poema. Há várias versões disponíveis no Youtube,
escolhemos a que segue, com a Filarmônica de Viena e regência de Gustavo Dudamel:
http://www.youtube.com/watch?v=KK23BhEQVyU&feature=related.
O poema tenta descrever a composição musical e seu andamento. A música evolui numa “espiral de desejo
e melancolia” que parece não ter como terminar (“Infinita, infinitamente...”). Persegue-se algo que é sempre
fugidio: “esquiva ondulação evanescente”. O andamento acelerado ao final (sem abrir mão da repetição)
parece capturar o ouvinte em um “círculo ardente”. O último verso – “Os tambores abafam a morte do
Imperador” – talvez seja uma referência ao assassinato do Arquiduque Francisco Fernando da Áustria, que
precipitou a Primeira Guerra Mundial: os tambores que repercutem do início ao fim da música seriam os
ruídos do mundo que impedem o mundo de enxergar a iminência da “última batalha da Primeira Guerra”, ou
seja, a Segunda Guerra Mundial.
17- La Possession du Monde
Retrato de um momento da visita de Georges Duhamel (1884-1966), membro da Academia Francesa de
Letras, ao Brasil. O “homem célebre” que interrompe a “erudita dissertação científica” com o “eminente
neurologista” para pedir “ce concasse fruit jaune” (“este fruto amarelo engraçado”, isto é, um mamão
maduro), como se possuí-lo fosse importante como a “posse do mundo” do título. O poema é um tanto sátira
da subserviência intelectual brasileira ao estrangeiro, um tanto sátira do interesse ingênuo dos europeus
pelo exótico dos trópicos: as frutas tropicais atraem mais a atenção do europeu que a conversa erudita com
os eminentes intelectuais americanos.
27
18- Ode no Cinquentenário do Poeta Brasileiro
“Ode” é uma forma de poesia cujas origens remontam à Grécia antiga. Modernamente, podemos defini-la
sucintamente como um poema de tom elevado e sublime, cujo objetivo é enaltecer alguém ou algum fato.
Este poema homenageia os cinquenta anos do poeta Manuel Bandeira (1886-1968), nome fundamental da
primeira geração modernista brasileira, a quem Drummond muito admirava. Segundo John Gledson, Manuel
Bandeira realizou, na poesia, aquilo que Drummond gostaria de ter realizado à época de feitura deste
poema: “Debruço-me em teus poemas / e neles percebo as ilhas / em que nem tu nem nós habitamos / (...)
/ e nessas ilhas me banho / num sol que não é dos trópicos, / numa água que não é das fontes / mas que
ambos refletem a imagem / de um mundo amoroso e patético”.
Na sexta estrofe, há uma longa enumeração de alguns dos principais poemas de Manuel Bandeira. Talvez
seja o poema de linguagem mais direta e sentimental do livro. Observe-se como o tom fica mais elevado à
medida que os versos mais curtos do início se tornam progressivamente mais longos.
19- Os Ombros Suportam o Mundo
Poema de tom niilista e aceitação estoica da miséria do mundo e do tempo. Ao mesmo tempo em
que lamenta o amor que “resultou inútil”, o “rude trabalho” e o “coração seco”, Drummond afirma seu
compromisso com a realidade e com a “vida que prossegue”: “Chegou um tempo em que a vida é uma
ordem. / A vida apenas, sem mistificação”.
20- Mãos Dadas
Veja análise na seção “II – Negação do individualismo e busca da solidariedade”.
21- Dentaduras Duplas
Veja análise na seção “V – Humor: entre o escracho e o refinamento”.
22- Revelação do Subúrbio
Poema em que Drummond registra de modo admirável, em poucos versos, a projeção do estado de espírito
sobre um ambiente em constante mutação. No poema estabelece-se um movimento do subúrbio para o
campo, da multidão para a solidão, da melancolia para a tristeza. Percorre-se um espaço de tempo que vai
de uma noite à outra, da noite no subúrbio à noite no campo. Da janela do trem, o eu lírico assiste às luzes
do subúrbio resistirem até serem engolidas pela noite; o campo se avista de manhã, quando “repontam
laranjais” (a luz do sol reforçada pelo ouro das laranjas); mas volta a noite e com ela a “tristeza do Brasil”.
As luzes do subúrbio que resistem a serem engolidas pela noite podem simbolizar uma resistência contra
essa “tristeza” do Brasil noturno do campo.
23- A Noite Dissolve os Homens
Veja análise na seção “III – Dentro da noite, esperança do amanhecer”.
28
24- Madrigal Lúgubre
Em literatura, “madrigal” é uma composição, carregada de ternura amorosa, que exprime galanteio a uma
dama, geralmente em ambiente bucólico. Drummond inverte completamente o sentido tradicional do termo
em seu poema. A princesa aqui cortejada vive em uma “casa feita de cadáveres”, “de onde o sangue
escorre”, seu “palácio em ruínas” está tomado de “ervas crescendo” e “lagartas mortas”. A “princesa” é uma
metáfora para a burguesia ou, mais apropriadamente, para a poesia alienada, particularmente a simbolista.
Fora do palácio que desmorona, “Cá fora é o vento e são as ruas varridas de pânico, / é o jornal sujo
embrulhando fatos, homens e comida guardada”. O poeta, cinicamente, pede refúgio à princesa (“Daí-me
vossa cama, princesa, / vosso calor, vosso corpo e suas repartições, / oh daí-me! que é tempo de guerra,
/ tempo de extrema precisão”); convida-a para a fuga desse mundo decadente (“... Enquanto fugimos
para outros mundos, / que esse está velho, velha princesa”), mas eles são, ao fim, inconciliáveis: “Adeus,
princesa, até outra vida.”
Os mortos que gritam ao final são os explorados que acordam de sua alienação; como no Apocalipse,
eles anunciam o fim do mundo (isto é, o mundo da exploração e alienação em que vivia a princesa) e a
emergência de uma nova ordem: “Princesa, os mortos! gritam os mortos! / querem sair! querem romper! /
Tocai tambores, tocai trombetas, / imponde silêncio, enquanto fugimos!”
25- Lembrança do Mundo Antigo
Poema em que se idealiza um passado que já não mais existe. A harmonia do mundo em que vivia Clara
(“o mundo inteiro, a Alemanha, a China, tudo era tranquilo em redor de Clara”) parece tão distante que a
simples constatação de sua existência provoca espanto (observe as exclamações triplas, funcionando como
reticências enfáticas): “(...) Mas passeava no jardim, pela manhã!!! / Havia jardins, havia manhãs naquele
tempo!!!”).
26- Elegia 1938
A “elegia” é uma forma poética geralmente utilizada para o lamento, expressando tristeza ou melancolia,
geralmente tratando de temas como a morte ou o sofrimento por qualquer motivo. A “Elegia 1938”, como
o título indica, lamenta o estado do mundo e o destino dos homens à época em que foi escrita. O eu lírico
lamenta a vida mecânica e sem sentido (“Trabalhas em alegria para um mundo caduco, / onde as formas e
as ações não encerram nenhum exemplo. / Praticas laboriosamente os gestos universais, / sentes calor e
frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual”). Os “heróis” que “enchem os parques da cidade” e à noite “se
recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas” de nada servem.
A noite (imagem tão constante nos poemas do livro, como vimos) é aqui apenas o momento de esquecer
a miséria humana e o cotidiano sem sentido: “Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra / e
sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer”). E não há esperança no amanhecer: “Mas o
terrível despertar prova a existência da Grande Máquina / e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis
palmeiras”.
Ao final do poema, domina um sentimento de impotência e resignação avassaladores, pois o poeta nada
pode contra a “Grande Máquina” (aqui identificada como os mecanismos de exploração do capitalismo
29
internacional, simbolizado na ilha de Manhattan): “Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta
distribuição / porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan”.
27- Mundo Grande
Veja análise na seção “II – Negação do individualismo e busca da solidariedade”.
28- Noturno à Janela do Apartamento
Veja análise na seção “III – Dentro da noite, esperança do amanhecer”.
9. Biografia
Carlos Drummond de Andrade nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902.
Fazia parte de uma família de fazendeiros decadentes. Iniciou seus estudos em Belo Horizonte, depois se
transferiu para o Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, mas foi expulso por “insubordinação mental”. De
volta a Belo Horizonte, formou-se em farmácia em Ouro Preto, em 1925, mas, paralelamente, já iniciava
sua carreira de escritor e jornalista, colaborando no Diário de Minas e atuando ao lado do jovem grupo de
modernistas mineiros, responsável pela A Revista, publicação que foi porta-voz dos ideais modernistas
naquele estado.
Em 1934, ingressou no serviço público e transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde atuou como chefe de
gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação de Getúlio Vargas até 1945. Depois, atuou no
Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional; aposentou em 1962. Escreveu crônicas no Correio da
Manhã a partir de 1954, e no Jornal do Brasil a partir de 1969, até sua morte.
Em seus primeiros livros, revelam-se algumas influências dos pressupostos da primeira geração
modernista, como o poema-piada, o coloquialismo e a sintaxe livre. Mas, desde o início, a preocupação com
o “ser-estar” da individualidade no mundo foi a tônica de sua poesia reflexiva. A indagação do passado para
entender a personalidade do presente, a atenção aos problemas cotidianos, aos costumes e ao andar da
carruagem da história, o pessimismo existencial criticamente irônico e a discussão estética rigorosa sobre
os limites da fala poética enquanto instrumento de conhecimento do mundo e comunicação com os homens
são alguns aspectos relevantes de sua poesia.
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Considerado ainda hoje, pela maioria da crítica e dos leitores, a principal voz da poesia brasileira do século
20, Carlos Drummond de Andrade faleceu no dia 17 de agosto de 1987, poucos dias após a morte de sua
filha única, Maria Julieta Drummond de Andrade, cuja perda não conseguiu suportar.
Obra:
Poesia: Alguma poesia (1930); Brejo das almas (1934); Sentimento do mundo (1940); Poesias (1942); A
rosa do povo (1945); Claro enigma (1951); Viola de bolso (1952); Fazendeiro do ar (1954); A vida passada
a limpo (1959); Lição de coisas (1962); Boitempo (1968); As impurezas do branco (1973); A paixão medida
(1980); Corpo (1984); Amar se aprende amando (1985); O amor natural (1992).
Prosa: Confissões de Minas (1944) - ensaios e crônicas; Contos de aprendiz (1951); Passeios na ilha
(1952) - ensaios e crônicas; Fala, amendoeira (1957) - crônicas; A bolsa e a vida (1962) - crônicas e
poemas; Cadeira de balanço (1970); O poder ultrajovem e mais 79 textos em prosa e verso (1972) crônicas; Boca de luar (1984) - crônicas; Tempo vida poesia (1986).
10. Bibliografia
Para realização deste trabalho, a edição utilizada de A Rosa do Povo foi a que se encontra no seguinte
volume:
§ ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro, Companhia José Aguilar
Editora, 1973.
Como apoio crítico, consultamos, principalmente, as seguintes obras:
§ BRAYNER, Sônia (org.). Carlos Drummond de Andrade – Fortuna Crítica. Rio de Janeiro, Civilização
Brasileira, 1978.
§ GLEDSON, John. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo, Livraria Duas
Cidades, 1981.
§ CANDIDO, Antonio. "Inquietudes na poesia de Drummond" in Vários escritos. São Paulo, Livraria Duas
Cidades, 1995.
§ MERQUIOR, José Guilherme. Verso universo em Drummond. Rio de Janeiro, José Olympio/SECCT-SP,
1975.
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11. Exercícios
1- (UFMG-MG) Leia estes versos:
Os inocentes do Leblon
não viram o navio entrar.
Trouxe bailarinas?
trouxe emigrantes?
trouxe um grama de rádio?
Os inocentes, definitivamente inocentes, tudo ignoram,
mas a areia é quente, e há um óleo suave
que eles passam nas costas, e esquecem.
(“Inocentes do Leblon”)
Tu sabes como é grande o mundo.
Conheces os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão.
Viste as diferentes cores dos homens,
as diferentes dores dos homens,
sabes como é difícil sofrer tudo isso, amontoar tudo isso
num só peito de homem... sem que ele estale.
(“Mundo grande”)
(ANDRADE, Carlos Drummond de. Sentimento do mundo. In: Obra
completa. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1967.)
Redija um texto, relacionando os versos de “Inocentes do Leblon” aos versos extraídos do poema
“Mundo grande”.
2- (UFPEL-RS)
Poema da necessidade
É preciso casar João,
é preciso suportar Antônio,
é preciso odiar Melquíades,
é preciso substituir nós todos.
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É preciso salvar o país,
é preciso crer em Deus,
é preciso pagar as dívidas,
é preciso comprar um rádio,
é preciso esquecer fulana.
É preciso estudar volapuque*,
é preciso estar sempre bêbedo,
é preciso ler Baudelaire,
é preciso colher as flores
de que rezam velhos autores.
É preciso viver com os homens,
é preciso não assassiná-los,
é preciso ter mãos pálidas
e anunciar o FIM DO MUNDO.
(Carlos Drummond de Andrade. Sentimento do mundo, 1940)
*Língua auxiliar de comunicação internacional, lançada em 1879 pelo alemão Mons. Johann M.
Schleyer. (Dic. Aurélio, 1986)
Considere a totalidade do poema e o momento histórico em que foi escrito.
a) Pode-se perceber a recorrência da expressão é preciso durante quase todo o texto. Qual o efeito
de sentido que pode ser extraído dessa escolha do poeta?
b) Analise a última estrofe, contextualizando-a.
(EFEI) Para responder às questões 3 e 4, leia os seguintes poemas de Carlos Drummond de Andrade:
Poema I
Elegia 1938
Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.
Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.
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Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.
Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.
Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.
Poema II
Mãos Dadas
Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros.
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considero a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história,
não direi os suspiros ao anoitecer, a paisagem vista da janela,
não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida,
não fugirei para as ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.
3- Comente a contemporaneidade do poema I face aos problemas vivenciados pela humanidade
atualmente, justificando com versos ou passagens do texto.
4- O eulírico, no poema I, revela, já no primeiro verso, seu desencanto com a realidade. No poema II,
também a partir do primeiro verso, já se percebe uma mudança na visão de mundo do eulírico.
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a) Que elementos do poema I confirmam esse desencanto?
b) Como se evidencia, no poema II, a solidariedade como alternativa para tal desencanto?
(Fatec-SP) O poema “Mãos dadas” também serve para responder às questões de números 5 a 7.
5- Considere as seguintes afirmações sobre o texto.
I. Trata-se de um poema em que o eu lírico afirma seu desejo de que a poesia possa reconstruir
aquilo que, tendo sido destruído no passado, permanece atual em sua memória.
II. O poeta manifesta a confiança de que sua nova poesia poderá superar os problemas pessoais que
quase o levaram ao suicídio e o fizeram desejar isolar-se.
III. O poeta convoca outros poetas para que, juntos, possam se libertar das velhas convenções que
prejudicam a poesia moderna.
IV.Os versos da 1ª estrofe indicam o anseio do eu lírico de que sua poesia se aproxime dos homens e
ajude a transformar a vida presente.
V. Na 2ª estrofe, o eu lírico nega que a poesia desse momento histórico deva tratar de temas
sentimentais ou amorosos.
São corretas apenas as afirmações:
a) I, II e III.
b) I e IV.
c) II e III.
d) III e IV.
e) IV e V.
6- Assinale a alternativa que apresenta o provérbio cujo significado se aproxima do tema dos versos
O presente é tão grande, não nos afastemos. / Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
a) Depois da tempestade vem a bonança.
b) Uma andorinha só não faz verão.
c) Deus ajuda quem cedo madruga.
d) De grão em grão a galinha enche o papo.
e) A esperança é a última que morre.
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7- Considerando o poema “Mãos dadas”, no conjunto da obra a que pertence (Sentimento do mundo), é
correto afirmar que Carlos Drummond de Andrade:
a) recusa os princípios formais e temáticos do primeiro Modernismo.
b) tematiza o lugar da poesia num momento histórico caracterizado por graves problemas mundiais.
c) vale-se de temas que valorizam aspectos recalcados da cultura brasileira.
d) alinha-se à poética que critica as técnicas do verso livre.
e) relativiza sua adesão à poesia comprometida com os dilemas históricos, pois a arte deve priorizar o
tema da união entre os homens.
(FESO-RJ) Para resolver as questões 8 e 9, leia o poema “Confidência do Itabirano”:
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
Noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comunicação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa ...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
Hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
(Carlos Drummond de Andrade. 50 poemas escolhidos pelo autor. MEC)
8- Dentre as características do Modernismo brasileiro, a que não se encontra presente no poema de Carlos
Drummond de Andrade é:
a) a negação de qualquer transbordamento sentimental.
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b) a recusa da exaltação nacionalista dos românticos.
c) o exercício da crítica social.
d) a rejeição de qualquer acento grandiloquente.
e) a libertação do verso do metro tradicional.
9- Assinale o procedimento linguístico não utilizado por Carlos Drummond de Andrade na construção do
poema.
a) A escolha de uma linguagem precisa e objetiva.
b) A utilização de palavras e expressões do uso corrente.
c) A repetição de palavras com finalidade expressiva.
d) O redescobrimento da realidade brasileira.
e) A predominância dos sinais de pontuação de valor lógico.
(Unimep-SP) TEXTO
Brinde ao Juízo Final
Poetas de camiseiro, chegou vossa hora,
poetas de elixir de inhame e de tonofosfã,
Chegou vossa hora, poetas do bonde e do rádio,
Poetas jamais acadêmicos, último ouro do Brasil.
Em vão assassinaram a poesia nos livros,
Em vão houve “putschs”, tropas de assalto, depurações.
Os sobreviventes aqui estão, poetas honrados,
Poetas diretos da Rua Larga.
(As outras ruas são muito estreitas,
só nesta cabem a poeira,
o amor
e a Light.)
(DRUMMOND DE ANDRADE, Carlos. “Brinde ao Juízo Final”, in Sentimento de
Mundo, Rio de Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1967, p. 106)
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10- Assinale a alternativa que não corresponde à leitura do texto.
a) O eu lírico reflete sobre a presença da poesia num determinado contexto.
b) Apesar de assassinarem a poesia nos livros, ela continua viva.
c) Não há poetas sobreviventes.
d) A poesia aparece relacionada a produtos, a consumo, originando a poesia da propaganda.
e) Os poetas da propaganda devem aproveitar a oportunidade.
11- Sobre o texto, é correto afirmar que:
a) a burguesia desconsidera a poesia.
b) a poesia não existe na sociedade deslumbrada pela tecnologia.
c) o poeta torna-se propagandista.
d) o poeta perde seu valor com o desenvolvimento dos meios de informação.
e) a poesia é matéria da criação da própria poesia.
12- O poema “Brinde ao Juízo Final” relaciona-se a outros poemas de Carlos Drummond de Andrade quanto
à sua temática. Assinale a alternativa em que isso ocorre.
a) “À noite, do morro / descem vozes que criam o terror / (terror urbano, cinquenta por cento de
cinema, / e o resto que veio de Luanda ou se perdeu / na língua geral)”.
b) “A alma cativa e obcecada / enrola-se infinitamente numa espiral de desejo / e melancolia”.
c) “Nenhum pensamento de infância, / nem saudade nem vão propósito. / Somente a contemplação /
de um mundo enorme e parado”.
d) “Impossível compor um poema a essa altura da evolução da humanidade / Impossível escrever um
poema - uma linha que seja - de verdadeira poesia. / O último trovador morreu em 1914 / Tinha um
nome de que ninguém se lembra mais”.
e) “Vai, Hotel Avenida / vai convocar teus hóspedes / no plano de outra vida”.
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12. Gabarito
1- A relação entre os dois poemas estabelece-se pelas referências a “navio”/”navios”. Os “inocentes do
Leblon” são os alienados que “tudo ignoram” e não percebem o mundo a sua volta (o navio que entra na
baía), dedicando-se aos prazeres da vida (dois últimos versos). Já em “Mundo Grande”, o eu lírico utiliza a
segunda pessoa (“tu”) para falar, na verdade, de si mesmo: recusando a alienação, ele está a par do mundo
que gira a sua volta, conhece “os navios que levam petróleo e livros, carne e algodão”, e – no lugar dos
prazeres da alienação - compartilha com os demais homens as suas “diferentes dores”.
2a) A anáfora (repetição do “é preciso”) expressa o sentimento de urgência, próximo do desespero, de ação
dos homens em um mundo que parece se encaminhar para o seu fim.
b) No primeiro verso, Drummond enfatiza algo recorrente em Sentimento do Mundo, a necessidade de
participar solidariamente dos dramas humanos; no segundo, recusa a violência fascista e a guerra; as
“mãos pálidas” do terceiro verso significam as “mãos limpas” (sem crimes) e ao mesmo tempo inseguras,
medrosas, que parecem se espalmar em desespero frente a um mundo que parece se encaminhar para
um “fim” (a Segunda Guerra Mundial, então iminente, talvez).
3- Percebe-se no poema a presença de temas atuais que constituem ainda grandes problemas da
humanidade, tais como: a exploração da mão de obra desqualificada e barata (versos 1 e 2); a fome (verso
4); a injusta distribuição de renda (versos 19 e 4); a doutrinação das massas e a imposição de modelos
(versos 5 e 6); a opressão representada pelo sistema capitalista; o poder dos EUA, como superpotência,
e das nações mais ricas do primeiro mundo (versos 11 e 12, 19 e 20); a impossibilidade de alcançar a
felicidade (versos 17 e 18); o desemprego (verso 19); a permanência das guerras (verso 19); a falta de
acesso da população ao conhecimento (verso 8). É possível que se faça também uma relação entre os atos
terroristas de 11/9/01 com os dois últimos versos.
4a) O “mundo caduco” está presente no poema I no título (“Elegia 1938”, que remete a uma época marcada
pela derrota das forças republicanas na Guerra Civil Espanhola, pela iminência da Segunda Guerra
Mundial, pela ditadura Vargas no Brasil etc.), na falta de alegria e entusiasmo demonstrada (verso 1);
no poder de aniquilamento da noite (versos 9 e 10); no terrível despertar para o mesmo cotidiano sem
perspectivas (versos 11 e 12); na impotência do homem diante da realidade adversa (versos 11 e 12).
b) O autor propõe que se viva o presente, enfrentando a realidade desesperançada por meio da união entre
os homens para buscar dias melhores.
5- E 6- B
7- B
8- C
9- D
10- C
11- E
12- D
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