flávio império: um narrador da cena

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flávio império: um narrador da cena
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FLÁVIO IMPÉRIO: UM NARRADOR DA CENA
Marcelo Braga de Carvalho1
RESUMO
Este artigo apresenta um recorte da obra do arquiteto, cenógrafo e homem de teatro
Flávio Império. Este recorte busca investigar como seu trabalho no teatro influenciou os
diversos artistas de teatro com quem trabalhou. Na primeira parte é apresentada uma breve
biografia e uma relação de seus principais trabalhos. Na segunda parte figuram as diversas
influências do seu trabalho seja como cenógrafo e/ou figurinista seja como diretor, em
parcerias com importantes encenadores tais como Augusto Boal, José Celso Martinez
Correia, Fauzi Arap, Myrian Muniz, entre outros. Este artigo pretende lançar um olhar que
busca entendê-lo como um artista preocupado com a verdade do fenômeno teatral.
Palavras chave: teatro, cenografia, Flávio Império.
ABSTRACT
The aim of this article is to present an important part of the architect, designer and
theater artist Flávio Império’work. This paper investigates how his work influenced many
other theater artists. The first part is a brief biography and a list of his major productions. In
the second part, is shown the various influences of his work, not only as a set designer but
also as a director, among many leading directors such as Augusto Boal, José Celso
Martinez Correa, Fauzi Arap, Myriam Muniz. This article intends to understand Flávio
Império as an artist concerned with the truth of the theatrical phenomenon.
Index Words: theater, scenography, Flávio Imperio.
1
Marcelo Braga de Carvalho é mestre em Artes Cênicas pela UNESP, doutorando na área de formação do
artista teatral pela ECA-USP e professor de interpretação, laboratório de montagem e improvisação na
Faculdade Paulista de Artes.
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INTRODUÇÃO
Para mim, o teatro é uma necessidade vital,
não só porque eu como dele, mas porque
ele me alimenta em muitos outros níveis.
Então eu preciso fazer teatro.
Flávio Império
Myrian Muniz foi, e continua sendo, uma grande influência e a mais importante
força motriz no meu fazer teatral. Ela foi responsável pela minha primeira e mais essencial
formação, que se deu nos sete anos em que estudei na sua escola. Durante esse período de
aprendizado, quando travei contato com o teatro como um artesão que pouco a pouco vai
construindo sua pequena obra de arte, diversas lições foram sendo impressas em minha
alma, sempre sob os olhares atentos da eterna mestra. Aprendi sobre os mais variados
aspectos do fazer artístico a fim de entender esse amálgama feito de vida e teatro, de
homem e artista, de criação e criatura. Uma presença constante em todas essas lições foi
Flávio Império, homem de teatro e mestre confesso de Myrian. Ela dizia que ele a tinha
ensinado tudo e que por isso tudo que ela fazia, dedicava a ele. Todos os espetáculos dos
quais participei enquanto aluno-ator de sua escola, Myrian dedicou ao Flávio, que era como
ela carinhosamente se referia a ele. Completava dizendo que no teatro temos os mestres
mortos – Shakespeare, Pirandello, Lorca e temos também os mestres vivos. Enquanto viveu
Flávio foi seu mestre e mesmo depois de morto continuou a influenciar seu trabalho:
Ah! Flávio [....] Meu mestre, amigo, irmão. Como você faz falta! – Mal posso me
lembrar de você sem começar a chorar.! – Uma pessoa encantada. Não morreu.
Ficou encantado, como diz Guimarães Rosa. (VARGAS, 1998, p.66)
A pedagogia teatral possibilita pensar o teatro como esse espaço de comunhão, de
troca verdadeira de conhecimentos, de compartilhar intensamente sentimentos e de dividir
importantes vivências. Um lugar de dar e receber, de olhar e ser olhado, de tocar e ser
tocado, de influenciar e ser influenciado. Fui grandemente influenciado por Myrian Muniz
e ela por Flávio Império e ele certamente por seus mestres - uma corrente de saberes.
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O foco desse trabalho é traçar um esboço da obra desse mestre - homem que
entendia de maneira muito particular e sensível a verdadeira natureza do teatro - com vistas
na sua produção voltada para as artes cênicas. Ainda assim, limitando minha análise ao
trabalho de Flávio para o palco, seria impossível traçar, de forma satisfatória, esse esboço
da sua vastíssima obra, por isso minha proposta recai sobre alguns aspectos mais relevantes
das suas criações, buscando sempre entendê-lo como um artista preocupado com a verdade
do fenômeno teatral: um verdadeiro narrador da cena.
FLÁVIO IMPÉRIO – BREVE HISTÓRICO NO TEATRO
A biografia do artista Flávio Império é muito extensa e diversificada, portanto o
recorte apresentado neste trabalho ressalta os aspectos mais decisivos que fizeram dele um
ícone não só da cenografia, mas também um pensador provocativo do que aconteceu na
cena brasileira da sua época.
Flávio Império nasceu em 19 de dezembro de 1935 e aos 20 anos ingressou na
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Nesse mesmo ano
fez sua primeira incursão no universo teatral dirigindo um grupo de crianças da
Comunidade de Trabalho Cristo Operário, ficando na coordenação do grupo por quatro
anos devido à mudança, para o Rio de Janeiro, da então coordenadora Maria Thereza
Vargas, quando esta foi convidada para dirigir o Cadernos de Teatro. Flávio encenou,
durante o período em que esteve à frente do grupo, sete espetáculos. Segundo ele, esse
período foi um dos mais ricos da sua vida, pelo fato de ter convivido de forma bastante
íntima e afetiva com os setores da população que ele só encontrou mais tarde nas filas dos
ônibus, em bares, mas sem a possibilidade de um contato mais profundo.2
Apesar da experiência adquirida nos espetáculos da Comunidade de Trabalho Cristo
Operário, ele considerava Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, encenada
no Teatro experimental Cacilda Becker em 1960, sob a direção de Clemente Portella, seu
primeiro trabalho profissional. A esse trabalho seguiram-se diversos outros, tais como Um
bonde chamado desejo, de Tennessee Williams, dirigido por Augusto Boal, no Teatro
2
KATZ e HAMBURGUER, 1999, p.40.
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Oficina em 1962, Todo anjo é terrível em 1962, Andorra em 1964, Os inimigos em 1966 e
Roda viva, em 1968 no Rio de janeiro, todos com direção de José Celso Martinez Correia e
ainda em 1964 e sob a direção de José Renato, participando da inauguração do teatro Ruth
Escobar, A ópera dos três vinténs, de Bertolt Brecht.
O Teatro de Arena, importante movimento de renovação da cena brasileira da
década de cinquenta, foi inaugurado em 1953, mas foi só a partir de 1959 que Flávio
Império começou a fazer parte da sua equipe de criadores. Ele participou como cenógrafo,
da montagem de Gente como a gente, de Roberto Freire. Com seu trabalho, ele sublinhou a
proposta de mudança do Teatro de Arena, em oposição ao que se chamava de formalismo
do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC):
Num espaço mínimo de 4,5 X 5 m, quatro pequenos corredores e 4,20 m de altura,
numa platéia com arquibancadas para 150 lugares, chegamos a mudar uma
mentalidade sobre teatro e artes em geral e influímos bastante no cinema, na
música popular, na dramaturgia, na maneira de se trabalhar um espetáculo e na
formação de um tipo novo de ator, gente de equipe, sem grandes cartazes ou
estrelas. (KATZ; HAMBURGUER, 1999, p. 41)
A rotina de trabalho no Teatro de Arena era intensa, de aproximadamente dez horas
diárias, fora as apresentações. A equipe de artistas do Arena trabalhava em todas as áreas,
desde a bilheteria, passando pela cenografia, produção e chegando até a preparação de
textos e ensaios. Flávio comparou as condições de produção do Teatro de Arena àquelas
que encontrou no teatrinho da Comunidade Cristo Operário.
Do ponto de vista da produção, as condições paupérrimas do teatrinho do
Vergueiro se repetiam no Arena, pois, se as funções de “espetáculo” : cenografia,
roupas iluminação, desenho de produção, comunicação visual eram entregues pela
primeira vez a mãos especiais, deixando de lado a improvisação, não se reconhecia,
porém, a importância de uma infraestrutura específica. Trabalhávamos com
“cuspe” e transformávamos, num golpe de mágica, aquela caixinha em mil lugares
e transportávamos a platéia para todas as situações dramáticas a que nossa
imaginação levava. (KATZ; HAMBURGUER, 1999, p. 41)
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Augusto Boal, que foi um dos diretores do Teatro de Arena, afirmou que Flávio
Império foi o criador da cenografia coringa3, e ao comentar sobre o trabalho desenvolvido
por ele para o espetáculo O melhor juiz, o rei, encenado em 1963, ressaltou:
Sua enorme importância foi essa: ele inventou uma cenografia para um teatro de arena,
que é, também, uma cenografia compatível com a nossa pobreza – do país, do teatro.
Ele foi o fundador da cenografia coringa, que aproveita as sobras, o que se pega no
lixo. Era quase um lema: nada fazer com coisas novas. (KATZ; HAMBURGUER,
1999, p. 274)
Nos oito anos em que esteve ligado ao Teatro de Arena, Flávio participou de nove
montagens, sendo a sua última Arena conta Tiradentes, em 1967. Neste mesmo ano, Flávio
participou da Quadrienal de Cenografia e Arquitetura Teatrais de Praga, na
Tchecoslováquia e em 1968, dirigiu Os fuzis da Senhora Carrar, sua primeira direção
teatral, no TUSP. Myrian Muniz, assistente de direção nessa montagem, relatou que este foi
um espetáculo muito bonito e emocionante.
Em 1970, quando da visita do grupo Living Theatre ao Brasil, Flávio Império
participou desta experiência com o grupo inglês e considerou que esta, juntamente com o
trabalho que desenvolveu com Fauzi Arap e Maria Bethânia, o levaram a mergulhar na
metafísica individual. No ano seguinte ele fez a cenografia do espetáculo Rosa dos ventos,
iniciando assim uma grande parceria com o diretor, tendo ele participado de outros seis
espetáculos de Maria Bethânia, que foram todos dirigidos por Fauzi Arap.
Sua segunda e última direção foi Labirinto – balanço da vida, encenado em 1973 e
interpretado por Walmor Chagas. Nesse espetáculo ele voltou a usar o mesmo recurso do
show Rosa dos ventos: projeções de slides que pontuavam a divisão do espetáculo em cinco
partes.
No ano de 1976, concebeu a cenografia do show Doces Bárbaros, dirigido por
Caetano Veloso e Gilberto Gil. No ano seguinte iniciou com a peça Noel Rosa: o poeta da
Vila e seus amores, uma série de concepções cenográficas que fez para as produções do
Teatro Popular do Sesi. A este se seguiram A falecida, de Nelson Rodrigues, Chiquinha
Gonzaga – Ô abre alas, de Maria Adelaide Amaral, e por fim O Rei do Riso, de Luis
Alberto de Abreu, todos sob a direção de Osmar Rodrigues Cruz. Neste período Flávio
3
Esta denominação está ligada à definição de Sistema Coringa, que foi desenvolvido pelo próprio Augusto Boal, no qual
todos os atores podem representar todos os personagens, em um sistema de rodízio, durante o espetáculo.
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assinou também a cenografia, figurinos, roteiro, trilha sonora e coordenação geral do
espetáculo Absurdos ou Os doze trabalhos de Flérsules, parceria com Suzana Yamauchi e o
Balé da Cidade de São Paulo.
O seu último trabalho foi a cenografia desenvolvida para o espetáculo Maria
Bethânia – Vinte anos de paixão, que foi dirigido por Bibi Ferreira, em 1985. Nesse mesmo
ano, Flávio Império morreu aos cinquenta anos, no dia 7 de setembro.
FLÁVIO IMPÉRIO: UM ALQUIMISTA DO PALCO4
Flávio Império foi para o teatro brasileiro
muito mais do que um cenógrafo e figurinista.
Império definiu o espaço cênico com a
mesma clareza de Copérnico ao revelar o
lugar da terra no sistema solar.
Antonio Gonçalves Filho
Neste segmento é de suma relevância ressaltar a importante influência do trabalho
de Flávio Império, no resultado cênico de alguns dos espetáculos dos quais participou, seja
como cenógrafo, figurinista ou ainda diretor. Qualquer tentativa de classificar seu trabalho,
especialmente aquele feito no âmbito das artes cênicas, seria infrutífero porque sua obra
não aceita compartimentalização. Sua atuação nunca se limitou a execução pura e simples
de um determinado ofício, mas sim trazia em seu bojo uma opinião, uma idéia e uma
renovação, promovendo uma verdadeira revolução alquímica nos palcos que recebiam sua
assinatura: um verdadeiro homem de teatro.
O que é esplendido num grande artista é a riqueza de valores que se
revelam na análise crítica de uma composição cuja resultante sempre foi fruto de
sínteses intuitivas. A percepção de um valor-síntese, que identifica uma idéia
mestra da obra estudada, está sempre presente em todos os trabalhos de Flávio que
nunca, no desenvolvimento e realização do projeto, se diluem em floreios ou
complacências decorativas. A adjetivação não faz parte do seu discurso teatral e
4
Segundo Antonin Artaud, a alquimia, através de seus símbolos, é como um Duplo espiritual de uma operação que só tem
eficácia no plano da matéria real, também o teatro deve ser considerado como o Duplo não dessa realidade cotidiana e
direta da qual ele aos poucos se reduziu a ser apenas uma cópia inerte, tão inútil quanto edulcorada, mas uma outra
realidade perigosa e típica, onde os Princípios, como golfinhos, assim que mostram a cabeça, apressam-se a voltar à
escuridão das águas. (ARTAUD, 1983, p. 43)
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quando um valor descritivo torna-se necessário, o rigor estruturalista do arquiteto
conduz sua mão. Para tanto basta observar os desenhos que identificam
estilisticamente portas janelas, sacadas, mobiliários...Não há subserviência ao
momento histórico mas, isto sim, a interpretação re-criativa daquele específico
momento. (AMARAL, 1997, p.42)
Antes de realizar Morte e Vida Severina, segundo o próprio Flávio, seu primeiro
espetáculo profissional, ele já havia realizado, no ano anterior, a cenografia para Gente
como a gente, de Roberto Freire, no Teatro de Arena. Sobre o trabalho desenvolvido por
ele, em parceria com o grupo de artistas do Arena, Sábato Magaldi afirmou:
Ao atuar, numerosas vezes, no Teatro de Arena de São Paulo, Flávio não se
curvou à idéia óbvia de que a área circular, fechada pelo público, tem a vantagem
econômica de dispensar o cenário, o que não acontece no palco italiano. Ele sempre
procurou uma forma de sugerir o ambiente, até em O Filho do Cão, de Gianfrancesco
Guarnieri, estreada em 1964, sua engenhosa cenografia ter conseguido ampliar o
espaço para uma espécie de palco semi-elisabetano, sem prejuízo de número de
lugares ocupados pelos espectadores. (AMARAL, 1997, p.49)
Segundo o próprio Flávio Império, a concepção do seu trabalho no espetáculo Morte
e Vida Severina mesclava realismo e estudos sobre as proposições de Bertolt Brecht:
Costumo falar dos meus primeiros trabalhos profissionais a partir de Morte e Vida
Severina, foi tipo assim realismo da minha cabeça misturada com a do Brecht,
apresentado a mim por Maria Thereza Vargas. Mas eu estudei (o Brecht) antes de
todo mundo e depois de Maria Thereza. Era a cabeça cheia de Vontade de fazer
teatro, cuja estética não fosse fechada, mas que tivesse projeção, imagem,
documentário. É uma coisa sobre o nordeste feita com afetividade racional e lógica
do paulista. Então tem que ter mais coisas do que o universo do autor.
(MANTOVANI, 2004, p. 29)
A influência do teatro “brechtiniano”5 nas criações de Flávio, especialmente aquelas
feitas à frente do Teatro da Comunidade Cristo Operário e depois para o Teatro
Experimental Cacilda Becker, revelam sua preocupação com um teatro de caráter político
cultural, segundo a análise de Iná Camargo Costa:
Quando fez, por exemplo, a cenografia de Morte e Vida Severina em 1960
para o Teatro experimental Cacilda Becker, já tentava conscientemente uma mescla
5
A estética teatral “brechtiana” apresenta explicitamente uma função político-ideológico-social. Muitas das peças de
Brecht apresentam, em decorrência desta função, um caráter didático, pelo qual o espectador é encarado como alvo de
uma atividade doutrinária, que o conduz a abandonar sua condição de sujeito, para assumir uma missão que o transforma
em objeto de forças sociais. (Anspach, 2012)
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de Brecht e teatro “realista” pois, entre outras providências ditas de distanciamento,
achava necessário naquele espetáculo fazer projeções de caráter documental para um
público paulista àquela altura absolutamente ignorante da realidade nordestina. Para
quem pensa um espetáculo teatral do ponto de vista da direção ou da cenografia, o
que sempre foi o caso de Flávio, a fusão entre as concepções brechtinianas e as
necessidades do teatro infantil se dá de maneira quase natural, e por uma razão muito
simples: o teatro infantil não tem (e nem deve ter) nenhum compromisso com as
convenções realistas do teatro adulto tal como era praticado na São Paulo dos anos
50. Assim, sem risco de cometer injustiça, pode-se dizer que nosso artista entrou em
contato com a teoria teatral em vias de se tornar um must no ocidente em condições
quase ideais: como membro de uma organização político-cultural interessada nas
mesmas questões que levaram Brecht a desenvolver seu “método” e trabalhando
numa modalidade teatral inteiramente apta a incorporara uma teoria que em grande
parte torna consciente, ou traz ao plano do conceito (como se isso fosse pouca coisa),
aspectos já consolidados de sua prática, porque são constitutivos os laços estilísticos
que ligam o teatro infantil ao circo e a inúmeras outras modalidades de cultura
popular enraizadas no humor. O teatro brechtiniano e as mais relevantes experiências
da arte moderna deste século devem muito do seu interesse ao vínculo deliberado que
estabeleceram com aquele patrimônio cultural. Nosso cenógrafo-diretor muito cedo
de deu conta disso e suas experiências posteriores nunca perderam essa referência.
(AMARAL, 1997, p.61)
Ao analisar o trabalho de Flávio Império como cenógrafo, o diretor e também
cenógrafo Gianni Ratto ressaltou a possível relação de influência mútua entre a dramaturgia
e os processos criativos de cenografia, especialmente na concepção cenográfica de Um
bonde chamado desejo, de Tenessee Williams, encenada no Teatro Oficina sob a direção de
José Celso Martinez Correia:
O cenário para Um bonde chamado desejo, de Tenessee Williams é a meu
ver antológico [...] A força de um cenógrafo define-se fundamentalmente pela
inteligência crítica que o conduz na leitura de um texto e na descoberta de seus
valores mais profundos: inteligência crítica que deverá dominar o instrumental
cenográfico, levando-o a uma tradução visual que sintetize as intuições temáticas,
aliando-as a um inevitável resultado plástico. O cenário de Flávio consegue
organizar, no espaço aparentemente hostil de um teatro de arena com duas platéias,
todas as sugestões, as vezes traiçoeiras , que o texto americano e sua ambientação
propõem. Tudo está presente estilo, fatores concretos e abstratos, dinâmica
tridimensional do espaço, a disposição do movimento físico-dramático das
personagens. (AMARAL, 1997, p.41-42)
Os fuzis da Dona Tereza, nome dado por Flávio à montagem do texto Os fuzis da
Senhora Carrar, de Bertolt Brecht, foi sua primeira direção, que aconteceu em 1968, com
produção do Teatro de Universitários de São Paulo/TUSP. Em entrevista dada à
pesquisadora Sandra Mantovani, a atriz, diretora e professora Myrian Muniz, que foi
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assistente de direção de Flávio nessa montagem, revela sua admiração pela condução dada
por Flávio ao processo de ensaio e pelo resultado cênico final do espetáculo:
Os ensaios foram na minha casa, Dona Tereza morava dentro de uma trincheira de
sacos, ela morava numa trincheira, tinha um forno que ascendia de verdade. A peça
começava com Dona Tereza amassando o pão, muitas vezes na cozinha da minha casa
amassei o pão com ela, pra ela aprender, aquela coisa da força, porque a Bety
Chachamovitz era uma judia loira, não estava acostumada a fazer pão, imagina, era
uma intelectual, tinha que sovar, cobrir e crescia no fim, e tinha aquele cheiro de pão
que vinha, ela abria o pão e comia junto com a vizinha.
O cenário era uma trincheira de sacos, tinha uma mesa rústica, cadeiras, bancos, o
forno, um assoalho de tábuas largas, e mais nada, no fim ela puxava a tábua do
assoalho e ela tirava a espingarda de dentro, e descia pela platéia. Agora o que tinha de
impressionante era um cristo no fundo crucificado com uma máscara contra gases, as
meninas entravam pela platéia, todas de preto, todas de luto, com aqueles turíbulos de
igreja, ficava tudo cheio de fumaça, e aquele homem, Ray Charles, cantando aquela
música americana, que emoção, era Brecht e tinha também emoção, tinha as duas
coisas, agora era lindo quando o filho entrava morto, punham na frente, a roupa toda
manchada, tudo feito de saco. (MANTOVANI, 2004, p. 35)
A segunda e última experiência de Flávio Império como diretor teatral
ocorreu em 1973, quando ele dirige Labirinto – balanço da vida, protagonizado pelo ator
Walmor Chagas. O espetáculo era dividido em quatro partes e um epílogo. A pesquisadora
Sandra Mantovani descreveu as partes que compõe o roteiro idealizado por Flávio Império:
Labirinto, ao meu ver, parece uma viagem existencial. Aborda as
inquietações, revelando dicotomias que se potencializam em um ambiente de
inúmeras possibilidades, em que a razão não encontre substância e o sentimento
revela-se como catalisador das vontades que buscam um destino, mesmo incerto.
O prólogo Tens a vontade e ela é livre? Apresenta um questionamento de
como o cidadão é tratado pela sociedade em uma era informatizada, em que é
imprescindível preencher todos os dados cadastrais para ser um cidadão “de bem” .
Denuncia este contra-senso, já que o cidadão vai perdendo identidade como
indivíduo e passa apenas a ser um número. A pergunta feita no início do prólogo é
uma grande reflexão sobre sua liberdade diante das convenções adotadas pela
sociedade.
Inverno, a primeira parte do espetáculo, tem como slogan Tens algo da
terra. Neste bloco, Flávio coloca o ambiente urbano como tema, a poluição, a
marginalia da Avenida São João com a Ipiranga, o consumismo por meio de imagens
de vitrines, coloca o indivíduo perdendo sua capacidade de conduzir o próprio
destino, sendo obrigado a fazer parte de uma engrenagem em que não é mais que
uma peça do sistema.
Outono, a segunda parte, tem como slogan tens algo de água. A intenção é,
por meio de uma introspecção melancólica, demonstrar a viagem interior do
indivíduo quando esse é despojado de seus objetivos de vida. Ele o reconhece mais a
realidade física como aquela que projetou. Apenas na realidade de suas lembranças
encontra substrato mantenedor de suas esperanças para o futuro.
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Verão, a terceira parte, tem como slogan Tens algo de fogo. Por meio das
relações humanas, reflete o poder da transformação. O relacionamento interpessoal é
fundamental para um reencontro com as próprias raízes. A energia e a vibração
fazem parte do indivíduo contextualizadas na força dos sentimentos e emoções
exacerbadas. Sob o signo da imprudência, a relação humana atinge um grau de
obscuridade tal, que torna a vontade mero objeto do desejo, um fim em si mesmo.
Primavera, a quarta parte, tem como slogan Tens algo de ar. Por meio do
renascimento, Flávio pretende trazer a vida exaurida. A plenitude existencial agora é
possível com a libertação das conjunturas controladoras. As relações humanas
adquirem fluxo de mão única. Não há mais exigências e configurações préestabelecidas. Tudo flui em constante harmonia com o ambiente. O espaço pode ser
agora ocupado pelo redimensionamento da ama, que ganha status de eternidade.
O Epílogo, com o slogan Tens a vontade: e ela é livre, constata o momento
de experimentar a liberdade com a retomada da condução do seu próprio destino. O
indivíduo pode agora relacionar-se sem preocupações. O momento transcende, e a
alegria e a esperança voltam a ser parceiras. (MANTOVANI, 2004, p. 54/55)
Em uma análise primeira do roteiro do espetáculo Labirinto, já é possível identificar
a capacidade de compreensão que Flávio Império tinha das inquietações, dúvidas, questões
e reflexões que espelhavam aquele momento, no qual o espetáculo foi concebido, dando ao
referido roteiro, ao mesmo tempo, um aspecto autoral e universal.
Outra importante faceta do seu trabalho foi a parceria entre Flávio Império e o
diretor Fauzi Arap na concepção dos espetáculos/shows de Maria Bethânia, parceria essa
que foi extremamente produtiva artisticamente. O diretor considerava os cenários
concebidos por Flávio extraordinariamente belos, sem ser invasivos e sem competir com a
natureza do espetáculo:
No espetáculo Cena Muda, ele criou um chão todo misterioso que refletia luz. Era
uma complicação pra iluminar, era tão misterioso que a luz batia no chão e aparecia a
imagem da Bethânia de cabeça pra baixo, que é uma coisa estranha, um vulto sobre o
telão do fundo, então criava uma coisa fantasmagórica bonita, envolvente, que
agradava muito mais ao Flávio, porque ele voltou a utilizar esse chão no Estranha
forma de vida e em outros shows. Aí ele só adotava esse chão, que ele inaugurou no
Labirinto, insatisfeito com o resultado do chão em Rosa dos ventos. Eu me lembro
dele me dizendo: fiquei um mês de cama depois da estréia do Rosa dos ventos. Era
pela economia, a produção gastou pouco, naquele momento a Bethânia não era esse
fenômeno de bilheteria, e o Rosa dos ventos marcou esse salto de qualidade
profissional da Bethânia. Se todo mundo soubesse o sucesso que vinha, teriam
gastado muito mais com o Flávio, mas tudo que o Flávio fez eu adorava, servia
lindamente ao espetáculo. (MANTOVANI, 2004, p. 39)
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Por fim, o ator Walmor Chagas, que protagonizou o espetáculo Labirinto, sintetiza
comparando a atuação de Flávio Império à de Leonardo da Vinci:
Quando eu penso em Leonardo da Vinci, eu digo: já conheci um, Flávio Império.
Porque o Leonardo da Vinci também era um sujeito que fazia de tudo, era uma
cabeça fora do comum, aí eu digo: ah! Eu já sei qual era a cabeça do Leonardo da
Vinci, como é que funcionava, porque o Flávio Império funcionava assim.
(MANTOVANI, 2004, p. 75)
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Flávio Império foi um artista à frente de seu tempo. Ele possuía uma sensibilidade
extrema, um senso de estética agudo e uma capacidade incrível de leitura do ser humano,
características essas que davam ao seu trabalho uma dimensão atemporal, amoral e
universal. Ele conseguia entender a arte do palco a partir da sua essência, analisando o
fenômeno teatral não somente através das lentes mágicas do cenógrafo e figurinista que era,
mas sim buscando trazer a luz àquilo que ainda estava por ser descoberto no texto, no
universo do autor, na encenação, no trabalho do ator, etc...
Flávio Império foi um artista único, com todas as qualidades e contradições que
esse adjetivo carrega, porém de um talento e ousadia inegáveis, sendo sua obra considerada
fundamental na história do teatro brasileiro.
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANSPACH, Sílvia. Brecht e a narrativa no teatro. apropucsp.org.br. Disponível em
http://www.apropucsp.org.br/apropuc/index.php/revista-cultura-critica/37-edicaono03/340-brecht-e-a-narrativa-no-teatro-ou-onde-esta-a-arte. Acesso em 06 ago. 2012.
AMARAL, Gláucia (curadoria). Flávio Império em cena. São Paulo: SESC, 1997.
ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1993.
KATZ, Renina; HAMBURGUER, Amélia. Flávio Império. São Paulo: EDUSP, 1999.
MANTOVANI, Sandra Aparecida de Paula. Flávio Império, identidade na direção de
labirinto: uma reconstituição visual. Tese de mestrado apresentada ao Departamento de
Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da USP. São Paulo, 2004.
VARGAS, Maria Thereza. Giramundo: Myrian Muniz, o percurso de uma atriz.
São Paulo: Editora Hucitec, 1998.
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