poesia fora-da-lei_ confrontando a poesia de jim

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poesia fora-da-lei_ confrontando a poesia de jim
UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ
FERNANDO VILLATORE
POESIA FORA-DA-LEI: CONFRONTANDO A POESIA DE JIM MORRISON E AS
LETRAS DAS CANÇÕES DO THE DOORS
CURITIBA
2015
FERNANDO VILLATORE
POESIA FORA-DA-LEI: CONFRONTANDO A POESIA DE JIM MORRISON E AS
LETRAS DAS CANÇÕES DO THE DOORS
Monografia apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Bacharel
em Letras, curso de Bacharelado em Letras
Inglês com Ênfase em Estudos Literários,
setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Orientadora: Prof.ª Dra. Luci Collin
CURITIBA
2015
TERMO DE APROVAÇÃO
FERNANDO VILLATORE
POESIA FORA-DA-LEI: CONFRONTANDO A POESIA DE JIM MORRISON E AS
LETRAS DAS CANÇÕES DO THE DOORS
Monografia apresentada como requisito
parcial para obtenção do título de Bacharel
em Letras, curso de Bacharelado em Letras
Inglês com Ênfase em Estudos Literários,
setor de Ciências Humanas, Letras e Artes da
Universidade Federal do Paraná.
Aprovado em 08 de julho de 2015.
BANCA EXAMINADORA
Orientadora: Prof.ª Dra. Luci Collin. Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências
Humanas, Letras e Artes, Departamento de Letras Estrangeiras Modernas.
Banca: Prof. Dr. Maurício Mendonça Cardozo. Universidade Federal do Paraná, Setor de
Ciências Humanas, Letras e Artes, Departamento de Letras Estrangeiras Modernas.
AGRADECIMENTOS
A Renata Foltran, pela presença e energia.
A Luci Collin, pela preciosa orientação.
A meus pais, por tudo.
Listen, real poetry doesn't say anything; it just ticks off the possibilities. Opens all doors. You
can walk through any one that suits you.
If my poetry aims to achieve anything, it's to deliver people from the limited ways in which
they see and feel.
Lets just say I was testing the bounds of reality.
Each day is a drive thru history.
Jim Morrison
RESUMO
A presente pesquisa estuda relações e cruzamentos entre música e literatura através da
contraposição de poemas do cantor e poeta norte-americano Jim Morrison e letras das canções
escritas pelo músico para a banda californiana The Doors, buscando verificar proximidades e
diferenças no tocante a campo temático, métrica e dicção poética em ambas as linguagens
citadas. Para tanto, foram analisadas e comparadas as estruturas formais e semânticas dos três
livros de poemas publicados pelo artista, mais os poemas de duas sessões de poesia
declamada gravadas por ele, com as letras das canções dos seis discos de estúdio lançados
pelos Doors. Jim Morrison foi um rebelde e um contestador, fora-da-lei na vida e na arte, que
encarnou o modus operandi da contracultura norte-americana e levantou a bandeira da
transgressão social e artística como meio para se alcançar diferentes estados e estágios de
consciência pessoal e coletiva. Sua expressão artística, marcada pela pluralidade temática e
carregada de imagens inquietantes, sombrias, grotescas, oníricas, obscuras, e/ou psicodélicas,
era pautada por uma dicção poética hermética, baseada em uma seleção lexical que
privilegiava o incomum e o disforme, metáforas enigmáticas e deslocamentos semânticos que
causavam estranhamento. Verificou-se que, embora os campos temáticos não sofram
alterações consideráveis na comparação entre os textos destinados a figurar como poemas e os
destinados a figurar como canções, sua dicção poética parecia sofrer uma flexiblização
quando o veículo utilizado era a música, adaptando-se a obscuridade semântica e formal para
a obtenção de estruturas, imagens e significados mais claros e diretos nas canções.
Palavras-chave: Jim Morrison. The Doors. Poemas. Letras de canções. Música.
Literatura.
ABSTRACT
The presente research aims at studying interrelations between music and literature
through the comparison between poems of the American singer and poet Jim Morrison and
lyrics written by him for the californian band The Doors, looking for similarities and
differences with regard to subject field, prosody, and diction in both the mentioned vehicles.
For this, formal and semantic structures of the three poetry books published by the artist, plus
two recorded poetry sessions, were analised and compared with the lyrics of the six studio
albuns released by The Doors. Jim Morrison was, both as a man and as an artist, a rebel and a
teaser – an outlaw in life and in the arts –, who embodied the modus operandi of the North
American counterculture and raised the flag of social and artistic transgression as means to
achieve different personal and collective states and levels of consciousness. His artistic
expression, which holds thematic plurality and is plenty of eerie, gloomy, grotesc,
nightmarish, uncanny, and/or psychedelic images, was guided by a hermetic poetic diction,
which was based on a choice of words that prioritized the uncommon and the misshapen,
puzzling methafors, and semantic shifts that caused strangement. It was observed that,
although the thematic fields do not go through considerable changes while comparing the
writings conceived to become poems and the ones conceived to become lyrics, his poetic
diction seemed to experiment some kind of flexibility when the vehicle used was music, being
the semantic and formal obscurity adapted to obtain clearer and more direct structures,
images, and meanings in the songs.
Keywords: Jim Morrison. The Doors. Poems. Lyrics. Music. Literature.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................... 8
2 BIOGRAFIA ............................................................................................................... 15
2.1 THE DOORS.............................................................................................................. 15
2.2 JAMES DOUGLAS MORRISON.............................................................................. 18
3 POESIA E MÚSICA ................................................................................................... 27
3.1 A POESIA DE MORRISON....................................................................................... 27
3.2 AS LETRAS DAS CANÇÕES DO THE DOORS………......................................... 38
4 OS POEMAS X AS LETRAS DAS CANÇÕES…………………………………… 43
4.1 POESIA “ESCRITA” X POESIA “FALADA/CANTADA(?)”………………….… 43
4.2 POEMAS X AS LETRAS DAS CANÇÕES (ANÁLISE ESQUEMÁTICA)…….... 47
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS....................................................................................... 56
REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 58
ANEXOS........................................................................................................................... 61
8
1 INTRODUÇÃO
Quando me propus a desenvolver a presente pesquisa buscava, antes de tudo,
estabelecer uma conexão entre duas linguagens artísticas que possuem significativa presença
em minha vida. De um lado, a música, que, embora nunca tenha sido foco de estudo formal
ou acadêmico, havia sido meu ganha-pão por muitos anos e permanece sendo objeto de
estudo informal e uma grande paixão. De outro lado, a literatura, que tornou-se objeto de
estudo acadêmico e, embora nunca tenha possuído o papel de uma profissão em minha
realidade, sempre teve uma ligação natural com meu trabalho através das letras das canções.
Dessa forma, um dos objetivos desta pesquisa (sem deixar de levar em conta a abrangência
das possibilidades de estudo de ambas as artes) é investigar as inter-relações,
interdependência e influências recíprocas que música e literatura carregam desde o limiar à
completude de suas realizações.
Em termos amplos (em uma das leituras possíveis), mesmo que nem sempre
detectáveis em um primeiro momento, dado o distanciamento que pode existir entre o que há
de abstrato na primeira e o que há de concreto na segunda, música, instrumental ou cantada, e
literatura, a priori, sempre estiveram inter-relacionadas, desde a quase sempre presença de
ritmo e musicalidade em um poema ou prosa ao encaminhamento a um universo imagético,
literal ou não, que uma peça musical pode nos remeter. Nas palavras de Solange Ribeiro de
Oliveira (2002, p. 51):
Um outro encontro possível entre música e literatura pode ser definido a partir da
sugestão de ambas possuírem características de som e tempo virtual, possibilitando
assim intercâmbio de instrumental teórico e crítico. Mesmo assim, esse seria um
encontro ocasional, já que música e arte verbal teriam sentidos antagônicos, partindo a
primeira de abstrações formais – tendo como código a mensagem – em direção à
busca de sentido, enquanto a segunda partiria do concreto em direção à abstração.
No caso específico das canções, as inter-relações entre música e literatura talvez sejam
mais claramente observáveis. Os rumos e dimensão que ritmo, harmonia e melodia de uma
canção tomam podem ser influenciados pela forma, conteúdo imagético ou temática de uma
letra, bem como a letra da canção pode, de certo modo, ser explicada, corroborada e
fortalecida pela estrutura rítmica, harmônica e melódica da peça musical. Devemos observar
que essas relações podem não ser somente caracterizadas pelos aspectos de continuidade ou
encadeamento descritos, mas ocorrer de diversas formas. Em alguns casos, pode existir
também uma relação de descontinuidade, onde a letra pode caminhar em um sentido oposto à
9
música, originando tensão ou contraste. Um acorde perfeito maior (tradicionalmente
reconhecido como um acorde “alegre”), por exemplo, pode vir associado a versos de
conteúdo contrário; versos simples podem ser acompanhados de progressões harmônicas
complexas; e assim por diante. Como arquétipo dessa relação de desencadeamento entre
música e letra podemos citar as tradicionais cantigas de roda, tal como a popular “O Cravo e
a Rosa”, onde versos de conteúdo lúgubre (“O Cravo ficou doente / A Rosa foi visitar / O
Cravo teve um desmaio / A Rosa pôs-se a chorar”) contrastam com a ludicidade da música1.
No entanto, oposições de diversas naturezas podem ser intencionalmente criadas (e aqui seria
possível enquadrar muitas das canções do Doors)2 para construir, mesmo que através de
inflexão ou desconstrução, outros tipos de relações de influência, explicação, corroboração
e/ou fortalecimento a que nos referíamos3.
De qualquer modo, quando se fala de música e literatura há uma discordância entre
autores em relação à poesia exercer ou não um papel subalterno ou secundário na composição
de canções. Ainda segundo Oliveira (2002, p. 31), muitos autores consideram que “a principal
característica de uma canção encontra-se na fusão de letra e melodia, nenhuma das duas
exercendo função subalterna”. Por outro lado, alguns críticos, como por exemplo Susanne
Langer (1972, apud OLIVEIRA, 2002, p. 31), consideram que “a música absorve a poesia,
cuja importância torna-se secundária numa canção. Por isso, a (possível) mediocridade da
letra não prejudica a beleza da canção”.
Já para o músico e linguista paulistano Luiz Tatit, melodia e letra são
interdependentes, seguindo procedimentos de construção de significados derivados de padrões
de progressão comuns entre eles, fato que, em princípio, colocaria poesia e letra de canção em
compartimentos de caráter diverso, embora contenham prováveis pontos de tangenciamento
(possibilidade à qual vamos nos referir brevemente no decorrer desta pesquisa). Nos diz Luiz
Tatit, em seu artigo Elementos para análise da canção popular,
Tudo fica mais claro e mais completo ao se verificar a interdependência entre a
melodia e a letra da canção. Se a reiteração e as tensões de altura servem para
estruturar a progressão melódica, esses mesmos recursos podem ser transferidos ao
1
É possível citar também, como exemplos dessa relação de tensão entre letra e música, canções de ninar, tal
como “Boi da Cara Preta” (“Pega essa criança que tem medo de careta”) ou “Nana Neném” (“Que a Cuca vem
pegar”).
2
De acordo com o músico americano Marilyn Manson, a música do The Doors frequentemente não tinha nada a
ver com o que Jim Morrison estava cantando (“The music often had nothing to do with what Morrison was
singing”). Fonte: < http://www.rollingstone.com/music/lists/100-greatest-artists-of-all-time-19691231/the-doors20110420>. Acesso em 04 de setembro de 2015.
3
Não é nossa intenção aqui aprofundar o assunto, dada a sua amplitude, complexidade e quantidade de
desdobramentos possíveis. Assim, o propósito estabelecido é abordar e exemplificar brevemente o tópico,
levando sempre em consideração a relação que se estabelece com o objeto de estudo específico desta pesquisa.
10
conteúdo, de modo a construir uma significação compatível. (2003,
p. 9)4
Outro ponto de vista importante é aquele que aproxima música e poesia por serem
supostamente modalidades artísticas de mesma natureza. Enquanto tendemos a pensar
literatura como uma arte de apelo visual e música como uma arte de apelo auditivo, Calvin S.
Brown, em seu estudo Music and Literature - A Comparison of the Arts5, enuncia que
literatura é projetada para ser ouvida. Já que a grande maioria de nossas leituras é feita
sem a produção de qualquer som físico, muitas pessoas tendem a pensar, de antemão,
que literatura é algo feito para os olhos. Um momento de reflexão irá dissipar essa
ideia. Ninguém considera as notas musicais, impressas em uma partitura, como
música propriamente dita: elas são simplesmente símbolos que indicam ao músico
quais sons ele deve produzir, e os sons em si é que fazem a música. Precisamente a
mesma coisa vale para literatura, e nenhuma pessoa iletrada estaria sujeita a fazer essa
confusão.6
É necessário ressaltar que, apesar disso, enquanto sons em música não necessitam, em
princípio, de associações externas para adquirir significância, os sons em literatura vem
sempre acompanhados de associações e significados externos. Ainda segundo Brown,
Linguagem consiste de sons dotados de associações e significados, e mesmo quando
intencionalmente se busca o nonsense, é impossível fugir de associações externas, que
estão sempre presentes nos sons da fala. (...)
As palavras são escolhidas individualmente, em parte, por causa de sua beleza sonora,
mas também em razão de sua riqueza em associações poéticas, que podem nesse caso
ser exploradas sem ser controladas. De fato, é quase impossível separar o som de uma
palavra das associações que ela evoca.7
Em nossa pesquisa nos ocuparemos principalmente dessas associações externas a que
uma palavra pode nos remeter, buscando verificar qual o tipo de escolhas feito pelo poeta para
4
Utilizaremos este aspecto citado dos estudos de Luiz Tatit a respeito da relação música/letra apenas em linhas
gerais, levando em consideração que seus trabalhos envolvem a análise profunda da conexão entre a letra da
canção e os aspectos harmônicos, rítmicos e melódicos da música, assunto ao qual não nos deteremos por não ser
escopo desta pesquisa. Nos limitaremos a verificar possíveis diferenças ou vínculos que possam existir na
associação poesia/letra de canção, mais especificamente na superfície dos textos que integram os poemas de Jim
Morrison e as letras das canções da banda The Doors.
5
As traduções de citações em inglês que aparecem no texto foram feitas pelo autor desta pesquisa.
6
“(...) literature is intended to be heard. Since the great majority of our reading is done without the production of
any physical sound, many persons are inclined to think offhand of literature as something presented to the eye. A
moment’s reflection will dispel this idea. No one mistakes the printed notes on a sheet of music for music: they
are simply symbols which tell a performer what sounds he is to produce, and the sounds themselves are the
music. Precisely the same thing holds true for literature and no illiterate would ever be guilty of this confusion.
(2013, cap. II, eBook kindle)
7
(...) language consists of sounds endowed with associations and meanings, and even in deliberate nonsense it is
impossible to escape the external associations which are always presente in the sounds of speech. (...)
The single words are chosen partly because they are beautiful in sound, but also because they are rich in poetic
associations which can here be exploited without being controlled. In fact, it is nearly impossible to distinguish
the sound of a word, as sound, from the associations which it evokes. (Cf. 2013, cap. II, eBook kindle)
11
criar seu universo de significados, sem deixar de considerar que tanto à poesia quanto à letra
da canção faltará ainda o som para completar seu universo.
De qualquer maneira, fica ainda o questionamento sobre por que certas letras podem
ser consideradas mais “poéticas” que outras, e por que alguns poemas podem “funcionar”
tanto como poemas quanto como letras de canções, e vice-versa. No caso de Jim Morrison,
que era duplamente poeta e letrista, e em que boa parte das letras das canções nasceram de
poemas (de acordo com o próprio músico, companheiros de trabalho, amigos e biógrafos), nos
propomos a analisar alguns aspectos da dicção do poeta e suas temáticas, buscando verificar
que tipo de diferenças, mudanças ou adaptações ocorriam durante esse trânsito entre poesia e
música (letra de canção).
A relação que possivelmente se estabelece entre o Jim Morrison escritor de poemas e
o Jim Morrison escritor de canções é, pois, objeto deste estudo e será feita através de
abordagem analítico-crítica, comparando-se a poesia do cantor e poeta estadunidense – mais
precisamente seus três livros publicados em vida (The Lords: Notes on Vision e The New
Creatures, de 1969, e An American Prayer, de 1970) mais duas sessões de poesia (“Elektra
Session”, de 1969, e “Birthday Poetry Session”, de 1970) – às canções (contidas nos seis
álbuns de estúdio lançados entre 1967 e 1971) da banda californiana The Doors, sem deixar
de levar em conta algumas das influências literárias do poeta e cantor.
Extrapolar a função de compositor ou cantor de rock sempre esteve em foco na
carreira de Jim Morrison, e para isso ele utilizou tudo aquilo com o que se identificava para
verter e subverter significados em seu criar artístico. Para Morrison, segundo opina o escritor
e ex-empresário do The Doors nos anos 70, Danny Sugerman, na introdução de seu livro The
Doors: The Complete Illustrated Lyrics, “ser um poeta, ser um artista, significava mais do
que simplesmente escrever ou pintar ou cantar; significava vislumbrar algo e ter a coragem
para levar adiante, independentemente de qualquer oposição”.8 Embora consagrado como
compositor e estrela de rock, Jim Morrison dedicou significativa parte de sua vida ao fazer
literário, buscando também reconhecimento como poeta. Wallace Fowlie, professor de
literaura norte-americano e escritor do livro Rimbaud and Jim Morrison: The Rebel as Poet,
nos diz que “durante os seus dois últimos anos de vida, Jim Morrison disse várias vezes para
amigos próximos que ele esperava ser lembrado mais como poeta do que como cantor de
rock”.9
8
“To be a poet, to be an artist, meant more than writing or painting or singing; it meant having a vision and the
courage to see that vision through, despite any opposition” (SUGERMAN: 2006, p. 11).
9
“Several times during the last two years of his life, Jim Morrison said to close friends he hoped to be
12
A carreira rápida e meteórica do The Doors, com suas escolhas formais, seu vigor
temático, a estética de suas performances e a pungência musical das canções deve muito de
seu sucesso à maneira como o vocalista e autor da maioria das letras do grupo absorveu e
filtrou a literatura pela qual se interessava e com a qual dialogou nos breves anos em que agiu
ativamente como poeta e intérprete das próprias letras e melodias que criava.
De acordo com vários autores, as influências e a intertextualidade literárias são fatores
não só detectáveis como de enorme força criativa nas letras das canções da banda
californiana. Morrison, ávido consumidor de literatura, dialoga com e é influenciado por
obras e autores de relevância na literatura mundial, como por exemplo: o poeta simbolista
francês Arthur Rimbaud, autor do extenso e renomado poema Uma Estação no Inferno10; o
escritor inglês Aldous Huxley, conhecido pela ficção Admirável Mundo Novo11 e pelo livro de
ensaios As Portas da Percepção12, onde expõe as suas experiências alucinógenas com
mescalina; o escritor e dramaturgo surrealista Antonin Artaud, cuja obra O Teatro e seu
Duplo13 é vista como um dos mais importantes registros sobre a arte do teatro no século
passado; o escritor da beat generation Jack Kerouac, mundialmente famoso por seu romance
autobiográfico Pé na Estrada14; o poeta francês, precursor do simbolismo, Charles
Baudelaire, cujo livro As Flores do Mal15 é considerado um marco da poesia simbolista e
moderna; e do poeta do romantismo inglês William Blake, que tem como trabalho mais
conhecido o livro de poesia Canções de Inocência e de Experiência16. O próprio nome do
grupo, segundo declaração dos integrantes, foi retirado do famoso livro do autor inglês
Aldous Huxley, The Doors of Perception, que por sua vez tem o seu título retirado do poema
The Marriage of Heaven an Hell, de William Blake, no famoso verso “When the doors of
perception are cleansed, things will appear as they truly are, infinite” (BLAKE, apud
SUGERMAN: 2006, p. 10).17
A relevância do diálogo que se busca neste estudo comparativo entre literatura e
música através dos poemas de Jim Morrison e dos textos das canções do The Doors é
respaldada e reforçada pelo impacto cultural estabelecido pelas letras, pela música e pelas
remembered as a poet rather than as a rock singer” (FOWLIE: 1995, p. 3).
Une Saison en Enfer (RIMBAUD, 1873)
11
Brave New World (HUXLEY, 1932)
12
The Doors of Perception (Idem, 1954)
13
Le Théâtre et Son Double (ARTAUD, 1935)
14
On The Road (KEROUAC, 1957)
15
Les Fleurs du Mal (BAUDELAIRE, 1857)
16
Songs of Innocence and of Experience (BLAKE, 1789)
17
“Quando as portas da percepção forem limpas, as coisas vão se revelar como elas realmente são, infinitas”
10
13
performances da banda no final dos anos sessenta e início dos setenta, bem como pela
importância artística que o Doors e suas canções têm na história da música contemporânea até
os dias de hoje.18 Será relevante para os estudos literários analisar e comparar os poemas nãomusicados que Morrison lançou em livro e as “letras-poemas” das músicas do The Doors,
visando verificar possíveis diferenças ou semelhanças formais e temáticas entre os dois
formatos, além do papel modificador, em alguns poucos casos (já que, como já foi dito, este
não é o foco principal desta pesquisa), exercido pelo ritmo, harmonia e melodia sobre os
textos das canções do quarteto californiano. Será também pertinente, a título de
experimentação, averiguar o que há de potencialmente “musical” nos poemas que não viraram
canções (ou melhor, de que maneira os poemas podem aproximar-se ou afastar-se dos textos
das canções), bem como o status quo, enquanto literatura, das letras das canções quando
despidas de sua música (ou seja, de que maneira as letras das canções podem aproximar-se ou
afastar-se dos poemas quando observados apenas os textos à parte de sua música).
Assim, duas perguntas-chave na formulação da problemática desta pesquisa são: 1)
Quais as semelhanças e diferenças entre os poemas e as letras das canções escritos por Jim
Morrison? 2) Através da análise da obra de Jim Morrison enquanto escritor e declamador de
poemas e enquanto letrista, vocalista e líder performático da banda The Doors, até que ponto
música e literatura se influenciam e se completam? Para responder a essas perguntas será
analisada a obra do poeta, declamador, autor de canções, cantor e performer a partir de um
viés diacrônico (o impacto cultural e social de sua obra em sua época e a evolução de seu
significado até os dias de hoje), levando em consideração a intertextualidade e as influências
de artistas consagrados da literatura na composição dos poemas e textos das músicas, bem
como (e principalmente) a partir de um viés sincrônico, que levará em conta os textos
18
Vale aqui dizer que a banda figura em listas de revistas especializadas que elencam conceituados artistas,
discos e canções da música mundial, a exemplo de uma seleção dos cem maiores artistas de todos os tempos
feita pela revista americana Rolling Stone e lançada em 2004, onde os Doors figuram na 41ª posição. A lista
possui nomes como Madonna (36ª), Michael Jackson (35ª), Bob Marley (11ª), Elvis Presley (3ª) e The Beatles
(1ª). Para a seleção da referida lista foi composto um júri com cinquenta e cinco profissionais renomados
mundialmente (músicos, escritores e executivos da indústria da música) que deveriam eleger os artistas mais
influentes da era do rock. Além disso, todos os seis álbuns de estúdio lançados pela banda entre 1967 e 1971,
ano da morte de Jim Morrison, estiveram entre as dez primeiras posições no ranking da revista americana
Billboard, que há décadas lista os maiores nomes das paradas musicais baseada no número de vendas e
execuções em radio (ou internet) de cada artista. De acordo com a Associação Americana das Indústrias de
Gravação, RIAA (Recording Industry Association of America), o The Doors é uma das bandas que mais
venderam discos em todos os tempos, tendo alcançado a marca de trinta e três milhões de cópias certificadas nos
Estados Unidos e mais de cem milhões ao redor do mundo. Segundo estimativa de 18 de março de 1991 (ou seja,
2 décadas após a morte de Jim Morrison), publicada no volume 35, Nº 10, da revista Americana People, os
discos do The Doors continuavam vendendo, na época, mais de 2 milhões de cópias por ano somente nos EUA.
(Fontes:
<http://www.rollingstone.com/music/lists/100-greatest-artists-of-all-time-19691231>;
<www.billboard.com>; <www.riaa.com; www.people.com>. Acesso em 31/08/2015).
14
isoladamente e a significância que estes duplamente e respectivamente adquirem e imprimem
através da e na música da banda.
No “Capítulo 1”, será apresentada uma visão geral da biografia de Jim Morrison (com
ênfase no período que vai do primeiro disco do The Doors, em 1967, até a morte do vocalista
em 1971) e também da trajetória da banda e sua inserção histórica. O “Capítulo 2” fará uma
introdução aos poemas de Morrison publicados em livro (com breve exposição e análise de
suas temáticas e características formais) bem como às letras das canções do Doors. No
“Capítulo 3”, será feita a contraposição entre os textos dos poemas e das canções, com defesa
da tese e das hipóteses formuladas. Por fim, nas “Considerações Finais”, cuidaremos das
possíveis conclusões alcançadas pela pesquisa, buscando contextualizar e reafirmar a
relevância deste trabalho à luz dos dias atuais.
15
2 BIOGRAFIA
2.1 THE DOORS
Conhecida por uma sonoridade singular e performances inusitadas, a banda norteamericana The Doors surgiu na cidade de Los Angeles, Califórnia, em meio à explosão hippie
da década de sessenta. O vocalista Jim Morrison e o tecladista Ray Manzarek eram estudantes
do curso de cinema na Universidade da Califórnia, UCLA. Manzarek possuía formação de
piano clássico e Morrison, sem formação musical formal, era amante do blues, do jazz e da
literatura e colecionava melodias e poemas que criava e registrava em um caderno de
anotações. A banda surgiria de um encontro por acaso entre os dois em julho de 1965 em
Venice Beach quando, após declarar que estava trabalhando em algumas canções e cantar
uma delas (“Moonlight Drive”, que viria a fazer parte do segundo disco dos Doors, Strange
Days) a Manzarek, Jim Morrison impressionou o tecladista que, de imediato, sugeriu que eles
formassem uma banda de rock. De suas práticas de yôga, Manzarek trouxe dois conhecidos
para juntar-se à banda; primeiramente, o baterista John Densmore, amante do jazz, e algum
tempo depois, o guitarrista Robby Krieger, que possuía estudo de violão flamenco e pouca
experiência com guitarras. O nome do grupo foi inspirado por um poema de William Blake,
segundo relata Danny Sugerman:
A banda pegou o nome do poeta/visionário/artista William Blake. Blake havia escrito:
“When the doors of perception are cleansed, things will appear as they truly are,
infinite” (Quando as portas da pecepção forem limpas, as coisas vão aparecer como
elas realmente são, infinitas). O autor inglês Aldous Huxley inspirou-se
suficientemente pelo verso de Blake para entitular seu livro sobre suas experiências
com mescalina The Doors of Perception (As Portas da Percepção). Morrison foi
influenciado o bastante pelas duas fontes para sugerir o nome a seus companheiros de
banda. Todos concordaram que o nome, tanto quanto as fontes das quais se originou,
eram perfeitas para transmitir e representar quem eles eram e o que buscavam.19
Após vários ensaios e tentativas de estabelecer-se como contratada de casas noturnas e
selos de gravação (Morrison era muito tímido no início e tinha dificuldade para soltar a voz e
encarar a plateia), a banda foi aos poucos conquistando espaço e se afinando musicalmente. À
19
“The band took the name from the poet/visionary/artist William Blake. Blake had written, ‘When the doors
of perception are cleansed, things will appear as they truly are, infinite’. English author Aldous Huxley was
sufficiently inspired by Blake’s quote to title his book on his mescaline experiences The Doors of Perception.
Morrison was impressed enough with both sources to propose the monicker to his bandmates. Everyone
agreed that the name, as well as the sources from which it sprang, were perfect to convey and represent who
they were and what they stood for”. (SUGERMAN: 2006, p. 10)
16
medida em que o entrosamento crescia e as apresentações adquiriam regularidade, os Doors
passaram a chamar a atenção do público, crítica e empresários no cenário musical de Los
Angeles durante o ano de 1966. Na famosa biografia de Jim Morrison, No One Here Gets Out
Alive, Hopkins e Sugerman declaram que, nessa época,
o mais importante para o The Doors era seu crescente senso de “unidade”. Depois de
ensaiar diariamente, e agora tocando juntos em público, os três músicos e o vocalista
conheciam-se musicalmente com intimidade, e estavam realmente ficando muito bons
no que faziam.20
A essa altura, portanto, os Doors já estavam confiantes de sua capacidade e passaram
a lapidar seu estilo e ambicionar vôos maiores em termos artísticos e financeiros. Não
poderiam ainda prever que sua fama se estenderia por tantos países e por várias décadas, mas
acreditavam na combinação idiossincrática de seus talentos como meio de atingir o sucesso. A
fusão obtida pelo grupo resultava em uma sonoridade muito particular, que causava
estranheza e fascínio no público de então, conquistando-os pela originalidade e intensidade e
sendo possivelmente reconhecida ainda hoje pelos amantes do rock (mais de quarenta anos
depois) em meio a várias bandas da época com estilo parecido. O escritor e crítico Harvey
Perr nos fala sobre isso em um artigo publicado no jornal independente L.A. Free Press, em
1969, por ocasião do lançamento do quarto disco da banda, Soft Parade, em um período em
que os Doors estavam recebendo muitas críticas negativas por conta das polêmicas em que
haviam se envolvido e pela pressão do “próximo disco” exercida por fãs e críticos:
Ray Manzarek [assim como cada integrante da banda (grifo meu)] é unicamente ele
mesmo, parte de todo o carisma que o The Doors sempre teve. Gostando ou não, você
sabe que é o The Doors quando ouve, e que, além de pessoal, é artistico. Eu não tenho
certeza se minha admiração pelos Doors tem a ver com a música deles. Ao contrário,
eles me dão a impressão que é por causa de algo que eles estão tentando se envolver e
nos envolver também, um mundo que transcende os limites do que é o rock e se
estende para áreas como a do cinema, do teatro e da revolução.21
Em uma primeira análise, o amálgama das características musicais individuais de cada
membro do The Doors levaria a um resultado que, digamos, improvavelmente poderia dar
20
“Most important to the Doors was their growing sense of “oneness”. After rehearsing every day, and now
playing together publicly, the three musicians and singer knew one another’s music intimately and they were
getting very good.” (HOPKINS & SUGERMAN: 1997, p. 82).
21
“Ray Manzarek is uniquely his, it is part of whatever charisma the Doors have ever had, that whether you
think it’s bad or good, you always know it’s The Doors, and that is Personal and therefore Art. (…) I’m not
altogether sure that my own admiration of the Doors has anything to do with their music. Instead it’s the
impression I get from them because of the thing I feel they’re trying to get into and get us into, a world that
transcends the limited one of rock, and moves into areas of film and theater and revolution.” (PERR, in
SUGERMAN: 2006, p. 107).
17
certo como deu. John Densmore era um baterista com influências do jazz e pontuava suas
levadas com riffs extravagantes, prolixidade rítmica e improvisação, contrapondo-se ao rock
steady firme e constante que era característica de muitas bandas de rock da época. Ray
Manzarek era um tecladista com formação clássica que, além de preencher o som do grupo
com suas camas, grooves, riffs e sonoridades característicos e hipnóticos, era também
responsável pelos baixos da banda22, feitos em um Fender Rhodes bass keyboard (uma
variação do famoso piano Fender Rhodes, que reproduzia os sons mais graves do
contrabaixo), já que os Doors não possuíam um baixista, característica por si só reveladora da
singularidade sonora do quarteto. Robby Krieger tinha influências do flamenco e, além de
compositor, responsável por várias canções dos Doors (algumas se tornariam grandes hits da
banda, como “Light my Fire” e “Touch Me”) impulsionava o grupo com guitarras que
“costuravam” as canções com grooves e timbres psicodélicos e riffs simples e marcantes. Por
fim, acrescenta-se a essa junção a potente voz barítono de Jim Morrison, um amante de blues
e de literatura que amava utilizar seu vigor e extensão vocais para trafegar entre oitavas, capaz
de ir dos graves aos agudos, da voz suave e sussurrada à gritada e agressiva, do grave
impostado à explosão vocal nos tons mais altos. Finalmente, ressalta-se que o grupo possuía
uma capacidade muito particular de improvisação. Jim Morrison frequentemente desviava-se
das letras das canções para entoar trechos de seus poemas ou para incendiar a plateia com seu
comportamento xamânico. O entrosamento entre os membros do grupo chegava ao ponto de
os outros três integrantes serem capazes de prever essas “mudanças repentinas de script” e
adiantar-se ao vocalista, resultando em uma comunicação com uma química telepática nas
performances. Danny Sugerman resume a interação entre os integrantes da banda da seguinte
maneira:
O objetivo não declarado da banda era verdadeiramente “atingir uma alquimia
musical” – eles buscavam unir rock’n’roll e poesia e um misto de teatro e drama como
nunca visto antes. Eles queriam unir performance e público, conectando-se
diretamente a um tipo de “estado mental universal”. E não se contentariam com
menos. Para eles, isso significava nada de truques, nada “na manga”, nada de
produção de palco ou efeitos especiais – somente a realidade, nua e crua, “rasgando o
véu de Maya”23 com a a habilidade que a música tem para despertar os adormecidos
eternos poderes do ser humano.24
22
Ao vivo, o The Doors sempre se apresentava sem contrabaixo. Para as gravações, o grupo contratava baixistas.
Mesmo assim, é possível notar (através de audição das músicas com mais atenção) o estilo de composição de
Ray Manzarek em algumas linhas de baixo gravadas.
23
A intenção do autor aqui é dizer que os Doors queriam “retirar a ilusão”.
24
The band’s unexpressed goal was nothing short of musical alchemy – they intended to unite rock music unlike
any ever heard before with poetry and that hybrid with theater and drama. They aimed to unite performer and
audience by plugging directly into the Universal Mind. They would settle for nothing less. For them that meant
18
Se por um lado a união da banda, o respeito entre os integrantes e a consciência de que
cada um representava um papel de igual importância dentro do grupo eram fundamentais na
confecção da sonoridade obtida e reconhecida como “The Doors” (“houve inclusive uma
ocasião em que um mestre de cerimônias apresentou o grupo como ‘Jim Morrison and The
Doors’ e Morrison se recusou a tocar até que o apresentador os anunciasse novamente como
somente ‘The Doors’)25, por outro lado a personalidade instável e explosiva do vocalista viria
a ser causa de muitos problemas para a banda, incluindo o cancelamento de shows e processos
legais. Se no palco o carisma e o caráter impetuoso de Morrison associados ao efeito gerado
pelas drogas fazia das apresentações do Doors um evento sempre surpreendente e inesperado,
fora dele sua impulsividade e ausência de limites viriam somente a aumentar o desgaste entre
os integrantes e entre eles e o público e a crítica. A dificuldade que os outros membros da
banda tiveram ao lidar com a imprevisibilidade e impetuosidade do vocalista refletia-se em
altos e baixos durante as gravações dos álbuns e as turnês da banda.
1.2 JAMES DOUGLAS MORRISON
Jim Morrison, um artista controverso e visionário, nasceu em 8 de dezembro de 1943
no Estados Unidos, na cidade de Melbourne, na Florida. Registrado como James Douglas
Morrison, era filho do almirante americano George Stephen Morrison e da dona de casa Clara
Clark Morrison. Provavavelmente como reflexo da educação conservadora que recebeu e da
ausência paterna por exigência de frequentes viagens profissionais, teve sua vida pautada pela
rebeldia e pela necessidade de extrapolar limites. Contrariando as expectativas do pai, que
provavelmente via no filho um reflexo de sua carreira, Jim Morrison buscou nas artes e nas
drogas respostas para todas as suas inquietações, levando ao extremo o exercício de sua
expressão artística por vezes pontuada por excessos com álcool e alucinógenos.
Após o sucesso do The Doors, o vocalista passou a declarar publicamente e
formalmente que seus pais estavam mortos. Talvez tenha sido essa a estranha forma que
Morrison encontrou de lidar com a ausência, com a falta de identificação e afinidade que tinha
no gimmicks, nothing up their sleeves, no elaborate staging or special effects – only naked, dangerous reality,
piercing the veil of Maya with the music’s ability to awaken man’s own dormant eternal powers (SUGERMAN:
2006, p. 4).
25
“There was also a the time when the promoter introduced the band as ‘Jim Morrison an The Doors’ and Jim
refused to perform until the promoter re-introduced them as ‘The Doors’” ” (HOPKINS, Jerry, in MORRISON:
2011, p. 13].
19
com os laços paternos e a maneira como havia sido educado. Ele havia dito também que pais
bem intencionados podem inconscientemente nos forçar a destruir a pessoa que nós realmente
somos26. No final de The End, canção que fecha o disco de estreia dos Doors, um Morrison
raivoso entoa o complexo de Édipo de Sófocles: “Father? / Yes, son? / I want to kill you /
Mother, I want to...”27. Segundo Paul Rothchild, produtor dos cinco primeiros álbuns da
banda, “matar o pai significa matar todas aquelas coisas dentro de você que estão incutidas
mas não o representam”.28
Jim Morrison era um apaixonado pela vida, e foi isso que ironicamente o matou.
Como todo outsider que se preze, era possuído pela insaciável vontade de transgredir, de ver e
de sentir na pele todos os tipos de experiência que o pudessem levar a diferentes e mais
profundos estados de consciência. Tal sugestão vai ao encontro do célebre verso do poeta
francês Rimbaud, que diz que o poeta faz de si mesmo um visionário através de “un long
dérèglement de tous le sens” (FOWLIE, 1994, p. 4). Citando Rimbaud, Morrison declarara:
“Eu acredito em um longo, prolongado ‘desregramento’ de todos os sentidos para obter o
desconhecido”.29 Sugerman comenta o assunto:
Eu não acredito que o objetivo de Jim Morrison, sua ambição, seu destino final fosse
esse lugar negro. Eu acho que ele queria iluminação. Mas Morrison sabia que a
estrada do excesso como meio para se chegar à sabedoria é carregada de desespero e
desastre na mesma medida que êxtase e felicidade. E o desespero não deve ser
suprimido, mas experimentado, para somente então poder ser descartado.30
No palco, Jim Morrison possuía um caráter carismático e paradoxalmente agressivo. A
linguagem utilizada pelo artista para dirigir-se ao público era por vezes provocativa, agressiva
e obscena, de forma a desafiar ou chocar a audiência. Além de ser a voz do The Doors e
responsável pela maioria das letras do banda, era também conhecido por seu comportamento
xamânico, tendo liderado o grupo em apresentações dramáticas e inusitadas, consideradas até
hoje como exemplos de pioneirismo no setor. Segundo Fowlie, cantar era para Morrison a
26
“The most loving parents and relatives commit murder with smiles on their faces. They force us to destroy the
person we really are: a subtle kind of murder” (“Os pais e parentes mais afetuosos cometem assassinato com
sorrisos em seus rostos. Eles nos forçam a destruir a pessoa que nós realmente somos: um tipo sutil de
assassinato”) [Cf. <http://www.goodreads.com/author/quotes/7855.Jim_Morrison>. Acesso em 31 de agosto de
2015].
27
“Pai? / Sim, filho? / Eu quero matar você / Mãe, eu quero...”
28
“Kill the father means kill all of those things within yourself that are instilled in you and are not of yourself”.
(ROTHCHILD, in SUGERMAN: 2006, p. 44)
29
“I believe in a long, prolonged, derangement of the senses in order to obtain the unknown”.
30
“I don’t believe Jim’s goal, his ambition, his ultimate destination was this dark place. I think Jim wanted
enlightenment. But Jim knew that the road of excess leading to the place of wisdom is fraught with despair and
disaster as much as with ecstasy and great joy. And that despair must not be suppressed but experienced, and
only then may it be discarded” (SUGERMAN: 2006, p. 14).
20
criação de poesia, música e personagens no palco.31 O músico declarara:
Quando comecei, eu era menos teatral, menos artificial. Mas agora tocamos para
públicos muito maiores. É necessário projetar mais, exagerar – quase ao ponto do
grotesco. (...) Eu gosto de ideias sobre livrar-se da ordem estabelecida ou destitui-la.
Estou interessado em qualquer coisa relacionada a revolta, desordem, caos,
especialmente as atividades que parecem não ter significado algum. Parece ser a
estrada da liberdade para mim.32
Muito da conduta do vocalista corroborava, de certa forma, a ideologia da
contracultura em sua maneira de rejeitar os ideais de vida da classe média americana,
saudando o hedonismo que era associado com a cultura do sexo, drogas e rock’n’roll e indo
além em um comportamento público que remetia a celebrações dionisíacas. Nas palavras de
Manuel da Costa Pinto, em seu artigo O Apocalipse Segundo Jim Morrison, o músico
foi a personagem arquetípica de uma geração que reagiu violentamente ao clima
asfixiante da sociedade norte-americana do auge da Guerra fria e que buscou na
literatura, no cinema, na música e nas drogas uma experiência de ultrapassamento, de
rejeição do senso comum da classe media. (2001, p. 16)
Parte expressiva da atuação de Morrison em público era também baseada no conceito
artaudiano33 da performance como evento intrinsicamente purificador, carregado de
interatividade e livre de limites. De acordo com Danny Sugerman,
As teorias do artista surrealista francês Antonin Artaud sobre confrontamento,
expostas na sua tese O Teatro e Seu Duplo, tiveram uma influência significativa no
grupo. Em um dos mais incríveis ensaios do livro, Artaud traça um paralelo entre a
peste e a ação teatral, sustentando que a atividade dramática deve ser capaz de
produzir um efeito de catarse no espectador da mesma maneira que a peste purificou
a humanidade. O objetivo? “Que eles estejam aterrorizados e despertos. Eu quero
despertá-los. Eles não se dão conta de que já estão mortos.”34
31
“Singing for Jim was the creation of poetry and music and the creation of characters in the stage.” (FOWLIE:
1995, p. 97)
32
Cf. 1) FONG-TORRES, Ben. O Adeus de Jim Morrison. In Revist Rolling Stone, Edição 58, Jul/2011.
Disponível em < http://rollingstone.uol.com.br/edicao/58/o-adeus-de-jim-morrison#imagem0>. Acesso em 31 de
agosto de 2015; 2) HOPKINS & SUGERMAN: 1997, p. 107).
33
Do artista surrealista francês Antonin Artaud.
34
“The French Surrealist Antonin Artaud’s theories regarding confrontation, as expounded in his thesis The
Theatre and Its Double, were a significant influence on the group. In one of the book’s most powerful essays,
Artaud draws a parallel between the plague and theatrical action, maintaining that dramatic activity must be able
to effect a catharsis in the spectator in the same way that the plague purified mankind. The goal? “So they will be
terrified and awaken. I want to awaken them. They do not realize they are already dead.” (SUGERMAN: 2006,
p. 6)
21
Ou de acordo com David Fowlie,
Nos melhores momentos de suas performances, Jim Morrison não era meramente
um símbolo de sexo, drogas e excentricidade. Ele estava tentando combater a
complascência do público, apontar os perigos dela através de seu canto e suas letras.
Algumas dessas letras são ainda hoje misteriosas e perturbadoras. No livro O Teatro
e Seu Duplo, de Antonin Artaud, Morrison havia lido que cada performance deveria
ser um risco. O público deveria ser sacudido, retirado de sua complascência,
removido de seu estado usual de semi-letargia. Graças ao Living Theater e seu
estudo por Antonin Artaud, as performances de Jim Morrison tornaram-se um rito
dionisíaco moderno.35
Jim Morrison levava suas experimentações ao extremo e quando estava em cena com
o The Doors sua devoção era total. O maior vício de Morrison, mais do que qualquer droga,
era ir ao limite das coisas, principalmente nos shows do Doors, quando a banda chegava ao
auge de sua força criativa; momentos em que musa, músico e público se tornam um só. (Cf.
SUGERMAN, 2006)36 Porém, tendo diversas vezes extrapolado os limites de sua “entrega”
enquanto band leader e performer, quase sempre regada a álcool e alucinógenos, o músico foi
protagonista de diversas e tumultuadas experiências pessoais e profissionais com a banda de
Los Angeles. Seus problemas com alcoolismo renderam muitos incômodos ao grupo, como
no caso ocorrido em 1967 em um show na Universidade de Michigan e relatado por David
Fowlie (1995):
Lá, Morrison havia bebido. Na noite da apresentação ele esqueceu trechos das
músicas e praguejou contra os estudantes. O baterista John Densmore ficou tão
indignado que abandonou o palco no meio de uma música e foi seguido pelo
guitarrista Robby Krieger. Morrison então começou a cantar uma de suas letras,
‘Maggie M’Gill, she lived on a hill’, um blues, e o tecladista Ray Manzarek o
acompanhou com a guitarra de Krieger. As vaias do público foram tão grandes que
Manzarek e Morrison tiveram que abandonar o palco também.37
Morrison foi também alvo de processos legais por desrespeito às leis norteamericanas, como no famoso show em Miami, em março de 1969, quando foi preso em meio
35
“At the best moments in his performances, Jim was not merely the symbol of sex, drugs, and eccentricity. He
was trying to combat complacency in his audience, to point out its dangers by his singing and his lyrics. Some of
those lyrics are still today mysterious and disturbing. (…) In Antonin Artaud’s book The Theather and its
Double, Jim had read that each performance should be a risk. The audience should be shaken out of its
complacency, (…) moved out of their usual half-lethargic state. (…) Thanks to The Living Theater and his study
of Antonin Artaud, Jim’s concerts became a modern Dionysian rite.” (Cf. FOWLIE: 1995, p. 86, 87 e 124)
36
“Jim Morrison was not hooked on any drug so much as he was addicted to peak experiences, specifically the
high of the Doors’ functioning at the pinnacle of their collective strengths, those times when muse and musician
become one and the audience virtually became a part of the band.” (SUGERMAN: 2006, p. 6)
37
“There, Jim had been drunk. The night of the performance he missed cues and cursed out the students. John
was so incensed that he left in the middle of a song. He was followed by Robby. Jim then began to sing one of
his lyrics, ‘Maggie M’Gill, She Lived on a Hill’, a blues song. Ray accompanied him on Robby’s guitar. The
boos from the audience became so strong that Ray and Jim too left”. (FOWLIEL 1995, p. 85)
22
a uma arena de shows completamente lotada após, embriagado, provocar e insultar a plateia e
os policiais presentes com palavras ofensivas e de baixo calão, bem como supostamente ter
exposto o seu órgão sexual em atitudes que simulavam sexo. Fowlie mais uma vez descreve o
ocorrido:
Há vários relatos do ocorrido e concorda-se que o que aconteceu naquela noite em
Miami interrompeu seriamente a carreira do grupo. Morrison incitou os fãs a subir no
palco. Um policial e o músico trocaram seus chapéus. Morrison foi jogado na plateia,
onde ele “dançou imitando uma cobra”. Uma boa parte do público o seguiu. De volta
ao palco, Jim Morrison tirou a camisa e jogou para a plateia. Ele começou a abrir a
calça, e posteriormente declarou que achava que tinha se exposto.38
Um fora-da-lei na vida e na arte, Jim Morrison não poupou esforços em “sacudir”
estruturas sociais e artísticas através de sua vocação contestadora e transgressora. “Como é ser
o Jesse James39 do rock?”, Richard Goldstein perguntou a Morrison na entrevista ao programa
Critique40. “William Bonney41 seria mais apropriado”, ele repondeu tranquilamente. “Jesse
James era motivado por cobiça, enquanto Billy the Kid só queria se divertir”42. Morrison
havia declarado no início da carreira: “O show do The Doors é uma reunião pública que nós
organizamos para uma discussão dramática especial. Quando nós nos apresentamos, nós
estamos participando na criação de um mundo e celebrando isso com a multidão”.43 Durante o
julgamento do caso de Miami, ele novamente afirmou que estava simplesmente no “exercício
de sua liberdade de expressão artística”.
Mas o resultado do ocorrido em Miami terminaria por cobrar um alto preço. Todos os
shows agendados para o restante da turnê daquele ano foram cancelados pelos contratantes e,
após aproximadamente um ano e meio, em Setembro de 1970, Jim Morrison foi condenado
pela justiça a quatro meses de trabalhos forçados por “uso de linguagem obscena” e “ato
38
There are several accounts of the event, and they agree that what transpired that evening in Miami seriously
interrupted the career of the group. Jim urged the fans to come onto the stage. A policeman and Jim exchanged
hats. Jim was thrown into the audience, where he formed a snake dance. A large crowd followed him. Back on
the stage, Jim pulled his shirt off and threw it to the audience. He began to open his pants, and later said he
thought he had exposed himself. (FOWLIE, 1994, p. 87)
39
Jesse Woodson James, fora-da-lei do velho oeste americano, famoso por seus roubos a trens e bancos e por
seus assassinatos.
40
Critique Televion Series, PBS Studios, WNDT- Channel 13, NY, June 25, 1969. (Cf.
www.youtube.com/watch?v=Gtz795e3_Uw)
41
William “Billy The Kid” Henry Bonney, pistoleiro fora-da-lei do velho oeste americano, ladrão de gado e
cavalos.
42
“How does it feel to be the Jesse James of rock?”, Morison was asked (by Richard Goldstein) in the Critique
interview. “William Bonney would be more accurate”, he replied cooly. “Jesse James was motivated by greed,
while Billy The Kid did it for the fun of it.” (FRICKLE, David: encarte de The Soft Parade, in Perception, 2006)
43
“A Doors concert is a public meeting called by us for a special dramatic discussion. When we perform, we’re
participating in the creation of a world and we celebrate that with the crowd.” (SUGERMAN: 2006, p. 7)
23
obsceno ou libidinoso”. O músico, que recorreu da sentença, aguardava o resultado da
apelação quando, no final daquele ano, entrou em estúdio para começar a gravar o último
disco da banda e subiu no palco com os Doors pela última vez. O último show do grupo, em
12 de dezembro de 1970, em New Orleans, revelou um Jim Morrison com sérios problemas
de alcoolismo, alterado fisicamente pela excesso de bebida, cambaleante no palco,
esquecendo letras e abandonando o show antes do programado. Depois de mais esse
incidente, o The Doors decidiu retirar-se temporiamente dos palcos e parar com a banda por
um tempo, enquanto o disco L.A. Woman era finalizado e Morrison continuava a esperar o
desfecho de seu julgamento.
Foi durante esse hiato da banda que, em 03 de julho de 1971, Jim Morrison foi
encontrado morto em Paris. Antes de viajar para a capital francesa ele deu sua última
entrevista, onde declarava: “Para mim, não era nunca um número realmente, aquilo que
chamavam de performances. Era uma questão de vida ou morte; uma tentativa de comunicar,
de envolver muitas pessoas em um mundo privado de pensamento”.44 Morrison havia se
mudado para a França com sua namorada Pamela Courson, em março de 1971, com o intuito
de afastar-se dos fãs e da fama e buscar um lugar onde pudesse encontrar paz e inspiração
para dar seguimento a sua carreira de poeta, que ele mesmo afirmava ser seu objetivo
principal. De acordo com Fowlie, “Várias vezes durante os seus dois últimos anos de vida,
Jim Morrison disse para amigos próximos que ele esperava ser lembrado mais como poeta do
que como cantor de rock”.45
Naquele terceiro dia do mês de julho de 71, após supostamente ter voltado tarde da
noite de uma boate com a namorada, o vocalista teria dito que iria tomar um banho enquanto
ela teria ido para a cama. De manhã, ao acordar, Pamela encontraria o namorado desacordado
na banheira. O serviço de socorro foi chamado, mas já era tarde demais: a causa da morte
declarada pelo médico legista foi parada cardíaca. Há uma enorme controvérsia sobre o que
realmente teria acontecido naquela noite. Conhecidos de Morrison em Paris afirmam que,
além de o músico ter bebido o dia todo, ele e Pamela haviam ingerido heroína na boate, o que
poderia ter se estendido para o apartamento, tendo sido overdose de heroína a causa da morte
do cantor.46 A verdadeira causa do óbito e o que aconteceu naquela noite no apartamento do
44
“For me, it was never really an act, those so-called performances. It was a life-and-death thing; an attempt to
communicate, to envolve many people in a private world of thought.” (SUGERMAN: 2006, p. 7)
45
“Several times during the last two years of his life, Jim Morrison said to close friends he hoped to be
remembered as a poet rather than as a rock singer”. (FOWLIE: 1995, p. 20)
46
A morte de Jim Morrison é polêmica (a exemplo de sua vida) e existe mais de uma versão sobre o que haveria
acontecido naquele fatídico 03 de julho de 1971. Um de seus biógrafos, Jerry Hopkins, escreveu: “Pamela disse
24
casal permanecem um mistério, já que não foi feita autópsia no corpo e a única versão que se
tem é a de Pamela Courson que, também tragicamente, viria a falecer por overdose de heroína
três anos depois, em 25 de abril de 1974, em Los Angeles. Levando em consideração a morte
prematura e em circunstâncias trágicas, é interessante citar aqui que, segundo Ben FongTorres (2011),
Apesar de todo o fatalismo contido em sua obra, Morrison dizia aos amigos que
esperava viver até os 120 anos, para morrer, se possível, em paz, na cama ou, o
melhor de tudo, nunca morrer. Queria esperar até que a ciência e a medicina modernas
conseguissem fazer com que morrer fosse desnecessário.
Morrison foi enterrado no cemitério Père Lachaise (onde estão artistas célebres como
Honoré de Balzac, Oscar Wilde, Chopin e Edith Piaf), em Paris, na presença de apenas cinco
pessoas próximas: Pamela, o empresário dos Doors, Bill Siddons, e três amigos. Após a morte
de Morrison, Pamela herdou toda a sua fortuna, seus escritos não publicados e os direitos
sobre sua obra. Por meio de um testamento feito em 1969, o cantor transferia todos os seus
bens à namorada. Ela teve que esperar dois anos para que a justiça liberasse a herança. Danny
Sugerman, que trabalhara com o Doors e diz ter mantido contato com Pamela após a morte de
Jim Morisson, comenta em sua biografia que, durante esse período, ela teria se prostituído
para manter o alto padrão de vida que tinha ao lado do namorado e manter seu vício em
heroína. Após sua morte, os pais de Pamela, Columbus e Pearl Marie Courson, viriam a
herdar toda a fortuna e escritos do cantor, bem como os direitos sobre sua obra que, depois de
um longo processo judicial, seriam divididos com os pais de Morrison. Columbus e Pearl
Marie Courson foram os responsáveis por organizar, juntamente com um casal de amigos do
artista, Frank47 e Katherine Lisciandro, uma compilação em dois volumes dos escritos
deixados pelo vocalista. Nos dois livros póstumos estão os trabalhos feitos durante o “exílio”
em Paris. Alguns dos poemas de Jim Morrison foram também declamados por ele e gravados
em áudio, dando origem posteriormente a The American Prayer, disco lançado postumamente
que Morrison tinha dado a volta por cima nos últimos meses: estava sóbrio, mais magro e havia aumentado seu
poder criativo. Ela também disse tê-lo encontrado morto na banheira do apartamento e não corrigiu as
autoridades quando eles disseram que a causa da morte foi um ataque cardíaco. Na verdade, Morrison teve uma
overdose de heroína e álcool no banheiro de uma casa noturna chamada Rock n Roll Circus e foi carregado de
volta ao apartamento por amigos.” (“Pamela said Jim had turned himselp around in the final months, sobering up
and losing weight, while increasing his creative output. She also said she found himself dead in their apartment
bathtub and did not correct authorities when they said a heart attack caused his death on July 3, 1971. In fact, Jim
overdosed on heroin and alcohol in the toilet of a nightclub called the Rock n Roll Circus and was carried back
to the flat by friends.”) [HOPKINS, Jerry, in MORRISON: 2011, p. 16]
47
Frank Lisciandro é um fotógrafo, cineasta e escritor estadunidense, amigo de Jim Morrison e Ray Manzarek
dos tempos do curso de cinema na Universidade da California em Los Angeles (UCLA).
25
em 1978 pelos integrantes remanescentes do Doors, que musicaram a voz do cantor.
Mais de quarenta anos após a morte de Jim Morrison, a música do The Doors e a lenda
ao redor do vocalista e poeta permanecem vivas e com fôlego, realimentando-se através dos
anos. Contribuíram significativamente para a manutenção desse interesse vários filmes,
documentários, biografias e livros de crítica sobre o assunto lançados nas últimas quatro
décadas. Entre os filmes e documentários podemos citar: o clássico Apocalipse Now, de
Francis Ford Copolla, lançado em 1979, uma perturbadora visão sobre a Guerra do Vietnã que
utiliza a canção “The End” na cena de abertura e na sequência do assassinato do Coronel
Kurtz; o filme The Doors, de Oliver Stone, lançado em 1991; o documentário When You’re
Strange, de 2009, sobre a carreira da banda, narrado por Johnny Depp e dirigido por Tom
DiCillo; Feast of Friends, documentário sobre a banda produzido pelos próprios integrantes e
filmado por Paul Ferrara, lançado oficialmente para o público em versão remasterizada em
201448. Entre as biografias e livros de crítica temos os já citados No One Here Gets Out Alive,
de Jerry Hopkins e Danny Sugerman, biografia best seller lançada em 1980, e Rimbaud and
Jim Morrison: The Rebel as Poet, de Wallace Fowlie, livro lançado em 1994, que traça um
paralelo entre a vida e obra de Jim Morrison e do poeta francês Arthur Rimbaud.
No Brasil, destacamos: os livros de crítica 1) O Navio de Cristal: Interpretação da
Vida e das Obras Musical e Literária de Jim Morrison, do professor de filosofia Helder
Modesto, lançado em 2009, que aborda vida e obra do vocalista sob um ponto de vista
existencialista e analisa algumas de suas letras e poemas; e 2) Jim Morrison: o Poeta-Xamã,
do professor de literatura na UFMG Marcel de Lima Santos, lançado em 2013, que estabelece
uma relação entre poesia de Morrison e a figura do xamã das práticas de cura místicoreligiosas ancestrais, articulando-a à tradição poética dos bardos possuídos por uma
“divindade poética”, a que Platão denominava “furor poeticus”; bem como o artigo 3) Análise
de Transitividade em “America As Bullring Arena”, de Jim Morrison, por Juliana Steil e
Maria Elizabeth da Costa Gama, da Universidade Federal de Santa Catarina e da
Universidade do Vale do Itajaí, respectivamente, publicado na Revista Letras da Universidade
Federal do Paraná em 2006 e que analisa a dicção poética (seleção vocabular, disposição e
relação das palavras nos períodos, bem como a construção de significados sociais e
ideológicos apreendida a partir do processo) do autor no referido poema sob um viés de
48
Destacamos ainda os documentários: No One Here Gets Out Alive: A Tribute to Jim Morrison, de 1981 com
direção de Gordon Forbes, e The Doors, Mr. Mojo Risin’: The Story of L.A. Woman, com direção de Martin R.
Smith, lançado em 2011, 40 anos após o lançamento do último álbum do grupo e contendo a história de sua
gravação através de entrevistas com os três integrantes sobreviventes dos Doors, o engenheiro de som da banda,
Bruce Botnick, o fundador da gravadora Elektra Records Jac Holzman e o empresário da banda Bill Siddons.
26
estudos na área da linguística aplicada, mais precisamente da Análise Crítica do Discurso.49
A presente pesquisa tem o objetivo de construir (mesmo que a título de introdução,
dada a grande abrangência do tema) mais um estudo a respeito do assunto, com a continuação
ou abertura de (novas) discussões, buscando analisar em linhas gerais as diferenças e
semelhanças léxico-gramaticais e temáticas entre as letras das músicas e os poemas não
musicados de Jim Morrison e discutindo adicionalmente e brevemente a relação entre música
e literatura nesse contexto específico.
49
Para mais títulos, ver “REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES”
27
3 POESIA E MÚSICA
3.1 A POESIA DE MORRISON
Além de cantor e letrista, Jim Morrison foi também poeta, tendo lançado em vida três
livros de poesia: The Lords: Notes on Vision, em 09 de abril 1969, The New Creatures, na
mesma data, e An American Prayer, em 04 de maio de 1970. Os três foram produzidos em
edições do autor. Os dois primeiros, com cem cópias cada um, impressas pela Western
Litography Company, de Los Angeles, foram lançados sob o nome de James Douglas
Morrison e distribuídos a amigos e conhecidos. O terceiro aparece, da mesma forma, em
edição do autor impressa novamente pela Western Litography Company em maio de 1970, já
sob a alcunha de Jim Morrison e em quinhentos exemplares que eram também destinados a
fãs e jornalistas. No mesmo mês de maio de 1970, os dois livros de 1969 foram relançados
juntos em uma única edição, The Lords and The New Creatures, pela editora Simon &
Schuster, dando lugar, mais uma vez, ao seu nome artístico em lugar do nome de batismo.50
Foram também lançados dois livros póstumos que consistem em uma reunião dos
escritos deixados por Jim Morrison. São eles:
Wilderness: The Lost Writings of Jim
Morrison, Volume 1, de 1988, e The American Night: The Writings of Jim Morrison, Volume
2, de 1990. Por se tratarem de compilações das anotações que faziam parte dos cadernos de
Morrison e que não continham nenhuma indicação quanto à intenção de serem publicados ou
tornar-se letra de canções, ou de como seriam organizados ou divididos (além de, em sua
maioria não possuírem título ou data), serão consideradas para este estudo apenas as
transcrições de duas sessões de poesia contidas nos dois volumes, conhecidas como: Elektra
Session51, de 1969, e Birthday Poetry Session52, de 1970. Ambas eram destinadas a ser
transformadas em um álbum de poesia, possuindo, portanto, a intenção do artista de serem
levadas a público. Nas sessões de poesia estão presentes temas recorrentes da obra de
Morrison, tanto nos poemas como nas canções, como morte, solidão ou devoção à experiência
50
Cf. <http://www.thedoorsguide.com/history/poetrybooks.html>. Acesso em 07 de agosto de 2015.
Sessão de poesia declamada gravada no estúdio Elektra Sound Recorders, em West Hollywood, Califórnia, em
09 de fevereiro de 1969. Cf. <http://www.thedoorsguide.com/history/poetrysessions.html#elektra>. Acesso em
07 de agosto de 2015.
52
Sessão de poesia declamada gravada no estúdio Village Recorders, em Los Angeles, Califórnia, em 08 de
dezembro de 1970, por ocasião do último aniversário do cantor, conhecida também como “Birthday Session”,
“Village Tapes”, “Village Reading”, ou “Village Recordings”. Segundo os organizadores de Wilderness e The
American Night, a maioria dos poemas dessa gravação fazia parte de um dos cadernos de Morrison que datava
de 1964. Cf. http://www.thedoorsguide.com/history/poetrysessions.html#birthday. Acesso em 07 de agosto de
2015.
51
28
terrena. Já a dicção poética possui, em geral, seleção lexical, construções sintáticas e
metáforas mais obscuras (herméticas) se comparada ao estilo de construção dos textos que se
tornaram letras de canções. Mesmo assim, é possível verificar proximidades estruturais (como
repetições de orações) e temáticas entre versos de ambos os textos, o que indica que algumas
das letras podem ter evoluído de ou sido inspiradas em poemas, ou vice-versa, como é o caso
do verso “This is the end of us, fella”53, que encontra paralelo no trecho “This is the end, my
only friend” que faz parte da canção “The End”, do álbum de estreia da banda.
The Lords: Notes on Vision é uma coleção de oitenta e dois poemas em prosa ou verso
livre, aos moldes da prosa poética de Les Illuminations, de Arthur Rimbaud, sem título e
escritos por Morrison entre 1964 e 1965 quando era ainda estudante de cinema na
Universidade da Califórnia em Los Angeles (UCLA). O próprio Morrison definira o trabalho
como uma “coleção de aforismos e notas”, como sugere o subtítulo. Os textos contidos no
livro concentram parte de sua temática em cinema, teatro, fotografia e voyeurismo.54 As
imagens criadas, frequentemente lascivas, obscuras ou oníricas (em alguns casos também
preenchidas por referências históricas), são formadas por metáforas incomuns e instigantes.
Vejamos este exemplo (grifos meus):
Cinema is most totalitarian of the arts. All
energy and sensation is sucked up into the skull,
a cerebral erection, skull bloated with blood.
Caligula wished a single neck for all his subjects
that he could behead a kingdom with one blow.
Cinema is this transfoming agent. The body
exists for the sake of the eyes; it becomes a
dry stalk to support these two soft insatiable
jewels. (MORRISON: 1987, p. 52)
E mais estes dois exemplos onde os poemas são formados por um único período:
Films are collections of dead pictures which are
given artificial insemination (Idem, p. 50)
The spectator is a dying animal (Idem, p. 68)
As imagens criadas podem, além disso, ter intenção dirigida à edificação do profano
como força poética, onde o ultraje, o insulto, a afronta podem receber nova significância em
contraste com o lirismo convencional, como no poema a seguir:
53
54
Do poema “Cassandra at The Well”, in Wilderness, p. 177
Cf. <http://www.thedoorsguide.com/history/poetrybooks.html#lords>. Acesso em 07 de agosto de 2015.
29
Male genitals are small faces
forming trinities of thieves
and Christs
Fathers, sons, and ghosts (Idem, p. 59).
Outros temas recorrentes em The Lords são: (1) vida urbana e boemia; (2) alquimia; e
(3) xamanismo. Vejamos também alguns exemplos:
(1)
We all live in the city.
The city forms – often physically, but inevitably
Psychically – a circle. A Game. A ring of death
with sex at its center. Drive toward outskirts
of city suburbs. At the edge discover zones of
sophisticated vice and boredom, child prostitution. But in the grimy ring immediately surrounding the daylight business district exists the only
real crowd life of our mound, the only street
life, night life. Diseased specimens in dollar
hotels, low boarding houses, bars, pawn shops,
burlesques and brothels, in dying arcades which
never die, in streets and streets of all-night
cinemas. (Idem, p. 12)
(2)
In his retort the alchemist repeats the work of Nature (Idem, p. 83)
(3)
Through ventriloquism, gestures, play with objects,
And all rare variations of the body in space,
The shaman signaled his “trip” to an audience
Which shared the journey (Idem, p. 70)
O título, The Lords, pode ser interpretado como uma referência aos “mestres” das
artes, segundo podemos verificar no trecho que se segue:
The Lords appease us with images. They give us
books, concerts, galleries, shows, cinemas. Especially the cinemas. Through art they confuse
us and blind us to our enslavement. Art adorns
our prison walls, keeps us silent and diverted
and indifferent (Idem, p. 89)
The New Creatures contém quarenta poemas escritos basicamente em verso livre, com
poucas rimas e sem título. A julgar-se pela data e locais descritos ao final do último poema do
livro, “24 de julho de 1968, Los Angeles, The United States, Hawaii”, supõe-se que tenha
sido escrito durante a turnê que o Doors fez pelos Estados Unidos em 1968 e terminado
justamente dias após um dos shows da turnê, no Hawaii, em Honolulu, em 20 de julho
30
daquele ano.55 A dicção poética do artista é pautada por uma seleção vocabular excêntrica e
metáforas extravagantes e enigmáticas. As palavras possuem um apelo instigador e agressivo
(causando por vezes estranhamento ou mesmo repulsa) e uma colocação que visa a deslocar
sua semântica em diferentes contextos. As imagens criadas são frequentemente agressivas,
disformes, oníricas, obscuras, melancólicas e/ou fantasmagóricas e abrangem um universo de
violência, perversão, caos, destruição, decadência e/ou morte. Vejamos alguns exemplos:
I don't dig what they did
to that girl
Mercy pack
Wild song they sing
As they chop her hands
Nailed to a ghost
Tree
I saw a lynching
Met the strange men
of the southern swamp
Cypress was their talk
Fish-call & bird-song
Roots & signs
out of all knowing
They chanced to be there
Guides, to the white
gods. (MORRISON: 1987, p.117)
------------------------------------The assassin's bullet
Marries the King
Dissembling miles of air
To kiss the crown.
The Prince rambles in blood.
Ode to the neck
That was groomed
For rape's gown. (Idem, p. 123)
------------------------------------Ensenada
the dead seal
the dog crucifix
ghosts of the dead car sun.
Stop the car.
Rain. Night.
Feel. (Idem, p. 125)
------------------------------------Dance naked on broken
bones feet bleed & stain
glass cuts cover your mind
& the dry end of vacuum
boat while the people
55
Cf. <http://www.thedoorsguide.com/history/poetrybooks.html #creatures>. Acesso em 07 de agosto de 2015.
31
drop lines in still pools
& pull ancient trout
from the deep home.
(…) [Idem, p. 135]
Outro aspecto importante que se pode reconhecer no livro é a crítica à guerra
perpetrada em prol do poder, característica recorrente na obra de Morrison, como se observa
nos poemas que se seguem:
Jackal, we sniff after the survivors of caravans.
We reap bloody crops on war fields.
No meat of any corpse deprives our lean bellies.
Hunger drives us on scented winds.
Stranger, traveler,
peer into our eyes & translate
the horrible barking of ancient dogs. (Idem, p. 119)
------------------------------------------------------------Camel caravans bear
witness guns to Caesar.
Hordes crawl & seep inside
the walls. The streets
flow stone. Life goes
on absorbing war. Violence
kills the temple of no sex. (Idem, p. 120)
O eu-lírico em The New Creatures parece estar em uma busca constante por
transgressão, contemplando o universo do submundo e sentindo-se à vontade com o grotesco.
Nota-se em algumas passagens a predileção do eu-lírico por animais incomuns, sujos ou
peçonhentos, como enguias, ratos, cobras ou lagartos, bem como por seres mitológicos, como
unicórnios e sereias, que podem ser relacionados ao título do livro, The New Creatures. Os
animais e seres mitológicos seriam a representação das “novas criaturas” a serem
“celebradas” pelos poemas. Vejamos alguns exemplos nas seguintes passagens:
(…)
Cave fish, eels, & gray salamanders
Turn in their night career of sleep
The idea of vision escapes
The animal worm whose earth
Is an ocean, whose eye is its body. (Idem, p. 105)
----------------------------------------------------------A pair of wings
Crash
High winds of Karma
Sirens
Laughter & young voices
In the mts. (Idem, p. 103)
32
----------------------------------------------------------Sisters of the unicorn, dance
Sisters & brothers of Pyramid
Dance
Mangled hands
Tales of the Old Days
Discovery of the Sacred Pool
Changes
Mute-handed stillness baby cry
The wild dog
The sacred beast
Find her! (Idem, p. 109)
----------------------------------------------The snake, the lizard, the insect eye
The huntsman’s green obedience.
Quick, in raw time, serving
Stealth & slumber,
Grinding warm forests into restless lumber.
(…) [Idem, p. 102]
Em outro escrito famoso, o enigmático Celebration of the Lizard56, o eu-lírico declara:
“I am the Lizard King, I can do anything”, o que viria a dar a Jim Morrison o famoso apelido
de “Lizard King”.57
The Lords: Notes on Vision e The New Creatures estão disponíveis em português em
uma coleção chamada “O Rei Lagarto”, da editora Assírio & Alvim, de Portugal, em uma
edição bilíngue intitulada Os Mestres e as Criaturas Novas. Além desse livro, são também
parte da coleção: Uma Oração Americana e Outros Escritos (An American Prayer), Abismos:
Escritos Inéditos (Wilderness: The Lost Writings of Jim Morrison, Volume 1) e Últimos
56
Conjunto de poemas que fazem parte de uma performance musical e poética, fomada por música, declamação
e passagens narrativas. A performance foi registrada em estúdio em 1968, durante as gravações de Waiting For
The Sun, e ao vivo em 1969, sendo lançada no álbum Absolutely Live, de 1970. A versão de estúdio viria a ser
lançada somente em 2003 na compilação Legacy: The Absolute Best. Segundo o produtor Paul Rothchild,
Morrison tinha a intenção de lançar a peça completa como parte de um dos álbuns de estúdio do Doors, mas,
devido a sua longa duração geral, extensas sessões de declamação poética e baixo potencial comercial, o
produtor e os demais integrantes do grupo desistiram da ideia. De qualquer forma, um dos trechos da peça, “Not
to Touch the Earth” [em “ANEXOS”, p. 60], se transformaria em uma das faixas do terceiro disco da banda. É
interessante notar o estranhamento causado por uma canção cuja letra foi edificada como um poema
primeiramente, para só então tomar corpo como canção. O fato de Celebration of The Lizard não ter sido
considerada adequada para ser lançada como parte dos discos de estúdio do The Doors talvez seja revelador do
que nos estamos propondo a discutir aqui: a possível diferença que há entre o que era destinado a tornar-se
poemas para serem publicados em livro ou declamados e o que viria a tornar-se canções.
57
Morrison, além de Lizard King, recebeu outros apelidos, como por exemplo “Mr. Mojo Risin’”, que seria um
anagrama de Jim Morrison contido na letra da canção “L.A Woman” do album homônimo de 1971. Além disso,
a palavra “mojo”, segundo o dicionário Oxford de língua inglesa, significa: 1) encanto, talismã ou feitiço
mágicos 2) poder mágico.
33
Escritos: Jim Morrison, além da biografia Daqui Ninguém Sai Vivo (No One Here Gets Out
Alive), de Danny Sugerman e Jerry Hopkins. Sobre a edição portuguesa de The Lords and The
New Creatures, escreveu-se o seguinte:
Poesia fragmentada e dispersa, Os Mestres e as Criaturas Novas fala sobre o
comportamento animal e o desejo de poder, sobre quartos de hotel e fantasmas que
deambulam pelas cidades. Influenciada por escritores como Jack Kerouac e toda a
beat generation, a poesia de Jim Morrison transmite a inquietude de um peregrino
numa estrada que vai dar não se sabe bem onde, porque não se sabe bem qual a fé que
move esse peregrino; apenas se sabe que, inevitavelmente, ele acaba por regressar à
estrada.58
O terceiro livro de Morrison, An American Prayer, escrito em 1969 e lançado em
1970, consiste em um livreto dimensionado para caber no bolso do leitor. Contém um único e
relativamente longo poema, dividido em cinco partes. Pela dificuldade de encontrar-se a
edição individual do poema, devido a seu caráter de raridade e alto preço, o texto utilizado
nessa pesquisa é o da transcrição contida em The American Night: The Writings of Jim
Morrison Volume 2, edição de 1991. An American Prayer também fez parte da sessão de
leitura de poesia feita por Jim Morrison no seu aniversário de 27 anos, pouco tempo antes de
sua partida para Paris. A primeira parte do poema (com a subtração de uma das estrofes) viria
também a encabeçar, ao lado de outros poemas dessa e de outra sessão de leitura de poesia de
09 de fevereiro de 1969, o álbum póstumo homônimo lançado em 1978 e creditado como
“Jim Morrison, Music by The Doors”.
An American Prayer é escrito basicamente em verso livre e dividido em cinco seções.
A primeira parte (a maior de todas), ironiza o tipo de discurso característico de preces e
representa, em certos aspectos, a visão de mundo do escritor. Vejamos alguns recortes do
início da primeira parte59:
Do you know the warm progress
under the stars?
Do you know we exist?
Have you forgotten the keys
to the Kingdom?
Have you been borne yet
& are you alive?
58
Os Mestres e As Criaturas Novas. Tradução de Paulo da Costa Domingos. Portugal: Assírio & Alvim, 1987.
Cf. <http://www.skoob.com.br/os-mestres-e-as-criaturas-novas-45427ed49790.htmls>. Acesso em 10 de agosto
de 2015.
59
A primeira parte completa do poema pode ser conferida em “ANEXOS”, p. 61-64.
34
Let's reinvent the gods, all the myths
of the ages
Celebrate symbols from deep elder forests
[Have you forgotten the lessons
of the ancient war]
We need great golden copulations
The fathers are cackling in trees of the forest
Our mother is dead in the sea
Do you know we are being led to
slaughters by placid admirals
& that fat slow generals are getting
obscene on young blood
Do you know we are ruled by T.V.
The moon is a dry blood beast
(…)
O great creator of being
grant us one more hour to
perform our art
& perfect our lives
(…)
Give us a creed
To believe
A night of Lust
Give us trust in
The Night
(…) [MORRISON, 1991, pags. 3-6]
Se por um lado orações religiosas possuem, em geral, uma construção linear de
significados e são estruturadas sobre um alicerce de frases assertivas, de agradecimento,
louvor ou súplica que geralmente celebram símbolos sagrados, esta primeira parte da “oração
americana”, por outro lado, possui frequentes mudanças de ritmo e direcionamento e é
arquitetada principalmente sobre uma base de frases interrogativas postadas no início de
algumas estrofes (“Do you know the warm progress under the stars?” / “Have you been borne
yet & are you alive?” / “Do you know we are rulled by T.V.”), intercaladas com frases de
caráter exortativo, de louvor ou súplica que focam em símbolos profanos, terrenos ou
mundanos (“Let’s reinvent the gods, all the myths of the ages / celebrate symbols from deep
elder forests” / “O great creator of being / grant us one more our to perform our art & perfect
our lives” / “Give us creed / To believe / A night of lust / Give us trust in / The Night”). Ou
seja, verifica-se a contestação de dogmas e a desconstrução do sagrado (assim como em
passagens de The Lords), a celebração da dúvida e do existencialismo. É possível observar
ainda: um tom crítico e não velado em relação à posição conservadora e reacionária do ser
35
humano no mundo moderno, tal como à perpetuação da guerra (“Have you forgotten the
lessons of the ancient war” / “fat slow generals are getting obscene on young blood”), e ao
sexualismo como tabu (“We need great golden copulations”).
O eu-lírico parece relacionar-se conflituosamente com os conceitos e padrões sociais e
culturais estabelecidos, em uma busca por redimensionamento de valores e usufruindo de uma
visão de mundo que contempla muito mais o que está à margem da sociedade do que a
consciência coletiva predominante. O termo consciência coletiva60 designa o indivíduo como
submisso a regras e padrões sociais ao mesmo tempo em que se refugia, se alenta e se fortifica
nessa submissão por enxergar-se como parte integrante de algo maior e organizado. A
proposta do eu-lírico em The American Prayer, ao contrário, é por vezes imbuída da
necessidade de romper com a acomodação social, de sair da zona de conforto, para vislumbrar
a libertação de todos os sentidos, buscando no estranho, no individual, nas experiências
transgressoras o essencial para o corpo, a mente e o espírito.
A segunda parte, menor do que a primeira, conta com a mescla de imagens diversas,
tais como nas passagens: (1) de caráter exortativo; (2) metalinguístico; (3) obscuras; (4) com
um tom satírico (5) ou que fazem referência à sétima arte.
(1)
Women of the world unite
Make the world safe
For a scandalous life (Idem, p. 15)
(2)
Words dissemble
Words be quick
Words ressemble walking sticks
Plant them
Them will grow
Watch them waver so (Idem, p. 13)
(3)
An iron chuckle rapped our
minds like a fist (Idem, p. 12)
(4)
Great screaming Christ
Upsy-daisy
Lazy Mary will get you up
60
Termo cunhado pelo sociólogo francês Émile Durkheim. Cf. <http://www.iep.utm.edu/durkheim/> ou
<http://www.sociologia.seed.pr.gov.br/modules/conteudo.php?conteudo=167>. Acesso em 10 de agosto de
2015.
36
upon a Sunday morning (Idem, p. 11)
(5)
"The movie will begin in 5 moments"
The mindless Voice announced
"All those unseated, will await
The next show" (Idem, p. 11)
A terceira parte consiste em uma única e pequena estrofe de caráter psicodélico, onde,
em uma das interpretações possíveis, a vida é simbolicamente comparada a uma caixa de
fósforos. Segundo essa linha de pensamento, o “viver” só será realmente pleno/real
(“Matchbox / Are you more real than me”) se cumprir sua função, ou seja, através do
movimento de “acender a chama, deixá-la queimar e se extinguir”. O exercício de acender
essa chama ou, em outras palavras, o desafio de aceitar a vida, de “colocar fogo na
existência”, converge naturalmente para a morte como representação da liberdade (simbologia
recorrente na obra de Morrison), representada aqui simbolicamente pelo apagar da chama
(“I’ll burn you, & set you free”).
Matchbox
Are you more real than me
I'll burn you, & set you free
Wept bitter tears
Excessive courtesy
I won't forget (Idem, p. 16)
A quarta sessão de An American Prayer inicia com um caráter metalinguístico na
primeira estrofe, no que parece dialogar com o próprio fazer artístico, onde o criar literário
seria metaforicamente um vulcão e as palavras seriam sua lava. As palavras no papel são
representativas ao mesmo tempo de um disfarce e um espelho para o eu-lírico, que com isso
se identifica.
A hot sick lava flowed up,
Rustling & bubbling.
The paper-face.
Mirror-mask, I love you mirror.
As demais estrofes do trecho são preenchidas por imagens obscuras, onde é possível
reconhecer a “guerra” como um dos leitmotivs do poema, tal como nos versos “The LT.
puzzled in again” ou “Air base in the desert”. Segue o trecho completo:
37
He had been brainwashed for 4 hrs.
The LT. puzzled in again
"ready to talk"
"No sir" - was all he'd say.
Go back to the gym.
Very peaceful
Meditation
Air base in the desert
Looking out venetian blinds
A plane
A desert flower
Cool cartoon
The rest of the World
Is reckless & dangerous
Look at the
Brothels
Stag films
Exploration (Idem, p. 17)
A última e menor parte do poema reafirma o caráter de uma imagética incomum e
aparente ausência de linearidade na construção de significados do poema, como já comentado
anteriormente. Apesar disso, é possível fazer uma relação desta estrofe com as estrofes do
trecho anterior, que transitam pela temática da guerra, através da figura do navio que deixa o
porto.
A ship leaves port
mean horse of another thicket
wishbone of desire
decry the metal fox (Idem, p. 18)
Por ser um texto que trafega por motivos temáticos diversos, aparentemente sem
(somente) um fio condutor definido, e por ter como característica a construção de imagens
heterogêneas e enigmáticas, possui relativo hermetismo temático se o considerarmos como
um todo. Esse é, a propósito, um aspecto muito importante na obra de Morrison, tanto nos
livros de poemas quanto nas letras das canções. O eu-lírico trafega, muitas vezes, por um um
universo multifacetado no que se refere a temáticas e seus elementos de construção, o que
resulta em uma poesia fragmentada. Tal característica foi relacionada, por editores de sua
obra, a expressões como “nightmarish images”, “bold associative leaps” e “volcanic power of
emotion”61. A declamação de An American Prayer por Jim Morrison foi musicada, como dito
anteriormente, pelos integrantes remanescentes do Doors, e o resultado vale a pena ser
61
“Imagens de pesadelo”, “saltos associativos agudos” e “poder vulcânico de emoção”, The American Night:
The Writings of Jim Morrsison Vol. 2, Editorial review.
38
conferido no disco homônimo de 78.
3.2 AS LETRAS DAS CANÇÕES DO THE DOORS
O The Doors lançou seis álbuns de estúdio com Jim Morrison. Embora algumas das
letras das canções tenham sido escritas pelo guitarrista Robby Krieger, Morrison era o
principal responsável pelas letras da banda. Voltaremos o nosso olhar aqui para aquelas
escritas por Morrison.
Uma boa parte das letras do grupo californiano segue uma linha de composição mais
ou menos definida no que diz respeito tanto às temáticas quanto à dicção poética, métrica e
utilização de rimas. Temas como sexo, solidão ou morte, utilizados nos livros de poesia, estão
também presentes nas canções. Em uma primeira análise, as temáticas e a postura do The
Doors destoavam relativamente da estética e do discurso “otimista” de alguns dos grupos que
faziam sucesso na Califórnia no final da década de 60. Segundo Fowlie,
Mesmo depois do sucesso, os Doors estavam surpresos que a cidade de São Francisco
gostasse deles. As letras das outras bandas falavam de amor e paz. As letras do Doors
eram sobre sexo e morte. Morrison vestia-se todo de preto e não usava flores no
cabelo. (...) O baterista John Densmore os comparava a cenas tiradas de um filme de
Fellini”.62
Mesmo assim, muito da temática mais pesada e pessimista do Doors que ia na
contramão da tendência otimista e floreada das bandas da época era suavizada nas canções
por léxico menos denso (comparativamente aos poemas) ou até, em alguns momentos, cedia
lugar a temáticas mais “leves”, como a celebração da noite ou do amor romântico, a exemplo
de Twentieth Century Fox e Hello I Love You63, grandes sucessos da banda. Em geral, as letras
dessas canções eram curtas, com rimas sistemáticas e repetidas, além de apresentarem uma
estrutura quadrada com partes A e B definidas.
Em algumas letras, porém, Morrison conseguiu exercitar certas características do seu
estilo que estavam presente nos poemas. Isso significava textos mais extensos, temáticas mais
obscuras e seleção lexical mais sombria e carregada, que harmonizavam com uma maior
economia no que diz respeito a rimas fáceis e métrica mais definida. O resultado são canções
com caráter épico, longas e pesadas, tais como The End, When The Music is Over e Soft
62
“Even after the success, the Doors were surprised that San Francisco liked them. The lyrics of other bands
spoke of love and peace. The lyrics of the Dorrs were about sex and death. Kim dressed all in black, no flowers
in his hair (…) Densmore compared them to scenes out of a Fellini film. (FOWLIE: 1995, p. 78)
63
Textos em “ANEXOS ”, p. 64-65.
39
Parade 64, que fechavam respectivamente o primeiro, segundo e quarto álbum da banda.
É possível supor que a colocação dessas canções no arremate de cada álbum não foi
por acaso. Além de envolver uma questão mercadológica e o fato de a posição estratégica ao
final do disco corroborar a temática “fim/desfecho/conclusão de algo”, como sugerem os
próprios títulos de The End e When The Music is Over, havia também uma questão estética de
posicioná-las por último como síntese e talvez ápice do trabalho, em um momento de maior
liberdade artística. É como se quem houvesse chegado até a audição daquele ponto do álbum
estivesse mais inclinado a experimentar a maior profundidade e liberdade estética que as
características da canção poderiam oferecer. O campo temático das duas canções citadas, que
tem como elementos o fim, a despedida, a morte, também pode ser entendido como
representativo de uma forma de liberdade.
Em “The End”, que fecha o álbum de estréia da banda, a temática da morte é
trabalhada de uma forma muito característica. A metáfora do “fim como belo e único amigo”
ilustra muito bem a única certeza terrena, com a qual o eu-lírico parece sentir-se muito à
vontade. Nesse sentido, Morrison declararia: “As pessoas tem mais medo da morte do que a
dor. É estranho que elas tenham medo da morte. A vida causa muito mais sofrimento do que a
morte. Quando a morte chega, a dor acaba. Sim, eu a considero uma amiga.”65 A morte física,
aqui, pode funcionar também como uma metáfora para a libertação psicológica e social de
tudo aquilo que oprime o ser humano, a morte consciente de tudo aquilo que nos incomoda,
que não nos serve mais, que nos faz mal, que nos aprisiona, e de que precisamos nos livrar
para podermos nos sentir “verdadeiramente vivos”. Ainda nas palavras do próprio autor, em
1969:
Cada vez que escuto essa canção, ela toma um novo significado pra mim. Ela
começou como uma simples canção de despedida… Provavelmente para uma garota,
mas eu vejo como se pudesse ser também uma despedida da infância, da juventude.
Eu não sei. Eu acho que são imagens complexas o suficiente para significar qualquer
coisa que se queira.”66
64
Idem, p. 66-70.
“People fear death even more than pain. It's strange that they fear death. Life hurts a lot more than death. At
the point of death, the pain is over. Yeah, I guess it is a friend”. (Cf. JAMES, Lizzy: Jim Morrison: Ten Years
Gone, 1981.
Disponível
em
<http://archives.waiting-forthesun.net/Pages/Interviews/JimInterviews/TenYearsGone.html>. Acesso em 24 de Agosto de 2015).
66
“Everytime I hear that song, it means something else to me. It started out as a simple good-bye song...
Probably just to a girl, but I see how it could be a goodbye to a kind of childhood. I really don't know. I think it's
sufficiently complex and universal in its imagery that it could be almost anything you want it to be.” (Cf.
HOPKINS,
Jerry:
The
Rolling
Stone
Interview:
Jim
Morrison.
Disponível
em
<http://www.rollingstone.com/music/features/the-rolling-stone-interview-jim-morrison-19690726?page=6>
65
40
Alguns trechos de “The End” são enigmáticos e perfazem imagens oníricas ou
obscuras, como nos versos “Lost in a Roman wilderness of pain / And all the children are
insane” e “The snake is long / Sven miles / Ride the snake”. Verificam-se muitas variações e
alusões dentro do universo temático67 da canção e uma escolha de palavras que privilegia o
estranhamento. A diversificação de elementos temáticos tende a exaurir as possibilidades de
linearização de significados, criando pluralidade semântica, onde imagens de sonho rivalizam
com a realidade concreta da morte ou da morte como metáfora para o medo do desconhecido,
como por exemplo na seção edipiana que declara “Father? / Yes, son? / I want to kill you /
Mother, I want to...”. Os Doors chegaram a ser expulsos de uma casa de shows em 1967 por
causa da parte que recria a questão de Édipo. The End foi posteriormente usada como trilha
sonora para um dos filmes mais perturbadores já feitos a respeito da guerra do Vietnã,
Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola, o que viria a reforçar o impacto causado pela
canção desde o seu lançamento até os dias de hoje, impacto esse resultante em parte da
associação bem sucedida entre música e literatura.
“When The Music is Over”, última faixa do segundo álbum do Doors, Strange Days,
de 1967, segue a mesma linha de construção, ou seja, letra extensa, rimas esparsas,
flexibilidade métrica, uso de imagens oníricas ou obscuras, variações temáticas e múltiplas
referências, além de uma seleção lexical que privilegia o estranhamento, com maior
aproximação ao tipo de vocabulário presente em The New Creatures e em An American
Prayer. Palavras como “ravaged”, “pludered”, “ripped”, “dawn”, “ressurrection”, “feast of
friends” (“feast of friends”, não coincidentemente, fecha o penúltimo verso do poema An
American Prayer), acrescentam às imagens criadas um caráter mais sombrio. A estrofe “What
have they done to Earth? / What have they done to our fair sister? / Ravaged and pludered /
and ripped her / and bit her / stuck her with knives / In the side of the dawn / And tied her
with fences / And dragged her down”, por exemplo, é representativa de um conteúdo
imagético insólito para o tipo de canções que frequentavam as paradas na época. O eu-lírico
coloca-se em uma posição ativa, de busca pela vida em um grau elevado de experimentação,
como pode-se observar nos trechos “Before I sink into the big sleep / I want to hear / I want to
hear / The scream of the buterfly” e “I hear a very gentle sound / With your ear down to the
ground / We want the world and we want it, / We want the world and we want it, now / Now?
NOW!”. A letra pode também ser entendida como metáfora para a “vida”, ou ainda como
Acesso em 24 de Agosto de 2015).
Essa é uma característica que faz parte de toda a obra poética de Jim Morrison, em maior ou menor medida.
São muitos os seus elementos, referentes, alusões e variação de motivos nas temáticas que integram seus textos.
67
41
simbólica do ímpeto de mantê-la em movimento, como pode ser observado nos verso centrais
da canção: “When the music’s over / Turn out the light / For the music is your special friend /
Dance on fire as it intends / Music is your only friend / Until the end”. É possível apreender
aqui, em uma das leituras possíveis, a definição do sentido da vida pelo eu-lírico como a
necessidade de vivenciá-la impetuosamente em todos os seus movimentos, de colocar-se
ativamente na “dança da vida”, como sugere o verso “For the music is your special friend /
Dance on fire as it intends”.
Em “Soft Parade”, que arremata o álbum homônimo de 1969, Jim Morrison faz uso de
uma voz impostada na introdução da canção, onde a frase “Quando eu era um menino lá atrás
na escola do seminário, havia um pastor que dizia que a oração era uma forma de rogar a
Deus”68 é repetida três vezes. A impostação da voz aqui funciona, pode-se dizer, como sátira à
figura do pastor que tem por intenção impressionar e subjugar os fiéis muito mais pela forma
do que pelo conteúdo do discurso. No final da introdução o cantor usa sua potência vocal
para, ao “estilo Morrison”, declarar com voz agressiva e “rasgada”: “NÃO é possível rogar a
Deus através de orações!”. A ironia está presente no que se sugere a seguir, na idéia: “vamos
ver quem é capaz de impressionar mais através do vigor e versatilidade oratórios”. A crítica
de Jim Morrison era à doutrinação de fiéis pela promessa de que seria possível atingir estados
elevados de espiritualidade através da obediência a ritos e líderes religiosos. Leitor de
Nietzsche, Jim Morrison acreditava na força do homem como seu próprio senhor e na
utilização e subversão dos sentidos para atingir estados mais elevados de consciência. Na
sequência da canção, a letra e a música destacam-se por sua pluralidade e heterogeneidade de
“vozes” e significados, com frequentes saltos rítmicos, melódicos e temáticos, resultando em
hermetismo semântico.
Uma canção do segundo álbum merece tambéms destaque. “Horse latitudes” era um
poema escrito por Jim Morrison na época em que ele estudava na UCLA. No disco, a música
que vem logo após “Horse Latitudes” é “Moonlight Drive”69, a canção que Morrison havia
mostrado a Manzarek em Venice Beach e que os teria levado a decidir montar uma banda. A
letra das duas canções difere consideravelmente em estilo. A primeira é obscura, sem uma
métrica definida, sem rimas e com seleção vocabular e sintaxe mais densas. Palavras como
“armor”, “aborted”, “jettisoned”, “nostril agony” exemplificam isso. A imagem “the first
68
“When I was back there in seminary school / There was a person there / Who put forth the proposition / That
you can petition the Lord with prayer / Petition the lord with prayer / Petition the lord with prayer / You cannot
petition the lord with prayer!”. (Soft Parade, 1969, in The Doors: The Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 122)
69
Em “ANEXOS”, p. 70-71.
42
animal jettisoned in nostril agony” é também reveladora do já citado universo imagético
presente em alguns poemas do artista. Já “Moonlight Drive” possui métrica mais definida e
seleção vocabular menos carregada. O tema tratado aqui é o amor romântico, que tem a
natureza como pano de fundo, e a presença de rimas é expressiva: “Falling through wet
forests / On our moonlight drive / C’mon, baby, gonna take a little ride / Goin’down by the
ocean side”. Interessante, porém, é ouvir como ambos os poemas foram resolvidos
musicalmente. O primeiro é declamado violentamente, com um fundo musical minimalista e
“insano”. O segundo é coberto por música, harmonia e melodia suaves e delicadas, dignas das
paradas pop. Mais interessante ainda é ouvi-las uma na sequência da outra, lado a lado como
estão no disco, o que causa um enorme contraste. O mesmo acontece no quinto disco (o que
nos leva a crer que ambas as ocorrências não foram por acaso), onde “Peace Frog”70, uma
canção cheia de imagens macabras (“There’s blood in the streets it’s up to my ankles (...) /
Blood screams her brain as they chop off her fingers”), muito mais ao estilo do Morrison
poeta do que ao estilo do Morrison escritor de canções (possuindo inclusive trechos
declamados), é seguida (está emendada com, mais precisamente) por “Blue Sunday”71, uma
canção de amor romântico que lida com emoções e palavras mais brandas e claras. A canção
acaba no exato momento em que começa a faixa seguinte do álbum, "Blue Sunday", o que faz
com que diversas estações de rádio costumem tocar as duas músicas consecutivamente.
70
[Idem, p. 71] A letra da canção foi baseada em um dos poemas escritos por Morrison, chamado "Abortion
Stories". Cf. < http://www.songfacts.com/detail.php?id=263>. Acesso em 26 de agosto de 2015.
71
Em “ANEXOS”, p. 72.
43
4 OS POEMAS X AS LETRAS DAS CANÇÕES
4.1 POESIA “ESCRITA” X POESIA “FALADA/CANTADA(?)”
Se por um lado as letras dos seis álbuns de estúdio do The Doors apresentam, de forma
geral, unidades temáticas e dicção poética que remetem ao estilo do Morrison poeta, por outro
lado verificam-se diferenças formais significativas, em relação aos poemas, nos textos que
integravam as canções, (provavelmente modificações feitas para acomodar os temas) como
presença de rimas e estruturação mais uniforme para adequar o texto à métrica rítmica e
melódica das músicas. Até que ponto isso é verdadeiro ou passível de ser observado é o que
nos propomos a discutir neste capítulo.
Embora Jim Morrison se sentisse mais à vontade exercitando seu fazer poético nas
canções, segundo ele mesmo declarara72, pode-se verificar, nos três livros lançados em vida
pelo artista, que a “poesia escrita” dava a Morrison maior liberdade no que diz respeito tanto à
escolha dos temas a serem trabalhados quanto no que se refere à métrica, escolha de palavras
e à maneira como ele as utilizava. Não queremos aqui dizer que o criador da maioria das
letras das canções do Doors não usufruísse de liberdade no momento de compor as canções,
mas sim que, comparativamente, o campo poético dos livros oferecia a ele menor resistência
aos tipos de escolha que compunham sua dicção poética e seu eu-lírico. Embora a essência
desse eu-lírico e sua visão de mundo verificados nos poemas73, bem como características
formais dos textos (repetição de temas, seleção lexical, característica semântica das palavras
escolhidas e seu uso, sintaxe, métrica, etc.), estejam presentes também nas canções, os
escritos, no momento de serem criados ou transformados para fazer parte de uma canção,
sofriam certas adaptações. Em outras palavras, mesmo que o teor ou conteúdo do que
Morrison escreveu em seus livros se parecesse muitas vezes com o objeto das canções, o
argumento utilizado, a sua expressão poética (forma, maneira de se expressar) diferia
sistematicamente nos dois formatos. Significaria dizer que, sob esse prisma, pegar qualquer
poema dos três livros em questão e tentar visualizá-los como letra de uma das canções do The
Doors não nos levaria a um resultado semelhante em estilo ao da maioria das canções que
tornaram a banda mundialmente reconhecida. Talvez nos levasse a outra coisa, talvez com
72
Cf. Critique T.V. Series. Hosted by Richard Goldstein. New York, WNDT, Channel 13, 1969. Disponível em:
< https://www.youtube.com/watch?v=Gtz795e3_Uw>. Acesso em 26 de agosto de 2015.
73
Vale aqui lembrar que, antes de juntar-se ao grupo de Los Angeles, Morrison já exercitava suas habilidades
enquanto poeta.
44
mais ou menos qualidade, não importa, mas certamente diversa em natureza. A banda poderia
inclusive ter obtido sucesso se houvesse se disposto a musicar, por exemplo, os poemas que
Morrison escreveu e lançou em livro, mas certamente o sucesso obtido seria de outra espécie.
E vice-versa. Ao ler uma letra do Doors, seria como se estivéssemos lendo uma poesia dos
livros de Morrison? Talvez em alguns pequenos casos, como está sendo discutido. A questão
aqui não seria, portanto, qualitativa, mas de natureza no momento de criação em relação ao
resultado obtido. O tecladista do grupo, Ray Manzarek, comenta sobre isso em uma entrevista
da banda a Richard Goldstein para a série de TV Critique exibida em Junho de 1969 pela
WNDT (atualmente WNET), Channel 13, em Nova York. Quando indagados sobre qual a
diferença entre a letra de uma canção de rock e um poema, Manzarek declara, com uma cópia
de The New Creatures em mãos:
Não existe diferença, o livro de Jim é o mesmo que as suas letras. Eu posso ler uma
página e ouvi-lo cantar as mesmas coisas. Para ele, eu acho que não existe realmente
nenhuma diferença. Isto aqui é poesia ‘escrita’ e o que ele faz no palco é poesia
‘falada’. Poesia ‘falada’ tem grande eficiência. Alguns poemas ‘soam’ melhores
‘lidos’ do que ‘falados’, mas de maneira geral poesia ‘falada’ é muito mais eficaz.
(CRITIQUE, 1969, 25’17’’)74
Para entender melhor o que o tecladista queria dizer, vamos analisar alguns detalhes
em relação ao universo temático (solidão, morte, vida urbana, amor, crenças e visão de
mundo), métrica e dicção poética de Morrison em seus escritos, comparando poemas dos
livros e letras das canções.
Jim Morrison era um apaixonado pela vida, a qual urgia ser vivida e experimentada no
limite de sua essência: a transcendência pessoal e coletiva, social, filosófica e religiosa, onde
estados de consciência diversos cumpriam um papel fundamental na vivência terrena em
relação à transcendência em seu sentido mais moderno. Para Morrison, o essencial na vida e
na arte era perseguir novas realidades, novas relações com o objeto, enfrentar o desconhecido,
através de uma realidade conjunta, compartilhando experiências. Ir além – e além de si
mesmo – eram para ele palavras de ordem. Talvez por isso o vocalista tenha perseguido tanto
o tema da morte em seus escritos, para ele algo tão natural quanto o “apagar a luz quando a
música terminar”75. Em uma das visualizações possíveis, como já observado anteriormente, a
música pode ser entendida aqui como o ciclo da vida e seus movimentos, e o apagar das luzes
representaria simbolicamente a morte. “No One Here Gets Out Alive”, declarara Morrison em
74
Disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=Gtz795e3_Uw>. Acesso em 26 de agosto de 2015.
“When the music’s over / Turn out the lights” (Quando a música terminar, apague as luzes) [do álbum Strange
Days, de 1967, in SUGERMAN: The Doors: The Complete Illustrated Lyrics, 2006, P. 80)
75
45
Five to One, última faixa do terceiro LP do Doors. E assim celebrava a morte ao mesmo
tempo em que a profanava, assim como celebrava a vida ao mesmo tempo em que a
“profanava”, escancarando todos os limites. Morrison cantava a todos os deuses, e não a um
só, (“Let's reinvent the gods, all the myths of the ages / Celebrate symbols from deep elder
forests / [Have you forgotten the lessons of the ancient war]”76) e se entregava a tudo aquilo
que fosse capaz de levá-lo a diferentes estados de consciência. Do uso de álcool e drogas
alucinógenas ao ritual xamânico. Talvez por isso muito de sua obra tenha caráter
confessional. Porque fala de suas próprias experiências, seus sucessos e fracassos, suas trocas
e descobertas.
Ao mesmo tempo, sua obra é a expressão de uma geração que lutava por espaço em
meio ao opressor “American way of life”, uma geração que expôs suas angústias e se rebelou
contra o conservadorismo ideológico e comportamental da sociedade americana do pósguerra,
contra
o
sufocamento,
manipulação
e
destrutividade
de
sua
visão
capitalista/imperialista, defendendo, ao invés, ideais de caráter libertário e existencialista,
representados em um primeiro momento pela geração beat e em seu auge pelo movimento
hippie. Nas palavras de Manuel da Costa Pinto, Morrison
conseguiu expor seus dilaceramentos, os nossos dilaceramentos, a defasagem entre a
altitude de nossos sonhos, a opacidade de um mundo que exige que sonhemos e a
crueldade com que esse mundo manipula aqueles sonhos, obrigando-nos a percorrer a
estrada da dissolução, a penetrar na terra da catástrofe – para ensinamento dos
homens. (2001, p. 19)
Os eixos temáticos trabalhados por Jim Morrison em sua poesia giravam em torno de
uma visão anárquica e uma relação conflituosa diante de suas observações e vivências, de
uma postura contestadora e anti-idealista contra o establishment. Circulavam, ao mesmo
tempo, em volta de objetos com os quais se identificava e do resultado de suas experiências.
Entretanto, definir a temática de seus poemas não é uma tarefa fácil, pois seu eu-lírico
costuma mudar de direção diversas vezes dentro do mesmo texto. Um mesmo poema,
portanto, além de um campo temático, pode abranger várias “temáticas menores” bem como
inúmeros motivos condutores, formando pequenas unidades semânticas que, somadas, nem
sempre correspondem a uma unidade de sentido geral definida. Segundo os organizadores77 de
The American Night:
76
77
An American Prayer (in The American Night: The Wrtings of Jim Morrison Volume 2, 1991, p. 3)
Columbus B. Courson, Pearl Marie Courson, Frank Lisciandro, Katherine Lisciandro.
46
Frequentemente abstrata, preenchida com metáforas, comparações e símbolos, às
vezes aparentando falta de conexão estrutural, a poesia de Jim Morrison nos confronta
com imagens agudas e texturas que relutam para revelar seu significado em uma
leitura casual. Quando um poma era obscuro, nós tivemos que assumir que o poeta o
tinha feito assim de propósito. Para ter acesso a sua linguagem, nós teríamos que
deixar de lado todos os nossos conceitos pré-concebidos sobre como um poema
deveria ser e nos abrir para o que esses poemas realmente eram: ousados, não
78
convencionais, experimentais, herméticos e surprendentes.
Agrupamos, por essa razão, recortes com motivos condutores ou recorrentes dentro de
campos temáticos que podem estar presentes simultaneamente em um mesmo poema ou
canção ou em poemas e canções diversos. Um mapeamento do conteúdo e forma das letras
das canções dos seis álbuns do The Doors em comparação com os poemas dos livros The
Lords: Notes on Vision, The New Creatures e An American Prayer e das duas sessões de
poesia citadas, nos leva (em um dos vários pontos de vista possíveis para a análise da obra
poética de Jim Morrison) ao esquema que se segue. Ressaltamos que The Lords, por se tratar
de um livro em prosa poética, com boa parte de sua temática focada em cinema, mereceria um
capítulo à parte. Dessa forma, trabalharemos apenas alguns poucos recortes do livro,
restringindo-nos àqueles que se encaixam na análise proposta.
Levando em consideração o tamanho do corpus da pesquisa, observamos ainda que
não nos empenharemos em fazer nesta próxima parte do trabalho (por razões de espaço e por
fugir ao nosso escopo) uma leitura analítica aprofundada dos textos nem de sua relação com a
música no caso das canções. Nos limitaremos a fazer observações que julgamos pertinentes,
em linhas gerais, em relação a regularidades e linearidades ou coincidências e diferenças que
são detectáveis nas superfícies dos textos dos poemas e das letras das canções. Embora não
tenhamos deixado de fazer investigações mais detalhadas de passagens dos textos, bem como
considerações a respeito da relação música e literatura nos capítulos anteriores (fatores
significativos como complemento ao tipo de análise que agora se propõe), julgamos ser a
opção por este tipo de análise esquemática, que terá sua atenção voltada para a superfície dos
escritos, também pertinente para os estudos da obra poética e musical de Jim Morrison,
principalmente no que se refere a uma introdução para leituras analíticas e comparações em
diversos níveis do material que integra o repertório deste estudo. Nesta próxima etapa,
78
“Frequently abstract, often layered with metaphors, símiles and symbols, sometimes lacking apparent
connective tissue, Jim’s poetry confronted us with bold images and textures that were unwilling to reveal their
meaning to a casual reading. When a poem was obscure, we had to trust that the poet had purposefully made the
shell hard to crack. To gain entry we would need to leave behind our preconceived notions of what a poem
should be and open ourselves to what these poems were: bold, unconventional, experimental, difficult and
startling.” (In “Notes: Preparing the material for publication”, The American Night: The Writing of Jim Morrison
Volume 2, 1991, p. 205)
47
portanto, vamos nos ater especificamente à comparação entre os poemas e as letras das
canções, despidas de sua música, com a consciência de que estamos comparando um todo
(poema) a uma parte (letra da canção) e assumindo esta forma de análise como uma das
leituras possíveis.
4.2 POEMAS X AS LETRAS DAS CANÇÕES (ANÁLISE ESQUEMÁTICA)
Legendas utilizadas:
TL: The Lords, 1969
NC: The New Creatures, 1969
LNC: The Lords and The New Creatures, 1987 (1st published 1970)
AP: An American Prayer, 1970
Ws: Wilderness: The Lost Writings of Jim Morrison Volume 1, 1989 (1st published 1988)
AN: The American Night: The Writings of Jim Morrison Volume 2, 1991 (1st published 1990)
ES: Elektra Session, 1969
BPS: Birthday Poetry Session, 1970
CL: The Doors: The Complete Illustrated Lyrics, 2006 (1st published 1991)
TD: The Doors, 1967
SD: Strange Days, 1967
WS: Waiting for The Sun, 1968
SP: Soft Parade, 1969
MH: Morrison Hotel, 1970
LAW: L.A. Woman, 1971
Recortes de poemas
(coluna da esquerda)
Recortes de letras das canções
(coluna da direita)
AGRUPAMENTO DE ALGUNS DOS PRINCIPAIS EIXOS TEMÁTICOS
(E ELEMENTOS RECORRENTES)
1. Solidão (isolamento, tristeza, dor, lamento, despedida, decadência, loucura)
You parade thru the soft summer / We watch
your eager rifle decay / Your wilderness / Your
teeming emptiness / Pale forests on verge of
light decline (NC, in LNC, p. 96)
The days are bright and filled with pain /
Enclose me in your gentle rain / The time you
ran was too insane / We'll meet again (TD, in
CL, p. 28)
Bitter grazing in sick pastures / Animal
sadness & the daybed / Whipping / Iron
curtains pried open / The elaborate sun implies
dust, knives, voices. (NC, in LNC, p. 97)
This is the end, beautiful friend / This is the
end, my only friend / The end of our elaborate
plans / The end of everything that stands /
The end (…) / Can you picture what will be /
So limitless and free / Desperately in need of
some stranger's hand / In a desperate land?
(TD, in CL, p. 36)
Terrible shouts start the journey / If they had
migrated sooner / a high wailing keening /
piercing animal lament / from a woman / high
atop a Mt, tower / Thin wire fence / in the
mind / dividing the heart (NC, in LNC, p. 121)
You are alone/ & have no need of other/ you &
the child mother/ who bore you/ who weaned
People are strange when you're a stranger /
Faces look ugly when you're alone / Women
seem wicked when you're unwanted / Streets
are uneven when you're down (SD, in CL, p.
77)
48
you/ who made you man (NC, in LNC, p. 133)
We're perched headlong on the edge of
boredom / We're reaching for death on the end
of a candle / We're trying for something /
That's already found us (AP, in AN, p. 7)
Where are my dreamers / Today & tonight /
Where are my dancers / leaping madly /
whirling & screaming / Where are my women /
quietly dreaming / caught like angels / on the
dark porch / of a velvet ranch / dance dance
dance dance / dance dance dance (BPS, in Ws,
p. 179)
Well, I been down so god-damn long / That it
looks like up to me / Now, why don't one you
people / C'mon and set me free? (LAW, in
CL, p. 147)
I need a brand new friend who doesn't bother
me /I need a brand new friend who doesn't
trouble me / I need someone who doesn't
need me / Why did you throw the Jack-ofHearts away? / It was the only card in the
deck that I had left to play / And I'll say it
again / I need a brand new friend / The end
(LAW, in CL, p. 153)
Pode-se notar, neste primeiro grupo, que o tratamento dado aos temas é de
certa forma diferenciado em ambos os casos. O trecho “Bitter grazing in sick pastures
/ Animal sadness & the daybed / Whipping / Iron curtains pried open / The elaborate
sun implies dust, knives, voices”, por exemplo, que tem como temática “dor e
solidão”, possui uma dicção poética mais rebuscada, com imagens obscuras e
ausência de rimas, se comparado com a passagem “The days are bright and filled with
pain / Enclose me in your gentle rain / The time you ran was too insane / We'll meet
again”, que trata de temática similar, porém com presença de rimas e imagens mais
claras e diretas.
2. Morte (guerra, violência, destruição, caos)
Loose, nerveless ballets of looting / Boys are
running. / Girls are screaming, falling. / The air
is thick w/ smoke. / Dead crackling wires dance
pools of sea blood. (NC, in LNC, p. 100)
The fathers are cackling in trees of the forest /
Our mother is dead in the sea / Do you know
we are being led to slaughters by placid
admirals / & that fat slow generals are getting
obscene on young blood (AP, in AN, p. 3)
Do you know how pale & wanton thrillful
comes death on strange hour unannounced,
unplanned for / like a scaring over-friendly
guest you've brought to bed / Death makes
angels of us all & gives us wings / where we
had shoulders smooth as raven's claws (AP, in
AN, p. 10)
"I pressed her thigh / & death smiled" / death,
old friend / death & my c*ck / are the world
(BPS, in AN, p. 60)
Breakfast where the news is read / Television
children fed / Unborn living / Living dead /
Bullet strikes the helmet's head / And it's all
over / For the unknown soldier / Make a
grave for the unknown soldier / Nestled in
your hollow shoulder (WS, in CL, p. 90)
The human race was dyin' out / No one left to
scream and shout / People walkin' on the
moon / Smog will get you pretty soon /
Everyone was hangin' out / Hangin' up and
hangin' down / Hangin' in and holding fast /
Hope our little world will last (MH, in CL, p.
136)
There's a killer on the road / His brain is
squirming like a toad / Take a long holiday /
Let your children play / If you give this man
a ride / Sweet family will die (LAW, in CL,
p. 156)
É possível verificar em ambas as colunas algumas diferenças no tratamento
dado a temas similares. A dicção poética no caso das letras das canções é mais
pontual e direta, ao passo que nos poemas é feito um uso maior de metáforas.
Verifica-se também que as estruturas da segunda coluna possuem uma forma mais
49
definida, com a presença de rimas, que rareiam na primeira. Vejamos a diferença de
tratamento dado ao tema “guerra” em ambos os casos:
Poema: “The fathers are cackling in trees of the forest / Our mother is dead in the sea
/ Do you know we are being led to slaughters by placid admirals / & that fat slow
generals are getting obscene on young blood”
Letra de canção: “Breakfast where the news is read / Television children fed / Unborn
living / Living dead / Bullet strikes the helmet's head / And it's all over / For the
unknown soldier / Make a grave for the unknown soldier / Nestled in your hollow
shoulder”
3. Vida urbana (boemia, diversão, drogas, capitalismo)
Drive toward outskirts of city suburbs / At he
edge discover zones of sophisticated vice and
boredom, child prostitution (TL, in LNC, p. 12)
So many wild pigeoons / Animals ripe w/new
diseases / “There is only one disease / and I am
its catalyst”, / cried doomed pride of the carrier
/ Fighting, dancing, gambling, / bars, cinemas
thrive / in the avid summer. (NC, in LNC, p.
107)
Cancer city / Urban fall / Summer sadness / The
highways of the old town / Ghosts in cars /
Electric shadows (NC, in LNC, p. 124)
Guerilla bands are rolling numbers in the next
block of green vine (AP, in AN, p. 4)
We have assembled inside this ancient & insane
theatre
To propagate our lust for life & flee the
swarming wisdom of the streets (AP, in AN, p.
5)
Take the highway to the end of the night /
Take a journey to the bright midnight /
Realms of bliss / Realms of light / Some are
born to sweet delight / Some are born to the
endless night (TD, in CL, p. 32)
Well, I woke up this mornin’ / I got myself a
beer/ The future's uncertain / And the end is
always near / Let it roll, baby, roll, all night
long (MH, in CL, p. 129)
I live uptown / I live downtown / I live all
around / I had money / I had none / But I
never been so broke that I couldn't leave
town (LAW, in CL, p. 145)
Midnight alleys roam / Cops in cars, the
topless bars / Never saw a woman so alone /
Motel money / Murder madness / Let's
change the mood / From glad to sadness
(LAW, in CL, p. 150)
Give us a creed / To believe / A night of Lust /
Give us trust in / The Night (AP, in AN, p. 6)
A forma como o eu-lírico dos textos aborda o mesmo assunto é, em certos
aspectos, diversa. O segmento “So many wild pigeons / Animals ripe w/new diseases
/ ‘There is only one disease and I am its catalyst’, / cried doomed pride of the carrier /
Fighting, dancing, gambling, / bars, cinemas thrive / in the avid summer”, que aborda
a temática “vida urbana/boemia”, pode ser interpretado como uma associação da
imagem “animais com doenças” a idéia de “florescimento urbano em contraposição à
decadência moral, boemia”. A imagem criada é obscura, principalmente na metáfora
“cried doomed pride of the carrier”. Já na passagem selecionada da segunda coluna,
“Midnight alleys roam / Cops in cars, the topless bars / Never saw a woman so alone /
Motel money / Murder madness / Let's change the mood / From glad to sadness”, a
idéia do “florescimento urbano que traz perversão e decadência moral à cidade” é
dada de forma mais direta e visível (há apenas uma metáfora, mais transparente, no
primeiro verso). O uso de rimas nesse trecho (roam, alone / madness, sadness)
também altera o posicionamento do eu-lírico.
50
4. Amor (sexo, luxúria)
(…) But all will pass/ lie down in green grass/
& smile, & muse, & gaze/ upon her smooth/
resemblance/ to the mating-Queen/ who it
seems/ is in love/ w/ the horseman / Now, isn't
that fragrant/ Sir, isn't that knowing/ w/ a
wayward careless / backward glance (NC, in
LNC, p. 141)
She’s the queen of cool / And she’s the lady
who waits / Since her mind left school / It
never hesitates / She won’t waste time / On
elementary talk / ‘Cause she’s a twentieth
century fox (TD, in CL, p. 29)
Her cunt gripped him / Like a warm friendly
hand. (AP, in AN, p. 12)
She’s walking down the street / Blind to
ev’ry eye she meets / Do you think you’ll be
the guy / To make the queen of the angels
sigh? (WS, in CL, p. 98)
Lament for my c*ck / Sore & crucified / I seek
to know you / acquiring soulful wisdom / you
can open walls of / mystery / strip-show (BPS,
in AN, p. 59)
You make me real / You make me feel /
Like lovers feel / You make me throw away
mistake and misery / Make me free, love /
Make me free (MH, in CL, p. 132)
A vast radiant beach & a cool / jewelled moon.
Couples naked / race down by it / quiet side & /
we laugh like soft mad children, / smug in the
wooly cotton brains / of infancy. (ES, in Ws, p.
136)
I'm a spy in the house of love / I know the
dreams, that you're dreamin' of / I know the
words that you long to hear / I know your
deepest secret fear (MH, in CL, p. 138)
É vísivel neste grupo temático a utilização de metáforas e vocabulário mais
acessíveis no caso das letras das canções. Na primeira coluna temos uma seleção
lexical que privilegia o estranhamento e o obsceno (resemblance, mating-Queen,
cunt, c*ck, crucified, strip-show), ao passo que na segunda coluna as palavras
selecionadas são mais suaves e previsíveis (queen, angels, baby, love, dreams). É
possivel também dizer que as metáforas dos poemas são mais cruas e vulgares (“Her
cunt gripped him”, “Lament for my c*ck / Sore & crucified”), ou mais herméticas
(“smug in the wooly cotton brains / of infancy”), enquanto as letras das canções
possuem uma abordagem mais branda, clara e romântica (“Dou you think you’ll be
the guy / to make the queen of the angels sigh?”, “I'm a spy in the house of love”).
Além disso, pode-se notar que o segundo grupo, ao contrário do primeiro, possui
métrica mais definida e rimas constantes (cool, school / guy, sigh / hear, fear)
5. Crenças (religião, fé, deus(es), profanação, existencialismo)
Male genitals are small faces / forming trinities
of thieves / and Christs / Fathers, sons, and
ghosts. (TL, in LNC, p. 59)
Let's reinvent the gods, all the myths of the ages
/ Celebrate symbols from deep elder forests /
[Have you forgotten the lessons of the ancient
war] / (AP, in AN, p. 3)
O great creator of being / grant us one more
hour to / perform our art / & perfect our lives
(AP, in AN, p. 4)
We live, we die / & death not ends it (AP, in
When the music's over / Turn out the lights
(…) / Cancel my subscription to the
Resurrection / Send my credentials to the
House of Detention / I got some friends
inside (SD, in CL, p. 80)
Persian night, babe / See the light, babe /
Save us! / Jesus! / Save us! (SD, in CL,
p.81)
When I was back there in seminary school /
There was a person there / Who put forth
the proposition / That you can petition the
Lord with prayer / You cannot petition the
51
AN, p. 4)
lord with prayer! (SP, in CL, p. 122)
Great screaming Christ / Upsy-daisy / Lazy
Mary will get you up / upon a Sunday morning
(AP, in AN, p. 11)
A questão da profanação de dogmas religiosos é recorrente na obra de
Morrison, tanto nos poemas quanto nas canções. Isso está bem representado em
passagens como “Let’s reinvent the gods”, “Great screaming Christ / Upsy-daisy /
Lazy Mary will get you up”, ou “Cancel my subscription to the Ressurrection”. O
trecho “O great creator of being / grant us one more hour to / perform our art / &
perfect our lives”, na mesma linha de pensamento, é representativo de uma “fé”
voltada para o existencialismo. No caso deste grupo temático, talvez pelo fato de os
fragmentos selecionados das canções fazerem parte de faixas que fechavam os álbuns
do The Doors (momento em que a banda desenvolvia maior “liberdade artística”,
como já foi discutido anteriormente), encontramos maior aproximação da dicção
poética nas duas colunas. Ambas trabalham com vocabulário simples, imagens mais
claras e diretas e uma abordagem satírica.
6. Visão de mundo (crítica ao sistema, filosofia)
Door of passage to the other side, / the soul frees
itself in stride (TL, in LNC, p. 90)
Do you know the warm progress under the stars?
/ Do you know we exist? / Have you forgotten
the keys to the Kingdom? / Have you been borne
yet & are you alive? (AP, in AN, p. 3)
We need great golden copulations (AP, in AN, p.
3)
Do you know we are ruled by T.V. (AP, in AN,
p. 4)
This is just jail for those who must / Get up in
the morning & fight for such / unusable
standards / While weeping maidens / show-off
penury & pout / ravings for a mad / staff / Wow,
I'm sick of doubt (AP, in AN, p. 8)
No more money, no more fancy dress / This
other Kingdom seems by far the best / until its
other jaw reveals incest / & loose obedience to a
vegetable law / I will not go / Prefer a Feast of
Friends / To the Giant family (AP, in AN, p. 10)
Made the scene from week to week / Day to
day, hour to hour / The gate is straight /
Deep and wide
Break on through to the other side (TD, in
CL, p. 25)
Strange days have found us / Strange days
have tracked us down / They're going to
destroy / Our casual joys / We shall go on
playing or find another town (SD, in CL, p.
69)
What have they done to the earth? / What
have they done to our fair sister? / Ravaged
and plundered and ripped her and bit her /
Stuck her with knives in the side of the
dawn / And tied her with fences and
dragged her down (SD, in CL, p. 81)
Five to one, baby / One in five / No one
here gets out alive (…) / The old get older
and the young get stronger / May take a
week and it may take longer / They got the
guns but we got the numbers / Gonna win /
Yeah, we're takin' over (WS, in CL, p. 96)
I fell on the earth / & raped the snow / I got
married to life / & breathed w/ my marrow (BPS,
in Ws, p. 185)
Questões filosóficas (“Do you know we exist?”, “No one here gets out alive”),
de crítica ao sistema (“Do you know we are rulled by T.V.”, “What have they done to
52
the earth?”), e de visão de mundo (“We need great golden copulations”, “I got
married to life”, “Break on through to the other side”) estão presentes tanto nos
poemas como nas letras das canções. Embora exista neste grupo temático uma certa
aproximação na forma como a dicção poética se apresenta em ambos os casos, a
exemplo do grupo temático anterior, ainda é possível verificar diferenças
significativas. É possível dizer que os poemas possuem, de forma geral, seleção
lexical mais incomum (ex.: copulations, penury, pout, jaw, incest, feast, raped,
marrow) e metáforas mais enigmáticas (ex.:“until its other jaw reveals incest / &
loose obedience to a vegetable law”, “raped the snow”, “breathed w/ my marrow”)
em relação ao vocabulário (ex.: scene, gate, sister, ravaged, ripped, knives, dawn,
fences, guns) e às metáforas (ex.: “Made the scene from week to week”, “Strange
days have tracked us down”, “Stuck her with knives in the side of the dawn”) das
canções.
MÉTRICA E DICÇÃO POÉTICA (SELEÇÃO LEXICAL, METÁFORAS,
COMPARAÇÕES, RIMAS)
In the womb we are blind cave fish. (TL, in
LNC, p. 20)
Time to walk / Time to run / Time to aim
your arrows / At the sun (TD, in CL, p. 34)
Wasps, poised in the window, / Excellent
dancers, / detached, are not inclined / into our
chamber. (TL, in LNC, p. 35)
Lost in a Roman wilderness of pain / And
all the children are insane / All the children
are insane / Waiting for the summer rain
(TD, in CL, p. 36)
Cure blindness with a whore’s spittle (TL, in
LNC, p. 37)
Soft lizard eyes connect. / Their soft drained
insect cries erect / new fear, where fears reign.
(NC, in LNC, p. 99)
Lizard woman w/ your insect eyes / w/ your wild
surprise. / Warm daughter of silence. / Venom. /
Turn your back w/ a slither of moaning wisdom.
(NC, in LNC, p. 101)
A pair of Wings / Crash / High winds of Karma /
Sirens (NC, in LNC, p. 103)
Cave fish, eels, & gray salamanders / turn in
their night career of sleep. (NC, in LNC, p. 105)
Jump ship. Rats, sailors / & death. / So many
wild pigeons. / Animals ripe w/ new diseases.
(NC, in LNC, p. 107)
Sister of the unicorn, dance / Sisters & brothers
of Pyramid / Dance (NC, in LNC, p. 109)
Jackal, we sniff after the survivors of caravans.
(NC, in LNC, p. 119)
Surreptitiously / They smile / Inviting – Smiling
(NC, in LNC, p. 122)
Ensenada / the dead seal / the dog crucifix /
The ancient lake, baby / The snake is long /
Seven miles / Ride the snake (TD, in CL, p.
36)
Bodies confused, memories misused, / As
we run from the day / To a strange night of
stone. (SD, in CL, p. 69)
Insanity's horse adorns the sky / Can't seem
to find the right lie / Carnival dogs consume
the lines / Can't see your face in my mind /
Don't you cry / Baby / Please don't cry / I
won't need your picture / Until we say
goodbye (SD, in CL, p. 79)
I am the Lizard King / I can do anything
(WFS, in CL, p. 86)
Morning found us calmly unaware / Noon
burn gold into our hair / At night, we swim
the laughin' sea / When summer's gone /
Where will we be (WS, in CL, p. 87)
Did you stop to consider / How it will feel
/Cold grinding grizzly bear jaws / Hot on
your heels / Do you often stop and whisper/
It's Saturday's shore / The whole world's a
savior / Who could everask for more? (SP,
in CL, p. 114)
53
ghosts of the dead car sun. (NC, in LNC, p. 125)
(…) beer cans & rust & sable/ menstrual fur
(NC, in LNC, p. 135)
The chopper blazed over/ inward click & sure
/blasted matter, made/ the time bombs free/ of
leprous lands (NC, in LNC, p. 138)
Like polished stone / I see your eyes / Like
burnin' glass / I hear you smile / Smile, babe
(SP, in CL, p. 117)
I see your hair is burnin' / Hills are filled
with fire / If they say I never loved you /
You know they are a liar (LAW, in CL, p.
150)
The moon is a dry blood beast (AP, in AN, p. 4)
Journey we more into the Nightmare / Cling to
life our passion'd flower / Cling to cunts & cocks
of despair / We got our final vision by clap (AP,
in AN, p. 4)
An iron chuckle rapped our minds like a fist.
(AP, in AN, p. 12)
I'll tell you bout the texas radio / I'll tell you
bout the hopeless night / Wandering the
western dream / Tell you bout the maiden
with raw iron soul (LAW, in CL, p. 155)
Into this house we're born, / Into this world
we're thrown / Like a dog without a bone, /
An actor out on loan (LAW, in CL, p. 156)
Weird bait-headed mongrels / I keep expecting
one of you / to rise / large buxom / obese queens
/ garden hogs & c*nt / Veterans / quaint cabbage
saints (BPS, in AN, p. 63)
(…) it must come / like dream / sperm / uncalled
/ from the center (BPS, in Ws, p.184)
Frozen moment by a lake / A Knife has been
stolen / The death of the snake (ES, Ws, p. 138)
A dicção poética de Morrison é constituída por um vocabulário singular, onde
a escolha de palavras parece ser feita baseada em sua potencialidade de causar
estranhamento ou repulsa. Há uma fixação do eu-lírico por animais (lizard, insect,
wasps, cave fish, eels, salamanders, rats, pigeons, jackals, seal, sable, mongrel, hogs,
snake, horse, grizzly bear, dog), geralmente incomuns, sujos ou peçonhentos, bem
como por seres fantásticos ou mitológicos (sirens, unicorn). As metáforas e
comparações, em geral, tendem a ser construídas com grande deslocamento semântico
das palavras utilizadas, afastando-se da previsibilidade e criando imagens psicodélicas
(“An iron chuckle rapped our minds like a fist”, “The moon is a dry blood beast”).
Mesmo que isso seja válido tanto para os poemas como para as canções, ainda é
possível verificar diferenças entre os textos destinados a tornar-se poemas em relação
àqueles destinados a serem musicados. Embora seja também possível encontrar nas
letras das canções amostras de vocabulário agressivo e metáforas enigmáticas, os
exemplos são encontrados mais comumente e com maior grau de estranhamento nos
poemas. Estes, pode-se dizer, são construídos com base neste estranhamento e dele se
alimentam, ao passo que as letras das canções apenas em alguns momentos se
apresentam, formalmente e semanticamente, mais herméticas ou obscuras. É possível
observar, ainda, que os textos das canções privilegiam métricas mais “quadradas”, em
geral com a presença de rimas, ao passo que os poemas são construídos mais
“livremente”. Comparemos alguns exemplos da escolha de palavras em ambos os
casos:
•
Poemas: venom, moaning, disease, surreptitiously, rust, menstrual, chopper, leprous,
beast, cunts, cocks, rapped, bait-headed, buxom, sperm.
54
•
Letras das canções: wilderness, insane, insanity, grinding, wandering, bone, loan.
E de metáforas e comparações:
•
•
Poemas: “Cure blindness with a whore’s spittle”, “Their soft drained insect cries
erect”, “Warm daughter of silence”, “Turn your back w/ a slither of moaning
wisdom”, “The dog crucifix / ghosts of the dead car sun”, “The chopper blazed over”,
“Made the time bombs free of leprous lands”, “it must come like dream”, “sperm
uncalled from the center”
Letras das canções: “Time to aim your arrows at the sun”, “Ride the snake”, “As we
run from the day to a strange night of stone”, “Insanity's horse adorns the sky”,
“Carnival dogs consume the lines”, “Noon burn gold into our hair”, “At night, we
swim the laughin' sea”, “I see your hair is burnin'”, “the maiden with raw iron soul”,
“Like a dog without a bone”
IMAGENS ONÍRICAS (DE PESADELO), BIZARRAS, PSICODÉLICAS, SOMBRIAS,
GROTESCAS, MACABRAS, FANTASMAGÓRICAS
It take large murder to turn rocks in the shade /
and expose strange worms beneath. The lives of /
our discontented madmen are revealed. (TL, in
LNC, p. 16)
Loose, nerveless ballets of looting. / Boys are
running. / Girls are screaming, falling. / The air
is thick w/ smoke. / Dead crackling wires dance
pools of sea blood (NC, in LNC, p. 100)
The idea of vision escapes / the animal worm
whose earth / is an ocean, whose eyes is its body.
(NC, in LNC, p. 105)
I don't dig what they did / to that girl / Mercy
pack / Wild song they sing / As they chop her
hands / Nailed to a ghost / Tree / I saw a
lynching (NC, in LNC, p. 117)
Jackal, we sniff after the survivors of caravans. /
We reap bloody crops on war fields. / No meat
of any corpse deprives our lean bellies. (NC, in
LNC, p. 119)
Stranger, traveler, / peer into our eyes & translate
/ the horrible barking of ancient dogs. (NC, in
LNC, p. 119)
The artists of Hell / set up easels in parks / the
terrible landscape (…) / I am ghost killer./
witnessing to allmy blessed sanction (NC, in
LNC, p. 132)
And not for a /penny /will I spare/ any time/ for
you/ Ghost children/ down there / in the
frightening world (NC, in LNC, p. 133)
When you're strange / Faces come out of the
rain (SD, in CL, p. 77)
My eyes have seen you/ Free from disguise/
Gazing on a city / underTelevision skies (…)
/ Eyes have seen you /Let them photograph
your soul/ Memorize your alleys/ On an
endless roll (SD, in CL, p. 78)
Strange eyes fill strange rooms / Voices will
signal their tired end / The hostess is
grinning / Her guests sleep from sinning /
Hear me talk of sin and you know this is it
(SD, in CL, p. 69)
Dead president's corpse in the driver's car/
The engine runs on glue and tar/ Come on
along, not goin' very far/ To the East to meet
the Czar (WFS, in CL, p. 85)
Natural child, terrible child / Not your
mother's or your father's child / You’re our
child, screamin' wild / (An ancient lunatic
reigns in the trees of the night) / With hunger
at her heels / And freedom in her eyes / She
dances on her knees / Pirate prince at her
side / Staring into the hollow idol's eye (SP,
in CL, p. 119)
Blood screams her brain as they chop off her
fingers / Blood will be born in the birth of a
nation / Blood is the rose of mysterious
union / There's blood in the streets, it's up to
my ankles / Blood in the streets, it's up to my
knee / Blood in the streets in the town of
Chicago / Blood on the rise, it's following
me (MH, in CL, p. 134)
55
The beautiful monster/ vomits a stream of
watches/ clocks jewels knives silver/ coins &
copper blood (NC, in LNC, p. 135)
Windows started tremblin' / With a sonic
boom / Windows started tremblin' / With a
sonic boom, boom / A cold girl'll kill you /
In a darkened room (LAW, in CL, p. 148)
Royal babies, rubies must now replace aborted /
Strangers in the mud / These mutants, bloodmeal (AP, in AN, p. 9)
Gently they sigh / in rapt funeral amazement /
Who called these dead to dance? (BPS, in AN, p.
56)
Indians scattered on dawn's / Hiway bleeding /
Ghosts crowd the young child's / fragile eggshell mind / Underwaterfall, Underwaterfall /
The girls return from summer balls / Let's steal
the eye that sees us all (ES, Ws, p. 139)
O campo imagético da poesia de Jim Morrison é insólito e muitas vezes difícil
de ser compreendido. Não raramente as imagens formadas remetem a figuras surreais
que parecem vindas de um sonho (ou de um pesadelo). Há ainda um forte teor de
psicodelia, talvez reflexo das alterações sensorias promovidas, entre outras coisas, pelo
LSD, droga alucinógena popular no meio da contracultura norte-americana. O
resultado são imagens estranhas, frequentemente sombrias, macabras ou grotescas.
Embora, como é possível verificar nos exemplos, tanto os poemas como as letras das
canções possuam as características citadas, observa-se com maior frequência e
intensidade tais características nos poemas. Durante a pesquisa e recorte das passagens
a serem aqui utilizadas como exemplo, inúmeros trechos selecionados nos livros de
poemas tiveram que ficar de fora, tamanho o número de possibilidades, ao passo que
os fragmentos selecionados das letras das canções, que se enquadravam no proposto,
talvez estejam aqui representadas em sua totalidade. Os fragmentos que começam por
“Dead president's corpse…” e “Blood screams her brain…” faziam parte, inclusive, de
escritos concebidos como poemas antes de serem musicados, tendo recebido diferente
tratamento no momento de serem transformados em canções. É possível concluir, em
linhais gerais, que o Jim Morrison poeta, embora utilizasse campos temáticos similares
aos utilizados pelo Morrison letrista, trabalhava com uma dicção poética que continha
palavras mais agressivas, frequentemente deslocadas semanticamente, e metáforas
impreganadas de hermetismo e estranhamento, o que resultava em um campo
imagético insólito, pesado e obscuro.
56
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Jim Morrison, mais do que poeta e músico, foi um artista que perseguiu viver
abertamente a arte que pregava. Viveu poeticamente, buscando beirar ou extrapolar limites
pessoais e sociais e visando a acrescentar novos ou mais intensos significados a sua vivência
terrena. Em uma via de mão dupla, o resultado de suas experiências pessoais e sociais
reverberava em seu fazer artístico, em uma influência recíproca. Sabidamente um rebelde e
um bebedor incontrolável, Jim Morrison foi um fora-da-lei na vida e nas artes. Frequentou o
submundo, a vida noturna e marginal, das drogas à luxúria, do desconhecimento de limites à
condenação no tribunal, e fez da intensidade com a qual dialogava com todos os tipos de
experiência que o pudessem levar a alterados estados de consciência a sua oração diária. Por
isso profanou crenças absolutas, dogmas e regras sociais na mesma medida em que sacralizou
a intensidade e estranhamento de suas ações. O reflexo disso, influenciado por artistas como
Arthur Rimbaud e Antonin Artaud, é um posicionamento arrojado e inovador, afeito a
individualidades e idiossincrasias e que revela-se em muitos aspectos de sua vida e obra – do
símbolo sexual ao fora-da-lei, do escritor e declamador de poemas ao músico e performer.
Como cantor e performer, Jim Morrison decantou o fazer artístico em apresentações
incandescentes à frente do The Doors. Unindo ousadia, liberdade artística e psicodelia, o
vocalista e seus companheiros de banda, Ray Manzarek, Robby Krieger e John Densmore,
fizeram de suas performances momentos de celebração musical e poética, alcançando uma
química inusitada que os colocou em uma posição de vanguarda na história da música
mundial. Ostentando uma voz barítono expressiva e característica – um de seus maiores
legados–, associada a uma postura xamânica e contestadora, Morrison produziu, ao lado dos
companheiros e em consonância com o público, verdadeiros rituais dionisíacos, onde vigor
artístico e transgressão se confundiam e se mesclavam servindo a fins catárticos de
purificação e de transcendência.
Em seus escritos, Jim Morrison, que em poucos anos de vida lançou três livros de
poemas e deixou material para mais duas publicações póstumas, além de ter sido responsável
pela maioria das letras do The Doors, exercitou um fazer poético representativo de uma vida
conturbada e transgressora. Como característica de seus textos, destaca-se a fixação por
temáticas e/ou elementos temáticos intensos e/ou obscuros, notadamente solidão, decadência,
despedida, morte, violência, guerra, vida urbana, boemia, drogas, amor, luxúria, crenças,
existencialismo, entre outros, onde revelam-se uma filosofia e uma visão de mundo que
encompassam o atípico e o profano. O eu-lírico, pode-se dizer, é dotado de “polifonia”, ou
57
seja, sua expressão manifesta-se através de um conjunto de vozes e elementos diversos que se
movimentam dentro de um mesmo eixo temático, conferindo-lhe pluraridade de significações.
Seus escritos evidenciam também uma busca por imagens incomuns, oníricas, ou mesmo
sombrias, bizarras, macabras ou fantasmagóricas, que, segundo declarado pelo próprio
Morrison, faziam parte de um mundo voltado a mover o público/plateia de sua zona de
conforto e despertar a existência através do estranhamento. Para a construção desse universo
de temáticas e imagens prolixas e insólitas, Morrison fez uso de uma dicção poética singular,
repleta de palavras estranhas, sombrias e/ou agressivas, onde a escolha do vocabulário e sua
posição e relação nos versos parecem ser pautadas pela necessidade de provocar ou chocar o
leitor/espectador. Verifica-se ainda um deslocamento ou subversão da semântica das palavras
que acabam por acentuar o efeito anterior, resultando em metáforas agudas e invulgares.
De qualquer maneira e segundo o que foi exposto, em linhas gerais, no decorrer desta
pesquisa, podem-se verificar diferenças significativas (mais precisamente na superfície dos
textos) entre os escritos que eram destinados a ser publicados nos livros de poesia (ou
declamados) e aqueles que eram destinados a tornar-se letras de canções. Em nossa análise
verificamos, através do confrontamento de alguns recortes e aspectos dos poemas e dos textos
das canções, que muitas das temáticas se repetem em ambos os meios, mas divergem
relativamente no que diz respeito a forma utilizada: precisão métrica, uso de rimas, seleção
vocabular, metáforas e imagens criadas. Nos poemas, utiliza-se, em sua maioria, o verso livre,
com maior flexibilidade métrica e escasses de rimas. Sua seleção lexical privilegia
frequentemente um maior grau de estranheza ou agressividade que uma palavra possa
oferecer, estabelecendo-se uma linguagem hermética e repleta de metáforas e um campo
imagético que dialoga com o surreal, o bizarro e o grotesco. Já as letras das canções, embora
trafeguem por campos semânticos e temáticos similares aos dos poemas, apresentam uma
métrica mais rígida, com maior regularidade de rimas, seleção vocabular mais acessível e
criação de metáforas mais claras e diretas. Seus poemas são, por assim dizer, geralmente mais
densos que as letras das canções (geralmente mais transparentes e objetivas, criadas ou
adaptadas para se encaixarem às músicas e pensadas, pode-se inferir, comercialmente),
possuindo concentração de significados e hermetismo linguístico mais pronunciados, bem
como dicção poética e campo imagético mais transgressores. É possível sugerir ainda que
ambos os meios, tanto os poemas como as letras das cancões, apesar das diferenças citadas,
por vezes se confundem, se tangenciam e promovem um diálogo entre suas linguagens, o que
nos leva a considerar, na obra poética de Jim Morrison, a presença de coerência e unidade
estilística em muitos de seus aspectos e vertentes.
58
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-----------------------------. Leituras Intersemióticas: A Contribuição da Melopoética Para os
Estudos Culturais. In: Cadernos de Tradução, n. 7, UFMG.
-----------------------------. Perdida Entre Signos: Literatura, Artes e Mídias, hoje. Minas
Gerais: Gráfica e Editora Rona, 2012.
PINTO, Manuel da Costa. O Apocalipse Segundo Jim Morrison. Revista Cult, ano V, n. 48.
Jul/2001, p. 15-19.
RIMBAUD, Arthur. Arthur Rimbaud: Complete Works. New York: Harper Collins, 1976.
SANTOS, Marcel de Lima. Jim Morrison: o Poeta-Xamã. Belo Horizonte: Editora UFMG,
2013.
STEIL, Juliana & GAMA, Maria Elizabeth da Costa. Análise de Transitividade em “America
As Bullring Arena”, de Jim Morrison. Revista Letras, nº 68, p. 201-218. Editora
UFPR:
2006.
Disponível em:
<http://www.letras.ufpr.br/documentos/pdf_revistas/juliana.pdf>. Acesso em: 05 de agosto
de 2015.
SUGERMAN, Danny (1991) The Doors: The Complete Illustrated Lyrics. New York:
Hyperion, 2006.
TATIT, Luiz. Elementos para ánálise da canção polular. In Revista CASA (Cadernos de
Semiótica Aplicada), Vol. 1, nº 2, dezembro de 2003. Disponível em
<http://seer.fclar.unesp.br/casa/article/view/623/538>. Acesso em 02 de setembro de 2015.
THE DOORS: No One Here Gets Out Alive: The Doors’ Tribute to Jim Morrison. Direção:
Gordon Forbes. Produção: Richard Mann. Hollywood Heartbeat Productions, 1981. DVD.
THE DOORS (1991) Special Edition. Direção: Oliver Stone. Produção: Brian Grazer, Bill
Graham, Sasha Harari e A. Kitman Ho. 2002. DVD.
60
WHEN You Are Strange. Direção: Tom DiCillo. Narração: Johnny Depp. Eagle Rock
Entertainment, 2010. DVD.
*REFERÊNCIAS COMPLEMENTARES
CLASSIC Albuns: The Doors. Direção: Bob Smeaton. Eagle Rock Entertainment, 2008.
DVD.
DENSMORE, John (1990). The Doors - Riders On the Storm: My Life with Jim Morrison
and The Doors. Delta, 1991.
MANZAREK, Ray (1998). Light My Fire: My Life with The Doors. New York: Berkley
Boulevard, 1999.
61
ANEXOS
Anexo A – Not to Touch The Earth
Anexo B – An American Prayer
Anexo C – Twentieth Century Fox
Anexo D – Hello, I Love You
Anexo E – The End
Anexo F – When The Music is Over
Anexo G – The Soft Parade
Anexo H – Horse Latitudes
Anexo I – Moonlight Drive
Anexo J – Peace Frog
Anexo K – Blue Sunday
ANEXO A
Not to Touch The Earth
Not to touch the earth
Not to see the sun
Nothing left to do, but
Run, run, run
Let's run
House upon the hill
Moon is lying still
Shadows of the trees
Witnessing the wild breeze
C'mon baby run with me
Let's run
Run with me
Run with me
Run with me
Let's run
The mansion is warm, at the top of the hill
Rich are the rooms and the comforts there
Red are the arms of luxuriant chairs
And you won't know a thing till you get inside
Dead president's corpse in the driver's car
The engine runs on glue and tar
C'mon along, we're not going very far
To the East to meet the Czar
Some outlaws lived by the side of the lake
The minister's daughter's in love with the snake
Who lives in a well by the side of the road
Wake up, girl! We're almost home
62
Sun, sun, sun
Burn, burn, burn
Soon, soon, soon
Moon, moon, moon
I will get you soon… soon… soon!
Let the carnival bells ring
Let the serpent sing
Let everything
I am the Lizard King
I can do anything
(Do ábum Waitng for The Sun, 1968, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 85)
ANEXO B
An American Prayer
[I]
Do you know the warm progress
under the stars?
Do you know we exist?
Have you forgotten the keys
to the Kingdom?
Have you been borne yet
& are you alive?
Let's reinvent the gods, all the myths
of the ages
Celebrate symbols from deep elder forests
[Have you forgotten the lessons
of the ancient war]
We need great golden copulations
The fathers are cackling in trees of the forest
Our mother is dead in the sea
Do you know we are being led to
slaughters by placid admirals
& that fat slow generals are getting
obscene on young blood
Do you know we are ruled by T.V.
The moon is a dry blood beast
Guerilla bands are rolling numbers
in the next block of green vine
Amassing for warfare on innocent herdsmen
who are just dying
O great creator of being
grant us one more hour to
perform our art & perfect our lives
The moths & atheists are doubly divine
& dying
We live, we die
63
& death not ends it
Journey we more into the
Nightmare
Cling to life
our passion'd flower
Cling to cunts & cocks
of despair
We got our final vision
by clap
Columbus' groin got
filled w/ green death
(I touched her thigh
& death smiled)
We have assembled inside this ancient
& insane theatre
To propagate our lust for life
& flee the swarming wisdom of the streets
The barns are stormed
The windows kept
& only one of all the rest
To dance & save us
W/ the divine mockery
of words
Music inflames temperament
(When the true King's
murderers are allowed to roam free
a 1000 magicians arise
in the land)
Where are the feasts
we were promised
Where is the wine
The New Wine
(dying on the vine)
Resident mockery
give us an hour for magic
We of the purple glove
We of the starling flight
& velvet hour
We of arabic pleasure's breed
We of sundome & the night
Give us a creed
To believe
A night of Lust
Give us trust in
The Night
Give of color
Hundred hues
A rich Mandala
For me & you
& for your silky
pillowed house
A head, wisdom
& a bed
64
Troubled decree
Resident mockery
Has claimed thee
We used to believe
in the good old days
We still receive
In little ways
The Things of Kindness
& unsporting brow
Forget & allow
Did you know freedom exists
in a school book
Did you know madmen are
running our prison
W/in a jail, w/in a gaol,
w/in a white free protestant
Maelstrom
We're perched headlong
on the edge of boredom
We're reaching for death
on the end of a candle
We're trying for something
That's already found us
We can invent Kingdoms of our own
Grand purple thrones, those chairs of lust
& love we must, in beds of rust
Steel doors lock in prisoner's screams
& muzak, AM, rocks their dreams
No black men's pride to hoist the beams
While mocking angels sift what seems
To be a collage of magazine dust
Scratched on foreheads of walls of trust
This is just jail for those who must
Get up in the morning & fight for such
unusable standards
While weeping maidens
show-off penury & pout
ravings for a mad
staff
Wow, I'm sick of doubt
Live in the light of certain
South
Cruel bindings
The servants have the power
dog-men & their mean women
Pulling poor blankets over
our sailors
(& where were you in our lean hour
Milking your moustache?
Or grinding a flower?)
I'm sick of dour faces
Staring at me from the T.V.
Tower. I want roses in
65
my garden bower; dig?
Royal babies, rubies
must now replace aborted
Strangers in the mud
These mutants, blood-meal
For the plant that's plowed
They are waiting to take us into
the severed garden
Do you know how pale & wanton thrillful
comes death on strange hour
unannounced, unplanned for
like a scaring over-friendly guest you've
brought to bed
Death makes angels of us all
& gives us wings
where we had shoulders
smooth as raven's
claws
No more money, no more fancy dress
This other Kingdom seems by far the best
until its other jaw reveals incest
& loose obedience to a vegetable law
I will not go
Prefer a Feast of Friends
To the Giant family
(An American Prayer (parte I), 1970, in The Americam Night: The Writings of Jim Morrison, Volume 2,
1991, pgs. 3-10)
ANEXO C
Twentieth Century Fox
Well, she's fashionably lean
And she's fashionably late
She'll never rank a scene
She'll never break a date
But she's no drag
Just watch the way she walks
She's a twentieth century fox
She's a twentieth century fox
No tears, no fears
No ruined years
No clocks
She's a twentieth century fox
She's the queen of cool
And she's the lady who waits
Since her mind left school
It never hesitates
She won't waste time
On elementary talk
'Cause she's a twentieth century fox
She's a twentieth century fox
66
Got the world locked up
Inside a plastic box
She's a twentieth century fox
Twentieth century fox
(Do ábum The Doors, 1967, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 29)
ANEXO D
Hello, I love you
Hello, I love you
Won't you tell me your name?
Hello, I love you
Let me jump in your game
Hello, I love you
Won't you tell me your name?
Hello, I love you
Let me jump in your game
She's walkin’ down the street
Blind to ev’ry eye she meets
Do you think you'll be the guy
To make the queen of the angels sigh?
Hello, I love you
Won't you tell me your name?
Hello, I love you
Let me jump in your game
Hello, I love you
Won't you tell me your name?
Hello, I love you
Let me jump in your game
She holds her head so high
Like a statue in the sky
Her arms are wicked and her legs
are long
When she moves my brain screams
out this song
Sidewalk crouches at her feet
Like a dog that begs for
something sweet
Do you hope to make her see
you, fool?
Do you hope to pluck this dusky jewel?
Hello
I want you
I need you
Love
(Do ábum Waiting For The Sun, 1968, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 98)
67
ANEXO E
The End
This is the end, beautiful friend
This is the end, my only friend
The end of our elaborate plans
The end of ev’rything that stands
The end
No safety or surprise
The end
I'll never look into your eyes again
Can you picture what will be
So limitless and free
Desperately in need, of some
stranger's hand
In a desperate land
Lost in a Roman wilderness of pain
And all the children are insane
All the children are insane
Waiting for the summer rain
There's danger on the edge of town
Ride the King's highway
Weird scenes inside the gold mine
Ride the highway West, baby
Ride the snake
Ride the snake
To the lake
To the lake
The ancient lake, baby
The snake is long
Seven miles
Ride the snake
He's old
And his skin is cold
The West is the best
The West is the best
Get here and we'll do the rest
The blue bus is calling us
The blue bus is callin' us
Driver, where you taken us?
The killer awoke before dawn
He put his boots on
He took a face from the
ancient gallery
And he walked on down the hall
He went into the room where his
sister lived
And then he paid a visit to his brother
And then he he walked on down the hall
And he came to a door
68
And he looked inside
Father?
Yes son?
I want to kill you
Mother, I want to...
Come on, baby, take a chance with us
Come on, baby, take a chance with us
Come on, baby, take a chance with us
And meet me at the back of the blue bus
This is the end, beautiful friend
This is the end, my only friend
The end
It hurts to set you free
But you'll never follow me
The end of laughter and soft lies
The end of nights we tried to die
This is the end
(Do ábum The Doors, 1967, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 36)
ANEXO F
When the music's over
When the music's over
When the music's over here
When the music's over
Turn out the lights
Turn out the lights
Turn out the lights
When the music's over
When the music's over
When the music's over
Turn out the lights
Turn out the lights
Turn out the lights
For the music is your special friend
Dance on fire as it intends
Music is your only friend
Until the end
Until the end
Until the end
Cancel my subscription to
the resurrection
Send my credentials to the house
of detention
I got some friends inside
The face in the mirror won't stop
The girl in the window won't drop
A feast of friendscalive she cried
Waiting for me outside
69
Before I sink, into the big sleep
I want to hear
I want to hear
The scream of the butterfly
Come back, baby
Back into my arm
We're getting tired of hangin' around
Waiting around
With our heads to the ground
I hear a very gentle sound
Very near
Yet very far
Very soft
Yet very clear
Come today
Come today
What have they done to the earth?
What have they done to our fair sister?
Ravaged and plundered
And ripped her
And bit her
Stuck her with knives
In the side of the dawn
And tied her with fences
And dragged her down
I hear a very gentle sound
With your ear down to the ground
We want the world and we want it,
We want the world and we want it, now
Now? NOW!
Persian night! Babe
See the light!Babe
Save us!
Jesus!
Save us!
So when the music's over
When the music's over, yeah
When the music's over
Turn out the light
Turn out the light
For the music is your special friend
Dance on fire as it intends
Music is your only friend
Until the end
Until the end
Until the end
(Do álbum Stange Days, 1967, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 80)
70
ANEXO G
The Soft Parade
When I was back there in
seminary school,
There was a person there
Who put forth the proposition,
That you can petition the Lord
with prayer
Petition the lord with prayer,
Petition the lord with prayer
You cannot petition the lord
with prayer!
Can you give me sanctuary
I must find a place to hide
A place for me to hide
Can you find me soft asylum
I can't make it anymore,
The Man is at the door
Peppermint, miniskirts
chocolate candy,
Champion sax and a girl named Sandy
There's only four ways to get unraveled,
One is to sleep and the other is travel
One is a bandit up in the hills
One is to love your neighbor till
His wife gets home
Catacombs, nursery bones
Winter women growing stones
(Carrying babies to the river)
Streets and shoes, avenues
Leather riders selling news
(The monk bought lunch)
Successful hills are here to stay,
Everything must be this way
Gentle streets where people play
Welcome to the soft parade
All our lives we sweat and save
Building for a shallow grave
Must be something else we say
Somehow to defend this place
(Everything must be this way
Everything must be this way)
The soft parade has now begun
Listen to the engines hum
People out to have some fun
A cobra on my left
Leopard on my right
71
The deer woman in a silk dress
Girls with beads around their necks
Kiss the hunter of the green vest
Who has wrestled before
With lions in the night
Out of sight
The lights are getting brighter
The radio is moaning
Calling to the dogs
There are still a few animals
Left out in the yard
But it's getting harder
To describe
Sailors
To the underfed
Tropic corridor
Tropic treasure
What got us this far
To this mild equator
We need someone or something new
Something else to get us through
Callin' on the dogs
Callin' on the dogs
Callin' on the dogs
Callin' in the dogs,
Callin' all the dogs
Callin' on the gods
Meet me at the crossroads
Meet me at the edge of town
Outskirts of the city
Just you and I
And the evening sky
You’d better come alone
You’d better bring your gun
We’re gonna have some fun
When all else fails,
We can whip the horses’ eyes
And make them sleep
And cry…
(Do álbum Soft Parade, 1969, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 122)
ANEXO H
Horse Latitudes
When the still sea conspires an armor
And her sullen and aborted
Currents breed tiny monsters
True sailing is dead
Awkward instant
72
And the first animal is jettisoned
Legs furiously pumping
Their stiff green gallop
And heads bob up
Poise
Delicate
Pause
Consent
In mute nostril agony
Carefully refined
And sealed over
(Do álbum Strange Days, 1967, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 75)
ANEXO I
Moonlight Drive
Let's swim to the moon
Let's climb through the tide.
Penetrate the evening that the city
sleeps to hide
Let's swim out tonight love,
it's our time to try.
Park besides the ocean,
on our moonlight drive.
Let's swim to the moon,
let's climb through the tide.
Surrender to the waking world,
that laps against our side
Nothing left open and no time to decide.
We'll stop into a river on our moonlight drive.
Let's swim to the moon.
Let's climb through the tide.
You'll reach your hand to hold me,
but I can't be your guide.
It's easy to love you as I watch you glide.
We're falling through wet forests on our moonlight drive.
moonlight drive.
Come on baby, gonna take a little ride.
Come on. Down by the ocean side.
Get real close, get real tight.
(Do ábum Strange, 1967, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 76)
ANEXO J
Peace Frog
There's blood in the streets it's up to my ankles
There's blood on the streets it's up to my knee
Blood on the streets in the town of Chicago
73
Blood on the rise, it's following me
She came…
Just about the break of day
She came, then she drove away
Sunlight in her hair
Blood in the streets runs a river of sadness
Blood in the streets, it's up to my thigh
The river runs down the legs of the city
The women are crying red rivers of weeping
She came into town and then she drove away
Sunlight in her hair
Indians scattered on dawn's highway bleeding
Ghosts crowd the young child's fragile egg-shell mind
Blood in the streets in the town of New Haven
Blood stains the roofs and the palm trees of Venice
Blood in my love in the terrible summer
Bloody red sun of phantastic L.A.
Blood screams the pain as they chop off her fingers
Blood will be born in the birth of a nation
Blood is the rose of mysterious union
There's blood in the streets,it's up to my ankles
Blood in the streets it's up to my knee
Blood in the streets in the town of Chicago
Blood on the rise, it's following me
(Do ábum Morrison Hotel, 1970, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 134)
ANEXO K
Blue Sunday
I found my own true love
Was on a blue Sunday
She looked at me and told me
I was the only one in the world.
Now I have found my girl
My girl awaits for me in tender time.
My girl is mine
She is the world
She is my girl
My girl awaits for me in tender time
My girl is mine
She is the world
She is my girl
(Do ábum Morrison Hotel, 1970, in The Doors: Complete Illustrated Lyrics, 2006, p. 135)

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