A influência multimodal dos textos digitais na construção

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A influência multimodal dos textos digitais na construção
A influência multimodal dos textos digitais na construção de sentido a
partir da interação metafórica e metonímica
Natália Elvira Sperandio
Universidade Federal de Minas Gerais
RESUMO: Temos presenciado, durante os últimos anos, um crescente interesse em se abordar
metáfora e metonímia não como processos independentes, mas como processos que se interagem
na construção de sentido. No entanto, os estudos dedicados a essa interação voltam-se
exclusivamente para o plano verbal, deixando de lado todos os outros níveis semióticos que
constituem os denominados discursos multimodais. Diante disso, o presente trabalho possui a
finalidade de analisar a forma pela qual os diferentes modos semióticos, que constituem os
denominados discursos multimodais, influenciam a interação entre esses processos. Para isso,
articularemos a proposta da multimodalidade, desenvolvida por Kress e Van Leeuwen
(1996/2001); e a Linguística Cognitiva, em específico, os trabalhos de Barcelona (2003) e
Goossens (2003). Além dessas abordagens também utilizaremos os estudos desenvolvidos sobre
essa interação por Paiva e Milton (2010). Optamos em abordar a influência dos diferentes modos
semióticos na construção de sentido de um texto digital a partir da interação metafórica e
metonímica pelo fato de que os autores, considerados precursores deste estudo, abordam essa
interação apenas em um dos modos que compõem o discurso multimodal: o verbal. Porém,
partimos do princípio de que essa interação se faça presente nos e entre os diferentes modos que
constituem os discursos multimodais. Como forma de trabalharmos essa interação utilizaremos
como corpus um texto digital: as charges animadas. Nossa escolha decorre do fato de que com o
advento das novas tecnologias, em especial a internet, o gênero charge ganhou outras
proporções, como as cores, som e animação, fazendo com que esses novos elementos entrem na
composição de seu sentido. Analisaremos a charge intitulada “O ogro e o burro” produzida pelo
chargista Mauricio Ricardo, nessa focalizaremos, em especial, a interação entre os níveis
imagético, sonoro e verbal. Como resultado observamos que os domínios fonte e alvo das
metáforas analisadas são construídos a partir da articulação de diferentes modos, a saber o
verbal, sonoro e imagético. Assim, com base em Forceville (2009) podemos implicar que essas
metáforas são denominadas de não-verbal, já que há a sobreposição de mais de um modo na
construção de seus domínios fonte e alvo. Em relação à interação metafórica e metonímica,
observamos que as três metáforas acima são motivadas pela metonímia PARTE PELO TODO,
pois é a partir de algumas PARTES que somos capazes de ativarmos TODO o dominio fonte ou
alvo que as constituem. Acreditamos que os estudos dedicados a essa interação encontram-se no
início de uma longa caminhada, já que ainda são necessários estudos mais aprofundados nessa
área, principalmente aqueles que se dediquem a essa interação entre os diferentes modos que
constituem um determinado texto, já que, como advoga Kress (2000) é impossível
compreendermos os textos, até mesmo suas partes linguísticas, sem ter uma ideia clara de como
esses e outros elementos contribuem para o seu significado. Dessa forma, a interação metafórica
e metonímica pode ser considerada uma forma de se analisar o texto multimodal, já que a partir
dela podemos observar que a imagem não apenas completa o verbal, mas ela está conectada com
o verbal na construção do sentido.
PALAVRAS-CHAVE: multimodalidade; metáfora; metonímia.
1.Introdução
Estamos perante, cada vez mais, de textos que utilizam em sua composição diferentes
modos semióticos, como por exemplo, a imagem, o som, as cores; ou seja, abarcam em sua
construção todos os elementos proporcionados pelo advento das novas tecnologias. Como
afirmam Kress e Van Leeuwen (1996) as duas últimas décadas presenciaram uma mudança
bastante abrangente na mídia e nos modos de comunicação. Um exemplo dessa mudança pode
ser verificado nos periódicos da década de 60 que eram impressos em preto e branco, cobertos
de caracteres escritos, porém a partir da década de 90 eles passam a obter cores, imagens e em
muitos deles, principalmente no ocidente, os caracteres praticamente desapareceram de suas
páginas. Mas é necessário a ressalva de que, como os autores argumentam, a comunicação
sempre foi multimodal, e o que está acontecendo, atualmente, apesar de não ser novo, é uma
mudança significativa, já que hoje parece haver uma instância de um novo código de texto e
imagem, em que a informação é transmitida pelos dois modos.
Diante desse contexto multimodal temos como objetivo neste trabalho analisar a forma
pela qual esses diferentes modos semióticos atuam na construção de sentido de um texto
digital, ou seja, de que forma esses diferentes modos podem se articular na construção de um
determinado texto e em consequência em seu sentido. Para isso, articularemos duas propostas
de estudos: a teoria da multimodalidade, com a proposta de Kress e Van Leeuwen
(1996/2001); e a linguística cognitiva, em específico, uma abordagem nova que une dois
processos que até poucos anos atrás eram vistos como independentes um do outro: a interação
metafórica e metonímica, com os trabalhos de Goossens (2003), Radden (2003) e Barcelona
(2003). Além dessas abordagens também utilizaremos os estudos desenvolvidos sobre essa
interação por Paiva e Milton (2010).
Nosso interesse em abordar a influência dos diferentes modos semióticos na
construção de sentido de um texto digital a partir da interação metafórica e metonímica
decorre do fato de que os autores, considerados precursores deste estudo, abordam essa
interação apenas em um dos modos que compõem o discurso multimodal: o verbal. No
entanto, acreditamos que, como advogam Paiva e Milton (2010), essa interação não ocorre
apenas no modo verbal, mas nos e entre os diferentes níveis presentes na construção desse
discurso. Como forma de trabalharmos essa interação utilizaremos como corpus um texto
digital: as charges animadas. Nossa escolha decorre do fato de que com o advento das novas
tecnologias, em especial a internet, o gênero charge ganhou outras proporções, como as cores,
som e animação, fazendo com que esses novos elementos entrem na composição de seu
sentido. Analisaremos a charge intitulada “O ogro e o burro” produzida pelo chargista
Mauricio Ricardo, nessa focalizaremos, em especial, a interação entre os níveis imagético,
sonoro e verbal.
Nosso trabalho insere-se no paradigma qualitativo, já que nossa metodologia constituíse de levantamento bibliográfico, recorte e análise do corpus supracitado a partir do
referencial teórico apresentado. Como resultado verificamos que o sentido produzido é fruto
de metáforas que são motivadas por metonímias sendo que essas não se limitam apenas ao
verbal, mas também aos modos sonoros e imagéticos que compõem a charge acima citada,
assim temos na criação do sentido dessa charge a interação entre e nos diferentes modos que a
constituem. Acreditamos que, com o advento das novas tecnologias e com os novos
elementos por ela proporcionados, a multimodalidade tem influenciado cada vez mais a
construção dos discursos que estão ao nosso redor, como também as diversas áreas de estudos
que tem mudado o foco sobre o texto exclusivamente verbal para discursos onde a linguagem
é apenas um dos modos comunicativos. Por isso, podemos implicar que não poderia ser
diferente com os estudos propostos sobre a interação metafórica e metonímica, já que, como
nossa análise demonstrou, essa interação vai além do verbal.
Nosso trabalho será dividido em cinco seções, sendo quatro teóricas e uma analítica.
Começamos nossa seção teórica fazendo uma sucinta apresentação da teoria da
multimodalidade, seguimos com a teoria da metáfora conceptual e multimodal; passamos
pelas teorias que abordam o processo metonímico e fechamos com a proposta da interação
metafórica e metonímica. Em nossa última seção apresentamos a análise de nosso corpus a
partir das teorias apresentadas.
2. A proposta da Multimodalidade
Começamos nosso trabalho fazendo uma breve introdução sobre a teoria da
multimodalidade, essa teoria foi postulada por Kress e Van Leeuwen em 2001. A partir da
teoria da multimodalidade são desenvolvidos conceitos multimodais que podem ser utilizados
em análises de textos que são produzidos a partir de diversos modos de linguagem, sem que
para isso se pense separadamente em cada um deles. Ao contrário, os autores reivindicam que
se pense em uma linguagem constituída como multimodal, onde os sentidos sejam resultado
da relação textual estabelecida a partir dos diferentes modos utilizados na sua constituição.
Os autores utilizam uma abordagem linguística sócio-interacionista. Kress e Van
Leeuwen (1996) baseiam-se em uma ideia de prática e ancoram-se na noção de uso de uma
variedade de recursos semióticos utilizados na produção do signo em contextos sociais
concretos. Sendo esses signos baseados em significantes como cores, perspectivas e linhas;
que são utilizados na representação material dos significados. Para os autores, diferente do
que propõe a semiologia tradicional que concebia os signos a partir de uma dupla articulação
entre o significante (imagem acústica, as formas) e o significado (sentidos), essa articulação
não basta para que sua constituição seja satisfatoriamente entendida. Dessa forma, os autores
advogam que os signos seriam uma conjunção motivada de significantes (formas) e
significados (sentidos), relacionada ao ato composicional, ou seja, não existiria uma relação
intrínseca entre ambos. Sendo essa relação não arbitrária, mas socialmente condicionada e
mediada. Para além da articulação entre forma e significado, os autores propõem que a
linguagem se constitua a partir de múltiplas articulações entre diversos estratos.
Kress e Van Leeuwen (2001) têm argumentado que na era das tecnologias e na cultura
ocidental os textos estão cada vez mais multimodais, sendo esse momento denominado pelos
autores de New Writing. Nessa perspectiva os autores advogam que diversos modos
semióticos são articulados ao mesmo tempo no processo de elaboração, conferindo-lhes
significados específicos. De acordo com os autores, a paisagem semiótica da comunicação
tem sofrido grandes transformações e essas transformações têm afetado as formas e as
características dos textos que estão cada vez mais multimodais, com a coexistência de
diferentes níveis semióticos, como, por exemplo, o visual, sonoro, gestual, etc.
Podemos observar que, em todas as esferas da vida social, houve uma crescente
utilização de textos multimodais na produção de significados. De acordo com Kress e Van
Leeuwen (1996) as duas últimas décadas presenciaram uma mudança bastante abrangente na
mídia e nos modos de comunicação. Um exemplo dessa mudança pode ser verificado nos
periódicos da década de 60 que eram impressos em preto e branco, cobertos de caracteres
escritos; porém a partir da década de 90 eles passam a obter cores, imagens e em muitos
deles, principalmente no ocidente, os caracteres praticamente desapareceram de suas páginas.
Mas os autores argumentam que a comunicação sempre foi multimodal e o que está
acontecendo, atualmente, apesar de não ser novo é uma mudança significativa, já que hoje
parece haver uma instância de um novo código de texto e imagem, em que a informação é
transmitida pelos dois modos. Assim, os elementos verbais e não-verbais de um texto
articulam-se na composição de seu sentido, sendo que o elemento visual não é visto como
sendo dependente do verbal, mas com uma organização e estrutura independente.
Esse contexto multimodal tem influenciado diversas áreas de estudos que têm mudado
o foco sobre o texto exclusivamente verbal para discursos onde a linguagem é apenas um dos
modos comunicativos. Seguindo essa linha de raciocínio, podemos considerar que não
poderia ser diferente com os estudos propostos sobre a interação metafórica e metonímica,
diante disso, faremos abaixo a apresentação da teoria da metáfora conceptual em conjunto
com a teoria da metáfora multimodal.
3. O processo metafórico: da teoria conceptual a multimodal
Desde a antiguidade a metáfora tem oferecido subsídios, a filósofos e especialistas em
retórica, para uma reflexão sobre a linguagem. Na tradição retórica a metáfora era considerada
um fenômeno de linguagem, ou seja, um ornamento linguístico. Era concebida como um
desvio da linguagem usual, própria de determinados usos, como a linguagem poética e a
persuasiva.
Mas a partir de 1970 uma mudança paradigmática, com uma ruptura profunda do
pressuposto objetivista, possibilitou uma reformulação em nossa maneira de conceber a
objetividade, a verdade, o sentido e a metáfora. A metáfora, dentro do novo paradigma, passa
a ter seu valor cognitivo reconhecido, deixando de ser uma simples figura de retórica para
uma operação cognitiva fundamental.
Reddy (1979), por meio de uma análise rigorosa de diversos enunciados, procurou
investigar a questão do problema da comunicação na língua inglesa. A metáfora do canal,
proposta por ele, revela que a linguagem é concebida como um “canal” que transfere,
corporeamente, os pensamentos de uma pessoa para outra, como se as pessoas inserissem seus
pensamentos e sentimentos nas palavras e essas fossem conduzidas de uma pessoa para outra
e que, ao ouvir ou ler, extraem esses pensamentos e sentimentos novamente. A metáfora do
canal está na base da concepção da linguagem como transmissão, em que se fundamenta a
crença de que a comunicação é concebida como um “tête-à-tête” ideal.
Seguindo os passos de Reddy, Lakoff e Johnson (1980) lançam “Metaphors we live
by” que produz uma revolução nos estudos sobre metáfora por assumir como tese central a
pressuposição de que a metáfora é onipresente e essencial na linguagem e no pensamento. Os
autores trabalharam, de forma mais explícita, a metáfora do canal proposta por Reddy e
propuseram as metáforas conceituais subjacentes às expressões linguísticas.
A metáfora passa a fazer parte do cotidiano das pessoas não apenas na linguagem, mas
também nas ações e no pensamento na medida em que todo sistema conceitual ordinário,
sistema através do qual pensamos e agimos, passa a ser concebido como predominantemente
metafórico por natureza.
Como, na maioria das vezes, pensamos e agimos automaticamente, uma das formas de
descobrirmos o funcionamento desse sistema é através da linguagem, já que nossa
comunicação é baseada no mesmo sistema que utilizamos para pensar e agir. A partir desse
pressuposto, Lakoff e Johnson examinam expressões linguísticas buscando encontrar
evidências da predominância metafórica de nosso sistema conceitual e, ao identificar
metáforas que estruturam nossa maneira de agir, pensar e perceber; defendem essa categoria
como uma forma de compreender e experienciar uma coisa em termos de outra.
Porém, devemos destacar que mesmo com a afirmação de que a metáfora é
onipresente na vida das pessoas não apenas em sua linguagem, mas no pensamento e nas
ações, o que verificamos nos estudos propostos sobre a metáfora é que há um grande número
de pesquisas que se voltam para as metáforas conceituais produzidas pelo modo verbal,
deixando os outros modos à margem. Acreditamos que uma teoria da metáfora não pode
basear-se apenas nas manifestações verbais, isso poderia resultar em uma visão parcial do que
a constitui, ainda mais nos contextos atuais onde, a partir dos estudos de Kress e Van
Leeuwen (1996), a dimensão multimodal dos sistemas semióticos tem impulsionado a
interpretação dos elementos constitutivos de um texto em direção à complexidade das
articulações entre verbal e o não-verbal. Diante disso, necessitamos de uma proposta que
aborde as metáforas que são construídas não apenas pelo modo verbal, mas aquelas que são
construídas entre os diferentes modos que constituem um texto multimodal. Essa proposta é
encontrada nos trabalhos de Forceville sobre metáfora multimodal.
3.1. A proposta da metáfora multimodal
Charles Forceville (2009) recorre a Teoria da Metáfora Conceitual, acima exposta,
para desenvolver sua proposta de metáfora multimodal. Para o autor a conceitualização de
Lakoff e Johnson (1980) de que a metáfora consiste na compreensão e experiência de um tipo
de coisa em outra evita a utilização das palavras verbal e linguística, mas essa teoria, de
acordo com Forceville, reivindica a existência de metáforas conceituais detectáveis
exclusivamente na forma verbal. Segundo o autor, isso poderia nos levar a duas questões
perigosas: 1) podemos ter o risco de um círculo vicioso, ou seja, a pesquisa desenvolvida pela
Linguística Cognitiva sofre de um raciocínio circular, iniciando-se com uma análise da
linguagem que infere algo sobre a mente e o corpo, os quais em retorno motivam diferentes
aspectos da estrutura linguística e do comportamento; 2) a concentração exclusiva ou
predominante sobre as manifestações verbais da metáfora corre o risco de cegar os
pesquisadores dos aspectos da metáfora que ocorrem apenas em representações não-verbais e
multimodais.
Diante dessa deficiência o autor nos propõe a metáfora multimodal. Faremos abaixo a
sua apresentação e sua distinção das consideradas metáforas monomodais.
3.2. A metáfora monomodal e multimodal
Antes de distinguirmos a metáfora monomodal da multimodal devemos primeiro
expor o que será entendido por modo nessa teoria. De acordo com Forceville (2009) não é
uma tarefa fácil, já que o modo é um complexo de vários fatores. A primeira aproximação a
ser feita é de considerá-lo um sistema de signo interpretável por causa de um processo de
percepção específico. A aceitação dessa abordagem relacionaria os modos um a um aos cinco
sentidos, fazendo com que tivéssemos a seguinte lista: 1) o modo pictórico ou visual, 2) o
modo sonoro, 3) o modo olfativo, 4) o modo gustativo e 5) o modo tátil. No entanto, o autor
advoga que seria uma categorização bruta, já que, por exemplo, o modo sonoro agruparia a
língua falada, música e outros sons não-verbais. Diante disso, ele propõe uma lista com nove
tipos de modo: 1) signo pictórico, 2) signo escrito, 3) signo falado, 4) gestos, 5) sons, 6)
música, 7) cheiro, 8) gosto e 9) toque.
Agora podemos seguir com a definição das metáforas multimodal e monomodal, já
que essas envolvem a utilização de um ou mais modos acima expostos. A metáfora
monomodal é definida como aquela que alvo e fonte são exclusivamente ou
predominantemente processados em apenas um modo. Por outro lado, a metáfora multimodal
é aquela em que alvo e fonte são representados exclusivamente ou predominantemente sobre
diferentes modos. De acordo com Forceville (2009) a qualificação “exclusivamente ou
predominantemente” é necessária, porque as metáforas não-verbais frequentemente possuem
fontes e/ou alvos que são construídos sobre mais de um modo simultaneamente.
4. O processo metonímico: da perspectiva clássica à cognitiva
Diferente do processo metafórico, que esteve no centro dos estudos dedicados à
produção de sentido, o processo metonímico esteve à margem, sofrendo de um duplo
reducionismo que, de acordo com Al-Sharafi (2004), se faz presente no nível teórico, já que
sua natureza é reduzida a mera substituição, negligenciando suas dimensões cognitivas e
pragmáticas; e o prático, que a reduz ao nível da substituição lexical, negligenciando seu
potencial ao nível do texto.
Jakobson (2003) também advoga que “nada comparável à rica literatura sobre metáfora
pode ser citado para a teoria da metonímia” (JAKOBSON, 2003, p.47). De acordo com Paiva
(2010) essa citação ainda continua verdadeira, mesmo transcorrido meio século.
No entanto, mesmo ainda tendo um grande interesse voltado para o estudo da metáfora,
podemos observar no campo da Linguística Cognitiva um aumento significativo de trabalhos
dedicados à metonímia. Para Lakoff e Johnson (1980) tanto metáfora quanto metonímia são
processos cognitivos, sendo que a diferença entre esses dois processos estaria no número de
domínios, já que na metáfora teríamos a presença de dois domínios distintos, enquanto que a
metonímia trabalha com apenas um único domínio.
Outro autor que vem se dedicando ao estudo metonímico é Croft (2003). De acordo com
este autor a metáfora é definida como o mapeamento entre dois domínios que não fazem parte
da mesma matriz e a metonímia, por outro lado, seria o mapeamento ocorrido em um único
domínio matriz.
Prosseguindo com esta linha de raciocínio temos Radden e Kövecses (1999) que
propõem um estudo conceptual da metonímia como processo cognitivo. De acordo com os
autores a metonímia é um fenômeno conceptual, um processo cognitivo que opera em um
modelo cognitivo idealizado. Como fenômeno conceptual eles advogam que a metonímia não
pode ser considerada apenas como substituição do nome de uma coisa por outra, mas um
fenômeno conceptual, que como a metáfora, faz parte de nossa forma diária de pensamento,
fundamentada em nossa experiência, estruturando nossos pensamentos e ações.
Como processo cognitivo os autores propõem que, diferente de algumas propostas em
que a metonímia é vista em uma relação de substituição refletida na notação X representa Y, a
metonímia não pode ser considerada apenas como uma entidade sendo substituída por outra,
mas como uma inter-relação que produz um novo significado, sendo esse complexo. Sendo
assim, a notação, segundo eles, poderia ser X mais Y. Tomando como base a proposta de
Langacker (1993) que aborda a metonímia como ponto de referência, os autores desenvolvem
seu conceito de metonímia, sendo essa um fenômeno cognitivo no qual a entidade conceptual,
o veículo, promove acesso mental a outra entidade conceptual, o alvo, em um mesmo modelo
cognitivo idealizado (MCI).
Todos os autores, acima expostos, na seção sobre processos metafóricos e
metonímicos abordam esses processos como sendo conceitualmente independentes. No
entanto, alguns estudos têm demonstrado que metáfora e metonímia se inter-relacionam na
construção de sentidos. A partir disso, a próxima seção será dedicada à interação entre esses
processos.
5. A interação metafórica e metonímica
Estudos contemporâneos, em Linguística Cognitiva, já firmam o postulado de que metáfora e
metonímia não são conceitualmente independentes, mas mecanismos que interagem entre si. Esta
questão foi sistematizada por Goossens (2003) e retomada por Barcelona (2003). Goossens
(2003) encontra evidências dessa interação, a qual passa a ser denominada pelo autor, a partir de
um neologismo, como metafonímia.1 Ele parte do pressuposto de que existem domínios
conceituais complexos construídos a partir da combinação de outros domínios, os quais podem
ser complexos ou básicos. Assume, nesse sentido, que as fronteiras estabelecidas entre os
domínios conceituais são quase sempre fluídas, motivo pelo qual pode haver a interpenetração
entre metáfora e metonímia, chegando assim à conclusão de que processos cognitivos, que eram
considerados a princípio distintos, podem aparecer de forma integrada em expressões da
linguagem natural cotidiana.
Segundo o autor podemos classificar a metafonímia a partir de dois tipos básicos:
- Metafonímia integrada, metonímia dentro de metáfora e metáfora dentro de metonímia.
- Metafonímia cumulativa, metáfora a partir da metonímia e metonímia a partir de uma
metáfora.
1
Tradução feita de acordo com Paiva (2010).
O autor advoga que a interação cumulativa da metáfora a partir de uma metonímia é que
“subjacente à metáfora, há o entendimento de que os domínios fonte e alvo podem ser unidos
de forma natural e simultânea numa única cena complexa, situação típica da formação da
metonímia” (GOOSSENS, 2003, p.366). Em relação à interação cumulativa da metonímia a
partir de uma metáfora, o autor argumenta que é mais difícil de ser concebida e possui
ocorrência rara, tanto é que ele não a insere em suas análises.
No caso das metafonímias integradas, podem ocorrer ou a partir da metonímia dentro da
metáfora, ou da metáfora dentro da metonímia. O primeiro tipo, defende o autor, pode ser
considerado a formação típica de uma metáfora (processo envolvendo o mapeamento entre
dois domínios discretos, A e B), mas que possui embutido uma metonímia. O segundo tipo,
metáfora dentro da metonímia, possui uma rara ocorrência, para o autor isso ocorre pelo fato
de que a inserção de uma metáfora na metonímia tende a provocar uma metaforização da
expressão como um todo.
Outro autor que tem se dedicado aos estudos da interação entre metáfora e metonímia é
Barcelona (2003). O autor propõe a existência de dois tipos de interação: uma concentrada no
nível puramente conceitual e outra que se realiza pela coinstanciação textual da metáfora e
metonímia na mesma expressão linguística. No nível conceitual ele nos apresenta dois tipos de
interação:
- motivação metonímica da metáfora
- motivação metafórica da metonímia.
O autor afirma que esse primeiro tipo pode ser considerado como problemático para a teoria
da metáfora, já que passa a ser possível a comprovação de que um número considerável de
metáforas possui base metonímica. O segundo tipo de interação, proposto pelo autor, a
coinstanciação textual da metáfora e da metonímia no interior de uma mesma expressão
linguística, é definido a partir da ocorrência da metonímia em expressões linguísticas sem
nenhuma dependência de um dado mapeamento metafórico, mesmo com a coocorrência de um
mapeamento metafórico em alguma outra expressão.
Outro autor que tem se dedicado ao estudo da interação entre metáfora e metonímia é
Radden (2003). O autor compreende os conceitos de metáfora e metonímia sobre a forma de um
continuum e assume a existência de casos difusos, como, por exemplo, as metáforas baseadas em
metonímias. Radden (2003) formula sua tese de que as noções de literal, metonímico e
metafórico sejam consideradas como estando localizadas em um continuum. A partir disso, o
autor focaliza seu trabalho nesse continuum, segundo ele, há a transformação da metonímia
gradativamente em metáfora. Mas da mesma forma que os autores acima apresentados, Radden
focaliza seus estudos apenas no plano verbal.
Outros autores que têm se dedicado aos estudos metonímicos é Paiva e Milton (2010). Os
pesquisadores estão de acordo com os autores acima expostos ao afirmar que o processo
metonímico é parte integrante do processo metafórico, inserido em uma rede complexa de
processamento de sentidos. Assim, os autores argumentam que em todo processamento
metafórico haverá um processamento metonímico, já que quando há a integração conceitual
entre os domínios, não há, no mapeamento metafórico, a integração total entre os elementos do
domínio fonte com o domínio alvo, mas dos elementos que são mapeados no interior de cada
domínio.
Após a apresentação de nosso arcabouço teórico passaremos para a seção dedicada a nossa
análise.
6. Análise
Nosso corpus é composto pela charge intitulada “O ogro e o Burro” que foi produzida no
ano de 2010, especificamente no mês de julho. Essa charge retrata um episódio no qual há um
diálogo entre o ex-presidente da CBF, Ricardo Teixeira, e os antigos técnicos da seleção
brasileira e argentina, respectivamente Dunga e Maradona. Como forma de retratar esse episódio
o autor da charge, Maurício Ricardo, recorre ao domínio de um filme infantil, neste caso ao filme
Shrek. Assim, tendo como base teórica a teoria da metáfora conceptual de Lakoff e Johnson
(1980), podemos considerar que estamos diante de uma metáfora, já que há a utilização de um
domínio fonte, o filme, na conceitualização de um domínio alvo, o futebol. Abaixo apresentamos
a charge a ser analisada:
Podemos observar claramente, a partir da charge acima, que há a utilização de um
filme na construção de uma cena que possui como tema a seleção brasileira e sua derrota na
copa de 2010. Dessa forma, temos o domínio do futebol, que é ativado a partir de elementos
presentes tanto no nível verbal quanto no imagético, e o domínio do filme Shrek, que também
vai além do verbal com elementos construídos a partir do imagético. A partir disso, podemos
construir as metáforas abaixo:
RICARDO TEXEIRA É SHREK, nessa metáfora temos como dominio fonte,
SHREK, sendo esse construído a partir da articulação do sonoro (voz que se assemelha a do
personagem), do imagético (com a imagem do ogro) e o verbal (com as palavras ogro,
pântano e floresta). Por outro lado, o dominio alvo, RICARDO TEXEIRA, é construído pela
articulação dos modos verbal (com as palavras CBF, presidente, confederação bolera, seleção)
e o imagético (com o cabelo branco que nos remete ao ex-presidente da CBF). Tendo como
base Paiva e Milton (2010), partimos do pressuposto de que a metáfora acima é motivada pelo
processo metonímico, nesse caso pela metonímia PARTE PELO TODO, já que é a partir da
PARTE, como o cabelo branco, que somos capazes de ativarmos TODO o dominio Ricardo
Texeira, ou é a partir de um elemento, como a voz que ativamos TODO o dominio Shrek.
Dessa forma, podemos considerar que estamos diante da interação denominada por Goossens
(2003) como metafonímia integrada e por Barcelona (2003) como motivação metonímica da
metáfora, já que a construção da metáfora não-verbal RICARDO TEXEIRA É SHREK só é
possível por causa das metonímias PARTE PELO TODO que está embutida em seus
domínios fonte e alvo, motivando assim a criação dessa metáfora.
Outra metáfora é DUNGA É O BURRO, nessa metáfora temos o dominio fonte,
BURRO, construído pela articulação do sonoro (voz semelhante a do personagem), imagético
(imagem do burro) e pelo verbal (com as palavras burro, floresta e pântano). Por outro lado,
temos o dominio alvo sendo construído pelo verbal (seleção, Tchê, queimado com a imprensa,
concentração) e o imagético (com as imagens do cabelo espetado, apito e casaco da seleção).
Essa metáfora também é motivada pela metonímia PARTE PELO TODO, já que é a partir de
elementos como apito, cabelo espetado que ativamos TODO o dominio Dunga e é a partir de
um elemento, como a voz, ativamos TODO o dominio Burro. Mais uma vez temos a interação
denominada por Barcelona (2003) de motivação metonímica da metáfora e por Goossens
(2003) de metafonímia integrada.
Por último, temos a metáfora MARADONA É O GATO, essa, como as acima
apresentadas, também resulta da articulação entre diferentes modos em seus domínios fonte e
alvo. Assim, temos o dominio fonte, GATO, construído pela articulação do imagético
(imagem do gato) e sonoro (voz semelhante a do personagem) e o dominio alvo,
MARADONA, construído pelo imagético (com as imagens do terço na mão, cabelo e barba) e
o verbal (palavras como rivalidade, hermanos, técnico). Essa metáfora também possui em sua
base a metonímia PARTE PELO TODO, já que é a partir das PARTES como cabelo e barba,
presentes no imagético, que somos capazes de ativarmos o TODO MARADONA presente em
seu dominio alvo. Mais uma vez temos a interação desenvolvida por Barcelona (2003) como
motivação metonímica da metáfora e por Goossens (2003) como metafonímia integrada.
7. Conclusão
Pretendeu-se neste artigo fazer uma demonstração da forma pela qual a
multimodalidade pode influenciar na interação dos processos metafóricos e metonímicos.
Para isso, nos atemos aos diferentes modos presentes na composição de nossos textos, neste
caso aos modos verbal, sonoro e imagético. Nossa intenção foi demonstrar que essa interação
não se restringe apenas ao nível textual, como os precursores deste estudo demonstraram, mas
que ela se extende aos diferentes níveis e entre os diferentes níveis, fato que foi comprovado a
partir das análises acima apresentadas. Em nossa análise demonstramos que os domínios fonte
e alvo das metáforas analisadas são construídos a partir da articulação de diferentes modos, a
saber o verbal, sonoro e imagético. Assim, com base em Forceville (2009) podemos implicar
que essas metáforas são denominadas de não-verbal, já que há a sobreposição de mais de um
modo na construção de seus domínios fonte e alvo.
Em relação à interação metafórica e metonímica, observamos que as três metáforas acima
são motivadas pela metonímia PARTE PELO TODO, pois é a partir de algumas PARTES que
somos capazes de ativarmos TODO o dominio fonte ou alvo que as constituem.
Acreditamos que os estudos dedicados a essa interação encontram-se no início de uma
longa caminhada, já que ainda são necessários estudos mais aprofundados nessa área,
principalmente aqueles que se dediquem a essa interação entre os diferentes modos que
constituem um determinado texto, já que, como advoga Kress (2000) é impossível
compreendermos os textos, até mesmo suas partes linguísticas, sem ter uma ideia clara de como
esses e outros elementos contribuem para o seu significado. Dessa forma, a interação metafórica
e metonímica pode ser considerada uma forma de se analisar o texto multimodal, já que a partir
dela podemos observar que a imagem não apenas completa o verbal, mas ela está conectada com
o verbal na construção do sentido.
Referências
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