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Direito Holístico
João Mestieri
É notória e indisfarçável a grande insatisfação do povo e mesmo dos operadores do
direito quanto aos resultados obtidos com o sistema jurídico tradicional. Nos estudantes
instala-se, logo nos primeiro semestres, um sentimento de vazio, de frustração; na
magistratura está grassando onda de surmenage sem precedentes, os magistrados
sentem-se impotentes para a prestação jurisdicional com as ferramentas que lhes são
dispensadas e buscam incessantemente caminhos e soluções diferentes, ditas modernas,
para a solução dos conflitos de interesse subordinados à sua decisão.
Os alvos de ataque são três: o ensino jurídico dogmatizado, repetitivo, arcaico; a
ineficiência das cortes de justiça, estações repetidoras oficiais dessa mesma filosofia,
aplicando as regras do direito positivado como se fosse a verdade real; e, por último, a
insatisfação dos destinatários do sistema, como um todo, que mesmo os leigos (ou
talvez por isso) percebem claramente a falta de base, de coerência, de justiça e de
eficiência de um tal sistema.
O grande movimento contra a mesmice do positivismo jurídico tem sido o Direito
Alternativo, que na vida prática deve ser visto e sentido como o uso alternativo do
Direito, no sentido de se aplicar as regras jurídicas com atenção à individualidade de
cada caso, procurando a justiça para o caso concreto.
A eficácia plena do Direito Alternativo só pode ser alcançada, é claro, garantindo-se ao
jurista alternativo, magistrado, promotor público, advogado, total liberdade de sentir o
Direito e afeiçoa-lo, tendo presente o caso concreto, aos ditames do que se
convencionou denominar de democracia radical. Democracia e justiça radicais não são
realidades extremistas, como o nome pode, talvez, sugerir mas a criação de um espaço
ilimitadamente amplo, suficiente para que o direito positivado não sufoque a justiça em
uma determinada prestação jurisdicional; nesse sentido, o radicalismo consiste na
revisitação dos postulados, dos princípios, dos conceitos do Direito, de maneira livre,
grande, radical. A lei é vista, assim, como um instrumento da justiça e, portanto, é de se
descartar qualquer aplicação injusta da lei.
Ao lado do Direito Alternativo, de significado e importância transcendentais, floresce
ainda timidamente, o Direito Holístico, na prática americana, que tem como nome
maior o de William van Zyverden, hoje presidente da International Alliance of Holistic
Lawyers.
O pensamento holístico é uma fase adiantada da evolução de posicionamentos críticos
do direito na história americana. Sabemos que desde a época das treze colônias havia a
preocupação em defender o indivíduo contra o Estado; o individualismo empurrou a
teoria do direito para o flanco da proteção dos direitos do indivíduo, vida, honra,
propriedade (principalmente esta). Em uma segunda fase, os tribunais começaram a
cotejar a proteção reconhecida e garantida a esses direitos no seu protagonismo social:
valorava-se a interdependência entre os direitos subjetivos publicamente assegurados. O
império do direito, todavia, sobrepujava e mesmo impedia, qualquer raciocínio para
além da rule of law.
No início de nosso século, por exemplo, considerava-se juridicamente aceitável que um
comerciante se estabelecesse próximo a um outro e praticasse preços irreais com a clara
intenção de leva-lo à falência. Com o tempo, porém, o desvio de finalidade do exercício
desses direitos subjetivos quando reconhecidos pelas Cortes passou a ser coibido em
nome da livre e honesta concorrência.
A luta pelo primado do regramento jurídico da sociedade, ou Estado de Direito, uma
vez sedimentada, cedia lugar ao dimensionamento social da lei e da justiça. Esse
caminho foi e tem sido muito árduo na experiência americana; corresponde, antes de
tudo, à capacidade de predizer-se o comportamento das Cortes diante de um dado fato
concreto e, para além disso, à expectativa de uma decisão que componha o conflito de
interesses e que seja socialmente adequada e justa.
A história judicial americana contou, na virada do século, com o concurso do grande
juiz da Suprema Corte, Oliver Wendell Holmes Jr., autor do clásico The Common Law.
Holmes foi apontado para a mais alta Corte pelo presidente Theodore Roosevelt, na
esperança de que o ajudasse a implementar a sua política; tratava-se de um veterano da
Guerra Civil, ferido gravemente em três importantes batalhas quando servia no 22o. de
Infantaria da Virgínia, conhecido como o Harvard Regiment, e assim muito se
esperava, politicamente, de seu carisma e credibilidade.
Holmes, no entanto, dedicou-se a uma judicatura verdadeira, independente, fazendo
uma opção pela verdade, esforçando-se por arejar a Suprema Corte, definindo o direito
como a ciência de se predizer qual seja o comportamento das Cortes em um
determinado caso concreto. Longe de ser um simples e servil aplicador da lei, definia a
vida como um misto indissociável de ação e de paixão e assim orientou a sua longa
experiência na magistratura, examinando com desassombro e profundidade os grandes
temas de seu tempo pois, como dizia, o homem que assim não fizer, corre o risco de ser
considerado como não tendo vivido.
Holmes era consciente das desigualdades na aplicação do direito e das manipulações
dos socialmente bem aquinhoados, esposando explicação muito semelhante à de Max
Weber sobre porque floresciam os comerciantes em Inglaterra quando para essa classe a
segurança jurídica de um direito codificado parecia essencial e a fluída common law um
porto menos seguro. A explicação foi a mesma: a insegurança quanto à regra de direito
era superada pela certeza quanto ao comportamento dos tribunais o que, em suma, era o
que importava. Era também consciente dos teóricos sociais e de suas artimanhas para
garantir a hegemonia da classe dominante e mostrar que tudo está correto e muito bem.
Em carta ao jurista Pollok, com quem se correspondeu por várias décadas, dizia em
junho de 1908: "I always think of a remark of Brooks Adams that the philosophers were
hired by the comfortable class to prove that everything is all right".
O ensino e a prática do direito americano se pautou, pois, pelo desenvolvimento e
cristalização dos princípios da common law, vivenciados pela case law, e regidos pelos
princípios constitucionais, fazendo-se presente, ainda, inúmeras codificações mas que
são manipuladas com a mentalidade do raciocínio jurídico tradicional; o arejamento
desse sistema, que apesar de aparentemente flexível pode ser mais sufocante do que
qualquer sistema romano-germânico positivo, vem precisamente do trabalho de vultos
do gabarito de Holmes e das reivindicações populares, das classes oprimidas e das
minorias.
O movimento do Direito Holístico é importante brado contra as iniquidades do sistema
oficial e desenvolveu-se no seio dos operadores do próprio sistema, muito
semelhantemente ao que ocorreu com o Direito Alternativo. São os próprios agentes do
direito que projetam a sua insatisfação no todo social e gritam basta! No momento em
que essa insatisfação qualificada se encontra com a insatisfação leiga, grassando no
vasto mundo dos destinatários do sistema, dá-se uma pororoca intelectual de
conseqüências socialmente significativas.
O resultado é a afirmação de que os advogados já não querem mais aceitar desempenhar
o papel que por décadas vêm desempenhando; não querem mais dar vida a certo
esteriótipo como o ser o gladiador de seu cliente, atuando sem emoções próprias,
driblando a autocrítica, não se importando muito com o conteúdo da pretensão
defendida ou a maior ou menor dignidade dos objetivos do cliente em usar o advogado e
o sistema de justiça. A insatisfação emergente, conforme constatado de viso nos Estados
Unidos, tem criado reais problemas com os clientes, colegas de escritório, com a família
e particularmente para o advogado, levado ao stress físico, mental, psicológico e
espiritual.
O holismo no direito parte de uma observação muito simples: se existe um vencedor
existirá um perdedor na disputa judicial. Um relacionamento forte e íntimo é dilacerado
e a reconciliação plena se torna impossível. Isto significa que o conflito foi formalmente
composto mas as vidas das pessoas envolvidas careceu de atenção, seja dos disputantes,
seja dos amigos e familiares, indiretamente atingidos. Além disso, os paradigmas de
comportamento que levaram os dois indivíduos a estabelecerem um relacionamento e
depois romperem em um conflito e na disputa judicial, permanecem, prontos, vivos,
para um novo conflito. Fazendo um paralelo com a ciência médica, podemos afirmar
que o estado de conflito gera um estado de doença no indivíduo; não há dúvida em que
a existência do conflito, seja civil seja criminal, causa impacto no indivíduo como um
universo, atinge todos os seus aspectos, físico, mental, emocional e espiritual,
irradiando-se de modo igual para as pessoas indiretamente envolvidas, vítima, parentes,
amigos, observadores. Assim, a atividade do sistema na composição dos conflitos não
será jamais completa se se contentar com a mera solução do caso juridicamente
interpretado. As situações conflituais são questões de saúde social dos atores envolvidos
e assim, à maneira médica, precisam ser tratadas e superadas com atenção a todos os
aspectos essenciais dos indivíduos atingidos.
Retomando o ensinamento de Zyverden, como uma sociedade, estamos apenas
começando a entender o impacto que um conflito de interesses desempenha na vida
global de uma pessoa e a complexidade de eventos que lançam um certo indivíduo na
rinha do conflito. Não é mais suficiente - diz ele - tratar exclusivamente dos aspectos
legais das disputas individuais; precisamos de igual modo lidar com os eventos que
levaram a pessoa à disputa em causa bem como com o impacto que a disputa provocou
na vida daquela pessoa e nos reflexos internos provocados. Apenas quando todos esses
segmentos forem tratados poderemos dizer que a justiça foi feita. Muitas vezes quando
a sucessão de eventos é detectada e seus impactos diagnosticados, os aspectos legais da
disputa ou da punição desaparecem ou perdem muito em significado. A solução, então,
não será mais do que ajudar aquela pessoa a lidar com seus padrões de comportamento,
frutos do passado, e conseqüentes impactos manifestados no presente.
Nessa linha, Justiça Holística é definida como a percepção e o entendimento da causa e
efeito do comportamento passado de determinado sujeito; a aceitação responsável das
conseqüências e o compromisso pessoal de mudar tal comportamento.
Ser holístico, nesse sentido, diz respeito, também, a aproveitarmos para nós mesmos a
experiência no tratar outras pessoas; é que em cada relação interpessoal temos a
oportunidade de aprender alguma coisa sobre nós mesmos e a humanidade, o que nos
permite continuamente moldar e recriar nossas vidas. É falsa a impressão que os erros e
acertos dos outros digam respeito aos outros; estamos todos, os atores sociais,
dialeticamente ligados por uma interação profunda, sentida ou não, que nos faz a um
mesmo tempo cúmplices do todo e interessados principais na redenção social.
No início do século o biólogo e pesquisador sueco Are Waerland publicou trabalhos que
chocaram a classe médica da Europa, o que o deixou feliz, pois o objetivo era
exatamente o de chamar a atenção para a medicina que se praticava. Waerland sempre
fora muito doente em sua adolescência e atribuía esse estado à alimentação insana que
recebera; já adulto e preocupado com o seu estado de saúde, indo de médico em médico
à procura de solução para as suas doenças, resolveu ele mesmo pesquisar o seu próprio
caso. Abriu um tratado de medicina, um dicionário especializado, uma enciclopédia
médica e ficou estarrecido por não encontrar qualquer entrada com a palavra saúde;
esses autorizados compêndios tratavam apenas das doenças. Waerland, então,
abandonou os médicos e procurou rever a sua vida, a sua rotina, o seu passado e
modificou radicalmente os seus hábitos alimentares e de vida. Operou-se o milagre! Em
alguns meses os sintomas das várias doenças desapareceram pela simples iniciativa de
equilibrar a sua alimentação com a ingestão de alimentos ácidos e alcalinos na
proporção necessária, pela abundante ingestão de líquidos e por uma vida saudável.
Waerland foi holístico e curou-se.
Nessa linha a prática médica oficial efetivamente adotou dois caminhos importantes,
pelo menos nos últimos dez anos; tornou-se comum ouvir dos facultativos a ênfase
sobre a saúde e o bem estar e não sobre as doenças; e a outra, muito importante, é a
formação da consciência de que o médico é apenas um ajudante na reparação do mal ou
na manutenção da saúde; a parte maior cabe, sempre, ao paciente. Essa noção tem
inteira aplicação no campo do direito, onde é induvidoso que o advogado, o promotor, o
magistrado, representam papéis importantes na solução dos problemas mas nada do que
possam fazer será suficiente para a integral recomposição da ferida social se não houver
o engajamento e a ativa colaboração dos interessados diretos no processo.
Assim, o certo e o errado, o culpado e o inocente são em verdade não mais que
aspectos quase acidentais de uma história de vida, indissociavelmente ligada, em
perfeita dialética, às mais vidas circundantes, certas, erradas, próprias, impróprias. Para
lidar com esses conceitos e de modo especial com a capacidade de culpa e de
responsabilidade, criamos mitos, até mesmo uma mitologia particular do Direito.
O trabalho holístico consiste, pois, no vencer a mitologia criada por nossas mentes, os
valores impostos pelos donos do poder e no transcender o papel que nos foi imposto na
grande peça social. Tudo que foi feito até agora, usando-se o sistema, causou profunda
insatisfação e caos social.
A ação verdadeira compreende, pois, uma mudança radical, ou seja, não se trata de
melhorar as instituições ou diagosticar os seus erros e descompassos mas ter a coragem
de enfrentar os mitos e criar um novo paradigma em que o indivíduo é visto e tratado
globalmente, holisticamente, no seu ser, no seu protagonismo, e em que as soluções
tenham em conta não um átomo de vida mas a própria existência da sociedade.

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