Ernest Hemingway: destino, genética e álcool
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Ernest Hemingway: destino, genética e álcool
Leituras / Readings Ernest Hemingway: destino, genética e álcool Ernest Hemingway: destiny, genetic and alcool “- Para te dizer a verdade, filha, os psicanalistas metem-me medo, por ainda não ter encontrado um que tivesse sentido do humor. - Queres dizer – perguntou a Ava, pasmada – que nunca tiveste um psicanalista? - Tive e tenho. A Corona portátil número três. Esse tem sido o meu analista.Vou dizer-te uma coisa: embora não seja um fiel da análise, passo uma porção do tempo a matar animais e peixes para não me matar a mim. Quando um homem está em revolta contra a morte, como eu, sente prazer de se apossar de um dos atributos divinos: o poder de dar. - Isso é profundo de mais para mim, Papá.” Conversa entre Hemingway e Ava Gardner reproduzida no livro “Hemingway” de A.E. Hotcher “Só nos primeiros anos da juventude o acaso ainda parece idêntico ao destino. Mais tarde sabemos que o verdadeiro caminho da vida é determinado de dentro; por mais cruel e absurdamente que nosso caminho pareça desviar-se de nossos desejos, ele sempre nos conduz ao nosso objectivo invisível.” Adrian Gramary Stefan Zweig: O mundo de ontem. Memórias de um europeu Médico Psiquiatra Centro Hospitalar Conde de Ferreira, Porto 52 Direcção: Adrian Gramary Centro Hospitalar Conde de Ferreira Rua Costa Cabral, 1211 4200-227 Porto Tel: 225 071 200 Fax: 225 071 295 e-mail: [email protected] Na manhã do domingo 2 de Julho de 1961, o escritor Ernest Hemingway acordou muito cedo na sua casa de Ketchum (Idaho). Saiu da cama silenciosamente, deixando a sua mulher Mary a dormir e dirigiu-se ao quarto onde estavam guardadas as armas. Nesse momento, na sua cabeça, provavelmente surgiu nítido um velho fantasma familiar que retornava, desta vez para se encarnar e concretizar: o suicídio do seu pai. O escritor, sentindo o peso inexorável do destino, pegou numa espingarda que usava para caçar pombos e, encostando no palato o cano da arma, apertou o gatilho. Trinta anos antes, o pai do escritor, o médico Clarence Edmonds Hemingway, tinha-se suicidado aos 28 anos de idade, no seu consultório, com a velha pistola Smith & Wesson do avô. Em nenhum sítio melhor do que na própria obra de Hemingway encontramos a significação e a transcendência que a morte trágica do pai teve na sua vida. Assim, Robert Jordan, o protagonista do romance “Por quem os sinos dobram”, questionando-se a si próprio pelas mortes inúteis da guerra civil espanhola, evoca, na parte final do romance, VOLUME VII Nº4 JULHO/AGOSTO 2005 a figura heróica do seu avô, soldado na guerra civil americana. A partir desta evocação, surge uma outra sombra, bem mais trágica, a da figura do pai, que se suicidou com a pistola do avô. Recorda assim o protagonista, depois do funeral do pai - e após lhe ter sido entregue a pistola com que ele se matara - ter ido ao lago e, depois de contemplar a sua imagem segurando a pistola na mão, reflectida na superfície imóvel da água, evoca como se libertou desse objecto letal, deitando-o no lago. Alguém que acompanha o protagonista neste momento diz-lhe “eu sei porque é que fizeste isso com a velha pistola, Bob”, ao que aquele alter ego do escritor responde “bom, então não teremos que voltar a falar disto”. Este fragmento descreve o mais terrível fantasma do escritor: a morte do pai. O lago da cena, bem poderia ser o lago Michigan, perto da vila natal de Ernest, Oak Park, velha pátria índia, região de florestas, de serrações, de caçadores e pescadores, para onde o nosso escritor costumava ir em criança, acompanhando o seu pai na pesca de truta, como nos lembra Olivier Rolin nas suas “Paisagens Originais”. No entanto, esta não é a única referência Leituras / Readings a esta morte trágica na obra do escritor. No romance “Ter ou não ter”, o protagonista conclui uma sombria reflexão sobre o suicídio com estas palavras: “outros seguiram a tradição indígena da Colt ou da Smith & Wesson, instrumentos bem fabricados, que, com o apertar de um dedo, terminam com a insónia, acabam com os remorsos, curam o cancro, evitam as falências, abrem uma saída a situações intoleráveis, admiráveis instrumentos americanos fáceis de levar, de resultado seguro, tão bem projectados para por fim ao sonho americano quando este se transforma em pesadelo, e cujo inconveniente é a porcaria que deixam para a família limpar”. Na biografia canónica de Hemingway escrita por Hotchner (publicada pela Bertrand Editora em 1999, coincidindo com o centenário da morte do escritor), encontramos as circunstâncias reais em que a pistola chegou às mãos do escritor: “Alguns anos mais tardes, pelo Natal, recebi um embrulho da minha mãe. Continha o revolver com que o meu pai se suicidara. Trazia um bilhete dizendo que achava que eu talvez gostasse de o ter, mas não explicava se era agoiro ou profecia.” Esta entrega adquire conotações ainda mais funestas, quando temos em conta que o escritor sempre culpou a mãe da morte do pai. A primeira coisa que nos surpreende, quando observamos o genograma da família Hemingway, (reproduzido parcialmente por Kay Redfield Jamison no seu livro: “Touched with fire: Manicdepression Illness and Artistic Temperament”) é a densidade de suicídios nesta família: cinco em três gerações. Para além do suicídio do pai e o do próprio autor, já referidos, dois irmãos de Ernest, Úrsula e Leicester, e mais recentemente, a sua neta, a actriz Margaux Hemingway, puseram fim aos seus dias suicidando-se. É praticamente consensual que - tal como descreveu Fernandes da Fonseca no seu livro imprescindível “Hemingway: Esboço Psicobiográfico” - o autor norte-americano sofria de Perturbação Bipolar, doença conhecida pela sua forte carga genética e pelo seu alto risco de suicídio, nomeadamente quando se associa ao abuso de substâncias, particularmente bebidas alcoólicas. Pode-se, da mesma forma, concluir que o pai, Clarence, sofria da doença maníaco-depressiva, embora nunca diagnosticada, pois tinha constantes mudanças do humor. O filho do escritor, Gregory, também médico como o avô, apresentava ciclicamente episódios maníacos e depressivos, que determinaram múltiplos internamentos psiquiátricos e a introdução de terapia electro-convulsiva. A história trágica de Gregory foi abordada recentemente no livro de memórias da sua última esposa e secretária pessoal do seu pai, Valerie Hemingway, intitulado “Correr com os touros: os meus anos com os Hemingway”. O livro descreve esta vida trágica, que, após três naufrágios matrimoniais, passou pela decisão radical da mudança de sexo no ano 1995 e que terminou, tragicamente, em 2001, com a sua morte por ataque cardíaco, numa prisão feminina. Tinha sido detido por “comportamento indecente”: foi encontrado nu, quando regressava de uma festa, com o vestido e os sapatos de saltos altos na mão, em evidente estado de desorientação. A neta de Ernest, Margaux Hemingway, actriz famosa nos anos 80 por filmes como “Lipstick”, após falhanços consecutivos na sua carreira profissional e na sua vida afectiva, e com uma historia de intenso abuso de álcool no seu passado, se suicidou num dia 2 de Julho (mesma data que o seu avô, o que se torna mais uma coincidência nesta historia fatídica) de 1996 por overdose do barbitúrico fenobarbital. Segundo relato da imprensa, as circunstâncias em que o seu corpo, em avançado estado de decomposição, foi encontrado, são suficientemente expressivas por elas próprias: “No quarto havia uma mesa pequena que tinha sido usada como altar. Em cada canto da mesa havia um montezinho de sal. Em cima da mesa havia um ramo de flores brancas e dois círios, também brancos, sem queimar, num candeeiro com forma humana. À esquerda havia outro candeeiro branco. Os candeeiros estavam colocados dentro de um círculo feito com fita branca. Fora do círculo havia um livro religioso. Margot tinha queimado incenso. Havia também vários papéis procedentes de um bloco de apontamentos em que se podia ler: «amor, cura, protecção perpétua para Margot». À esquerda da cama havia um ursinho teddy.” A morte, nas suas múltiplas faces, é uma presença constante na obra de Hemingway. Às vezes, assume a forma de uma reflexão directa sobre ela, como no seu romance sobre a tauromaquia “Morte na tarde”. O autor encontrou na tourada - no que ela tem de representação mítica da luta trágica pela existência - um símbolo pessoal e talvez uma liturgia para exorcizar os seus próprios fantasmas. Outras vezes, a morte foi uma presença mais heróica e épica: assim, é possível entender a sua participação em todas as guerras (a primeira grande guerra, a guerra civil espanhola, a segunda guerra mundial). O nosso autor esteve sempre onde a vida bulia mais intensamente (no Paris de entre-guerras, compartilhando vivências com os outros colegas da “geração perdida”: Scott Fitzgerald, Dos Passos, Gertrude Stein, etc; no desembarque de Normandia, acompanhando as tropas aliadas). Tentou, como refere Anthony Burgess “beber a vida até ao limite”, sentindo, como bem descreve o católico escritor britânico, que “para se comprometer com a literatura, é necessário primeiro comprometer-se com a vida”. A prática do boxing, a caça do búfalo e a pesca do espadarte - que praticou nas savanas africanas e no mar das Caraíbas - foram, juntamente com as touradas, as suas grandes paixões. Teve ainda a capacidade de traduzir a luta trágica da pesca do espadarte em símbolo existencial no romance que lhe concedeu a atribuição do Premio Nobel em 1954: “O velho e o mar”. VOLUME VII Nº4 JULHO/AGOSTO 2005 53 Leituras / Readings 54 O prelúdio da sua tragédia definitiva começou em 1960, quando surgiram os primeiros sintomas de uma grave fase depressiva, provavelmente desencadeada pelo marcado abuso de álcool. O escritor apresentava simultaneamente sintomas psicóticos de tipo persecutório, referindo sentir-se perseguido por agentes do F.B.I. Foi observado pelo psiquiatra Howard Rome, que recomendou o seu internamento na Clínica Mayo para iniciar terapêutica electroconvulsiva. Segundo a informação recolhida em diferentes fontes, a recuperação não terá sido satisfatória, apesar de - e para surpresa da mulher - o psiquiatra ter decidido dar alta, iludido pelo aparente bom estado do autor. O suicídio de Hemingway, ocorrido pouco depois de ter sido tratado com terapêutica electroconvulsiva, tem sido um argumento usado repetidamente pelos detractores deste tratamento (neste sentido, podem ser encontradas múltiplas páginas na net, usando as palavras Hemingway e psiquiatria no motor de pesquisa). Dois dos elementos do título escolhido para este artigo – genética e álcool - constituem, em si próprios, um cocktail suficientemente explosivo para entender o final funesto desta história. Genética; devido à história familiar de doença bipolar e suicídio, cuja sombra parece ter atingido, sem poupar nenhuma geração, o destino dos Hemingway. Álcool; que será o elemento que terá, no mínimo, facilitado – como reconhece Fernandes da Fonseca - o desenlace pessoal do escritor. Muito se tem discutido sobre as relações entre o álcool e as doenças afectivas, e diferentes teorias têm sido apontadas para explicar a estranha apetência que estes doentes têm pelo álcool (por exemplo: a teoria da auto-medicação). Poderíamos acabar deixando uma pergunta no ar: teria sido possível mudar o desenlace desta história trágica se, na altura em que o prémio Nobel adoeceu, tivessem existido os recursos terapêuticos antidepressivos e estabilizadores do humor de que dispomos actualmente? Os mais cépticos, ou até os mais temerosos do cego poder das parcas (chamem-se elas genética, providência ou ambas as coisas), responderiam colocando uma dúvida razoável; alguns argumentariam a inutilidade do nosso desejo e para isso colocariam o peso do livre arbítrio ou recordariam as limitações que actualmente a psiquiatria ainda tem para tratar alguns destes casos. E provavelmente todos teriam razão; mas era o nosso desejo como terapeutas (talvez desejo de omnipotência) que a lúgubre presença da pistola atirada por aquela criança ao lago, após o funeral do pai, tivesse ficado definitivamente no fundo, esquecida, como no fundo daquele rio do inferno, o Leteo, que Dante descreveu na Divina Comédia, cujas águas tinham o poder de fazer esquecer todas as recordações (que bem poderia ser, desta vez, o lago Michigan). VOLUME VII Nº4 JULHO/AGOSTO 2005 BIBLIOGRAFIA Burgess, A (1984): Hemingway. Salvat. Biblioteca de Grandes Biografias. Barcelona. (Tradução espanhola do original “Hemingway and his world”, editada em 1978 por Thames and Hudson.) Fernandes-da-Fonseca, A (1999): Hemingway: Esboço Psicobiográfico. Edições Universidade Fernando Pessoa. Porto Hemingway, E (1987): Por quién doblan las campanas. Seix Barral. Barcelona Hemingway, E (2001): Tener o no tener. Pocket Edhasa. Barcelona. Hemingway,V (2005): Correr con los toros: mis años con los Hemingway. Taurus. Madrid. Hotchner, AE (1999): Hemingway. Bertrand Editora. Lisboa. Misrahi, A (2002): Adiós mundo cruel: los suicidios más celebres de la historia. Océano. Barcelona. Pustienne, JP (2005): Ernest Hemingway. Fitway. Paris. Redfield-Jamison, K (1998): Marcados com fuego. La enfermedad maníacodepressiva y el temperamento artístico. FCE. México. (Tradução espanhola do original “Touched with fire: Manic-depression Illness ans Artistic Temperament” editada em 1993 por The Free Press.) Rolin, O (2000): Paisagens originais. Edições ASA. Porto. Voss, F (1999): Picturing Hemingway. A Writer in His Time.Yale University Press. New Haven & London Zweig, S (1953): O mundo de ontem. Memórias de um europeu. Livraria Civilização Editora. Porto.
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