Estudo e conservação de plantas medicinais em Moçambique

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Estudo e conservação de plantas medicinais em Moçambique
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ATAS DO CONGRESSO INTERNACIONAL SABER TROPICAL EM MOÇAMBIQUE: HISTÓRIA, MEMÓRIA E CIÊNCIA
IICT – JBT/Jardim Botânico Tropical. Lisboa, 24-26 outubro de 2012
ESTUDO E CONSERVAÇÃO DE PLANTAS MEDICINAIS EM MOÇAMBIQUE
ANNAE SENKORO1, FILOMENA BARBOSA1, ARMINDO FILIPE DA SILVA1, ALICE MANJATE1, VANDO M.
SILVA SAMUEL1,2, IVETE MAQUIA2, IVONE MUOCHA2, ISABEL MOURA3, LUIS F. GOULAO3, ANA RIBEIRO3
1
Faculdade de Ciências, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique. Emails:
Centro de Biotecnologia, Universidade Eduardo Mondlane, Maputo, Moçambique. Emails:
3
Instituto de Investigação Científica Tropical: JBT, Lisboa, Portugal (IM) e Biotrop, Oeiras, Portugal (LFG e AR)
[email protected]
2
Resumo
Em Moçambique, as plantas medicinais constituem um valioso instrumento da medicina tradicional, sendo largamente
utilizadas nas zonas rurais como principal fonte de medicamentos para os cuidados de saúde primários. O seu valor
socio-cultural é inesgotável e o potencial comercial é vastamente desconhecido. De entre o riquíssimo património
nacional, a batata africana (Hypoxis spp.) e a chibaha [Warburgia salutaris (G.Bertol.) Chiov.] são amplamente usadas a
nível nacional, regional e internacional. No primeiro caso (batata africana), o cormo tem sido usado no tratamento de
várias doenças, com destaque para o cancro e doenças oportunísticas associadas ao HIV/SIDA. No segundo caso
(chibaha), as cascas são usadas no tratamento de constipações, gripes e doenças associadas, bem como malária, dores
de cabeça, hemorróidas e angina de peito. Como tal, a procura destas plantas tem sido desmedida e descontrolada.
Presentemente, existem sérios indícios de perigo de extinção destas espécies, pelo que o estabelecimento de
programas de conservação é prioritário para recuperar e preservar o (ainda) remanescente deste valioso património.
Neste contexto, a presente equipa de investigação iniciou um projeto faseado sobre plantas medicinais em
Moçambique. Na primeira fase (fase piloto) deu-se início ao estudo de Hypoxis spp. e W. salutaris nas províncias de
Maputo e Gaza. Este estudo assenta em quatro componentes: i) prospeção e mapeamento geográfico; ii)
desenvolvimento de marcadores moleculares para estudos taxonómicos e de diversidade genética; iii) desenvolvimento
de métodos de propagação vegetativa; iv) avaliação do impacto socioeconómico. Desta forma espera-se avaliar o
estado atual de conservação da Hypoxis spp. E da W. salutaris nas regiões selecionadas e contribuir para o
estabelecimento de medidas de conservação e utilização racional do germoplasma existente. Numa segunda fase, o
estudo será estendido a outras zonas do país e a outras espécies de valor medicinal, perspectivando-se um
levantamento exaustivo ao longo da faixa costeira Sul-Centro, a médio prazo.
Palavras-chave: Biodiversidade, conservação, Hypoxis spp., plantas medicinais, Warburgia salutaris
*
PLANTAS MEDICINAIS
Durante séculos, as plantas medicinais foram utilizadas em todo o mundo como fonte exclusiva de
medicamentos. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), 80% das pessoas nos países em
desenvolvimento ainda dependem de plantas medicinais locais para satisfazerem as suas necessidades
primárias de saúde (WHO, 2002:11). Como a maioria dos países africanos, Moçambique é um repositório
importante de diversidade biológica. Esta diversidade é usada por cerca de 90% da população do país
maioritariamente das zonas rurais para satisfazer as suas necessidades habitacionais, energéticas,
alimentares e de saúde (RIBEIRO et al. 2010:1). De acordo com KROG et al. (2006:2), em Moçambique cerca
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ISBN 978-989-742-006-1
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de 15% do total dos recursos genéticos vegetais (estimado em cerca de 5. 500 espécies de plantas) são
usados pelas comunidades rurais para fins medicinais e desempenham um papel fundamental nos cuidados
de saúde básicos. Para além do valor medicinal, as plantas medicinais constituem uma fonte de rendimento
para os coletores e vendedores (AVEMETRAMO) (KROG et al., 2006: 2).
HYPOXIS SPP. E WARBURGIA SALUTARIS
Em Moçambique as espécies Hypoxis hemerocallidea Fisch., C.A.Mey. & Avé-Lall. (batata africana) e
Warburgia salutaris (G.Bertol.) Chiov. (chibaha, pepper-bark tree) estão entre as plantas medicinais mais
procuradas. Enquanto no primeiro caso, a colheita se destina aos grandes mercados de plantas medicinais,
essencialmente na província de Maputo (KROG et al., 2006: 14), no segundo caso, a vizinha África do Sul é
frequentemente o destino (VAN WYK & GERICKE, 2000: p 150). O comércio transfronteiriço e a procura nas
zonas urbanas poderão, portanto, ser uma potencial ameaça para estas espécies pelo consumo não
sustentável.
W. salutaris (Fig. 1) é uma árvore que pertence à família Canellaceae, geralmente com 5 a 10 metros de
altura, podendo atingir ocasionalmente os 20 metros. A casca é castanha e rugosa. As folhas são simples,
elípticas ou lanceoladas, verde-escuras e brilhantes na página superior e pálidas na página inferior, com
inserção em espiral. As flores são brancas ou esverdeadas. O fruto é uma baga esférica. (COATES-PALGRAVE,
2002: 741). A casca interna é apimentada e usada para diversas aplicações com destaque no tratamento de
constipações, gripes e doenças associadas, bem como reumatismo, malária, doenças venéreas, dores de
cabeça, dores de dentes, hemorroidas e angina de peito (VAN WYK & WINK, 2004: p 345; COATESPALGRAVE, 2002 741-742; VAN WYK & GERICKE, 2000: 150; VAN WYK, et al., 1997: 272; JANSEN & MENDES,
1990: 161-162).
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Fig. 1 - Warburgia salutaris (a) A planta no seu habitat natural. (b) O fruto esférico. (c) O tronco rugoso (d) A casca no
mercado informal da cidade de Maputo. (Foto: Annae Senkoro).
As espécies do género Hypoxis (Fig. 2), família Hypoxidaceae são cormos perenes com folhas alongadas. As
flores têm forma de estrela e são amarelas (VAN WYK et al., 1997: 156). SINGH (2007: p 360) aponta para a
existência de 30 espécies deste género na Flora de África Austral. Estas podem ser distinguidas através do
tamanho, forma e orientação das folhas e tamanho e forma das flores (VAN WYK et al., 1997: 156). Os
cormos têm sido usados ao longo de vários séculos pelos médicos tradicionais no tratamento do cancro e
doenças oportunistas associadas ao HIV/SIDA (VAN WYK & WINK, 2004: 176; VAN WYK & GERICKE, 2000:
146; VAN WYK et al., 1997: 156).
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Fig. 2 - Exemplar das espécies do género Hypoxis. (a) o hábito e cormo no seu habitat natural. (b) a flor amarela com
forma de estrela. (Fotos Vando M. Silva Samuel)
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MAPEAMENTO DA OCORRÊNCIA E DETERMINAÇÃO DO VALOR SOCIO-ECONÓMICO
W. salutaris tem uma distribuição limitada, confinada ao sul do país, na província de Maputo e é uma das
espécies que corre o risco de extinção devido à colheita da sua casca para fins medicais (JANSEN & MENDES,
1990:159-160). Por esta razão foi registada a nível nacional como Vulnerável (VU) e a nível global como
Ameaçada (EN) (IZIDINE & BANDEIRA, 2002: 49). Um estudo mais recente (Annae Senkoro, resultados não
publicados) indica que esta espécie ocorre em três principais fragmentos, nomeadamente: ecossistema de
Rio Tembe, Massale e Goba Sede. De acordo com o valor da área ocupada e o número de indivíduos adultos,
a classificação desta espécie poderá descer para Criticamente Ameaçada (Critically Endangered). Os fatores
que mais contribuem para o desequilíbrio de W. salutaris são a produção de carvão, a colheita para fins
medicinais e as queimadas descontroladas (Annae SENKORO 2010, resultados não publicados). No que diz
respeito à batata africana, sabe-se que a principal espécie, H. hemerocallidea também se encontra sob
elevada pressão devido à colheita da planta inteira (cormo) para fins medicinais (KROG et al., 2006: 2). As
províncias de maior ocorrência de batata africana são Maputo (SAMUEL, 2010: 14) e Gaza (NDONG et al.,
2006: 266), onde se podem observar indícios de extinção. No entanto a classificação segundo os Critérios e
Categorias do IUCN (IUCN, 2012) carecem de dados quantitativos, cuja recolha está presentemente em
curso.
ESTRATÉGIAS DE CONSERVAÇÃO
No âmbito do presente projeto, as estratégias de conservação de Hypoxis spp. e W. salutaris passam pela
identificação, quantificação e recolha de material vegetal nas principais zonas de ocorrência destas espécies,
bem como pelo desenvolvimento de métodos de propagação vegetativa, dada a dificuldade de reprodução
por via seminal em ambos os casos. Paralelamente, está em curso o desenvolvimento de marcadores
moleculares para caracterização da diversidade genética existente em Moçambique, por forma a apoiar o
estabelecimento dos bancos de germoplasma nacionais.
AGRADECIMENTOS
Os autores agradecem ao Camões - Instituto de Língua e da Cooperação e à Direção da Faculdade de
Ciências, Universidade Eduardo Mondlane pelo apoio que possibilitou na participação do Congresso. O nosso
muito obrigado vai também para o Instituto de Investigação Científica Tropical e Instituto de Investigação
Agronómica de Moçambique pela colaboração neste trabalho. Às comunidades de Manhihane, Djabula,
Kassemate, Porto Henrique, Monucua, Goba, Impaputo, Manhoca e Madjadjane que incansavelmente
apoiaram o trabalho de campo. Ao Projeto “Conservation Priority Setting” pelo apoio logístico e aos técnicos
Domingos Maguengue e Ernesto Boane pelo apoio no trabalho de campo. O trabalho de conservação de
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Warburgia salutaris foi financiado por “The Mohamed Bin Zayed Species Conservation Fund, project
no.0925806 ”
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS NO TEXTO
COATES-PALGRAVE, M. 2002. Keith Coates Palgrave Trees of Southern Africa, 3rdedn, 2nd imp. Cape Town.
Struik Publishers.
IUCN 2012. IUCN Categories and Criteria Verson 3.1, Second edition. Gland. Published by IUCN Gland,
Switzerland.
IZIDINE, S. BANDEIRA, SO. 2002. Mozambique Plant Red Data List: In JS. Golding (ed.) Southern African Plant
red Data Lists. Southern African Botanic Diversity Network Report Serie 14. National Botanic
Institute, Pretoria. pp 43-60.
JANSEN, PCM. MENDES O. 1990. Plantas medicinais–Seu uso traditional em Moçambique, Tomo 3 .Maputo.
Ministério da Saúde.
KROG, M. FALCÃO, MP. OLSEN CS. 2006. “Medicinal plant markets and trade in Maputo, Mozambique”.
Forest & Landscape Working Papers 16, Danish Center for Forest Landscaping and Planning, KVL.
NDONG, YA. WADOUACHI, A. SANGWAN-NORREEL, BS. SANGWAN, RS. 2006. “Efficient in vitro regeneration
of fertile plants from corm explants of “Hypoxis hemerocallidea landrace Gaza- The Äfrican Potato”.
Plant Cell Reproduction.25: 265-273.
RIBEIRO, A. ROMEIRAS, MM. TAVERES, J. FARIAS T. 2010. “Ethnobotanical survey in Canhane village, district
of Massingir, Mozambique: medicinal plants and traditional knowledge”, Journal of Ethnobiology and
Ethnomedicine 6: 33.
SAMUEL, VMS 2010. Optimização de protocolos laboratoriais para a análise de marcadores RAPD e
microssatélites em Hypoxis spp. (batata Africana). Trabalho de Licenciatura, Departamento de
Ciências Biológicas, Faculdade de Ciências, Universidade Eduardo Mondlane.
SENKORO, AM. 2010. Projeto “Conservation of the species Pepperbark tree in Mozambique”, Departamento
de Ciências Biológicas, Faculdade de Ciências, Universidade Eduardo Mondlane
SINGH, Y. 2007. “Hypoxis (Hypoxidaceae) in southern Africa: Taxonomic notes”. South African Journal of
Botany.73: 360-365.
VAN WYK, BE. GERICKE, N. 2000. Pleople’s plants: A Guide to Useful Plants of Southern Africa. Pretoria. Briza
Publication.
VAN WYK, BE., VAN OUDTSHOORN, BE. GERICKE, N. 1997. Medicinal Plantas of South Africa. Pretoria. Briza
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VAN WYK, BE. WINK, M. 200). Medicinal Plants of the World.Pretoria. Briza Publication.
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