miolo - Café Novo Mundo

Transcrição

miolo - Café Novo Mundo
“Eu tenho mais tentado do que conseguido trabalhar.”
Alô alô
Rogério
Sganzerla!
Fragmentos da obra literária de
Rogério Sganzerla
ante-projeto editorial
organizado e proposto por
Mario Drumond
MDEditor
2004
Aos companheiros de resistência que permanecem nos fronts,
dedico este pequeno avanço em forma de ante-projeto.
O organizador.
Espaço para Ficha Técnica e outros créditos.
Espaço para Ficha Catalográfica
vi
Carta a R
ogério, na História.
Rogério,
Rogério,
Da vida para a história, no corte preciso da montagem, neste filmelivro que começamos há tempos e que agora você retoma, me enviando,
da história para a vida, os prometidos “originais”. Chegam-me porém,
só alguns poucos, diluídos no liquidificador da internet, espalhados em
inúmeros sites, não sei como chegaram lá. Só sei que é você na história,
e pincei-os um a um, verificando desde já a ação predadora dos “filtros”
e mutilações pelos censores e sensores que sempre tentam se interpor,
vigilantes, entre a história e a vida. Isto sem contar as burrices e o
amadorismo que se generalizam no vale-tudo ou vale-nada do tal “ciberespaço”. Mas cá estão, tratei-os com o merecido carinho e a atenção
interessada e curiosa de que precisam para se recompor e compor ao
menos o nosso projetado ante-projeto.
No último fotograma do plano anterior (o da vida), estávamos você e
eu naquela gostosa caminhada do Posto Seis ao Leme, numa tarde
magnífica e carioca como nunca. Eu me mandava do Rio e levava a foto
que escolhêramos para a capa do livro, você ia dar a última vistoria na
seleção que fizemos e me enviaria as cópias dos originais, afinal
escolhidos. E que seleção! Quase brigamos. Cheguei a dizer, profético,
que a edição só sairia póstuma. Foram meses de trabalhos e (des)
entendimentos de duas cabeças-duras. Mas curtimos muito. Mantenho
aquela minha opinião de que se você tivesse publicado livros em apoio
às suas obras cinematográficas, a história seria outra, e para melhor.
Relendo-os agora, no plano da história, percebo o quanto eu estava
certo. Aliás, recebi-os quando retocava e penteava um longo texto meu,
recém finalizado, de pesquisa em profundidade sobre Oswald de Andrade
e sua obra. E aí, e não poderia ser de outra forma, você reaparece na
mágica montagem.
E o que verifico?
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Que a lux aeterna que iluminava Oswald desde os sete ou oito anos
de idade, quando rascunhou sua primeira peça teatral, até a morte dele
em 1954, por uma razão cósmica qualquer que jamais será desvendada,
passou imediatamente o foco para um garoto barriga-verde de sete ou
oito anos de idade, em Joaçaba, no interior de Santa Catarina. E esse
garoto publicou então um livro de contos por conta própria. Onde estará
hoje, esse foco? Nalguma cidade do interior do Mato Grosso ou do Pará,
ou quem sabe no Rio Grande do Norte, onde um garoto potiguar de sete
ou oito anos está editando seu primeiro vídeo? Tomara que sim, companheiro, e se você puder cuide bem disso, tão bem quanto Oswald
parece ter cuidado.
Você reparou que, no corte, deitamos fora aquele take em São Paulo,
quando por acaso nos encontramos no lançamento do único livro que
nos deixou, cujos textos publicados foram exatamente os que escoimei
da nossa seleção? Pelo menos para isso serviu aquela trabalheira toda.
Mas aquele livro, meu irmão, valeu mas não bateu! Em verdade, você
nunca quis ser editado e fugiu do livro como o diabo foge da cruz. Por
que? Talvez por seguir muito à risca os passos de Welles, outro que
escrevia como ninguém, mas não nos deixou uma só obra em livro (exceto
por Shakespeare for all, obra precoce, tal e qual seu precoce Novos
Contos). No mais, tudo filme, acetato. Você também se queria assim,
nenhum livro seu superaria um filme seu. Estava certo, e estava errado!
Porque seus textos defendem seus filmes muito melhor que os próprios
filmes. Estes foram como granadas que explodiram detonando tudo,
inclusive a si mesmas. Seus livros seriam a memória das granadas, que
as defendem, as complementam e, enfim, as restauram e as resgatam
na genialidade de suas poderosas forças explosivas e ao mesmo tempo
catárticas, de renovação.
Proponho agora um flash-back na Floresta da Tijuca, onde fumamos
um grosso baseado cujos camarões a diligência e a amizade generosa do
poeta Rolando (o mundo) Monteiro nos trazia de algum plantio encantado
da Amazônia, da Índia ou do Ceilão, sei lá. Estamos os dois, refestelados
à beira do regato cristalino, curtindo a fresca do arvoredo denso, enquanto
Helena e Izabel fazem o tai-chi numa clareira das proximidades. Era a
nossa “rotina” de certas manhãs abençoadas: visitar o paraíso e lá fazer
filosofia com conversa fiada da melhor espécie, a usufruir da liberdade
iluminada e do ócio criativo que a maldição, o ostracismo e os deuses
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nos propiciavam. Mas me refiro a uma certa manhã de domingo, quando
falei que receberíamos, enfim, o dinheiro para montar o espetáculo das
Sete Danças no Municipal. E você me respondeu com sapiência e sem
maldade, não um mau augouro, mas um lamento por nós que ainda
ressoa em meus ouvidos, com voz profética, como se fosse um Mojica:
- quando o dinheiro entrar na conta vão se abrir para vocês as portas do
inferno!
Camarada!... E não é que os demônios-burocratas (os Amnésios)
saíram todos pra cima de mim e quase me levaram o fígado ou baço
(levaram-me a visícula, mas fiquei melhor sem ela). O inferno, você
sabia melhor que eu, é a burocracia dos órgãos de cultura. E fomos
todos para o beleléu, inclusive o Ministro Antonio Houaiss, pobre sábio
e único aliado que tivemos no poder, onde só durou parcos oito meses.
Nem o dicionário que acalentou durante toda a vida pode ver impresso.
Aliás, no derradeiro encontro que Izabel e eu tivemos com ele, mencionei
você e ele manifestou grande interesse em conhecê-lo: - não tive oportunidade de conhecer-lhe os filmes - disse-nos - mas li alguns de seus
escritos em jornais; é escritor, e da melhor cepa!
Mas a saga infeliz daquele espetáculo oswaldiano-villalobiano que
você viu na estréia - uma obra-prima destruída com todas as forças que
a estupidez e a boçalidade possam perpetrar contra nossas obras, forças
e poderio que Oswald e você conheceram ainda mais que eu - compensoume de sobra num só plano que você criou e me contou, já no banquete
de estréia, quando me propôs filmar o espetáculo:
a câmera era posta numa grande grua e o plano começava fechado
na constelação do Cruzeiro do Sul do céu estrelado que Ronaldo Mourão
desenhou para reproduzir a celeste do dia do descobrimento do Brasil,
e que, naquela cena, fazia o fundo infinito do palco. A grua ia retrocedendo, abrindo lentamente o plano, passando por cima do coro de
cento e vinte vozes, em cena e em ação, depois por sobre os bailarinos
enlouquecidos e a louca orquestra, também em cena e em ação, e por
sobre o maestro assediado pelas personagens de Mefisto e Oswald. E,
retrocedendo sempre mais e mais, em movimento contínuo e uniforme,
ia abrindo o plano para a platéia lotada vivendo o acontecimento artístico
máximo de toda a encenação, na apoteose do genial Noneto de VillaLobos, que encerrava o espetáculo com mais de cento e cinquenta artistas
no palco, para enfim deixar o espectador, na poltrona em que você se
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sentou junto a Helena, preso definitivamente aos movimentos alucinados
no visual fantástico do palco-boca-de-cena do Municipal, no que seria
o registro animado da cena final do espetáculo, com que você iniciaria
o filme. A partir daí você iria montá-lo à sua maneira, traduzindo em
audiovisual toda aquela magnitude cênica - e a teríamos reproduzida
na linguagem da qual você é o maior mestre que tive a felicidade de
conhecer em pessoa ou de saber que existira em nossa fértil mas
desditosa contemporaneidade.
E você chegou a alinhavar alguma coisa disso em laudas catucadas
na velha máquina portátil verde turquesa que batia as letras em desalinho, metade vermelhas metade pretas, que são a marca, quase manuscritas, dos seus originais. Batia tudo duma vez, o texto saindo direto
da cabeça para a máquina, enchendo as laudas de papel vagabundo
com o timbre da redação da Folha de São Paulo numa velocidade impressionante, compondo o texto já quase pronto para edição. Eu vi. Você
não sabe, mas eu vi. Helena abriu a porta do apê da Ramon Castila e
pude ouvir a velha máquina de escrever. Cheguei de mansinho, mas
você percebeu, fechou-lhe a tampa e conduziu-me até a varanda, na
mais manjada das suas esquivas. Mas, numa rápida ausência sua, não
me lembro por quê, se foi ao banheiro ou fazer qualquer outra coisa, eu
fui lá xeretar e vi as laudas, mas só pude ler no topo de uma delas “Sete Danças (título provisório)” - para em seguida voltar à minha
posição na varanda, a tempo de você não perceber que eu havia saído
de lá. Arrependo-me de não ter assumido a indiscrição e deixar que
me desse o flagrante, lendo as laudas que estavam prontas. Sabia que
não seria desrespeitoso, eu tinha de você essa liberdade. A esquiva
fora por conta daquela enigmática timidez em que você muitas vezes
se traía, e era fácil percebê-la. Mas ainda assim preferi ficar aguardando
você mesmo mostrá-las a mim. E até hoje estou aguardando.
- Alô alô Rogério Sganzerla! (imagino seja esta a saudação que te
fizeram ao dar ingresso na galeria dos grandes brasileiros da História,
representados pelo querido Grande Otelo no papel de mestre de cerimônias - e naquela pronúncia escrachada-engraçada que o caracteriza
e caracteriza também todo um cinema brasileiro que você amou e nos
ensinou a amar) - Irmão, acuso o recebimento via internet de alguns dos
textos que selecionamos para compor o que seria o seu primeiro livro, e
que ainda não aconteceu. Faltam muitos outros entre os que conheci (e
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entre os que não conheci), inclusive o que acima mencionei e muito
me é caro. De qualquer maneira, estes vieram na hora certa e ao lugar
certo. Depois que a vida bifurcou nossos caminhos, estamos agora,
você na história, e eu nessa merda desta vida. Mas não relaxei as ordens
que me chegaram com os virtuais “originais”, e ponho-me imediatamente ao trabalho.
Faço este ante-projeto usando na última capa a foto que separamos
para ser a capa (e haverá de estar na capa da edição final), cuja cópia
fotográfica em grande formato está bem aqui comigo. Uso também material colhido na internet sobre O Signo do Caos e outros artigos finais
para compor a “Seção 2” e o “Epílogo” (inclusive um que dizem ter
sido o último que você escreveu, e acabo de receber - sobre quem? Oswald de Andrade, claro!).
Faço-o em 21 exemplares. Fora o meu, cinco deles vou enviar para
Helena, torcendo para que ela leve avante a idéia. Dez vou distribuir a
amigos de uma lista minha-nossa, que haverão de dar a força que têm
para que a idéia se realize. Os outros cinco reservo em acervo.
E que venha o próximo plano.
Mario Drumond
Belo Horizonte, 18 de agosto de 2004.
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OP
rojeto Editorial
Projeto
Pequeno histórico
Minha intenção, quando desafiei Rogério a encarar este projeto,
era a de dar a lume o escritor revolucionário que habitava o gênio criador do cineasta, e que teve inúmeros momentos da mais alta brilhância
entre os anos de 1965 e 1995 (ano em que rebuscamos os baús dos
seus originais). Momentos inesquecíveis.
Para a nossa “geração de 68”, tão importantes quanto os filmes (ou
talvez até mais importantes porque depois dos sucessos de O Bandido e
A Mulher de Todos ficou quase impossível ver qualquer um de seus filmes) eram os textos, depoimentos e entrevistas de crítica e polêmica
que vazavam da lucidez inquieta de Rogério pelas páginas de jornais da
grande imprensa e da imprensa alternativa.
Rogério exercia entre nós papel muito semelhante ao de Oswald de
Andrade nas ofensivas modernistas mais radicais: era o nosso “ponta
de lança” nos fronts de vanguarda e resistência. Desde cedo ele conhecera bem a obra de Oswald, cujas lições permeiam todo o seu processo
criativo em letras e fotogramas, e dava como resolvida pelo ponta de
lança do modernismo a questão da literatura, que praticava com intuição,
desenvoltura e liberdade, em pleno usufruto das conquistas revolucionárias da obra oswaldiana.
Eis porque se voltou de corpo e alma para a questão do “cinema
moderno”, que para ele estava a precisar de uma “Semana de 22” e de
um novo Oswald de Andrade.
Assim, sua obra escrita se dividiu em duas vertentes fundamentais:
a intuitiva, do crítico, polemista, poeta, romancista e filósofo, envolvido
até o pescoço no debate libertário das idéias da nossa geração e das
questões políticas e culturais, e a do expert, do teórico divisor de águas
da linguagem do cinema moderno, em que se projetava o cineasta
pesquisador das entranhas do fazer audiovisual, mergulhando fundo para
trazer à tona descobertas inovadoras.
xiii
Em minha opinião era a primeira delas (e a mais rica) que deveria
ser dada a lume, em livro e antes de tudo. A segunda vertente é, a meu
ver, de interesse restrito a profissionais do audiovisual, e, dentro desse
universo - completamente dominado, no Brasil e no mundo, pelo
stabilishment, o entreguismo reacionário e a mediocridade - a meiadúzia de boas cabeças resistentes que, de resto, estavam a par de suas
teorias e teses, e até já as praticavam.
Rogério, porém, vacilava. E o vacilo nunca fora um defeito dele.
Mas naquele momento era compreensível. Para todos os que lidamos
com matérias do conhecimento e da história, os exemplos históricos são
sempre fortes influências em nossas decisões. Ele via, com toda razão,
irrecusáveis semelhanças entre o meu projeto e o Ponta de Lança, de
Oswald de Andrade, que havia custado ao escritor longo purgatório de
nove anos sem poder publicar livros, e quando isto aconteceu, o livro
foi lançado a um mês da sua morte (que ironia! Rogério em 1995 cumpria
já vinte anos sem poder filmar com decência, e quando enfim, oito anos
depois, pode fazê-lo, teve o filme lançado poucos meses antes de morrer).
Tais castigos balançam as estruturas de qualquer um. Balançou a
de Oswald, e balançou a de Rogério, que, além de um grilo esquisito e
nunca assumido por se publicar em livros (intuo esse grilo inexplicável
a uma influência de Welles que, não sei por quê, não publicou livros),
era gato escaldado e temia o retorno covarde dos poderosos-poderes
denunciados, a ampliar-lhe os castigos. Tive de enfrentá-lo dentro de
uma relação de plena confiança e amizade que ia então por quase cinco
anos de companheirismo cotidiano. Consegui que me desse acesso aos
baús de originais e fizesse uma seleção ao meu gosto, nos meus propósitos
de editor. Tentei mostrar a Rogério que o nosso “Ponta de Lança” ia ser
um sucesso e defenderia sua obra cinematográfica melhor que ela mesma.
Fizemos juntos um meticuloso trabalho seletivo, em que várias vezes
nos engalfinhamos em solenes discussões. Quase rompemos relações.
Não logrei convencê-lo. Pensei que isso havia acontecido, mas ele usou
o velho estratagema do fake (do qual era mestre), fingindo ter sido
convencido, me cedendo a foto da capa para elaborar o projeto gráfico e
me prometendo a remessa de cópias dos originais assim que se decidisse,
pois eu estava a me mudar do Rio de Janeiro. Não tivemos mais contatos.
Passados os primeiros seis meses, percebi que Rogério se decidira por
manter os textos na gaveta, e a minha proximidade passava, assim, a
xiv
significar certos perigos que ele queria evitar. Por isso não tive nenhuma
surpresa quando, seis anos depois e por acaso, dei com ele em São
Paulo lançando Por um cinema sem limite,1 justamente com os textos
que eu excluíra do projeto (os textos da segunda vertente).
O fracasso de Por um cinema sem limite - não de conteúdo nem de
qualidade editorial e gráfica (é um bom livro e muito bem editado, porém,
a meu ver, intempestivo), mas pela quase nenhuma repercussão - já me
garante metade da razão. A outra metade, tenho certeza, me dará o leitor
desta edição, que irá consagrá-la no sucesso de uma tremenda repercussão, da qual, em minha opinião de editor, Rogério poderia ter
desfrutado ainda em vida, vendo-se fortalecido e respeitado até pelos
inimigos. Os exemplos históricos nunca devem ser desconsiderados,
mas a história não se repete.
A obra literária de R
ogério Sganzerla
Rogério
Como disse, Rogério não se preocupou em fazer literatura. Nem
devia. Antes de ser cineasta, era escritor da melhor cepa, como bem
me avisou Antonio Houaiss, outro mestre inconteste das letras modernas.
Tal como Oswald, ele tinha a literatura dentro de si, e com um atributo
a mais: em pleno gozo da vitoriosa revolução oswaldiana, cujas altitudes frequentou desde moço, muito moço.
Não precisava preocupar-se se o que estava escrevendo era poesia
ou prosa, a forma não o azucrinava, estava livre, era poeta, romancista,
jornalista, ensaísta e o mais que quisesse ser e quando quisesse ser.
“Monumental aprendi a necessidade de tudo dizer de uma só vez a
cada instante buscando a verdade através dessa estrutura de constelação
insistente de tudo dizer a todo instante não importa como de qualquer
maneira qualquer material que tivesse às minhas pobres mãos milionária
contribuição de todos os erros livre na maior.”2
1 Sganzerla, Rogério. Por um cinema sem limite. São Paulo : Azougue Editorial; 2001.
Lançado em 26 de novembro de 2001, no Cine SESC - São Paulo, com a exibição dos
curtas Brasil (1981) e O Perigo Negro (2001).
2 Das anotações de argumento e roteiro do longa-metragem Carnaval na lama, realizado
em 1970.
xv
Seus roteiros e projetos cinematográficos são verdadeiros poemas
antropofágicos, que deliciariam Oswald. Seus artigos jornalísticos são
documentos históricos e literários que primam pela originalidade,
concisão, simplicidade, clareza, elegância de estilo, e elevam a “escola”
modernista brasileira aos mais altos patamares.
Não era propriamente um discípulo de Oswald ou do modernismo,
era um continuador daquela revolução libertária, a romper as barreiras
da história. Sua familiaridade e sintonia com a obra de Oswald davamlhe a liberdade, inequívoca e inquestionável, de citá-lo sem aspas e
com a consciência de se apropriar dos achados dele com toda a legitimidade, como se pelo próprio autor concedida. Ao que conheço, só
Nonê e Rogério puderam gozar dessa concessão informal de liberdade
com a obra de Oswald, sem que se lhes assomem as pechas do epígono,
do plágio ou do cabotinismo.
Tinha também uma autoridade semelhante a de Oswald ao abordar
todo assunto de interesse público, à revelia dos diplomas acadêmicos e
outros reconhecimentos formais de saber. Sua palavra escrita surge
sempre significativa em qualquer contexto, nada vindo de sua pena pode
ser dado como desprezível ou insignificante, tudo é importante, contributivo, elevado.
Outro aspecto de semelhança é a coragem e a ousadia de não
esconder-se por detrás de insinuações maliciosas ou de truques elípticos
e metafóricos para se posicionar diante dos fatos. Não vacilava em dar
nomes e endereços precisos ao apontar fraudes, equívocos e fraquezas
onde quer que os encontrasse. Sua postura em relação ao Cinema Novo,
se escandalizou o stasbilishment, o fez justo por revelar e denunciar
verdades mais que conhecidas, mas que ninguém ousava declarar e
assinar em baixo. Para as melhores cabeças da nossa geração, seus textos,
mais que seus filmes que não podíamos conhecer por conta de censuras
superpostas, eram verdadeiros alívios e desafogos: diziam exatamente
aquilo que tínhamos preso em nossas gargantas sedentas de expressão,
de arte e de verdade.
Igualmente importantes foram seus pronunciamentos e entrevistas.
Rogério, por precocidade, escapou do estigma imposto à nossa “geração
de 68”, cuja expressão viria a se dar na década de 1970. Ele foi uma
voz da década de 70 que começou a falar na de 60, e isso livrou-o
daquele estigma que nos reduziu todos a pó. Nos anos 70, seguindo a
xvi
estratégia do “Sistema de Babilônia” - que era a de calar a juventude
revolucionária antes que ela fizesse a revolução -, a imprensa conspirou
contra nós e bloqueou nosso acesso ao grande público. O fato é que, se
isto foi possível contra nós, que mal começávamos a abrir a boca, não
foi possível contra os que já tinham voz, e Rogério era um deles. E
desses que tinham voz, o Sistema tratou de comprar a consciência de
cada um, mas Rogério não vendeu a dele. Pelo contrário, ele “ofereceu
um peito nu e atlético aos golpes mais profundos de que lançam mão a
usura e o latrocínio, com aquela confiança otimista que os temperamentos
milionários oferecem ao sádico frigorífico do capitalismo.” E o resultado
foi “a agrura de uma vida desvaliada e incompreendida, ante a montagem
dos grandes carnívoros que se alimentaram muitas vezes das suas idéias,
da suas iniciativas e descobertas, como o abutre do Cáucaso ante a
entrega messiânica de Prometeu.”3
Mas Rogério tinha consciência do seu talento e do castigo que lhe
significava possui-lo. O talento não deixa outra saída a quem o possui
nos níveis da genialidade - não permite que se abra mão da verdade,
não permite concessões, sob pena de auto anular-se. Somente a história
poderá vingá-lo e desde o início Rogério o sabia (“a História está a
nosso favor”), pois já em 1970, referindo-se ao Cinema Novo, escreveu:
“É preciso ficar mais uma vez claro que isso tudo pega mal para
eles, que o problema é deles, quem passará o vexame histórico serão
eles, aliás como prevíamos desde 1968.”4
Hoje não temos dúvidas de que a história o vingou, já ninguém
aguentará pela frente um Vidas Secas ou um Macunaíma - os “filmes”.
Mas, em 1970 criticá-los era comprar briga feia. Publicar então...
Como todos os escritores de gênio, Rogério escrevia voluptuosamente e com facilidade. O som da sua máquina de escrever, como o de uma
suave metralhadora, já denunciava a qualidade do que ia saindo. Não
é mistificação, quem o viu e o ouviu escrevendo me confirmará. Pois
também ele, como Oswald, escrevia de ouvido: “o escritor escreve o
que ouve, nunca o que houve.” Uma boa prova do que falo é a sensibilidade musical externada em suas obras. Em quaisquer delas ouve3 in Andrade, Oswald de. Ponta de Lança. - Civilização Brasileira : Rio de Janeiro;
1972. “Carta a Monteiro Lobato”.
4 “A questão da cultura”, texto inédito de Rogério Sganzerla, datado de 1970, está
entre os que selecionamos para publicar.
xvii
se a sonoridade das palavras como se escritas para uma composição
musical de vanguarda:
“Desvendo o véu de Isis: tenho para mim que antes de mais nada
é necessário pensar em Hendrix como uma divindade. Não uma
‘divindade do som’, se assim posso exprimir, mas divindade do homem.
Total mente gênio total – pois ele próprio é uma divindade que se
alimenta de sua própria aura; um gênio encarnado suntuosamente num
negro-índio; gênio da América e americano por dentro número um.”5
Mas, se são notáveis as semelhanças e as sintonias dos espíritos
que regem as obras de Rogério e Oswald, ao ponto de irmaná-las e
tornar uma o prosseguimento da outra (sem contar que, como Oswald,
Rogério foi também um prolífico frasista), suas pessoas e personalidades
apresentaram características individuais completamente diversas, até
opostas. Só para ficarmos nas mais evidentes, a expansividade retumbante e cosmopolita de Oswald teria contraponto no retraimento recatado
de Rogério, que beirava a timidez do caipira. Em oposição ao coletivismo
gregário e exacerbado do mestre do modernismo, tínhamos o individualismo encouraçado do cineasta, quase intransponível. Pessoalmente, a sisudez magrela de Rogério nos fazia lembrar Monteiro Lobato
perto do gordo e bonachão Oswald de Andrade. Mas nada disso é importante agora, estão todos na história e são suas obras que nos ficam.
De Lobato e Oswald conhecemos muito e muito há por conhecer. Mas a
obra literária de Rogério é quase virgem, parte é dispersa nos “inéditos
jornalísticos”, outra é diluída na internet e o grosso dela dorme nos
baús de originais.
Ainda não sabemos a extensão desta obra de revelação e registro
histórico que é a obra literária de Rogério Sganzerla. Nem eu que tive
acesso a certos baús por bastante tempo tenho a menor idéia do que
temos a desvendar sob este “véu de Isis”. Sei que muito mais há de
aparecer a partir de pesquisas bem conduzidas, e com certeza muito
importantes. É preciso que Helena não cometa o erro dos herdeiros de
Oswald e não o entregue à incompetência invejosa de acadêmicos, os
maiores inimigos das expressões de vanguarda, e que sabotarão a obra
de Rogério, como sabotaram e ainda sabotam as de Oswald e Lobato.
5 “Jimi, gênio total”, artigo publicado na Folha de São Paulo em 11 de agosto de
1980, é outro entre os textos que selecionamos para publicar.
xviii
O nosso P
rojeto
Projeto
Inicialmente, a idéia era fazer um apanhado de cerca de 100 textos
escolhidos entre artigos de jornal, entrevistas e depoimentos à imprensa,
roteiros e argumentos de filmes, para publicá-los dentro de seções préestabelecidas, tipológicas ou temáticas, como “Artigos publicados na
Folha de São Paulo”, n’O Estado de São Paulo, etc, “Roteiros e Argumentos de Longas”, de Curtas, etc. Chegamos a selecionar uns cinquenta
textos, dos quais usaríamos dez ou doze para montar o ante-projeto e
sair à cata de uma editora de grande porte que se interessasse. Não
chegamos a pensar num título geral da obra porque achávamos que
entre todos os itens de projeto seria o mais fácil de resolver.
Tínhamos de buscar certo equilíbrio de conteúdo, pois eu escolhia
os textos mais radicais e Rogério propunha os mais moderados. Daí
nossas discussões. Da minha parte, eu acreditava (e ainda acredito)
que os textos em conjunto, publicados em livro, resultarão efeito muito
maior do que tiveram quando publicados isolados, em páginas de jornais,
a maioria de seus artigos devastadores. Este ante-projeto demonstra-o
bem. Rogério, além dos grilos mencionados, achava, com razão, que o
dele é que estava na reta e porradas muito fortes poderiam significar
suicídio político, inviabilizando as esperanças de realização sob a tutela das burocracias de governos, já, há tempos, a única forma possível
de fazer cinema “neste quintal d’América”. E nessa, o projeto não andou.
Hoje, relendo alguns daqueles textos, acho que a melhor montagem
do livro é a ordem cronológica, misturando, na sequência do tempo,
todos os tipos de textos e temas. Teremos assim uma panorâmica viva da
obra rogeriana, a evolução de suas idéias, a coerência e a unidade de
um pensamento que não se deixou apanhar em um deslize sequer, além
de demonstrar, com absoluta clareza, o acerto histórico de seus juízos e
prognósticos, aliás, impressionante.
Neste ante-projeto incluo, além dos que possuo em meus arquivos e
biblioteca, todos os textos que pude obter na internet, já corrigidos dentro
do possível. Dou-lhe o título provisório de “Fragmentos”, pois o conjunto
aqui apresentado não é mais que isso, pelas lacunas que exibe. Ao que
eu saiba, faltam-lhe importantes registros das décadas de 70 a 90 (Sem
essa aranha, Oswaldianas, entre outros momentos) e os apontamentos
aos tesouros que vi conservados no acervo de pesquisas de Rogério,
xix
cheio de preciosidades, tais como o roteiro original de Perigo Negro,
escrito por Oswald de Andrade para Orson Welles filmar, que fora
entregue pessoalmente pelo autor ao cineasta norte-americano. Na
extensa pesquisa que fiz sobre a obra de Oswald não encontrei sequer
menção a tão valioso escrito, só Rogério sabia dele, e possuía cópia do
original. Além disso, filmou-o.
Na edição final muitos textos que conheci (ou não conheci) deverão
se agregar, preenchendo as diversas lacunas aqui deixadas, e será necessário o cotejamento com os originais datiloscritos de Rogério, de
preferência. A transcrição direta de recortes de jornais e internet só
deve ser feita quando não encontrados os datiloscritos correspondentes.
Não poucos foram cortados ou mutilados por censuras internas e externas
dos veículos, quando não por exigência do espaço para publicar. Um
estabelecimento de textos tecnicamente bem feito não será difícil de
realizar pois são textos recentes.
A meu ver, na impossibilidade de se publicar todos os textos num
só volume, a tônica da seleção do primeiro a ser lançado deve ser ainda
a crítica, a polêmica, a análise e o debate dos problemas culturais e
políticos da nossa geração, os quais não foram superados e se mantém
na vanguarda do pensamento universal ou nacional, como queiram.
Dará uma obra de interesse geral, atualíssima, e a lucidez do texto de
Rogério representa o melhor do nosso pensamento, em suas posições
mais avançadas. O leitor inteligente, sempre sedento de iluminação e
de gênio, o consagrará, bem surpreendido, no reconhecimento de que
conquistou crescimento e ganhos expressivos de humanidade e elucidação - muito acima dos esperados - com a leitura deste livro.
E agora que está na história, Rogério não tem porque temer respostas
covardes a suas porradas, fortes e precisas, é verdade, mas frente-afrente, nas regras e na melhor ética.
Agora, “o problema é deles”.
Mario Drumond
xx
Critérios do presente ante
-projeto
ante-projeto
Não havendo elementos para o estabelecimento de texto em critérios
ecdóticos, fiz apenas a correção de erros óbvios.
...
Preferi não mencionar os sites onde capturei textos e fotos por não
se informar neles em que bases de direitos autorais e de imagem foi
publicado o material que colhi. Em nenhum deles encontrei créditos
para fotógrafos, por isso não pude dá-los aqui. É indispensável que
sejam obtidos, mediante pesquisa, para a edição definitiva.
...
Alguns textos foram transcritos de cópias que possuo em meus
arquivos, e estes estão assinalados nas notas de seus títulos como o
termo “(Arquivo)”. Outros são transcritos de publicações impressas,
assinalados com o termo “(Referência impressa)”.
...
Publico aqui todos os textos que possuo em cópias ou referências
impressas e os que consegui obter via internet, em ordem cronológica.
...
Para os textos não datados estimei a posição cronológica com base
na minha memória (Seção 1) ou em indícios dos próprios conteúdos.
Não me preocupei em sustentar as estimativas, já que se trata de um
ante-projeto. Também não posso afirmar que os textos da Seção 1 foram
exatamente aqueles que Rogério e eu escolhêramos. O que posso dizer
é que me lembro perfeitamente de ter lido cada um deles, nos originais,
durante o processo seletivo em que trabalhamos juntos.
...
Nos meus textos de introdução, notas e “intervalos” não há intenção
exegética, são apenas informações que acredito possam ser úteis na
elaboração da edição final, podendo ou não ser aproveitados nela, no
todo ou em parte.
...
A exegética dos trabalhos literários de Rogério, após coligidos em
amostragem bem mais representativa do que a que se segue, deve ser
entregue a estudiosos consagrados e não acadêmicos. Considero Gilberto
Felisberto Vasconcellos, de longe, o nome mais indicado.
xxi
xxii
Fragmentos
de
Rogério
Sganzerla
Seção 1:
textos de 1965 a 1995
coligidos por
Rogério Sganzerla
e Mario Drumond
Nas filmagens de Documentário, em 1966.
O legado de kkane
ane
1
Tradicionalmente efetuam-se revisões críticas de obras consideradas
“grandes” sob as luzes de novos sistemas estéticos. Ao mesmo tempo
que Delacroix e Chopin passam a ser considerados demodeés, apontase a modernidade de Dante, Shakespeare ou Piero della Francesca, e
talvez a situação venha a inverter-se daqui a alguns decênios, reabilitando
muita gente através de uma nova e flagrante noção de modernidade...
Não há nada de estranho nisso; é assim mesmo – como disse um
ensaísta francês: “si le voies de l’art sont imprévisibles, c’est parce que
celles du hasard ne le sont pas”.
Portanto, nada mais lógico do que Griffith, Stroheim, Vidor serem
cultuados pelos cinéfilos de 1965 ao mesmo tempo que Eisenstein,
Bresson, De Sica e o próprio Welles (O Processo) mergulham no esquecimento. Talvez seja esse o destino das obras (e autores) de arte.
Conhecer o sucesso em fases esporádicas. Brilhar hoje ou esperar pelas
próximas gerações...
Mas sempre existiram destinos privilegiados, exceções. E a exceção
é Cidadão Kane, filme e personagem.
***
Em Orson Welles, como em William Blake, a beleza é a exuberância.
Em todos os sentidos: exuberância técnica, acúmulo de personagens,
de intenções históricas, histriônicas, de montagem, exuberância do mau
gosto, e, enfim, a exuberância do cinema americano. Pouco, muito pouco,
desta película envelheceu: realizada em 1941, ela parece apresentar
privilégios das obras excepcionais.
“- Não se pode explicar a vida de um homem por uma palavra”, diz
Thompson, o repórter encarregado de vasculhar a vida de Kane e descobrir o significado de Rosebud, pronunciada no leito de morte.
Da mesma forma, “não se pode explicar a vida de um homem por
um filme...”
1 Publicado no Supl. Literário d’O Estado de S. Paulo, sábado, 28 de agosto de 1965.
Alô alô Rogério Sganzerla!
Citizen Kane constitui, até prova em contrário,
o primeiro filme (1941) baseado em princípios
relativistas de captação do universo e de um personagem.
O que é um filme? Segundo o Welles de
1941 é um objeto de 119 minutos de duração,
limitado e relativo. O filme vai até onde
pode. Não consegue abranger “em absoluto”
os homens e seus dilemas interiores, a civilização americana e sua essência barroca; isto é, não consegue conhecêlos. No máximo apreende alguns aspectos unilaterais e falsamente
objetivos.2
Daí a fragmentação formal. Inspirado em novos recursos narrativos,
principalmente do romance (Faulkner, John dos Passos), Welles recusa
a construção clássica (clara e unitária), linearmente progressiva das
películas de então. Cidadão Kane apresenta uma estrutura voluntariamente fragmentária. Sete depoimentos mais ou menos controversos
sobre Charles Foster Kane além de outras individualidades: cenas,
planos-seqüências, personagens e efeitos de som.
O imenso puzzle de que fala o repórter e que Susan simbolicamente
monta parece ser a fita em si, ao compor um extenso painel históricohumano, o filme-objeto – ou filme-puzzle – não chega a se completar.
Falta um último fragmento: Rosebud, palavra ou palavra-objeto, como
diria Sartre. A fita possui uma forma aberta (como na arte barroca e na
2 Nota do A. - Verdade é que o tratamento varia. Apesar de tudo, o cineasta não se
desligara completamente do cinema clássico da época, como não seria possível, de resto. O cinema clássico infiltra-se ainda por entre o relativismo predominante, o que é acentuado pelo fato de Welles ser um homem a viver – e a filmar – oscilações constantes.
Cineasta de envergadura, sim, Welles não chega a solucionar tais oscilações numa síntese
que diz procurar, encontradiça em cineastas de primeira grandeza (Lang, Hawks, por
exemplo). Ao mesmo tempo que a fita oferece uma visão relativa e condicionada do
universo (a impossibilidade de conhecer Kane, as limitações do nosso mundo), pretende,
no desenlace, oferecer uma visão ideal, absurda – própria de um Deus ou de um psicanalista... (nos momentos em que revela o segredo da palavra). Idêntica ruptura observase na representação física da mise-en-scène diante do real; em alguns momentos a
câmera localiza-se numa altura sóbria, junto ao décor (especialmente nas entradas),
em outros ela projeta-se de alturas inimagináveis, talvez dos “céus da RKO”, destacando
os momentos em que o diretor pretende penetrar diretamente, com a câmera, em segredos
indevassáveis (diante da boite, do palácio de Xanadu etc.)
26
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
arte contemporânea), “incompleta”; trata-se de um jogo a ser mentalmente organizado pelo espectador.
Orson Welles recusa as habituais cumplicidades entre câmera e
personagem, em que ambos se oferecem integralmente um ao outro e
possibilitam uma relação direta e ideal. Em Cidadão Kane, filme e
personagem(ns) são elementos autônomos e até adversos. O filme já não
possui estrutura fechada e definitiva, é aberto enquanto o personagem é
“fechado”: invertem-se os papéis clássicos de filme e personagem diante
do mundo.
Welles introduz um novo tratamento do personagem: neste
Suplemento (21-11-64) já tive oportunidade de referir-me ao “herói
fechado”. Como se sabe, o herói clássico requisitava a sua ilustração
frente à platéia, sendo-nos generosamente ofertado através de análises
clínicas, lavagens cerebrais, dissecações psicológicas ou intimistas. Ao
contrário, o “herói fechado” distancia-se de nós até tornar-nos um núcleo
inatingível – como foi tratado este cidadão.
Igualmente “fechados” são os personagens e objetos; Rosebud, o
trenó, a fortuna de Kane são elementos desconhecidos para nós.
Thompson, por exemplo, não o vemos claramente, não há informações
psicológicas sobre a sua pessoa; é quase sempre uma presença apagada,
vista de costas, uma sombra que perscruta o mundo, talvez a visão da
História. Ou então do cinema.
É verdade que tal tratamento corresponde ao ideal expressionista
de transformar os seres e objetos em símbolos. Mas eles não são somente
símbolos, há algo mais. A certa altura, Rosebud, por exemplo, deixa de
ser somente o signo da melancolia de Kane para tornar-se, também, um
elemento de conflito, isto é, para materializar-se. Os significados são
inúmeros (símbolo da pureza, da infância perdida, do amor e implicações
maternas, da regressão, da felicidade etc.) mas o que é, finalmente,
Rosebud? Também Welles não intenta decifrá-lo.
O princípio da película – fornecer múltiplos pontos de vista sobre
uma mesma incógnita – aproxima-se muito daquele tom de entrevista
evidenciado em diversas fitas modernas, chegando mesmo a instituir
uma técnica cinematográfica de reportagem. Neste sentido, lembro
algumas posições de câmera diante do décor: um entrevistador diante
do entrevistado; a filmagem desdramatizada, em cenas longas, de um
27
Alô alô Rogério Sganzerla!
grupo de pessoas conversando, rindo, discutindo geralmente ao mesmo
tempo (Welles não filma ações mas discussões, agravadas posteriormente
em A Marca da Maldade e O Processo). Cidadão Kane antecipa a “estética da conversa fiada”, característica do cinema moderno, a que se
refere o crítico J. C. Ismael.
Outro crítico, o francês Jean Domarchi, declarou, num artigo
intitulado “América”, que “para Welles ver o mundo significa falar desse
mundo”. Não é à toa que Kane renuncia à fortuna por um minúsculo
matutino nova-iorquino ou que o fio condutor da história seja um
jornalista: a fita parece, de fato, uma imensa reportagem sobre uma
grande personalidade. E como na reportagem, detém-se em perguntar:
quem é Kane? Rosebud? O amor, a civilização americana? O dinheiro?
Naturalmente as respostas não são dadas: “os grandes cineastas primam pela enunciação de problemas e não por sua resolução”, dizia na
ocasião o próprio Welles.
Outro fator de modernidade é a proximidade com o teatro. O cineasta
aproveitou a sua carreira anterior, que movimentara fortemente Broadway e arredores, oferecendo inéditas experiências sonoras ao cinema de
então. Neste sentido, nada mais teatral, no cinema, do que o “estilo
radionovela” adotado em algumas seqüências, talvez em homenagem à
sua carreira de rádio. Esquematicamente, pode-se definir esta fita como
uma híbrida junção entre reportagem e teatro... a serviço do cinema.3
3 Este texto pertence à série publicada no Suplemento Literário de O Estado de São
Paulo nos anos de 1964 e 1965. É de uma fase em que o cineasta-escritor ainda não se
bifurcara nas duas vertentes fundamentais do seu pensamento. Dessa fase, tínhamos
selecionado apenas este e um outro texto intitulado “Noções de Cinema Moderno” (1965),
que Rogério publicou em Por um cinema sem limite junto a alguns outros textos da série. O que nela já diferenciava Rogério dos demais críticos era a preocupação para
além das razões estéticas e técnicas do cinema. Já enxergava a linguagem cinematográfica
como nova ferramenta, ainda que com limitações e indefinições, de especulação psicológica e filosófica. Sem que tenha usado a palavra “filosofia”e derivadas em seus
textos (como Kierkegaard, mesmo sendo filósofo por natureza e intuição Rogério não se
assumia como tal), são as buscas na direção da verdade e as essências do homem e da
humanidade que mais o preocupavam na análise do que ele batizou, apropriadamente,
“cinema moderno”, identificando-o, não na natureza estética revolucionária que
caracteriza a expressão “moderno” em relação às outras artes, mas com o pensamento
filosófico moderno que, de Hegel para cá, introduz as noções de relatividade nas abordagens revolucionárias da realidade.
28
Seção 1
Cinema F
ora da Lei
Fora
Fragmentos (de 1965 a 1995)
4
Manifesto de Rogério Sganzerla
1 – Meu filme é um far-west sobre o III
Mundo. Isto é, fusão e mixagem de vários
gêneros. Fiz um filme-soma; um far-west mas
também musical, documentário, policial,
comédia (ou chanchada?) e ficção científica. Paulo Vilaça e Helena
Ignez em O Bandido
Do documentário, a sinceridade (Rossellini);
do policial, a violência (Fuller); da comédia, o ritmo anárquico (Sennett,
Keaton); do western, a simplificação brutal dos conflitos (Mann).
2 – O Bandido da Luz Vermelha persegue, ele, a polícia enquanto
os tiras fazem reflexões metafísicas, meditando sobre a solidão e a
incomunicabilidade. Quando um personagem não pode fazer nada, ele
avacalha.
3 – Orson Welles me ensinou a não separar a política do crime.
4 – Jean-Luc Godard me ensinou a filmar tudo pela metade do preço.
5 – Em Glauber Rocha conheci o cinema de guerrilha feito à base
de planos gerais.
6 – Fuller foi quem me mostrou como desmontar o cinema tradicional
através da montagem.
7 – Cineasta do excesso e do crime, José Mojica Marins me apontou
a poesia furiosa dos atores do Brás, das cortinas e ruínas cafajestes e
dos seus diálogos aparentemente banais. Mojica e o cinema japonês me
ensinaram a saber ser livre e – ao mesmo tempo – acadêmico.
8 – O solitário Murnau me ensinou a amar o plano fixo acima de
todos os travellings.
9 – É preciso descobrir o segredo do cinema de Luís poeta e agitador
Buñuel, anjo exterminador.
10 – Nunca se esquecendo de Hitchcock, Eisenstein e Nicholas
Ray.
11 – Porque o que eu queria mesmo era fazer um filme mágico e
cafajeste cujos personagens fossem sublimes e boçais, onde a estupidez
4 Escrito em 1968, durante as filmagens de O Bandido da Luz Vermelha.
29
Alô alô Rogério Sganzerla!
– acima de tudo – revelasse as leis secretas da alma e do corpo
subdesenvolvido. Quis fazer um painel sobre a sociedade delirante,
ameaçada por um criminoso solitário. Quis dar esse salto porque entendi
que tinha que filmar o possível e o impossível num país subdesenvolvido.
Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais – aliás como 80%
do cinema brasileiro; desde a estupidez trágica do Corisco à bobagem
de Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos párias de Barravento.
12 – Estou filmando a vida do “Bandido da Luz Vermelha” como
poderia estar contando os milagres de São João Batista, a juventude de
Marx ou as aventuras de Chateaubriand. É um bom pretexto para refletir
sobre o Brasil da década de 60. Nesse painel, a política e o crime
identificam personagens do alto e do baixo mundo.
13 – Tive de fazer cinema fora da lei aqui em São Paulo porque quis
dar um esforço total em direção ao filme brasileiro liberador, revolucionário também nas panorâmicas, na câmara fixa e nos cortes secos.
O ponto de partida de nossos filmes deve ser a instabilidade do cinema
– como também da nossa sociedade, da nossa estética, dos nossos amores
e do nosso sono. Por isso, a câmara é indecisa; o som fugidio; os personagens medrosos. Nesse País tudo é possível e por isso o filme pode
explodir a qualquer momento.
Depoimentos
(Em 1968, aproveitando a seleção e a
posterior premiação máxima em Brasília
para O Bandido da Luz Vermelha, Rogério O Bandido da Luz Vermelha
Sganzerla toma de assalto as redações com depoimentos ácidos sobre o
estado do cinema brasileiro e o gesto que seu primeiro longa-metragem
significa. Alguns deles, junto com a parte “1” de seu manifesto “Cinema fora-da-lei”, permaneceram sendo citados por anos e anos. Perdidas
as referências principais, publicamos aqui as declarações de Sganzerla
sobre suas influências e seu processo de criação [R.G.])5
“Podia falar muito da chanchada, que considero uma das nossas
5 “Nariz-de-cera” da Contracampo - Revista de Cinema, nº 58.
30
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
mais ricas tradições culturais, como também sobre o estilo radiofônico
desse filme; o rádio brasileiro é outra tradição que não pode ser desconhecida, principalmente quando se tenta mergulhar nas origens e
implicações do subdesenvolvimento. Não tive pudor nenhum em realizar
esse ou aquele plano inclinado, tal diálogo ou situação cafajeste. Fiz
questão, inclusive, de filmar como habitualmente não se deve filmar,
isto é, utilizando angulações preciosistas e de mau gosto, alterando a
altura da câmera, cortando displicentemente, não enquadrando direitinho, sendo acadêmico quando me interessava. Nesse filme marginal há citações de Primo Carbonari e de peças dirigidas por José Celso
Martinez (O Rei da Vela), além de José Mojica Marins. Fiz um filme
voluntariamente panfletário, poético, sensacionalista, selvagem, mal
comportado, cinematográfico, sanguinário, pretensioso e revolucionário.
Os personagens desse filme mágico e cafajeste são sublimes e boçais.
Acima de tudo, a estupidez e a boçalidade são dados políticos, revelando
as leis secretas do corpo explorado, desesperado, servil e subdesenvolvido. Meus personagens são, todos eles, inutilmente boçais, como,
aliás, os de 80% dos filmes brasileiros desde a estupidez trágica do
Corisco à cretinice do Boca de Ouro, passando por Zé do Caixão e pelos
atrasados pescadores de Barravento. Assim, o bandido da luz vermelha
é um personagem político na medida em que é um boçal ineficaz, um
rebelde impotente, um recalcado infeliz que não consegue canalizar
suas energias vitais.”
“O novo cinema deverá ser imoral na forma, para ganhar coerência
nas idéias, porque, diante desta realidade insuportável, somos antiestéticos para sermos éticos. Fiz O Bandido da Luz Vermelha porque
todos os cineastas que admiro fizeram filmes policiais mas no meio do
projeto percebi que não poderia parar, que tinha de incorporar outros
estilos sem sair da poesia noturna do policial classe B, para procurar a
verdade nos espaços externos do western, nos interiores pobres da chanchada, na estilização do musical. Não tive pudor em fundir a 5ª Sinfonia,
de Beethoven, com Asa Branca, de Luiz Gonzaga, e, em certos momentos,
sobrepor três ou quatro músicas. A narração é outro elemento original,
pois restitui o filme a uma de suas origens fundamentais – o rádio. No
fundo, ela é uma tentativa de captação e abstração da realidade porque
o jogo da narração repousa na possibilidade da palavra em si. No final,
os narradores entrecortam-se progressivamente, manifestando uma
perplexidade verbal que é o signo do próprio filme.”
31
Alô alô Rogério Sganzerla!
Sganzerla ataca de Bandido
6
Não obstante a alta qualidade da seleção de Brasília, sabe-se que
Rogério Sganzerla venceu bem o IV Festival do Cinema Brasileiro com
seu O Bandido da Luz Vermelha. Em suas declarações a nossos colegas
no Jornal do Brasil, Rogério Sganzerla – nascido em Joaçaba, Santa
Catarina, em 1946 – disse acreditar que seu filme contém, “principalmente, uma reformulação formal dentro do cinema brasileiro.
Chegou a hora dos filmes sujos e poéticos, impuros e pretensiosos, das
formas novas para novos conteúdos. De um cinema de linguagem que
falasse da política ou de banditismo sem respeito estético, adotando
inclusive – como Gustavo Dahl em O Bravo Guerreiro – uma liberdade
obscena”.
Um fenômeno de precocidade
Rogério Sganzerla aproximou-se do cinema ainda garoto.
– Aos doze anos, escrevi meu primeiro roteiro; e era um roteiro de
longa-metragem.
Como crítico e como cineasta, Sganzerla filia-se claramente às novas correntes que vêm revolucionando o cinema no mundo inteiro.
– Se faço cinema no Brasil, então faço Cinema Novo. É difícil definilo, sem dúvida. É uma igrejinha, mas também um movimento coletivo,
talvez o mais importante da cultura brasileira nestes últimos vinte anos.
Se existe algum lado negativo então é o caráter sub-literário e o despreparo de muitos diretores com pretensões estritamente intelectuais.
O filme que sintetiza o Cinema Novo ainda é Deus e o Diabo na Terra do
Sol, de Glauber Rocha, embora reflita os entusiasmos, as indecisões e a
ingenuidade da primeira fase. Barravento, do mesmo Glauber, é o melhor
filme baiano. E Terra em Transe abre, com O Desafio, o novo momento
do Cinema Novo. Não se pode defini-lo: aí está sua força. Os filmes têm
que ser políticos, mas podem sê-lo de outras maneiras, não somente
como Rocha e Sarraceni. Não se pode nem tentar imitá-los. É preciso
que a turminha de hoje, mais nova, abra os olhos e enverede por outras
saídas. O cinema evolui em meses e mesmo assim está atrasado em
relação às outras atividades artísticas.
6 Depoimento a Alex Viany, publicado na Tribuna da Imprensa, quinta-feira, 5 de
dezembro de 1968.
32
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Discordo de um cinema brasileiro estritamente crítico, realista
(no sentido tradicional) e objetivo,
embora respeite certas opiniões dos
lukacsianos. Nossa realidade não
admite cinismo nem constatação
seca dos fatos. O distanciamento e
as teorias brechtianas, aplicados ao
cinema, são coisas do passado.
Hoje, não se pode pensar em aplicá-los a nossos filmes. O cinema
brasileiro é um processo naturalmente cruel: Godard e Rosi precisam
ser destruídos urgentemente. É o novo Cinema Novo quem pede.
Por um cinema imoral
Nas declarações ao Jornal do Brasil como que completando o
depoimento que me fez há tempos, Sganzerla acrescenta:
- O novo cinema deverá ser imoral na forma, para ganhar coerência
nas idéias, porque, diante desta realidade insuportável, somos antiestéticos para sermos éticos. Fiz O Bandido da Luz Vermelha porque
todos os cineastas que admiro fizeram filmes policiais mas no meio do
projeto percebi que não poderia parar, que tinha de incorporar outros
estilos sem sair da poesia noturna do policial classe B, para procurar a
verdade nos espaços externos do western, nos interiores pobres da
chanchada, na estilização do musical.
Enquanto esperava sua vez de fazer cinema, Rogério Sganzerla fez
crítica.
– Foi meu meio de dizer as coisas, de violentar o cinema durante
quatro anos. Hoje, não consigo escrever mais de vinte linhas sobre um
filme; antigamente, escrevia laudas e laudas. A crítica, agora, para mim
serve como política de cinema; mais nada. Lamento que eu seja o único
de minha geração a interessar-se pela crítica; todos os outros nem querem
saber de jornalismo e crítica. A crítica brasileira continua ruim.
Por muitos vietnãs
Para Sganzerla, todos os jovens “estão um pouco viciados pela
nouvelle vague e seus famosos macetes; aquilo que todo mundo chama
de mise-en-scène”.
– Ou seja: a montagem solta, o estilo documental, os planos-se33
Alô alô Rogério Sganzerla!
qüências, as personagens politicamente indecisas, elegantes e amorais,
a câmera na mão, etc. Ficam só nisso: o cinema pelo cinema. Godard.
Godard é o primeiro e único capítulo dos novos, mas precisa ser situado
e criticado. Godard é um intelectual vítima da sociedade industrial
francesa, que fala de outras realidades. Fico com Pasolini quando ele
diz que “o cinema agora tem que ser bárbaro e barroco”. Glauber Rocha,
cineasta brasileiro, meu irmão, meu semelhante. O cinema brasileiro
nasce com Humberto Mauro, vive com Nelson Pereira dos Santos, excitase com Paulo César Sarraceni, desespera-se com Glauber Rocha e morre
com todos nós. Godard falou: “É preciso criar um, dois, três, quatro
Vietnãs cinematográficos”. O cinema brasileiro, mesmo o Cinema Novo,
está se aburguesando; virou cinema novo-rico. Por outro lado, volta o
outro cinema, isto é, o cinema gagá (de São Paulo, principalmente, de
nossos clássicos expressionistas caipiras).
O cinema do risco
O novo cineasta não vê muitas perspectivas para os jovens que
desejam fazer cinema no Brasil.
– Mas é preciso lutar. Estamos aí para isso mesmo. Em verdade,
hoje existem dois cinemas: o novo rico e o cinema de guerrilha. Nesta
última perspectiva é que se alinha a nova geração. Não sei bem quem é
a nova geração, mas sei que está aí. Há muito interesse por parte de
gente inexperiente ou quase, em trabalhar com celulóide, fazer filmes,
mudar as atuais condições do Cinema Novo. Ele está um pouco desgastado.
E aí está O Bandido da Luz Vermelha, ganhador do grande prêmio
de Brasília 68. “Se escolhi o bairro para falar do Brasil”, disse ainda
Sganzerla ao JB, “é porque esse bairro se chama Boca do Lixo. Não é
símbolo, mas sintoma de uma realidade. Dentro de uma sinceridade
total, tentei mentir e dizer a verdade, ser triste e violento, boçal e sensível,
acadêmico e criador. Enfrentei uma parada diabólica: os maiores riscos
para um estreante na longa-metragem com a simples certeza de que o
cinema brasileiro é o cinema do risco, onde tudo é possível”.
34
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Notas para O Índio e a V
ampira
Vampira
7
1. ela é uma mulher sexualmente
insatisfeita. sinais: dá para muitos
(pessoas feias gordas sujas). em toda
narração.
2. ela está quase sempre de
biquíni duas peças. outros idem.
Fac-símile (parte) do
3. esse poderia ser o filme do
datiloscrito de Rogério
último dia de vida dos seus personagens. nesse filme todos os personagens morrem naquele mesmo
dia.
4. importante: passagem da alienação ao comunismo dela: no strip
tease com guerrilheiro. ela sente o clima da subversão. um clima
altamente sedutor e subversivo. momento forte.
5. diluir todo estilo documental.
6. expressar idéias através da mitologia e do mundo da aventura.
7. em Shangri-lá a classe média é aterrorizada a se destruir como
classe tragicamente insolúvel.
8. X-9 sempre de moto, assim como as duas quadrilhas.
9. X-9 enterra diversas cargas de dinamite no décor (início do filme)
em que personagens pisam. algumas explodem. outras, não.
10. homossexualismo feminino: falta?
11. por diversas vezes, ele dirige carro aberto com lenço. exerce
telepatia, falando com pessoas que encontra: fecha os olhos e diz tudo
sobre sua roupa, casos. É um mago. X-9, o mago.
12. o marido Peter usa um turbante turco na cabeça: tem origens
ianques, turcas ou rumanescas?
13. gesto a repetir: ela levanta saia até a coxa
14. ver romances
15. Personagem: Marilyn Monroe; Mr. Universo
16. índio faz fogo e fumaça
7 Escrito em 1968.
35
Alô alô Rogério Sganzerla!
Filme em Questão
8
Aos senhores críticos:
Definitivamente, queria esquecer O Bandido da Luz Vermelha
(rodado em abril-maio de 1968) de uma vez, já que foi feito para ser
visto num poeira, esquecido ao fim da sessão, jogado no lixo enfim, ao
invés de ser conservado na memória dos cineclubes e cinematecas. Em
São Paulo tive também de fazer a crítica porque picharam ou elogiaram
sem entender. Continuo esperando uma crítica inventiva, ao nível do
provável e não da certeza idealista, das especulações sentimentais e
perspectivas do passado (e do provincianismo, principalmente). Não dá
pé escrever que “Helena Inês está genial, é uma personagem fatal.” É
preciso repensar – no cinema como na crítica – o nova dimensão do
ator, da câmera, do diálogo; discutir as noções de belo, talentoso, sensível,
etc. Pelo amor de Deus, senhores críticos, não publiquem o óbvio, que
eu sou “um talentoso influenciado por Welles e Godard.” Falem da minha
dívida a Mojica, que vocês detestam, por exemplo.
É preciso, outro exemplo, dizer que com este filme o cinema moderno
finalmente chega ao Brasil; que eu me recuso a fazer literatura na tela;
que enfim surge um filme brasileiro ligado a Hawks e Godard e não a
Visconti e Fellini (isto é fundamental). Reparem as inovações da banda
sonora. Necessário dizer, também, que eu e alguns poucos estamos por
dentro, ao contrário dos deslumbrados provincianos do cinema novo
rico. Se tivesse que definir falaria de um cinema péssimo e livre, paleolítico e atonal, panfletário e revisionário – que o Brasil atualmente
merece. Repito isso tudo simplesmente porque não agüento mais o que
vem sendo feito pelo cinema novo. Falo como espectador comum,
agredido pela burrice institucionalizada.
Felizmente, Formosa Pistoleira – meu segundo longa-metragem, em
fase de finalização e mixagem – é o contrário deste: escolhi a teleobjetiva
ao invés da grande angular, longos silêncios substituem esta apocalíptica
banda sonora; um filme calmo, afirmativo e fechado sobre si mesmo.
Outro dia, numa entrevista a O Cruzeiro, que ninguém leu, disse
que “o cinema não me interessa, mas a profecia”. Com essa frase resumo
o meu desprezo pelas pequenas sensibilidades, pelos autores levemente
8 Escrito em 1969.
36
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
corajosos, sutilmente inteligentes, afirmando munha ruptura ao movimento de elite, aristocrático, paternalizante e acadêmico denominado
Cinema Novo. Vendo O Bandido, compreenderão minha radicalização
sincera.
Já fui crítico; e se deixei o jornal para realizar provocações antiocidentais não foi para virar autor como Bergman ou Antonioni mas
para, no máximo, ser um anônimo copydesk de Mack Sennett.
A Exibicionista (título único)
9
Close de chinesa que fala em som direto
– Cada vez mais mística e raivosa, a guerra e a revolução dentro de
mim, com essa necessidade besta de tirar roupa. me exibir por nada
(vai tirando a roupa, no fim da seqüência tem um tipo dormindo ao lado
que a beija) fim da seq. Ela está contra telão do Monte Fuji. Fala sobre
o Oriente. títulos. depois a seq. na rua com autos.
– Não agüento mais Hong Kong, quero cair fora do Japão, ser freira
no Paraguai, contrabandista em São Francisco, ladrona em Belém do
Pará, traiçoeira no Oiapoque, mística no Chuí.
– Eu rezo a única maneira de salvar-me, tirar o pé da lama mundial,
vou atrás do misticismo e da aventura, só acredito nelas. Eu penso muito
em mim porque quero me limitar, situar, mostrar-me a mim mesma, o
que eu queria era partir da minha própria superação, indivíduo e detalhe
sexual subdesenvolvido e sem nenhuma importância.
– Detesto esse meu jeito moderninho de falar; esses meus gestos, os
macetes da nossa civilização ocidental. Contra a propriedade, pela posse.
Misticismo é a visão direta. Documentário é misticismo; câmera fixa é
delírio; som direto é exacerbação. Só da raiva pode sair alguma coisa.
9 Atribui ao ano de 1969 a redação deste escrito, e dos três outros que se seguem.
Lembro-me de tê-los separado (estes e outros argumentos e anotações para roteiros)
porém não cheguei a conversar sobre eles com Rogério. Mas me parecem a continuação
das idéias que se vão formando na cabeça do cineasta desde O Índio e a Vampira, e que
vão dar em Carnaval na Lama e A Mulher de Todos.
37
Alô alô Rogério Sganzerla!
Por exemplo, o José Celso Martinez, o que é? não gosto mais de ninguém,
não tenho nenhum medo da morte. Tenho medo de mim. É o que me
salva. O terror dentro da minha cuca. Sempre preferi a maldade e a
traição. São os nossos caminhos, de onde pode sair qualquer esperança
coletiva. Mudar a face da terra. Só a violentação é moral, o resto é lixo.
Transformar, sujar, botar as mãos na massa; Antes do Carnaval em Caxias,
a trepada oriental. O Oriente também é uma bosta, estético, contemplativo, auto-suficiente. Prefiro a convulsão da. Gostaria que. Escolheria.
O terror ainda é a saída intelectual para nós, indivíduos talentosos e
superáveis do Ocidente subdesenvolvido, na tentativa inevitavelmente
cruel de entender nosso mundo e agir contra ele; intelectualmente, diria
que o terror é o caminho mais sensato e adequado ao relacionamento
didático-visionário dos seres e objetos.
A profecia hoje é obviamente oriunda do neo-realismo e do naturalismo. A televisão é visionária, o rádio também. O jornal é profético.
Adoro seu sensacionalismo – elemento altamente marxista, e provocador.
A provocação é o último estilo literário (ainda) do século XX. Dela pode
surgir a invenção formal e a revelação do conteúdo místico. Por uma
forma pobre, limitada, ascética, asséptica, que contenha um extravasamento anti-cristão e religioso.
Estou com a saída nas mãos e o que é que eu faço? Estou vendo
diretamente as coisas como elas são para mim. Sei que sou o maior,
ainda bem. Infelizmente, mistificação no ponto mágico vira sensatez.
Os místicos e os mistificadores serão os personagens dos meus filmes
porque minha imaginação só comporta essa raça de revolucionários.
Mentindo, sendo parcial e demagógico, encontro a verdade sincera. Sendo
superficial, sou profundo – evidentemente. Agora é a vez da América.
Por uma arte americana de invenção, barroca ao nível da forma (uma
forma ascética e baseada no excesso, bárbara e realista como a televisão);
clara, didática, revolucionária ao nível do conteúdo: não há conteúdo
possível nesta situação e estado de coisas, meados do século de praxisMarx; o conteúdo é a forma, está na cara; o conteúdo é este: deixar cair!
isto é, deixar explodir; as coisas andarem; o tempo correr; o mundo
caminhar para soluções inevitavelmente simples, poéticas e revolucionárias. Meu destino intelectual continua sendo simplesmente o da
nossa face direita da Terra. Quero pensar como um telex e é só; nem
mais nem menos; essa é minha proposição, mítica, mística e mistificadora
38
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
– para melhor achar a verdade, ou melhor, provocar a verdade nos outros,
me discutir e corromper internamente, me situar como o mais mentiroso
dos novos autores talentosos do novo cinema, vítima do ancestral cinema de autor; tudo é possível; simplesmente; então para que essa onda
toda? cinema, parcela da infra-estrutura de direita diante da qual cinicamente nós criamos, inventamos, tentamos dar do nosso melhor, então,
diante da direita pura e simplesmente institucionalizada, nós, colaboracionistas e criadores do sistema, nós produzimos uma arte inevitavelmente imoral e obscena.
BETTY BOMBA
(anotações)
Abertura: Número musical Lenny
comédia para rir bastante
exterior dia num jardim – festa bacanal
ajaponezado jogando dinamite numa festa
close de Helena que vê o objeto, pega e põe na bolsa (tudo pode ser
útil)
picnic de pessoas nuas com música (Sonda boys) o tempo todo
trepam: mulher por cima e o cara quase gozando.
todo mundo amontoado no chão; bêbados no jardim
– tensão em xangai
(o cara trepando, com passagem para Xangai, detalhe)
entrada de Helena botando dinamite debaixo de uns três caras que
querem comer ela. Ela diz: “Detesto o sexo” e enfia a dinamite, calmamente, acende a dinamite e troca, botando dinamite acesa na mão do
cara por baixo e sai
o casal que trepa explode, caem braços e pernas
letreiros
39
Alô alô Rogério Sganzerla!
é a Betty Bomba, BB
ela vê (figuração Petticov, Mojica) um garçom contratado para a
festa, o uísque acabou e o garçom está sem fazer nada, de smoking. ela
despreza os outros e leva o garçom para casa
ela sai no seu carro, um chevrolet antigo, e leva para um apartamento
que ela sabe que não tem ninguém; esqueci minha chave; arromba a
porta; ele arromba; eles entram num apartamento burguês, que ela não
conhece.
ela vai tomar banho antes de trepar: ela manda ele tomar banho e
fica fumando, assistindo, sentada na privada, contando uma historinha
(examina casa, vê janela, tapa com cortina e põe banquinho)
ela enche banheira (ela organiza banho para ele, quase mudo) de
champagne, cerveja, perfumes aí ela entra junto. a tara dela é ver alguém
tomar banho com esse ritual mas ela tem nojo e fala: você trabalhou
muito hoje, vou te preparar um banho, você é garçom há quanto tempo?
põe repolho, flores, conversando com ele.
você trabalha há muito tempo de garçom?
estou fazendo a volta ao mundo, hoje eu devia estar no México
quando ele entra no banheiro ela traz pick-up imediatamente e põe
disco de música japonesa.
– olha que engraçado, um disco japonês
– eu ainda não conheço o Japão
ela pega roupas e objetos pondo numa malinha
– olha, mas esse apto. é seu mesmo?
ela enfeita-o com roupas, bem ridículo
começam a beijar. ela prepara a mala. bulinam no sofá. ainda não.
ela interrompe para roubar algo. tira livro da estante, lê em voz alta
e escreve na parede com batom:
A LOUCURA É O SOL QUE NÃO DEIXA O JUÍZO APODRECER;
STO AGOSTINHO
se beijam, rolam pela parede.
ela manda ele subir no banquinho; beija-o desbragadamente, ela
está parada
40
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
ele faz pose de Charles Atlas, ele confessa
– você é louca mas gamei... tão diferente... você é tão estranha, é
normal?
– normalíssima
BETH BOMBA – A Exibicionista
um filme para a jovem guarda
programa livre ou interditado pela censura
se não tiver os recursos para a idéia, pelo menos sugerir apologeticamente essa idéia.
carregar em algum dado
cortar as motos sem bomba, sp à noite, etc.
Para os senhores pais
Helena entra dizendo: foi vocês que me fizeram: eu fui feita por
vocês, seus palhaços: eu sou a Beth Bomba: a Exibicionista: eu sou o
filme de Rogério Sganzerla que vocês detestam, também sei, ele é o
primeiro a saber, também sei também sei (cantarolando) nós somos aqui
o produto dos nossos pais é óbvio eu então vou mostrar para vocês.
Nosso relacionamento com o Brasil é o alheamento, o desprezo e o
desespero.
gostaria de fazer um filme sobre o desespero e o Brasil.
Nós, mal-comportados de todo o Brasil, detestamos isso que nós
somos: todos os mal-comportados detestam e morrem pela terra. Eu
quero falar de nós todos: fazer um cinema deliberadamente não íntimo,
não psicológico, não expressivo mas ao tom folhetinesco do rádio, da
grosseria provocadora, do cafajestismo barroco.
esse é o tom, do rádio, do programa de auditório, das letras de um
Noel, por exemplo. Agora ninguém entende... Ninguém entende mas eu
entendo a burrice.
41
Alô alô Rogério Sganzerla!
um filme folhetinesco, sujo, ao
tom da sacanagem proposta, playboísmo estético do melhor.
se envolver no estilo sujo.
AP
ornográfica ou
Pornográfica
Os P
ornográficos do Mundo Inteiro
Pornográficos
(ou Golpe do Baú)
A exibicionista. Vigarista. Ladra profissional, hipnotizadora, cinetista
louca, socióloga, stripper internacional.
1 - int dia casa japonesa
– número musical –
plano fixo som direto, grande close up de H. vestida com enorme
chapéu de palha oriental, rosto pintado, roupa de gueisha. Ao fundo
telão do Monte Fuji, locomovendo-se lentamente. Luz incide no telão,
variando. Um vidro entre a câmera e H., que limpa boca de açúcar;
vidro em frente. Silêncio. Vidro quebra. Ela fala bruscamente:
Helena (Madame Zero) – Estou até aqui do Oriente (faz sinal na
testa), quero cair fora de Hong Kong (gritinho; mão introduz galinha no
quadro – ela a corta com faca. sangue cai na cara e na coxa, que está
pintada com letras e desenhos, nua). Chega de misticismo oriental, prefiro
ser freira no Paraguai, ladrona em Belém do Pará, traidora no Oiapoque,
escrota no Chuí. A única maneira de me salvar (ininterruptamente, e
acumulativamente, neuroticamente seguida) e como me salvar os outros?
eu rezo! enfim tirar o pé da lama internacional indo atrás do misticismo
oriental e da aventura, se eu penso muito em mim é porque eu quero
mostrar pra mim mesma que eu não sou nada, sou uma limitada, uma
coitada, queria partir de mim, Madame Zero, pessoinha e detalhe sexual
subdesenvolvido (rosna, late) (berrando) sei que sou uma coitada lúcida!
se eu sei então consigo ser uma santa! (vira-se de costas para a câmera
42
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
– quebra coisas e fala de costas – cena ainda fixa, telão ao fundo mexe,
luz no telão) Ontem deixei de gostar de mim... não tenho medo da morte...
tenho medo de mim, é o que me salva, eu me adoro! o terror dentro da
minha cuca, aqui em Hong Kong sempre preferi a maldade e a traição...
a trama é essa: simplesmente mudar a face da terra (pan pelo seu corpo
seminu tatuado e com letras. Corpo, abaixo da cabeça, anda pelo quarto
quebrando objetos)
Helena Zero – Antes de meter uma bala na cabeça no Carnaval em
Caxias, não sei; onde é que vamos parar com isso? onde é que esse copo
(olha copo de uísque na mão) e esse meu corpo vão me levar?
Preferi a convulsão da. Gostaria de prep. Que. Escolh.O.
Ant.Terror.É.Sensato... onde é que esse corpo vai me levar, senhoras e
senhores” a provocação é a última literatura do século vinte... estou
com tudo, a saída nas mãos e o que é que faço? agora, nesse momento,
estou vendo diretamente as coisas como elas são para mim. Sei bem o
que eu sou, ainda bem (berrando) Tudo legal, macacada! Agora.É.A.Vez.Da.América. O conteúdo é a forma está na cara! Não há
conteúdo possível nesta situação, meados do século vinte... o conteúdo
é este, deixar cair! com a mão na massa! Vai que é mole! sai de baixo! é
de chuá! metido a bacana! alô alô Brasil! Atenção que minha sogra é da
polícia! tudo é possível! ah, onde é que esse corpo vai me levar? (gritos
e berros deselegantes, atonais, animais)
(enquanto sai este monólogo ininterrupto, planos dela, telão, planos
de Chinatown e bairro japonês, cortados com tipo deitado na cama,
parado por algum tempo; outro – também tatuado no corpo e um terceiro
que todos a abraçam etc. etc.) Cada vez mais mística e furiosa, com
essa necessidade besta de tirar a roupa, me exibir por nada (vai tirando
– grande close-up dela – a roupa) (no fim da seq. tipo acorda e a beija)
Helena – Hong Kong não é como vocês pensam. É o fim, o lixo!
(refere-se como se fosse o Brasil de “O Picareta”) queria entrar numa
aventura lá dentro do continente. me interessa o mundo. (começa a cantar
desafinada, berrando como um bicho sufocado com uma espinha na
garganta).
2 ext dia bairro oriental
diálogo morre em cima de Close japonês dirigindo carro de óculos
43
Alô alô Rogério Sganzerla!
escuros. Close dela, saindo do carro exatamente no início da cena. Parada
numa esquina. plano fixo.
Pan de carro que passa e pára. Carro 1 segue carro 2. Morumbi.
Bairro japonês. Gângster de carro 1 enfia faca ou navalha no seu próprio
corpo, dirigindo. No final tira máquina de fotografia de dentro do porta
luvas (corte no detalhe)
3 int noite apto
Música forte. Cinema japonês. Dança em cima duma cama. Japonês
a vê, tira paletó. Ela dança.
Câmera dentro do guarda roupa ou banheiro, com Gângster 1 em
primeiro plano preparando câmera e flash.
Fotografa-os. Chantagem. Planos oblíquos japonesados (Yoshida)
do casal trepando. Quando trepa o japonês trouxa fala verdades essenciais, como em Sou pago para Matar
– Eu sou o Japonês Trouxa do Oriente, e você? qual é teu jogo,
gueisha?
Ela murmura – Não sou gueisha. Sou mineira.
Japonês – O japonês trouxa só fala verdades essenciais quando tem
uma mulher na mão, assim... (fala em língua pseudo-oriental) (tom de
chanchada exótica) (poderá ser um cômico de teatro de revistas)
(corte com planos-flash exteriores de Chinatown e Liberdade)
Chantagista fotografa-os
fim do amor
[aquele era um dia normal na vida de senhorita Ângela, bêbada,
secretária, falida]
4 ext dia
prédio oriental, fachada: 3 ou 4 planos rápidos
5 int dia escritório
close do japonês trouxa, dono das indústrias, que abre carta; detalhe
de carta em japonês, ameaçando pagar senão saem fotos nos jornais e
44
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
ele perderá as eleições para presidente do Japão. (sub-título explica
isso)
6 ext dia depósito de lixo
PAN demagógica pelo lixo, japa trouxa anda apavorado. encontra
japonês; dinheiro é entregue.
1. detalhe da transação. eles falam mas a cena é muda. coberta por
cantora sexagenária em cima do lixo (ou gravação oriental)
quando os dois saem, off, metralhadora: caem os dois no lixo.
detalhe de metralhadora no meio de ciprestes. quando os dois saem,
sai Helena que apanha o dinheiro da chantagem, revista corpos, cantarola; roupa, máquina fotográfica, dinheiro, carteira, alguns trocados
deles, tudo dentro da mala de onde tirara metralhadora, rouba roupa,
deixando os dois nus no lixo, abre carteira e encontra fotos de família e
uma passagem (detalhe)
[ou entra no aeroporto, segura na roda do avião. Avião levantando
vôo]
pan 180º pelo lixo
fim do rolo 1
A Mulher de T
odos
Todos
10
(trecho)
INTRODUÇÃO (letreiro México 1946)
1. ext dia jardim ou praia
Três planos fixos, rápidos, mudos – insólitos:
pick-up na praia (fixo) mão força braço arranhando o disco
10 Escrito em 1969.
45
Alô alô Rogério Sganzerla!
alto-falante (fixo)
2. ext dia estrada
Câmera na mão sobe
diante do pé de cangaceiro.
3. ext dia qualquer
Tipo enfia sarrafo na
Helena Ignez em A Mulher de Todos
boca de homem ou mulher.
alto-falante – Três cangaceiros mataram hoje na via Dutra Mr. Welles,
Mr. Lucas, Mr. Straub e Dr. Indefectível.
4. ext dia qualquer
Closes de cabeças sangradas, diferentes dos tipos mencionados
5. ext dia jardim
Boca de mulher (verticalmente)
Boca – hoje... meu desespero se chama...
AÇÃO (BRAZIL 1959)
6. ext dia rua S. Paulo
TRAV P/ frente: Flávio bate em Ângela (ele manca)
F – Sua vagabunda, não presta mesmo, sua cínica. Não vale nada...
A – E você? seu recalcado? aleijado recalcado!
(gritos; repetições)
F – Você não vale nada, corre atrás de tudo quanto é homem e não
quero mais que você telefone para seu marido, cínica!
(ela está com filhos) (entra em moto com óculos)
Corre com as crianças. Pega táxi ou seu próprio carro, entrando
rápido.
46
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
7. ext dia esquina
(crime inicial: pretexto p/ week-end dela transporte de jóias em
contrabando. Ela vai pra S. Paulo)
Desce do táxi ou de seu carro. Johny Herbert a espera.
Trocam beijos doces. Ele sai da igreja (sinos batem)
Johny – Tudo bem, amor?
Ângela – E você, querido?
Johny – Não vou poder ir à praia contigo...
Johny agitado, falando e mexendo-se bastante
Johny – Não sou canista não... é que eu prometi um trabalho...
A – Péra que eu vou deixar as crianças com a babá (deixa-as no
carro com chofer ou babá. provavelmente logo no início da seqüência)
Travelling os segue: namoram, aproximando-se de edifício.
Pan até placa de hotel.
8. int dia hotel ou apartamento (dependendo da produção)
tela escura. Vozes de amantes na escuridão, ruídos.
Acende a luz. Johny se veste rapidamente. Ela permanece seminua
na cama.
A – Pressa, querido?
J – Tenho que sair correndo com essa história toda...
A – Péra que vou contigo, preciso telefonar pro meu marido!
J – Aquele boçal?
A – Não xinga o meu amorzinho... eu gosto dele também... você
sabe...
J – Mas de quem você gosta mais...?
A – De você...
9. ext dia telefone público
Ângela fala com Jô. Pelo vidro faz sinal para Johny Herbert que se
despede e entra em carro ou táxi. Profundidade de campo ou contraplano.
47
Alô alô Rogério Sganzerla!
A – Sou eu, meu amor... acabando de chegar da fazenda...
(olha na direção de Johny e, através do vidro, trocam o último beijo)
...Vim com Dona Glorinha, a professora de italiano, vou deixar ela
em casa... saudades de você... claro... muitas...
10. ext dia fachada de prédio
PAN vertical na mão, muito rápida – terminando em tempo morto.
câmera se afasta ou avança. O big boss ao telefone, cercado de duas
ou três mulheres
(exagerado) com café e bebidas.
Jô – também, morrendo de saudades mas não posso largar esse
negócio assim... (malicioso) preciso faturar, claro... (muda de tom) você
parece que não gosta mais de mim, está me traindo por acaso? (rindo)
pra mim é impossível imaginar... sem você largava uma bomba aqui,
não queria nem ver a cara de uns banqueiros suíços, só para te ver...
Não, não posso, Ângela: antes de domingo é impossível eu sair de São
Paulo. Te encontro na praia... sim, claro; ah, meu bem, fui obrigado a
convidar um funcionário aqui do escritório, simpático, acho que você
conhece, o Armando... aquele alto que quase tirou o campeonato de
tênis no ano passado... só assim arrumo um parceiro para emagrecer
uns cinco quilos; acho que você se lembra, péra que ele está chegando
agora.
Uma porta abre: é Johny que entra rindo, saudado pelos companheiros.
Cumprimenta Jô...
Jô – Você já conhece minha mulher, não?
J – Devo conhecer
Jô – E as raquetes, está levando...? ciao... Não se esquece das minhas
bolas... de levar meus balões, querida... outro.
Funcionários entram pelo escritório, efusivos, com flores.
Cantam “Parabéns a você”.
Jô, lisonjeado, recebe beijo da secretária. Um beijão de uma
secretária exuberante.
Jô (excitado) – Pode liberar todo mundo... não quero ver ninguém
48
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
trabalhando no dia do meu aniversário... menos o Renatão que eu preciso
falar com ele.
corte
Dentro do elevador do edifício, Jô se afasta de funcionários e se
aproxima de Renatão
Jô – Preciso te instruir, um negócio. Um trabalhinho, Renatão...
R (silencioso, o ouve)
Jô – Mas dessa vez é delicado... mulher
Renato – Legal...
Jô – Só que é a minha mulher...
Renato (ouve) – Ah...
saem ambos do elevador. Câmera idem.
Num canto, Jô dá dinheiro e pistola cano longo ao Tipo
Jô – Dessa vez capricha... Não me mata ninguém, Polenguinho. Não
tem desculpa (ao ouvido do outro) Sem essa.
Renatão – Ia me esquecendo: feliz aniversário, patrão...
corte.
11. ext dia posto de gasolina ou praça (beijos)
Traveling acompanha Ângela que fala o tempo todo; depois de ter
pago conta de gasolina. No carro está Johny sentado, lendo gibi e rasgando folhas à medida que as lê.
Johny – Queria ou não queria vir?
A – Queria...
J – Então por quê? Capaz de ter desconfiando...
A – Imagine! Falou em encher balões! (muda o tom) Você trouxe o
balão que eu te disse?
(J abre porta malas do carro)
(repleto de balões vazios)
J (ao mesmo tempo, entrando no carro) – Me desculpe, Ângela, mas
teu marido é um boçal... só pode ser um boçal...
A – Não fale assim de Plirtz... não sei se você entende... no fundo
49
Alô alô Rogério Sganzerla!
você é crianção imaturo... mas eu sinto por Plirtz uma sensação... sei
lá... eu preciso tanto dele como de você... Nunca menti na minha vida,
Armando, você sabe; quero que você me acredite: sou sincera contigo,
com ele, com todo mundo.
J – Só com muito amor para agüentar aquele gordo feio...
A – Feio mas é seu patrão...
J – Por enquanto. Pára o carro.
(traveling de anônimo de carro que faz sinal: pneu furado)
J – O pneu está furado.
corte: passagem de tempo
Johny termina de consertar pneu. abre porta malas. Balões (vazios
ou cheios) saem e flutuam. Do fundo ele vê a perna estendida de Ângela.
Situação romântica. Bruscamente, ele a carrega. Amam-se nas
imediações da estrada vazia do litoral paulista.
os balões. um estoura.
Amam-se
música
câmera se afasta.
(podem namorar e bejiar no carro. litoral. praias. chegando à casa
de Jô)
O incômodo R
ogério Sganzerla
Rogério
11
Ele surgiu há algum tempo fazendo curta-metragem para o Festival
JB. Todos viram nele muita capacidade de realização. Em São Paulo,
aos 19 anos de idade, já fazia crítica de cinema, surpreendendo a todos
com as suas idéias radicais. Orson Welles, Howard Hawks e Godard
(além do cinema americano classe B de 35 a 45) eram os únicos que
sobravam. O crítico revolucionário passou a ser mais um jovem talentoso
do Cinema Novo, pensavam os seus realizadores. Surge, então, O Bandido
11 Entrevista a Alex Viany publicada em O Jornal, sexta-feira, 23 de janeiro de 1970.
50
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
da Luz Vermelha e logo ele dá declarações sensacionais: – “Não tenho
nada com o chamado movimento do Cinema Novo, pois não gosto de
seus filmes. Faço uma pequena exceção para Glauber Rocha”. Daí em
diante, ele passou a ser o incômodo Rogério.
Essas declarações cada vez aumentam mais, a cada filme que realiza,
mais oportunidade ele tem de falar. Agora, ele esculhamba a tudo e a
todos. Frase de Rogério sobre o Dragão: – “Esse filme é um vexame”;
sobre Macunaíma: – “um lixo”.
Tudo isso fez com que ele se tornasse o cineasta mais detestado do
Cinema Novo. Mas Rogério continua, incomodamente (inclusive com
seu cabelo) a carreira de filmes grossos, cafonas, sujos, agressivos, de
mau gosto, bossais, verdadeiros lixos cinematográficos: é o caso de seu
próximo filme A Mulher de Todos. Fala Rogério, aliás, cospe na moçada:
– “Depois do Bandido, tentei fazer uma chanchada com Gil, mas
acabei realizando a aventura pornográfica A Mulher de Todos, em homenagem às fitas alemãs ou suecas classe B. É outro pejorativo cujo
estilo obsceno serve para melhor retratar nossa realidade – não por
moralismo mas por ideologia. Estou satisfeito porque não fiz ‘o filme da
minha vida’, mas de certo momento de minha carreira. Quis aprender a
filmar sem nenhum roteiro, escrevendo à medida que filmava, aproveitando diretamente a realidade”.
Antibandido da luz vermelha?
– “Sim. Eu gosto de trabalhar com a câmara fixa, com travellings
elucidativos, as panorâmicas didáticas, sem artifícios. Prefiro os longos
silêncios, a música em volume baixo. Evidentemente O Bandido da Luz
Vermelha era o contrário disso tudo porque se tratava de uma inspiração
violenta, espanto e agitação diante da realidade. Mas agora não consigo
mais contrariar a minha tendência profunda pela simplicidade”.
Tem chanchada nesse também?
– “Claro, e como nos tempos da chanchada eu e Jô Soares improvisamos muito. Suas inúmeras interferências foram todas aproveitadas,
enriquecendo os conflitos. Chamei Paulo Villaça e Stênio Garcia, porque
prefiro atores inteligentes e criativos. Antônio Pitanga também teve
liberdade para trabalhar à vontade, no papel de um playboy conservador
e antipático, porque precisava criticar seus anteriores papéis de herói
racial. Todos sabemos que a situação colonial do negro no Brasil é muito
51
Alô alô Rogério Sganzerla!
menos confortadora do que qualquer heroísmo oferece”.
E a sua mulher, a mulher de todos, como está ela no filme?
– “Com Helena corri o meu último risco: evitar o galanteio e a
homenagem fácil à minha mulher, Helena Inês. Fotografando-a com
cuidado, quis mostrar também o lado neurótico, incômodo, difícil, da
mulher moderna. Pela primeira vez em nosso cinema, uma mulher canta,
berra, bate, dança, deda, faz o diabo. Neste filme ela é Marlene Dietrich
co-dirigida por Mack Sennet e José Mojica Marins, isto é, por mim”.
Os planos, como será o futuro?
– “Vai aí um furo de reportagem para vocês. Ainda farei um documentário político em 16mm – evidentemente com sons e fotografias
péssimos – sobre as abelhas, moscas e mosquitos e outras variedades
do litoral paulista, onde rodamos 80% de A Mulher de Todos”.
Helena – a mulher de
todos – e seu homem
12
O Pasquim entrevista Rogério Sganzerla
e Helena Ignez
A entrevista de Rogério Sganzerla e de
Helena Inês marca a volta das entrevistas
esculhambadas d’O Pasquim. Esculhambadas no sentido da linguagem e da
esculhambação. Rogério, um dos caras mais
importantes do novo cinema brasileiro, fixa sua posição diante das coisas
que estão acontecendo com uma franqueza que só pode ser comparada
com a de Helena Inês, sua mulher.
Sérgio Cabral – Por que a guerra com o cinema novo?
ROGÉRIO SGANZERLA – Eu sou contra o cinema novo porque eu
12 Publicada em O Pasquim nº 33, de 5-11 de fevereiro de 1970.
52
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
acho que depois dele ter apresentado as melhores ambições e o que
tinha de melhor, de 62 a 65, atualmente ele é um movimento de elite,
um movimento paternalizador, conservador, de direita. Hoje em dia, como
eu estou num processo de vanguarda, eu sou um cineasta de 23 anos,
eu estou querendo me ligar às expressões mais autênticas e mais profundas de uma vanguarda e eu acho que o cinema novo é exatamente
anti-vanguarda. O cinema novo está fazendo exatamente aquilo que em
62 negava. O cinema novo passou pro outro lado. Como eu estou surgindo
há pouco tempo, há exatamente dois anos, eu acho que tenho que romper
também com esse condicionamento e partir pra uma outra jogada sem
saber exatamente o que seja esta outra jogada mas, de qualquer maneira,
fazendo o que eu acho. Então eu sou um cara em liberdade o que é um
motivo de espanto pra maioria dos meus colegas de cinema, mas de
qualquer maneira eu sou uma das poucas pessoas que estou continuando a me manter livre, o que eu acho extremamente difícil no Brasil de
hoje. Eu estou feliz porque estou mantendo minha liberdade. Agora, eu
acho que este debate aqui não deveria ser centrado no problema de ser
contra ou a favor do cinema novo, mas, principalmente, por nessa oportunidade eu ter feito um filme, que, como direção, é um filme extremamente simples, mas que revela um trabalho de atriz absolutamente
imprevisível e original dentro do panorama do cinema brasileiro. Eu
quero dizer que A Mulher de Todos é um filme que revela, sem dúvida
nenhuma, sem falsa modéstia, o maior trabalho de atriz do cinema
brasileiro. Eu queria que vocês vissem o filme pra poder sentir, realmente,
o trabalho de Helena Inês.
Millôr Fernandes – Quer dizer que você está recuperando a Helena
Inês? Porque ela já era do cinema novo anteriormente.
ROGÉRIO – Não. Eu acho que a Helena Inês sempre foi uma força
original e criativa. Mesmo quando ela fez cinema novo teve ótimos momentos como, por exemplo, no de do Padre e a Moça, no próprio Assalto
ao Trem Pagador, onde ela faz uma vamp de filme mexicano, eu acho
que é um achado, ela se saiu muito bem.
Sérgio – Helena, você concorda com tudo isto que ele disse sobre o
cinema novo e sobre sua atuação em A Mulher de Todos?
HELENA INÊS – Como eu te falei, alguém me entrevistar sem ter
visto A Mulher de Todos pra mim não é nada bom. Eu acho que a minha
vida mudou depois do momento que eu encontrei o Rogério e eu concordo
53
Alô alô Rogério Sganzerla!
com isso que ele falou do cinema novo. Eu estava praticamente intoxicada
de cinema novo então eu não conseguia fazer uma crítica ao cinema
novo. Eu estava tão dentro dele, a minha vida era aquilo e eu não podia
ter uma visão crítica. O Rogério me abriu exatamente isto. Eu consegui
ver melhor as coisas e talvez por isso, eu acho, que fiz uma coisa extremamente bacana, que foi essa interpretação em A Mulher de Todos.
Como Rogério diz: criativa e importante. Exatamente porque era uma
novidade como se eu estivesse nascendo. O negócio é esse: eu me atirei
de uma tal forma que ficou especialmente bacana.
Millôr – Rogério, você definiu o cinema novo...
ROGÉRIO – Não, eu não defini, não, porque não gosto de definições.
Millôr – Mas de qualquer maneira você deu uma definição política
a partir do cinema novo. Você classificou-o como de direita. Então,
acontece o seguinte: todo o movimento novo, mesmo que esse movimento
seja puramente individual como me parece que é o seu, que aparece,
ele começa a classificar o movimento artístico anterior como movimento
de direita. Isto me parece que traz o perigo de você engrossar cada vez
mais as fileiras de direita porque o de esquerda e de vanguarda passam
a ser somente o ultimíssimo e todos os outros passam a ser reacionários.
Isso não é perigoso politicamente?
ROGÉRIO – Eu não acho que é perigoso. Se fosse perigoso eu
acharia interessante também. A civilização do século XX já cansou de
cultivar o perigo, o perigo hoje é uma coisa obviamente bacana. Talvez
eu até nem goste do perigo, mas eu acho bacana. O que eu senti foi que
desse processo você tirou uma conclusão extremamente mecânica. Você
acha que o último seria o melhor. Eu acho que não porque o processo
cinematográfico, o processo de criação, (o processo de cinema não está
tão longe dos outros processos de criação), ele vive de fases. Então, nós
estamos vivendo uma fase agora onde você pode, por exemplo, como a
gente estava há três meses atrás, falar bem da chanchada e falar mal do
cinema novo. O que era antigo em 59, a chanchada, hoje é um dado de
criação, um dado inventivo e o que era novo, o cinema novo, virou um
dado conservador. Então eu acho que faz parte da dinâmica.
Tarso de Castro – Você está saindo pela tangente. A colocação do
Millôr foi a seguinte: tudo que não for a ultima moda é de direita. Você,
então, vai ter que diferenciar entre conservador e de direita. Ou você
aplicou mal o termo direita, ou aplicou mal o termo conservador.
54
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
ROGÉRIO – Não, eu apliquei muito bem o termo direita. Eu acho
que não é problema de moda, não. Basta ver os filmes do cinema novo.
A gente fala do cinema novo eu acho chato. É melhor não falar das pessoas, nem dos criadores, mas ver os filmes. Quando você for ver os
filmes do cinema novo vai sentir o que eu estou falando. O Luiz Carlos
Barreto é um cineasta que começou produzindo o Assalto ao Trem Pagador
que era um filme, na época, relativamente importante. Depois, junto
com Glauber e Nelson Pereira dos Santos, ele eclodiu um movimento,
explodiu toda uma nova conceituação sobre cinema. Mas, agora, o que
é que ele está fazendo? Ele está fazendo co-produção com os filmes
franceses, com um cineasta péssimo que eu não sei o nome, aliás nem
vou citar o nome pra não dar cartaz ao cara, e está fazendo filmes com
os piores cineastas do Brasil. Os piores filmes de 68 quais são? Brasil
Ano 2000, Capitu, A Vida Provisória, quer dizer, os piores filmes quem
foi que fez? Foi o Luiz Carlos Barreto. Então, você pode notar que o Luiz
Carlos Barreto significou alguma coisa. O trabalho do Joaquim Pedro
em Macunaíma é um trabalho falso, um trabalho deturpador, é um
trabalho que não corresponde aos ideais cinematográficos. Não dá pé,
realmente, não dá pé. Você pode notar pelos filmes.
Millôr – Rogério, talvez você esteja assim nessa posição porque
esteja falando especificamente de cinema. Eu, por exemplo, se fosse
falar de literatura não negaria nem a obra importante de seis meses
atrás nem a obra importante de 60 anos atrás. Você, possivelmente,
esteja falando assim porque o cinema é definitivamente um arte inferior, cuja obra-prima de seis meses atrás está definitivamente acabada.
É isso?
ROGÉRIO – Eu também acho que o cinema é inferior. Eu não
chegaria a dizer que o cinema é uma arte, entende? Qualquer cineclubista
diria: não, Millôr, o cinema é uma arte. Eu, inclusive, gosto no cinema
desse lado panfletário, esse lado quase vulgar, esse lado popular,
visionário, o lado que eu vi muito no cinema americano. Eu também
acho inferior e por isso faço filmes inferiores. Quando eu faço um filme
eu tenho mil problemas de subdesenvolvimento da produção e tal, então,
eu escolho o subdesenvolvimento não só como condição, mas, também,
como escolha do filme. E aqui os filmes são subdesenvolvidos por
natureza e vocação. Você falou em cinema inferior, eu faço cinema inferior, acho perfeito. Acho que obra-prima não existe, não.
55
Alô alô Rogério Sganzerla!
HELENA – Rogério tem uma frase que eu acho perfeita: Eu faço os
melhores filmecos do Brasil. Eu acho exatamente isso.
Sérgio – Você acha que o Orson Wells faz os melhores filmecos do
mundo também?
ROGÉRIO – Não, mas ele fez alguns filmecos como, por exemplo,
um filme chamado O Estranho, que eu não vi mas dizem que é horroroso.
HELENA – Você está dizendo como produção não é?
ROGÉRIO – Como produção e como criação. É um filme que em
vez de estar baseado no luxo e no equilíbrio do Cidadão Kane, ele está
baseado na miséria, na escrotidão dos atores, na diferença de qualidade,
técnica e de negativo.
HELENA – Eu quero ressalvar aquele negócio que você falou aqui
que você fez uma direção humilde etc porque você é um megalomaníaco,
uma pessoa extremamente orgulhosa e faz isso de (*)13 , dizendo que
sua direção é humilde quando é, muito pretensiosa.
Millôr – Uma vez que você tem essa opinião, é evidente que isto
será uma atividade sua passageira, pode ser passageira de 6 meses, de
10 anos, ou de dois anos. Você quando crescer o que é que pretende
ser?
ROGÉRIO – Não sei, acho que jornalista. Eu queria fazer o que
vocês fazem porque eu acho que o quente é ser jornalista. Eu uso cinema de uma forma jornalística. Eu também fui jornalista. Fui até repórter
policial. Eu acho que o jornal dá uma visão diferente. Quando vocês
fizeram O PASQUIM, vocês não foram fazer como qualquer jornal
subdesenvolvido, um Estado do Rio de Janeiro ou um jornal de S. Paulo,
vocês fizeram O PASQUIM. Quer dizer, já partiram da própria limitação
do jornal, da própria sujeira do jornal pra fazer disso um negócio bacana.
É o que eu faço em cinema. Quando eu vejo um filme da Atlântida eu
acho bacana porque eu vejo lá um clima de perversão estética. Você
13 Os astericos que vão encher a paciência do leitor até o fim da entrevista eram exigência
da censura que os impunha em substituição aos considerados “palavrões” pela dita e
maldita censura da ditadura militar. Uma pesquisa nos arquivos de O Pasquim pode ser
restauradora desta entrevista importantíssima, não só para os casos dos tais “palavrões”,
mas também, e muito mais importante, para recuperar os prováveis cortes por razões de
espaço ou pela censura “política”, que era ainda mais dura e implacável do que a
“léxica”. No caso deste asterisco, a palavra usada por Helena deve ter sido “sacanagem”,
vejam só!
56
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
pode notar que eles pegam filmes americanos de grande sucesso, filmes
assim fascistas como Matar ou Morrer, o próprio Sansão e Dalila e transformam em aventuras com Oscarito e José Lewgoy. É exatamente nisto
que estou interessado.
Jaguar – Você leu o artigo de Glauber Rocha neste último O
PASQUIM?
ROGÉRIO – Não, eu não li o artigo, mas eu li um outro artigo do
Glauber, na Manchete desta semana, que eu acho também um artigo
decadente. Porque eu acho o Glauber como ser humano uma figura
fantástica, mas no artigo ele faz uma pichação aos jovens que estão
fazendo no Brasil um cinema de vanguarda e como eu sou um cara que
assumo o papel que estou desempenhando eu gostaria, inclusive de
responder ao Glauber. Ele fala que os jovens cineastas...
Tarso – Você está chamando o Glauber de reacionário?
ROGÉRIO – Não, eu acho um ser humano maravilhoso.
Millôr – Deixa eu fazer uma pergunta íntima. Você não está dizendo
isto do Glauber no fundo por uma problema freudiano. Por ele ser seu
começo?
ROGÉRIO – Não. Eu queria explicar o seguinte: ele falou no meio
da entrevista que os jovens cineastas brasileiros estão fazendo uma
parafernália tropicalista, quer dizer, me acusando, a mim e a outros
talentos, de fazerem tropicalismo quando quem faz tropicalismo são os
velhos como Joaquim Pedro de Andrade e Walter Lima Junior. Tentaram
fazer tropicalismo e não conseguiram. Ainda nem chegaram ao
tropicalismo. O que não é meu caso, que pô, desde o início estava dito
que não era essa a jogada. [ilegível]14 ele falou que nós fazíamos a
parafernália tropicalista, especificamente no meu caso, que nós estávamos refazendo o Godard de cinco anos atrás. Aquela coisa: o
subdesenvolvimento está cinco anos atrás. Agora, no meu caso, eu
realmente chupo o Godard de cinco anos atrás, quer dizer, eu faço
citações, eu não estou fazendo imitações que foram feitas em Macunaíma
e disfarçadas. Não, eu faço bem feitas as chupações e não tento disfarçálas, porque eu sou uma pessoa inteligente, só por isso. Eu não só imito
14 A ilegibilidade apontada aqui, e outras que se seguirão, provêm do “original”capturado na internet. É provável que este e outros textos que aqui publicamos
tenham sido digitalizados com reconhecimento ótico de caracteres, que é uma ferramenta
útil mas que exige rigorosa revisão depois de aplicada.
57
Alô alô Rogério Sganzerla!
o Godard de cinco anos atrás como o Orson Wells de 15 anos atrás, a
chanchada de 25 anos atrás e o Mojica de sempre, porque eu sou um
cara apaixonado por José Mojica Marins. Agora, se tivesse de imitar o
Glauber, eu não imitaria o Glauber de hoje do Dragão da Maldade, que
é um filme que vocês viram e conhecem, eu imitaria o Glauber de oito
anos atras, quando ele fez Barravento, que é o melhor filme dele.
Tarso – O filme que vocês viram e conhecem quer dizer o quê?
ROGÉRIO – Quer dizer que o filme é um lixo. É um filme primário,
um filme ginasiano, é um filme que agride, mais pela burrice. Quando o
Zé Celso faz uma agressão é uma agressão mesmo, agora ele me agride
porque eu sou uma pessoa inteligente, entro no cinema pra ver aquilo e
não sou tão burro assim! Ver um cangaceiro com um lenço rosa-shoking
só porque o filme é colorido é um troço que me agride fisicamente.
Millôr – Não é proposital a agressão dele?
ROGÉRIO – Não, aquilo é cineclubismo estetizante e baiano.
Millôr – O intelectual, por definição, ele racionaliza. Você, como é
um cara extremamente inteligente, já pensou que estará fazendo esta
coisa ou instintivamente, o que é melhor, ou definitivamente, como me
parece que é o caso. Você sabe que esta sua atitude agressiva em relação
ao cinema novo em bloco e ao Glauber que é seu papa (seu papa,
[ilegível], do cinema) só poderá te dar lucro. Esta atitude, ela é consciente
ou inconsciente?
ROGÉRIO – Ela é consciente porque eu não sou uma pessoa burra.
Você mesmo falou que eu sou inteligente. Falando mal do cinema novo
eu me esculhambo, eu me estrepo, é um negócio, inclusive, com um
certo tom suicida, mas também eu ganho uma projeção que me interessa.
Eu preciso jogar com isso.
HELENA – Você é levemente oportunista, no caso?
ROGÉRIO – Não. Eu sou uma pessoa honesta. Se eu fosse
oportunista eu iria tratar bem as pessoas, que eu ganharia muito mais,
eu venderia meus filmes pra Europa. Não vendi até agora porque eu sou
um cara ingenuamente livre.
Millôr – A tua preocupação não é do lucro material, nem é disso
que estou falando. A tua preocupação maior é do lucro intelectual que
você sabe que tirará muito maior com esta atitude.
58
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
ROGÉRIO – Não. O Glauber disse assim: esses fulaninhos que
falam mal de seus colegas. Então ele acha que é muito imoral, dentro da
moral dele, da moral do cara que tá lá com a mulher dele, falar mal de
seus colegas. Acontece que o Joaquim Pedro é um cara bacana, por
exemplo, mas ele nunca me aceitaria como colega dele porque eles estão
dentro de uma série de quadros e não querem mexer nesses valores. Eu
se fizer um filme, já sou automaticamente uma modificação que não
interessa a eles. Então eu não sou colega deles, porque eu não estou
nessa. Se isso é oportunismo, sei lá, minha saída é esta, meu lance é
esse. Se tá errado estamos aí, o negócio é esse.
HELENA – Uma ressalva, que pra mim tem que ficar claro. Eu
acho que politicamente o cinema novo é irrepreensível.
ROGÉRIO – Se eu tiver que escolher, eu vou escolher dos males o
menor. O cinema novo são as pessoas mais inteligentes, mais bem
informadas, ideologicamente mais interessantes. Quer dizer, são as
pessoas que me interessam. Agora, eu acho importante um cara como
eu, sem meios nas mãos, pichar as pessoas pra poder criar e mexer nas
coisas. Eu acho que meu trabalho é um trabalho reformista, quer dizer,
eu sou um cara que tou na jogada do cinema novo.
Tarso – Há uns sete, oito anos atrás, o Glauber fez um negócio, a
chamada revolução do cinema no Brasil. Reuniu todo o pessoal de
vanguarda da época pra criar uma imagem nova. Você não está repetindo
essa jogada contra o cinema novo?
ROGÉRIO – Não, eu não estou repetindo, porque inclusive eu estou
sozinho. Eu acho que um tabalho deste tipo, de projeção internacional
como o Glauber fez, ele lançou trinta caras e quem se projetou com isso
foi ele. Eu não sei se foi intencional ou não, mas foi um cara que saiu
favorecido com isso.
Tarso – Desses trinta caras quantos valiam a pena ser lançados?
ROGÉRIO – Pouquíssimos! Mas no meu caso, eu não encontro
pessoas na minha geração que estejam interessadas em modificar as
coisas. O cinema novo começou em 62, em 65 ele chegou ao fim.
Exatamente no momento em que ele acabou-se e ganhou uma projeção,
começou a ganhar prêmios internacionais e se impôs como escola. Então
todo cara que aparecesse a partir dali ou ele era paternalizado ou então
marginalizado. Eu fui marginalizado. Todos os outros caras bacanas foram
59
Alô alô Rogério Sganzerla!
paternalizados. Hoje eles estão saindo dessa. Eu não estou fazendo o
que o Glauber fez nem seguindo o que ele fez porque não existem as
condições que ele encontrou, nem esse número de pessoas.
HELENA – Do momento que o Rogério pichou um cara do cinema
novo, o cinema novo inteiro se voltou contra ele. Claro, porque não se
pode mexer nas coisas, os casais não podem mudar, os filmes têm que
ser perfeitos, tem que tudo ficar como estava.
ROGÉRIO – é uma ordem econômica, social, de distribuição, é
uma ordem familiar, uma ordem estética, aristocratizante. Eu falei mal
de um filme, um filme fraco que eu não gostava. Aí eu falei pras pessoas
e elas disseram: mas como, Rogério? Você não pode falar mal desse
filme. Aí um cara falou assim: mas fulano, você não pode esculhambar
o Rogério porque ele não gostou daquele filme, mas gosta dos seus. E o
cara respondeu: não me interessam os meus. Falou mal do meu amigo
tem que se (*).
HELENA - É um esquema baiano, miserável.
Millôr – Você falou em sua geração e eu não estou muito por dentro
dela. Mas me parece, que a sua geração que eu conheço em cinema é
você, Julinho Bressane e Neville. De modo que em relação ao cinema
novo eles são uns matusas perto de você. Eu tenho a impressão que não
existe a sua geração. Você é que está inventando.
ROGÉRIO – Eu quis disser a última safra. E isso existe. Eu, Neville,
Julinho. Agora, Neville e Julinho são paternalizados e hoje saem dessa.
Eu sou um cara que fui além, eu já de cara esculhambei.
Sérgio – Essa atitude, como você coloca, assim, está modificando a
luta política do cinema brasileiro. Porque o cinema novo tem uma posição
e outras pessoas que são contra o cinema brasileiro têm outra posição,
como o caso do Moniz Viana no Instituto Nacional do Cinema. Então
nesse conflito você está com o cinema novo ou está com o Moniz Viana?
ROGÉRIO – Nesse conflito, eu estou fazendo um cinema revolucionário. Quando o Stalin estava fazendo da Rússia uma potência
sensacional ele estava ao mesmo tempo obstruindo um trabalho geral,
internacional. Então você pode sentir que naquele momento as opções
eram dualísticas. Você ficava com um lado ou com outro. Agora, teria
sido muito mais criativo se você tivesse feito, dentro do regime soviético,
um trabalho de modificação e de complicação geral que é o que eu
60
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
estou fazendo. Eu já escolhi o caminho que é o caminho conseqüente da
transformação da sociedade. Dentro desse caminho eu sou incômodo. É
um papel óbvio, primário, mas tem que ser desenvolvido.
Jaguar – Mas você tem consciência de que está fazendo o jogo do
INC? Você tem consciência também do que você está prejudicando o
cinema brasileiro em bloco? Você sendo um cara de prestígio vai ser
prestigiado pelo INC?
Tarso – Só pra completar a pergunta dele: você acha que vale a
pena dar essa engrossada em prejuízo do cinema brasileiro, prejuízo da
indústria?
ROGÉRIO – Eu acho que vale a pena sim. No Brasil não existe
indústria, ainda bem que não existe. Eu não estou fazendo o jogo do
INC, não. Se você for ver cada um dos meus fotogramas você vai ver que
não tem nada com o INC. Eu não tenho nada a ver com eles.
Jaguar – Mas você está contra os interesses do cinema novo.
ROGÉRIO – Os interesses do cinema novo eu quero que se (*). Eu
acho que o cinema novo não pode ter esses interesses. São interesses
estratificados. Não dá, realmente não dá. Eu não estou nessa.
Fortuna – Na revista Veja da semana passada saiu uma entrevista
com o Mazzaropi em que ele se lançava contra o cinema novo. Eu queria
registrar uma certa identidade entre você, que é um cara esclarecido, e
o Mazzaropi.
ROGÉRIO – Você falou uma grande verdade. Você pode notar que
o Mazzaropi fala mal do cinema novo, mas quando o Rogério Sganzerla
fala mal do cinema novo é outra. Existem dois níveis diferentes. Agora,
as pessoas não querem reconhecer isto então usam o argumento: o
Rogério está virando Mazzaropi. Não é isso. Como os caras não podem
defender os filmes eles atacam assim. Eu queria que eles defendessem
os filmes que são uns vexames, são ridículos, subalternos, subservientes.
Isso ninguém faz, ninguém defende os filmes.
Sérgio – Qual é a sua posição em relação ao INC?
ROGÉRIO –A minha posição é indiferente.
HELENA – Independente.
ROGÉRIO – Sabe o que é? Eu não sou uma força, eu não estou
significando nada, entende? Eu nunca defendi o INC, como eu já defendi
61
Alô alô Rogério Sganzerla!
o cinema novo no tempo em que eu era crítico. Eu não ataquei o cinema
novo para melhorá-lo. Eu não faço aquele equívoco do cineasta que vai
analisar a classe média para melhorar a classe média. Não, eu nem falo.
Eu sou contra. Eu estou achando que a orientação do INC não me interessa nem interessa às pessoas que querem fazer do cinema brasileiro
um fenômeno qualidade, de envergadura. A minha posição é independente, radical. Eu não posso endossar a luta nos termos que ela foi
planejada pelo cinema novo porque é uma luta inglória. Eu não vou
defender um negócio pra defender outro INC, dentro do cinema novo.
Dentro do cinema novo existem os mesmo valores hierárquicos e preconceituosos que o INC. Então isso eu não quero endossar. A minha
posição é suicida, mas é isso mesmo e acabou.
Tarso – Quando você diz assim: tudo isto é história, não vou defender filme (*). Você diz também uma coisa: não vendi meus filmes no
exterior. Como só foram vendidos os filmes do cinema novo, e você acha
todos uma (*), essa aceitação geral dos filmes brasileiros no mundo é
uma (*), é um jogo político?
ROGÉRIO – Eu acho que a aceitação agora dos filmes feitos agora
é uma grande (*). Eu acho que o cinema novo de 62 a 65 tem filmes
excepcionais. O Nelson Pereira tem filmes maravilhosos. Boca de Ouro,
Mandacaru Vermelho que é dez vezes melhor que Fome de Amor, embora
ele não saiba, Barravento é sensacional, gosto muito de Deus e o Diabo,
gosto do primeiro filme do Miguel Borges que chama-se Canalha em
Crise. O cinema brasileiro quando era feito no mato ou na favela são os
caminhos que Oswald de Andrade apontava: no sertão ou na favela.
Eram filmes extremamente interessantes pela ingenuidade. Do momento
em que o cara deixou de ser ingênuo pra ser um pouquinho menos
ingênuo se (*) todo. Deu aquela: sou autor, vou filmar o meu universo, o
meu estilo, os meus mitos, as minhas sensibilidades. Aí o cara não tinha
nem muita sensibilidade, nem muita coragem, nem muito talento. Aí
virou um (*) porque o cinema de autor, que é um fenômeno mundial, é
evidentemente um fenômeno que daqui a cinco anos vão dizer que é
uma (*). É um negócio que acabou. Serviu pra mediocrizar o cinema.
Então esses caras viraram vítimas de um equívoco nacional acrescido
do fato de que de 64 pra cá a situação ter mudado diametralmente.
Então até 64, 65, os filmes brasileiros são muito bons, agora os filmes
que conseguiram sucesso são os piores, os de 65 para cá: Grande Cidade,
62
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Menino de Engenho, o Dragão da Maldade... O Terra em Transe, do
Glauber, eu acho interessante, mas...
Tarso – Heleninha, você sabe que eu gosto muito de você, não sabe?
Então não leve como pessoal isso. Mas, há no Brasil, entre o público, o
seguinte negócio: só filma mulher de diretor. Você foi casada com o
Glauber, com o Julinho e com o Rogério. Você fez filmes com os três.
Você acha que só filma mulher de diretor?
HELENA - É, eu acho. Eu concordo inteiramente com Maria Gladys.
Eu acho que os diretores ficam inteiramente apaixonados por suas mulheres e lançam elas como atrizes. Eu acho um esquema inteiramente
(*). Daí você ver as piores interpretações do cinema brasileiro. Mulheres
que não têm nada a dizer, não interessa, não interessam a coisíssima
nenhuma e estão lá na tela. Eu sou contra esse esquema que evidentemente não é o meu. Eu sou uma atriz maravilhosa, premiadíssima.
Millôr – O Rogério diz que você está começando agora com ele, que
está se revelando.
HELENA – Não, eu mudei. Eu acho que o Rogério descobriu uma
outra coisa em mim. Não que descobrisse, eu sabia que tinha, mas nunca
tinha a oportunidade de fazer. Eu fiz um filme com o Rogério em que eu
tinha uma incrível influência, não no filme, mas no que eu fazia. E a
gente tem uma tal comunicação que um filme dele, naquele momento,
também teria que ser um filme meu. E eu tive essa possibilidade, uma
liberdade incrível de fazer diabos, misérias. Como eu te digo, você tem
que ver A Mulher de Todos que é uma outra coisa.
Tarso – Me diga o que você acha das quatro ou cinco pessoas que
têm trabalhado com você.
HELENA – Rogério Sganzerla: um louco, megalomaníaco, fantástico,
ambicioso, uma pessoa fantástica. É mistificação, mas eu endosso
inteiramente. Julinho Bressane – que (*) pra todos. Como diz Millôr, faz
muito bem. E David Neves. São os cineastas anormais do cinema
brasileiro.
Millôr – esse assunto é muito importante. É um assunto pessoal,
existencial. Vocês me acusam de maníaco sexual, mas não é não. Existe
nisso uma conotação biológica e sexual. Você trabalha bem com os
homens com quem você se encontra sentimentalmente? Digamos assim
pra ser pudicos.
63
Alô alô Rogério Sganzerla!
HELENA – Eu acho perfeita a pergunta. É ingênua, grossa. Mas eu
acho que não é isso não. Eu tenho uma tal admiração intelectual pelas
pessoas que eu acho que isso poderia ser confundido com uma grande
relação sexual. Seria sempre nesse nível intelectual primeiro. Eu tenho
esse vício de achar as pessoas mais bacanas as mais desejáveis e não as
mais desejáveis as mais bacanas.
Tarso – Como diz o Intervalo, vocês se identificam intelectualmente?
ROGÉRIO – Helena, essa é pra você. Eu queria abrir um parênteses.
Eu queria relembrar um negócio que me deu um certo espanto aqui.
Como o Millôr se parece com a obra que ele faz e o Fortuna também. Eu
queria saber se eu também. Quando eu vejo aqueles filmes malucos
que eu mesmo não entendo...
HELENA - Mas eles não viram o teu filme. Isso é imperdoável! É
falta de cultura e conhecimento dele.
ROGÉRIO – Eu fico pensando: será que eu também lembro como o
Fortuna também lembra aqueles bonequinhos dele? É um negócio
terrível!
Millôr – Me disseram que você gostava do Rogério porque, sem
trocadilho, ele é um grande artesão?
HELENA – Também.
Fortuna – O Tarso falou que a pergunta de que vocês se identificam
intelectualmente é uma pergunta de Intervalo. Eu acho que a resposta
tem que ser a dois. Então uma resposta pra revista Capricho.
HELENA – a minha é uma gargalhada.
Tarso – Você não precisa se preocupar com esse negócio de se
identificar ou não que todo mundo sabe que você é bicha, Rogério.
ROGÉRIO – A única coisa que não me chamaram até hoje foi de
bicha porque o resto tudo já me chamaram. Mau caráter, pichador.
Tarso – Eu digo por experiência própria, Rogério, que você chega
lá. Porque eu estou nessa firme.
Jaguar – Rogério, e esta cabeleira parecida com a do Tarso, como é
que é?
ROGÉRIO – Essa cabeleira é o lado da concessão voluntária. É o
lado sórdido, da recauchutagem. Eu fui uma pessoa recauchutada pela
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Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Helena. Eu acho uma falta de personalidade total e ao mesmo tempo
uma grande grandeza.
Jaguar- Quer dizer que quando ela te conheceu você tinha um cabelo
príncipe Danilo e tal.
HELENA – Tinha um cabelo Maracanã, se vestia muito mal. Então
nós fomos a Nova York, compramos roupas fantásticas no Greenwich
Village. Penteei Rogério. Eu acho fantástico. Um homem inteiramente
sem personalidade na vida familiar e aquela pessoa ótima jogada pra
fora. Acho genial.
Millôr – Como é que vocês se conheceram?
HELENA - eu o encontrei há muito tempo numa festa de Natal,
dando um vexame.
Sérgio – Aquelas festa que a Leila Diniz encontrou o Domingos
Oliveira?
HELENA - Não, foi depois.
Millôr – Tem uma festa que já é tradicional n’O PASQUIM. É uma
festa de Réveillon que foi na casa do Luiz Buarque de Hollanda em que
houve uns 15 divórcios e 15 ligações novas.
HELENA – Não, não foi nessa festa não. Naquela festa eu estava
também, mas foi tudo perfeito. Estávamos todos. Era aquele esquema
de ter namoradinho e continuava casada. Rogério encontrei antes e estava
em coma alcóolico. Tinha acabado de botar uma placa de metal na testa.
Foi antes da festa do Jaguar. Eu não fui à festa do Jaguar porque naquela
época eu estava com o cinema novo e era chique não ir pra ficar em
festas chatas. Agora eu vou voltar às suas festas.
65
Alô alô Rogério Sganzerla!
Tarso – Agora nós podemos entrar na vida particular mais radicalmente. Você, Rogério, foi casado quantas vezes?
ROGÉRIO – Eu acho que a palavra casar é meio esquisita...
Tarso – N’O PASQUIM casamento é o seguinte: mudou de casa já
está casado.
Sérgio – Você viveu maritalmente com quem?
ROGÉRIO – Eu maritalmente com Helena. Anteriormente eu era
um aventureiro. Atualmente eu estou ficando mais conservador, mais
sedentário, mais (*).
HELENA – Sem essa!
Millôr – Nós não fazemos muito esta pergunta, mas no teu caso eu
acho importante que para O PASQUIM você desse um mínimo do
chamado curriculum vitae. De onde você veio? Que tipo de formação
você tem?
ROGÉRIO – Essa pergunta é fundamental porque eu tenho uma
péssima formação. Eu sou uma pessoa de péssimas origens. Eu não
tenho origens ruins, tenho origens médias, o que é pior ainda. Eu nasci
em Santa Catarina, numa cidadezinha do interior. Não é nem Paraíba, é
S. Catarina, um lixo total. Num estado que cultivou toda uma civilização
de classe média. Eu tenho origem italiana por parte de pai e de mãe. Eu
tenho uma grande aversão pelas minhas origens e sou uma pessoa
obviamente recalcada. Eu não escondo os meus conflitos. Acho péssimo
ter nascido em Santa Catarina e ao mesmo tempo maravilhoso porque é
muito pequeno. O Brasil no fundo é uma grande Santa Catarina. Isso ao
mesmo tempo me ajuda e me (*). É meio trágico. Não pela grandeza
mas pela pequenez.
Jaguar – Como é que você veio pro Rio?
HELENA – Eu saí de casa aos onze anos. Tem uma história muito
engraçada que eu nunca falei, mas vou falar hoje porque estou bebendo
com vocês aqui. É o seguinte: na infância eu fui um menino obviamente
inteligente, como você falou, meio prodígio.
HELENA - Até os cinco anos não falava!
ROGÉRIO – é. Até os cinco anos não falava e com sete anos escrevi
um livro de contos infantis e fui a uma tipografia e publiquei um livro
de contos meus. Chama-se Novos Contos e, lá embaixo, de Rogério
66
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Sganzerla. Quando tinha onze anos eu estudava em colégio de padre,
aquela formação horrorosa. Padres maristas, todos sujos, sórdidos. Depois
eu saí e fui morar em São Paulo. Morei numa pensão durante cinco ou
seis anos. A pensão foi um negócio que me abriu, porque é um negócio
sórdido brasileiro. Tem aquilo que os filmes de Glauber Rocha não têm.
Um negócio totalmente visceral, sórdido. Morando na pensão eu deixei
de ser um cara preconceituoso pra ser um cara liberal. Nessa época é
que houve o grande momento de transformação de 62, 63, 64. Depois
eu fui estudar Direito e Administração de Empresas. Duas coisas que
não têm nada a ver comigo. Administração eu ainda fui até o fim. Direito
eu larguei no meio. Eu já fazia crítica desde os 17 anos, escrevia no
suplemento literário d’O Estado de S. Paulo. Tinha um cara lá que achava
que eu era bom, o Décio de Almeida Prado, que é um ótimo crítico de
teatro. Ele gostava de mim e me deu uma colher-de-chá e eu comecei a
escrever. Depois eu fui redator de cinema na Visão, na Folha da Tarde,
Última Hora. Então, foi um negócio que abriu. Quando eu fui fazer
cinema tinha, apesar de uma grande ingenuidade, uma malícia que os
outros caras não tinham. O Glauber quando pega a realidade brasileira,
que é um negócio monstruoso, ele pega de um lado conceitual. Quer
dizer, ele está indiretamente filmando a realidade brasileira, porque ele
está através dos conceitos. Ele nunca entrou nessa.
Jaguar – eu achei essa autobiografia tão bacana que eu acho que
vou perguntar para Helena uma coisa no gênero.
HELENA – Ah, é altamente conhecida. Quando eu soube que ia ter
entrevista n’O PASQUIM eu disse: vou mentir pra burro. Aí, Paulo César
Sarraceni estava aqui em casa, disse assim: não minta não que Maciel
sabe das coisas. Maciel não tá aqui, eu podia mentir a valer. Mas, eu tou
com preguiça. Maciel é gaúcho, mas foi pra Bahia, eu fui madrinha de
casamento dele. A gente cai de saber um da vida do outro. A minha
vocês já estão caindo de saber. Acho que eu não tenho que contar mais
nada. Fiquei na Bahia, não tinha nada que fazer, fiz escola de teatro.
Tava fazendo Direito e escolhi teatro [fim da frase apagado].
Millôr – As origens, diz as origens.
HELENA – Eu sou baiana. Salvador-Bahia. Signo de Gêmeos.
Millôr – classe econômica social.
HELENA – Minha família é de alta classe média baiana. A gente
67
Alô alô Rogério Sganzerla!
vê, não tenho mau gosto, me visto bem. Não sou nenhuma miserável da
Bahia. Depois vim pra cá, fiz o Assalto ao Trem Pagador porque Luiz
Carlos Barreto ficou deslumbrado com Glauber em Barravento. Ele sabia
que eu era muito boa atriz porque tinha visto uma peça de teatro minha
na Bahia. E até aqui foi só uma carreira de sucessos, primeiros filmes,
protagonistas, etc. Me separei do Glauber, tenho uma filha com ele,
Paloma, que é uma menina maravilhosa.
Jaguar – Quantos anos tem a menina?
HELENA – Tem nove anos. Vive comigo e a avó. Mas não tem
nenhum conflito desse tipo. É extremamente moderna ao mesmo tempo
que não é. É sertaneja antiga, ligada às origens. Tem um tremendo caráter,
uma coisa que eu não tenho. Ela ainda não foi contaminada por Ipanema.
Continua uma menina de nove anos de idade. Tem um charme incrível,
é fantástica! Depois conheci Julinho, me casei, fiquei três anos casada
com ele. Depois eu vi que seria maravilhoso a gente continuar junto,
mas não dava pé. Aí me separei. Profissionalmente fiz uma série de
filmes. Atravessei todo movimento do cinema novo. Fiz o primeiro filme
do cinema baiano que foi a Grande Feira em 1960. Eu tinha 19 anos e
fazia uma mulher que não podia mais ter filho, tinha que usar rugas
postiças e tal.
Tarso – Você tem 29 anos?
HELENA – 28. Sem mentir, porque às vezes digo que tenho 18
quando estou ótima no espelho. Fiz um filme com Julinho. Um filme
anormal como eu já disse. Acho o Julinho um dos bons diretores do
cinema brasileiro. Naquela época ele estava com péssimas influências,
ligado a esquemas que não são o esquema dele. Agora ele se libertou e
fez dois filmes inteiramente fora que são: Matou a Família e Um Anjo
Nasceu. Depois eu conheci o Rogério e de repente eu fiz uma revisão
crítica em minha vida. Minha vida, porque de uma certa forma eu vivi
num mundo de idéias e isso seria minha vida. Eu vi que essas coisas
não davam pé e parti pra uma outra. Uma outra que eu absolutamente
não sei o que é, mas que é bacana.
Tarso – Você, quando partiu de Julinho pra Rogério, qual foi o seu
processo?
HELENA – O meu processo foi, realmente, de cansaço de um
esquema. Um esquema que absolutamente não dava pé. Como mulher
68
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
eu vi que aquele esquema não dava pé. Com aquele esquema eu vou
parar.
Millôr – Esquema é muito vago.
HELENA – São dez anos de coisas que eu já sabia. Esse esquema,
realmente, não dá pé pra mim. Me enchia o saco. É um esquema que eu
achava que estava falido.
Tarso – Você não tem certo domínio sobre o Rogério?
HELENA – Domínio nessas coisas que eu acho maravilhosas. A
roupa, o cabelo, a paginação total. Isso é uma graça enorme pra mim e
pra ele. Acho maravilhoso o Rogério perguntar no restaurante: o que eu
vou comer? Isso é maravilhoso, porque é ele que está dizendo isso, é um
cara que rompeu com todos os esquemas que eu conheço e me pergunta
o que vai comer. Pergunta à mulher amada o que vai comer. Eu acho
fantástico ele perguntar: Helena, que camisa eu vou botar? Eu quero
comer carne ou peixe? Essa dependência total que Rogério tem de mim
é absolutamente maravilhosa. Porque é radical e total.
Millôr – Existe uma discussão aí que está se renovando agora,
imbecilmente, sobre a emancipação da mulher. Eu conheço muito bem
esse esquema do Rogério. Eu sou absolutamente submisso, me deixo
levar pra onde quiserem.
Tarso – Eu quero registrar aqui que isto é uma mentira absoluta.
HELENA – Eu quero registrar que esses homens são quentíssimos!
Millôr – Eu quero apenas acrescentar o seguinte: eu faço toda a
submissão com absoluta superioridade, entende?
HELENA – Sem essa, Millôr. Eu acho que é um esquema de dependência maravilhoso. Eu tenho um lado sádico e protetor. Então é
divino! Eu detestaria um homem se opor a mim nessas coisas mínimas.
Jaguar – Quando aparece uma barata, quem é que mata?
HELENA – Eu acho que sou eu...
Tarso – Quer dizer que a fórmula pra mulher não ser infiel é o homem
ser submisso a ela?
HELENA – Que loucura, Tarso, você juntar as duas idéias: ele me
perguntar que camisa vai botar é ser infiel? Tua cabeça é mesmo um
barato. Não tem nada uma coisa com outra.
69
Alô alô Rogério Sganzerla!
Millôr – Helena, houve uma entrevista da geração Realidade, mulheres que falam mal dos homens, dizendo que os homens não são de
nada, e tal. Inclusive a Ítala Nandi disse que só existem no Brasil 10
homens. Como ela estava falando sexualmente, evidentemente, 10
homens de cama. Citou a nós nominalmente, mas a modéstia impede
que a gente volte a citar. Agora, você acha que o homem brasileiro não
é de nada?
HELENA – Eu acho Ítala uma chata e os homens quentíssimos. É o
outro lado da jogada. Eu não tenho nada que ver com a geração Realidade.
Acho os homens ótimos. Tenho experiências pessoais quentérrimas. Ela,
simplesmente, escolheu os homens errados.
Tarso – Que você acha da emancipação da mulher?
HELENA – Sem essa, Tarso. Daqui a pouco você vai perguntar o
que eu acho do Governo Médici. Como eu poderia mudar essa situação,
e tal. Eu acho esse tipo de papo totalmente óbvio e não vou responder
coisa nenhuma no gênero. Não dá pé. Na praia da Montenegro a gente
já sabe que não dá pé. Eu não vou responder n’O PASQUIM o que eu
acho do homem brasileiro, da emancipação da mulher.
ROGÉRIO – Eu pressinto que os homens brasileiros não são satisfatórios, atrapalham o comportamento feminino. Eu acho que há uma
deficiência. É uma intuição de artista, não de um cara experimentado
porque eu não...
Millôr – Não é experiência pessoal não?
ROGÉRIO – Não é experiência pessoal, é visionária.
Millôr – Voltando ao negócio de cinema que nós abandonamos pra
ir pra cama. Você está numa jogada que pretende renovar o cinema. Eu,
por exemplo, sou um jornalista e acredito que o meu papel se encerra
no jornalismo. Eu acredito que se possa fazer com o jornalismo uma
profissão pra frente constante. Você acredita que com o cinema você
possa realizar alguma coisa socialmente?
ROGÉRIO – Alguma coisa sim. Mas essa coisa é muito pequena,
mas sempre é possível. Cada filme que você faz é diferente do outro.
Cada filme tem uma força dele.
Paulo Francis – Eu vi um filme ontem que, apesar de ter algumas
(*), eu fiquei muito impressionado.
70
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
HELENA – Qual é o filme?
Francis – Vergonha. Tem umas cenas de guerra Hollywood B. Tem
uma hora lá imbecil que o sujeito chega e diz assim: a sagrada liberdade
da arte! Depois: a sagrada frouxidão da arte! Mas o filme eu acho
importante. Esse negócio de sagrada liberdade e frouxidão da arte, o
que você acha?
ROGÉRIO – Eu não te conhecia e gostei muito do seu tom de locutor
sofisticado. Eu gosto muito das coisas que você escreve. Mas aquele
diálogo eu acho que é mal traduzido porque como está na tela eu não
entendi.
Francis – Quando aquele cara mata o outro pra roubar as botas é
ótimo, não é? É de uma verdade absoluta. Quando a menina diz que
assim eu não vou com você e ele diz: vai ser mais fácil pra mim, também
é ótimo. Então por que aquela frasezinha? Por mais mal traduzido deve
ser por aí.
ROGÉRIO – Eu gosto muito do Bergman, mas pensando, eu acho
realmente, vexaminoso. Eu gosto do Bergman de 52, 53. Agora, sei lá.
Tarso – A Helena disse que você acha o Bergman uma (*).
ROGÉRIO – Quando você vê um filme no barato, você valoriza
aquelas coisas (*). A fotografia fica linda, o som, que é direto, fica
lindo. Agora, o filme é uma (*).
Millôr – Você falou em suas péssimas origens. Ora, péssimas origens
não podem ser delimitadas por uma localização geográfica. Péssimas
origens são origens de caráter teratológicos, que a pessoa nasce defeituosa, ou são as grandes péssimas origens, que são as de caráter
econômico. Você está sendo demagógico e Santa Catarina vai ficar (*)
da vida com você.
ROGÉRIO – Eu acho que essa demagogia me auxilia. Ela me ajuda
a compreender um negócio interior. Eu preciso desesperadamente dessa
demagogia pra poder me entender. Não são as grandes péssimas origens,
são as pequenas péssimas origens que são realmente as péssimas origens.
Francis – Você está fazendo cinema como um negócio auto-suficiente
em que você se realiza como pessoa, como profissional? Ou você acha
que esse negócio não tem nenhum sentido e que é apenas um instrumento
pra você dizer as coisas?
71
Alô alô Rogério Sganzerla!
ROGÉRIO – Você é uma pessoa inteligente. Eu sou uma pessoa
mediana. Eu acho que o cinema não me realiza e ao mesmo tempo me
realiza um pouquinho. Falar de cinema nacional é diferente de falar de
cinema em geral. Então, quando eu falo em cinema nacional, eu quero
dizer que eu não estou realizado, mas estou um pouquinho. Naquela
mesma situação do sambista que coloca um samba e tal, e se (*).
Tarso – Ele fala isso olhando pro Sérgio Cabral.
Francis – Não. Termina a minha pergunta.
ROGÉRIO – Eu não me realizo porque eu acho que o cinema brasileiro hoje, é um fenômeno estratificado, desinteressante. Eu acho que
o público só se enche o saco com pequeninas coisas que só interessam
ao diretor, não muito ao diretor e nada ao público. Eu não estou realizado
nem quero estar realizado. De qualquer maneira a saída é essa. Fazer
cinema é péssimo no Brasil de hoje, mas a minha saída é essa.
Francis – Você pega por exemplo um filme como Os Companheiros.
É um filme acadêmico, bem feito dentro daquele esquema. É um filme
que você sentia na platéia uma reação fantástica. Eu não tenho nada
que ver com o Partido Comunista em primeiro lugar. Estou (*) pros
partidos comunistas do mundo, que vão pra (*) que (*). É o meu manifesto. Eu acho a coisa mais reacionária que existe no mundo é o PC,
mas isto é outra coisa. Mas de qualquer maneira tinha o Marcelo Mastroianni, magnífico no filme, tem cenas belíssimas, etc. Agora, você
pega o Warhol, o pessoal do underground. Eu vi vários, não tive nenhuma
reação, talvez por falta de familiaridade. Quando você faz um filme que
tipo de coisa você objetiva? Você quer este tipo de comunicação, onde
você pode dizer: eu quis dizer isso? Por exemplo: eu sou jornalista.
Quando eu faço um artigo eu quero dizer uma determinada coisa e quero
que as pessoas entendam ou, então, eu quero dar uma que (*) quem não
entendeu, mas eu quero dar aquela. Eu quero saber a sua versão.
ROGÉRIO – Eu acho que quando você é jornalista você faz o que
quer, mas quando você é cineasta, você não faz o que você quer. É uma
grande complexidade. Cinema, mesmo que você faça no Paraguai é difícil
pra burro. Eu faço (*) pro cinema, sempre gozam aquela coisa que eu
estou fazendo. Procuro sempre ironizar na linguagem do filme. Mas
aquela coisa que você consegue como jornalista, como diretor de cinema é muito difícil. Especialmente cinema subdesenvolvido, ridículo, e
72
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
tal. Isso que você falou eu acho perfeito porque isto que você está procurando é um negócio que você consegue fácil com o jornalismo. Eu
pego a máquina de escrever, eu acho maravilhoso. Eu faço tudo que eu
quero, eu pego as palavras e transformo, faço o diabo. Agora, pra filmar
é difícil. Principalmente no cinema brasileiro. Então eu me (*), eu me
jogo. É um negocio terrível, é uma experiência de suicida e ao mesmo
tempo é medíocre, não leva a nada, não resolve (*) nenhuma. Eu acho
que a grandeza do cinema está baseada nessa grande dificuldade. Eu
tenho um grande prazer de sentar numa máquina de escrever. Outro
dia, eu fiz um artigo pra revista Shell. Mas pra fazer cinema, não existe
essa unidade semântica que é a palavra.15
15 Não tenho como saber se é este mesmo o fim da entrevista, parece-me que não. O
meu exemplar do jornal foi doado a um Museu da Imprensa Alternativa, criado pela
RioArte, mas hoje desaparecido e ninguém dá notícias de onde foi parar todo aquele
acervo. Coisas do III Mundo. De qualquer forma a confrontação com o jornal e, se possível, com os originais do acervo do jornal, se ainda existem, deverão ser feitas na edição final. Foi nesta entrevista que Rogério declarou guerra total a todos os stabilishments,
inclusive os ditos “de esquerda”, e não estava sozinho, como tentou insinuar o
stabilishment de O Pasquim. A entrevista provocou grande impacto favorável a Rogério
nas melhores cabeças da nossa geração e modificou a postura da juventude em relação
à cultura brasileira, ainda um tanto vacilante antes da entrevista em afrontar os valores
tidos por “revolucionários”, mas que, sabíamos, não eram nada disso. A repressão já
caía mesmo era em cima de nós, os taxados de “marginais”, hippies e underground
(“udigrudi”, segundo o bom humor glauberiano, que é um termo melhor e mais perto do
real, pois não há como negar que havia muito equívoco também entre nós). Mas os
“comunistas”, estes estavam todos muito bem, obrigado, protegidos por cargos públicos,
empresas jornalísticas, mul-tinacionais e até em exílios dourados. Na verdade Oswald
de Andrade já identificara o fenômeno das “catacumbas” (em inglês underground) desde
que escreveu A Morta, em 1937, tema que explorou detalhadamente em Marco Zero,
de 1944-45 (“O Subsolo das catacumbas”). Aliás, a presença de Oswald, que vinha nas
entrelinhas dos textos anteriores, com menções ao Rei da Vela, na montagem de José
Celso, e algumas frases entrelinhadas em conceitos oswaldianos, aqui se torna explícita
e identificadora de uma diretriz fundamental para o cineasta e, de tabela, para toda a
geração que representava: “o cinema brasileiro quando era feito no mato ou na favela
são os caminhos que Oswald de Andrade apontava: no sertão ou na favela.”
73
Alô alô Rogério Sganzerla!
A questão da cultura
16
64 e 68 não foram suficientes ainda para a inteligência brasileira (a
estas alturas pode-se ler burrice) superar o culturalismo e o liberalreformismo institucionalizado a partir de 1922 por Mário de Andrade.
Longe das metrópoles ocidentais que tentam se libertar da moral e
da cultura opressivas do passado, nas colônias distantes os culturalistas
continuam sabotando toda invenção em nome da “cultura brasileira” e
da Arte com A maiúsculo para tranqüilizar o ocupante. Oswald de
Andrade (1890-1954) continua sendo tabu pois fora do revisionismo
oficial ninguém admite a invenção considerada “irresponsável”.
(os culturalistas que tentaram matar Oswald vão pagar em futuro
próximo a dívida histórica; jamais conseguirão substituí-lo por Mário, o
diluidor, o bibliotecário erudito.)
Sabotando toda criação fora dos moldes oficiais em nome de “uma
frente única contra o inimigo”, os culturalistas se esquecem de que o
inimigo está também entre nós. Defender a cultura nacional equivale a
imitar a remota cultura ocidental e outras noções importadas das metrópoles que há muito tempo jogou-a no lixo. “Um dos maiores erros”,
assinala Fanon, “é tentar revalorizar a cultura no quadro de dominação
cultural”.
A cultura, objeto de segunda mão ainda em uso em certas colônias
distantes no tempo e no espaço, continua sendo expressão da classe
possuidora e exploradora que a criou.
Trótski: “Cada classe dominante cria a sua cultura e em conseqüência sua arte. A história conheceu as culturas escravistas da
antigüidade clássica e do Oriente, a cultura feudal da Europa medieval
e a cultura burguesa que hoje domina o mundo. Daí a dedução de que o
proletariado deva tentar criar a sua cultura e a sua arte (...) É fundamentalmente falso opor a cultura e a arte burguesas à cultura e à arte
proletárias. Essas últimas, de fato, não existirão jamais porque o regime
proletário é temporário e transitório. A significação histórica e a grandeza
moral da revolução proletária residem no fato de que esta planta os
alicerces de uma cultura que não será de classe mas pela primeira vez
verdadeiramente humana (...) Contrariamente ao regime dos possuidores
16 Escrito em 1970.
74
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
de escravos, dos senhores feudais e dos burgueses, o proletariado considera a sua ditadura como um breve período de transição.
“Pode-se portanto concluir que não haverá cultura proletária. E
para dizer a verdade, não existe motivo para lamentar isso. O proletariado
tomou o poder precisamente para acabar com a cultura de classe e abrir
caminho a uma cultura da humanidade. Esquecemos isso, ao que parece,
com muita freqüência”.
A cultura em si – a própria idéia de cultura – já apresenta um
caráter de classe e é preciso acabar, dissolver com a noção de cultura –
seja cultura feudal, burguesa ou proletária.
“Prefiro um bom poema de amor a um mau poema político, porque
o mau poema político desserve a revolução”.
Nem a classe intelectual, os poetas e os camponeses têm qualquer
chance histórica de tomar o poder num contexto subdesenvolvido. Pois
foi exatamente em torno desses falsos dilemas que a inteligência subdesenvolvida adjetivou, mentiu, enganou e perseguiu uma estética
aristocratizante-sentimental-europeizante. São as alegorias camponesas,
as vocações reformistas de maus poetas, as heranças cultivadas que –
mais do que ninguém – intoxicam, deturpam e exploram o público
brasileiro. Ninguém pode, em momento nenhum e em qualquer país,
negar que a obra de Arte com A maiúsculo não seja comprometida com
o sistema – a não ser que seja burro ou desonesto.
Ao contrário do que pensam os piedosos culturalistas, não existe
obra política reacionária na forma e progressista na mensagem. Na
verdade, o equívoco não é um equívoco, mas uma contrafação ideológica
a oferecer prestígio, dinheiro e má consciência aos responsáveis não só
pela “cultura nacional brasileira” mas pela infra-estrutura intelectual
que oprime o colonizado.
Quanto a mim, há muito tempo luto não só contra a cultura ocidental
mas contra a criação de uma cultura subalterna nos moldes ocidentais
como também contra a comprometedora idéia de cultura.
Diante do incêndio universal, é mesquinho, provinciano e reacionário
querer defender o que é nosso; a partir da destruição da cultura dos
outros, tentar salvar o nosso pequenino patrimônio de idéias. Ao mesmo
tempo não deixo de rir antropofagicamente e dar mais um tchau cultura.
Ou como ameaçava Maiakóvski: “acabaremos contigo, mundo
75
Alô alô Rogério Sganzerla!
romântico!”
Quem é, então, o inimigo mortal do cinema novo?
Os produtores independentes, os não-reformistas, os radicais, os
profetas, os criadores.
(É preciso ficar mais uma vez claro que isso tudo pega mal para
eles, que o problema é deles, quem passará o vexame histórico serão
eles, aliás como prevíamos desde 1968)
Quem ganhou quase todos os prêmios oferecidos pelo Instituto
Nacional de Cinema no Brasil de 1970? Antônio das Mortes e a pobre
cúpula do cinema novo. E pronto.
Consciência dividida e má consciência.
Agora nós tocamos no problema chave e na vida íntima de cada um
deles: a má consciência.
A consciência dividida entre a vanguarda e a reação os estagnou na
tradicional má consciência formalmente traduzida por um esteticismo
autocomplacente e tardio.
Ninguém do cinema novo pode tratar de outro tema que não seja a
má consciência. Impossível deixar de fazer filmes de má consciência
(Antônio das Mortes, Macunaíma, Os Herdeiros, Brasil Ano 2000, a má
consciência aflorando principalmente na safra colorida “grande produção”, onde a concessão chega a ser escandalosa e poderia paradoxalmente dar em bom cinema se não fosse o complexo de culpa e o
arrependimento sobrecarregados).
Ainda em 1970 a técnica principal do stalinismo latino-americano
continua sendo a conciliação – principalmente com a burguesia nacional.
Lenin convidou o proletariado a estender a luta de classes ao plano
da moral. “Aquele que se inclina perante as regras estabelecidas pelo
inimigo jamais vencerá!” (Trótski)
No Brasil, a conciliação continua sendo a estratégia vital do
culturalismo stalinista. O deslumbramento constitui forma de impulso
de ascensão social para a classe média colonizada que “quer fazer cinema de autor” precisamente depois da falência total deste último respiro
liberal da social-democracia ocidental.
Reduzidas às devidas proporções, este movimento é um meio de
alguns ascenderem socialmente satisfazendo seu deslumbramento dentro
76
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
de uma moral paternalista e repressiva (por exemplo: as pessoas e obras
não-desejáveis ao movimento, por determinação expressa da cúpula,
são sistematicamente sabotadas, caluniadas, queimadas e denunciadas).
Trágica é a vocação do brasileiro para a conciliação, a bajulação e o
paternalismo repressivos.
Como toda diluição, não vale a pena falar mal do cinema novo. É
como criticar a censura: ninguém por dentro tem coragem de gostar da
censura ou do cinema novo.
O que nos interessa é destruir a infra-estrutura intelectual que oprime
o colonizado: o culturalismo ainda poderoso nas províncias distantes
ainda não atingidas pela revolução industrial, onde predomina o autoritarismo paternalista e/ou populista. À teoria ingênua de que “o elemento
nacional já nos basta” somam-se os preconceitos e os complexos de
culpa, o deslumbramento, o sentimentalismo discursivo e a tradicional
má consciência, disfarçados pela política do culturalismo, da cultura
nacional, da colaboração com a burguesia nacional e da teoria stalinista
da revolução num só país.
A América Latina continua sendo um dos últimos redutos internacionais do stalinismo. Os PCs só formalmente apoiaram a luta armada entre nós.
O intelectual latino-americano, quando se julga “participante”, é
um cristão ingênuo, deslumbrado e auto-complacente, exclusivamente
racional e auto-censurado (seu grande inimigo não é a ditadura mas... o
irracional) com acentuada tendência ao stalinismo que na América Latina
acomodou-se maravilhosamente ao tradicional populismo. Daí a criação
de uma cultura centralizada, “nacional”, populista e de preconceitos,
liberal-humanitária-estetizante, conteudística, sentimental, individual,
anti-industrial, anti-antropofágica, anti-internacionalista.
Diariamente a realidade continental se encarrega de destruir tais
preconceitos mas cabe a nós extirpar definitivamente o culturalismo de
nosso subconsciente explorado e subdesenvolvido. Cabe a nós extirpar
a moral stalinista, o culturalismo e o reformismo populista – deformações
inseparáveis, que precisam ser destruídas de um só golpe internacionalista.
Todo mundo tem direito de fazer abacaxis. Principalmente nós,
cineastas brasileiros, podemos experimentar à vontade sem se preocupar
77
Alô alô Rogério Sganzerla!
com a qualidade de nossos filmes voluntariamente impuros, anormais,
subdesenvolvidos por condição e escolha. Qualquer um pode fazer seus
abacaxis. Não é contra a qualidade de alguns filmes do Cinema Novo
que chamamos a atenção; pelo contrário, o insucesso de um abacaxi
não quer dizer nada nem responsabiliza o seu autor, pois cada filme é
uma unidade diferente, uma nova aventura.
Quando começamos o ataque contra os culturalistas, procurei deixar
bem claro: não era contra a qualidade de um ou outro filme que nos
dirigíamos mas contra o projeto geral, a política do Cinema Novo,
aprioristicamente, globalmente reacionária nas suas intenções, na moral
de grupo, no paternalismo familiar, no que se quer de um filme no
resultado, na baixa densidade criativa desses filmes. Eles não são ruins
somente por problemas de produção, mas principalmente porque o
diretor, há muito tempo atrás, antes de começar a fazer cinema, ele já
estava conciliando, traindo o irracional, se comportando perante o Cinema Novo. Os filmes são aprioristicamente ruins e deixamos claro que,
quando criticamos, não é o filme mas todo o Cinema Novo, seus filmes
todos em bloco não conseguem sobreviver à castração imposta pelos
quadros cinemanovistas. Atacamos simbolicamente todos os filmes do
cinema novo, em bloco, principalmente os vexames mais vulneráveis
da cúpula, na verdade, a única responsável pelos seus próprios abacaxis
e pelos abacaxis de outros. A cúpula é quem mata os filmes muito tempo
antes de ser escrita a primeira linha do roteiro. É essa cúpula que vamos
destruir. Ou destruí-la ou o cinema brasileiro afunda de uma vez.
Todos sabem que mexer na infra-estrutura intelectual é dinamizar
(isto é, incomodar; pois é o que fizemos, incomodamos, abrimos a polêmica), a infra-estrutura política do subdesenvolvido.
Discutir cinema oficial é abrir fogo contra o partido e os stalinistas,
não há dúvida.
O que eles fingem não saber é que o culturalismo perderá mais
terreno ainda com a falência do liberalismo e da social-democracia.
Maio, o terrorismo e a extrema-esquerda se encarregam de tirar-lhes
todo sentido.
Não será mais possível ilustrar demagogicamente mensagens
populistas para a burguesia nacional aplaudir, caricatura sórdida e
dependente da burguesia ocidental. Os cúmplices da burguesia nacional
78
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
estarão fora das decisões reais do futuro.
A incômoda radicalização atual destruirá suas principais forças de
apoio; o resto deixo para a história contar. Acabou. Fim de papo. Não
darei mais nenhuma colher de chá. Chega, Brasil!
fim17
MONUMENT
AL APRENDI...
MONUMENTAL
(1970 – Carnaval na Lama)
Monumental aprendi a necessidade de tudo dizer de uma só vez a
cada instante buscando a verdade através dessa estrutura de constelação
insistente de tudo dizer a todo instante não importa como de qualquer
maneira qualquer material que tivesse às minhas pobres mãos milionária
contribuição de todos os erros livre na maior. Descobrira um método.
Pré-colombiano sem dúvida. E sem querer. É fácil; muito fácil tudo
dizer ao mesmo tempo não importa como e com o quê. Assim aprendera
a colar planos fortes com planos fortes – isto é crescer ou aumentar ou
verticalizar um filme para ver o que saía de bom e de ruim, operação
“feed back” reversão exclusivamente a partir (da discussão do que seja)
ruim ajuntar cenas (mais) fracas com cenas fracas. Isto na concepção
do diretor de vanguarda querendo fazer o que não se pode fazer ou seja
fazer um filme voluntariamente péssimo e livre ou ao menos equacionar
essas questões, tal me parece a função necessariamente insinuante do
ser
17 O leitor terá sentido, na força deste texto magistral, o salto enorme que se deu na
vida do cineasta-escritor no curto período de cinco anos. Em 1965 tínhamos um crítico
inovando a informação do cinema mundial e lançando as bases teóricas e sistêmicas do
que ele chamou “cinema moderno”, cujos elementos colhia cuidadosamente nos mais
significativos exemplos históricos e contemporâneos. Em 1970 temos o primeiro gênio
criador deste “cinema moderno” no Brasil, já com duas obras-primas realizadas em
longa-metragem e três em curta-metragem, e o genial escritor-líder-ponta-de-lança do
pensamento da geração rebelde de “68”, se expressando no pleno domínio de uma escritura revolucionária e comprometida com as melhores raízes da criação nacional balançando as estruturas do status quo, onde quer que fosse conservador ou reacionário,
seja “de direita”, ou “de esquerda”. E não deixa pedra sobre pedra. Neste interregno,
como se verá mais a frente, o ponto marcante de sua trajetória é a descoberta do Brasil
que, à semelhança de Oswald de Andrade e Villa-Lobos, se deu quando estava na Europa.
79
Alô alô Rogério Sganzerla!
3 resumos de O Capitão do Cangaço
18
projeto não-realizado
.1.
O Capitão do Cangaço (sinopse)
título definitivo: “Reinado Sangrento”
Raso da Catarina ao meio-dia – calor insuportável provocado pelo
incêndio criminoso de uma casa. Inicialmente os facínoras cercam a
casa e disparam contra o proprietário. Impõem o terror num lugar remoto
onde a Lei jamais alcança seu braço forte. Atrás dos cangaceiros vem a
volante numa marcha nada fácil. Horas depois estão cansados, famintos
e sedentos, disputando entre si as últimas gotas d’água de um cantil
que passa de mão em mão. Dois ou três integrantes passam a protestar
e a discutir. Intervém o chefe do bando, Capitão Edevino Ferreira da
Silva. A ensimesmada esfinge parece um duende das estradas. Através
de um emissário – cangaceiro disfarçado de cego – tenta extorquir os
comerciantes de um lugarejo que pretende ocupar na madrugada seguinte. E O CONSEGUEM. Ocupam a vila e libertam um preso que não
quer sair da prisão.
O destacamento está preparado para recebê-los a bala. Tentam e
conseguem atacar de surpresa o lugarejo. Atacam de surpresa depois de
chegar sorrateiramente, na melhor tradição do cangaço – antes da hora
combinada.
Fazem as melhores estrepolias no povoado, onde são recebidos pelo
padre em casa paroquial, onde está escondido o cangaceiro Elétrico,
compadre do Capitão do Cangaço.
Também ele era seco como um graveto e não conhecia o repouso. O
comandante sente que o grupo escapa-lhe completamente por ter armado
um truque que despistava-os entre nuvens de poeira, assaltando e
devastando o que encontrasse pela frente. “O poder do cangaço se mede
pelo poder de devastação”, dizia o Capitão, que não só matava como
torturava.
No povoado acorre o destacamento, somente horas após a ocupação,
submissa a um anti-herói de mil tropelias.
18 Atribui ao ano de 1972 a redação deste argumento-poema-cine-sertanejo
80
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
ELÉTRICO vai ao encontro de sua mulher ATIVIDADE que o
aguarda.
Evidentemente, pretendiam fazer ainda muita coisa naquele mesmo
dia. A força volante disfarçava-se em trajes de cangaceiros com chapéus
e enfeites para confundir os homens da Lei com os bandoleiros. Era o
uniforme de luta nas caatingas. Grotescas ironias que se sucedem em
alguns dias na vida de um bando de maltrapilhos bandoleiros que roubam
cavalos e afundam na vastidão da caatinga e desaparecem do mapa.
Antes disso, porém, divertem-se com o produto do roubo. Orgasmo
ruidoso pelos chapadões que parecem ruínas pré-históricas de eras
imemoriais – serpenteando a caatinga, homens que mais parecem
serpentes são afinal dizimados pela investida vitoriosa das forças da Lei
que lhes vêm no encalço.
ELÉTRICO está perto dali e ouve os tiros.
Invade a casa do coitado sobre quem vinha recaindo a suspeita.
Tenta fazer justiça com as próprias mãos mas Atividade pede
clemência.
Fim
.2.
O Capitão do Cangaço
Resumo do argumento de Rogério Sganzerla
Poeira – a princípio só poeira – uma nuvem de pó: cobre tudo. O
vento assovia e redemoinhos de pó se levantam da terra calcinada, cheia
de pequenas pedras, em chicoteios furiosos no tabuleiro e chapadões ao
fundo, onde se divisa uma cruz rústica e cavaleiros atravessando a
caatinga. O Capitão do Cangaço era seco como um graveto e não conhecia
o repouso e o sono!
Em primeiro plano, resquícios pré-históricos de uma cidade
petrificada, tão tosca quanto os personagens – cangaceiros encarnando
a luta do homem contra o destino – que atuam como ninguém neste
produto acabado do laboratório cultural sertanejo...
No tempo em que o sertão era sertão, quadro arqueológico da
sociedade brasileira, dominado pela esfinge lendária de um Deus cego
do Sertão – o capitão de um grupo de cabras cangaceiros quase sem
81
Alô alô Rogério Sganzerla!
armas, esfaimado e rasgados pela vegetação agreste, sem comer desde o
dia anterior...
Perseguidos por um destacamento policial que segue seu rastro,
palmilhando os poucos rastros de penosa marcha de vaivém e caminha
na trilha dos perseguidos com passos vigiados, mais parecem duendes
das estradas impossíveis, assombrações míticas da catinga, onde os
fenômenos naturais se transformam em lendas, atravessando gerações
inteiras e desvendam uma face armada de nossa história recente.
Tomando conhecimento da direção em que se acham os cangaceiros,
o destacamento policial palmilha seus rastros à procura de possível
“coito” (esconderijo) e tenta sitiá-los nas imediações para fazer penetrações de surpresa sobre o apertado cerco. Recorrem a todos os
esforços imagináveis naquela marcha macabra que não anda fácil para
ambas as partes, perseguidos e perseguidores, pois viajam noite e dia
sem parar, tendo se acabado as poucas provisões que traziam consigo...
A fome é negra e o pau comia de todos os lados, tendo de agir com a
maior cautela para tirar o melhor partido possível. Nesta luta sem quartel
as peças chaves são os rastejadores [segmento ilegível] sob o sol
escaldante.
– Vamos parar pro descanso!
Antes de preparar alguma tropelia e aterrorizar a população
amedrontada dentro do próximo povoado, o capitão se define como um
ser de contrastes, diapasão extremado e do tipo oito ou oitenta...
É uma figura ímpar na história universal do banditismo e não há
quem ofereça contraste à maior vírgula de nossa história.19
– SÓ ERA BOM QUANDO QUERIA SER BOM...
QUANDO QUERIA SER RUIM NINGUÉM COMETIA MAIS
MALVADEZA DO QUE SUA FIGURA TENEBROSA... E FAZIA AS
COISAS DE SOPETÃO SEM SE IMPORTAR COM AS CONSEQÜÊNCIAS... NESSAS HORAS ELE ERA UM RAIO DE PERIGOSO.
SE TEM QUE MATAR MATE LOGO... PARA MIM TANTO FAZ
UM COMO MIL... É A MESMA COISA.
19 Em sua “Enciclopédia do Povo Brasileiro” (editada parcialmente pela Editora Globo
com o título “Dicionário de Bolso”), Oswald de Andrade define “Lampião” como “uma
vírgula na História do Brasil”.
82
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
VAMOS ABRIR NO OCO DO MUNDO PARA MORRER OU
MATAR!
.3.
O Capitão do Cangaço
(Voodoo Chile)
Argumento de Rogério Sganzerla
Apresentação: caatinga imensa e seca no alto-sertão.
No tempo em que o sertão era sertão, quadro arqueológico da sociedade brasileira (a princípio, só poeira, uma cruz e quatro cavaleiros).
Uma nuvem de poeira cobre tudo, próximo a uma cidade petrificada
indicada pela pedreira encimada por um rústico cruzeiro – tão tosco
quanto os personagens que atuam nesse produto acabado do laboratório
cultural sertanejo.
A esfinge lendária de um Deus vesgo do sertão retira o chapéu de
cangaceiro, persigna-se e atira uma pedra na estrada. Suas mãos
compridas, parecendo garras, protegem o olho direito onde repousa um
óculos de aro de ouro e lentes coloridas que rebrilham junto às mãos
cheias de anéis de jóias falsas e verdadeiras. Seu tórax está guarnecido
pelas mal-providas cartucheiras e sob a calça de brim e o paletó de
riscado claro se divisam as medalhas, santinhos de padre Cícero, um
punhal e duas pistolas “Parabellum”, além de um velho fuzil fabricado
no início do século, e que suas mãos ágeis não abandonam – a não ser
para ajoelhar-se e orar pelas almas em pleno meio-dia, sob o sol escaldante da catinga...
Inimigos do progresso, perseguidos pela justiça, isolados por estradas
impossíveis e sujeitos a periódicas secas, os cangaceiros encarnam como
ninguém a luta do homem contra o destino. O vento assovia e os
redemoinhos de pó se levantam da terra calcinada em chicoteios furiosos
nos tabuleiros chapadões e terrenos duros cobertos de pedras.
Não se trata somente de quatro cavaleiros atravessando o alto-sertão
mas o próprio Capitão do Cangaço com 17 “cabras” preparando alguma
tropelia dentro do próximo povoado.
83
Alô alô Rogério Sganzerla!
Sinopse de Abismu
20
ABISMO
Produção: Rogério Sganzerla
Co-produção: Norma Bengell
Argumento, roteiro e direção:
Rogério Sganzerla
Diretor de produção: Ivan Cardoso
Diretor fotografia: Renato Laclete
Câmera: Rogério Sganzerla
Sonografia: Dudi
Still: Ana Lucia Sette
Laboratório: Líder
ELENCO:
Jorge Borges (Jorge)
Norma Bengell
José Mojica Marins (professor Pierson)
Wilson Grey (capanga)
Jorge Loredo (Zé bonitinho) (Medium de MU)
Edson Machado (baterista)
Mário Thomar (marítimo)
Participação: Mariozinho de Oliveira
Música: Up from the skies, Pali Gap, Wait until tomorrow, de Jimi
Hendrix; Faceira, de Ary Barroso com Silvio Caldas; Positivismo, de
Noel Rosa com Noel Rosa e Orestes Barbos; Mambo Jambo, Sabor a mi,
de Perez Prado.
SINOPSE:
Numa asa voadora, do alto da Pedra Bonita, diante do Gigante da
20 Estimo ter sido escrito em 1977, para a divulgação de lançamento.
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Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Gávea, e em direção ao abismo, um jovem desportista se atira e voa,
enquanto um assassino (Wilson Grey) agilmente monta um fuzil telescópico – engatilha, mira, atira – e acerta – no desportista.
Um fotógrafo que é egiptólogo e arqueólogo amador, por acaso a
tudo vê: saca de sua câmera fotográfica, registra o incidente mas chama
a atenção do homicida, que foge em seu automóvel, seguido pelo fotógrafo
(Jorge Borges) numa rápida perseguição automobilística numa ladeira
do Joá. Numa curva de duzentos graus, Jorge acelera ao máximo mas é
impedido e obrigado a reduzir devido a presença – descomunal – de um
conversível Cadillac dirigido por uma mulher, Madame Zero (Norma
Bengell) – impedindo-o de seguir a pista do assassino.
Diante da asa, caída na praia, próximo ao local do crime, Jorge
promete virar mar e terra “se preciso for para encontrar o dono daquele
cano assassino...” e vingar o amigo morto.
Enquanto isso, observando-o do alto o assassino previne seu cúmplice Dr. Pierson (José Mojica) de que aquele tipo “viu tudo e vivo é
nocivo...”. Pierson requisita os serviços de Madame Zero como espiã e
amante, preenche-lhe um cheque e manda-a “ganhar o cara”.
Sucede-se um diálogo entre ela e o fotógrafo, terminando num motel.
Na suíte egípcia do motel “Vale dos Reis”, ele menciona seu interesse por pesquisas e escavações arqueológicas, baseado num manuscrito
seiscentista de um tesouro encontrável
numa ilha da costa Atlântica, “Ilha Selvagem”, para onde convida-a.
Fingindo-se desinteressada detrás de
um biombo chinês, Madame Zero liga uma
vitrola, muda roupa, levanta saia, desvendando na altura da coxa, um punhal
envolto em bainha de pele-de-tigre, de
onde retira uma pílula sonífera que deposita num cálice e cantando “Drumi
Negrito” (em play-back) atravessa o quarto
levando-o para Jorge, com quem troca cáGrey e Rogério nas filmagens
lice, brinda e bebem.
de O Abismo
85
Alô alô Rogério Sganzerla!
Norma Benguel em O Abismo
Alguns minutos depois, devido ao efeito da pílula, Jorge adormece,
enquanto ela rapidamente se transforma em veloz felina: vasculha seu
bolso, fotografa o manuscrito, encontra afinal a câmera fotográfica que
documentou o homicídio, retirando o filme comprometedor. Ao fim da
canção em play-back desliga a vitrola e em seu Cadillac dirige-se ao
observatório astronômico, ao encontro do Dr. Pierson e o assassino.
Insatisfeito com os resultados apresentados. Pierson exige pesquisa
em profundidade, pois ela “em sua nulidade, não distingue um faraó de
um pobre diabo”. Ao que, adianta Wilson Grey: “doutor, deixe ele cavar
sua própria cova. Do tesouro, ficamos com o ouro, pra ele dou a cova” –
convencendo-o plenamente.
Dirigindo-se à Ilha Selvagem em sua lancha ultra equipada, baseado
em duas teses fundamentais, ou seja, da origem vulcânica das rochas
da costa brasileira e do princípio de comunicação, desde alta antiguidade,
entre oriente e ocidente, Jorge confessa não duvidar nem por um instante
da eficácia de seus planos, apoiado na pesquisa de ideograma e caracteres
paleográficos, isto é, desenhados do grego arcaico. Consultada a obra
de Bernardo da Silva Ramos Inscrições e Tradições da América PréHistória, a bordo decifra o manuscrito.
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Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Um marítimo que lhe acompanha na investigação sobe ao alto de
um precipício e cai.
No dia seguinte, chega á ilha uma lancha apressada, trazendo o assassino, sempre armado, e Madame Zero.
Jorge empenha em mato fechado, deparando-se bruscamente com a
entrada, enorme, de uma caverna onde ingressa e encontra, entre
estalagmites e estalactites, a figura insólita do médium de Mu (Jorge
Loredo) que lhe instrui sobre os perigos e inimigos a serem enfrentados.
Para acender seu charuto, o médium retira-lhe algumas folhas do manuscrito e queima-as, para espanto do pesquisador, que ao retirá-las do
fogo vê, em detalhe, misteriosamente, letras aparecendo no papel (escrita
em alumen de potassa, sob efeito térmico) que podem lhe desvendar o
caminho a seguir.
Alterando seu itinerário, avança por uma sombria galeria. De lá
retorna, trazendo um baú de época.
Enquanto isso lá fora, o máximo que Madame Zero conseguiu é encontrar o médium de Mu, que enche sua bolsa de moedas antigas, sem
que ela perceba.
Diálogo de Madame Zero e o médium na estrada da caverna. Ele
manda-a evitar o assassino, ela responde: “por enquanto ainda sou
terrestre, meu mundo é alegre”.
Vai ao encontro de Dr. Pierson que espera-a em seu iate com música,
bebida e mulheres...
– Encontrou o tesouro?
– Não, achei a mim mesma.
– Então vá tomar banho – joga-a ao mar com bolsa – ao que moedas
rolam ao chão, caindo n’água.
Furioso, Pierson amarra-a no mastro da embarcação e interroga-a,
enquanto um garçom traz uma bandeja com um frasco de ácido expelindo
fumaça.
– Mulher, você agora vai me contar tudo.
– Mas eu não sei de nada.
Pierson aponta-lhe a mauser, mas aproxima-se demais, ela rapidamente saca de seu punhal (guardado na coxa) e defere-lhe golpe
certeiro, enquanto o garçom ao vê-lo abatido, joga contra Pierson o
87
Alô alô Rogério Sganzerla!
conteúdo do frasco.
O assassino não tem outra saída senão seguir à risca as recomendações de seu ex-cúmplice: suicida-se o mais rápido e higienicamente possível.
A tudo observa de luneta, o arqueólogo. Aponta o cano quente de
sua arma contra o detalhe de uma gasta fechadura de um baú, abre-o
(efetivamente cheio de jóias e estatuetas) conduz-o à praia, entra e
embarca em lancha para seguir à vontade, vitorioso e tranqüilo, a desafiar
a maré alta – que com a terra e a despeito dela – tudo encobre projetandoo no mar.
-o-o-o-o-o-o-oFazemos aqui um rápido “intervalo” para comentar Abismu. E
ninguém melhor para fazê-lo do que o saudoso crítico Jairo Ferreira, no
artigo “Chanchada fantástica”, publicado na Folha de São Paulo,
domingo, 16 de abril de 1978:
“Exibido esta semana na Cinemateca do Museu de Arte Moderna
do Rio de Janeiro, O Abismo ou Sois Todos de Mu, marcando a volta de
Rogério (O Bandido da Luz Vermelha) Sganzerla, decepcionou de forma
retumbante a expectativa imediata de primeiro grau, ou seja, a turma
que esperava um recado objetivo do cineasta em relação ao Brasil dos
anos 70 e seu cinema de grande mercado e nenhuma criatividade. ‘O
filme é um verdadeiro purgante’, desabafou o cineasta Luis Rozemberg
Filho, um dos mais coerentes do cinema Udigrudi, enquanto outros
cineastas torciam o nariz e se recusavam a fazer comentários.
“Particularmente, porém, considero minha ida ao Rio bastante
compensadora. Rogério, ao lado de Bressane, e ainda Glauber Rocha, é
uma das poucas bandeiras de um cinema deflagrador. Agora ficou claro
que a Embrafilme ainda não conseguiu – nem conseguirá – dominar as
poucas mentes livres do cinema nacional, aquelas que resistem com um
cinema independente. Só lamento que o filme do Rogério não tenha
uma dose tão grande de invenção, já que ele não encontrou outro caminho
a não ser diluir-se a si mesmo, repetindo lances do Luz (1968).
“O que é o filme? Uma revelação arqueológica sobre as origens o
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Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Brasil. ‘O Egito é neto da América’, ‘Só me interessa a profecia’, ‘O
destino do homem é uno, de Mu a um’ – são frases que o próprio Sganzerla
diz no início do filme, cortando-se em cacos de vidro. Depois passa a
dirigir um Cadillac rabo de peixe, branco, começando a viagem (na
verdade, bad trip, isto é, mal sucedida) ao continente perdido de Mu
(localizado na Gávea, Búzios e Alto da Boa Vista) ou à Atlântida que o
cineasta toma pelo Brasil.
“Como o filme não tem história, sem mais nem menos surgem
personagens em meio a rochas, inscrições e ruínas lendárias do Brasil.
O primeiro é o professor Pierson (José Mojica Marins mais elegante do
que nunca), que logo diz em primeiro plano: ‘Além de ser grande, eu
sou o maior’. Depois surge Norma Bengell, dirigindo o mesmo Cadillac
com muito charme e fumando um charuto de meio metro (desses alusivos
a Itu). Wilson Grey, o ‘vil criado’ de Mojica, exibe uma grande borracha
de apagar, onde se lê: ‘Para grandes erros’. Igualmente delirante é a
aparição de Zé Bonitinho: ‘Mulheres, cheguei. Vós sois todas de Mu e
não sabeis’.
“Em suma: O Abismo é um filme finíssimo sobre a grossura, um
vôo poético avançado, uma chanchada fantástica, situada aliás muito
além dos rótulos (a base é o Udigrudi, mas o resultado é outro). A câmera
geralmente é péssima, o que não exclui angulações geniais e cortes
fulgurantes. Tudo isso é muito simpático enquanto Rogério não insiste
em se auto-afirmar através de José Mojica Marins: ‘Eu sou o maior
mesmo. Boçais e recalcados, uni-vos!’. Uma carapuça que certamente
serve também ao autor, coisa que a filosofia geral do filme deixa clara
(‘Tudo é uma coisa só e isso é tudo’).”
-o-o-o-o-o-o-o-
Jimi, gênio total
21
De 1965 a 1970, um gênio reinou sobre a Terra – Jimi Hendrix (27/
11/45 – 18/9/70); mais uma vez a Terra não soube coroar seu rei. E se
assim não o foi mais porque por dentro de altas estruturas astrais (isto é,
21 Publicado na Folha de São Paulo, segunda-feira, 11 de agosto de 1980.
89
Alô alô Rogério Sganzerla!
físicas, e seguindo o princípio único da lei de encarnação)
ele como rei sabia que iria partir breve. “He’s not gone,
is just dead”, prediz Hendrix em 1965, numa gravação
com Curtis Knight, de uma canção intitulada justamente
Ballad of Jimi, onde fala, com diferença de um dia, a
exata data – mês e ano – de passagem deste para outro(s)
mundo(s) onde segundo ele estará nos esperando para a
próxima revoada de trovões que transformará a face da Terra, mas até lá
ele voltará (“I’ll return” – repete em Highway Chile, presciente de sua
vida transitória e abissalmente genial, em péssimo estado como Noel
que por sua vez desabafa: “... tenho passado tão mal/a minha cama é
uma folha de jornal...”). Gênios ceifados na flor da idade não fazem
senão rejeitar: “I don’t live today/maybe tomorrow”. “Até amanhã, se
Deus quiser”. “I will return”. Rejeição deste mundo, mente e sociedade
do medo, não fazem senão recusar tudo que deve ser recusado – em
nome do novo homem, nova sociedade e tudo que é de Deus.
Desvendo o véu de Isis: tenho para mim que antes de mais nada é
necessário pensar em Hendrix como uma divindade. Não uma “divindade
do som”, se assim posso exprimir, mas divindade do homem. Total mente
gênio total – pois ele próprio é uma divindade que se alimenta de sua
própria aura; um gênio encarnado suntuosamente num negro-índio; gênio
da América e americano por dentro número um.
Hendrix já é século 21 e 23 – além de 20. Três séculos atravessam
e informam com sua maneira típica de tomar com a mão esquerda, cordas
(12 na stringuitar) na posição invertida por exemplo.
Suas letras devem ser ouvidas como um ideograma, com grande
elegância e concisão de forma – referindo-se ao essencial
– se fala do poder (e formas subalternas de usar o poder –
dinheiro medo moeda repressão chicletes e metralhadora,
por aí afora): “Sweet talks in vain”.
Já a música é uma explosão de luz (e cor; como a línguaraiz sânscrito e o tupi – or not to be)22 , onde o som representa
um valor tonal e é escrito sob uma pauta musical, novamente Hendrix
reina sob nossa mente. Não divaga sobre anedota ou deslumbramento
menor: ele diz o essencial, isto é, o supérfluo: vinho, o uno, poder, tudo
22 Rogério alcança, genialmente, um upgrade do genial aforismo oswaldiano “Tupi, or
not tupi that’s the question”.
90
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
é possível. Fala sobre quetzal, o poder de transformar tudo e a
mente à medida positiva de desmedido negar. Sobretudo diz
tudo sobre tudo com pouco ou quase nada: três homens –
guitarra, baixo, bateria – soam como multidão em músicas
escritas, cantadas e freqüentemente mixadas por ele em seu
estúdio Electric Ladyland. Mal admitido, claro, pelos que tolhem o
pensamento com medo, quem necessita e tal artigo (seu empresário fez
questão de “apagá-lo” e só relançá-lo em sucessivas gravações dispersas,
voluntariamente mal escolhidas entre as duas mil horas gravadas em
dezesseis canais...).
Tocando Red House ou Voodoo Chile simplesmente varre do planeta
toda perda de tempo, levando-nos até altura inalcançada por qualquer
outro ingênuo ou gênio terrestre. Para todos e para ninguém: mente
livre, homem superior, relação com divindade – eis o abc hendrixiano
onde como em qualquer revolução tudo começa e termina na mente
livre (sem esforço partido medo ou classe).
Jimi era um rei e ele sabia. O rei nasceu, em Seattle filho de índia e
negro. Gostava
de passar as férias em companhia da mãe alcoólatra (perdeu-a
aos dez anos) em tendas de antepassados
cherokees na
reserva de Vancouver, Canadá. Segundo o pai,
um jardineiro austero, “Jimi era um verdadeiro sagitário, obcecado com
a justiça, com a idéia de fazer as coisas certo. Uma personalidade muito
forte, difícil de curvar e individualista. Vivia interessado em coisas não
comuns nos garotos; uma delas era a música. Em sua casa não faltavam
discos de Robert Johnson, Muddy Water e B.B. King, todo domingo os
amigos paternos após o serviço religioso iam tocar blues e beber cerveja.
Aos quatro anos irrompeu sala adentro soprando uma gaita “como um
maluco mas dentro do ritmo”, aos sete recebeu de uma tia um violino
(“e eu cheguei a tocar mesmo, sempre curti os instrumentos de corda,
foi aí que descobri que era canhoto para tocar também. Eu só dedilhava
a vassoura com a mão esquerda! – tocava-a com a mão esquerda”. Ganhou
um violão e uma guitarra usada (“ele ouvia um disco uma vez, e minutos
depois, já tocava igualzinho”). Alistou-se no Exército como paraquedista.
Desmobilizado vinte e seis saltos depois, com fraturas na
costela e tornozelo - rolou dez anos pelas estradas no circuito
de música negra americana, aprendendo ou ensinando (tocou
com Litle Richard, B.B. King, Sam Cooke, Salomon Burke e o
91
Alô alô Rogério Sganzerla!
grupo de twist Joey Dee e The Starlights e o Isley Brothers até chegar só
e desconhecido em Nova York em 1965).
Mudou o nome para Jimmy James com um grupo próprio o Blue
Flames – fracasso completo – teve que empenhar e vender guitarra
para continuar num hotel miserável no Greenwich Village. Aceitou gravar
com Curtis Knight e salvou sua situação financeira. “Eu acho que nunca
cheguei a conhecer Jimi”, declara Curtis Knight. “Acho que nunca
ninguém o conheceu. Ele não se deu a conhecer a ninguém. Era fechado,
se guardava como quem guarda um segredo. Mas nesses tempos em
Nova York nós conversávamos muito. Jimi estava sempre intrigado,
preocupado com coisas como a origem da vida, o problema da morte.
Nunca curtiu uma de orgulho racial ou preconceito. Estava mais preocupado com a noção de humanidade e conceito de fraternidade. Lia
muito, nunca soube o quê. Não conseguia acompanhar suas conversas.
Certa vez me disse acreditar que os seres humanos devem passar por
várias encarnações em nove diferentes planetas cada um mais evoluído
que o outro até chegar à eternidade, à perfeição (Nirvana? Em sânscrito
significa extinção). Ele dizia também que esse mundo em que vivemos
é apenas um imagem distorcida de um outro mundo, espiritual e perfeito”.
Em 1969, apara o cabelo, reduz a quantidade de anéis e colares.
Com a palavra, o rei:
“Isso já foi importante para mim, agora não é mais. O que é importante? Minha música e minha mente é o que conta. Quanto a elas, me
sinto ilimitado. Tentei sempre fazer minha música honestamente e se as
pessoas não me entendem, é porque não ouviram direito. Até Electric
Ladyland eu queria basicamente pintar paisagens do céu e da terra com
a guitarra para as pessoas se soltarem dentro delas. Sofri muitas
mudanças, descobri muitas coisas que ainda não contei. Gostaria agora
de pintar a realidade de uma forma simbólica capaz de levar as pessoas
a pensar. Eu sou tantas raças... como poderia tocar uma música... como
poderia trair uma dessas raças, se eu sou todas elas ao mesmo tempo?
Tenho pensado muito sobre o futuro, sobre essa era em declínio. Mas
não quero acabar, quero continuar, vá para onde for o futuro.
“Talvez escrevendo mais para os outros, fazendo arranjos. Talvez
com uma orquestra... não uma dúzia de harpas e violinos mas uma banda
de verdade para que eu possa reger músicos competentes... e talvez
algo visual como filme ou slides que alarguem aquilo que a música quer
92
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
dizer. Assim tudo poderia ser novo, excitante. Acho que é isso que virá.
Música é tão importante agora. Política já teve sua importância e é a
música e as artes que vão mudar o mundo. Aprecio Strauss e Wagner –
eles são muito bons. Acho que servirão de base dessa minha nova música.
“Mas acima de tudo, quero blues e um pouco de western tudo misturado. Estamos tentando fazer um terceiro mundo acontecer mas ainda
há tanta coisa para aprender, tanta coisa nova para fazer.
“Como o mundo, a música está ficando pesada demais... quando,
como o mundo, a música fica assim pesada eu simplesmente quero me
chamar hélio, o gás mais leve que o homem conhece”.
Foi sua última entrevista. Como uma fera do astral parece ter vindo
ao mundo para sacudir-nos de nosso terrestre e passageiro sono – grandeza, consciência e humildade – saber-se bom é para o bom demais um
limite ou uma tentação – como ele prematuramente falecido ou desfalecido.
Não existe maldição mas há sortilégios, sinas e sinais.
Retiro espiritual
23
Minha teoria será de que gênio existe - basta consultar a história
anônima de crianças-prodígio e de outros, menos freqüente, de adultosprodígio, sabendo-se que a grande maioria desses casos não chega ao
conhecimento público quando não são promovidos pela publicidade
internacional. Necessário pesquisar casos da história anônima dos povos
e suas criaturas “diferentes” ou excepcionais, principalmente aqueles
que ninguém considerou grandes por serem eles mesmos. É preciso ver
e rever exemplos de genialidade congênita de nascidos e mortos sob o
signo do esquecimento, verdadeiro tesouro natural que o povo concede
mas não define à humanidade, tão necessitada de tipos extra-sensoriais
que, podendo estabelecer uma corrente, bastariam dez ou doze para
transformar um Estado, uma mente ou um continente. Um como Jimi
Hendrix nasce de cem em cem anos, e não é para menos... Minha tese
23 Publicado na Folha de São Paulo, segunda-feira, 29 de dezembro de 1980.
93
Alô alô Rogério Sganzerla!
será a de que gênio existe, sim; embora pouco ou quase nada fizessem
para demonstrá-lo, ao contrário de Hendrix, cuja genialidade estava na
cara: no andar, na maneira dele, canhoto, inverter as cordas de sua
guitarra e tirar um som “ao contrário” - no comportamento explosivo e
nada exibicionista, como quiseram acusar: ao contrário, sabe-se que
era tímido e fazia dessa timidez em cantar o reduto maior de sua beleza
secreta mas não menos presente por não estar tão aparente.
Para se reconhecer um gênio é preciso instinto e sensibilidade, como
aconteceu comigo quando o vi frente a frente no palco do festival de
Wight em 1970: enquanto transcorria o espetáculo, certificava-me de
que aquele seria e continua sendo sem dúvida a maior experiência que
já me ocorreu em vida. Sabia-o naquele momento, eu, realizador incrivelmente premiado no primeiro filme cuja imagem inicial (um letreiro
luminoso) avisa e indaga: “um gênio ou uma besta”. No fundo nem eu obcecado com a idéia da existência ou não de gênio - não acreditava em
seres aparentemente normais mas extraordinário em todos os sentidos.
Até aquele instante; depois tudo mudou para mim.
Entrou no palco, fulgurante, a luz número um do Uno. Ilumina-o
com seu brilho áureo, traduzido numa rapidez anormal de gesto, andar,
comportar. Doce, elegante e explosivo como uma fera do astral, por dentro
de altas esferas, que tivesse vindo à terra para sacudi-la e despertar a
arte contemporânea com seus acordes, dedos, amplificador e alto-falante.
Com quê? Até com “porradas” sonoras ou não nessa música do ruído e
do silêncio o gênio maior assume e engrandece a força que conduz até
altíssimas paragens enquanto sua mente me conduz e diz: “vai em frente
que essa é quente e interessa, principalmente no Brasil” redimido pelo
sofrimento, terra da luz que se aproxima com o terceiro milênio... Vou
em frente, adiantando-me aos demais no encontro adiantado e avantajado
do gênio número um e do número um e meio que desafia vida e morte, o
suave beijo do preto e do branco que cruzam todas as linhas, ponto de
intersecção total de milhões de anos-luz, pediu-me o grande sabedor de
tudo, o mestre fulgurante me deu a consciência e a clareza exigidos
pelos que como eu sabem de tudo e escondo (leitor: chegou a hora de
contar toda inteira verdade, acredite se quiser).
Iluminou e inundou o palco de luz. Da luz - sua luz. Pela primeira
vez, certificava-me de que existia mesmo aquilo que pressentia; gênio
existe, seja Jina (leia Roso de Luna: “O livro que mata a morte”) Dzin,
94
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
jin, chin(ês...) gin, gênio, nuntius (significa em
latim: enviado) ou como quiser nomear aquilo que
é inominável.24 Maha Jina - à minha frente moviase diferente de todos os outros humanos terrestres,
rápido e fulgurante, aquele ser movido por uma
graça que faz a história vibrar e ameaça o transcorrer
acadêmico das coisas. Hendrix estava lá e eu vi.
Tudo. Vi, então, o número um completar - na sua
sucessão de números musicais ou não - todos os
outros números e possibilidades seguintes - como se tudo fosse uma
coisa só. De fato, tocava todas as suas criações ao mesmpo tempo, desde
as primeiras de Experience 1967 com as últimas misturadas nos acordes
mais conhecidos de um ou outro (In from the storm), incluída no final
de meu filme Abismu. Lembro-me de cada detalhe mas não é fácil (d)
escrever...
Foram duas horas históricas de uma noite de pânico; e som e fúria,
nada significando a não ser que o homem contém divindades dentro de
si mesmo e seu trabalho está aí para ser compreendido (respeitado)
porque somos próximos (filhos) daquele que é o maior, cujo nome não
pode ser citado em vão... Na minha viagem pude inicialmente constatar
a briga milenar do artista com o instrumento - da Grécia à Wight.
O milenar mito do artista contra o instrumento, desde as primeiras
notas notei, era uma guitarra nova, vermelha, que coincidia com a vestimenta de triângulos verdes e vermelhos que usava na ocasião. Tocando
superbamente, senti que ele não estava satisfeito com o aparelho. Chamou
alguém e sem parar de tocar, cochichou no ouvido. Certifiquei-me de
que, como intuíra mandou apanhar sua “Fender” branca de 12 cordas.
Trouxeram. Sem interromper o número, trocou, tocou o intrumento mais
à vontade.
O mito trágico - isso já é tragédia - do artista brigando com o
instrumento e, tendo que brigar, vencendo-o, estava ali, se repetia por
uma desnecessidade histórica a luta e condição astral do guerreiro etc tudo isso circulou pela minha mente, em poucos segundos, enquanto
Jimi Hendrix fixou o republicano público, eu via corrente de eletricidade
saindo do peito do artista para a platéia e dessa para ele descarga sensível
transmitindo. Novamente Hendrix reina sob nossa mente.
24 A atriz Djin Sganzerla é filha de Rogério e Helena.
95
Alô alô Rogério Sganzerla!
OP
oeta da V
ila: Ar
gumento
Poeta
Vila:
Argumento
25
Histórico: Eletrificação é Pré-revolução Industrial (1930) :
No inicio da terceira década o latifúndio é golpeado no Brasil,
Wahington Luis deposto a 24/10/1930 (mudança de estratégia e padrões,
explosão demográfica) . Com a eletrificação – estágio inicial de revolução
industrial – forma-se uma nova linguagem urbana – em arte popular –
através do disco (elétrico desde 1928), do rádio (poderoso veículo a
partir da liberação da publicidade em 1932), do cinema sonoro (processo
ótico em A Voz do Carnaval, documentário de 1934, Alô Alô Brasil,
1935, e Alô Alô Carnaval, 1936), desenvolvida em função de nossa
melhor arte – o samba.
Nos bastidores da luz:
Inevitavelmente, O Poeta da Vila será uma incursão (reflexiva) nos
bastidores e primórdios de processos de eletrificação no Brasil – e seus
reflexos, decisivos, sobre o comportamento das massas – o intercambio
de idéias proporcionado pela difusão da luz elétrica em seu explosivo
tatear, no Rio (campo de artes industriais como disco, rádio, cinema)
praticamente em termos de samba. Tempo de luz e espetáculo – reflexos
modern style da usina de sonho central (Hollywood), vivenciados no
Casino da Urca, Jóquei e Circuito da Gávea,
Café Nice, Rádio Nacional e Programa Case
– além da fome e prostituição.
Em busca da memória da Memória Nacional:
Da necessidade de uso do acervo de uma
época e do documento histórico a serviço da
reconstituição cinematográfica – conseqüentemente do original som do cantor e compositor Noel de Medeiros Rosa (1910-1937)
na busca difusa e imponderável de uma noção
moderna e atuante de catarse coletiva (memória nacional).
Autoretrato de Noel
Rosa (gouache)
96
25 Atribui a redação deste argumento ao ano de 1980,
quando foi apresentado à Embrafilme.
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Será uma tentativa de decomposição
de um caso biográfico, ou tragédia
cômica, alcançando o coletivo pela justaposição da consciência com o drama
individual, recorrendo a certa amargura
profissional que em Noel Rosa tão bem
se expressa rindo – e dá margem à comédia sobre o lado sério da vida – valiosa
arte de época de crise, como em trinta,
pagando alto preço do progresso mal planejado (desajustes e falta de planificação redundantes no crack de 1929);
de uma nítida coletivização da forma,
gerada de um lado pelo complexo industrial e pela simplificação gestual
de outro (vale lembrá-lo: “O cinema falado é o grande culpado da
transformação...”), em suma, devido à discussão absorvente e internacional da luz elétrica, mesmo na depressão.
Testemunho de um mestre da língua(gem) urbana:
Noel Rosa foi vítima – sobretudo testemunha – de novos e difíceis
tempos – testemunha – sua obsessão pelo experimental que o situa à
condição de artista moderno, além de homem de seu tempo, fazendo da
obra de arte uma questão em aberto (obra) – sobre ela própria – ao
mesmo tempo tudo e nada dizendo sobre(tudo) o vazio da criação.
Mestre indiscutível da língua, permanentemente inspirado, formando
e informando uma nova língua urbana, ágil e sintético no uso da metáfora
(lancinante...) incorpora o ideograma ao samba, encontrando Noel o
ponto de acerto – entre a intenção e o recado da grande obra de arte sem
estilo (que em cinema, impõe a linguagem da profundidade de campo,
ação paralela e ritmo rápido, no melodrama poético, relação e não cópia
de documentos históricos).
Aparentemente brincando, Noel Rosa enriquece o povo, a memória
coletiva e o acervo cultural de uma nação – na tradição anônima dos
grandes sambistas, recorrendo à vertente generosa do congo, lundu e
embolada, ritmos precursores do samba e de uma nova prosa (prova)
nossa – em formação.
97
Alô alô Rogério Sganzerla!
Ponto de partida avançado
26
Quando eu me refiro à necessidade de, por exemplo, o Senhor
Presidente da República assistir aos nossos filmes ainda sem acesso ao
próprio mercado – não penso somente em Sua Excelência prestigiar a
um trabalho de grande diretor como Nelson Pereira dos Santos por ocasião
da assinatura de contratos de exportação cinematográfica em Brasília.
Não, somos boicotados há dez anos e temos que bradar: para achar a
sua identidade o primeiro passo é conhece-te a ti mesmo, Brasil... Isto
é, assistam nossos filmes; sejam mais ativos; eles desenvolvem a noção
preciosa de formação conseqüente de novo homem/nova humanidade e
por aí afora...
Leitor amigo, ponha-se na minha situação: o que fazer diante do
arbítrio de incompetência treinada? Eu, que não sou burro, sempre soube
que existe um boicote contra meus filmes. Falei demais? Saibam que
por idealismo nunca calei-me diante do fato de intuir precocemente as
coisas. Serei tão importante e ameaçador assim? Se fui considerado dos
mais criativos realizadores do País, por que cuidadosamente não deixam
ir às telas... ou seja tenho filmes arquivados há dez anos... que tal leitor?
Não seria um boicote armado pelos intelectuais de araque?
Abismu, produção minha com Norma Bengell, Jorge Loredo, Mojica
Marins, Wilson Grey, está pronto – cartaz, trailer e tudo – há dois anos
– e só passa por iniciativa minha... repito: serei tão importante assim?
Consegui a duras penas lançá-lo em São Paulo... Para utilizar publicidade
gratuita, me dispus a levar a atriz comigo para os programas de rádio e
televisão. Além de não sermos pagos, recebemos um telegrama fonado
(“é cômodo, telefone hoje e pague depois” conforme o epigrama) vazado
nos seguintes termos: “DPP/96/80 – Comunicamos seu pedido passagens
e diárias, com fins promocionais, em São Paulo, para o filme O Abismu,
em nome de Rogério Sganzerla e Norma Bengell, foi indeferido visto
baixo potencial de rendas circuito exibidor nessa cidade, estaria comprometido pelo valor total do investimento na viagem. Atenciosamente,
Luiz Gonzaga A. de Luca, Chefe Departamento de Promoção de Propaganda da Embrafilme.”
Sem comentários... O pior é que o filme já tem certificado de censura
26 Publicado na Folha de São Paulo, segunda-feira, 10 de agosto de 1981.
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Fragmentos (de 1965 a 1995)
correndo há quase um ano e nunca foi projetado a não ser por iniciativa
minha, isto é, daqui a cinco anos terá um ano menos de vida, sua imagem
está lá embaixo (é isso que queria, Senhor Marcondes? Quem ri por
último ri melhor) e nenhum exibidor quer lançá-lo – embora tenha um
rolo inteiro de Jimi Hendrix executando In from the Storm em Whight –
porque já foi dolorosamente “queimado” pelas nossas queridas incompetências treinadas na cidade maravilhosa... O pior de tudo é que foi
financiado com recursos próprios (não eram nem meus: o mais grave é
que a querida Helena Ignez vendeu seu apartamento próprio – sabendose que numa época de inflação não se vende nada... para produzir uma
importante aula, lição, intuição de um novo Brasil que, precisa-se
conhecer a si mesmo; isto é, não faltam arqueologia, religião, Hendrix
no experimento). Será Abismu tão importante assim para ser tão ostensivamente retirado de competição?
Pois com Noel e Hendrix ao meu devido lado eu digo: Abismu é o
trailer de minha futura obra, sob a égide, invocação, proteção do gênio
número um das Américas (que são uma só), ou seja, a ele dedico todos
meus planos fixos, travelings e panorâmicas, ao pensador James Marshall
Hendrix.
Sete anos longe da câmara – um recorde de abstenção – não me fez
parar nem um segundo, pelo contrário. Ultimamente, escrevi três ensaios
irresponsáveis, três romances, três roteiros e faço ao mesmo tempo três
filmes – são doze, e não um, pontos de partida avançados.
Pernetas querendo andar de patins
27
Nos últimos anos a TV tem sugado à vontade a criatividade dos
filmes brasileiros sem dar nada, absolutamente nada em troca. A novela
é uma extensão do cinema novo e a nova técnica de plano-seqüência
(alguns bons câmeras da Globo seguem exaustivamente os atores, como
nos nossos filmes que – para benefício deles – não foram sequer
projetados no Brasil – sem que haja o essencial: um diretor por detrás
27 Publicado no Correio Brasiliense, sexta-feira, 31 de julho de 1981.
99
Alô alô Rogério Sganzerla!
das câmeras). Cenas brilhantes de Julinho Bressane, às vezes minhas, e
dos nossos cineastas são imediatamente copiadas, diluídas, “platinadas”
em apresentações novelescas imediatamente levadas ao ar para milhões
de pessoas, tirando o aspecto de novidade de filmes assistidos em sessões
privadas, moviolas, cineclubes. Claro, como diz Bressane “arte é multipessoal, não tem dono”. Mas acontece que além de não pagar dividendos
culturais ou econômicos as “redes” não querem nem saber de exibir
filmes brasileiros (nem de madrugada) como seria sua obrigação diante
da produção nacional, não convidam ninguém realmente bom de nosso
cinema para produzir uma interação tela grande/pequena e ainda acham
que “cinema dá câncer pois é ultrapassado”. Se dá câncer, por que nos
copiam tanto assim? Há sempre um espião para roubar idéias (a forma
de tratar automóveis em movimento, de seguir os atores, compor marcações coletivas, a câmera baixa, não são privilégio de ninguém, a não
ser do cinema moderno, mas usados por incultos, revela tão-somente
modismo abastardamento cultural). Além de roubarem, mentem. Vidiotismo... Se não dão valor ao produto sonegado, vão criar sozinhos uma
linguagem! Isso lhes é impossível, pois não conhecem as possibilidades
do veículo a não ser repetir modismos comprometedores.
Os enlatados estrangeiros são sempre exclusivos e as novelas, desaguadouro de nossas experiências, pecam pelo primarismo e pieguice
que são a única “contribuição” deles. Apesar de tudo, descobriram a
montar em movimento, como sempre fez o cinema americano, russo ou
de atualidades (devido as facilidades do corte eletrônico que dispensa
coladeira e “durex” e mais facilmente “acha” o momento do corte de
imagem/som dinâmicos). Chegaram a fazer capítulos melhores do que
baboseiras tipo Bye-Bye Brasil (deveria se chamar: “I’m Sorry, Brasil”,
expressão de má consciência), mas não saem de tiques, inflexões, closes
sistemáticos de pessoas comendo e falando (como se com isso pudéssemos formar uma civilização), apresentam manequins sofríveis
“crentes que estão abafando”, bonecos sem alma (e os jovens copiam
em todo território aquela forma antiga e nada moderna de ser frio mas
meloso, falso e convencido, metido a conformista) em um modelo de
comportamento despejado sobre nossas casas sem um recuo crítico ou a
mais leve insinuação do mal que os acomete: standartização da alma
brasileira, evasão de energia mental, mediocrização de um país que,
assim, nunca chegará a ser nação. Um ou outro enlatado é bom (destaco
ao acaso: Assassinato de um Presidente, Executive-Action, com roteiro
100
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
de Dalton Trumbo; Família Rico, com Ben Gazarra e outras raras
surpresas). O resto é creche contaminada pela violência pornográfica.
Filmes nacionais de envergadura, jamais. Cinema americano do bom,
impossível (onde anda a cópia de Soberba que a “Vênus” desbotada esconde?). Comédias e/ou documentários como há em emissoras e não
“redes” de fora (aliás essa palavra “rede” pega mal e mostra o quanto
brasileiro é presa fácil de alguns oportunistas), nunca. E as músicas
das novelas (para as quais elas são feitas) cada vez piores. Como conseguem “selecionar à unha” lixo tão deprimente? Justamente nós que
temos o maior ritmo do mundo – o samba – nos dobramos aos interesses
predatórios de alguns acionistas, que importam a peso de ouro-dólar
cançonetas de quinto time? E o que dizer dos “diretores” de especiais?
Os atores, recrutados ao rádio, teatro, cinema, são bons, mas a nova
geração de manequins embonecados é uma lástima, refletindo o baixo
nível de subpadrões exclusivamente quantitativos. Todos satélites são
“estrelas” nos corredores de uma rede de abastardamento cultural. Outro
dia aconteceu-me o pior: além de sugarem cenas de vários filmes meus
(Abismo, Sem essa Aranha, Bandido) chegou a desaparecer uma cópia
de um Jimi Hendrix emprestado a um amigo da sucursal em São Paulo,
que a rede mais organizada do País não consegue localizar. Expropriam
não só idéias mas ideais e até um rolo de mil desaparece sem que haja
nenhuma responsabilidade. Além de tudo, fazem-nos esperar por uma
coisa que é nossa. Até quando continuará a exploração? ANOTE: Não
somos pagos para ser explorados, física e mentalmente.
“Pernetas querendo andar de patins”, como bem definiu o Julinho
Bressane os maus exemplos nacionais, é o mais recente “resultado” das
eleições representativas da classe no Rio e seu órgão sombrio. Um
minúsculo personagem, sob o título “Cinema novo-rico” assina “teorias
discricionárias” (não se trata de constatação mas apologia da usurpação
indébita, inaceitável no campo da cultura): “Não é difícil achar afinidades cada dia maiores entre a produção de um filme (ou fita?) e uma
incorporação imobiliária. Mercado imobiliário, prod. cin. e status são
três elementos reunidos como um jogo de bilhar francês, onde a carambola é fator indispensável. O status decorre desse dado e varia
diretamente com o aumento do preço da ‘incorporação’”. O que confirma
na página 11: “Modelo ultrapassado”: – “Mário Falaschi acha que todo
mundo é burro, ladrão e safado”. Nas possibilidades de um (necessário)
Renascimento Cultural (possível com a convocação de jovens mar101
Alô alô Rogério Sganzerla!
ginalizados), nem tanto. O que confirma o comentário de Bressane: “O
nosso cinema, clandestino, que não passou, foi um fato estimulante (para
usurpação indébita). Eu não estou falando só dos meus filmes – continua Bressane –, mas também de outros que não foram vistos. Uns
quarenta... Alguém disse que esse cinema era a necrose da juventude.
O fato é que esses filmes deram um susto, mas todo mundo caiu de
boca. O último filme do Glauber é uma paródia desse cinema, feita nas
coxas. Sabemos que arte é multipessoal, não tem dono. Então é natural
que outros tenham bebido dessa água. Como os filmes não passaram, foi
mais fácil. Mas esses filmes dos anos 70, de que vocês estão falando, só
foram possíveis por causa dos clandestinos”. Três páginas antes um
subtubarão: “Amadorismo, irresponsabilidade e atitude beletrista não
deveriam passar na porta da Embrafilme e nem das salas de projeção”.
Incompetentes são os exemplos de concentração de verbas que não dão
dinheiro nem prestígio; não é arte nem aqui nem em Lourenço Marques.
Disseram que nossos filmes não têm “referência”. O que me leva a responder: “Sem referência é a mãe daqueles pernetas querendo andar de
patins”.
Quanto ao diálogo cinema-TV é preciso dose de paciência para exigir
na marra nosso lugar ao sol, nem que seja de madrugada. Público há.
Aguardem a definição governamental sobre as “novas” redes...
MINAS - CINEMA - GERAL
28
Violência da luz sobre seres e objetos animados
por uma respiração intensamente poética que é o
gravador Oswaldo Goeldi a merecer instantes de reflexão libertária por
parte da nova geração convocada e confiscada por uma experiência
expressiva como a filmagem de um clima e uma atmosfera em um certo
28 (Arquivo) Publicado no Correio Brasiliense, sexta-feira, 20 de novembro de 1981;
pág. 20, editada por mim. Devemos ao jornalista oswaldiano Oliveira Bastos (que a rapaziada apelidava “Oliveira Barthes”), o espaço cedido no jornal do qual era o editorchefe. O título de Rogério inspirou o nome do Minas-Geral, jornal aperiódico livre, do
qual fizemos, depois, várias edições na Ofina Goeldi. (Ilustr. - Detalhe de Um Sorriso
por Favor , desenho de Oswaldo Goeldi)
102
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
momento especial como sempre ocorre
sob o esforço e o croquis de uma alma,
separada em instante transitório e
relacional, como soe acontecer com o
traço altamente brasileiro universal e
por dentro de um imigrante ocasionando arte da melhor qualidade em
pleno território brasileiro sob a ditadura
Vargas. Críticos bisonhos ou recalcados
balançavam a cabeça, relata o atorcrítico-assistente de direção Ronaldo
Brandão (que sabe caminhar cinematograficamente perfeito o que é raro
nesse quintal da América ou semicolonia cultural). A partir de um
depoimento do próprio Goeldi que conserva até hoje a justeza e a precisão de
José Sette com a Oficina em Belo Horizonte a revelar e fixar uma jogada oportuna em todo sentido para a expressão brasileira. Maior. Na discussão cinematográfica que se incorpora
ao discurso às vezes ágil ou aos trancos e barrancos de um encanto que
se extasia de sua própria fluência expressiva e expressional, diante do
real, nota-se o empenho (e não o esforço, que não é o melhor de um
revolucionário ponto de vista) em arte - por acaso ou não, alguns jovens
no mínimo sem pensar em outro resultado que a oportuníssima presença
de Goeldi no fotograma animado pela informação do cinema moderno
de George Melies à Mario Peixoto passando por todos nós que contribuímos mais ou menos a um novo desnudamento do novo homem por
acaso triste que é o Goeldi sem nada mais ou a menos a preservar senão
a constante presença da imobilidade que é a dança, código morse como
você me diz: no que interessa, você e o leitor, todos nós sabemos que a
História está a nosso favor.
Com Goeldi. Por Goeldi. Sobre Goeldi. Minas - Cinema - Geral.29
29 Rogério assina a montagem de Um Sorriso Por Favor - O Mundo Gráfico de Goeldi,
curta-metragem (20 min.) rodado em 35mm, dirigido por José Sette e produzido por
mim, numa realização da Oficina Goeldi, que o diretor dedicou a Julio Bressane. O
filme ganhou os prêmios de “Melhor Filme” e “Melhor Montagem” do Festival de Brasília
de 1981 e foi escolhido entre os dez melhores curtas de todo o mundo para participar da
103
Alô alô Rogério Sganzerla!
A Embrafilme e seus descalabros
30
A Empresa Brasileira de Filmes - Embrafilme, que prende muita
fita à brasileira nos seus depósitos, gavetas e geladeiras, por definição
pertence ao povo e ao governo que, por incrível que pareça, não sabem
o que acontece dentro da autarquia. Não podendo cruzar os braços,
comprometendo-se com a omissão pela omissão diante de graves irregularidades administrativas e culturais, resolvemos a partir de agora
iniciar uma ampla campanha de esclarecimento público sobre os motivos
que transformaram essa autarquia em um dos agentes de destruição
sistemática do cinema brasileiro como um todo criativo e importante.
A Embra é um fracasso da distribuição à produção de energia, excetuando o trabalho de recuperação e editoração de nossa memória
nacional, que pode ser elogiado, mas não justifica o boicote sistemático
contra os mais representativos autores de filmes de cinema brasileiros.
Verbas vultosas, como as recentemente obtidas pela ação desinteressada
de Lygia Fagundes Telles, à frente da Fundação Cinemateca Brasileira,
são exclusivamente canalizadas para inexperientes apaniguados do
senhor Kalil, (ou Joseph K.), em detrimento de profissionais formados e
informados sobre a prática direcional, neste País, sem respeito com seus
criadores.
PAULO EMÍLIO
O fato de ter sido aluno de Paulo Emílio, nosso maior crítico, o
responsabiliza pelo que não tem feito por nosso Welles no Rio. Esse
mostra competitiva do Festival de Obenhausen, na Alemanha,em 1983, além de outros
prêmios nacionais importantes. Teve enorme repercussão, não só nos meios cinematográficos, mas também nos meios artísticos e no público em geral, tendo recebido inúmeros elogios da melhor crítica então atuante em níveis nacionais e internacionais.
Essa bem sucedida produção nos aproximou de Rogério Sganzerla e Elyseu Visconti
Cavalleiro, que assina a música do filme. O cineasta Sylvio Lanna assina a montagem
de som. Os artistas plásticos Fernando Tavares e Oswaldo Medeiros assinam, respectivamente, o argumento e os cenários. Por causa do sucesso dessa produção ficamos
todos proibidos de filmar, e eu só pude produzir outro filme quase vinte anos depois.
30 (Arquivo) Publicado na Folha de São Paulo, sexta-feira, 19 de novembro de 1982.
Os títulos deste texto e do próximo devem ter sido postos pela editoria do jornal e não
pelo autor.
104
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
elemento, que ocupa lugar preferivelmente destinado aos brasileiros,
faz suas pequenas aventuras com a câmara, é candidato a diretor mas
tem boicotado os pólos de produção regional independente. Também
nos tem dificultado em toda pesquisa sobre Welles no Brasil, não permitindo-nos a devida conclusão de uma pesquisa de meia década, embora
saiba (e exatamente por isso) que o cinema novo é fascinado pelo cinema de Welles. Compreendeu a importância do resgate cultural em torno
do cineasta no Brasil, mas está a fim de se apoderar do material rodado
por Welles, já “localizado” por ele...
Por que a Embra deve participar de Welles no Rio? Não existe no
Brasil nenhuma outra entidade com tanta obrigação de formar e informar
profissionalmente a nova geração quanto a estatal, que desperdiça milhões em futilidades sem nenhum retorno, abdicando de uma realização
já em acetato com evasivas indecisas.
“EM REUNIÃO”
Creiam-me, ontem à tarde Kalil continuava “em reunião”, sem que
ninguém respondesse a respeito: ele não diz nem sim nem não, muito
pelo contrário; o que é muito pior e comprometedor do que uma afirmativa
ou negativa concreta. O que ele quer é ganhar tempo para embarcar
para Moçambique e Canadá, onde apresentará uma mostra incompleta
e facciosa de nosso cinema, com a devida presença de meia dúzia de
gatos pingados, pagos pelo Estado para viajar na primeira classe, onde
riem da nossa cara (da tua também, eleitor) dizendo que o problema estético do País é que “quase ninguém viaja”. Nenhum filme independente
de valor cultural, meu e de meus companheiros, foi incluído. Kalil não
quer saber das lições de uma cultura de humanidade ensinadas pelo
mestre Paulo. Como Khoury ou Maluf, o que ele quer é mordomia, posar
de “artista” e evidentemente puxar a brasa para a sua sardinha. Isso é
projeto cultural?
PELA TANGENTE
Como superintendente, deveria se dignar a receber ou atender os
reclamos básicos da classe mas, muito mal cercado, sempre sai pela
tangente. Por enquanto a omissão é a única “atividade” real dentro da
autarquia. Lá todos ganham bem e se gabam de que “felizmente o Brasil
105
Alô alô Rogério Sganzerla!
não pode ser levado a sério, ainda bem que vivemos numa desorganização
social (palavras textuais de um assessor da direção geral) enquanto o
povo sofrido, o contribuinte sacrificado e o espectador ultrajado pela
cruel marcha dos acontecimentos (ou da mediocridade da desprogramação) não podem seguir enganados por alguns elitistas - carentes de
honestidade intelectual.
Daí o cinema velho, formolizado (de formol , mesmo), agravado com
verbas milionárias desviadas por subtubarões que puseram de quatro o
nosso cinema, sem um controle efetivo por parte das autoridades responsáveis. Todos nós temos a ver com essa malversação do erário público.
Cada cinéfilo deve assumir uma posição positiva ou negativa a respeito,
sem a omissão doentia de cinéfilos, destituídos de uma cultura de humanidade...
Enquanto Kalil fecha as gavetas, omite-se e parte para o Canadá,
sem o mínimo sentido de justiça, participação e igualdade de oportunidade para todos, o cinema nacional vira uma indústria de débil
mental (se não é, o cara fica), sem falar nos milhares de desempregados
passando fome com seus dependentes. Quem ri por último ri melhor,
mas eu pergunto: até quando continuarão enganando o grande público,
o contribuinte e os responsáveis do Ministério de Educação e Cultura?
-o-o-o-o-o-o-oFazemos aqui um outro “intervalo” para uma digressão a respeito
deste texto e o que se segue a fim de melhor fixar a importância deles
nos contexto histórico da nossa luta de resistência, e nela o papel ponta
de lança de Rogério Sganzerla, não só pela lucidez, inteligência e visão,
mas também pela predisposição ao combate diante de uma realidade
negativa que já se vislumbrava ali, e não só no plano cultural. Gilberto
Vasconcellos, em seu recém lançado Brazil no Prego (Revan, 2004),
identifica e recorta muito bem o fenômeno histórico a que me refiro.
Mas naquela briga, Rogério só tinha apoio nosso, os independentes,
os que não tinham (e ainda não têm) voz. Só o que podíamos era torcer
para que se aliassem a ele alguns dos que lideraram movimentos em
68, e ainda tinham força na mídia. Mas ninguém abriu o bico o que quer
dizer que... consentiam com o deplorável estado de coisas que as de106
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
núncias de Rogério, todas gravíssimas, expunham com absoluta clareza.
Ele tocou no ponto crucial do momento: a burocracia sempre teve
muita força na política cultural no Brasil (e como o próprio Rogério
assinalou em texto de 1970, desde “o liberal-reformismo institucionalizado a partir de 1922 por Mário de Andrade”), mas nunca fora
exatamente o poder. Por cima dos burocratas sempre passaram presidentes e ministros de cultura e luz próprias, que não precisavam intermediários para lidar com artistas, como foram os casos de Washington
Luis, Vargas, Juscelino, Jango e até mesmo de Jânio Quadros. Com a
ditadura militar, o poder seguiu a tendência castrense pós-2ª Guerra de
não se importar com a cultura, mas deixaram-na permanecer num
Ministério forte como o da Educação e Cultura (MEC) para o qual nomeavam ministros mais ou menos cultos, que nomeavam cabeças realmente cultas como a de Aluísio Magalhães para a Secretaria de Cultura
do MEC, o qual, por sua vez, realizou obras tão importantíssimas quanto
duradouras e que ainda não foram completamente destruídas, apesar
de todo o esforço que se fez e ainda se faz para isso.
Essa briga de Rogério coincide com a época dos falecimentos de
Aluísio e Glauber, portanto, com a queda das últimas barreiras que ainda
se colocavam entre os burocratas e o poder. E tal ocupação ilegítima do
poder na política cultural consolidar-se-ia em 1985, com a criação do
Ministério da Cultura, agora prestes a fazer 20 anos de trabalhos de
destruição dos instrumentos públicos de fomento e ação cultural autêntica
e de interesse nacional. Em 1994, Itamar Franco tentou reverter a
situação nomeando Ministro da Cultura um dos maiores intelectuais da
resistência e um dos mais importantes estudiosos do planeta, Antonio
Houaiss, mas a poderosa burocracia que ali se con-solidara não precisou
mais que oito meses para derrubá-lo, sabotando todos os projetos que
tentou levar a cabo.
No momento em que Rogério expôs seu pensamento propondo “iniciar uma ampla campanha de esclarecimento público”, usando a Embrafilme e uma produção dele como mote, já não contava com a voz de
Glauber mas com certeza esperava apoio de algumas vozes fortes para
uma ação efetiva de resistência. Sem dúvida passaram-lhe na cabeça
nomes como os de Júlio Bressane, Caetano Veloso e Gilberto Gil, entre
os ex-companheiros sobreviventes das lidas de 68 que mais teriam força
para o embate.
107
Alô alô Rogério Sganzerla!
Como nada disso aconteceu, Carlos Augusto Kalil, eleito pela
maestria do cineasta o personagem-símbolo da burocracia reinante (já
o embrião de “Amnésio” de O Signo do Caos), achou-se livre para cair
em cima. Cinco dias depois, em 24/11/82, Kalil publicou sua resposta
na Folha de São Paulo... e acabou entregando muito mais do que fora
denunciado por Rogério. Não vamos publicar a íntegra de textos de
burocratas, é claro. São sempre feitos “em conjunto”, com a participação
agitada das bem pagas “assessorias”, sendo, portanto, destituídos de
autoria, autoridade e autenticidade. Como não poderia deixar de ser, a
resposta de Kalil e “equipe” é um texto eivado de argumentos burocráticos e, talvez por se verem sem antagonistas de peso a enfrentar,
excederam-se nas doses. Começam por taxar a obra de Rogério de
“veneração esotérica dos ídolos que cultua”, depois comentam a vinda
de Welles ao Brasil como “uma sequência inexplicável de incidentes e
acidentes que culminaram na suspensão das filmagens” (inexplicável...!?
é demais...), seguem dizendo que “tudo o que é associado a Orson Welles
tem a marca da fantasia romântica, mãe da mitomania” e que “o episódio
deixou lembranças obscuras em nossa cinematografia que estão a merecer
estudo desapaixonado à luz dos fatos” (ah! ah! ah!, estudo desapaixonado
à luz dos fatos ... vai ser bacharel assim lá na USP ou em Lourenço Marques!). Mas ainda não chegamos no principal. O leitor tenha paciência
com a extensão deste “intervalo”, porque é um momento importante da
biografia de Rogério e garante a ele, com a brilhante e bem calculada
provocação, a glória de ter sido o primeiro a trazer à luz fatos até então
cuidadosamente escondidos desde o fim da 2ª Guerra por serem parte
da estratégia desenvolvida por um “Pentágono” poderosíssimo e seus
tentáculos, do tipo Fundação Ford , etc, com o objetivo de nos tornar
colônia cultural em definitivo, e anexar o Brasil como slave de reserva
para os interesses futuros da matriz. Como toda boa estratégia, guardada
sob pesado sigilo e nunca antes revelada.31
31 Em 1974, estando no Peru, vi um documento de alto nível de sigilo que foi descoberto
e capturado pelos sandinistas, na Nicarágua, quando invadiram a Embaixada dos EUA
de lá. Era um longo e detalhado estudo feito pela Fundação Ford de avaliação e localização
dos focos de cultura popular e erudita da América Latina que precisavam ser destruídos,
incluindo sugestões de como fazê-lo. Mais da metade do “trabalho” era dedicado ao
Brasil e o que ocorreu com Rogério e veio à luz pela polêmica que levantou, estava lá
descrito linha por linha sob um título que minha memória guardou mais ou menos com
essa redação: “nomeação e colocação em postos chaves de agentes nacionais capazes
de destruir instituições eficientes de preservação e fomento de valores culturais”.
108
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Com o subtítulo de “Descalabros”, a corja da Embrafilme acreditava
estar imputando a Rogério má versação de dinheiro público, por ter
comprado aparelhos de televisão, geladeira, e feito consertos no seu
carro com dinheiro da produção de um filme. Como bons burocratas
apaixonados por “estudos desapaixonados à luz do fatos”, dão os números
dos comprovantes das tais aquisições e compras de serviços que a auditoria da Embrafilme “glosou” (não pude evitar este termo de burocratês).
Mas é aí, leitor, que está o truque. De quem é a responsabilidade pela
administração do dinheiro? De Rogério? Ora, Rogério era diretor de
cinema independente, nunca foi produtor comercial e nunca teve cargos públicos comissionados. Por sua vez, a Embrafilme era a empresa
estatal encarregada de produzir filmes de interesse nacional, antes dos
interesses comerciais. Sua função era a de produtora de cinema. Onde
já se viu uma produtora do porte da Embrafilme, que tinha poder de
fogo financeiro até para competir com a Warner ou a Paramount, entregar
a grana toda do filme para o diretor, impondo-lhe contratos leoninos em
que nenhuma clásula pode ser discutida (“-senão o dinheiro não sai!”)
e depois querer cercar o uso do dinheiro na prestação de contas? A
Warner faz isto? A Paramount faz? A Globo entrega a grana para o diretor
da novela e depois faz auditoria nas contas dele? Ora...
Nós não estamos falando de má versação de verbas públicas, nem
de produção de cinema. Nós estamos falando de uma estratégia para
impedir a produção de um determinado cinema, o cinema brasileiro
autêntico, o verdadeiro. E tal estratégia passa pela entrega do poder e
dos meios de produção cultural a Amnésios incapazes de realizar um
fotograma sequer a fim de que eles, ao invés de produzirem realmente
os filmes que teriam de ser produzidos, “repassem” verbas irrisórias às
vítimas escolhidas, sabidamente despreparadas e desequipadas para o
exercício de tarefas administrativas, empresariais, contábeis, financeiras
e burocráticas. Estas jamais seriam as praias dos verdadeiros artistas e
diretores de obras cinematográficas importantes, exigentes de profunda
e integral dedicação ao labor estudioso e criativo, e que tomam deles
muito mais tempo que qualquer regime de trabalho burocrático em
“tempo integral” - além de não dar direito a férias, 13º salário, aposentadorias, planos de saúde e outras garantias trabalhistas que foram
criadas para beneficiar verdadeiros trabalhadores e hoje são usurpadas
pelos burocratas - e burocratas “bacharéis” como bem dizia Oswald de
109
Alô alô Rogério Sganzerla!
Andrade - e só para eles.
Qualquer produtor de cinema sabe como um filme pode não dar
certo: pouco dinheiro e má administração. A resposta de Kalil demonstra
com clareza que eram as duas coisas que Embrafilme e seu burocratas
impunham aos bons cineastas quando se tratava de realizar filmes para
os quais foi criada para produzir, como era o caso dos de Rogério. Ou
seja, em flagrante e confessada incúria, lesaram o país, a arte, o cinema
e o artista, e ainda pretendiam inculpar o artista pelos crimes e fracassos
que cometiam a serviço de interesses imperialistas e anti-nacionais.
Pessoas como Kalil, cujo perfil se associa aos de Gustavo Dahl,
José Carlos Avellar, Luis Carlos Barreto, Marco Aurélio Marcondes, entre outros que pululam nos órgãos públicos, são demonstrações incontestes desta estratégia. Os tempos revelaram que o objetivo dela é: tudo
pode mudar, desde que nada mude. Esses burocratas-bacharéis, colhidos
nas fileiras de 68 entre os piores caractéres - já então liderados pelo
agente nacional Fernando Henrique Cardoso a serviço da Fundação Ford
(ou Ford Foundation, como ele gosta de dizer), e sob o comando e a astuta vigilância ideológica da eminência pardacenta da USP, o professorsão
Antônio Cândido de Melo e Silva - foram rapidamente guindados aos
postos-chaves que até hoje ocupam, desde os inícios dos anos 70.
Juntos destruíram e fizeram fracassar todas as iniciativas públicas
de apoio à cultura e ao cinema, desde as que herdaram dos governos
anteriores a 64 até as que foram criadas depois dele e até hoje. INC,
CONCINE, Embrafilme e tudo o mais que se investiu dinheiro público
estiveram nas mãos deles e fracassaram solenemente, sem retornar
absolutamente nada do que foi investido com pomposas inaugurações e
“festas” de dotação de verbas, fartamente divulgadas pela mídia, para
pseudo-benefício da cultura e do cinema nacionais. Nada vezes nada.
Pois só este fora o propósito deles quando assumiram as direções destes
órgãos: destruí-los. E sempre que se criam novos é para eles mesmos
que se entregam os postos-chaves. Precisamente agora, foi para eles
que criamos a recente Ancine, o CSC - Conselho Superior de Cinema
(instituição que restaura os monárquicos “conselheiros”e seus dolce
far niente), e estamos a criar a Ancinav!!! Só o que permanece são suas
empresas particulares, muito bem, obrigado, e o saldo cada vez mais
elevado em suas contas bancárias particulares, todas muito bem,
obrigadíssimo...
110
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Agem como se imunes a qualquer perigo. Depois que viram Rogério
sozinho na resistência que tinha voz e influía, aí perderam todas as cautelas, não precisavam delas - eram “os intocáveis”. São intocáveis. Kalil,
por exemplo, assinou, na maior sem-cerimônia, contrato com um produtor
seu apaniguado, conhecido nos meios por “Tatá”, para vender cópias
do meu bem sucedido filme Um Sorriso Por Favor no exterior. Só fiquei
sabendo dez anos depois, quando por acaso descobri no CTAV o contrato
da extinta Embrafilme, assinado por Kalil e o picareta, vendendo, “por
fora”(através da firma do capanga, mas com o aval da Embra), 14 cópias
do meu filme (que foi feito com o meu dinheiro e nem um centavo sequer
de ajuda do governo) para cinematecas européias. Tirei cópias deste
documento de estelionato, um crime contra meu patrimônio previsto em
lei, e guardo-as. Posso botá-lo no xadrez, junto com o picareta, mas não
sou tão bobo assim, sou brasileiro. Sempre que posso, falo ou publico, e
eles que me processem, afinal têm advogados e dinheiro para custas.
Imaginem o que fizeram com Rogério, um talento delicado e sensível
como o dele é vítima fácil para trampeiros cobras criadas como aquelas.
Mas o texto de tréplica de Rogério, como sempre genial e conclusivo,
não deixa margem para dúvidas e discussões, já resolvidas pela História,
e vale mais do que toda a Embrafilme e o lixo que lá foi produzido na
orgia permanente do burocratismo bacharelesco com o dinheiro público. Vamos a ele. O “intervalo” acabou.
-o-o-o-o-o-o-o-
O cão ladra e a caravana da Embrafilme
continua
32
Exatamente há um ano, vangloriava-se em seu sisudo gabinete o
diretor de operações não-comerciais da Embra, Carlos Augusto Calil:
“Podem morrer quantos Glauber houver que não recuaremos às
reivindicações!” Tal frase sintomática e inaceitável era o argumento de
32 Como já disse o título não deve ser de Rogério, mas da editoria do jornal. Infelizmente
nosso recorte de jornal contendo este texto perdeu a data do cabeçalho. Foi publicado
na Folha de São Paulo, na sequência da polêmica.
111
Alô alô Rogério Sganzerla!
um burocrata contra o carisma dos nossos autores de cinema. Enquanto
os cães ladram e a caravana passa eu indago: quem é o autor desse
latido? Fez alguma coisa pelo cinema? Fez filme? (Não me refiro a fita).
Agora, sua total baixeza e incompetência para o cargo que ocupa
expressam-se em acusações públicas contra a credibilidade moral e
profissional de quem contribuiu eficazmente para a realização de um
moderno cinema brasileiro de valor. Prêmios, pesquisas, críticas não
valem nada? Quando um arrivista acusa um realizador está recriminando
toda a explorada classe cinematográfica, sobretudo o produtor independente, quem fez e resistiu em nosso cinema, dos ciclos regionais à
atualidade.
Nós, autores audiovisuais, não queremos ser medidos por padrões
arbitrários de má distribuição de verba. Tal funcionário deveria ser punido
por leviandades cometidas contra profissionais que não são virtuosistas
nem masoquistas, ao contrário dos que vêm sendo acumulativamente
cumulados de verbas indecentes.
O padrão justo do cinema brasileiro é o orçamento médio, sem desequilíbrios. Fora disso é crime cultural que a prática vem confirmando
como repetição de erros “ad nauseum”. Seu desserviço à causa do cinema deverá, a partir de agora, se revestir da dignidade de demitir-se o
quanto antes de cargos que não merece por méritos próprios ou serviços
prestados. Milhões dispendidos em experimentos dispensáveis, da produção à exibição e exportação sem retorno, devem servir como esclarecimento público da injustiça reinante naquela autarquia. Quando um
burocrata nos acusa, está desfazendo de profissionais que não têm acesso
à grande imprensa. Por enquanto, está lá (ainda) porque existiu um trabalho (em todo sentido anterior) dos produtores independentes, que com
a sua dedicação e coragem construíram nosso cinema brasileiro de valor.
Não tenho nada a esconder de um canil de cobras mandadas, muito
menos da hierarquia vertical descendente, centralizada no Planalto, que
deve continuar desconhecendo tais injustiças típicas de uma lei do cão.
Inúmeros rombos e roubos - ao invés de frestas - também deveriam ficar
ao alcance do conhecimento público para se promover, finalmente, uma
limpeza moral na área. Apontando frestas e fiscalizando unilateralmente
detalhes, sem um exame imparcial da pesquisa producional, insiste no
jogo duplo e na intimidação moral de quem nada tem a ver com os jogos
baixos daqueles gabinetes insustentáveis. Chega de malufismo fílmico
112
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
(mediocridade).
A Embrafilme deve ser defendida como conquista do povo e do
governo brasileiros, mas isso não significa apoiar os crimes culturais
perpetrados por uma meia dúzia de incompetentes. Quem não tem
credibilidade alguma é a mediocridade dominante.
Minha luta há quatro anos na Folha tem sido a de revalorizar o produtor independente e seus criadores mais impressionantes, como Glauber, Cavalcanti e Lima Barreto. Meu maior “pecado” é o de querer
trabalhar para o nosso cinema; virtude essa que deveria ser exercida na
prática como direito e obrigação “garantida pela Constituição Brasileira”.
Cara & Alma
33
Manifesto de Rogério Sganzerla
De A a U
a) Vejo O ABISMO como uma possibilidade de avançar terreno
inexplorado desenvolvendo, sobretudo, a linguagem de um cinema urbano. É um trailer sobre uma futura obra não só no cinema mas, principalmente, na música. Com música temos um processo sintético muito
mais eficaz, mais rápido e evoluído do que a veiculação conceitual das
palavras. Uma música pode ajudar a resolver os problemas do povo
brasileiro muito mais do que 10 livros.
b) Ele é conseqüência da visão de tudo como um todo; da constatação
de que todas as coisas são uma coisa só, sob diversos estágios e aparentes
diferenças. Tem um sentido cósmico. É também a valorização da paisagem; uma tentativa de filmar com ritmo nosso, tentar captar uma
topografia, como filmar uma praia brasileira, dar um tratamento à paisagem. O Brasil tem uma vastidão topográfica encontrada também na
música de Villa-Lobos e João Gilberto. Politicamente, é importante que
o Brasil conheça a si mesmo. O ABISMO é uma oportunidade de autoconhecimento não só do cinema mas do país.
c) Jimi Hendrix é o grande sinal do filme. Até então o cinema
33 Escrito em 1984.
113
Alô alô Rogério Sganzerla!
brasileiro tinha se voltado para sua realidade imediata. O ABISMO é
uma interiorização; um mergulho no inconsciente e uma valorização
astral. A verdade do filme é que uma pessoa assim não aparece por
acaso. Hendrix não é só um genial técnico, arranjador, guitarrista, cantor e compositor. É um grande pensador. Ele consegue que esta forma
esteja a serviço de uma idéia. A obra de arte é sempre regional, nacional,
internacional, universal. O problema do homem não está nas estrelas.
Está no próprio homem, sua terra, sua posse, na sua mente e liberdade.
E não chegaremos a essa liberdade – que é o tema fundamental a
qualquer tipo de experimentação de obra de arte – sem passarmos pelo
pensamento de Jimi Hendrix. Por que? Porque ele fala sobre o espelho
da mente como espelho de uma realidade. Uma transformação interior
deve preceder essa transformação inevitável e necessária. Você tem que
passar pelo desconhecido. Hendrix é um pensador tão importante quanto
Guevara.
d) O ABISMO tem vários níveis de leitura: é uma estória banal, um
clichê. É também um ensaio, uma reflexão sobre a relação da poesia
com certas ciências e a música. Possui também um nível esotérico que
a literatura usa e abusa e achei que o cinema também poderia. Acho
que ele é mais do que atual. É extremamente cinematográfico e precoce.
Não é culturalista nem analítico. Talvez nesse ponto ele se ressinta de
ser mais explicativo e mais acessível ao grande público como era minha
intenção inicial nas primeiras variantes do roteiro. É uma sugestão de
como também transformar o cinema brasileiro para melhor.
e) O fato dele estar entrando agora em 84 na Cândido Mendes me
parece um ótimo convite à reflexão e ao mesmo tempo não tentar impor
nada. Todas essas teses que em 78 eram fecundantes e oportunas, hoje,
são prementes. A idéia do filme é que se precisa fazer uma melhor
distribuição de justiça, de riqueza, de bens e todo tipo de benfeitorias.
E para isso é preciso relacionar a arte moderna com a arte primitiva. E
mais: Para as transformações de ordem coletiva é preciso também haver
um grande mergulho no inconsciente coletivo. Resolver o problema individual para se chegar ao coletivo e conciliar o eu e o nós, a revolta e a
revolução. Nesse sentido o filme contém, de uma forma ainda sintética,
um ideário.
f) É um filme que levanta o astral. Não tem a concessão fácil da
vulgaridade, de apelação, do diálogo rasteiro ou efeito pelo efeito. Sem
114
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
nenhuma voracidade. É um filme que procura generosamente um
proposta de unificação de todos os mundos possíveis. Tudo está em
movimento. Ele se propõe a ser movimento e ascendente.
g) Alguns rolos acho extremamente bem sucedidos em densidade e
luminosidade. Gosto sobretudo da cinegrafia do filme, da grafia, do traço,
da respiração. Além disso tem um rolo inteiro com o último concerto de
Jimi Hendrix que me parece um material altamente relevante de grande
impacto histórico.
h) o fato de não ser entendido não significa que não seja bom. É
uma questão de entendimento. Existe muito material que a gente ouve e
não gosta. E depois de duas, três vezes acaba se apaixonando. Isso depende de cada espectador. É um filme feito para não encher as pessoas,
não incomodar. Mas também não é um filme explicitado.
i) O ABISMO pode ser compreensível para uns e para outros ninguém
entende nada. É que o filme não é analítico, está ligado à tentativa de
ser sintético. Foi uma escolha. A escolha da síntese. Mas dizem que o
cinema deve ser sintético, simples. Gostaria que fosse mais simples,
mais forte. É bom lembrar que o cinema é também um ponto de partida,
não é só de chegada. Não se deve somente endeusá-lo mas também
criticá-lo. Quem gosta de cinema vai se interessar pela maneira como
se apresenta esta noção do que é cinema.
j) O tema permanente em meu trabalho? A dificuldade da gente sair
do individual ao coletivo e uma tentativa de promover um modernismo
estético, uma coisa bárbara e nossa, seguir a fórmula oswaldiana e noelina
das coisas nossas e ao mesmo tempo assimilar uma cultura cinematográfica do cinema do mundo inteiro, para tentar descobrir o coração e
a alma das ruas na cidade.
l) Quero fazer também filmes populares. Todo tipo de trabalho. Filmes
pra ganhar dinheiro, prêmios, criar condições pra fazer outros filmes.
Filmes pra público e também filmes que consigam influenciar a produção,
que criem uma proposta, uma estética, uma hipótese diferente. Se todas
as produções feitas no país tivessem também uma informação de como
tratar qualquer tipo de gênero, o cinema brasileiro poderia ser atualizado.
Todos os gêneros poderiam ser viáveis se houver no cinema brasileiro
essa coisa fundamental que é o cinema. Por isso eu me sinto satisfeito
com O ABISMO.
115
Alô alô Rogério Sganzerla!
m) O problema do cinema continua sendo a distribuição. Se, por
lei, os exibidores, entidades privadas, são obrigados a veicular produtos
brasileiros, muito mais a televisão que é propriedade do Governo assegurada a alguns concessionários. É preciso uma reserva de mercado,
como existe na informática. Ou pelo menos a existência de co-produção
de cinema e tv. A televisão vive do cinema. A não ser nas novelas quando
ela copia mesmo o cinema nacional. Fora isso são enlatados estrangeiros.
A reserva é necessária até mesmo por uma questão de evasão de divisas.
Se eles exibem tantos abacaxis, nós também sabemos fazer abacaxis!
n) É claro que os problemas de classe e veiculação são prementes.
Mas porque não se falar também de cinema? Pelo menos pra gente não
incorrer nos mesmos erros. Por que não se discutir a formação de uma
estética? O Nelson, na França, disse que precisamos salvar o Cinema.
O Glauber já falava em levantar esse barco, reunificar a tribo, criar
condições pra levantar o astral do cinema brasileiro. É preciso muita
água e sabão e esfregação. Pelo menos uma discussão interna para depois
chegar a um debate público. Não precisamos repetir os erros de Hollywood há 40 anos, ou da Itália, no cinema fascista, ou outros equívocos
de distorção e gigantismo históricos.
o) A vitória em Cannes confirma essa possibilidade tão desejada de
fazermos um cinema criativo. É muito bom torcer pelos outros. Com
isso você faz bem pra você e também pros outros. Fazer desse inferno,
um paraíso. Tentar realizar uma democracia multipartidária no cinema.
Tem lugar pra todo mundo; pro abacaxi e pra obra-prima. Porque só um
ou outro?
p) Vanguarda, centro e retaguarda são uma coisa só. É preciso uma
frente ampla contra a ignorância, o obscurantismo, a prepotência e o
preconceito. Não podemos ter intolerância no vídeo, nos palcos, nas
telas e nas redações contra o filme brasileiro de valor histórico, cultural
ou mesmo de interesse comercial.
q) O pessoal de cinema está dormindo com a questão dos independentes. No vídeo e no curta-metragem já está funcionando com grande
eficácia. Existem condições objetivas para valorização do independente
na medida em que estamos vivendo o fim de uma tecnocracia. O autoritarismo quer que as pessoas fiquem dispersas. É preciso uma unificação.
116
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
r) Os filmes mais sérios e importantes da década de 70 são aqueles
totalmente desacreditados na época em que foram rodados. São os que,
hoje, dão show não só de pensamento político e estético, procurando
valorizar o que é nosso, mas também de estrutura de linguagem. São
filmes realizados ao nível do provável não das certezas. De repente um
filme desses tem o poder de reciclar novos estímulos de informação
mais que um computador. O computador é programado, esses filmes
programam a si mesmos; se fazem por si e se transformam. Vão do bom
ao ruim como a arte brasileira em geral, vai de uma extrema timidez a
uma pretensão revolucionária; vai do péssimo ao ótimo com a maior
tranqüilidade. Essa é nossa originalidade. Acho que esses filmes teriam
respostas em festivais internacionais porque há elaboração e pesquisa.
s) Como diz o Nelson, a gente tem que salvar o Cinema brasileiro e
também essas dissidências estéticas somando todos os erros e acertos.
Se em 60 havia idéias, em 70 encontramos o centralismo. De 80 para
cá, o bom mesmo, a coisa mais moderna, são os filmes antigos. Os modernos são extremamente velhos com exceções honrosas como o filme
do Nelson.
t) O grande mestre será sempre João Gilberto. De instigante hoje
acho o Arrigo Barnabé porque leu, estudou, é uma pessoa séria. Ah,
mas no palco ele berra, grita, faz o diabo, toda uma encenação como
locutores esportivos ou narradores policialescos. Mas aquilo é uma crítica
a uma realidade; não é uma sujeição a fórmulas e modismos. Como ele
mesmo diz, a gente tem muito a aprender. Uma análise mais profunda
da cultura brasileira tem que passar primeiro pela análise estética do
cinema brasileiro.
u) Eu faço filmes pra poder cumprir uma trajetória, uma missão;
uma prioridade fundamental e uma questão de oxigênio. Não me diria
um religioso mas também não um ateu convencional. Não sou tão negativo
a ponto de duvidar das aparências porque não vejo. Eu desconfio. Isso
O ABISMO dá: a possibilidade de que se você não entender o filme,
pelo menos desconfia de que lá tem uma grande informação de que a
vida é um negócio maravilhoso que vale a pena ser vivido e temos que
cultivá-la, valorizá-la sobretudo com as artes; porque elas são o extremo
requinte da vida e podem também dar uma noção de justiça tão importante nos dias de hoje.
117
Alô alô Rogério Sganzerla!
Uma videologia da novela, a doença da
nação
34
Não quero convencer ninguém mas, se me perguntarem porque não
há eleições diretas para Presidência há mais de um quarto de século eu
responderei (acreditem se quiser) que há pouco menos do que isso o
imaginário nacional foi ocupado por uma manipulação de natureza
escatológica, muito mais do que escapismo ou válvula de escape, é
alienação 100% embrutecedora, chamada novela. Não é arte, diga-se
de passagem, aqui não vai nenhum preconceito contra uma fórmula
(não há forma) de dominação mental de 120 milhões de humilhados
pela gratuidade descartável do universo baixo entretenimento; a fórmula
deriva do folhetim, um gênero igualmente periódico, alimentador de
sonhos e pesadelos descartáveis, mas com uma incomparável qualidade
artística e estilística que a telenovela, infelizmente, não tem... Se tivesse
alguma qualidade de informação artística ou cultural, com seu quarto
de século de insistência redundante, já teria apresentado. Afora o comportamento (freqüentemente falso, deformado e classista) a novela nada
tem a ver com arte ou cultura. Já o folhetim, seu antecessor em letra de
forma, ao contrário, muito tem a ver com a melhor literatura em certos
casos especiais (Machado de Assis escreveu Helena e Yayá Garcia
inicialmente para jornal, tendo sido tipógrafo; igualmente Lima Barreto
publicou folhetins etc., entre nós).
No exterior, o teledrama da televisão novayorquina dos anos cinqüenta influenciou todo o melhor cinema polêmico da época: The Left
Hand, estréia de Arthur Penn na direção, proveio de um sucesso eletrônico, pontualmente dividido em capítulos que por sua vez determinariam a fórmula fragmentária de um novo tipo de cinema; Doze
Homens e Uma Sentença também proveio de um texto escrito especialmente para a televisão, revelador de inúmeros talentos como Paddy
Chaiefsky de Despedida de Solteiro etc.
Claro, lá fora é diferente. Mas, aqui o que surgiu, além de ibope e
exploração sentimental de uma platéia inculta e analfabeta?
De minha parte, lembro bem das vexaminosas correrias em torno de
Albertinho Limonta e sua troupe por ocasião da vidiotização lacrimejante
34 Publicado na Revista Cine Imaginário, de maio de 1988.
118
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
da colônia via O Direito de Nascer. Foi o início da “nossa” revolução
cubana: a cretinização de um veículo e de uma sociedade em nome da
exploração comercial. Pouco tempo depois surgia também outro vexame
histórico: a passeata das mal-amadas, manipuladas para derrubar um
regime democrático, com a desculpa de conter dois itens em que o regime implantado iria bater todos os recordes de agressão à opinião
pública: a corrupção e a inflação.
A televisão espontânea morreu quando conheceu o videotape,
perdendo o sabor inventivo de espontânea inquietação – passou a ser
“cozinhada” nas mesas de edição. Com o predomínio da novela, ainda
popularesca, virou um prato feito para débeis mentais, devido à pretensão
provinciana de seus detentores. No início da década de setenta, salvavam-se os programas de humor e os instantes de liberdade de informação,
devido a competência de seus apresentadores. No entanto, as novelas
não eram boas, mas pelo menos não eram tão assépticas, modernosas e
medíocres como hoje em dia.
Não há forma mas fórmulas: ti-ti-ti, fuchico, alcoviteiros. E só...
jogam conversa fora.
Atualmente, além de só jogar conversa fora não há conflito na novela.
O apelo ao plot tenta justificar o ti-ti-ti permanente. Na verdade, os
personagens (às vezes delineados por autores sensíveis e atores talentosos) não lutam ou discutem entre si; freqüentemente falam mal de um
outro personagem fora de cena (geralmente acabou de sair). Ora, falar
mal da vida alheia com desculpa da ausência não sustenta dramaturgia
e não há ninguém inteligente que agüente essa apelação, além do mais
um péssimo exemplo para a fragilidade mimética das crianças (eis
também uma das razões da apoplexia, afonia e inexpressiva vacilação
de milhões de débeis mentais, vítimas inconscientes da lavagem cerebral eletrônica, um veículo novo mas totalmente dominado e falido em
sua vocação de educação ou informação progressiva, um crônico mau
exemplo para as novas gerações e aqueles que ainda não nasceram mas
já estão sendo roubados pelo sistema de babilônia35 ). Desse jeito o veículo mais novo tornou-se o mais velho: uma torneira aberta, inferior ao
rádio (que exigia certa concentração)... Não sou contra as pessoas que
fazem a televisão ser tão mesquinha e devagar mas contra os preconceitos
35 Do poema O Escaravelho de Ouro, de Oswald de Andrade, escrito em 1947: “Venceu
o Sistema de Babilônia / E o garção de costeleta”.
119
Alô alô Rogério Sganzerla!
impostos por uma minoria que não soube compreender o veículo. Imitar
demais a televisão americana só poderia dar em cópia subserviente,
colonialismo provinciano ou macaquismo de auditório e, sobretudo, em
anacoluto e deformação pleonástica. Quanto ao ganha-pão de atores e
técnicos, tudo bem. Se bem que a deformação aí seja igualmente intolerável, considerando-se que por ano despejam setecentos enlatados
estrangeiros e uma dezena de nacionais (os piores nacionais, típicos
desse modelo de ocupação da moda pelo medo ou vice-versa, sempre
excluindo a inventiva criatividade de nosso cinema do presente ou do
passado, do curta e do longa, do bom e não só do ruim teor transmitido
eletronicamente). Não falemos dessa área mas poderíamos falar. A
deformação formulizadora é a mesma: novela, cinemão, enlatado, tudo
“telefone-branco”... E o que tem a ver isso com o fracasso das diretas
ou a grande ausência de uma verdadeira democracia representativa entre
nós?
Tem tudo a ver. Só um burro, ou um vidiota não percebe. Por quê?
A cada dia e noite milhões de brasileiros são ludibriados pela gratuidade ostensiva de cenários alheios à encenação, em que a desejável
ação interior é substituída pela multiplicação de coadjuvantes que só
servem para encher lingüiça ou – suprema descoberta da “modernidade”
mais irritante... – o império pouco criativo e previsível do merchandising abusivo. Da arte moderna, os clichês; dos efeitos cinematográficos,
os defeitos televisivos; da liberação de costumes, a coisificação mercadológica. A fórmula antimágica da novela brasileira só retira e
expropria, confisca o público, oprimido pelo custo de vida, sem pão
nem circo (mal servido pelo cinema, traído pelo futebol, bombardeado
pelo rádio) não tem muitas opções senão suportar o discurso, resistindo
à saturação pelo esquecimento de sua criatividade, negada há decadas
nas urnas, câmeras e microfones.
O povo brasileiro, tradicionalmente espontâneo e inventivo, se
esquece de sua famosa intuição, bossa, sexto sentido através do quê? A
novela é um dos mais destacados capítulos da história do desespero
alienado de um povo humilhado pela infeliz marcha dos acontecimentos...
Bate-bocas e têtes a tete (reuniões) que só levam à galinhagem pura
e simples.
Resultado: a classe média sobrevive sob a síndrome da passarela.
120
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
A população não quer ver, nem ouvir com olhos e ouvidos livres36 ,
mas tão somente ser vista, aparecer, fazer fama para deitar na cama do
subsucesso fácil, talvez virar sub-super-star de uma hora para outra,
trair sua condição colonial, enganando aos outros e, pior de tudo, a si
mesmo. O brasileiro não quer ver mas ser visto. Nem escolher mas ser
escolhido pelo sistema babilônico...
Macaquear é preciso... Estão aí os videotismos, cacoetes e
maneirismos.
Passar a perna, levar vantagem, tirar proveito próprio explicam mais
a nação ocupada pela má-consciência do que o complexo de culpa e a
culpabilidade colonial de autores (às vezes competentes, em luta contra
o aparelho repressivo no interior da produção/distribuição do sub-produto
pasteurizado, censura igualmente primária).
O videotismo é total. Isso sem falar no provincianismo, redundância,
ausência de expressão e dicção, mediocrização do ser humano, cretinização da opinião pública, desacerto dos cortes entre uma seqüência e
outra, imposição de bandas sonoras importadas de péssima qualidade,
mitificação da mediocridade, abuso de autoridade e desrespeito ao
próximo, nível ginasiano da representação...
Não falaremos dos comerciais porque aí o panorama é ainda mais
desolador.
A novela só não é pior que o enlatado, igualmente gratuito e agressivo
em suas tomadas externas. Pelo menos, um atributo: ensinou o público
brasileiro a ouvir a ação, devido às qualidades do som de freqüência
modulada que o cinema não apresentou. Afora isso suas qualidades
provêm exclusivamente do cinema. Mas e o nosso mal-tratado cinema
nacional – do qual o veículo seguiu o exemplo, sem apresentar a espontânea inquietação, sobretudo dos anos sessenta – onde fica? Se você
pensar que um clássico como O Pagador de Promessas, Palma de Ouro
em Cannes, premiado em S. Francisco, só foi projetado na televisão
brasileira com uma década e meia de atraso, dá vontade de esquecer o
assunto que deveria estar na pauta da, mísera ou não, necessária
Constituição feita para salvaguardar direitos e obrigações, sobretudo
nas questões de trabalho e destinação da informação nacional. Ora,
tudo isso é ficção; o máximo que fazem é uma novela sobre o assunto e
36 “Ver com olhos livres”, aforismo do Manifesto da Poesia Pau-Brasil, de Oswald de
Andrade, escrito em 1924.
121
Alô alô Rogério Sganzerla!
durma-se com um barulho destes.
E no entanto o cinema brasileiro faz noventa anos em 1988.
Não se esqueçam que o velho e bom Irineu Marinho, além de corredor
de automóveis, foi cineasta: o que acontecerá com documentos da vida
moderna como Limite, O Canto da Saudade, O Canto do Mar, Agulha no
Palheiro, O Grande Momento, Absolutamente Certo, O Rei do Samba,
O Bandido da Luz Vermelha, Blá-Blá-Blá e muitos outros (existem cópias
e o público está cada vez mais carente de verdadeira informação filmológica)?
Que tal Viagem ao Fim do Mundo, magnífico trabalho de 1967
assinado por Fernando Campos? Deveria estar incluído entre os filmes
que precederam e assumiram o movimento de 1968.
O Anjo Nasceu é de 1969 mas representa um tipo de revelação que
todos poderiam, pelo menos, tomar conhecimento e vibrar com sua
textura...
Biscoito fino37 na prateleira é uma raridade generalizada no deserto
de idéias chamado mercado.
Da produção à veiculação, talvez a única possibilidade de afirmação
da nacionalidade, permitida pelo atual sistema babilônico, seja a novela
que, assim, apesar de feita por pessoal competente, com autores ágeis e
atrizes de expressão não é, nunca será arte. O folhetim jornalístico
aproximava-se do romance e tinha uma vida própria. A novela só copia,
dilui, deforma e dificulta a relação do homem brasileiro com seu consciente e inconsciente. A perda de tempo é imensa, se contarmos os
períodos de tempo em que a idiotia se transforma em convencionalidade.
Ela existe para fazer boi dormir, enganar os otários e desviar a atenção
do assunto principal: acesso ao próprio mercado por parte de outras
artes industriais.
Em nenhum país do mundo a televisão é tão centralizadora e renitente
em relação ao veículo cinematográfico.
As televisões oficiais são menos cumpridoras do seu dever e direito
de veicular o filme brasileiro de livre exportação poética.
Enlatado por enlatado, projetem-se as antigas chanchadas, por
exemplo, aliás muito mais modernas do que os pretensos modernosos.
37 “A massa há de provar o biscoito fino que eu fabrico”, frase famosa de Oswald de
Andrade.
122
Seção 1
Bossa nossa
Fragmentos (de 1965 a 1995)
38
Assim como o cinematógrafo fora no início do
século do progresso, aconteceu o automóvel na primeira década, o avião na seguinte, o rádio na terceira
– e a guerra na quarta . De lá pra cá assistimos ao
banquete funesto deste século: satélite artificial e
guerra fria na quinta, viagem à lua e guerra química na sexta, burocratização do ser humano na sexta e provável liberação do ego no presente
decênio para quem sabe ver e tem olhos livres.
Noel Rosa como Villa-Lobos compôs especialmente para a tela de
nosso primitivo cinema falado sob direção de Humberto Mauro – respectivamente Cidade Mulher e Descobrimento do Brasil. E a bem dizer
Noel começou no cinema falado, grande culpado da transformação (não
tem tradução) pois posou nele pela primeira vez diante de uma câmera
sincronizada em 1929, já sonorizada quando o precursor e laboratorista
Paulo Benedetti registrou quatro números do “bando de Tangarás”,
vestidos de sertanejos em seu estúdio, à rua Tavares Bastos, 117, Catete.
Inclusive a embolada Minha Viola, uma de suas primeiras composições,
registra Almirante – que participou da experiência – na sua excelente
biografia (No tempo de Noel Rosa) sobre quem, “em sua modéstia,
falando a linguagem sincera dos sambas, fez com que o bairro de Vila
Isabel se agigantasse sobre os demais do Rio de Janeiro como a pedra
mais preciosa de uma jóia rara”.
Almirante conta também que o conheceu naquele bairro em 1923,
vestido com uniforme do Ginásio de São Bento, tentando vender por 80
mil réis um projetor infantil de vistas animadas do bicho-da seda. O
negócio não se realizou mas serviu como apresentação de um menino
tímido, com defeito no maxilar, que sofria com o apelido odioso de
“Queixinho”... Outro integrante do “bando de Tangarás”, João de Barros
– filho do dono da fabrica Confiança Industrial de Vila Isabel – escreveu
com Alberto Ribeiro o argumento de nossos primeiros longa-metragens
sonoros – Alô Alô Brasil e Alô Alô Carnaval – e muitos filmusicais
carnavalescos. Palpite Infeliz, a famosa réplica ao sambista Wilson
Batista – foi composto especialmente para Araci de Almeida em Alô
38 Publicado na Folha de São Paulo, quinta-feira, 2 de junho de 1988
123
Alô alô Rogério Sganzerla!
Alô Carnaval; Noel chegou a propor um cenário pré-neo-realista: Araci
deveria cantar lavando a roupa e estendendo-a num varal. Francisco
Alves interveio e após longa discussão retirou-se com Araci do palco de
filmagem da Cinédia, em são Cristóvão, que Noel, por sinal, freqüentava.
Desanimado, chamou uma das irmãs pagãs, que não conseguiu cantar
como ele desejava. E assim, apesar de anunciado, Palpite Infeliz jamais
foi filmado, talvez porque Noel estivesse adiantado uma década em
relação ao mundanismo dos anos trinta, como sempre acertando na
mosca, antecedendo-se à generosa vertente popular de Favela dos Meus
Amores, João Ninguém, Moleque Tião e It’s all True de Orson Welles
com argumento de Herivelto Martins, que também extraía a poesia do
cotidiano: a cena do varal incluía a afinação de cento e vinte tamborins
de pele de gato no final da tarde de um exterior em contra-luz na
Mangueira com Ave Maria no Morro e Batuque no Morro...) De Alô, Alô
Carnaval constam Joel e Gaúcho em Pierrot Apaixonado (parceria com
Heitor dos Prazeres) e Não Resta a Menor Duvida com o Bando da Lua.
No ano seguinte Noel compõe a canção-título do filme Cidade Mulher
que lançou diante das câmeras o “cantor das multidões”, gogó de ouro
e excepcional intérprete Orlando Silva, e mais cinco números musicais
cuja filmagem fez questão de supervisionar (Dama do Cabaré, Morena
Sereia, Na Bahia, Uma Noite à Beira-Mar, Tarzan, o Filho do Alfaiate;
este último, samba em parceria com Vadico, foi interpretado por
Almirante). Noel fazia questão de estar presente às filmagens no Cassino Beira-Mar, situado no passeio público, onde esperava até altas horas
da noite pela bailarina Ceci – Juraci Correia de Moraes –, seu grande e
derradeiro amor, que trabalhava num show da boite “Caverna”, no sótão
do mesmo edifício, e que serviu-lhe de inspiração para o samba A Dama
do Cabaré. Hoje professora particular em Vila Kennedy, Ceci confessa
que Noel sofria por ser ciumento, era bom de cama e uma vez, juntos,
destruíram um bar inteiro. Por sua causa compôs uma serie de ideogramas: “O maior castigo que eu te dou / é não te bater / pois sei que
gostas de apanhar”, além de Pra Que Mentir?, Só Pode Ser Você, A
Melhor do Planeta, Último Desejo, seu maior sucesso. Ceci lembra que
Noel Rosa definia suas musicas como “bossa nova” (coisas nossas, nossas
bases) confirmando, como sempre, estar nitidamente adiantado em
relação à época . Incompreendido, mal aproveitado pela inteligência
local, no final de sua vida recusava-se terminantemente a posar para
uma câmera cinematográfica. Seis meses antes de morrer, procurou Ceci
124
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
para comemorar seu último aniversário, dizendo que não sabia se a
ocasião iria se repetir. Depois de uma ceia regada a champagne, foram
a um hotel, mas Noel absteve-se do sexo por estar tuberculoso. De
madrugada, surpreende-o sentado à beira da cama, desconsolado e aflito
como ninguém o vira – sabia sofrer –, possivelmente refletindo sobre
seus dias contados na terra. Foi uma visão aterradora do sofrimento
contido á base de estoicismo grego. Dias depois um primo do compositor jogou-lhe um copo de cerveja no rosto, culpando-a pela desgraça
sem remédio. Quando Noel soube, veio com febre pedir-lhe desculpa
pelo gesto impensado de um parente. Foi a última vez que o viu com
vida. O enterro apoteótico foi acompanhado à distância, escondida da
multidão por um xale escuro a dama do cabaré que o fez sofrer em vida
e gozar na arte o reconhecimento da imortalidade.
Verso final de Seu riso de criança, gravado em 1935 por sua intérprete predileta, Aracy de Almeida: “Eu nascendo pobre e feio / ia ser
triste o meu fim / Mas crescendo a bossa, veio / Deus ter pena de mim”.
A luz do bandido
39
Que tipo de intervenção estética você tinha em mira quando fez O
Bandido da Luz Vermelha na virada dos anos 60?
- Não se trata de intervenção. Medicina homeopática não supõe a
existência do bisturi. Não se trata de medicina alopática. Trata-se de
uma operação radical. O que estava em jogo era uma concepção radical
de cinema.
Em que sentido?
- Eu queria um filme que não tivesse nada a ver com sociologia,
psicologia e outras convenções da época. Eu queria um personagem
que unisse as cenas. Na época, São Paulo não tinha a violência que tem
hoje. São Paulo pode ostentar, hoje, o título de cidade mais violenta da
América do Sul. Em média, dez pessoas são assassinadas por dia em
39 Entrevista ao jornalista Severino Francisco publicada no Jornal de Brasília, quartafeira, 1º de agosto de 1990
125
Alô alô Rogério Sganzerla!
São Paulo, quatrocentos carros são roubados e nem se fala no número
de assaltos com a cumplicidade ou a omissão da polícia. A morte pode
estar em cada esquina. O meu trabalho se propunha a ser uma comédia
criminal. Era o primeiro esforço para se fazer um retrato falado da grande
metrópole. É quase trágico este faroeste do Terceiro Mundo. Depois
pensamos em fazer o filme através de um narrador esportivo. O crítico
Francisco de Almeida Salles chamou O Bandido da Luz Vermelha de
ópera-bufa sobre a cidade de São Paulo.
Existe uma história ou uma lenda de que o cinema produzido por
Rogério Sganzerla e por Júlio Bressane sempre resultou em fracasso de
público. Em que medida a história comercial do Bandido desmente essa
mitologia?
- O Bandido da Luz Vermelha foi lançado em 42 salas de cinema
em São Paulo. É um filme que se pagou em uma semana. Esta lenda foi
espalhada pelo pessoal do cinemão. A Mulher de Todos deu o dobro da
renda de O Bandido da Luz Vermelha. Copacabana Mon Amour e Sem
Essa Aranha não conseguiram certificado de boa qualidade. Uma burrice.
Eram filmes feitos com a câmera na mão. Mas quando estes filmes foram
exibidos em Londres e Nova York despertaram grande interesse. Ou
seja: não fizeram sucesso porque não foram lançados. Ou faz a coisa
direito ou não faz. Chegaram a esconder seis mil cartazes do filme. Mas
mesmo assim o Bandido se pagou. Só os filmes do Mazzaropi conseguiram
mais público do que O Bandido da Luz Vermelha. O meu cinema é
popular. Não é elitista, decadente ou pedante. Tem apelo popular e tem
algo fundamental que é o ritmo. Nossa aristocracia cabocla não aprendeu
a rimar. Cinema não se aprende na escola.
Como o bandido da luz vermelha entrou no filme?
- Eu tinha acabado de ler um livro sobre filmes que trabalham com
personagens reais. Cinema não é arte individual. É algo que tem de
funcionar entre as massas. Nesta época, o bandido da luz vermelha
estava em plena ação. Os jornais diziam que ele entrava nas casas assobiando músicas do Roberto Carlos. Mas evidentemente o personagem
era um mero pretexto para mostrar a realidade. O bandido da luz vermelha, o personagem real, está preso ilegalmente. Ele tratava bem as
vítimas. Sua ação ainda era romântica. Ele distribuía o que arrecadava
nos assaltos com os mais necessitados. Hoje o crime é diferente. Existem
quadrilhas frias e implacáveis. Isto foi se implantando a partir de 64. O
126
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
bandido era uma espécie de Zorro dos pobres. Ele tem relação com toda
a cordialidade de uma época. Ele devia ser indultado e solto. Assaltava.
Matou uma pessoa, já cumpriu a sua pena. Este seria o tema de um
segundo filme sobre o bandido. Eu cheguei a fazer um projeto, mas não
foi possível realizá-lo.
Existe uma cobrança de que, depois da explosão de O Bandido da
Luz Vermelha, você não teria realizado nada mais à altura. Em que
medida concorda com esta observação?
- Orson Welles fez nada mais do que 39 filmes. Eu não fiz mais do
que oito. Então eu acho que tem que perguntar isso ao pessoal que
come macarão e arrota peru. Acho que quem fala isto são as mesmas
pessoas que me impediram o acesso aos meios de produção. É tudo uma
aberração tropical de um bando de parasitas e invejosos. É como o samba
na década de 30: a burocracia sufocou o cinema.
Em que medida toda uma abertura prospectiva projetada pelo
Bandido da Luz Vermelha foi explorada pelo cinema brasileiro na
perspectiva de um cinema urbano?
- Estes espetáculos de violência gratuita que se fazem fundindo
uma coisa e outra de uma forma modernosa não passam de tentativas
frustradas de refletir a nossa realidade. E principalmente as cenas de
violência e as cenas de amor que são uma gaiatice de fazer dó. Nosso
cinema involuiu. Temos bons fotógrafos. Mas em nível de roteiro e de
composição de personagens estamos num estágio pré-crítico. Era preciso
que se voltasse a Lumière e Méliès. E mesmo Griffith ainda não foi
alcançado. O problema é que não se conhece a história do cinema e
nem a história das artes. Quando passa um filme do Stroheim não tem
ninguém pra assistir. Estão todos em seus videocassetes vendo filmes
modernosos. É como nas novelas da Manchete: a mulher diz “me larga”
e não tem ninguém segurando.
(O Bandido da Luz Vermelha: em cartaz na sessão Classe A, da
Rede Globo, hoje, às 00h45.)
127
Alô alô Rogério Sganzerla!
A Belair
Belair,, 20 anos depois
40
Em 17 de setembro de 1990, por ocasião da retrospectiva das obras
de Julio Bressane e Rogério Sganzerla, durante a II Mostra Banco
Nacional de Cinema (RJ), Susana Schild publicou no Jornal do Brasil
uma dupla entrevista com os diretores. As perguntas, no entanto, foram
respondidas em separado. A seguir, a transcrição do depoimento dado
por Sganzerla.41
Vinte anos depois, como você vê a Belair no panorama brasileiro?
– Curiosamente, a Belair nunca chegou a ser registrada. Foi uma
produtora imaginária, mas com registro histórico. Mesmo assim, em sua
proposta de demolição do discurso acadêmico e convencional, teve uma
atuação muito benéfica dentro do princípio de produzir filmes bons,
bonitos e baratos. Entre março e setembro de 1970 produziu sete longasmetragens. Infelizmente, o sistema se voltou contra esse tipo de operação.
Com as mudanças do mercado, seria possível repetir a experiência?
– Acho que não. As pessoas são muito escravas de si mesmas. O
cineasta brasileiro não lê romances, não conhece dramaturgia, acredita
mais nos seus próprios limites do que em qualquer janela para o mundo.
É uma figura sisuda e melancólica. A Belair, ao contrário, era extremamente audaciosa, apesar das condições políticas do país. O fato de
filmar já implicava uma resistência, empunhar uma câmera era um gesto
heróico. Fomos muito censurados nesses 20 anos. Primeiro, pela censura
policial truculenta, que se transformou na vaidade da censura econômica
e depois na crueldade da sabotagem burocrática.
Quais os avanços do cinema brasileiro nesses 20 anos?
– Houve um enorme retrocesso, uma marcha-a-ré histórica brutal.
Devemos tirar o chapéu para os técnicos, os fotógrafos, os atores. Mas
não temos argumentistas e muito menos dialoguistas. O cinema regrediu
a uma forma quase ginasiana de rendimento, enquanto as produções
40 Entrevista de Susana Schild com Rogério Sganzerla e Júlio Bressane publicada com
o título “Esta dupla vale uma mostra”, no Jornal do Brasil, segunda-feira, 17 de setembro
de 1990.
41 “Nariz-de-cera” da Contracampo - Revista de Cinema, nº 58. Infelizmente só publicaram a transcrição da parte de Rogério. Na edição definitiva deve ser restaurada a
integridade da matéria, pois a parte de Júlio é muito importante.
128
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
são cada vez mais custosas. Não houve rendimento da forma artística.
Tudo bem que numa crise as pessoas tenham que pisar forte, mas no
Brasil, as super-produções têm uma tradição de fracasso. O potencial
brasileiro é enorme, mas exige atenção para os detalhes humanos que
são menosprezados nas super-produções. Fora isso, o cinema brasileiro
foi atropelado pelo desastre da Embrafilme, uma penitenciária de acetato
que tinha que acabar. Começou como órgão de fomento e acabou como
órgão de liqüidação do cinema.
No cinema brasileiro sempre se discutiu muito a dicotomia cinema
comercial x cinema de arte. Como você encara essa questão?
– Essa dicotomia faz parte do atraso das elites brasileiras que são
as mais avarentas e despreparadas do mundo. Na época da Belair só o
filme colorido era comercial, e filmes em preto e branco sofriam todo
tipo de boicote. Esta dicotomia é uma ficção, existe porque o país é
atrasado, por causa de sua formação histórica e pelo despreparo de toda
uma nova geração, sem falar que os realizadores do Cinema Novo também
cruzaram os braços.
Foi possível viver apenas de cinema nesses 20 anos?
– Vivi de cinema e ainda escrevendo, fazendo vídeo, montando alguns
curtas-metragens. Também sou administrador de negócios.
O nome de vocês [Sganzerla e Bressane] sempre foi vinculado à
vanguarda cinematográfica. Vocês eram e ainda são vanguarda?
– Me considero um bom cineasta e informado sobre a história do
cinema, que lê peças de teatro desde criança, que escreve para jornais
desde a adolescência. A descoberta de uma nova linguagem é como
uma piada contada muitas vezes e que perdeu a graça. A vanguarda, a
meu ver, seria uma tradição revolucionária e não somente o modismo de
meta-linguagem e sem cair no ridículo do pré e pós-moderno, que acho
uma aberração. Se isso é vanguarda, quero outra coisa.
E, hoje, alguém faz cinema de vanguarda no país?
– Não sei se alguém está fazendo cinema de vanguarda, no sentido
de ruptura de códigos. Um ou outro cineasta sabe filmar, e embora os
brasileiros gostem muito de cinema, o cinema não gosta muito de brasileiros. O cineasta brasileiro pode ser hoje comparado a uma toupeira
desumana, insistindo em não ser solidário às grandes causas do cinema, que é o próprio cinema. O homem brasileiro, quando pretende ser
129
Alô alô Rogério Sganzerla!
altivo, faz questão de ser pedante, e uma coisa não tem a ver com outra.
Quais os melhores filmes da história do cinema brasileiro?
– Limite, O Cangaceiro, Ganga Bruta, O Canto da Saudade, O
Descobrimento do Brasil, O Anjo Nasceu, Deus e o Diabo na Terra do
Sol, O Pagador de Promessas e os filmes de Watson Macedo. Ultimamente, fora os filmes do Bressane, gostei de A Faca de Dois Gumes,
de Murilo Salles.
Qual a importância que o governo Collor está dando à cultura?
– Não sei. Eu continuo filmando. Acho que antes do governo Collor
era pior, era a época do nem sim, nem não e da perda de tempo. O
distanciamento do Estado do cinema pode ser um mal que venha para
bem.
O que você está fazendo no momento?
– Estou para terminar um longa em homenagem a Noel Rosa, que
este ano faria 80 anos – uma data que considero importantíssima, e que
parece não sensibilizar ninguém. Já tenho duas horas filmadas, João
Gilberto fez uma gravação exclusiva de Feitiço da Vila para o filme, e
agora dependo da TV Manchete me emprestar os cenários da novela
Kananga do Japão para filmar o prólogo.
Do F
estival de T
aormina (fax ao Jornal da Tarde)
Festival
Taormina
42
Sentado na varanda beira mar de um hotel-vila na belíssima paisagem
meridional, invadida por turistas e adolescentes em férias, penso no
futuro do cinema mundial assim como de festivais internacionais. Este
ano o festival de teatro, música e cinema de Taormina completa sua 25ª
edição e também está sendo invadido pelo culto da violência mais ou
menos explícita.
42 (Arquivo) Este texto ficou nos meus arquivos porque Rogério o transmitiu para o
meu fax no Rio de Janeiro, depois que me ligou de Taormina, e pediu-me que o
retransmitisse ao Jornal da Tarde. Consta no original transmitido (que está entre os
textos que selecionamos) o número do fax do jornal (0055 21 265 2297) e os nomes de
José Marcio Mendonça, Kiko ou Tereza. Não fiquei sabendo se chegou a ser publicado
e a cópia que recebi em papel de fax desbotou em parte até a ilegibilidade antes de que
130
Seção 1
Fragmentos (de 1965 a 1995)
Explico-me: na ensolarada Sicilia as prefeituras preparam mostras
cinematográficas sem comparação com o espetáculo de festivais brasileiros mas também aqui o nível vem caindo. O jeito italiano faz com
que apelassem para seções históricas, onde entra de tudo, sobretudo o
supérfluo, mas há lugar para os verdadeiros mitos culturais.
Kubrick, por exemplo, mereceu exposição de sua fase adolescente
como fotógrafo de Look (uma bela revista desaparecida há muito tempo)
entre 1945/47. O jovem Kubrick revela um olho selvagem para uma
temática desportiva - a luta de box - e de quebra a violência implícita;
vista como causa a violência não se torna gratuita e seus efeitos em
fotografias e um média metragem em preto e branco não nos deixa mentir.
Noutros filmes, genericamente estilizados em “cinema de autor”
convencional, o espectador chega a ser tratado como um débil mental.
Também não se pode desprezar a intuição do público, muito menos a
paciência. Às vezes, diante de experimentos locais somos obrigados a
sair para atender um telefonema ou tomar o capucino mais próximo. Há
uma letargia generalizada e isso o festival não deve discutir mas aponta
a falência expressiva de produções oficiais, destituídas de talento e jeito
para os temas abordados. Dentre eles a violência sistematizada por
pontapés e tiroteios permanentes chega a quase ser um dogma. Mesmo
assim as condições de projeção chegam a ser ideais. Nunca houve uma
sala de espetáculos audiovisuais como o teatro grego, montado sobre
uma ruína de 25 séculos, um amplo anfiteatro dotado de som digital.
Pois ali se insinua a ferocidade praticadas a ferro e fogo e muitos
revólveres pelo ator Brandon Lee - recentemente falecido durante as
filmagens deste inusitado O Corvo. (Dizem a boca pequena que foram
os culpados os próprios produtores mas o montador fez o diabo para
salvar a produção e levantar o bólido. Não só a montagem, mas a
devastadora cenografia e alguns diálogos engraçados... (texto
interrompido pelo desbotamento do fax)
eu submetesse meus arquivos a um processo de digitalização, perdendo assim o final do
texto e a data em que fora escrito. Estimo-o como de 1994, mas só os arquivos de
Rogério poderão certificar a data precisa em que se deu a redação. Nosso projeto inacabado termina aqui, com um texto inacabado, ambos pelas vicissitudes dos tempos.
Mas o original completo está nos arquivos de Rogério e o texto deverá ser recuperado
na íntegra para a edição definitiva.
131
Fragmentos
de
Rogério
Sganzerla
Seção 2:
textos de 1996 a 2003
capturados
na Internet
por Mario Drumond
Esta foto (apesar da péssima qualidade de reprodução) representa bem a última
imagem de Rogério que me ficou gravada (bem nítida na memória, mais que na retina). Era a figura desengonçada, curtidora, um filósofo gozado e gozador com quem
andei pelas quebradas Rio afora, dias, noites, madrugadas e malandragens numa
época de dureza, ostracismo, marginalidade, muito trabalho e criação. Chopps na
Urca, ao lado do cassino fantasma dos tempos de glória e Orson Welles. Baseados
em Matta Atlântica e Silva. E frases-biscoito-fino-(co)mentários-montagens de tudo
que passava pelos olhos e pela mente. Recordar é viver: filmes que não foram filmados, projetos boicotados, injustiças e descasos. Reflexões rogerianas sobre a
humanidade: “Bem-aventurados os caolhos, porque só vêem a metade da realidade”.
No rastro de Orson W
elles
Welles
43
Combativo, polêmico e imbatível nos anos do Cinema Novo. Ainda hoje quando fala, não nega o cineasta
que foi. “Eu não acredito em renascimento de filme
brasileiro. Nós não temos roteiristas e não temos nem dialoguistas”.
Rogério Sganzerla, o famoso realizador de O Bandido da Luz Vermelha
(1968) e Nem Tudo É Verdade (1986) falou ao Diário, por ocasião do
VIII Festival de Cinema de Natal.
Sganzerla, em que filme você está trabalhando no momento?
- Chama-se Tudo é Brasil. É uma coletânea de assuntos fechando a
trilogia sobre Orson Welles no Brasil. Onde ele mesmo diz: “Tudo é
Brasil”. Ele fala em português e até canta em português. É uma pequena
tentativa de voltar às nossas raízes, coisa que eu acho tão importante
como o nosso cinema. A presença de Welles repete o que aconteceu
com Eisenstein, no México. Embora o Eisenstein não seja mexicano, e
sim, um grande cineasta russo, deu uma contribuição fabulosa com
aquele filme inacabado. Foi o mesmo caso do Welles, embora não seja
tão transparente. Porque ele criou um estilo de filmagens exteriores, as
grandes seqüências de multidões, de enterro, de jangadas, de números
musicais e até um sentido patriótico ele trouxe, por ocasião da II Guerra
Mundial. Que incutiu, mesmo, em Grande Otelo e em Linda Batista
uma noção de nacionalismo, de luta pelos poderes da democracia e
contra o Eixo. De certa forma, Welles foi vítima também dessa atuação,
porque naquele momento desvendara uma rede de espionagem em todo
o Brasil, inclusive no Recife, no Ceará, no Rio de Janeiro. E há muitas
suspeitas sobre o que de fato ocorreu com relação ao jangadeiro Jacaré,
que era norte-riograndense. Welles acreditava seriamente nisso. Só
contaria o segredo quando estivesse pronto o filme. Talvez por isso o
filme não tivesse sido concluído, embora já totalmente rodado. Eu tenho
umas duas horas de material das cenas do Nordeste de Welles. É impressionante. Parece Flaherty, Murnau, um pouco Eisenstein. Sugere
muito do cinema que veio nascer depois. Lembra Barravento, de Glauber, Rio Zona Norte, de Nelson Pereira dos Santos, e o cinema brasileiro
43 Entrevista a Fernando Spencer publicada no Diário de Pernambuco, sábado, 7 de
dezembro de 1996.
Alô alô Rogério Sganzerla!
que se fez nos anos 40.
Além do longa Nem Tudo é Verdade, que
você realizou entre 1980 e 1986, trabalho
arqueológico de acompanhar os passos de Orson
Welles quando esteve no Brasil nos anos 40 para
rodar It’s All True, você fez ainda um curta. Conte como foi isso.
- Fiz um curta sobre a linguagem, mostrando só o poder da linguagem,
os planos-seqüências e usando também aquele sistema referencial de
som que tem Os Cafajestes, de Ruy Guerra, a voz em off, um programa
de rádio entrecortado com uma cena sobre a construção da Base Aérea
de Natal e alguns esforços significativos do ponto de vista de linguagem.
Mas esse não. É uma revista, um magazine mostrando todas as fotos,
todo o material, os programas de rádio brasileiros, todos os aspectos,
algumas cenas dos filmes, os desenhos que Welles fez no Brasil, enfim,
uma série de surpresas que vai agradar a todos, como você, que conhece
a real importância de Orson Welles integrado na nossa tradição.
Como foi o apoio oficial para Tudo é Brasil?
- É um filme maduro, adulto, que já mostra um domínio e ao mesmo
tempo objetividade com a informação, sobretudo a trilha sonora que eu
acho o ponto alto do filme. É maravilhosa. Nem americano, nem francês,
jamais conseguiria captar aquele clima de orquestra, os solos que esse
material propicia. Porque foi feito lentamente com grande sacrifício e
realmente nunca recebemos recursos, mas acreditamos no projeto ao
ponto de gastar aquele pouco que a gente ainda tinha. O caso da Rio
Filme era garantir um contrato de distribuição e também de home video,
mas ela se encarrega dos custos operacionais (laboratório, som). É fundamental que as pessoas sejam pagas (os recursos humanos), mas como
é uma repartição, uma autarquia, a gente às vezes é obrigado a se
submeter aos critérios dela. Mas como se vê tanto filme que não tem a
qualidade desse trabalho, dá uma certa decepção com relação à política
geral da Rio Filme. Não no meu caso. Acho que está aí um dos desperdícios. Quer dizer, para quem faz filmes tão primários, tem um
montador pago, assistente e tal. Esse, que é um filme internacional e
bem brasileiro, não tem. Há um clima de suspeição. Até o montador
falou: “Somos tratados aqui como uns bandidos, como marginais”. Não
é um filme de livre exportação, é uma revelação para o Brasil.
Concluído este trabalho, que nos parece tão sofrido do jeito como
136
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Fragmentos (de 1996 a 2003)
vem caminhando, quando vai sair o filme sobre Noel Rosa?
- Agora mesmo fui vítima da incompreensão. Porque tenho alguma
coisa filmada. Desde 1976/77, na mesma época em que comecei a me
interessar por Orson Welles no Brasil, passei a estudar as músicas, a
discografia de Noel, promover um levantamento. Entrei em contato com
Almirante, com o biógrafo Jaci Pacheco, primo do Noel, e então fui
registrando e acabei ao longo dos tempos conseguindo fazer um curta e
um média metragens, ambos realizados em condições bem profissionais.
Os filmes me agradam bastante, porém jamais aquele projeto que eu
tinha desde o início, que ia contar uma história, um melodrama poético.
A tal comédia dramática?
- É. Eu tinha inventado uma expressão na época que hoje não é
mais novidade: uma comédia dramática. Noel, além de ser um grande
pensador, um filósofo do samba, basicamente foi um humorista, uma
pessoa cheia de graça constante, gozador, brincalhão e vivendo intensamente a cada segundo. Isso o roteiro refletia, com fontes fidedignas,
baseado em fatos reais. Vou montar uma história que mostra a relação
dele com a música, com as namoradas. Namorava uma de manhã, outra
à tarde e outra à noite. Ele acordava às cinco da tarde e ia dormir ao
raiar do dia. Passava o dia sem comer, com aquele problema de mastigação que veio agravar sua saúde. Ao mesmo tempo, ele tinha um grande
sentido da compaixão pelo ser humano. E até com os animais. Por
exemplo: ofereciam a ele alguns pastéis, mas não os comia em público,
a não ser diante de alguns amigos. Quando assim não agia, ia botando
os pastéis no bolso e de madrugada, quando chegava em casa, primeiro
olhava se os cachorros já estavam esperando, para ele passar com os
pastéis. Além dos cachorros, os gatos também.
Fale de seus novos projetos.
- Para o ano de 97 tenho outro filme, em produção, certamente. É
Sob o Signo do Caos. O fundamental é ter o roteiro registrado, os direitos
autorais assegurados, enfim, essa formalização e análise da produção.
Vamos ver se novos ventos melhoram. Precisamos de sorte, não é? A
gente tem que torcer para que tudo dê certo. Agora é fundamental o
apoio do poder público como em qualquer país é decisivo e também dos
empresários. Que a iniciativa privada acredite no cineasta brasileiro.
Todo comerciante tem que partir desta confiança, já que o burocrata
parte da desconfiança.
137
Alô alô Rogério Sganzerla!
Tudo é Brasil – Justificativa
44
O grande Grande Otelo em Tudo é Brasil
TUDO É BRASIL é um caso mítico como filme de cinema. Ainda
envolto em incertezas e circunstâncias aparentemente inverossímeis
reveladas em respeito a verdade e ao fascínio de uma personalidade –
essencialmente contraditória – que criou seu próprio tempo e assustou
o Brasil, agindo como um indivíduo que carregava uma multidão.
Memória histórica e visual da cidade do Rio de Janeiro, TUDO É
BRASIL é mais que um filme, é feito de pedaços de tudo que se passou,
encontrando um caminho que permite seguir adiante – trata-se de um
caleidoscópio sonoro – sobre a transformação dos anos quarenta.
Seqüências rigorosamente inesquecíveis – até então dadas como perdidas
– fazem parte do repertório audiovisual.
A meta é reconstruir o passado à luz das inquietações atuais, reconstruindo um momento importante, período ou processo da nossa
história recente – mas já distanciado pela ação do tempo – tendo como
44 Do projeto do filme Tudo é Brasil, 1997. O termo “justificativa”, de uma flagrante
idiotice, não é de Rogério, claro, mas uma imposição da Lei Ruanê e seus Amnésioos
formulários.
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Seção 2
Fragmentos (de 1996 a 2003)
inspiração um fato real cheio de significação.
Afinal, apresentamos audiovisual histórico – sons e imagens da época
– sobre um mito do cinema, um dos ícones de nosso tempo, preocupado
em refletir e valorizar as origens da nossa cultura tropical. Orson Welles
além de tudo despertou o nacionalismo. Filmou nossa realidade escondida, tirando-a de debaixo do tapete, encantado com a espontânea criatividade do povo brasileiro.
Nesse filme, de caráter internacional, o Brasil é visto como um laboratório de idéias e a força motriz é o Rio, o espelho do país, a capital
cultural. O longa metragem, nada mais é que um caso de amor não
correspondido entre o nosso país e o maior cineasta do mundo.
Essa é uma das mais desconhecidas e polêmicas histórias sobre um
dos mitos essenciais de nosso tempo. Para o Brasil, é a causa. Todo o
resto que lhe advém e todos os cineastas brasileiros de todas as épocas
praticamente lhe devem tudo.
O filme é um espetáculo de brasilidade. Uma lição para nunca mais
ser esquecida, uma produção de uma hora de eternidade e meia de
instantâneos. Além de imagens de época – inéditas e rigorosamente –
TUDO É BRASIL mostra um jeito de ser bem brasileiro, filmando-o
criativamente. Além, é claro, da trajetória desse grande cineasta.
Um bate
-papo entre Sylvio R
enoldi e
bate-papo
Renoldi
Rogério Sganzerla
45
Quando a gente começou, a gente já começou rindo, não é, Sylvio?
45 Segundo o site onde colhi este material, participaram do encontro Alessandro Gamo,
Luís Alberto Rocha Melo e André Francioli. A conversa foi registrada em imagem e som
para o documentário O Galante Rei da Boca, rodado em julho de 2001, São Paulo. O
site só “apresenta os trechos em que Sganzerla e Renoldi falam sobre aspectos gerais
do cinema, bem como sobre as respectivas carreiras e os trabalhos realizados em
parceria”. Como a qualidade da transcrição ficou péssima, preferi omitir o nome do responsável. Na minha opinião, a fita deve ser retranscrita para a edição final. A partir do
material capturado no site fiz o que pude, mas o resultado ainda não é satisfatório.
139
Alô alô Rogério Sganzerla!
Rogério Sganzerla - Uma vez o Alberto Cavalcanti falou assim pra
mim: “Vou te falar uma coisa”. Eu digo: “não, eu já sei”. “Mas o que é
que você já sabe?” “Você vai dizer três coisas: que aqui o pessoal empurra um carrinho e já quer ser diretor, ninguém quer ser produtor, todo
mundo quer dirigir; que as máquinas são as mais mal-tratadas do mundo,
e que com isso não se tem o respeito pela técnica”. Aí ele disse: “É,
exatamente isso, como é que você sabe que eu ia dizer isso?” É porque
eu li o livro dele, Filme e Realidade, que nasceu do curso que veio dar
no Brasil. E dali veio a Vera Cruz, a Maristela, a Multifilmes... Sylvio,
conte um pouco da Maristela, você era vizinho, quer dizer, aquilo na
cabeça da criança, você vendo aquele mundo, os estúdios...
Sylvio Renoldi - A Maristela era vizinha do terreno da minha avó,
era uma fábrica de ácidos. Essa fábrica fechou e aí começou a reforma
pra fazer um estúdio de cinema. E eles fizeram uma grade que dividia a
Maristela do meu terreno... Eu era moleque, tinha nove, dez anos, e
ficava enchendo o saco, conhecia as pessoas que trabalhavam lá, que já
eram conhecidas minhas do bairro e que foram trabalhar lá. Eu ficava
ali, às vezes tinha uma coisa assim: “ah, vamos fazer a voz de uma
criança, um filme, não-sei-o-quê”, eu ia lá no estúdio. Daí fui pegando
amizade, eu vivia dentro do estúdio, entendeu? Estava sempre num
lugar, no outro, até que um dia, em 1951, um cara falou “por que é que
você não vem trabalhar aqui em vez de ficar enchendo o saco aí no
estúdio?” Foi quando comecei a trabalhar na sala de montagem lá da
Maristela. Nessa época conheci o Cavalcanti, que estava terminando
Mulher de Verdade.
Sganzerla - O Mário Civelli era uma grande figura. Os jornais criticavam, mas era uma figura fabulosa... Depois ele virou distribuidor e
ganhou uma fortuna com aqueles filmes tchecos, filmes italianos, de
faroeste, quer dizer... ele tinha visão. Agora, nos livros, o que se fala
sobre ele é que era só um assistente do Roberto Rossellini e que quando
passou o Roma Cidade Aberta não tinha o nome dele... mas isso não é o
importante... ali na Itália, imagina, ainda é mais confuso que o Brasil,
então... o próprio Rossellini era um fake, não é? E o Civelli gostava de
cinema, ele entendia de distribuição, ajudava as pessoas... Assim como
o Marinho Audrá. Eu me lembro que ele dizia: “Você vai fazer seu
primeiro filme, você faz aqui na Gravasom de graça.” “Mas por quê, um
curta, de graça...?” “Não, você pode sonorizar, porque nós sabemos que
140
Seção 2
Fragmentos (de 1996 a 2003)
você depois vai voltar aqui...” E
isso realmente acontecia, e nos
estúdios da Odil Fono Brasil também. Todos os filmes pagavam o
mesmo valor, parece que dez
milhões. Você pagava depois do
filme pronto. Você podia trabalhar o que quisesse, tinham duas
moviolas pra atender a oito, dez
Sylvio Renoldi
produções. E nunca houve problema, porque se precisasse, se aparecesse
filme de publicidade, por exemplo, aí se parava, cedia-se os espaços,
havia um intercâmbio, era esse o espírito das produtoras da década de
50...
Renoldi - Era uma grande família, todo mundo ajudando um ao
outro, não tinha essa picuinha aí...
Sganzerla - Havia amizade. Não havia a desconfiança, o desrespeito...
Alessandro Gamo - E o trabalho na Boca do Lixo?
Sganzerla - O Sylvio nunca aparecia lá, aparecia raramente...
Renoldi - ... só quando eu montava os filmes... Eu ia lá montar os
filmes da Servicine [produtora de Antonio Polo Galante e Alfredo
Palácios]. Montava na moviola da Servicine. Mas muitos filmes da
Servicine eu montei na Odil, porque ficava mais perto do estúdio, você
gravava e ao mesmo tempo montava a cena, entendeu?, o som...
Sganzerla - O que o Sylvio fazia na moviola era impressionante. Ele
era capaz de fazer você dizer a mesma coisa, e inverter, cortando os
magnéticos, ele tinha um domínio... e também com a moviola, se
precisasse extrair um som ótico, ele criava uma instalação e fazia, ele
era muito amigo do técnico...
Renoldi - E o dia-a-dia na Boca era normal. Puta misturado com
ator, ator misturado com puto, era o Massaini que ficava lá de cima, era
o outro cara que ficava lá embaixo... Tinham as produtoras mixurucas,
tinha o Tony Vieira, tinha um monte de produtoras ali, tinha o Renato
Grecchi... então, quer dizer, eram pessoas que arranjavam um dinheirinho
e faziam filme, entendeu? Me lembro que o Renato Grecchi fez um
filme com o Carlão Reichenbach chamado Corrida Em Busca do Amor
e, porra, os caras não tinham motor! Então tinha que ficar cinco neguinhos
141
Alô alô Rogério Sganzerla!
na esquina empurrando o carro porque não tinha motor! E daí o carro
passava, terminava a cena, puxavam o carro de novo... um filme de
corrida com carro sem motor! Então, quer dizer, uma loucura... Mas o
pessoal fazia cinema. Filmavam com filme velho, com filme novo...
Sganzerla - Tem uma história interessantíssima do Bandido... na
ocasião eu falava: “não interessa o cinema, mas a profecia”. Eu escrevi
o filme antes de haver a história do João Acácio [o verdadeiro Bandido
da Luz Vermelha]. Eu estava na Europa, quando cheguei eu disse: “pô,
mas está acontecendo, o roteiro que eu estou escrevendo está acontecendo!”. Mas aconteceram muitas outras coisas assim: nós estávamos
quase no rolo seis ou sete, pra mixar, e eu cheguei de manhã no estúdio,
eu me lembro que era um sábado, de manhã, e de repente eu ouvi uma
metralhadora - tararararararara - eu digo “pô, tá lá o Sylvio de novo
revendo os ruídos”, porque ele é um montador interessado, é como se
fosse um trabalho dele. E eu falei: “mas não precisa, tá tudo certo, vai
começar a mixagem agora...” Mas só que a metralhadora não era do
filme, que dizia assim : “Militares estrangeiros são metralhados na porta
das suas residências...” Eu digo: “porra, mas isso aí... Por que é que o
Sylvio tá revendo...” Não era do filme, não. Era na frente da Odil Fono
Brasil, estacionaram um carro...
Renoldi - ... estavam metralhando...
Sganzerla - ... pegaram um cara que era aquele capitão Chandler...
Renoldi - ... que morava na casa da Hebe... Os caras metralharam
ele ali na porta, duas casas depois da Odil. Nós estávamos preparando
justamente o rolo que íamos fazer, o que dizia “metralhados na porta de
sua residência, não-sei-o-quê...” Porra, e lá fora pá-pá-pá, comendo
fogo... É coincidência, né?, mas...
Sganzerla - Nós chegamos lá, ele estava ainda vivo, era até uma
cena, a mulher, com a criança, o livro que ele tava lendo e ele agonizante...
e você foi o único que viu o atentado, Sylvio, foi um fusca que trancou,
na saída da garagem... e aí apareceu um repórter, veio a polícia...
Alessandro - Sylvio, você chegou a dar alguma dica na montagem
do A Mulher de Todos?
Renoldi - Não, não... não participei, não...
Sganzerla – O Sylvio não pôde, eu pedi muito que o Sylvio montasse,
mas ele estava assoberbado de trabalho, então sem que eu soubesse, ele
142
Seção 2
Fragmentos (de 1996 a 2003)
disse: “sim, mas isso é uma mina, e tal”... talvez pela ousadia do tema...
Naquela época, um filme paulista sobre o final de semana, como era
nas praias, um filme domingueiro, um “melodrama-de-beira-de-praia”,
como eu chamo.
Renoldi - O Rogério estava com dificuldade pra fazer o A Mulher de
Todos, dificuldade pra continuar. Então eu convenci o Galante a entrar
em contato com o Rogério pra ver se dava pra dar um toque, já que ele
tinha vários projetos, e foi quando eles se acertaram e fizeram o filme.
Mas eu nem participei desse filme, eu estava muito ocupado. O Rogério
montou o filme com outra pessoa...
Luís Alberto - Quem foi o montador?
Sganzerla - O Franklin Pereira... Ele deixou o filme curto demais.
Quando chegou a versão final, o filme estava com menos do que a
minutagem necessária. Aí eu digo: “não, eu vou dar um jeito, pegar
todas as sobras e dar um jeito aqui, fazer mais um rolo...” Talvez pela
escola de comercial do Franklin, ele foi cortando, cortando... Mas aí
fizemos um rolo, que é exatamente o rolo que as pessoas mais elogiaram,
que é aquele negócio do “paga uma cuba, bem”... O próprio Paulo Emílio
confessava que viu várias vezes o filme pra ver aquela cena, que na
primeira versão não estava. Eu tive que dublar, o estúdio tinha sofrido
uma reforma, estava com outra qualidade sonora. O filme é audível,
você entende todas as piadas, tem umas dez, quinze piadas ótimas. O
Jô, que está muito bem, o Jô Soares... O Franklin copiava um pouco o
estilo do Sylvio. Eu acho que o Sylvio, na montagem do Bandido, criou
um código de montagem que imediatamente todos os outros se colocaram
nessa expectativa de dar um novo tratamento, também quanto ao som não precisar de tanto ruído de sala, valorizar a música com o diálogo,
ter várias músicas ao mesmo tempo... E também o bom humor que a
gente tinha na sala de montagem acho que passou pro filme, que se
mantém atual até hoje porque foi bem editado, que é um aspecto crucial
do nosso cinema...
Renoldi - Bem anárquico, né?
Sganzerla - O Sylvio participava das gravações, dos textos do
Bandido. Quando chegavam aqueles locutores - uma delas era uma
velhinha, lá no estúdio, que ninguém queria trabalhar com ela. “Mas é
essa!” Aí você disse: “Você vai estragar o filme...” “Não, eu preciso de
uma voz assim...” E quando ela começava a ler aquilo eu tinha que sair
143
Alô alô Rogério Sganzerla!
da sala, que eu começava a dar risada - era uma sátira anárquica, como
você disse...
Renoldi - Se você não chamasse ela de senhorita ela não gravava...
(risos) “A senhorita pode começar a gravar?”
Sganzerla - Eu acho que todos nós devíamos ter feito mais filmes,
devia ter mais produção, cinema é uma atividade cara, enfim, eu acho
que depende muito das relações... Com relação ao Sylvio, nós temos
que agradecer, os filmes que a gente conseguiu fazer foi através da
amizade, da consideração, do respeito. E a gente fez um também sobre
o Noel Rosa que era fantástico, eram os 80 anos de nascimento, com o
João Gilberto cantando Noel Rosa, e o Noel aprendia a fazer a famosa
batida com o irmão do Noel Rosa, o Hélio Rosa. Então era um material
- a Gal Costa, todo mundo fez - e foi um lançamento bom, lá no Banco
do Brasil, mas o filme... O Sylvio gastou uma pequena fortuna, o filme
foi dublado, traduzido, e tudo... E aí no Festival resolveram passar dentro
do hotel, e não na sala, porque esse filme era média-metragem... quer
dizer, eles nem passaram o filme... Isso só podia ser uma represália,
uma represália pelo fato de eu ser crítico... Você falou muito bem, Sylvio,
o Massaini ficava lá em cima, vendo todas as pessoas filmando... Nós
estávamos filmando o Bandido, chegou esse repórter, que estava na
história do Chandler, aí eu disse: “ó, você vai ver agora, o que está
acontecendo aqui na rua, lá dentro do estúdio, isso nós temos e está há
meses pronto.” Aí ele ficou espantado. E esse mesmo repórter fez uma
entrevista com o Massaini e disse: “está vendo aquela filmagem lá
embaixo?” Era eu, mais uma pequena equipe filmando um cara
carregando um carrinho de latas de filmes... O Massaini diz: “Esse filme
não vai passar nunca!” E o repórter imediatamente veio me dizer: “olha,
eu estive com esse grande produtor, ele disse que esse seu filme não vai
passar em lugar nenhum”. Aí eu pensei: “O Massaini vai ser talvez o
primeiro a ir no coquetel de lançamento”. E aconteceu exatamente isso.
Quando o filme ganhou oito, dez prêmios em Brasília, fizemos no Othon
Palace um coquetel, ele foi lá me abraçar, e tal. Depois eu conheci
melhor o velho Massaini, era uma figura muito legal, entendeu?, era um
profissional, enfim...
Sganzerla – Eu me lembro quando a gente se encontrou, o Sylvio
estava fazendo os ruídos do Grande Sertão, Veredas. O pessoal jovem, o
Sylvio acolhia muito bem, na Odil Fono Brasil, que tinha uma excelente
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Seção 2
Fragmentos (de 1996 a 2003)
equipe. E ali também se fazia rádio, gravava-se programa de rádio... o
Benedito Ruy Barbosa escrevia novelas pra rádio e o Sylvio já produzia
e montava esse filmes. O filme importante foi o Bebel, Garota Propaganda [Maurice Capovilla, 1967] porque era um filme paulista voltado
pro pessoal que veio da imprensa. O Roberto Santos, que é praticamente
irmão da gente, grande figura do cinema paulista... o Bebel foi dirigido
pelo Capovilla, que era meu companheiro no Jornal da Tarde, a gente
escrevia lá na segunda-feira, sobre todos os filmes que tinham entrado
em cartaz, então tínhamos que ver um monte de filmes na segunda, e na
terça enchíamos umas páginas inteiras, e o Bebel foi um filme que tinha
um elenco muito bom, a montagem, e uma produção, que, enfim... e o
passo seguinte foi o Bandido. Eu acho que o Roberto Santos empurrou
bastante o projeto, e tudo... quando a gente começou, a gente já começou
rindo, não é, Sylvio? As primeiras piadas... uma quantidade enorme de
material rodado...
Renoldi – O Rogério sempre faz a mesma coisa, ele chega sempre
com o filme numa mala. (risos) Traz o filme todo despedaçado numa
mala pra... então... O Bandido da Luz Vermelha era um filme interessante,
que, aliás - devemos falar -, tinham umas pessoas que não queriam...
Sganzerla - ... nem que fosse feito, quanto mais exibido...
Renoldi – É... quanto mais montado! Então picharam: “como é que
você vai montar um filme de um louco”, não-sei-o-quê... E eu falei, “é
um filme de louco e nós vamos montar como ele foi feito”. E foi o que foi
feito, o filme era louco e a montagem foi feita loucamente, tanto é que
até hoje é um filme moderno. Na época era uma loucura, ninguém
admitia. Pelo ranço que se tinha, do modo como todo mundo fazia cinema: Khoury fazendo cinema estrangeiro no Brasil, o Biáfora tentando
fazer um cinema estrangeiro também no Brasil, não-sei-quem fazendo,
pichando... então, quando mudava a coisa, era muito difícil você se
manter. Essa que foi a vantagem, se conseguiu, com o Bandido, fazer
um cinema brasileiro. Aquela porcaria era brasileira, não era imitação,
tentar imitar o cinema estrangeiro, Bergman e outros bichos aí que eles
queriam. Então foi uma época que deixa saudade, que não vai voltar
mais mesmo... E se o Brasil não mudar a postura de leis como tinha nos
anos 70 e 80 e se fazer cumprir, não vai existir mais cinema brasileiro,
vão existir esses negócios: dando um tiro no escuro aqui, outro lá,
desafiando os caras na sombra... mas abertamente não vai existir. Ou
145
Alô alô Rogério Sganzerla!
então, algum milionário aí que dá uma grana pro filho fazer um filme.
Faz um filme só, nunca mais faz nada, e aí fica nessa ilusão: “ah, o
cinema nacional agora vai”. Vai nada! Se não houver um apoio do governo
pra valer, não existe cinema. E não existe cinema em nenhum lugar do
mundo, se não tiver uma proteção do governo. Taí o Rogério: o Rogério
é um diretor que teve êxito, não é dos diretores que não faz nada. Fez
filmes bons e não tem chance. Está aí, gramando pra fazer uma porcaria
de um filme, não tem chance, ninguém ajuda...
Sganzerla – Você ajudou muito... Enquanto não houver a revalorização do elemento profissional... quem faz o cinema são os técnicos,
os profissionais, os diretores, os montadores, e não os burocratas. Tem
alguns servidores, funcionários, que são prestativos, e tal, mas temos
exemplos de burocratas que substituíram a censura oficial, aquela censura do momento mais difícil, que substituem desestimulando o trabalho,
aí eu acho que realmente... enquanto não houver essa revalorização...
como o Sylvio diz, em qualquer país do mundo, o governo deve dar
alguma parte de apoio. Nós não estamos aqui pedindo dinheiro, estamos
pedindo mais justiça, porque não há o elemento intérprete disso...
Renoldi – Pelo menos uma exibição garantida, né? Isso é o mínimo.
Sganzerla – Por exemplo, o Sylvio tem grandes idéias... Além de ser
um amigo, um profissional, um produtor associado, é um roteirista, um
argumentista, ele bola grandes piadas, idéias, gags... Isso não tem preço.
Agora, vai-se filmar, tem aí parque de luz, material... Mas o que é que
adianta filmar, fazer o quê com o filme? A funcionalidade, o uso desse
produto...
Renoldi – Exibir aonde? Você faz um filme e não tem lugar pra
exibir. Não tem um cinema, não tem nada. Tem cinema de shopping, um
camarada faz dez cinemas aqui, vinte lá, mas você não passa, o filme
não passa em nenhum lugar. Pode desistir. Quem tiver idéia de fazer um
filme, enquanto não tiver uma proteção grande pro cinema, não vai fazer
filme. A única coisa hoje em dia que um produtor faz - que é a malandragem - é ganhar na produção. Faz um orçamento de cinco paus, gasta
dois, pega três e bota no bolso, e fica morrendo de rir dos otários que
ajudaram a fazer e pastaram. Essa é que é a realidade.
Sganzerla – E esse é um dos prêmios que a burocracia oficial nos
impôs, que é criar pequenos agregados... são filmes de colegas, de
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Fragmentos (de 1996 a 2003)
amigos, de companheiros de classe - de classe nos dois sentidos, e
acredito que não há muita classe cinematográfica nisso, porque o roubo
é sempre negativo.
Alessandro – Sylvio, você poderia falar das produções que você
participou com o Galante, que você montou?
Renoldi – Ah, eu montei uma série de filmes... O Cangaceiro Sem
Deus [Osvaldo de Oliveira, 1969], O Cangaceiro Sanguinário [Osvaldo
de Oliveira, 1969], As Deusas [Walter Hugo Khoury, 1972], Sertão em
Festa [Osvaldo de Oliveira, 1970], Rancho Fundo [Osvaldo de Oliveira,
1970]... aliás o Sertão em Festa foi o filme que deu mais dinheiro pro
Galante, um filme sem muita pretensão mas que entrou na linha do
Mazzaroppi. E depois, também... é, eu fiz uns dez filmes com o Galante,
fiz uma co-produção que foi O Pornógrafo, com o João Callegaro e o
Osvaldo de Oliveira.
Sganzerla – O Pornógrafo, como é que nasceu O Pornógrafo, Sylvio?
Renoldi – Isso foi idéia do João Callegaro, fazer a história de um
imigrante que pastava na cidade paulista, mas isso... era uma coisa
bem do João. E depois... Nós fizemos um filme de gozação que era o
Rogo a Deus e Mando Bala [Osvaldo de Oliveira, 1970], que era um
bang-bang. A gente estava com saco cheio de western-spaghetti, então
nós fizemos esse filme... a gente se dava ao luxo de fazer uma besteira
dessas... Mas na realidade o que nós vamos dizer é o seguinte: nunca,
nunca, o dinheiro que entrou no cinema ficou no cinema.
Sganzerla - Não foi reinvestido...
Renoldi - Não foi reinvestido. Primeiro que eu acho que era pouco,
entende? E mais se perdia pelo caminho.
Sganzerla - Na sonegação...
Renoldi - Na sonegação, na exibição...
Sganzerla - É a falta de uma fiscalização como o Mazzaroppi tinha.
Quando os filmes viajavam, ele mandava um fiscal, uma pequena despesa
para... aí vinham os caminhões, enchia de gente... os filmes se pagavam
amortizando na cidade de São Paulo, que tinha um mercado maior do
que a França inteira...
Renoldi - Eu calculo que naquela época o desvio era entre 80% e
90% da bilheteria. Só quando o filme dava muita grana mesmo é que
147
Alô alô Rogério Sganzerla!
aparecia algum dinheiro, mas quando era produção média, assim, não
aparecia nunca.
André Francioli - E você, Rogério, como é que você vê essa decadência do cinema que vocês apontaram aqui?
Sganzerla - Vejo uma decadência provocada pelo intelectualismo
de alguns “responsáveis” - entre aspas - que foram convocados para
incentivar o cinema nacional e, na verdade, substituíram a censura.
Substituíram através do princípio da exclusão: “Não, você não pode,
você pode, aquele pode”... Geralmente o que podia era o coleguinha da
classe... Então se tornou o cinema familiar, uma coisa mafiosa, que nunca
é positiva...
Renoldi - E existe o problema internacional, também. Se o Brasil
faz uma lei, os caras dizem: “ah, nós vamos proibir o café, vamos proibir
isso, proibir aquilo” - então o cinema nacional sempre foi um mercado
que eles quiseram ter na mão, como têm hoje, entendeu? Então eles
fazem qualquer coisa, porque eles se protegem muito. Agora nós, aqui,
é chumbo grosso em todo o cinema, não tem proteção, não tem nada,
porque existe uma pressão. Quantas vezes os caras chegaram e disseram:
“Não é possível que um filme brasileiro dê mais que um filme que
gastou cinqüenta milhões de dólares”. Os caras não se conformavam.
Hoje eles estão como querem: todos os cinemas estão com contrato,
eles vêm de lá já com a exibição garantida e o cinema nacional taí: não
tem lugar. Não tem mesmo. Rogério tá querendo fazer um filme? Eu
quero ver - vai exibir aonde esse filme?
Sganzerla - É mais fácil no exterior, tem que fazer os filmes de
prestígio...
Renoldi - O negócio agora é: se tiver que fazer um filme tem que
fazer em inglês, em espanhol, em qualquer língua, menos em português...
Sganzerla - Agora, o sucesso dos filmes brasileiros estava sempre
baseado no custo do ingresso baixo, o que favorece a fita brasileira.
Quanto mais alto o ingresso, menos público. A quantidade é que vai
gerar a qualidade - e o ingresso baixo.
Renoldi - Naquela época também tinha o incentivo do ingresso.
Então, quando você fazia um “x” de renda, você recebia uma grana
limpa do...
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Seção 2
Fragmentos (de 1996 a 2003)
Sganzerla - ... do serviço de arrecadação. É uma coisa que a prefeitura
de São Paulo fez nos anos 50, em 1955, a Lei do Adicional. Mas não
assim: “ah, vamos dar pra um, pra outro”, não: conforme a bilheteria
você ganhava 10% a mais do governo, quer dizer, um incentivo dependendo do resultado dessa venda de ingresso. E quando o filme tinha
uma categoria melhor, quando era um diretor bom, etc., aí às vezes
dava, por exemplo, 25%, e se tornava um grande negócio, mas era em
função do trabalho, do resultado, da performance, e não de premiações
exclusivistas... Hoje em dia o cara ganha pra trabalhar e já fatura antes
de trabalhar, porque não há um critério de avaliação dos filmes, não tem
ninguém que saiba nem avaliar os roteiros. Às vezes grandes projetos
são jogados no lixo, e continua se fazendo sempre aquele modelo errado
de filme, filme muito caro, pra ingresso caro - não é nem pão, nem
circo, não é nada, nem uma coisa nem outra. E quando isso ocorre é
ruim pra todo mundo. Eu acho que o cinema é uma atividade produtiva:
manter a língua, a imagem do nosso país, e ocupar uma parte desse
mercado. Já ocupou nas décadas de 1970 e 80, de trinta a quarenta por
cento... É porque lá fora o exibidor fica com 10%; 90% vai pra produtora.
Aqui é o contrário, é 90% pro dono da sala e 10% pro produtor... Na
verdade 25%, 30% do bruto - quer dizer, você descontando cartazes,
cópias, serviço de lançamento, anúncios, você fica sempre com pouco...
Alessandro - E essas mudanças de ritmo, de linguagem, que vocês
estão vendo, em relação ao cinema, de uma época para cá?
Renoldi - Não, linguagem não mudou nenhuma. Eu acho que os
filmes ficaram é muito ruins, entendeu...? Acho que não mudou nada.
Os filmes é que são muito ruins, é uma TV de baixa qualidade que estão
fazendo, esse é que é o problema...
Sganzerla - Exatamente...
Renoldi - Alguns filmes são bons, mas... um ou outro, o resto é tudo
piada.
Francioli - Como é que você vê o alcance estético dessa produção
atual, Rogério?
Sganzerla - Eu penso como o Sylvio acabou de dizer, eu acho que é
uma piada onerosa, pra todo mundo... Por exemplo, acham que um filme
pra ser bom tem que ser chato. Não necessariamente... Então, às vezes
os filmes pra serem sérios tem que ser aquela coisa cansativa. Eu vejo o
149
Alô alô Rogério Sganzerla!
contrário, eu acho que falta ritmo, faltam gêneros, criar modelos,
standarts, qualquer tipo de filme pode ser bom, desde que se faça com
o cuidado que a coisa necessita: uma boa planificação, objetividade,
trabalho de equipe, um produtor que dê condições de você trabalhar
livremente... O que tá faltando, também, é que as histórias são mal
escritas. Você pega um livro deste tamanho e faz, mas aí não houve a
transposição. E faltam dialoguistas, quais são os dialoguistas que têm
aqui no Brasil? Tem alguns que estão lá no rádio, na televisão, não sei,
nós não temos nem isso - dialoguistas - temos dois, três. Devia se gastar
mais papel e menos película. Agora, eu acho que os filmes são muito
chatos porque tentar copiar a televisão é errado. A televisão é que deveria
copiar o cinema, porque a televisão não tem nem o traquejo, mesmo
com os recursos técnicos e com as equipes você vai estar sempre sendo
sub-produto, não é por aí... Não vamos copiar os defeitos, vamos copiar
as qualidades. E depois tem esse princípio da exclusão... Tem que
valorizar o profissional... quem fez o cinema foram os profissionais, os
técnicos, os fotógrafos, os montadores... A montagem é o grande aspecto,
não é um aspecto, é o aspecto do filme - não sou eu quem digo -, mas
pra conseguir isso é preciso ter um assistente, precisa ter uma preservação, precisa ter um certo - não digo conforto, mas um mínimo... E
esse mínimo sempre foi negado pelas figuras que comandam aqui essa
“indústria”, entre aspas, que não é nem arte nem indústria - não é nada.
Agora a televisão quer entrar no mercado com os incentivos fiscais. Eu
acho isso um absurdo, porque a televisão são as maiores fortunas do
país, eles têm minas de ouro na Amazônia... Se eles quiserem entrar e
fazer cinema com o dinheiro deles, correto, perfeito, agora - não com o
dinheiro que deveria ser dos independentes, não com incentivos fiscais...
Quer dizer, criou-se um impasse: se eu quiser trabalhar na televisão
não me aceitam. Mas o que é que esse pessoal tá fazendo agora? Eles
estão se dirigindo a esse mercado, multiplex, e criando toda uma
imposição. E eu acho que vai continuar um cinema capenga, um cinema que não é o verdadeiro... não é cinema, isso, também... Não é nem
comércio nem arte...
Renoldi - Hoje a produção que existe é a produção de comercial: se
faz com o cheque na mão, entendeu? O camarada diz: “preciso daquela
mala lá”. O camarada vai lá, faz um cheque e traz a mala. Quer dizer,
você vai fazer um longa-metragem desse jeito, pô? É pra ir pro buraco...!
150
Seção 2
Fragmentos (de 1996 a 2003)
Antigamente você ia lá, convencia o camarada, o camarada ainda trazia
pra você o negócio, depois vinha buscar e te agradecia, e dizia: “só
quero uma foto da cena”. Hoje em dia não, hoje em dia é tudo com
cheque na mão, pô! Qualquer coisa que você vai fazer é com cheque na
mão, isso é fazer produção? Isso qualquer idiota faz! “Preciso filmar lá
no museu” - chega lá no museu e diz: “olha, eu tenho aqui cinco mil
pra...” “ah, tudo bem.” Pronto. Quer dizer, pô... “Ah, mas pra pegar
aquele baú lá vai custar mais mil”. Então quer dizer: qual produção
que vai agüentar isso?
Sganzerla - É verdade. E comercial demora dez dias, cinco dias...
Renoldi - Não, um dia!
Sganzerla - ...um dia... Agora um longa-metragem são meses...
Renoldi - ...não, e o comercial é financiado! Então você tem um
orçamento pra gastar no comercial, agora - produção de comercial em
longa não funciona. E nós estamos reduzidos a isso. Se você quiser
fazer a produção de um longa, você vai ter produtor de comercial. Então...
Sganzerla - É porque não se valorizou a figura do produtor. O Galante,
por exemplo, era um excelente produtor. Embora ele não fosse culto,
nem erudito, não tivesse uma biblioteca em casa, era um cara muito
inteligente, e hábil nas relações, até fascinava as pessoas - “vamos
trabalhar, vamos fazer”... Ele é quem deveria ter ocupado lá um cargo,
como foi, numa época, o Roberto Farias: um cara profissional, emergente
do meio, não um intelectual. Um crítico vai escrever sobre a ponte, ele
não vai ser igual ao engenheiro que fez a ponte... Tinha que se valorizar
a figura do produtor. Às vezes - isso acontece no mundo inteiro - um
mau filme resulta num intervalo, mas... deve-se ter a chance de se poder
voltar. Eu acho que o Galante está com bons projetos agora, com o Galileu
Garcia, com o Ícaro Martins, o Inácio Araújo, que é um cara que sempre
batalha no jornal pelo nosso cinema...
Alessandro - O Inácio Araújo começou com você, não é, Sylvio?
Renoldi - Era meu assistente...
Sganzerla - Tinha um cabelo desse tamanho...!
Renoldi - O Inácio, eu tinha que ligar pra ele e mandar vir trabalhar
senão ele estava na rua, porque ele tinha a mania de dormir de manhã.
Sganzerla - Ele tem cara de dorminhoco... (risos) Você tinha que
151
Alô alô Rogério Sganzerla!
chamar o assistente... quer dizer, você estava ensinando - talvez por
isso que ele consiga escrever tão bem, porque a montagem é um princípio
de organização das idéias, de identificação dos contrários...
Renoldi - O Inácio é um cara talentoso...
Sganzerla - Agora, devia se fazer, talvez, um trabalho que mostrasse
como era naquela época e hoje, Sylvio, estabelecer as relações... As
pessoas emprestavam latas de filme, eu me lembro... e sempre devolviam,
todo mundo se entendia ali... Eu acho que o Bar Soberano foi importante
ali, você armava produções...
Renoldi - Todo mundo se encontrava ali. Às vezes tinha quatro,
cinco mesas ocupadas, mas cada uma estava fazendo um filme...
Sganzerla - E havia a amizade, também... O João Callegaro era o
mais talentoso, das Libertinas [João Callegaro, Carlos Reichenbach,
Antônio Lima, 1968]. E O Pornógrafo, que foi idéia dele... E aí criou-se
aquela coisa de que filme preto-e-branco não podia ser lançado - isso
era um absurdo, pô, preto-e-branco... não se pode jogar fora as coisas,
assim, é preciso abrir o leque, mesmo. Eu vejo o pessoal premiado, os
cineastas oficiais, sempre dizendo “não, está totalmente aberto o cinema...” Mas não é, é sempre a mesma coisa, uma panelinha, você vê até
pelas designações das comissões...
Renoldi - Esse filme, O Pornógrafo, o Florentino Llorente chegou
num dia, estavam reunidos todos os exibidores do Brasil, ele era presidente... Ele sentou e falou assim: “Eu assisti um filme hoje que eu não
vou exibir e acho que ninguém deve exibir, chama-se O Pornógrafo”.
Nós ficamos dois anos pra exibir o filme...
Sganzerla - Eu nunca vi, eu sou amigo de infância do João Callegaro
desde os sete, oito anos de idade, nós já éramos amigos... Quer dizer,
você não poder ver o filme do amigo, de uma pessoa que você... Assim
também como o filme do Tonacci, eu fui ver na Itália - lá passa, como
uma obra-prima e tal... agora, aqui... Então tem alguma coisa errada,
teria-se que colocar isso em termos institucionais de se criar uma lei e
de se ter algum apoio indireto... E por que é que o Florentino não gostou
do Pornógrafo?
Renoldi - Sei lá, pô... Devia estar de mau-humor...
Sganzerla - Quer dizer, ele quis ser mais censor que a própria censura,
né?
152
Seção 2
Fragmentos (de 1996 a 2003)
Renoldi - Quem exibia os filmes no circuito Serrador era a mulher
do Florentino. Se ela não gostasse do filme, ninguém exibia o filme lá.
Aquela velha...
Sganzerla - Eu acho que quem sai perdendo é o país, as novas
gerações, as pessoas que gostam de cinema... Eu ando me dedicando
mais, não sei, à literatura... também eu acho que é tanta luta, que as
pessoas não merecem, você fica sofrendo, sofrendo, pra depois fazer
uma coisa que... eu acho que o que está sendo prejudicado é a própria
cultura, não há uma cultura cinematográfica orgânica no país, um
processo-cinema democrático. Eu acho que quem está prejudicando
são exatamente esses censores, que são os aparentes fomentadores e
que na verdade substituem a censura, eles fazem tudo pra derrubar um
projeto como, por exemplo, esse do Noel Rosa, que é um projeto interessante, porque está lá na epígrafe do livro do Alex Viany [Introdução
ao Cinema Brasileiro, 1959] - “o samba, a prontidão”, ou seja, a fórmula.
E por que não usar isso? Nós queremos fazer um filme mais narrativo,
comercial, agradável, mas... O apoio que a gente tem encontrado é
justamente dos técnicos, dos artífices, dos artesãos... Os burocratas têm
impedido, num certo sentido... Então não adianta os professores criarem
mais diretores no mercado, se os veteranos não são respeitados. Eu
acho que o fundamental é que quem veio antes tem uma certa primazia,
tem que se tirar o chapéu, pra quem fez... O Sylvio é um caso exemplar,
ele montou - quantos filmes? - mais de 80 filmes de longa-metragem,
sem contar...
Renoldi - Setenta e seis...
Sganzerla - Setenta e seis longas-metragens... É um número, quer
dizer, então não se pode perder o resultado dessa experiência, o valor da
experiência... Já ganhou vários prêmios, e tudo, mas o importante não é
o elogio, o importante é o trabalho! E no cinema brasileiro não há
continuidade, que é a base de qualquer cinematografia, o princípio da
continuidade...
153
Alô alô Rogério Sganzerla!
Todos os maus filmes já foram feitos
46
ESPECIAL PARA A FOLHA
Só o cinema pode ser uma janela enriquecedora sob o mundo,
sobretudo se tiver uma função científica, criativa e útil sem ser puramente
didática. Todos os maus filmes já foram feitos (faltam os inacabados) e
não existe história que já não tenha sido contada sobre a questão cultural.
Um grande artista é convidado pelo presidente e agora mesmo o
que acontece? Comparece imediatamente a birra de certa burocracia
acadêmica que diminui a questão (aparentemente insolúvel entre nós;
sem continuidade) que vai do lírico ao cômico, do didático ao satírico,
atingindo parâmetros pessoais, claro.
Quanto aos artistas, sofrem todo tipo de dificuldades. Apenas uma
minoria deita e rola; e sobre aqueles recai sempre a exigência burocrática
e a intermediação, acabando por constituir o apoio oficial em disfunção.
Ao contrário dos que se sentem melindrados por aquele abraço.
Espero de Gil uma planificação efetiva da questão criativa feita por
olhos e ouvidos livres, assegurando ao cinema a garantia de sua verdadeira natureza musical; cinema é ciência, técnica: ritmo e movimento,
gesto e continuidade. No caso, a tela diz tudo-cinema, pois é um ofício
quase artesanal que permite realizar tudo.
Mesmo o que parece impossível: projetos à altura da nossa realidade
social, realizando verdadeiras comédias sobre a fome, sem dever nada a
ninguém e conferindo aparência aos mais quiméricos sonhos. Para tanto,
planeja a produção... Não só melodrama e novelão. Isso não sou eu
quem diz, mas George Méliès, há um século, quando faziam tudo com
nada, usando imaginação a serviço da criatividade.
E hoje? Todos os maus filmes já foram feitos. Há enorme desperdício
e déficit cultural no modus operandi de certas comissões, por exemplo,
que não valorizam projetos, mas legislam em causa própria.
46 O site que publica este texto o dá como “texto inédito” de Rogério Sganzerla escrito
para a Folha de São Paulo, em 2002, após a indicação de Gilberto Gil ao Ministério da
Cultura. A data de publicação no site é 10/1/2004.
154
Seção 2
Fragmentos (de 1996 a 2003)
Ao contrário dos modelos da moda, é preciso valorizar a figura do
realizador independente sobretudo do diretor capazes de auferir divisas
culturais e econômicas. Poucos saberão oxigenar a geléia irreal tão bem
como Gil com a eficiência de seu canto. Tarefa espinhosa, mas necessária:
voltar às raízes sem provincianismos, máfias e exclusões. Necessário
reeducar nossas panelas globais (nosso cinema é quase uma ode ao
esquecimento, é preciso mudar muito) todos seremos testemunhas.
Sganzerla ironiza o balcão de favores do
cinema
47
“Os burocratas vêm liquidando com o cinema”, diz o diretor.
Enquanto aguarda o lançamento em DVD de O Bandido da Luz
Vermelha, o cineasta conclui O Signo do Caos, em que ataca a burocracia
cinematográfica.
São P
aulo - O ano promete ser marcante para o cineasta Rogério
Paulo
Sganzerla - enquanto aguarda o lançamento em DVD, previsto para
agosto, de sua obra mais significativa, O Bandido da Luz Vermelha, que
completa 35 anos de realização, o diretor de 56 anos pretende lançar o
16.º título de sua carreira: O Signo do Caos. E, como se trata de Sganzerla,
a contundência é visceral. “Meu filme é uma defesa do cinema”, diz.
Trata-se de um projeto de sete anos, que não foi inscrito nas leis de
renúncia fiscal e contou com o apoio da distribuidora carioca Riofilme,
que investiu R$ 280 mil na produção. A história se passa em uma espécie
de alfândega, em que funcionários ineptos, com o Dr. Amnésio à frente,
controlam a entrada e saída de todo material. Tudo não passa de uma
alegoria pela forma como é gerenciada a atual política do audiovisual
no Brasil em que, segundo ele, “as piores pessoas são responsáveis
pelo julgamento”.
Com isso, nomes importantes do cinema foram relegados a um plano
47 Reportagem de Ubiratan Brasil publicada em O Estado de São Paulo, sexta-feira, 6
de junho de 2003.
155
Alô alô Rogério Sganzerla!
secundário ao longo da história, impossibilitados de exercitar plenamente
seu talento. Sganzerla cita Anselmo Duarte, Alberto Cavalcanti, Watson
Macedo, Zé do Caixão como cineastas incompreendidos tanto pela
censura como pela burocracia cinematográfica. A inspiração começa,
na verdade, com seu ídolo, Orson Welles, que também não pôde controlar
a edição de It´s All True, rodado no Brasil nos anos 40 e deixado inacabado. “Desde aquela época, os burocratas vêm liquidando com o cinema”, critica o cineasta.
Ur
gência - Sganzerla foi obrigado a montar sua própria sala de edição
Urgência
a fim de realizar o trabalho nos detalhes previstos. Ele assumiu o projeto
em caráter de urgência, pois pretende exibir o filme nos festivais de
Gramado (julho) e Locarno (agosto), na Suíça. Para isso, precisa de
patrocínio para conseguir as duas cópias, uma das quais tem de ser
legendada. “Quero exibir meu protesto contra a forma com que é gerido
o cinema”, explica. “Meu filme é uma propaganda da alma e do corpo
brasileiro.”
Sua defesa do cinema coincide com o lançamento em DVD de O
Bandido da Luz Vermelha, cujos originais estavam se perdendo. “Graças
ao trabalho de um grupo de admiradores da minha obra, foi possível
conseguir a versão em DVD”, explica o diretor. O DVD deverá ser lançado
até o próximo mês.
156
Fragmentos
de
Rogério
Sganzerla
Seção 3: Epílogo
sobre
O Signo do Caos
e últimos textos
Alô alô Rogério Sganzerla!
AP
ropósito de O SIGNO DO CA
OS
Propósito
CAOS
48
O Signo do Caos trata da eterna batalha contra o esquecimento
profissional de nossa semi-colônia. Eterna luta da beleza versus intolerância abusiva e a ignorância cega.
Como na vida real, há o delito e a ação judicial. O que, convenhamos,
é apenas o prolongamento de uma tradição de defesa de causas grotescas
e que não altera, nem um pouco, a verdadeira situação colonial do cinema brasileiro aqui ou no mundo. Amnésio faz pressão contra um filme
que caiu no desagrado da censura. Morel, um jornalista – imbuído de
sua função social –, insiste em viver em sociedade anônima de base
priápica e assim busca recuperar um conhecimento original sobre fatos
ignorados de nossa história recente.
Fala da aversão que lhe inspira uma mistura chocante de tipos mal
encarados, negados e negadores com seus capatazes e capangas,
interessados em cometer crimes perfeitos contra a liberdade de expressão
filmada em nosso país e o terror que lhe inspiram as ameaças ao seu
comportamento irreverente.
Para Morel, “a genuína investigação sobre a verdade deve também
ser verdadeira”. Revoltando-se contra uma tramóia injusta e cruel, Morel
encontra oposição de doutor Amnésio, cujo modus operandi é o espírito
de transação. Afinal tramam contra a liberdade aqueles agentes do caos
que substituem a censura e são taxativos.
– Aquele é o louco maior!
– Quem? Tu, ele ou o mundo?
Esperam a resposta até hoje, dando tempo à ampliação de imagens
inéditas com meio século de prateleira ou talvez para sempre inéditas.
Mais do que nunca é preciso entender o seguinte. Existem inúmeras
maneiras de se ver e viver o cinema para encontrar uma incógnita e
desvendar assim o enigma de sua sobrevivência.
Um filme deve se relacionar com o outro e ao tentar ser íntimo com
o real, deixa de ser objeto descartável para se reassumir como protagonista de si mesmo.
48 Escrito em 2003.
Na página dupla anterior, o ator Otávio III em O Signo do Caos.
160
Seção 3
Fragmentos (epílogo)
Um dos mais belos fotogramas do cinema brasileiro, desde Limite, e que ainda não
pude conhecer animado. Reconheço, daqui, as expressões cênicas de Otávio III,
Guará (?) e Helena Ignez.O Signo do Caos será talvez o filme mais divulgado da
nossa cinematografia que não foi exibido em cinema algum do grande circuito.
E pode (ou deve) ser sempre acompanhado de uma certa distância
irônica ou proximidade com o surreal. Amnésio substitui a censura e
tenta interditar liminarmente em todo o território nacional devido ao
fato de jamais ter sido apresentada ao nosso público. Um grande filme
brasileiro caiu no desagrado do serviço de censura de diversões públicas
no Rio de Janeiro, com seus agentes negados e negadores, capatazes e
capangas, mistura chocante de tipos mal encarados somente interessados
em cometer crimes perfeitos contra a liberdade de expressão em nosso
país. Afinal esses agentes do caos tramam contra a liberdade. Complicase o enigma surreal. Trata-se de uma sátira com finalidade crítica. Eis
um assunto para se pensar: a tela deve falar a sua própria língua
concebida no momento de criação e não pode fazer isso sem enfrentar
todos os censores, curadores e feitores que estrangulam a atividade
crítica. Cabe ao espectador atento ter e exercer o direito de ver ou não
ver um verdadeiro filme de cinema.
Ninguém pode negar o direito de existir de um trabalho assim
161
Alô alô Rogério Sganzerla!
significativo. O cinema não pode sofrer infinito boicote ou pressão
cometidas por comissões do próprio país ou do exterior. Há o delito e a
ação judicial (como na vida real) mas há também a análise políticosocial da situação que não alterou, nem um pouco, a verdadeira situação
do nosso cinema.
O que, convenhamos, é apenas o prolongamento de uma tradição
imposta através da defesa de causas grotescas e que não altera nem um
pouco a verdadeira condição colonial do cinema brasileiro aqui ou no
mundo.
Finalmente Morel conclui: somos o que vemos, eis um assunto para
se pensar.
Última entrevista de Sganzerla foi em
outubro de 2003
49
Brasília - O primeiro filme foi um curta-metragem e levou apenas o
nome Documentário (1967). Pelo título, já era possível avaliar o que
seria a carreira do cineasta Rogério Sganzerla.
Com Documentário, Sganzerla ganhou como prêmio uma viagem a
Cannes. Fora do Brasil, ele imaginava um bandido mascarado, que daria
muito trabalho à polícia e alimentaria o imaginário popular. Rogério
então escreveu o roteiro do que seria seu primeiro longa-metragem e o
destino se encarregou do restante. No navio que o trouxe de volta ao
país, o cineasta leu as manchetes dos jornais brasileiros sobre o “Bandido
da Luz Vermelha”, que deixou São Paulo inteira em pânico. A imaginação
virara realidade, que virara filme, com o mesmo título, O Bandido da
Luz Vermelha (1968), que projetaria Rogério nacionalmente e se tornaria
a sua obra mais conhecida.
49 Concedida a Alessandra Bastos, repórter da Agência Brasil, em outubro de 2003. O
site a publicou em janeiro de 2004 e não informa se foi publicada em algum veículo da
mídia impressa. Participaram da conversa com Rogério Sganzerla: Roberto Ronchezel,
Helena Ignez, Guilherme Marback e Djin Sganzerla.
162
Seção 3
Fragmentos (epílogo)
Trinta e seis anos se passaram desde que seu primeiro filme foi
rodado. Um hospital, em São Paulo, onde Sganzerla foi operado do tumor
no cérebro, foi cenário de uma longa conversa, em outubro de 2003. A
pedido da imprensa e por intermédio de seu assessor e amigo Roberto
Ronchezel, Sganzerla se abriu em um extenso depoimento sobre sua
vida e obra. Debilitado pelo câncer, Rogério estava com dificuldades
para falar e sua mulher, a atriz Helena Ignez, e Ronchezel também
participaram do bate-papo. O texto, aqui publicado, é a íntegra desta
conversa.
- Como você escolhe os elencos de seus filmes? Quem são seus
atores?
Rogério - Nos meus filmes os atores contribuem com novo estilo de
interpretação, de desincorporação, uma nova técnica de reinvenção.
Temos que evitar essa “capa de França” de criar ou não criar modelos
de comportamento e de formas advindas de outros países. Temos que
criar o que é nosso mesmo. No Bandido havia uma diversidade de
expressão e mostrava as coisas por dentro e por fora. Dirijo os atores em
movimento e eles exercem total liberdade de estilo, para poderem ser
mais sinceros. Os atores são pessoas amigas que me protegem nos
momentos difíceis da filmagem e me capitalizam em busca de um sistema
verdadeiro capaz de apreender todas as mutações, que são registros do
processo histórico que estamos vivendo agora e depois...
Helena Ignez - Conversamos muito sobre o antifilme e Rogério
sempre fala nessa época dos superfilmes, das superproduções. Nesse
contexto ele decide chamar O Signo de o antifilme, que é o contrário do
superfilme, do grande filme. É um filme para descosturar, como ele diz.
Interessante também que houve um crítico que disse que O Signo é o
filme mais parecido com o Bandido... Acho bonito esse jeito que ele
trabalha e isso que ele disse, que os atores o protegiam no momento da
filmagem. Os atores não eram dominados pelo diretor. Eram professores,
amigos e que desvendavam as mutações históricas... Isso foi definitivo
na minha vida. Sou uma atriz do movimento. Hoje isso corresponde a
50 por cento da minha expressão total. O movimento, tanto quanto o
close, se completam. Para mim Rogério é um dos maiores mestres de
atores do cinema. O resultado que eles conseguem, às vezes nem são
atores especificamente, ou são atores bissextos, como Otávio Terceiro,
que tem realmente uma atuação fenomenal – ele conseguiu isso através
163
Alô alô Rogério Sganzerla!
de uma simbiose, de uma relação muito profunda com o diretor, uma
colaboração – como o Rogério diz, de proteção, mesmo. Protetor da
obra que está realizando. Isso, nós atores que trabalhamos com ele, nós
conseguimos por que ele nos dá essa oportunidade de liberdade e isso
se torna inesquecível. Mesmo a Camila Pitanga, depois de ter visto o
filme, agradeceu a Rogério a oportunidade de ter trabalhado com ele.
Ela, como um ser humano sensível percebeu a raridade que é para um
ator trabalhar com um diretor desse nível. Acredito que o Kubrick, pelos
resultados que a gente vê nos filmes dele, também deve ter essa magia,
esse conhecimento profundo do que é e um respeito profundíssimo pelo
trabalho do ator. Então o ator se torna extremamente autoral.
Rogério - seria uma coisa horrível se fossem padrões de comportamento separados, níveis de interpretação. Na época nós tínhamos
horror em colocar as coisas como se fossem diferentes camadas da
realidade. Acho que não tinha sentido captar tudo como se fossem
camadas separadas. Acho que Helena falou muito bem sobre simbiose
e o Kubrick, do bom com o falso, que nem aquele manifesto meu “o
arquifalso é tão falso quanto o falso”. Tem que criar um suprasumo de
orientação visível, por exemplo, aquele filme The Killing, um trhiller,
um filme bem cafona do Stanley Kubrick com Sterling Hayden... o
Kubrick é um dos mais perfeitos diretores – recomendo sempre aos
novos cineastas. Não incorreu nunca em um grande erro. O Kubrick é a
pedra de toque do cinema. Você vê aquelas coisas falsas, voluntariamente
falsas, como um cara de espingarda andando pela rua, fazendo os maiores
absurdos, dando tiros... acho que isso é o século XX. Sem dúvida é o
maior cineasta americano e autoral.
- Seu cinema sempre foi de ruptura, mas seus personagens, mesmo
com os comportamentos mais estranhos sempre mantiveram um certo
recato e pudor. Como é que você vê o erotismo do cinema comercial,
próximo da pornografia?
Rogério - Meu cinema sempre foi de ruptura – inclusive com meus
próprios modelos. Tive que buscar essas rupturas. Esse é mais um
recurso, como esses outros recursos. Utilizar recursos no cinema é sempre
proveitoso, desde que consiga infundir um certo balanço ao filme. Por
exemplo, um arco que libere uma flecha, não pode ser aquela coisa
óbvia de filme de mocinho e bandido. Não podemos ser óbvios na tela.
- Outro dia você disse uma frase sobre o sentido de fazer cinema
164
Seção 3
Fragmentos (epílogo)
que acabamos colocando no texto de abertura de Gramado. Achei a
frase muito bonita. A Silvana, da Folha, que pediu para passar essas
perguntas para você também ouviu e eu queria que você comentasse o
que disse naquele dia: “Fazer cinema é como descrever um movimento
impetuoso numa folha em branco pegando fogo”.
Rogério - A idéia do movimento, do trabalho...
Helena - É um êxtase. Um êxtase violento, profundo. A mim me
traz imagens também da poesia de Rimbaud, esse êxtase da criação,
também destrutivo, o fogo que queima, a presença do mesmo fogo que
destrói a própria arte recriando, que tem no final do Signo... aquela
imagem ocasional e casual e profundamente recorrente, que é a imagem
do Deus Shiva dançando e o próprio fogo. Ele queima o universo através
de sua dança. Shiva destrói renascendo. Ele é a parte da destruição no
universo. Na tríade ele é a destruição recriadora através da dança e da
arte. Ele é o próprio deus da arte e acabou sendo um dos símbolos do
Signo do Caos. Eu sei que foi um signo não procurado, mas encontrado,
um signo que foi até o filme. Inicialmente ele não teria essa idéia de
procurar essa imagem. Essa imagem aconteceu em um porão e ele deu
aquele movimento. Isso tem um sentido cosmogônico...
Rogério - Totalmente... O Deus da dança... que Helena muito bem
acabou de falar... por que essa (a cosmogonia) é única saída para o
cinema moderno e isso tem que ter no final do nosso novo filme (Luz
Nas Trevas – Revolta de Luz Vermelha).
- Você está falando daquela chegada dele como um anjo?
Rogério - É. O anjo exterminador, o anjo tem que se comportar
assim. Buñuel viu isso. Se não tem isso, então não vale. O que me
aborrece é que tudo o que vem por trás se recorre a isso. Estou vendo
muita aliteração e pouca incorporação. Não há uma incorporação desse
espírito. Nós não temos um cinema à altura de nosso século, por causa
dessa estruturação do pensamento humano. Ninguém vai se oferecer
para trabalhar nesse ... ninguém vai se propor a compreender o que está
acontecendo neste momento. Luz nas Trevas... esse nome é explícito
demais - as trevas do nosso tempo, as trevas da cultura brasileira, as
trevas paulistas. Acho que está todo mundo por fora, as pessoas estão
por fora, não estão entendendo nada. Não sabem o que estão fazendo.
Não quero ser profeta em meio ao caos. Quero que os outros também
entendam isso. Está tão na cara! Temos bons cineastas, eu vejo aí bons
165
Alô alô Rogério Sganzerla!
filmes, algumas surpresas, mas é só diluição. Acho que tudo isso foi
anunciado por Kubrick e pelos maiores cineastas americanos da década
de 50. Eles ainda não estavam a serviço dessa diluição controlada pela
burocracia sentimental.
- Sempre que a gente conversa sobre cinema você fala sobre a sintaxe.
Parece espantosa essa comparação entre o Signo e o Bandido, porque a
sintaxe já não é mais a mesma. Você também se queixa de sintaxe no
cinema atual. Ele não tem linguagem...
Rogério - Faltou linguagem depois do Bandido. Ninguém está se
mancando. Naquele momento estávamos sintonizados. Nós éramos muito
cultos naquele momento, não é Beto? E por que? Faltaram condições
históricas para nos deixar acontecer.
- Foi por isso que você foi embora do país naquele momento?
Rogério - Foi. Os produtores se tornaram muito ingênuos, não
entendiam mais nada de cinema. O cinema tem de ter linguagem. Tem
de ter estrutura. Aqui em São Paulo perdeu-se a sintaxe do cinema e
perdeu-se também até a dignidade do cinema. E não se culpem os
realizadores por isso. Os produtores...
Helena - Os produtores que se tornaram reprodutores...
Rogério - Os cineastas não têm apoio nenhum para a construção de
suas próprias linguagens. Qual é o apoio que os cineastas têm? Nenhum.
- A linguagem do cinema está se transformando em corruptela da
televisão?
Rogério - Ah, está. Acho que foi justamente o nosso cinema, que é
o mais criativo do mundo, que foi vítima de uma conspiração ambiental
para liquidar o talento, que é a matéria prima do cinema. Essa gente
não entende nada do que seja essa matéria prima. Na prática é isso.
- Nunca falamos sobre isso, mas tenho a impressão que o Glauber...
Rogério - Também sofreu muito...
- Vocês não tinham relação próxima, mas eram interlocutores? A
solidão aumentou depois que Glauber se foi? A combatividade dele te
fez falta?
Rogério - Fez. Glauber era uma figura lancinante. Como ele era
baiano, ele entendia e era um cara bacana também. Entendia que era
necessário isso. Não podia ser feito em paz. Ele achava que o embate
166
Seção 3
Fragmentos (epílogo)
era importante entre as pessoas. Ele gostava de se assumir como... Helena
sabe mais do que eu sobre isso. Para haver debate tem que haver interlocução. Tem que ter a estética dele criando polêmica dentro da estética.
Vou passar a bola para a Helena.
- Espera um pouco, você não falou dela como atriz. Ela esteve
presente em quase todos os seus filmes e virou quase uma atriz símbolo.
Além disso, O Signo do Caos foi também o filme de estréia de Djin. O
que você diria das duas como atrizes?
Rogério - Extraordinárias. Sempre ouvi das duas e dos meus amigos
que trabalhavam também nessa área, que nem parecia que estavam
sendo filmados, que nem parecia que eu estava dirigindo.
Djin – Nem parece mesmo que a gente está fazendo um filme.
- Existem outros atores, que eram personagens, como o Zé Bonitinho...
Rogério - Extraordinário. Ele deu um presente de São Paulo. São
Paulo não me deu dinheiro para filmar. Nem a mim e nem aos outros
que deram muito, como o Roberto Santos, o Person, que eu assisti trabalhar – filmes com estilo, coisa que os filmes de São Paulo de hoje não
têm. Esses filmes que a gente conseguiu fazer mostram um outro São
Paulo. Só os grandes filmes paulistas é que conseguem.
- Queria que você falasse um pouco sobre o Aranha (Sem essa,
Aranha).
Rogério - Esse era o meu projeto inicial. Esse era o filme com o
qual iria estrear. O Bandido tinha 500 planos. Esse seria um filme de
seis tomadas, seis porradas...
- Mas ele foi uma porrada, não foi?
Rogério - Foi e não conseguiu se juntar com o resto da produção.
Quer dizer, até que conseguiu. Era um longo projeto. Seria um filme de
12 planos. 12 takes. Um bloco mais concreto. Uma forma de dissolução
e caos.
- O Aranha virou um cult, visto hoje, fora do Brasil, por cineastas...
Rogério - Meia dúzia... os jovens não têm acesso a esse tipo de
cinema porque os professores são umas toupeiras. Quem aprende errado
faz errado. Toda vez que passa, enche. As oportunidades são únicas.
Helena é que vai dizer o que deve ser feito agora...
167
Alô alô Rogério Sganzerla!
Helena - O que queremos neste momento é fazer, com a ajuda do
Ministério da Cultura, neste bom momento para o cinema, que tome a
frente do projeto de uma grande retrospectiva completa dos filmes de
Rogério – dos filmes completos e incompletos – todo o trabalho dele,
com a produção de novas cópias, para ser mostrado e estudado.
- No dia da apresentação do Signo no Festival do Rio, você utilizou
uma metáfora, pedindo para que os jovens concluíssem esse filme. Você
estava se referindo ao filme O Signo do Caos, ou a um cinema experimental, de arte?
Rogério - Não se fechar. Buscar uma linguagem operante.
- Quanto ao Signo do Caos, você acha que é uma linguagem para o
jovem de hoje, com o jovem que está acostumado com a linguagem da
TV?
Rogério - O filme vai deformar as pessoas. O melhor caminho para
o cinema moderno é esse: Einsenstein com Orson Welles. Depois disso
o que poderia acontecer? O filme Sem essa, Aranha devia passar nas
escolas de comunicação. Não tem nada melhor nos anos 70. A câmera
que vai, vai, opera, opera... isso deveria passar nas escolas de comunicação. Infelizmente, no Brasil não temos uma cinemateca à altura dos
nossos “cinematequeiros”. Até a música (Qualquer coisa, de Caetano
Veloso) é fantástica. O nome é Sem essa, Aranha. Aranha é o personagem
de Zé Bonitinho, quer dizer, corta essa, não dá!
- Quanto ao novo projeto, Luz nas Trevas – Revolta de Luz Vermelha.
Qual a gênese que você faz desse personagem? É o mesmo bandido?
Rogério - Em primeiro lugar, denominamos Luz e não Bandido, ao
poderoso experimento de linguagem urbana amortizado no lançamento
em São Paulo, premiado nos festivais nacionais e triturado aqui e lá
fora, por todo tipo de admiradores – confessos e inconfessáveis, amigos
e inimigos da continuidade da luminosidade. Eu acredito na continuidade
da luminosidade. No Bandido não houve isso. Vai haver no novo projeto.
Vinte anos depois esse filme ainda é um mito para o imaginário urbano.
O novo Luz não pode ser uma diminuição.
- Neste momento você está de convalescença lançando O Signo do
Caos. Como é que você gostaria que as pessoas saíssem do cinema depois
de assistir ao filme?
Rogério - Baratinadas!
168
Seção 3
O cineasta da transgressão
Fragmentos (epílogo)
50
“O cinema teria que ser escrito em uma folha em branco pegando
fogo para poder registrar esse movimento de captação do pensamento
de um filme, durante sua realização”. Com essas palavras, lidas por sua
esposa, a atriz e um dia musa do Cinema Novo Helena Ignez, durante o
último Festival de Gramado, Sganzerla proclamou sua ressurreição das
cinzas do ocaso.
“Meu cinema sempre foi de ruptura – inclusive com meus próprios
modelos. Tive que buscar essas rupturas. Esse é mais um recurso, como
tantos outros. Utilizar recursos no cinema é sempre proveitoso, desde
que consiga infundir um certo balanço ao filme. Por exemplo, um arco
que libere uma flecha não pode ser aquela coisa óbvia de filme de
mocinho e bandido. Não podemos ser óbvios na tela”, afirma Rogério,
por meio de sua assessoria de imprensa.
“Acho que foi justamente o nosso cinema, que é o mais criativo do
mundo, que foi vítima de uma conspiração ambiental para liquidar o
talento, que é a matéria-prima do cinema. Essa gente não entende nada
do que seja essa matéria-prima. Na prática é isso.”
O Antropófago de Cadillac V
erde
Verde
51
Encontro com o antropófago do salão: - “Vamos longe dos saudosos
tempos de ‘nú artístico’! A erótica já foi atingida através do esporte e da
praia. A polierótica que Haverlock Ellis assinala como condição de
monogamia exacerbou-se até a compreensão e o aplauso de um conceito
matrimonial da família. Isso, mais que na Rússia, nos Estados Unidos é
um fato. As mulheres é que regem as grandes fortunas. Voltamos às
amazonas de tipo bancário...”
50 Trechos de Rogério numa reportagem de Rodrigo Fonseca, publicada na Revista de
Cinema, quinta-feira, 15 de julho de 2004.
51 Artigo publicado na Revista Cult - Ano VI - Janeiro de 2004 - Seção “Radar”.
169
Alô alô Rogério Sganzerla!
Numa época de grandes perdas, vale a pena refletir sobre a recessividade e estrutura do riso, da piada, do humor - recurso fundamental para tratar da dor, sobretudo no Terceiro Mundo - de um dos nossos
maiores piadistas, o poeta, romancista, teatrólogo e ensaísta Oswald de
Andrade (1890 - 1954). Mais do que seus colegas do Modernismo, um
homem de espírito permanentemente inspirado, mestre da renovação
literária e ponta-de-lança na evolução cultural do país na primeira fase
do século passado. Amigo de Cocteau e Picasso, manteve contato com a
vanguarda com seus “salões” do Modernismo, que aram a nossa poesia
e pintura e outras conquistas da sensibilidade intuitiva, que o conduziram
a um saudável anarquismo...
Num só dia - quando da débâcle do café, em 1929 - perdeu tudo...
(grande parte dos terrenos “desvalorizados” de Cerqueira César, por
exemplo), Oswald de Andrade conheceu a pobreza como cotidiano,
agravada por prisões e fugas, questões judiciais, escândalos amorosos e
outros excessos precoces, inaceitáveis na então provinciana São Paulo.
Conforme ele mesmo confessa, “criou-se, então, a fábula de que eu só
fazia piada e irreverência e uma cortina de silêncio tentou encobrir a
ação pioneira que dera o Pau-Brasil...” Acentuou-se a rejeição e a
marginalização de sua obra. Naquela época, dizia-se que só havia uma
coisa mais espantosa do que uma primeira edição de Oswald de Andrade:
uma segunda edição... Tiragens reduzidas praticamente inéditas,
reedições póstumas de uma obra importantíssima em prosa e verso, além
do teatro profético e de ensaios exuberantes, maravilhosamente bem
escritos, confirmam a vocação para o desperdício de toda a literatura
acadêmica brasileira. Na verdade, jamais lhe perdoaram a inesgotável
capacidade de debochar de tudo e de todos, sobretudo de seus colegas
e dele próprio. Para os padrões acanhados de uma semi-colônia, o
Antropófago de Cadillac Verde só poderia contrair dívidas e cultivar
inimizades, pois se definia como um “homem sem profissão”. Mesmo
assim, lúcido, “no apogeu histórico da fortuna burguesa Século do
Serafim ou da fortuna mal adquirida”... (...) Meu Cadillac Verde é o
único automóvel em São Paulo, equipado com cinzeiro... (...) Sou mais
amigo da verdade do que de Plauto. Principalmente quando Plauto é
canalha e a verdade é gozada.” (...) “Literalmente, minha carreira foi
tumultuosa. Pode-se dizer que iniciou com a Semana de Arte Moderna
de 1922. Publiquei então Os Condenados e Memórias sentimentais de
170
Seção 3
Fragmentos (epílogo)
João Miramar. Descobri o poeta Mario de Andrade,
do que muito me honro. Iniciei o movimento PauBrasil que trouxe à nossa poesia e à nossa pintura a
sua latitude exata, Daí passei ao movimento
Antropofágico, que ofereceu ao Brasil dois presentes régios: Macunaíma, de Mario de Andrade, e
Cobra Norato, de Raul Bopp. O divisor das águas
de 1930 me jogou para o lado esquerdo, onde tenho
me conservado com inteira consciência e inteira
razão...”
Para o criador de Marco Zero, onde tenta (e consegue) captar a
soma dos barbarismos e neologismos, oriundos da miscigenação de
dialetos imigrantes, imantados na nossa terra, “a verdade é sempre
interpretada, acomodada, em um fim construtivo e pedagógico, é a Gestalt que suprime a dispersão do detalhe e a inutilidade do efêmero”. Só
assim, a partir do semáforo modernista, será possível acertar o passo
com o mundo ou, pelo menos, tirar o meridiano exato de nossa hora
histórica.
“O que faz o Brasil exultar assim é a sua superstição pela lei escrita
- um velho complexo de inferioridade, oriundo do caos político social
em que se plasma. Onde soam fundo as obras totêmicas e justificadoras
do seu caminho - Os Sertões, Casa Grande e Senzala. Somos o país do
Homem Cordial de Sérgio Buarque e da Cobra Grande de Bopp. Fomos
arrastados para o colégio pelo jesuíta. Péssimos alunos, gostando de
berimbau e de olhar pela janela o trilo dos pássaros em vez de decorar
as declinações. E agora, depois de muita surra, ganhamos um bom ponto,
onde está escrito em letras de ouro: Honra.” 52
52 (Referência impressa) Tido como último artigo escrito por Rogério. Tenho minhas
dúvidas quanto a ter sido o último que escreveu, com certeza é o último que deu para
publicar em vida, e já sabendo que estava a um passo da porta que dá para eternidade.
Lembro-me de um artigo dele sobre Oswald mas não posso afirmar que seja este. O
título estou certo de que era outro. A seção “Radar”da Revista Cult, onde foi publicado
é destinada a textos “de gaveta” dos autores que publica. Independente de ser o último
artigo ou não, para Rogério o que vale é a montagem. E quando ele decidiu publicá-lo
estava, sem dúvida nenhuma, montando o plano final (que é tão importante como o
primeiro) da sua obra - e como não poderia deixar de ser para um gênio da montagem retomando-a e avançando-a para além do seu “ponto de partida avançado”, isto é, por
e a partir de Oswald de Andrade (a caricatura acima é de Voltolino).
171
Retrato de Oswald de Andrade,
em desenho de Oswald de Andrade Filho (Nonê)
VIV
A ROGÉRIO !
VIVA
Índice
Carta a Rogério, na História, vii
O Projeto Editorial, xiii
Critérios do presente ante-projeto, xxi
Fragmentos da obra literária de R
ogério Saganzerla
Rogério
Seção 1: te
xtos de 1965 a 1995
textos
1995, 23
O legado de Kane (artigo - 1965), 25
Cinema fora-da-lei (Manifesto - 1968), 29
Depoimentos (entrevista - 1968), 30
Sganzerla ataca de Bandido (entrevista - 1968), 32
Notas para O Índio e a Vampira (argumento - 1968), 35
Filme em questão (polêmica - 1969), 36
A Exibicionista (argumento - 1969*), 37
Betty Bomba (argumento - 1969*), 39
Betty Bomba, a Exibicionista (argumento - 1969*), 41
A Pornográfica (argumento - 1969*), 42
A Mulher de Todos (roteiro - 1969), 45
O incômodo Rogério Sganzerla (entrevista - 1970), 50
Helena-a mulher de todos-e seu homem (entrevista - 1970), 52
A questão da cultura (artigo - 1970), 74
Monumental Aprendi (esboço de argumento - 1970), 79
3 resumos de O Capitão do Cangaço (argumentos - 1972*), 80
Abismu (sinopse - 1977*), 84
Jimi, gênio total (artigo - 1980), 89
Retiro Espiritual (artigo - 1980), 93
O Poeta da Vila (argumento - 1980*), 96
Ponto de partida avançado (polêmica - 1981), 98
Pernetas querendo andar de patins (crítica - 1981), 99
Minas - Cinema - Geral (crítica - 1981), 102
A Embrafilme e seus descalabros (polêmica - 1982), 104
O cão ladra e a caravana da Embrafilme (polêmica - 1982), 111
Cara e Alma (Manifesto - 1984), 113
Uma videologia de novela (crítica - 1988), 118
Bossa Nossa (artigo - 1988), 123
A luz do Bandido (entrevista - 1990), 125
A Belair (entrevista - 1990), 128
Do Festival de Taormina (crítica - 1994*), 130
Seção 2: te
xtos de 1996 a 2003
textos
2003, 133
No rastro de Orson Welles (entrevista - 1996), 135
Tudo é Brasil (press-release - 1997), 138
Um bate-papo de Sganzerla com Renoldi (vídeo - 2001), 139
Todos os maus filmes já foram feitos (artigo - 2002), 154
Sganzerla ironiza o balcão de favores... (reportagem - 2003), 155
Seção 3: Epílogo: sobre O Signo do Caos e últimos te
xtos
textos
xtos, 157
A propósito de O Signo do Caos (artigo - 2003), 160
Última entrevista (2003), 162
O cineasta da transgressão (trechos de entrevistas - 2004), 169
O Antropófago de Cadillac verde (artigo - 2004), 169
(* - datas estimadas)
É isso aí, irmão, enfim o fim do nosso “boneco” (chega de
chamá-lo de ante-projeto, as gírias de oficina falam melhor
aqui). Uma semana de trabalho e curtição! Os bonecos de hoje
se parecem com os livros, não é? Neste, só não me satisfazem
os tratamentos de capa e imagens em geral. Apesar de achálas boas idéias gráficas o Photoshop não é a minha praia - e eu
fiz questão de fazer tudo sozinho. O Photoshop é a clicheria e a
fotomecânica dos recursos totais, o sonho dos velhos gravuristas
e montadores. Sem os cheiros de ácidos e químicos. Já o PageMaker, este sim, rodo melhor. Tem tudo aquilo que você conheceu nas oficinas gráficas dos jornais da década de 60: os galés,
as ramas, os componedores, os linotipos, as tituleiras, uma tipografia infinita, com fontes desenhadas por todos os type-designers de todos os tempos, e todos os corpos de letra desejados, não sei se para o bem ou para o mal. E eu neste teclado
fui aquele exército de oficiais e peões que inundavam as oficinas. Fui carregador de galés, tipógrafo auxiliar, tipógrafo classe
A, diagramador, paginador, linotipista, estereotipista, revisor,
leiautista, chefe de oficina, projetista-gráfico e editor. Foi ótimo
trabalhar com os Bodoni nas massas de texto corrido, coisa
que não fazia desde aprendiz da tipografia clássica de mestre
Ildeu. Juntei-os aos Futura, nas titulagens de diagrama, numa
combinação que espero nos dar uma atmosfera da década de
40 - a década de ouro da tipografia e do cinema. Tirei provas
num prelo eletrônico caseiro, de minha propriedade. Uma máquina impressora eletrônica que contratei imprimiu em cadernos os 21 exemplares, tirados em papéis vergé pérola 80 g/m2
(miolo) e 180 g/m2 (capas) fabricados pela Salto. Edson Hernani deu acabamento, costurou e brochurou, na velha e artesanal
maneira. Nem precisaria dizer, fui também o produtor gráfico.
Acabaram-se os trabalhos no mês de setembro do ano da desgraça de dois mil e quatro (ainda não houve um “ano da graça”
neste milênio). E eu, contando com a sua graça e esperando
que nosso empenho não tenha sido de graça, numero e assino,
na antiga praxe hors commerce, cada um dos 21 bonecos ora
conquistados para o seu futuro livro, a fim de distribui-los como
prometi. E que nos venha logo esse futuro!
Exemplar nº

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