um pé em cada país
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um pé em cada país
um pé em cada país © do autor 1ª edição 2015 Direitos reservados desta edição: Tomo Editorial Ltda. A Tomo Editorial publica de acordo com suas linhas e conselho editoriais que podem ser conhecidos em www.tomoeditorial.com.br Editor João Carneiro Revisão Moira Revisões Projeto gráfico, diagramação e capa Krishna Chiminazzo Predebon Ilustrações da capa e miolo Bruno Ortiz Monllor CTP, impressão e acabamento Gráfica Editora Pallotti, Santa Maria, RS K38p Kepp, Michael. Um pé em cada país : crônicas. / Michael Kepp. – Porto Alegre : Tomo Editorial, 2015. 184 p. ISBN 978-85-86225-95-6 1. Literatura brasileira – crônicas. I. Título. CDU: 821.134.3(81)-94 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Biblioteca Pública do Estado do RS, Brasil) Tomo Editorial Ltda. Fone/fax: (51) 3227.1021 [email protected] www.tomoeditorial.com.br Rua Demétrio Ribeiro, 525 CEP 90010-310 Porto Alegre RS um pé em cada país crônicas michael kepp Porto Alegre, 2015 Para minha família no Brasil e nos Estados Unidos Essas palavras em peles de papel [...] partiram, afastaram-se de mim. Agora desejo que elas se dividam e se espalhem bem longe, para serem realmente ouvidas. Davi Kopenava, líder indígena brasileiro e coautor do livro A queda do céu: palavras de um xamã yanomami (2014) apresentação Escrevi este livro, minha terceira coletânea de crônicas, porque, como uma mãe que tem um terceiro filho, minha urgência de procriar não cessou, meu afã criativo persistiu. Mas agora eu acho que minha família está completa. A crônica, um gênero ecumênico, pode ser ficção ou não ficção, um voo imaginário ou uma reflexão sobre o cotidiano. Mas essas peças de prosa são, na verdade, ensaios, tentativas não ficcionais de pôr meus pensamentos, observações e experiências no papel. Como nos primeiros dois livros, vivi todas as histórias apresentadas na coletânea. Nada foi inventado. Ou, como o escritor americano Mark Twain escreveu: “A verdade é mais estranha que a ficção. A ficção precisa ser fiel às possibilidades, a verdade não”. Este conjunto de ensaios é breve, porém conciso, algo bem diferente. E apresenta a pluralidade de meus interesses com vozes distintas (todas minhas) que variam, dependendo do tema. Um apanhado de ensaios não precisa ser lido em ordem. Mas dividi a coletânea em cinco seções temáticas para organizá-la e para facilitar sua leitura. Incluí epígrafes que sugiro que o leitor não pule. Essas citações, às vezes subestimadas, explicarão por que você vai preferir pular algumas seções e ler outras. O propósito da seção “Confidências” é provocar risos, reações, reflexão e comover aqueles que conseguem se identificar comigo e se sentir menos alienados, menos solitários. Nessas revelações pessoais, às vezes intimistas, eu não preciso fazer um striptease; basta tirar os sapatos. Ou, como escreveu o ensaísta autobiográfico francês Michel de Montaigne (1533-1592): “Cada homem carrega a íntegra da condição humana”. Na seção “Opiniões”, busco oferecer um retrato etnográfico – às vezes divertido, às vezes crítico, e raramente lisonjeiro – de minha pátria, os Estados Unidos, e de minha pátria adotada, o Brasil. Por que raramente lisonjeiro? Porque, como alguém me disse certa vez: “Mike [meu apelido], a única coisa pior que sua autocrítica é sua crítica”. E também porque uma crítica é geralmente mais interessante e instigante do que um elogio. O objetivo da seção “Comparações Culturais” é comparar, também sob o ponto de vista etnográfico, esses dois países e seus povos, mantendo uma distância saudável, mas não exata dos dois para melhor observá-los, criticá-los e, às vezes, elogiá-los. Alguns ensaios nas seções “Opiniões” e “Comparações Culturais” são análises políticas, principalmente da minha pátria, cujas instituições públicas continuam a me fascinar. Na seção “Viagens”, relato alguns passeios memoráveis, especialmente no Brasil. E minhas “Contemplações” são uma tentativa de dar maior peso físico e intelectual ao livro. Mas pode ser que elas só aumentem seu preço. Michael Kepp sumário confidências 14 um pé em cada país 18 uma cegueira seletiva 20 uma natureza negativa 22 as meninas da hidro 24 a coerência dos cubículos 26 um companheiro curioso 28 há conforto na melancolia 30 o preço dos princípios 32 perereca instantânea! 34 chegando à segunda base com “D” 37 um fetiche não fabricado 39 minhas belíssimas bolas 41 ser ou não ser pai 43 essa metamorfose ambulante 45 euforia perpétua? 47 preconceito ou pé-atrás? 49 criticando minhas crônicas 51 criadores e criações 53 palcos e papéis 55 retornos e descobertas , opiniões sobre os brasileiros 59 fico te devendo 61 desculpas dispensáveis 63 qual é o botão, afinal? 65 sonoridades e silêncios 67 o problema da palavra gringo 70 uma ideia que não passa de fantasia sobre os americanos 73 uma mania americana 75 neologismos americanos 77 pegadinhas americanas 79 as lições de Nuremberg 81 mudança repentina na opinião pública levou corte a aprovar casamento gay 83 segurança vs privacidade 85 um estado de “nós contra eles” 87 abusos policiais têm origem na desigualdade 89 indignação pública chegou ao limite em Baltimore 92 autocensura da Sony mancha imagem da empresa nos EUA comparações culturais 96 contabilidade informal 98 politicamente correto, sim, e daí? 100 liberdade de expressão nos EUA pesa mais que no Brasil 103 um terreno fértil para chacinas 105 ainda no armário 107 dois pesos, duas medidas 109 presunção de culpa 111 arrogância americana num país cordial viagens 116 uma praia que me conquistou 118 pequenas notáveis 120 passarinhando em Ubatuba 122 os sons de Salvador 124 um tour alternativo em Buenos Aires 126 os melhores banheiros de Nova York 128 Sinatra, começou a devoção 131 viagens improvisadas contemplações 134 o desapego de amor 136 o mistério do sexo oposto 138 é verdade que as mulheres não são engraçadas? 140 devo deixar de assistir a Woody Allen? 142 quem cria e quem é artista 144 passeios e devaneios 146 para observar, não bastar olhar 148 libélula, uma palavra belíssima 150 o que não nos mata nos fortalece? 152 virando a mesa 154 quem não sabe que não sabe 157 chutzpah 159 pedidos invasivos 161 coragem ou outra coisa? 163 uma sociedade de mercado 165 conectar ou conversar? 167 faca de dois gumes 169 o culto à celebridade 171 corrida contra o tempo 173 a vida de uma viúva 175 a roda-gigante da vida 177 agradecimentos Você sabe que nunca foi fácil Se você se resigna ou não Se você viaja de um polo a outro Ou se atém a alguma linha mais reta. Joni Mitchell, compositora e cantora autobiográfica canadense, Hejira (1976) confidências Deus, ajudeme a ser a pessoa que meu cachorro pensa que sou. Adesivo veicular Quando você escorrega numa casca de banana, as pessoas riem de você. Mas quando você conta para as pessoas que você escorregou numa casca de banana, o riso pertence a você. Nora Ephron, ensaísta e roteirista americana (1941-2012) Nós somos muito mais parecidos do que pensamos. Karl Ove Knausgaard, autor autobiográfico norueguês, numa entrevista em 2015 um pé em cada país Tendo passado a primeira metade dos meus sessenta e cinco anos nos Estados Unidos e a última no Brasil, uma sociedade onde minha assimilação, na melhor das hipóteses, tem sido parcial, não deveria surpreender que me sinta dividido. É como se estivesse montado numa corda bamba equatorial com um pé plantado em cada país. Quando os brasileiros descobrem que eu vivo em seu país há mais de três décadas, a maior parte do tempo casado com uma piauiense com dois filhos, costumam dizer: “Ah, então você já é brasileiro”. Talvez, mais do que qualquer outro povo, o brasileiro faz com que o estrangeiro sinta-se em casa. Essa inclusividade explica por que algumas pessoas que viajam para esse destino nunca voltam mais a suas pátrias. Isso também explica por que o Brasil já foi comparado ao Triângulo das Bermudas (área no mar do Caribe onde barcos e aviões desaparecem), mas sem a queda da aeronave. Quando desembarquei no Rio de Janeiro, onde nunca tinha estado, a cidade virou meu novo lar porque me acolheu de braços abertos. Mas compreendi que sempre seria um membro periférico dessa sociedade, um “neném cultural” (nem totalmente americano, nem inteiramente brasileiro). É precisamente isso que me dá condições de avaliar os dois países de um ponto de vista forasteiro. Mesmo assim, desde minha chegada venho tentando me abrasileirar. Se não, para que trocar de cultura? É por isso que comecei a assimilar as manhas e os truques que achei atraentes aqui e a rejeitar os demais. 14 Mais tarde, abandonei algumas das carioquices que tinha adquirido, como dirigir feito louco (mostrando o polegar para cima para me esquivar das costuras que fazia no trânsito), chegar o mais tarde possível aos encontros e me tornar um craque em falsos convites, do tipo “apareça em casa”. Também não consegui me transformar em um “homem cordial” que se esquiva de marcar encontros chatos com um “vamos ver”, “se der”, “pode ser”, “vamos, um dia desses,” ou o clássico “eu te ligo”. Até hoje, o meu traço mais americano é minha capacidade de ser direto e, quando necessário, usar a palavra “não”, uma declaração que os brasileiros preferem evitar. Algumas das minhas assimilações foram inconscientes ou não exigiram esforço. Assim que cheguei ao Rio, troquei minhas meias 3/4 brancas, tênis e bermudas por chinelos e sunga. E comecei a usar a camisa para fora das calças. Não levou muito tempo para eu começar a sonhar em português, ainda que, nesses sonhos, eu fale com sotaque. A mania nacional do futebol deitou raízes em mim. Poucas pessoas se alegram mais do que eu quando a seleção da Argentina perde. E quando perde para nossa seleção, essa felicidade vira eufórica ou até histérica. O que poderia ser mais brasileiro que isso? Pouco a pouco, também assimilei algo da natureza generosa deste povo. Basta alguém parar numa estrada com um pneu furado e imediatamente aparecem pessoas de todos os lados, loucas para ajudar em troca de nada. Por isso, a gentileza nacional de quebrar um galho ou dar um jeito para ajudar alguém virou uma praxe prazerosa para mim. Também aprendi a arte de pechinchar – com camelôs, feirantes, biscateiros e mecânicos de carro – porque é praxe aqui. E se eu não regatear o preço astronômico do serviço autorizado de geladeiras e máquinas de lavar, me sinto vítima de um “assalto autorizado”. O triunvirato nacional da corrupção, impunidade e desigualdade econômica continua a me desanimar. E a tendência a tirar vantagens dúbias e a tornar a praça pública uma zorra nunca foi minha praia. Nos aeroportos do Rio, recuso-me a pegar táxis que procuram passageiros do fim da fila e não uso as calçadas como 15 depósito de carros, lixo e cocô de cachorro. E eu seria omisso se não mencionasse a violência urbana, uma realidade que, no Rio, pode resultar numa facada no peito dada por um pivete que quer seu celular, sua bolsa ou sua bicicleta. Não me surpreende que meus sentimentos anti-ianque tenham crescido desde que eu cheguei ao Brasil. É mais fácil sentir a prepotência americana – seja cultural, econômica, política – estando em um país sufocado por ela. Mas, ao ver as imagens do 11 de setembro, não desabafei com um “bem feito!” como alguns brasileiros; eu chorei à beça. Afinal, era a minha pátria e eram meus conterrâneos que estavam em chamas. Gosto de ser o híbrido que me tornei, um americano abrasileirado. O ianque em mim ainda me faz contar dinheiro em inglês. Mas meu brazuka interior pontua um desabafo com um “pô!” explosivo. Se eu quisesse me abrasileirar ainda mais, só conseguiria acrescentar alguns detalhes cosméticos, como suavizar meu sotaque ou reproduzir certos gestos típicos, como segurar a pontinha da orelha para elogiar um prato saboroso. Isso seria mais uma imitação do que uma assimilação. E me recuso a segurar um sanduíche (ou qualquer lanche) com um guardanapo, como a etiqueta à mesa brasileira exige, porque pão não suja as mãos. Eu vim para o Rio porque é onde acabam os fugitivos dos filmes de Hollywood. E Jobim, Vinicius e as cenas de carnaval no filme Orfeu negro foram o canto da sereia que me atraiu, com promessas de uma cidade com mais ginga e malemolência do que meu eu puritano poderia imaginar. Se sinto saudades? Sim... do Rio quando estou nos Estados Unidos, visitando minha mãe em St. Louis, Missouri (onde nasci), minha irmã em São Francisco e meus amigos em Nova York. Se um dia eu voltarei do meu exílio voluntário? Não prevejo novas fugas internacionais. Meu coração é brasileiro demais para adaptar-se facilmente a essa mudança de endereço. Para que trocar o abraço brasileiro pelo aperto de mão americano? Para que trocar uma cultura descontraída e generosa por uma cultura imediatista e apressada do “tempo é dinheiro”, ou seja, onde o trabalho árduo aumenta o poder de compra e o sentimento de superioridade? 16 Ainda resisto a alguns hábitos brasileiros. Mas, enquanto minha mãe vê minha pátria adotada como “aquela bagunça tropical”, para mim, ela é uma sociedade calorosa e, às vezes, caótica e anárquica. Ou, como bem disse Jobim: “Morar nos Estados Unidos é bom, mas é uma merda; morar no Brasil é uma merda, mas é bom”. Crônica inédita, 2015 17