Fio de Ariadne III

Transcrição

Fio de Ariadne III
FIO DE ARIADNE
ORIENTAÇÃO E INICIAÇÃO À PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM
LETRAS
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
V.3
FIO DE ARIADNE
ORIENTAÇÃO E INICIAÇÃO À PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM
LETRAS
Copyright 2004, by Universidade da Amazônia
REITOR
Édson Raymundo Pinheiro de Souza Franco
VICE-REITOR
Antonio de Carvalho Vaz Pereira
PRÓ-REITOR DE ENSINO
Mário Francisco Guzzo
PRÓ-REITORA DE PESQUISA, PÓS-GRADUAÇÃO E EXTENSÃO
Núbia Maria de Vasconcelos Maciel
DIRETORA DO CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO
Ana Célia Bahia Silva
“Campus” Alcindo Cacela
“Campus” BR
“Campus” Quintino
“Campus” Senador Lemos
Av. Alcindo Cacela, 287
Rod. BR-316, km 3
Trav. Quintino Bocaiúva, 1808 Av. Senador Lemos, 2809
66035-190 - Belém-Pará 67113-901 - Ananindeua-Pará 66035-190 - Belém-Pará
66120-901-Belém-Pará
Fone: (91) 210-3000
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Fax: (91) 289-9308
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e-mail: [email protected]
F 517f
Fio de Ariadne: orientação e iniciação à pesquisa na Graduação.
Belém: UNAMA, 2004
ISBN 85-86783-39-0
1. Trabalho de Conclusão de Curso - Letras. 3. Iniciação Científica.
II. Título
CDD: 001.42
UNIVERSIDADE DA AMAZÔNIA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS E EDUCAÇÃO
FIO DE ARIADNE
ORIENTAÇÃO E INICIAÇÃO À PESQUISA NA GRADUAÇÃO EM
LETRAS
V.3
ISBN: 85-86783-39-0
Belém
UNAMA
2004
PROJETO EDITORIAL
CONCEPÇÃO GRÁFICA E ORGANIZAÇÃO:
Lucilinda Teixeira e Célia Jacob
AUXILIARES DE REVISÃO E CONCEPÇÃO GRÁFICA:
alunos de Letras, como prática da disciplina Redação
Técnica e Editoração
NORMALIZAÇÃO TÉCNICA:
Lenalúcia Soares
PARECERISTAS:
Professores – orientadores de Trabalho Final da
Graduação em Letras da Universidade da Amazônia.
CAPA: Célia Jacob
Gravura da capa: “Labirinto”
Reprodução de um dos desenhos
de padrões ornamentais indígenas
do livro A arte do trançado dos
índios do Brasil, de Berta G. Ribeiro.
Museu Paraense Emílio Goeldi;
CNPq, FUNARTE, p. 84. Belém.
Falângola Editora.
O FIO DE ARIADNE
Na mitologia grega, Ariadne é a bela princesa que ajuda o herói
Teseu a se guiar pelo labirinto, onde ele entra para matar o
Minotauro, monstro devorador de gente.
Para isso, Ariadne amarra a ponta de um novelo na entrada do
labirinto e vai desenrolando-o à medida que ela e o herói penetram
na emaranhada construção. Morto o Minotauro, ambos conseguem
sair do labirinto, enrolando o fio de volta. Ensinar a aprender, então,
é não apenas mostrar os caminhos, mas também guiar, orientar o
aluno para reconhecer, em meio ao labirinto, as trilhas que conduzem às verdadeiras fontes da informação e do conhecimento.”
PROFESSORES ORFIENTADORES DA
GRADUAÇÃO EM LETRAS
Amarílis Isabel Tupiassu
Antônio Hilton Bastos da Silva
Benilton Lobato Cruz
Cleuma Matos Nascimento
Edila Porto de Oliveira
Jorge Haber Resque
José Guilherme de Oliveira Castro
José Luis Ramos Figueroa
Jossecléa Fares
Júlia Maués
Lucilinda Teixeira
Maria Célia Jacob
Maria das Graças Alves Salim
Maria do Perpétuo Socorro Cardoso da Silva
Marisa de Oliveira Mokarzel
Nelly Cecília Paiva Barreto da Rocha
Paulo Martins Nunes
Pedro de Oliveira Rocha
Raimundo Jurandy Wanghan
Rosa Maria Coelho de Assis
Sérgio Antônio Sapucahy da Silva
Linhas de Pesquisa
• Ensino de Língua e Literatura Vernácula ou
Estrangeira no Ensino Fundamental e Médio
• Contribuições da Lingüística à Construção do
Conhecimento na Área da Linguagem
• Formação do Leitor
• Produção do Texto
• Editoração
• Técnicas de Tradução
• Expressões Literárias Regionais
• Leituras Semiológicas
APRESENTAÇÃO
O II Encontro de Formação e Iniciação Científica, promovido
pelo Centro de Ciências Humanas e Educação da Universidade da
Amazônia, no qual está inserido o Curso de Letras, realizado no
período de 21 a 20 de novembro de 2003, teve como objetivo
básico a transformação do aluno em um cidadão crítico e a sua
formação em um profissional capaz de produzir um texto científico,
resultante da iniciação em uma pesquisa sobre um tema específico
e importante para a sua área de conhecimento.
Para materializar esse Encontro, embora na impossibilidade,
também de natureza espacial, de contemplar todos os graduandos,
foram indicados à publicação, em um só volume, 9 trabalhos.
Usamos como critérios, resumidamente, a qualidade de conteúdo,
o tema abordado, a legitimidade indiscutível e a coerência com a
trajetória de cada autor, ao longo dos anos da graduação e,
especialmente, durante o processo de construção do Trabalho
Final de Curso, lado a lado com o seu orientador, procurando a
saída do labirinto, “enrolando”, de volta, juntos, o metafórico” fio
de Ariadne”.
Nove trabalhos selecionados, mas que podem e devem
traduzir o esforço da totalidade dos demais orientandos, como
da totalidade de orientadores que participaram
com
responsabilidade desse momento de culminância das atividades
acadêmicas da graduação em Letras, na UNAMA.Em todas essas
nove monografias, além do que foi citado, percebe-se que já
existem os dois eixos marcantes por onde oscila o pêndulo do
conteúdo e o da metodologia: o quê e o como pesquisar. O
adequado equilíbrio entre ambos deu-lhes a qualidade que reflete
de cada um desses autores, no Curso, justificando o conceito
máximo atribuído, além de respaldar a indicação à publicação pela
banca examinadora, com o aval de cada orientador.
Ao colocarmos a público esses nove trabalhos de conclusão
de curso, com o textos, na íntegra, já transformados em artigos,
esperamos contribuir, com seus autores, agora nossos estimados
antigos alunos, para abertura de novas portas do conhecimento,
uma vez que podem mencionar em seus currículos a autoria de
texto científico em uma publicação com ISBN- item importante na
análise de títulos em exames para ingresso em cursos de Pós –
Graduação.Ao mesmo tempo, desejamos estimular, provocar
nossos alunos que estão a caminho da elaboração do seu Trabalho
Final de Curso para , também, merecerem ter seus nomes no
sumário dos próximos números dessa publicação.
Este número 3 de Fio de Ariadne, enfim, é o nosso prêmio
ao talento, à inteligência, ao esforço, à seriedade e à dedicação
desses nove jovens, que simbolizam agora os nossos antigos alunos
e o nosso orgulho pela profissão que abraçamos.É, também, o
nosso agradecimento materializado a todos eles, pela confiança
depositada em nós, professores do Curso de Letras, e o igual
agradecimento de todos os que fazem a Universidade da Amazônia.
Dezembro de 2004
Célia Jacob
Coordenadora do Encontro de Formação
e Iniciação Científica em Letras
na Universidade da Amazônia
SUMÁRIO
1- A POÉTICA DE DANTE ALIGHIERI: AS FIGURAÇÔES
DO FEMININO NA DIVINA COMÉDIA.............................. 11
Aluna - autora: Ana Carolina Barata Morbach
Professor – orientador: Amarílis Tupiassu
2- O USO DA “TEORIA DAS INTELIGÊNCIAS MÚLTIPLAS”
NO ENSINO DA LÍNGUA INGLESA NOS CURSOS DE
LETRAS........................................................................ 49
Aluna - autora: Anna Paula Luande Bitar
Professor (es) – orientador (es) – Jorge Haber Resque e
Edila Porto de Oliveira
3- AS PREPOSIÇÕES “ A” E “ EM “ EM REDAÇÕES
ESCOLARES.................................................................. 79
Aluno - autor: Marcos Jaime Araújo
Professor - orientador: Jurandy Wanghan
4– UTOPIA E POESIA EM MANUEL BANDEIRA................ 109
Aluno – autor: Nellianny dos Santos Soares
Professor - orientador: Amarílis Tupiassu
5– A TRANSCULTURALIDADE EM A TERCEIRA MARGEM,
DE BENEDICTO MONTEIRO......................................... 131
ALUNO - autor: Elisângela Alves Gusmão
Professor - orientador: José Guilherme de Oliveira Castro
6- MITO DE ZAHY: A LUA DOS ÍNDIOS TEMBÉ................. 161
Aluna - autora: Ara Lúcia Nascimento Alencar
Professor - orientador: Ivânia Neves Corrêa
7- ESTRANGEIRISMO E EMPRÉSTIMO: UMA QUESTÃO
LINGÜÍSTICA E/OU DE SOBERANIA.......................... 187
Aluno-autor: Luiz Euclides da Silva Neves
Professor–orientador: Maria do Perpétuo Socorro Cardoso
da Silva
8- AS FACES DO AMOR NOS POEMAS MUSICADOS FOI BOTO,
SINHÁ E TAMBA – TAJÁ, DE WALDEMAR HENRIQUE...205
Aluna - autora: Linete Cardoso Fernandes
Professora – orientadora: Nelly Cecília Paiva Barreto da Rocha
9- ISMAEL NERY - O POETA ........................................... 237
Aluno – autor: Nacif Ricci Jordy Filho
Professor - orientador: João Carlos Pereira
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Ana Carolina Barata Morbach
A POÉTICA DE DANTE ALIGHIERI:
AS FIGURAÇÕES DO FEMININO NA DIVINA COMÉDIA
Orientadora: Amarílis Tupiassu
RESUMO
O presente trabalho propõe uma leitura da poética da Divina
Comédia, de Dante Alighieri, com um enfoque nas figuras femininas
presentes neste poema. Sendo esta obra de valor extremamente
biográfico, estas são estudadas segundo uma perspectiva histórica
e literária, levando em conta a sua influência na vida ou contexto
social do autor e, posteriormente, em seus escritos. Considera-se,
também, a influência da poesia de amor cortês, corrente na época,
e sua importância para que se possa entender o papel do feminino
no Poema, visto que a conceituação do amor e da mulher ali
encontrados dependem dessa forma de poesia. Desse modo,
procura-se investigar como Dante trabalhou essas figuras, que não
se resumem a Beatriz, seu grande amor e inspiração literária, e
que estão presentes em diversos momentos da narrativa poética,
exercendo funções específicas no significado da obra. Esta tese
comprova, justamente, como a Comédia possibilitou ao Poeta
promover uma grande inovação e uma superação de sua própria
escola literária, e como as personagens ou figuras femininas criadas
por ele contribuíram para este fato.
Palavras-chaves: Divina Comédia, Dante Alighieri, figuras
femininas e poesia de amor cortês.
ABSTRACT
This paper proposes a reading about poetic style of Dante
Alighieri’s Divine Comedy, focusing on the female figures that are
found in this poem. This work has an extremely high biographic
value, so the characters are studied in a historic and literary
perspective, taking into account its influence on the author’s life
and social context, and later in his writings. It also considers the
influence of court love poetry, common at that time, and its
importance, so that the female role in the Poem can be understood,
because the concepts of woman and love are dependent of this
poetry form. This way, I try to investigate how Dante has worked
on these figures, that are not summarised on Beatrice, his great
love and literary inspiration, and that are present in many moments
of the poetic narrative, fulfilling specific functions on the work’s
signification. This paper proves exactly how the Comedy has made
possible to the Poet to promote such a great innovation and
overcoming of his own literary school, and how the female characters
or figures created by him have contributed to this fact.
Keywords: Dante Alighieri’s Divine Comedy, female figures
and court love poetry.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Ao escolher o tema de um trabalho de pesquisa, deve-se levar
em consideração uma temática que seja capaz de suscitar interesse
e que possibilite ao pesquisador um acréscimo de conhecimento,
útil para ampliar a sua formação e desenvolver seus horizontes
culturais.
Por isso, ao decidir qual seria o tema de meu Trabalho de
Graduação, procurei algo que me possibilitasse preencher esses
requisitos. Foi então que, devido a uma experiência pessoal, entrei
em contato com o universo de Dante Alighieri (1265-1321). A sua
literatura despertou em mim um grande interesse, não somente no
que diz respeito à cultura da Itália, seu país de origem, mas,
principalmente, no sentido universal que sua obra possui,
especificamente a Divina Comédia, sua expressão máxima, e na
repercussão desta no pensamento ocidental.
Logo percebi, no entanto, que o estudo de uma obra literária
pertencente à Idade Média é algo bastante complexo. Na época em
que a cultura cristã teve seu ápice, o modo de viver e pensar era
bastante diferente do de hoje; o conceito de arte e literatura também.
Como conseqüência desse fato, os estudos que tratam do assunto
são geralmente vagos e divergem entre si.
Entretanto, muito daqueles tempos ficou, e prova disso é que
sentimos ainda hoje alguns ecos daquele passado. Quando se lê a
Divina Comédia é possível perceber o impacto que esta obra teve,
pois nela Dante soube resumir toda cultura e conhecimento de que
dispunha, então, a Humanidade. Em conseqüência, este Poema Sacro
é hoje considerado a suma da cultura medieval. Além de ser a obra
máxima deste autor, é também considerada a obra-prima do
Renascimento.
Foi compreendendo esta enorme importância que desenvolvi
o interesse em elaborar este trabalho. Surgiu em minha mente,
então, a seguinte questão: de que maneira Dante conseguiu reunir,
em uma mesma obra, tantos aspectos?
Dante teve uma vivência incomum, conturbada pelo
compromisso com a política e por questões filosóficas e existenciais
que sempre o perseguiram. A sua cultura, uma das mais vastas
que um ser humano pode possuir, incluía diversas áreas do
conhecimento (teologia, filosofia, astronomia, matemática, história,
arte...). Suas idéias, sempre determinadas e independentes,
desafiaram os poderosos (e essa é uma das razões de seu exílio).
Essa personalidade fascinante e cheia de contradições está
perfeitamente refletida na Comédia, poema em que a fé cristã,
ciências ocultas como a numerologia e a astrologia, filosofia e
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mitologia grega e romana convivem no mesmo espaço. Este é o
reflexo do homem completo que ele era, e também da vastidão de
diferentes conhecimentos que circulavam e faziam florescer as
primeiras raízes do Renascimento.
Uma obra tão vasta, entretanto, representa um mundo de
opções, e um trabalho desta natureza precisa ter seu objeto
claramente delimitado. Por isso, além de estudar a Comédia, decidi
trabalhar, especificamente, uma das temáticas mais importantes
ali inseridas: a figura feminina.
O amor de Dante por Beatriz, um dos mais célebres de todos
os tempos, encontra na Divina Comédia o seu ápice. Tendo em
vista que o Poeta foi um dos primeiros a aderir à nascente escola
do doce estilo novo, literatura cortês marcada pela exaltação da
mulher, procurei investigar que influência essa filosofia do amor
exerceu sobre os conceitos de Dante e em sua experiência real, e
depois literária, com a dama que o inspirou por toda a vida.
Além disso, Beatriz não é a única figura feminina a ter destaque
no Poema, embora seja a maior delas. Foi preciso analisar estas
outras figuras, realizando uma cuidadosa leitura da Comédia e da
bibliografia utilizada, para demonstrar que função elas exercem na
viagem de conversão, ou seja, no conjunto da obra e de que maneira
estão relacionadas à figura central de Beatriz.
Para cumprir com esse objetivo, decidi desenvolver a pesquisa
em cinco partes: em primeiro lugar, ofereço uma visão panorâmica
sobre Dante a Divina Comédia, a fim de fornecer informações gerais
necessárias para um entendimento mais aprofundado; na segunda
parte, abordo a questão da mulher na Idade Média, que está
intimamente relacionada ao stil nuovo e à visão que Dante possuía
do feminino; na terceira começo a discussão sobre as figuras
femininas, iniciando com Francesca, no Inferno; na quarta, apresento
as figuras femininas no Purgatório e, finalmente, na última parte,
discorro sobre Beatriz, a inspiração do Paraíso.
A escassez de uma literatura sobre o assunto na região seria
um grande empecilho ao desenvolvimento deste trabalho se,
felizmente, eu não tivesse tido acesso a obras italianas, que me
permitiram, dentro dos limites, o aprofundamento na questão. Dentre
estas, o livro de ensaios da estudiosa Valeria Capelli, La Divina
Comedia, Percorsi e Metafore, ofereceu uma excelente fonte, na
qual a presença da figura feminina no Poema é muito bem estudada.
Outra, Le Donne del Medioevo, forneceu-me a base teórica
necessária para o estudo da mulher medieval.
Da bibliografia em língua portuguesa, foi de grande ajuda o
ensaio Figura, do famoso teórico da literatura Erich Auerbach, do
qual pude extrair conceitos sobre a figura em si, dentro da Comédia,
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e o polêmico O Segundo Sexo, de Simone de Beauvoir, que também
apresenta a perspectiva social da mulher e da poética de amor
cortês na época.
Em resumo, pretende-se investigar o porquê de terem essas
manifestações do feminino sido abordadas de uma ou outra maneira
na Comédia, a forma como Dante as explorou literariamente para
que se encaixassem ao sentido da obra e que pensamento,
influenciado ou não pelo contexto em que vivia, o levou àquela
criação poética. Como foi dito anteriormente, esse é somente um
dos inúmeros aspectos possíveis a serem explorados nesta
vastíssima obra, mas pode nos fornecer a chave para a
compreensão, em boa parte, daquela sociedade passada que instiga
a curiosidade de muitos e cujas bases ideológicas nos influenciam
até hoje. Espero, sinceramente, ter correspondido a estes objetivos.
I – O Autor e sua Obra
1.1 – Nota Biográfica
Dante Alighieri nasceu em Florença, na Itália, no ano de 1265.
Sua família pertencia à pequena nobreza florentina. Perdeu a mãe
ainda criança e seu pai casou-se novamente, dando-lhe muitos
irmãos. A primeira formação cultural de Dante deu-se em uma
escola privada de sua cidade natal. Estudou, posteriormente, o
Trivium (gramática, retórica, dialética) e o Quadrivium (aritmética,
geometria, astronomia, música) na escola média e teve como tutor
Brunetto Latini, que lhe ensinou a doutrina retórica e teve grande
influência em sua consciência moral e literária.
Já aos nove anos de idade teve seu primeiro encontro com
Beatriz (ou Bice Portinari), filha do rico banqueiro Folco. Nove anos
depois, após o segundo encontro, Dante, que já havia se
apaixonado, sente renovado amor e começa a compor seus
primeiros versos, os quais recolherá, depois da morte da amada,
na obra Vida Nova (1293-94).
Em 1287, foi a Bolonha, onde provavelmente freqüentou a
universidade. Lá teve contato com grandes poetas, que defendiam
um ideal de vida aristocrático e refinado. Na Toscana, entrou para
o movimento literário que ele próprio definiu doce estilo novo, em
cujas obras se costumava exaltar a mulher como uma criatura
celeste.
Após a morte de Beatriz, o Poeta, que vivia uma vida
desregrada, procurou a filosofia e as verdades da fé. Iniciou a
leitura de Boécio e Cícero e teve contato com as escolas dos
franciscanos e dominicanos, onde se estudava Aristóteles e São
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A POÉTICA DE DANTE ALIGHIERI:
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Tomás de Aquino, respectivamente. Em 1295, casou-se com Gemma
Donati, a qual lhe havia sido prometida na infância. Foi também
nesse ano que começou a sua atividade política. Ele já havia
participado de batalhas entre facções partidárias de Florença, os
guelfos e guibelinos (a princípio contra os guibelinos), porém, agora,
uma nova lei estendia aos nobres o acesso aos cargos públicos.
Dante ingressou no momento em que ocorria uma divisão dos guelfos
entre brancos e negros, ou as duas poderosas famílias dos Cerchi
e dos Donati. Dando a sua adesão aos brancos, que se opunham à
política do Papa, Dante selou seu destino. Os negros venceram,
expulsaram os brancos e ele foi condenado ao exílio e à fogueira
caso retornasse a Florença.
Foi o começo de peregrinações por várias cidades da Itália,
durante o qual, além da Comédia, ele compôs o Convivio e De
Vulgari Eloquentia. Com a morte do imperador Henrique VII, que
queria pacificar as cidades italianas, Dante perdeu todas as
esperanças de retornar à sua cidade natal. Passou os últimos anos
de sua vida em Ravena. Em 1321, faleceu de malária na noite de
13 de setembro.
1.1.1 – Sobre a Divina Comédia
A Divina Comédia é um poema em primeira pessoa, composto
de um canto introdutório e de três grandes cânticos: Inferno,
Purgatório e Paraíso, contendo cada um deles trinta e três cantos.
Os versos são decassílabos e o metro é o terceto encadeado. Dante
a chamou, humildemente, Comédia porque termina, segundo o
modelo clássico, com um final feliz. Mais tarde, Boccaccio acrescentou
ao título o adjetivo “Divina”. A primeira impressão conhecida da
obra é de Veneza, ano de 1555.
Dante relata uma suposta viagem, de uma semana de duração,
no jubileu de 1300, feita “no meio do caminho de nossa vida” (aos
35 anos), entre a quinta-feira santa e o domingo de Páscoa. Ele se
perde em uma floresta obscura e três feras - os pecados humanos
- lhe impedem a passagem. É socorrido por Virgílio, o grande poeta
latino, que lhe propõe uma jornada pelos reinos além da morte,
para a purificação e conversão de sua alma. Virgílio informa que
havia sido visitado por Beatriz, a mulher que ele tanto amara e que
agora estava no Paraíso. Ela, juntamente com a Virgem e Santa
Lúcia, haviam intercedido por ele e pela salvação de sua alma.
Por meio dessa intervenção celestial, Virgílio conduz Dante através
do Inferno, o lugar dos condenados, do Purgatório, onde estão as
almas dos pecadores arrependidos, e o deixa, em seguida, à custódia
de Beatriz, que será a guia no Paraíso, a morada dos espíritos bem-
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aventurados. Em todos esses reinos, ele encontra almas de conhecidos
ou de figuras importantes da História e de seu tempo. É submetido a
duras provas, mas obtém, finalmente, a visão de Deus.
O Poeta descreve, ao longo da narrativa em versos, a
conformação do mundo extraterreno, que está disposto da seguinte
maneira: precisamente debaixo de Jerusalém, abre-se sob a Terra
uma enorme depressão, provocada pela queda de Lúcifer, que se
encontra no fundo do abismo. No hemisfério oposto, o austral (que
se acreditava desabitado) está a montanha do Purgatório, produto
das terras esvaziadas após a queda, cujo topo dá acesso ao Paraíso
Terrestre, ou Éden, perdido para o Homem desde o pecado original.
O Inferno é constituído de nove círculos concêntricos situados
na depressão, cada qual destinado a uma punição, de acordo com
a gravidade do pecado. Já o Purgatório é dividido em sete faixas,
destinadas aos sete pecados capitais, além do antipurgatório e
Paraíso Terrestre, formando novamente o número nove, número
cabalístico que marcou a vida do autor. Nove esferas celestes
formam o Paraíso. Segundo o sistema ptolomaico, elas circulam
em volta da Terra imóvel, assim como os astros, e conduzem ao
Empíreo (do grego empýrios, lugar dos astros), onde está o Criador.
1.2 – A Linguagem
Dante proporcionou importantíssimas inovações, na Comédia,
no plano da linguagem. Uma breve incursão pelo panorama
lingüístico da Itália daquela época pode nos fornecer alguns dados
sobre esse aspecto.
Entre os séculos XII e XIII, a Itália estava fragmentada
politicamente e se falavam, em suas várias províncias, diversos
dialetos provenientes do latim vulgar. Entretanto, a língua latina
era utilizada nos escritos em geral, inclusive na literatura. Todo
intelectual, mesmo fazendo uso do vulgar na fala, devia estar apto
a escrever naquela língua, que era considerada a mais erudita.
Quando Dante nasceu, na Toscana já existia um grupo de
poetas empenhado em produzir versos utilizando variedades do
vulgar falado naquela região. Ele possuía habilidade com o latim,
porém, assim como os de seu grupo, também desejava encontrar
o que ele chamava “o vulgar ilustre”, uma seleção de variedades
de vulgar que resultaria em uma linguagem nobre e acessível a
todas as camadas do povo italiano.
Ele procura discutir sobre o assunto em seu tratado De Vulgari
Eloquentia, no qual fala de um “vulgar ilustre” inter-regional. Contudo,
ao escrever a Comédia, a história é bem diferente: ele abandona esse
intento e escreve motivado por diferentes necessidades. Isso significa
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que o seu texto deveria, além de atingir a todos, ter por assunto algo
muito, muito mais universal do que as questões de sua província.
Portanto, ele opta por um multilingüismo, no sentido em que explora os
tons mais diversos: plebeu, sublime, trágico, cômico, todas as
possibilidades expressivas, como afirma Giorgio Squarotti (1991:27):
Não é mais o mundo limitado da poesia de amor
do estilo novo; a “Comédia” é uma suma jamais
experimentada, que abraça toda a cultura e
conhecimento do homem medieval, é uma
experiência total, rica em realismo, polêmica,
ciência, filosofia, vida cotidiana...* 1
Percebe-se então que, tendo como objetivo algo tão
abrangente, Dante não poderia deixar de lado nenhuma modalidade
lingüística. Ele sente a necessidade de adaptar a expressão à
situação, que pode vir de um diálogo com um pecador condenado,
na ruína do Inferno, ou com um espírito beato no indescritível
Paraíso, o que conseguiu fazer de maneira bastante realista.
Podemos claramente perceber o esforço expressivo de Dante
quando, num dos últimos cantos do Inferno, ele declara a sua
impossibilidade de descrever em linguagem mortal os horrores
daquele reino das trevas:
Se usasse rimas ásperas, rouquenhas
Próprias do poço lôbrego e tristonho,
Que do Inferno sustêm as outras penhas,
Melhor idéia do lugar medonho
Dera; mas tal vantagem me falece.
O meu conceito, pois, tímido exponho.**2
(Inf., XXXII, 1-6).
Essa força de expressão, intenso realismo e riqueza de detalhes
produziram uma obra sem precedentes e, conseqüentemente, a
sua repercussão foi tão grande a ponto de contribuir em muito para
a unidade lingüística italiana. A popularidade foi tanta, que a Comédia
se tornou referência de estudo nos ambientes intelectuais e
filosóficos (inclusive Boccaccio, anos depois, escreveu a biografia
de Dante), porque ninguém ainda havia descrito com tanta precisão
lugares e experiências que apenas pertenciam de maneira vaga ao
imaginário cristão, o que atiçou a imaginação de muitos.
Além de popularizar o vulgar, Dante também inaugurou, na
* Todas as traduções de trechos correspondentes à bibliografia em idioma italiano foram feitas pela autora deste
trabalho.
1
Non è più il mondo limitato della poesia d’amore stilnovistica; la Commedia è una summa mai tentata, che
abbraccia tutta la cultura e la conoscenza dell’uomo medievale, è esperienza totale, ricca di realismo, di
polemica, di scienza, di vita quotidiana...
** As traduções para o português da Comédia, aqui citadas, são de J. P. Xavier Pinheiro.
2
Se io avessi le rime ed aspre e chiocce / Come si converebbe al tristo buco / Sovra’l qual pontan tutte l’altre
rocce / L’premerei di mio concetto il suco / Più pienamente; ma perch’io non l’abbo / Non senza tema a dicer mi
conduco.
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Comédia, a forma métrica do terceto encadeado. O Poema é todo
construído com base em duas figuras de linguagem muito difundidas
na Idade Média: a alegoria e a figura. Muito exploradas pelos padres
da Igreja nos princípios do Cristianismo, elas encontram nessa obra
uma maior variedade de usos e sentidos, já que não estão limitadas
apenas à interpretação da Bíblia, mas são essencialmente fruto da
criação poética.
1.3 – Entre o Sagrado e o Profano
A fusão entre sagrado e profano nos permite conhecer o
fundamento filosófico e teológico que rege o sistema da Comédia,
ou seja, o renascimento da filosofia clássica e o grande esforço
para conciliá-la com a teologia, colocando, lado a lado, razão e fé.
Dante faz uma ponte entre toda a cultura da Antigüidade Clássica
até a sua época e esse sincretismo lhe permite invocar a proteção
das Musas e de Apolo para sua obra, além de reduzir monstros
mitológicos a demônios e, até no Paraíso, associar a aparição dos
beatos a divindades pagãs, como Vênus, Mercúrio, Marte, Júpiter e
Saturno. O maior exemplo dessa fusão, porém, é a presença de
Virgílio, o poeta pagão que guia Dante no Inferno e no Purgatório.
Ele é o verdadeiro símbolo da razão natural que se unirá, no Paraíso,
à sabedoria divina, representada por Beatriz.
Além dessa união entre paganismo e cristianismo, também é
evidente o caráter profético da Comédia. Ao ler o poema dantesco,
fica sempre óbvio o fato de Dante ter pretendido não apenas
escrever uma extraordinária obra literária, mas um texto, segundo
ele, diretamente inspirado por Deus. Ele concede a si mesmo, dessa
maneira, uma função profética, a de revelar a verdade, a justiça e
a beleza divinas, pois, para ele, a verdadeira realidade está após a
morte, numa influência claramente neoplatônica. Essa concepção
da arte medieval é expressada nas palavras de AUERBACH
(1997:53): Trata-se de algo provavelmente baseado na noção de
que o trabalho do artista é uma imitação ou, pelo menos, uma
pálida figuração de uma realidade verdadeira e igualmente
sensível...3 em outras palavras, a imitação não é a da realidade
terrena, mas sim a do mundo ideal extraterreno.
Era comum, na Idade Média, a difusão de textos baseados
em visões sobrenaturais. A realidade – e isso significa tudo que é
material – era considerada a representação de algo que existia em
um plano mais elevado. Também interessante, no imaginário
medieval, era o valor dos sonhos, atribuídos a Deus ou ao diabo e
considerados premonitórios ou de natureza reveladora. Sonho ou
visão, estas manifestações do sobrenatural parecem estar evidentes
3
As noções de Auerbach sobre a figura e a concepção neoplatônica da realidade continuarão a ser desenvolvidas nesta e em outras partes deste trabalho.
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na narrativa dantesca, já que constituíam, segundo a filosofia do
autor, visões da realidade.
Por isso é importante sabermos que Dante considerou, ou,
pelo menos, quis considerar essa viagem uma experiência real,
pois só se pode interpretar de maneira correta essa obra após
adquirir conhecimento de como pensava o seu autor. Submeter a
Comédia a sistemas ideológicos atuais, de modo a tentar justificar
que “viagem-visão” se tratava de um mero artifício literário, não
nos levará a lugar algum, pois o que interessa é o valor dos
conteúdos históricos, artísticos e filosóficos que o Poema pode nos
oferecer. Que esta obra influenciou as épocas posteriores à sua é
fato comprovado; resta-nos então tentar compreendê-la e também
compreender os reflexos que ela deixou em nosso pensamento, a
ponto de até hoje usarmos, por exemplo, o adjetivo “dantesco”,
quando queremos expressar um situação de horror e caos. Este
foi, dentre muitos, o fruto do impacto, muitos séculos atrás, de
uma obra inédita que inaugurou uma nova forma de pensar e
também de produzir literatura.
Mais interessante é o modo como Dante soube colocar, em um
poema voltado para o mundo extra-corpóreo, freqüentes alusões à
política, da qual ele participou intensamente, a personalidades
famosas em seu tempo, ou mesmo a figuras mitológicas e santos
(Ulisses no Inferno ou São Francisco de Assis, no Paraíso, por
exemplo) que estão presentes a cada canto. Muitos desses espíritos
condenados ou beatificados predizem o futuro (ou o que aconteceria
após a data da viagem), como no canto X do Inferno, no qual
Farinata degli Uperti, um florentino que está no círculo dos heréticos,
vaticina o exílio de Dante. Além dessas profecias, em sua maioria
relativas à situação política da Itália e de Florença, são numerosos
os versos de crítica à situação desta cidade, proferidos tanto por
personagens quanto pelo próprio narrador, como neste trecho:
Folga, ó Florença! A fama tens tão grande,
Que asas bates por terra e mar, vaidosa!
Até no inferno o nome teu se expande.4
(Inf., XXVI, 1-3).
Esse fato demonstra como Dante soube unir, de um lado, os
aspectos mundanos, entre eles a política e, de outro, a metafísica do
mundo espiritual. Ele realiza, dessa maneira, uma perfeita fusão
entre realidade e fantasia, entre o poético e o corriqueiro. Como foi
dito antes, ele explorou todos os aspectos de sua vida nessa obra.
Porém, muito além de autobiografia, a história de Dante é a história
de cada cristão: o seu “eu” histórico encarna-se em uma personagem,
ou, mais precisamente, em uma figura que deverá realizar um plano
divino para a salvação de toda a cristandade. É ao retornar da viagem
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Godi, Fiorenza/ poi che se’ sì grande/ che per mare e terra bati l’ali/ e per lo ‘nferno tuo nome si spande!
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que esse cristão como tantos deverá exercer a função de servir a
Deus por meio de sua arte, porém na forma profana da poesia.
1.4 – A Mulher
O fato de Beatriz ocupar grande parte da Divina Comédia, ou
ainda, ser ela a dar a oportunidade e o motivo para a salvação de
Dante, chama a atenção para a importância do papel feminino na
obra. Essa importância está ligada, em grande parte, à influência
que a mulher e o amor teve em sua vida. Os ideais amorosos tão
vividos pelo Poeta no movimento literário de sua juventude
marcaram grande parte de sua existência, definindo em seu
pensamento a visão de “aristocracia do intelecto” e idealização
amorosa. Ele utilizou essa forma de fazer poesia para cantar a sua
Beatriz em vida, a mulher por quem ele moveu extremo amor,
fonte de sofrimento pela impossibilidade de realização.
Curiosamente, em sua maior e última obra ele dá um diferente
sentido a esse amor. Beatriz, a mulher real, passa a ser um espírito
beato, guia de sua viagem e da conversão final de sua alma. A
mulher idealizada dá lugar ao espírito puro, e sua existência histórica
passa a ter no Poema um significado muito maior (em semelhança
ao caso do personagem Dante).
Assim como o conflito entre razão e fé, os novos valores que
estavam surgindo desde o século XIII afetavam a visão de mundo
do autor. O desprezo que a sociedade cristã nutria pelas coisas
terrenas começava a atenuar-se, dando lugar a uma valorização
maior do ser humano. É de se esperar, portanto, que Dante já não
possuísse exatamente aquelas mesmas idéias sobre a mulher que
eram defendidas pela Igreja. E ele vai mais além, visto que não
demonstra o pecado de acordo com a perspectiva masculina ou
feminina, e sim humana.
Porém, Beatriz não é o único exemplo feminino nessa obra.
Existem muitos outros, que são representações alegóricas, simbólicas
ou figurais de virtudes ou da ruína da alma. É por meio da análise
dessas figuras - que, daqui em diante, serão analisadas - que se
poderá compreender até que ponto a visão de Dante sobre a mulher
permaneceu enraizada nos ideais de amor de sua juventude e até
onde ele abandonou ou superou esta forma de pensar, levando em
consideração, também, a forma como o meio social e o momento
histórico podem ter influenciado a sua produção literária neste sentido.
II – Contextualização da Mulher na Idade Média
Para que se possa fazer uma análise coerente sobre o caráter
da figura feminina na Divina Comédia, é fundamental ter
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conhecimento da situação em que se encontrava a mulher de sua
época, e que acontecimentos históricos contribuíram para tal.
Considerando os aspectos mais importantes sobre a visão do
feminino dentro deste poema, pode-se destacar dois principais: o
papel da mulher para a Igreja Católica, visto que se trata de um
poema sacro, e a relação entre essa mística religiosa e a corte de
amor, visto que os ideais amorosos foram importantes para a
formação do pensamento do autor sobre o feminino e a feminilidade.
Do ponto de vista histórico, pode-se dizer que, a partir do
momento em que o Cristianismo foi aceito como a religião oficial
do Império, essa grande mudança ideológica afetou todos os setores
da sociedade, inclusive o papel da mulher. Sempre marginalizada,
com a formação da sociedade feudal e cristã, o domínio sobre ela
se concretizou de forma plena. O estado de relativa igualdade que
as cristãs dos princípios do cristianismo gozavam junto à sua
comunidade foi se dissipando aos poucos. A centralização da Igreja
em Roma culminou na proibição do sacerdócio feminino: a Igreja
era dos homens. Foi também durante a Idade Média (a partir do
século XI) que se impôs o celibato aos padres. Esse acontecimento
foi decisivo para a visão que o clero e, conseqüentemente, a
sociedade dominada por ele, teria da mulher.
Além do celibato, durante a Alta Idade Média começou a difusão
crescente da prática da vida reclusa dos monges. Muitas vezes os
meninos eram entregues ao monastério ainda muito jovens e o
contato com o sexo feminino ao longo de suas vidas era bastante
escasso, o que resultou numa misoginia cada vez mais freqüente.
Em contraste com a visão pura e ascética estava a carne, identificada
com a tentação do corpo feminino; este representava o pecado, o
demônio. A mulher transformou-se num ser misterioso e assustador,
como afirma Jacques Dalarun (2001:24):
Separados da mulher por um celibato
imposto rigorosamente a todos a partir do século
XI, os clérigos ignoram tudo a seu respeito.
Eles a imaginam, ou melhor, “A” imaginam;
representam a Mulher, de longe, na estranheza
e no temor, como uma essência singular,
embora profundamente contraditória.5
Essa misoginia colheu frutos no pensamento dos religiosos e
resultou numa ampla literatura sobre o assunto. Tratados, poemas
e comentários sobre as escrituras discorrem sobre a natureza fraca
e facilmente corruptível da mulher, numa tentativa de ocultar a
angústia que o ser do sexo feminino causava no ambiente clerical.
Principalmente nos primeiros séculos houve uma constante repetição
5
Separati dalle donne da un celibato esteso rigorosamente a tutti a partire dall’ XI secolo, i chierici ignorano tutto
delle donne. Se le immaginano, o piuttosto se La immaginano; si rapresentano la Donna, da lontano,
nell’estraneità e nel timore, come un’essenza particolare anche se profondamente contraditoria.
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desse tema na literatura dos padres, que procuravam fazer, das
virtudes e defeitos da mulher, verdades eternas. O livro do Gênesis
contribuiu em muito para a invenção desse mito, justificado pela
Bíblia por meio de Eva. Acusada de ser a causa do sofrimento de
toda a humanidade, por ter sucumbido à tentação da serpente e
convencido Adão a segui-la no pecado, ela é o mais importante
argumento dos clérigos a favor da misoginia. Dessa forma, os
religiosos não procuravam dar outra interpretação à história que
não fosse a mais conveniente. As maldições que Eva recebe de
Deus como punição para seu pecado (entre elas a de ser dominada
pelo homem) servem, então, de justificativa para a opressão de
todas as mulheres por parte de seus maridos.
A partir do século XII, ocorre uma mudança, uma espécie de
novo pensamento sobre o feminino, ocasionada pelo expressivo
aumento do culto à Virgem Maria. Esse é conhecido como o século de
Nossa Senhora. Os escritores a exaltam, louvam, confiam-lhe seus
pecados mais inconfessáveis. Porém, é importante ressaltar que se
trata de uma exceção, um exemplo único. São proclamados os dogmas
da virgindade e da maternidade divina. Para obter o mérito de ser a
mãe do Cristo, Maria precisa se diferenciar de todas as outras mulheres,
não passar pelos mesmos processos naturais da concepção e do parto.
Simone de Beauvoir (2001:123) afirma:
...ante a Eva pecadora, a Igreja foi levada
a exaltar a Mãe do Redentor. Seu culto tornouse tão importante que se pôde dizer que no
século XIII Deus se fizera mulher; uma mística
da mulher desenvolve-se, portanto, no plano
religioso.
De fato, essa mística repercutiu, tanto no plano religioso como,
de certa forma, na lírica do amor cortês, como veremos em breve,
mas não mudou em nada a situação social das semelhantes de
Maria. O próprio sacramento do matrimônio não era visto com bons
olhos pelo clero, mas era considerado uma forma de fraqueza à
qual se fazia uma concessão. Também foram elaboradas pela Igreja
regras do casamento e da relação conjugal, a partir do século XIII,
com o objetivo de controlar o núcleo familiar, sendo que, entre
direitos e deveres, estes últimos eram, em maior parte, os da mulher.
Ela deveria ter fidelidade absoluta ao marido, compromisso que
não era recíproco; deveria ser submissa e venerar o seu “senhor”,
em torno do qual girava o seu mundo. O mais singular, entretanto,
dizia respeito ao amor: enquanto era dever da esposa devotar ao
esposo um amor perfeito e sem medidas, o amor deste devia ser
mais contido, moderado.
Somente já na Baixa Idade Média foi reconhecida a santidade
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de mulheres que haviam sido casadas e começaram a ser exaltados
os valores da “boa esposa”. Santa Radegunda (?- 587), foi uma das
primeiras mulheres a ter a sua história escrita nesse período,
narrativa que acentuava, entretanto, a retirada da noviça de um
convento para o matrimônio e a perda forçada de seu voto de
castidade. As “santas casadas” são sempre aquelas constrangidas
a quebrar seus votos religiosos. Veja-se o exemplo, na Comédia,
de Piccarda Donati, no canto IV do Paraíso, exaltada nos céus por
ter mantido sua fé inabalável, apesar de violentada em seus votos
por um casamento arranjado.
Apesar da imagem negativa do feminino ter continuado
vigorando mesmo com o crescimento do culto de Maria, aquelas
poucas que se devotavam à vida religiosa encontravam nela um
meio de expressão de sua individualidade. Exaltadas pelos clérigos,
essas freiras e monjas respondiam a todos os requisitos impostos
pela Igreja, como a manutenção do estado virginal, mas também
constituíam exceções dentro do universo feminino por serem, além
de tudo, instruídas e de poderem tomar parte na vida social e
política. No século XII, nascem as primeiras ordens femininas dos
dominicanos e franciscanos. Santa Clara de Assis (1194-1253) foi
a primeira a fundar e dirigir, em 1212, uma ordem religiosa, a das
Clarissas. Catarina de Siena (1347-1380) participava da vida
eclesiástica e da política de sua cidade e utilizava sua influência
para ajudar os necessitados ou condenados à morte.
Um outro culto quase contemporâneo ao de Maria e que se
consolidou com bases fortes, posteriormente, foi o de Maria
Madalena. A figura da pecadora arrependida e devotada a Cristo
representou uma saída para as mulheres “terrenas”, consideradas
indignas de salvação. Agora, a Eva pecadora era suplantada pela
consciência de Madalena. Isso significa que o arrependimento e a
devoção são acessíveis não só às mulheres, mas ao ser humano.
Todavia, com o sexo feminino era sempre diferente, como afirma
DALARUN (2001:47): Se tem a impressão de que as mulheres, sob
a proteção de Madalena, devem redimir-se não uma, mas duas
vezes: por serem pecadoras e por serem mulheres.6
Mas o que há de comum entre a visão cristã da mulher e o
universo de Dante? Em primeiro lugar, é preciso entender como
surgiu a ideologia do amor cortês e que significado ela comporta de
fato. Em segundo, deve-se considerar que a obra do Poeta está
repleta dessa ideologia, mas também de religião e misticismo.
Portanto, não é estranho que tanto a visão espiritual quanto à
mundana estejam sempre entrelaçadas em sua poética.
O modelo cortês original nasceu na França do século XII e
representa as relações entre homem e mulher, chamadas fine amour
6
Si ha l’impressione che le donne, sotto la protezione della Maddalena, debbano redimersi due volte piuttosto che
una: di essere peccatori e di essere donne.
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(amor refinado), nas quais está sempre centrada uma personagem
feminina, uma “dama”, denominação que exprime a sua situação de
mulher casada. Um jovem, por sua vez, a vê e, desde então, nutre
por ela um intenso amor (é importante ressaltar que a palavra “amor”,
nesse contexto, significa, simplesmente, o apetite carnal). Então,
começa o jogo da corte, o processo de conquista, que implica também
o rebaixamento, a vassalagem do jovem perante a nobreza e virtude
da mulher desejada. Simone de Beauvoir (2000:123) resume bem o
verdadeiro caráter desta ação: ...a mulher buscava um amante fora
do casamento. O amor cortês era uma compensação à barbárie dos
costumes oficiais (...) Na realidade, conquanto amenize a sorte da
mulher, a cortesia não a modifica profundamente.
Essa senhora, esposa do senhor feudal, estava facilmente sujeita
à dominação e à rotina. Por isso, o direito de escolher, de aceitar ou
não a corte, dá a ela uma poder que antes não estava ao seu
alcance. Mas será a corte a libertação da mulher medieval? O amor
era um jogo arriscado, no qual somente o homem tinha a
possibilidade de vencer. Quando o modelo literário do fine amour
foi difundido, essa escola constituía desde já uma literatura de
homens, para homens.
A questão da idealização da mulher é a que está mais próxima
do modelo religioso. Supõe-se que a linguagem mística dos textos
sacros tenha fornecido o primeiro material para a sua poética.
Freqüentemente, os padres se referiam a santas ou à Virgem como
“amada”, “amiga”, “divina” ou “imagem de Deus”. Dessa mesma
forma os poetas idealizaram suas amadas. Mas elas eram senhoras
feudais, únicas e sublimes, enquanto que, para os mesmos
admiradores, as camponesas não representavam coisa alguma.
A corte de amor se espalhou e recebeu diferenciadas formas,
de acordo com a região e cultura em que se infiltrava. Na Itália,
tomou uma forma estilizada, a do dolce stil nuovo (doce estilo novo).
Para os poetas italianos, não mais interessavam os ambientes
nobres e palacianos, e sim o refinamento do espírito. Os valores
desse novo grupo incluíam o domínio das paixões humanas, a
generosidade e o amor purificado. Nesse contexto Dante foi iniciado
e essa literatura espiritual foi um perfeito meio de expressão para
seu amor inatingível por Beatriz, a ponto de torná-la a figura mais
sublime da Comédia. Ela é ora a mulher real, ora o espírito cheio
de sabedoria, e isto resume uma das maiores contradições de seu
tempo, justamente aquela que diz respeito ao caráter do sexo
feminino.
A verdadeira essência da corte amorosa, entretanto, não
passou despercebida ao pensamento de Dante que, mais tarde,
teve também a oportunidade de criticá-la, numa espécie de auto-
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penitência pela sua vida anterior, um julgamento, por meio da figura
de Francesca da Rimini, no canto V do Inferno, um dos mais belos
de toda a Comédia, para depois reforçar seus verdadeiros e
definitivos ideais na figura de Beatriz. É desse assunto que trataremos
daqui em diante.
III – Francesca: Uma Vítima do Amor
A primeira figura feminina significativa que Dante encontra em
sua viagem espiritual é Francesca. O canto V do Inferno, no qual se
dá esse encontro, é um dos mais célebres da Comédia. Esse mérito
se deve tanto à beleza dos versos quanto à história trágica – e, ao
que parece, historicamente verídica – da dama de Ravena, que
comoveu e instigou gerações de leitores e críticos literários.
O canto retrata o segundo círculo infernal, que está localizado
após o Limbo, lugar dos justos que não conheceram a fé cristã. Lá
são punidas as almas dos luxuriosos, arrebatadas por uma violenta
e incessante tempestade de vento. Na entrada está Minos, o mítico
rei de Creta, agora sob a forma de um grotesco demônio que julga
as almas recém-chegadas e revela a cada uma delas o seu cruel
destino. Ao passar pelo monstro, Dante ouve os terríveis lamentos
daqueles que eram os que aos vícios da carne se entregavam/
razão aos apetites submetendo (Inf. V, 38-39).7
Os luxuriosos foram aqueles que não conseguiram resistir à
paixão, por isso estão entre os que pecaram por incontinência,
segundo a tripartição do reino infernal feita por Dante. 8 Após
encontrar ali figuras mitológicas, como Dido, Páris e Tristão, o Poeta
vê os espíritos de Francesca da Rimini (como era conhecida) e
Paolo Malatesta. Aproveitando uma pausa entre as rajadas de vento,
eles se aproximam e ela narra a sua triste história: foi assassinada
junto ao amante por seu marido, o deformado Gianciotto Malatesta.
Ela e seu belo cunhado, instigados pela leitura da bela cena de
amor de Lancelot e Guinevere, apaixonaram-se. Flagrados, foram
vítimas de um brutal assassinato pelas mãos de Gianciotto.
“Ao lermos que nos lábios osculara
O desejado riso o heróico amante,
Este, que mais de mim não se separa,
A boca me beijou todo tremante,
De Galeotto fez o autor e o escrito.
7
enno danati i peccator carnali/ che la ragion sommetono al talento.
Três eram as culpas na classificação de Dante: incontinência, violência e fraude. O Inferno é dividido
segundo essas classes. A gravidade do pecado é medida de acordo com a participação da vontade e a
consciência no ato de pecar. Os luxuriosos pecaram por não resistir à própria vontade, o que torna a sua falta
menos grave que as outras duas, perante Deus.
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Em ler não fomos nesse dia avante”.9
(Inf. V, 134 -139)
Agora, condenados pela eternidade por sua paixão, Francesca
e Paolo são arrebatados pela fúria do vento sem descanso. Esse
ambiente externo expressa, na realidade, os sentimentos interiores,
nas palavras de Valeria Capelli (2002:66):
A relação entre a paisagem e o interior do ser
humano é evidente neste canto, não somente
na imagem da tenebrosa tempestade que alude
à paixão, mas também no fato de que a visão
da depressão na rocha produzida pela
passagem de Jesus Cristo induz as almas
danadas a blasfemar a Deus.10
Entretanto, por que a triste história de Francesca teve fim tão
cruel? Qual a razão do julgamento de Dante, se ele próprio havia
exaltado o “amor nobre” e os ideais de vida cavalheirescos, inclusive
em suas obras mais notáveis? Se aqueles amantes merecem o
Inferno, é porque algo em suas vidas os distanciava
inexoravelmente de Deus. O próprio fato de o pecado da luxúria
ter sido situado em primeiro lugar no reino infernal significa que
isso era uma prioridade para Dante e estava de acordo com os
novos ideais a serem alcançados pela viagem rumo à conversão.
Para que possamos reforçar essa interpretação, é preciso desvendar
todos os significados que estão por trás das sutis simbologias
presentes neste canto.
Em seu primeiro diálogo com Dante, Francesca esclarece a
causa de sua punição. Estas palavras nos fornecem os primeiros
indícios de sua obstinação pela paixão terrena:
“Amor, que aos corações súbito prende,
Este inflamou por minha formosura,
Que roubaram-me; o modo inda me ofende.
Amor, em paga exige igual ternura,
Tomou por ele em tal prazer meu peito,
Que, bem o vês, eterno me perdura.
Amor nos igualou da morte o efeito:
A quem no-la causou, Caína, esperas”.11
(Inf. V, 100-108)
9
“Quando leggemmo il disïato riso/ esser basciato da cotanto amante/ questi, che mai da me non fia diviso/ la
bocca mi basciò tutto tremante/ Galeotto fu’l libro e chi lo scrisse/ quel giorno piú non vi leggemmo avante”.
10
La relazione tra paesaggio e interiorità è evidentissima in questo canto, non solo nell’immagine della tempesta
tenebebrosa che richiama la passione, ma anche nel fatto che la vista dello scoscendimento della roccia prodotto
dal passaggio di Gesù Cristo induce le anime dannate a bestemmiare “la virtù divina” (Inf. V,36).
11
“Amor, ch’al cor gentil ratto s’apprende/ prese costui della bella persona/ che mi fu tolta; e’l modo ancor m’
offende/ “Amor, ch’ a nullo amato amar perdona/ mi prese del costui piacer sì forte/ che, come vedi, non m’
abbandona/ “Amor condusse noi ad una morte/ Caina attende chi a vita ci spense”.
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Nestes sublimes versos ela resume a sua desgraça. É evidente
a ênfase ao sentimento amoroso, que foi o principal acontecimento
de sua vida, porém prematuramente tolhido pela mão assassina do
marido (Que roubaram-me...) e cuja força é tão penetrante (Tomou
por ele em tal prazer meu peito...) que ela não consegue deixá-lo
para trás (Que, bem o vês, eterno me perdura). Conclui afirmando
ser este mesmo amor o causador da morte e do destino de ambos.
Gianciotto está destinado à Caína, círculo infernal onde são punidos
os assassinos de seus próprios parentes.
Mais do que a narração de seus infortúnios, Francesca faz uma
justificação de si mesma e de seu pecado. A própria tríplice repetição
da palavra Amor e sua colocação do início do verso e do discurso
ressaltam a sua exclusividade, de acordo com CAPELLI (2002:66).12
A super-valorização do “amor Eros” na vida daquela mulher está
intimamente ligada às influências literárias, visto que foi a leitura
do romance cavalheiresco (Lancelot e Guinevere) a dar o passo
inicial à sua paixão. Isso implica dizer que a intenção do autor era
demonstrar a influência que a literatura de amor cortês estava
operando sobre a sociedade medieval. Francesca é uma vítima
dessa literatura, que tinha tido seus nobres valores corrompidos e
agora dava lugar a uma “divindade”, o amor carnal, aquele que
domina, que aprisiona, do qual não se pode escapar.
O amor ilegítimo de Lancelot e Guinevere influenciou, portanto,
Francesca, assim como já havia influenciado muitas damas de
classes elevadas, pois eram grande parte do público leitor dos
poemas e romances de cavalaria. A exaltação desse amor
“pecaminoso” leva à corrupção da mentalidade e afasta o ser
humano do amor verdadeiro, aquele que Dante conhece, no Paraíso,
junto a Beatriz.
Também as figuras mitológicas mencionadas anteriormente
criam, ao mesmo tempo, um contraste e uma relação com a
corrupção dos ideais corteses, pois os costumes e as paixões
bárbaras da antigüidade convivem, no Inferno, lado a lado com
aqueles que se deixaram levar por Amor. Este é tanto o deus
mitológico antigo como a divindade dos poetas do stilnovo. O
contraste é entre a barbárie e a gentileza, e a relação se dá porque
ambas as concepções de amor eram equivocadas e infames.
Porém, não é fácil para Dante abandonar um modelo de vida
que ele seguiu fielmente durante tanto tempo. Por esta razão, esse
canto representa a superação desse antigo ideal que, como o Poeta
agora reconhece, é carente de uma purificação. A imensa dor e
piedade que o Dante-personagem sente ante a tragédia de Francesca
é um sinal de quão duro é desvencilhar-se de algo, antes, tão caro.
Ele desmaia após ouvir Francesca e esse desfalecimento representa,
12
la stessa triplice ripetizione della parola Amore e la sua colocazione all’ inizio del verso e del
discorso sottolineano la sua esclusività.
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simbolicamente, a superação de uma prova, uma etapa vencida,
como afirma CAPELLI apud CONTINI (2002:67): O Inferno (e o
Purgatório) de Dante é também o lugar da vitória sobre os seus
pecados, a sede das suas tentações superadas...que Dante supere
Paolo, e que Beatriz supere Francesca....”13
A relevância do papel de Francesca da Rimini na ideologia do
Poema é suplantada, portanto, somente pela de Beatriz, que lhe
serve de figura oposta. O amor de Francesca é o Eros e seu maior
pecado é a obsessão por esse amor, a ponto de atribuir a ele
características divinas que deveriam pertencer somente a Deus.
Ela não se arrepende, ao contrário, procura defender-se e justificarse, por isso persiste no erro e nega o verdadeiro caminho.
O canto V é o ponto de partida para a discussão filosófica
sobre o amor, que terá continuidade durante toda a Comédia. Esse
tema será repetido no Purgatório, mais especificamente no canto
XVIII (que será visto adiante) e novamente no Paraíso, desta vez
tomando uma forma definitiva nas sábias palavras de Beatriz.
Francesca é a figura que inicia esse tema do amor. Eternamente
abraçada a Paolo, o ser amado, ela se agarra ao que lhe foi mais
caro na vida, mesmo estando num lugar onde o amor não existe
mais, só o sofrimento. Em sua revolta contra a justiça divina, ela
profere as palavras que melhor expressam o seu eterno pesar:
“Não há” - disse - “tormento mais dorido/ Que recordar o tempo
venturoso/ Na desgraça”14 (Inf. V, 121-123).
IV – A Figura Feminina e a Temática do Amor no Purgatório
Após conhecer o mal mais profundo e degradante no abismo
que é o Inferno, no qual tudo acaba com a terrível visão de Lúcifer,
Dante chega ao limite, pois conheceu as profundezas do pecado, e
agora é necessária uma mudança definitiva. A montanha do
Purgatório é um alívio, um retorno à condição humana. É, também,
um lugar de expiação, mas que se diferencia nitidamente do reino
infernal; a consciência do pecado é fundamental à salvação, assim
como o seu abandono definitivo. As almas que ali estão trocaram a
vivência errônea pelo arrependimento e destaque da vida terrena.
Não existe mais revolta, só a esperança, pois aqueles que
sofrem as penas da purificação sabem que sua penitência será
recompensada do Paraíso. O sofrimento purificador é atenuado por
esta doce espera e abreviado pelas orações dos que ficaram na
Terra. Em lugar de condenação eterna, está a salvação e, em
oposição ao sofrimento físico do reino infernal, as almas sentem
uma profunda dor espiritual, derivada da recordação de seus
pecados e do abandono da vida mortal.
13
L’Inferno (e il Purgatorio) di Dante è anche il luogo dei suoi peccati vinti, la sede delle sue tentazioni
superate...Che Dante superi Paolo, e che Beatrice superi Francesca...
14
“Non c’è nessun maggior dolore/ che ricordarsi del tempo felice/ ne la miseria.”
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A POÉTICA DE DANTE ALIGHIERI:
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A presença de Catão, que guarda a entrada para a montanha
do Purgatório, é um símbolo desse desprendimento do pecado.
Como personagem histórico, Catão de Útica foi um defensor da
liberdade (suicidou-se por não suportar ver o fim da Roma
Republicana) e, como personagem da Comédia é, além de guardião
da montanha, a prefiguração15 do próprio Purgatório, um lugar onde
reinam o livre-arbítrio e a liberdade em relação ao pecado. O
extremo respeito com que lhe fala Virgílio explicita a importância
desta figura no Poema.
É no contexto dessa contrastante mudança de ambiente que o
peregrino entra em contato com as almas recém-chegadas e as
que esperam, ao pé do monte, pela penitência. Lá ocorre o encontro
com o amigo Casella, músico e poeta, que musicara um dos poemas
de Dante, Amor que na mente me discorre, e agora o entoa
novamente. Esse momento de doce recordação é quebrado por
Catão, que repreende a todos pela indolência, num gesto que alude
à necessidade do esquecimento do passado para a purificação.
É também neste segundo cântico que surgem figuras femininas
simbólicas importantes para a jornada do Poeta. No canto V, Dante
encontra Pia dei Tolomei, senhora de Siena que, em breves versos,
conta-lhe a sua desgraça: “De Pia recordando-te, em mim pensa/
Siena fizera o que desfez Marema/ Sabe-o quem me esposara e
em recompensa/ no dedo pôs-me anel com rica gema”16 (Purg. V,
133-136). Pouco se sabe sobre ela; apenas que teve morte violenta
pelas mãos do marido, pelo qual não demonstra mais rancor. Pia,
em sua fragilidade e força, é o símbolo do desprendimento das
coisas terrenas.
Assim como, no Inferno, Dante precisou tomar consciência
das graves conseqüências do pecado, no Purgatório ele precisa se
purificar de todo esse mal. Exemplo disso são os sete “P” que um
anjo lhe traça na fronte, simbolizando os sete pecados capitais,
que ele apagará de sua alma, à medida que passa de faixa em
faixa do monte e observa as almas que expiam estes pecados.
Um exemplo dessa lição é o canto XIII, em que ele pratica
com Sápia, fidalga de Siena que expia o pecado da inveja. Ela tem
os olhos fechados por fios de ferro e chora constantemente as
lágrimas do arrependimento. Agora, declara humildemente:
“Chamei-me Sápia, mas não fui sabida/ Mais deleite me deu o alheio
dano/ Do que a dita a mim própria concedida.”17 (Purg. XIII, 108110). É ao observar essas dolorosas experiências e as almas
dispostas a reparar seus erros, relembrando-os a todo instante e
cantando as virtudes opostas a eles, que a piedade e consciência
15
O conceito de Catão como prefiguração do Purgatório faz parte dos estudos de Auerbach em: AUERBACH,
Erich. Figura. São Paulo: Ática, 1997:55-60.
16
“Ricorditi di me che son la Pia/ Siena mi fé, disfecemi Maremma/ salsi colui che ‘nnanellata pria/ disposanso
m’avea com la sua gemma.”
17
“Savia non fui, avvegna che Sapía/ fossi chiamata, e fui de li altrui danni/ piu lieta assai che di ventura mia.”
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de Dante fazem com que, a cada etapa, ele procure expulsar de si
esses sentimentos abjetos que levam ao erro.
Outro ponto importante do Purgatório são os cantos XVIII e
XXVI, no quais se retoma os temas do amor e da lírica amorosa,
iniciados anteriormente no episódio de Francesca. Entre os cantos
XVII e XVIII, Virgílio fornece a Dante uma série de explicações
sobre o sentimento amoroso e faz a diferença entre amor natural e
amor divino, como afirma CAPELLI (2002:160):
Virgílio, com a distinção entre amor natural,
devido à atração que os outros seres exercem
sobre o homem, e amor de eleição, no qual o
homem arrisca, nesta escolha, aquilo que o
caracteriza, liberdade e razão, demonstra
indiretamente a concepção típica da poesia de
amor cortês, segundo a qual Amor é o
dominador da vida, ao qual não se pode
resistir...18
O desvio desse amor natural será punido nas últimas três faixas.
São aqueles que amaram as coisas materiais: os avarentos, os
gulosos e os luxuriosos. É também esse o tipo de amor seguido
pelos poetas (e colegas) que Dante encontra no canto XXVI. Guido
Guinizelli, grande amigo e poeta do stil nuovo, e Arnaldo Daniel,
poeta provençal conhecido por sua literatura sensual, a quem Dante
admirava, também tinham em comum esta concepção. Justamente
por não terem sabido superá-la, os poetas não ultrapassaram o amor
mundano, colocando-o acima da razão e do amor divino. Por isso,
precisam se purificar junto aos outros luxuriosos, na sétima faixa.
O canto XXVI representa, ao mesmo tempo, a definitiva
negação das antigas características do doce estilo novo e a sua
superação e recuperação. Dante é exaltado pelos colegas, mas
também percebe que esta escola literária teve seus ideais
comprometidos por uma mentalidade ainda muito mundana. Existe,
portanto, uma profunda diferença entre o amor que o Poeta passa
a seguir e aquele ao qual obedeceram Guinizelli e Daniel.
O encontro com Beatriz aproxima-se. Porém, para atingir essa
meta, Dante deverá passar pelo fogo purificador dos luxuriosos.
Isso significa que ele também precisa dessa purificação, que deixará
para trás, definitivamente, o antigo poeta, e fará surgir o novo.
Mas não se trata ainda da última prova: ele ainda deverá passar
pelas mãos de Matilda.
Antes de chegar ao Paraíso Terrestre, Dante tem uma visão,
em que vê duas personagens bíblicas, Lia e Raquel. Lia colhe flores,
18
Virgilio, con la distinzione fra amore naturale, dovuto all’atrattiva che gli altri esseri esercitano sull’uomo, e
amore di elezione, in cui l’uomo rischia nella scelta ciò che lo caratterizza, libertà e ragione, dimostra
indirettamente l’inaccettabilità della concezione tipicamente stilnovistica, secondo la quale Amore è il dominatore
della vita a cui non si può resistere...
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A POÉTICA DE DANTE ALIGHIERI:
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enquanto Raquel, sentada, contempla a natureza. Elas são,
respectivamente, o símbolo da vida ativa e a da vida contemplativa.
Em seguida, o peregrino chega a um jardim maravilhoso, onde há
um constante perfume de flores. É o Éden, onde viveram Adão e
Eva antes da queda. Nesse ambiente de locus amoenus Dante
vislumbra uma mulher sorridente, de angélica beleza, que canta e
escolhe flores. Ela recita o salmo 91, que celebra a Criação.
Responde ao chamado do Poeta e lhe declara que está ali para
dissolver as suas dúvidas.
Neste momento, é possível perceber que, na visão anterior,
Lia e Raquel eram a prefiguração de Matilda, pois ela desempenha
os dois papéis: age ativamente, ao mesmo tempo que contempla a
obra do Criador. Além disso, Matilda, por meio dessas personagens,
também precede a aparição de Beatriz, como confirma BORSELLINO
(2000:80): Personagens bíblicas, as duas mulheres de Jacó
antecipam duas aparições sucessivas, a edênica de Matilda e a
celeste de Beatriz, ciência divina revelada, que introduzirá Dante
ao pleno gozo do amor de Deus.19 A moça então esclarece Dante
sobre a natureza do local: lá o vento sopra continuamente, devido
ao movimento dos céus; a água que forma os dois rios do Éden
escorre simplesmente devido à vontade divina. Também esclarece
sobre o pecado original, que tolheu ao ser humano a sua feliz
condição primordial. Na verdade, Matilda é o símbolo dessa pureza
original, perdida para sempre.
O papel de Matilda como precursora de Beatriz é evidente ,
pois a misteriosa moça tem a função de mergulhar Dante do Letes
(rio que apaga a memória dos pecados) e no Eunoé (restitui a
memória do bem praticado). Só através dessa purificação final é
que ele estará apto a seguir Beatriz e adentrar o Paraíso. A princípio,
também de Matilda ele deve manter distância, até o momento de
mergulhar no Letes. A separação dos dois pelo leito do rio não
deixar de ter uma função simbólica: Dante não pode alcançar Matilda
porque não pode retornar à condição original, embora o deseje.
Desse modo, fica clara a sua função de figura intermediária entre o
terrestre e o divino. Ela representa, para o autor, a passagem para
um nova realidade. Com o esquecimento do pecado, o Poeta pode
considerar cumprida a função do Purgatório em sua viagem.
Com essa renovação do espírito Dante se prepara, finalmente,
para o encontro mais emocionante e também mais doloroso.
Cumprida a última penitência, ele alcançará a plenitude, tanto
espiritual quanto poética, pois é no Paraíso que os seus versos
encontrarão a mais sublime forma na descrição da beatitude de
19
Personaggi biblici, le due moglie di Giacobbe, anticipano le due successive apparizioni, quella edenica di
Matelda e quella celeste di Beatrice, scienza divina rivelata, che introdurrà Dante al pieno godimento dell’amore
di Dio.
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sua amada. O doce estilo novo, agora recuperado por Dante,
cumprirá seus mais belos e verdadeiros ideais.
V – Beatriz, a Doce Guia
Como é possível avaliar a importância de Beatriz na Divina
Comédia? Mais do que uma personagem, ela é o motivo e a
inspiração deste poema. Dante empreende a viagem estimulado
pela lembrança da mulher que foi o seu referencial de vida e de
produção literária, e que o levou a uma renovação como homem e
poeta. Ela é o motivo da construção de sua obra maior.
Beatriz é o amor que, desde a infância, marcou Dante. Esse é
o amor da Vida Nova, que tanta luz e perturbação trouxe à vida do
Poeta, sob o clima de exaltação cortês. Amor humano, mas, desde
já, carregado de um significado de fé. Já nessa obra ela é, de
forma discreta, análoga a Cristo (cap. XXIII e XXIV) e esse conceito
permanecerá na Comédia, porém, de forma nova e mais profunda.
A mulher real, à qual estava relacionado um ideal de amor
perfeito - que, diferentemente dos poetas provençais, era um
sentimento ligado à mente, e não somente ao impulsos do coração
- após a morte deu lugar à Beatriz símbolo da Teologia e da
sabedoria divina. É o cumprimento da promessa feita por Dante no
capítulo final da Vida Nova: a de louvá-la com objetivos mais sublimes
e dizer dela o que nunca se disse de nenhuma (Vida Nova, cap.
XLII). A Comédia é a prova desse feito.
A Beatriz juvenil e real toma, então, um significado mais
completo: enquanto Virgílio representa a virtude da razão humana,
Beatriz representa aquilo que ainda não está ao alcance das
limitações do homem. Ela é mais do que a mulher gentil do coração
de Dante: é a libertadora do seu espírito.
Beatriz aparece na Comédia, portanto, como a imagem
completa da Beatriz terrena, segundo AUERBACH (2001:62): a
realidade de sua pessoa terrena não é, como no caso de Virgílio e
Catão, algo derivado dos fatos de uma tradição histórica, mas da
própria experiência de Dante: uma experiência que lhe mostrou a
Beatriz terrena como um milagre. Ou seja, mais do que uma figura
histórica, ela é a guia na vida espiritual, assim como já o fora na
vida terrena; é a figura ou ídolo Christi.
5.1 – Beatriz e o Purgatório
Se é no Paraíso que a figura de Beatriz cumpre a sua missão,
ao elevar Dante ao Criador, é também no Purgatório que ela
provocará uma mudança definitiva no íntimo do peregrino. Neste
cântico fundamental, intermediário entre a danação do Inferno e a
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A POÉTICA DE DANTE ALIGHIERI:
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redenção do Paraíso, o Poeta finalmente se purifica, num ritual de
penitência e de transformação interior, feito por aquela que não é
mais a gentil donzela da juventude, mas um espírito sábio que
representa o elo entre Dante e Cristo.
É de uma maneira especial que se dá a primeira aparição de
Beatriz, no canto XXX. Ela vem envolta em uma nuvem de flores e
precedida de uma procissão mística, que representa alegoricamente
os textos sagrados e a Igreja. O seu manto é cor de oliva,
simbolizando a esperança; a túnica rubra como o sangue e o véu
translúcido representam, respectivamente, caridade e fé. O trajar
de Beatriz demonstra que ela possui as três virtudes teologais.
Finalmente, coroada de oliveiras, símbolo de Minerva, deusa da
sabedoria, ela é caracterizada como a sublime Teologia. A aparição
é precedida do canto Benedictus qui venit - as palavras que
receberam Jesus em sua entrada em Jerusalém - deixando clara a
sua relação com o Cristo.
Esta sublime visão leva Dante a sentir novamente todo aquele
antigo amor. Beatriz, porém, subitamente dá início às acusações:
Meus olhos, em menina, o conduziram/ Pelo caminho mais seguro
e ameno/ Tanto que umbrais à vista se me abriram/ Da idade
segunda e desta vida/ Deixou-me, outros enlevos o atraíram (Purg
XXX, 122-126).20 Diante desta verdade inegável, a vergonha se
apodera do penitente que, diante da mulher que lhe guiou a
existência, sente-se pequeno e mesquinho.
As acusações de Beatriz já foram matéria de diversos estudos.
Uma interpretação literal levaria em conta a reprovação pelo
esquecimento da Beatriz humana com outros amores passageiros.
Mas a idéia implícita na construção alegórica dantesca, geralmente
aceita, é a de que Beatriz, enquanto Teologia, reprova Dante por
ter se desviado do caminho justo, por ter se esquecido de Deus.
Em ambas as versões, a idéia central permanece a mesma: Dante
pecou por ter dado valor a coisas transitórias e não verdadeiras:
Por fraguras fugiu da estrada vera/ em fingidas imagens enlevado/
de quem jamais de alcança o que se espera (Purg. XXX, 130-132).21
Essas fingidas imagens, sejam elas mulheres ou a filosofia
demasiado racionalista com a qual se ocupara Dante (uma crítica
ao Convívio, segundo os estudiosos), não levam a objetivo algum,
não cumprem o que prometem.
O choro e a humilhação de Dante são a passagem para a
mudança e a consciência de todos os desvios praticados. Beatriz,
como Cristo, vem para julgar e salvar. Ela assume este papel
simbolicamente, trazendo a revelação e a redenção ao peregrino.
Tão profundo é o arrependimento que ele desfalece. Matilda emergeo no Letes, cumprindo a primeira parte do rito; é a renovação, um
20
Mostrando gli occhi giovinetti a lui/ meco il menava in dritta parte vòlto/ Si tosto come in soglia fui/ di mia
seconda etate e mutai vita/ questo si tolse a me e diesi altrui.
21
E volse i passi suoi per via non vera/ immagini di ben seguendo false/ che nulla promession rendono intera.
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novo Batismo. A pedido das quatro jovens dançarinas, que são as
quatro virtudes cardinais, Dante fixa o olhar em Beatriz, que, por
sua vez, contempla o Grifo, símbolo de Cristo em sua dupla natureza,
humana e divina.
Segue-se, então, no canto XXXII, uma visão assustadora.
Dante contempla os males da Igreja, na figura de um dragão, um
gigante e uma prostituta. Esta talvez seja a parte mais difícil e
enigmática de toda a Comédia. Mas o certo é que esta cena
apocalíptica fala da degradação, da corrupção do papa e dos
eclesiásticos da época, sua prostituição ao poder terreno. Segundo
as fontes históricas, o gigante é Felipe, o Belo, rei da França, e a
meretriz a Igreja de Roma.
A meretriz volta seu olhar lascivo para o Poeta, e é castigada
pelo gigante ciumento. Este fato coloca Dante como o Cristão, ou a
Cristandade, ameaçada pelo Demônio que se apossa da Igreja.
Além desta interpretação, a cena é evidentemente carregada de
eroticidade, o que permite que se faça um paralelo com a antiga
vida do autor. A prostituta representa tudo aquilo que Dante
considerava excitante e necessário, mas que agora ele olha com
desprezo e à distância. Após essa visão, Beatriz, que havia olhado
a cena com uma dor que Dante compara com a da Virgem aos pés
da cruz, faz agora uma profecia sobre a restauração da Igreja, que
também é, até hoje, um enigma causador de polêmicas nos meios
acadêmicos.
Em outra visão, a Árvore da Vida perde as folhas. Duas vezes
ela foi derrubada contra a vontade de Deus: a primeira pelo pecado
original, e a segunda, provavelmente, por Constantino (a águia
que pousa no carro da Santa Igreja e ali derruba suas penas), que
provocou a mundanização da Igreja.
Interessante ressaltar aqui, no entanto, é a mudança radical
do conceito de amor que se opera em Dante após a passagem pelo
Inferno e Purgatório e seu cumprimento definitivo após o encontro
com sua amada. Todas as provas superadas, até ali, tinham sido
somente uma preparação para o seu retorno. Com esta dura prova
é que o amor de Dante, no fundo ainda carnal, transforma-se em
amor verdadeiro. O instinto passional passa a ser um amor
realmente digno do homem, um amor livre (CAPELLI, 2002).
Por isso, com Dante mergulhado no Eunoé, que reaviva a
memória de suas boas ações, Beatriz passa da figura de juiz à de
amiga e convida Dante a tratá-la sem reservas. Seu sorriso mostra
todo o esplendor da divina beleza; de agora em diante ela será a
guia do Poeta no reino da luz.
5.2 – Beatriz e o Paraíso
No terceiro e último cântico, Dante, pela primeira vez, denomina
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a sua obra sacro poema (Par. XXV, 1), e é realmente no Paraíso
que o sagrado adquire toda a sua força. É o canto da luz, do amor,
e também de Beatriz. Neste reino, todo o sofrimento é anulado, e a
condição humana perde a sua força. Os espíritos são repletos de
luz e se movem nas esferas celestes, que são mais belas e ofuscantes
quanto mais próximas estão do Empíreo, onde está o Criador. E a
linguagem também se modifica: enquanto no Purgatório ela possui
uma tonalidade emotiva, elegíaca, que freqüentemente alude ao
doce estilo novo, no Paraíso ela é predominantemente intelectual e
teológica. Latinismos, substantivos abstratos e até neologismos
tornam-se mais comuns, pois Dante procura expressar aquilo que
o intelecto humano não é capaz de alcançar.
Essa inadaptabilidade a uma nova realidade já ocorre no canto
III, quando Dante e Beatriz encontram Piccarda Donati, senhora
que ficara famosa em seu tempo por ter sido forçada a violar seus
votos monacais, devido a um casamento arranjado. Dante confunde
as almas com imagens refletidas, caindo no erro oposto ao de
Narciso, que havia confundido a imagem com a realidade. Beatriz,
então, explica-lhe que aquelas são as essências verdadeiras.
Logo depois, o peregrino apresenta outra dúvida: se Piccarda
foi forçada a deixar os votos, porque ela está no céu da Lua, astro
relacionado à inconstância? Teria ela cedido ao casamento, no final?
A sabedoria de Beatriz resolve o problema, que, aparentemente,
parece ir contra o conceito aristotélico de livre-arbítrio: Piccarda
submeteu-se a quebrar os votos sem o querer, mas em seu coração
Deus e o ideal monástico sempre estiveram em primeiro lugar. Ela
teve a coragem de encarar o sacrifício, como uma mártir, mesmo,
por medo, cedeu a certas coisas.
Um problema parecido se dá no canto IX, com Cunizza, que
está no céu de Vênus, entre os espíritos amantes. Ela teve uma
vida passional, porém, apesar de ter pecado carnalmente, devido
à influência de sua estrela (o pensamento neoplatônico levava em
conta a influência dos astros no caráter humano, e Platão dizia que
depois da morte cada alma retornava à sua estrela de origem), o
seu livre-arbítrio foi maior e, no final de sua vida, voltou-se a Deus.
O mesmo sucedeu a Piccarda, que apesar da fragilidade de suas
decisões, nunca esqueceu de seu destino verdadeiro.
Beatriz esclarece, também, que todos os espíritos eleitos estão
no Empíreo, mas que a ele são mostrados em vários níveis, para
que ele possa perceber os diversos graus de beatidude em que se
encontram. Ou seja, está claro que Dante não pode perceber aquilo
que Beatriz percebe, como afirma DRONKE (1998:49): O intelecto
humano necessita de imagens, porque só por meio delas é capaz
de iniciar o entendimento de qualquer coisa sobre-humana. Este
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princípio é claramente afirmado no “Timeo” de Platão e (...) no “De
anima”, de Aristóteles...22 a concordância com estas duas filosofias
permeará todo o cântico, atestando que o Homem, na incapacidade
de expressar o que não entende, utiliza-se da razão para ter uma
idéia aproximada do sobrenatural. Também por este motivo, Beatriz
falará a Dante, na maior parte do tempo, de forma obscura, por
metáforas.
A realidade completa que o Paraíso representa torna-se mais
e mais forte à medida que Dante ascende rumo ao Empíreo; a cada
esfera celeste, Beatriz torna-se mais bela e fulgurante, e seu olhar
e sorriso, que possuem uma função simbólica importantíssima, a
de revelar a Verdade, mostram a Dante, fascinado, o mistério do
Divino. Tudo se torna mais e mais real, quanto mais próximo de
Deus. É aquela experiência que Dante resume no termo
transumanar: Significar “per verba” não podendo/ O que é
transumanar o exemplo baste/ Ao que o experimente, a graça
recebendo (Par. I, 70-72).23 Na verdade, essa palavra resume o
tema existencial do Paraíso, ou a experiência em que o peregrino
transcende os limites humanos e se torna completo como ser
(CAPELLI, 2002).
No canto X, Dante e Beatriz chegam ao céu do Sol, onde estão
as almas sapientes e teólogos. Ela o convida a agradecer a Deus
tal proeza.. Dante, porém, absorvido pelo que o cerca, chega a
esquecer de sua amada por um instante. Beatriz percebe e não se
descontenta, pois sabe que Dante a esqueceu para rezar a Deus.
Ao mesmo tempo, sabe que ele ainda não consegue conceber, nas
coisas, uma unidade, ainda faz distinções.
Desse ponto em particular nasce uma contradição que se faz
presente durante quase todo o cântico, como afirma DRONKE
(1998:138): Alguns dos momentos mais surpreendentes de toda a
“Comédia” são aqueles em que Dante joga com o fato de um provável
conflito entre seus dois amores celestes – Beatriz e Deus.24 Na
verdade, esse fato explica o que já foi mencionado: desde a
juventude, Beatriz era como um reflexo de Deus para Dante, que
via, através desse amor, a salvação. Apesar de ter sido, por um
tempo, uma mulher absolutizada ao estilo do amor cortês, Beatriz,
na Comédia, não mais possui esse significado: ela é o símbolo do
divino, um “reflexo” de Deus. Assim como Dante será renovado
como homem, também o amor de homem pela gentilíssima será
transformado.
Este fato propõe outra questão: por que Dante escolheu
22
L’ intelleto umano ha bisogno di immagini, perchè solo per mezzo di immagini è in grado di iniziare a
comprendere qualcosa di sovrumano. Questo principio è chiaramente affermato nel “Timeo” di Platone (...) e
nel “De Anima” di Aristotele...
23
Trasumanar significa per verba/ non si poria; però l’esemplo basti/ a cui esperienza grazia serba.
24
Alcuni dei momenti piú sorprendenti di tutta la “Commedia” sono quelli in cui Dante gioca sul potenziale
conflitto fra i suoi due amori celesti - Beatrice e Dio.
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justamente Beatriz, a mulher amada, para exercer essa função?
Segundo CAPELLI (2002:196):
Aquilo que põe o homem em movimento, aquilo
que o induz à busca de sua própria verdade e,
portanto, de Deus, é uma forte experiência
afetiva, nunca apenas uma convicção
intelectual. Dante teve essa experiência no
encontro, emotivamente fortíssimo, com Beatriz
(...)Beatriz é, para ele, o encontro humano que
abriu - e na maturidade, muito mais
profundamente, reabriu - o coração à fé.25
Portanto, Dante percebeu, muito cedo, e depois mais
fortemente, que esse amor era o caminho para Deus, a sua salvação
como ser humano.
É também no canto X, o mais rico em discussões teológicas,
que São Tomás de Aquino discorre sobre fé e razão. Não se pode
amar o natural a ponto de esquecer o sobrenatural, que é o
verdadeiro destino. Esta afirmação reforça, além da questão de
amor por Beatriz, o conflito que, naquela época, ocorria entre o
nascente Humanismo e a profunda religiosidade do homem medieval.
Após encontrar seu trisavô Cacciaguida, que lhe anuncia o
exílio da cidade natal, Dante e Beatriz chegam ao oitavo céu, o das
estrelas fixas, pela constelação de Gêmeos, sob a qual ele nasceu.
Neste ponto é interessante ressaltar a fusão cultural que permitiu
ao autor unir conhecimentos difundidos em seu tempo, como a
astrologia e idéias neoplatônicas, à religião cristã. Para ele, a
influência dos astros é nada mais que um instrumento de Deus
para guiar a Humanidade. Além disso, esse fato alude,
simbolicamente, a um segundo nascimento de Dante, porém agora
no seu verdadeiro lar.
No céu das estrelas fixas, Beatriz não mais sorri. Ela explica
que ali, onde se está cada vez mais perto da Verdade, Dante não
poderia sustentar o fulgor de seu sorriso. Ele então assiste ao triunfo
de Cristo e da Virgem. A luz é tão intensa que ele não consegue
olhá-la; mas assiste ao espetáculo contemplando Beatriz, que, em
êxtase, reflete aquela luz: Parece as faces ter de flamas feita/ Arde
nos olhos seus tanta alegria/ que a palavra a dizê-la não se ajeita
(Par. XXIII, 22-24).26 Ele não é mais capaz de descrevê-la, assim
como relutará em descrever qualquer cenário dali em diante.
Luminosa é a descrição do triunfo de Maria, de quem Dante
confessa ser devoto. Ela permitiu a viagem de Dante e, juntamente
a Beatriz, exerceu, com sua figura feminina e materna, proteção e
25
Quello che mette in movimento l’uomo, quello che lo induce alla ricerca della verità di sè, e quindi di Dio, è una
esperienza afetiva forte, non è mai solo una convinzione intelletuale. Dante fece questa esperienza nell’incontro,
emotivamente fortissimo, com Beatrice (...) Beatrice è per lui l’incontro umano che gli ha aperto - e nell’età
matura molto profondamente riaperto - il cuore alla fede.
26
Pariemi che ‘l suo viso ardesse tutto/ e li occhi avea di letizia sí pieni/ che passarmen conven sanza costrutto.
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orientação. É ela que intercederá junto a Deus para que o Poeta
possa obter a visão de Deus.
Beatriz já pode sorrir: depois que Dante viu o fulgor de Cristo,
ela pode ser contemplada novamente (nesta passagem, mais do
que nunca, fica evidente a função de Beatriz como um símbolo do
divino, e não algo acima dele). Ela convida os três apóstolos, Pedro,
Tiago e João, a interrogar o Poeta sobre fé, esperança e caridade,
ao que ele é bem-sucedido. E ele chega ao nono céu, onde contempla
as nove hierarquias angélicas e o espetáculo da rosa celeste, o
paraíso dos contemplantes, que Beatriz resume em lindos versos:
Luz intelectual, de amor ardente/ Amor do sumo bem, que enche a
alegria/ alegria em dulçores transcendente (Par. XXX, 40-42).27 No
entanto, ela deixa Dante sem que ele o perceba e volta a ocupar
seu lugar entre os espíritos triunfantes.
Dante vê um velho a seu lado. É São Bernardo, que, a pedido de
Beatriz, o guiará até o final da visão. É nessa hora que o Poeta faz, na
mais sublime poesia, uma doce oração de agradecimento à sua amada:
Senhora! Esp’rança minha permanente!
Que não temeste, por me dar saúde,
Teus vestígios deixar no inferno horrente!
De tantas coisas quantas ver eu pude,
Ao teu grande valor e alta bondade
A graça referir devo e virtude.
Sendo eu servo, me deste a liberdade,
Pelos meios e vias conduzido,
De que dispunha a tua potestade.
Seja eu do teu valor fortalecido,
Por que minha alma, que fizeste pura
Te agrade ao ser seu vínculo solvido.28
(Par, XXXI, 79-90)
Após a oração, de onde está, Beatriz olha Dante,
afetuosamente, e volta a contemplar a luz divina. Esse olhar, ao
mesmo tempo distante e próximo, resume a natureza desta figura,
humana e divina, assim como Cristo.
A Virgem concede ao pedido do santo, e Dante pode, então,
ver aquilo que jamais um poeta poderia descrever. Mas ele, com
seus divinos versos, dá à visão uma definição digna de sua Divina
Comédia: ...o Amor, que move Sol e estrelas (Par. XXXIII, 145).29
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste estudo, vimos que existem várias figuras
27
luce intelletüal, piena d’amore/ amor di vero ben, pien di letizia/ letizia che transcende ogni dolzore.
28
“O donna in cui la mia speranza vige/ e che soffristi per la mia salute/ in inferno lasciar le tue vestige/ di tante
cose quant’ i’ ho vedute/ dal tuo potere e da la tua bontate/ riconosco la grazia e la virtute/ Tu m’hai di servo tratto
a libertate/ per tutte quelle vie, per tutt’ i modi/ che di ciò fare avei la potestade/ La tua magnificienza in me
custodi/ sì che l’anima mia, che fatta hai sana/ piacente dal corpo si disnodi.”
29
l’amor che move il sole e l’altre stelle.
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femininas na Divina Comédia. Também vimos que elas não estão
ali por acaso. Todas exercem uma função específica no contexto do
Poema. A viagem-visão de Dante não possuiria o seu significado
completo se apenas uma de suas personagens não estivesse ali.
Diante deste fato, em uma análise conclusiva, vejamos que valor
essas figurações do feminino assumem no conjunto do Poema, e
como estão relacionadas umas às outras.
É inegável a afirmação de que Beatriz é a figura central, não
somente enquanto personagem feminino, visto que toda a ação da
Comédia gravita em torno dela. Embora exista outro guia, Virgílio,
cuja importância não é pouca (ensinou a Dante as virtudes cardinais,
sem as quais ele não poderia alcançar aquelas teologais), este, em
relação a Beatriz, acaba sendo uma figura de transição, um passo
que deve ser transposto para a purificação, a Verdade revelada.
O mesmo ocorre com Francesca, pois a prova que Dante supera
ao se livrar daquela mentalidade absolutizadora do Eros e da mulher,
que ele encara como uma idolatria, é o motivo da presença dessa
figura no Poema. O amor de Francesca é o Eros e o de Beatriz é Deus.
Desta forma, o primeiro pecado de que Dante se purifica é a luxúria a
que serviu antes de ser salvo por sua amada. Fica claro, então, um
dos objetivos principais da obra, relacionado com a mulher e o amor.
Estes dois elementos estão sempre interligados na poética de
Dante. Ele não enxerga a mulher sem o amor, devido ao grande
sentimento que nutriu por Beatriz e que lhe norteou a vida desde a
infância. Fatalmente, a sua idéia de amor sempre dependeu da sua
relação com aquela dama e, embora ele tenha tido experiências
reais e próximas com outras mulheres – a sua própria obra o diz –
, Beatriz é que o marcou de forma definitiva. A escola do doce
estilo novo foi outra influência fundamental à realização do Poema.
Além de utilizá-la para louvar sua amada, ele a utilizou, depois da
morte desta, para exaltar outras damas. E este foi o início do período
em que Dante adentrou a selva obscura.
Outras figuras, como Pia e Matilda, também fazem parte desse
processo de purificação rumo a Beatriz. Pia é o arrependimento de
que Dante precisa para seguir em frente com humildade e confiança,
algo que ele não havia encontrado no Inferno. Matilda é a pureza
original, retratada justamente em uma mulher; porque, para ele, a
mulher pode ser um sinônimo de pureza, ao contrário da Igreja,
que tinha o sexo feminino como um ícone do pecado. Essa
valorização da mulher, que Dante herdou do doce estilo novo30, foi
utilizada de uma nova maneira na Comédia, diferente do jogo de
sedução dos poetas provençais e da exaltação desmedida e
divinizada de poetas italianos como Guido Guinizelli e Guido
Cavalcanti.
30
As características da poesia de amor cortês e do doce estilo novo como uma “falsa” valorização da mulher
foram vistas no item III deste estudo.
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Para Dante, mulher e homem cometem pecados, e ambos
podem chegar à pureza, à perfeição no Paraíso; basta o
arrependimento e a consciência da fé. As personagens recebem as
mesmas penas e méritos; não há distinção de sexo perante Deus.
Este é mais um sinal da mentalidade privilegiada do Poeta, à frente
de sua época.
Outra figura é Piccarda. Embora esteja no Paraíso, ela está no
céu mais baixo, por não ter cumprido seus votos. Mas, como o
Poeta descobre posteriormente, ela está tão próxima de Deus como
qualquer uma daquelas almas benditas. O que acontece é que
Piccarda é, ao mesmo tempo, forte e frágil. Forte por ter amado a
Deus acima das coisas terrenas, e frágil por não ter tentado fugir
de sua sorte. Neste ponto, ela pode até parecer mais débil que
Francesca, que morreu por seu ideal de amor. Porém, Piccarda
seguiu a fé em Deus, enquanto Francesca idolatrou o amor mundano.
Até este ponto, o leitor percebe que Dante não perdeu aquele
modo de caracterizar a mulher típico do estilo novo. Os versos
delicados e a exaltação das virtudes em suas figuras femininas é
semelhante ao louvor à mulher que ele sempre tornou visível em
suas obras. No entanto, embora a linguagem utilize muitos termos
em comum com aquela escola, o que muda são as idéias, que já
não objetivam exaltar a mulher, mas mostrá-la como um veículo
para algo maior. É esta a recuperação que ele faz de sua própria
poética.
Tudo converge a Beatriz: Francesca faz as vezes de figura
antagônica, pois representa exatamente o oposto; as demais servem
como um reforço, um prévia da chegada de Beatriz. Somente uma
figura apresenta importância semelhante: a Virgem Maria, tão
louvada nos últimos cantos do Paraíso. Ela também representa a
sabedoria, a bondade, a salvação do peregrino Dante, embora não
receba o mesmo destaque.
A conclusão a que se pode chegar diante do cumprimento da
purificação de Dante, por meio de Beatriz, é a de que o verdadeiro
amor não é aquele que aprisiona, martiriza, torna o homem um
“vassalo”, e sim o amor da liberdade, do livre-arbítrio. Por isso,
nem todo amor é bom (a exemplo de Francesca), mas o verdadeiro
é aquele que traz o bem a todas as criaturas.
Esta é a função de Beatriz, e também da Comédia: purificar,
levar uma mensagem de esperança e amor. Punir a injustiça, a
ignorância, o erro. É o canto da bondade, em que o cristão Dante
conseguiu, de forma sempre sincera, utilizar o acontecimento mais
sublime de sua vida, o amor por Beatriz, para um objetivo maior:
Deus.
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(Ilustração de Gustave Dorè)
“A boca me beijou todo tremante,
“La bocca mi basciò tutto tremante.
De Galeotto fez o autor e o escrito.
Galeotto fu ‘l libro e chi lo scrisse:
Em ler não fomos nesse dia avante”.
quel giorno più non vi leggemmo
avante”.
Inferno, V, 136-138.
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(Ilustração de Gustave Dorè)
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Na desgraça. Teu mestre o tem
sentido”.
ne la miseria;
e ciò sa ‘l tuo dottore”.
“Não há - disse - tormento mais
dorido
“E quella a me:
Nessun maggior dolore
Que recordar o tempo venturoso
che ricordarsi del tempo felice
Inferno, V, 121-123.
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(Ilustração de Gustave Dorè) 3
“Matilde, abrindo os braços de repente,
“La bella donna ne
le braccia aprissi;
Cingiu-me a fronte e súbito afundou-me;
Abbracciommi la testa e mi som-
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merse
Era dessa água haurir conveniente”.
Ove
convenne ch’io l’acqua inghiottissi”.
Purgatório, XXXI, 100-102.
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(Ilustração de Salvador Dalì) 4
“Eu era lá no mundo virgem freira;
“I’ fui nel mondo vergine sorella;
Diz-te a memória, se as feições me
guarda,
E se la mente tua bem sé riguarda,
Que sou, posto mais bela, a verdadeira.
non mi ti celerà l’esser più bella,
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Atenta bem: verás que sou Piccarda.
ma riconoscerai ch’i’ son Piccarda.
Estou nesta bendita companhia,
che, posta qui com questi altri beati,
Venturosa na espera, que é mais
tarda”
beata sono in la spera più tarda”.
Paraíso, III, 46 -51.
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(Ilustração de Gustave Dorè)
oliveira,
sovra candido vel cinta d’uliva
Uma dama esguardei com
verde manto
donna m’apparve, sotto verde
manto
E veste em cor igual à da
fogueira.
vestita di color di fiamma viva.
Purgatório XXX, 28-33.
Tal, em nuvem de flores
odorante,
così dentro una novula di fiori
Que de angélicas mãos sobe
fagueira
che da le mani angeliche saliva
E cai no carro e em torno a cada
instante,
e ricadeva giù dentro e di fori,
De véu neves cingida e de
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(Ilustração de Gustave Dorè)
De Beatriz no gesto o entendimento,
Già eran li occhi miei rifissi al vòlto
Acompanhando os olhos, embebia;
de la mia donna, e l’animo con essi
De al não cuidava absorto o pensamento.
e da ogne altro intento s’era tolto.
Paraíso, XXI, 1-3.
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DRONKE, Peter. Dante e le Tradizioni Latine Medievali.
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ENCICLOPEDIA DEL MILLENIO. Dagli albori del Millenio alle
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Mondadori Informatica, [ s.d.]. CD-ROM.
PETROCCHI, Giorgio. Vita di Dante. 4. ed. Roma-Bari:
Economica Laterza, 1993.
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Anna Paula Lauande Bitar
O USO DA TEORIA DAS INTELIGÊNCIAS
MÚLTIPLAS NO ENSINO DA LÍNGUA INGLESA
NOS CURSOS DE LETRAS
ORIENTADORES: Jorge Haler Resque / Edila Porto de Oliveira
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo verificar a possibilidade
de utilização da Teoria de Inteligências Múltiplas de Howard Gardner
no ensino de Língua Inglesa no Curso de Letras da Universidade da
Amazônia. Questionário, observações feitas na sala de aula e outros
recursos foram utilizados para detectar a(s) inteligência(s)
predominantes na sala de aula e propor atividades que possam
desenvolver tais inteligências. Tais atividades estão de acordo com
o Guia Acadêmico do curso.
Palavras chaves: língua inglesa; inteligências múltiplas;
Howard Gardner.
Abstract
This work wants to verify the possibility of the use of Howard
Gardner´s Multiple Intelligence Theory in the English teaching process
in the Languages Courses of Universidade da Amazônia.
Questionnaires, observations made during the class and other
resources were used to detect the predominant intelligences in the
classroom and propose activities to develop these intelligences. All
the activities are based on the Academic Guide of the course.
Key words: English; Multiple intelligences; Howard Gardner.
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Considerações iniciais
Como educadores, nosso desafio é utilizar todas as fontes
disponíveis para ajudar os nossos alunos a serem melhores
aprendizes. Cada vez mais é evidente a diferença individual entre
os alunos. Por isso, a procura de métodos que possibilitem suprir
as necessidades atuais de alunos e professores é tão importante e
urgente.
A Teoria das Inteligências Múltiplas, desenvolvida pelo
pesquisador da ciência cognitiva, Howard Gardner na Universidade
de Havard, traz-nos uma renovação nos métodos educacionais.
Utilizando como base e inspiração tal teoria, a presente
pesquisa pretende propor caminhos novos e/ou alternativos ao
ensino da Língua Inglesa no Curso de Letras da Universidade da
Amazônia.
Os alunos, os quais serão os sujeitos da pesquisa, sairão desta
universidade como professores de língua inglesa. Por isso, precisam,
desde já, perceber que estudantes (não importa a faixa etária) são
inteligentes de várias formas e precisam estimular as diversas
inteligências.
O professor precisa aprender a conhecer os seus alunos,
detectar as inteligências predominantes e propor atividades que
permitam a participação e o interesse do maior número possível de
alunos.
É certo que, primeiramente, faz-se necessário conhecer a
Teoria das Inteligências Múltiplas. A partir de então, por meio de
questionários e observações, detectar-se-á as inteligências
predominantes e verificar-se-á as estratégias já utilizadas pelos
professores de Língua Inglesa no Curso de Letras que facilitam o
desenvolvimento das inteligências. Na fase final, propor-se-á
atividades diversas, voltadas a aplicar a Teoria das Inteligências
Múltiplas.
Desta maneira, pretende-se alcançar as necessidades de todos
aqueles que desejam melhorar o processo ensino-aprendizagem e
fazê-lo realmente abrangente.
Capítulo I-
Conceituando o termo “inteligência”
A palavra “inteligência” será utilizada inúmeras vezes neste
trabalho de pesquisa. Por isso, é necessário saber claramente a
definição de tal termo e entender o posicionamento de alguns
estudiosos sobre esse conceito.
A primeira definição considerada aqui é a de dicionários. As
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DA LÍNGUA INGLESA NOS CURSOS DE LETRAS
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primeiras entradas dos dicionários Aurélio e Houaiss sobre
inteligência equivalem-se. Ambas afirmam que inteligência é a
faculdade que o indivíduo possui de aprender, conhecer e apreender.
Porém, a partir da segunda entrada, os dicionários distinguem-se.
O dicionário Aurélio considera ainda que “inteligência” é uma
“qualidade ou capacidade de compreender e adaptar-se facilmente
(...); maneira de entender ou interpretar”. Por outro lado, o dicionário
Houaiss parece-nos complementar a conceituação do primeiro
dicionário, pois afirma ainda que inteligência é “o conjunto de funções
psíquicas e psicofisiológicas que contribuem para o conhecimento,
para a compreensão da natureza das coisas e de significado dos
fatos”. Houaiss conceitua ainda que inteligência é a “capacidade de
resolver problemas”.
É justamente a conceituação que afirma ser a inteligência a
capacidade de resolver problemas que mais nos interessa. Isso
porque, em uma sala de aula, busca-se alunos que sejam capazes
de resolver diferentes problemas em diferentes situações. Este tipo
de aluno é o considerado inteligente.
O estudioso Howard Gardner em seus estudos que
desenvolveram a Teoria das Inteligências Múltiplas considera que
inteligência é “a capacidade de resolver problemas ou de elaborar
produtos que sejam valorizados em um ou mais ambientes culturais
ou comunitários” (GARDNER, 1995, p.14)
A preocupação com essa conceituação não é privilegio dos
tempos atuais. Há muito tempo a sociedade busca entender, definir
e classificar a inteligência. Até mesmo filósofos como Platão e
Sócrates destinaram estudos sobre tal faculdade.
Da filosofia saltamos para a medicina em 1908, quando o
psicólogo Alfred Binet ficou responsável em desenvolver um
mecanismo capaz de medir e avaliar a inteligência das crianças
francesas. Estava nascendo o “teste de inteligência”, o “QI”.
Mas a moda do QI não ficou restrita a Paris. Logo espalhou-se
pelo mundo e tornou-se sucesso durante a Primeira Guerra Mundial.
Nos Estados Unidos, esse teste (considerado o instrumento mais
útil e eficiente) foi usado com inúmeros recrutas americanos.
O sucesso foi tanto que versões aperfeiçoadas do teste foram
surgindo. Acontecia, então, o que a professora Kátia Stocco Smole,
no vídeo “Inteligências Múltiplas”, diz ser o encontro dos testes com
uma sociedade testista.
Tradicionalmente, ser inteligente estava relacionado com a
capacidade de responder a itens em testes de inteligência. Havia,
então, o fator G (fator geral de inteligência) que indicava o índice
de inteligência mínimo que uma pessoa devia ter sem levar em
conta a idade ou a experiência do indivíduo. A inteligência era,
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então, única e baseada em dois tipos de inteligências: lingüística e
lógico- matemática.
As mudanças no mundo, entretanto, ocorreram. Novas
exigências apareceram. O homem torna-se um novo cidadão, isto
é, ele busca ser uma pessoa mais feliz, criativa, capaz de tomar
decisões éticas e equilibradas na razão e emoção. Por esse motivo,
os testes tradicionais não funcionam mais.
Pesquisas sobre o cérebro são desenvolvidas e contribuem,
consideravelmente, para uma nova conceituação de inteligência.
As pesquisas da ciência cognitiva (estudo da mente) mais as
pesquisas da neurociência (estudo do cérebro) pluralizaram o
conceito tradicional e definiram, por meio da Teoria das Inteligências
Múltiplas, proposta por Howard Gardner, que “uma inteligência implica
na capacidade de resolver problemas ou elaborar produtos que
são importantes num determinado ambiente ou comunidade cultural.”
Nesta perspectiva, a inteligência não pode ser medida e nem é
única para todas as pessoas. Na verdade, há a multiplicidade de
inteligências. Todos (a não ser por uma anomalia) podem
desenvolver todas as inteligências. Em entrevista à Revista Nova
Escola (setembro de 1997), Howard Gardner afirma que “temos
potenciais diferentes, mas todos nascemos com capacidade para
desenvolver todas as inteligências. Fazemos isso naturalmente”. O
desenvolvimento das inteligências pode ser dado por meio do
estímulo e da carga genética.
Capítulo II- A Teoria das Inteligências Múltiplas
2.1- A Teoria
Como foi visto no capítulo anterior, Howard Gardner, psicólogo
da Universidade de Harvard, insatisfeito com a idéia de QI
(quoeficiente de inteligência) e com as visões unitárias de
inteligência, desenvolve a Teoria das Inteligências Múltiplas, baseada
na definição de inteligência como a habilidade para resolver
problemas ou criar produtos que sejam significativos em um ou
mais ambientes culturais.
Desta forma, abandona-se a idéia de inteligência como uma
capacidade inata, geral e única. Gardner expandiu o conceito de
inteligência para também incluir áreas como música, relações
espaciais e conhecimento interpessoal em adição às tradicionais
habilidades matemática e lingüística.
Na pesquisa, Howard Gardner focalizou também:
a) o desenvolvimento de diferentes habilidades em crianças
normais e crianças superdotadas;
b) adultos com lesões cerebrais e como estes não perdem a
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intensidade de sua produção intelectual, mas sim uma ou algumas
habilidades, sem que outras habilidades sejam sequer atingidas;
c) populações ditas excepcionais, nas quais uns podem dispor
de apenas uma competência e outros apresentam ausências nas
habilidades intelectuais;
d) o desenvolvimento cognitivo através dos milênios.
Os estudos sobre as inteligências múltiplas trouxeram grandes
avanços para área educacional, porém Gardner considera que esse
projeto ainda está na fase inicial. Ainda assim, indiscutivelmente, a
teoria das Inteligências Múltiplas alcançou grande popularidade. Ao
ser perguntado sobre a razão deste sucesso, Howard Gardner, em
entrevista publicada pela Revista Pátio, afirmou que:
A teoria das IM (inteligências múltiplas)
tornou-se popular em muitos países porque
proporciona apoio para um fato que a maioria
dos professores (e a maioria dos pais) sabe:
as crianças têm mentes muito diferentes umas
das outras, elas possuem forças e fraquezas
diferentes, é um erro pensar que existe uma
única inteligência, em termos da qual todas as
crianças podem ser comparadas.
As inteligências identificadas por Gardner foram: lingüística,
lógico-matemática, espacial, musical, cinestésica, interpessoal,
intrapessoal e naturalista. Vale ressaltar que tais inteligências são
“relativamente independentes, têm sua origem e limites genéticos
próprios e substratos neuroanatômicos específicos e dispõem de
processos cognitivos próprios.” (LOBO, 2001, p.21)
Neste contexto, não há uma competência intelectual mais
importante do que outra e todos (a não ser por uma anomalia) têm
a capacidade de desenvolver todas as inteligências.
2.2- As inteligências múltiplas.
Inicialmente, Howard Gardner identificou sete inteligências:
lingüística, lógico-matemática, espacial, musical, cinestésica,
interpessoal e intrapessoal. Mais uma inteligência foi descoberta
recentemente: a naturalista.
Gardner afirma que os seres humanos dispõem de graus
variados de cada uma das inteligências e que há maneiras diferentes
de elas se organizarem e se combinarem. Cada ser humano utiliza
essas capacidades intelectuais para resolver um determinado
problema e criar produtos.
As inteligências múltiplas são, até certo ponto, independentes
uma das outras, porém, em raros casos, funcionam isoladamente.
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* Inteligência lingüística:
No livro “Inteligências Múltiplas: a teoria na prática”, Gardner
diz que “o dom
da linguagem é universal, e seu desenvolvimento nas crianças
é surpreendentemente constante em todas as culturas”
(GARDNER,1995,p.25) e é a inteligência lingüística que inclui a
habilidade de manipular efetivamente a linguagem para expressarse, convencer, agradar, estimular e/ou transmitir idéias. Ela também
permite alguém usar a linguagem como um meio para lembrar
informações.
É essa inteligência que está presente nos poetas, escritores e oradores.
* Inteligência musical
É comum que essa inteligência não seja considerada uma
capacidade intelectual, como a lingüística. Porém, várias são as
evidências que comprovam ser esta uma faculdade universal.
Esta inteligência manifesta-se como uma aptidão para apreciar,
compor ou reproduzir uma peça musical. Há, nesse caso, uma
sensibilidade para sons não-verbais, incluindo melodias e tons.
* Inteligência lógico-matemática
O psicólogo Howard Gardner aponta duas características
fundamentais desta inteligência: o processo de resolução dos
problemas normalmente é extremamente rápido e a solução do
problema pode ser construída antes de ser articulada, por isso a
natureza não-verbal da inteligência lógico-matemático.
Profissionais como cientistas, advogados e matemáticos
apresentam, geralmente, a habilidade de raciocínios lógico e
dedutivo. Com o desenvolvimento desta inteligência, o individuo
resolve problemas usando habilidades racionais.
A inteligência lógico-matemática e a inteligência lingüística
constituíam a base para os testes de QI.
*
Inteligência corporal- cinestésica
“(...) a capacidade de usar o próprio corpo para
expressar uma emoção (como na dança), jogar
um jogo (como num esporte) ou criar um novo
produto (como no planejamento de uma
invenção) é uma evidência dos aspectos
cognitivos do uso do corpo” (GARDNER, 1995,
p.24).
Assim é definida a inteligência presente, principalmente, em
jogadores de futebol, atletas, atores.
A inteligência corporal- cinestésica não se expressa por palavras
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e não é inconsciente, pois o corpo age liderado pelo cérebro para
tomar decisões.
* Inteligência espacial
Esta inteligência é considerada “irmã” da inteligência corporalcinestésica e o desenvolvimento dela permite ao individuo perceber o
mundo visual, criar imagens mentais e perceber a relação entre objetos
e espaço. Tal inteligência também está presente em crianças cegas.
Na navegação, no jogo de xadrez, nas artes visuais, no
entendimento de mapas, a inteligência espacial faz-se
extremamente necessária.
* Inteligência interpessoal
O desenvolvimento desta inteligência permite que o adulto seja
sensível aos sentimentos e humores dos outros, podendo entender
e interagir efetivamente com os outros.
Tal inteligência pode ser utilizada para persuadir tanto para
coisas boas como para as ruins. A inteligência interpessoal aparece
fortemente em líderes religiosos ou políticos, professores,
terapeutas, pais, vendedores, profissionais de marketing.
Vale ressaltar que a inteligência interpessoal não depende da
linguagem.
* Inteligência intrapessoal
A definição dada por Howard Gardner sobre a inteligência
intrapessoal é:
“O conhecimento dos aspectos internos de uma
pessoa: o acesso ao sentimento da própria vida,
à gama das próprias emoções, à capacidade
de discriminar essas emoções e eventualmente
rotulá-las e utilizá-las como uma maneira de
entender
e
orientar
o
próprio
comportamento”.(GARDNER, 1995, p.28)
Para que essa inteligência possa ser observada, é necessária
a interação das inteligências, isto é, ela se expressa por meio da
música, da linguagem ou de alguma forma mais expressiva de
inteligência.
A inteligência interpessoal e inteligência intrapessoal são
consideradas irmãs por representarem “as tentativas de resolver
problemas significativos para o indivíduo e espécie”.(GARDNER,
1995, p.29).
* Inteligência naturalista
A mais recente inteligência descoberta por Howard Gardner
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caracteriza-se por ser a capacidade de reconhecer os objetos da
natureza.
Esta inteligência está presente em botânicos e pessoas que
trabalham no campo. Segundo Gardner, a inteligência naturalista é
“vital para as sociedades que ainda hoje dependem exclusivamente
da natureza, como os índios”.(Revista Nova Escola, p 43).
* Inteligência pictórica
Esta inteligência foi definida pelo professor da Faculdade de
Educação da Universidade de São Paulo (USP), Nilson Machado, a
partir da Teoria das Inteligências Múltiplas.
Tal inteligência é a habilidade de desenhar, isto é, se expressar
por meio do desenho. Nas crianças, essa habilidade revela-se antes
mesmo das competências lingüística e lógico- matemática.
2.3- O desenvolvimento das inteligências.
Sabe-se que todos os indivíduos possuem, como parte da
bagagem genética, habilidades básicas de questionar e procurar
respostas usando todas as inteligências. Porém, o desenvolvimento
de cada inteligência é determinado por fatores genéticos,
neurobiológicos e condições ambientais.
Assim como o entendimento do termo inteligência (habilidade
para resolver problemas ou criar produtos) é fundamental na Teoria
das Inteligências Múltiplas a noção de cultura também é significativa.
Howard Gardner sugere que alguns talentos só se desenvolvem
porque são valorizados pelo ambiente, isto é, cada sociedade
valoriza determinados talentos que devem ser dominados por uma
quantidade de indivíduos e passados de geração a geração.
O desenvolvimento das inteligências possui desde os estágios
mais básicos até os estágios mais sofisticados. É óbvio que estes
últimos dependem de maior trabalho e/ou aprendizado.
O primeiro estágio de desenvolvimento das inteligências é
chamado por Howard Gardner de padrão cru. Nesta fase, os bebês
começam a perceber o mundo ao redor. É o aparecimento da
competência simbólica.
Na segunda fase ou estágio, que ocorre por volta dos dois aos
cinco anos de idade, as inteligências se revelam através dos sistemas
simbólicos.
No terceiro estágio, a criança desenvolve as habilidades mais
valorizadas na cultura. No último estágio, que ocorre na adolescência
e na idade adulta, as inteligências se revelam através de ocupações
vocacionais ou não- vocacionais, Nesta fase, um campo específico
é focalizado.
Com o objetivo desta pesquisa é mostrar a utilização da Teoria
das Inteligências Múltiplas no ensino da Língua Inglesa, é preciso
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perceber aquilo que os alunos gostam de fazer de acordo com as
inteligências predominantes. Os professores têm fundamental
importância no desenvolvimento das inteligências, por isso, eles
precisam saber o que podem fazer para ajudar os alunos.
O quadro da página seguinte mostra as necessidades para o
desenvolvimento de cada inteligência e de que maneira os
professores podem ajudar os alunos.
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2.4- Implicações para a educação
As implicações da Teoria de Gardner para a educação são claras quando se analisa a importância dada às diversas formas de
pensamento, aos estágios de desenvolvimento das várias inteligências e a relação existente entre esses estágios, a aquisição de
conhecimento e cultura.
O conhecimento da Teoria das Inteligências Múltiplas favorece
a reflexão do professor sobre as práticas educacionais. O que já se
sabe, fica ainda mais claro: em uma sala de aula, diversas são as
personalidades e inteligências. Por isto, não é possível continuar
com uma “educação bancária”, na qual a escola apenas deposita o
conhecimento sem realmente verificar a compreensão.
Cabe, então, ao professor interessado no desempenho do aluno oportunizar diferentes métodos capazes de desenvolver as diversas inteligências.
Algumas alternativas para a melhora da educação, baseada
na Teoria das Inteligências Múltiplas, são:
O desenvolvimento de avaliações que sejam adequadas às
diversas habilidades humanas,
Uma educação centrada na criança com currículos específicos para cada área do saber,
Um ambiente educacional mais amplo e variado e que dependa menos do desenvolvimento exclusivo da linguagem e da lógica.
Capítulo III- Procedimentos metodológicos
3.1- Metodologia
Esta pesquisa requer uma abordagem qualitativa, pois objetiva desenvolver estratégias de ensino da Língua Inglesa a partir
das inteligências predominantes na sala de aula que servirão de
objeto de estudo. O estudo realizado foi do tipo etnográfico, caracterizado pela professora Elizabeth Teixeira como um estudo “que
objetiva registrar, estudar, analisar, entender e criticar uma determinada cultura a partir dos pontos de vista dos sujeitos” (TEIXEIRA,
2000, p. 99). Assim, será possível registrar, estudar, analisar e propor atividades para o grupo de alunos selecionado.
3.2- Procedimento na coleta de dados
A proposição de atividades que permitam a participação e
o interesse do maior número possível de alunos só será possível
se, primeiramente, forem identificadas as inteligências predominantes na classe. Por isso, a primeira etapa desta pesquisa será
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desenvolvida juntos aos informantes do estudo (os alunos do primeiro ano de Letras), utilizando um questionário que apresenta
declarações aplicáveis para cada inteligência. Os alunos devem,
então, marcar com quais atividades eles mais se identificam.
Na segunda etapa, utilizar-se-á a técnica da observação do
cotidiano dos alunos nas aulas de Inglês I. Levar-se-á em conta o
nível de conhecimento da Língua Inglesa, participação, interesse e
atividades desenvolvidas.
Após o término das duas primeiras etapas, será possível analisar o resultado do questionário, apresentado na forma de gráfico,
e interpretar e estudar os resultados da observação.
3.3- Análise do material coletado
O questionário aplicado com os alunos do primeiro ano do curso de Letras apresentava declarações referentes a sete inteligências: lógico-matemática, espacial, corporal-cinestésica, musical,
interpessoal e intrapessoal. Os alunos não sabiam quais declarações pertenciam a cada inteligência. A orientação dada foi para
que eles (os alunos) marcassem as declarações com as quais eles
se identificavam.
No dia da aplicação do questionário, havia somente 20 alunos
na sala. Esta turma tem 25 alunos. Nenhum aluno recusou-se a
responder ao questionário. Dos 20 alunos presentes, 11 eram do
sexo feminino e 9 do sexo masculino.
O gráfico a seguir mostra-nos quais inteligências predominaram na turma. Vale ressaltar que oito alunos apresentaram mais
de uma inteligência predominante.
Gráfico I
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A inteligência corporal-cinestésica aparece como predominante em 9 questionários. Posteriormente, predominante em 7 questionários, há a inteligência lógico- matemática. Tanto a inteligência
lingüística como a inteligência interpessoal foram predominantes
em 5 questionários. A inteligência espacial não apareceu como predominante em nenhum questionário.
Considerando que a turma que serviu como objeto de estudo
é uma turma de Letras, isto é, futuros profissionais da educação, a
predominância da inteligência corporal-cinestésica não surpreende. Como já demonstrado no capítulo II deste trabalho, pessoas
com a inteligência corporal- cinestésica desenvolvida são altamente coordenadas, comunicam-se por meio de gestos e linguagem
corporal, gostam de atuar, dançar. Portanto, elas aprendem melhor
quando estão em movimento. Para o ensino de uma língua estrangeira, no caso a língua inglesa, a utilização de gestos e linguagem
corporal é muito importante e útil.
A predominância da inteligência lógico-matemática em uma
turma de Letras surpreende, pois o desenvolvimento dessa inteligência possibilita maior intimidade com números, lógica, análise de
situações. Esperava-se, por outro lado, um predominância maior da
inteligência lingüística em uma turma deste curso. Isto porque tal
inteligência, quando desenvolvida, possibilita aprendizado em leitura, escrita, fala. Alunos de Letras deveriam comunicar-se efetivamente, ter um bom vocabulário, escrever claramente e aprender
por meio de apresentações verbais, escritas, leituras e discussões.
Para o ensino da língua inglesa, o desenvolvimento da inteligência lingüística deve ser estimulada. Desta forma, formar-se-á
escritores e falantes proficientes.
A inteligência interpessoal apresentou-se predominante em
alguns questionários. Essa inteligência desenvolve-se, principalmente, em professores. O desenvolvimento desta inteligência possibilita a boa interação com os outros, fazer e manter amigos facilmente e liderar grupos.
A inteligência musical, também predominante em 2 dos 20
entrevistados,pode ser útil no ensino e aprendizado da língua inglesa, pois alunos com tal inteligência aprendem por meio de músicas, ritmos e melodias.
A inteligência intrapessoal, quando desenvolvida, possibilita ao
aluno conhecer os próprios sentimentos, forças, idéias, valores e
crenças, estabelecer metas, curtir momentos para refletir e pensar.
Esta inteligência foi predominante em somente 2 questionários.
Nenhum questionário teve como inteligência predominante a
inteligência espacial. Percebeu-se ainda que as declarações referentes a essa inteligência foram poucas vezes marcadas. Desta
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forma, estes alunos não possuem como habilidades desenvolvidas: pensamento em imagens, gosto pela pintura, desenho e aprendizado por meio de imagens, filmes, vídeos e recursos visuais.
No início do ano letivo, a professora da disciplina Inglês I aplicou um teste para detectar o nível de conhecimento de língua inglesa. Neste teste, foi possível perceber que os alunos possuem
nível intermediário de inglês.
Durante o ano letivo, os alunos participaram de atividades diversas, tais como:
Uso do laboratório de línguas no aprendizado de músicas em
inglês;
Utilização de vídeos para exercitar conteúdos gramaticais;
Atividades orais nas quais os alunos discutiam sobre assuntos diversos;
Projeto de leitura, no qual os alunos leram livros, escreveram resumos e apresentaram oralmente o conteúdo do livro;
Exercícios de fixação dos conteúdos gramaticais aprendidos.
Certamente, estas atividades são diversificadas, mas, ainda
assim, não atingem completamente todos os tipos de inteligências
predominantes ou não na sala de aula. Por isso, propor-se-á, no
próximo capítulo, atividades que desenvolvam tais inteligências e
não abandonem o conteúdo que deve ser trabalhado conforme o
Guia Acadêmico do Curso.
Capítulo IV- Atividades propostas
4.1- O quê?
Após o levantamento dos dados necessários, é indispensável,
neste momento, propor atividades diversas, capazes de utilizar a
Teoria das Inteligências Múltiplas aqui discutida. Tais atividades precisam estar de acordo com conteúdo programático da disciplina
Inglês I (ver anexo II) estabelecido no Guia Acadêmico do Curso
de Letras. Nenhuma das atividades aqui propostas são aleatórias,
sem objetivos, mas estão, sim, “incorporadas ao trabalho pedagógico em um planejamento rigoroso, visando metas claras”, conforme alerta o professor Celso Antunes na fita de vídeo 10 histórias
exemplares.
É preciso ressaltar mais uma vez que “ as inteligências sempre funcionam combinadas, e qualquer papel adulto sofisticado
envolverá uma fusão de várias delas” (GARDNER, 1995,p.22). Desta
forma, ainda que uma atividade focalize, prioritariamente, uma inteligência, outras inteligências podem, também, estar envolvidas.
Outro ponto levado em consideração para a proposição das
atividades que utilizam a Teoria das Inteligências Múltiplas é os obje-
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tivos do curso de Letras, propostos no Guia Acadêmico. Dois destes
objetivos influenciaram diretamente nas atividades propostas:
Formar profissionais habilitados para atuarem, de forma crítica e competente, a partir do conhecimento, compreensão e desenvolvimento da capacidade intelectiva, através da linguagem;
Formar profissionais com habilitações especificas, conforme
a demanda da profissão, aliadas aos interesses pessoais do aluno,
bem como prepará-lo para uma atuação consciente na escola de
Ensino Fundamental e Médio.1
Estes dois objetivos sintetizam o que é imprescindível para
que um professor de língua estrangeira (no caso, o inglês) seja o
elemento que forneça possibilidades de melhorar o processo ensino-aprendizagem e estimular que este processo alcance todos. Um
profissional desta área deve sim atuar de forma crítica, competente e consciente, conforme a demanda do mercado. Isso significa
atentar-se para o fato que os alunos são diferentes e, por isso,
precisam de diferentes estímulos.
O contato com essas atividades diversas fará com que os acadêmicos, futuros profissionais, percebam como é possível diversificar a rotina das aulas do Ensino Fundamental e Médio.
Todas as atividades propostas neste trabalho foram coletadas
em seminários, cursos, fitas de vídeo, palestras e livros da área.
4.2- Como?
1. Pedindo exemplos:
O professor leva um rolo de papel higiênico e cada um tira o
quanto quiser do rolo, até um máximo de cinco pedaços ( se a
turma for grande, o número máximo deve ser menor). O número
de picotes que cada um ficar na mão é o número de exemplos que
a pessoa tem que dar sobre o assunto.
2. Bzzz:
Os alunos formam um círculo e cada um vai dizendo um número em seqüência. Mas, nos múltiplos de cinco, os alunos não
podem dizer o número. Devem fazer apenas o som “Bzzz”. Ao
chegar ao 30, recomeça do 1. Quem disser o múltiplo de 5 ao invés
do Bzzz ou quem errar a ordem por causa dos Bzzz deve sair do
jogo. O último a sair é o vencedor.
3. Músicas
a. O professor divide a letra em frases (ou pedaços da música). Distribue a cada aluno um papel com esta parte e diga a eles
que assim que as frases forem sendo ditas eles devem correr ao
quadro e pregar a frase certa, seguindo a ordem (todos os papéis
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devem estar com uma fita adesiva atrás). Depois, é só cantar todo
mundo junto.
b.
O professor copia em uma folha a música com a qual
pretende trabalhar. Seleciona algumas palavras e substitua-as por
outras que façam sentido naquele contexto. As palavras não precisam rimar e nem ser sinônimas das substituídas. Ao lado de cada
verso,coloque linhas em número correspondente às palavras que
você trocou. Por exemplo, se em uma frase você trocou duas palavras, coloque duas linhas e os alunos terão de identificar quais são
as palavras e escrever as certas. Podemos fazer isso com as palavras que tenham o mesmo som.
c. A professora pergunta aos alunos o que eles fizeram ontem
e revisa o passado simples. Então, a professora coloca a letra da
música ( Yesterday- Beatles- ver no anexo III) no quadro dividida em
quatro partes. Os alunos escutam e lêem. A turma é divida em quatro
grupos. Eles devem criar gestos para a música. Depois que todos os
grupos se apresentarem, a professora coloca música de novo.
d. Para trabalhar a música Misunderstood do Bom Jovi (ver
anexo IV), a professora pode apresentar três pôsteres para os
alunos. Estes devem ler as informações de cada pôster. Depois de
ouvir a música os alunos tentam identificar qual das três situações
dada é a que corresponde à música. Os alunos acompanham, então, a música com a letra e marcam que palavras ou expressões os
ajudaram a escolher a opção correta. A professora pede aos alunos que escrevam um pequeno parágrafo sobre o que o autor
deveria ou não ter feito para arrumar a situação exposta na música. Depois, a professora abre um debate sobre o assunto. Finalizando, os alunos podem identificar o tempo verbal da música e
comentar se a situação já aconteceu ou ainda está acontecendo.
e. Outras músicas podem ser trabalhadas para verificar os
seguintes tópicos gramaticais:
Passado simple- Because you loved me – Celine Dion (ver
anexo V)
Adjetivos-The logical song- The supertramp (ver anexo VI)
Comparar presente simples e presente perfeito -Have you
ever seen the rain?- Creedance Clearwater Revival- (ver anexo VII)
4. Charada
O professor divide a turma em dois grupos. Começa, então, a
definir palavras pré-escolhidas em inglês. Os alunos deve advinhar
a palavra.
5. Mime Game
Para praticar os tempos verbais com a mímica, o professor
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seleciona previamente uma frase desconhecida, mas com vocabulário conhecido e diz somente a um aluno que deve passar aos
colegas através de mímica. O aluno que acertar marca um ponto
para o seu grupo.
6. Stop
O professor divide a turma em dois ou três grupos de 3 a 5
alunos, dependendo do tamanho da turma. Entrega para grupo
uma folha de papel oficio dividida em seis colunas, cada uma com
a primeira linha preenchida com algumas palavras em cada uma
delas: object/ animal/ color/ name or number/ food/ place/ verb/
adjective/ any word/ score. As primeiras devem ser preenchidas
com palavras que comecem com a letra que a professora escolher.
A última serve para marcar os pontos. Para facilitar os alunos, é
melhor escolher letras que o professor já sabe que eles terão condições de preencher. Quando a primeira equipe preencher tudo,
deve dizer STOP e o resto da turma tem que parar de escrever. A
pontuação é de 10 pontos para cada palavra , desde que nenhum
outro grupo tenha colocado igual. Caso haja coincidência de palavras, cada grupo marca 5 pontos.
7. Gincana
O professor elabora perguntas sobre coisas na sala de aula e
no próprio curso. Cria perguntas que tenham “There is” ou “There
are”. A folha de tarefas pode conter perguntas como:
__________ How many windows are there on the 4th floor?
__________ How many boys are there in the classroom?
__________ How many girls are there in the classroom?
Numera os espaços em branco antes de cada pergunta com
ordens diferentes para que os grupos não cumpram as tarefas ao
mesmo tempo.
8. Debate
O professor faz como um talk show daqueles bem escandalosos. Escolhe uma situação. Pode ser uma pessoa que presenciou
um milagre. Os convidados do debate são o padre, o jornalista, o
estudioso desse fenômeno, uma pessoa que não acredita nisso,
um psiquiatra. O essencial é criar um personagem para cada aluno
e eles vão ter de agir como seus personagens.
9. Jornalistas de mentirinha
O professor recorta algumas fotos de jornais e/ou revistas e
cole-as em um papel mais grosso, como cartolina. Espalha as fotos
pelo chão e peça a cada aluno que escolha aquela com a qual se
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identificar. Peça que cada um imagine uma historia por trás daquela foto. É isso que cada um vai ter que contar para a turma.
10. Bingo
Para praticar o passado simples e o particípio passado, o professor pode distribuir cartelas de bingo em branco. O professor
coloca uma lista de verbos no infinitivo no quadro. Em cada espaço, o aluno deve colocar o passado simples ou particípio do verbo
que ele escolheu. O professor sorteia os verbos e os alunos marcam aqueles que eles tiverem na cartela. Para ganhar, o aluno
precisa preencher a cartela toda e colocar corretamente o passado
ou o particípio do verbo.
11. Christal Ball
O professor coloca um círculo com uma bola no meio. Cada
aluno tem a sua vez de olhar para a bola e falar sobre características da pessoa a sua direita. No final, os alunos podem dizer se o
que os colegas falaram estava certo ou errado.
12. Might
Em um pedaço de papel, os alunos escrevem três coisas que
podem acontecer com eles no final de semana. Os alunos dobram
os papéis e o professor recolhe, misturando-os o máximo possível.
Cada aluno tira uma predição e lê alto: This weekend I might......
13. Tic- tac-toe
Os alunos são divididos em dois grupos. Cada grupo escolhe
um quadrado e tem que responder uma pergunta para marcar um
ponto. Somente um aluno responde por vez. Depois que o grupo
discutir por um minuto, aquele aluno é o único a falar.
14. Pictionary
O professor divide a classe em dois grupos. Um membro de
cada grupo vem ao quadro. Ele/ ela pega uma carta. As cartas
estão divididas em categorias (verbos, substantivos, adjetivos etc).
O professor diz a categoria para o grupo. O aluno tem um minuto para
desenhar a figura no quadro. Os alunos tentam advinhar o que é.
15. Getting to know each other
Os alunos ficam em círculo. O professor apresenta-se, dizendo: “My name is _______ and I like to_______”. A ação deve começar com a primeira letra do primeiro nome, mas, ao invés de
dizer a palavra,o professor deve fazer a mímica. Então, o aluno ao
lado deve repetir o que o professor disse e apresentar-se: “His/her
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name is __________ and he/she likes to_________. My name is
_________ and I like to __________.”
16.Role play to visualize the past perfect
Os alunos trabalharão em pares. O professor distribui algumas cartas. Eles devem representar as sentenças.
17. Doctor x Patient
O professor deve dividir a classe em dois grupos: médicos e
pacientes. Eles devem imaginar que estão em hospital público no
Brasil. Eles devem representar uma doença e exagerá-la. Os médicos devem chamar os pacientes, ouvi-los e dar avisos, usando “should”.
18. Sketches
O professor deve distribuir para os alunos peças sem o final.
Eles devem escrever o final e apresentar para a classe.
19. Leilão
Professor deve oferecer “objetos” aos alunos. Cada aluno tem
doze reais para gastar. Os objetos que devem ser leiloados são:
férias, amizade, religião, esportes, moda. Os alunos depois devem
dizer porque compraram aqueles objetos no leilão.
20. Rótulo
Cada aluno irá receber uma característica (surdo, tímido, antipático etc). Em grupos, eles discutirão sobre o assunto “respeito”,
mas devem agir de acordo com a característica que eles receberam.
Considerações finais
Certamente, a finalização desta pesquisa permite que seja
considerada a possibilidade de utilização da Teoria das Inteligências Múltiplas no ensino de Língua Inglesa no Curso de Letras. É
certo, porém, que é preciso preparação para tal realização.
A pesquisa comprovou as diferenças e os interesses individuais dos alunos, demonstrando a importância da renovação nos
métodos educacionais. Isso não quer dizer que o que está sendo
feito atualmente seja errado ou inadequado, mas é preciso tentar
melhorar e diversificar sempre. As atividades já desenvolvidas
podem e devem ser aproveitadas. O que foi aqui proposto é uma
sugestão de melhora.
Os passos realizados nesta pesquisa também devem ser realizados por aqueles professores que queiram utilizar a Teoria das
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Inteligências Múltiplas no ensino da língua inglesa. Desta forma, é
preciso, primeiramente, conhecer a teoria. Inúmeros livros, artigos, fitas de vídeo, sites na internet discutem o assunto.
O passo seguinte é analisar a turma, isto é, identificar as inteligências, observar as preferências dos alunos, o nível de conhecimento da língua. Só a assim é possível propor atividades que desenvolvam as inteligências.
Como educadores, nosso desafio é utilizar todas as fontes disponíveis para ajudar os nossos alunos a serem melhores aprendizes. É notável a existência de diferenças individuais entre os alunos.
Por isso, um único método, um único recurso ou um único procedimento ao ensinar pode bloquear o aprendizado para muitos.
Desta maneira, métodos de ensino tradicionais não são mais
suficientes para atender a necessidade dos alunos de hoje. Para
suprir tal necessidade e auxiliar professores , vários estudos e pesquisas surgem cada vez mais freqüentemente.
O estudo aqui desenvolvido mostrou-nos como utilizar a Teoria das Inteligências Múltiplas, como detectar as inteligências nos
alunos e as estratégias já desenvolvidas que facilitam o aprendizado dos alunos.
Espera-se, então, que tal pesquisa ajude aqueles que ainda
acreditam que o caminho de desenvolvimento de uma nação é a
educação.
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Bibliografia
1. 10 Histórias exemplares.São Paulo: ATTA Mídia e Educação, 1998. 1 fita de vídeo. (60 min) NTSC.VHS, son., color
2. ANTUNES, Celso. Jogos para a estimulação das múltiplas
inteligências. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
3. CURSO Professor Fidelizador,Belém 2003
4. FERREIRA, Aurélio B. de H. Novo dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
5. GARDNER, Howard. Inteligências Múltiplas: a teoria na prática. Trad: Maria Adriana Veríssimo Veronese. Porto Alegre: Artes
Médicas, 1995.
6. HOUAISS & VILLAR, Antonio & Mauro de Salles. Diccionário
Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro. Objetiva, 2001.
7. INTELIGÊNCIAS múltiplas: São Paulo: ATTA Mídia e Educação. Volumes 1 e 2; 2 fitas de vídeo (60 min cada) NTSC.VHS,son.,
color
8. LEAVER, Betty Lou. Teaching the whole class. 5th edition.
Kendall/ Hunt Publishing Company: United Sates, 1997.
9. LOBO, Michelle Paiva. Cultura, tecnologia e inteligências
múltiplas: um estudo histórico. Virtus - Revista Científica em
Psicopedagogia, Tubarão, v.1, n.1, p.81- 96, julho, 2001.
10. MORETTO, Vasco Pedro. Competências ou inteligências
múltiplas: que confusão é essa? Revista do curso de Pedagogia,
Brasília, v1, n.1, p. 55-63, jul/dez, 2002.
11. PRÁTICAS em Inteligências Múltiplas. São Paulo: ATTA Mídia
e Educação, 1998. 1 fita de vídeo (90 min) NTSC.VHS,son., color
12. SECOND SEMINAR FOR TEACHERS OF ENGLISH,
2003
Belém,
13. SILVA & GUIMARÃES, Adriano Vera & Camila. O Guru das
inteligências Múltiplas. Revista Nova Escola. Setembro, 1887.
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Anexo I
Questionário
( ) Livros são muito importantes para mim.
( ) Eu posso ouvir palavras na minha cabeça antes que eu leia,
escreva ou fale.
( ) Eu gosto de jogo de palavras como anagramas ou palavras
cruzadas.
( ) Eu gosto de me divertir e divertir os outros com travalínguas, rimas ou trocadilhos.
( ) As pessoas têm que, algumas vezes, me perguntar o significado das palavras que eu uso na minha fala e escrita.
( ) Português, estudos sociais e história eram mais fáceis para
mim na escola do que matemática e ciência.
( ) Quando estou dirigindo, eu presto mais atenção nas palavras
escritas nas placas do que no cenário.
( ) Minha conversa inclui freqüentes referências à coisas que eu
tenha escutado ou lido.
( ) Eu escrevi alguma coisa recentemente que fiquei particularmente orgulhoso ou ganhei reconhecimento dos outros.
( ) Eu posso, facilmente, computar números na minha cabeça.
( ) Matemática e ou ciências estavam entre minhas disciplinas
preferidas na escola.
( ) Eu gosto de jogos que requerem pensamento lógico.
( ) Eu gosto de pensar no “ e se....” (por exemplo, e se aumentar a quantidade e água que dou para minha roseira toda semana)
( ) Minha mente procura por padrões, regularidades ou seqüências lógicas nas coisas.
( ) Eu sou interessado no desenvolvimento na ciência.
( ) Eu acredito que quase tudo tem uma explicação racional.
( ) Eu, algumas vezes, penso em conceitos claros, abstratos.
( ) Eu gosto de encontrar defeitos lógicos em coisas que as
pessoas falam e fazem em casa e no trabalho.
( ) Eu sinto mais confortável quando alguma coisa foi medida,
categorizada, analisada ou quantificada em alguma forma.
( ) Eu, freqüentemente, vejo imagens visuais claras quando eu
vejo meus olhos.
( ) Eu sou sensível a cores.
( ) Eu, freqüentemente, uso câmeras para registrar o que eu
vejo ao meu redor.
( ) Eu gosto de quebra- cabeças, labirintos e outros enigmas
visuais.
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( ) Eu tenho sonhos vívidos de noite.
( ) Eu posso, geralmente, encontrar meu caminho em territórios
não- familiares.
( ) Eu gosto de desenhar ou rabiscar.
( ) Geometria era mais fácil do que álgebra na escola.
( ) Eu posso confortavelmente imaginar como alguma coisa pode
parecer se ela fosse olhada pela visão de um pássaro.
( ) Eu prefiro olhar materiais de leitura bastante ilustrados.
( ) Eu me envolvo em pelo menos um esporte ou atividade física
regularmente.
( ) Eu acho difícil permanecer sentado por muito tempo.
( ) Eu gosto de trabalhar com as minhas mãos em atividades
concretas como carpintaria, costura, tecelagem, construção.
( ) Minhas melhores idéias, freqüentemente, aparecem quando
eu estou andando ou estou envolvido em alguma atividade física.
( ) Eu freqüentemente gosto de aproveitar meu tempo em
lugares abertos.
( ) Eu freqüentemente uso gestos ou outras formas de linguagem corporal quando converso com alguém.
( ) Eu preciso tocar nas coisas para aprender mais sobre elas.
( ) Eu gosto de montanha russa ou experiências físicas emocionantes.
( ) Eu me descreveria como bem coordenado.
( ) Eu preciso praticar uma nova habilidade do que simplesmente
ler sobre ou assistir um vídeo que o descreva.
( ) Eu tenho uma voz prazerosa.
( ) Eu posso dizer quando uma nota musical está desafinada.
( ) Eu freqüentemente escuto música em rádio, cassetes e CD.
( ) Eu toco algum instrumento musical.
( ) Minha vida seria mais pobre se não tivesse música nela.
( ) Eu, algumas vezes, me pego andando na rua com um jingle
na minha cabeça.
( ) Eu sei o tom de diferentes músicas ou pedaços musicais.
( )Se eu escutar uma seleção musical uma ou duas vezes, eu
consigo cantar de novo perfeitamente.
( ) Eu freqüentemente produzo sons ou canto pequenas melodias
enquanto trabalho, estudo ou aprendo alguma coisa nova.
( ) Eu sou o tipo de pessoa que os outros vêm para conseguir
avisos ou conselhos no trabalho ou na minha vizinhança.
( ) Eu prefiro esportes de grupo como badminton, voleibol do
que jogos individuais como natação.
( ) Quando eu tenho um problema, eu prefiro procurar alguma
pessoa para pedir ajuda do que trabalhar sozinha.
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) Eu tenho pelo menos três amigos mais próximos.
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) Eu gosto do desafio de ensinar outras pessoas ou grupos de
pessoas sobre as coisas que eu sei.
( ) Eu me considero um líder.
( ) Eu me sinto confortável no meio da multidão.
(
) Eu gosto de me envolver em atividades sociais no trabalho,
na igreja ou na comunidade.
(
) Eu prefiro passar minhas noites em uma festa animada do
que ficar em casa sozinha.
(
) Eu regularmente gasto meu tempo meditando, refletindo ou
pensando sobre questões importantes da vida.
(
) Eu freqüenta sessões de conselho ou seminários de crescimento pessoal para aprender mais sobre mim.
(
) Eu tenho um hobby ou interesse especial que eu guardo só
para mim.
(
) Eu tenho importantes metas para minha vida que eu penso
sobre regularmente.
(
) Eu tenho uma visão realista das minhas forças e fraquezas.
(
) Eu prefiro passar um final de semana sozinha na cabana na
floresta do que em um resort cheio de pessoas ao redor.
(
) Eu me considero uma pessoa forte e independente.
(
) Eu mantenho um diário para relembrar os eventos da minha
vida.
(
) Eu sou bem empregado ou tenho pelo menos um pensamento sério sobre começar um negócio próprio.
Anexo II
Conteúdo programático- Inglês I
Unidade 1: Verb to be
Pronouns (demonstrative, possessive, object and reflexive)
Unidade 2: Articles (definite and indefinite)
Nouns (singular/ plural; countable and uncountable)
Adjectives (comparative and superlative)
Adverbs (time, manner, place, frequency)
Prepositions (place, direction, movement, there is/ there are,
was/ were)
Unidade 3: Simple present/ Present continuous/ present perfect
Simple past/ past continuous/ past perfect
Future Simple/ Future continuous/ Future perfect
Going to x will
Unidade 4: Modal verbs (can, could, be able, may, might, will,
shall,
would, must, should, ought to)
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Anexo III
Yesterday- Beatles
Yesterday, all my troubles seemed so far away
Now it looks as though they´re here to stay
Oh, I believe in yesterday.
Suddenly, I´m not half to man I used to be,
There´s a shadow hanging over me.
Oh, yesterday came suddenly.
Why she had to go I don´t know she wouldn´t say.
I said something wrong, now I long for yesterday.
Yesterday, love was such an easy game to play.
Now I need a place to hide away.
Oh, I believe in yesterday.
Why she had to go I don´t know she wouldn´t say.
I said something wrong, now I long for yesterday.
Yesterday, love was such an easy game to play.
Now I need a place to hide away.
Oh, I believe in yesterday.
Mm mm mm mm mm mm mm.
Anexo IV
Misunderstood- Jon Bom Jovi
Should I? Could I?
Have said the wrong things right a thousand times
If I could just rewind, I see it in my mind
If I could turn back time, you’d still be mine
You cried, I died
I should have shut my mouth, things headed south
As the words slipped off my tongue, they sounded dumb
If this old heart could talk, it’d say you’re the one
I’m wasting time when I think about it
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Chorus:
I should have drove all night, I would have run all the lights
I was misunderstood
I stumbled like my words, Did the best I could
Damn, misunderstood
Could I? Should I?
Apologize for sleeping on the couch that night
Staying out too late with all my friends
You found me passed out in the yard again
You cried, I tried
To stretch the truth, but didn’t lie
It’s not so bad when you think about it
Chorus
Intentions good
Guitar Solo
It’s you and I, just think about it...
I should have drove all night
I would have run all the lights
I was misunderstood
I stumbled like my words, did the best I could
I ‘m hanging outside your door
I’ve been here before
Misunderstood
I stumbled like my words, did the best I could
Damn, misunderstood
Intentions good.
Anexo V
Because You Loved Me- Celine Dion
For all those times you stood by me
For all the truth that you made me see
For all the joy you brought to my life
For all the wrong that you made right
For every dream you made come true
For all the love I found in you
I´ll be forever thankful baby
You´re the one who held me up
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Never let me fall
You´re the one who saw me through through it all
You were my strength when I was weak
You were my voice when I couldn´t speak
You were my eyes when I couldn´t see
You saw the best there was in me
Lifted me up when I couldn´t reach
You gave me faith ´coz you believed
I´m everything I am
Because you loved me
You gave me wings and made me fly
You touched my hand I could touch the sky
I lost my faith, you gave it back to me
You said no star was out of reach
You stood by me and I stood tall
I had your love I had it all
I´m grateful for each day you gave me
Maybe I don´t know that much
But I know this much is true
I was blessed because I was loved by you
You were my strength when I was weak
You were my voice when I couldn´t speak
You were my eyes when I couldn´t see
You saw the best there was in me
Lifted me up when I couldn´t reach
You gave me faith ´coz you believed
I´m everything I am
Because you loved me
You were always there for me
The tender wind that carried me
A light in the dark shining your love into my life
You´ve been my inspiration
Through the lies you were the truth
My world is a better place because of you
You were my strength when I was weak
You were my voice when I couldn´t speak
You were my eyes when I couldn´t see
You saw the best there was in me
Lifted me up when I couldn´t reach
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You gave me faith ´coz you believed
I´m everything I am
Because you loved me
Anexo VI
The Logical Song- The supertramp
When I was young, it seemed that life was so wonderful,
a miracle, oh it was beautiful, magical.
And all the birds in the trees, well they´d be singing so happily,
joyfully, playfully watching me.
But then they send me away to teach me how to be sensible,
logical, responsible, practical.
And they showed me a world where I could be so dependable,
clinical, intellectual, cynical.
There are times when all the world´s asleep,
the questions run too deep
for such a simple man.
Won´t you please, please tell me what we´ve learned
I know it sounds absurd
but please tell me who I am.
Now watch what you say or they´ll be calling you a radical,
liberal, fanatical, criminal.
Won´t you sign up your name, we´d like to feel you´re
acceptable, respecable, presentable, a vegtable!
At night, when all the world´s asleep,
the questions run so deep
for such a simple man.
Won´t you please, please tell me what we´ve learned
I know it sounds absurd
but please tell me who I am.
Anexo VII
Have you ever seen the rain?- Creedance Clearwater Revival
Someone told me long ago
There’s a calm before the storm
I know; It’s been comin’for some time
When it’s over, so they say,
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It’ll rain on a sunny day
I know; Shinin’ down like water.
CHORUS
I want to know, have you ever seen the rain?
I want to know, have you ever seen the rain?
Comin’down on a sunny day?
Yesterday, and days before,
sun is cold and rain is hard,
I know; been that way for all my time
‘Til forever, on it goes
Through the circle, fast and slow,
I know; It can’t stop, I wonder
CHORUS
Yeah!
CHORUS
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AS PREPOSIÇÕES “A” E “EM” EM
REDAÇÕES ESCOLARES
Orientador: Raimundo Jurandy Wanghan
RESUMO
Este Trabalho de Graduação tem como título “As preposições
‘A’ e ‘EM’ em redações escolares” e procura mostrar, de acordo
com a Gramática Tradicional e a Lingüística Moderna, aspectos relevantes do funcionamento dessas preposições em textos
redacionais de um grupo de alunos que participaram do processo
seletivo para ingresso na Universidade da Amazônia - Unama, em
2003. A partir de análises feitas em 40 textos, foi possível obter
dados para a verificação desse funcionamento. Estas análises, juntamente com estudos realizados em diversos autores que abordam as preposições, contribuíram para algumas conclusões. Dentre essas conclusões, pode-se destacar que as preposições, em
geral, possuem características sintático-semânticas, e, ainda, atuam como elemento de coesão. Além disso, observou-se que a preposição “A” apresenta tendência em ser substituída pela preposição “EM” e, na formação com verbo no infinitivo, ser substituída
pelo verbo no gerúndio. O trabalho está dividido em três capítulos,
sendo o terceiro inteiramente voltado à análise dos textos
redacionais. Ao final são feitas recomendações no sentido de alertar
para novas pesquisas e leitura de bibliografia específica.
Palavras-chave: Preposição EM, Preposição A, Gramática
Tradicional, Lingüística Moderna, Aspecto sintático-semântico, Elemento de coesão.
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RESUMEN
Este Trabajo de Graduación tiene como título “Las preposiciones
‘A’ y ‘EN’ en redaciones escolares” y procura mostrar, de acuerdo
con la Gramática Tradicional y la Lingüística Moderna, aspectos
importantes del funcionamiento de esas preposiciones en textos
redaccionales de un grupo de alumnos que participaron del proceso
selectivo para ingreso en la Universidad de Amazonia - Unama, en
2003. A partir de análisis hechos en 40 textos, fue posible conseguir dados para la verificación de ese funcionamiento. Estos análisis,
juntamente con estudios realizados en diversos autores que abordan
las preposiciones, contribuiron para algunas conclusiones. Dentre
esas conclusiones se pode destacar que las preposiciones, en general, tienen características sintático-semánticas, y, aún, actuan
como elemento de cohesión. Además de esto, se observó que la
preposición “A” presenta tendéncia en ser substituída pela preposição “EN” e, en la formación con verbo en el infinitivo, ser sustituída
por el verbo en el gerundio. Este trabajo está dividido en tres
capítulos, siendo el tercero completamente volvido a los analisis de
los textos redaccionales. Al final son hechas recomendaciones en
el sentido de alertar para nuevas investigaciones y lectura de
bibliografías específicas.
Palabras-clave: Preposición A, Preposición EN, Gramática
Tradicional, Lingüística Moderna, Aspecto sintático-semântico, Elemento de cohesión.
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AS PREPOSIÇÕES “A” E “EM” EM REDAÇÕES ESCOLARES
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INTRODUÇÃO
“As línguas românicas eliminaram a flexão causal, e a marca da subordinação ao verbo recaiu exclusivamente na preposição.”
Mattoso Câmara Júnior.
Neste Trabalho de Graduação, tem-se a finalidade de mostrar
como as preposições funcionam nos textos escritos por um grupo
de alunos que participaram do processo seletivo de ingresso na
Universidade da Amazônia - Unama, em 2003, levando-se em conta, para isso, três tipos de exposição. A primeira fundamenta-se
nas considerações dos gramáticos sobre o uso das preposições, o
qual está baseado nas diretrizes da Nomenclatura Gramatical Brasileira – NGB; a segunda, em estudos recentes da Lingüística Moderna, os quais procuram mostrar como as preposições funcionam
no interior dos textos; e a terceira, na análise dos textos escritos,
enfatizando, neste ponto, o que norteou os alunos ao fazer uso das
preposições no desenvolvimento de suas redações.
Pode-se dizer que esta pesquisa amalga-se em três tópicos principais: as preposições à luz da Gramática Tradicional, as preposições à luz da Lingüística e as preposições em redações escolares.
No tópico As preposições à luz da Gramática Tradicional,
abordam-se assuntos referentes ao conceito de preposição, assim
como seus aspectos sintático-semânticos, de acordo, principalmente,
com as considerações de CUNHA & CINTRA (1985), BECHARA (1999),
LUFT (1991) e COUTINHO (1976).
No tópico As preposições à luz da Lingüística Moderna,
abordam-se assuntos referentes à importância das preposições
como elementos de coesão, evidenciando também os aspectos sintático-semânticos, de acordo com CÂMARA JÚNIOR (1976), TARALLO
(1990), CARONE (1995), PERINI (1996) e outros, cujos trabalhos
fundamentam-se na recente teoria da Lingüística Textual.
No tópico As preposições em redações escolares, analisa-se o emprego efetivo e apropriado das preposições “a” e “em”,
em 40 redações, levando-se em consideração os ensinamentos da
Lingüística Moderna e o caráter de uso do sistema preposicional
que os alunos utilizaram no desenvolvimento de suas redações.
Para isso, utilizaram-se, como base de estudo e comprovação, os
trabalhos de NEVES (2000), TRAVAGLIA (2001) e o dicionário de
regência de LUFT (2002).
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CAPÍTULO 1 - AS PREPOSIÇÕES À LUZ DA GRAMÁTICA
TRADICIONAL
“A flexão foi substituída pela perífrase.
A análise tomou o lugar da síntese.
E a ordem das palavras veio a assumir um papel de máxima importância.”
Fernando Tarallo.
Todas as palavras da língua portuguesa, a priori, são enquadradas, do ponto de vista morfológico, em classes, como preposição, adjetivo, substantivo, verbo e advérbio. As preposições, segundo a Gramática Tradicional - GT, são invariáveis e têm a função
(primeira) de interligar palavras ou orações (picolé de amendoim),
o que poderia levar à afirmação de que elas quase sempre são
vazias de significado. Entretanto, além da característica de
conectivo, apresentam outras particularidades na interação comunicativa, tais como os aspectos sintático-semânticos, como se observa em “Estamos todos tomando açaí com açúcar”, “Tomei um
sorvete de cupuaçu” e “Na sorveteria do seu Manoel”, em que as
preposições “com” e “de” são elementos de ligação, respectivamente, no entanto “de”, na última frase, introduz uma relação semântica de “posse”. Outra particularidade relacionada às preposições, é sua função como elemento de coesão - baseado na teoria
da Lingüística Textual - empregado com a finalidade de ligar palavras em uma oração ou orações dentro do período, como em: “Ele
comprou um litro de açaí para tomar à noite”, sendo empregada,
portanto, como elemento coesivo que possibilita a compreensão da
mensagem sem ambigüidade. Esses fatos demonstram que o estudo acerca daquilo que a GT denomina preposição, como também
sua função e conceitos, carece de outra abordagem que dêem conta de fenômenos ainda pouco explicados.
Segundo ALMEIDA (1988), “a preposição é a palavra invariável que liga duas outras, subordinando a segunda à primeira, estabelecendo uma certa relação de dependência entre elas”, ou seja,
uma palavra exerce influência sobre a outra, de tal maneira que a
compreensão do sentido da frase depende da relação de subordinação que a preposição carrega consigo. Na verdade, o uso das
preposições não é aleatório, mas semanticamente determinado,
isto é, são os traços semânticos do subordinante que determinam o
uso de uma ou de outra preposição (LUFT, 1991). Sendo assim,
essa característica semântica que a preposição carrega consigo é
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AS PREPOSIÇÕES “A” E “EM” EM REDAÇÕES ESCOLARES
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muito importante, o que permite dizer que seu uso adequado dependerá obrigatoriamente da palavra com a qual está relacionada,
não devendo, por isso, jamais ser empregada de maneira impensada na construção de uma frase.
Baseando-se nessa concepção e analisando as frases “comentarei sobre preposição”, “ele ficou inconformado por sua ausência” e “vamos à casa de mamãe”, comprova-se que as preposições
“sobre”, “por” e “de” estão subordinadas às palavras “comentarei”, “ficou inconformado” e “casa” e possuem significados que podem ser interpretados por “idéia de assunto”, “idéia de motivo ou
razão” e “idéia de posse”, respectivamente.
O ensino da língua portuguesa, mais precisamente de sua gramática, nas escolas brasileiras, baseia-se em considerações contidas nos diversos compêndios sobre o uso adequado da língua nas
modalidades escrita e falada, o qual é regido pela NGB. Esta maneira de ensinar a gramática portuguesa é normativa, vem de mais
de 2 mil anos e se fundamenta, segundo BAGNO (2001), em trabalhos exclusivamente literários de escritores greco-romanos, chamados “Clássicos da língua”, que analisavam a linguagem escrita
de forma cuidada, polizada, estilizada, sendo, por esta razão, cultivada e mantida pelas escolas ao longo do tempo, como forma básica e única de se obter um melhor desempenho gramatical,
priorizando assim a modalidade escrita. É chamada Tradicional
porque é considerada “a arte de escrever unicamente com finalidades estéticas” (BAGNO, 2001:17). Em pleno século XXI, esta concepção ainda é empregada na maioria das escolas brasileiras como
forma de ensinar a escrever “corretamente”.
Limitando este estudo às preposições, procura-se, neste capítulo, demonstrar como essa classe de palavras funciona em produções textuais. Para tal, esta pesquisa fundamenta-se basicamente
em estudos e considerações contidos em dois compêndios sobre a
gramática da língua portuguesa, de autoria de CUNHA & CINTRA
(1985) e BECHARA (1999). Faz-se necessário ressaltar que esses
autores, embora apontados como tradicionalistas por certos lingüistas, já têm apresentado uma análise que se aproxima da que é
feita pela Lingüística Moderna.
Segundo CUNHA & CINTRA (1985:542), as preposições são
“palavras invariáveis que relacionam dois termos de uma oração,
de tal modo que o sentido do primeiro (antecedente) é explicado
ou completado pelo segundo (conseqüente)”.
Baseando-se nesta concepção, comprova-se que as preposições são elos entre palavras de uma frase, em que a primeira
recebe o nome de antecedente e, a segunda, de conseqüente, podendo ainda as preposições serem simples ou compostas. São sim-
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ples quando representadas por um vocábulo apenas (a, de, para,
com etc.); compostas, denominadas também de locuções
prepositivas, quando representadas por dois ou mais vocábulos (a
respeito de, a procura de, antes de, etc.).
Para os mencionados autores, as preposições “simples” são
também chamadas de essenciais, por se diferenciarem de outras
palavras com valores de preposição, mas que pertencem à outra
classe de palavras. Essas palavras, que no discurso passam a exercer a função de preposições, são denominadas acidentais, tais como
conforme, embora, segundo, entre outras.
Por exemplo, em um texto que apresente a palavra “conforme”, como na frase “Estudamos conforme o ensinamento divino”,
a referida palavra pode ser classificada gramaticalmente, de acordo
com HOUAISS & VILLAR (2001:797), como “adjetivo, quando se
referir a ‘mesma forma, análogo, proporcional’ (a atual situação está
conforme com a crise de 1929); como conjunção, quando significar
‘de acordo com, segundo, no momento em que’ (conforme ele entrou, a mãe chegou em casa); e como preposição, quando significar
‘de acordo com, na proporção de, proporcionalmente a’ (a taxa é
cobrada conforme o lucro)”. Entretanto, no exemplo apresentado
para análise, além de conectar o verbo “estudamos” à expressão “o
ensinamento divino”, possui o sentido “de acordo com”, demonstrando, portanto, que as preposições possuem significado e, para
CUNHA & CINTRA (1986:547), essa relação é dita “fixa” e será abordada mais adiante no sub-item “Aspectos sintáticos”.
De acordo com BECHARA (1999), as preposições são termos
dependentes, pois sempre estão acompanhadas por outras palavras (substantivos, adjetivos, verbos ou advérbios), com a finalidade de marcar suas relações gramaticais nos discursos. As preposições exercem o “papel de índice da função gramatical do termo que ela introduz” (BECHARA, 1999:296). Por isso, é denominada de transpositor e faz com que determinadas classes gramaticais exerçam papéis diferentes daqueles que normalmente exercem ou deveriam exercer, como em: “relógio de ouro” ou “lua de
prata”, em que os substantivos “ouro” e “prata” estão na posição
dos adjetivos “dourado” e “prateada”, respectivamente; ou no exemplo que o próprio autor utiliza: “homem de coragem”. Um substantivo não tem característica de modificar outro substantivo, portanto, coragem não pode modificar homem, isto é atribuição do adjetivo. Por esse motivo, não se diz homem coragem: o termo coragem só assume papel de modificador do substantivo homem se for
antecedido pela preposição de (transpositor), assumindo a função
gramatical de adjetivo (corajoso).
Neste estudo, observou-se que as preposições são elos, inter-
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ligando palavras. Entretanto, os autores estudados demonstram a
possibilidade daquelas apresentarem outras particularidades quando
empregadas no discurso.
1.1 Aspecto sintático
Antes de se iniciar o estudo a respeito das características sintáticas que as preposições podem apresentar, é importante que se
entenda, primeiramente, o significado da palavra sintática. Sintática origina-se de sintaxe, que, segundo FERREIRA (1999: 1.863), “é
parte da gramática que estuda a disposição das palavras na frase e
das frases no discurso, bem como a relação lógica das frases entre
si”. Para HOUAISS & VILLAR (2001: 2.581), sintaxe “é parte da
gramática que estuda as palavras, enquanto elementos de uma
frase, e suas relações de concordância, de subordinação e de ordem, assim como possibilita uma estrutura através das relações
formais que interligam os constituintes na sentença”.
Ainda a respeito da palavra sintaxe, em DUBOIS et alli
(1997:559), lê-se que sintaxe “é parte da gramática que descreve
as regras pelas quais se combinam as unidades significativas entre
si, e de acordo com a gramática gerativa, comporta a base, que se
constitui do componente categorial e lexical, e o componente
transformacional”.
De acordo com as referências mencionadas, infere-se que o
termo sintaxe pode ser dividido em sintaxe de concordância, de
regência e de colocação.
Partindo-se dessas definições acerca da palavra sintaxe, dáse continuidade a este trabalho, valendo-se, para isso, especialmente da sintaxe de colocação e de regência, com a finalidade de
observar o funcionamento das preposições dentro do texto, levando-se em consideração a situação de disposição das palavras na
oração e das orações dentro do período.
Em razão do sentido explicitado para a palavra sintática, resta
apenas concluir que a característica de Aspecto Sintático que as
preposições possuem diz respeito justamente a sua disposição em
uma composição frasal, denominando-se, dessa forma, conectivo,
pois serve para ligar dois termos oracionais, não apresentando,
nesta concepção, nenhuma funcionalidade (INFANTE, 1995).
Para se realizar um estudo mais acurado acerca do aspecto
sintático que as preposições apresentam, têm-se, como base, os
estudos feitos por COUTINHO (1976) e CUNHA & CINTRA (1985).
A característica analítica do português começa implicitamente
com a redução das cinco declinações do Latim Clássico a três no
Latim Vulgar, pois, segundo COUTINHO (1976), as palavras pertencentes à quinta declinação passaram a figurar na primeira e terceira declinações, e as da quarta passaram à segunda declinação,
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respectivamente. Essas mudanças ocorreram por causa da semelhança que havia entre as palavras nas suas terminações.
De acordo com COUTINHO (1976: 225), a mudança no número de declinações ocorreu em razão de que “alguns substantivos da
quinta podiam também ser declinados pela primeira: avarieties, ei
/ avaritia, ae; luxuries, ei /luxuria, ae”. Isto também ocorria com
palavras da quarta, que eram declinadas pela segunda, como é o
caso de: fructus, us / fructus, i; e domus, us / domus, i. Em razão
dessas possibilidades, fez-se necessário que a expressividade da
mensagem fosse dada de forma mais clara, ou seja, a mensagem
deveria ser expressa em sua própria propriedade analítica, o que
só foi possível pelo emprego de preposições.
Essa característica analítica, que já se percebia no Latim Vulgar, foi mantida na transição deste para o português, na qual se
evidenciou a redução dos seis casos latinos para apenas dois: o
caso nominativo, que absorveu o vocativo; e o caso acusativo, que
absorveu tanto o dativo como o genitivo e o ablativo. Segundo
CÂMARA JÚNIOR (1976: 175), no Latim Clássico, as preposições já
existiam para “subordinar certos complementos ao verbo respectivo”, mas antecedendo somente os casos acusativo e ablativo.
No Latim Vulgar, a semelhança existente entre os casos
nominativo e vocativo fez com que este fosse suprimido pelos falantes da língua. Comprova-se também que as preposições ad e de
foram cada vez mais usadas com o caso acusativo; ad para substituir o dativo, e de, o genitivo, ocorrendo assim, segundo COUTINHO
(1976), o mesmo fenômeno para o caso ablativo, quando o acusativo
era precedido pelas preposições de, per e cum, ou seja, a partir de
um determinado momento, o caso ablativo foi sendo usado com
menos freqüência, até ser completamente suprimido.
Outra observação que se faz no Latim Vulgar é a perda do m
final do acusativo singular, o que fez com que o ablativo se confundisse com o acusativo, prevalecendo mais uma vez o acusativo.
Portanto, em determinada época do Latim Vulgar, já não mais existiam os casos vocativo, dativo, ablativo e genitivo, restavam apenas os casos nominativo e acusativo, passando este caso latino a
ser muito usado com preposições, o que possibilitou que este termo recebesse características de conectivo.
Esta nova estrutura frasal que surgiu com as mudanças ocorridas no idioma, na qual o emprego das preposições foi sendo cada
vez mais freqüente, possibilitou o aparecimento de uma organização de palavras, em que a relação de dependência entre os elementos da sentença foi estabelecida pelo uso da preposição, em
razão de as línguas românicas eliminarem a flexão causal, recaindo nas preposições a marca da subordinação.
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Faz-se necessário reforçar que, no Latim da Península Ibérica,
as preposições apareciam sempre regendo o caso acusativo, e,
como o acusativo é o caso lexogênico do português, isto é, o caso
de que provieram os vocábulos da língua portuguesa (ALMEIDA,
1995: 89), o qual, para CÂMARA JÚNIOR (1976:189), “é entendido
como o conjunto de nomes e verbos da língua”, é evidente que as
preposições estabeleçam várias relações com outras palavras em
uma frase da língua portuguesa. Essa mudança que ocorreu no
Latim Vulgar possibilitou o aparecimento de uma nova estrutura
frasal, ou seja, uma nova sintaxe, na qual a função da palavra não
mais é percebida em sua forma, em sua terminação, mas sim em
sua disposição na frase, a partir da ordem em que os elementos
aparecem na sentença (COUTINHO, 1976). Dessa forma, o
sinteticismo foi substituído pelo analitismo e a ordenação das palavras tornou-se importantíssima para a sintaxe do português.
Esse aspecto sintático que as preposições podem apresentar
no texto é denominado de Função Relacional, ou seja, quando vazias do conteúdo significativo, as preposições são consideradas
“como um simples elo sintático, vazio de conteúdo nocional”, conforme pode ser observado em “concordo com meu coração”, em
que a preposição “com” perde seu sentido de associação, companhia, para apenas manter a relação sintática entre os termos “concordo” e “meu coração”. Entretanto, quando uma palavra regente
determina o uso de uma preposição, sua condição semântica básica não desaparece. Comprova-se isto, pois o verbo concordar exige o uso da preposição com, em razão do sentido do próprio verbo
combinar com o sentido de associação de com. Isto quer dizer que
a intensidade significativa da preposição está relacionada diretamente com o tipo de relação sintática que se estabelece na
estruturação frasal, podendo essa relação ser do tipo “fixa, necessária ou livre” (CUNHA & CINTRA, 1985: 546).
Na relação fixa, segundo os mencionados autores, as preposições perdem sua condição semântica, como também sua função
relacional original, quando a maneira de falar fica tão freqüente
que passa a associá-las a outras palavras, tornando-as palavras
compostas, com significado próprio. Essa nova forma lexical, então, passa a ser fixa, como se pode observar em “Dirceu deu com
Marília na escada”, em que a preposição “com”, que, neste contexto, tem relação semântica de “encontrar”, por associar-se ao verbo “dar”, apresenta nova roupagem, desvinculando-se de seu significado original: de associação ou companhia.
Na relação necessária, há a prevalência da condição conectiva
como um elemento de ligação, pois os constituintes, na posição de
conseqüente, são pertinentes para a compreensão da mensagem,
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levando à menor relevância seu traço semântico. Essa condição
pode ser mais evidente quando se expõem à análise os nomes ou
verbos transitivos que necessitam de um complemento, como em:
“tinham a necessidade de limar a palavra” ou “todos nós fomos a
Parnaso”.
Na última relação que CUNHA & CINTRA (1985) abordam, a
relação livre, as preposições são usadas como recurso estilístico,
pois adquirem sua condição semântica ao extremo, além de manter relações sintáticas, ou seja, as preposições adicionam à frase,
além do traço sintático, seu significado, como se observa nas frases “Lutero procurou (por) o Papa” e “O homem deve amar (a)
Deus”.
Comprova-se, analisando as frases, que as preposições “por”
e “a” podem ser empregadas, porém não são necessárias; entretanto, se empregadas, adicionam idéias de movimento e de
direcionamento às frases, respectivamente.
2.2 Aspecto semântico
Assim como foi feito no sub-item anterior, a respeito do significado da palavra sintática, fazer-se-á também um esboço sobre a
palavra semântica.
Segundo CÂMARA JÚNIOR (1986: 215), a palavra semântica
significa “o estudo da significação das formas lingüísticas”, podendo ser descritiva e histórica; para DUBOIS et alli (1997: 527), apoiados na teoria lingüística geral e de acordo com a ótica da gramática gerativo-transformacional de CHOMSKY (1969), a palavra semântica significa “um meio de representação do sentido dos enunciados”.
Portanto, conclui-se, com base nos referidos dicionários, o
aspecto semântico que as preposições possuem é, na verdade, o
sentido que elas podem apresentar no discurso. Sendo assim, parte-se agora para o entendimento desse aspecto, com estudos baseados em LUFT (1992), além dos autores antes abordados.
Segundo LUFT (1992), as preposições não são vazias de sentido. Na verdade, elas contêm traços semânticos que se relacionam com os traços das palavras que as regem, isto é, são os traços semânticos das palavras antecedentes que prevêem ou selecionam esta ou aquela preposição cujos traços combinem com os
daqueles. Por exemplo, ao se analisar a preposição “pelo (por+o)”
em “lutaremos todos pelos nossos ideais”, observa-se que esta
apresenta uma finalidade, uma meta que possibilita a afirmação de
que as preposições têm sentido, pois “pelo” se relaciona diretamente por meio de uma subordinação ao termo antecedente “lutaremos”.
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Comenta ainda, o referido autor, um outro dado relativo ao
emprego das preposições, quando regidas por palavras portadoras
de prefixos. Segundo ele, cria-se uma espécie de tautologia, a qual
gera uma equivalência morfossemântica entre os prefixos dessas
palavras e as preposições, isto é, o prefixo da palavra antecedente
determina a preposição a ser empregada na construção da frase e,
portanto, a tautologia é criada. Isto pode ser melhor observado
em: “Patrícia concordou com a separação deles”, em que a preposição “com” é empregada por causa do prefixo da palavra regente
“concordar”. Entretanto, deve-se ficar atento, pois, em algumas
construções, aparecerão variações nessas formas, em que o prefixo da palavra regente se diferenciará da forma prepositiva, como
em: “o português ingressou no(em+o) Brasil por causa da Contrareforma da Igreja Católica” ou “Romário perpassou pela (por+a)
zaga como um raio”. Vê-se, nesses exemplos, que a alomorfia
aparece em “ingressar em” e “perpassar por”, respectivamente.
Para CUNHA & CINTRA (1985), o significado das preposições
em uma frase é, na verdade, a relação que elas possibilitam estabelecer entre o antecedente e o conseqüente, podendo ser de movimento ou de situação. Esta relação de movimento ou situação
ocorre de acordo com o espaço, o tempo e a noção que as preposições estabelecem na frase. Isto é, o sentido que as preposições
podem apresentar no texto ocorrerá sempre em razão da relação
de movimento ou situação e das possibilidades de aplicação aos
campos espacial, temporal e nocional.
BECHARA (1999:297), no que se refere à semântica da preposição, afirma que tudo em uma língua tem um significado, variando
de acordo com o léxico ou com o componente gramatical que as
palavras “desempenham nos grupos nominais unitários e nas orações”. Para ele, as preposições também têm seus sentidos primários, mas que se modificam em outros sentidos contextuais, de acordo com o conhecimento de mundo que o indivíduo apresenta. Este
autor divide o uso da preposição em português, no campo semântico, em dois campos centrais: o campo que possui traço da
dinamicidade e o campo com traços estático ou dinâmico. No da
dinamicidade, o sentido da preposição pode ocorrer de maneira
física ou figurada; enquanto no de traços estático e dinâmico, há
uma marcação referente ao espaço e ao tempo, conforme se pode
observar no quadro a seguir:
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Quadro 1. Divisão do uso da preposição em português no
campo semântico.
Colocando-se em evidência os trabalhos realizados pelos autores estudados, e que são de ímpar relevância para o entendimento e compreensão das características do funcionamento que as
preposições podem apresentar, configura-se o estudo dos aspectos
sintático e semântico que as preposições podem apresentar dentro
de textos da língua portuguesa do Brasil, segundo a GT.
No capítulo seguinte, a abordagem sobre as preposições basear-se-á nos estudos desenvolvidos pela Lingüística Moderna.
CAPÍTULO 2 - AS PREPOSIÇÕES À LUZ DA LINGÜÍSTICA MODERNA
“Algumas palavras da língua, que pertencem à
esfera semântica das relações e processos na
junção dos elementos do discurso, ocorrem num
determinado ponto do texto, indicando o modo
como se conectam as porções que se sucedem.”
Maria Helena Neves
No capítulo anterior, observou-se o funcionamento que as preposições apresentam na língua portuguesa, o qual foi subsidiado
por alguns dos gramáticos brasileiros, como forma de demonstrar
esse funcionamento. Neste capítulo, tem-se como objetivo elencar
algumas considerações de estudiosos da ciência da linguagem, levando-se em consideração esboços sobre o funcionamento das preposições, não mais de acordo com a NGB, mas sim mediante considerações da Lingüística Moderna. Para isso, analisaram-se estudos de CÂMARA JÚNIOR (1976, 1997), TARALLO (1990), CARONE
(1991), KOCH (1994), ANDRADE (1992) e FIORIN & SAVIOLI (2003).
Para CÂMARA JÚNIOR (1997:70), as preposições são vocábulos conectivos (formas dependentes), ou seja, não apresentam capacidade de estabelecer uma comunicação completa, quando empregadas de forma isolada, tal qual acontece com as formas livres
(luz, mar, flor, etc.), nem apresentam características plenas das
formas presas (com - de comprometer, s – de casas, que marca
nesta última o plural das palavras portuguesas) que só funcionam
ligadas a outras palavras. Este autor afirma ainda que as formas
dependentes surgiram nas línguas românicas “para estabelecer
relações de subordinação entre os constituintes de uma oração”
(CÂMARA JÚNIOR, 1976:175). É esta relação de dependência (regência) a mais relevante parte da sintaxe, segundo CARONE
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Fonte: Bechara (1999, p. 300).
(1991:59), que afirma ser a regência “a alma da sintaxe, pois diz
respeito às relações de dependência entre as partes”, enquanto a
de colocação “ é apenas um dos procedimentos gramaticais de que
se vale a língua para estabelecer a regência”. Portanto, o emprego
das preposições é bastante procedente para o ato comunicativo.
CÂMARA JÚNIOR (1976) afirma que essa relação de subordinação já existia no Latim, pois os casos acusativo e ablativo indicavam a subordinação ao verbo, por meio de uma partícula adverbial
que os antecedia, sendo, por isso, chamada de “preposição”, que
interligava os termos, delimitando de uma maneira mais concreta
e evidente as condições de dependência.
Para o mencionado autor, a flexão dos casos foi suprimida nas
línguas românicas em razão do uso freqüente de preposição como
mecanismo sintático, recaindo nesta o sinal da subordinação, em
que um substantivo pode subordinar outro substantivo e um complemento pode estar subordinado a um verbo, o que se chama de
regência nominal e regência verbal, respectivamente.
O sistema preposicional em português funciona em dois planos de significação gramatical: um mais concreto e, como conseqüência deste, outro de empregos modais. No plano de significação
concreto, estudam-se as preposições no campo espacial, tendo
como conseqüência o campo temporal; enquanto no de empregos
modais, verificam-se as preposições quanto à origem, estado, fi-
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nalidade, posse, entre outras particularidades, o que leva o referido autor a afirmar que esse sistema “opera em dois sentidos, e na
base de sua posição locativa, cada partícula desenvolve um conjunto de noções abstratas, complexo e sutil” (CÂMARA JÚNIOR,
1976: 179).
De acordo com CARONE (1995:36), as preposições são classificadas como “palavras gramaticais do tipo exofóricas ou morfemas
heterossintagmáticos”, em razão de se articularem com o elemento central da frase, possibilitando uma relação deste conjunto com
um elemento externo, como em “romances de Machado de Assis”
ou “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que a preposição de
mantém relação com o elemento central, que são “Machado de
Assis” e “Brás Cubas”, respectivamente, e também estabelece outra relação com os elementos externos “romances” e “Memórias
Póstumas”, respectivamente.
Na verdade, isso acontece porque as preposições exercem
uma função especificamente sintática, realizando as conexões das
articulações lingüísticas, como se observa nos exemplos anteriormente citados. Em ambos, a preposição de junta-se a uma forma
substantiva, formando um sintagma preposicional “de Machado de
Assis” e “de Brás Cubas”. Estes sintagmas mantêm também uma
relação com outro elemento externo a eles, e, ao conectar-se com
esse elemento externo, apresentarão uma função gramatical de
complemento nominal ou adjunto adnominal dentro da frase.
TARALLO (1990) ressalta que as funções sintáticas no Latim
Clássico eram transparentes e se revelavam na própria forma, isto
é, para se saber a função sintática de uma palavra latina, em uma
frase, bastaria simplesmente observar sua terminação, pois sua
própria autonomia estabelecia contato com o todo sintático, demonstrando, assim, que se tratava de um idioma sintético. Era
sintético, pois não era necessário fazer análise para identificar a
função que uma determinada palavra exercia na frase. Sua própria
terminação a indicava, independente de sua posição.
Esse fato também é observado em CARONE (1991:17-18) que
afirma ser o Latim Clássico possuidor de grandes variações flexionais
para indicação das funções sintáticas dos termos latinos, não utilizando a ordem desses termos como recurso gramatical. Para a
mencionada autora, “a ordem dos vocábulos na frase latina é livre,
obedecendo de preferência às necessidades rítmicas e tonais da
modulação”, demonstrando que no Latim “a ordem não é um fator
gramatical, mas retórico”.
Já em português, esse fenômeno não ocorre, pois o idioma é
analítico, isto é, para se identificar a função sintática que uma determinada palavra exerce na frase, tem-se que analisá-la sintati-
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camente, não mais sendo indicada por sua desinência de caso,
como ocorria no Latim Clássico, mas observando sua relação com
as demais palavras da frase.
Estudando PERINI (1996: 333), observa-se que determinadas
palavras, para ele, apresentam um funcionamento gramatical muito peculiar e são chamadas de conectivos, por serem elementos de
conexão entre constituintes. Existem dois grupos principais de
conectivos: um que se compõe por conjunções; e outro que, formado pelas preposições, tem a função sintática de alterar a classe
de uma palavra ou de uma oração, denominados, por isso, de
conectivo subordinativo.
Por não apresentar a função de modificador, uma palavra substantiva não pode mudar a classe de outra palavra qualquer. Essa
característica de modificador é típica da classe dos adjetivos. O
conectivo subordinativo (de, por exemplo), quando associado a
um substantivo, possui como característica modificar uma palavra
substantiva em adjetiva, dando-lhe assim a possibilidade de funcionar como modificador, como se pode observar em: a Belém das
mangueiras.
A palavra mangueiras, isolada de das, constitui um substantivo e, portanto, não tem característica de modificador; porém, quando
associada à palavra das, das mangueiras, passa a ser um
modificador; na verdade, passa a ser uma locução adjetiva, em
que a função de das é formar juntamente com o substantivo mangueiras um sintagma adjetivo. Fica evidente que as preposições só
podem constituir-se com substantivos, formando locuções adjetivas
ou adverbiais, completa o mencionado autor (1996).
Comprova-se, assim, que as preposições têm papel fundamental na composição de frases e orações da língua portuguesa, estabelecendo relações semântico-sintáticas com outros constituintes do
discurso. A partir desta observação, comprova-se que o seu emprego é pertinente para que a interação comunicativa flua eficientemente. Isto quer dizer que, no discurso, a utilização de preposições
deve seguir critérios que estejam relacionados com a condição de
“textualidade” que o discurso pode apresentar, e também com a
condição de “conhecimento de mundo” do interlocutor, a fim de que
a mensagem não seja ambígua, se assim não se queira.
Neste tópico, pôde-se constatar que as preposições no interior
do texto, sob a abordagem dos lingüistas, apresentam as mesmas
características sintático-semânticas mencionadas no tópico anterior. Ou seja, as preposições ora mantêm a função de conectivo,
sendo uma característica sintática, ora possibilitam relações semânticas. Entretanto, faz-se necessário ressaltar a evolução desse
estudo, pois, na passagem do latim ao português, as preposições
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exerciam, sobretudo, a função de elemento de ligação entre palavras, como se comprova em COUTINHO (1976); mas um estudo
mais acurado, desenvolvido por CUNHA & CINTRA (1985) e
BECHARRA (1999), demonstra que as preposições mantêm, também, relações semânticas no discurso, o que está igualmente de
acordo com a análise de lingüistas como CÂMARA JÚNIOR (1976,
1997), TARALLO (1990), CARONE (1991) e PERINI (1996), ao demonstrem que as preposições realizam algo mais que a conexão
de palavras.
Todavia, o estudo sobre preposição, ainda assim, não se esgota; pelo contrário, ele se amplia. Na recente Lingüística Textual,
na qual o princípio não mais é a análise de frases isoladas, mas sim
o texto como fenômeno da interação comunicativa, importa “descrever fenômenos sintático-semânticos entre enunciados ou seqüências de enunciados” (KOCH, 1994:11).
Essa nova linha de estudo se preocupa em analisar o texto,
suas relações e sentido, pois, segundo ela, a comunicação ocorre
por meio de textos. Por isso, saber o que faz um texto ser texto, ou
seja, como se dá a textualidade passa a ser o objeto de estudo
(KOCH, 1994).
Nessa perspectiva, um texto só será texto se apresentar
textualidade, ou melhor, para que sua mensagem seja compreendida dentro de uma estrutura sociocomunicativa, não basta que
palavras sejam colocadas umas ao lado das outras, é preciso que
estejam em uma seqüência lógico-linear e possibilitem a compreensão por parte do interlocutor. Isto é, só se denomina texto, quando se faz presente a textualidade.
Todavia, para que ocorra a textualidade, faz-se necessário que
o texto apresente “coesão, coerência, informatividade,
situacionalidade, intertextualidade, intencionalidade e aceitabilidade”,
de acordo com KOCH (1994:14), citando BREAUGRANDE &
DRESSLER (1981).
Neste trabalho, tem-se a finalidade de evidenciar o emprego
das preposições como elemento de coesão e, para isso, estudarse-á a Coesão Textual em trabalhos de autores como KOCH (1994),
ANDRADE (1992), NEVES (2000) e FIORIN & SAVIOLI (2003).
2.1 A preposição como elemento de coesão
Segundo KOCH (1994), a coesão está relacionada ao modo
como as palavras se ordenam na superfície do texto e como se
encontram interligadas. Isto ocorre por meio de recursos também
lingüísticos, formando seqüências lógicas, que possibilitam o sentido, como se observa na frase “Os pais fizeram uma festa para
comemorar o aniversário do filho”, na qual a preposição “para”, ao
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fazer a conexão entre as orações, segundo (NEVES, 2000: 699),
introduz uma relação semântica de finalidade.
Portanto, o texto jamais será uma seqüência de palavras soltas ou isoladas; na verdade, o texto só será texto “quando todos os
fios se entrelaçam, as partes se amarram e resultam num todo”,
possibilitando a interação comunicativa entre os indivíduos
(ANDRADE, 1992: 15). Esse entrelaçamento, que as palavras sofrem para possibilitar uma interpretação lógica do texto, é denominado de coesão, que, na verdade, é o “conjunto de elementos
posicionados ao longo do texto, numa linha de seqüência e com os
quais se estabelece um liame ou conexão seqüencial”, podendo
ocorrer de forma gramatical ou lexical, isto é, a coesão pode ocorrer no plano lingüístico ou no nível frasal, situando-se na superfície
do texto e estabelece conexão seqüencial. Na verdade, a coesão
está relacionada à microestrutura, trabalhando com as partes componentes do texto, mantendo relações entre os termos (ANDRADE,
1992: 19). É o que se comprova ao se analisar “Eles acharam de
conversar logo agora”. Nela, os elementos lingüísticos estão ordenados e concatenados uns aos outros no plano linear, de forma a
dar condições lógicas para uma perfeita compreensão. Essa compreensão seria afetada se, ao invés de se usar a preposição “de”,
fosse empregada, por exemplo, a preposição “para”.
Essa conexão é a ocorrência da coesão, ou seja, “um texto
tem coesão quando seus vários enunciados estão organicamente
articulados entre si, quando há concatenação entre eles”, permitindo a compreensão da mensagem. Na verdade, quando se lê um
texto e sua interpretação e compreensão fluem, sem que se perca
um ou outro sentido, é porque, nesse texto, há uma conexão bem
definida entre seus constituintes e, portanto, não há nenhum problema quanto ao seu entendimento (FIORIN & SAVIOLI, 2003: 271).
Entretanto, a ocorrência dessa conexão ou entrelaçamento de
constituintes não faz, por si só, que um texto seja um texto perfeitamente entendido, ou seja, mesmo quando composto por elementos coesivos, às vezes, pode não possibilitar seu entendimento,
como em: “Moacyr não gosta de tacacá para sair de casa. Ele o
toma à noitinha”. Vê-se que não basta que os constituintes estejam
concatenados em uma frase, mas sim que esta concatenação seja
lógica, possível e possibilite a condição de compreensão por parte
do interlocutor.
Observa-se que a preposição “para” e os pronomes “Ele” e
“o” são elementos coesivos, introduzindo uma finalidade e referindo-se ao nome Moacyr e ao nome tacacá, respectivamente, mas
sem que permitam a compreensão do texto.
Para FIORIN & SAVIOLI (2003: 272), o uso adequado de ele-
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mentos coesivos, denominados conectivos, “confere unidade ao texto
e contribui consideravelmente para a expressão clara das idéias”.
Entre os autores estudados, somente FIORIN & SAVIOLI (2003:
272) classificam as preposições (a, de, par, com, por, etc.) como
elementos de coesão ao lado de outros elementos, como as conjunções, os pronomes e os advérbios. KOCH (1994) e ANDRADE (1992)
trabalham a coesão textual, afirmando que ela ocorre na superfície
do texto, mas não elecam quais são os elementos responsáveis por
sua ocorrência. Esses elementos coesivos determinam um tipo de
relação dentro do enunciado, ou seja, cada um possui um valor que
deve ser usado de maneira adequada para expressar o tipo de relação que se deseja atribuir à mensagem, pois eles não são formas
vazias de significado e que podem ser remanejadas ou substituídas
uma pela outra, sem que haja uma inadequada formação de sentido. São, na verdade, “formas lingüísticas portadoras de significado
e exatamente por isso não se prestam para ser usadas sem critério”
(FIORIN & SAVIOLI, 2003: 279).
Comprova-se, assim, que o emprego das preposições, em um
enunciado, deve ser analisado criteriosamente para não possibilitar que haja mais de uma interpretação na mesma frase, como se
percebe em “Estava eu sentado na cadeira observando o movimento da rua Presidente Vargas”, na qual o uso da preposição
“de”, articulada como artigo “a”, possibilita duas leituras: de movimento da rua, ou seja, a rua é que se movimenta; e pessoas,
animais, carros, etc. movimentando-se na rua.
Assim como a textualidade pode ocorrer na superfície do conteúdo, ou seja, fazendo-se presente apenas a coerência, como em
“Belém está no Pará. O Pará tem belas praias. As praias são de
água doce e salgada”, pode também ocorrer por meio da ordenação dos constituintes na frase, isto é, em razão do encadeamento
das unidades lingüísticas em uma conexão seqüencial lógica, como
em “Belém está no Pará. Este tem belas praias. Estas são de água
doce e salgada”, como fenômeno da coesão (ANDRADE, 1992).
Portanto, neste estudo, infere-se que as preposições, sob outro enfoque (como elemento de coesão, representando as já referidas relações semânticas), são relevantes para a compreensão da
mensagem em um discurso. Em razão disso, a seqüência deste
estudo dar-se-á quanto ao uso do sistema preposicional da língua
portuguesa em 40 textos escritos por alunos que prestaram vestibular para ingresso na UNAMA, em 2003.
CAPÍTULO 3 - AS PREPOSIÇÕES “A” E “EM” EM REDAÇÕES ESCOLARES
“Competência comunicativa é a capacidade do usuário de
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empregar adequadamente a língua nas diversas situações de comunicação.”
Luiz Carlos Travaglia.
A decisão de selecionar as preposições “a” e “em” como dados do corpus neste Trabalho de Graduação fundamentou-se em
razão da observação de ocorrências em diferentes tipos de textos
que diferem do estabelecido como norma padrão vigente, ou seja,
são enunciados de dados redacionais construídos, às vezes, diferentemente do recomendado pela NGB, no que diz respeito ao uso
dessas preposições.
Neste tópico, tem-se como objetivo observar o uso das preposições mencionadas, no que tange ao número de ocorrências, ao
emprego efetivo, em correlação ao que propõe a norma culta e aos
casos especiais em que elas se manifestam ou não, de modo que
seu funcionamento, no interior desses textos, possa ser compreendido e explicado, levando-se em consideração a linguagem culta,
nível semiformal ou formal (TRAVAGLIA, 2001).
Assim como ocorre com a preposição “a”, em “Ele prefere
açaí a comer feijão”, que pode ocorrer interligando orações, a preposição “em”, também, pode aparecer como conectivo de orações,
como na frase “Paulo se apressou em comer camarão frito e esqueceu do vatapá”. Entretanto, essa ocorrência é bem menor quando se compara com o emprego dessas preposições entre elementos de uma mesma oração, ou seja, interligando palavras apenas,
como em: “Luís comprou bananas na feira do Entroncamento”.
Parte-se, então, à análise dos textos escritos, levando-se em
consideração os ensinamentos da Lingüística Moderna e o critério
de uso do sistema preposicional que os alunos utilizaram no desenvolvimento de suas redações, assim como se procura evidenciar
sua omissão e os casos especiais, se assim ocorrerem.
3.1 Emprego efetivo
Neste sub-item, analisaram-se os textos escritos com o objetivo de computar o número de ocorrências das preposições “a” e
“em” nesses textos escritos por um grupo de alunos, candidatos ao
Vestibular. Fez-se, também, a seleção de 30 fragmentos, os quais
foram retirados dos textos e usados para análise do funcionamento
que essas preposições apresentam, levando-se em conta, para isso,
considerações da GT e o uso corrente, que, segundo TRAVAGLIA
(2001: 111), é chamado Gramática de Uso e caracteriza-se por ser
não-consciente no processo de comunicação.
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Levando-se em consideração os dados contidos na Tabela 1,
comprova-se que, neste levantamento, a ocorrência da preposição
“em” foi 74,03 % e da preposição “a”, de 25,97 %, uma diferença
de 44,06%, demonstrando que há, nos textos analisados, maior
disposição ao emprego daquela preposição. Isto é, há uma evidente tendência a empregar com maior incidência a preposição “em”
do que a preposição “a”.
Neste segundo momento, faz-se a seleção dos fragmentos dos
textos escritos para que as preposições “a” e “em” sejam analisadas, quanto ao seu emprego e ao uso corrente no processo de
comunicação.
Quanto à descrição do processo de análise, ou seja, para efeito de indicação dos fragmentos, utilizou-se a simbologia: R01 –
L01/02, em que se lê: R01 a redação de número 01; e L 01/02
indica as linhas das quais os fragmentos foram extraídos.
3.2 Análise dos fragmentos
Dos fragmentos destacados, analisa-se o emprego das preposições “a” e “em”, levando-se em consideração os ensinamentos
da Lingüística Moderna e o caráter de uso do sistema preposicional
que os alunos utilizaram no desenvolvimento de suas redações.
Para contribuir com a análise, utilizam-se, como base de explicação e comprovação, NEVES (2000), LUFT (2002) e TRAVAGLIA
(2001), assim como a funcionalidade da língua no que diz respeito
ao uso do sistema preposicional nos textos analisados. Sendo assim, destacam-se os fragmentos a seguir:
A preposição “em” + o artigo “a”, nesses fragmentos, exerce
a função de elo de ligação de palavras concatenadas no plano linear, em uma seqüência lógica, estabelecendo, assim, uma relação
sintática. Além dessa característica, apresenta-se como um elemento de coesão, possibilitando a compreensão da mensagem de
forma clara. Essa conexão, por conseguinte, estabelece uma relação de sentido que, segundo NEVES (2000), ocorre fora do sistema
de transitividade.
Levando-se em consideração o caráter de uso da língua nos
textos analisados, deve-se considerar o resultado do levantamento
das ocorrências dessa preposição, citado anteriormente, pois se
constata a tendência, no português usado nesses textos, em usar
com mais freqüência a preposição “em” ao invés de “a”.
Fundamentando-se na GT, todos esses quatro fragmentos estariam estruturados de maneira inadequada, pois a construção recomendada seria com o emprego da preposição “a”. Isto pode ser
confirmado em NEVES (2000: 675). Esta autora afirma que a preposição “a”, quando funciona fora do sistema de transitividade,
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Na Tabela 1, observa-se o número de ocorrência das preposições em análise.
Tabela 1. Número de ocorrência das preposições “a” e “em” nos textos
escritos, Vestibular/Unama, 2003.
pode estabelecer relações semânticas de circunstanciação, de proximidade, ou seja, está-se próximo à janela, às proximidades, o
que estaria, portanto, em oposição ao emprego da preposição “em”
encontrada nos fragmentos acima citados que, nesse caso, de acordo
com a mencionada autora, estabelece relações semânticas de
circunstanciação, indicando lugar onde, de superfície.
No entanto, a utilização de “em”, nesse tipo de construção, é
freqüente e aparece diversas vezes nos textos, e deve, por isso, ser
considerada como forma de expressão de pensamento, não como
incorreta, mas de uso corrente, especialmente em língua falada,
comprovando que, nos textos analisados, ela é usual e não prejudica a compreensão da mensagem, mesmo empregada inconscientemente, o que possibilita a constatação de como se dá o funcionamento da língua, em relação às preposições, nesses textos.
A seguir, relacionam-se os fragmentos para análise:
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Deve-se ressaltar que esse uso é um procedimento que acontece na mente do falante, pois ele tem internalizado nela uma gramática de uso, que possibilita fazer alterações no sistema lingüístico
da língua. Isto quer dizer que esse falante pode desenvolver recursos de uso do sistema, regras e princípios da língua, bem como os
princípios de uso desses recursos em diferentes variedades da língua (TRAVAGLIA, 2001: 111). Ou seja, o falante pode alternar entre
palavras, expressões ou conectivos e não prejudicar a comunicação. Essa afirmação pode ser constatada nos fragmentos abaixo:
Neles, a estrutura em+que pode ser substituída por
no(em+o)+qual sem prejudicar a compreensão da mensagem.
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Entretanto, não se encontrou nenhuma construção com a estrutura
em+qual ou no(na)+que, na possibilidade de sentido dos fragmentos analisados, provando que o falante possui uma capacidade
de alterar as estruturas das palavras sem alterar o sentido da
mensagem. É o que acontece nos fragmentos anteriores, nos quais
se utilizou a preposição “em” no lugar de “a”. Mas, ressalta-se que
esse recurso do uso, às vezes, não é satisfatório, porque, em determinadas construções, a comunicação é prejudicada, como se
observa em: “R 02 – L 15/16 - “... sabiam muito bem apreciar os
movimentos das ruas”. Constata-se, nesse fragmento, que a preposição “de” causa ambigüidade, pois há duas leituras possíveis:
uma que há pessoas, carros, animais, etc. a se movimentarem nas
ruas; outra que a rua se movimenta.
Quanto ao emprego da preposição “em”, em substituição a
“a”, já se caminha para sua efetivação no uso do português brasileiro. De acordo com NEVES (2000: 616), a preposição mais indicada
nas três construções dos fragmentos, a seguir, seria “a”, pois introduz complemento de substantivo que indica direção, introduz complemento de verbo que indica movimento e introduz relação de
circunstanciação de localização de espaço, respectivamente.
Em outra consideração, LUFT (2002: 86) afirma que o verbo
atravessar “significa passar de um lado a outro”, confirmando
que a preposição “em” foi empregada de maneira inadequada no
fragmento, a seguir:
Comprova-se, portanto, que esse fenômeno só confirma o que
foi observado no levantamento de ocorrências das preposições “em”
e “a”, no qual o uso de “em” é mais efetivo.
Pelas construções analisadas, fica evidente que os autores
desses textos não dominam o adequado emprego da preposição
“a”. Às vezes, nem mesmo concluem uma argumentação e, por
isso, aparecem construções sem uma complementação ou sem o
sinal indicador da crase, ou ainda com a preposição omitida, como
se vê em:
Esses tipos de ocorrências, acima, aparecem com freqüência,
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mas o que deve ser levado em consideração é que ela não impossibilita o interlocutor de compreender a mensagem, o que só aumenta a distância entre o falante do português brasileiro e a preposição “a” na expressão de pensamentos. Entretanto, o uso freqüente desse tipo de construção não quer dizer que a preposição
“a” não mais seja reconhecida no Brasil; é, como já foi constatado,
uma tendência à sua substituição. Isso porque há construções que
apresentam o sinal gráfico indicador da crase, o que evidencia que
a preposição “a” ainda é reconhecida e empregada, mesmo em
número de ocorrência menor.
A seguir, mostram-se três ocorrências da preposição “a”
indicada com sinal gráfico (crase):
É importante ressaltar que em “R 21 – L 01: “Assistindo o
mundo”, que é título da redação número 21, o candidato não empregou a preposição “a”, já que o seu uso seria obrigatório, pois é
regida pelo verbo transitivo indireto assistir, o que caracteriza o
fragmento como inadequado, levando-se em consideração a GT.
Entretanto, no último parágrafo, linhas 24/25, o candidato escreve: “É espantoso enchergar tudo isso e não poder participar de
tudo; e melhorar tudo”.
Analisando o texto desse ponto de vista, poder-se-ía considerar seu título como adequado, pois a intenção do candidato não é
observar o mundo, mas sim melhorá-lo, ajudá-lo, tal como faz um
médico ao seu paciente. Então, o verbo assistir seria transitivo
direto e, portanto, o fragmento estaria adequado.
Todavia, o que prevalece na redação é o sentido de observar,
ver, enxergar o mundo, confirmando que o candidato, ao escrever
o título da redação, não teve a atenção necessária para reconhecer
que o verbo assistir, empregado no título da redação, requer o
uso da preposição “a”, o que comprova que essa preposição, na
maioria dos casos, não é reconhecida.
3.3 Caso especial
Constatou-se, anteriormente, que há uma tendência no português do Brasil a se usar com mais freqüência a preposição “em”
em comparação à preposição “a”. Entretanto, o fenômeno que ocorre
nos textos estudados não é a substituição de “a” por outra preposição qualquer. O que se observa, na verdade, é a tendência à eliminação de “a”, independente de preferência pelo emprego de “em”
ou do gerúndio. Neste sub-item, comenta-se a substituição da
estrutura a+Infinitivo, que é uma característica do português de
Portugal, pelo Gerúndio, característica do português do Brasil.
Para isso, fez-se um levantamento do número de ocorrências
desse fenômeno, com a finalidade de se observar até que ponto
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essa eliminação da preposição “a” é relevante para a descrição do
português do Brasil. O resultado desse levantamento pode ser observado na Tabela 2, a seguir:
Tabela 2. Número de ocorrências da estrutura a+infinitivo e de verbo no
gerúndio nos textos analisados.
Pelos resultados observados na Tabela 2, constata-se que o
emprego de verbo no gerúndio foi 77,08 % e o da estrutura
a+infinitivo, de 11,46 %, uma diferença de 77,08 %, evidenciando que há, nos textos analisados, maior tendência a empregar esse
tipo de estrutura para a construção de enunciados. Para efeito de
constatação, relacionam-se, a seguir, 10 fragmentos com esse tipo
de ocorrência:
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste Trabalho de Graduação, desenvolveu-se um estudo descritivo acerca do funcionamento das preposições “em” e “a” em 40
textos produzidos por alunos que participaram do processo seletivo do Vestibular da Universidade da Amazônia, em 2003. Nele,
procurou-se mostrar a funcionalidade dessas preposições, de acordo
com concepções de gramáticos e lingüistas, com a finalidade de
mostrar como teceram considerações sobre o sistema preposicional
do português brasileiro.
Primeiramente, optou-se por fazer algumas considerações sobre a evolução que a preposição sofreu na passagem do latim para
o português, e assim ficou evidenciada a origem desse sistema.
Posteriormente, o estudo apresenta considerações de
gramáticos como Celso Cunha, Evanildo Bechara e Celso Luft, que
procuraram mostrar como as preposições são classificadas e funcionam no interior dos textos. Em seguida, a análise mostra como as
preposições passaram a ser consideradas de acordo com a Lingüística Moderna.
Com base nesses estudos, constatou-se que as preposições
do português brasileiro passaram por diferentes fases durante o
processo de mudanças ocorridas na língua. Em um primeiro momento, foram vistas como elemento de conexão de palavras ou
orações em uma construção, caracterizando-se pelo aspecto sintático; no segundo momento, além do aspecto sintático, passaram a
ser vistas contendo uma relação de sentido, ou seja, as preposições não somente interligavam palavras ou orações, mas também
mantinham relações semânticas no discurso.
No terceiro momento, foram examinadas com as mesmas características sitntático-semânticas, mas, agora, com características de elementos de coesão, passando a ser um termo lingüístico
relevante no processo comunicativo, já sob influência da Lingüística Textual.
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Baseando-se nessas particularidades como suporte para a
análise descritiva almejada, realizou-se uma atividade que é o ponto
crucial deste Trabalho de Graduação, na qual se procurou mostrar
o funcionamento das preposições “em” e “a” nos textos selecionados, no que tange ao número de ocorrências, à sua efetivação e,
principalmente, tentou-se mostrar o que está acontecendo atualmente no português brasileiro quanto ao uso da preposição “a”.
Por meio do levantamento do número de ocorrências, constatou-se que a preposição “em” foi bem mais usada que a preposição “a”, exatamente 44,06 %. A efetivação dessas preposições nos
textos se fez, em geral, de maneira que se evidencia o uso corrente, ou seja, sem que o candidato tenha se apoiado na Gramática
Tradicional.
A preposição “a”, por sua vez, vem sofrendo certas restrições
quanto ao seu emprego, pois tende a ser substituída pela preposição “em” e por outras em diversas construções, especialmente na
língua falada no Brasil, como nos casos em que certos verbos transitivos indiretos, usados com a referida preposição, passam a ser
diretos, como é o caso dos verbos assistir, obedecer, desobedecer,
etc., como em: “Assistindo
o mundo”. Além disso, constatou-se,
por meio de levantamento de número de ocorrências, que a estrutura auxiliar+a+infinitivo, típica do português de Portugal, foi
eliminada pelo auxiliar+gerúndio, fato comprovado com uma
diferença de 77,08 %, talvez para evitar o uso da preposição “a”,
como em: “Vovó está tomando mingau de milho / Vovó está a
tomar mingau de milho”.
Todavia, é importante ressaltar que o professor, em sala de
aula, deveria ter o compromisso em ensinar aos alunos que a preposição é muito mais que um simples elo, pois, em contextos diferentes, uma mesma preposição pode apresentar significados distintos. Esse é um dos motivos para o professor trabalhar a língua
materna apoiado em textos, explicando a funcionalidade dela, e
não mostrar a preposição fora de contexto, como acontece no estudo prescritivo.
O estudo das preposições “em e “a”, assim como de outras,
fica aberto para novas reflexões sobre o seu funcionamento. Novas pesquisas poderão ser feitas com a finalidade de facilitar sua
compreensão, de maneira que o ensino da preposição em sala de
aula seja, então, eficaz e possibilite ao aluno condições para que
possa se expressar de maneira clara, assim como compreender
aquilo que lê.
Com essa análise, chegou-se à conclusão de que, se o número de textos analisados tivesse sido maior, talvez fosse possível
apresentar outras evidências quanto ao emprego das preposições
analisadas.
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Portanto, é de suma importância que o ensino da preposição
tenha, por parte dos professores, o compromisso de possibilitar
que o aluno adquira condições para crescer como falante da língua
portuguesa, adquirindo condições de discernimento para poder
entender o que se passa no mundo e à sua volta.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA, N. M. de. Gramática latina. 25ª ed. São Paulo:
Saraiva, 1994.
ALMEIDA, N. T. de. Regência verbal e nominal. 2ª ed. São
Paulo: Atual, 1988.
ANDRADE, M. M. de. Redação prática: planejamento,
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BAGNO, M. Português ou brasileiro: um convite à pesquisa. São Paulo: Parábola Editorial, 2001.
BECHARA, E. Moderna gramática portuguesa. 37ª ed. Rio
de Janeiro: Lucerna, 1999.
CARONE, F. BARROS de. Morfossintaxe. 3ª ed. São Paulo:
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CÂMARA JÚNIOR, J. M. Dicionário de lingüística e gramática. 16ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1986.
_______. História e estrutura da língua portuguesa. 2ª
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AS PREPOSIÇÕES “A” E “EM” EM REDAÇÕES ESCOLARES
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Nellihany dos Santos Soares
UTOPIA E POESIA EM MANUEL BANDEIRA
ORIENTADORA: Amarílis Tupiassu
RESUMO
A presente pesquisa propõe, a partir da análise do poema
“Vou-me embora pra Pasárgada”, desvendar a maneira como a
temática da utopia é tratada por Manuel Bandeira, bem como os
motivos de o poeta construir o seu mundo de sonhos e dos desejos
mais simples do dia-a-dia. A pesquisa enfatiza, ainda, a presença
do eu-biográfico nos versos de Pasárgada, uma pesquisa que acaba por acenar com um convite à leitura do poema, uma síntese da
obra de Bandeira.
PALAVRAS-CHAVE: realidade, sonho, evasão, utopia, mundo imaginário, eu-biográfico.
ABSTRACT
This paper tries to propose, from the analysis of the poem
“Vou-me embora pra Pasárgada”, reveal the way in which the topic
of derision is treated by Manuel Bandeira, as well as the reasons
for the poet to build up his world of dreams and the most ordinary
daily wishes. The research emphasizes also the presence of the
autobiographical on the verses of Pasárgada, a research that
ultimately shows an invitation to reading the poem, a sum-up of
Bandeira’s work.
KEY-WORDS: reality, dream, evasion, derision, fantasy world,
self-biographical.
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CHEVALIER & GHEERBRANT, 1997
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I - Primeiras Palavras
Ao estudarmos literatura brasileira, e sobretudo o período modernista, deparamo-nos com um poeta inigualável: Manuel Bandeira. A partir do momento em que tive que tomar a importante decisão de selecionar o assunto para desenvolver meu Trabalho de Conclusão de Curso, naturalmente, Bandeira aflorou como veio de fascinação. Ou em outras palavras, sua poesia inovadora e sentimental, reveladora da busca constante de novas formas de expressão,
fascinou-me pela temática da utopia que, apesar de muito enfocada
poeticamente, continua a gerar pluralidade de abordagens.
Apesar de ser constantemente estudado como integrante da Primeira Geração do Modernismo brasileiro, não podemos enquadrá-lo
em um único estilo, já que sua trajetória poética inicia-se com traços
parnasiano-simbolistas que podem ser verificados em seu primeiro
livro, A Cinza das Horas (1917), em que se confronta a busca da
forma perfeita e o descritivismo parnasiano, juntamente com a
musicalidade e a subjetividade anímica simbolista. Em Libertinagem (1930), obra que contém poemas escritos de 1924 a 1930 — os
anos de maior força e calor da Primeira Geração Modernista — o
poeta assume os primeiros traços da técnica e da estética moderna.
Através de sua poesia escrita em linguagem simples, despojada, coloquial e por meio de versos livres, Bandeira emociona os
leitores, pois seus poemas nascem e crescem dos acontecimentos
mais comuns do cotidiano, de momentos que aparentemente são
banais e insignificantes. A sua poesia se desentranha do dia-a-dia
mais corriqueiro, em que instantes da existência aparecem transfigurados em pura essencialidade da vida de todos os homens.
O objetivo maior deste trabalho é investigar o modo como
Manuel Bandeira lida com a temática da utopia expressa no poema
Vou-me embora pra Pasárgada, e também os motivos que impulsionaram o poeta a construir um lugar ideal, de sonhos, de fantasias simples e despojadas impulsionadas pela vida tocada pela
plenitude, deserção e errância.
Imerso nesse mundo fabuloso, o poeta tentaria esquecer, por
alguns instantes, da convivência com a morte, com o não-ser, com
o não-ter, com o não-poder e, enfim, esquecer a vivência entre
faltas e ausências — todos esses sentimentos inscritos entre os
pontos da tessitura sensível da palavra bandeiriana.
Para dar apoio a este estudo serão mobilizados autores e obras
que adotam as mesmas temáticas presentes na obra de Bandeira,
entre eles: Augusto dos Anjos, Baudelaire, Cecília Meireles, Eneida
de Moraes e Thomas Morus. Cada um desses autores concebeu o
seu próprio significado de utopia.
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Foi a sensibilidade da poesia de Manuel Bandeira, atrelada a
sua história de vida que me instigou a lançar um olhar mais atilado
sobre a sua obra. Interessava-me sair do papel de simples leitora
e assumir a condição de estudiosa de sua trajetória poética. É isto
que intento neste estudo.
Enfim, peço licença para entrar e desvendar os mistérios e
sonhos da Pasárgada fabulosa construída por Bandeira, locus em
que a experiência de vida e a experiência poética são quase
inseparáveis. Mas embora esteja do lado de “cá”, tentarei percorrer esse mundo quase perfeito, entrar “lá” e derramar meu olhar —
humilde e apaixonado — sobre os caminhos palmilhados por esse
Bandeira de cintilações que nos enriquecem a alma.
Que este estudo, ou melhor, que esta viagem não seja somente minha, mas de todos aqueles que admiram a poesia de Manuel
Bandeira.
II - O HOMEM, UM SER DE UTOPIAS. O PÊNDULO DA PLENITUDE E DA FALTA
O que é a vida senão a eterna busca da felicidade, da realização de sonhos e da esperança por um mundo melhor? Nessa luta
constante por viver, tudo vale à pena, até mesmo fugir da realidade ameaçadora para correr em busca de lugares que só existem
na imaginação, pois viver “aqui” já não é o bastante e é preciso
migrar para um “lá” onde os momentos mais simples ou os mais
absurdos podem ser possíveis.
É através da utopia que o homem tenta concretizar seus desejos, aquietar tristezas, angústias e preencher faltas; nesse instante, a
utopia passa a ser o sonho, o território dos desejos, a maneira mais
fácil de concretizar tudo aquilo que a vida real não pode oferecer.
A utopia humana é o reflexo dos desejos mais simples do diaa-dia, é o que muitos almejam mas que, para alcançar, precisam
vencer barreiras (na maioria das vezes) intransponíveis. A utopia é
o fruto gerado por irrealizações, por esperança, por faltas, por
decepções e até mesmo por um mau destino.
O homem (um ser de utopias), “constrói” um mundo “ideal”
através de sua imaginação. Nesse mundo ele será quem assim o
queira, fará o que for de sua vontade, recordará pessoas e momentos idos e o tempo fluirá a favor dos próprios impulsos oníricos.
O surgimento da utopia coincide com a própria criação humana e vem desde os tempos imemoriais. É possível, por exemplo,
fazer a leitura de dois acontecimentos bíblicos capazes de justificar
a afirmativa acima.
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Primeiramente, temos a história de Adão e Eva que,
ao serem criados por Deus, foram presenteados pelo
criador com uma terra perfeita, onde nada lhes faltaria,
o Senhor chamou essa terra de “Paraíso”.
Impulsionados pela própria curiosidade e por insistência da serpente, Adão e Eva provaram da maçã — o
fruto proibido — e, como castigo, ambos foram expulsos do paraíso.
Na leitura do texto acima, temos uma história passada em um mundo “perfeito”, uma terra denominada “Paraíso” da qual sempre ouvimos falar, e embora nunca a
tenhamos visto com os próprios olhos, ela existe em nossa imaginação. Trata-se de um mundo utópico se a considerarmos como denomina o próprio etimo: “país imaginário”, “lugar que não existe”. Na história desse Paraíso, foi
dada ao homem a chance de uma vida repleta de felicidade que se findou rapidamente, resumindo-se em angústia, vergonha, pecado e faltas.
Um outro acontecimento em que podemos fazer
uma leitura da utopia é a passagem bíblica em que Deus,
ao ver o sofrimento e humilhação vivida pelos judeus
durante a escravidão no Egito, manda chamar Moisés
para libertá-los. Eis então que o Senhor lhes promete
uma terra chamada Canaã, onde manava o leite e o
mel.
Observemos a passagem bíblica abaixo:
Disse ainda o Senhor: Certamente
vi a aflição do meu povo, que está
no Egito, e ouvi o seu clamor por
causa dos seus exatores. Conheçolhe o sofrimento...
... Por isso desci a fim de livrá-lo da
mão dos egípcios e para fazê-lo subir daquela terra a uma terra boa e
ampla, terra de que emana leite e
mel. (FIGUEIREDO, 1995: 395)
Nesse contexto, Deus destina ao povo judeu uma
terra diferente e de pura fantasia, já que (na realidade)
é impossível encontrarmos um lugar onde se perpetue,
por todos os cantos, leite e mel.
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O sentido da utopia nos contextos citados deve ser compreendido de forma genérica, assim como trata a etimologia: “mundo
imaginário”, “quimera”, “lugar que não existe”.
O homem, descrente da realidade em que vive e com os
projetos nela sonhados, acaba por se evadir, e foge através da
própria imaginação para lugares onde tudo é fácil de acontecer.
Afinal, se “aqui” o viver se resume em faltas, é preciso construir
um mundo no plano da imaginação, onde os sonhos não sejam
inúteis, mas elementos geradores de plenitude. Que o “lá” seja um
locus de belezas e realizações infinitas.
2.1 - A utopia: Etimo
A palavra utopia — de acordo com a sua etimologia grega —
significa “em lugar nenhum” ou simplesmente, “lugar não-existente”.
No ano de 1516 apareceu um pequeno livro do
humanista e homem de Estado inglês Thomas
Morus que trazia o título: Livreto deveras precioso e não menos útil do que agradável sobre
o melhor dos regimes de Estado e a ilha da
Utopia até hoje desconhecida. Esta obra — que
veio a ser conhecida pelo nome de Utopia —
descrevia uma ilha feliz encontrada por um viajante português (...) Era uma sociedade sem
miséria e exploração, sem mentira e opressão,
sem obscurantismo e intolerância, sem ódio e
maldade, sem ócio e sem trabalho forçado. O
sábio rei Utopus havia introduzido instituições
generosas e em seguida isolado o país do resto do mundo para que não fosse contaminado
pelo mal que lá imperava. A boa sociedade era
afinal possível. (SEARCHI, 1972:1-2)
O relato acima pertence ao livro “A Utopia” (1516), do escritor
inglês Thomas Morus, e foi o marco inicial para a extensa variedade de obras que adotam a temática da utopia.
É importante enfatizar o sentido da palavra utopia para esse
trabalho: busca incessante pela “ilha”, pelo mundo “feliz e perfeito”
construído no plano da imaginação, e que vem sendo registrado
através dos tempos nas mais variadas formas literárias.
Na linguagem atual a palavra utopia significa fantasia, desejo,
sonho que não leva os fatos em consideração (pois é possível imaginar o mundo que se deseja sem preocupar-se com a realidade),
projeto cuja realização é quase impossível.
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Segundo Jerzy Szarchi, em estudo sobre a diversidade das
utopias diz:
Existe um grupo denominado utopias escapistas
da ordem eterna (grupo este em que se enquadra o poema a ser analisado nessa pesquisa: Vou-me embora p’ra Pasárgada), que
trata das temáticas utópicas localizadas além
da esfera da existência terrena do homem. No
mundo real não houve e não haverá qualquer
lugar onde habite a felicidade. Contudo não se
deve renunciar ao sonho de um viver prazeroso
em um mundo feliz. E esse mundo é projetado
(construído) além do tempo e do espaço, relacionado com valores eternos do tipo Deus, natureza, razão, etc. A sociedade perfeita de um
mundo perfeito não existe e, quem sabe, nunca existirá, mas o homem pode imaginá-la.
(SEARCHI, 1972:25).
2.2 - Os grandes discursos utópicos
A utopia vem sendo fonte de inspiração para muitos escritores
no decorrer dos séculos, e continua a gerar pluralidade de abordagens na literatura universal e brasileira. Sua construção se faz no
plano dos sonhos, da imaginação humana, a fim de criar um mundo perfeito onde reine a felicidade para todos os homens.
Realidade, esperança, sonho, realização, fuga e locus ideal
são palavras-chave para a compreensão desses “mundos” criados
de forma tão particular e especial. Neste capítulo, apresentaremos
alguns escritores que (através das palavras e da imaginação) construíram mundos feitos de utopia.
Thomas Morus (1477-1535), sintetiza em “A Utopia” (1516), a
expressão do desejo de reforma de toda a vida social, política e religiosa dos europeus do século XVI. Nessa obra, Morus descreve uma
sociedade ideal comunista, um estado imaginário, situado numa ilha,
uma Inglaterra ideal que consiste em evitar os desequilíbrios sociais e
garantir a igualdade dos cidadãos. A ilha da Utopia criada por Morus é
um lugar em que a sabedoria e a felicidade do povo decorrem de um
sistema social, legal e político perfeito, guiado pela razão.
Vejamos abaixo o que nos diz Morus sobre a ilha da Utopia:
A crer no que dizem, e que, aliás, em parte é
confirmado pela configuração do território, nem
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sempre a utopia foi uma ilha. Foi o rei Utopus
que dela se apoderou e lhe deu o nome (pois até
aí se chamava Abraxa), transformando o povo
rude e selvagem que a habitava num povo com
uma civilização perfeita, que em muitos pontos
ultrapassava a de todos os outros povos. (MORUS,
2002:53-4)
O poeta e crítico francês Charles Baudelaire (1821-1867) em
sua obra-prima “As Flores do Mal” (1857), também criou um mundo
utópico em um de seus poemas entitulado “Invitation au Voyage”.
Em O Convite à Viagem1 , Baudelaire deseja fugir da realidade,
uma vez que o cotidiano é desagradável, daí a necessidade (e não
somente a vontade) de criar um espaço onde tudo é beleza, um
paraíso, para descansar das cogitações da vida intranqüila entre
marginais e prostitutas, a busca da tranqüilidade que nunca encontrou ao seu redor.
Os versos abaixo descrevem o mundo de belezas criado por
Baudelaire:
Que Irmã e criança
Que doçura mansa,
Ali viver afinal
De sonho e lazer,
Amar e morrer,
Num país que é teu igual
Ah,que os sóis molhados
Destes céus turvados,
Á minha alma tem o encanto
Que é o mais singular
Do pérfido olhar
Brilhando atrás de teu pranto.
Lá tudo é belo e se ordena
- Luxo e volúpia serena.
Móveis soberanos
Polidos dos anos,
Teríamos na morada;
As mais raras flores
Juntando os odores
A alguma fragrância ambreada,
Os tetos vermelhos,
Os fundos espelhos,
O esplendor oriental,
Diriam a medo
À alma, em seu segredo,
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A doce língua natal.
Lá tudo é belo e se ordena
- Luxo e volúpia serena.
Vê por estes rios
Dormirem navios
Todos de humor vagabundo;
E por realizar
O que o Amor sonhar
Hão de vir do fim do mundo.
O sol já na sombra
Vai cobrindo a alfombra,
Os canais, toda a cidade,
De ouro e alga; e parece
Que o mundo adormece
Numa quente claridade.
Lá tudo se ordena
- Luxo e volúpia serena. (BAUDELAIRE,
1981:176-177)
Augusto dos Anjos (1884-1914) em seu único livro, “Eu” (1922)
— fez da obsessão com o próprio eu o centro de seu pensamento
utópico.
Cético às possibilidades do amor — amor que se converte em
ódio — tudo desperta nojo egoísmo e angústia. A esse poeta, que
aspira à morte e à anulação de sua pessoa, seus versos reduzemse a combinações de elementos de leis físicas e biológicas, decomposições de moléculas, vermes.
Entretanto, a essa repulsa física e à inapetência para os prazeres da carne, contrapõe-se entusiástico desejo de conhecer outras plagas, onde a força dos instintos não se limite os vôos da
alma. E foi assim que Augusto dos Anjos construiu “A Ilha de
Cipango”, um lugar de maravilhas exuberantes não obstante o fim
pessimista do poema.
Conheçamos abaixo trecho do poema em que se constrói o
mundo utópico descrito pelo poeta:
Mas de repente, num enleio doce,
Qual se num sonho arrebatado fosse,
Na ilha encantada de Cipango tombo,
Da qual, no meio, em luz perpétua, brilha
A árvore de perpétua maravilha...
O gênio singular da Fantasia
Convidou-me a sorrir para um passeio...
Iríamos a um país de eternas pazes
Onde em cada deserto há mil oásis
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E em cada rocha um cristalino veio...
Gozei numa hora séculos de afagos,
Banhei-me na água de risonhos lagos
E finalmente me cobri de flores... (ANJOS,
2003:1-2)
Cecília Meireles (1901-1964), poeta de um fazer poético repleto de puro lirismo e do mergulho no “eu profundo”, acreditava
na transitoriedade de tudo o que vive nesse planeta, e tinha profundo desapego das coisas materiais.
Teve sua infância marcada por perdas prematuras que fizeram com que Cecília transformasse sua visão do mundo. Embora
atropelada pelas tragédias da vida pessoal, não se tornou
desesperançosa ou desesperada em relação à vida ou às pessoas;
pelo contrário, seu otimismo interior e sua atitude pacifista sempre
estiveram imunes às maldades do mundo.
De seu acervo literário faz parte o conto “Ilha do Nanja”, publicado no livro “Quadrante 1” (1966), em que descreve um mundo
de belezas e perfeições onde todas as pessoas são caridosas e
humildes, e vivem cada dia com muita simplicidade e harmonia.
Vejamos uma passagem do conto em que a poeta descreve a
noite de natal na Ilha do Nanja:
Na ilha do Nanja, as pessoas levam o ano inteiro esperando a chegada do Natal. Sofrem doenças, necessidades, desgostos como se andassem sob uma chuva de flores, porque o Natal
chega: e, com ele, a esperança, o consolo, a
certeza do bem, da justiça, do amor. E ninguém pede contribuições especiais, nem abonos nem presentes. Mas todos dão qualquer
coisa, uns mais, outros menos, porque todos
se sentem felizes, e a felicidade não é pedir
nem receber: a felicidade é dar. Há mesmo
quem dê um carneirinho, um pombo, um verso! Foi lá que me ofereceram certa vez, um
raio de sol! Lá também ninguém lê histórias
em quadrinhos. E tudo é muito mais maravilhoso, em sua ingenuidade. Os mortos vêm
cantar com os vivos, nas grandes festas, porque Deus imortaliza, reúne, e faz deste mundo
e de todos os outros uma coisa só. (MEIRELES,1966:169)
Eneida de Moraes (1904-1971) na crônica Aruanda (1989) também construiu um mundo de ideais sonhados por ela.
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Aruanda é fruto brotado de uma utopia pela qual muitos lutaram — sonhos de liberdade, igualdade e fraternidade — para realizar mas poucos acreditaram com tanta intensidade e veemência
como a poeta.
Aruanda foi o único porto que jamais se apagou da imaginação do negro-escravo, porto que sintetizava o sonho, o desejo de
voltar, de livrar-se da opressão:
São Paulo de Luanda, capital de Angola, foi o
único dos portos africanos do tráfico de escravos que permaneceu na memória coletiva do
negro brasileiro. A lembrança ficou através de
cantos de macumba: Aruanda, Aluanda,
Aluangué; de capoeira: Aruandê; de maracatu:
Zaluanda, Aruenda. Os descendentes de angolenses, conguenses, cabindas e em geral dos
povos africanos de língua banto mantiveram e
mantêm viva a palavra em tôda a sua enorme
significação emocional: N’Aluanda só se pisa
devagar. (CARNEIRO apud ENEIDA,1989:20)
Arquiteta de um mundo que evocava lembrança, passado, tempos idos, infância e outros sentimentos, Eneida nos descreve Aruanda
da seguinte maneira:
Todos moram em Aruanda, terra lume, bela,
capital dos sonhos, ambições e desejos...É dela
que chegamos todos os dias para a conquista
de nossas ambições...Aruanda é o país que sempre trazemos dentro de nós, país de liberdade e
paz, país sem desigualdades nem ódios, sem
injustiças ou crueldades, país do amor sonhado
por todos os homens. Aquele que carregamos
como uma arma ou uma jóia tão brilhante, pois
foi por nós construído, vivido, criado e é por nós
defendido. (MORAES, 1989:23-26)
Como observarmos, cada um desses poetas construiu um mundo próprio, de acordo com sonhos individuais e/ou coletivos. Esses
mundos criados através da tessitura das palavras e no terreno primoroso da imaginação passam a ser habitados por cada um de nós,
cada vez que percorrermos seus primeiros versos ou capítulos.
Sem nos preocuparmos com as atitudes que levaram os arquitetos da palavra a tal empreitada, viajamos livremente por terras até então desconhecidas, onde reina felicidade e paz absoluta.
A busca pela terra perfeita ou pela ilha de mil oásis — como
versificou Augusto dos Anjos — continua dentro de cada um de nós.
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2.3 - Manuel Bandeira: o grande poeta menor
Tomei consciência de que era um poeta menor; que me estaria para sempre fechado o
mundo das grandes abstrações generosas; que
não havia em mim aquela espécie de cadinho
onde, pelo calor do sentimento, as emoções
morais se transmudam em emoções estéticas:
o metal precioso eu teria que sacá-lo a duras
penas, ou melhor a duras esperas do pobre
minério das minhas pequenas dores e ainda
menores alegrias. (BANDEIRA, 1984:30)
É evidente que Manuel Bandeira (1886-1968) foi humilde e
modesto em sua afirmação sobre a capacidade que tinha em fazer
poesia.
Não teve o propósito nem a ousadia de se achar superior ou
de tentar se comparar a outros escritores de seu tempo — o que
não poderia fazê-lo, já que a poesia bandeiriana é única e inigualável.
A carreira literária de Bandeira foi cercada por várias influências, a primeira delas, o próprio pai, com quem aprendeu que: “a
poesia está em tudo: tanto nos amores como nos chinelos, tanto
nas coisas lógicas como nas disparatadas”. (BANDEIRA, 1984:19).
Entre outros estavam Souza da Silveira, Antônio Nobre, Musset,
Bilac, Vicente de Carvalho, Ronald de Carvalho, Machado de Assis,
Ribeiro Couto, o grande amigo Mário de Andrade e outros.
A ambição desse nordestino nascido no Recife nunca fora ser
poeta, mas arquiteto como queria o pai que, frente à fatalidade da
doença — a tuberculose — ensinou ao filho os primeiros versos :
Criou-me desde eu menino,
Para arquiteto meu pai.
Foi-se-me um dia a saúde...
Fiz-me arquiteto? Não pude!
Sou poeta menor, perdoai! (BANDEIRA,1993:
181-182)
No ano de 1903 Manuel Bandeira ingressou na Escola Politécnica de São Paulo onde pretendia se tornar arquiteto, mas em 1904
adoeceu dos pulmões, abandonando os estudos. Os versos que
fazia durante a meninice por simples divertimento, a partir de então, faria pela fatalidade do destino.
Em 1917 publicou o seu primeiro livro — A cinza das Horas —
que reunia poemas escritos desde 1903. Nesse ano de publicação,
a poesia brasileira passava por um momento de desgaste influenciada pelos defensores da estética parnasiana, que eram contra as
inovações almejadas pelos modernistas.
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Talvez a arquitetura tenha perdido um grande arquiteto. Não
podemos saber. O certo é que a literatura ganhou um dos maiores
poetas brasileiros.
O ano de 1922 foi de suma importância para as letras, pois
estavam abertas as portas para uma série de mudanças na arte e
na literatura. Em fevereiro de 1922 foi realizada a Semana de Arte
Moderna — movimento que deu início à revolução da arte de escrever.
Manuel Bandeira não se sentia membro efetivo do grupo que
promoveu a Semana de Arte Moderna, no entanto, contribuiu indiretamente, pois seu poema “Os Sapos” (1919), uma sátira aos que
ainda insistiam a prender-se ao Parnasianismo, foi declamado por
Ronald de Carvalho no Teatro Municipal de São Paulo durante a
Semana e causou grande impacto no meio literário. Sobre o movimento, Bandeira declarou: “Pouco me deve o movimento; o que
devo a ele é enorme”. (GARBUGLIO, 1998:22).
A contribuição dada por Bandeira ao Modernismo brasileiro
rendeu-lhe a homenagem do apelido São João Batista do Modernismo, já que sua obra abriu novos caminhos para os adeptos da
estética moderna.
Em 30 de novembro de 1940 tomou posse na Academia Brasileira de Letras — nessa época Bandeira já era consagrado como
um dos mais importantes poetas brasileiros.
Manuel Bandeira faleceu em 13 de outubro de 1969. Foi sepultado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras, no cemitério
São João Batista.
Em 82 anos de poesia, Manuel Bandeira escreveu sobre o amor,
o erotismo, a infância, as mulheres, os amigos, a realidade, os
sonhos e, principalmente, sobre a morte — motivo maior de toda a
sua poesia.
2.4 - Pasárgada: contraponto entre vida e palavra poética
2.4.1 - A indesejada das gentes 2
Quando cai doente em 1904, fiquei certo de
morrer dentro de pouco tempo: a tuberculose
era ainda a “moléstia que não perdoa”. Mas fui
vivendo,
morre-não-morre...(BANDEIRA,
1984:131)
A morte foi a fiel companheira na vida de Manuel Bandeira,
anunciada em plena adolescência, sob a forma de uma tuberculose,
doença mortal na época (início do séc. XX). A permanente consciência da morte, a luta contra ela, a convivência com sua presença —
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fazedora de ausências — transformou-se em poesia e numa descoberta essencial de vida, numa valorização intensa do cotidiano.
Internado no sanatório de Clavadel a fim de tratar-se da doença, Bandeira perguntou ao Dr. Bodmer, quanto tempo ainda lhe
restava de vida, este respondeu:
O senhor tem lesões teoricamente incompatíveis com a vida; no entanto, está sem bacilos,
come bem, dorme bem, não apresenta, em
suma, nenhum sintoma alarmante. Pode viver
cinco, dez, quinze anos... Quem poderá dizer?
(BANDEIRA, 1984:131)
A partir de então, Bandeira continuou a esperar a morte para
qualquer momento, vivendo provisoriamente, até que um dia a
“indesejada das gentes” resolvesse chegar.
Com a passar do tempo, o poeta que desde os 18 anos teve
que suportar as dores, o sofrimento e também o impedimento de
fazer as coisas mais simples do dia-a-dia, passou a aceitar seu
destino sem amarguras. Contou com a ajuda da poesia para esquecer por alguns instantes da artimanha que lhe reservara o destino — a literatura foi a sua vida.
2.4.2 - Bandeira, enfim, Pasárgada!
Vou-me embora pra Pasárgada
Lá sou amigo do rei
Lá tenho a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada
Aqui eu não sou feliz
Lá a existência é uma aventura
De tal modo inconseqüente
Que Joana a Louca de Espanha
Rainha e falsa demente
Vem a ser contraparente
Da nora que nunca tive
E como farei ginástica
Andarei de bicicleta
Montarei em burro brabo
Subirei no pau-de-sebo
Tomarei banhos de mar!
E quando estiver cansado
Deito na beira do rio
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Mando chamar a mãe-d’água
Pra me contar as histórias
Que no tempo de eu menino
Rosa vinha me contar
Vou me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo
É outra civilização
Tem um processo seguro
De impedir a concepção
Tem telefone automático
Tem alcalóide à vontade
Tem prostitutas bonitas
Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste
Mas triste de não ter jeito
Quando de noite me der
Vontade de me matar
— Lá sou amigo do rei —
Terei a mulher que eu quero
Na cama que escolherei
Vou-me embora pra Pasárgada .
Vou-me embora pra Pasárgada é texto síntese da poesia
de Manuel Bandeira, seja pelo aspecto da linguagem ou pela temática
da vida que podia ter sido, que precisava ter sido — e que não foi.
Pasárgada é uma espécie de paraíso pessoal (mas também
coletivo), lugar de utopias, sonhos e desejos, em que ele poderia
realizar as coisas mais simples, como montar em burro brabo, subir no pau-de-sebo, andar de bicicleta, tomar banhos de mar...
Vejamos o que Manuel Bandeira declarou sobre o mundo utópico de Pasárgada:
Vou-me embora p’ra Pasárgada foi o poema
de mais longa gestação em toda a minha obra.
Vi pela primeira vez esse nome de Pasárgada
quando tinha meus dezesseis anos e foi num
autor grego... Esse nome de Pasárgada, que
significa campo dos persas ou tesouro dos
persas, suscitou na minha imaginação uma
paisagem fabulosa, um país de delícias...Mais
de 20 anos depois, quando eu morava só na
minha casa da Rua do Curvelo, num momento
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de fundo desânimo, da mais aguda sensação
de tudo o que eu não tinha feito na minha vida
por motivo da doença, saltou-me de súbito do
subconsciente esse grito estapafúrdio: Vou-me
embora p’ra Pasárgada! Senti na redondilha
maior a primeira célula de um poema, e tentei
realizá-lo, mas fracassei. Abandonei a
idéia...Alguns anos depois, em idênticas circunstâncias de desalento e tédio, me ocorreu o
mesmo desabafo de evasão da vida besta.
Desta vez o poema saiu sem esforço como se
já estivesse pronto dentro de mim. Gosto desse poema porque vejo nele, em escorço, toda
a minha vida, e também porque parece que
nele soube transmitir a tantas outras pessoas
a visão e promessa da minha adolescência —
essa Pasárgada onde podemos viver pelo sonho o que a vida madrasta não nos quis dar.
Não sou arquiteto, como meu pai desejava, não
fiz nenhuma casa, mas reconstruí e não como
forma imperfeita neste mundo de aparências,
uma cidade ilustre, que hoje não é mais a
Pasárgada de Ciro, e sim a minha Pasárgada.
(BANDEIRA, 1984:97-98)
Pasárgada é a poesia das coisas mais simples. Esse lugar ideal, de fantasias comuns, revela um dado biográfico presente em
grande parte da obra de Bandeira: a presença da morte. É quase
impossível separar a experiência de vida da experiência poética do
autor de Pasárgada, embora sua poesia — carregada de pura universalidade — não possa ser reduzida a acontecimentos biográficos, que se transformam na mágica tessitura das palavras.
O crítico Alfredo Bosi em comentário sobre a presença do biográfico na obra de Bandeira, diz:
Os dados da vida é poderosa mesmo nos livros
de inspiração absolutamente moderna, como
Libertinagem, núcleo daquele seu não-meimportismo irônico, e, no fundo, melancólico,
que lhe deu uma fisionomia tão cara aos leitores jovens desde 1930. O adolescente mau
curado da tuberculose persiste no adulto solitário que olha de longe o carnaval da vida e de
tudo faz matéria para os ritmos livres do seu
obrigado distanciamento. (BOSI:1994;362)
Em Pasárgada, o eu-biográfico e o eu-lírico confundem-se du-
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rante a fuga da realidade desagradável para um mundo de fantasias. Com a construção de Pasárgada, o poeta deseja realizar os
atos mais comuns que foram interrompidos pela doença, e quando
já não era possível suportar o “aqui” — porque “aqui eu não sou
feliz”. Resta-lhe então, evadir-se para um “lá” acolhedor — porque
“lá” a existência é uma aventura”. Em Vou-me embora pra
Pasárgada, Manuel Bandeira lida com a utopia com simplicidade
para relembrar a infância, enfatizar sentimentos universais como a
tristeza e a alegria, recordar figuras femininas que fizeram parte
de sua vida e, até mesmo, imaginar situações absolutamente ilógicas — tudo isso foi proporcionado pela utopia bandeiriana que, em
Pasárgada, não conseguiu se livrar de um importante infortúnio —
a constância da doença — companheira fiel na realidade e na imaginação do poeta.
A crítica em introdução à Estrela da Vida Inteira fala sobre o caráter acolhedor dos versos de Bandeira, que atraem o leitor para uma
despojada comunhão lírica no cotidiano e, depois de adquirida a sua confiança, em arrastálo para o mundo das mensagens oníricas. (GILDA e ANTÔNIO CÂNDIDO apud BANDEIRA,
1993:4-5)
2.4.3 - “Aqui” e “Lá”
Espaço de uma utopia pessoal, cidade do desejo, terra de sonho — é assim que caracterizamos Pasárgada — locus onde o impossível pode acontecer. Mundo de mensagens oníricas, onde o
tema da evasão se manifesta com intensidade.
Neste mito poético — um dos mais populares
de toda a moderna poesia brasileira — é
comovente ver o poeta realizar, no mundo imaginário onde se refugiou de suas derrotas, justamente aquelas ações insignificantes que compõem a rotina de um menino sadio. (HOLANDA,
1993:12)
Em Pasárgada, onde a vida é o que deveria ser, existem dois
pólos diferentes que separam o mundo real do mundo imaginário
representados pelos advérbios “aqui” e “lá”, respectivamente, o
que se nega e o que se deseja.
O crítico José Carlos Garbuglio ao analisar os advérbios que
constituem Pasárgada, afirma: “o poema não define o seu Aqui a
não ser por uma vaga referência: ‘Aqui eu não sou feliz’... insistindo no ato negativo. O que se quer afirmar é o lá, o que se almeja,
não o que existe”. (GARBUGLIO:1998; 63)
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Feitas as observações, em nível de interpretação, é possível
identificar o “aqui” como o mundo real, e o “lá” como o mundo das
utopias, da imaginação.
2.4.4 - Uma breve análise de “Vou-me embora pra Pasárgada”
Uma análise do poema se faz importante para compreendermos esse universo de sonhos, onde eu-biográfico e o eu-lírico se
misturam nas mais simples atitudes. Observemos a interpretação
proposta para cada verso:
a) No verso que abre o poema Vou-me embora pra Pasárgada,
vemos com clareza a decisão tomada pelo eu-lírico de ir embora
para um novo lugar. Este verso se repetirá cinco vezes ao longo do
poema, tornando ainda mais forte a decisão do eu-lírico e, ao mesmo tempo, deixa a dúvida da sua ida ou não para Pasárgada.
b) Em “Lá sou amigo do rei”, o eu-lírico é amigo do rei, como
a dizer nas entrelinhas ou a crítica que para se ter privilégios é
necessário estar ao lado do poder. Assim, em Pasárgada, tudo o
que se desejasse seria possível de concretizar. O rei é uma metáfora do poder.
c) Em “Lá tenho a mulher que eu quero”; “Na cama que escolherei”, o eu-lírico afirma possuir livre decisão de escolha; por estar ao lado do poder, qualquer mulher que deseje poderá possuir.
Em passagens futuras deste trabalho, veremos que essa “mulher”
será identificada pelo eu-lírico. Os versos acima também revelam
um dado importante: a presença do sexo — tema muito enfocado
na poesia erótica de Bandeira.
d) No verso “Aqui eu não sou feliz”, temos a possibilidade de
duas leituras considerando o advérbio “aqui” como elemento principal: A primeira leitura se faz com a presença do eu-lírico, que
afirma “não ser feliz” em um lugar que não podemos identificar, e
que só o conhecemos como “aqui”. A segunda leitura se faz com a
presença do eu-biográfico, cujo “aqui” identificamos como a realidade vivida pelo poeta em relação à doença que o atingiu, e que
por este motivo ele não é feliz.
e) “Lá a existência é uma aventura;
De tal modo inconseqüente;
Que Joana a Louca de Espanha;
Rainha e falsa demente;
Vem ser a contraparente;
Da nora que nunca tive”.
Nos versos acima o eu-lírico nos descreve Pasárgada como
um lugar onde viver é uma espécie de aventura, fazendo uma
breve transgressão histórica no tempo e no espaço. Esse falso dado
histórico é marca maior da ilogicidade da vida. O paradoxo dos
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últimos versos enfatiza o absurdo do mundo. Devemos observar,
também, o não-senso de dar-se tanta importância aos poderosos e
ao poder,o que ele, Bandeira, desrealiza quando aparenta seres
que jamais poderiam ser aparentados.
f) “E como farei ginástica;
Andarei de bicicleta;
Montarei em burro brabo;
Subirei no pau-de-sebo;
Tomarei banhos de mar!”
Nesses versos, o eu-lírico faz citações de ações que fará em
Pasárgada. Entretanto, mais uma vez podemos identificar a presença do eu-biográfico, se lembrarmos que Manuel Bandeira teve
que deixar de fazer coisas comuns durante a infância, para amenizar os males da doença. A partir desse ponto de vista, o poeta
manifesta aspirações perdidas na infância . Mas, se por um lado, os
dados biográficos são importantes nesses versos, por outro não
são fundamentais. Sabemos que todo adulto guarda dentro de si
lembranças da infância e dos momentos de travessura, tempos
idos que não voltam mais. Se assim lermos os versos, dar-se-á
então, o encontro com o coletivo.
g) “E quando estiver cansado;
Deito na beira do rio;
Mando chamar a mãe-d’água;
Pra me contar as histórias;
Que no tempo de eu-menino
Rosa vinha me contar.”
É possível dizer que esses versos trazem uma importante revelação: a constatação que o eu-lírico do poema é o próprio Manuel Bandeira. Mais uma vez temos remissões à infância quando da
alusão à figura feminina de Rosa que, na vida real, foi ama e contadora de histórias do tempo de meninice do poeta. Através da
evocação da figura da mãe-d’água, Rosa instala-se na recordação
do poeta num misto de realidade histórica e fuga ao mitológico, o
que, aliás, talvez seja uma recorrência presente no poema elaborado num jogo de real e irreal, este o campo do sonho, das realizações utópicas.
h) “Em Pasárgada tem tudo;
É outra civilização;
Tem um processo seguro;
De impedir a concepção;
Tem telefone automático;
Tem alcalóide à vontade;
Tem prostitutas bonitas;
Pra gente namorar”.
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Nesses versos é chegada a hora do eu-lírico relatar tudo o que
existe em Pasárgada e, dentre os elementos existentes, está a
presença do “alcalóide”, espécie de droga que deixa o eu fora de si
e distante da realidade. Por outro lado, se os versos forem lidos
levando em consideração o eu-biográfico, o alcalóide terá a função
de aliviador das dores do corpo e da alma, pois vale lembrar mais
uma vez que Bandeira, sendo tísico, desejaria recorrer idealmente
ao alucinógeno para diminuir a angústia, a agonia causada pela
doença.
Ainda nesses versos, o eu-lírico identifica a mulher a qual se
referiu no início do poema: suas parceiras ideais para o jogo amoroso serão as prostitutas. Contudo, se o eu-lírico tem liberdade de
escolha, por que não escolheu uma mulher não prostituta. Seria
para não se comprometer? Seria um modo de definir-se não saudável fisicamente e, portanto, não apto ao casamento?
Além disso, temos a pluralidade do substantivo prostitutas,
indicador de que não há nenhum compromisso oficial por parte do
eu-lírico. Não seria novamente a presença de Manuel Bandeira real
nas entrelinhas desses versos de evasão? Se assim pensarmos,
veremos que, como portador da doença, o poeta viu-se interditado
em seus desejos e, por isso, ao escolher uma mulher, mesmo num
mundo utópico, escolheu as prostitutas, tão segregadas socialmente quanto ele, o debilitado , o tuberculoso.
Em Pasárgada havia também um “processo seguro de impedir
a concepção”. Não teria o eu-lírico desejo de tornar-se pai ou será
que os versos são singulares reflexos de um Bandeira com medo
de gerar um filho destinada a uma malsinada estrela,como o pai?!
Em Pasárgada, o processo de anticoncepção libertaria o poeta desse medo.Não parece que sim?.
A vontade de ser pai é reforçada por Manuel Bandeira nos
seguintes versos:
Tive amores — esqueci-os;
Gosto muito de crianças;
Não tive um filho meu;
Mas trago dentro do peito;
Meu filho que não nasceu. (BANDEIRA, 1993:
181-182)
g) “E quando eu estiver mais triste;
Mas triste de não ter jeito;
Quando de noite me der;
Vontade de me matar”.
Nesses versos, o eu-lírico faz referência a sentimentos univer-
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sais como a tristeza e a solidão, manifestando claramente desejo
de evasão ao falar da morte.
III – conclusão
Ao término desta monografia, pude constatar que Manuel Bandeira utiliza uma linguagem simples e despojada em seus versos,
transformando acontecimentos do cotidiano em pura poesia.
A poesia bandeiriana é uma junção de simplicidade, de originalidade e lirismo que se misturam com traços auto-biográficos,
sem no entanto, descaracterizar a qualidade não-biográfica de seus
versos.
O que mais me instigou a estas conclusões foi a maneira como
Manuel Bandeira lida com a temática da utopia em um de seus
mais conhecidos poemas Vou-me embora pra Pasárgada. No
mundo utópico de Pasárgada — uma mistura de sonho e realidade
— eu-lírico e eu-biográfico se fundem e se fazem presentes no
poema.
Pude verificar também que a poesia de evasão em Bandeira é
decorrente do cansaço do poeta diante das pressões do dia-a-dia.
Portanto, a solução é fugir para um mundo de realidades bem diferentes das oferecidas pela “vida besta” e, somente assim, vivenciar
um mundo ideal , em busca da satisfação dos desejos reprimidos e
inalcansáveis.
Com esta monografia, enfim, alcancei meu objetivo maior:
adquirir uma visão mais aguçada sobre a poesia bandeiriana. Com
a alma enriquecida, fecho este trabalho, como se me despedisse,
por ora, de uma tarefa que me proporcionou muito prazer.
IV – BIBLIOGRAFIA
BANDEIRA, Manuel. Antologia poética. 12ª edição. Rio de
Janeiro: José Olympio, 1981.
_______. Estrela da vida inteira. Nova edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993.
_______. Itinerário de Pasárgada. 3ª edição. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
BAUDELAIRE, Charles. As flores do mal. 3ª ed., São Paulo:
Max Limonad, 1981.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira.
São Paulo: Cultrix.
FIGUEIREDO, Antônio Pereira de. A Bíblia Sagrada . São
Paulo:1995
GARBUGLIO, José Carlos. Roteiro de leitura: poesia de
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Manuel Bandeira. São Paulo: Ática, 1998.
JÚNIOR, David Arriguci. Poesia de Manuel Bandeira: humildade, paixão e morte. São Paulo: Companhia das Letras,
1990.
MORE, Thomas. A utopia. São Paulo: Martim Claret, 2002.
MORAES, Eneida de. Aruanda e Banho de cheiro. Lendo o
Pará: Belém. Secult, 1989.
SZARCHI, Jerzy. As utopias ou a felicidade imaginada.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1972.
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MEIRELES, Cecília. Natal na ilha do Nanja. (on line). Disponível: http://www.releituras.com/cmeireles_natal.asp (capturado em
16 nov 2003).
Revista:
Fares,Josse.Eneida:um memorial de tortura e cadeia. In
Asas
da
Palavra.
Revista
do
curso
de
Letras.pag
21.n6.Belém.UNAMA,1997.
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Elisângela Alves Gusmão
A TRANSCULTURALIDADE EM A TERCEIRA
MARGEM DE BENEDICTO MONTEIRO
ORIENTADOR:José Guilherme de Oliveira Castro
RESUMO
A Transculturalidade é um processo cultural que também é
determinado por situações político-econômicas. Foi discutido, inicialmente, durante o contexto da globalização, e tem como fundamento filosófico a “identidade dinâmica”, que é formada em espaços onde se destacam encontros entre diversos sujeitos culturais
que estão disponíveis a potenciais de conflito e aprendizagem na
formação da identidade. Localizando este conceito antropológico
para a Amazônia, temos no romance “A Terceira Margem”, do autor
paraense Benedicto Monteiro, o cenário para a configuração do
processo de transculturalidade. Para tanto, foi utilizado como eixo
teórico-metodológico a pesquisa qualitativa, sendo feita a descrição interpretativa do fenômeno da transculturalidade por meio do
romance referido.
PALAVRAS-CHAVE: Transculturalidade, identidade dinâmica,
literatura amazônica, Benedicto Monteiro, A terceira margem.
RESUMO EM LÍNGUA ESTRANGEIRA
ABSTRACT: The transculturality is a cultural process which is
also determinated by political and economical situations. It was
discussed, initially, during the globalisation context, and it has like
philosophical fundamental “the dynamic identity” which is formed in
spaces where are stood out meetings between many cultural people
who are valiable to conflict potentials and learning in the identity
formation. Localizating this anthropological concept in the Amazon,
we have the novel “A Terceira Margem”, by the author from Pará
Benedicto Monteiro, the scenery to the configuration of the
transculturality process. For that, it was used as theoricalmethodological base the quality research, doing the interpretative
description of the transculturality phenomeno by the refered novel.
KEY-WORD: Transculturality, dynamic identity, Amazon
Liteture, Benedicto Monteiro, The romance: A Terceira Mar
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À MARGEM DA PÁGINA: O INÍCIO DA PROSA
Em algum momento de nossas vidas é possível que tivéssemos contato com pessoas de culturas diferentes. Talvez essa cultura diferente tenha nos inibido um diálogo por não conseguirmos
transcender a margem da língua ou do preconceito.
O processo de transculturalidade aponta-nos para a realização desse diálogo entre identidades culturais diferentes, mas que
convivem no mesmo espaço.
Observado pela primeira vez em 1994, por Schöfthaler e em
1995, por Welsch, durante o contexto da globalização, esses pesquisadores alemães perceberam que, induzidos por questões políticas, europeus de diferentes países passaram a conviver em espaço comuns, como salas de aula, hospitais, etc. Alan Touraine
(1999), defende que esses encontros multiculturais contribuem para
potenciais de aprendizagem e também de conflito, sendo imprescindível para formação da identidade dinâmica, capaz de respeitar
e conviver com as diferenças.
Trazendo esse conceito para a Amazônia, o filósofo Oesselmann
(2001), destaca-a como uma região com características específicas por seus “encontros culturais’, uma vez que a população amazônica apresenta uma formação étnica bastante heterogênea, a
exemplo da população cabocla, que é formada a partir das três
raças brasileiras.
Descrever o processo de transculturalidade por meio do romance “A Terceira Margem”, do escritor Benedicto Monteiro é a
proposta dessa pesquisa. A Arte Literária não seria esta terceira
margem capaz de levar o homem até o Outro desconhecido?
Durante nossa “prosa” no interior da “canoa gita” de Miguel,
protagonista do nosso romance, passaremos por alguns rios, são eles:
Com a Arte o Homem Transcende suas Margens, em
que será discutido o papel renovador da arte, sua função política e
seu poder de subverter a realidade limitadora.
E
m
Transculturalidade : Onde as Culturas Tornam-se Coloridas, será tratado o tema do processo de transculturalidade, um
breve histórico de conceito, a filosofia que ele defende e sua manifestação na Amazônia.
Aproximamo-nos dos nossos rios e florestas em Amazônia:
Águas Que Deságuam em Encontros, será apresentada a constituição da população Amazônica, qual é a ideologia sociedade global sobre a Amazônia e porque ela é tão propícia para o fenômeno
da transculturalidade.
Mergulhando nas águas da Arte Literária, em A Terceira
Margem: Um Exemplo Monteriano de Transculturalidade,
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TRANSCULTURALIDADE EM A TERCEIRA MARGEM
DE BENEDICTO MONTEIRO
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será apresentada uma descrição do processo de Transculturalidade
por meio do romance de Benedicto Monteiro; A Terceiro Margem, além do questionamento sobre a natureza da Arte como sendo a própria margem de encontro, sugerida pelo romance
monteriano.
“Sim, eu quero saber
Saber para melhor sentir,
Sentir para melhor saber.”
PAUL CÉZANNE,
Os Artistas Falam de Si Mesmo.
Com a Arte o Homem Transcende suas Margens
Para o filósofo existencialista, o homem dá sentido a sua existência a partir da sua atitude de construir e representar o mundo e
a si mesmo, para o existencialista não existe destino. Esse ato de
construção e representação do qual o homem é dotado é instrumento essencial para o desenvolvimento da consciência, porque
nos dá um olhar tridimensional, Universo-Eu-Outro. O olhar artístico é um “antidestino”, não está pré-estabelecido, pois o estabelecemos quando conseguimos transcender a realidade ao expressar sentimentos experimentados na vida.
Platão (427-347 a . c ) descreveu o fenômeno artístico como
um ato poético, que, de acordo com o filósofo NUNES (1991):
“Foi a inteligência divina, impessoal, que conduziu a matéria do estado de caos e de
indeterminação inicias ao estado de realidade.
Segundo hipótese mítica de Platão, isso operou-se pela ação de um espírito inteligente e
superior, o Demiurgo, que imprimiu na matéria
as formas dos modelos eternos e ideais das
coisas. A ação do Demiurgo, que fez do Universo a sua obra, e que o gerou como artefato,
foi o ato poético fundamental que os artistas
repetem ao impor à matéria, segundo a idéia
que trazem na mente, uma forma determinada.” (NUNES, 1991: 20)
A arte é uma necessidade para o homem, cada um de nós, em
algum momento da vida, precisou expressar-se artisticamente, seja
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por meio de um artesanato, desenho, poesia, interpretando uma
canção, um personagem ou simplesmente quando damos um novo
brilho à vida.
A palavra arte deriva de uma palavra latina que é sua matriz,
a palavra ars, e está na raiz do verbo articular, que denota ação de
fazer junturas entre partes de um todo. É no sentido lato: meio de
fazer, de produzir, daí a conceituação de Aristóteles ( 384-322 a.C. )
como sendo a arte o “hábito de produzir de acordo com a reta razão”, por isso, nesse contexto, NUNES (1991) considera que cabem
tanto aquelas artes da medida e da contagem, quanto as manuais, e
por fim, as artes imitativas, como a Pintura, a Escultura, a Poesia e a
Música. As quais Aristóteles chamou de póiesis ou poesia.
Quando pensamos em arte, é comum associá-la ao conceito
aristotélico, do artista e da criação, o qual torna ser o não ser e
reproduz aquilo que Platão chamou de ato poético fundamental, a
criação do universo no universo da arte. Por isso, no sentido estrito, a arte é pensada como toda atividade criativa que, entre outros
sentimentos, desperta no homem o sentimento do belo, categoria
esta que, a custo, a estética tenta explicar.
Podemos não saber qual a gênese da arte, quando o homem a
manifestou pela primeira vez, mas é possível conhecer de que ela
é feita, reproduzindo um pouco de sua natureza, com a poesia
“amiga” de Carlos Drummond de Andrade, publicada em Poesia
até Agora. Rio de Janeiro, José Olympio, 1948.
Canção Amiga
Eu preparo uma canção
Em que minha mãe se reconheça
Todas as mães se reconheçam,
E que fale como dois olhos.
Minha vida, nossas vidas
Formam um só diamante.
Aprendi novas palavras
E tornei outras mais belas
Caminho por uma rua
Que passa em muitos países
homens
Se não me vêem, eu vejo
E saúdo velhos amigos.
Eu preparo uma canção
Que faça acordar os
E adormecer as crianças.
(...)
Como toda expressão artística, este poema apresenta diversas leituras, dado o caráter subjetivo da arte, uma delas é a palavra “canção” representando o próprio fenômeno artístico. O eulírico, ou o artista, prepara sua arte para que o outro se reconheça
nela, seja induzido a imitá-la, uma conseqüência do fenômeno artístico que Aristóteles chamou de mímeses, e segundo NUNES é :
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“Potencializadora da função ética e espiritual
que ela desempenha, função que consiste em
induzir a alma a imitar o que é bom e digno de
ser imitado” (NUNES, 1991: 27)
A partir desse aspecto a arte também é considerada educativa.
O artista “caminha”: desenvolve sua arte, e “se não o vêem, ele
vê” visto que o artista, segundo CHAUÍ
“Dá a ver o mundo, um mundo novo, em estado nascente, tal como seria no momento originário da criação.”(CHAUÌ,1991: 233)
Ele “aprendeu novas palavras e tornou outras mais belas.”
Porque arte também é conhecimento. Para formalização de uma
obra, de acordo com BOSI:
“Concorrem sensações e imagens, afetos e
idéias,(...) movimentos internos que se formam
em correlação estreita com o “mundo” sentido,
figurado, pensado. Esse vínculo é, a sua maneira, cognitivo.”
(BOSI,1986: 59)
Mas como o artista vincula-se com a realidade? Tornando-a mais
bela? Nem sempre. Esse conceito de representação da realidade
num plano ideal foi criado por Aristóteles e estimulado pelas correntes clássicas para formar as virtudes do cidadão, retratando apenas
os bons sentimentos. Essa habilidade de imitar a realidade natural e
humana, Aristóteles considerou como a essência comum das artes,
cabendo, também, ao conceito de mímeses. Hoje, relata BOSI:
“A arte é fusão, tantas vezes dissonante, de grito e maneira poderá levar a uma reconsideração
do caráter plural do trabalho artístico, que passa pela mente, pelo coração, pelos olhos, pela
garganta, pelas mãos: e pensa e recorda e sente e observa e escuta e fala e experimenta e
não recusa nenhum momento essencial do processo poético”
(BOSI, 1986 : 38)
Em seu buscar incessante pelo novo, o homem encontra na
arte o próprio sentido da vida, como Jean Paul-Sartre representou
em seu livro A Náusea (São Paulo: Nova Fronteira, 1938) cujo
protagonista, perdido em sua “mesmice”, denominada como
incontingência pelo autor, descobre nas notas de uma velha canção, mímese da arte, o valor antológico da vida.
Essa característica de eternizar algo por meio de uma obra,
Raul Castagnino, classificou como sinfronismo, uma função da Literatura .
Dessa forma, para que a unidade entre o eterno e o novo se
realize, o artista ultrapassa o plano sensível, descrito por Platão,
para atingir o plano inteligível, onde tudo é possível. Uma das for-
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mas de realizar essa ultrapassagem, de acordo com CHAUÍ é:
“transfigurar a linguagem para faze-la dizer
algo, mas esse algo não existe antes, depois,
nem além da abra, pois é a própria obra”
(CHAUÍ, 1999: 233)
Em vista disso, a arte representa parte do produto geral do
homem, ou seja, sua cultura, e segundo NUNES:
“ É fenômeno social e parte da cultura. Está relacionada com a totalidade da existência humana, mantém íntimas conexões com o processo
histórico e possui a sua própria história, dirigida
que é por tendências que nascem, desenvolvemse e morrem, e às quais correspondem estilos e
formas definidos(...) a arte vincula-se à religião,
à moral e à sociedade como um todo.” (
NUNES,1999: 15)
Mediante essas palavras é possível compreender que a arte
ensina o homem a produzir-se a si mesmo, como disse Bertold
Brecht (1898-1956). Talvez porque a arte não necessite de
uma
utilidade, ela é seu próprio fim. Diferente dos utensílios que são
criados com uma determinada função. A partir do desejo de ir além
da funcionalidade nas suas criações, o homem manifesta-se artisticamente e percebe que a arte o permite transcender as necessidades materiais, porque expande-se no espaço da liberdade, de
modo que não está presa a nenhuma função determinada, o que
nos permite considerar que a arte está para o homem assim como
a transformação está para a natureza.
Mas se o fenômeno artístico já traz em si mesmo o seu meio e
o seu fim , cabe ao contemplador definir sua função. É nele que se
manifesta a emoção ao ver sua realidade retratada, é nele que o
sentimento de contentamento ou repúdio se expressarão, e é sobretudo nele que Aristóteles viu reproduzida a catárse, a purificação das necessidades violentas e desejos passionais. Dessa forma,
a arte tem sido considerada como terapia há bastante tempo.
Quando o homem, pela primeira vez, tomou consciência de si,
teve desejo de ultrapassar os limites do mundo físico, de buscar o
elo entre a fugacidade aparente da vida e a eternidade, nos damos
conta disso ao ver os desenhos rupestres, símbolos que nos apontam como foi a imaginação do homem pré-histórico. Por isso,
Aristóteles, em sua classificação da cultura, dividiu a ciência-filosofia da arte ou técnica , porque considerava as primeiras como
aquilo que não pode ser diferente do que é, enquanto a segunda se
refere ao que é possível de mudança, daí a arte representar a
tradução de sentimentos e necessidades.
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Iniciamos nossa discussão com uma epígrafe de Cézanne em
que ele menciona o seu querer, o seu desejo de conhecer para
melhor sentir. Sabemos que a arte, a começar por Platão, sempre
gerou uma profunda preocupação nas autoridades do mundo inteiro, uma prova histórica desse fato foi a exclusão dos poetas da
República, pois Platão os considerava subversivos para os cidadãos, conforme as palavras da filósofo:
“A verdade é que - continuei- entre muitas razões que tenho para pensar que estivemos criando uma cidade mais perfeita do que tudo,
não é das menores a nossa doutrina sobre poesia.
- Que doutrina?
- A de não aceitar a parte da poesia de caráter
mimético. A necessidade de a recusar em absoluto é agora, segundo me parece, ainda mais
claramente evidente, desde que definimos em
separado cada uma das partes da alma.”
(Platão, República, ed. Afiliada. São Paulo,
p.233,2002)
Mas como dissemos no início, todos queremos a arte em nossas vidas, porque, conhecendo-a ou não, sentimos que ela é capaz
de nos tornar melhores, cabe a nós valorizá-la, para que nossas
vidas não se tornem como o romance de Sartre, sem o sentido
primordial do novo.
“O limite entre as águas amareladas de um e
negras verdes ou azuladas de outro, não está
definido por uma linha clara e precisa...”
Paes Loureiro, Cultura Amazônica.
AMAZÔNIA: ÁGUAS QUE DESÁGUAM EM ENCONTROS.
Um rio que se confunde com o mar é capaz de explicar facilmente a inspiração que os colonizadores tiveram ao o nomearem:
Amazônas – do grego amazón, lendárias mulheres guerreiras que
cortavam ou comprimiam o seio direito para mais fácil manejarem
o arco, daí o significado de seio em grego ser “mazós”.
Este mesmo rio, o maior do mundo em volume e cumprimento, organizou em suas margens espaços heterogêneos que já não
nos permitem falarmos de Amazônia, nos obrigando a pluralizá-la
conforme nos diz Maués:
“ Como nativo da região, devo começar dizendo que não existe uma só Amazônia, mas várias – Uma Amazônia Continental ou Pan-Amazônia, que repartimos com nossos vizinhos das
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guianas (e do Suriname), da Venezuela, da
Colômbia, do Equador, do Peru e da Bolívia e
as várias Amazônias nacionais, incluindo a brasileira.” (Maués, 1991:26)
Grandiosa também por sua diversidade, a Amazônia é a região do mundo onde existe maior pluralidade de espécies naturais
convivendo com a maior sociodiversidade do planeta. Segundo
Ângelo dos Santos, pesquisador do Instituto Nacional da Amazônia,
são cerca de 206 sociedades indígenas falando cerca de 150 línguas diferentes, bem como populações regionais não índias, entre
as quais se incluem também algumas categorias étnicas – caboclas, seringueiras, pescadores, camponeses, garimpeiros, ribeirinhos, negros remanescentes de quilombos, urbanitas, pessoas de
todas as classes e categorias sociais.
A começar por seu ecossistema fluvial que abriga uma plural
fauna aquática imersa em águas multicoloridas, a Amazônia
metoniza a variedade simbólica do rio que lhe deu origem, de modo
que em suas nascentes históricas encontramos as raízes formadoras de sua verdadeira expressão demográfica. Confundidos pelos
primeiros viajantes como guerreiros da mitologia grega, o índio foi
a primeira etnia da Amazônia, e é nela onde encontramos o maior
contingente populacional dessa raça. Tal como diz:
“Um dos característicos da formação étnica da
Amazônia foi o elevado contingente indígena. O
índio foi aí usado em maior número e muito mais
intensamente que em qualquer outra região do
Brasil. E isso devido a dependência maior sobre
ele do colono, a quem faltava o conhecimento
da técnica da exploração dos produtos naturais
e da floresta.” (GALVÃO, 1955:14
E se a Amazônia metoniza a variedade de seu rio, também
metoniza a sua grandeza de espaços “vazios” e tão disputados,
que de acordo com Hurtienne (1994), sempre foi pensada como
um espaço enorme, aparentemente vazio, que a economia global
ou as grandes empresas multinacionais e também as empresas
brasileiras podem utilizar como último recurso para os seus processos de acumulação
Para o colonizador não era considerado o imaginário do nativo
amazônico que, conforme Loureiro:
“Sob a liberdade que o devaneio permite, o
espaço é quase como que absorvido pelo tempo, assumindo uma leveza que compensa as
duras fainas e jornadas na florestas e nos rios.”
(Loureiro, 1995:57)
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E por considerar a Amazônia “uma imensa página do Gênesis
ainda inacabada”, para lembrar a clássica expressão de Euclides
da Cunha, é que o colonizador preocupou-se em preenche-la e
garantir a sua hegemonia sobre ela, transfigurando essa mesma
intenção, nos dias de hoje, no discurso de que a Amazônia seria
um patrimônio da sociedade global. A partir do interesse de preencher os espaços “vazios” é que originou-se a expressão cultural
mais aceita como representativa da cultura amazônica: O Ribeirinho. Conforme Loureiro:
“ A cultura do mundo rural de predominância
ribeirinha constitui-se na expressão aceita como
a mais representativa da cultura amazônica, seja
quanto aos seus traços de originalidade, seja
como produto da acumulação de experiências
sociais e da criatividade de sues habitantes.
Aquele onde podem ser percebidas, mais fortemente, as raízes indígenas e caboclas
tipificadoras de sua originalidade, florescente
ainda em nossos dias.” (Loureiro, 1994:55)
Esse homem genérico, traduzido por Angélica Maués (1989),
possui traços que o permitem defini-lo da mesma maneira que
Loureiro defini o rio Amazônas na epígrafe deste capítulo: “Seu
limite não está definido por uma linha clara e precisa”. De maneira
que o ribeirinho é constituído a partir das três matizes raciais e
tem, segundo Maués (1989): “Uma identidade de brasileiro e outra
que se lhe sobrepõe enquanto alguém da Amazônia.” Por ser a
Amazônia a mais cabocla das regiões naturais do País, preserva
em sua cultura o que há de mais genuíno e original da expressão
brasileira. De acordo com Moreira:
“ No sentido demográfico como no econômico,
a Amazônia é a mais “cabocla” das regiões
naturais do País, devendo ver nesse
“caboclismo” uma reserva daquilo que há de
mais típico e original na formação do Brasil.”
(Moreira, 1960:87)
Em tempos de discurso ambientalista em que se destaca a
expressão “sustentabilidade ecológica”, ouvimos inúmeros juízos
sobre quem é o verdadeiro responsável pela destruição da Amazônia. Essa questão torna-se incoerente quando analisamos o contexto histórico de exploração da Amazônia. Segundo Hurtianne:
“A Amazônia é, e sempre foi pensada como
última fronteira da expansão do capitalismo
mundial, baseado no velho projeto de modernização, no mito do grande reservatório de re-
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cursos naturais que se pode valorizar facilmente. Então se pressupõe que a sustentabilidade
econômica–ecológica é possível. Isto é exatamente o grande problema que a indiferença e
não consideração pelos europeus ou outros, da
especificidade dos diversos ecossistemas amazônicos com suas formas de vida e suas características mais gerais que não são adaptáveis
como o que aconteceu na Europa ou em outras
partes da América.” ( Hurtianne, 1994:157)
Essa desconsideração do estrangeiro com a especificidade amazônica é comprovada pelas conseqüências das primeiras plantações
que extinguiram tantas espécies de árvores nativas, pelo Ciclo da
Borracha que foi somente um ciclo e uma Fordlândia e mais recentemente por tantos financiamentos nacionais e internacionais destinados, na maioria das vezes, à latifundiários e políticos. Por considerar
–se a única capaz de gerenciar um patrimônio da humanidade, as
potências econômicas preferem não admitir que os povos indígenas
e caboclos praticam, de fato, um extrativismo sustentável
Durante muito tempo a economia amazônica baseou-se exclusivamente do rio e da floresta, segundo Moreira:
“ Assim é que, como tipos mais representativos da vida regional ligados ao rio destacamse: arpoadores (de pirarucu e jacaré); viradores
(de tartaruga), conoeiros e regatões, sendo os
últimos a expressão mais típica do
mercantilismo acomodado às condições do
meio.” (Loureiro, 1994:55)
Da economia baseada na floresta originou-se, segundo Lima
(2002), O camponês moderno, produto do projeto colonial mercantil. É o coletor de drogas do sertão, de borracha, de castanha, o
caçador, pescador, etc. Bem como, evidencio-se um tipo representativo, o Latifundiário Tradicional, que descendem ,em sua maioria,
de índios escravos, passados tecnicamente à condição de agregados e dependentes. São os vaqueiros, capatazes entre outras categorias menos representativas.
Hoje é possível distinguir na Amazônia, conforme Debora Lima
(2002), cerca de nove categorias sociais e o surgimento de novas
atividades econômicas incentivadas pelo turismo ecológico. No campo cultural existe um crescente investimento no resgate da cultura
popular, expressão tradicional que reflete de forma predominante
a relação do homem com a natureza. Em muitas Escolas e Universidades, como na Universidade da Amazônia, estuda-se a cultura
Amazônica, sua lendas, Literatura e História.
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Se um dia o homem amazônico foi diminuído pelo discurso
determinista climático que afirmava-o como degenerado pelo clima e pela miscegenação de sua raça, hoje é destacado sua capacidade de adaptação e convivência com as árduas condições
mesológicas.
Morador de uma casa sem fronteiras, o amazônida sempre foi
caracterizado como acolhedor. È próprio do costume indígena receber
seus convidados com cânticos e danças, oferecendo a ele presentes e
sua melhor culinária. A idéia de que a Amazônia é um patrimônio da
sociedade global, por vezes esconde um discurso de exclusão deste
nativo, que vem passando por um intenso processo de aculturação.
Um patrimônio da humanidade deve trazer benefícios para o homem,
não apenas para o Brasil, mais para o mundo todo, tais palavras
deixarão de ser utopia quando este homem for capaz de ver-se a si
mesmo como parte essencial deste patrimônio feito ecossistema.
“Mudam-se os tempos/ Mudam-se as vontade
Muda-se o ser ,/ Muda-se a confiança;
Todo mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades...”
Luís Vaz de Camões
Obras completas.
Transculturalidade: Onde as Culturas Tornam-se Coloridas
Se o mundo é composto de mudanças, o homem as percebe intensamente, não apenas porque as recebe, mas também porque é um dos seus maiores provocadores. Atraído pelo mistério da
existência, explora de todas as maneiras o mundo e a si mesmo
num processo em cuja essência existe simultaneamente a negação
e a firmação e ao qual chamamos dialética. Em sua dialética da
procura, encontrar sua identidade sempre encorajou o homem a
alterar seus caminhos, levando-o a cruzar oceanos, céus e outros
planetas na tentativa de escutar o eco de sua voz interior, mas não
um monólogo ecoado, sua busca tem sido um grande diálogo, o
momento em que a linguaguem testemunha o encontro de identidades. Segundo Kuper :
“Identidade não é apenas um assunto pessoal.
Ela precisa ser vivida no mundo, num diálogo
com outros. Segundo os cunstrucionistas, é
nesse diálogo que a identidade é formada. Mas
não é dessa maneira que ela é vivenciada. De
um ponto de vista subjetivo, a identidade é
descoberta dentro da própria pessoa, e implica
identidade com outros.” (KUPER, 2002: 125)
Por isso podemos dizer que imagens rupestres também são
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heranças da identidade de um homem que transformava e era
transformado.
Na medida em que os tempos mudaram, as vontades também
ganharam outras matizes, e o homem tenta identificar-se na pureza das raças, criando a hierarquia das culturas e instaurando a
mais pré-histórica das práticas: o preconceito.
Entre todos os preconceitos, o preconceito racial é um dos
mais incoerentes, do ponto de vista de que as ciências e as artes
têm nos ensinado que somos produto de nossas interações com os
outros, pelo fato de desenvolvermos grande parte de nossas habilidades quando interagimos em conjunto.
São inúmeros os exemplos em que o preconceito racial dirigiu o
homem, a História guarda um longo registro desses acontecimentos.
Em seu livro “Poderemos Viver Juntos”, o sociólogo Touraine nos diz:
“Esta contradição é a mesma que vivemos em
nossa primeira grande industrialização, do final do século XIX até à guerra de 1914. A dominação do capital financeiro internacional e
da colonização fez surgir nacionalismos
cumunitários, simultaneamente, em países industrializados como a Alemanha, Japão ou França e nos países dominados, cujas revoluções
antiimperalistas deveriam muitas vezes levar,
durante o século XX, a comunitarismos totalitários.” (TOURAINE, 1999: 203)
Organizações políticas como os nacionalismos comunitários e
os comunitarismos totalitários são estratégias governamentais que
manifestam a ideologia da superioridade racial, que a cada dia
torna-se mais inaceitável, e em países como o Brasil é crime
inafiançável, essa decisão jurídica reflete o reconhecimento da
sociodiversidade, um fenômeno antropológico característico da sociedade brasileira, e que em outras culturas, como na Europa e
E.U.A, a partir da última década do século XX., fortaleceu-se bastante. Mas o fortalecimento da sociodiversidade não foi a causa da
transformação no cenário mundial, visto que neste período a política liberal nascida com Maquiavel e que visava a união do indivíduo
ao Estado, enfraqueceu-se. Foi há 14 anos, quando assistimos ao
cenário da política mundial transfigurar-se, o muro de Berlim ser
derrubado e com ele a própria guerra fria que dividia o mundo em
duas potências. Esse acontecimento chamou a atenção do mundo
para a evidência da globalização da economia. A partir desse momento a idéia do direito natural de igualdade que inspirou as declarações dos direitos americana e francesa passou a tomar, como
nos disse Camões, “novas qualidades”, já que a política da
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globalização traduz a igualdade pela impessoalidade da sociedade
de massa. Tamanho é o desconhecimento da lógica da globalização
que hoje é possível ouvirmos sua presença na linguagem lúdica
das crianças. A integração global tem gerado muitos desafios porque não é o intercâmbio de culturas “puras”, o desafio maior tem
sido a transformação, a reconstituição cultural e a formulação de
um projeto comum no encontro de diversas culturas. Sobre esse
desafio Touraine nos diz:
“A afirmação mais forte da modernidade era a
de que nós somos aquilo que fazemos , nossa
experiência mais viva é que não somos mais
aquilo que fazemos, que somos cada vez mais
estranhos aos comportamentos que os aparelhos econômicos, políticos ou culturais, que
organizam a nossa experiência, nos fazem desempenhar” (TORAINE, 1999: 214)
Foi neste contexto que Schöfthaler (1994) e welsch (1995)
definiram a Transculturalidade, como descreve Oesselmann:
“Processos culturais na globalização não podem ser concebidos como um intercâmbio de
diferentes culturas “puras” com delimitações
claras. Na atual discussão, esta visão de uma
interculturalidade recebe uma percepção mais
dinâmica com a introdução do conceito de
‘Transculturalidade”. (OESSELMANN,2002)
Neste cenário onde figuram processos políticos, econômicos e culturais de integração global e formam-se partidos de cidadania mundial, pactos de livre circulação de pessoas, comércio e
moeda comum, torna-se propício o encontro de diversas culturas
em um mesmo espaço. Por esses motivos, hoje é possível encontrarmos na Alemanha, por exemplo, em uma mesma sala de aula
de 25 alunos, 17 nações diferentes. Diante dessa situação, como
conviver respeitando o diferente? Conforme o filósofo Oesselmann:
“Esta dinâmica fez surgir, em nível mundial,
inúmeros conflitos étnicos, religiosos,
hegemonias globais, tentando assegurar a sua
própria identidade.” (OESSELMANN, 2003)
Recorrendo, mais uma vez ao sociólogo Touraine, viver a
transculturalidade torna-se fundamental em nossa sociedade, segundo ele, porque:
“É preciso destruir uma representação da
sociedade e da história que coloca acima de
tudo a idéia de uma sociedade cultural ligada à
persistência de tradições, de crenças e de organizações locais e particulares. E é preciso
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substituí-la pela idéia da multiplicidade dos caminhos e modos de mudança, os quais todos,
consistem em mobilizar o passado para inventar um futuro, para do velho fazer o novo e,
por conseguinte, associar a referência a uma
racionalidade que se tornou instrumental, com
o reconhecimento de atores definidos também
por uma identidade e uma herança individuais
ou coletivas.” (TOURAINE, 1999: 145)
Reconhecer a Transculturalidade em nossa própria cultura é
reconhecer a inter-relação dos valores que ao longo de nossa jornada acumulamos, é dissociar-se de um processo químico de ver o
homem, retirando-se de uma classificação de fórmulas puras para
avaliar, o que no dizer de Oesselmann representa:
“A qualidade das relações democráticas que se
formula em encontros transculturais a partir da
capacidade dos atores em estabelecer diálogos e aprendizagem com outras culturas.”
(OESSELMANN, 2002)
Deslocando o processo de Transculturalidade para a Amazônia, veremos um espaço onde as culturas tornam-se ainda mais
coloridas. Em uma mesma família, negros, caboclos, índios e brancos misturam-se e assinalam o mesmo sobrenome, e em muitos
casos, figura-se um processo inconsciente de transculturalidade,
pois ainda há os que não reconhecem sua identidade ,ou preferem
não assumi-la, sobre isso Cardoso (1964), nos fala : “ O caboclo é,
assim, o Tükúna vendo-se a si mesmo com as olhos do branco.”
Por outro ângulo o escritor paraense Benedicto Monteiro (2003)
observa a mesma questão. Para ele a sociedade amazônica possui
uma grande resistência a sobreposição de outras culturas e valoriza a sua cultura, mais a mídia, que é patrocinada pela elite detentora do capital cultural e econômico, não apoia a expressão cultural
nativa. Confirmamos tal pensamento ao constatar que, se a elite
capitalista, de origem européia, controla a economia da Amazônia,
a sociedade amazônica é a guardiã dos segredos da biodiversidade,
e reflete isso em sua poética do imaginário, traduzida por Loureiro.
O autor paraense vê a inter-relação de culturas na Amazônia, com
entusiasmo, ao mesmo tempo que busca combater a superposição
de culturas, um processo que para Loureiro, vem crescendo progressivamente. Acrescentando a esse discurso polifônico, a voz de
Ribeiro, conhecemos o seu ponto de vista a respeito do fenômeno
da inter-culturalidade na Amazônia:
“(...) É onde melhor se destrança a trama humana desumana da vida social Amazônica que
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é a verdadeira selva selvagem: a mata penetrada, assassinada, pela civilização predatória.
Lá, metidos por milênios, povos índios morenos de mil falas e mil caras, decifram a mata,
aprendendo a viver nela e com ela, cultivando,
caçando e procriando. Um dia, sobreveio a
hecatombe mercantil e cristã. Era a civilização.
Como uma avalanche ela apodreceu os corpos
com as pestes da raça branca. Escravizou os
sobreviventes, para desgastar milhões no trabalho venal. Reproduziu-se no ventre de mil
cunhãs. Entorpeceu o espírito das gentes com
a desmoralização missionária das velhas crenças. Apodreceu suas almas no desengano da
vida nova que não vale a pena ser vivida. A
salvação para muitos, foi a terceira margem.”
( RIBEIRO, 1980 : 234)
Conforme foi dito, este é um discurso polifônico, é possível ouvir
vozes de diferentes autores, mas todas falam de um mesmo tema, a
Transculturalidade. Transcender culturas não é perder a identidade, é ser
capaz de dialogar com o diferente, de recusar o papel de a ator econômico
imposto pela política globalizante e construir-se como sujeito. Mas isso
apenas será possível, conforme nos diz Touraine (1999): “Se obtivermos
leis, instituições e formas de organização social cuja finalidade principal
seja proteger nossa busca de viver como sujeitos de nossa própria existência”
Inter-relacionar-se, ver-se no diferente, são processos de auto-definição. A Amazônia encontra-se em um processo de redefinição de sua
identidade, categoria esta claramente definida por Grimberg & Grimberg:
“Um dos elementos importantes para consolidação do sentimento de identidade é o jogo
dialético entre semelhança e diferença, entendidas aqui como semelhanças e diferenças de
alguém consigo mesmo no curso do tempo, ou
com o outro no plano grupal.”(GRIMBERG &
GRIMBERG ,1917: 153 )
A História da Amazônia registra a resistência de sua sociedade contra um contínuo processo de dominação, tanto no sentido
econômico, como no âmbito cultural, visto que há um crescente
processo imigratório na região, conforme Benchimol:
“A sociedade amazônica demonstra uma extraordinária capacidade em acolher, absorver,
assimilar e integrar povos e culturas
diferentes”.(BENCHIMOL, 1999: 195)
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A Transculturalidade foi pensada, pela primeira vez, no contexto Europeu que passou a integrar culturas diferentes a partir de
decisões políticas. A Amazônia, por trazer a sociodiversidade como
característica, torna-se uma região propícia para o encontro das
culturas e um campo ilimitado para a identificação da
Transculturalidade.
“A terceira margem é o espaço em que os contrários convivem, fazendo subsistir uma mistura flexível e democrática, onde os opostos se
manifestam, mas também ouvem o outro.”
Paulo Nunes
Revista Movendo Idéias.
A Terceira Margem: Um Exemplo Monteriano de
Transculturalidade.
Originado no contexto político-econômico do fim da guerra
fria, o conceito de transculturalidade configura-se em espaços reais.
À princípio observado na Europa, em conseqüência dos pactos de
livre circulação de pessoas, no presente, antropólogos e pesquisadores do mundo todo acompanham o seu desenvolvimento nas mais
diversas regiões. É portanto, um conceito científico que pode ser
definido em espaços geográficos onde se caracterizam realidades
multiculturais que são mais propícias para o desenvolvimento de um
projeto comum de convivência entre os diferentes agentes sociais.
O mesmo espaço de que fala a ciência em seu projeto
comum de convivência anunciado pela transculturalidade, também
é expresso pela Literatura no projeto literário assinalado em A
Terceira Margem, romance do autor paraense Benedicto Monterio,
publicado em 1983 pela editora Maco Zero. Nesta obra o autor
amazônida
comunga com Guimarães Rosa do pensamento desenvolvido por este em seu conto A Terceira Margem do Rio,
publicado em 1962, pela editora José Olympio no livro de contos
Primeiras Estórias. Este pensamento comungado pelos dois escritores é a idéia da transcendentalização que se deve imprimir à
vida para dela recolher seus significados mais profundos. Sendo
assim, a terceira margem é um espaço que transcende as fronteiras geográficas, constituindo também um conceito que foi precisamente definido pelo professor de Literatura Amazônica, Paulo Nunes,
o qual foi utilizado como epígrafe deste capítulo.
Se a transculturalidade é a capacidade dos atores sociais em
estabelecerem diálogo e aprendizagem com outras formas culturais, sendo estes capazes de elaborarem um projeto comum de
convivência, a terceira margem é a margem do encontro,
metaforizada pela própria natureza que caracteriza a Amazônia e
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seu povo, representado pelo personagem mítico deste romanceprojeto, Miguel dos Santos Prazeres, também chamado de Cabra da Peste. Segundo BENEDICTO MONTEIRO (entrevista em
07/10/03), a terceira margem de Miguel dos Santos prazeres, do
caboclo amazônida, é a vida que eles levam, sem a perspectiva
que hoje a maioria das pessoas têm de atingir a cidade, sendo a
natureza a própria terceira margem que se oferece ao amazônida.
O romance-projeto está dividido em quatro partes: À Margem,
Primeira Margem, Segunda Margem e Terceira Margem, sendo alternadas ao longo da narrativa.
Em À Margem, primeira etapa do livro, defini-se a
contextualização da Amazônia no cenário mundial, por meio de
citações de escritores como Charles Wagley, Philipp Sollers, Euclides
da Cunha, Von Humboldt e de alguns mais recentes como Ferreira
Gullar, Michel Foucoult, além de notícias de jornais e revistas e
comunicados do C.N.P.D.T ( Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico), sendo este último uma alusão ao C.N.P.Q
( Conselho Nacional de Pesquisa). Há, nesta primeira etapa do romance inúmeras citações sobre a função política da Literatura, expressas po Roland Barthes, tais como a “terceira dimensão” que a
língua possibilita e que liga o escritor à sociedade, pensamento
este equivalente a ligação do Eu ao Outro para o conceito de
transculturalidade.
Em A Primeira Margem, Segunda etapa do livro, há a narrativa sobre o planejamento de um grupo de pesquisa chamado
GT.33.CF ( Grupo de Trabalho para a pesquisa da Cidade do Futuro). Esse grupo é constituído por um arquiteto, um sociólogo, um
psicólogo social, um ecólogo, um antropólogo e um geógrafo, coordenador do projeto. Ao longo da narrativa, os membros do grupo
descrevem o contexto da Amazônia focalizando-a na cidade de
Alenquer, escolhida pelo grupo para compor os estudos de elaboração da Cidade do Futuro.
Do ponto de vista geográfico, Alenquer é uma cidade à margem do desenvolvimento econômico-social, conforme as conclusões do grupo de pesquisa:
“ As cidades dessa margem ao norte do rio
Amazônas jamais poderão ter uma ligação
rodiviária com a parte sul e desenvolvida do
País. Pois enquanto o sistema rodoviário da
Transamazônica, que passa na outra margem,
se integraliza com a Belém-Brasília e vai até o
Rio Grande do Sul, podendo chegar até o Uruguai e Argentina no fim do Continente, o sistema rodoviário da Perimetral Norte, ainda em
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fase de implantação, passará a centenas de quilômetros das cidades dessa marge.” (
MONTEIRO, 1991: 80 )
Diante dessa constatação, o lugar escolhido como ponto inicial
para os estudos do GT.33.CF é o próprio paradoxo de cidade marginal e cidade do futuro, uma vez que Alenquer apresenta uma
localização que favorece o seu isolamento, o que vem sendo alterado, recentemente, pela implantação das estradas na cidade. De
maneira que o narrador personagem coordenador do grupo, descreve o processo sofrido pela população de Alenquer como:
“Tamanho e estranho é o silêncio e a ingênua
ansiedade do povo que espera e se cala, como é
quase presente e indefinido o rumo daquilo que
parece que vai chegar.” ( MONTEIRO, 1991: 81)
A cidade escolhida para servir como experiência para uma
nova forma de convivência do homem com a natureza, parece
decepcionar alguns dos personagens membros do projeto. A instabilidade e indefinição que a cidade do futuro demonstra aos personagens pesquisadores parece ser um grande obstáculo, que para
Oesselmann, pode ser avaliado como princípio gerador porque é
nesse processo de transformação e reconstituição que se definem
as relações transculturais.
A terceira etapa do livro, A Segunda Margem, consiste na definição do projeto literário do coordenador do grupo, o geógrafo. É
nessa margem onde a linguagem ganha sua dimensão coloquial,
onde o homem amazônico fala e trás consigo toda simbologia da
mata, dos rios, das lendas e também as marcas da sua história. É
nessa margem que escutamos a voz mística de Miguel dos Santos
Prazeres. A Segunda Margem é a outra linha, a entrelinha, que não
pode ser documentada porque não está no mundo sensível, por
isso, apenas é conhecida pela imaginação, onde, segundo Platão (
438-347 a.C ), fica o mundo das idéias.
É principalmente na segunda margem que, pouco a pouco, se
define o processo de transculturalidade, e Miguel, caboclo representante das três bases culturais brasileiras constituintes da sua
raça, conta ao personagem geógrafo sua épica história em que,
segundo Silverman (2000: 286) “ viaja através da Amazônia deixando atrás de si um arco-íris racial de descendentes.”
Miguel conta ao pesquisador que desde a primeira vez em que
“plantou um filho, fazer um filho era uma grande necessidade”, “
era a única maneira de continuar o meu encante. Era a única maneira de ter poderes e sonhos vividos.”(MONTEIRO, 1991: 34-39)
Movido por esse desejo e encante, Miguel descreve as sensações que teve ao gerar sete filhos homens em sete mulheres de
culturas diferentes.
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Apesar de ser um caboclo consciente da história de exploração sofrida pela sua cultura, Miguel afirma que cada filho seu é
uma promessa de liberdade. É o próprio Miguel quem diz:
“Não, não podia fabricar um filho cheio de vingança. Talvez o amor e a força do meu sangue
quebrassem as barreiras dessas histórias de
índios e cabanagens. Se eu fizesse um filho
assim, pensando mal, só por vingança, não ia
sentir os verdes penetrando a minha carne
como fogo.” (MONTEIRO, 1991: 146)
Este olhar político da Literatura em A Terceira Margem também é confirmado por CASTRO:
“ No desenvolvimento da narrativa de A Terceira Margem, o narrador critica alguns fatos
acontecidos no interior da Amazônia, como: a
escravidão do indivíduo pelo poderio da Igreja
e pela burocracia que impera em toda parte.”
(CASTRO, 2001: 49 )
Por reconhecer a escravidão que ameaça o homem amazônico, Miguel tornou-se livre, e fez de sua canoa gita um espaço de
intimidade com as águas e a natureza. Se para o ribeirinho sedentário o rio é a expressão econômica e eco-sociológica, para o personagem nômade o rio é traduzido da seguinte forma:
“Eu era quase um peixe dentro d’água, uma
árvore crescendo da terra úmida, ou um pássaro voando livremente. Pra mim, paresque,
era a linha d’água que dividia o mundo.”
(MONTEIRO, 1991: 32)
Miguel passava muito tempo em sua canoa, mais foi em
sua paradas nas margens das várzeas que ele fez a sua descendência, heterogênea mais igual no desejo de liberdade e amor pela
natureza herdados pelo pai.
Segundo seu relato, Miguel não sabe definir com clareza a
ordem em que “plantou” cada um de seus filhos, como nômade que
é, nunca fixou-se em nenhuma margem, mas conta que recorda
quando teve consciência de ter deixado sua raiz pela primeira vez.
Foi com uma mulher da sua raça, cabocla, e dessa relação, expressa pela poética do imaginário, foi gerado João Marreca, um
filho “da cor do barro”, tão livre quanto Miguel.
Mesmo sem seguir uma ordem cronológica, Miguel segue sua
narrativa apresentando seu filho com uma japonesa, Zé Ito. Segundo CRUZ (1958), migraram para o município de Tomé-açu até
1916, 189 japoneses, um contingente que vem sendo multiplicado
sensivelmente. Os japoneses tem crescido em número e prestígio
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no Pará, mas até que ponto o caboclo participa desse benefício? Ao
relacionar-se com a cultura japonesa, Miguel manifesta o rompimento das fronteiras japonesas na Amazônia e registra a interessante combinação entre essas duas raças.
Posteriormente, Miguel descreve como tornou-se genitor de
um filho com uma libanesa, Calito, o seu filho mascate. Até 1914,
segundo ZAIDAN (2001), fugiram da primeira guerra e das perseguições dos turcos otomanos, 5 mil libaneses para o interior do
Pará. Esse número vem crescendo nos últimos anos devido a forte
miscegenação que essa cultura recebeu na Amazônia.
Miguel descreve sua experiência com a cultura libanesa como
sendo uma quebra da força de dominação, visível na sua relação
de trabalho com essa cultura. Calito simboliza, assim, o projeto
comum de convivência entre essas duas culturas.
Continuando seu encante de mesclar sua raça com as demais,
Miguel fala da Amazônia que também é lugar de muitos negros.
Segundo SALLES (1998), até 1820 foram enviados para o GrãoPará cerca de 48.155 escravos, muitos dos quais fugiam e isolavam-se nas matas, formando novas organizações sociais, em muitos aspectos, semelhantes às antigas senzalas. Criticando a liberdade que os negros moradores de quilombos possuem, Miguel descreve seu filho com uma quilombola, Benedito, como o filho que
rompeu as fronteiras construídas porcausa da opressão e “correu o
mundo descobrindo as encruzilhadas” em seu ofício de motorista.
Em uma de sua aventuras de “criar de novo a natureza” ,
segundo as palavras usadas por Miguel ao referir-se a sua condição de genitor, conta ao pesquisador como sua raça juntou-se com
à paraibana. Segundo LIMA (2001), a maioria dos nordestinos
chegam à Amazônia premidos pela escassez de terras em suas
regiões de origem, marcados por uma trajetória de grandes sofrimentos, advindos não apenas da incerteza decorrente de qualquer
transumância e colonização de territórios inexplorados, mas principalmente da violência que têm caracterizado as áreas de ocupação
recente na Amazônia.
Miguel conta que sua experiência com a paraibana surgiu de
um convite dela, porque, segundo o personagem: “Ela não era
acomodada e submissa como as mulheres das várzeas.” Seu encante com a mulher paraibana parece, a princípio, desfazer “a secura e toda ânsia” sentida por esta nordestina, porém, desta mistura nasceu Naurício, herdeiro da valentia e do espírito de liberdade
de seus pais, Naurício segue o destino sofrido de sua gente, mas
torna-se um guerrilheiro em busca da libertação de seu povo.
Homem e mito, Miguel é descrito como aquele que ignora o
sistema burocrático, por isso o personagem geógrafo nunca en-
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controu qualquer registro documentado dele, a não ser os seus
muitos filhos. Mergulhado em seu mundo mítico, Miguel conta como
tornou-se pai de um filho português, testemunhando que é possível o diálogo entre duas raças marcadas por um passado de conflito. É ele quem diz:
“A força do meu sangue quebrou as barreiras
dessas histórias de índios e cabanagens.”
(MONTEIRO, 1991: 146)
A fala do personagem refere-se a Revolução da Cabanagem,
um movimento político-social que aconteceu em Belém, no ano de
1835. Segundo CASTRO:
“O movimento recebe esse nome porque os
revoltos moravam em cabanas improvisadas
por eles. O principal objetivo da insurreição era
a conquista da liberdade, anseio dos povos
amazônidas: caboclos, índios, negros e mestiços que lutaram contra a opressão dos portugueses sobre os brasileiros, principalmente no
que se refere à escravidão e à exigência dos
serviços árduos. O antagonismo entre essas
duas forças acarretou um choque entre os
opressores europeus, cheios de ambição, e os
oprimidos
habitantes
da
Amazônia.”
(MONTEIRO, 2001: 251)
Miguel conta como desfez as marcas desse choque entre lusos
e amazônidas quando estava empregado em uma fazenda de portugueses. Lá, ele trabalhou como caboclo submisso, mas de baixo
da sua hierarquia social é o único a compreender os sentimentos
de uma jovem portuguesa, filha de seu patrão. E, no diálogo misterioso de olhares com a solitária portuguesa, Miguel planta seu filho
luso, Joaquim, cujo ofício de pirotécnico herda do pai caboclo.
Cada vez mais impregnado pelo desejo de integrar-se à natureza, Miguel aventura-se pelas matas e sente a força da vida nas
árvores, no vento, nos pássaros, de modo que é essa força que o
conduz até uma tribo, onde ele encontra uma índia, metonímia da
própria natureza. Segundo GALVÃO (1955), o índio é a maior expressão étnica da Amazônia, de maneira que Miguel, como caboclo, possui fortes raízes indígenas, e foram essas raízes que levaram Miguel a descrever seu filho índio como um retorno às suas
origens. O léxico “infância”, “antiga”, “herança” e “natural”
tornam visível essa constatação. Miguel também interpreta seu filho índio como uma celebração à liberdade, vivida pela total
integração do índio ao ecossistema, a ponto de não ser necessário
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um nome para este filho, filho da própria natureza. É Miguel quem
descreve este seu encante com a índia:
“Era como se eu tivesse plantando uma árvore
na floresta virgem, ou deixando escapar uma
caça na clareira ou libertando um pássaro num
céu bem alto, ou derramando nágua um cardume de peixes vivos. Assim eu tinha entregue esse meu filho à natureza.” ( MONTEIRO,
1991: 184)
Mais uma vez o personagem Miguel nos demonstra a
trasculturalidade ao integrar duas raças que, de acordo com DA
MATTA (1993), muitas vezes insiste em não se reconhecerem, mesmo estando integradas por relações étnica.
Em sua missão de recriar a natureza, Miguel demonstrou que é
possível a integração do caboclo com as mais inacessíveis culturas,
representando, assim, um notável agente de relações transculturais.
Dessa forma, Miguel concretiza o projeto literário criado pelo personagem geógrafo. Sem o mesmo sucesso, o projeto para elaboração
da Cidade do Futuro é vencido pela burocratização que invade a cidade de Alenquer, esse obstáculo para concretização da Utópica cidade
é representado pelo Comando Cívico Social, uma alusão a ditadura
militar que baniu tantos cientistas e políticos durante o período em
que o Brasil esteve sobre o regime do golpe militar.
Desse desejo de recriar a natureza é que surge a terceira margem, a margem do encontro, que acontecia a cada filho
plantado por Miguel, mas que tornou-se definitiva quando o personagem se integra totalmente à natureza. Miguel descreve esse
momento a partir de suas viagens em sua “canoa gita”, cercada
pela água, CASTRO, interpreta esse símbolo no romance como:
“A massa líquida se transfigura, ocorrendo uma
movimentação de cores e formas que sugere
uma luta ou cumplicidade entre a água e o céu.”
(CASTRO, 2001: 105)
Da cumplicidade com a água e com toda natureza começa a
sentir-se cada vez mais distante das duas margens que o cercavam, vê um relâmpago “rasgar o mundo em dois pedaços.” De
acordo com BRANDÃO, uma das interpretações para trovão é o
anúncio da divindade, o que é constatado em inúmeros episódios
do Antigo Testamento.
Consciente ou não do anúncio divino, Miguel parece responder
a ele com seu grito, quando diz:
“Deus, gritei – D-E-U-S- Eu mesmo, o senhor
pensa, não escutei mais nada.” (MONTEIRO,
1991: 189)
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Miguel sempre acreditou que sua missão era recriar a natureza, segundo CASTRO (2001), sentia-se contemporâneo dos Deuses em sua vivência mítica.
Como na Gênese bíblica, o personagem transcultural experimenta a criação, depois de também ter estado no papel de criador,
experimenta a terceira margem, que emerge do interior das
águas e do céu, na figura de uma praia exótica. A praia é o limite
das águas e da terra, dois elementos fecundos que nela se fundem
e figuram uma imagem hermética, onde é possível entrever a tão
almejada Cidade do Futuro.
E Afinal: Para Quê Serve Essa Prosa?
A sociedade em que vivemos parece estar em busca da sua
identidade. Cientistas, poetas e pensadores não conseguem entrar
em consenso sobre a real face da atual sociedade: Pós-moderna?
Contemporânea?
O processo de transculturalidade reflete bem essa busca, e tenta dar sentido a existência desse homem cada vez mais multicultural.
Um homem que parece transcender as margens que o identificava
como “europeu”, “africano” ou “latino”. Hoje é possível vislumbrarmos o rompimento dessas fronteiras, e o diálogo entre diferentes
parece tornar-se um desejo de toda a humanidade.
No romance “A Terceira Margem” do escritor paraense
Benedicto Monteiro, o fundamento filosófico da transculturalidade
ganha vida, e na poética do imaginário do personagem Miguel dos
Santos Prazeres, deixa a promessa da liberdade. Liberdade de transcender as margens da opressão e de encontrar a terceira margem,
a margem epfânica do encontro.
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ANEXO A – Capa da primeira ed. do Livro “A Terceira Margem” (Benedicto
Monteiro)
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TRANSCULTURALIDADE EM A TERCEIRA MARGEM
DE BENEDICTO MONTEIRO
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ANEXO B – Foto de um ribeirinho em sua embarcação (Ilha do Cumbú – Pa /
2003).
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ELISÂNGELA ALVES GUSMÃO
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ANEXO C – Moradia de ribeirinhos (Ilha do Cumbú – Pa /2003).
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TRANSCULTURALIDADE EM A TERCEIRA MARGEM
DE BENEDICTO MONTEIRO
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ANEXO D – Margem da Ilha Grande (Ilha do Cumbú – Pa /2003).
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Ara Lúcia Nascimento Alencar
MITO DE ZAHY: A LUA DOS ÍNDIOS TEMBÉ
Intercessões Possíveis com Macunaíma
ORIENTADORA: Ivânia Côrrea
RESUMO
presente trabalho propõe uma análise comparativa entre o
Mito de Zahy: a lua dos índios Tembé e a personagem Macunaíma
de Mário de Andrade, à medida em que é possível encontrar vários
aspectos em comum entre estas duas narrativas míticas. É interessante a abordagem da temática indígena sob a ótica modernista,
principalmente sob um olhar atento e criativo de um autor como
Mário de Andrade que, baseado em pesquisas prévias, faz um aproveitamento de narrativas míticas indígenas para compor seu antiherói e forjar a origem da nação brasileira. Esta pesquisa se constitui, portanto, num convite ao mundo mítico e maravilhoso dessas
duas narrativas que formam um “retrato” deste país e caminham
juntas no sentido de nos fazer entender a nossa própria história.
PALAVRAS - CHAVE: Zahy, Macunaíma, modernismo brasileiro, narrativas míticas.
RESUMEN
Este trabajo se destina a hacer un análisis de comparación
entre el Mito de Zahy: la luna de los índios Tembé y el personaje
Macunaíma del autor Mário de Andrade, a la medida que es posible
encontrar muchos aspectos semejantes entre las narraciones
míticas. És interesante el abordaje de la temática indígena bajo la
óptica modernista, principalmente bajo una mirada atenta y creativa
de un autor como Mário de Andrade que, basado en sus pesquisas
previas, hace provecho de las narrativas míticas indígenas para
producir su antihéroe y forjar el orijen de la nación brasileña. Esta
pesquisa se constituye, por tanto, en una invitación al mundo mítico
y maravilloso de esas narrativas que forman un “retrato” de este
país y caminan unidas en el sentido de hacernos entender nuestra
própia história.
PALABRAS-CLAVES: Zahy, Macunaíma, modernismo
brasileño, narrativas míticas.
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APRESENTAÇÃO
Ao entrar no Curso de Letras identifiquei-me imediatamente
com a literatura modernista, pois esta, ao buscar a valorização
nacional, faz uma pesquisa das nossas raízes e trabalha a questão
do mítico indígena de forma menos idealizada que os românticos.
O romantismo brasileiro insistia em atribuir qualidades positivas ao
índio, fundando a nossa ancestralidade a partir de um processo de
aculturação e desculturação das etnias branca e índia. Diferentemente deles, os modernistas têm como principal característica o
nacionalismo, buscando valorizar tanto nossas tradições e cultura
quanto nosso passado histórico-cultural.
Ao selecionar o assunto para desenvolver meu Trabalho de
Conclusão de Curso, naturalmente elegi a temática indígena sob a
ótica modernista. Vou analisar uma narrativa mítica indígena para
ter a oportunidade de abordar cientificamente um assunto que esteve sempre tão presente em minha vida.
Tomei conhecimento da narrativa sobre a criação da lua (Mito
de Zahy), através do Livro Céu dos Índios Tembé1 e imediatamente a associei à narrativa mítica de Macunaíma – O herói
sem nenhum caráter 2, obra que consagrou Mário de Andrade.
Impressionou-me a idéia de fazer a intertextualidade entre estes
dois textos míticos.
Para abordar o mítico indígena em Macunaíma3, o modernista
Mário de Andrade fez primeiro uma pesquisa histórica, etnográfica
e científica. O seu referencial mítico, portanto, não é idealizado
como o era para os escritores românticos. Ao contrário, esse
referencial, de certa forma, está baseado no real a partir das pesquisas que Mário fez.
O herói de Mário de Andrade é carnavalizado e concentra em
si virtudes e defeitos que dificilmente seriam encontrados numa
única pessoa. É um herói sem máscaras. Daí minha paixão pelo
Modernismo
O objetivo maior deste trabalho é fazer a análise comparativa
entre Zahy, personagem da narrativa mítica Tembé sobre a criação
da lua e a personagem Macunaíma, do romance-rapsódia de Mário
de Andrade, procurando mostrar que fazem parte de um mesmo
contexto cultural e regional e que por isso têm tantas características em comum.
A intenção deste estudo é aguçar a vista para a abordagem
modernista sobre mitos indígenas e sobre o papel do índio na
construção da nossa identidade nacional. Para isto, pretendo apre1
CORRÊA, Ivânia et alii. O Céu dos Índios Tembé . 1ª ed. Belém: Imprensa Oficial do Estado, 1999.
ANDRADE, Mário de. Macunaíma – O herói sem nenhum caráter . Ed. 29ª. Villa Rica, Belo Horizonte,1985
A partir daqui grafar-se-á somente Macunaíma (em itálico) para designar o nome da obra de Mário de Andrade
e Macunaíma (assim como está) para referir - se ao nome do protagonista da obra.
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sentar este trabalho em quatro capítulos: O primeiro, intitulado
“Mito: não há um significado unívoco” vai discutir o conceito de
mito no século XX. O segundo, chamado “Conhecendo os índios
Tembé e seus mitos” não tem a pretensão de analisar
etnograficamente o grupo, mas traz uma pequena amostragem
quanto à localização e ao comportamento social desses índios para
que se possa compreender a relação entre seus mitos e o contexto
social em que vivem. O terceiro capítulo refere-se à análise mítica
e será dividido em três partes: a primeira apresenta individualmente as duas personagens: Zahy, como integrante de uma narrativa mítica real dos índios Tembé; e Macunaíma pertencente a uma
narrativa ficcional baseada no real. A terceira parte traz a
intertextualidade entre as duas personagens míticas. Fecho a pesquisa com as “considerações finais” que funcionam como uma
espécie de conclusão da pesquisa.
1. MITO: NÃO HÁ UM SIGNIFICADO UNÍVOCO
Definir o que é mito é tarefa complexa. A palavra mito vem do
grego e significa narrativa contada. No entanto, os mitos escondem
um significado misterioso e há sobre eles uma infinidade de definições e explicações diferentes.
Mircea Eliade4 diz que seria difícil encontrar uma definição de
mito que fosse aceita por todos os eruditos e, ao mesmo tempo,
acessível aos não-especialistas, e questiona se seria realmente
possível encontrar uma única definição capaz de cobrir todos os
tipos e todas as funções dos mitos, em todas as sociedades arcaicas e tradicionais
Para Everardo Rocha5 “o mito faz parte daquele conjunto de
fenômenos cujo sentido é difuso, pouco nítido, múltiplo.” Este autor
nos dá a noção mais básica, ampla e geral que se pode ter de
mito, para ele “o mito é uma narrativa, uma fala”. No entanto,
sabemos que o mito não pode ser uma narrativa ou uma fala qualquer. Tem que ser uma narrativa especial, particular, capaz de se
diferenciar entre as demais narrativas humanas. Aquela que carrega um “significado especial”, uma mensagem especial que tem
valor e significado na vida social humana.
De acordo com Betty Mindlin6 há uma definição bastante interessante para mito:
Narrativa tradicional sobre o passado que
freqüentemente inclui elementos religiosos e
fantásticos. Alguns tipos de mitos são encon4
5
6
ELIADE, Mircea. Mito e Realidade. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1991.
ROCHA, Everardo P. Guimarães. O que é mito. 1ª ed. São Paulo: Brasiliense, 1985
MINDLIN, Beth. O jogo e as chamas dos mitos. Estudos Avançados 44. São Paulo: USP, 2002.
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trados em todas as sociedades, embora funcionem de diferentes maneiras em cada uma
delas. Os mitos podem tentar explicar a origem do universo, e da humanidade, o desenvolvimento de instituições políticas ou as razões das práticas rituais. Os mitos muitas vezes descrevem as façanhas de deuses, de seres sobrenaturais, ou de heróis que têm poderes suficientes para se transfigurar em animais
e para executar outras proezas extraordinárias. Antropólogos passaram muito tempo tentando diferenciar mito de história, mas a história pode exercer as mesmas funções do mito,
e os dois tipos de narrativas sobre o passado
algumas vezes se confundem.
No estudo dos mitos, destaque maior há para os do Antropólogo Lévi-Strauss (apud Rocha, op. cit.) que nos permite uma visão
ampla da mitologia e nos estimula a mergulhar no significado profundo dos mitos, mesmo considerando que não há um significado
unívoco dos mitos, posto que podemos entendê-los como os componentes de um imenso cristal geométrico – devendo-se decifrar
as relações que estabelecem entre si.
Para este Antropólogo “a importância do mito não está em seu
conteúdo, mas em sua estrutura, uma vez que ela revela processos mentais universais” (apud, Rocha, 24) . Corroborando com
este pensamento os psicólogos entendem os mitos como uma
importante base para o comportamento humano. A Psicanálise de
Freud encarregou-se da interpretação do mito de Édipo. A de Carl
Gustav Jung tem a função de interpretar mitos e ambos afirmam
que ‘os mitos estão todos numa região da mente humana (inconsciente coletivo) que seria uma espécie de repositório da experiência coletiva, seria neste lugar que os mitos encontram-se’ (apud,
Rocha, 35) ou seja, seria algo compartilhado por toda uma coletividade um patrimônio comum.
Dentre as mais variadas definições de mito, podemos entendêlo também como uma reflexão sobre a própria existência humana;
como uma forma das sociedades expressarem suas contradições,
seus medos, suas crenças e suas relações com o mundo.
Portanto, nas sociedades indígenas não poderia ser diferente.
Todos os povos indígenas brasileiros possuem preciosas narrativas
orais míticas. Para eles a mitologia é a verdadeira história do mundo, ou seja, ela não é fantástica nem mítica como nós a vemos. A
narrativa Tembé sobre a criação da lua (mito de Zahy), ainda hoje,
é transmitida oralmente de geração a geração como sendo a real
história da criação da lua, sendo esta narrativa muito popular na
Amazônia, onde existem outras versões dela entre os vários gru-
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pos de índios que habitam esta região.
Daí tornar-se interessante comparar esta narrativa mítica com
a narrativa ficcional criada por Mário de Andrade, pois segundo
Alfredo Bosi7 ( 1985 ):
Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, simbolicamente, é uma síntese de um presumido
modo de ser brasileiro, descrito como luxurioso,
ávido, preguiçoso e sonhador e que parece ter
nascido não apenas como fruto de inspiração,
mas/e principalmente como resultado de longos estudos sobre a mitologia indígena e sobre
o folclore brasileiro, realizados por Mário de
Andrade durante os vários anos de viagens pelo
Brasil e principalmente pela Amazônia, além
das profundas observações sobre os costumes
e a língua cotidiana dos brasileiros.” (BOSI,
1995: 352)
Somente no Modernismo, com Macunaíma, esta obra-prima
de Mário de Andrade, é que se alcança o propósito de construir
uma narrativa épica8 para representar a origem do povo brasileiro.
Portanto, ao voltarmos nossa atenção para a situação e o papel da Literatura, nas sociedades modernas, sobretudo no que diz
respeito à literatura épica, vemos que ela não deixa de estar também relacionada aos estudos dos mitos.
2. CONHECENDO OS ÍNDIOS TEMBÉ E SEUS MITOS
Embora para esta análise não haja necessidade de uma descrição profunda da cultura dos índios Tembé, alguns dados
etnográficos são importantes para conhecermos um pouco sobre o
grupo e seus mitos.
Noêmia Sales9 fez um levantamento de todas as aldeias Tembé
situadas no Alto Rio Guamá. Segundo ela, foi criada em 1945 pelo
Decreto 307 a Reserva Indígena Alto Rio Guamá, com uma superfície de 279.897,70 ha, localizada, do ponto de vista administrativo,
nos municípios de Santa Luzia do Pará, Nova Esperança do Piriá e
Paragominas. O acesso à área é aberto através da BR-316, que
liga Belém ao Nordeste. Em anexo, um quadro das aldeias Tembé
no Alto Rio Gurupi e no Alto Rio Guamá, elaborado por Noêmia
Sales com auxílio do índio Valdeci Tembé.
Das observações quanto ao comportamento social do grupo,
7
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 32ª ed. São Paulo: Cultrix, 1995.
Narrativa épica: narrativa de feitos extraordinários e heróicos praticados por um semideus.
SALES, Noêmia Pires de. Pressão e Resistência: os índios Tembé-Tenetehara do Alto Rio
Guamá e a relação com o território. 1ªed. Belém, Unama, 1999.
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Noêmia Sales (op. cit., p.17) verificou que estes índios conservaram, de certo modo, a sua lógica tradicional de ocupação do espaço sócio-cultural para a construção de aldeias, cujo número varia
de três a dezenove ligadas por parentesco. As aldeias localizam-se
sempre próximo à água e são na maioria coberta de cavaco, com
paredes de terra batida, geralmente com divisões internas separando o ambiente de dormir e há, em muitas delas, uma “cozinha”,
coberta de palha, separada da casa, lugar em que estocam lenha e
onde as mulheres passam parte do tempo em afazeres domésticos.
Sobre a ocupação do território e da resistência à aculturação
que este grupo vivencia, segundo a autora citada acima, os índios
Tembé, assim como todos os outros grupos indígenas, têm problemas com invasores, grileiros e especuladores. Entretanto, estes
índios em particular, sabem fazer a distinção entre os diferentes
segmentos que ocupam o seu território e têm a dimensão do que
significa para o grupo essas ocupações e consideram imperiosa a
saída de todos.
Para que não se distanciem um dos outros, não modifiquem
seus costumes, não esqueçam sua língua materna e mantenham
sua cultura, os Tembé passam por um processo de revalorização
de toda sua cultura como parte da estratégia de recuperação do
território. Assim, aprendem a valorizar coisas simples do dia-a-dia
como: a pintura corporal, o uso da língua materna, da arte plumária,
do arco e da flexa, etc..
Os Tembé têm como atividades a coleta do açaí, dos cipós
com que fabricam cestos, de algumas frutas silvestres, isso tudo
feito em propriedade comum a todas as aldeias.
No que diz respeito à agricultura, Noêmia Sales (op. cit. 32)
observou que esta atividade vem se tornando central na vida econômica deste povo. E que a pesca é desenvolvida no Rio Guamá,
nos igarapés e nos lagos formados no final do verão e que, embora
raramente, alguns índios (os mais velhos) utilizam o arco e a flexa
também na pesca.
O que foi apresentado até aqui sobre o comportamento social
dos índios Tembé favorece um pouco o entendimento da maneira
como pensam, o que reflete diretamente na forma como vivem e
convivem com seus mitos. Veremos a partir daqui o conhecimento
que eles têm do céu e como é sua relação com seus mitos e
lendas.
Como dito antes, os índios Tembé vivem em três regiões dentro do Pará, mas foi na aldeia Tekohaw, localizada às margens do
Alto Rio Gurupi que se registrou, pela primeira vez, a narrativa
sobre a criação da lua (Mito de Zahy) sobre a qual farei a análise
interpretativa.
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Sobre o conhecimento que estes índios têm sobre o céu, Ivânia
Neves (op. cit. 23) fez o registro de alguns dos principais referenciais
astronômicos associados às suas manifestações culturais o que nos
permite entender que a astronomia tem um significado especial
para esse grupo étnico, pois existe uma relação direta entre a forma como identificam os astros celestes, as estações climáticas e
as atividades do dia-a-dia e suas narrativas míticas.
Existem várias narrativas míticas que habitam o imaginário do
povo Tembé. Algumas estarão ao final deste, onde aparecerão como
anexos, entretanto, escolhi apenas uma delas para interpretar: O
Mito de Zahy: A Lua dos Índios Tembé, pois creio que já é suficiente para entendermos o modo de pensar e de se comportar desse
grupo indígena, diante das coisas do céu.
Para que isso ocorra, amparo-me e sigo a linha de pensamento da Antropologia, esta sim, tem por finalidade interpretar o mito
para descobrir o que este pode revelar sobre as sociedades de
onde o mito provém. Usualmente, esta ciência faz uma relação
entre o mito e o contexto social, pois compreende que “o mito é
capaz de revelar o pensamento de uma sociedade, a sua concepção da existência e das relações que os homens devem manter
entre si e com o mundo que os cerca.” (Rocha, op. cit. 40)
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ANÁLISE MÍTICA
3.1. Mito de Zahy: A lua dos índios Tembé
Desenho: Márcia Rabelo
O Nascimento de Zahy
História de uma velha índia Tembé:
A noite é clara. A tarde havia terminado calma e quieta, e os
Tembé se recolhem para descansar. Em sua rede, cercada por filhos e netos, a índia mais velha da tribo conta uma história ao
frescor da noite. Uma história que há muitos anos já havia sito
contada pela sua avó.
Há muito tempo, quando nossa nação ainda vivia nas margens de outro rio, nasceu Zahy,
o filho do mais respeitado cacique que nosso
povo tivera. Seu pai era um velho índio e, embora já tivesse dormido com muitas mulheres,
nunca abandonara sua primeira esposa, por
quem passara a vida toda apaixonado.
O casal, para tristeza de toda nação Tembé,
por muito tempo não conseguiu ter um filho.
Quando seus pais já nem acreditavam ser possível este sonho, sob a bênção de todos os deuses, o indiozinho Zahy nasceu.
Mas aquele que nascera para dar continuidade à honra de seu pai, muito cedo quebrou
seu destino e as leis de nossa tribo ...
Muito jovem, o índio desejou uma mulher proibida, sua tia. Seu pai já havia determinado um outro
destino para a irmã de sua mulher. E, mesmo sabendo disso, Zahy não controlou seu amor.
Sempre que a noite chegava, o índio tateava
no escuro para ir até a casa de sua tia,
importuná-la. Isso aconteceu noite após noite,
até que a jovem, sem saber quem a procurava,
pediu conselhos à índia mais velha da tribo.
A capitoa lhe sugeriu uma armadilha: para
saber quem a visitava, a índia deveria lambuzar os dedos com jenipapo e aguardar a partida de Kwarahy (sol).
Naquela noite, mais uma vez, o jovem
índio foi ao encontro de sua tia. Ela então vária
vezes afagou o rosto do desconhecido, confor-
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a sugestão da velha índia.
No dia seguinte, quando acordou, Zahy
foi lavar seu rosto no rio e percebeu tudo o que
acontecera. Lavava insistentemente a face, mas
as manchas não saiam...
A capitoa, os deuses e sua tia, que ficara muito
triste com a revelação descobriram quem era
o amante misterioso. Zahy foi, por isso, expulso da Terra. Transformado em Lua, foi condenado a viver eternamente no céu.
Olhem, pequenos! É por isso que ainda hoje,
quando olhamos para a Lua, vemos aquelas
manchas. São as marcas deixadas na face de
Zahy por sua tia, a mulher que ele mais amou
quando era um jovem índio, e de quem ele teve
que se afastar para sempre.
Por isso há um período (a Lua Nova) em
que não podemos ver Zahy no céu à noite. É
quando ele está lavando o seu rosto. Depois de
um tempo, quando ele reaparece (a Lua Crescente à Cheia) podemos ver seu rosto inteiro,
ainda com as manchas de jenipapo. É por isso
que Zahy traz chuva quando aparece. A água
que lavava seu rosto escorre do céu e faz chover... ( CORRÊA et alii, 1991: 15)
Como se observa através desta narrativa, para os Tembé o
Mito de Zahy” é a verdadeira história sobre a origem da lua, ou
seja, enquanto para nós ela é uma narrativa fantástica, para eles
ela é verdadeira.
No artigo escrito por Ivânia Corrêa10 está:
“Na interpretação da cultura Tembé, o planeta
Terra é parte integrante do imenso ambiente
em que vivemos, o Universo. Sua cosmologia
está profundamente associada ao seu cotidiano. Mielietinski identifica no homem “primitivo”
essas características presentes na astronomia
Tembé:”
Ainda sobre o caráter que o mito assume para o grupo, mais
adiante ela afirma:
‘O homem “primitivo” ainda não separava
nitidamente a si mesmo do mundo natural
circundante e transferia para os objetos naturais as sua próprias características, atribuía a
10
CORREA, Ivânia. Lua Cheia, Lua Nova – Régia Vitória, in Marajó: um arquipélago sob a ótica da Cultura e da
Biodiversidade. UFPA, 1991.
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esses objetos vida, paixões humanas, atividade econômica consciente e útil, possibilidade
de se apresentar com face física antropomorfa
e ter organização social etc.’(apud, NEVES,
1991: 274)
Ao longo dos anos, os Tembé construíram o seu próprio
conhecimento sobre o céu. A sua astronomia dá explicações para
todas as coisas deste “céu particularizado”. Dentre elas o Mito de
Zahy aparece para explicar o nascimento, as fases e as crateras da
lua. Esta narrativa é considerada por todo o povo Tembé como a
“verdadeira história”
sobre a criação da lua, daí vir a fundamentar
e justificar todas as atividades desse povo, além de ser extremamente preciosa por seu caráter sagrado, moral e significativo.
Mircea Eliade (op. cit., 22), abordando sobre características e
funções do mito nos diz:
De modo geral pode-se dizer que o mito, tal
como é vivido pelas sociedades arcaicas. 1)
constitui a História dos atos dos Entes Sobrenaturais; 2) que essa história é considerada
absolutamente verdadeira (porque se refere à
realidade) e sagrada ( porque é obra dos Entes
Sobrenaturais); 3) que o mito se refere sempre a uma “criação”, contando como algo veio
à existência, ou como um padrão de comportamento, uma instituição, uma maneira de trabalhar foram estabelecidos; essa a razão pela
qual os mitos constituem os paradigmas de todos os atos humanos, significativos; (...)”
Corroborando este pensamento sobre as funções do mito,
Bronislav Malinowski afirma:
“Nas civilizações primitivas, o mito desempenha
uma função indispensável; ele exprime, enaltece
e codifica a crença; salvaguarda e impõe os
princípios morais; garante a eficácia do ritual
e oferece regras práticas para a orientação do
homem. O mito, portanto, é um ingrediente vital da civilização humana; longe de ser uma
fabulação vã, ele é ao contrário uma realidade
viva, à qual se recorre incessantemente;; não é
absolutamente uma teoria abstrata ou uma fantasia artística, mas uma verdadeira codificação
da religião primitiva e da sabedoria prática (...)”
(apud. ELIADE, op. cit.,: 23)
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No trecho acima, em destaque Malinowski chama a atenção
para outra função que o mito desempenha que é a de regulador
moral das sociedades primitivas. Na interpretação do Mito de Zahy,
observamos isto mais claramente atentando para o fato de que os
Tembé não aceitaram o comportamento de Zahy, mesmo sendo
ele o filho mais esperado do mais respeitado cacique da aldeia e
nem mesmo tendo como justificativa para sua atitude um sentimento tão nobre quanto o amor. Por ter desobedecido às regras de
sua tribo, recebeu uma grande punição, tendo como resultado disso o castigo: foi transformado em Lua, sendo condenado a viver
para sempre longe de sua tribo e da mulher que mais amou nesta
vida.
A partir desta atitude da tribo de Zahy, percebe-se que há
uma preocupação com o incesto. Sobre isso, a antropóloga Ivânia
Neves (op. cit.,271) destaca um trecho de seu diálogo com a líder
do grupo Tembé que afirma: ‘Filho não pode casar com mãe, nem
com tia. Isso dá problema.’
Ora, o incesto é condenável em quase todas as sociedades e
para a maioria das pessoas pensar numa relação amorosa entre
pai, mãe, irmãos, avós ou tios é algo terrível. Essa proibição parece tão natural que questioná-la seria algo anormal. Estudiosos garantem que evitar e condenar o incesto não é resultado de tendências biológicas ou genéticas do ser humano, é mais uma questão
cultural. Há povos indígenas em que, embora haja tabus sexuais,
eles não se referem às relações entre parentes e há outros em que
é permitido o incesto por questões culturais ou pela própria necessidade de manter a tribo.
Se o incesto fosse aceito normalmente entre as sociedades
primitivas, uma possível conseqüência seria o isolamento dessas
comunidades. Um dos motivos que levaram aldeias e vilarejos a
estreitar relações era a necessidade de parceiros desimpedidos.
Aliás, segundo Levi-Strauss (1932) “a origem desse tabu seria a
descoberta, pelos homens, de que poderiam melhorar seus negócios e estabelecer acordos políticos vantajosos com outras tribos a
partir de casamentos entre aldeias.”
Para colocar ordem nesse caos aparecem os mitos regulando
comportamentos. Sem esse função do mito seria provável que hoje,
algumas famílias ricas se fechassem em relações endogâmicas,
como em alguns momentos da história. Na Idade Média, por exemplo reis e rainhas europeus casavam-se com primos e irmãos para
manter unidos seus reinos e fortunas.
Na tribo de Zahy, o mito cumpriu seu papel moralizador e apesar da narrativa acontecer em um tempo mítico, pois não sabemos
ao certo seu momento histórico, algumas expressões remetem a
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um tempo incerto: “uma história que há muitos anos já havia sido
contada pela avó..”, “há muito tempo...”, ela continua, até hoje,
regulando o comportamento moral desse povo.
3.2- Macunaíma: O Mito do Herói
Mário de Andrade exerceu papel decisivo para a implantação
do Modernismo no Brasil. Seu romance Macunaíma, publicado em
1928, representa um marco na maneira como a literatura passou a
tratar do índio brasileiro. Segundo Zilá Bernd11, “somente com Mário de Andrade, em Macunaíma (1928) consegue-se realizar o propósito de construir uma narrativa épica para representar a origem
do povo brasileiro.”
Como se sabe, o modernismo brasileiro dividiu-se em correntes. A Primitivista e a Nacionalista tinham uma preocupação pela
recuperação das raízes culturais. A primeira desejava uma renovação estética inspirada nos motivos primitivos da nossa terra e
do nosso povo, enquanto a segunda buscava a nacionalização da
literatura através de tradições indígenas e folclóricas, totalmente
contra a literatura sob inspiração em temas europeus. Macunaíma,
de Mário de Andrade integra essa tentativa de recuperação de aspectos culturais nacionais.
Este autor foi o primeiro a mesclar os mitos indígenas e os
africanos para explicar a origem do nosso povo, este representado
por Macunaíma no romance-rapsódia que tem este mesmo nome,
sendo que o próprio autor confirma ser este “uma alegoria à cultura brasileira e seu caráter inacabado”. No entanto, afirma que:
ao criar a obra, não desejava inventar símbolos nem uma personagem que representasse
todos os brasileiros. Mas, à medida que dava
vida ao herói, o qual apresenta mais
desqualidades do que qualidades (preguiçoso,
mentiroso, covarde, etc.) – foi percebendo inúmeras semelhanças entre ele e os brasileiros
ou os latino-americanos em geral que são, segundo o autor, “povos sem nenhum caráter”
(apud, CEREJA12, 1994:101)
Sobre isso o próprio Mário explica:
‘Com a palavra caráter não determino apenas
a realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por
tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na língua na História na andadura, tanto
no bem como no mal. O brasileiro não tem ca11
BERND, Zilá. Literatura e Identidade Nacional. Porto Alegre: ed UFRS, 1992.
CEREJA, William Roberto. MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: Linguagens . 2ª ed. São Paulo, 1994.
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ráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional’. (apud, CEREJA. Op. cit., 101)
Com o seu “herói às avessas”, Mário de Andrade destrói os
modelos ritualizados e os substitui por outros fazendo uma inversão parodística13. É uma reação tipicamente modernista. Ele destrona os heróis e constrói o anti-herói Macunaíma, subvertendo a
realidade até então criada.
Na literatura de Mário de Andrade estão as marcas profundas
dos modernistas que objetivavam a dessacralização da literatura,
isto é, o autor desmonta o sistema que vinha se construindo: ao
criar Macunaíma como um viajante, Mário de Andrade acaba com a
idéia de tempo voltada para o desejo de reencontro com a origem.
Pelo contrário! A viajem significa encontro com o novo, com o desconhecido. Somente a “volta da viagem”, esta sim revela-se um
fracasso total. Macunaíma encontra em seu retorno a fome, a miséria, solidão e devastação. Não existe nada de idealizações nesta
narrativa. Segundo Zilá Bernd (op. cit., 1992: 45): “A concepção do
tempo deixa de fundar-se em um retorno nostálgico ao passado,
para introduzir a noção de busca simbolizada pelos constantes deslocamentos – viagens – do personagem.”
Ressalte-se, no entanto que, mostrando a natureza “anti-heróica” do “herói da nossa gente”, Mário de Andrade derruba o
etnocêntrismo em vigor, empenhado em construir heróis idealizados para exaltar a alma brasileira. Assim, Mário reverte o procedimento dos séculos XVIII e XIX de construção de um índio que
representava o herói super poderoso, bom moço, que só tem virtudes. Seu “herói” não tem caráter. Com isso, o autor introduz o
novum na Literatura Brasileira.
3.3. O Nascimento de Macunaíma
“ No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma,
herói de nossa gente. Era preto retinto e filho
do medo da noite. Houve um momento em que
o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo
do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu
uma criança feia. Essa criança é que chamaram de Macunaíma.” (ANDRADE, 1928: 09)
Macunaíma, o mais importante anti-herói de nossa Literatura, é
chamado sempre de “herói”. Permite-se, aqui, uma síntese do enredo da vida de Macunaíma, de peripécias e aventuras e que são o
que constituem alguns dos episódios mais marcantes da obra.
Esta personagem mítica nasceu às margens do rio Uraricoera
em plena floresta Amazônica. É um índio nascido “no fundo do matovirgem” que só falou aos seis anos, quando então exclamou: “Ai,
que preguiça!” Sua indolência fazia com que Sofará, a mulher do
13
Parodística: relativo à paródia; cômica.
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irmão Jiguê, levasse-o para se distrair na selva, onde ele se transformava em príncipe de olhos azuis, a fim de “brincar com ela”.
Sensual e mulherengo, Macunaíma, que também era mágico,
desvirgina Ci, a rainha das Icamiabas (as Amazonas brasileiras),
tornando-se assim o “Imperador do Mato-virgem” .
Com a morte de Ci e a perda do amuleto da boa sorte que lhe
deixara – a Muiraquitã14 – Macunaíma e seus irmãos (Maanape e
Jiguê) vão para São Paulo recuperar a pedra. A caminho, lavamse em águas mágicas e, todos “pretos retintos”, transformam-se:
Macunaíma fica branco, louro de olhos azuis, Jiguê fica da “cor do
bronze novo” e Maanape continua negro, mas com a palma das
mãos e a planta dos pés rosados. Essa passagem remete à lenda
indígena da formação das três raças.
As aventuras do herói na cidade, depois de passar por várias
peripécias, consegue derrotar o gigante, reconquistar a Muiraquitã
que se encontrava nas mãos de um mascate peruano – Venceslau
Pietro Pietra (o Piaimã 15), e a volta ao seu lugar de origem (a floresta amazônica), onde é perseguido pelo minhocão Oibé16 e, enganado e seduzido pela Uiara17 perde novamente a pedra. Cansado,
ferido, sem perna, sozinho, pois tinha perdido os irmãos, o herói
abandona este mundo e é transformado na constelação Ursa Maior.
O protagonista Macunaíma foi inspirado por um personagem
retirado de lendas dos índios Taulipang e Arecuná, recolhido na
Amazônia. O título da obra foi retirado do texto “Makunaíma und
Pia” contido na obra Indianem arehen aus Südamerika, do etnólogo
alemão Theodor Koch-Grünberg, a principal fonte de elementos da
cultura indígena para Mário de Andrade.
Macunaíma representa um mito de libertação do inconsciente
coletivo, ( O Mito do Herói). Ele é uma personagem que se
metamorfoseia de acordo com as necessidades e circunstâncias,
sem apresentar um caráter definido. Simboliza uma síntese da cultura e da mentalidade brasileira que “não tem uma linha precisa de
resistência, sendo uma mescla de influências”. (BERND, op. cit,
1992: 22)
Em suma, o herói simboliza e representa o nosso país, não só
enquanto protagonista da obra, mas principalmente porque é o fio
condutor de uma narrativa “recheada” de nossa cultura, linguagem, modo de ser e que incorpora as tradições indígenas, africanas e européias, que são fontes básicas para uma ampla visão
arquetípica, mítica, simbólica e épica do Brasil.
14
É o amuleto em forma de sáurio (jacaré) doado por Ci a Macunaíma . Trata-se de um amuleto, que pode ter
forma humana ou animal, muito comum no baixo rio Amazonas, o qual é doado pelas Amazonas brasileiras a
alguns índios para dar sorte.
15
Piaimã: de acordo com a mitologia indígena é o gigante comedor de gente
16
Minhocão Oibe: Uma referência à lenda amazônica da Cobra Grande.
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Intertextualidade: Zahy e Macunaíma
4.1. Similitudes
Agora que já conhecemos os dois personagens que constituem
esta análise, vejamos o que ocorre quanto às similitudes entre ambos.
Analisando mais detalhadamente as duas narrativas, pôde-se
observar que as personagens Zahy e Macunaíma apresentam
muitos elementos em comum.
Inicialmente observa-se que, sendo as personagens míticas,
não podemos deixar de lado a cosmogênese (origem do mundo) e
a antropogênese (criação do homem). Estamos, portanto, diante
de mitos cosmogônicos. O Mito de Zahy parece ter a função
sacralizante à medida que tem a função de reunir a comunidade
Tembé em torno de seus mitos, suas crenças, seu imaginário e de
sua ideologia; e o de Macunaíma tem, claramente a função
dessacralizante, pois nasceu para desmistificar, e fazer “a
desmontagem das engrenagens de um sistema dado, de por a olho
nu os mecanismos escondidos”. (Glissant apud Bernd, p. 17)
Mas, afinal esses dois protagonistas são heróis ou anti-heróis?
Cabe aqui, primeiramente, conceituar o vocábulo herói que se
origina do grego héros e significa, a rigor, um homem divinizado,
filho ou descendente de deuses, sendo que na antigüidade clássica
esse termo era usado para designar seres fora do comum, capazes
de praticarem feitos sobre-humanos.
Por outro lado, o termo anti-herói aparece na literatura
humanizando os protagonistas dos enredos. Hoje, na Literatura
moderna, não são mais encontrados aqueles seres divinos ou
semidivinos das tragédias e das epopéias. Eles foram substituídos
por personagens que se assemelham a qualquer ser humano com
defeitos (desvirtudes) comuns a qualquer mortal.
O comportamento e as atitudes de ambos os aproximam mais
do anti-heroísmo. O comportamento de Zahy foi de encontro ao
esperado por sua tribo. Por ser filho do chefe da tribo, todos esperavam atitudes exemplares dele, pois ele deveria “dar continuidade à honra de seu pai”. Ao invés disso, traiu a confiança de todo
seu povo e sexualmente precoce, desejou e possuiu sua própria
tia, pessoa proibida e ligada a ele por parentesco, desrespeitando
as normas morais de sua tribo.
Macunaíma, também sexualmente precoce, desejou e possuiu
muitas mulheres da tribo que lhe eram proibidas. Primeiro foi Sofará,
companheira de seu irmão Jiguê, depois foi a segunda companhei17
Uiara: segundo a mitologia indígena , monstro das águas disfarçado numa bela mulher.
Iriqui: figura mitológica caxinauá cujo nome significa “foi também”; de fato, ela também foi amante de
Macunaíma.
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ra de Jiguê, a cunhã Iriqui18. Macunaíma desvirginou Ci (a rainha
das Icamiabas), e “brincou” com a Uiara,
assim como as outras
mulheres que lhe eram proibidas por algum motivo, traindo a confiança dos que acreditavam nele em evidente desrespeito às leis
morais do grupo.
Os dois personagens apresentam nascimento incomum: Zahy
nasceu quando “não mais acreditavam que isso fosse possível”,
em virtude da idade avançada de seus pais. Esse filho era há muito
tempo esperado pelo casal, foi quando, enfim, conseguiram a gravidez. Macunaíma também nasce de forma incomum: Ele não tem
pai como os outros mortais, pois era filho do medo da noite”. Além
disso, este personagem teve sua inteligência prevista numa profecia do Rei Nagô.
A nobreza também é comum entre os dois personagens: Zahy
nasce nobre, pois é filho do “mais respeitado cacique que nosso
povo tivera” e por isso goza de privilégios dentro de sua tribo.
Macunaíma, apesar de não ter nascido nobre, tornou-se nobre pela
força de circunstâncias que ele mesmo providenciou ao desvirginar
Ci, a rainha das Icamiabas, tornando-se assim “Imperador do Matovirgem” .
Atitudes desafiadoras e desrespeitosas caracterizam ambos
os personagens. Os dois ultrapassam os limites humanos e desafiam seres divinos, numa demonstração de desrespeito para com
entidades e pessoas a quem eles deviam total respeito: Zahy desrespeitou toda sua tribo e desafiou a Capitoa, sua tia e os deuses
que o protegiam. Macunaíma também desrespeitou toda sua tribo,
sua mãe (a qual ele mesmo matou), seus irmãos e desafiou Vei, a
deusa Sol.
Outro ponto em comum entre estes dois personagens é a presença dos elementos do trágico. Sabemos que a hamartia é a falha
trágica, onde ocorre a ultrapassagem do métron (limite mortal e
humano). Ora, os dois personagens praticam a hamartia: Zahy ao
desejar e possuir a sua própria tia e Macunaíma por desejar e
possuir mulheres para ele proibidas e ao desafiar Vei, a deusa Sol.
Macunaíma desaponta Vei ao namorar uma portuguesa ao invés de
aceitar em casamento uma das filhas de Vei. Sendo assim, os dois
transgridem o métron.
Outro elemento do trágico presente nas narrativas míticas de
Zahy e Macunaíma é a Hýbris. De acordo com Josse Fares19: “Se a
hamartia é o pecado, a hýbris é a insolência, ou seja, a permanência no pecado”. A hýbris de Zahy é continuar possuindo todos os
dias sua tia até ser descoberto e a hýbris de Macunaíma é permanecer desrespeitando a tribo ao “brincar” com todas as mulheres
que lhe são proibidas.
19
FARES, Josse. O Mito de Édipo – algumas informações básicas, in: Literatura Brasileira: ensaios (II).
Unama, 2002
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E o último elemento do trágico que aparece nas narrativas é a
Moira que consiste “naquilo que a cada um cabe em sorte na vida,
é o destino, o fado”. A Moira dos dois personagens foram os castigos que receberam para purgar seus erros: Zahy foi expulso da
terra e transformado em Lua, condenado a viver para sempre longe da mulher que mais amou na vida e longe de toda sua tribo.
Macunaíma perde de vez a Muiraquitã, fica sem a perna direita,
deseja morrer e se transforma numa constelação, a Ursa Maior.
Observe-se que o fato das duas personagens terem se transformado em astros celestes, Zahy em Lua e Macunaíma em Ursa
Maior, também constitui um elemento em comum nas narrativas.
Mário de Andrade estava atento a este aspecto tão recorrente da
mitologia indígena: a associação com o céu.
A partir das atitudes desses supostos “anti-heróis” encontramos similitudes também quanto ao caráter dos dois personagens.
Os dois resumem o modo de ser dos brasileiros, modo tão bem
definido por Alfredo Bosi (op. cit. 1995:54) que o classifica como
: “luxurioso, ávido, preguiçoso e sonhador.”
Essas personagens tiveram em vida comportamentos e atitudes que os caracterizaram como anti-heróis, mas Zahy é considerado um herói por sua tribo e Mário de Andrade deve ter tido seus
motivos para chamar “seu” Macunaíma de herói.
O herói sempre aparece protegido por forças naturais, realiza
proezas inimagináveis como Zahy e Macunaíma. Não podemos esquecer que o herói nasce para lutar e o faz sozinho dando provas
de sua valentia, precisando estar em contato com o sofrimento, a
solidão e contatos com o desconhecido e mesmo com a morte,
além de que os heróis sempre tornam-se protetores de suas cidades ou de seu grupo. Então, se Macunaíma e Zahy são anti-heróis,
também podem ser considerados como heróis.
O fim de um herói é geralmente melancólico e envolto em
elementos mágicos. Somente com a morte dos dois personagens é
que se dá a caracterização deles como heróis, ou seja, quando os
dois morrem e sobem para o céu como constelações é que serão
lembrados como heróis, pois estarão, de lá de cima, de alguma
forma protegendo o seu povo e serão lembrados eternamente.
Quanto à linguagem utilizada nas duas narrativas em análise,
verifica-se que não seguem o padrão culto da língua nem se enquadram nos padrões normativos, visto que a narrativa de criação
da Lua (Mito de Zahy) é contada por uma velha índia, na fala
cotidiana. E, apesar de Mário de Andrade ser um homem
intelectualizado, foi um pesquisador paciente e sem igual da cultura brasileira e por isso utiliza em sua obra Macunaíma toda uma
gama de palavras, frases e expressões populares. E como um dos
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melhores representantes do Modernismo brasileiro, deixou de lado
as regras gramaticais e a linguagem culta do país.
Nas duas narrativas encontramos ora disfarçadas, ora diretamente apontadas, críticas sociais e morais. Nestes textos, respeitadas as
características de cada um, há algumas formas de crítica social.
Nelas observam-se claramente críticas: ao incesto que não é
aceito e é condenado pelas tribos indígenas a qual pertencem as
personagens; à luxúria dos dois protagonistas; ao desrespeito para
com os índios mais velhos da tribo, representantes da sabedoria e
do conhecimento.
Identificamos, também, crítica ao esfacelamento da família.
Zahy era filho de um cacique que “embora já tivesse dormido com
muitas mulheres, nunca abandonara sua primeira esposa”, ou seja,
Zahy veio de uma família estruturada (formada de pai, mãe e filho)
e mesmo assim não respeitou o destino que seu pai já teria dado à
sua tia que seria o de constituir a sua própria família. Macunaíma
também desrespeitou a instituição familiar no momento em que
matou a própria mãe e desejou as duas mulheres de seu irmão
Jiguê (Sofará e Iriqui), destruindo o relacionamento familiar de Jiguê,
apenas por um capricho seu.
Entretanto, é em Macunaíma que vamos encontrar várias outras formas de crítica social. Mário de Andrade critica à desnutrição
do povo brasileiro ao caracterizar Macunaíma com “pernas em arco”,
além de dar um destaque à fome e à miséria em que vivem os
povos que habitam a Região Amazônica.
O autor também critica o egoísmo humano presentes nas atitudes tanto de Macunaíma (que é egoísta e quer levar vantagem
em todas as ocasiões possíveis, não se preocupando em prejudicar
os irmãos ou a quem quer que seja), tanto quanto nas atitudes do
gigante Venceslau Pietro Pietra que pode representar o egoísmo, a
cobiça e a sede de poder dos poderosos das grandes cidades.
Mário faz críticas à saúde no Brasil. Isso fica claro pela quantidade de doenças que o protagonista contraiu em suas aventuras
pelo país, dentre as quais destaca-se: sapinho, escarlatina, sarampo, butecaína, erisipela, impaludismo, laringite e lepra.
Critica ainda os gramáticos e à imposição de uma “norma culta” que não respeita e não aceita o “falar cotidiano” como forma de
comunicação e expressão.
Não podemos esquecer que as saúvas são, em seu texto, responsáveis pela destruição das colheitas e pelo empobrecimento do país.
Assim também como faz críticas à falta de determinação do
povo brasileiro que não sabe valorizar o que é seu nem tem respeito por sua memória cultural; assim como à atitude tradicionalista de nossos escritores que insistiam em temas de inspiração
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européia. E até ao subdesenvolvimento do país e às desigualdades
entre os povos que habitam uma mesma nação.
4.2. Os Quatro Elementos das Cosmogonias Tradicionais
Considerando-se que a terra, a água, o ar e o fogo são os
elementos básicos da natureza e que esses elementos têm, na
Literatura, uma simbologia muito especial já que constituem os
quatro elementos das cosmogonias tradicionais, abro aqui um parêntese para analisar estes símbolos presentes nas duas narrativa
míticas interpretadas neste trabalho.
Simbolicamente, a terra é um princípio passivo e feminino. Na
Literatura ela aparece sob vários aspectos e com os mais variados
significados. Sobre isso, Oscar D’ Ambrósio20 nos diz que: “ Ao ser
penetrada pela chuva, pelo sangue, ou pelo arado, a terra perde a
virgindade e se torna mãe “ . Símbolo da fertilidade ou da esterilidade, a terra ora é a mãe que alimenta seu filho, ora é o receptáculo do corpo deste filho que vai nutri-la e revigorá-la.
Na narrativa de Zahy o elemento terreno é o jenipapo usado
na armadilha sugerida pela Capitoa para revelar quem estava
molestando a jovem em sua casa. As manchas de jenipapo marcaram para sempre o rosto de Zahy. Na mitologia Tembé elas serão
vistas como sendo as crateras que a Lua (Zahy) possui.
Na obra Macunaíma, há pelo menos quatro símbolos que aparecem fortemente vinculados à terra: as formigas, os cupins, a
cobra e a Muiraquitã ( o amuleto de Macunaíma).
As formigas estão presentes em quase todos os capítulos de
Macunaíma e em diversas cenas importantes e sob diferentes denominações (tracuá, tocandeiras e curupês, entre outras). Porém
merecem destaques a Cambgique e as saúvas. A primeira porque,
quando Macunaíma morreu flechado por Piaimã, esta ajudou
Maanape a salvar o irmão, sugando todo o sangue do protagonista
que fora derramado pelo caminho, devolvendo-o à vida. As saúvas,
por serem consideradas, na obra, como um dos principais problemas sociais do Brasil. Neste livro está: “pouca saúde e muita saúva
os males do Brasil são.” Sendo assim, as formigas têm duplo sentido no livro de Mário de Andrade, pois enquanto Cambgique salva
Macunaíma, as saúvas destroem colheitas e empobrecem o país.
Segundo Oscar D’Ambrosio (op. cit. 1985: 45), em Macunaíma
os cupins simbolizam “uma destruição lenta e clandestina do país”.
Eles aparecem em várias cenas da obra de Mário de Andrade, sempre vinculados ao mal, à destruição e à morte.
Na obra , a cobra também simboliza o mal onde aparece
como boiúna Luna21 e é um mito de origem indígena muito popular
entre as populações ribeirinhas da Amazônia.
20
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D’AMBROSIO, Oscar. Mitos e Símbolos em Macunaíma. 5ª ed. Salinunte. São Paulo, 1985.
Boiúna : nome que vem do tupi e significa cobra preta.
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A Muiraquitã aparece na obra simbolizando uma fusão de elementos e poderes mágicos. Ela é uma adorno de colar feito de
pedra (nefrita, jade, jadeíta, azeviche) e talhada em forma de ser
humano ou animal. Ao subir ao céu, Macunaíma perde definitivamente sua muiraquitã, que fica então em contato eterno com a
terra, mas sob as águas, pois esta, sendo feita de pedra (terra)
não poderia subir ao céu.
Quanto ao elemento água, pode ter várias significações simbólicas. Para Oscar D’Ambrosio (op. cit. 1985: 61) ela “constitui um
símbolo de fertilidade, pureza, sabedoria, graça e virtude”. A água
parece ter dois valores: é descendente e celeste e está relacionada
a chuva e à fecundação. Isso mostra bem o valor simbólico que
tem, pois ao mesmo tempo fecunda a terra e dela nasce.
Este elemento simbólico aparece em três referências na narrativa sobre a criação da Lua: diz a velha índia que narra a história que
“ há muito tempo, quando nossa nação ainda vivia às margens de
outro rio ...” . Sabe-se que o rio (água) é um elemento que sempre
estará presente na vida desta tribo indígena. Em seguida aparece a
ambivalência terra/água na cena em que Zahy tenta tirar as manchas de jenipapo, lavando o rosto no rio. Também a água aparece
em ambivalência com o ar no momento em que a chuva seria a
água que escorre do céu quando Zahy lavava seu rosto.
Na obra de Mário de Andrade, a Muiraquitã apesar de ser
representativa do elemento terra, perde-se sob as águas
(ambivalência terra/água), onde permanecerá para sempre. Numa
das cenas mais importantes e significativas da obra, é uma poça
encantada (que seria a pegada de São Tomé) que Macunaíma se
tornou branco de olhos azuis e seus irmãos Jiguê e Maanape, ficaram, um da “cor do bronze novo” e o outro ficou com a palma das
mãos e dos pés rosados.
Em relação ao elemento ar, nas literaturas aparece como um
elemento ativo e masculino. Simboliza a espiritualizarão e associase ao vento ao sopro, pois cobre um universo intermediário entre o
céu e a terra.
Na narrativa do mito de Zahy, o elemento ar ocupa também o
plano celeste e absorve os males advindos da terra, purificandoos. Zahy é transformado em lua, como castigo para, assim, purgar
suas atitudes não heróicas. Ascender pelo ar é uma maneira de
purgar-se, atingindo o céu. Só depois disso é reconhecido por seu
povo como uma herói que sofreu um castigo por ter amado demais
uma mulher proibida. Nesta narrativa há referencias também à lua
nova “ período em que não podemos ver Zahy no céu à noite”; e às
luas crescente e cheia “ depois de um tempo, quando ele reaparece”. Essas fases sucessivas e regulares de aparecimento e desapa-
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recimento da lua estão associadas à passagem da vida, à morte e
vice-versa.
Em Macunaíma o elemento ar tem uma simbologia muito especial, pois tanto Ci quanto Macunaíma transformam-se em estrelas após a morte. Isto faz parte das diversas crenças populares
que reforçam a tradição de que pessoas de destaque na terra se
tornam estrelas no céu. Os elementos simbólicos que cercam a
estrela têm como matriz o fato de ela ser uma fonte de luz. Ci, ao
morrer sobe ao céu por um cipó, transformando-se na estrela Beta
da constelação do Centauro. No cap. XVII, Macunaíma, sem condições de ficar na terra e continuar suas aventuras, irá para o plano
celestial e se transformará numa estrela: a Ursa Maior.
Observe-se ainda, que, no capítulo IV , outra personagem, a
Boiúna Luna também resolve ir para o plano celestial, transformando-se em lua, um astro sem luz própria condenado a refletir a
luminosidade do sol.
Além desses, há referencias a mais dois representantes do
elemento ar, em Macunaíma: o arco-íris e a borboleta que também integram o universo celestial, sendo que todos esses símbolos
do ar desempenham um papel fundamental na obra.
Quando ao quarto elemento (o fogo) e sua simbologia, Oscar
D’Ambrósio (op.cit. 1985: 67) nos lembra que:
Qualquer estudo sobre a simbologia do material ígneo deve sempre recorrer às tradições
hindus. Nelas, há três fogos: o terrestre (fogo
comum), o intermediário (o raio) e o celeste (
o sol). Haveria, ainda os fogos da absorção e
da destruição. O primeiro funde, o segundo dissolve.
Para outros estudiosos o fogo pode ser símbolo de purificação,
iluminação, inteligência ou conhecimento. Vejamos o que simboliza
nas duas narrativas em análise.
Na narrativa de Zahy o elemento fogo pode enquadrar-se como
o fogo celeste a que se refere Oscar D’ Ambrosio no trecho acima
destacado, simbolizando a chama vital que estaria presente em
cada ser humano como o desejo de seguir em frente. Zahy transformou-se em lua, mas sabemos que esta não tem luz própria,
entretanto ela refletiria a lua do sol eternamente sobre seu povo.
No livro Macunaíma, o simbolismo do fogo parece estar ligado
à construção mítica de alguns grupos indígenas. É recorrente na
mitologia encontrar narrativas em que a cauda de alguns animais
seja portadora de fogo. Sendo assim, o sol (fogo) aparece sob a
forma da deusa Vei, a Sol. Macunaíma teria pedido à lua um
“foguinho” e ela o mandou para Vei (Sol personificado na forma
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feminina) que logo pensou em casar o herói com uma de suas
filhas A deusa, porém, foi desobedecida pelo herói lançando, então
um “fogoréu por detrás”, esquentando a todos. Então, para
Macunaíma o fogo não representa um elemento de purificação ou
iluminação, muito menos de sabedoria ou conhecimento. Nesta
obra o fogo é reduzido a um elemento que sai do ânus de uma
deusa solar contrariada, amarrada e agredida, comprovando que
Mário de Andrade deixa de lado o significado clássico do fogo como
símbolo de sabedoria, para fazer-lhe uma alusão jocosa.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
São riquíssimas as relações existentes entre a nossa literatura
modernista e o estudo da mitologia indígena. Entretanto, é complexa sua análise, principalmente tomando-se como eixo uma obra da
magnitude de Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de Mário
de Andrade.
Quando comecei esta minha “primeira viagem” pelo mundo
da pesquisa científica só trazia uma coisa como bagagem: minha
paixão pelo modernismo e pela mitologia indígena.
Voltar os olhos para compreender o outro, respeitando todos os
aspectos de seu mundo não é tarefa fácil. Adentrar no significado
dos mitos é principalmente isso: encará-los como representantes de
uma verdade significativa para a sociedade que os criou. Não fosse
o auxílio dos estudos feitos por antropólogos e pesquisadores desta
área, não seria possível fazer a relação intertextual que fiz entre as
duas narrativas míticas que escolhi para interpretar.
A narrativa mítica Tembé traz em si, mais que pontos em comum, mais que similitudes que comprovam que é oriunda de um
mesmo contexto cultural que a narrativa contida na obra Macunaíma
de Mário de Andrade. Traz lições que tanto servem para as sociedades ditas primitivas, quanto para a nossa sociedade que não
aceita seguir normas, nem mesmo para que tenhamos uma vida
de paz.
O texto de Mário entrelaça o simbólico, o mítico e o épico de
forma sensacional. Para mim o mais significativo são as lendas, as
superstições, frases feitas, provérbios e modismo de uma linguagem que está em quase todo o livro e forma um painel que nos
permite uma visão global do nosso país e do povo brasileiro.
Entretanto, a maior lição que se pode ter com esse tipo de
análise é que todos nós, ligados à educação, deveríamos utilizar os
mitos indígenas como fonte de pesquisa para propiciar uma melhor
integração entre as diferentes tradições, etnias, raças e culturas do
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país para uma melhor integração entre os brasileiros.
Ao término da intertextualidade entre as duas narrativas escolhidas, pude perceber que, apesar de os dois protagonistas caminharem lado a lado no sentido de nos fazer entender melhor a
nossa própria história, os mitos indígenas ainda são “mudos” para
muitos. Nesse sentido é que a literatura constitui-se em uma tentativa de captar esse discurso excluído, tendo a responsabilidade de
escutar e espalhar as vozes marginalizadas pela fala hegemônica
das elites culturais do país.
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ESTRANGEIRISMO E EMPRÉSTIMO: UMA
QUESTÃO LINGÜÍSTICA E/OU
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Orientadora: Maria do Socorro Cardoso
Resumo
O presente trabalho tem por escopo estudar os estrangeirismos
e os empréstimos lingüísticos presentes em textos escritos encontrados em placas de estabelecimentos comerciais e em alguns meios
de comunicação no estado do Pará. Estes fenômenos sempre foram recorrentes em qualquer língua do mundo, algumas com mais
e outras com menos incidência, seja qual forma assumam, semente nos últimos anos, têm merecido maior atenção por parte dos
lingüistas, que têm construído conhecimentos e travado debates
acadêmicos, buscando dismistificar a idéia, disseminada no senso
comum, de que os estrangeirismos e os empréstimos lingüísticos
estão “invadindo”, de forma desordenada, nossa língua e que, com
isso, o português estaria seriamente ameaçado de extinção, pondo, ainda em risco a soberania nacional. O corpus selecionado consta
de cinco figuras, contendo seis palavras e destas cinco são
estrangeirismos e apenas uma é empréstimo lingüístico.
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I – INTRODUÇÃO
Para que uma universidade goze plenamente do status de ser
“universal” é indispensável que esteja firmemente sustentada no
tripé ensino, pesquisa e extensão. Assim, o currículo dos cursos
por ela oferecidos devem proporcionar aos discentes uma articulação constante entre aquilo que se propõe a ensinar e o exercício do
desenvolvimento da autonomia dos alunos, que se traduzirá em
conhecimentos voltados às necessidades educativas e tecnológicas
da sociedade. Ela não pode, por exemplo, se resumir somente a
conhecimentos transmitidos em sala de aula, que, sobremaneira,
valorosos, não se sustentam sozinhos. O currículo deve, sim, comungar com a sociedade em direção à pesquisa e à extensão, ou
mais, ser resultado das práticas, experiências e reflexões que ele
pode e deve propiciar aos discentes.
Independentemente da modalidade escolhida, o currículo do
Curso de Letras objetiva formar profissionais que dominem o uso
da(s) língua(s) que seja(m) objeto de seus estudos, em termos de
sua estrutura, funcionamento e manifestação cultural. Embuídos
desse espírito, é que reconhecemos a necessidade de pesquisas
que privilegiem aspectos diacrônicos e sincrônicos das línguas .
Dessa perspectiva, o presente trabalho vislumbra o estudo de
estrangeirismos e empréstimos lingüísticos presentes em textos
escritos, encontrados em placas de estabelecimentos comerciais,
em peças publicitárias e em alguns meios de comunicação escrita
no estado do Pará .
Entre os fenômenos lingüísticos passíveis de serem analisados, encontram-se os estrangeirismos e os empréstimos lingüísticos,
oriundos que são do contato entre povos, quer por razões sociais,
políticas, culturais e principalmente por questões econômicas.
Estrangeirismos e empréstimos lingüísticos serão aqui abordados,
a priori, quando uma expressão ou palavra de uma língua A for
usada em uma língua B .
Para o desenvolvimento desta pesquisa, optamos pelas abordagens quantitativa e qualitativa, por entendermos que nosso objeto de pesquisa requer um corpus delimitado e uma análise que
seja flexível, isto é, permita eventuais alterações ou
redimensionamentos. Além disso, a interação entre elas nos permitirá intercambiá-las, considerando que nenhum objeto de estudo
é estático.
Para subsidiar as abordagens, selecionamos fontes de natureza bibliográfica bem como dados de campo. As fontes bibliográficas foram utilizadas para compreender as teorias relativas à
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estrangeirismo e empréstimo lingüísticos. Os dados de campo constituíram o corpus dos fenômenos em estudo.
A pesquisa bibliográfica resultou no capítulo I, que reúne alguns pressupostos teóricos envolvendo os conceitos relativos a
estrangeirismos e empréstimos lingüísticos, visando construir um
acervo sobre eles. Buscando, ainda, conhecer estudos e/ou pesquisas desenvolvidas nessa área de conhecimento, e, assim, de
forma mais segura subsidiar o processo metodológico e a análise
dos dados selecionados.
O capítulo II reúne os dados que constituem o corpus em análise, que são textos coletados em campo, no Estado do Pará. Esses
textos selecionados foram fotografados e/ou recortados de peças
publicitárias, afixadas em locais públicos, e carta comercial. Após
essas duas fases, procedeu-se à análise dos dados, a luz da bibliografia consultada. Esta análise inferiu sobre a possibilidade dos
dados selecionados constituírem estrangeirismos ou empréstimos.
As considerações finais apontam para o fato de que cinco objetos
constituíram estrangeirismo, ao passo que apenas um constituiu
empréstimo.
Com o presente trabalho consolidam-se, cada vez mais, os
estudos lingüísticos que objetivam registrar e descrever fenômenos recorrentes nas línguas humanas, fomentando, assim, a discussão a respeito das relações entre povos de línguas distintas,
resultado da globalização, conceito este amplamente usado nos
últimos tempos, e das conseqüências na e para as línguas envolvidas nesse processo.
II – EMPRÉSTIMO E OU ESTRANGEIRISMO: PRESENTE DE
GREGO?
Entre algumas das ciências que conhecemos, a literatura
que delas trata têm nos levado a inferir que grande parte nasceu a
partir da inquietação do homem acerca de algum tema, algum assunto. Esses homens podem ser chamados de pai dessas ciências.
Foi assim com Freud, que é considerado o pai da Psicanálise, com
Pirce, que é considerado o pai da Semiótica e com Taylor, que é
considerado o pai da Administração, entre outros. Com a lingüística não foi diferente. O suíço Ferdinand de Saussure pode ser considerado o pai da lingüística moderna. Vale esclarecer que o adjetivo moderna atribui-se ao fato de um novo estatuto ser dado a
uma já antiga “ciência”. Ele pautou seus estudos em dicotomias,
divisões em duas partes ou bipartição. Uma das principais dicotomias
é langue (língua) X parole (fala), considerando que, para ele, a
língua, enquanto sistema, é uma estrutura.
Langue (língua) e parole (fala) formam juntas a linguagem
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verbal, que, para Saussure (2002, p.16), “tem um lado individual e
um lado social, sendo impossível conceber uma sem a outra”. Já
para Dubois (2000, p. 387), “Linguagem é a capacidade específica
à espécie humana de comunicar por meio de um sistema de signos
vocais (ou língua)”. Por fim, Câmara Jr. (1998, p. 159) acredita que
linguagem é:
A faculdade que tem o homem de exprimir seus
estados mentais por meio de um sistema de
sons vocais chamado língua, que os organiza
numa representação compreensiva em face do
mundo subjetivo interior, pela atividade da linguagem ou fala.
Mas o que é língua, então? Língua é a face social da linguagem, o lado coletivo, que está depositado na mente do falanteouvinte, conforme Saussure (2002, p. 21), o mestre suíço:
Trata-se de um tesouro depositado pela prática de fala em todos os indivíduos pertencentes
à mesma comunidade, um sistema gramatical
que existe virtualmente em cada cérebro ou,
mais exatamente, nos cérebros dum conjunto
de indivíduos, pois a língua não está completa
em nenhum, e só na massa ela existe de modo
completo.
Para Dubois (2000, p. 178), “Língua é um instrumento de comunicação, um sistema de signos vocais específicos aos membros
de uma mesma comunidade”.
A língua é, portanto, “propriedade” de uma comunidade lingüística. Ocorre que as várias línguas existentes no mundo não são
nem estão estáticas, nem isoladas, estão, na verdade, em permanente ebulição, em constante contato. Vários fatores contribuem
para essas relações entre alas. Entre eles, podemos citar a queda
das fronteiras comerciais entre países e o avanço dos meios de
comunicação, que são apenas dois exemplos do quanto as línguas
do mundo podem estar em contato.
Mas só o conceito de língua parece não ser suficiente para
contribuir com a discussão que ora propomos. Faz-se necessário
recuperar, então, o conceito de idioma, termo por vezes confundido com língua e por essa mesma razão tem propiciado alguns equívocos para o estudo sobre estrangeirismos e empréstimos. Valendo-nos de Câmara Jr. (1998, p. 142), idioma é:
O termo com que se insiste na unidade lingüística inconfundível, de uma nação em face das
demais. Enquanto o conceito de língua é relativo e se aplica a uma língua comum, a um dia-
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leto, a um idioleto, só se refere à língua nacional, propriamente dita, e pressupõe a existência de um estado político, do qual seja a expressão lingüística; o mirandês, por exemplo,
é uma língua, mas não um idioma.
Portanto, o termo idioma pressupõe a circunscrição a uma
comunidade lingüística, o que extrapola o conceito de língua, tomada a partir de sua constituição funcional enquanto sistema de signos vocais. No entanto, é o contato entre os vários idiomas do
mundo tem provocado o surgimento de dois fenômenos lingüísticos,
o estrangeirismo e o empréstimo. No senso comum, estrangeiro
vem de estranho, que significa ser de fora, externo, exterior; estrangeiro, alheio e, por outro lado, emprestar é confiar algo a alguém por algum tempo, com promessa de restituição. Esses fenômenos têm merecido, de alguns lingüistas atuais, um certo espaço,
entre as muitas questões lingüísticas em debate. Até o deputado
federal Aldo Rabelo, do PC do B de São Paulo, resolveu palpitar,
sem nenhuma consistência acadêmica, é verdade, mas foi o autor
de uma proposta que queria ver transformada em Lei, que poria
fim aos estrangeirismos e empréstimos, que, segundo ele, “invadiram” o nosso idioma. O que o deputado não sabia e não sabe é que
questões de natureza lingüística não se resolvem com leis e nem
com palpites xenofobistas, justamente porque o conceito de idioma
não é de caráter lingüístico e sim político – social .
A propósito, o que é estrangeirismo e empréstimo?
Estrangeirismos são, segundo Câmara Jr. (1998 p. 111):
Os empréstimos vocabulares não integrados na
língua nacional, revelando-se estrangeiros nos
fonemas, na flexão e até na grafia, ou os vocábulos nacionais empregados com a significação dos vocábulos estrangeiros de forma semelhante.
Na
língua
portuguesa
os
estrangeirismos mais freqüentes são hoje
galicismos e anglicismos. O vocábulo estrangeiro, quando é sentido como necessário, ou
pelo menos útil, tende a adaptar-se à fonologia
e à morfologia da língua nacional, o que para a
nossa língua vem a ser o aportuguesamento.
Já empréstimo lingüístico para Dubois (2000, p. 209) é :
Quando um falar A usa e acaba por integrar uma unidade ou
um traço lingüístico que existia precedentemente num falar B e que
A não possuía; a unidade ou traço emprestado é, por sua vez,
chamado de empréstimo. O empréstimo é o fenômeno sóciolingüístico mais importante entre todos os contatos de línguas.
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Para Câmara Jr. (1998 p. 104,105) é:
Empréstimo é a ação de traços lingüísticos diversos dos do sistema tradicional. O condicionamento social para os empréstimos é o
contacto entre povos de línguas diferentes, o
qual pode ser por coincidência ou contigüidade
geográfica, ou, à distância, por intercâmbio
cultural em sentido lato. A coincidência ou contigüidade geográfica determina os empréstimos
íntimos e a língua a que é feito o empréstimo
constitui um substrato, um superstrato ou um
adstrato. Os empréstimos à distância são culturais.
Portanto, o empréstimo lingüístico se configura quando se
empresta um termo ou um traço lingüístico de uma outra língua.
Esse traço ou palavra, obviamente, não existia anteriormente na
língua que empresta.
Mas que motivos levam uma língua a emprestar palavras ou
estrutura(s) de outra(s)? O motivo mais comum é a ausência de
um termo ou expressão em uma língua, que se vê obrigada a fazer
um empréstimo de uma outra língua. É o que ocorre com a palavra
iceberg . Não temos uma palavra no português que nomeie o referido fenômeno e assim possa substituir aquela palavra. Neste caso,
iceberg é um estrangeirismo, já que não sofreu nenhum tipo de
adaptação, seja fonética ou fonológica, gráfica ou flexional, ao português falado no Brasil.
O surgimento de algo novo é outro motivo para a adoção de
um empréstimo. A palavra stress entrou recentemente em nossa
língua para denominar uma doença dos tempos modernos. Como o
termo stress é muito usado, acabou sofrendo adaptações ao português e hoje já é grafado estresse, além disso, já formamos palavras derivadas a partir da primitiva estresse, é o caso de estressado,
estressante e desestressante.
No caso de stress>estresse estamos diante de um empréstimo
lingüístico, já que o termo sofreu adaptações ao português, ou seja,
foi-lhe acrescentado o grafema (letra) -e no início e no fim do vocábulo, já que não existem, no sistema ortográfico português, palavras
que iniciem com o grafema –s, não seguido de grafemas que representem os fonemas vocálicos e nem palavras terminadas em -ss.
Que os empréstimos lingüísticos aconteceram, acontecem e
sempre acontecerão é um fato. Não podemos adentrar, muitas vezes de forma irresponsável, pela análise de base nacionalista que
gera o xenofobismo, tão prejudicial à qualquer estudo que se pretenda científico. É claro e certo que não existem línguas puras, que
não se permitam tomar emprestado e emprestar termos, expres-
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sões e até estruturas fonológicas, morfológicas, sintáticas e principalmente semânticas.
Todavia, não podemos deixar de considerar que uma língua,
ao fazer empréstimos de outra língua, não importa somente o
significante (uma parte do signo lingüístico), às vezes, no “pacote”,
de “brinde”, vem junto toda uma gama de significado, e, como
este, segundo as modernas teorias semânticas, é contextual, o
vocábulo carrega consigo parte da cultura da qual é oriundo, um
verdadeiro presente de grego. Mesmo que se adapte o vocábulo
importado à estrutura da língua importadora.
Tal adaptação não garante tampouco a neutralização cultural.
Mesmo com tamanha “criatividade” dos falantes brasileiros, que
transformaram, por exemplo, o cheese, queijo em inglês, em apenas –X, em português. Notem como a “pronúncia” dos dois termos
é quase semelhante, ou melhor, assim soou aos ouvidos daqueles. No
entanto, não deixamos de importar, junto com o termo, a geração
sanduíche, cuja base da alimentação quase diária são os búrgueres,
batata frita e coca-cola, típicos da cultura norte-americana.
Outro exemplo, diz respeito a uma das explicações para a origem do termo forró. Contam que, na época da construção das estradas de ferro no nordeste brasileiro, os ingleses organizavam festas for all , ou seja, para todos. Nessas festas, poderiam ir tanto os
engenheiros, que eram estrangeiros, como os operários, que eram
brasileiros. Estes logo transformaram o então for all em forró .
Mais que o uso de um termo estrangeiro, seja na sua forma
original, seja adaptado, o fato é que a língua de um povo, ou melhor,
o seu idioma, é um elemento de soberania, como aborda Carvalho
(1989, p. 26) “A língua é o testemunho e a prova insofismável do
domínio cultural. Ela denuncia influências e correntes ideológicas mais
que se possa imaginar”, pois assim está cristalizado no imaginário
coletivo de uma nação. No entanto, por um estudo que se pretende de
caráter lingüístico, portanto científico, paga-se um preço, ou seja, o
preço da tentativa de separar, ou melhor, delimitar tanto o termo
língua como o termo idioma, seus domínios e fronteiras.
Isso posto, não nos parece que os conceitos aqui discutidos,
relativos a língua X idioma e estrangeirismo X empréstimo dêem
conta desta análise, sentimos a necessidade de retomá-los em outras perspectivas conceituais.
Língua será tomada aqui como uma estrutura funcional enquanto sistema de signos vocais, ao passo que idioma será entendido como um termo que pressupõe a circunscrição a uma comunidade lingüística, o que extrapola o conceito de língua. Esta divisão,
a priori, problemática, não deixa de ser oportuna, pois confundir ou
amalgamar os dois termos aprisionará qualquer análise que pre-
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tenda lingüística e inevitavelmente se confundirá ciência com nacionalismo.
Por fim, consideramos pertinente a proposta sugerida por Carvalho (1989) que assim considera:
O empréstimo tem sua origem no momento em
que objetos, conceitos e situações nomeadas
em língua estrangeira transferem-se para outra cultura. No caso de objetos, no momento
em que este é introduzido, como um cavalo de
Tróia, ele traz no bojo o próprio nome.
Ainda segundo a autora, a introdução de um termo consta de
quatro fases de acordo com o gráfico abaixo :
Palavra estrangeira (existente na língua A)
Estrangeirismo (uso na língua B)
Xenismo
(Ausência de adaptação para
a língua B)
Empréstimo
(adaptação de qualquer tipo
na língua B)
III – A CONSTITUIÇÃO E ANÁLISE DO CORPUS
3.1 – O corpus
Estrangeirismo e empréstimo lingüísticos são campos produtivos quanto à coleta de dados, já que em qualquer lugar que surja
uma palavra ou termo estrangeiro, que possa ser registrado de
alguma forma, passa a ser objeto de estudo. Posto isso, muitos
podem ser os dados para a análise. Entretanto, pela própria natureza do presente trabalho, selecionamos apenas alguns.
Inicialmente, temos uma carta, figura 1, enviada a minha mãe,
pela GM – General Motors do Brasil Ltda., em 28 de abril de 2003.
Nesta carta, a GM a convocava para um recall do carro modelo
corsa, por ela adquirido, que precisava ter uma peça do cinto de
segurança substituída, pois havia a ameaça da mesma partir, provocando a falha no referido sistema .
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A figura número 02 é fotografia da placa de um bar denominado Arara Blue, localizado na Avenida Alcindo Cacela, na referida
figura, analisamos a palavra Blue
A figura número 03 é a fotografia da placa de uma loja que
oferece artigos para presentes como: CD‘s, DVD´s, e pequenos
bibelôs. Além disso, a loja disponibiliza, a seus clientes, o serviço
de cyber café, ou seja, aluguel de computadores em rede para
jogos e acesso à internet. A loja chama-se café mix e estava localizada na Avenida Gentil Bittencourt, no referido objeto, analisamos a palavra gift.
A figura de número 04 é a fotografia de uma faixa publicitária
de um tradicional evento esportivo promovido pela Universidade
da Amazônia - UNAMA, com o patrocínio do banco Itaú, trata-se do
X short triatlo. A faixa estava estendida no hall de entrada da UNAMA
e trazia informações acerca do período de inscrição, bem como,
data de realização de referido evento. Neste objeto, analisaremos
tanto o termo short, como triatlo.
Por fim, a figura de número 05 é a fotografia da placa de uma
loja de roupas em Marabá, município da região sul do Estado do
Pará. A loja tem o nome de Born in Rio e está localizada no centro
comercial da nova Marabá. Neste objeto, analisamos o termo born.
Todos os elementos acima citados compõem o corpus deste
trabalho e foram coletados no período de março a setembro de
2003 e serão objeto de análise no item seguinte deste trabalho .
Para a análise dos dados coletados, consideramos cada objeto, consultando dois dicionários Inglês – Português e dois dicionários Português – Português. Primeiramente, consultamos um dicionário Inglês – Português e retiramos as possibilidades de tradução
do objeto analisado. Em seguida refizemos este processo, só que
com outro dicionário, também Inglês – Português. Então, retiramos
a palavra que mais se aproximava do significado em português e
verificamos sua estrada no dicionário Português – Português, repetimos este processo, só que, desta vez, em outro dicionário Português – Português. Após isso verificamos se o termo analisado era
um estrangeirismo ou um empréstimo. Por fim considerávamos as
outras possibilidades de tradução que o objeto em análise pernitia.
3.2 – A análise do corpus
O primeiro objeto analisado é a carta da GM – General Motors
do Brasil, figura 1, convocando os carros modelo corsa para faze-
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rem um reparo na fivela do cinto de segurança, nela encontramos a
palavra recall escrita em negrito e sublinhada no centro do papel.
No dicionário Michaeles (2000), encontramos o verbete recall
com o seguinte significado: revocação, chamada de volta. 2.
(milit) toque de chamada. 3. recordação. 4. revogação. 5.
(EUA) destituição de um funcionário público por votação
popular || V. 1. revocar, chamar de volta 2. recordar. 3.
revogar. 4. destituir, demitir.
No dicionário de Conrad (2000), recall significa: revocação;
chamada; recordação; MIL toque de reunir. recall v, retratar-se, anular, lembrar-se.
A partir dessas informações, podemos imaginar que o recall,
da carta da GM, é um termo usado com o significado de revocação.
Para verificar se pode haver correspondência de significados entre
o termo em inglês e o correlato em português, consultamos o significado do verbete revocação, que, no dicionário Ferreira (1999),
significa, dentre outras coisas: chamamento, chamado. Para
confirmarmos essa informação, buscamos no dicionário Houaiss
(2001) o significado da mesma palavra e encontramos, dentre outros significados: chamar para trás, mandar voltar. 2. chamar de novo, tornar a chamar.
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O segundo objeto analisado é a figura 2
Da análise, podemos inferir que o termo recall constitui um
estrangeirismo e foi usado com o sentido de revocação. Ocorre
que para o termo recall podem haver outros significados, conforme
as entradas constantes nos dicionários já citados e é essa pluralidade
de significados que pode gerar uma ambigüidade no momento da
tradução. É fato, também, que há outros elementos textuais que
impediriam tal ambigüidade, como, por exemplo, o fato do objeto
em estudo ser uma carta enviada por uma fábrica de carros, mesmo assim, para que haja o entendimento pretendido pelo emissor,
há necessidade de que os interlocutores compartilhem do mesmo
conhecimento de mundo, caso contrário o entendimento pode ser
prejudicado e recall poderia ser entendido como toque de chamado, destituição de um funcionário público por votação popular, ou
ainda, recordação.
Conforme podemos verificar, o bar é denominado Arara blue.
O termo blue em inglês significa, segundo Michaeles(2000): azul,
cor azul, 2. tinta ou pigmento azul, 3. anil, corante azul. 4.
o céu. 5. o mar. 6. pessoa fardada de azul. || V. azular,
tingir de azul. 2. usar anil || adj. 1. azul da cor do céu. 2.
que usa roupa azul, vestido de azul. 3. lívido. 4. triste, deprimido, melancólico. 5 (colog) desanimador, sombrio. 6.
severo, exigente (lei).
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Ainda sobre o verbete blue é válido verificar que Conrad (2000)
assim o conceitua: Azul, tristeza, depressão. Adj. azul, fiel,
severo, triste. V. Azular.
Podemos, portanto, inferir que o termo blue foi usado, na placa do bar, no sentido de azul. Sobre esta possibilidade, observamos Ferreira (1999), que, em seu dicionário, conceitua azul como
sendo: da cor do céu sem nuvens com o sol alto; da cor do
mar profundo em dia claro; da cor da safira. 6. A cor azul
em todas as suas gradações. 7. O céu, os ares, o
firmamento. Com o objetivo de confirmar o referido conceito,
buscamos um outro que foi retirado do Houaiss (2001), que afirma
que azul é: cor que, no espectro solar ocupa a área entre o
verde e o violeta. 3. o céu, o firmamento.
Com base nos
conceitos anteriormente citados, podemos inferir que o termo blue
é um estrangeirismo e foi usado no sentido de azul.
No entanto, chama a atenção o fato de o termo blue, mais
precisamente blues, no plural, ser formador de outro estrangeirismo,
que, em português, significa um estilo musical de influência americana, que tem o sentido, mais precisamente, a característica de
um estilo musical, triste ou melancólico, conforme possibilidade
registrada no verbete de Michaeles (2000).
É justamente a pluralidade de significados que uma palavra
pode ter que pode gerar múltiplas interpretações, pois, se analisarmos apenas a construção Arara blue, fora do contexto em que ela
se encontra, o interlocutor pode atribui-la o significado de arara
triste, em vez de arara azul, que foi o que concluímos ser a intenção da pessoa que nomeou o bar.
Nela podemos observar a placa em um estabelecimento comercial, com a expressão CAFÉ MIX e uma relação de produtos e
serviços que poderiam ser encontrados nesta loja, como CD’S,
DVD’S, CYBER CAFÉ e GIFTS.
O objeto de nossa análise é a palavra gifts, que será analisado
como gift, no singular, apenas por questões didáticas, visando facilitar a análise. Segundo Michaelis (2000), gift significa: presente,
donativo, dádiva. 2. ação de dar presente, doação. 3. direito de doar. 4. talento, dote natural, dom || V. presentear,
doar. Por outro lado, o dicionário de Conrad (2000) conceitua gift
como sendo: doação, dádiva, oferta, dom. USA presente, gift
V presentear, doar, dotar.
Consultando o significado de presente, no dicionário Ferreira
(1999), encontramos, dentre outras, a seguinte definição: 8. aquilo que se oferece com o intento de agradar, retribuir ou
fazer-se lembrado; brinde, dádiva, lembrança, mimo, regalo. 9. dádiva, dom, condão. No dicionário Houaiss (2001) pre-
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sente significa: : 9. Objeto doado, ofertado; regalo, mimo,
brinde, lembrança. 10. qualquer coisa que se conceda a
alguém; dádiva, dom.
Como podemos constatar, a palavra gift pode significar, segundo Michaelis, (2000) donativo ou dádiva. Se donativo significa “de graça”, ou seja, algo que se doa gratuitamente, e, se dádiva, significa algo que se recebe por merecimento. Mais uma vez a
plurisignificação das palavras, fato este que ocorre em muitas línguas do mundo, pode gerar ambigüidade, pois como uma loja, ou
seja, um estabelecimento comercial, que visa lucro, estaria dando,
doando alguma coisa?
Mais uma vez caberá ao contexto situacional indicar ao
interlocutor o significado que o objeto gift em análise significa. Todavia, nos parece que, mais importante que o contexto situacional,
há necessidade do interlocutor compartilhar o mesmo conhecimento vinculado pelo objeto, que nada mais é que um conjunto de
proposições que são aceitas tanto pelo emissor quanto pelo receptor. Caso contrário, o interlocutor não entenderá a mensagem, por
mais que o contexto situacional ofereça um cem número de elementos.
Outro aspecto, no objeto em análise, refere-se ao uso do ‘S.
Da forma como está colocado, ou seja, CD’S, pode indicar desinência
de marca de número das palavras CD e DVD, seguindo a norma
padrão vigente do português brasileiro, que preconiza que o - s e
seus alomorfes são desinências de plural em português. Ocorre que,
em inglês, o morfema ‘S tem como função indicar posse, é o que a
gramática normativa padrão do inglês chama de possessive case.
O terceiro objeto analisado é a figura 3:
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É uma faixa localizada no hall de entrada da Universidade da
Amazônia - UNAMA, nela podemos ver a publicidade do X Short
Triatlo, evento esportivo anual, promovido pela UNAMA e patrocinado pelo banco Itaú, realizado em 29/06/2003.
As palavras Short e Triatlo serão objeto dessa análise. Short é
um termo em inglês que significa, segundo Michaelis (2000): som
curto, coisa curta. 2. Curto-circuito. 3. filme de curta
metragem. 4. calças curtas. || adj. Curto. 2. breve. 3. baixo, pequeno, não alto. 4. restrito, de pouco alcance. 5. insuficiente, pouco. 6. deficiente, inadequado 7. limitado escasso 8. conciso resumido (...) || adv. De modo curto 2.
abruptamente 3. brevemente, resumidamente 4. inesperadamente. Já short, em Conrad (2000): adj. Breve, curto,
escasso, insuficiente,limitado,próximo, perto.
No dicionário Ferreira (1999) curto significa: de pequeno comprimento, de comprimento inferior ao que deveria ser, ao
habitual. 2. rápido, breve. Para Houaiss (2001), sobre o termo
curto: pospositivo, reduzido, diminuto, exíguo, pequeno.
Das possibilidades de conceitos listados acima para a palavra
short, podemos inferir que o evento esportivo recebe este nome
por ser curto ou menor que um triatlo comum.
Diferentemente do exemplo “Arara blue”, já analisado, o adjetivo short vem antes do substantivo triatlo, obedecendo à sintaxe
cânone da gramática normativa padrão do inglês. Entretanto, como
podemos observar, o verbete short apresenta outras possibilidades
de interpretação, tais como: curto-circuito, filme de curta metragem,
calças curtas. Existe, portanto, a possibilidade de um falante do
português atribuir outros significados, além de curto, menor, ao
sentido de short empregado na faixa. Para que isso não aconteça é
necessário que o leitor comungue do mesmo conhecimento de
mundo que os promotores de evento esportivo, sob pena de não
haver entendimento sobre o fato de triatlo ser menor ou mais curto
que os triatlos habituais, ou ainda outra coisa qualquer .
O outro objeto em análise é o termo triatlo, que, segundo
Houaiss (2001), é grafado triátlo: competição que inclui três
atividades esportivas diferentes 2. triátlo que reúne provas de natação (4 Km), ciclismo (180 Km) e corrida (42
Km). Ainda sobre a definição de triatlo Ferreira (1999), que grafa o
verbete sem acento, conceitua: competição que reúne três
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O quarto objeto analisado é a figura 4:
modalidades esportivas, modalidade de triatlo cuja disputa inclui 4 Km de natação, 180 Km de ciclismo e 42 Km de
corrida realizadas nesta seqüência. Este termo entrou na
língua portuguesa como um estrangeirismo, se analisado sob a
ótica de Câmara Jr. (1998), pelo fato deste esporte, de origem
americana, ter chegado ao Brasil com o nome que era usado nos
E.U.A., com o passar do tempo, o termo se aportuguesou, ou seja,
sofreu algumas adaptações para o português. Inicialmente, o termo era escrito triathlon, após o aportuguesamento, passou a ser
grafado triatlo, o que, segundo Câmara Jr. (1998), passou a ser um
empréstimo lingüístico.
Como podemos observar, há diferentes grafias para os termos: triátlo Houaiss (2001) e triatlo Ferreira (1999). Aportuguesouse, conforme Câmara Jr. (1998), seria triátlo, com acento agudo no
a, de acordo com a norma ortográfica vigente do português padrão. Caso contrário, continuaria a ser um estrangeirismo e não
empréstimo lingüístico.
Um diferencial deste objeto é o fato de ter sido coletado no
município de Marabá, na região sul, do Estado do Pará. Isso demonstra que os estrangeirismos não estão restritos apenas às grandes capitais, mas podem ser encontrados em outras cidades, de
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menor tamanho e de menor relevância econômica nos estados brasileiros. Outro aspecto, sobre o objeto, é o fato do nome da loja
constituir uma frase em língua inglesa e não um termo, como os
outros objetos em análise.
Para efeito de análise, usaremos apenas a palavra born, que
significa, segundo Michaelis (2000): 1. nascido, 2. nato. Ainda
sobre born, vejamos o que encontramos, como conceito, em Conrad
(2000): V. gerar, nascer, parir. Adj. gerado, nascido.
Especificamente, nesta análise, é um tanto complicado tentar
inferir, como fizemos nas análises anteriores, com qual significado
este termo foi usado, pois o idealizador do nome da loja poderia
estar querendo dizer, pelo menos, duas coisas ao usar este
estrangeirismo. O termo born tem como uma das possibilidades de
significado nascer, como podemos observar nos dicionários já citados. Mesmo assim, ficaria a pergunta: quem nasceu no Rio ? Sim,
pois o termo born pode ter sido usado para dar a idéia de que a loja
iniciou suas atividades no Rio de Janeiro, quem sabe até com outro
nome, e, depois de algum tempo, mudou-se para Marabá.
Outra possibilidade de interpretação deste estrangeirismo diz
respeito às roupas, sapatos e bolsas vendidos na loja. O termo
Born significa que todos os artigos lá vendidos são fabricados no
Rio de Janeiro. Neste segundo caso, Born teria, também, o significado de nascer, mas só que se referindo aos artigos vendidos pela
loja e não mais à própria loja.
É exatamente o fato de não sabermos qual foi a intenção de
quem nomeou a loja que gera esta dupla possibilidade de interpretação. Desta vez, nem os elementos extralingüísticos são capazes
de diminuir a dúvida. Mais uma vez é evidente que os elementos
extralingüísticos podem contribuir para indicar o significado do
estrangeirismo, mas, se os interlocutores não compartilharem o
mesmo conhecimento acerca do objeto, de nada adiantam aqueles
elementos.
IV – CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes de mais nada, este estudo deixou bem clara a necessidade de retomarmos os próprios conceitos de língua e de idioma e
de estrangeirismo e empréstimo.
O termo língua é essencialmente lingüístico, é, portanto o ideal para uma análise científica. Por outro lado, o conceito de idioma
remete-nos para à necessidade de restrição a determinada comunidade lingüística politicamente organizada. È justamente esta restrição a uma comunidade lingüística que gera o preconceito em
torno dos estrangeirismos.
Após efetuarmos a análise de cinco objetos de estudo, contendo seis termos, podemos constatar que cinco constituem
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estrangeirismo e apenas um empréstimo, a partir disso, podemos
inferir ainda, que os empréstimos lingüísticos e os estrangeirismos
são fenômenos que ocorrem no português de Belém, no ano de
2003. Com isso, perece-nos que nosso principal objetivo foi alcançado, ou seja, comprovamos a existência de estrangeirismo e de
empréstimo lingüístico no português contemporâneo.
O quinto objeto analisado é a placa da loja denominada Born in Rio, conforme figura 5.
Portanto, não devemos lutar, pedindo o fim dos estrangeirismos,
nem dos empréstimos lingüísticos, pois ficou claro que estes fenômenos lingüísticos ocorrem e são recorrentes no português, para
não falarmos em outras línguas.
No entanto, ao fazermos as análises dos objetos, podemos
constatar que, embora os elementos extralingüísticos apontem para
o significado que o emissor quis dar ao optar por um estrangeirismo,
eles nem sempre são suficientes para tal. Podemos inferir que há
margem para outras interpretações, ou seja, o uso de um
estrangeirismo pode levar o receptor a ter uma interpretação diferente daquela que o emissor quis dar.
Para que não haja uma interpretação diferente dos
estrangeirismos, é fundamental que os interlocutores tenham mais
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do que o mesmo conhecimento de mundo, é necessário que ambos
tenham o mesmo conhecimento compartilhado. Caso contrário, as
chances de haver um entendimento diferente do pretendido pelo
emissor, por parte do receptor, são muito grandes.
Se pensarmos que essa dificuldade de comunicação pode gerar problemas em várias áreas da sociedade, maior problema será
se pensarmos nas relações comerciais, pois, se um uma pessoa
que vende não consegue se comunicar com quem compra, estamos
diante de um problema maior ainda.
Portanto, não devemos exigir o fim dos empréstimos lingüísticos
e dos estrangeirismos, nem tampouco a redução dos seus usos.
Devemos, sim, é alertar as pessoas para que façam o uso mais
adequado de um estrangeirismo, pois o que pode, em um primeiro
momento, ser bonito e atual, pode, na verdade, ser inteligível por
parte dos interlocutores. Tornando débil a comunicação entre os
interlocutores.
Ao mesmo tempo, sugerimos, a exemplo, de carvalho (1989)
que os conceitos relativos a estrangeirismos e empréstimos lingüísticos
sejam assim recolocados, de acordo com o gráfico abaixo.
Estrangeirismo
Aportuguesamento (Adaptação de qualquer tipo para a
Empréstimo
(Ausência de adaptação para
BIBLIOGRAFIA CONSULTADA
CAMARA Jr., J. Mattoso. Princípios de lingüística geral. Rio de
Janeiro, Padrão, 1989.
___________Dicionário de lingüística e gramática referente à
língua portuguesa. Petrópolis/RJ, Vozes, 1998.
CARVALHO, Nelly. Empréstimos lingüísticos. São Paulo, Ática,
1989.
CONRAD, David. Minidicionário escolar de inglês: inglês – português, português – inglês. São Paulo, DCL 2000
DUBOIS, Jean et all. Dicionário de lingüística. São Paulo, Cultrix,
2000.
HOUAISS, Antônio & VILAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss
da língua Portuguesa. Rio de Janeiro, Objetiva 2001
MICHAELIS. Moderno dicionário Inglês & Português. São Paulo, Editora Melhoramentos, 2000.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo, Cultrix, 2002.
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Linete Cardoso Fernandes
AS FACES DO AMOR NOS POEMAS
MUSICADOS DE WALDEMAR HENRIQUE “FOI
BOTO, SINHÁ” E “TAMBA-TAJÁ”
ORIENTADORA: Nelly Cecília Paiva Baneto da Rocha
RESUMO
Este estudo tem como objetivo conhecer e pesquisar a vida e
obra poética do Maestro Waldemar Henrique da Costa Pereira. Os
suportes que o influenciaram a integrar a cultura popular amazônica em seus poemas musicados “Foi Boto, Sinhá” e “Tamba-Tajá”,
bem como os diferentes tipos de amor, visando depreender as características mais marcantes dos poemas. A pesquisa foi realizada
com base em bibliografias, artigos de jornais, Internet e entrevistas com escritores que conviveram com o Maestro e sua obra.
Constata-se que nos poemas analisados há um rico acervo de lendas, crendices, ritmos melódicos, linguagem cabocla e amor. Este
amor que os envolve é, simultaneamente, carnal e romântico. Percebe-se que a obra de Waldemar Henrique é, pois, de fundamental
importância no cenário artístico brasileiro, assim como é de grande
valia para os que anseiam ampliar seus conhecimentos sobre a
arte poética musical na Amazônia.
Palavras-chave: música, Waldemar Henrique, Amazônia, cultura, boto, tamba-tajá, mito, lendas, amor
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RESUMEN
Este estudio tiene como objetivo conocer e investigar la vida y
obra poética del conductor Waldemar Henrique da Costa Pereira.
Los soportes que le influyeron a integrar la cultura popular
amazónica en sus poemas musicados “Foi Boto, Sinhá” y “TambaTajá”, así como los distintos tipos de amor, buscando las características más importantes de los poemas. La investigación fue realizada basada en bibliografías, artículos de periódicos, Internet y entrevistas con escritores que conviveron con el conductor y su obra.
Se astetigua que en los poemas analisados hay um rico acervo de
leyendas, superticiones, ritmos melódicos, lenguaje caboclo y amor.
El amor que le involucra es, simultaneamente, carnal y romántico.
Se percibe que la obra de Waldemar Henrique es, pues, de fundamental importancia en el escenario artístico brasileño, así como es
de gran valia para los que desean ampliar sus conocimientos sobre
el arte poética musical en la Amazonia.
Palabras-clave: música, Waldemar Henrique, Amazonia, cultura, boto, tamba-tajá, mito, leyendas, amor.
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Introdução
A vida no interior do Estado do Pará proporciona um contato
mais harmonioso com a Natureza. Pode-se sentir o ar puro, a aurora trazendo os raios solares entre as palmeiras do açaizeiro, fazer
passeios de canoas pelos igarapés e ouvir as lendas que se tornaram marcantes por impregnar de amor a fauna, a flora, enfim, o
universo mítico da Amazônia.
Este atrativo influencia a todos aqueles que têm sensibilidade. Isso se tornou mais intenso na disciplina Literatura Amazônica,
na Universidade da Amazônia – Unama, na qual se teve a oportunidade de estudar diversos autores paraenses e suas obras. Esta
pesquisa se fundamentará no autor e compositor Waldemar Henrique
da Costa Pereira, juntamente com sua vida e obra, como também
os diferentes tipos de culturas, a fim de resgatar, valorizar e divulgar o valor da cultura paraense.
Sabe-se também que é por meio da Música/Poesia que o homem consegue viver em harmonia com o meio em que vive e,
quando relaciona os poemas à arte musical e suas entrelinhas,
torna-se mais sensível e intelectual.
Dessa forma, selecionam-se os poemas musicados de
Waldemar Henrique “Foi Boto, Sinhá” e “Tamba-Tajá” por se ter um
acervo rico de ritmos melódicos, lendas, linguagem cabocla, crendices, e também subsídios que o Maestro utilizou para construir
seus poemas, ou seja, tudo o que se faz relevante ser pesquisado
na obra desse notável compositor, em cujas criações o poético e o
mítico apresentam constantes afinidades.
Adentrar-se-á nas faces ocultas do Amor dos poemas em estudo, para se descobrir os diferentes tipos de amor que brotam das
águas do Rio Amazonas e do interior da floresta, nas quais também
se percebe a integração dos elementos água/terra que são essenciais na formação da Amazônia. No Dicionário de Símbolos, lê-se
essas afirmações:
A água é fonte de vida e fonte de morte criadora e destruidora. Os rios* são agentes de fertilização de origem divina, as chuvas e o orvalho trazem consigo a fecundidade e manifestam a benevolência divina (CHEVALIER.&
GHEERBRANT, 1906: 17).
A terra fértil e a mulher são freqüentemente
comparadas na literatura: sulcos semeados, o
lavrar e a penetração sexual, parto e colheita,
trabalho agrícola e ato gerador, colheita dos
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frutos e aleitamento, o ferro do arado e o falo
homem (CHEVALIER.& GHEERBRANT, 1906:
874).
Observando as citações acima, percebe-se que desse elo água/
terra é que nascerá grande parte da exuberância amazônica.
Entende-se que o objetivo desta pesquisa é fazer o leitor conhecer algo do mundo romântico e mítico da Amazônia, o qual será
revelado pela beleza poética e musical nos poemas em estudo.
CAPÍTULO 1 - Momento histórico
Com o desenvolvimento da Revolução Industrial no Século
XIX, a borracha seria finalmente considerada matéria-prima de
fundamental importância no setor automobilístico e, por isso, diversos países europeus e americanos passaram a se interessar
pela exploração do produto (MONTEIRO, 1996: 65).
No Brasil, a Amazônia passou a ser considerada a região de
referência na conquista do produto, por apresentar uma flora rica e
exuberante. Em 1867, o Estado do Pará abre a porta de seus rios
para facilitar a exploração da borracha (MONTEIRO, 1996: 66).
O Pará da época da borracha conheceu fatos culturais importantes. As classes sociais da capital, enriquecidas pelo comércio da
borracha, fortaleceram o hábito dos concertos musicais e espetáculos, introduzindo a música erudita que vinha da Europa,
enaltecendo as noites paraenses. Mas, nesse período, a música
sinfônica não foi muito valorizada, tanto que a apresentação de
Óperas, como a “As Duas Órfãs”, de A. D. Enney, trazidas da Europa pela companhia de Vicente Pontes de Oliveira constituíram-se
em referência cultural, porém com a derrocada da borracha, os
custos da cultura importada entram em crise e dão lugar a arte
instrumental paraense (CLAVER FILHO, 1978: 19).
Em 1894, no governo de Lauro Sodré, criou-se o Conservatório de Música e foi nomeado à direção Antônio Carlos Gomes, o
qual permaneceu pouco tempo no cargo, vindo a falecer. Devido a
esse acontecimento, o Conservatório de Música passa a se chamar
Instituto Carlos Gomes, em homenagem a esse Maestro e Compositor de renome em todo o país. O maestro italiano Enrico Bernardi
foi o diretor do Instituto por um período curto. O Conservatório
Carlos Gomes, na sua primeira fase, data de 1895. Em 1897, passava a se denominar Instituto Carlos Gomes (de Decreto de 22 de
janeiro desse mesmo ano, do governador Paes de Carvalho). O
Instituto foi criado objetivando o ensino vocal, instrumental, composição, conforme se lê no Diário da Imprensa Oficial de 1899 no
Relatório do Secretário do Governo, Serzedelo Corrêa, de 28 de
fevereiro de 1899 (CLAVER FILHO, 1978: 20).
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A segunda fase do Conservatório Carlos Gomes (este é o nome
oficial que lhe foi dado) começou em 11 de julho de 1929, a partir
de solenidade no Teatro da Paz, presidida pelo governador Eurico
Vale. Tinha caráter particular, funcionando na Escola Noturna Cipriano
Santos, na rua Arcipreste Manuel Teodoro, então rua 142, dirigindo
o Conservatório, o professor, poeta e jornalista João Pereira de
Castro. Secundado pela sua mulher, compositora e maestrina
Antônia Rocha Pereira de Castro (irmã do Professor Raymundo
Avertano Barreto da Rocha, pai do advogado e poeta Octavio
Avertano; avó do escritor e jornalista Acyr Castro e tia-avó de
Nelly Cecília, orientadora deste Trabalho de Graduação. Todos, aliás, membros da Academia Paraense de Letras). O Conservatório
voltou com um elenco magistral de mestres: os maestros Ettore
Bosio, José Domingos Brandão e o professor Cininato Ferreira de
Sousa, além do casal Pereira de Castro. O Conservatório acabou
encampado pelo governo do Estado, em 1943, na segunda
interventoria federal, de Joaquim de Magalhães Cardoso Barata,
passando aos quadros administrativos da área de Educação e Ensino Oficiais do Estado, hoje é Fundação. Essa fase foi tão notável
quanto à primeira, formando instrumentistas e compositores musicais de enorme talento e aceitação crítica e popular1.
Fonte: MIRANDA
(1978).
Fig. 1. Maestro
Waldemar
Henrique.
1
Entrevista realizada com o escritor e jornalista Acyr Castro, em 2 outubro de 2003.
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1.1. Tecendo considerações sobre a vida e obra de Waldemar
Henrique
Waldemar Henrique da Costa Pereira nasceu em uma época
de transição musical paraense. Nasce filho de Thiago Joaquim Pereira (origem portuguesa) e Joana da Costa Pereira (origem indígena), em uma quarta-feira de Cinzas, no dia 15 de fevereiro de
1905, na residência de seus pais na rua Nova de Santana nº 39,
atual Manoel Barata (CLAVER FILHO, 1978: 20).
Foi batizado na igreja de Sant’Ana e perde a mãe 1 ano após
seu nascimento. Seu pai contrai novamente matrimônio com a irmã
de sua mãe, de nome Estefânia. Deste matrimônio nasceram cinco
filhos: Maria de Lourdes, Hilda, Idália Mara, Eunice e Edgard (CLAVER
FILHO, 1978: 17).
A família o levou ainda criança para Portugal, onde inicia o
Curso Primário na cidade do Porto. Em 1917, retorna ao Brasil,
mais precisamente a Belém, onde estudou em regime de internato
no colégio Pará-Amazonas, na Estrada de Nazaré, onde fez o Curso Ginasial.
Desde sua infância, sentiu-se atraído pela música. Tinha mania de bater no piano desde os 5 anos de idade. Estudou piano com
a professora Ana Andrade (Nicota), porém seu pai, quando tomou
conhecimento disso, mandou despedi-la. Apesar de seu pai não
querer que estudasse piano, Waldemar Henrique estudava clandestinamente com a professora Sinhá Moura Palha (CLAVER FILHO, 1978: 22).
Em 1924, Waldemar Henrique entrou para o Exército, servindo
no 26º Batalhão de Caçadores da 8ª Região Militar, era o recruta
445. Com a Revolução de 30, recusa-se a ficar de prontidão no
Quartel. Acabou preso por 3 meses. Quando foi solto, o pai já descrente do futuro do filho, arranjou-lhe um emprego no Banco Moreira
Gomes e Cia. Durante 4 anos afastou-se dos estudos musicais para
fazer a vontade do pai. No entanto, passou a freqüentar a vida social
de Belém, tocando em festas, concertos, teatros e serenatas, sendo
considerado pelos amigos como um grande pianista. Passa a se
dedicar ao estudo da música, sob a direção do Maestro Ettore Bosio
no Conservatório Carlos Gomes (CLAVER FILHO, 1978: 24).
Ainda para esse autor, no período de 1924 a 1933, Waldemar
Henrique escreveu as primeiras composições musicais, “Valsinha
do Marajó”, e, em seguida, “Felicidade” e “Minha Terra”. Assume a
direção da Rádio Club do Pará (PRC-5). Promove um recital sob a
denominação de “Noite da Canção Paraense”, quando são apresentadas ao público, suas obras para canto, piano e orquestra no
antigo Palace Teatro no dia de agosto de 1933 (GODINHO, 1989:
20). Com este acontecimento, abre-se a porta para o sucesso de
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sua carreira musical. Surge então a série de composições “Lendas
Amazônicas”, em meados dos anos 30, escritas por poetas entre os
quais se destacam Antônio Tavernard e o próprio Waldemar
Henrique. Em 1933, transfere-se para o Rio de Janeiro com o propósito de ser pianista e compositor. Depois de algum tempo, vai
para São Paulo, onde se torna grande amigo de Mário de Andrade
(1893-1945), sendo seu orientador nacionalista nos problemas de
harmonização dos temas folclóricos (CLAVER FILHO, 1978: 27).
Waldemar Henrique destacava-se no meio artístico pela valorização e exposição do folclore amazônico, o qual ainda era pouco conhecido para os grandes artistas nacionais. Torna-se amigo
do Maestro Heitor Villa-Lobos (1887-1959), grande compositor de
renome internacional, que o ajudou em sua carreira musical. Em
diversas turnês realizadas na Europa e Estados Unidos, Waldemar
Henrique contou com a participação das cantoras Idália Mara (sua
irmã) e Maria Aparecida, obtendo um êxito extraordinário em suas
apresentações.
O Maestro teve dois grandes obstáculos em sua vida: a miopia
que se acentuou com o passar do tempo e o artritismo nos dedos
que o impediu de tocar piano por algum tempo. Superando em
parte esses obstáculos, o Maestro compôs várias canções para filmes e peças teatrais, como a melodia-tema, em 1958, para o poema “Morte e Vida Severina” de João Cabral de Melo Neto (19201999) e outras.
Mesmo diante do sucesso nacional e internacional, o Maestro
Waldemar Henrique tinha saudade de sua terra natal. E, ao receber
um convite da Universidade Federal do Pará para colaborar com o
coral Ettore Bosio, decidiu retornar para Belém e, compôs o hino
dos 350 anos de Belém, com versos do Dr. Augusto Meira Filho.
Nesta cidade, recebeu diversos cargos importantes entre os quais
destaca-se a direção do Teatro da Paz dedicando-se de corpo e
alma ao mesmo.
A dedicação do Maestro na vida musical era tanta que ele não
teve tempo para a vida amorosa. Resolveu casar-se com a “Música”, a qual foi sua companheira fiel nos momentos de solidão. Seus
filhos foram suas composições, pelas quais teve muito amor2.
No ano de 1974, assiste ao lançamento oficial, na sede da
Escola de Samba “Quem São Eles”, da música de sua autoria com
versos do poeta João de Jesus Paes Loureiro “Marajó, Ilhas e Maravilhas”, escrita para o carnaval desse mesmo ano, no qual a Escola
obteve o 1º lugar. Em dezembro do ano seguinte, compõe a partitura do poema “Cobra Norato” de Raul Bopp (1898-1984).
Pelas contribuições prestadas à arte musical, recebeu diversas medalhas e prêmios: “Roque Pinto”, em 1959; “Olavo Bilac”
2
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(SEDEC) Pará, em 1968; “Paulino de Brito”, do Conselho Estadual
de Cultura-Pará, em 1970; do jornal O Liberal, o troféu designativo
de “Personalidade Liberal - 74” e outros.
Waldemar Henrique harmonizou melodias folclóricas de quase
todas as regiões do Brasil e algumas do folclore português. O compositor evoluiu em sua caminhada artística chegando a alcançar o
título de “Cantor da Amazônia”. Tomou posse na cadeira nº 7 da
Academia Paraense de Letras no dia 17 de dezembro de 1976, em
cerimônia presidida pelo Arcebispo Dom Alberto Ramos (CLAVER
FILHO, 1978: 62).
O cantor da Amazônia se integra em nossa terra, assumindo
sua Cadeira de Imortalidade. Não se pode deixar de dizer que ele
foi o ardoroso pesquisador de nossas riquezas lendárias, folclóricas e populares que, em suas mãos, como nas de um mestre do
Renascimento, se transforma moldurando e compondo suas canções no mais belo processo de criação musical, onde o artista soube captar seus segredos com eloqüência e poder criador (GODINHO,
1989: 41).
As canções mais famosas e melhores definidas são as da série
Lendas Amazônicas “Foi boto, Sinhá” e “Tamba-Tajá”, entre outras.
Segundo afirma seu ex-secretário particular, Sebastião
Godinho, que assessorou o Maestro durante os últimos 20 anos de
vida, diz que Waldemar Henrique teve o reconhecimento merecido
do povo paraense ainda com vida3.
No ano de 1995, Waldemar Henrique completou 90 anos e foi
saudado com recitais e exposições, como também recebeu homenagens na Revista “Asas da Palavra”. No dia 27 de março do mesmo, ano falece de parada cardíaca. O corpo do Maestro foi velado
no Teatro da Paz, um monumento que ele tanto honrou.
Waldemar Henrique deixou o legado de sua trajetória musical
como exemplo do verdadeiro amor e dedicação à arte poética e
musical, que se faz presente por meio de seus discípulos musicais
que transmitem a beleza e a riqueza de sua musicalidade.
Hoje, o Tajapanema chora no terreiro de saudade da partida
do seu criador; o Boto tenta seduzir novos artistas musicais; o
Uirapuru silencia a floresta com seu canto melodioso para adquirir
o respeito e a valorização que se deve ter diante da obra do Maestro Waldemar Henrique. O “Tamba-Tajá” demonstra o eterno amor
do poeta e é o exemplo vivo de sua imortalidade.
Diante dessas considerações, é bom lembrar-se as palavras
do Maestro Wilson Dias da Fonseca (“Isoca”) proferidas no seu
discurso de posse na Academia Paraense de Letras, quando este
passa a ser o sucessor do Maestro Waldemar Henrique:
Hoje, Waldemar Henrique está no Céu a com3
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por e a cantar no coro dos anjos, não mais
“Tamba-tajá”, “Boi-Bumbá”, “Matintapereira” ou
“Foi boto, Sinhá” acompanhados pelo seu indispensável piano, mas novos hinos divinos
acompanhados pelas trombetas e harpas celestes, louvando as Glórias do Senhor (Maestro
Isoca – Belém, 15 de setembro de 1995).
CAPÍTULO 2 - Amazônia: encantamento e miticismo
A Amazônia é considerada a região mais rica do Planeta, por
apresentar uma fauna e flora diversificada. Constitui também, uma
enorme variedade de mitos, lendas e crendices. O rio e a floresta
são as fontes de vida da região e sustentam grande parte do imaginário amazônico.
Os primeiros habitantes da região, os indígenas, procuravam
explicar a origem dos seres na Natureza, por meio dos corpos celestes, das plantas, dos animais, etc. Com isso, herda-se uma mitologia rica e tão interessante quanto à Mitologia Grega. O sobrenatural amazônico possui segredos que são presenciados pelos
caboclos como algo verdadeiro, pois, vivenciam esse mundo
fantasmagórico4. Eles percorrem as vias fluviais em suas canoas,
respeitam as noites de lua cheia, e se limitam a adentrarem em
alguns lugares por causa dos mistérios que envolvem a floresta.
Por isso, partindo do pressuposto da vivência do caboclo amazônida,
faz-se necessário conhecer o conceito de mito e lenda:
...Mito é uma interpretação de significado da
realidade por meio da imagem, tornando esta
realidade compreensível, porém não através
de conceitos e teorias científicas, mas por meio
de apelo a mundo imaginário de seres divinos
e semidivinos, de heróis historicamente
inexistentes, de criaturas e elementos fantástico (KRAUS & BARKOW, 1977: 447).
O mito pode ser entendido como alegorias empregadas pelos
antigos para revelarem ou perpetuarem verdades e conhecimentos, ou seja, seriam as entidades fantásticas, as invenções imaginadas pelo povo para fazer com que se explique algo irreal, sobrenatural que se manifesta na criação pela imaginação (PEREIRA,
1994: 28).
Enquanto a lenda é entendida, segundo CASCUDO (1988),
como:
Episódio heróico e sentimental com o elemento
maravilhoso ou sobre-humano, transmitido e
conservado na tradição oral popular, localizável
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Revista Nosso Pará. Nº04, de 1997.
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no espaço e no tempo (...) Conserva as quatro
características do conto popular: Antigüidade,
Persistência, Anonimato, Oralidade (CASCUDO,
1988: 435).
Histórias que o povo conta e que podem ser mudadas pela
imaginação popular e conseguem chamar atenção do ouvinte.
Diante dessa ótica, percebe-se que o miticismo deve estar
ligado à realidade cultural da sociedade, por este motivo torna-se
importante fazer a abordagem sobre a cultura: erudita, popular
amazônica e folclórica.
2.1. Breves considerações sobre cultura e folclore
A cultura resulta em tudo aquilo que o homem vem produzindo ao longo de sua história e está ligada à interação do homem
com o meio e com outros. Veja-se o que diz Caldas:
Uma cultura por outro lado é também um grupo organizado de padrões culturais, normas,
crenças, leis naturais, convenções entre outras
coisas, em constante processo de transformação (CALDAS, 1986: 14).
Essas peculiaridades definem parte da cultura no geral, mas é
necessário esclarecer-se os diferentes aspectos das referidas culturas, para que se possa conhecê-las melhor.
A cultura erudita é voltada para o formalismo: são os ensinos
da universidade dos tempos religiosos, dos conservatórios, etc., e
pertencem à classe mais privilegiada de cada país. Waldenyr Caldas faz a seguinte afirmação:
... é toda produção cultural, científica ou não,
dirigida à classe dominante e produzida por alguns membros que dela fazem parte. Tudo
aquilo que é considerado sofisticado, de “bom
gosto”, de “alto nível”, intelectualizado, enfim,
e também chamado de cultura erudita (CALDAS, 1986: 67).
Na cultura popular amazônica, não há o formalismo. Essa cultura é espontaneamente cultivada pelo povo e manifesta-se por
meio da tradição oral coletiva profana, culminando com a literatura
oral, como mostra o poeta João de Jesus Paes Loureiro: “Entendese aqui por uma cultura amazônica aquela que tem sua origem ou
está influenciada em primeira instância pela cultura do caboclo”
(LOUREIRO, 2001: 39).
A cultura folclórica é extremamente antiga, sem identificação
de autores, revelando conhecimentos tradicionais de uma sociedade em uma fase de sua história cultural, representa uma forma de
expressão social, e que a individualidade criadora está absorvida
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por sua expressão coletiva. Sendo assim, é bom lembrar as palavras de Câmara Cascudo a respeito do folclore:
É a cultura do popular, tornada normativa pela
tradição (...) O folclore estuda solução popular
na vida em sociedade(...), aberta à transmissão oral e coletiva,estórias e acessos às técnicas habituais do grupo, destinada à manutenção dos uso e costumes no plano do convívio
diário (CASCUDO, 1988: 334-335).
Os temas folclóricos foram utilizados na Literatura e na Música
desde a Idade Média, passando pelo Renascimento, herdeiro das
tradições clássicas, que também se valeu das tradições populares
para promover o enriquecimento da cultura. O Romantismo consagrou a forma popular, ou seja, os valores essencialmente do povo,
transformando a criação anônima em contornos de cultura e, às
vezes, de cultura erudita5. Nesse contexto, Waldemar Henrique utiliza a seguinte afirmação: “O povo é mais sábio que o erudito. O povo
tem a solução Imediata, o erudito Necessita de anos de estudos6”.
Vale ressaltar que Waldemar Henrique trabalhou mais de meio
século pela Música Popular Brasileira, recorrendo quase sempre
aos temas da tradição folclórica, porém não pode ser confundido
com o “folclore”. Resgatou a poesia da palavra cantada, já que no
Brasil há uma forte tradição de oralidade regionalmente diversificada
como: cantadores de feiras, repentistas, violeiros... Histórias de
nossa infância: boto, uirapuru, cobra grande, etc. São formas populares de se produzir a palavra poética falada:
Foi mergulhando nas fontes dos rios amazônicos e percorrendo os trajetos da exuberante floresta amazônica, que Waldemar
Henrique foi buscar a essência de sua musicalidade em grande
parte de suas composições. Suas obras são misturas de idéias,
imaginação, fantasia, emoção que se direciona ao fictício. Desta
forma, o Maestro procurou fixar a expressão genuinamente popular e não erudita em suas composições, apesar de ter formação
erudita. Para que haja uma melhor compreensão de sua obra, é
necessário que se tenha um entendimento de todos esses aspectos
inerentes à cultura e ao folclore (GODINHO, 1978: 80).
Nesta pesquisa, enfatizar-se-ão duas composições da série
“Lendas Amazônicas”: “Foi Boto, Sinhá” e “Tamba-Tajá”.
CAPÍTULO 3 - Amor: vivência que se manifesta de várias maneiras
O amor é fundamental para o homem e para a sociedade.
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Sem amor, o ser humano torna-se árido e incapaz de encontrar-se
com a vida e de envolver-se com os outros (CORDI, 1999: 71).
O homem é renovado quando dá amor em qualquer setor de
sua vida – na família, no trabalho, na comunidade e a si mesmo.
Para se preencher a vida de amor é necessário que, a cada dia,
coloque-se mais desse sentimento dentro de nós, pois, o verdadeiro amor é aquele que tudo dá sem nada esperar em troca.
Pode-se representar Waldemar Henrique como símbolo desse
amor/doador, pois, amou a vida, a Natureza, a família e, principalmente, a Música. Foi afastado de sua terra ainda na infância, mas levou
consigo o amor pela sua terra natal. Esse amor é comprovado pelo
Maestro em uma entrevista concedida ao escritor João Carlos Pereira:
Eu tenho impressão que eu fui mais amazônida
por causa de ter sido sacrificado em criança,
levado para longe, e quando vim, encontrei a
terra como se eu encontrasse a minha mãe,
diga-se. Foi essa força do meu encantamento
com a terra dos meus avós, da minha mãe,
que me deu talvez essa grande afinidade com
a Amazônia (PEREIRA, 1984: 91).
O retorno de Waldemar Henrique à sua terra também o aproximou do mundo mítico da Amazônia. Esse encantamento com a
Natureza, muito possivelmente, inspirou o Maestro a criar a sua
obra musical.
A música de Waldemar Henrique retrata os temas regionais, a
linguagem do caboclo amazônida, os ritmos melódicos, as lendas e
as crendices. Utilizou esses recursos para enriquecer as suas composições, valorizando a cultura popular amazônica.
No contexto literário há exemplos de diversos poetas que, estando ausente de sua terra natal, demonstraram o verdadeiro amor
à mesma, por meio de seus poemas. O poema do romântico Gonçalves Dias (1823-1864), intitulado “Canção do Exílio”, exalta e
prova por meio da fauna e flora, que só encontrava prazer de viver
em sua terra querida, o Maranhão. Na prosa, destaca-se
“Macunaíma”, de Mário de Andrade, (1893-1945), obra na qual o
autor revela o amor a sua terra por meio das lendas, provérbios,
mitos e da forte presença do indígena.
Ao som das notas do piano, violino, canto e poesia é que
Waldemar Henrique compõe a sua criação artística. Com isso, dá a
sua imensa contribuição cultural permitindo aos seus pósteros a
oportunidade de conhecerem as belezas musicais no contexto amazônico. Partindo dessas considerações, analisar-se-á o sentimento
de amor que envolve os poemas em estudo.
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3.1. O amor: um pouco de sua história
O amor é um sentimento universal que está presente na vida
humana desde os primórdios da história. Todo ser humano independente de raça, credo ou classe social, necessita de alguém
para compartilhar o amor e realizar-se como pessoa. Para obterse um conhecimento acerca do amor, foi necessário observar-se
um pouco sobre a narrativa da Bíblia sobre a criação humana, bem
como a Mitologia Grega.
Na Mitologia Grega percebe-se, no livro “O Banquete”, considerado um dos mais belos diálogos de Platão, que diversos oradores discutiam sobre o que consideraram ser o Amor, entre esses,
destacou-se Aristófanes que relatou o mito Andrógino (metade
masculino e metade feminino), um ser composto, não procriava e
que foram separados por Zeus para alcançarem a perfeição humana (ARANHA, 1986: 352)
... é então de há tanto tempo que o amor de
um pelo outro está implantado nos homens,
restaurador da nossa antiga Natureza, em sua
tentativa de fazer um só de dois e de curar a
Natureza humana. Cada um de nós, portanto,
é uma téssera complementar de um homem,
porque cortado como os linguados, de um só
em dois; e procura, então, cada um o seu próprio complemento (SOUZA, 1970: 191).
A partir desse diálogo percebe-se que o homem sente a necessidade de unir-se a uma mulher para completar-se como
pessoa. O desvinculamento do cordão umbilical é importante
para que reciprocidade amorosa seja concretizada.
O filósofo Sócrates (470-399 a. C.) também relata o nascimento do amor Eros perante a junção de Poros (Riqueza) e Penia
(Pobreza). “O seu significado reside na ânsia de sair de uma situação de penúria para uma de riqueza; é a oscilação entre o possuir
e o não possuir” (ARANHA, 1966: 353).
O amor nasce da contrariedade entre o homem (riqueza) e a
mulher (pobreza). Desta forma, verifica-se a complexidade que há
em conceituar o amor em sua essência. O homem está em constante dualidade, alma superior sobre a inferior. Assim, estará em busca
de sua metade. Na vertente da narrativa bíblica, a seguir, lê-se:
“Então, o Senhor Deus fez cair pesado sono
sobre o homem, e este adormeceu; tomou uma
das suas costelas e fechou o lugar com a carne.
E a costela que Deus tomara ao homem trans-
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formou-a em uma mulher e lha trouxe.”
E disse o homem
Esta, afinal, é osso dos meus ossos e carne da
minha carne chamar-se-á varoa, porque do
varão foi tomada.
Por isso, deixa o homem pa i e mãe e se
une à sua mulher, tornando-se os dois uma só
carne”.
(Gn. 2: 21 a 24).
Segundo o texto bíblico, o primeiro amor surge com o nascimento da mulher. O homem vivia no paraíso solitário, triste,
etc. Deus retirou
uma costela do homem para dar vida a
mulher. Constata-se a dependência que ambos têm de viverem
unidos pelo laço do amor, ou seja, sentem a necessidade de completarem-se para realizarem-se como pessoa.
Nas narrativas abordadas, a criação do amor “Eros” origina-se
com a mutilação do corpo humano. No entanto, faz-se jus a
ânsia que cada ser humano tem o desejo de encontrar a sua
metade.
3.2. O amor no poema musicado “Foi Boto, Sinhá”
Foi Boto, Sinhá!
(Antônio Tavernard)
Tajá-panema chorou no terreiro (bis)
E a Virgem Morena fugiu no costeiro
Foi boto, sinhá
Foi boto, sinhô
Que veio tentá
E a moça levou
No tar dançará
Aquele doutô
Foi boto, sinhá
Foi boto, sinhô!...
Tajá-panema se pôs a chorá (bis)
Quem tem filha moça é bom vigiá!
O boto não dorme
No fundo do rio
Seu dom é enorme
Quem quer que o viu
Que diga, que informe
Se lhe resistiu
O boto não dorme
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Fonte: http//www.visitamazonas.com.Br/serie_memória_website/ensaios/21_boto.htm.
Fig. 2. O Boto-vermelho.
No fundo do rio...
O Boto-vermelho desfilando pelos rios amazônicos, com seu
nadar ondeante.
Waldemar Henrique utilizou-se da arte literária do poeta Antônio Tavernard, que em 1933 escreveu e, entrelaçou-as em suas
composições para direcionar um novo olhar a sua arte musical.
O “Artista da Música” apropriou-se de sapiência e criatividade
para demonstrar que a linguagem musical é tão importante quanto
à linguagem escrita. Sobre isto, GALEÂO (1997) diz que: “A música
suprime o espaço. Está-se nela e ela em nós”. Nota-se que, a partir
da junção letra/música, há um lirismo expresso no poema de forma melódica e romântica.
Encontram-se, no poema em estudo, partes principais da lenda do Boto de forma poética, pois integra o onírico e o concreto
assumindo assim uma feição especial. Neste sentido, Adélia Menezes
faz a seguinte afirmação: “A arte é um espaço onde se permite ao
inconsciente aflorar” (MENEZES, 1995: 13).
Ainda é oportuno marcar a presença da linguagem cabocla,
que é a principal característica do falar interiorano, por meio das
expressões: “sinhá”, “sinhô”, “tentá”, “dançará”, “doutô”, “chorá”,
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“vigiá”, intensificando a sonoridade do poema perante as rimas. A
leitura silenciosa do mesmo nos remete a sua musicalidade, enriquecendo assim o contexto literário.
Diante dessa ótica, é necessário se ter conhecimentos mais
detalhados a respeito deste cetáceo para se entender o que há nas
entrelinhas do poema e por que esse personagem, sob forma de
encantamento, desperta tantos amores nas caboclas amazônidas.
O Boto é um mamífero cetáceo, da família dos platamistídeos,
mas que muitos cientistas o inclui como pertencente à família dos
delfinídeos, de água doce. Na Amazônia, existem diversas variedades das quais vale ressaltar a espécie do Boto-vermelho (Inia
geoffroyensis), por fazer parte do objeto em estudo. É conhecido
também como Boto-cor-de-rosa.
Esse cetáceo, em geral, atinge de 2 a 3 metros de comprimento, pesando até 130 quilos, alimenta-se exclusivamente de
peixe. Sua cabeça é arredondada, na qual possui um orifício por
onde respira e expele água. Possui um focinho comprido e dentes
pontiagudos. Seu órgão sexual é maior do que da fêmea, funcionando como pênis, o qual é verrúmico como espécie caprina. É
conhecido como o sedutor das moças e mulheres casadas (MARTINS,
1992: 171-172).
Segundo SIMÕES (2002: 164), ‘...seu nado ondeante, subindo
e descendo, a flor d’água, dá a impressão de movimentos sexuais”.
Segundo (PEREIRA, 1994: 53 – 55), a lenda menciona que:
“O Boto é o grande sedutor dos rios da Amazônia, transforma-se em um belo rapaz todo vestido de branco e portando um chapéu que é
para esconder o furo no alto da cabeça, por
onde respira. Percorre as vilas e povoados ribeirinhos, freqüentando festas, onde seduz as
moças quase sempre as engravidando.
Para se livrarem da influência do animal, os caboclos vão buscar ajuda na magia, apelando para os curandeiros e pajés. Ele é o
encantador das águas e pai de todos os filhos cuja paternidade é
desconhecida; deu origem à deliciosa expressão regionalista: “Foi
o boto, sinhá!”. A credibilidade no mito é tamanha que há casos em
que pescadores perseguem e matam o pobre cetáceo por julgá-lo
responsável pela gravidez indesejada de suas filhas ou mulheres”.
O Boto no processo da metamorfose, subindo a ponte para as
festas interioranas.
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Fonte: Norberto ferreira.
Fig. 4. O Boto seduzindo a moça
Fonte: Norberto Ferreira.
Fig. 3. O processo da metamorfose do Boto.
As noites de lua cheia, contribuem para as conquistas amorosas do Boto-homem.
Após a sedução amorosa, a moça fica solitária e esperançosa
para reencontrar o seu conquistador.
Vale ressaltar que a deslumbrante figura aparece nas noites
Fonte: Norberto
Ferreira.
Fig. 5. A mlher grávida do Boto.
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enluaradas, intensificando assim o ambiente romântico para a sedução amorosa. Nessa noite, ouve-se o choro do tajá-panema, planta
da beira dos rios, avisando a população que o mal se aproxima.
Na busca de um melhor entendimento sobre o poema “Foi
boto, Sinhá”, torna-se imprescindível fazer-se algumas análises dos
versos do mesmo. Nos primeiros versos:
“Tajá-panema chorou no terreiro
e a Virgem Morena fugiu no costeiro”.
Percebe-se o choro do “tajá-panema”, lamentando por não
ter conseguido proteger a donzela dos encantos do sedutor; como
também, a expressão “Virgem Morena” enfatiza a preferência do
boto pelas moças ribeirinhas devido à ingenuidade, a falta de experiência das mesmas.
Em relação à cultura popular Amazônica, o Boto transforma-se em um belo rapaz, ou seja, passa pelo processo de metamorfose em busca do prazer. Esse ato é que se estrutura esteticamente como mito, há o momento da personificação da alegoria do
amor. Nos versos:
“Foi boto, sinhá. Foi boto, sinhô
Que veio tentá. E a moça levou
No tar dançará. Aquele doutô”.
Nota-se na Natureza que há força de atração e repulsão,
nesta vertente, predomina a força de atração, pois, o Boto-homem
é um sedutor. Atrai as moças por meio de sua beleza e olhar; podese associar sua beleza a Apolo, o deus da Beleza, seu olhar também tem poder de atrair qualquer mulher independente do estado
civil. Segundo o Dicionário de Símbolos: “Olho” – janela para o
mundo e ao mesmo tempo espelho da alma. Sempre se atribui às
representações de olhos um efeito mágico e protetor (KRAUSS &
BARKOW, 1997: 497).
Há correspondência na troca de olhares na relação Boto/Mulher, a potência do olhar do Boto é como um poderoso amuleto de
sedução, ou seja, ele a atrai somente com o impulso de amar e ser
amado, sem se preocupar com as conseqüências dessa relação
amorosa (LOUREIRO, 2001)
Nos versos:
“Foi boto, sinhá
Foi boto, sinhô!...”
O paralelismo sintático presenciado nos versos acima enfatiza
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o alerta a “sinhá” e ao “sinhô” sobre os males causados pelo Boto a
“Virgem Morena”, sendo assim, a moça atribui as conseqüências do
ato amoroso exclusivamente ao Boto-homem.
“Tajá-panema se pôs a chora
Quem tem filha moça é bom vigia!”
Detecta-se, pela segunda vez, a tristeza da “tajá-panema”,
devido não ter conseguido livrar a moça do encantamento do
“namorador”, pois a relação amorosa foi concretizada, resta-lhe
apenas alertar aos pais das outras moças sobre o perigo que o
mesmo pode causar sob efeito de encantamento.
Nesse contexto, verifica-se que a mulher não tem conhecimento desse efeito mágico do Boto, pois, esse advém de seu mundo sobrenatural, por isso entrega-se a relação amorosa de forma
normal entre humanos. Outro fato importante é que o Boto-homem
fecunda a mulher no período menstrual. De acordo com a Ciência,
não é possível haver fecundação nesse período. Há um paradoxo
entre a Ciência e a sobrenaturalidade. Na maioria das culturas sociais, a relação sexual é interrompida no período das regras. A
Bíblia, no Antigo Testamento, intitulava a mulher como “imunda” e
era proibida de manter relações com o seu cônjuge, outras que
tinham filhos eram submetidas a determinados ritos de purificação
e mantidas incomunicáveis. Segundo o Dicionário de Símbolos:
Sangue. Muitos povos o consideram como sede
da alma e da vida (...) O sangue que sai do
corpo provoca horror: é sinal de perda da força vital. (...) a força de união que lhe é atribuída (parentesco de sangue, irmandade de sangue) também atua entre o ser humano e Deus
(KRAUSS & BARKOW, 1997: 628).
O “encantador” é atraído pelo cheiro do sangue, apropria-se
do período em que a mulher encontra-se frágil, para revigorar suas
forças, ou seja, vale-se da perda da força vital feminina para garantir-lhe o prazer, a renovação da vida. Nota-se a antítese morte/
vida, o sangue que é considerado a fonte de vida em qualquer ser
vivo, em sua ausência causa fraqueza e morte.
Perante a sociedade, o nascimento de um filho é fruto de uma
junção matrimonial e quando este acontece com uma mulher solteira a mesma sofre preconceitos. Nos dias atuais, esta visão está
sendo encarada com mais aceitação devido ao descompromisso do
homem diante da paternidade. A lenda quebra a rígida estrutura
moral de punição da mulher solteira ter filhos.
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Na seguinte estrofe:
O boto não dorme
No fundo do rio
Seu dom é enorme
Quem quer que o viu.
Que diga, que informe
Se lhe resistiu
O boto não dorme
No fundo do rio...
Verifica-se, em sua Natureza híbrida, que o Boto encontra-se
como “baixo” e “alto”. É “baixo” quando se encontra em seu habitat,
ou seja, é o cetáceo que vive no fundo do rio. Na terra, é “alto” à
medida que assume a posição de homem (LOUREIRO, 2001). Nesse estágio é que se nota a contradição do seu “repousar”, dorme
com as moças fora do habitat natural; é um “aparentador” porque
vive um esteriótipo marcado pelo tempo de seu encantamento.
Nenhuma mulher resiste sua sedução, ou melhor, seu “dom” porque ele é tentador e persuasivo a envolvimentos amorosos. Sobre
esta sedução, Artur da Távola faz a seguinte afirmação: “O prazer
é o mais literário dos sentimentos. Está acima de qualquer sistema” (TÁVOLA, 1983: 49).
Nesta análise encontra-se o Amor Erótico. O “namorador” das
águas amazônicas ultrapassa as fronteiras para viver aventuras
amorosas em seu mundo telúrico. A respeito desse amor, a opinião
de Paes Loureiro é a seguinte:
O amor do Boto é um amor de perdição. Mas,
ao mesmo tempo, transparece num sentido de
amor mitificado – o amor dos encantados intemporal, que não tem antes nem depois.
(LOUREIRO, 2001: 218).
No entanto, a relação Boto/Mulher é uma “híbris” estetizada,
revela um amor repleto de miticismo. Apesar de haver
compartilhamento no ato sexual, verifica-se que há uma contrariedade dos seres irracional/racional. No plano da irracionalidade o
Boto/Homem é um animal que instintivamente só quer satisfazer o
seu gozo sexual. Por outro lado, a mulher ciente de seu desejo de
prazer, acaba entregando-se a esta relação. Nessa linha de pensamento, AMADO nos diz:
O amor erótico é o anseio de fusão completa,
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união com uma outra pessoa.É, por sua própria Natureza, exclusiva e não universal; é também, talvez, a mais enganosa forma de amor
que existe (AMADO;1966: 61).
Percebe-se que diante da Natureza biológica, os seres vivos
estão em constante busca dos princípios da polaridade macho e
fêmea para se completarem.
Por sua vez, a figura do personagem em estudo para a mulher
é o “Príncipe Encantado”, que veio com o destino de amá-la e fazêla feliz para sempre. Vive no mundo das aparências, considerado
por Platão como “mundo sensível”, passiva à realidade. Quando se
depara com a realidade, “mundo inteligível”, encontra-se solitária e
desamparada restando-lhe a dor e o remorso e, em alguns casos
esse abandono pode causar a morte. “É assim que Eros se torna
doente, e a ele se sobrepõe Tanatos (morte). O sexo passa a ser
visto em uma relação ambígua de atração e repulsa, desejo e culpa” (ARANHA, 1986: 361).
Como já foi citado, a busca do desejo de amar parte da polaridade macho/fêmea, outra pessoa, em novo estranho. Assim, a
pessoa estranha passa a ser “íntima” e as experiências de uma
relação frustrada vão se multiplicando. “Essas ilusões são
grandemente incentivadas pelo caráter enganador do desejo sexual” (AMADO, 1966: 62).
Nesse percurso, é oportuno marcar que além da fama de
“namorador”, na magia ou pajelança, os órgãos sexuais tanto do
macho quanto da fêmea, possuem propriedades afrodisíacas extraordinárias e podem ser facilmente encontradas no mercado de
ervas do Ver-o-Peso, em Belém. Também nessas barracas
especializadas, Pode-se comprar os olhos do boto, que possuem
qualidades talismãnicas excepcionais quando preparados por esses especialistas (PEREIRA, 1994: 55). A semelhança entre os
órgãos genitais humanos e dos botos torna verossímil a experiência sexual que o folclore insistentemente relata e tem contribuído
para intensificar o simbolismo do mito.
Segundo CASCUDO: “O olho do boto seco é um amuleto de
incrível eficácia para o amor” (CASCUDO, 1988: 41).
Há muitas histórias sobre o boto, mas seja qual for, contata-se
que esse cetáceo, sob efeito mágico, é atrativo e sedutor porque
consegue proporcionar às mulheres momentos de felicidades.
3.3. O amor no poema musicado “Tamba-Tajá”
Tamba-Tajá
(Waldemar Henrique)
Tamba-tajá
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Me faz feliz,
Que o meu amor me queira bem,
Que o meu amor seja só meu,
De mais ninguém,
Que seja meu,
Todinho meu,
De mais ninguém...
Tamba-tajá
Me faz feliz,
Assim o índio carregou sua “macuxi”
Para o roçado, para a guerra, para a morte...
Assim carregue nosso amor a boa sorte...
Tamba-tajá
Tamba-tajá...
Tamba-tajá
Me faz feliz,
Que mais ninguém possa beijar o que beijei,
Que mais ninguém escute aquilo que escutei
Nem possa olhar dentro dos olhos que olhei
Tamba-tajá
Tamba-tajá...
O exemplo de amor do casal indígena expressa o verdadeiro
romantismo que ambos vivenciavam.
Esta canção amazônica foi composta pelo Maestro Waldemar
Henrique que se encontrava no Rio de Janeiro. Corria o ano de
1934, quando o Maestro ouviu de seu amigo e escritor Nunes Pereira um relato sobre a lenda do Tamba-Tajá. Ficando encantado com
a mesma, o Maestro fez um elo de verdadeira unidade no âmbito
poético/musical, sendo um artífice na composição da mesma.
Percorrendo as trilhas do poema em estudo, descobri-se que
há uma completa harmonia de tom e mensagem, constituindo assim o lirismo expresso no mesmo. “Amor e canção conseguem nos
fundir” (GALEÃO, 1997: 66). Essa citação comprova a intenção do
compositor. Qualquer apreciador torna-se sensibilizado ao ouvir esta
canção amazônica.
Adentrar-se-á na tessitura do poema para descobrir sua mensagem romântica. Entretanto, faz-se necessário primeiramente se
conhecer a planta “tamba-tajá”. O nome da referida planta originase do tupi tábata’ya; é uma erva lactescente (que secreta suco
leitoso) e escandente (trepadeira verticalizada) das matas úmidas.
Planta de folhas triangulares, de cor verde escura, trazendo em
seu verso uma outra folha de tamanho reduzido cujo formato se
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Fonte: Norberto Ferreira.
Fig. 6. O eterno amor do casal indígena.
assemelha ao órgão genital feminino. Segundo CASCUDO: Tamba
significa no idioma tupi, a concha e a vulva feminina; Tajá é uma
planta amazônica. (CASCUDO, 1986: 434).
Segundo PEREIRA (1967: 70-72), a narrativa lendária “Tambatajá” (versão taulipangue) menciona que:
“Uma índia macuxi fugiu da maloca bonita, no rio Surumu, com o
filho de um tuxaua taulipangue.
Os pais e parentes dela ficaram zangados. E os pais e parentes dele,
também.
Mas a moça macuxi e o moço taulipangue não se importaram com a
zanga dos velhos, porque se queriam muito na força do seu desejo.
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E foram morar nas bandas da Serra da Lua, do outro lado do rio
Tucutu, onde viviam uns parentes dele.
E nunca se separaram.
Se ele ia pescar, ela ia também.
Se ela ia banhar-se, ele ia também.
Se ele ia caçar, ela ia também.
Se ele ia para a roça, ela ia também.
Nove meses depois a índia sentiu que ia ser mãe.
Assim, à hora em que o sol de verão obrigava toda a gente (e
mesmo os animais) a repousar na sombra, ela se encaminhou para
a beira do rio Tucutu.
E lá onde encontrou um chão bem limpo, debaixo das ramas do
ingá-i, pariu um menino.
O corpo dele era engelhado como a pele e roxo como a tinta do
jenipapo.
E, enquanto mirava a criança com tristeza e lhe ia tirando as peles
do corpinho, viu que nem mexia os braços e nem mexia as pernas.
Sentou-se, por isso, junto à água e nela mergulhou três vezes. E
três vezes lhe deu leves palmadas nas costas e nas pernas para a
animar.
Mas a criança nem se mexeu e nem chorou. E arquejava. E todo o
seu corpo tremia.
A mulher tentou levantar-se. Doíam-lhe os quadris e suas pernas
não lhe sustentavam o corpo.
Então gritou, gritou, gritou.
E parecia que o vento dos campos, soprando sobre as serras e os
rios, não deixaria nunca, nunca, que alguém a ouvisse.
Mas as mulheres e os curumins que vinham banhar-se a ouviram.
E foram ao rumo daqueles gritos.
A índia estava ali. Tinha um menino morto nos braços. E não podia
levantar-se.
Um dos curumins foi chamar o companheiro da índia. Vieram muitos
homens com ele.
Uma das velhas, chamando outras, havia cochichado:
- Essa não respeitou os conselhos que lhe deram quando enluou pela
primeira vez. E a zanga dos pais dela a ensaruou.
O homem tirou a criança dos braços da companheira e a entregou à
velha que estava cochichando.
Levantou-a da beira do rio e a levou para casa.
Ela chorava baixinho e pediu que lhe devolvessem o filho.
E assim continuou, deitada na rede que tecera. Em um canto da maloca
as velhas estavam passando urucu e carajuru no cadáver da criança.
No dia seguinte as mesmas velhas embrulharam aquele cadáver em
uma esteira.
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E o enterraram no campo, pouco distante da maloca, sob um
tapirizinho que elas mesmas levantaram.
No outro dia veio do lado inglês um velho pajé.
Dançou e cantou, até à noite, em redor da rede da índia. Soprou
fumaça de cigarro sobre o corpo dela. Bateu folha nas suas pernas,
nos seus braços e quadris.
E voltou para o lado inglês, dizendo que a mulher, noutro dia, se
levantaria sozinha.
A mulher, porém, nunca mais pôde andar.
Então (como nos primeiros dias em que ambos tinham começado a
viver juntos) o homem passou a levar a paralítica por toda a parte.
Se ia caçar, levava a mulher também.
Se ia pescar, levava a mulher também.
Se ia para a roça, levava a mulher também.
Um dia saíram pelo campo comendo mangaba e muruci. O homem
a levava às costas.
O sol foi embora. Veio a lua. Veio o sol. Depois veio a lua. E assim
aconteceu durante muitos dias.
Muita gente já andava à procura deles. Andava daqui, andava dali,
no rastro do peréquêté do homem.
E só depois de muitos, muitos dias, encontraram o arco, as flechas
e o peréquêté do homem, a tanga, o panan-panan, os brincos e as
pulseiras da índia.
Mas, ao redor dessas coisas, encontraram também moitas de um
tajá, de um verde brilhante, que não conheciam.
Essa planta, que é o Tamba-tajá, nascida do corpo dos índios amantes tem nas folhas uma reprodução vegetal do sexo da mulher e no
talo da folha o sexo do homem.”
Partindo desse pressuposto, torna-se mais compreensiva a
análise do poema em estudo. A primeira estrofe menciona:
Tamba-tajá
me faz feliz,
que o meu amor me queira bem,
que o meu amor seja só meu,
de mais ninguém,
que seja meu,
todinho meu,
de mais ninguém...
O casal Macuxi assumiu um pacto de amor fidelíssimo. Havia
um envolvimento amoroso de bem querer, de carinho e de exclusividade expresso nos versos: “que o meu amor seja só meu / de
mais ninguém / todinho meu,”. Os índios amavam-se tanto que não
conseguiam viver separados. “Só conjugavam um verbo totalizante:
amar – e sempre na primeira pessoa do plural do indicativo: Nós
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amamos” (LOUREIRO, 2001: 278).
Na segunda estrofe, verifica-se a reciprocidade do amor do
casal, como:
Tamba-tajá
me faz feliz,
assim o índio carregou sua “macuxi”
para o roçado, para a guerra, para a morte...
assim carregue nosso amor a boa sorte....
Tamba-tajá
Tamba-tajá...
De acordo com a lenda, a índia fica paraplégica. Mesmo diante
de sua enfermidade o índio permaneceu amando-a e mantendo
cuidados redobrados para com a mesma. É bom lembrar-se as
palavras de Cassiano: “O amor é uma força de aproximação, união,
envolvimento e responsabilidade” (CORDI, 1999: 72). Os amantes
tornaram-se uma unidade. Comprova-se esta afirmação nos versos: “assim o índio carregou sua macuxi / para o roçado, para a
guerra, para a morte...”. Eles compartilhavam juntos dos momentos de alegria, tristeza..., mantinham um elo de comunicação fiel.
Ainda nessa estrofe percebe-se que o casal entregou o amor
“a boa sorte”; o destino é que traçará a vida amorosa do mesmo, o
importante foi viver o momento presente. A expressão “TambaTajá” é intensificada no poema para demonstrar que o desejo de
querer um ao outro é prioritário.
Observa-se na terceira estrofe que:
Tamba-tajá
me faz feliz
que mais ninguém possa beijar o que beijei,
que mais ninguém escute aquilo que escutei
nem possa olhar dentro dos olhos que olhei
Tamba-tajá
Tamba-tajá...
As imagens de alta intensidade sensorial convocam poderosamente os sentidos por meio dos verbos: “beijar”, “escutar” e “olhar”,
para expressar o envolvimento amoroso do casal indígena e que a
união “um-no-outro” não pode ser desfeita, pois é somente a índia
que contém a receita para fazer o índio feliz.
Segundo a narrativa lendária, há o nascimento da planta
“Tamba-Tajá” no local onde foi encontrado os objetos de uso pessoal do casal.. A união das folhas simboliza o grande amor existente entre ambos.
Enveredando-nos na tessitura do poema “Tamba-tajá” detec-
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ta-se o Amor Romântico. A união do casal indígena é recíproca.
Foram unidos segundo a criação do ser humano, no Gênesis bíblico, homem e mulher para se completar.
Por conseguinte, verifica-se que havia um pleno envolvimento
sentimental de sublimação da mulher amada e ao mesmo tempo
de relacionamento erótico, isto é, alma e carne. Não conseguiam
separar-se porque o amor que os unia era mais forte.
O amor nos faz respeitar a pessoa como um
todo, um “self” individual, o que significa que
tanto aceitamos o lado negativo quanto o positivo, tanto as imperfeições quanto as qualidades admiráveis (TRICCA, 1987: 255-256).
Ambos compartilhavam do mesmo mundo e, para vencer as
barreiras cotidianas e preconceitos, mantinham o amor como o
centro das soluções.
Segundo a Bíblia, a união de um casal é até que a morte os
separe, a partir daí o homem está livre para contrair novas núpcias, ou melhor, dá a esperança de ambos viverem uma nova experiência amorosa. Na vertente lendária foi contraditório, venceram
a própria morte. O amor que sentiam foi metamorfoseado em Natureza, dessa união surgiu a planta “tamba-tajá”. Em um outro olhar
cultural, o mito Andrógino, citado nesta pesquisa, enquadra-se após
a morte do casal como na ótica lendária. Veja o que menciona Paes
Loureiro sobre o assunto:
É a lenda do amor que não morre, que violenta
a “hybris” natural quando transubstancia o humano em vegetal afim de que ele não morra,
perenizando sua vida por um incessante nascer de novo, um vir incessantemente à luz
(LOUREIRO, 2001:277).
O amor dos índios convertido em Natureza ultrapassa a Lei
Divina vida/morte, revelando a encarnação do amor Erótico expresso na junção das folhas da “tamba-tajá”, como também o desejo do casal de serem únicos.
Na mesma linha de estudo, a planta tamba-tajá contém
uma folha larga e da ponta inferior brota outra folhinha meio
retorcida muito semelhante ao órgão genital feminino, o talo que
se localiza bem no ponto de intercessão dessas folhas representaria o sexo masculino (LOUREIRO, 2001). No entanto, tem-se a folha maior e mais forte representando o índio tuxaua e a menor
mais frágil e delicada, a índia macuxi, simbolizando a relação erótica do homem sobre a mulher.
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Vale ressaltar que no exemplo do casal indígena, o amor se
nutria de todos os ingredientes básicos para solidificar a união:
carinho, diálogo, respeito, preocupação e reciprocidade.
Dessa forma, verifica-se que o constante nascer da tambatajá em seu habitat natural estará sob os cuidados do mesmo, pois
no mundo vegetal a força atrativa explode nas cores e perfumes
das flores, preparando-se para geração dos frutos e sementes,
simbolizando a continuidade do amor no exemplo lendário.
O caboclo amazônida costuma cultivar a planta tamba-tajá, atribuindo-lhe poderes místicos. CASCUDO escreve que esta planta é: “irresistível
para fortalecer os laços sexuais, despertar a atenção amorosa e tornar
indispensável a companhia desejada” (CASCUDO, 1988: 734).
A junção das duas folhas da planta tamba-tajá simboliza o
grande amor do casal indígena, convertido em Natureza.
CONSIERAÇÕES FINAIS
No decorrer deste trabalho de pesquisa, teve-se a oportunidade de conhecer alguns fatos históricos que influenciaram a arte
cultural belenense, bem como a vida do Maestro Waldemar Henrique
da Costa Pereira e parte de sua obra.
Observa-se o laço afetivo do Maestro com a cultura popular
amazônica, a qual proporcionou-lhe a inspiração para compor a
sua obra poética/musical, possibilitando-lhe a divulgação da arte
cultural amazônica no âmbito nacional e internacional.
Verifica-se que os diferentes tipos de cultura abordados neste
estudo, são de suma importância para que cada indivíduo conheça
as variedades lingüísticas e culturais em que estão inseridos e possam, assim , valoriza-los como cidadãos na sociedade.
Diante dessa vertente, teve-se o privilégio de descobrir a beleza poética e mítica nos poemas musicados “Foi Boto, Sinhá” e
“Tamba-Tajá”, de Waldemar Henrique, por meio do sentimento do
Amor, gerado com a força da Natureza e com tom de
sobrenaturalidade, na qual passa-se a entender o lado romântico e
oculto dos poemas perante a origem de cada ser que compõe esse
universo encantador da Amazônia.
Vale ressaltar que, no poema “Foi Boto, Sinhá”, o amor encontrado é carnal, o qual pode-se exemplificar como um crescimento
elevado em nossa sociedade contemporânea, devido ao
descompromisso do parceiro perante a relação conjugal.
Enquanto, no poema “Tamba-Tajá”, evidencia-se o amor romântico e o casal indígena busca – reciprocamente – nutrir de amor
o seu amado. Assim, percebe-se o quanto o sentimento Amor é um
enigma, que se sobrepõe acima do desejo de união com o outro,
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AS FACES DO AMOR NOS POEMAS MUSICADOS DE WALDEMAR
HENRIQUE “FOI BOTO, SINHÁ” E “TAMBA-TAJÁ”
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Fonte: Revista Pará Onde (2000).
Fig. 7. A planta tamba-tajá.
estabelecendo um vínculo paradoxal e que necessita ser regado
diariamente para que a união seja fortalecida e, sobretudo que
haja o reconhecimento do outro.
Concluí-se que a pesquisa foi de grande relevância para nossos conhecimentos, bem como nos trouxe um despertar para novos estudos de autores regionais e suas obras. Fica-se na expecta-
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LINETE CARDOSO FERNANDES
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tiva que os poemas musicados do Maestro Waldemar Henrique,
despertem novos olhares na arte poética/musical e na cultura
paraense.
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AS FACES DO AMOR NOS POEMAS MUSICADOS DE WALDEMAR
HENRIQUE “FOI BOTO, SINHÁ” E “TAMBA-TAJÁ”
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Lenda do Tamba-Tajá. Revista Pará Onde. Belém: RM Graph,
n.3, out 2000.
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Nassif Ricci Jordy Filho
ISMAEL NERY, O POETA
ORIENTADOR: João Carlos Pereira
RESUMO
Foi um dos mais enigmáticos e interessantes artistas plásticos
brasileiros deste século. Nasceu em 9 de outubro de 1900, em
Belém do Pará, e a morte foi uma constante em sua vida, pois
perdeu o pai e o irmão muito cedo. Começou a ter aulas de desenho
aos 17 anos, em 1917, para realizar uma breve, mas intensa,
produção artística, que pode ser dividida em mais de dez momentos
estilísticos. Transitou pelo cubismo, art-deco, expressionismo,
surrealismo e chegou a criar sua própria escola filosófica – o
essencialismo. Ao contrário dos outros modernistas, Nery não se
interessava em retratar o Brasil ou criar uma identidade nacional
por meio das artes plásticas, por isso não se destacou tanto quanto
os outros modernistas. Nery, além de pintor e desenhista, também
foi um poeta, escreveu pouco, mas o que escreveu é de extremo
valor para a literatura, pois, segundo Murilo Mendes, são textos
únicos na literatura brasileira.
Palavras-chave: Ismael Nery, pintor, poeta.
ABSTRACT
Nery was one of the most enigmatics and interesting brazilian
painters of XX century. He was Born on October 9th,1900, in Belém,
state of Pará, and the death was always present in his life, because
he lost his father and brother very soon. He started taking drawing
classes at the age of 17, in 1917, to produce a small, but intense
artistic work, that can be divided in more than ten stylistics moments.
He passed through cubism, art deco, expressionism, surrealism
and he even created his own philosophical school, called
essencialismo. Unlike the others modernists, Nery wasn’t interested
to retract his country, or create a national identity by the painting,
that’s why he didn’t become as famous as the others modernists.
Nery, besides being a painter and a draftsman, he was also a poet,
he wrote not too much, but what he wrote is very important to the
literature, because, as Murilo Mendes said, his texts are unique in
the brazilian literature.
Keywords: Ismael Nery, Painter, poet.
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Ismael Nery foi um dos maiores artistas modernistas do Brasil.
Nascido em Belém do Pará, no ano de 1900, foi para o Rio de
Janeiro, com sua família, aos nove anos de idade, onde estudou na
Escola de Belas Artes, entre 1917 e 1918.
Em 1921, conhece Murilo Mendes de quem se torna grande
amigo numa relação de treze anos que marcaria profundamente a
vida e obra de ambos.
Ismael Nery foi um homem de personalidade complexa, o que
fazia com que suas amizades se afastassem, e um artista de uma
profunda visão moderna, tanto na vida, como na obra. Era filósofo,
arquiteto, bailarino, desenhista, moralista, estilista, pedagogo,
teólogo, fazedor de opiniões, pintor... e também poeta.
Apesar de Ismael Nery falar que “não desejava ser poeta
oficial”, colocava sua qualidade de poeta acima da de filósofo e
muito acima da de pintor.
Ismael Nery escreveu poucas poesias, as que deixou para trás
foram encontradas e publicadas, após a sua morte, por Murilo
Mendes na revista “A Ordem”, em fevereiro de 1935.
Neste Trabalho de graduação, mostro a vida de Ismael Nery
como homem, pintor e poeta. Mostro como a vida e a obra, artística
e literária, estão diretamente relacionadas. Aponto a transição de
símbolos e o diálogo interarte, entre pintura e poesia, através do
conceito de ecfrase, um gênero poético muito empregado pelo grego
Luciano de Samosota, apresentado e atualizado por Leila Barbosa e
Marisa Timponi Rodrigues, na obra A trama poética de Murilo Mendes.
Ecfrase vem do grego ek-phrasis e significa,
por sua origem, descrição, ou ek: fora + phrasis:
frase, fora da frase. Originalmente, seria uma
representação gráfica, a síntese da arte e da
literatura. Por sua etimologia, ecfrase é uma
criação que não significa o livre inventar, pois
exerce uma conexão discursiva tanto por suas
leis próprias intrínsecas, quanto pelas leis do
material ou imagem sobre os quais a produção
anterior recriou (no sentido mítico grego).1
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Pesquisar e analisar a vida e a obra desse paraense,
consagrado nacionalmente, é de prima importância científica e
histórica, pois traz à tona o que muitos não conhecem: a obra
desse paraense que foi um dos precursores do surrealismo na
pintura e poesia brasileira.
Neste trabalho, está ao alcance dos leitores a vida social e
artística de Ismael Nery no início do século XX, época de várias
transformações, contradições e manifestações artísticas. Também
está disponível neste projeto, a análise de parte de sua pequena,
porém densa, obra artística.
Mostrei grande interesse por esta pesquisa, por ser um amante
de pintura e poesia, e poder observar que estas podem ter relações
diretas e harmônicas, assim como na obra de Ismael Nery.
Com esta pesquisa, tive a oportunidade de inter-relacionar
estes dois ramos artísticos, além de ter um conterrâneo, quase
desconhecido entre os paraenses, como tema.
I – ISMAEL NERY, O HOMEM
Ismael Nery nasceu em Belém do Pará, em nove de outubro
de 1900, filho de Ismael Sena Ribeiro Nery e de Marieta Macieira
Nery. Segundo Murilo Mendes, Ismael Nery teria descendência
portuguesa, holandesa e indígena: “nas suas veias corria sangue
português, holandês e índio”2. O pai era oficial médico da Marinha,
na patente de Capitão de fragata. A mãe era de família de classe
média-alta no Rio de Janeiro.
Em 1909, quando Nery tinha apenas 9 anos, a família transferese para o Rio de Janeiro e, no mesmo ano, quando vinha de um
congresso de Copenhague, seu pai morre de um ataque fulminante
a bordo do navio, “morreu de repente, do coração, dando uma
aula; sua cabeça tombou sobre o livro aberto”3, a partir de então,
sua mãe, Marieta Nery, passa a chamar-se (intitular-se)irmã
Verônica. No Rio de Janeiro, Ismael Nery estuda nos colégios Santo
Antônio Maria de Zacaria e Santo Inácio, onde foi “aluno rebelde e
indisciplinado, gostando de estudar livremente”4.
Matricula-se, em 1915, na Escola de Belas Artes – desde cedo
manifestou vocação para o desenho e a pintura. Conta-se que, aos
4 anos de idade, desenhou o padre da paróquia que freqüentava, a
Igreja do Carmo, em Belém do Pará, durante uma missa -. Em
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1920, dois anos após a morte de seu único irmão, João, vitimado
pela gripe espanhola, viaja à Europa, demorando-se na França e
na Itália, onde – segundo seu próprio depoimento – priorizou o
estudo dos mestres antigos da pintura.
Em fins de 1921, após retornar da Europa, foi nomeado
desenhista-arquiteto da antiga Diretoria do Patrimônio Nacional, no
Ministério da Fazenda. Foi em seu primeiro emprego que conheceu
Murilo Mendes, de quem se tornaria amigo até o fim de sua vida:
Foi em fins do ano de 1921 que conheci Ismael
Nery. Eu trabalhava na antiga Diretoria do
Patrimônio Nacional, no Ministério da Fazenda.
Ismael Nery foi nomeado desenhista da seção
de arquitetura e topografia. Vi, um belo dia,
um moço elegante e bem vestido. Ajeitou a
prancheta, sentou-se e começou a desenhar.
Meia hora depois saiu para o café. Aproveitei
sua ausência e resolvi espiar o que ele fazia:
rabiscava bonecos em torno de um projeto para
o edifício de uma alfândega. Ao regressar puxei
conversa com ele: saímos juntos da repartição.
Assim começou uma amizade que se prolongou
ininterruptamente até o dia de sua morte, em
6 de abril de 19345.
Esta amizade, que duraria até a morte de Nery, influenciaria
profundamente a vida e a carreira de ambos. A obra de Murilo
Mendes está diretamente relacionada à de Ismael Nery, e viceversa.
Ismael Nery considerava-se, praticamente, um pai para seus
amigos, tudo que dizia respeito aos que o rodeavam interessava-o
profundamente.
Tudo isto podemos observar com suas próprias palavras:
O meu maior instinto é o da paternidade, que
aplico a tudo e a todos. A minha maior vontade
era ser a sombra de tudo e de todos, a fim de
nascer e morrer com tudo e com todos e em
todos os tempos. Não haverá um homem que
me determine moral e fisicamente? Sou o
germe de um Deus, toda gente o é também6.
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Em 1922, casou-se com aquela que viria ser mais tarde a
poetisa Adalgisa Nery. Desta união nasceria dois filhos, Ivan e
Emanuel.
Ismael Nery era um homem bonito, apelidado de o grego,
pelo seu físico e beleza. Murilo Mendes o descreveu fisicamente
assim:
Ismael Nery era moreno claro, de olhos e
cabelos castanhos. Tinha 1,75m de altura, sendo
cheio de corpo. A pele era ligeiramente gretada;
os olhos assimétricos, recortados um a maneira
oriental, como acontece em tantos homens do
extremo norte. Barbicha rala. Boca de talhe
muito pronunciado. Apertava às vezes
fortemente os lábios, numa enérgica tensão da
vontade. Quase não se lhe viam os dentes
pequenos. Testa larga [...]. Seu tipo lembrava
o do índio, mas em Paris foi preso uma vez
como russo7.
Ismael Nery não se destacava apenas por sua beleza; foi um
homem de personalidade forte e complexa, quase sempre enigmática
e misteriosa. Segundo Denise Matar “foi em vida um personagem
misterioso, que a morte prematura tornou um mito.”
Mas este mito de personalidade misteriosa, também foi um
homem simples e que, segundo Murilo Mendes, gostava da vida
malandra e fogosa do brasileiro:
Havia um homem comum dentro desse homem
excepcional e singularíssimo, um homem que
adorava o cineminha de bairro, a conversa
mole no café, as regatas, a leitura do jornal,
até mesmo o futebol e o boxe. Gostava da
displicência do homem brasileiro, do seu jeitão
de fazer pouca força pela vida, enxergando
nisto um instinto de sabedoria8.
Ismael Nery era um conversador nato, quando não surgia
nenhum caso interessante para discutir dirigia-se ao hospício, aos
albergues, às prisões sanatórios, ao tribunal do júri, que freqüentava
assiduamente, aos colégios, aos bastidores de teatro, segundo Murilo
Mendes, este era um dos métodos de cultura de Ismael Nery:
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O método de cultura de Ismael era muito
prático e inteligente. Quando ele queria saber
qualquer coisa, dirigia-se a um conhecedor
autêntico do assunto. Muitas vezes sabia em
dez minutos o que levaria semanas a aprender
se consultasse um livro. Ismael lia no grande
livro sempre aberto, no livro dos homens e da
vida9 .
Portanto, ele não conseguia ficar sem algum assunto para
discutir com seus amigos em sua pequena casa, no Botafogo. Um
desses amigos foi, claro, Murilo Mendes, que nos deixou este relato:
As discussões sucediam-se pela noite adentro
na pequena casa de Botafogo, depois do Leme.
Eram poucos os amigos fiéis. Os que apareciam
mais freqüentemente eram Jorge Burlamaqui,
Antônio Costa Ribeiro, Mário Pedrosa, Antônio
Bento e eu. Guinard vinha sempre, mas apenas
para conversar sobre pintura. [...]. outros
vinham
também,
mas
aos
poucos
abandonavam o grupo [...]. não se ia a sua
casa para comer e beber, nem para se falar da
vida alheia. A casa era pequena, oferecendo
pouco do que em geral se chama conforto,
decorada com extrema sobriedade10.
Através destas conversas Ismael Nery tentava, muitas vezes,
quase que insanamente, mostrar e explicar, nem sempre com êxito,
a essência do homem, a natureza, os fenômenos da existência e
Deus. Para Nery, o homem não se conhecia e, se não se conhecia,
não conhecia Deus. Foi assim que criou o essencialismo que, segundo
ele mesmo, era um sistema baseado na abstração do tempo e do
espaço, em última análise, uma preparação ao catolicismo. Ismael
Nery viu no catolicismo uma construção harmônica, pois que edifica
o homem de sabedoria integral: “o catolicismo antecipa ao homem
o conhecimento das verdades que ele e a humanidade irão atingindo
no curso da vida”11.
Atrás deste católico doutrinado, existia um homem que achava
que estava no mundo não só para viver, ficava furioso por não
conseguir resolver o problema da humanidade, estava sempre
inconformado com alguma coisa: “Não me conformo nem com o
espaço nem com o tempo. Nem com o limite de coisa alguma. Não
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quero ser Deus por orgulho. Quero ser Deus por necessidade, por
vocação”12.
Com esta frase, Ismael Nery provava estar um passo à frente
de todos, não por tentar ser Deus e resolver os problemas de todos,
nem por ter profeciado alguns fatos – que aconteceriam em sua
vida futura, mas por se aliar às teorias do cientista Laplace, que
dizia que era possível ver e prever a posição e velocidade de um
objeto em qualquer momento do passado e do futuro. Ismael Nery
conseguira, de uma forma poética, aprofundar-se em uma teoria
tão complexa quanto a de Laplace – ou de forma científica explicar
a essência do homem? ...irrespondível..., era simplesmente
enigmático.
Assim como escrevi no parágrafo anterior, Ismael Nery teria
previsto fatos de sua vida. Murilo Mendes, em seus artigos, retrata,
de forma ampla, as profecias de Ismael Nery. Aos 16 anos teria
previsto a sua própria morte aos 33. Ainda com 16 anos, teria dito
que aconteceria com ele, aos trinta anos, uma coisa muito importante
e ocorreu, é diagnosticada a tuberculose. Poucos dias antes de sua
morte, declarou que morreria na Sexta-feira da Paixão. “No Sábado
de aleluia disse que não merecera morrer na sexta-feira santa mas
que sem dúvida morreria na Sexta-feira da Páscoa...”13 e morreu.
II – ISMAEL NERY, O PINTOR
Ismael Nery revelou-se pintor desde pequeno. Um de seus
primeiros desenhos, segundo testemunhos de seus familiares, foi
feito aos quatro anos de idade, na igreja do Carmo, em Belém do
Pará, quando desenhou o Cônego Bernardino, Capelão do Asilo
Gonçalves de Araújo, depois de ter assistido uma missa celebrada
pelo mesmo.
Nery, quando criança, gostava de pintar navios de guerra de
qualquer tipo, desenhava também as peças e partes maquinarias
do navio.
Mas, Ismael Nery se tornou conhecido pintando o corpo
humano. Seu primeiro modelo foi ele próprio, pois ainda muito
menino ia para frente do espelho e estudava-se durante horas,
acumulando em seguida os esboços e desenhos.
Aos quinze anos entrou para Escola de Belas Artes do Rio de
Janeiro, onde, segundo Murilo Mendes, deixou grande tradição, pois
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desde aquela época seus guaches e aquarelas eram famosos. Mas
ao longo de sua curta, porém densa, vida artística vendeu apenas
um quadro, para Graça Aranha.
Aos dezenove anos matriculou-se na Académie Julien de Paris,
mas o curso não o satisfazia, sendo muito acadêmico para suas
tendências.
Voltou da Europa muito desanimado com a pintura, acreditava
que a pintura da época estava em crise, achava que a pintura não
era mais a mesma da época de seus pintores prediletos como
Tintoretto, El Greco, além de Ticiano e Leonardo da Vinci. Em
confissão a Murilo Mendes, Ismael Nery disse que “depois de conhecer
Tintoretto e Ticiano, tinha vontade de quebrar os pincéis”14.
Apesar de sua displicência relativamente à realização da pintura
(pois que, sem dúvida, amava-a e sobre ela discorria longamente),
era o pintor Ismael Nery muito mais conhecido do que o filósofo e
o poeta Ismael Nery. Em 1928, Mário de Andrade consagrava-lhe
pelas colunas do Diário Nacional de São Paulo, em um artigo muito
favorável e compreensivo: “ele assimila todos os outros para ser
mesmo ele só e – o que é melhor – para ser quanto mais alto possa
ser”15.
E ainda mais:
Ismael Nery é pesquisador da mais nobre seita.
Vive quase numa obsessão mística, preocupado
com uns tantos problemas plásticos,
principalmente a composição com figuras e a
realização dum tipo ideal humano. Seguindo as
obras dele na casa de Murilo Mendes, que é
quem as guarda no Rio, a gente tem a
impressão de que os problemas se enunciam
nuns quadros, e são desenvolvidos noutros para
terminar noutros. Vem disso uma força de
personalidade e uma sensação de seriedade
quase trágicas, que só mesmo Ismael Nery tem
entre os pintores de cá. A procura dum tipo
plástico ideal representativo do ser humano o
irmana com certos pesquisadores europeus
imensamentes comoventes, sobretudo com
Modigliani e Engen Zak.
E assim com as figuras todas arrinconadas, num
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tipo único que jamais satisfaz este artista duma
seriedade absoluta, Ismael Nery as coloca em
todas as composições possíveis, buscando um
equilíbrio e uma harmonia exclusivamente
plásticos. Até suas aquarelas virtuosísticas são
tão trágicas porque essa volubilidade só
embroma os levianos. Ela na verdade conta de
que maneira absorvente e elevada Ismael Nery
pesquisa, assimilando todos os outros para ser
mesmo ele só e o que é melhor, para ser quanto
mais alto possa ser. E a contradição da rapidez
com que pinta, no fundo ainda explica o
indivíduo que pintando se limita a copiar a
criação já toda feita no espírito, toda
completada no pensamento e que se fica por
acabar na realização é porque não satisfez e
não interessa mais o artista16.
Como disse Mário de Andrade, Ismael Nery sofreu várias
influências – assim como Picasso – mas não deixou de ser único de
sua época. Ismael Nery quebrou todas as tendências na arte plástica
brasileira, por isso muitas vezes não foi compreendido. Para muitos
críticos de arte do Rio de Janeiro e São Paulo, aconteceu com Ismael
Nery, em sua exposição realizada em Belém (1929), algo
semelhante ao que sucedeu com Anita Malfatti em São Paulo, em
1917 – a incompreensão do público e da imprensa.
No entanto, apesar da incompreensão dos demais, não apenas
Eneida de Moraes fez uma crítica favorável a ele, mas o poeta Bruno
de Menezes (presenteado com dois desenhos de Nery) e o jornalista
Manuel Pastana parecem tê-lo compreendido perfeitamente:
Eneida de Moraes:
Há em todos os quadros desse artista uma vida
que a gente sente vibrar. As expressões são
reais, e encontrei sobretudo uma intensa
verdade nos olhos que ele pintou. Tem-se a
impressão de que toda aquela gente vai falar.
Que toda aquela gente vai contar um romance,
vai dizer um pedaço de sua tragédia.
Só encontro no pintor que é sincero. Aliás, em
arte, a sinceridade deve ser a base. O pintor
deve ser um poeta em tintas e é maior poeta
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quem dá cores que os outros, escrevendo, não
conseguem17.
Bruno de Menezes:
Constituirão nota imprevista e enigmática estas
horas de arte, porque a nossa selecionada
assistência a essas manifestações de beleza,
irá admirar um profissional da palheta, que
anima as telas, distribuindo as nuances, a
gradação dos planos, os coloridos, as miragensperspectivas, o movimento interior das figuras,
de tal forma e com tal vigor, que a nossa análise
intelecto-psíquica se toma de sobressaltos ao
pretender investigar as tendências, os motivos,
a estética em que o artista acrisola para
conseguir o ritmo dos quadros18.
Manuel Pastana:
Ismael Nery, o artista patrício que ora nos visita,
é um revolucionário da Arte e do Meio. A sua
arte, embora de aspecto sombrio, é expressiva
– a preocupação do artista é, exclusivamente,
a expressão.
Que importa, para si, a beleza das formas, se
estas, muitas vezes, são inespressivas?19
Quanto à incompreensão e à exclusão, Manuel Bandeira
escreveu:
[...] Tomemos um dos nossos valores novos,
Ismael Nery. Acho-o um pintor delicioso, ágil
de técnica, cheio de graça, de invenção, de
poesia. Então não compreendo o pouco-caso
de certos entendidos. Estrangeiro pode-se dizer
que não liga ao indígena. Por muito favor
reconhecem a verdade de Cícero Dias. É isso:
o estrangeiro tem a idéia fixa da diferença. Mas
o que me dana é que na Europa ele tem o senso
das nuances e aqui o perde todo, e quando a
coisa não cheira a preto, a baiana da Praça
Onze pelo menos, não tem importância, é uma
invenção. Se não se tratasse de Picasso, se
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fosse Ismael Nery que aparecesse com aqueles
desenhos, não se falaria em gênio: falar-se-ia
em talento, em facilidade, em pastiche20.
Penso que Ismael Nery era muito avançado e moderno para
sua época. Não tinha tendência própria ou única, queria – e conseguiu
– apenas mostrar e fazer entender seu lado poético e filosófico,
através de seus desenhos e pinturas. Segundo Murilo Mendes nas
Recordações de Ismael Nery, Ismael buscou estímulo onde lhe
convinha: “Ismael Nery, entretanto, quis fazer uma espécie de Suma
das tendências da pintura moderna. Não assumiu inicialmente
nenhum parti-pris, procurando inspiração onde bem lhe convinha”21.
A carreira do pintor Ismael Nery não seguiu uma linha de
evolução definida. Ele era solicitado por tendências opostas, não
tendo compromisso com nenhum grupo ou doutrina estética.
Atraíam-no muito os mestres clássicos, mas não há dúvida de que
Ismael Nery foi um aglutinador de tendências artísticas, não deixando
de escapar, ou de permanecer em nenhuma delas.
Fala-se em três fases na curta produção de Nery. A primeira é
a mais breve, de 1922 a 1923, com quadros muito escuros, de teor
expressionista, nos quais é difícil adivinhar o estilo futuro do pintor.
A segunda, vai de 1924 a 1927 e traz alguma influência do cubismo
– mas uma influência muito mais de superfície, através de recursos
formais e da geometrização das imagens, que de alma. Há também
uma certa inspiração com Picasso, com a tragicidade e melancolia
de seu período azul; em vários quadros esta cor predomina quase
absoluta. A partir desta fase, tanto quanto os óleos, as aquarelas
são um manancial de obras-primas; nenhum outro artista brasileiro
produziu, nesta técnica intimista, um conjunto tão notável de
trabalhos. Após a viagem, que fez à Europa, em 1927, sem renunciar
características da fase anterior, ao contrário, Nery acrescenta à
sua obra alguns toques surrealistas, principalmente através da
tendência lírica, onírica e nada ortodoxa do surrealismo, estilo no
qual seu amigo Chagall criou. Toda a produção da primeira metade
da década de 30 acaba possuindo uma poesia própria, inconfundível,
e até mesmo incompreensível para seus contemporâneos.
Estas três fases, segundo Afonso Romano de Sant’Anna, nos
leva a imaginar que “a compreensão de sua obra-vida pode surgir
de um jogo que se estabelece entre o UM, o DOIS e o TRÊS. Tudo
o que Ismael Nery pintou configura uma circularidade – 1, 2 e 3 –
na qual transita um grandíssimo EU NARCíSICO”22.
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É verdade, em toda sua obra-vida prevalece um narcisismo
que, hora aparece só, hora acompanhado, porém na mesma figura,
apresentando sinais claros de ambigüidade. Em quase todos os
seus 12 auto-retratos podemos identificar a presença feminina, o
que confirma toda a dualidade constituída em sua obra, uma possível
linguagem religiosa com a presença metafórica de Adão e Eva.
Em suas pinturas, Ismael Nery confirma seus textos literários.
Em seu quadro Auto-retrato (fig. 1) Nery sustenta, por exemplo,
seu poema Ismaela, em que diz ter uma edição feminina. Neste
poema Ismael Nery ainda diz que esta edição feminina é seu castigo;
é sua irmã, que na verdade nunca teve. No texto pictórico Ismael
Nery revela uma expressão de “castigo”, de “suicídio”, de melancolia,
concordando com seu texto literário.
Antônio Bento, referindo-se ao sistema de pensamento, criado
por Ismael, chamado “Essencialismo”, no qual Nery procurava
sintetizar uma visão de mundo, diz que “Ismael Nery era também
partidário de uma moda única para os dois sexos. Segundo suas
idéias, homens e mulheres deveriam vestir roupas iguais (...) O
artista chegou a pintar, nesse sentido, homens de cabelos compridos
vestidos de túnicas, como acontecia na antigüidade”23.
De qualquer forma, seus textos literários e pictóricos se interrelacionam, mostrando seu “ego inflado” que se fana em melancolia,
ou seja, morre com a tuberculose, aos trinta e três anos, em 1934.
III – ISMAEL NERY, O POETA
Ismael Nery foi pintor, arquiteto, pedagogo, bailarino, moralista,
filósofo, reformador social, estilista (dândi, favorável a uma moda
única para os dois sexos), um quase cineasta, homem de teatro,
teólogo e, sobretudo, segundo ele mesmo, poeta:
Eu sou a tangência de duas formas opostas e
justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos.
Eu sou o marido e a mulher.
Eu sou a unidade infinita.
Eu sou um deus com princípio.
Eu sou poeta!
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Segundo André Cordeiro, em Ismael Nery: o olho no telescópio,
este poema “bem que poderia ser dito por um ator solitário no
centro de um palco e traz a proposta muito clara da fusão dos
opostos”24.
Podemos detectar claramente o narcisismo em seu texto. O
poema revela um ser que tem poderes demais para ser contido em
um corpo físico. O poema mostra, através de conceitos matemáticos,
o que poderíamos relacionar ao cubismo, “eu sou a tangência de duas
formas opostas e justapostas”, a dualidade, a ambigüidade, a
androginia, características muito empregadas no barroco. Ismael Nery,
em suas questões filosóficas, várias vezes se aliava à matemática
para tentar se explicar, ou seja, utilizava-se da ciência para falar de
religião, algo que na época era praticamente inconcebível:
Muitas vezes se socorria de gráficos para
ilustrar as questões filosóficas – o que me
desesperava, porque os gráficos nunca me
disseram nada. Mas Jorge Burlamaqui,
engenheiro e matemático de aguda inteligência
– já citado em outro artigo -, assegurava-me
que aqueles gráficos eram verdadeiramente
admiráveis e ajudavam muito a esclarecer os
problemas. Lembro-me que uma certa época
Ismael produziu um famoso gráfico sobre o
livre-arbítrio, cujas dificuldades teológicas ele
queria resolver pela matemática25.
No poema EU é possível fazer relação com muitas de suas
produções pictóricas, ao estabelecer a reunião de opostos. Neste
poema, Ismael Nery, coloca o ofício de poeta acima de tudo e todos.
Segundo ele, o poeta é a “unidade infinita”, o “amor entre os
esposos”, o “marido e a mulher”, um “deus com princípio”. Assim
como no poema, a tela auto-retrato (fig.2) expressa o mesmo
sentimento de dualidade e integração de seres e coisas opostas.
Nesta pintura, o artista se pinta com um olhar sedutor e feições
bastante afeminadas, como o cabelo, o rosto magro e delicado, a
sobrancelha fina e arqueada, o pescoço comprido, fino e curvado.
Também é possível notar o trabalho de claros-escuros na obra. A
luz banha apenas um lado do rosto. Na cabeça, esta luz forma um
circulo dourado e brilhante, como se fosse a áurea do artista, como
nas imagens sacras, realçando ainda mais a escuridão e o aspecto
sombrio e maligno do retrato, dando um ar de extrema contradição.
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Na segunda estrofe do poema EU, o poeta, pretensiosamente se
diz sucessor de Jesus Cristo, quem ele considera o maior dos poetas:
Eu tenho raiva de ter nascido eu.
Mas gosto só de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.
Para Ismael Nery, Jesus Cristo deveria ser seguido como
modelo por todos os artistas, pois Jesus é o encarregado dos sentidos
do universo. Na terceira estrofe do poema, Ismael, assim como na
pintura, vira o poema do avesso ao dizer que é um “profeta anônimo”
e desconhecido, o inverso do começo do poema em que dizia ser a
“unidade infinita”, ou que “o mundo sem mim acabaria inútil”.
Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e
mudo
Quase como todo o mundo.
Ismael Nery rompe totalmente com as primeiras estrofes
quando diz que é “quase todo mundo”, opondo-se à segunda estrofe
quando diz ser “sucessor de Jesus Cristo”.
Esta ruptura de harmonia, o que não deixa de ser coerente,
também ocorre na pintura. Na tela auto-retrato o artista se pinta,
como já mencionado, com uma forma bastante afeminada, também
se reproduz de forma sombria, assustadora, com um olhar
maquiavélico. Por outro lado, Nery consegue aliviar a imagem de
seu aspecto sinistro ao pintar uma áurea no retrato, acrescentandolhe um ar celestial e divino.
A obra de Ismael Nery, tanto a pictórica como a poética, está
freqüentemente associada à elementos familiares, numa tentativa
de aproximar-se da essência do ser humano, das origens:
Eu tenho um ciúme terrível da minha sogra e
do meu genro
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E uma saudade mortal da minha esposa falecida
Eu queria ter sido o meu pai ou ser agora a
minha nora.
Ou ter morrido como meu irmão...
No instante em que nasci.
A referência a estes componentes familiares estão, quase
sempre, associadas às idéias de Freud:
A primeira vez que entrei em contato com a
obra pictórica de Ismael Nery foi na segunda
metade da década de 60 [...]. Porém, o que
mais me impressionou e surpreendeu é que vi,
numa parte da obra de Nery, Freud, artista
plástico, e isto eu ainda não tinha visto na
pintura brasileira e nem na internacional[...].
Como psicanalista amante da arte, significou
muito ver desfilar diante de mim: filogênese,
ontogênese,
figura
combinada,
desenvolvimento fetal, trauma do nascimento,
narcisismo, depressão, complexo de Édipo,
psicossomática, instinto de vida, instinto de
morte etc. A representação do par humano era
predominante e muitas vezes era representada
como unidade26.
Esta aproximação à psicanálise mostra grande característica
surrealista na obra de Ismael Nery. A aquarela Complexo de Édipo
(fig.3) é, exatamente, a representação pictórica do conceito do
complexo edipiano – “conjunto organizado de desejos amorosos e
hostis que a criança sente em relação aos pais.[...] Apresenta-se
como na história de Édipo-Rei: o desejo de morte do rival, que é a
personagem do mesmo sexo, e desejo sexual pela personagem do
sexo oposto”27. Portanto há quem diga que no momento da concepção
de suas obras o artista soube perfeitamente o que queria pintar.
Devido a isto, muitos críticos dão a Nery outra classificação e não a
de surrealista:
Ismael
Nery
sempre
foi
um
pintor
principalmente expressionista, simbolista e
figurativo. Cada uma de suas obras – da infância
à morte – era temática sobre religião, sobre a
natureza humana, sobre o romantismo,
mormente sobre seus enfoques filosóficos. Seus
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quadros e desenhos eram predominantemente
produtos de seu consciente.
Estas características representam a antítese do
conceito básico sobre o surrealismo, o qual é
um produto – figurativo ou não – do
inconsciente28.
A obra de Ismael Nery revela o sentimento católico do artista.
No “poema post-essencialista”, que Murilo Mendes considerou único
na literatura brasileira, Nery, de forma fantasiosa, recria os dois
primeiros capítulos do Gênesis bíblico em um tempo contemporâneo.
O silêncio provocou-me uma necessidade
irreprimível de correr. Abalei como uma flecha
através de mares e montanhas com incrível
facilidade e sem cansaço. Eis-me agora sentado
diante de uma paisagem em formação, ainda
não colorida. [...] Nada existe, além de mim
mesmo, senão para mim.
Silencio (sic).
Nery começa e termina o poema evidenciando a grandeza do
silêncio, que, segundo a cosmogonia de quase todas as tradições,
houve silêncio antes da criação. “O silêncio é um prelúdio de abertura
e revelação [...] envolve os grandes acontecimentos [...]. O silêncio,
dizem as regras monásticas, é uma grande cerimônia. Deus chega
à alma que faz reinar em si o silêncio, torna mudo aquele que se
dissipa em tagarelice...”29
Nesse poema, assim como na tela Auto-retrato (fig. 4), Nery
utiliza-se de símbolos universais, que contrapõem sua obra ao
regionalismo, característica marcante do modernismo, e aproximase da vertente internacionalista, na qual, ao lado da poesia de Carlos
Drummond de Andrade e de Murilo Mendes, Nery inicia:
...tudo é pavorosamente desabitado. Não leões
nem elefantes nos desertos da África. Não
existem as pirâmides nem a torre Eiffel.
Esta mesma linha internacionalista e quebra da proposta
modernista, vista no poema, se dá também em Auto-retrato, onde
o artista flutua pelos céus com blusa de camponês russo e, em
segundo plano, o Rio de Janeiro e Paris se fundem, quando o Pão
de Açúcar e a Torre Eiffel se encontram. Esta tela, de sua fase
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surrealista-romântica, talvez seja a de maior influência de Chagall
em sua obra, pois foi pintada em 1927, ano em que Nery tornarase amigo dele, após uma viagem à Europa com Adalgisa, seu filho
Ivan Nery e sua mãe. Sobre esta vertente internacionalista, Cícero
Dias, em 1931, comentou:
“... O Ismael Nery, por exemplo, acreditava que
o moderno era o internacional; você tinha que
internacionalizar uma obra de arte para dar o
sentido moderno. Eu achava o contrário. Para
mim você poderia fazer o moderno, a pintura
regional, para chegar ao universal...”30
Ismael Nery começou a escrever poesia após contrair
tuberculose, em 1930. Normalmente, tudo o que escrevia nesta
época jogava fora. Quase todos seus poemas que são vistos hoje,
foram resgatados por Murilo Mendes, que pedia e pagava para as
enfermeiras catar os lixos para encontrar seus textos.
Esta fase de sua vida foi bastante triste e angustiante. Tristeza
e angústia que deixou transbordar em seus textos pictóricos e
literários:
Meu Deus, para que pusestes tantas almas num
só corpo?
Neste corpo neutro que não representa nada
do que sou,
Neste corpo que não me permite ser anjo nem
demônio,
Neste corpo que gasta todas as minhas forças
Para tentar viver sem ridículo tudo que sou.
- já estou cansado de tantas transformações
inúteis
Não tenho sido na vida senão um grande ator
sem vocação,
Ator desconhecido, sem palco, sem cenário,
sem palmas.
Nesta primeira parte do poema, escrito em 1933, chamado
Oração de I.N., o poeta está em estado de agonia em relação a seu
corpo, que está morrendo e que não consegue enclausurar todas
as almas contidas nele.
O artista conversa com Deus, mostrando-se cansado e
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inconformado, expondo, também, quando diz “Não tenho sido nada
na vida senão um grande ator sem vocação, Ator desconhecido, sem
palco, sem cenário e sem palmas”, a vaidade e o narcisismo, sempre
presente na sua obra, mesmo num poema súplice como este.
A mesma agonia e angústia, que transparece no poema, é
percebida na tela Visão Interna – agonia (fig. 5), em que o artista
pinta sua alma, de forma bastante peculiar, que é representado por
uma forma de corpo, sem nenhuma expressão e sentimento, com
apenas um olho grande. Esta alma está entrelaçada com dois
pulmões, representando a tuberculose – enfermidade que causaria
a morte do poeta em abril de 1934, com apenas 33 anos –, dando
a impressão de aprisionamento, e, em primeiro plano, o artista
pinta a sua mão, com tanta vaidade – assim como na obra Mão de
Ismael Nery (fig. 6) que o artista retrata apenas sua mão, e escreve
com orgulho “A mão que fez os desenhos” –, que parece ser o
único elemento vigoroso na pintura.
À medida que a tuberculose se alastrava, sua obra se tornava
mais visceral. Nery, em seus últimos anos de vida, passava a se
enquadrar, segundo especialistas, em um surrealismo-mórbido.
Retratava corpos esquartejados e mutilados, formas viscerais ao
lado de almas angustiadas e aprisionadas, justificando a sua súplica
na última parte de seu poema Oração de I.N.:
- Ó Deus estranho e misterioso, que só agora
compreendo!
Daí-me como vós tendes, o poder de criar
corpos para
as minhas almas
Ou levai- me deste mundo, que já estou
exausto.
Eu que fui feito à vossa imagem e semelhança.
Amém!
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não era artista, era filósofo; não era pintor, era poeta; não
retratava a natureza nem era nacionalista, como os modernistas
de sua época, mas, ao contrário, retratava o ser humano na sua
essência, e entendia a expressão artística em seu sentido mais
amplo, universal, a união de todas as estéticas, de Ticiano à Picasso.
Ismael Nery nasceu em Belém do Pará, em 1900, e morreu na
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cidade do Rio de Janeiro em 1934. Passou por três fases em sua
carreira de pintor: o expressionismo, de 1922 à 1923; o cubismo,
de 1924 à 1927; e finalmente a sua fase mais esplendorosa, na
qual foi o precursor no Brasil: o surrealismo, de 1927 até sua morte
em 1934. A partir de então, formou-se uma dúvida a respeito da
evolução de seu trabalho, caso tivesse vivido por mais tempo.
Nery era um homem a procura de si mesmo. Seu primeiro
modelo de retrato foi ele próprio, ainda criança estudava-se, durante
horas, na frente do espelho.
Renegava a qualificação de pintor, preferia a de filósofo. Chegou
a montar um sistema filosófico, chamado essencialismo, mas nunca
escreveu nada sobre o assunto.
A partir de 1930, começou a se dedicar à poesia, achando-a
superior à pintura. Mas mesmo tendo esta preferência pela poesia,
Nery não se tornou conhecido principalmente pelos seus poemas,
que Murilo Mendes considerava surpreendentes e únicos na literatura
brasileira. Graças a Murilo Mendes, alguns de seus poemas foram
recuperados, pois, após Nery jogá-los fora, Murilo Mendes ia até as
lixeiras recuperá-los.
Murilo Mendes está para Ismael Nery assim como Platão para
Sócrates. O poeta mineiro foi um grande divulgador e,
principalmente, um grande influenciado pelas obras de Nery.
A produção pictórica de Nery, está claramente associada à sua
poesia. Com elementos explosivos e cheios de tabus, como o sexo,
a religiosidade e a morte, a obra de Nery passou a ser única na
literatura modernista. A maioria de seus poemas apresentam
questões sobre androginia, sobre a compreensão do ser humano a
partir da união dos opostos, assim como na escola barroca. Muitos
dos seus poemas fazem releituras com alguns de seus quadros.
A pintura e a poesia de Nery está muito relacionada com a
psicanálise. Dentre os pintores e poetas brasileiros, Nery foi quem
mais se aproximou das idéias de Freud. Nery não utilizava os
processos de escrita automática, como faziam os surrealistas, por
isso alguns críticos não o rotulavam como um surrealista. No entanto,
Nery aborda conceitos valiosos à psicanálise, como o complexo de
Édipo e o conceito de inconsciente coletivo de Carl Jung.
A angustia e tristeza está presente em quase toda sua obra,
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principalmente após contrair a tuberculose, em 1930. Esta melancolia
é retratada em sua obra de forma bastante visceral.
Talvez por causa dessa melancolia, seus textos sejam tão
universais, enigmáticos e surpreendentes, pois segundo Carlos Heitor
Cony, um escritor só escreve bem quando está triste.
Nery nasceu em Belém do Pará, cidade que, segundo ele,
influenciou profundamente sua vida e obra. Segundo Nery, em Belém
“nada era insosso”, “lá as coisas eram sublinhadas”, “tinham cor,
peso e sabor”. Nery era apaixonado por Belém, sua terra natal,
mas “saberão alguns de seus habitantes que sob o céu de Belém
nasceu Ismael Nery?”31
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Figura 1 – Andrógino
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Figura 3 – Complexo de Édipo
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Figura 4 – Auto retrato
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Figura 5 – Visão interna – agonia
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Figura 6 – Mão de Ismael Nery
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NOTAS
01 – BARBOSA, Leila Maria Fonseca, RODRIGUES, Marisa
Timponi Pereira. A trama poética de Murilo Mendes. Rio de
Janeiro. Lacerda Editores, 2000.
02 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p.63. Trata-se de uma série de 19 artigos
publicados no jornal “O Estado de São Paulo”, entre 01/07/1948 a
22/01/1949.
03 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p.64.
04 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p. 63.
05 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p. 21.
06 – NERY, Ismael apud MENDES, Murilo. Recordações
de Ismael Nery. São Paulo. Edusp, 1996, p. 42.
07 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p. 65.
08 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p. 30-31.
09 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p.23.
10 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p.36.
11 – NERY, Ismael, apud MENDES, Murilo. Recordações
de Ismael Nery. São Paulo. Edusp, 1996, p.61.
12 – NERY, Ismael, apud MENDES, Murilo. Recordações
de Ismael Nery. São Paulo. Edusp, 1996, p.59.
13 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p.149.
14 – NERY, Ismael, apud MENDES, Murilo. Recordações
de Ismael Nery. São Paulo. Edusp, 1996, p.100.
15 – ANDRADE, Mário de, apud MENDES, Murilo.
Recordações de Ismael Nery. São Paulo. Edusp, 1996, p.126.
16 – ANDRADE, Mário de, apud MENDES, Murilo.
Recordações de Ismael Nery. São Paulo. Edusp, 1996, p.117-118.
17 – Cinqüentenário da Exposição de Ismael Nery em
Belém. Revista de Cultura do Pará. Belém: Conselho Estadual
de Cultura, n. 35-36, julho-dezembro, 1979, pp 190-191.
18 – Idem, p. 187-188.
19 – Ibdem, p. 189.
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20 – BANDEIRA, Manuel, apud MENDES, Murilo.
Recordações de Ismael Nery. São Paulo. Edusp, 1996, p.122.
21 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p.112.
22 – BENTO, Antônio apud SANTANNA, Affonso Romano
de. ISMAEL NERY: A circularidade do um, do dois e do três. In:
Ismael Nery 100 anos: A poética de um mito/ curadoria Denise
Mattar. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo:
Fundação Armando Álvarez Penteado, 2000, p.61.
23 – Idem.
24 – CORDEIRO, André Teixeira. Ismael Nery: o olho no
telescópio. 2003. Dissertação de Mestrado (Mestrado em Teoria
Literária) – Universidade Federal do Pará, Belém, Pará, 2003, p.83.
25 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
Paulo. Edusp, 1996, p.56.
26 – HAMER, José Chaim. Ismael Nery e a Psicanálise. In:
Ismael Nery 100 anos: A poética de um mito/ curadoria Denise
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27 – LAPLANCHE e PONTALIS, Vocabulário da
Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p.77.
28 – NERY, Emmanuel. O erro de denominar Ismael Nery
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mito/ curadoria Denise Mattar. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco
do Brasil, São Paulo: Fundação Armando Álvarez Penteado, 2000,
p.66.
29 – CHEVALIER, Jean, GUEERBRANT, Alain. Dicionário
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30 – DIAS, Cícero. Cronologia, 1931. In: Ismael Nery
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de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil, São Paulo: Fundação
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31 – MENDES, Murilo. Recordações de Ismael Nery. São
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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NERY, Emmanuel. O erro de denominar Ismael Nery como
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NASSIF RICCI JORDY FILHO
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ISMAEL NERY, O POETA
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ANEXOS
Ismaela (1932)
A minha irmã é a minha edição feminina e meu castigo,
Dá a todos o que eu nunca de mulher alguma recebi.
Se eu não soubesse que sou também o seu castigo
Há muito tempo que seria fatricida ou suicida.
EU
Eu
Eu
Eu
Eu
Eu
Eu
Eu
Eu
sou
sou
sou
sou
sou
sou
sou
sou
a tangência de duas formas opostas e justapostas
o que não existe entre o que existe.
tudo sem ser coisa alguma.
o amor entre os esposos.
o marido e mulher.
a unidade infinita.
um Deus com princípio.
poeta!
Eu tenho raiva de ter nascido eu.
Mas eu gosto de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.
Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo mundo.
Confissão do poeta (1933)
Eu tenho um ciúme terrível da minha sogra e do meu genro
E uma saudade mortal da minha esposa falecida
Eu queria ter sido meu pai ou ter sido agora a minha nora.
Ou ter morrido como meu irmão...
No instante em que nasci.
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NASSIF RICCI JORDY FILHO
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Poema post-essencialista (1933)
O silêncio provocou-me uma necessidade irreprimível de
Correr. Abalei como uma flecha através dos mares e montanhas
com incrível facilidade e sem cansaço. Eis-me agora sentado
diante de uma paisagem em formação, ainda não colorida.
O meu pensamento é que percorre o que acabei de
percorrer, e admiro-me, então, de nada ter encontrado,
senão ao chegar ao rastro fosforescente que deixei ao partir.
Os mares são agora ridículos lençóis d‘água, de uns três ou
quatro palmos de profundidade.
As montanhas são nuvens estáticas, que o eterno medo dos
homens transformará em granito. Tudo é pavorosamente
desabitado. Não há leões nem elefantes nos desertos da
África. Não existem as pirâmides nem a Torre Eiffel.
Existe apenas eu mesmo, que me percebo inversamente
por uma idéia que chamo mulher e que paira rarefeita
sobre a superfície do globo – idéia incompreensível porque
nada existe na terra além de mim mesmo. Volto a percorrer
novamente o espaço, porém, desta vez, com a lentidão do
crescimento das plantas, multiplicando-me progressivamente na minha idéia para mostrar-me a mim mesmo.
Os mares, agora, são profundos e as montanhas solidificaram.
Aparecem leões e elefantes nos desertos da África.
Construíram as pirâmides no Egito e levantaram a Torre
Eiffel, em Paris, no ano em que um outro eu nascia em
Belém do Pará. Tudo se povoou transbordantemente.
Acho-me agora sentado na prisão, olhando sereno através
das grades, aguardando o julgamento do crime nefando
que cometi de usar a mim mesmo, na minha mãe, mulher,
filha, neta, bisneta, tataraneta, nora e cunhada. Voltarei,
ainda uma vez, para ser o meu próprio juiz. Nada existe,
além de mim mesmo senão para mim.
Silencio.
Oração de I.N. (1933)
Meu Deus, para que puseste tantas almas num só corpo?
Neste corpo neutro que não representa nada do que sou,
Neste corpo que não me permite ser anjo nem demônio,
Neste corpo que gasta todas as minhas forças
Para tentar viver sem ridículo tudo que sou.
– já estou cansado de tantas transformações inúteis,
Não tenho sido na vida senão um grande ator sem vocação,
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Ator desconhecido, sem palco, sem cenário e sem palma.
– Não vêdes, meu Deus, que assim me torno às vezes
irreconhecível
A minha própria mulher e a meus filhos
A meus raros amigos e a mim mesmo?
– Ó Deus estranho e misterioso, que só agora compreendo!
Daí-me, como vós tendes, o poder de criar corpos para as
minhas almas
Ou levai-me deste mundo, que já estou exausto.
Eu que fui feito à vossa imagem e semelhança.
Amém!
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