A presente edição segue a grafia do novo Acordo

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A presente edição segue a grafia do novo Acordo
A presente edição segue a grafia do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa
As citações de textos bíblicos constantes da presente edição foram retiradas da Bíblia
Sagrada, Difusora Bíblica, Lisboa/Fátima, 2001.
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KILLING JESUS: uma história de Bill O'Reilly e Martin Dugard
Copyright © 2013, Bill O'Reilly e Martin Dugard
Publicado por acordo com Henry Holt and Company, LLC, Nova York.
Todos os direitos reservados.
Título original: Killing Jesus
Título: Jesus: A Conspiração
Autores: Bill O’Reilly e Martin Dugard
Tradução: Paulo Emílio Pires
Revisão: Silvina de Sousa
Paginação: Maria João Gomes
Capa: Vera Braga/Marcador Editora
Imagem de capa gentilmente cedida por: © National Geographic Channels
Impressão e acabamento: Multitipo – Artes Gráficas, Lda.
ISBN: 978-989-754-053-0
Depósito legal: 388 995/15
1.ª edição: março de 2015
Nota aos leitores
No princípio...
Dizer que Jesus de Nazaré foi o homem mais influente que
alguma vez viveu é uma afirmação quase banal. Cerca de dois
mil anos após ter sido brutalmente executado por soldados romanos, mais de 2200 milhões de pessoas acreditam na sua divindade e procuram seguir os seus ensinamentos. Esse número, de
acordo com uma sondagem da Gallup, inclui 77% da população
dos EUA. Os ensinamentos de Jesus moldaram e continuam a
moldar o nosso mundo.
Muito se escreveu sobre Jesus, o filho de um humilde carpinteiro. Mas, na verdade, pouco se sabe a respeito dele. Claro que
temos os Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, mas estes
afiguram-se por vezes contraditórios e foram escritos de uma perspetiva espiritual, não como um relato histórico da vida de Jesus.
Quem ele foi de facto e o que lhe aconteceu ao certo são temas
emotivos que conduzem muitas vezes a discussões controversas.
Ao escrever este livro de base factual, Martin Dugard e eu
não quisemos dar a entender que sabemos tudo sobre Jesus.
Mas sabemos muito, e iremos contar coisas de que talvez os
leitores não tenham conhecimento. A nossa investigação pôs
a descoberto uma narrativa com tanto de fascinante como de
frustrante. Existem enormes lacunas na vida de Jesus, e por vezes houve que deduzir aquilo que lhe aconteceu com base nos
melhores testemunhos disponíveis. Sempre que possível, servimo-nos de obras clássicas. As nossas fontes primárias são citadas nas últimas páginas do livro. Tal como nos nossos trabalhos
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BILL O’Reilly e Martin Dugard
anteriores, O Assassínio de Lincoln e Conspiração Kennedy, tivemos
a preocupação de alertar os leitores sempre que não sabemos o
que aconteceu ou achamos que os testemunhos citados não são
categóricos.
Os romanos mantiveram registos assombrosos desses tempos, e na própria Palestina houve alguns historiadores judaicos
que registaram os acontecimentos da época. O problema reside
no facto de só nos últimos meses de vida Jesus se ter tornado no
centro das atenções dos poderes instituídos. Até aí, não passava de mais um judeu a tentar sobreviver numa sociedade cruel.
Apenas os amigos estavam atentos ao que ele fazia.
E foram esses amigos que transmitiram oralmente grande
parte da história, razão por que dispomos hoje da narrativa dos
Evangelhos. No entanto, este não é um livro religioso. Não nos
debruçamos sobre a figura de Jesus como o Messias, apenas
como um homem que galvanizou uma zona remota do Império
Romano e fez inimigos muito poderosos enquanto pregava uma
doutrina de paz e amor. De facto, o ódio para com Jesus e os
acontecimentos que esse ódio desencadeou podem, por vezes,
tornar-se opressivos para o leitor. Esta é uma história violenta
centrada tanto na Judeia como em Roma, onde os imperadores
também eram considerados deuses pelos seus leais seguidores.
Martin Dugard e eu somos ambos católicos e fomos educados em escolas religiosas. Mas somos igualmente investigadores históricos interessados, antes de mais, em contar a verdade sobre personalidades importantes, não em converter quem
quer que seja a uma causa espiritual. Aplicámos essa dedicação
e disciplina a Abraham Lincoln e a John F. Kennedy, e ao longo
destas páginas iremos fazer o mesmo com Jesus de Nazaré. Mas
não será descabido lembrar, a este propósito, que tanto Lincoln
como Kennedy acreditavam na divindade de Jesus.
Para compreender aquilo que Jesus conseguiu, e como pagou por isso com a vida, é necessário entender o mundo em
que vivia. Naquele tempo, o mundo ocidental era dominado por
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JESUS: A CONSPIRAÇÃO
Roma, que não tolerava qualquer dissensão. A vida humana tinha
escasso valor. A esperança de vida era inferior a quarenta anos,
e menos ainda para quem afrontasse o poder romano instituído. Ainda que num estilo algo pomposo, o jornalista Vermont
Royster deixou-nos uma excelente descrição desses tempos num
texto escrito em 1949:
Havia opressão... daqueles que não eram amigos de Tibério César.
Que préstimo tinha um homem senão o de servir o imperador?
Havia perseguições aos homens que se atreviam a pensar de
forma diferente, que escutavam vozes dissonantes ou liam estranhos manuscritos. Havia escravatura dos homens cujas tribos
não eram oriundas de Roma, desdém por aqueles que tinham
uma fisionomia diferente. E, acima de tudo, havia desprezo pela
vida humana. Que importância tinha, para os poderosos, um homem a mais ou a menos num mundo tão povoado?
Então, de súbito, surgiu uma luz no mundo, um homem da
Galileia que dizia: «Dai a César o que é de César, e a Deus o que
é de Deus.»
E a voz da Galileia, que iria desafiar César, oferecia um
novo reino em que cada homem poderia andar de cabeça erguida e curvar-se apenas perante o seu Deus... e essa luz iluminou
o mundo e os homens que viviam na escuridão tiveram medo,
e tentaram correr uma cortina para que todos continuassem a
acreditar que a salvação residia nos líderes.
Mas sucedeu por algum tempo e em diferentes lugares que a
verdade foi de facto libertadora, embora os homens da escuridão
se tenham ofendido e feito por extinguir a luz.
E esses homens foram bem-sucedidos (pelo menos a curto
prazo). Jesus foi executado. Mas a incrível história por trás da
luta de morte entre o bem e o mal ainda não foi totalmente
contada. Até agora. Pelo menos, é esse o objetivo deste livro.
Obrigado por o lerem.
Bill O’Reilly
Long Island, Nova Iorque
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Livro I
O MUNDO DE JESUS
Capítulo 1
Belém, Judeia
Março, 5 a. C.
Manhã
A
criança com trinta e seis anos para viver está a ser acossada.
Soldados fortemente armados vindos da capital, Jerusalém, marcham sobre esta pequena cidade decididos a
encontrar e a matar o menino. São um grupo multirracial de
mercenários estrangeiros oriundos da Grécia, da Gália e da Síria.
O nome da criança, desconhecido para eles, é Jesus, e o seu único crime é haver quem acredite que será o próximo rei do povo
judeu. O atual monarca, um déspota moribundo, meio judeu
meio árabe chamado Herodes, está tão empenhado em garantir
a morte do bebé que o seu exército recebeu ordens para assassinar todas as crianças do sexo masculino da cidade de Belém1
com idade inferior a dois anos. Nenhum dos soldados conhece
a aparência do pai e da mãe da criança ou a localização exata da
sua casa, razão por que se torna necessário matar todos os petizes da pequena cidade e região circunvizinha. Só isso garantirá a
eliminação do potencial rei.
As crianças serão passadas a fio de espada. Todos os soldados trazem à cintura a versão judaica dos afiados pugio e gladius que
apetrecham as legiões romanas. Contudo, o seu método de matança não se limitará ao punhal e à espada. Se assim o desejarem, os
soldados de Herodes também podem esmagar crânios com uma
pedra, lançar as crianças do alto de um penhasco ou simplesmente cerrar o punho sobre o pescoço dos petizes e estrangulá-los.
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BILL O’Reilly e Martin Dugard
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JESUS: A CONSPIRAÇÃO
A causa da morte não é importante. Tudo se resume a um
facto muito simples: rei dos judeus ou não, o menino tem de
morrer.
O massacre dos inocentes, ordenado por Herodes
É primavera na Judeia, o pico da época do cordeiro. As ondulantes estradas de terra conduzem o exército através de densos olivais e de campos onde os pastores guardam os rebanhos.
Os jovens soldados, de sandálias, pernas nuas e saias de ptreruges
a tapar-lhes o baixo-ventre, transpiram profusamente sob os capacetes áticos que lhes cobrem a cabeça e as faces e as couraças
que lhes protegem o tronco.
Conhecem bem a crueldade de Herodes e a sua propensão
para mandar matar quem quer que possa ameaçar o seu trono.
Mas não se debatem com o dilema moral de chacinar crianças2.
Tão-pouco questionam se terão o sangue-frio necessário para
arrancar um bebé em pranto dos braços da mãe e proceder à
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BILL O’Reilly e Martin Dugard
execução. Quando chegar a hora, cumprirão as suas ordens e
levarão a tarefa por diante — caso contrário, arriscam-se a ser
de imediato mortos por insubordinação.
Enquanto isso, em Jerusalém, o rei Herodes olha na direção de Belém do alto de uma janela do seu palácio. Aguarda
ansiosamente a confirmação do massacre. A seus pés, nas ruas
empedradas, os movimentados bazares vendem de tudo um
pouco, desde água e tâmaras a bugigangas turísticas e borrego
assado. A cidade muralhada de cerca de oito mil habitantes
amontoados em menos de três quilómetros quadrados é um
ponto de confluência de todo o Mediterrâneo oriental. Com
um só olhar, o rei nomeado pelos romanos avista camponeses
da Galileia de visita à cidade, mulheres sírias com os seus trajes de cores garridas e os soldados estrangeiros a quem paga
para travarem as suas batalhas. Embora combatentes exímios,
esses homens não são judeus e não falam uma única palavra
de hebraico.
Herodes solta um suspiro. Noutros tempos, quando era jovem, jamais ficaria assim à janela, preocupado com o futuro.
Um grande rei e guerreiro como ele teria mandado aparelhar o
seu cavalo branco preferido, galopado até Belém e matado ele
próprio a criança. Mas Herodes é agora um homem de sessenta
e nove anos. A enorme corpulência e os incessantes problemas
médicos fazem com que lhe seja fisicamente impossível deixar
o palácio, quanto mais montar a cavalo. O rosto inchado está
envolto numa barba que escorre, queixo abaixo, até à maçã de
Adão. Neste dia, enverga um manto régio de cor púrpura, ao estilo romano, por cima de uma túnica branca de manga curta. Por
norma, Herodes prefere perneiras de couro tingidas de púrpura,
mas hoje o toque do mais leve dos tecidos contra o dedo grande
do pé, fortemente inflamado, é quanto basta para o fazer gritar
de dor. E assim, Herodes, o homem mais poderoso da Judeia, é
obrigado a coxear descalço pelo palácio.
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JESUS: A CONSPIRAÇÃO
Herodes, o Grande, supervisiona a ampliação do Templo
Mas a gota é a menor das enfermidades de que padece. O rei
dos judeus, forma como este não praticante convertido ao judaísmo gosta de ser conhecido, também sofre de uma doença
pulmonar, de complicações nos rins, de lombrigas, de um problema cardíaco, de doenças venéreas e de um tipo terrível de gangrena que lhe deixou os órgãos genitais putrefactos, negros e infestados de larvas — daí a sua incapacidade para montar a cavalo.
Herodes aprendeu a viver com os seus padecimentos e dores, mas está assustado com estes anúncios de um novo rei nascido em Belém. Desde que, há mais de trinta anos, os romanos
fizerem dele rei da Judeia, já travou muitas guerras e frustrou
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BILL O’Reilly e Martin Dugard
inúmeras conspirações para o derrubar. Matou todos os que
quiseram apoderar-se do seu trono, e chegou a executar meros
suspeitos de conspirarem contra ele. O poder de Herodes sobre as populações locais é absoluto. Não há ninguém na Judeia
a salvo das suas execuções. Ordenou todo o tipo de mortes:
espancamentos e enforcamentos, lapidações e estrangulamentos,
pelo fogo e pela espada, com serpentes e outros animais vivos, e
até um tipo de suicídio público em que as vítimas eram obrigadas a lançar-se do alto dos edifícios. A única forma de execução
a que não recorreu foi à crucificação, a mais lenta e humilhante
das mortes, em que um homem é açoitado e depois pregado
numa cruz à vista das muralhas da cidade. Os romanos são os
especialistas desta arte brutal, que praticam quase em exclusivo.
Herodes nunca se atreveria a enfurecer os seus superiores em
Roma apropriando-se da sua forma predileta de assassínio.
O monarca tem dez mulheres — ou tinha, antes de mandar
matar a impetuosa Mariame por ter alegadamente conspirado
contra ele. Por via das dúvidas, ordenou também a morte da
mãe desta, bem como a dos seus próprios filhos Alexandre e
Aristóbulo. Ainda este ano, irá mandar matar um terceiro descendente varão. Não se estranha pois que o grande imperador
romano César Augusto comentasse abertamente: «É preferível
ser um dos porcos de Herodes a ser filho dele.»
Contudo, esta nova ameaça, embora vinda de uma simples
criança, é a mais perigosa de todas. Durante séculos, os profetas
judeus previram a vinda de um novo rei para governar o seu
povo3. Profetizaram mesmo cinco ocorrências específicas que
confirmarão o nascimento do novo Messias.
A primeira é o aparecimento de uma grande estrela.
A segunda é que o menino nascerá em Belém, a pequena
cidade onde nasceu há mil anos o rei David.
A terceira é que será descendente direto de David, facto facilmente comprovável pelos meticulosos registos genealógicos
do Templo.
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JESUS: A CONSPIRAÇÃO
A quarta, que virão de longe homens poderosos para o adorar.
Por último, a mãe da criança terá de ser virgem4.
Aquilo que preocupa profundamente Herodes é saber que as
primeiras duas profecias se revelaram verdadeiras.
E ficaria por certo bem mais inquieto se soubesse que já
todas as cinco se concretizaram. O menino é da linhagem
de David, vieram de longe homens poderosos para o adorar,
e Maria, a sua jovem mãe, jura que continua a ser virgem, não
obstante estar grávida.
Herodes também desconhece que o nome da criança é Jesus,
filho de José — ou simplesmente Jesus, nome que significa «o
Senhor é salvação».
Só ficou a saber da sua existência por uns viajantes que vinham adorar o recém-nascido. Esses homens, uns Magos do
Oriente, dirigiram-se primeiro ao palácio do rei para o saudar.
Eram astrónomos, adivinhos e sábios que também se dedicavam ao estudo dos grandes textos religiosos do mundo de então.
Um desses livros é o Tanach5, uma coletânea de histórias, profecias, poemas e canções que narram a história do povo judeu.
Os abastados forasteiros percorreram quase mil e quinhentos
quilómetros de desertos inóspitos seguindo uma estrela que todos os dias iluminava o céu matinal, antes da aurora. «Onde
está o rei dos judeus que acaba de nascer?», perguntam eles ao
chegar à corte de Herodes. «Vimos a sua estrela no Oriente e
viemos adorá-lo6.»
Espantosamente, os Magos trazem consigo cofres repletos
de ouro, incenso e mirra, duas resinas aromáticas. São homens
estudiosos, eruditos. A sua vida é dedicada ao saber e à razão.
Herodes tem pois de concluir que, ou enlouqueceram, já que
correram o risco de que essa imensa fortuna lhes fosse roubada
na travessia do vasto deserto sem lei que é a Pártia, ou creem
realmente que o menino recém-nascido é o novo rei.
Furioso, convoca os seus conselheiros religiosos. Homem
secular, Herodes pouco conhece das profecias judaicas. Exige
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BILL O’Reilly e Martin Dugard
por isso que esses sumos sacerdotes e doutores da lei lhe digam
exatamente onde encontrar o novo rei.
A resposta deles é pronta: «Em Belém da Judeia.»
Os doutores da lei que Herodes interroga são homens humildes. Envergam gorros e túnicas simples de linho branco. Mas
os sacerdotes do Templo, com as suas longas barbas, são gente
muito diferente. Vestem-se de forma elaborada, com túnicas de
linho azul adornadas de borlas e campainhas cintilantes, e gorros azuis e brancos com uma faixa dourada na testa. Sobre as
túnicas usam capas e bolsas ornadas de ouro e pedras preciosas.
Num dia normal, a indumentária distingue-os dos demais habitantes de Jerusalém. Ainda assim, mesmo no seu estado atual, o
rei Herodes é de longe a figura mais sumptuosa presente na sala.
E continua a intimidar os doutores e sacerdotes. «Onde está esse
suposto rei dos judeus?»
«Em Belém, na terra de Judá.» E citam textualmente as palavras do profeta Miqueias, proferidas cerca de sete séculos antes:
«É de ti [Belém] que há de sair aquele que governará em Israel.»
Herodes ordena então aos Magos que prossigam o seu caminho, encontrem a criança e regressem depois a Jerusalém com a
informação da sua localização exata, para que também ele possa
ir adorar o novo rei.
Todavia, os Magos não se deixam enganar. Não mais regressarão.
E assim o tempo passa, até que Herodes percebe que tem de
fazer qualquer coisa. Das janelas do palácio avista toda a cidade
de Jerusalém. À sua esquerda ergue-se o majestoso Templo, o
edifício mais importante e sagrado de toda a Judeia. Alcandorado no cimo de uma plataforma de rocha maciça, assemelha-se
mais a uma cidadela do que a um lugar de oração, representando a materialização da história e fé ancestrais do povo judeu.
Foi construído por Salomão no século x a. C. e arrasado pelos
babilónios em 586 a. C. A reconstrução iniciou-se com Zorobabel, já sob domínio persa, e prolongou-se por quase setenta
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JESUS: A CONSPIRAÇÃO
anos. Recentemente, Herodes mandou renovar e expandir todo
o complexo, que assumiu proporções épicas, tornando-se bem
maior do que nos tempos de Salomão. O Templo e os seus pátios são hoje um símbolo não apenas do judaísmo mas da própria figura do maléfico rei.
É por isso irónico que, enquanto Herodes espraia o olhar na
direção de Belém, Jesus e os pais já por duas vezes se tenham
deslocado a Jerusalém e visitado essa enorme fortaleza de pedra, construída sobre o local onde o patriarca hebraico Abraão
quase sacrificou o seu filho Isaac. A primeira visita deu-se oito
dias após o nascimento de Jesus7, para que este pudesse ser circuncidado. Foi também nessa ocasião que recebeu o nome de
Jesus, dando cumprimento à profecia. A segunda visita ocorreu
quando o menino completou quarenta dias de vida. Jesus foi levado ao Templo e formalmente apresentado ao Senhor, em obediência às leis judaicas. José, seu pai, um carpinteiro, comprou
obedientemente duas rolas para serem sacrificadas em honra da
solene ocasião.
Mas aconteceu algo muito estranho e místico quando, nesse
dia, Jesus e os pais entraram no Templo — algo que deixava perceber que Jesus devia ser de facto uma criança muito especial.
Dois perfeitos estranhos, um homem e uma mulher — nenhum
dos quais sabia o nome do menino ou estava a par do cumprimento da profecia —, avistaram-no no meio da multidão que
enchia o local de culto e foram ter com ele.
Maria, José e Jesus viajavam no mais absoluto anonimato,
evitando tudo o que pudesse fazer recair as atenções sobre eles.
O homem, um velho chamado Simeão, acreditava que não morreria sem ver o novo rei dos judeus. E perguntou se podia pegar
na criança. Maria e José acederam. Então Simeão tomou o menino nos braços e fez uma oração ao Senhor, agradecendo-lhe
aquela oportunidade de ver o novo rei com os seus próprios
olhos. Depois tornou a entregar a criança a Maria, dizendo-lhe:
«Este menino está aqui para queda e ressurgimento de muitos
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BILL O’Reilly e Martin Dugard
em Israel e para ser sinal de contradição; uma espada trespassará
a tua alma.»
Nesse momento, apareceu também junto deles uma mulher
chamada Ana8. Era uma velha profetisa de oitenta e quatro anos
que passava todos os seus dias no Templo, a jejuar e a rezar. As
palavras de Simeão ainda ressoavam nos ouvidos de Maria e
José quando também Ana começou a louvar Jesus. Agradeceu
bem alto a Deus por ter trazido ao mundo aquele menino tão
especial e anunciou aos pais que o seu filho iria em breve libertar
Jerusalém do domínio romano.
Estes maravilharam-se com as palavras de Simeão e de Ana,
lisonjeados com a atenção, como quaisquer pais ficariam, mas
ao mesmo tempo inseguros quanto ao verdadeiro significado
daquelas referências a espadas e a redenção. Concluíram o que
tinham ido ali fazer e deixaram o Templo, mergulhando na agitada cidade de Jerusalém, ambos exultantes e receosos perante a
vida que o filho parecia destinado a levar.
Se Herodes tivesse sabido que Jesus estivera tão perto — literalmente, a menos de seiscentos metros da sua sala do trono —,
talvez o seu tormento pudesse ter sido aliviado. Mas Jesus e os
pais eram apenas mais três corpos que nesse dia abriam caminho por entre os ruidosos bazares e as ruas estreitas e tortuosas
que conduziam ao Templo.
Um Templo que permanecerá para sempre como monumento à grandeza de Herodes — pelo menos é essa a sua convicção.
Ironicamente, o próprio rei só a custo é tolerado no interior das
muralhas, devido à sua total falta de devoção ou fé e à forma
impiedosa como subjuga o povo judeu.
Para lá do Templo, no extremo oposto do vale do Cédron,
ergue-se o íngreme monte das Oliveiras, onde os pastores cuidam dos seus rebanhos nas verdejantes encostas salpicadas de
calcário. Aproxima-se a festa da Páscoa, e com ela a chegada de
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JESUS: A CONSPIRAÇÃO
dezenas de milhares de peregrinos hebraicos vindos de todo o
reino de Herodes, ansiosos por pagar bom dinheiro por esses
cordeiros e oferecê-los em sacrifício no grandioso Templo.
Sob inúmeros aspetos, o massacre dos bebés de Belém não
é diferente. Estão a ser sacrificados para bem da governação
de Herodes — que o mesmo é dizer que estão a ser assassinados em nome do Império Romano. Sem Roma, Herodes não é
nada, apenas uma marioneta que deve por inteiro o seu reino à
brutal e omnipotente república. É seu direito e dever propagar
esse regime opressivo. Porque o reino de Herodes é diferente
de qualquer outro submetido ao jugo romano. Os hebreus são
uma civilização antiga, assente numa crença religiosa oposta à de
Roma, que venera várias divindades pagãs em vez do deus único
e solitário dos judeus.
Herodes é o intermediário desta precária relação. Os romanos considerá-lo-ão responsável por quaisquer problemas causados por um alegado novo rei dos judeus. Jamais tolerarão um
governante que não tenha sido escolhido por eles. E se os seguidores deste novo «rei» fomentarem uma revolução, é certo
que os romanos intervirão de forma tão rápida quanto brutal
para esmagar essa voz dissonante. É melhor que seja o próprio
Herodes a lidar com a situação.
Do seu palácio, o rei não consegue avistar Belém, mas esta
fica a menos de dez quilómetros dali, do outro lado de umas
colinas baixas e verdejantes. Não pode ver o sangue que corre
agora pelas ruas, nem ouvir os gritos aterrorizados das crianças e dos pais. Ao contemplar a paisagem que se avista do alto
do seu palácio, Herodes fá-lo de consciência tranquila. Pouco
lhe importa que o amaldiçoem pela morte de algumas dúzias
de crianças. Nessa noite, irá dormir descansado, ciente de que
essas mortes são para o bem do seu reino, o bem da Judeia e o
bem de Roma. Se César Augusto tiver conhecimento da chacina, decerto compreenderá: Herodes está a fazer o que tem de
ser feito.
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BILL O’Reilly e Martin Dugard
Jesus e a família mal têm tempo de escapar vivos de Belém.
José tem um sonho terrível com uma visão do que está para
acontecer. Acorda Maria e Jesus e fogem os três pela calada da
noite. Os soldados de Herodes chegam demasiado tarde. É em
vão que chacinam os bebés, cumprindo uma profecia feita quinhentos anos antes pelo profeta Jeremias9.
Há nas Escrituras muitas outras profecias sobre a vida de
Jesus. De forma lenta mas inelutável, também elas irão concretizar-se à medida que a criança se for fazendo homem. O comportamento de Jesus dará azo a que o apodem de revolucionário,
conhecido em toda a Judeia pelos sermões desconcertantes e os
ensinamentos pouco convencionais. Será adorado pelo povo judeu mas irá tornar-se numa ameaça para quantos lucram à custa
desse mesmo povo: os sumos sacerdotes, os escribas, os anciãos,
os governantes-fantoches da Judeia e, acima de tudo, o Império
Romano.
E Roma não tolera ameaças. Os exemplos de impérios anteriores, como o Macedónio, o Grego e o Persa, fizeram dos
romanos mestres nas artes da tortura e da perseguição. Revolucionários e agitadores sofrem um destino cruel e arrepiante,
para que outros não sejam tentados a seguir-lhes o exemplo.
O mesmo sucederá com Jesus. Também em concretização
de uma profecia.
Mas tudo isso ainda está para vir. Por enquanto, Jesus é apenas uma criança, amada e acarinhada por Maria e José. Nasceu
numa manjedoura, foi visitado pelos Magos, recebeu as suas
oferendas sumptuosas e está agora em fuga de Herodes e do
Império Romano10.
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