Michele Almeida Zaltron, Imaginação e desconstrução em K

Transcrição

Michele Almeida Zaltron, Imaginação e desconstrução em K
MICHELE ALMEIDA ZALTRON
IMAGINAÇÃO E DESCONSTRUÇÃO EM K. STANISLÁVSKI
Dissertação apresentada junto ao Programa de Pós
Graduação em Ciência da Arte do Instituto de Arte e
Comunicação Social da Universidade Federal
Fluminense como requisito para obtenção do Título
de Mestre em Ciência da Arte.
Área de concentração: Teorias da Arte
Linha de pesquisa: Estudos Poéticos
Orientadora: Profª. Drª. Andrea Copeliovitch
Co-Orientadora: Profª. Drª. Nair D‟Agostini
Niterói
2011
Ficha Catalográfica elaborada pela Biblioteca Central do Gragoatá
Z22 Zaltron, Michele Almeida.
Imaginação e desconstrução em K. Stanislávski / Michele Almeida
Zaltron. – 2011.
149 f. ; il.
Orientador: Andrea Copeliovitch.
Co-orientador: Nair D‟Agostini
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal Fluminense, Instituto
de Arte e Comunicação Social, 2011.
Bibliografia: f. 133-138.
1. Criação (Literária, artística, etc). 2. Teatro; técnica. 3. Arte e
imaginação. I. Copeliovitch, Andrea. II. Universidade Federal
Fluminense. Instituto de Arte e comunicação Social. III. Título.
CDD 792.028
FOLHA DE APROVAÇÃO
MICHELE ALMEIDA ZALTRON
IMAGINAÇÃO E DESCONSTRUÇÃO EM K. STANISLÁVSKI
Dissertação apresentada junto ao Programa de Pós
Graduação em Ciência da Arte do Instituto de Arte e
Comunicação Social da Universidade Federal
Fluminense como requisito para obtenção do Título
de Mestre em Ciência da Arte.
Niterói, 19 de Agosto de 2011.
BANCA EXAMINADORA
_________________________________
Profª. Drª. Andrea Copeliovitch
(Presidente e Orientadora)
Universidade Federal Fluminense - UFF
_________________________________
Profª. Drª. Nair D’Agostini
(Co-Orientadora)
Universidade Federal de Santa Maria - UFSM
_________________________________
Profª. Drª. Beatriz Cerbino
(Membro interno)
Universidade Federal Fluminense – UFF
_________________________________
Profª. Drª. Tatiana Motta Lima
(Membro externo)
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro - UNIRIO
À minha mestra,
Nair D‟Agostini
Ao meu amor,
Rafael Sieg
(...) Stanislávski descobriu uma nova orientação estética, a qual se expressou
na criação do Grande Teatro. Mas a principal obra de sua vida é imortal – a
descoberta das leis orgânicas do comportamento humano na cena, sem as
quais seria impossível qualquer orientação na arte. A muitos parece que a
metodologia de Stanislávski envelheceu, que é necessário abrir caminho a
outros reformadores. Mas o método das ações psicofísicas não é possível
envelhecer, como não envelheceram as leis da perspectiva descobertas por
Leonardo Da Vinci. Stanislávski ajuda a encontrar tal verdade, com a qual se
pode ir a qualquer direção estética. (...) É necessário aprender a utilizar suas
descobertas e salvar Stanislávski do dogmatismo escolástico. A muitos
parece que foram adiante de Stanislávski. No plano estético isso é verdade,
mas não se deve confundir estética com metodologia. É importante voltar
para Stanislávski. E entender que todos nós utilizamos suas descobertas
consciente ou inconscientemente. (TOVSTONÓGOV) 1
1
TOVSTONÓGOV, G. Sobre o vivo Stanislávski. Stanislávski num mundo em mudança, em transformação:
Material do Simpósio Internacional. Moscou, 27 de fevereiro a 9 de março de 1989. Moskva: Izdanie
ossuschestvleno, Pri sodeistvii, AKB “DialogBank”, 1994, p.134. (Tradução Nair D‟Agostini)
AGRADECIMENTOS
Tenho muito a agradecer.
À Andrea Copeliovitch, minha querida orientadora, que acolheu a mim e a minha busca com
tanta generosidade e sensibilidade. Agradeço pela presença, escuta e ensinamentos que me
proporcionou neste percurso; pela desconstrução/construção, imagens e questionamentos que
impulsionaram e enriqueceram este trabalho.
À Nair D‟Agostini, minha querida co-orientadora, mestra e amiga que tem presença
fundamental em minha formação artística e também em minha vida e que tanto me ensinou e
a cada encontro segue me transmitindo conhecimentos sobre teatro, sobre respeito e amor
pelo conhecimento adquirido e a relação disso tudo com as nossas próprias vivências, ações e
crenças. Agradeço a generosidade, a constante disponibilidade, a escuta e os ensinamentos
que foram essenciais para a realização deste trabalho.
Ao Rafael, pelo companheirismo de todos os momentos e grande incentivo a esta pesquisa.
Pelas leituras, revisões e troca de ideias que se tornaram fundamentais para este trabalho.
Agradeço o afeto, o amparo e a serenidade nos momentos em que mais precisei.
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Arte, especialmente Luiz
Sérgio de Oliveira, pelo apoio, confiança e incentivo; Jorge Vasconcellos, pelos
apontamentos; Rosana Ramalho, pelo incentivo;
À professora Martha Ribeiro.
Às professoras que compõem a banca de defesa, Tatiana Motta Lima e Beatriz Cerbino.
Aproveito para agradecer à Tatiana Motta Lima pelos apontamentos, estímulo a esta pesquisa
e materiais emprestados.
Aos meus professores durante a minha graduação no Curso de Artes Cênicas da Universidade
Federal de Santa Maria, especialmente Adriana Dal Forno, pela amizade, conversas, incentivo
e leituras; Beatriz Pippi, pelo incentivo e materiais emprestados.
À querida amiga Dani Reulle, pelas conversas e pela ajuda em um dos momentos mais aflitos
deste percurso.
À querida amiga Silvana Baggio, pelo carinho, troca de experiências, de aflições e de ideias.
Aos colegas Flávio Sanctum, Maíra Norton e Eduarda Ribeiro, pelas conversas e trocas de
aflições. Especialmente à Germana Araújo, pelas conversas, pela paciência em escutar e
serenidade em aconselhar.
Aos atores que participaram do exercício cênico “A feiticeira”, parte da presente pesquisa,
Débora de Magalhães, Paula Lafayette, Paulo Saldanha, Thaís Chilinque e Rafael Sieg, pela
disponibilidade, interesse e dedicação ao trabalho.
À Celina Sodré e ao Instituto do Ator.
À Clara Choveaux e à Grace Fedoce.
Aos queridos amigos Tina Franchi, Jeane Baron, Jorge Luis Machado, Gustavo Peres, Luana
Michelotti, Fernando Michelotti, Camilo Scandolara, Adriane Gomes, Daniela Aquino,
Gustavo Muller.
Aos meus pais e minha irmã, pelo apoio.
RESUMO
Este trabalho trata da importância da desconstrução na pesquisa de Konstantin
Stanislávski, isto é, da abertura de espaços, tanto no próprio ator quanto no papel, que
possibilitam a manifestação criativa e a concretização da imaginação no corpo/mente do ator
de modo mais pleno.
Iniciamos nossa investigação refletindo sobre a evolução da prática e do pensamento
artístico de K. Stanislávski, abrangendo o contexto teatral de seu tempo, a principal mudança
de perspectiva ocorrida em suas pesquisas, os elementos do “sistema” e sua relação com a
imaginação, e o trabalho sobre as ações físicas.
Fazemos um estudo sobre a formação da imagem no corpo/mente do ator e sobre a
imaginação no processo criativo do ator em K. Stanislávski em diferentes fases do seu
trabalho.
Finalizamos nosso estudo refletindo sobre a desconstrução/composição do ator e da
personagem, no sentido de desconstruir os elementos desnecessários para o caminho criativo
do ator e abrir possibilidades, bem como, de analisar/desconstruir o papel para compor a
personagem.
Abordamos também a prática pedagógica teatral de criação de etiud e a sua relação
com a análise ativa.
Palavras-chave: Imaginação, Desconstrução, Konstantin Stanislávski
ABSTRACT
IMAGINATION AND DECONSTRUCTION IN K. STANISLÁVSKI
This work deals with the importance of deconstruction in Konstantin Stanislávski‟s
research, that means, opening space, both in the actor and in the role, in order allow the
creative manifestation and the concretion of imagination in the actor‟s body/mind in its most
efective way.
We initiate our inquiry reflecting on the evolution of K. Stanislávski‟s practical and
artistic thought, going through the theatrical context of his time, the main change of
perspective that has happened in his research, the elements of his “system” and their relation
with imagination; and the work on the physical actions.
We present a study of the image constitution in the actor‟s body/mind and also the
imagination in K. Stanislávski‟s actor creative process in different phases of his work.
We finish our study by reflecting on the deconstruction/composition of the actor and
the character towards deconstructing the unnecessary elements for the creative way and
opening possibilities, as well as analyzing the deconstruction of the role to compose the
character.
We also study the pedagogical theatrical practice of etiud creation and its relation with
the active analysis method.
Key words: Imagination, Deconstruction, Konstantin Stanislávski
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 12
CAPÍTULO 1 – Reflexões sobre o desenvolvimento da prática e do pensamento
artístico de Stanislávski ........................................................................................... 19
1.1 As pesquisas de Stanislávski no contexto de seu tempo ........................................ 21
1.2 A primeira fase das pesquisas de Stanislávski: “crer para agir” ............................ 31
1.3 A mudança de perspectiva nas pesquisas de Stanislávski: “agir para crer” ............ 36
1.4 Introdução a elementos do “sistema” e sua relação com a imaginação .................. 40
Adaptação ...................................................................................................... 40
Liberdade muscular e Tempo-ritmo ................................................................ 41
Lógica e continuidade..................................................................................... 43
“Se” mágico e circunstâncias dadas............................................................... 45
Concentração e Relação ................................................................................. 46
Fé e sentido da verdade .................................................................................. 47
1.5 O trabalho sobre as ações físicas .......................................................................... 50
CAPÍTULO 2 – A imaginação no processo criativo do ator em Stanislávski ........ 53
2.1 O processo de formação da imagem no corpo/mente do ator................................. 54
Stanislávski e a organicidade do ator ............................................................. 58
A ação física e a organicidade do ator............................................................ 60
Tempo-ritmo e organicidade ........................................................................... 64
2.2 A formação da imagem e os objetos de atenção .................................................... 65
A atenção ativa ............................................................................................... 67
A formação de repertório na imaginação do ator ........................................... 67
2.3 Desenvolvimento e transformação na representação da imagem no processo
criativo de Stanislávski .............................................................................................. 69
2.3.1 Primeira fase - Reflexões sobre o processo de análise de
“A desgraça de ser inteligente” ....................................................................... 71
2.3.2 Segunda fase - Reflexões sobre o processo de análise de “Otelo” .......... 76
2.3.3 Última fase: As ações físicas - Reflexões sobre o processo de análise de
“O Inspetor Geral” ......................................................................................... 80
CAPÍTULO 3 – A desconstrução/composição do ator e da personagem ............... 85
3.1 Desconstruindo os elementos desnecessários para o caminho criativo do ator e
abrindo possibilidades ................................................................................................ 86
3.2 Desconstruindo o ator e o papel para criar a personagem ...................................... 90
Tendências da arte do ator observadas por Stanislávki e a arte da vivência ...... 93
A arte da vivência ............................................................................................. 96
3.3 A prática do etiud ................................................................................................ 100
3.3.1 A Análise Ativa e a criação de etiud...................................................... 104
Reflexões sobre a abordagem da Análise Ativa e a criação de etiuds conforme
Maria Knébel ................................................................................................ 104
Percepções sobre a criação de etiuds na prática proposta por
Anatoli Vassiliev ............................................................................................ 105
Considerações sobre a Análise Ativa e a criação de etiuds na visão de
Gueorgui Tovstonógov ................................................................................... 110
A Análise Ativa na criação de etiuds partindo da abordagem de
Nair D‟Agostini ............................................................................................. 112
Análise do conto “A Feiticeira”, de Anton Tchekhov ..................................... 115
Da análise para a criação de etiuds............................................................... 120
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 122
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ................................................................... 133
APÊNDICES ........................................................................................................... 139
12
INTRODUÇÃO
(...) quando o Coelho tirou um relógio do bolso do colete, e olhou para ele,
apressando-se a seguir, Alice pôs-se em pé e lhe passou a idéia pela mente
como um relâmpago, que ela nunca vira antes um coelho com um bolso no
colete e menos ainda com um relógio para tirar dele. Ardendo de
curiosidade, ela correu pelo campo atrás dele, a tempo de vê-lo saltar para
dentro de uma grande toca de coelho embaixo da cerca. No mesmo instante,
Alice entrou atrás dele, sem pensar como faria para sair dali. (CARROL)2
O caminho percorrido por Konstantin Stanislávski (1863-1938) em seus estudos e
experimentações é muito vasto, em contínua renovação, e suas descobertas são ao mesmo
tempo simples e profundas. Por conta disso, ao realizar esta pesquisa surgiram muitas
questões e possibilidades que apontavam para amplos pensamentos.
Estudar a imaginação em Stanislávski possibilita uma melhor compreensão sobre as
transformações que ocorreram em sua obra. Pois, a imaginação está sempre presente e
também se transforma, junto com a evolução de suas pesquisas. Essas transformações têm
relação com a forma como Stanislávski passa a trabalhar com a imaginação no processo
criativo, a cada nova experiência. Assim, o estudo da imaginação no trabalho do ator
proporciona o entendimento sobre a totalidade do caminho artístico de Stanislávski.
A imaginação de Alice
Na “hora do chá”, minha orientadora Andrea Copeliovitch observou que a imaginação,
nesta pesquisa, se tornou uma espécie de coelho branco de “Alice no país das maravilhas”.
Um coelho branco que foi intensamente perseguido por mim na tentativa de entender a
imaginação: pegar o coelho.
Desde antes do início da pesquisa/jornada eu me sentia segura sobre qual era a
imaginação que eu buscava compreender, ou o coelho que eu queria alcançar. A imaginação
que pode ser vista, sentida, percebida por meio do corpo do ator, pois é capaz de envolvê-lo
em sua totalidade no momento da criação cênica.
Essa busca esteve presente em mim desde a minha formação acadêmica. Um dos
fatores essenciais para que os meus questionamentos, revelações e impulsos para o
2
CARROL, L. Alice no país das maravilhas.
http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/alicep.html
Editorial
Arara
Azul:
Brasil,
2002.
In
13
conhecimento tomassem forma nesta pesquisa foi o encontro com Nair D‟Agostini 3, que foi
minha mestra de formação no trabalho do ator e do diretor e que está presente em toda a
minha trajetória artística, cujo aprendizado sinto a necessidade de preservar e passar adiante.
Acredito na capacidade da imaginação de trazer vida para a cena e qualidade artística à
ação do ator. No momento em que o ator está preenchido por imagens, associações,
impressões, é possível refletir esse movimento, essa qualidade, em uma presença cênica viva
de seu corpo. Estando presente no corpo, essa vida imaginária é naturalmente expandida para
o espaço e se torna visível, se torna cenicamente concreta.
O trabalho do ator com a imaginação tem a capacidade de trazer à existência esse
outro mundo, o mundo da cena. E possibilita que o espectador, que o próprio ator, que o
diretor adentrem nesse outro mundo, que é o mundo da história que está sendo concretizado
no aqui e no agora pelo ator, que faz parte de outro plano, que não é o da vida cotidiana, mas
que deve existir em cena. Esse mundo pode ser proporcionalmente acrescido de qualidade
artística de acordo com o envolvimento do ator com a sua imaginação.
Mas a imaginação, assim como o coelho branco de Alice, não é tão simples de tocar,
aparece e desaparece sem que se possa segurá-la. Parece tão concreta e palpável ao preencher
o corpo do ator, o espaço cênico e, ao mesmo tempo, permanece intocável, fugidia.
Que caminho devo seguir?
Como Alice, durante este percurso, me deparei com pessoas, conversas, conselhos,
leituras, apontamentos e questionamentos que, de uma maneira ou de outra, obstaculizando ou
impulsionando, ajudaram a compor esta dissertação.
Cada vez que eu parava para conversar com esses personagens do país dos espelhos,
às vezes o meu próprio reflexo, o coelho/imaginação parecia ficar cada vez mais longe, mas a
minha vontade de seguir ficava cada vez mais forte.
“Se você quer pesquisar a imaginação, vai ter de estudar psicologia, começando pelo
fundador da psicologia. Não existe outro caminho.”
3
Nair D‟Agostini, diretora e pesquisadora teatral que, de 1978 a 1981, realizou pós-graduação no LGITMiK –
Instituto Estatal de Teatro, Música e Cinema de Leningrado, ex-URSS, sendo a primeira brasileira a estudar no
mesmo. Teve como professores principais Arkádi Kátzman (1921-1989) e Gueorgui Tovstonógov (1913-1988),
mestres herdeiros da tradição de Stanislávski.
14
“Será mesmo que não existe?”
“Tudo bem, eu quero pesquisar a imaginação, mas a imaginação no processo criativo
do ator. A imaginação no corpo/mente do ator nos últimos estudos de Stanislávski. E não
posso, nem de longe, reforçar uma compreensão parcial de seus estudos (o que sabemos que
há muito por aí), enfocando uma questão psicológica. Por que seria necessário estudar
psicologia para fazer este trabalho?”
“É claro que existem outros caminhos!”
“Ok, entendido. Não será preciso.... afinal, você busca a imaginação que abrange todo
o corpo do ator.”
“Isso mesmo! Ufa!!”
“Tem de estudar os norte-americanos, Stanislávski não desenvolveu a imaginação em
seus últimos estudos.”
“Espera um pouco... como não? E outra coisa, os estudos desenvolvidos nos EUA, a
partir de uma adequação da obra de Stanislávski a essa cultura, tem pouca relação com a
última fase das pesquisas do mestre russo e eu posso encontrar estudos muito mais relevantes
para este trabalho pesquisando diretamente em seus discípulos russos... Por que é preciso
estudar os norte-americanos? Não vou acabar saindo do meu foco?”
“É verdade, assim você vai acabar saindo do seu foco, talvez não seja necessário.”
“Talvez seja.”
“Não há outro caminho. E também você vai ter de contextualizar o teatro da época de
Stanislávski, o Teatro de Arte de Moscou, falar de naturalismo, romantismo, “quarta
parede”... a montagem de “Hamlet” no TAM...”
“Não podemos esquecer o que Tovstonógov alertou, não devemos confundir a estética
do TAM com a metodologia de Stanislávski...”
“Bem lembrado. E neste trabalho pretendo tratar dessa metodologia criativa.”
Ao mencionar que estava pesquisando a imaginação em Stanislávski, pude perceber
que, na maior parte das vezes, a minha pesquisa era entendida como um trabalho com ênfase
sobre a mente do ator, ou ainda, recebia como resposta uma referência à escola teatral norteamericana, sobre a questão da memória emotiva ou, até mesmo, às montagens realizadas pelo
TAM. Esses entendimentos me impulsionaram a buscar mostrar, por meio de estudos e
reflexões, que não era dessa perspectiva que eu via a imaginação no trabalho do ator e que
15
não era desse Stanislávski, chamado “primeiro Stanislávski”, que eu estava falando. É preciso
compreender o “último Stanislávski”. Pois, o “último Stanislávski” contém em si todos os
outros. Por isso, para melhor embasar e esclarecer a imaginação neste último eu tive de
percorrer toda a sua pesquisa.
Difícil fazer entender que a imaginação que eu buscava compreender e refletir estava
ligada à ação física e à integridade corpo/mente e não restrita à fase inicial dos estudos de
Stanislávski ou ao conhecimento que se desenvolveu nos EUA a partir de suas pesquisas.
Muitas vezes ouvi dizer que Stanislávski não havia desenvolvido o trabalho com a
imaginação na última fase de seus estudos, por isso busquei enfatizar nesta pesquisa o
equívoco desse pensamento. A imaginação permeou e sempre esteve presente em todo o
processo criativo de Stanislávski, desde o início e com a mesma força no final quando ele
mudou a perspectiva de seu trabalho para o enfoque nas ações físicas. A imaginação é
essencial para a criação de etiuds, prática criativa desenvolvida mais intensamente em suas
últimas pesquisas.
Entender que ele não trabalhou com a imaginação em suas pesquisas finais reforça um
entendimento equivocado sobre Stanislávski e sobre a imaginação no trabalho do ator, que é
psicofísica e não apenas mental. Como é possível afirmar que ao enfocar a ação física ele
diminui a importância da imaginação? Então a imaginação só tinha importância quando ele
trabalhava com foco na memória emotiva?
Nenhum movimento, nenhum passo em cena deve ser realizado
mecanicamente, sem um fundamento interior, ou seja, sem que intervenha a
imaginação (...). E, pelo contrário, tudo o que for feito friamente os
prejudicará, pois inculcará em vocês o hábito de atuar mecanicamente, sem
imaginação. (STANISLÁVSKI)4
Os americanos enfatizaram o trabalho mental da memória e da imaginação, talvez por
isso alguns tenham a impressão de que eles trabalharam mais do que o próprio Stanislávski
sobre a imaginação. Isso também faz parte desse entendimento parcial que busquei dissipar,
apelando inclusive para a neurociência.
4
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos Aires:
Quetzal, 1980, p.119. (Tradução nossa)
16
A rainha de copas
“Cortem-lhe a cabeeeça!!! – um pesquisador deve manter distanciamento sobre a sua
pesquisa. Conceitos, conceitos, conceitos, teoria, teoria...”
“E os questionamentos? E as crenças pessoais, a paixão pela pesquisa? E a experiência
já vivida que insiste em retornar como sensações e imagens em meu corpo e mente?”
Reafirmo a reflexão de Eduardo Galeano: “Eu não quero ser uma cabeça que rola por
aí!... Temos que raciocinar e sentir. E quando a razão se separa do coração comece a
tremer...”5. Eu quero ser uma pesquisadora inteira, que pensa e sente, que é tocada no
coração, em seus anseios artísticos, ao pensar e escrever.
Tudo seria tão mais fácil se eu não ficasse questionando, mas como escrever algo que
eu não sinto ou acredito? E como escrever aquilo que sinto e acredito? De que forma não me
tornar a minha própria rainha de copas e de que forma enfrentar as rainhas de copas ao longo
do caminho?
Tradição e tradução6
Ao buscar uma compreensão mais justa, preservando e, ao mesmo tempo,
contribuindo com a herança recebida sobre as pesquisas stanislavskianas, utilizamos no
presente estudo as obras de Stanislávski em espanhol, as quais foram traduzidas diretamente
do russo. Essas traduções fazem parte das suas obras completas, sem os cortes realizados
pelos editores norte-americanos, pelo contrário, com acréscimo de textos de Stanislávski,
mesmo incompletos, e de apontamentos de seus atores, que esclarecem diversos pontos do
texto, conforme suas últimas pesquisas. Também utilizamos neste trabalho traduções
realizadas por Nair D‟Agostini de textos de pesquisadores russos.
Até o presente momento, as traduções da obra de Stanislávski que temos no Brasil
foram feitas de traduções do inglês e não diretamente do russo, com exceção da publicação de
5
Depoimento do escritor uruguaio Eduardo Galeano na Praça da Catalunha, em Barcelona, durante a
mobilização de jovens na Espanha que protestavam por mais empregos e democracia, além de realizar críticas à
corrupção no país, em 24 de maio de 2011. In http://www.youtube.com/watch?v=mdY64TdriJk
6
Vide RUFFINI, F. Novela pedagogica, un estudio sobre los libros de Stanislavski. In REVISTA MÁSCARA.
Stanislavski, Ese Desconocido. Ano 3, nº 15. México, D.F.: 1993. Vide CAVALIERE, A. & VÁSSINA, E. A
herança de Stanislávski no teatro norte-americano: caminhos e descaminhos.. In Crop. Theater Studies. Guest
Editro Maria Silvia Betti. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP. Crop. Número 7, p. 1-394, 2001.
17
“Minha vida na arte”, traduzida do original por Paulo Bezerra 7. As traduções do inglês foram
responsáveis pela difusão da obra de Stanislávski em muitos países. O que parece reforçar as
incompreensões, compreensões parciais e equívocos mencionados anteriormente sobre a obra
de Stanislávski.
Não é fácil compreender o “sistema” desenvolvido por Stanislávski. Ao longo de sua
vida suas pesquisas passaram por diversas transformações, aprimoramentos, e ele mesmo
dizia que ainda não compreendia o seu “sistema” totalmente. Um fator agravante é que essas
traduções do russo para o inglês foram adaptadas para o entendimento teatral norte-americano
e sofreram edições de acordo com o que poderia ser melhor aplicado por eles. O que também
gera controvérsias é a forma com que muitas vezes foi realizada a transmissão desse
conhecimento, que é um conhecimento a ser transmitido e adquirido pela prática, como o
próprio Stanislávski afirmava. É a prática que torna esse conhecimento vivo e o impede de ser
“cristalizado em um método”, como coloca Andrea Copeliovitch:
Stanislávski como todo grande homem que enxerga além de seu tempo,
escreveu a seus editores em “Building a Character” que temia que suas
propostas fossem cristalizadas como um método a ser utilizado como se
fosse “um livro de receitas no qual tudo o que você precisa é achar a
página”. (COPELIOVITCH) 8
A desconstrução e o país das maravilhas
Do outro lado da toca do coelho encontramos um mundo invertido, subterrâneo, onde
tudo é possível e nos surpreende, e ao mesmo tempo, nos faz questionar o mundo cotidiano.
A partir desse questionamento, simultaneamente à busca pela compreensão do
processo criativo da imaginação em Stanislávski, outra temática foi adquirindo cada vez mais
espaço: a desconstrução.
A reflexão sobre a desconstrução surgiu em um questionamento sobre a obra “A
construção da personagem”9, por meio da qual Stanislávski é bastante conhecido no Brasil e
7
STANISLÁVSKI, K. Minha Vida na Arte. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989.
COPELIOVITCH, A. O ator guerreiro frente ao abismo. Natal: Edufrn, 2009, pp.84-85.
9
STANISLÁVSKI, K. A construção da personagem. Tradução de Pontes de Paula Lima. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1970.
8
18
cujo título difere bastante do original10, o qual traduzimos como “O trabalho do ator sobre si
mesmo. O trabalho sobre si mesmo no processo criador da encarnação”.
Passamos então a refletir sobre a ideia de desconstrução em Stanislávski.
Desconstrução que também se mostrou relacionada à prática criativa do etiud. E essa reflexão
tornou-se fortemente ligada ao estudo sobre a imaginação. A imaginação, mesmo tornada
concreta e visível no corpo/mente do ator, consiste em uma matéria intangível, mutante. O
que podemos tocar é o processo de fazer nascer essa imaginação, isto é, o processo de
desconstruir, de abrir espaços em si e na obra, para deixar aparecer a essência e a criação.
Uma desconstrução que se dá a partir do trabalho do ator sobre si mesmo, do trabalho com os
elementos do “sistema” na busca pela constituição de uma segunda natureza, uma “segunda”
imaginação, diferente do mundo cotidiano, usual. Uma desconstrução que possibilita que a
natureza e a imaginação se voltem para a criação do ator, para o mundo criado na cena.
10
STANISLÁVSKI, K. Rabota aktiora nad soboi. Rabota nad soboi tvórtcheskom protsésse voplochtchênia.
Tomo 3, Moscou: Iskusstvo, 1955.
19
CAPÍTULO 1
REFLEXÕES
SOBRE
O
DESENVOLVIMENTO
DA
PRÁTICA
E
DO
PENSAMENTO ARTÍSTICO DE STANISLÁVSKI
O “sistema”11 de Stanislávski surgiu e se consolidou antes de tudo no terreno
da cultura teatral da Rússia. A história de sua criação é inseparável do
caminho criativo do Teatro de Arte de Moscou; foi sendo elaborado durante
a luta deste teatro de vanguarda pela renovação radical da arte cênica. Se
formou debaixo da influência de Anton Tchekhov, Máximo Gorki e outros
grandes escritores contemporâneos. No Teatro de Arte, em seus Estúdios o
sistema foi submetido a uma prolongada prova de laboratório. (KRISTI)12
A busca de Konstantin Stanislávski “pela renovação radical da arte cênica” inicia em
uma época de inquietações e transformações na cena teatral dentre as quais podemos citar, o
surgimento do encenador e a atenção ao preparo criativo do ator. O mestre russo elabora um
“sistema”, voltado para a arte do diretor e do ator, que desenvolve e coloca à prova um
processo de incessante aprimoramento.
Ressaltamos o desenvolvimento de uma estética naturalista13, além das descobertas
tecnológicas e da possibilidade de conhecimento da cena de outros países, como principais
impulsionadores do espetáculo tratado como encenação. De acordo com Mário Bolognesi,
“nesse quadro de inovações, o encenador despontou como o articulador de todos os
elementos da composição cênica, vindo a ser o criador por excelência (...).”14
11
Em sua obra, K. Stanislávski se refere ao “sistema” iniciando a palavra com letra minúscula, entre aspas.
Segudo Ruffini, o sentido das aspas seria de “evitar leituras manualísticas” do mesmo. (RUFFINI, F.
Stanislavskij e o “teatro laboratorio”. Revista da FUNDARTE, Montenegro, v.4, n.8, p.4-15, jul.-dez. 2004,
p.8)
12
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.10. (Tradução nossa)
13
Emile Zola (1840-1902) foi o primeiro a teorizar sobre o Naturalismo (O naturalismo no teatro - 1881). Como
afirma Roubine, para a elaboração da teoria naturalista, “Zola retoma por sua conta todas as tradições teóricas
que anteriormente haviam pretendido reduzir o teatro a um estrito mimetismo (...) o palco, livre de qualquer
obrigação de decoro, deve acolher, caso se faça necessário, todas as feiuras sociais, fisiológicas ou outras, uma
vez que fazem parte do real (...).” (ROUBINE, J. Introdução às grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2003, p.111) A maior reinvidicação do Naturalismo é trazer à cena a ilusão da vida, a partir da
observação de fatos na natureza e a experimentação científica desses fatos nas personagens e situações da obra
teatral. Para tanto, foram desenvolvidos elementos teatrais que ajudavam a intensificar esse efeito de vida real,
como a iluminação, o cenário e a sonoplastia. André Antoine (1858-1943), a partir de 1887, passou a encenar os
espetáculos do Téâtre-Libre embasado na teoria naturalista. Também convém destacar que a Cia dos Meininger
já trazia consigo as bases do naturalismo antes dessa efetiva teorização, por volta de 1874 a trupe começou a
excursionar pela Europa com seus espetáculos.
14
BOLOGNESI, M. O teatro na Rússia no início do século XX. In CARREIRA, A. & NASPOLINI, M. (org.)
Meyerhold: experimentalismo e vanguarda: seminário de pesquisa. Rio de Janeiro: E-papers, 2007, p.65.
20
Via-se, dessa forma, na transição das últimas décadas do século XIX para o início do
século XX, o começo da valorização do teatro enquanto arte, deixando de ser entendido
apenas como a reunião de várias artes para a exposição de um texto em cena. Conforme
questiona Antonin Artaud (1896-1948): “considerando-se essa sujeição do teatro à palavra,
é possível perguntar se o teatro por acaso não possuiria sua linguagem própria, se seria
absolutamente quimérico considerá-lo como uma arte independente e autônoma, assim como
a música, a pintura, a dança, etc, etc.”15
A afirmação do teatro como arte autônoma e “o nascimento da arte da encenação”, não
muda somente a forma de se trabalhar com a obra dramatúrgica, a coloca em risco e,
conforme Picon-Vallin, “esse risco poderá acarretar até a supressão do texto (...)”16, e do
ator, como anunciado por Gordon Craig (1872-1966) no início do século XX 17. Assim, com a
encenação aumenta também o tensionamento da relação entre texto e cena, oposição esta
influenciada pelas reivindicações dos movimentos naturalista e simbolista18.
Todas essas inovações acabam por expor fragilidades na formação e no próprio
trabalho do ator, o que conduz à constatação de que para realmente renovar e valorizar
artisticamente a cena teatral é preciso um novo ator. De acordo com Picon-Vallin, “o
desenvolvimento da encenação e a necessidade de uma preparação do ator fora das
instituições acadêmicas herdadas do século XIX fizeram nascer uma reflexão sobre a
pedagogia, sobre a escola, sobre o ensino e o exercício, bem como sobre o processo
criativo.”19
15
ARTAUD, A. O Teatro e seu Duplo. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1999, p.76.
PICON-VALLIN, B. A arte do teatro: entre tradição e vanguarda: Meyerhold e a cena contemporânea. Rio
de Janeiro: Teatro do Pequeno Gesto: Letra e Imagem, 2006, pp.71-72.
17
Para Carlson, o teatro preconizado por Craig tinha por base o encenador, não o texto dramatúrgico, e cada
elemento cênico deveria estar subordinado a “uma visão artística única.” Inclusive o ator, que deveria renunciar
“à personalização e à representação, e procurar uma nova forma, baseada no „gesto simbólico‟.” (CARLSON, M.
Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo: Editora Unesp, 1995, p.297)
18
A chamada corrente simbolista não foi elaborada e exposta teoricamente. Diferente da naturalista, contou com
alguns artigos que pronunciavam suas idealizações artísticas no sentido da supremacia do verbo poético e da
extinção da representação. A experiência simbolista chegava a negar o cenário e o ator: era preferível um palco
vazio que não distraisse a atenção do espectador à palavra. Por esse motivo, em relação ao ator, também
apontavam “soluções apropriadas a aprisioná-lo em uma estrita rede de coerções estéticas, de maneira a anenizar
o peso mimético de sua presença física e seus vícios de atuação” (ROUBINE, Jean-Jacques. Introdução às
grandes teorias do teatro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, p.124), como o uso de máscaras, a imobilidade
e o texto falado sem expressar intenções. No entanto, ainda de acordo com Roubine, ao longo do século XX,
“uma boa parte das buscas mais inovadoras irão se nutrir dessa condenação do teatro ou de seus elementos
constitutivos.” (Ibidem, p.125) Isso se refere, principalmente, à crescente afirmação da teatralidade, oposta a
reprodução mimética da realidade.
19
PICON-VALLIN, B. A cena em ensaios. São Paulo: Perspectiva, 2008, p.62.
16
21
Acontece, então, um amplo questionamento sobre a arte teatral que se reflete nas
distintas buscas artísticas de André Antoine, Jacques Copeau (1879-1949) à Antonin Artaud,
na França; de Gordon Craig, na Inglaterra à Konstantin Stanislávski e Vsevolod Meyerhold
(1874-1940) na Rússia.
1.1 As pesquisas de Stanislávski no contexto de seu tempo
A antiga pedagogia teatral colecionava cuidadosamente os procedimentos
externos da atuação acumulados pela experiência. Eram procedimentos
canonizados e incluídos no código de regras estabelecidas para a conduta do
ator. Nos velhos manuais da arte cênica eram detalhados os traços externos
para a manifestação das paixões, dos estados de ânimo e do temperamento.
Oferecia-se ao ator uma provisão completa de procedimentos préestabelecidos para representar a alegria, a pena, a bondade, o desdém, etc.
(KRISTI)20
Com essa descrição de G. Kristi21 é possível visualizar não só a situação do ator russo,
mas também a situação dos atores em toda a Europa na época.
Na Rússia, conforme analisa Jacó Guinsburg os primeiros conservatórios para
cantores, atores e bailarinos surgiram pouco depois de 1860, antes disso, o ensino era
dominado pelas escolas dramáticas imperiais. De todo modo, eram trabalhados nas aulas,
basicamente, exercícios de dança, dicção e declamação. Os professores das escolas dramáticas
eram atores destacados que ensinavam como a personagem devia ser, mas não indicavam
caminhos para chegar a ela. O ensino se dava pela imitação ou repetição da forma
demonstrada pelo professor. Assim, “a instrução teatral não passava no fim do século de um
trabalho de diletantes. O método básico, a atitude, não se adequavam absolutamente à
formação de um ator capaz de desempenhar com independência e criatividade a função
cênica.”22
20
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, pp.12-13. (Tradução nossa)
21
G. Kristi, ator do TAM, escreveu o prefácio, publicado em 1954, da edição russa de “O trabalho do ator sobre
si mesmo no processo criador das vivências”, que aqui é utilizada por meio de sua publicação traduzida para o
espanhol.
22
GUINSBURG, J. Stanislávski, Meyerhold e Cia. São Paulo: Perspectiva, 2008, p.305.
22
Com o questionamento desses métodos de ensino foi organizado em março de 1897 o
Primeiro Congresso Russo de Gente do Teatro, reunindo “importantes membros da vida
cênica russa”23 para refletir sobre a condição do seu teatro.
Nesse mesmo ano, de 1897, destacamos o antológico encontro entre Stanislávski e
Vladimir Nemiróvich-Dântchenko24 (1858-1943) no qual, no intuito de buscar novos
caminhos para a arte teatral, decidem se unir para fundar um novo teatro, que fosse o palco
dessa busca. Em 1898, fundam o Teatro de Arte de Moscou (TAM).
A busca artística de Nemiróvich-Dântchenko coincidia em grande parte com os
propósitos de Stanislávski, foi então que tomou a iniciativa de convidá-lo para a formação de
um novo teatro, que seria integrado por alunos da Sociedade Filarmônica (entre eles estavam
Olga Knípper e Meyerhold) e pelo grupo da Sociedade Moscovita de Arte e Literatura25,
dirigida por Stanislávski. Nesse encontro, foi decidido que Nemiróvich-Dântchenko seria
responsável pelas questões literárias e administrativas, Stanislávski ficaria com as questões
artísticas. Discutiram desde a melhora nas condições de trabalho dos atores em relação a
limpeza, ventilação, espaço dos camarins, até questões éticas que exaltavam a formação de
um coletivo artístico. Também foi definido que o repertório deveria abranger obras clássicas e
contemporâneas e ser materialmente acessível, um teatro “ao alcance de todos”.26
Com o TAM, Stanislávski passou a experimentar e a desenvolver, concomitantemente,
diversas vias artísticas, experimentando várias estéticas; segundo ele, “essas linhas de busca
criativa se afastavam uma da outra para tornar a se aproximar, como as ramificações de
uma rede intrincada.”27
23
Segundo Guinsburg, a situação do teatro russo foi sintetizada por um dos participantes do Congresso da
seguinte forma: “Pouco a pouco, o teatro está sendo sacrificado ao comércio e às empresas mercantis. Perdeu sua
significação educativa e artística. O atual contingente de pessoas ligadas ao teatro abrange criaturas que não têm
qualquer relação com a arte e que vêem nela apenas um meio de ganhar a existência.” (GUINSBURG, J.
Stanislávski, Meyerhold e Cia. São Paulo: Perspectiva, 2008, p.301) Stanislávski e Nemiróvich-Dântchenko
também participaram do Congresso.
24
Vladimir Nemiróvich-Dântchenko, dramaturgo e diretor russo. Dirigiu por muitos anos a Sociedade
Filarmônica de Moscou antes da fundação do TAM.
25
A Sociedade Moscovita de Arte e Literatura foi inaugurada em 1888, tendo ligada a si uma escola dramáticomusical. Seu objetivo principal era o desenvolvimento e a troca de conhecimento entre as artes, como também
promover atividades teatrais, musicais, plásticas e literárias. Stanislávski ajudou a organizar e a concretizar a
Sociedade, atuando como seu dirigente, encenador e ator. A Sociedade se desfez em 1898, para que, ao unir seus
integrantes com os alunos formados por Nemiróvich-Dânchenko na Sociedade Filarmônica de Moscou, fosse
formado o núcleo de artistas componentes do Teatro de Arte de Moscou.
26
STANISLÁVSKI, K. Mi Vida en el Arte. Habana: Editorial Arte e Literatura, 1985, p.208. (Tradução nossa)
27
Ibidem, p.232.
23
O fato é que o TAM, por meio de seus espetáculos, se destacou positivamente junto ao
público e à imprensa, como nas montagens históricas e costumbristas28. Desse modo, no
momento inicial do TAM, eram explorados desde as caracterizações das personagens,
acessórios e figurinos, até invenções de truques para surpreender o público, em uma
organização detalhada do espetáculo.
De outra parte, esse reconhecimento positivo a respeito das montagens do TAM
acabou enquadrando-o, durante muito tempo, em uma estética de “realismo exterior” e de
“detalhes naturais”. A esse respeito, em 1926, Stanislávski afirma que:
Este mal-entendido se enraizou, e ainda vive no público, apesar de que,
durante o último quarto de século, percorremos um longo caminho composto
de trechos mais diversos, até opostos entre si, no desenvolvimento artístico;
vivendo toda uma série de evoluções e inovações. (...) Na realidade, nosso
teatro sempre foi distinto do que muitos pensavam e seguem pensando sobre
ele. Surgiu e segue existindo em nome de questões superiores da arte.
(STANISLÁVSKI)29
Para ilustrar a diversidade de linhas estéticas com as quais Stanislávski trabalhou
enquanto diretor artístico do TAM30, vamos enumerar algumas delas exemplificando com
espetáculos que se destacaram, mantendo a nomenclatura e o enquadramento estético
propostos pelo pesquisador russo em sua obra “Minha vida na arte” 31. Na linha que
Stanislávski chamou de “realidade exterior”, podemos citar a montagem de espetáculos
históricos e costumbristas tais como “O tzar Fiódor Ivanovich”, de Alexéi Tolstói, encenado
em 1898 na inauguração do TAM e “Júlio Cézar”, de Willian Shakespeare, estreado em 1903.
28
O termo, em espanhol, costumbrista se refere a uma tendência teatral do século XIX. Essa linguagem artística
buscava afirmar a identidade social e cultural de determinada localidade, ao retratar seus usos, costumes e
problemas. Utiliza a descrição das coisas externas do cotidiano por meio de enredos com conflitos que se
resolvem pelo “senso comum” e pelo prevalecimento dos bons hábitos. Devemos considerar também que
Guinsburg denominou essa linha de trabalho do TAM de “realismo ou naturalismo histórico-arqueológico”.
(GUINSBURG, J. Stanislávski e o Teatro de Arte de Moscou. São Paulo: Perspectiva, 1985).
29
STANISLÁVSKI, K. Mi Vida en el Arte. Habana: Editorial Arte e Literatura, 1985, pp.234-235. (Tradução
nossa)
30
Tendo trabalhado também como ator nas montagens dessas linhas estéticas.
31
Optamos por realizar apenas um levantamento de linhas estéticas trabalhadas pelo TAM e não nos ater a
explicações a respeito dessas linhas. Salientamos as encenações tchekhovianas e a busca pelo “realismo interior”
por considerarmos sua ligação com o nosso foco de pesquisa. Para um maior conhecimento sobre as demais
linhas estéticas do TAM, vide: STANISLÁVSKI, K. Mi Vida en el Arte. Habana: Editorial Arte e Literatura,
1985.
24
Dos espetáculos situados na “linha fantástica”, Stanislávski destaca “A donzela de
neve”, de Aleksandr Ostróvski, encenada em 1900, escrita com base em uma fábula russa, e
“O pássaro azul”, de Maurice Maeterlinck, que teve sua estreia em 1908.
Na “linha do simbolismo e do impressionismo”, Stanislávski salienta montagens de
obras de Ibsen32.
Dos espetáculos de “linha político-social”, destacamos “Doutor Stockmann”, de
Henrik Ibsen, encenado em 1900 - este espetáculo foi considerado por Stanislávski o gérmem
da “linha político-social” adotada pelo TAM -, “Os Pequenos Burgueses”, de Maxim Gorki,
parte do repertório do TAM de 1901 e 1902, e “O Poder das Trevas”, de Leon Tolstói, que
teve sua estreia em 1902.
Destacamos, por fim, as montagens de obras de Anton Tchekhov, salientando dentre
elas: “A Gaivota”, encenada em 1898, tornando-se o símbolo do TAM, “Tio Vânia”, de 1899,
e “As três irmãs”, de 1901. Estes espetáculos foram situados por Stanislávski em uma “linha
da intuição e do sentimento”. A exploração dessa linha o levou para a busca de um “realismo
interior”, no intuito de alcançar uma linguagem de atuação coerente, principalmente para as
obras de Tchekhov, mas também para obras de Gerhart Hauptmann, Ivan Turguêniev e Fiódor
Dostoiévski.
Ressaltamos as encenações das obras de Tchekhov como impulsoras do
desenvolvimento da prática e do pensamento artístico de Stanislávski:
Melhor do que qualquer outro, Tchekhov provou que a ação cênica deveria
estar esclarecida no sentimento interior, e que sobre ele, somente sobre ele,
ela seria purificada de toda a falsidade na cena. (...) Enquanto a ação cênica
externa diverte, distrai ou estimula os nervos, a interior contagia, se apodera
de nossa alma e a domina. (STANISLÁVSKI)33
A investigação do “realismo interior” nessas encenações exigia o envolvimento
espiritual do ator na busca da justificativa interna das suas ações e na compreensão das
questões enraizadas na alma de suas personagens. A maior parte do conflito em Tchekhov
acontece internamente, pelo que não é dito pelas personagens. Desse modo, na “linha da
intuição e do sentimento”, a ação interna deveria prevalecer, visto que, a característica
32
A obra de Henrik Ibsen transitou por diversas tendências estéticas da época, não estancando em nenhum
movimento. O autor produziu obras no âmbito histórico-romântico, passou pelo realismo e naturalismo e,
principalmente em suas últimas obras, trabalhou com elementos simbolistas e impressionistas, linha aqui
destacada por Stanislávski.
33
STANISLÁVSKI K. Mi Vida en el Arte. Habana: Editorial Arte e Literatura, 1985, p.246. (Tradução nossa)
25
humana dessas personagens exigia que a sua interpretação estivesse apoiada em uma forte
linha interna de ação, a fim de plasmar cenicamente o “estado de ânimo tchekhoviano”34.
Mesmo tendo acompanhado com interesse a produção dramatúrgica simbolista de
Maeterlinck desde antes da fundação do TAM, é apenas em 1902, por sugestão de Tchekhov,
que Stanislávski decide se aventurar na encenação de obras deste dramaturgo: “Os cegos”, “A
intrusa” e “Interior”; que dirige entre 1904 e 1905. No entanto, de acordo com Arlete
Cavaliere, o encenador enfrentou dificuldades nessas criações:
Recriar no palco essas imagens invisíveis e abstratas era um grande desafio
para o diretor. Em várias cartas e cadernos de anotações, Stanislávski deixou
registrado o doloroso processo de busca dos procedimentos teatrais que
pudessem ser adequados à recriação cênica dos personagens de Maeterlinck.
(CAVALIERE)35
As experimentações simbolistas são parte importante do caminho investigativo de
Stanislávski que queria encontrar caminhos para o diretor e o ator conseguirem trabalhar
dentro desta linguagem estética. Mas, a exigência a qual o pesquisador se impôs, de alcançar
com essas obras uma estilização formal e, ao mesmo tempo, uma coerência interna crível com
a linguagem criada, não foi realizada com êxito nessas montagens.
Segundo Cavaliere, foram as dificuldades deparadas nesta incursão pelo simbolismo
da obra de Maeterlinck, que levaram Stanislávski a perceber a necessidade de criar um espaço
destinado apenas à experimentação cênica. Espaço que foi concretizado em 1905: o Estúdio
Teatral; Meyerhold foi o encenador convidado a assumir a sua direção.
O Estúdio Teatral não chegou a realizar seu objetivo principal, isto é, a pesquisa sobre
a arte do ator, Meyerhold enfocou nesse trabalho seus anseios acerca da encenação e, assim,
os questionamentos de Stanislávski sobre o processo criativo do ator não avançaram. Com
isso, a experiência com o Estúdio reafirmou que não bastava que o diretor tivesse bons
propósitos para realizar um espetáculo dentro dessas linhas de vanguarda que estavam
surgindo; era preciso que o ator estivesse preparado, caso contrário, as suas deficiências
continuariam sendo disfarçadas por meio de bem elaboradas encenações. E no mesmo ano de
1905 termina o Estúdio Teatral. Segundo Cavaliere:
34
STANISLÁVSKI K. Mi Vida en el Arte. Habana: Editorial Arte e Literatura, 1985, p.249. (Tradução nossa)
CAVALIERE, A. O Teatro Russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco. São Paulo: Humanitas,
2009, p.226.
35
26
A atmosfera política turbulenta daqueles anos, com as greves gerais e a
repressão violenta à revolução de 1905, somada ao descontentamento de
Stanislávski em relação a essa encenação (“A morte de Tintagiles”, de M.
Maeterlinck) que ambos preparavam no Teatro-Estúdio, e cuja composição
pictórica e a plasticidade do conjunto começavam a definir o princípio da
estilização meyerholdiana, tudo isso resultou na brusca interrupção desse
empreendimento. (CAVALIERE)36
Após o Estúdio Teatral ter sido desfeito, o desejo de organizar um espaço de
laboratório teatral anexo ao TAM permaneceu suspenso, mas voltaria a frutificar em 1912,
com a criação do Primeiro Estúdio do TAM37.
Conforme relata Stanislávski, a sua maturidade artística inicia durante um período de
crise após a morte de Tchekhov, o fracasso com as encenações de obras de Maeterlink e o fim
do Estúdio; no momento em que se afasta para descanso na Finlândia, em 1906. A reflexão
sobre uma de suas personagens de maior destaque, o Dr. Stockmann, da obra homônima de
Ibsen, o levou a percepções que influenciaram os seus próximos trabalhos.
Apesar do sucesso alcançado junto ao público pela personagem Dr. Stockmann,
Stanislávski percebeu que, com o tempo, havia perdido “a força motriz da vida espiritual de
Stockmann”38 e estava apenas repetindo e copiando a forma externa do que havia criado. Com
isso, concluiu que para ser capaz de dispor o seu corpo/mente em um “estado criativo”, em
um estado apto a captar as impressões da cena e a reagir a elas no momento da ação, sem se
acomodar no automatismo que a repetição pode trazer, o ator precisava realizar uma limpeza
física e espiritual antes de cada apresentação. De acordo com Ruffini:
Stanislávski entende que é necessário renovar a criação a cada vez. Renovar
a criação a cada vez não é a mesma coisa que repeti-la sem variações, como
se fosse a primeira vez. A repetição é, ao contrário, o inimigo a combater.
(RUFFINI)39
O mestre percebeu que a cada vez, a cada repetição, o ator deveria estar disponível
para o jogo, para agir adaptando-se às circunstâncias que surgissem no aqui e no agora da
cena.
36
CAVALIERE, A. O Teatro Russo: percurso para um estudo da paródia e do grotesco. São Paulo: Humanitas,
2009, p.233.
37
O Estúdio Teatral, dirigido por Meyerhold em 1905, não foi considerado o primeiro, mas entendido como uma
primeira experiência para os Estúdios que vieram depois.
38
STANISLÁVSKI, K. Mi Vida en el Arte. Habana: Editorial Arte e Literatura, 1985, p.324. (Tradução nossa)
39
RUFFINI, F. Stanislavskij e o “teatro laboratorio”. Revista da FUNDARTE, Montenegro, v.4, n.8, p.4-15,
jul.-dez. 2004, p.7.
27
Prestes a criar o Primeiro Estúdio do TAM, com o apoio de Leopold Sulerjítski (18721916) e Evguiêni Vakhtângov (1883-1922), Stanislávski reune artistas, entre eles Mikhail
Tchekhov40 (1891-1955), para iniciar experimentações práticas sobre os elementos de seu
“sistema”. Já nesse momento, o pesquisador expõe alguns mal-entendidos a respeito de seus
propósitos. Alguns artistas estavam tomando conhecimento de seu “sistema” e passando a
praticá-lo ou a ensiná-lo, sem, no entanto, compreendê-lo. De acordo com Stanislávski:
Não entendiam que aquilo de que eu falava não era possível assimilar,
apropriar-se em uma hora, nem tampouco em um dia; que era necessário
estudá-lo sistematicamente e praticamente ao longo de anos, durante toda a
vida, permanentemente, transformando o concebido em habitual, deixar de
pensar nele, mas esperar que se manifeste de maneira natural, espontânea.
Para isso era necessário o hábito, que é a segunda natureza41 do artista.
(STANISLÁVSKI)42
A necessidade de experimentação de novos caminhos para a arte do ator, que se
mostra mais intensamente em determinados momentos, como nas experiências simbolistas, no
Estúdio Teatral e na crise com a personagem Dr. Stockman, cada vez mais impulsionava
Stanislávski para a fundação de um novo espaço de experimentação. O TAM, com o seu
crescimento, ao se tornar um grande teatro, uma verdadeira instituição que dependia da
formação de repertório e do público para se manter funcionando, não podia comportar o
processo de laboratório teatral que se mostrava tão necessário para colocar em prática as
ideias que estavam surgindo em Stanislávski sobre a elaboração do seu “sistema”.
Desse modo, os Estúdios que funcionavam paralelamente às montagens de repertório
do TAM constituiram o principal meio de investigação e desenvolvimento do “sistema” para a
formação do ator e do diretor. Para Stanislávski “saber” na linguagem teatral significa “ser
capaz de”. Por isso o seu empenho em aplicar na prática, de modo experimental, as ideias que
vinha elaborando aproximadamente desde 1909.
40
Mais adiante retomaremos Mikhail Tchekhov no que se refere às suas reflexões acerca do trabalho do ator com
visualizações. M. Tchekhov, ator e diretor, esteve vinculado ao Teatro de Arte de Moscou por desesseis anos, de
1913 a 1928. Durante esse período trabalhou diretamente com Stanislávski, Nemiróvich-Dântchenko,
Vakhtângov e Sulerjítski. Participou tanto das montagens quanto de estúdios de experimentação do TAM. O seu
trabalho era associado, sobretudo, ao poder da imaginação. Após ser acusado de idealista e místico, devido ao
uso de Euritmia e de seu interesse por Rudolf Steiner, o que era totalmente proibido na cultura soviética, em
1928, recebe um convite do diretor Max Reinhardt para atuar na Alemanha e, em Berlim inicia uma nova fase de
sua carreira, que mais tarde o levará aos EUA, na qual busca estabelecer uma metodologia de trabalho própria.
41
Em seguida abordaremos mais atentamente a questão da segunda natureza em Stanislávski.
42
STANISLÁVSKI K. Mi Vida en el Arte. Habana: Editorial Arte e Literatura, 1985, p.382. (Tradução nossa)
28
Destacamos a fundação do Primeiro Estúdio do TAM, em 1912, por sua busca pela
integração do estado criativo do ator ao seu desenvolvimento humano. Nesse estúdio, o papel
de “guia espiritual” coube ao colaborador e amigo Sulerjítski, que segundo Stanislávski, foi o
primeiro a reconhecer suas experiências iniciais com o “sistema” e compartilhava do mesmo
ideal artístico-espiritual. A característica espiritual e ética do Primeiro Estúdio em seu fazer
artístico fundamenta a reflexão defendida por Franco Ruffini 43 de que o Primeiro Estúdio não
é apenas o antepassado de todos os teatros laboratórios que surgem no decorrer do século XX,
mas também e sobretudo o modelo. Modelo que foi aplicado e desenvolvido mais tarde por
outros pesquisadores, como Jerzy Grotowski (1933-1999) e Eugenio Barba (1936-).
De acordo com Camilo Scandolara44, Sulerjítski iniciou oficialmente seu trabalho no
TAM em 1906, como assistente de direção e até a fundação do Primeiro Estúdio realizou
várias tarefas junto ao TAM. Além das assistências de direção nas encenações de Stanislávski,
participou das experimentações simbolistas e a atuou como diretor, em trabalho conjunto com
Stanislávski e Edward Gordon Craig na encenação de “Hamlet”, em 1911, pelo TAM.
Sulerjítski também foi encarregado por Stanislávski da compilação de suas anotações sobre o
“sistema” e de dar aulas, a partir desse embasamento, para atores do TAM.
Nos primeiros anos do Estúdio, Sulerjítski possibilitou que este se mantivesse como
um espaço totalmente voltado para a experimentação e elaboração do “sistema”, que naquele
momento era fundamentalmente prática.
Vakhtângov ingressa no TAM em 1911 e também é considerado um importante
desenvolvedor das pesquisas stanislavskianas no trabalho dos Estúdios, sendo apontado por
Scandolara como um profundo conhecedor do “sistema”. Sua importância também reside no
estímulo dado por ele ao desenvolvimento das experimentações cênicas em Estúdios, tendo
responsabilidade direta na multiplicação desses laboratórios teatrais na Rússia, após a
revolução. Segundo Scandolara, antes mesmo do Primeiro Estúdio, Vakhtângov já
demonstrava, nas atividades do TAM, sua tendência ao trabalho pedagógico, tornando-se um
grande colaborador de Stanislávski na investigação do seu “sistema”.
Desse modo, conforme afirma Scandolara:
43
Vide RUFFINI, F. Stanislavskij e o “teatro laboratorio”. Revista da FUNDARTE, Montenegro, v.4, n.8, p.415, jul.-dez. 2004.
44
SCANDOLARA, C. “Os Estúdios do Teatro de Arte de Moscou e a formação pedagógica teatral no século
XX” - Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, 2006, pp.4547.
29
(...) o desenvolvimento das pesquisas de Stanislávski se dá, principalmente,
no contexto dos estúdios e é a eles que Sulerjítski e Vakhtângov dedicam sua
vida profissional no teatro. Realizam suas experimentações práticas no
processo de formação de atores de diferentes estúdios e assim contribuem de
maneira decisiva com o desenvolvimento e a reformulação dos conceitos do
“sistema”. Seria mais adequado, portanto, pensar no “sistema” como
consequência de um amplo contexto de experimentação prática da arte do
ator, coordenado por Stanislávski, mas alimentado e experimentado por
diversos atores e pedagogos reunidos em torno ao TAM.
(SCANDOLARA)45
Em direção oposta às tentativas anteriores de elaboração de modelos para a formação
do ator, o maior diferencial do “sistema” é que ele foi gerado pela investigação de meios para
instrumentalizar e ampliar a capacidade artística e criadora do ator, a partir de uma busca
sobre o próprio ator, rechaçando formas prontas, clichês e estereótipos.
A mola propulsora da busca stanislavskiana não era encontrar ou assumir uma forma
de realização cênica. Sua busca transcendia a vinculação a qualquer estética, pois se movia
“em nome de questões superiores da arte”. Essas questões se encontravam estreitamente
ligadas a uma ideia ética e espiritual, ao aperfeiçoamento do ser humano, ator e espectador,
pelo contato com a arte teatral; e à criação do “espírito humano na cena”, ou seja, uma
concretização cênica crível, que transmitisse artisticamente uma conexão, em sua essência,
com o que Stanislávski chamava de “verdade da vida”. O desafio era descobrir caminhos que
possibilitassem o acontecimento dessa verdade em cena. Lembrando a afirmação de Gueorgui
Tovstonógov46:
No fim do século passado Stanislávski descobriu uma nova orientação
estética, a qual se expressou na criação do Grande Teatro. Mas a principal
obra de sua vida é imortal – a descoberta das leis orgânicas do
comportamento humano na cena, sem as quais seria impossível qualquer
orientação na arte. (TOVSTONÓGOV)47
45
SCANDOLARA, C. “Os Estúdios do Teatro de Arte de Moscou e a formação pedagógica teatral no século
XX” - Dissertação de mestrado, Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Artes, Campinas, 2006,
pp.174-175.
46
Gueorgui Tovstonógov teve como mestres A. D. Popov (1892-1961), A. M. Lobanov (1900-1959) e M. O.
Knébel (1898-1985). Todos eram discípulos e seguidores de K. Stanislávski, haviam sido atores do TAM e
também participado em seus diversos Estúdios. Tovstonógov assistiu a palestras-aulas de Stanislávski no Estúdio
de Ópera Dramática e a conferências no GITIS (Instituto Estatal de Arte Teatral de Moscou). Foi considerado
um dos encenadores mais importantes da contemporaneidade.
47
TOVSTONÓGOV, G. Sobre o vivo Stanislávski. Stanislávski num mundo em mudança, em transformação:
Material do Simpósio Internacional. Moscou, 27 de fevereiro a 9 de março de 1989. Moskva: Izdanie
ossuschestvleno, Pri sodeistvii, AKB “DialogBank”, 1994, p.134. (Tradução Nair D‟Agostini)
30
Desse modo, podemos entender que as estéticas experimentadas por Stanislávski em
suas encenações foram passageiras, pertencendo à determinada época e cultura, enquanto as
“leis orgânicas do comportamento humano na cena” permanecem. Stanislávski escreve no
prólogo de “O trabalho do ator sobre si mesmo no processo criador das vivências”, na
publicação original de 1938: “(...) o que trato em meu livro não se refere a uma determinada
época e sua gente, mas à natureza orgânica de todas as pessoas do mundo da arte, de todas
as nacionalidades e de todas as épocas.”48
As leis orgânicas consistem nos elementos que constituem o “sistema”
stanislavskiano, tais como concentração, imaginação, “se” mágico, fé e sentido da verdade,
liberdade muscular, tempo-ritmo, entre outros. Para Stanislávski, todos esses elementos se
encontram na natureza humana, por isso, os entendia como “leis orgânicas do comportamento
humano na cena”. De acordo com ele, esses elementos, que fazem parte da própria natureza
do homem, poderiam ser aprimorados em qualquer pessoa, pertencente a diferentes culturas e
épocas. Segundo Stanislávski, o desenvolvimento das leis orgânicas no corpo/mente do ator
pode possibilitar o alcance de um estado criativo “vivo”, a formação de uma segunda
natureza. Formar no corpo/mente do ator uma segunda natureza consiste em tornar os
elementos do “sistema”, ou seja, as leis orgânicas da ação, parte de si mesmo, de modo que
não seja mais necessário racionalizar a esse respeito. Como segunda natureza, os elementos
desenvolvidos na totalidade psicofísica do ator passam a se manifestar espontaneamente
O pesquisador russo chegou às “leis orgânicas do comportamento humano na cena”
pela investigação artística em si mesmo e observando grandes atores, que atuavam de forma
genial, com espontaneidade, sem precisar de uma metodologia. Neles a criação provinha de
uma manifestação artística e emocional “sincera” do ator, guiada por intuição ou inspiração.
A este respeito citamos Tovstonógov:
Como atuaram antes de Stanislávski? Como existia o teatro antes da
metodologia? Por acaso não havia bons artistas? Não houve realizações na
cena? É claro que houve. Foi graças à experiência dos grandes artistas,
contemporâneos de Stanislávski, que a metodologia surgiu. Graças
exatamente ao fundamento da experiência de tais artistas como Salvini,
Schaliapim, Ermolova, Fedetova que surgiu a metodologia. Em um lugar
vazio ela não poderia surgir. Quero repetir o espirituoso e exato paradoxo de
Alexei Dimitri Popov: Nós tivemos sorte que Konstantin Stanislávski não foi
um artista genial no início. Não foi. Mas, foi um genial analítico. E graças à
48
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.43. (Tradução nossa)
31
sua capacidade para a análise que ele filtrou a experiência dos grandes
artistas e, dessa forma, ele mesmo se tornou grande. Se ele fosse gênio, teria
o dom da natureza, não teria ficado refletindo. Os outros atuaram pela
inspiração e ele, no entanto, analisou. (TOVSTONÓGOV) 49
A inquietude, juntamente com a grande capacidade de análise, foi essencial para o
progresso da busca artística de Stanislávski. Seus procedimentos e crenças foram se
transformando e evoluindo na medida das suas descobertas cênicas: pelo olhar observador e a
verificação prática em si mesmo, como ator e diretor; e, principalmente, no trabalho
pedagógico desenvolvido nos Estúdios de experimentação do TAM.
1.2 A primeira fase das pesquisas de Stanislávski: “crer para agir”
Na busca pela expressão cênica da essência da obra e a fim de despertar no ator um
estado criativo, Stanislávski, em seus primeiros estudos, partiu das subjetividades interiores,
contemplando a imaginação, parte essencial do estado criativo buscado por ele, e a memória
emotiva50. O pesquisador acreditava que, do mesmo modo que a nossa memória visual faz
surgir em nossa mente algum objeto, lugar ou pessoa que não vemos há muito tempo, a
memória emotiva seria capaz de acionar sentimentos e emoções já experimentados por nós.
Nesse momento, a memória emotiva foi estimulada como um dos meios para justificar
internamente as ações do ator em cena, para que ele não caísse na forma vazia do velho teatro.
Stanislávski pretendia, assim, que o ator reavivasse em cena suas emoções e sensações por
uma via indireta, ou seja, por meio das recordações. Configurando uma arte que acontecia a
partir da noção de que era preciso “crer para agir”, isto é, do interno (memória emotiva) para
o externo (execução da ação).
Ao trabalhar sobre a noção de “crer para agir”, a realização da ação encontrava-se em
total dependência da crença do ator nas circunstâncias imaginadas em dado momento e na
retomada, pela memória e pela imaginação, das subjetividades experimentadas por ele em
cena e na vida pessoal. Como exemplifica o mestre russo:
49
TOVSTONÓGOV, G. Sobre o vivo Stanislávski. Stanislávski num mundo em mudança, em transformação:
Material do Simpósio Internacional. Moscou, 27 de fevereiro a 9 de março de 1989. Moskva: Izdanie
ossuschestvleno, Pri sodeistvii, AKB “DialogBank”, 1994, pp.142-143. (Tradução de Nair D‟Agostini)
50
O uso da “Memória Emotiva” foi elaborado por Stanislávski a partir do conceito de “Memória Afetiva” do
cientista francês Armand Ribot (1839-1916), que desenvolvia a psicologia experimental. Vide:
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos Aires:
Quetzal, 1980, pp.222-223.
32
Imaginem que vocês tenham recebido uma ofensa em público, por exemplo,
uma bofetada, que os faz arder o rosto cada vez que pensam nisso. (...) Por
uma causa insignificante e ainda sem motivo algum, a ofensa ressurge
instantaneamente na memória com redobrada força. O rubor ou uma palidez
mortal cobrem o rosto, e o coração se contrai e bate aceleradamente. Se o
ator dispõe de um material emotivo tão poderoso e tão facilmente excitável,
não lhe custa o menor esforço reviver uma cena análoga à que se gravou nele
pelo choque experimentado em sua vida. (STANISLÁVSKI)51
Caso os sentimentos se recusassem a vir à tona naturalmente após a recordação, o que
podia acontecer em razão da necessidade de repetir a cena inúmeras vezes, nos ensaios e
apresentações, Stanislávski salientava que o ator deveria recorrer aos elementos do “sistema”,
“as invenções da fantasia (...), os objetos de atenção” 52 como estímulos à memória emotiva
para a reprodução das sensações.
Desse modo, os esforços do pesquisador estavam voltados para encontrar e
desenvolver no ator ferramentas, ou elementos, que pudessem ativar as emoções em cena.
Exigia a capacidade do ator de desenvolver em si mesmo os elementos do “sistema” para uma
criação artística que tinha o seu foco final na reprodução das sensações e emoções. Porém,
Stanislávski evitava trabalhar diretamente sobre as emoções, porque sabia que, não estando
sujeitas ao domínio humano, elas poderiam não aparecer e levar o ator a uma demonstração
formal de sentimentos na cena, o que, para ele, era um clichê. Ao forçar o surgimento de suas
emoções em cena o ator corre o risco de cair em um exagero que pode prejudicar a qualidade
artística de sua atuação, por entrar em uma esfera de convenções.
Ao tratarmos da memória emotiva, somos remetidos à ampla disseminação desse
aspecto das pesquisas stanislavskianas nos EUA. Torna-se necessário, então, realizarmos um
breve aparte para esclarecer como essas pesquisas foram absorvidas no âmbito norteamericano.
Em 1923 foi criado o American Laboratory Theather por Richard Boleslávski53
(1889-1937), que havia integrado o Primeiro Estúdio do TAM e acompanhou de perto a
tournée do TAM pelos EUA.
51
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.243. (Tradução nossa)
52
Ibidem, p.247.
53
Richard Boleslávski, ator, diretor e professor, havia saído da Rússia após a revolução de 1917 e encontrava-se
em Nova York desde 1922. Em 1923, auxiliou Stanislávski nos ensaios e na organização de conferências
realizadas pelo pesquisador russo durante sua estada nos EUA.
33
Segundo Cavaliere e Vássina, com a intenção de eliminar clichês e a exaltação dos
“monstros sagrados” pelos americanos, Boleslávski centraliza o seu método de interpretação
no
conceito
stanislavskiano
de
revivescência
(perejivánie)
em
contraposição
à
“representação” (predstavlenie). A revivescência “levaria à experiência interior do ator” 54
para a composição da personagem. Desse modo, de acordo com as pesquisadoras, Boleslávski
passou a difundir “os princípios básicos, digamos assim, do primeiro-Stanislávski, aquele que
o havia instruído em sua fase moscovita.”55
Com o objetivo de acionar essa experiência interior do ator, a “memória emotiva”
ganhou destaque na metodologia aplicada aos atores no American Laboratory Theather,
assim, o ator precisava “recorrer à própria reserva de antigas emoções e sentimentos para,
através do estabelecimento de um canal entre consciente e inconsciente, transportá-la para a
vida da personagem.”56 Boleslávski passa a trabalhar na cena norte-americana com base nos
conceitos stanislavskianos de “necessidade de uma emoção genuína, de uma concepção do
papel e de seu estudo psicológico e ideológico”57, buscando adaptá-los a esse ambiente
teatral.
O uso da “memória emotiva”, ainda com o nome de “memória afetiva”, também foi
amplamente empregado por Lee Strasberg58 (1901-1982), responsável em grande medida pela
divulgação desse elemento de Stanislávski nos EUA. Ao fundar, em 1931, o Group Theatre59,
intenciona iniciar um trabalho sobre os princípios stanislavskianos. No entanto, Cavaliere e
Vássina afirmam que:
Lee Strasberg se utilizará de modo parcial do sistema de Stanislávski,
conferindo primordial importância ao aspecto emocional na criação do
papel, isto é, ao inconsciente do ator, enquanto base fundamental para a
54
CAVALIERE, A. & VÁSSINA, E. A herança de Stanislávski no teatro norte-americano: caminhos e
descaminhos.. In Crop. Theater Studies. Guest Editro Maria Silvia Betti. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP.
Crop. Número 7, p. 1-394, 2001, p.317.
55
Ibidem, p.317.
56
Ibidem, p.317.
57
Ibidem, p.318.
58
Lee Strasberg foi ator, diretor, professor e produtor. Segundo Cavaliere e Vássina, ele havia assistido a todos
os espetáculos do TAM e, durante seis meses, frequentou os cursos de Boleslávski, onde aprendeu a “técnica da
memória afetiva para o trabalho do ator”. In CAVALIERE, A. & VÁSSINA, E. A herança de Stanislávski no
teatro norte-americano: caminhos e descaminhos.. In Crop. Theater Studies. Guest Editro Maria Silvia Betti.
São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP. Crop. Número 7, p. 1-394, 2001, p.323.
59
No Group Theatre - grupo de teatro experimental de Nova York, dirigido por Lee Strasberg, Harold Clurman
e Cheryl Crawford - trabalhava-se essencialmente sobre o “Método”, uma leitura norte-americana do “sistema”
stanislavskiano realizada a partir de lições de Boleslávski.
34
construção da personagem e da “verdade interior”. (CAVALIERE;
VÁSSINA)60
Assim, entendemos que Lee Strasberg não apenas se liga às primeiras investigações
de Stanislávski, mas acrescenta questões da psicanálise ao estudo e aplicação da memória
emotiva.
O Group Theatre foi desfeito em 1941 e em 1947 é criado o Actor‟s Studio61. No
Actor‟s Studio, onde passa a ministrar aulas e alguns anos mais tarde assume a direção
artística, Lee Strasberg aprofunda o seu método de trabalho sobre o inconsciente do ator na
abordagem voltada para o alcance da emoção.
Como diz o próprio Lee Strasberg, em uma afirmação próxima do pensamento do
chamado “primeiro-Stanislávski”, pela ênfase dada ao uso das recordações de sensações e
experiências anteriores, para que estas possam acionar a emoção:
O importante ao usar a memória afetiva é manter-se concentrado não na
emoção, mas nos objetos ou elementos sensoriais que formam parte da
recordação da experiência anterior. É por isso que o ator deve dominar os
exercícios de concentração relativos à memória sensorial, antes de intentar
trabalhar com a emocional. Com a memória afetiva se trata de ver pessoas
que vimos, de ouvir coisas que já ouvimos e de tocar o que já tocamos antes.
Pretende-se recordar através dos sentidos o que a boca saboreou, o que
vestíamos e o tato da vestimenta sobre o nosso corpo. Não se intenta
recordar de modo algum a emoção. (STRASBERG)62
Strasberg, a partir de Stanislávski, trabalha sobre a ideia de que não se pode dominar a
emoção. Contudo, em comparação com a evolução das pesquisas stanislavskianas, todo o
trabalho que desenvolveu ao longo do Group Theatre e do Actor‟s Studio, acaba se atendo em
demasia à criação interior do ator, às sensações e emoções surgidas. Stella Adler 63 (1901-
60
CAVALIERE, A. & VÁSSINA, E. A herança de Stanislávski no teatro norte-americano: caminhos e
descaminhos.. In Crop. Theater Studies. Guest Editro Maria Silvia Betti. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP.
Crop. Número 7, p. 1-394, 2001, p.324.
61
O Actor‟s Studio foi fundado em 1947 por Elia Kazan, Cheryl Crawford e Robert Lewis. De 1951 a 1982, a
direção artística ficou sob a responsabilidade de Lee Strasberg.
62
STRASBERG, L. & HETHMON, R. El Método del Actors Studio. Conversaciones con Lee Strasberg. Madrid:
Editorial Fundamentos, 1972, p.86. (Tradução nossa)
63
Stella Adler foi atriz e professora de interpretação norte-americana. No próximo capítulo, retomaremos
reflexões de Adler no que se refere aos seus exercícios com as visualizações para o trabalho do ator com a
imaginação.
35
1992), atriz do Group Theatre, em 193464 teve a oportunidade de encontrar-se pessoalmente
com Stanislávski, durante sua breve estada em Paris.
Stanislávski relata desse modo o seu encontro com Adler:
Chegou em Paris para falar comigo uma mulher completamente
enlouquecida. Eu já a conhecia da América. Era uma atriz muito dotada.
Tinha trabalhado no teatro, depois saiu e entrou na escola...para aprender o
meu sistema. Não sei o que Boleslávski e Uspenskaia lhe ensinaram na
escola, mas quando ela terminou o curso e voltou para o teatro...interpretava
pior do que antes. Tomada de pavor, atirou-se contra mim...e gritou: “O
senhor acabou comigo! E agora o senhor tem que me salvar! O que é que o
senhor fez comigo?” Dizia que o meu método tinha se espalhado pela
América e de repente, ela, uma atriz talentosa, tendo estudado segundo o
meu sistema, perdera o seu talento. Tive que trabalhar com ela pelo menos
65
para recuperar a reputação do meu sistema. (STANISLÁVSKI)
O mestre russo trabalhou com Adler por cinco semanas, diariamente, utilizando
improvisações, em uma cena na qual ela estava insatisfeita com o seu desempenho. De volta à
Nova York, Adler esclarece seus colegas, entre eles Lee Strasberg, acerca do aprendizado
recebido, valorizando elementos como as circunstâncias dadas e o “se” mágico, como
principais estímulos para a imaginação criadora, em detrimento à ênfase norte-americana
sobre a memória emotiva. Anos mais tarde, Adler estabelece o seu próprio estúdio, o Stella
Adler – Studio of Acting, e busca seguir o seu trabalho artístico com base no aprendizado
recebido do mestre.
Relacionamos com esse excesso de estímulo interno, o seguinte apontamento de
Robert Hethmon acerca de problemas na prática do Actor‟s Studio:
O problema que se discute é resultado de uma divisão entre a atividade
imaginativa e a expressão: quando a sua imaginação está funcionando, o ator
não se expressa, e quando o faz, não está alimentado pela imaginação. Uma
solução a este problema é de especial interesse para os atores do Studio,
porque o ideal de atuação para esta instituição demanda do ator comum que
busca somente efetividade, uma fusão de impulso e de expressão maior do
que a usual. (HETHMON)66
64
Salientamos que, a partir de 1930 Stanislávski começa a reforçar a sua prática e entendimento sobre o método
das ações físicas, investigação que alcançará sua plenitude, com o mestre, de 1935 a 1938.
65
In VINOGRADSKAIA apud CAVALIERE, A. & VASSINA, E., A herança de Stanislávski no teatro norteamericano: caminhos e descaminhos.. In Crop. Theater Studies. Guest Editro Maria Silvia Betti. São Paulo:
Humanitas/ FFLCH/USP. Crop. Número 7, p. 1-394, 2001, p.325.
66
STRASBERG, L. & HETHMON, R. El Método del Actors Studio. Conversaciones con Lee Strasberg. Madrid:
Editorial Fundamentos, 1972, p.190.
36
Podemos perceber aqui uma grande semelhança aos questionamentos que ocorrem
com Stanislávski quanto à divisão artificial entre mente e corpo do ator. É considerada uma
divisão artificial porque acontecia em decorrência do estímulo da atividade da imaginação e
da crença do ator antes do estímulo corporal, tanto na prática da cena como na metodologia de
todo o processo criativo. Nota-se que a citação acima se refere à prática do Actor‟s Studio,
que inicia suas atividades próximo da década de 1950. A “solução” encontrada por
Stanislávski ainda nos anos 1930 resulta na transformação de sua metodologia que do “crer
para agir” passa a ser do “agir para crer”.
1.3 A mudança de perspectiva nas pesquisas de K. Stanislávski: “agir para crer”
Kristi e Prokófiev enfatizam a evolução contínua de Stanislávski, a ponto de deixar
sua obra em aberto, para ser desenvolvida por seus sucessores:
Stanislávski foi inimigo pertinaz da própria satisfação e da rotina. O seu
estado natural, por assim dizer, era de uma evolução permanente e dinâmica,
e este foi o atributo que marcou todos os seus trabalhos dedicados à arte da
cena. (...) “O trabalho do ator sobre o seu papel” ficou inacabado não
somente devido à morte de seu autor, como também, e sobretudo, porque a
inquietude do pensamento criador de Stanislávski não lhe permitia deter-se
no já adquirido para formular uma síntese de suas investigações no plano da
sistematização. A renovação sem pausa de formas e de atitudes na criação
cênica era para ele uma das principais condições da evolução do ator e do
diretor para conquistar novos cumes da arte. (KRISTI; PROKÓFIEV)67
Convém esclarecermos que a obra “O trabalho do ator sobre o seu papel” é o quarto
tomo da coleção de obras completas de Stanislávski, de oito tomos. A citação utilizada foi
retirada da introdução a esta obra, que, segundo Kristi e Prokófiev, tem relação com distintos
períodos da vida de Stanislávski, abarcando toda a sua pesquisa e a principal transformação
que ocorre em sua abordagem: o processo de criação artística que partia de uma noção de
“crer para agir” passa a ser realizado a partir do princípio de “agir para crer”.
Com o “agir para crer”, a ação física se torna o foco principal da criação do ator.
Realizem ações físicas nas circunstâncias dadas e não pensem sobre quais
sentimentos elas devem despertar em vocês. Façam com verdade e lógica,
67
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.10.
(Tradução nossa)
37
façam assim como vocês as fariam hoje, no estado de ânimo de hoje,
contando com todas as complexas casuais do dia de hoje. (...) E agindo
logicamente no dia de hoje, vocês nem percebem como chegam aos
sentimentos corretos. Por isso os sentimentos não podem ser fixados, por
isso eu procuro somente aquilo que é possível fixar, e isso será uma ação
física. (STANISLÁVSKI)68
A ação física, além de exigir a integralidade psicofísica do ator para a sua realização,
também é a responsável concreta pela geração dos sentimentos e das sensações involuntárias
que proporcionam vida à cena.
Dessa nova perspectiva, os objetivos, a lógica e a coerência das ações físicas são
elementos destacados pelo pesquisador no trabalho do ator. Conforme é salientado por ele, os
atos que realizamos na vida possuem espontaneamente lógica e coerência, pois tem um
porquê, um fundamento. Enquanto que na cena não funciona dessa maneira, ao lidar com
situações fictícias, o espontâneo tende a se tornar falso, convencional. Portanto, para
Stanislávski, cada ator precisa criar a lógica e a coerência do que faz em cena, considerando a
necessidade de cada ação para a realização do seu objetivo, ou seja, a ação física para
Stanislávski é uma ação diretamente relacionada à realização de um objetivo.
Ressaltamos ainda que a inversão do “crer para agir” ao “agir para crer” também
impulsionou a transformação do processo de trabalho de Stanislávski com os atores, que num
primeiro momento iniciava com um extenso período de ensaio de mesa. Nessa prática, ao
longo de meses, o texto e seus subtextos eram analisados detalhadamente, buscando
esclarecer “a linha interior de desenvolvimento da obra”, os costumes, as características e as
relações das personagens. Os atores, então, criavam e viviam na imaginação, mentalmente, a
partitura do papel, os acontecimentos da vida da personagem. Somente após esse período o
ator começava a criar ativamente em cena.
A imaginação, nesse momento, era largamente estimulada no processo de criação e
aproximação da personagem pelas visualizações. Nesse processo, a ação e as relações entre as
personagens aconteciam no plano mental, por meio da imaginação do ator. Sendo que, o ator
permanecia passivo fisicamente até que o estudo sobre a obra e o papel fosse aprofundado e
os ensaios práticos tivessem início.
68
In VINOGRÁDSKAIA, I., apud DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base
para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de
São Paulo, FFLCH, São Paulo, 2007, p.108.
38
Um dos problemas deste processo acontecer separadamente do físico do ator é o
bloqueio das possibilidades de criação que podem surgir quando se tem o envolvimento do
corpo e da mente integrados na concretização da ação.
Ao longo de suas investigações, Stanislávski percebeu que esse procedimento acabava
levando o ator a uma passividade e à separação artificial entre o psíquico e o físico. O vasto
trabalho de entendimento mental da obra dificultava a espontaneidade corporal do ator para a
criação cênica. Uma vez que, prematuramente, antes dos acontecimentos do texto serem
experienciados pelo corpo do ator, com a ação de forma concreta, este se via passivo e
aprisionado em um conhecimento puramente mental e racional.
Sobre a passividade do ator nos “ensaios de mesa”, Maria Knébel69 esclarece:
Ao aperfeiçoar seu método artístico, ao desenvolver e aprofundar o sistema,
Stanislávski descobriu zonas de sombra no trabalho de mesa. Uma delas era
o desenvolvimento da passividade do ator que, no lugar de buscar ativamente
desde o começo do trabalho um caminho que o aproximasse do papel,
encomendava ao diretor a responsabilidade da criação desse caminho. E,
com efeito, durante o longo período de mesa, o papel mais ativo passa ao
diretor que explica, relata, seduz, enquanto que o ator se adapta as respostas
que o diretor-chefe dá por ele a todas as perguntas relacionadas com a obra e
o papel. (KNÉBEL)70
Stanislávski afirma que “não se deve sustentar opiniões sobre a obra, sobre os
personagens, sobre as vivências ocultas que existem nela, sem encontrar ainda que seja uma
parte de si mesmo dentro da obra do dramaturgo.”71 Salientando a necessidade do ator
encontrar uma parte de si mesmo dentro da obra, o pesquisador remete à sua busca por um
ator criador, por um ator que tenha uma participação de corpo e mente, de forma ativa e
criativa na recriação da obra junto ao diretor. Stanislávski passa a defender que iniciar o
processo de trabalho com o estudo de mesa faz com que os atores fiquem “com a cabeça
cheia e o coração vazio.”72
69
Maria O. Knébel foi atriz, diretora e pedagoga. Discípula direta de Stanislávski, também foi aluna de
Nemiróvich-Dântchenko, Vakhtângov e Mikhail Tchekhov. Participou do 2º Estúdio e de espetáculos do TAM.
Em 1936 passou a integrar o Estúdio de Ópera Dramática, acompanhando de perto as últimas pesquisas de
Stanislávski. Trabalhou como pedagoga do GITIS – Academia Russa de Arte Teatral – até o ano de sua morte.
Também escreveu importantes obras sobre o “sistema” de Stanislávski. No próximo capítulo retomaremos as
reflexões de Maria Knébel a respeito das visualizações no trabalho do ator.
70
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, p.14. (Tradução nossa)
71
In JIMENEZ, S. (org.) El Evangelio de Stanislávski según sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
profetas y Judas Iscariote. México: Gaceta, 1990, p. 242. (Tradução nossa)
72
Ibidem, p.241.
39
Assim, conforme explica Knébel:
A primeira premissa para a mudança na prática dos ensaios foi a passividade
do ator, e contra ela Stanislávski decidiu lutar. Outra premissa não menos
importante foi a reflexão acerca do abismo artificial que a forma anterior de
ensaiar abria entre o físico e o psíquico da presença do ator dentro das
circunstâncias da obra. (KNÉBEL)73
Para manter essa integridade, que é inerente à natureza do homem, Stanislávski
compreendeu que era importante começar o processo de criação pelo estímulo do corpo na
prática, agindo e reagindo fisicamente, antes de realizar um entendimento mental sobre a
obra.
Contudo, Stanislávski não pretendia descartar o trabalho de análise do texto do
processo criativo. Esse processo continua sendo importante para possibilitar ao diretor e ao
ator o aprofundamento do universo da história. Mas, segundo o pensamento de Stanislávski,
deve ser realizado no momento certo, para não correr o risco da mente do ator condicionar o
corpo obstaculizando o seu estado criador. O ensaio de mesa passa, a partir de então, a ser
sobretudo um trabalho inicial e solitário do diretor antes dos ensaios para desvendar os
acontecimentos, ações e linhas principais da obra. Já os atores passam a iniciar o processo de
criação do espetáculo pela prática, pelo entendimento da obra por meio de seu aparato
psicofísico. Dentro do processo de investigação prática, a análise do texto é realizada na
medida em que se faz necesário para a compreensão da ação e da relação entre as personagens
no aprofundamento das circunstâncias da obra. Dando-se, dessa forma, concomitantemente o
processo de investigação prática e de análise.
Na década de 1920 Vakhtângov aponta para as últimas investigações de Stanislávski,
que seriam levadas a cabo de 1935 a 1938:
Stanislávski ensinava que o ator deve pensar antes de tudo no que vai fazer,
não no que vai sentir. A imaginação é gerada no subconsciente,
espontaneamente, no processo de executar ações dirigidas ao alcance de um
desejo. Portanto, o ator vai para a cena não para sentir ou experimentar
emoções, mas para atuar. (...) Persuadir, consolar, perguntar, reprovar,
perdoar, esperar, perseguir, estes são verbos que expressam ação da vontade.
(...) enquanto que os verbos irritar-se, compadecer, chorar, rir, impacientarse, odiar, amar, expressam sentimento e por isso não podem e não devem
figurar como uma tarefa na análise de um papel. Os sentimentos denotados
por estes verbos devem nascer espontânea e subconscientemente, como
73
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, p.18. (Tradução nossa)
40
resultado de ações
(VAKHTÂNGOV)74
executadas
pela
primeira
série
de
verbos.
Aqui vemos a diferença entre os verbos que estimulam a ação e os que levam à
ilustração de sentimentos.
Podemos dizer que, desde cerca de 1920, já estava em processo o caminho para o
método das ações físicas, que contém a fundamental descoberta de que o ator deve iniciar a
sua criação a partir da realização da ação física com um foco consciente voltado ao “o que”
vai fazer, “porque” vai fazer e “para que” vai fazer, revelando dessa forma, a ação justificada
pelo seu objetivo.
Por sua importância criativa e, portanto, artística, a imaginação está presente e se
constitui como elemento essencial em toda a pesquisa de Stanislávski sobre o processo
criativo. No entanto, como vimos, na perspectiva do “crer para agir” ainda encontrava-se
limitada em suas possibilidades de instigação da ação no corpo do ator, trabalhando em prol
da crença e da plena realização da memória emotiva. Enquanto que, com a abordagem do
“agir para crer” passa a ser possível entendê-la como elemento agente, orientada para a
concretização de objetivos, impulsionando e sendo impulsionada pela realização das ações
psicofísicas. Tornando-se assim, imaginação ativa.
1.4 Introdução a elementos do “sistema” e sua relação com a imaginação
Após o estudo realizado, selecionamos elementos do “sistema” stanislavskiano que, a
nosso ver, possuem maior relação com a questão da imaginação. Entendendo que, conforme
Stanislávski, todos os elementos do “sistema” funcionam em conjunto para a realização da
ação física, não sendo possível separá-los na prática cênica.
Adaptação
O elemento adaptação é entendido por Stanislávski como a habilidade do ator em
improvisar de modo vivo, presente, isto é, agindo e reagindo conforme as circunstâncias que
vão surgindo no momento do jogo cênico.
74
In JIMENEZ, S. (org.) El Evangelio de Stanislávski según sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
profetas y Judas Iscariote. México: Gaceta, 1990, pp.61-62. (Tradução nossa)
41
De acordo com Stanislávski, a adaptação se refere tanto aos meios internos como os
externos aos quais o ator deve se ajustar durante o jogo, em sua comunicação com os
partners75, para alcançar o seu objetivo. Segundo Nair D‟Agostini, “as possibilidades de
adaptação são infinitas, dependem da perspicácia do ator, de sua agilidade mental,
temperamento, imaginação, individualidade artística e, sobretudo, de sua disposição e
capacidade para o jogo.”76
Para cumprir os objetivos de sua personagem, o ator precisa, constantemente, adaptarse às circunstâncias que vão surgindo no derenrolar de sua ação. Essas circunstâncias trazem
novas informações ao acontecimento, que podem impulsionar ou obstaculizar a realização da
ação. Cada circunstância nova provoca uma adaptação correspondente. E a adaptação deve
ser sempre justificada pelo objetivo almejado pelo ator/personagem.
Conforme o mestre russo, o ator também deve conhecer/perceber as características do
partner/personagem com quem quer estabelecer a sua comunicação, para encontrar as
adaptações necessárias, em relação a ele, para conseguir alcançar o seu objetivo.
Liberdade muscular e Tempo-ritmo
A liberdade muscular é considerada por Stanislávski um elemento essencial do
“sistema” para que o ator concretize psicofisicamente a sua imaginação em cena.
Stanislávski exigia que tanto nos ensaios quanto na vida o ator deveria estar atento às
tensões de seu corpo e buscar meios de dissipar esses bloqueios musculares. O que deveria se
tornar um hábito natural do artista “ao deitar, levantar, durante as refeições, os passeios
(...)”77.
Salientamos que a preocupação em trazer essa consciência da liberdade muscular para
a vida se reflete em todos os outros elementos do “sistema”. Por meio de seu “sistema”,
75
Ao se referir a parceiro de cena, Stanislávski utiliza a palavra russa partniór (партнёр), que é derivada do
francês partenaire. Para este trabalho utilizamos as traduções das obras completas de Stanislávski do russo direto
para o espanhol, nas quais o tradutor optou por utilizar a palavra partenaire. Optamos, então, pelo uso da palavra
partner, do inglês, por acreditarmos se aproximar mais do sentido de parceiro de jogo, ou parceiro de cena, ao
qual Stanislávski se refere originalmente.
76
DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da
criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São
Paulo, 2007, p.82.
77
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.154. (Tradução nossa)
42
Stanislávski intencionava abranger amplamente o artista, de corpo e espírito, não só em sua
relação com o palco, mas também em sua relação com a vida.
Stanislávski acredita que “o controle muscular deve ser parte da organização física,
converter-se em segunda natureza; só assim ajudará nos momentos de criação”
78
. Não se
trata, assim, de eliminar todas as tensões, mas de desenvolver a observação de si mesmo e
adquirir consciência sobre o seu aparato físico a ponto de ser capaz de perceber as tensões
desnecessárias e liberar o corpo desses bloqueios, que podem impedir o fluxo criativo e a
vivência do ator em cena.
Segundo Stanislávski, o elemento tempo-ritmo se refere à dinâmica com que o ator
executa a sua ação, física e da palavra, dentro de determinado espaço de tempo.
A importância atribuída por Stanislávski ao domínio do tempo-ritmo pelo ator tem
relação com a repercussão interna que a sua variação é capaz de provocar. O tempo-ritmo não
influencia apenas o aparato muscular, relaciona-se diretamente com o estado de ânimo e com
os sentimentos. Para o pesquisador russo, a variação de tempo e ritmo pode criar uma imensa
gama de estados de ânimo no corpo-mente do ator. Por isso, não deve ser entendido apenas
em termos de velocidade e medida.
Para Stanislávski:
Pensamos, sonhamos, estamos interiormente preocupados também com certo
tempo-ritmo, posto que em todos esses momentos se manifesta nossa vida. E
onde há vida há também ação; onde há ação há também movimento; onde há
movimento há tempo; onde há tempo também há ritmo.
(STANISLÁVSKI)79
Em cada momento da vida estamos impregnados de diferentes tempos e ritmos,
internos e externos, estes podem se combinar ou se contrapor, dependendo de nosso estado de
ânimo. Stanislávski busca trazer esse movimento tão natural na vida para estimular diferentes
qualidades da ação em cena. Para o mestre, o estado corporal criado pelo tempo-ritmo no ator
sugere a formação de imagens, incita a sua imaginação e justifica a ação realizada. Destaca
assim, o tempo-ritmo presente no processo da imaginação: “Com frequência se fala do voo do
78
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.154. (Tradução nossa)
79
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador de
la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983, p.147. (Tradução nossa)
43
pensamento e da imaginação. Isso quer dizer que possuem movimento e, por conseguinte, há
neles tempo e ritmo.”80
Para obter uma melhor compreensão, Stanislávski divide o tempo-ritmo em duas
linhas: interna e externa. A linha interna do tempo-ritmo é composta pelas imagens inventadas
pela imaginação e pelas circunstâncias dadas, que também estão no plano da imaginação. A
linha externa diz respeito ao aparato físico, à comunicação e à relação e, portanto, às
circunstâncias provindas do jogo cênico e do ambiente. O tempo-ritmo da ação precisa estar
justificado pela imaginação e circunstâncias. Uma imaginação disponível e flexível ajuda a
dar essa justificação aos ritmos criados. A liberdade muscular, por meio da consciência das
tensões utilizadas pelo ator na realização dos movimentos e ações, também se faz
indispensável para o alcance do desenvolvimento do tempo-ritmo em sua totalidade.
Stanislávski compara o domínio da variação de tempo-ritmo na arte teatral com a arte
de um pintor. Da mesma forma com que o pintor utiliza uma gama diversificada de cores,
misturando tonalidades e matizes para compor a sua obra, também o ator pode dar qualidade
artística à sua ação pela mistura de uma gama variada de velocidades e medidas de tempo.
Sem esquecer o diretor, que pode dispor do tempo-ritmo para organizar artisticamente a
composição do espetáculo teatral.
Não só o ator experimenta em seu psicofísico diversos tempos e ritmos, que são
diferentes para cada ator e personagem, conforme as circunstâncias propostas e as imagens
formadas em seu corpo-mente, como cada acontecimento e o próprio espetáculo possuem a
sua variação.
Lógica e continuidade
“Como devemos utilizar a lógica e a continuidade em nossa arte?” 81 Questiona
Stanislávski.
Conforme reflete o mestre, na vida cotidiana nossas ações são naturalmente, ou
habitualmente, realizadas com lógica e coerência. Isso acontece porque só fazemos algo de
que temos necessidade. Dessa forma, nossas ações são justificadas por uma intenção lógica e
coerente, seguindo uma sequência de pequenos movimentos e ações para realizarmos o que
80
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador de
la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983, p.147. (Tradução nossa)
81
Ibidem, p.182.
44
intencionamos. Esse processo está impregnado em nosso sistema muscular, pelo hábito
corporal realizamos ações lógicas e coerentes mesmo que, dentro de um automatismo
cotidiano, não estejamos prestando atenção a elas.
Em cena, esse processo não é tão simples como na vida. O ator tem a tendência de
perder a lógica e a continuidade na realização das suas ações. As ações executadas em cena
fazem parte de uma ficção, de uma invenção, não de uma real necessidade, como acontece na
vida. Esse é o principal motivo para a dificuldade do ator em aplicar lógica e a coerência em
suas ações.
“Como proceder então?” Torna a perguntar Stanislávski, que responde em seguida:
“com várias ações secundárias, escolhidas e ordenadas em forma lógica e contínua, deve-se
formar uma ação de maior amplitude.” 82
Para trazer para a cena a lógica e a continuidade é preciso substituir a mecanicidade
com que realizamos as tarefas no dia a dia “pelo controle consciente, lógico e contínuo de
cada momento da ação física”.83
É pela prática da repetição atenta e justificada na imaginação, de corpo e mente, da
partitura de ações em sua ordem correta, que torna possível para o ator perceber a sua linha
lógica e contínua. Para Stanislávski, com a repetição, a natureza orgânica do ator vai
começando a absorver esse movimento e a ação vai se revitalizando na sua memória mental e
muscular. “Então, sentirão a verdade de suas ações, e a verdade despertará a fé no autêntico
do que se está fazendo”.84
Stanislávski sugere o domínio da técnica da ação com objetos imaginários para
alcançar a lógica e a coerência na realização cênica, como forma concreta de orientar a
atenção e a imaginação do ator em uma sequência contínua de ações.
Segundo ele, o ator necessita de lógica e coerência não apenas para a execução das
ações físicas, mas para todos os momentos da criação: “no processo do pensamento, os
desejos, imagens, ao criar as ficções da imaginação, os objetivos e a linha contínua de ação,
na comunicação ininterrupta e nas adaptações”.85
82
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador de
la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983, p.183. (Tradução nossa)
83
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.196. (Tradução nossa)
84
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador de
la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983, p.183. (Tradução nossa)
85
Ibidem, p.184.
45
“Se” mágico e circunstâncias dadas
O que você faria “se” estivesse em tais circunstâncias?
A partir do problema gerado por um questionamento como este, o “se” mágico tem a
função de impulsionar o estado criativo do ator por meio do acionamento da sua imaginação e
ação. Para Stanislávski, o “se” provoca o ator a agir, de modo instantâneo e instintivo, dando
início à criação do ator. O “se” mágico consiste em um primeiro impulso criativo e possui
relação direta com a imaginação que, por sua vez, leva ao desenvolvimento da ação iniciada
pelo impulso do “se”.
De acordo com Nair D‟Agostini, o “se” colocado de determinadas circunstâncias,
“estabelece imediatamente o ator dentro da situação e o leva a agir concretamente”.86
Citamos um exemplo recorrente na obra de Stanislávski para estimular a imaginação,
a fé e o sentido da verdade na execução da ação física, tendo o “se” mágico como alavanca
criativa: o que você faria “se” um louco estivesse do outro lado da porta tentando invadir a
sala?
Defrontado com o questionamento proposto pelo “se”, o ator é conduzido para o jogo
e levado a responder a questão pelo agir. O pensamento e a imaginação se unem para tentar
resolver o problema lançado, dentro das circunstâncias dadas.
Stanislávski entende por circunstâncias dadas:
A fábula da obra, seus fatos, acontecimentos, a época, o tempo e o lugar da
ação, as condições de vida, nossa ideia da obra como atores e diretores, o
que agregamos de nós mesmos, a encenação, os cenários e figurinos, os
adereços, a iluminação, os ruidos e sons, e tudo mais que os atores devem ter
em conta durante a sua criação. (STANISLÁVSKI)87
Como nos diz Stanislávski, as circunstâncias dadas correspondem a todas as
informações com as quais temos de lidar na realização cênica, sejam elas dadas pelo autor,
como tudo que é relativo à história, personagens e acontecimentos, e como o ator percebe esse
conhecimento em seu intelecto, impressões e imaginação; ou como tudo o que se encontra ao
86
DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da
criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São
Paulo, 2007, p.72.
87
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.92. (Tradução nossa)
46
redor do ator no espaço cênico, objetos de atenção animados e inanimados. O surgimento de
novas circunstâncias pode ajudar o desenvolvimento da ação, enriquecendo-a, como também,
pode consistir em obstáculos no cumprimento do objetivo almejado, estabelecendo o conflito.
Segundo o pesquisador russo, “as circunstâncias dadas como o “se”, são uma
suposição, uma “invenção da imaginação”. (...) O “se” dá um impulso à imaginação
adormecida, enquanto que as “circunstâncias dadas” dão fundamento ao “se”.”88 Para
Stanislávski, as circunstâncias dadas e o “se” mágico ajudam a justificar a ação, tornando-a
viva no corpo do ator.89
Como vemos o “se” mágico, as circunstâncias dadas e a imaginação estão
intrinsecamente ligadas e trabalham em conjunto para o estímulo e desenvolvimento do
processo criativo.
Concentração e Relação
A concentração é um elemento chave do “sistema” stanislavskiano. Sem a atenção
voltada para o que está fazendo, para o que se encontra ao seu redor e dentro de si, o ator não
será capaz de perceber os impulsos criativos das circunstâncias; de criar relação com os seus
objetos de atenção, internos e externos, animados e inanimados; de agir e reagir de modo
veraz e criativo em cena.
Nair D‟Agostini destaca, com base nos estudos stanislavskianos, que o processo ativo
da concentração se revela nos círculos de atenção, “este obriga o ator a se colocar
totalmente imerso, com toda a sua capacidade afetiva, intelectual e física, na ação interna e
externa que está realizando cenicamente.”90 O objetivo dos círculos de atenção é levar o ator
a direcionar sua concentração para determinados focos de atenção, conforme o desenrolar da
ação, facilitando o seu envolvimento de corpo e mente na cena.
Os círculos de atenção se dividem em pequeno, médio e grande. O pequeno círculo se
refere à esfera dos pensamentos e ações mais próximos do ator/personagem, às questões mais
íntimas deste na relação estabelecida consigo mesmo e com os demais atores. O médio círculo
88
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.92. (Tradução nossa)
89
Ibidem, p.194.
90
DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanslávski como base para a leitura do texto e da
criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São
Paulo, 2007, p.64.
47
proporciona ações e interação mais amplas entre os atores e demais objetos de atenção, no
âmbito do espaço da cena. O grande círculo abrange até onde alcança a visão do ator, como
Stanislávski exemplifica: “(...) se agora não estivéssemos no teatro, mas no campo ou no
mar, as dimensões do círculo de atenção estariam determinadas pela distante linha do
horizonte.”91
Exercitando-se sobre os limites imaginados de cada círculo de atenção e dominando
com fluência e de forma imageticamente concreta a transição entre eles, o ator pode alcançar
uma força viva e criativa não só em seu olhar, nas imagens em que projeta, mas também em
suas ações físicas que ajudam a direcionar a atenção do ator para a cena, para a história e o
papel.
O ator, ao direcionar sua atenção para o que acontece na cena deve buscar estabelecer
uma comunicação contínua com esses focos de atenção. Pois, tão importante quanto voltar a
atenção para os seus objetos é a qualidade da relação que o ator estabelece com os mesmos.
Para Stanislávski92, a relação é estabelecida no momento em que o ator transmite algo
e também se permite receber algo de seus objetos de atenção. Para que aconteça
concretamente em cena, a relação exige o envolvimento total do ator, ao direcionar sua
atenção e imaginação, a um processo de troca contínua com os seus objetos de atenção, sejam
eles parte do espaço cênico, internos ou partners. Como salienta Stanislávski, “é possível
mirar, ver e perceber tudo o que se vê, como mirar, ver e não perceber nada do que ocorre
em cena”.93
Fé e sentido da verdade
A fé e o sentido da verdade se referem à busca de Stanislávski por trazer para a cena
uma experiência viva, de arte autêntica. De acordo com Stanislávski, para despertar essa
criação autêntica, é preciso transportar-se à imaginação.
O que se busca é próximo a fé e a verdade da criança. A imaginação infantil na
realização de seus jogos e brincadeiras é capaz de criar uma forte ilusão da vida. Essa “ilusão”
91
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.132. (Tradução nossa)
92
Ibidem, p.253.
93
Ibidem, p.253.
48
possui uma verdade genuína, que é criada pela crença da criança nessa verdade. “É suficiente
que se diga „como se fosse‟, e a invenção já vive neles.”94
Segundo Stanislávski95, para alcançar a fé e a verdade em cena, escapando de
convencionalismos e da falsidade na execução das ações, o ator deve se concentrar em
realizar uma ação física produtiva, isto é, uma ação que possua uma finalidade, buscando
estabelecer vínculos com o seu parceiro e demais objetos de atenção. Nessas relações
estabelecidas é indispensável reagir às influências destes objetos de atenção, se deixar
influenciar por eles e também agir sobre eles.
Para o mestre russo, a partir da psicotécnica criada com o desenvolvimento de seu
“sistema”, se a fé e a verdade não surgem por si mesmas em cena, é preciso que o ator
trabalhe para buscá-las. Como a esfera da vida psíquica não é acessível ao ser humano,
Stanislávski propõe que a verdade e a fé sejam evocadas no âmbito corporal, “nos menores e
simples objetivos e ações”.96 Segundo ele, estes são acessíveis, visíveis ao ator e se
encontram na esfera da consciência, sendo assim possível controlá-los.
Novamente Stanislávski retorna à importância do trabalho do ator sobre a ação com
objetos imaginários. Ao se exercitar sobre uma partitura composta de uma sequência de
pequenas ações e seus objetivos, o ator deve voltar toda a sua atenção e imaginação aos
detalhes de suas ações. Nesse processo, o ator deve evitar uma execução formal das ações e
buscar realizá-las com a sua totalidade de corpo e mente. Com isso, Stanislávski acreditava
que o ator convenceria a própria natureza física da verdade do que está realizando. O trabalho
proposto por ele consiste em estudar cada momento da ação, “movimento por movimento,
segundo por segundo, de um modo lógico e coerente”.97
A lógica e a continuidade das ações também impulsionam o surgimento da fé e da
verdade em cena, pois se encontra ao alcance da consciência do ator. Ajudam a ordenar as
ações e, assim, dar sentido a elas, justificando a sua necessidade e para onde elas se dirigem,
para cumprir determinada finalidade. Para Stanislávski, “graças a lógica e a continuidade das
ações se chega de maneira natural à verdade, da verdade à fé e da fé a mais autêntica
vivência”.98
94
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.184.
95
Ibidem, p.186.
96
Ibidem, p.188.
97
Ibidem, p.189.
98
Ibidem, p.199.
49
A cada passo, na busca da precisão do movimento da ação, a memória muscular do
ator é acionada, fazendo com que o corpo e a mente acreditem nas ações executadas, já que,
durante esse processo de apropriação, a sequência de ações é absorvida integralmente pela
natureza do corpo do ator, transformando-se em sua segunda natureza. A partir desse trabalho,
é possível que surjam não só a verdade e a fé cênica, mas também as sensações e os
sentimentos que proporcionam a plasmação de uma ação viva. Para Stanislávski, “quanto
mais próximo do físico está a ação, menor é o risco de forçar o sentimento”. 99 E, desse modo,
distancia-se da demonstração formal de sentimentos.
Segundo ele, esse trabalho não intenciona chegar ao naturalismo, mas alcançar a
verdade do sentimento. As ações físicas, dentro de circunstâncias dadas, são capazes de criar
“uma interação entre corpo e espírito, entre a ação e o sentimento, graças a qual o exterior
ajuda ao interior, e o interior evoca o exterior”.100 É importante lembrar que quando falamos
em ação física, nos remetemos imediatamente a todos os demais elementos do “sistema”, que
são necessários para o ator alcançar essa interação de corpo e mente.
Para Stanislávski, “ao criar a linha lógica exterior das ações físicas, chegamos a
reconhecer, se observarmos atentamente, que de forma paralela a esta linha surge dentro de
nós outra linha, a linha da lógica e da continuidade de nossas sensações.” 101 De acordo com
ele, as sensações estão estreitamente vinculadas à vida das ações.
A fé e o sentido da verdade se relacionam diretamente com a capacidade de
concentração e imaginação do ator em relação ao que está acontecendo em cena. Pois, a fé, a
crença na verdade do que se faz, só pode ser encontrada no plano da imaginação.
Finalizamos esse estudo sobre a fé e o sentido da verdade observando que, para
Stanislávski, a verdade buscada em cena não é a mesma verdade da vida cotidiana. A verdade
da ação física em cena deve ser autêntica como na vida, porém, deve estar depurada do que
não se faz necessário para a cena, contando apenas com o essencial: “tem que realmente ser
veraz, mas com a carga poética da imaginação criadora.”102
99
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.206. (Tradução nossa)
100
Ibidem, p.192.
101
Ibidem, p.209.
102
Ibidem, p.217.
50
1.5 O trabalho sobre as ações físicas
As ações físicas são o centro da prática desenvolvida nas últimas pesquisas de
Stanislávski e o trabalho sobre elas se refere à abordagem do pesquisador sobre a ação, tendo
como base a noção de “agir para crer”.
Dentro dessa perspectiva, a ação deixa de ser somente mais um elemento do
“sistema”, para se tornar a base e o ponto de confluência dos demais elementos, ou seja, todos
os elementos do “sistema” passam a trabalhar de forma integrada para a obtenção de uma
ação orgânica103, lógica e coerente na realização de um determinado objetivo - os sentimentos
chegariam ao ator em decorrência das suas ações.
Para Stanislávski, o ator deve focar a sua atenção e o seu aparato psicofísico na
realização sucessiva das ações, uma ação depois da outra, uma ação que gera a outra,
estabelecendo de modo integrado e contínuo a linha interna e externa da ação, orientada por
uma finalidade. Sobre a linha contínua de ações, o mestre russo esclarece que:
(...) das ações separadas e autônomas vão se formando partes maiores e mais
complexas, e destas fluem consequentemente as ininterruptas cadeias lógicas
de ações. Dirigem-se adiante; do desejo nasce o movimento e do movimento,
a vida interna, sincera. Nesta sensação percebo a verdade e da verdade nasce
a crença. Enquanto repito outras vezes a cena, mais se define esta linha, e
quanto mais forte se torne o hábito mais firmemente aparecerá a vida, sua
verdade e crença. Lembrem que a esta ininterrupta cadeia de ações físicas
chamaremos em nossa linguagem: a linha da vida do corpo humano. (...)
Como já surgiu “a vida do corpo humano” do papel, é preciso pensar agora
em algo que é igualmente importante: “a vida da alma humana” do
personagem. Acontece que a vida da alma humana nasceu por si mesma em
meu interior, independentemente da minha vontade e consciência.
(STANISLÁVSKI)104
Com o fortalecimento da linha de ação interna e externa - que, no entendimento de
Stanislávski é única, inseparável -, pela repetição consciente da partitura de ações, é formada
uma segunda natureza no ator, isto é, a linha de ação torna-se “hábito”, surgindo assim, o
sentido de verdade, a crença, e abrindo possibilidades de criação e associações como novos
estímulos da imaginação.
103
Para Stanislávski, o alcance da organicidade se dá pelo envolvimento psicofísico (integralidade física, mental
e emocional) do ator na execução da ação.
104
In JIMENEZ, S. (org.) El Evangelio de Stanislávski según sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
profetas y Judas Iscariote. México: Gaceta, 1990, pp.258-259. (Tradução nossa)
51
A imaginação ativa, isto é, o processo da vida imaginária orientado para a realização
da ação física, constitui parte fundamental da constituição da linha de ação, interna e externa,
ao contribuir com a criação da lógica e da coerência das ações realizadas e também ao
impulsionar o ator ao jogo, à adaptação ao aqui e agora, para alcançar o objetivo de cada ação.
Stanislávski sintetiza a noção de “agir para crer”, do seguinte modo: “Através da
psicotécnica consciente do artista, se chega à criação subconsciente da natureza (o
subconsciente através do consciente).”105
A psicotécnica consciente do artista é formada pelas suas ações, concretas e objetivas.
O pesquisador acreditava que era possível mobilizar o subconsciente através da realização das
ações. Assim sendo, o ator deveria partir da criação objetiva pela ação física para gerar a
emoção e estimular as associações inconscientes que surgem em forma de imagens e
sensações na imaginação.
Salientamos que Stanislávski usava uma terminologia que segundo ele foi tomada da
prática, com os alunos e os atores, por meio de suas “sensações criativas (...). Não tentem
buscar nesses termos raízes científicas. (...) É certo que utilizamos também termos científicos,
como por exemplo, „subconsciente‟, „intuição‟, mas não em seu sentido filosófico, nada além
do mais simples, no sentido da vida cotidiana.” 106
Segundo Stanislávski, ao realizar a ação física orientada para a concretização de um
objetivo, os sentimentos, as memórias, as sensações e as associações imagéticas surgem
espontaneamente no ator, preenchendo de sentidos e enriquecendo a criação artística. Para o
pesquisador, a ação física deve acontecer na via consciente, o alcance do subconsciente se
dará indiretamente, isto é, por meio das próprias ações.
Assim, em seus últimos anos de vida, depois de décadas de pesquisas, num processo
de acertos, dúvidas e descobertas, Stanislávski encontrou - não no sentido de estagnação, mas
como movimento da possível geração de outros encontros - o que tanto almejou e moveu a
sua busca, um modo de gerar a “vida do espírito humano” em cena: a ação física, que é
sempre uma realização consciente do ator.
Ao aliar a condição de haver um objetivo para que seja configurada uma ação física,
Stanislávski chega, em suas últimas pesquisas, à análise do texto pela ação. O método de
105
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador
de la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983. p.414. (Tradução nossa)
106
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador
de las vivencias. Buenos Aires: Quetzal 1980, p.42. (Tradução nossa)
52
análise ativa é o resultado de um processo de trabalho do mestre sobre as ações físicas, que foi
aplicado na análise da obra e na criação do ator. Ele passa a ser base de criação tanto para o
diretor quanto para o ator. Esse método continuou a ser desenvolvido por seus discípulos,
recebendo de Maria Knébel a denominação de análise ativa.
Por meio desse método é possível ler a obra através da ação, clarificar as
circunstâncias dadas e o universo que contém a obra, eleger os seus acontecimentos e
determinar os objetivos, obstáculos e ações das personagens.
A análise ativa trata de uma análise em ação, que acontece na prática pela
improvisação e criação de etiuds pelo ator. Definimos o trabalho com etiuds como um
processo de investigação da ação que pode ser utilizado para a criação do espetáculo, pela
improvisação de acontecimentos da obra ou de acontecimentos complementares e análogos à
mesma.107
A obra escrita passa a ser tratada no plano da ação, na análise feita pelo diretor e na
criação da ação pelo ator.
107
Realizamos uma reflexão sobre a prática do etiud no terceiro capítulo do presente trabalho.
53
CAPÍTULO 2
A IMAGINAÇÃO NO PROCESSO CRIATIVO DO ATOR EM STANISLÁVSKI
É sabido que cada arte possui seu processo de fantasia específico,
dependendo da especificidade de cada arte. Existe a imaginação para o
trabalho do escritor, a qual se diferencia da imaginação peculiar do artista
plástico e ambas se diferenciam da imaginação necessária ao músico. Existe
também a imaginação específica do ator. (...) A arte do ator é uma arte
complexa e qualquer tipo de imaginação lhe é útil. Mas, sem a específica
imaginação relativa à sua arte o ator não pode criar. (...) O que é essa
imaginação do ator? Em que se diferencia dos outros tipos de imaginação
artística? (ZAKHAVA)108
De acordo com Boris Zakhava109 (1896-1976), a especificidade da imaginação na arte
do ator consiste em que, ao imaginar, este não concretiza a sua imaginação em um objeto fora
de si, como na pintura ou escultura, mas experiencia a sua criação imagética em si mesmo,
como personagem. Sendo o material da arte do ator constituído da sua própria ação, imaginar
também significa agir, desde que o ator assuma o comando da sua vida imaginária e se
coloque como se fosse o seu herói diante das circunstâncias imaginadas. O ator passa, assim,
uma vez trabalhando com um texto, a ver as circunstâncias da história “com os olhos do
herói”110, percebendo em si, pelo recurso da imaginação, as ações e relações de sua
personagem.
Por isso, Zakhava ressalta a proximidade que a imaginação do ator tem com a
imaginação na infância e na juventude. Por exemplo, quando a criança se imagina agindo
como “um importante coronel, um pesquisador polar, um piloto”111. Zakhava nos lembra que
o trabalho do ator é denominado jogo, igrá (игра), o que leva a revelar no próprio ator a sua
qualidade profissional mais preciosa: a capacidade de crer em uma verdade inventada, fictícia.
Para entender a imaginação específica da arte do ator é preciso considerar a ligação da
imaginação do ser humano com as impressões e sensações criadas pelos seus sentidos. E a
imaginação do ator está intrinsecamente ligada à realização da ação. Como toda ação cênica
deve ser um ato psicofísico, nenhuma ação pode ser executada sem a participação da
108
ZAKHAVA, B. Masterstvó aktiora i regissiora (Maestria do ator e do diretor). 4ª ed. Moscou:
Prosvechtchênie, 1978, pp.132-134. (Tradução Nair D‟Agostini)
109
Boris Zakhava, ator, diretor e professor, foi aluno de V. Meyerhold e E. Vakhtângov.
110
Ibidem, pp.132-134.
111
Ibidem, pp.132-134.
54
musculatura corporal. E se a ação é reproduzida no plano imaginário, inevitavelmente ela
conduz o ator a um estado ativo de sua memória muscular.
O autor reflete ainda que quando o ser humano realiza alguma ação em sua
imaginação tal como “declarar amor, suplicar, responder, indagar”, ele a experimenta em si,
realizando uma série de movimentos necessários para que a ação se concretize “mentalmente se aproxima do partner, pega em sua mão, o faz sentar na cadeira ou, ao
contrário, o afasta”. Visto de fora, ao imaginar tal acontecimento, o ser humano permanece
imóvel, mas, no entanto, a sua musculatura está trabalhando, realizando o que o autor chama
de “movimento embrionário ou representação muscular”, assim, “o artista pode se
expressar, imaginar com os seus músculos. (...) ele não só imagina, mas observa, percebe os
músculos, por isso, a importância, para o ator, de desenvolver a sua memória muscular”.112
Entendemos, então, que a particularidade da imaginação no jogo do ator se assemelha,
em grande medida, à imaginação presente no jogo da criança. Para a criança, a brincadeira
sempre conta com “se” mágicos que se desenvolvem com as circunstâncias dadas, reais ou
inventadas, elementos nos quais ela acredita com todo o seu ser, psicofisicamente, e os utiliza
para desenvolver o seu jogo.
O ator também busca esse mesmo processo, precisa desenvolver, ou resgatar, a
capacidade da imaginação infantil do jogo para conseguir se colocar totalmente disponível nas
circunstâncias e desenvolver a sua ação crível em cena. A criança quando brinca, também não
deixa de estar em uma espécie de cena, pois, é como se ela estivesse em suspensão da vida
cotidiana naquele momento, agindo e reagindo no tempo presente, dentro de circunstâncias
criadas para movimentar o seu jogo, estimulando-o ou obstacularizando-o.
2.1 O processo de formação da imagem no corpo/mente do ator
Utilizamos alguns pontos do pensamento do neurocientista português António
Damásio (1944-)
113
, que demonstra cientificamente a conexão entre corpo e mente, para nos
aventurarmos pelos processos da imaginação no trabalho do ator. Damásio trata o corpo
112
ZAKHAVA, B. Masterstvó aktiora i regissiora (Maestria do ator e do diretor). 4ª ed. Moscou:
Prosvechtchênie, 1978, pp.132-134. (Tradução Nair D‟Agostini)
113
O Prof. Dr. António Damásio, neurocientista e escritor, é diretor do Departamento de Neurologia da
Universidade de Iowa, EUA e professor do Instituto Salk para estudos biológicos, na Califórnia, EUA.
55
humano como um organismo indivisível no qual ocorrem incessantes inter-relações entre o
corpo, o cérebro, a mente e as emoções.
Como neurocientista, Damásio investiga o processo de formação de imagens no
organismo humano. Para pensarmos como esse processo pode ser compreendido
especificamente no trabalho criativo do ator intencionamos construir uma ponte entre estudos
de Damásio e de Stanislávski, relacionando brevemente a neurociência com a arte do ator.
Para Damásio, “aquilo a que chamamos "mente" é uma coleção de processos
biológicos. E, dado que estes processos são físicos, a mente é necessariamente um processo
físico”114. Ao realizar essa afirmação, o autor destaca a mente como matéria e como processo,
isto é, uma matéria que está em “um constante desenrolar de acontecimentos” 115.
Damásio esclarece que, para os físicos, a matéria não é concebida apenas como
cimento e pedra, mas também como energia e fluxos, o que podemos interpretar como
movimento e impermanência, questões fundamentais para refletirmos sobre o que ele chama
de “matéria do pensar”116. A “matéria do pensar” está preenchida por imagens, em constante
evolução, que são constituídas por nós mesmos, pelo nosso organismo. O pensamento é
matéria no sentido de que essas imagens estão complexamente ligadas ao nosso corpo, de
forma física e energética.
As imagens são definidas por Damásio como “padrões mentais com uma estrutura
construída com os sinais provenientes de cada uma das modalidades sensoriais – visual,
auditiva, olfativa, gustatória e sômato-sensitiva.”
117
É relevante constar aqui as formas de
percepção que abrangem, de acordo com ele, a modalidade sômato-sensitiva: “tato,
temperatura, dor, muscular, visceral 118 e vestibular119.”120 Ou seja, Damásio considera
imagem tudo aquilo que percebemos a partir das nossas sensações, não apenas as visuais.
114
“A consciência do corpo” – António Damásio em entrevista à Desidério Murcho publicada na Crítica –
Revista de Filosofia - ISSN 1749-8457. In http://criticanarede.com/html/entr_damasio.html. Texto publicado no
suplemento Livros do jornal O Independente (Junho de 2000).
115
Ibidem.
116
Ibidem.
117
DAMÁSIO, A. O mistério da consciência – Do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Cia
das Letras, 2000, p.402.
118
Damásio se refere aos vasos sanguíneos, aos órgãos da cabeça, tórax, abdômen e pele, como “vísceras”.
(DAMÁSIO, A. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p.112)
119
De acordo com Damásio, o vestíbulo é um órgão responsável pelo nosso equilíbrio corporal e está localizado
dentro dos ouvidos. (DAMÁSIO, A. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p.117)
120
DAMÁSIO, A. O mistério da consciência – Do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Cia
das Letras, 2000, p.402.
56
Pois, como conclui o autor, “o cérebro e o corpo encontram-se indissociavelmente
integrados por circuitos bioquímicos e neurais recíprocos dirigidos um para o outro”121.
Damásio destaca que os circuitos bioquímicos e neurais fazem parte das duas vias de
interconexão existentes entre o cérebro e o corpo. Na primeira via tanto os nervos motores e
sensoriais periféricos enviam sinais para o cérebro como o cérebro “pode atuar, por
intermédio dos nervos, em qualquer parte do corpo.”122 A segunda via corresponde à
interação que se dá através da corrente sanguínea. Sendo assim,
as substâncias químicas que surgem das atividades do corpo podem alcançar
o cérebro por meio da corrente sanguínea e influenciar seu funcionamento,
(...) o cérebro atua também no corpo por meio da produção (ou da ordem
para se produzir) de substâncias químicas que são liberadas na corrente
sanguínea (...). (DAMÁSIO)123
Nosso estudo sobre Damásio nos leva a três pontos importantes, o movimento e
fugacidade do pensamento e também sua materialidade; a compreensão das imagens como
não somente visuais, mas também auditivas, táteis, gustativas e olfativas; e, finalmente, a
interconexão contínua de troca de informações entre o cérebro e o resto do corpo, que é
realizada em duas vias, por meio dos nervos e da corrente sanguínea.
Nos diferentes momentos de seu processo de trabalho, o ator lida com a imaginação de
forma diversa. No contato inicial com uma proposta de trabalho, seja um texto ou uma ideia,
acontece uma primeira impressão, provinda dos sentidos, que evoca imagens. No momento
em que experimenta a proposta na prática, agindo e reagindo dentro de circunstâncias dadas, o
ator recebe, ou provoca em si, estímulos de imagens direcionadas ao estabelecimento do jogo
e à criação cênica. Quando o ator organiza o material criado em uma partitura de ações, de
modo que possa resgatá-lo em outro momento, a imaginação está agindo, psicofisicamente. E
também age no momento em que o ator trabalha sobre as ações criadas, ao retomar a sua
partitura, ao jogar novamente com seus partners. Todo esse processo deve influenciar e se
deixar influenciar pelo que está acontecendo no momento e pelas memórias adquiridas pelo
ator ao longo de sua vida e ao longo do processo, armazenadas tanto no seu cérebro quanto no
resto de seu corpo.
121
DAMÁSIO, A. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p.113.
Ibidem, p.114.
123
Ibidem, p.114.
122
57
Damásio, ao responder a pergunta “de que maneira a memória influencia a
criatividade e a inventividade”, acaba por entrar nos domínios da imaginação. Em palavras
simples, esclarece o que seria a imaginação, ressaltando a sua intrínseca relação com a
criatividade e o fazer artístico; as imagens produzidas pelos nossos sentidos, captadas do
ambiente em dado momento e guardadas na memória; o papel da emoção na seleção e
organização dessas imagens em nossa mente e a influência da emoção no trabalho do artista
ou inventor.
A grande força da criatividade é, evidentemente, a imaginação. E esta nada
mais é que a manipulação de imagens, que podem ser visuais, auditivas,
táteis ou olfativas. Essa manipulação depende não só das imagens que
alguém capta em determinado momento, como daquelas guardadas no
armazém de memórias. A imaginação, portanto, recupera informações que
foram gravadas nos circuitos nervosos, onde, com a ajuda da emoção, foram
organizadas de acordo com certas categorias. Um grande artista ou inventor
é alguém que consegue usar a emoção para manipular essas imagens visuais,
auditivas, táteis ou olfativas de forma extraordinariamente rica.
(DAMÁSIO)124
É pelo modo particular com que o organismo humano manipula suas imagens,
influenciado por emoções e pelos valores e experiências acumulados ao decorrer da vida,
junto à capacidade de percepção dos sentidos em sua relação com o ambiente e memórias, que
se torna possível transfigurar, com o uso da imaginação, até mesmo o cotidiano em arte.
Damásio destaca que o artista usa a emoção para organizar essas imagens, mas como
Stanislávski aponta em seus estudos, não possuímos domínio sobre as nossas emoções.
Esclarecemos então que, para Damásio, assim como para Stanislávski, a emoção
acontece como uma resposta a determinado indutor, que pode ser algo que percebemos por
meio de nossos sentidos ou que é evocado por nossa memória. A emoção é uma resposta
sobre a qual não temos controle, tratando-se de uma reação orgânica ao indutor, que, por sua
vez, provoca reações corporais e cerebrais. Ocorrem mudanças em nosso estado corporal e em
nossa mente que trazem à tona sentimentos. A questão do ator então, segundo Stanislávski, é
ter controle, consciência, sobre o que faz em cena, porque e para que faz, dentro de quais
circunstâncias, e não buscar o controle ou a indução da emoção. Esta poderá ser gerada como
resposta ao trabalho do ator, a partir do seu envolvimento com as ações físicas.
124
“A conquista da memória” – António Damásio em entrevista à Revista Veja, em 13 de janeiro de 2010.
Edição 2147, São Paulo: Abril, 2010. In http://veja.abril.com.br/130110/conquista-memoria-p-078.shtml
58
Voltamos nossas questões para o desvelamento do processo psicofísico que abrange a
imaginação na criação do ator. Pois, em Stanislávski, a criação deve partir da ação psicofísica,
sendo o agir impulsor de novas conexões e trocas entre corpo e mente.
Stanislávski e a organicidade do ator
Foi na observação daquilo que chamou de leis da natureza humana que Stanislávski
buscou as bases para o seu “sistema” de criação e aprimoramento artístico teatral, com o
objetivo de despertar e desenvolver as faculdades criativas do ator. Com a sua aguda
capacidade de observação compreendeu essa inseparabilidade do corpo/mente, qualificando
como “psicofísicos” os aspectos do trabalho do ator. E podemos pensar que todos os aspectos
do trabalho do ator convergem para a sua ação cênica.
A partir disso, questionamos sempre: como trazer essa complexidade orgânica, de
corpo e mente, para a criação e realização da ação cênica pelo ator?
Pois, como bem observou Stanislávski, muitas vezes, o ator em situação de
representação desvincula a ligação que acontece naturalmente entre corpo e mente. Por
exemplo, se o ator/personagem precisa fugir de seu partner em cena porque descobriu que
existe um plano para matá-lo, ele pode pensar: agora (após determinada fala) é o momento em
que eu corro para tal direção. Se não levar em consideração o objetivo e as circunstâncias de
sua ação, o ator pode acabar colocando o físico, isto é, o movimento da corrida, como algo
separado de seu pensamento. Ou ainda, pode dispersar seu pensamento para aspectos da vida
cotidiana, realizando as suas ações automaticamente, sem comprometer-se como o aqui e o
agora do acontecimento.
De acordo com Kristi, baseando-se “no vínculo indissolúvel que existe entre a
natureza espiritual e física do homem”, Stanislávski “considera a criação como um processo
psicofísico”. Afirmando que no momento da criação “se estabelece o nexo mútuo entre o
corpo e o espírito, a ação e o sentimento, graças ao qual o exterior ajuda o interior e o
interior desperta o exterior.”125
O que Stanislávski chama de organicidade do ator reside justamente na capacidade de
envolvimento/movimento psicofísico na realização da ação. O que reiteramos com a seguinte
125
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.32. (Tradução nossa)
59
afirmação de Adriana Dal Forno: “A organicidade na ação se constitui pela concomitância
do pensamento e do movimento, reconstituindo um processo que, ao longo da vida, é
suplantado pelo hábito e pela mecanicidade, que se colocam como obstáculos para a sua
realização.”126
A partir de seu “sistema”, Stanislávski nos ajuda a quebrar essa mecanicidade
possibilitando essa reconstituição espontânea de corpo e mente em cena. A imaginação aliada
à concentração tem papel fundamental nessa reconstituição da ligação orgânica de
pensamento e movimento, possibilitando um processo de criação em que o ator precisa lutar
constantemente contra a sua dispersão, criando focos de atenção, imagens, em cada momento
de sua existência cênica, relacionando esses focos entre si para não agir de forma
desconectada. É necessário precisão no agir e atenção no que está acontecendo no aqui e no
agora. É necessário perceber o próprio organismo no momento presente para captar sem
bloqueios os impulsos da imaginação e, assim, agir e reagir de corpo e mente. O ator
manifesta a sua individualidade criativa, em direção oposta aos automatismos habituais.
Visando a totalidade do funcionamento entre corpo e mente - ou espírito, tal como
Stanislávski frequentemente se refere à “vida interna” almejada pelo ator em cena - os
elementos do “sistema”, já mencionados, deveriam trabalhar de forma interligada na
realização de uma ação psicofísica.
Para Stanislávski, a justificativa interna do movimento, ou a sua “vida interna”, deve
estar presente desde os exercícios de preparação corporal e não apenas durante a realização
cênica. Por esse motivo, Stanislávski incentiva, por exemplo, o uso da acrobacia no
treinamento do ator, como um exercício que, segundo ele, concentra naturalmente o interior e
o exterior do artista na sua execução, desenvolvendo, além de agilidade e eficiência física, a
atenção e a capacidade de decisão. A dança e a ginástica também estimulam de forma
integrada o corpo e a mente do ator na realização da ação, a primeira, principalmente, por
proporcionar amplitude, fluidez a cadência nos movimentos, e a segunda pela melhora na
postura, tônus muscular e respiração, que são qualidades essenciais na eficácia da ação.
Nessas atividades Stanislávski visa que o ator não caia em “convencionalismos” e
“movimentos afetados”, tal como em alguns movimentos do balé. Assim o ator deve buscar,
invariavelmente, que cada movimento tenha um fundamento interno. Pois, para o mestre
126
DAL FORNO, A. “A organicidade do ator” – Dissertação de mestrado, UNICAMP, IA, Campinas, 2002,
p.39.
60
russo: “Na cena não deve haver posições que careçam de fundamento. Na autêntica criação e
na arte verdadeira não há lugar para o convencionalismo.”127
A esse respeito, ele também afirma: “Tratemos de adaptar estas convenções, poses e
gestos da cena à realização de uma tarefa viva, a projetar alguma vivência interna. Então, o
gesto deixa de ser gesto e se transforma em uma ação real, com um propósito e um
conteúdo.”128
A ação física e a organicidade do ator
Em busca de um maior esclarecimento sobre o que Stanislávski chama de ação física,
a qual exige um engajamento de corpo e mente, recorremos ao pesquisador e encenador
polonês Jerzy Grotowski, que diferencia atividades, gestos e movimentos de ações físicas:
O que é preciso compreender logo é o que não são ações físicas. As
atividades não são ações físicas. As atividades no sentido de limpar o chão,
lavar os pratos, fumar cachimbo, não são ações físicas, são atividades.
Pessoas que pensam trabalhar sobre o método das ações físicas fazem
sempre esta confusão. (...) Mas a atividade pode se transformar em ação
física. Por exemplo, se vocês me colocarem uma pergunta muito embaraçosa
(...), eu tenho que ganhar tempo. Começo então a preparar meu cachimbo de
maneira muito "sólida". Neste momento vira ação física, porque isto me
serve neste momento. Estou realmente muito ocupado em preparar o
cachimbo, acender o fogo, assim DEPOIS posso responder à pergunta.
(GROTOWSKI)129
O ator, ao voltar a sua atenção para o que está fazendo, mesmo que o que faz não seja
o principal, como no exemplo de Grotowski em que o objetivo de limpar o cachimbo não era
exatamente deixá-lo limpo, mas se ocupar com algo a fim de ganhar tempo, sem deixar que as
pessoas da plateia percebam, e conseguir pensar em uma boa resposta, ele está realizando uma
ação. A atividade de limpar o cachimbo, que poderia ser realizada mecanicamente, ao
considerar determinadas circunstâncias que oferecem obstáculos e ao possuir um objetivo, se
127
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.158. (Tradução nossa)
128
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador
de la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983, p.43. (Tradução nossa)
129
GROTOWSKI, J. Sobre o Método das Ações Físicas. Palestra proferida por Grotowski no Festival de Teatro
de Santo Arcangelo (Itália), em junho de 1988. In http://www.grupotempo.com.br/tex_grot.html
61
complexifica e envolve o corpo/mente, tornando-se, assim, uma ação física. Grotowski
prossegue com a sua reflexão:
Outra confusão relativa às ações físicas, a de que as ações físicas são
gestos. Os atores normalmente fazem muitos gestos pensando que este é o
mistério. Existem gestos profissionais - como os do padre. Sempre assim,
muito sacramentais. Isto são gestos, não ações. São pessoas nas situações de
vida. (...) O gesto do ator Romeu é artificial, é uma banalidade, um clichê ou
simplesmente uma convenção, se representa a cara de amor assim. Vejam a
mesma coisa com o cachimbo, que por si só é banal, transformando-a a partir
do interior, através da intenção - nesta ponte viva, e a ação física não é mais
um gesto. O que é gesto se olharmos do exterior? (...) O gesto é uma ação
periférica do corpo, não nasce no interior do corpo, mas na periferia. Por
exemplo, quando os camponeses cumprimentam as visitas, se são ainda
ligados à vida tradicional, o movimento da mão começa dentro do corpo
(Grotowski mostra), e os da cidade assim (mostra). Este é o gesto. Ação é
alguma coisa mais, porque nasce no interior do corpo. Quase sempre o gesto
encontra-se na periferia, nas "caras", nesta parte das mãos, nos pés, pois os
gestos muito frequentemente não se originam na coluna vertebral. As ações,
ao contrário, estão radicadas na coluna vertebral e habitam o corpo.
(GROTOWSKI)130
Essa reflexão sobre o que afinal é um gesto e porque ele não pode ser considerado uma
ação física é realmente importante para compreendermos a prática a partir do método das
ações físicas. O gesto está ligado à execução externa do movimento, como diz Grotowski, o
gesto “não nasce no interior do corpo”, como acontece com a ação psicofísica. Por fim,
Grotowski reflete sobre o movimento como sendo diverso da ação:
Outra coisa é fazer a relação entre movimento e ação. O movimento, como
na coreografia, não é ação física, mas cada ação física pode ser colocada em
uma forma, em um ritmo, seria dizer que cada ação física, mesmo a mais
simples, pode vir a ser uma estrutura (...). Do exterior, nos dois casos,
estamos diante de uma coreografia. Mas no primeiro caso a coreografia é
somente movimento, e no segundo é o exterior de um ciclo de ações
intencionais. (GROTOWSKI)131
Nesse caso, Grotowski confronta a execução de uma coreografia de movimentos, que,
geralmente, está bastante relacionada com uma busca pela “perfeição” na execução externa
dos movimentos, com a estrutura de uma partitura de ações, que envolve intenção e
justificativa, e, portanto, interno e externo.
130
GROTOWSKI, J. Sobre o Método das Ações Físicas. Palestra proferida por Grotowski no Festival de Teatro
de Santo Arcangelo (Itália), em junho de 1988. In http://www.grupotempo.com.br/tex_grot.html
131
Ibidem.
62
Ao propor a projeção de uma vivência interna a fim de que o gesto deixe de ser apenas
uma execução externa para que se torne ação, Stanislávski se refere à imaginação, num
trabalho conjunto com as sensações, ou seja, usamos a imaginação para criar intencionalidade,
objetivo, justificação e vivência na ação cênica.
Reiteramos a importância atribuída por Stanislávski à imaginação em sua relação com
a integridade de corpo e mente na realização da ação, pela exigência de que:
(...) cada postura não só esteja sujeita ao controle, liberada mecanicamente
de toda tensão, mas que, além disso, se baseie em alguma ideia imaginária,
as circunstâncias dadas e o „se‟. Desse momento em diante deixa de ser uma
pose como tal, recebe um objetivo ativo e se converte em ação.
(STANISLÁVSKI)132
Se o ator possui uma intencionalidade, é produzida em seu corpo uma resposta
muscular, que gera uma ação, mesmo na imobilidade. Em qualquer postura o ator deve
buscar/imaginar todo um movimento interno que a justifique, a fim de tornar essa postura
“viva”.
Assim, para que a atividade, o gesto, o movimento ou a postura possam se transformar
em ação é necessário um amplo trabalho da imaginação que os justique. Essa justificativa
pode surgir espontaneamente das imagens sensoriais advindas da atenção voltada à escuta do
próprio corpo na realização de movimentos, de gestos, posturas.133
Para o melhor entendimento desse trabalho com a imaginação na busca por expressar
no corpo a “vivência interna” do ator, citamos o exercício, aplicado por Stanislávski, com a
gota de mercúrio. O exercício consiste em fazer com que uma gota de mercúrio imaginária
percorra o corpo, envolvendo a coluna vertebral, os braços e as pernas, buscando perceber a
sua passagem em cada articulação e exigindo intensa atenção para que a gota não se desvie do
percurso proposto pela imaginação.
Citamos esse exercício por o considerarmos um exemplo claro de movimento
provocado pela imaginação e justificado internamente por uma linha ininterrupta de atenção,
trabalho que entendemos como necessário para se obter movimentos expressivos ou, como
designa Stanislávski, para obter o que ele chama de “plasticidade dos movimentos”.
132
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.158. (Tradução nossa)
133
Esse estímulo pode vir do próprio corpo, como por exemplo, a noção de koshi de que fala Eugenio Barba.
Vide: BARBA, E. A Canoa de papel: Tratado de Antropologia Teatral. São Paulo: Hucitec, 1994.
63
A conexão de corpo e mente que torna o exercício “vivo” se dá pelo trabalho de
imaginar a gota traçando um caminho pelo corpo tendo o cuidado para que ela não escorra
para o chão, o que exige extrema concentração, para que, assim, a ação da imaginação se
concretize com eficácia. Há objetivo e obstáculo e, portanto, também há ação. 134
A importância desse exercício reside não só no esclarecimento prático da vivência de
uma linha contínua de ação interna, mas também na experiência da sensação do movimento
da energia, que consiste no próprio fluxo do movimento.
Stanislávski, a partir desse exercício, propõe as seguintes questões aos atores:
“Sentimos realmente sua passagem por nosso sistema muscular ou imaginamos que
sentíamos?” (...) “E que outra coisa é a tensão muscular, ou o espasmo, senão energia motriz
que foi bloqueada?”135 E ainda explica que “a fluidez exterior se fundamenta na sensação
interior do movimento da energia.”136
Pela sensação interna do fluxo de energia, o pesquisador busca que o ator obtenha um
corpo livre de tensões inadequadas, o que, além de bloquear a fluidez do movimento e a sua
potencialidade criativa, podem produzir espasmos musculares provenientes desse descontrole
corporal.
A partir da compreensão de que a sensação é consequência da relação dos nossos
sentidos com os objetos de atenção, e que gera imagens, citamos novamente Damásio: “a
natureza das imagens de algo que ainda não aconteceu, e pode de fato nunca vir a acontecer,
não é diferente da natureza das imagens acerca de algo que já aconteceu e que retemos.”137
Assim, a sensação de algo imaginado, como a passagem da gota de mercúrio pelo
nosso corpo, pode ser tão real quanto uma lembrança de infância. Pois, como afirma o
neurocientista, “essas diversas imagens – perceptivas, evocadas a partir do passado real e
evocadas a partir de planos para o futuro – são construções do cérebro. Tudo o que se pode
saber ao certo é que são reais para nós próprios (...).”138
134
Ressaltamos que, ao elaborar esse exercício Stanislávski estava sob a influência dos ensinamentos da Yoga.
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador
de la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983, p.45. (Tradução nossa)
136
Ibidem, p.59.
137
DAMÁSIO, A. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p.124.
138
Ibidem, p.124.
135
64
Tempo-ritmo e organicidade
De acordo com Stanislávski, a linha imaginária de ação construída pelo exercício com
a gota de mercúrio também pode ser elaborada expressivamente pelo trabalho com o temporitmo, que pode estar presente tanto na mobilidade quanto na imobilidade: “Em um ponto
podemos tornar a ação mais rápida, em outro reforçá-la, em uma terceira etapa a podemos
acelerar, retardar, deter, interromper, agregar um acento rítmico, e, por fim, coordenar
nosso movimento com a ênfase do tempo e do ritmo.”139
A variação do tempo-ritmo na execução dos movimentos, seja a partir da marcação de
compassos, seja por meio da música ou ainda partindo da justificativa da linha de ação
psicofísica, produz sensações e imagens que, por sua vez, podem estimular novas variações
rítmicas e renovação do fluxo de energia.
A respeito da combinação de plasticidade, energia e tempo-ritmo, Stanislávski reflete
que:
Deve-se estabelecer como base da plasticidade do movimento o fluxo
interior, invisível, da energia, e não o visível, exterior. Este é, precisamente,
o que se deve combinar com os golpes rítmicos do tempo-ritmo. A esta
sensação interior da energia que corre o corpo, a denominamos sentido do
movimento. (STANISLÁVSKI)140
Para Stanislávski, tanto a ação do ator quanto a sua criação como um todo dependem
não só da liberdade da imaginação, mas também da capacidade de transformar a fluência de
imagens em liberdade muscular no corpo do ator, gerando sensações. Para alcançar tal
liberdade é preciso que o ator saiba escutar o próprio corpo sendo capaz de detectar tensões
que se revelem inadequadas para a realização da ação. Portanto, “enquanto existe tensão não
se pode falar de sensações sutis, corretas, nem de uma vida espiritual normal da personagem.
Por isso, antes de iniciar a criação deve-se ordenar os músculos para que eles não paralisem
a liberdade de ação.”141
Segundo o pesquisador, para agir organicamente o ator deveria reaprender a olhar, a
caminhar e a falar, em cena e na vida, buscando, assim, o desenvolvimento de uma segunda
139
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador
de la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983, p.49. (Tradução nossa)
140
Ibidem, p.50.
141
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.152. (Tradução nossa)
65
natureza. Para ele, “nossa natureza resulta deteriorada pela vida e pelos maus hábitos
adquiridos.”142 No decorrer da vida vamos nos distanciando da fluência natural do corpo,
fluência que ainda podemos observar, de acordo com Stanislávski, nos animais e crianças
pequenas, e adquirimos bloqueios e “defeitos” que “influenciam no estado geral do ator.”143
Com o exercício de caminhar lentamente guiado pelas próprias sensações 144,
Stanislávski busca que o ator compreenda e experimente na prática a mecânica da ação de
andar, parte essencial do reaprendizado do qual fala em seu “sistema” para o desenvolvimento
de uma segunda natureza. Novamente, nesse exercício, é preciso estar atento às tensões
desnecessárias que se formam e buscar perceber a “passagem interna da energia motriz pelos
músculos das pernas.”145
Segundo Stanislávski, a existência de um objetivo, ou propósito, que justifica o
movimento internamente, proporciona a relação correta entre músculos e tensões, que atuam,
então, sem bloqueios e esforços desnecessários, auxiliando no fluxo da energia motriz e no
envolvimento da totalidade psicofísica do ator no processo de criação e execução da ação.
Desse modo, o pesquisador afirma que “(...) um objetivo vivo e uma ação verdadeira (reais
ou imaginados, porém, apropriadamente fundados nas circunstâncias dadas, nas que
acredita sinceramente o artista) fazem a natureza trabalhar sem impedimentos.” 146
2.2 A formação da imagem e os objetos de atenção
As imagens são construídas quando mobilizamos objetos – de pessoas e
lugares a uma dor de dente – de fora do cérebro em direção ao seu interior, e
também quando reconstruímos objetos a partir da memória, de dentro para
fora, por assim dizer. (DAMÁSIO)147
O ator, em seu processo criativo, lida com um complexo de informações sensoriais,
advindas de suas referências pessoais, de sua história de vida, ou de sensações induzidas, que
142
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.162. (Tradução nossa)
143
Ibidem, p.155.
144
Vide STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso
creador de la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983, pp. 50-59.
145
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mesmo. El trabajo sobre si mismo en el proceso creador
de la encarnación. Buenos Aires: Quetzal, 1983, p.57. (Tradução nossa)
146
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.160. (Tradução nossa)
147
DAMÁSIO, A. O mistério da consciência – Do corpo e das emoções ao conhecimento de si. São Paulo: Cia
das Letras, 2000, p.403.
66
se apresentam em forma de imagens internas e externas - visuais, olfativas, gustativas, táteis e
auditivas – que no momento presente de sua atuação podem ser acionadas pela relação com o
ambiente externo – cenário, figurino, luz, partner, espectador e demais elementos da
ambientação cênica e do inusitado - e pela relação com as suas referências internas, que estão
“guardadas” em sua memória, e podem surgir espontaneamente ou de modo induzido pelo
ator.
Angel Ruggiero, ao analisar a exigência de Stanislávski de que o ator deve “partir de si
mesmo” e “buscar em seu partner” para poder criar, constata uma aparente contradição e nos
esclarece que o “partir de si mesmo” é fundamental para o ator, na medida em que ele é fonte
de experiências, emoções, impressões, sensações e imagens: “Onde encontrar um sentimento
de ódio ou amor, se não em si mesmo? Como compreender determinada conduta se não é
tratando de encontrar a sua própria diante da situação em que se encontra a personagem?”
148
Para Ruggiero, “buscar em seu partner” também é essencial para o trabalho do ator.
Pois, ao dizer que busque em seu partner, Stanislávski “está indicando o caminho necessário
para captar o estímulo que o irá mobilizar” (...) “está indicando ao ator que não se
concentre em um objeto interno, mas que dirija a sua atenção para um objeto (seu partner)
que está fora dele.” 149
Com isso, entendemos que a relação do ator com o partner e com os demais objetos de
atenção, quer internos ou externos, consiste em um impulso fundamental para colocar a sua
criação em movimento. Para ser capaz de estabelecer esse nível de relação com o partner, o
ator precisa voltar a sua atenção disponibilizando a sua totalidade, de corpo e mente, para esse
momento de troca, de comunhão.
Assim, colocando-se em ação dentro das circunstâncias dadas, da história e do
momento presente da cena, e em relação com o seu partner, o ator desperta em si mesmo um
processo de criação orgânico, como resultado das respostas particulares que apresenta frente
aos estímulos que capta interna e externamente.
Ressaltamos que esse outro também pode ser uma representação imagética, ou seja,
pode ser uma pessoa que não está concretamente naquele momento, mas em forma de uma
148
RUGGIERO, A. Acerca del discurso stanislavskiano. In REVISTA MÁSCARA. Stanislávski, Ese
Desconocido. Ano 3, nº 15. México, D.F.: 1993, p.76. (Tradução nossa)
149
Ibidem, p.76.
67
imagem concreta. Através do que visualiza internamente o ator pode projetar essa imagem no
espaço, tornando-a, assim, um objeto de atenção concreto.
Então, para estabelecer essa relação com o outro, Stanislávski destaca a necessidade de
uma atenção cênica ativa, da qual resulta uma ação crível.
A atenção ativa
A concentração que envolve o fato do ator direcionar sua atenção para um foco, ou
transitar por outros focos, o leva a se manter na ação do aqui e do agora. O jogo se dá naquele
momento. Segundo Adriana Dal Forno, “a ação é produto da relação do organismo com o
objeto por meio da focalização da atenção, de forma mais exigente, aguda e elaborada que a
atenção cotidiana.”150
Para que a atenção esteja totalmente voltada para o que está acontecendo na cena,
abrangendo todos os sentidos do ator, Stanislávski aponta que o ator deve “aprender a olhar e
ver, a escutar e ouvir em cena.”151 Nesse sentido, com o intuito de tornar a atenção do ator
ativa em cena, de modo diferente do cotidiano, o mestre constata que:
(...) com quanta frequência vemos sem olhar em cena! O que pode ser mais
terrível que o olhar vazio de um ator! É a prova mais convincente de que a
alma do intérprete dorme, ou de que sua atenção está em alguma outra parte,
fora dos limites do teatro e da vida imaginária da cena. O ator está pensando
em algo que não tem relação com o papel. (STANISLÁVSKI)152
Ao direcionar sua atenção e pensamento o ator abre a percepção de seus sentidos com a possibilidade de uma presença “viva”.
A formação de repertório na imaginação do ator
Voltando aos estudos de Damásio, podemos compreender de forma mais específica o
funcionamento dos nossos sentidos frente ao ambiente que nos rodeia, isto é, como formamos
150
DAL FORNO, A. “A organicidade do ator” – Dissertação de mestrado, UNICAMP, IA, Campinas, 2002,
p.61.
151
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.127. (Tradução nossa)
152
Ibidem, p.128.
68
nosso repertório sensorial/imagético a partir da relação com o ambiente. Assim, para o
cientista:
O ambiente deixa sua marca no organismo de diversas maneiras. Uma delas
é por meio da estimulação da atividade neural dos olhos (dentro dos quais
está a retina), dos ouvidos (dentro dos quais está a cóclea, um órgão sensível
ao som, e o vestíbulo, um órgão sensível ao equilíbrio) e das miríades de
terminações nervosas localizadas na pele, nas papilas gustativas e na mucosa
nasal. As terminações nervosas enviam sinais para pontos de entrada
circunscritos no cérebro, os chamados córtices sensoriais iniciais da visão,
da audição, das sensações somáticas, do paladar e do olfato. (DAMÁSIO)153
Com este esclarecimento se torna possível melhor visualizarmos a complexidade
sensorial do nosso corpo, e também entender porque Stanislávski, de acordo com o
conhecimento que possuía na época e a sua capacidade de observação, explorou elementos
que estimulassem o corpo do ator a agir, utilizando, para isso, a própria natureza a seu favor.
Segundo Nair D‟Agostini:
Para o ator, a observação da vida em todos os seus aspectos e a apreensão
das impressões obtidas nela, através da comunicação direta com o que é
visto, ouvido e percebido, constituem elementos e material necessários que
passam a ser fonte de inspiração para a criação de imagens cênicas vivas.
Esse material sensitivo-emocional é valioso para dar forma à “vida do
espírito humano do papel” (...). (DAGOSTINI)154
É pela frequente referência do que seria possível acontecer na vida que Stanislávski
busca respostas para o que está acontecendo na cena. É com a reflexão sobre a realidade da
vida que ele impulsiona a imaginação a concretizar-se no corpo para tornar real a cena fictícia
no palco.
Com relação à segunda via de construção de imagens apontada por Damásio, a saber,
quando reconstruímos objetos a partir das imagens guardadas em nosso “armazém de
memórias”, relembramos que, de acordo com o autor, essas imagens são recuperadas da
memória pela imaginação, onde foram organizadas com a ajuda da emoção. Damásio ressalta
ainda a emoção como recurso do artista ou inventor para manipular as suas imagens,
“manipulação” que consiste na essência da imaginação.
153
DAMÁSIO, A. O erro de Descartes. São Paulo: Cia das Letras, 2005, p.117.
DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da
criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São
Paulo, 2007, p.63.
154
69
Na indução das emoções, da mesma forma com o que ocorre na formação das
imagens, lidamos com a relação que é estabelecida com o externo: seja com o ambiente que
nos rodeia, seja com as imagens vindas da memória, que, também, foram constituídas pela
nossa percepção e relação com o mundo externo em um momento precedente. Essas imagens
sensoriais, que foram captadas do ambiente através dos sentidos ou evocadas pela memória
por meio da lembrança de determinado objeto ou acontecimento, trazem consigo as
impressões que temos do objeto ou acontecimento, impulsionando assim as emoções.
Captadas da nossa interação com as circunstâncias, acontecimentos, pessoas, lugares e
objetos que nos circundam, as imagens criam, na memória do nosso corpo-mente, impressões,
sensações e emoções, que, durante a criação artística, como defende Stanislávski, podem ser
resgatados, indiretamente, por meio da realização da ação. Essas impressões, emoções, em
contato com as novas circunstâncias externas que ocorrem no momento presente da cena
impulsionam a imaginação e resultam em novas imagens, associações, impulsos criativos e
emoções.
2.3 Desenvolvimento e transformação na representação da imagem no processo criativo
de Stanislávski
Stanislávski considera que as representações imagéticas presentes na mente estão
diretamente relacionadas com as informações que captamos por meio dos sentidos:
(...) através destas representações (de um lugar, uma refeição ou uma
música) 155, despertamos sensações interiores de algum dos cinco sentidos e
fixamos definitivamente nele nossa atenção, que, por conseguinte, chega ao
objeto de nossa vida imaginária, não por uma via direta, mas indireta (...).
(STANISLÁVSKI)156
Essas representações imagéticas têm o poder de despertar nossos sentidos e suas
sensações e, ao conduzir a atenção para a imagem/sensação despertada, também possibilitam
a conexão de corpo e mente no aqui e no agora. Stanislávski exige que as imagens despertadas
se tornem concretas para o ator. Para isso, é preciso que a imagem seja detalhadamente
desenvolvida, contemplando nesse processo diversas sensações e qualidades. Por exemplo,
155
Grifo nosso, conforme exemplo dado por Stanislávski.
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.139. (Tradução nossa)
156
70
supondo que a referência imagética seja a de uma pessoa, o ator deve entender de modo
complexo quem é essa pessoa e como ela reage às circunstâncias, buscando visualizá-la
mentalmente, imaginando que tipo de roupa ela usa, como se comporta, como fala, qual o seu
tom de voz, como é a sua pele, qual o tipo de cheiro que exala, como é o seu olhar, que tipo
de sensação esse olhar transmite, como ela vê o mundo, quais as suas crenças, entre outras
questões.
Desse modo, mesmo que essa pessoa não exista realmente, ou que exista, mas nunca
se encontrou pessoalmente com o ator, supondo que ele a conheça por foto ou apenas pelo que
falam sobre ela, é possível que a referência imagética dessa pessoa se torne uma imagem
concreta e “viva” para o ator. Tornando-se assim, o “objeto de nossa vida imaginária” do qual
fala Stanislávski.
Refletir sobre a visualização, ou o trabalho com a vida imaginária, além de nos
remeter a Stanislávski, nos leva, especialmente, a Maria Knébel, e nos conduz também aos
pesquisadores Mikhail Tchekhov e Stella Adler. Artistas/pesquisadores que tiveram contato
com Stanislávski e experienciaram, cada um a seu tempo e a seu modo, suas investigações.
O processo de visualização pela imaginação, como procedimento criativo do ator, teve
bastante ênfase na primeira fase dos estudos de Stanislávski, em que o trabalho de criação,
antes de passar pelo físico, se dava no plano mental. Como vimos anteriormente, nessa
primeira fase os ensaios eram iniciados com o período de trabalho de mesa, do “crer para
agir”. Com o desenvolvimento de suas investigações teatrais, em seus últimos estudos, o
mestre russo passou a criar a partir do “agir para crer”. Nessa última fase, a visualização, ao
invés de consistir no meio de condução da criação, começa a ser estimulada pela ação física,
formando, assim, um processo de criação psicofísico.
A obra “El trabajo del actor sobre su papel” 157 oferece um panorama da visualização
no processo de criação do ator com a imaginação ao longo da evolução das pesquisas
stanislavskianas. Nessa obra, Stanislávski expõe três formas de abordagem do papel,
refletindo diferentes momentos de pensamento e prática do pesquisador nessa evolução. Esses
estudos servirão de guia para a nossa reflexão e foram realizados tendo como base as obras:
157
“O trabalho do ator sobre o seu papel” (tradução nossa) corresponde ao quarto tomo das obras completas de
Stanislávski. Como não chegou a ser concluída pelo mestre, a obra publicada consiste na reunião dos materiais
deixados por Stanislávski para esse fim, organizados por alguns de seus discípulos. Acerca da importância dessa
obra, Kristi e Prokófiev refletem que: “Naquela ocasião, descobriu uma verdade já conhecida, a saber, a que o
ator deve saber trabalhar não apenas na preparação de si mesmo, mas também a respeito de seu papel”. In
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.18.
(Tradução nossa)
71
“A desgraça de ser inteligente”158, de A. Griboiédov; “Otelo”, de W. Shakespeare; e “O
Inspetor Geral”, de N. Gógol.
2.3.1 Primeira fase - Reflexões sobre o processo de análise de “A desgraça de ser
inteligente”159
O trabalho sobre a obra “A desgraça de ser inteligente” corresponde ao estágio inicial
das pesquisas de Stanislávski. O estudo sobre essa obra foi escrito por ele, aproximadamente,
de 1916 a 1920, correspondendo à fase do “crer para agir”. Segundo Kristi e Prokófiev, nesse
material “(...) a atenção recai sobre as condições que vão desde o domínio real do conteúdo
até a natural encarnação deste na imagem cênica.”160
Para Stanislávski, nesse momento de suas pesquisas, o “domínio real do conteúdo” se
dava no plano mental, com essencial participação da imaginação. Somente no momento da
“encarnação” em “imagem cênica” que o corpo do ator se engajava ativamente na criação.
Nesse processo, após o primeiro contato com a obra, em que o ator deveria estar atento
às primeiras impressões e sensações suscitadas durante a leitura, passava-se à sua análise
geral, visando a compreensão da trama pela vivência na visualização mental de seus conflitos,
ações e acontecimentos. De acordo com Kristi e Prokófiev:
Stanislávski atribui, a este propósito (de análise geral) 161, um papel decisivo
à imaginação. Sustentado por uma imaginação criadora, o ator chega a
justificar e até a complementar a ficção do autor com a sua própria ficção.
Descobre em sua personagem os elementos afins a sua alma. Produz infinitas
alusões e conotações, para reconstruir o passado e imaginar o futuro da
personagem. Assim pode compreender e ao mesmo tempo sentir com maior
profundidade o presente. (KRISTI; PROKÓFIEV)162
Acerca do processo de visualização pela imaginação, que também chamava de “sonho
artístico”, Stanislávski esclarece:
158
Optamos traduzir a referida obra de A. Griboiédov, em russo Góre ot umá (Горе от ума), por “A desgraça de
ser inteligente”. Acreditamos que esta seja uma tradução mais justa do que “A desgraça de ter espítirito”, como a
obra é conhecida em português, em uma tradução que deriva do francês e não diretamente do russo.
159
“A desgraça de ser inteligente” foi encenada pelo TAM em 1906 e em 1914, tendo Stanislávski como ator.
160
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.20.
(Tradução nossa)
161
Grifo nosso.
162
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.22.
(Tradução nossa)
72
Em que consiste, pois, o trabalho da imaginação criadora e como transcorre
o processo do sonhar artístico? Existem muitos aspectos do sonho artístico e
da vida imaginária. Em primeiro lugar, é possível ver na imaginação, com a
ajuda da vista interior, uma infinidade de imagens, de seres vivos, seus
rostos, seu aspecto exterior, paisagens, o mundo material das coisas, os
objetos, o ambiente, etc. Logo, se pode escutar com o ouvido interior
diversos sons, melodias, vozes, entonações, etc. Pode-se perceber diversas
sensações sugeridas pela memória sensitiva (memória afetiva). Pode-se
acariciar ou degustar todas essas imagens de ordem visual ou auditiva. É
possível contemplar tudo isso passivamente, de fora, sem fazer tentativa
alguma de desdobrar uma ação ativa. Em uma palavra, pode-se ser
espectador do próprio sonho. (...) O que chamarei de sonhar passivo,
diferindo da forma de sonhar ativo (...). (STANISLÁVSKI)163
Durante esse processo criativo, a visualização era utilizada por Stanislávski no
aprofundamento do conhecimento sobre a personagem, suas relações e circunstâncias
presentes na obra. As imagens criadas deviam envolver todos os sentidos do ator, como vimos
no estudo anterior sobre a imaginação. Sendo assim, mesmo chamando de “sonhar” ou de
visualização, Stanislávski não estava se referindo apenas às imagens visuais. Lembrando que,
aqui, o ator permanece passivo fisicamente, tudo ocorre no plano mental, inclusive as ações.
A visualização da qual fala Stanislávski relaciona-se com a afirmação de M. Tchekhov
de que “esse „olhar‟ e esse „ver‟ nada mais são do que ensaiar por meio de sua bem
desenvolvida e flexível imaginação.”164 Um ensaio que, tanto para Stanislávski quanto M.
Tchekhov, podia ser realizado pelo ator em um estado passivo ou ativo. No estado passivo o
ator se tornava espectador de sua imaginação e no ativo ele se encontrava no centro das
circunstâncias que se apresentam em sua vida imaginária.
Como espectador passivo de seu “sonho”, o ator se aproxima da época em que
transcorrerá a ação, criando o ambiente e objetos característicos de tal período histórico, de
acordo com o modo de vida das personagens da obra. Como exemplifica Stanislávski com
relação aos estudos de “A desgraça de ser inteligente”:
As recordações acumuladas durante a análise, em outros momentos e outros
lugares, alguns da vida real e outros criados pela imaginação, todos acodem
ao meu chamado e se colocam cada qual em seu lugar, ajudando a
reconstruir em minha imaginação a vida de outros tempos em uma casa
senhorial da década de 20. (...) já se pode reconstruir mentalmente uma casa,
163
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.78.
(Tradução nossa)
164
CHEKHOV, M. Para o ator. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.30.
73
e dedicar-se então a admirar a sua arquitetura, estudar a distribuição dos
ambientes, etc. (...) o ambiente mesmo vai criando pouco a pouco as
personagens. (...) Para examinar mais detalhadamente a vida da casa bastará
entreabrir a porta de qualquer cômodo, passar a uma das alas dele, por
exemplo, o refeitório, com seus serviços anexos, o corredor, a cozinha, etc.
A vida desta parte da casa na hora do almoço lembra um formigueiro
agitado. (...) Concluída a comida, tudo volta à quietude, e nesse momento
todos caminham na ponta dos pés, pois o senhor dorme.
(STANISLÁVSKI)165
Nesse período de suas pesquisas, realizado no trabalho de mesa, Stanislávski
acreditava que por meio do exercício da imaginação na visualização das relações, motivações
e comportamentos das personagens aos poucos ia sendo despertada no ator a vontade de agir
dentro dos acontecimentos.
Colocando-se sob o ponto de vista de determinada personagem, o ator começava então
a perceber suas nuances de comportamento e traços de sua vida interna e também como se
dava a sua relação com as demais personagens.
Destacamos que o estado ativo do ator corresponde à noção stanislavskiana de
“estou”, conforme afirma o pesquisador:
“Estou”, em nossa linguagem, indica que me coloco no centro das condições
imaginárias; sinto que me encontro entre elas, que existo no mais denso da
vida da fantasia, no mundo dos objetos imaginários, e que começo a atuar
movidos por meus próprios impulsos. (STANISLÁVSKI)166
O estado de “estou” transporta o ator para dentro da história na condição de uma das
personagens, que passa a atuar partindo de seus próprios impulsos ou reações diante das
circunstâncias dadas que se apresentam a ele em seu “sonho” visualizado.
No estudo da obra “A desgraça de ser inteligente”, Stanislávski busca esclarecer o
estado de “estou”, ou “existo”, ao interagir, como personagem, por meio da visualização
mental, com outra personagem da obra. O mestre narra a sua percepção da seguinte forma:
(...) e eis aqui que nos encontramos num corredor quase escuro, junto a
escada que conduz ao quarto de serviço. Será que ele espera aqui por Liza?
Pensei e o ameacei com o dedo em tom de brincadeira. Ele sorriu. Nesse
momento não apenas percebi minha existência dentro daquela circunstância
165
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, pp.79-80.
(Tradução nossa)
166
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.106. (Tradução nossa)
74
criada pela imaginação, mas, além disso, senti intensamente como o mundo
que nos rodeava havia se tornado inteiramente animado. As paredes, o ar e
os objetos se iluminaram vivamente. Havia sido criada uma verdade
autêntica, e a fé nela, e ao mesmo tempo se afirmou mais ainda a sensação
da “existência” (do “existo”). (STANISLÁVSKI)167
A partir desse exemplo percebemos que Stanislávski acreditava, nessa primeira fase,
no processo criativo do ator dentro da sua vida imaginária. E que o estabelecimento de
relação com as outras personagens contribuia para que a sensação de existência de sua própria
personagem se tornasse mais forte. O próprio mestre relata que a partir deste momento até
mesmo os objetos inanimados adquirem consistência em sua percepção, sendo capazes de
despertar a fé na verdade da sua existência, como se eles fossem reais.
O passado, o presente e o vislumbramento do futuro da personagem deveriam ser
criados pelo ator, em sua imaginação, em forma de um romance, isto é, o chamado “romance
da vida” da personagem. Assim, por meio da criação do “romance da vida” de sua
personagem, Stanislávski buscava que o ator, toda vez que se referisse a determinada
personagem, formasse em sua mente a imagem que possui dela, uma imagem consistente, em
detalhes de aparência e de comportamento. Uma personagem que possui um passado, um
presente e um futuro, vivências e anseios, como se realmente fosse uma pessoa existente em
sua vida.
Conforme esclarece Maria Knébel, “o ator deve ver estas pessoas de tal forma que em
sua memória se convertam em recordações pessoais, de tal forma que ao falar delas
compartilhe só uma pequena parte do que sabe sobre elas.”168
Uma das formas de abordagem do papel utilizada por Mikhail Tchekhov era muito
semelhante à proposta por Stanislávski nesse período inicial e a denominava de imaginação
criativa. Na imaginação criativa, o ator deve estimular a imaginação a criar imagens,
relacionar-se com elas, formulando perguntas mentais que devem ser respondidas pela
personagem em sua imaginação. Desse modo, para ele, a partir de questionamentos o ator
começa um processo de colaboração com a imagem:
Você orienta e constrói sua personagem fazendo novas perguntas,
ordenando-lhe que mostre diferentes variações de possíveis modos de atuar,
de acordo com o seu gosto (ou com a interpretação dada à personagem pelo
167
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.84.
(Tradução nossa)
168
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, p.119. (Tradução nossa)
75
diretor). A imagem muda sob seu olhar indagador, transforma-se repetidas
vezes, até que, gradualmente (ou subitamente), você se sente satisfeito com
ela. A partir desse instante, sentirá suas emoções estimuladas e o desejo de
interpretar o papel acende-se em você! (CHEKHOV)169
Com perguntas frequentes aos atores, para estimular o surgimento das imagens, Stella
Adler também utilizava exercícios próximos a esse trabalho com a visualização:
Vamos começar com um exercício simples. Você está andando por uma
estrada rural. Sabe onde você está. Olha o céu. Onde está o sol? Qual o
tamanho da sua sombra? O que a estrada parece? É instável? Ela distorce a
sua sombra? Que tipo de nuvens está no céu? Que tipo de pássaros você vê?
(ADLER)170
Esse trabalho proposto por Adler relaciona-se fundamentalmente à primeira fase das
pesquisas de Stanislávski. A partir de experiências como esta, que tinham o plano mental
como meio criativo, Stanislávski começou a perceber que havia dificuldades no momento de
transpor toda essa vivência interna em ação física. Apesar de a vivência mental estimular no
ator o desejo pela ação, havia uma quebra no processo dessa transposição, como apontam
Kristi e Prokófiev:
O mestre destaca que a passagem da vivência à encarnação não se efetua
com facilidade, sem sofrimentos. Tudo o que o ator havia criado e vivido em
sua imaginação costuma chocar com as condições do ambiente cênico, que
se desenvolvem dentro de uma ação recíproca com os atores. (KRISTI;
PROKÓFIEV)171
Como podemos perceber, na primeira fase, mesmo defendendo a importância de o ator
trabalhar o papel primeiramente no plano da imaginação, Stanislávski percebia a dificuldade e
o trabalho que o ator tinha para sintonizar o que a mente havia criado com a sua concretização
corporal, pois a mente havia sido profundamente estimulada pelo trabalho da imaginação com
as visualizações, enquanto que o corpo encontrava-se, até então, paralizado, longe de ter uma
participação ativa nesse processo.
Esse descompasso de corpo e mente acaba por constituir o ponto de virada essencial
na metodologia criativa do mestre russo. Segundo Kristi e Prokófiev, a própria divisão da
169
CHEKHOV, M. Para o ator. São Paulo: Martins Fontes, 1996, p.29.
ADLER, S. The Art of Acting. Canada: Applause Books, 2000, p.66. (Tradução nossa)
171
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.25.
(Tradução nossa)
170
76
ação em interna e externa, antes aceita por Stanislávski, passa a ser entendida por ele como
um convencionalismo, pois a ação, conforme suas últimas pesquisas, forma um processo uno,
de relação recíproca entre físico e psíquico:
(...) as ações físicas, além da possibilidade de converter-se em expressão de
vida interior, são capazes de influenciar sobre esta e de chegar a ser um meio
sólido para a formação de um estado de ânimo criativo do ator em cena. (...)
Deste modo, o mestre chegou à conclusão de que a divisão da ação em
interior e exterior, anteriormente admitida, é convencional, já que a ação
representa um processo único no qual intervém em igual medida, de uma
maneira conjugada, indivisível, tanto a natureza psíquica como a física.
(KRISTI; PROKÓFIEV)172
2.3.2 Segunda fase - Reflexões sobre o processo de análise de “Otelo” 173
Como um importante marco do início da transição do procedimento criativo de
Stanislávski para o método das ações físicas, salientamos o estudo sobre “Otelo”. Segundo
Kristi e Prokófiev, até a década de 1920 as ações possuíam, para Stanislávski, um caráter
auxiliar no trabalho do ator. Somente a partir do plano de direção de “Otelo”, escrito pelo
mestre russo entre 1929 e 1930, que ele inicia um maior enfoque nas ações físicas, ao revisar
“seu critério de enfoque psicológico” 174.
No estudo do processo criativo de “Otelo”, ressaltamos uma primeira mudança com
relação ao anterior, após a leitura da obra feita pelo diretor na presença de todos, são definidos
os acontecimentos, circunstâncias e ações principais e, em seguida, os atores são convidados a
atuar, agora fisicamente, improvisando texto e ações da primeira cena.
No entanto, apesar de propor o enfoque do estudo nas ações e iniciar o ensaio pela
atuação física, Kristi e Prokófiev salientam que:
O mestre ainda não havia renunciado totalmente a certas considerações
puramente psicológicas, e assim vemos que a análise ativa da obra é
realizada simultaneamente com a análise contemplativa (...). Neste sentido é
ilustrativo o manuscrito acerca da justificação do texto, em que Tórtsov
172
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.32.
(Tradução nossa)
173
“Otelo” foi encenado pelo TAM em 1930, dirigido por Stanislávski.
174
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.31.
(Tradução nossa)
77
aconselha seus alunos a tomar por ponto de partida, não a lógica da ação
física, mas a das ideias examinadas. (KRISTI; PROKÓFIEV)175
Percebemos também que, nesse momento, havia uma grande preocupação de
Stanislávski em esclarecer as ideias que constituem o subtexto e, consequentemente, a sua
lógica e sucessão, para que a improvisação se realizasse, ao invés de se ater na concretização
das ações. Por esse motivo, seus discípulos entendem que, em “Otelo”, o mestre ainda não
direcionou completamente o enfoque de sua metodologia de criação para a análise ativa.
Configurando-se, até então, de acordo com Stanislávski, um processo em que “a razão
suscita a participação do sentimento, e este por sua vez origina desejos e anseios, os que de
sua parte estimulam a vontade para a ação.”176 Para Kristi e Prokófiev, “semelhante recurso
não é outra coisa que uma variação do velho método psicologista.”177
Como exemplo desse entendimento de Stanislávski, citamos a seguinte afirmação de
Adler: “O que você escolhe como sua justificação deve estimulá-lo. Como resultado desse
estímulo você experimentará a ação e a emoção. Se você escolher uma justificação e não
sentir nada, terá que selecionar alguma outra coisa que o desperte.”178
Percebemos nesta afirmação de Adler contradições - ou seja, o empenho da razão em
“escolher” a justificação com o intuito de despertar o sentimento - que farão parte de toda a
herança do mestre. Pois, seus “seguidores” nem sempre atentam para as grandes
transformações que o trabalho de Stanislávski sofreu em sua fase final.
Ao mesmo tempo, Kristi e Prokófiev salientam que o processo estudado por
Stanislávski em “Otelo”, “é uma mostra cabal de conjugação da análise com a imaginação:
o alto vôo de Stanislávski, diretor, alcança até as últimas visões da ficção do genial
dramaturgo. Eis aqui o exemplo de uma leitura criadora de uma obra clássica.” 179
Nesse estudo de transição, o mestre retira da criação do ator a abordagem do papel
pela vivência nas visualizações e redireciona a imaginação para o esclarecimento da ficção do
175
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977,
(Tradução nossa)
176
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977,
(Tradução nossa)
177
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977,
(Tradução nossa)
178
ADLER, S. Técnica da representação teatral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p.67.
179
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977,
(Tradução nossa)
p.36.
p.36.
p.36.
p.37.
78
autor, bem como para a sua complementação, partindo das impressões particulares de cada
ator. Realizando então, uma segunda criação a partir da obra criada pelo autor.
Assim, uma importante passagem desse estudo, no que concerne às visualizações, trata
do “relato do conteúdo”. Para ser capaz de contar a história da obra com suas próprias
palavras, a imaginação do ator deve ser acionada. Segundo Stanislávski: “para conceber e
apreciar o que encerra a obra, se bem que em forma velada, é necessário possuir
imaginação.”180 Para ele, “a arte e a criação se apoiam somente naquilo que é capaz de
avivar nossa imaginação e nossa emoção.” 181 Ao relatar o conteúdo da obra é preciso
transmitir suas imagens e impressões ao interlocutor, convencê-lo da veracidade do que está
contando, despertando, assim, suas próprias imagens e associações a partir do que está
escutando. Esse exercício envolve amplo esforço da imaginação e contempla a ação de
convencer, comunicar. Segundo Knébel:
(...) para ter direito a “implantar suas visualizações no interlocutor”, para
contagiá-lo com os quadros criados em sua imaginação, o ator deve realizar
um enorme trabalho, deve reunir e por em ordem o material para a
comunicação, ou seja, penetrar na essência do que deve transmitir, conhecer
os fatos dos quais deve falar, as circunstâncias dadas nas quais é preciso
pensar, criar em sua visão interna suas próprias visualizações. (KNÉBEL)182
Esse relato deve estar imbuído da criatividade do ator, por isso a importância relegada
à imaginação. Deve ser um relato “vivo”, ou seja, em que se enxerga atentamente e em
detalhes, com a “visão interior”, como se fosse um filme, o que está relatando. A esse
respeito, em concordância com Stanislávski, para Adler:
Se eu falo sobre uma rosa, a imagem da rosa é bem específica. „Eu vi uma
rosa. É vermelha e amarela e tem um longo talo verde com espinhos.‟ Agora
a rosa não é apenas um fato. Requer certa energia fazer seu parceiro ver o
que você vê. Não basta que só você veja. Faz parte de sua técnica transmitir
essas imagens ao parceiro. (ADLER)183
Para exemplificar a sua prática, o mestre inicia o seu próprio relato sobre o conteúdo
da obra, descrevendo Desdêmona, do seguinte modo:
180
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.234.
(Tradução nossa)
181
Ibidem, p.235.
182
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, p.120. (Tradução nossa)
183
ADLER, S. Técnica da representação teatral. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 42.
79
Estou vendo uma bela veneziana, criada entre luxo e mimos, caprichosa,
sonhadora, como costumam ser as jovens que são educadas sem mãe, sob a
influência das novelas românticas. (...) Não se permite a nada acercar-se
dela, mas o seu terno coração deseja amor. Conta com muitos pretendentes
entre os jovens destacados e ociosos, mas estes não sabem atrair a jovem
sonhadora. Aspira a algo fora do comum, como somente ocorre em belas
novelas. Aguarda a um príncipe encantado, um poderoso duque ou a um rei.
(...) Deve ser um herói apolíneo, valente e invencível (...)
(STANISLÁVSKI)184
A partir disso, podemos melhor entender a afirmação anterior de Kristi e Prokófiev, de
que o mestre realiza em “Otelo” uma leitura criadora. Pois, o que vemos é que ele realmente
cria uma fábula em sua imaginação, que apresenta laços profundos com a história,
preenchendo-a de impressões que expõem as circunstâncias e, por sua vez, conduzem ao
desvendamento dos acontecimentos principais, do que move a trama, e aponta alguns dos
obstáculos que estabelecem oposição a esse movimento. Ao mesmo tempo em que
Desdêmona sonha em viver uma história romântica ao lado de um herói, não é permitido que
ninguém se aproxime dela, mas, munida de um ideal romântico, não será fácil fazê-la
obedecer a regras quando ela encontrar o seu herói.
Stanislávski também propõe que um aluno continue esse relato, buscando contar de
modo sucessivo como tudo aconteceu, como Otelo e Desdêmona se conheceram, se
apaixonaram e como se casaram.
Segundo Stanislávski, o conteúdo da obra relatado dessa forma torna a obra mais
interessante do que simplesmente expor os fatos e, dessa forma, as imagens vão se tornando
mais complexas em detalhes e existência, complementando a criação do autor. Como afirma
Knébel, “as imagens visualizadas se reforçam ao serem repetidas frequentemente, o mundo
imaginário cresce constantemente com novos detalhes.”185
Stanislávski destaca que nessa narrativa, o ponto de vista do ator também deve ser
alterado, o relato pode ser feito com o ator colocado como espectador que vê e narra os fatos
de fora e/ou situando-se sob o ponto de vista das personagens, “para isso é necessário
aprender a estimular a imaginação que se encontra em estado passivo”.186
184
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.235.
(Tradução nossa)
185
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, p.116. (Tradução nossa)
186
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.238.
(Tradução nossa)
80
Como vemos, além da necessidade de uma imaginação criadora, o mestre ressalta um
modo passivo e outro ativo de abordagem do relato do conteúdo da história, como já
acontecia no estudo anterior, naquele momento era apenas mentalmente, aqui pela
visualização mental o ator deve buscar uma organização lógica e consequente para expressar
suas ideias e imagens pela fala. Ao expressar pela fala a imagem que está sendo visualizada a
palavra é tornada ação.
Em síntese, evidenciamos que, nesse período intermediário de suas pesquisas, apesar
de ainda não utilizar plenamente o método das ações físicas e a análise ativa, os atores são
estimulados a agir fisicamente desde o primeiro ensaio. Stanislávski sugere que seja realizada
pelo diretor uma primeira leitura da obra para os atores que, após o estabelecimento dos
acontecimentos mais importantes, devem partir para a improvisação, relacionando-se com os
partners e circunstâncias dadas. O “relato de conteúdo” consistia em uma prática que deveria
ocorrer depois que a cena tivesse sido experienciada fisicamente pelos atores, e tinha a
finalidade de auxiliá-los no aprofundamento da sua compreensão da obra pelas imagens
visualizadas.
2.3.3 Última fase: As ações físicas - Reflexões sobre o processo de análise de “O
Inspetor Geral”
Para a nossa reflexão sobre a visualização na última fase stanislavskiana, tomamos por
base o estudo, realizado por Stanislávski entre 1936 e 1937187, quanto à obra “O inspetor
geral”, de N. Gógol. Segundo Kristi e Prokófiev, nesse estudo o mestre rompe
definitivamente com o enfoque psicológico e orienta os atores a recorrer diretamente à ação
desde o primeiro momento do processo criativo. Como o próprio Stanislávski afirma, sobre os
primeiros contatos com a obra e o papel: “sem realizar a leitura prévia da nova obra, sem
levar a cabo discussão alguma sobre ela, os artistas são diretamente convidados para o
primeiro ensaio.”188
Esse processo criativo do método de análise ativa, realizado por meio de ações físicas,
ficou conhecido como criação de etiuds. Na prática de criação de etiuds o conhecimento da
obra se dá pela ação. Nesse processo são expostos a ele acontecimentos e algumas
187
Relembramos que Stanislávski vem a falecer em 1938.
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.305.
(Tradução nossa)
188
81
circunstâncias prévias, existentes na obra ou imaginadas a partir dela, para que sejam
improvisados.
Ao mudar a sua metodologia de criação e a abordagem do papel, Stanislávski transfere
a ênfase dada ao plano mental, por meio das visualizações, para a composição de uma linha
lógica e sucessiva de ações físicas, que se torna responsável por estimular a justificação
interna e a criação pela imaginação. Conforme exemplificam Kristi e Prokófiev, a partir desse
momento, “ao ator se apresenta a pergunta: O que você faria aqui, hoje, agora mesmo, se
você se encontrasse nas circunstâncias da obra, na situação da personagem, e se lhe fosse
exigido responder, não com razoamentos, mas com ações?”189
Esse novo procedimento criativo deve acontecer psicofisicamente no ator, de modo
que o entendimento do papel pelo organismo, corpo/mente, do ator aconteça pela realização
física. A experimentação das ações fisicamente no aqui e no agora permite que o corpo realize
descobertas que impulsionam a novos questionamentos sobre o papel e a obra, e na medida
em que estes vão sendo respondidos, pelo estudo da obra, pela imaginação e associações
surgidas, o ator é levado cada vez mais ao aprofundamento do papel e de sua ligação com o
mesmo.
Ao se ater na tarefa a ser cumprida por meio das ações ordenadas, de forma lógica e
coerente, como se estas fossem o trilho de um trem, ou a pista de onde decola um avião (que
se constituem em terrenos firmes e seguros), como exemplifica Stanislávski, naturalmente a
imaginação do ator será impulsionada a realizar o seu voo. Abrangendo infinitas e, de outra
forma, impensáveis associações que resultarão em novos impulsos criativos, levando à
justificação interna das ações físicas, ou seja, conferindo o estado “vivo” ao qual se refere o
mestre russo.
Para Stanislávski, essa justificação interna deve ser organizada, pela sua visualização,
em uma linha coerente de imagens, surgidas da nossa relação com as circunstâncias dadas,
que constituem o “filme interno” do papel:
Antes de tudo, devemos ter uma série contínua de “circunstâncias dadas”
(...). Em segundo lugar, repito, devemos dispor de uma linha ininterrupta de
visões internas em relação com essas circunstâncias, de maneira que estas
estejam ilustradas por nós. (...) durante cada momento em que se desenvolve
a ação da obra, devemos permanecer atentos tanto às circunstâncias externas
189
In STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.38.
(Tradução nossa)
82
que nos rodeiam (a montagem material que constitui a produção) como à
cadeia de circunstâncias internas que nós mesmos imaginamos para ilustrar
nossos momentos. Desses momentos deverá ser formada uma linha contínua
de imagens, uma espécie de filme. E enquanto atuarmos de maneira criativa,
esse filme deverá projetar-se dentro de nós mesmos, na tela de nossa visão
interna, tornando vivas as circunstâncias em meio às quais nos movemos.
(STANISLÁVSKI)190
Em seus últimos estudos, a análise da obra vai sendo desvendada ao ator ao passo que
as ações vão se complexificando psicofisicamente diante dos “se” mágicos e das
circunstâncias dadas e também com o surgimento de novas questões quanto ao papel, suas
relações, objetivos e obstáculos. Por isso, essa análise foi chamada ativa. É uma análise feita
em ação, não com o ator sentado ao redor de uma mesa visualizando mentalmente as cenas.
Isso não significa que o ator não deva mais criar pela visualização momentos do
passado e do futuro do papel em sua imaginação. Pois, para Stanislávski, concretizar a
visualização do passado e do futuro do seu papel também contribui para torná-lo mais
palpável, mais “vivo”, considerando que na vida todas as pessoas possuem um passado – e ao
se referir a esse passado ele surge com uma consistência viva, pois realmente aconteceu e foi
de alguma forma vivenciado pela pessoa – como também, projetam realizações para o futuro.
Segundo Maria Knébel:
Na vida sempre vemos aquilo de que estamos falando; qualquer palavra
escutada por nós nos cria uma representação concreta. Na cena com
frequência traimos essa importantíssima propriedade de nossa psiqué,
tratamos de influir o espectador com palavras “vazias” atrás das quais não
existe nenhuma imagem viva proveniente da realidade em permanente
fluência. (KNÉBEL)191
Assim, como um trabalho auxiliar, a ser feito de forma paralela à criação das cenas a
partir de ações físicas, o mestre propõe que o ator imagine detalhadamente a vida pregressa da
personagem, escolhendo momentos que considera como os mais importantes, englobando
suas relações com outros personagens.
190
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.110. (Tradução nossa)
191
KNÉBEL, M. La palabra em la creación actoral. Madrid: Editorial Fundamentos, 2003, p.72. (Tradução
nossa)
83
Levando em conta as circunstâncias pelas quais sua personagem passou o ator também
deve perceber em qual o estado, gerado pelas circunstâncias passadas, ela chega ao momento
presente da cena que está sendo trabalhada.
De acordo com Stanislávski:
(...) para entrar em cena, autenticamente e não de modo teatral, você
necessita saber quem é você; o que lhe havia acontecido, em que condições
vive aqui, como passa o dia, de onde chegou, e muitas outras circunstâncias
dadas (...). Em outras palavras, tão somente para entrar corretamente em
cena é necessário um conhecimento íntimo da obra e de sua relação a
respeito da personagem. (STANISLÁVSKI)192
Esse esclarecimento pode se dar pela visualização partindo das circunstâncias dadas
ou pela criação de etiuds de cenas que não constam na obra, mas são sugeridas por ela. Dessa
forma, o ator cria experiências que enriquecem e aprofundam a sua relação com a personagem
e a obra. Segundo Knébel, “Stanislávski propunha aos atores exercitar as visualizações de
momentos separados do papel, acumular pouco a pouco essas visualizações, criar lógica e
consequentemente um „filme do papel‟.”193
Deve-se também visualizar ou atuar o provável destino da personagem após o fim da
história contada pelo autor, o que acontecerá com ela, considerando as circunstâncias dadas e
as imaginadas, desde que, de alguma forma, haja correspondência com a história.
Afinal, como nos diz Stanislávski, “por acaso o dramaturgo provê tudo o que o ator
necessita saber sobre a obra?” 194 Para ele, é a imaginação do ator que deve dar conta dessa
necessidade. Ao estimular a sua individualidade criativa pela imaginação o ator é levado,
naturalmente, a estabelecer vínculos e afinidades com o papel. Sendo tarefa do ator, por meio
da sua imaginação criadora, preencher de “vida” o material “árido” do texto do autor.
Desse modo, a imaginação do ator permanece com o objetivo de dar vida à ação
cênica, justificando e complementando a ficção do autor, criando fatos do passado e o futuro
da personagem, bem como, o que está ocorrendo nos momentos em que a personagem está
fora de cena, esclarecendo concretamente de onde ela vem e para onde vai, por que e para
que.
192
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre su papel. Buenos Aires: Editorial Quetzal, 1977, p.312.
(Tradução nossa)
193
KNÉBEL, M. La palabra em la creación actoral. Madrid: Editorial Fundamentos, 2003, p.72. (Tradução
nossa)
194
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.99. (Tradução nossa)
84
Como podemos ver, a importância dada à imaginação não diminui ao longo da
evolução das investigações de Stanislávski, pelo contrário, essa nova metodologia – a análise
ativa concretizada pelas ações físicas – só pode ser realizada com sucesso ao que se propõe se
puder contar plenamente com a imaginação e a atenção do ator na realização física.
85
CAPÍTULO 3
A DESCONSTRUÇÃO/COMPOSIÇÃO DO ATOR E DA PERSONAGEM
Stanislávski foi fazer a reparação de seu relógio em um velho relojoeiro que
perguntou o que ele faz todos os dias no teatro: 'nós analisamos, nós
analisamos' (razbiraiem, que é literalmente 'nós decompomos, nós
dividimos, nós desmontamos'), responde. E o relojoeiro replica: Ah sim! Vós
desmontais. E vocês são pagos para isso? A mim, pagam somente se eu
tenho êxito em remontar todos os elementos. (POLIAKOV)195
Por meio deste fato, Stéphane Poliakov destaca o uso do verbo razbirat por
Stanislávski. Como veremos adiante, razbirat se refere à palavra russa razbor, que é traduzida
como análise e contempla o sentido de desconstruir para remontar. Entendemos que essa
ideia se revela como a síntese da metodologia de criação das últimas pesquisas de
Stanislávski. Segundo Stanislávski:
Dividir a obra em partes nos resulta necessário não apenas para analisá-la e
estudá-la, mas também por outra razão, mais importante, oculta na própria
essência interior de cada parte. (...) Ocorre que em cada parte existe um
objetivo criador. O objetivo nasce organicamente de sua parte, ou,
reciprocamente, a engendra. (...) Precisamente os objetivos são as luzinhas
que indicam a linha do canal e evitam que algo se perca, em cada parte do
trajeto. São as principais etapas do papel, pelas quais o artista se guia durante
a criação. (STANISLÁVSKI)196
Stanislávski divide a obra em partes, desconstruindo-a, para desvelar a sua estrutura
invisível, que se encontra sob o plano textual. Para tal, ele propõe ferramentas de análise,
como o desvendamento dos acontecimentos, objetivos, obstáculos, circunstâncias dadas e
ações. Nesse processo, é revelada não só a estrutura da obra, mas a linha do papel em sua
essência. Aquilo que deve ser vivido pelo ator e elaborado em uma composição artística em
cena.
195
POLIAKOV, S. Anatoli Vassiliev: L‟art de la composition. França: Actes Sud, 2006, p.52 (Tradução nossa)
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.172. (Tradução nossa)
196
86
3.1 Desconstruindo os elementos desnecessários para o caminho criativo do ator e
abrindo possibilidades
Entendemos que “o trabalho do ator sobre si mesmo”, como são denominados por
Stanislávski o segundo e o terceiro tomos de sua obra, significa, essencialmente, a limpeza
dos condicionamentos e bloqueios adquiridos pelo ator para que a individualidade criativa,
como singularidade que provém de um ser único, possa se manifestar em sua força vital, em
sua plenitude natural. “O trabalho do ator sobre si mesmo” trata de um eterno desconstruir,
pois as convenções tendem a se fixar seguidamente no corpo impedindo a sua livre
manifestação artística. Esse trabalho, que se dá pelo contínuo exercício sobre os elementos do
“sistema”, leva à constituição de uma segunda natureza no corpo do ator, que o permite
libertar-se dos condicionamentos e manter-se pronto para agir e reagir cenicamente no aqui e
no agora.
Para trabalhar sobre o papel e a personagem é preciso trabalhar sobre si mesmo, é
preciso “despejar os inquilinos do apartamento” 197, desconstruir os bloqueios e permitir o
surgimento de um “espaço vazio”198 em si, pela abertura de possibilidades criativas que este
espaço pode proporcionar ao ator. A partir disso, o ator estará pronto para buscar o estímulo
em si mesmo e no outro, nas relações que desenvolve com os seus objetos de atenção,
internos e externos.
Essa necessidade de desconstrução dos bloqueios, de limpeza das „verdades‟ fixadas
que impedem a manifestação da individualidade de cada ator no ato criativo, é reafirmada por
Vakhtângov no que se refere à busca de Stanislávski:
O “sistema” stanislavskiano tem por objetivo desenvolver no estudante
habilidades e qualidades que lhe proporcionarão a oportunidade de liberar
sua individualidade criativa, aprisionada por opiniões estanques e padrões
estereotipados. A liberação e a descoberta da individualidade deve ser o
principal objetivo de toda escola teatral; (...) A escola deve remover todos os
escombros convencionais que impeçam a manifestação espontânea das
197
De acordo com Thomas Leabhart, “despejar os inquilinos do apartamento”, para que Deus possa vir morar
ali, eram as palavras ditas por seu mestre Etienne Decroux ao alertar seus alunos de que era preciso esvaziar o
pensamento das vozes que insistem em preenchê-lo, livrar-se das preocupações e do constrangimento, para
realizar a criação. Vide LEABHART, T. A máscara como ferramenta xamanística no treinamento teatral de
Jacques Copeau. Revista da FUNDARTE, Montenegro, v.2, n. 4, jul.-dez. 2002.
198
Utilizamos a questão do espaço vazio conforme Peter Brook: Eu posso pegar qualquer espaço vazio e
denominá-lo palco. Alguém atravessa este espaço vazio enquanto outra pessoa o observa, e isto é suficiente
para que esteja configurado o ato teatral. In BROOK, P. L‟ espace vide. Paris: Éditions du Seuil, 1977, p.1.
(Tradução Andrea Copeliovitch)
87
potencialidades profundamente ocultas do estudante. Stanislávski mostrava
ao estudante como alcançar por si mesmo um estado criativo, a estabelecer
as condições nas quais se faz possível uma criação genuína em cena.
(VAKHTÂNGOV)199
A imaginação do ator é um elemento fundamental em todo esse processo, no qual se
busca a plena manifestação da autonomia criativa do ator, que pode levar a uma “criação
genuína em cena”, como nos diz Vakhtângov. A busca pela remoção desses “escombros
convencionais” permite ao ator a abertura necessária para o desenvolvimento criativo da
imaginação em seu trabalho, impulsionando o desvendamento de suas potencialidades
criativas na ação, não só para o outro, o partner, o diretor, o espectador, mas, principalmente,
para si mesmo. É na “individualidade criativa”, desvelada pela quebra de bloqueios e
estimulada pelo desenvolvimento dos elementos do “sistema”, que reside o “estado criativo”
que permite a manifestação de qualidades artísticas na criação do ator.
Uma “criação genuína” não pode ser fixada, contém em sua essência a possibilidade
de transformação, de adaptação em cada momento. Adaptar-se no aqui e no agora às
circunstâncias dadas, através da execução das ações, está estreitamente ligado ao improviso,
ao jogo do ator e, consequentemente, à imaginação. Para adaptar-se em cena, para entrar no
jogo, consciente ou inconscientemente, o ator utiliza o “se” mágico que, por sua vez,
mobiliza as possibilidades da imaginação.
Voltamos ao termo razbor, no qual se encontra subentendida a ideia de
desconstrução/composição, por entendermos que este também pode ser atribuído na
desconstrução dos “escombros convencionais” existentes no ator para a composição em si
mesmo de uma segunda natureza. A formação de uma segunda natureza no ator é um
processo contínuo, que se dá pela desconstrução ou pela eliminação dos bloqueios
psicofísicos, visando alcançar um estado criador pleno, de disponibilidade e receptividade do
aparato físico e da imaginação.
Conforme vimos anteriormente, a passagem de Stanislávski à maturidade artística 200
ocorre, segundo ele, impulsionada por um grande descontentamento artístico que o leva a
repensar a importância do estado criador para a realização plena do trabalho do ator. “Mas
como chegar a apoderar-se da natureza, do ser e de suas partes constitutivas, dos elementos
199
In JIMENEZ, S. (org.) El Evangelio de Stanislávski según sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
profetas y Judas Iscariote. México: Gaceta, 1990, p.59. (Tradução nossa)
200
Vide página 21.
88
integrantes do estado criador?”201 Essa questão central passa a ser respondida pela retirada
dos obstáculos físicos do ator, contemplada pelo trabalho sobre o elemento liberdade
muscular, desenvolvendo concomitantemente a ativação da concentração e da imaginação.
Envolvendo corpo e mente em busca do estado criador, gerado pela composição de uma
segunda natureza livre de entraves psicofísicos.
De acordo com Stanislávski, a segunda natureza vai sendo constituída na integralidade
do ator pelo exercício contínuo dos elementos do “sistema”, que estão em conformidade com
as leis da natureza humana em ação.
Estreitamente relacionado a esse entendimento, destacamos o pensamento sobre o
“espaço vazio” em Peter Brook (1925-):
“Quando o instrumento do ator, seu corpo, é afinado pelos exercícios, desaparecem
as tensões e os hábitos desnecessários. Ele fica pronto para abrir-se às ilimitadas
possibilidades do vazio.”202
Assim, entendemos que para promover o desenvolvimento da imaginação nesse
espaço criativo possibilitado pelo vazio, antes é preciso aprimorar o corpo do ator. Peter
Brook compreende o teatro como a ação que acontece no espaço vazio. Por isso, acredita na
necessidade de identificar os elementos que bloqueiam a constituição de um espaço vazio,
dentro e fora de si mesmo. Um dos elementos bloqueadores ressaltado por Brook é o excesso
de racionalização sobre o que se faz em cena. O medo e a insegurança diante do desconhecido
são motivos que podem levar o ator a revelar um lado racional que se sobrepõe à capacidade
de se entregar de corpo e mente à improvisação, às possibilidades inesperadas que podem
aparecer. A racionalização tenta proteger o ator do medo de ser pego desprevenido.
No entanto, é quando o ator se encontra desprevenido, sem construção antecipada, que
se forma o campo no qual a imaginação é impulsionada a encontrar uma resposta criativa,
onde surge a criação espontânea e a “centelha de vida” na cena, de que fala Brook. De acordo
com ele, “(...) o verdadeiro processo de construção envolve simultaneamente uma espécie de
demolição, que implica a aceitação do medo. Toda demolição cria um espaço perigoso, no
qual há menos suportes e menos apoios.”203
201
STANISLÁVSKI, K. Mi Vida en el Arte. Habana: Editorial Arte e Literatura, 1985, p.328. (Tradução nossa)
BROOK, P. A Porta Aberta: reflexões sobre a interpretação e o teatro. 2ª ed., Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2000, p.18.
203
Ibidem, p.20.
202
89
Andrea Copeliovitch204 relaciona o estado do ator diante do espaço vazio com a
coragem necessária para saltar em um abismo, lançar-se ao desconhecido. Tendo de, para tal,
treinar e se preparar como um guerreiro que na batalha se depara com circunstâncias
inusitadas. Por isso, tendo diante e dentro de si espaços vazios nos quais deve jogar (ou se
jogar), é grande a tentação do ator em assegurar-se na repetição do que já sabe ou realizou
anteriormente.
Stanislávski exigia do ator que não fixasse o como fazer, para não matar a ação.
Pretendia, com isso, que o ator se mantivesse aberto às possibilidades de transformação e
descoberta que surgem a cada momento na imaginação e na cena, impulsionando-o a se
adaptar a essas novas circunstâncias. É preciso que o como - que a adaptação - seja
redescoberto cada vez em que a ação é realizada. A ação deve ser vivenciada pelo ator no
exato momento em que acontece. Sob essa visão, quando o ator estiver certo de que
finalmente encontrou a forma de fazer, talvez a tenha perdido e caído na representação
interpretativa.
O teatro é arte do instante e como tal necessita de uma força vital canalizada para
aquele determinado momento. Como obra de arte que precisa ser refeita a cada contato com o
público. A ideia de obra em processo parece mais adequada do que uma obra pronta,
atendendo melhor à liberdade que é intrínseca à arte teatral. A liberdade do ator pode ser
encontrada no “espaço vazio” que surge pela desconstrução, pelo desbloqueio de corpo e
mente. Ao desmontar corpo e mente das formas adquiridas e fixadas, abrem-se “espaços
vazios”, abrem-se possibilidades de imaginação e ação. O ator adquire liberdade para agir e
reagir ao jogo, realizando suas próprias escolhas, conscientes ou intuitivas, sobre como
adaptar suas ações em meio a essas possibilidades, em meio a esses “espaços vazios”.
Para Stanislávski a adaptação não se fixa jamais, é fluxo contínuo de vida na presente
capacidade que o ator deve ter de improvisar colocando-se de corpo e mente no dado
momento da ação.
Entendendo a arte teatral como arte do instante, a adaptação, impulsionada pelo fluxo
das imagens formadas no corpo/mente do ator, funciona como uma constante improvisação na
realização da ação, de acordo com as circunstâncias internas e externas que se apresentam “no
204
Vide COPELIOVITCH, A. O ator guerreiro frente ao abismo. Natal: Edufrn, 2009.
90
aqui e no agora”. Essa liberdade criativa, imaginativa, deve permanecer, mesmo depois do
espetáculo 'pronto'.
Nesse sentido, vemos a desconstrução como a abertura de possibilidades para a
imaginação agir, percorrendo caminhos inesperados que enriqueçam a criação artística, na
composição do ator em cada momento.
3.2 Desconstruindo o ator e o papel para criar a personagem
O título da obra de Stanislávski "O trabalho do ator sobre si mesmo. O trabalho sobre
si mesmo no processo criador da encarnação" seria a tradução mais próxima do original russo
Rabota aktiora nad soboi. Rabota nad soboi tvórtcheskom protsésse voplochtchênia 205 que, a
partir da sua tradução para o inglês (Building a character206), constituiu a obra que é
conhecida em português como "A construção da personagem" 207.
Como percebemos, na obra original, Stanislávski não utilizou o título “construção da
personagem”, mas “o trabalho do ator sobre si mesmo no processo criador da encarnação”. A
palavra personagem carrega em sua origem persona, máscara social. A máscara social não é a
pessoa, mas um elemento externo usado por ela em sua relação com o mundo cotidiano 208.
Trata-se de um artifício.
A personagem também possui suas máscaras sociais. Por isso, Stanislávski aponta a
importância de desconstruir/analisar a obra e o papel, para entendê-lo profundamente, para
além de suas próprias máscaras. Do contrário, pode-se cair em uma leitura superficial e na
simples representação dessas máscaras.
205
Em 1946 foi publicada uma parte de "O trabalho do ator sobre si mesmo. O trabalho sobre si mesmo no
processo criador da encarnação". Em 1948 foi preparada outra edição, composta de escritos de Stanislávski, em
forma de rascunho e fragmentos, com o objetivo principal de facilitar a compreensão das ideias de Stanislávski.
Somente de 1954 a 1961, quando foram reunidas e publicadas na Rússia a coleção com as obras completas de
Stanislávski, em 8 volumes, foi feita a revisão, a correção e a ampliação das publicações anteriores com base nos
manuscritos do pesquisador que se encontram no museu do TAM. Desta vez, respeitando integralmente o texto
de Stanislávski. A edição que aqui é utillizada, por meio de sua publicação traduzida para o espanhol, faz parte
dessa coleção. A edição russa é de 1955 e a sua tradução para o espanhol é de 1983.
206
"Building a character” foi publicado pela primeira vez nos EUA em 1949, com tradução de Elizabeth
Reynolds Hapgood, em uma edição que apresentou inúmeros cortes em relação ao original e não contou com as
correções, os apêndices e os esclarecedores apontamentos deixados por Stanislávski e publicados na edição russa
das obras completas. Apenas recentemente, em 2009, o “Trabalho do ator sobre si mesmo” foi publicado em
inglês seguindo os originais russos. O tradutor Jean Benedetti reuniu em um mesmo volume “O trabalho sobre si
mesmo no processo criador das vivências” e “O trabalho sobre si mesmo no processo criador da encarnação”
com o título de “An actor's work. A student's diary”.
207
A obra “A construção da personagem” foi publicada no Brasil em 1970, com tradução de Pontes de Paula
Lima, a partir da obra traduzida por Elizabeth Hapgood.
208
COPELIOVITCH, A. O ator guerreiro frente ao abismo. Natal: Edufrn, 2009, pp.183-185.
91
O emprego de “construção da personagem” na tradução do título da obra de
Stanislávski pode reforçar esse ponto de vista sobre a personagem, o que causa falta de
clareza quanto aos propósitos stanislavskianos.
Em direção à desconstrução/demolição das defesas e elementos desnecessários para a
criação do ator e para a revelação da sua organicidade, Brook se opõe à ideia de construção da
personagem, preferindo apoiar-se na sua preparação. Assim sendo, para Brook, “preparar
uma personagem é o oposto de construir - é demolir, remover tijolo por tijolo os entraves dos
músculos, ideias e inibições do ator que se interpõem entre ele e o papel, até que um dia,
numa lufada de vento, a personagem penetra por todos os seus poros.” 209
Essa afirmação de Brook vem ao encontro do entendimento stanislavskiano, tanto no
sentido da preparação, em que o desentrave dos bloqueios psicofísicos do ator é parte
fundamental do processo de composição de uma segunda natureza, de um estado criador,
quanto no que se refere à absorção da personagem pelo ator como “numa lufada de vento”.
Ou seja, essa absorção acontece como consequência do trabalho do ator, não se trata de um
processo sobre o qual é possível exercer pleno controle. Remetendo, desta forma, à
transformação do ator-personagem em personagem-ator, que, para Stanislávski, pode
acontecer pela realização consciente das ações psicofísicas. Conforme Nair D‟Agostini, a
personagem é consequência de um “salto qualitativo” na partitura de ações do ator, que
ocorre por uma transformação inconsciente, passando do “ator-personagem para a
personagem-ator”210.
Entendida por meio desse processo, a personagem depende da percepção do ator de si
mesmo e do outro; e do seu nível de envolvimento na realização das ações físicas “no aqui e
no agora”, de acordo com as circunstâncias dadas pelo autor, com as indicações do diretor e,
principalmente, com as suas referências e individualidade artística.
Mesmo trabalhando sobre elementos concretos e conscientes, entendemos que
Stanislávski não pretendeu com isso fixar, ou "construir" uma personagem, pelo menos não
no sentido de construí-la “tijolo a tijolo” para estabelecê-la, formando-a e estagnando-a como
se fosse uma parede. Para Stanislávski, a personagem é a realização do processo de encarnar,
o tornar carne, isto é, a busca do ator pela vivência em cada momento da atuação.
209
BROOK, P. O Ponto de Mudança, Quarenta anos de experiências teatrais: 1946-1987. 2ª ed., Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1995, p.25.
210
DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da
criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São
Paulo, 2007, p.232.
92
Stanislávski diferencia personagem e papel. Para ele o papel é algo morto, está contido
nas informações dadas pelo material textual e representa apenas uma parte da história da
personagem. A complexidade do todo deve ser criada por cada ator. A respeito disso,
Stanislávski afirma: “Hamlet não existe, somente „eu‟ existo nas circunstâncias dadas de
Hamlet. Se você parar de pensar „como eu faria isso?‟, e começar a pensar em como Hamlet
o faria, isso já seria estranho: não é seu. Isso não será arte, será ofício.”211
Assim, para que haja criação artística e não mera repetição do ofício, o mestre russo
enfatiza a necessidade de o ator colocar-se como indivíduo criador. Nesse sentido, para
Stanislávski, o ator deve criar toda a vida da personagem, que é chamada por ele de “romance
da vida” da personagem. Como vimos anteriormente, a criação do “romance da vida” da
personagem tem por objetivo trazer referências concretas para a realização cênica, tratando a
personagem como se ela fosse um ser existente, com passado, presente e futuro imaginados.
Essas referências podem ser concretizadas através de improvisações de etiuds
tangenciais ao texto
212
, ou seja, de acontecimentos que não constam no material textual, mas
são sugeridos por ele e ajudam a completar o entendimento da obra e do papel pelo ator,
auxiliando na concretização de imagens e ideias de modo mais profundo. Essas improvisações
têm como objetivo levar o ator a constituir em sua memória psicofísica referências da
existência da personagem, por meio da experiência com a ação física. Exemplificamos com as
indicações dadas por Stanislávski aos atores:
Não peço que sinta de imediato ao personagem, mas que encontre o seu
principal objetivo e a corrente central, que entenda as circunstâncias
supostas. Sei que tudo isto é muito difícil e inclusive, no início, impossível.
Por isso, proponho algo de mais fácil, simples e acessível: as ações físicas.
(STANISLÁVSKI)213
Em suma, tendo em vista que para chegar à personagem o ator deve trabalhar sobre as
ações físicas - lógicas e coerentes, dentro das circunstâncias dadas, levantamos a questão de
que a denominação “Construção da personagem” pode não somente reduzir a compreensão a
211
STANISLÁVSKI, K. Apud DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para
a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São
Paulo, FFLCH, São Paulo, 2007, pp.113-114.
212
Termo utilizado por Nair D‟Agostini.
213
In JIMENEZ, S. (org.) El Evangelio de Stanislávski según sus apostoles, los apócrifos, la reforma, los falsos
profetas y Judas Iscariote. México: Gaceta, 1990, p.245. Esta citação provém de um rascunho escrito por
Stanislávski e se encontra em nota de rodapé. (Tradução nossa)
93
respeito do entendimento de Stanislávski sobre a personagem, mas também causar
incompreensões.
Observamos nesse pensamento a possibilidade da abordagem de uma ideia de
“desconstrução da personagem”, como modo de compreensão mais justo do que “construção
da personagem” para o processo criativo defendido por Stanislávski.
A necessidade constante do ator em limpar de si os “escombros convencionais” e os
vícios adquiridos pela repetição mecânica com que realiza suas tarefas cotidianas na vida
pode ser entendida como um contínuo processo de desconstrução. Essa “limpeza” é também
chamada por Stanislávski de “toalete do ator”, que, segundo ele, é uma necessidade diária do
ator: “Hoje eu atuei o papel, peguei a esponja e limpei tudo; amanhã devo buscar tudo de
novo, já novamente pelo o que acontece no dia de hoje.”214
Tendências da arte do ator observadas por Stanislávski e a arte da vivência
Com o intuito de objetivarmos a nossa reflexão foi escolhido como base de estudo o
texto “Acerca das distintas tendências na arte teatral." 215 Neste, Stanislávski discorre sobre
três diferentes inclinações no pensar e fazer teatral observadas por ele em sua época:
artesanía216 ou arte de ofício, arte da representação e arte das vivências 217. Sendo que, sobre
essa última, a arte das vivências, ele dedicou a busca teatral de toda a sua vida.
Stanislávski refletiu sobre este tema ao longo de muitos anos, trabalhando de modo
mais intenso sobre ele entre os anos de 1909 e 1922 218. O seu intuito era desenvolver e
publicar este texto como quinto tomo de suas obras. Utilizamos aqui uma publicação,
traduzida do russo para o espanhol, que foi realizada quando Stanislávski ainda era vivo, em
1938, de acordo com as suas últimas revisões.
214
STANISLÁVSKI, K. Apud DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para
a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São
Paulo, FFLCH, São Paulo, 2007, p.111.
215
STANISLÁVSKI, K. Trabajos Teatrales: Correspondencia. Buenos Aires: Quetzal, 1986, pp.174-232.
(Tradução nossa)
216
Optamos por manter o termo artesanía em espanhol por acreditarmos que esta tradução reflete de modo mais
justo a intenção do mestre.
217
A artesanía é tratada como a reprodução pelo ator de convenções, de modelos pré-fixados de atuação; A “arte
da representação” se diferencia do conceito anterior por nascer de vivências internas do ator que são
reproduzidas na cena, de modo hábil, pórem, em sua externalidade; A “arte das vivências” se refere à busca do
ator pela criação da “vida do espírito humano”, com qualidade artística, em cena.
218
Vide nota do tradutor: in STANISLÁVSKI, K. Trabajos Teatrales: Correspondencia. Buenos Aires: Quetzal,
1986, p.174.
94
Percebemos na artesanía e na arte da representação, como expostas pelo mestre russo,
uma possibilidade de relação com a perspectiva de “construção da personagem”.
Stanislávski chama de artesanía o trabalho do ator que não tem a intenção de buscar o
novo, de ter a sua própria experiência criativa diante das circunstâncias do momento, tratando
de reproduzir formas sem vida, desgastadas e convencionais. Para o autor, "os atores do tipo
artesanal, esquecendo a vivência, tratam de elaborar de uma vez e para sempre formas préestabelecidas de expressão dos sentimentos e de interpretação cênica para todos os papéis e
orientações na arte."219
Nessa forma de trabalho, o ator repete modelos a priori, apenas retratando a carcaça
do que, um dia, foi originado a partir de uma experiência vivida por outros atores. Esses
modelos estereotipados podem ser mais claramente visualizados por meio do seguinte
exemplo de Stanislávski: “A agitação se expressa pelo caminhar rápido para frente e para
trás (...) a alegria batendo palmas, dando saltos (...) o mistério levando o dedo indicador aos
lábios e com um andar solene e sigiloso (...).”220
Assim, na artesanía o ator reproduz modelos que não partiram de sua vivência e nem
da sua imaginação criadora, mas de uma tradição teatral estabelecida, que, por exemplo, usa
uma forma de declamação do texto para demonstrar sentimentos cristalizados num
comportamento, de acordo com o tipo, classe social e época de cada personagem a ser
interpretado; ou construído. Para Stanislávski, "a desgraça de todo clichê reside em sua
repetição habitual mecânica que o faz morrer, eliminando todo o hálito de vida." 221 Ainda
segundo o autor, por se utilizar de formas fixas realizadas mecanicamente, o modo artesanal
no trabalho do ator não alcança a arte. O que não impede que possa se tornar artístico, se o
intuito da transformação viva, se o jogo e a imaginação, voltarem à sua composição.
A arte da representação se opõe a artesanía principalmente por se servir, durante o
processo de criação, da vivência interna, da formação de imagens criativas, e não de formas
fixas. Contudo, nesse tipo de criação, a vivência é abandonada após a criação e apenas o seu
resultado externo é memorizado, para ser expressado e fixado fisicamente em cena. O que
vemos em cena, portanto, é uma cópia de si mesmo, uma expressão externa, de modo
convincente e habilidoso, do que foi vivenciado no momento da criação. Stanislávski alerta
219
STANISLÁVSKI, K. Trabajos Teatrales: Correspondencia. Buenos Aires: Quetzal, 1986, p.175. (Tradução
nossa)
220
Ibidem, p.183.
221
Ibidem, p.185.
95
que “isso cria o clichê vulgar. Copiar não é arte”.222 Esse processo, segundo ele, acontece
como se o ator fosse um escultor do seu sonho, ou seja, transformando a imagem interna em
uma forma externa:
O artista esculpe em si mesmo a melhor forma que encarne belamente aquela
imagem interna e aquela emoção do papel que antes vivenciara. A imagem
externa do papel, a maquiagem, seu figurino, os costumes típicos, os modos,
as posturas, a voz, também são criadas inicialmente na imaginação do artista
e depois são transportadas por ele a si mesmo como um modelo é
transportado pelo pintor à tela. (STANISLÁVSKI)223
Desse modo, na arte da representação, apesar de haver uma criação inicial pelo
estímulo da imaginação, as imagens internas criadas pelo ator não o acompanham na
realização cênica, pois, a atenção do mesmo está voltada para a manutenção da beleza da
forma estabelecida e não para o desenvolvimento contínuo da imaginação como alimento da
“vida” na ação e do jogo do ator.
De acordo com Stanislávski, a arte da representação exige um grande domínio técnico,
"para poder, sem vivenciar, representar a vivência."224
Apesar das diferenças apontadas, vemos a possibilidade de relacionar a artesanía e a
arte da representação, como tratados por Stanislávski, com a difundida noção de “construção
da personagem”.
Se o ator pretende construir uma personagem, podemos supor que ele pretende
estabelecê-la em uma forma e, para isso, ou sabe desde o início aonde quer chegar, como no
caso da artesanía, ou descobre um formato final no processo de criação, como na arte da
representação. A partir disso, em um processo de construção, é possível que surjam
pensamentos tais como: minha personagem é de tal forma, vou expressar isso no seu gestual,
modo de falar, de andar, ela deve se comportar dessa ou de outra maneira.
Em qualquer dessas tendências, artesanía ou arte da representação, o ator parte de
alguma ideia pré-concebida, uma convenção, suposição ou projeção mental antes de um
trabalho de criação em si mesmo, apesar de, no caso da arte da representação, o ator moldar o
externo a partir de uma imagem “viva”. E assim, pelo conforto do não risco e do conhecido, o
222
STANISLÁVSKI, K. apud DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para
a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São
Paulo, FFLCH, São Paulo, 2007, p.106.
223
STANISLÁVSKI, K. Trabajos Teatrales: Correspondencia. Buenos Aires: Quetzal, 1986, p.203.
224
Ibidem, p.206.
96
ator se cerca daquilo que já sabe e trabalha na "construção da personagem" como imagina,
pensa ou quer que ela seja. Portanto, entendemos que nesse processo, o trabalho da
imaginação termina quando o ator pensa ter construído a sua personagem.
Os chamados estereótipos ou modelos fixados a priori que constituem a artesanía, no
ponto de vista levantado por Stanislávski, e a repetição externa a que se refere à arte da
representação, estão relacionados aqui aos “escombros convencionais” de que fala
Vakhtângov.
A arte da vivência
Antes de iniciarmos a reflexão sobre a arte da vivência, desenvolvemos um breve
apontamento a respeito da terminologia perejivánie que, com base na tradução do russo para o
espanhol, utilizamos como vivência. Todavia, ao traduzir perejivánie, as pesquisadoras Arlete
Cavaliere e Elena Vássina 225, como observamos anteriormente, utilizam o termo
“revivescência”, já o pesquisador Martin Kurten226 utiliza “experiência”.
Cavaliere e Vássina definem, dessa forma, o seu pensamento sobre a “revivescência”
stanislavskiana:
O conceito de „perejivánie‟, contraposto ao de „predstavlenie‟
(representação) levaria à experiência interior do ator, colocada a serviço do
intérprete para a composição da personagem, para que, fundindo-se com ela,
pudesse expressar um “trecho de vida autêntica”. Como conseguir que o ator
pudesse criar a personagem e “revivê-la” de forma intensa a cada
representação? Tratava-se de alcançar com técnicas conscientes o
inconsciente da criação. (CAVALIERE; VÁSSINA)227
Kurten destaca que para compreendermos o conceito de perejivánie é preciso
considerar as pesquisas realizadas por Stanislávski no âmbito da psicologia, a partir das quais
225
CAVALIERE, A. & VÁSSINA, E. A herança de Stanislávski no teatro norte-americano: caminhos e
descaminhos.. In Crop. Theater Studies. Guest Editro Maria Silvia Betti. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP.
Crop. Número 7, p. 1-394, 2001, p.317.
226
KURTEN, M. La terminologia de Stanislavski. In REVISTA MÁSCARA. Stanislávski, Ese Desconocido.
Ano 3, nº 15. México, D.F.: 1993, p.35.
227
CAVALIERE, A. & VÁSSINA, E. A herança de Stanislávski no teatro norte-americano: caminhos e
descaminhos.. In Crop. Theater Studies. Guest Editro Maria Silvia Betti. São Paulo: Humanitas/ FFLCH/USP.
Crop. Número 7, p. 1-394, 2001, p.317.
97
“estabeleceu que somente um décimo de nossa vida se passa no nível da consciência”228. O
“sistema” deve ser entendido como um trabalho que acontece sobre este décimo, ao qual
temos acesso consciente, onde é possível exercer controle. Dessa perspectiva, o “sistema”
pode se afirmar como um trabalho consciente através do qual é impulsionada a manifestação
do inconsciente. O inconsciente, segundo o entendimento de Stanislávski, corresponde a toda
a parte de nossa vida que não conseguimos acessar diretamente, porque não obedece a nossa
vontade.
Sobre o termo perejivánie, Kurten afirma que:
Entendo experiência no sentido dos meios conscientes pelos quais nos
comunicamos com a realidade, no que nos concerne. Experimentamos
através das funções específicas de nossos cinco sentidos que nos permitem
perceber o nosso entorno. Estabelecemos mentalmente juízo sobre as nossas
percepções e por isso nos tornamos conscientes. O que podemos fazer à
vontade quando queremos. É o que podemos chamar a parte consciente da
experiência. (...) A experiência é uma parte importante de nosso trabalho na
tentativa de alcançar o inconsciente. É por isso que é importante traduzir a
palavra vivência por experiência, para compreender o que isto significa.
(KURTEN)229
A partir dessa exposição, entendemos que essas diferentes compreensões sobre o
termo perejivánie não estarão em oposição se mantivermos de forma clara sua essência que
trata de uma vivência consciente. Com base na experiência do ator no aqui e no agora da
realização da ação, que a cada repetição, pela consciência do que está fazendo, deve buscar
revivescer a personagem, renovando o seu impulso consciente para a “vida”.
Assim, na arte da vivência percebemos uma intrínseca ligação com a ideia de
desconstrução que apontamos.
A arte da vivência se refere à busca pela organicidade do ator em cena, que
Stanislávski sintetiza: "o objetivo da arte da vivência é a criação sobre a cena da vida plena
do espírito humano e o reflexo dessa vida através da forma cênica artística.”230
Para compreender o processo necessário para alcançar uma atuação orgânica, o
pesquisador russo observou os grandes atores - que trabalhavam intuitivamente sem lançar
mão de uma metodologia organizada para desenvolver a sua arte - no intuito de desvendar o
228
KURTEN, M. La terminologia de Stanislavski. In REVISTA MÁSCARA. Stanislávski, Ese Desconocido.
Ano 3, nº 15. México, D.F.: 1993, p.35.
229
Ibidem, p.35.
230
STANISLÁVSKI, K. Trabajos Teatrales: Correspondencia. Buenos Aires: Quetzal, 1986, p.208. (Tradução
nossa)
98
mistério do estado criador, que estava vinculado à própria natureza do artista. Segundo
Stanislávski:
As raízes da arte da vivência devem ser buscadas na criação daqueles
grandes artistas que foram agraciados pela natureza com a capacidade de
vivenciar verdadeiramente o papel com base nos princípios da natureza
criativa. Sem pretender chegar àquelas atuações geniais que só são capazes
de conseguir os grandes talentos, os seguidores da arte da vivência tratam de
estudar aquelas bases criativas e aquele caminho criador que os grandes
gênios souberam adivinhar, levados por seus dotes naturais.
(STANISLÁVSKI)231
A arte da vivência compreende outro nível de envolvimento do ator na criação artística
se comparada à artesanía, ou seja, ao ofício, e à arte da representação, como destaca
Stanislávski:
Em uma palavra, para cada criação cênica, para cada personagem existe uma
vida própria, uma história, uma natureza com seus, por assim dizer,
elementos orgânicos da alma e do corpo. A criação cênica é uma criação
orgânica viva, criada a imagem e semelhança do homem e não um clichê
teatral morto e desgastado. A criação cênica deverá ser convincente; deverá
forjar a fé em sua existência. Ela deverá ser, existir na natureza, viver em nós
e conosco e não apenas parecer, recordar ou representar algo inexistente.
(STANISLÁVSKI)232
Essa “criação orgânica viva” deveria envolver de tal forma o psicofísico do ator que
daria existência plena à personagem. A esse respeito, citamos o seguinte relato de Maria
Knébel ao visitar Olga Knípper-Tchekhova233 quando ela se encontrava gravemente doente:
“Logo que entrei no cômodo ela me disse: „Sabe de uma coisa? Proibiram-me de ler, então
não faço mais do que ficar deitada e pensar em Masha.”234 Masha foi a personagem
interpretada por Olga em “As três irmãs”, de Anton Tchekhov. Knébel conta que a atriz falava
como se Masha fosse uma pessoa muito próxima, de modo que:
Contava como era o seu mundo interno com uma surpreendente
profundidade e precisão. Vivia mentalmente cenas completas e
ocasionalmente pronunciava respostas isoladas. Saí dali impressionada pela
231
STANISLÁVSKI, K. Trabajos Teatrales: Correspondencia. Buenos Aires: Quetzal, 1986, p.215.
Ibidem, p.210.
233
Olga Knípper-Tchekhova (1868-1959) foi esposa de Anton Tchekhov e atriz do TAM desde a sua fundação.
234
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, pp.162-163. (Tradução nossa)
232
99
memória criativa de tão grande artista, impressionada porque Olga
Leonárdovna havia conservado uma união viva com o personagem criado
por ela. (KNÉBEL)235
Pelo profundo envolvimento do ator com a personagem que é proporcionado pelo
estudo da arte da vivência, o processo de criação, para Stanislávski, deveria ser análogo ao de
uma gravidez. Segundo Knébel, “da mesma forma que a mãe traz um filho ao mundo, o ator
traz um personagem ao mundo. Ao longo de todo o processo de trabalho não se separa
mentalmente dele. (...) Busca respostas às múltiplas perguntas apresentadas pelo
dramaturgo.”236
Destacamos que esse processo, em que o ator se aproxima de tal modo da sua
personagem, só pode acontecer completamente pelo estímulo ininterrupto da imaginação, que
se dá por meio da liberdade contínua em investigar e experimentar novas possibilidades para a
personagem, pelo jogo, pela adaptação em cena, ao contrário do que acontecia nas tendências
anteriores da arte teatral, de artesanía e arte da representação, que eram formados de
construção e estagnação.
Em vista disso, relembramos que a personagem, de acordo com Stanislávski, resulta
da execução das ações psicofísicas a partir do trabalho do ator sobre si mesmo. Dependendo
da capacidade de envolvimento e adaptação do ator à sua ação a cada momento, agindo
conforme as circunstâncias textuais e a tudo que o cerca.
A partir das informações do texto, das indicações do diretor, o ator cria as suas
próprias associações imagéticas e corporais. Por esse motivo, a imaginação em um processo
contínuo desempenha um importante papel no processo criativo do ator, ela impulsiona ao
mesmo tempo em que é impulsionada pela execução da partitura de ações físicas que constitui
a dramaturgia do ator. Conforme já foi referido, em Stanislávski, o papel corresponde a uma
parte, que ganha totalidade através da personagem criada pelo ator, que se torna co-autor e
autor da sua criação, responsável pela formação e projeção de imagens “vivas” em seu
corpo/mente.
Por isso, a abordagem da personagem parece se ajustar melhor se entendida como um
processo de desconstrução. Nessa perspectiva, o ator precisa se desconstruir, a cada ensaio, a
cada apresentação, para compor algo orgânico; necessita retirar o supérfluo e os vícios que
adquire em sua atividade teatral, despir-se dos “escombros convencionais”, para alcançar a
235
236
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, pp.162-163. (Tradução nossa)
Ibidem, p.162.
100
sua individualidade artística, que só pode ser plenamente manifestada se a imaginação
trabalhar a seu favor, livre de bloqueios, em sua totalidade psicofísica. Para Stanislávski, ao
agir e reagir adaptando-se ao momento do jogo cênico, em uma capacidade de imaginação e
improvisação constante, o ator passa a “crer” na existência da sua personagem, ou a sua
encarnação, transformando o papel em sua carne.
3.3 A prática do etiud
A prática do etiud para Stanislávski consiste em uma prática cênica relacionada com a
pedagogia do ator e a criação artístico-teatral.
A palavra russa etiud (этюд) deriva do francês étude e significa tanto estudo, análise,
como esboço e composição. Todos esses significados podem ser aplicados ao propósito de
utilização do etiud na prática artística. Encontramos o emprego do etiud na música, nas artes
visuais, na literatura, na dança e na arte teatral. O etiud pode ser praticado como metodologia
de aprendizagem e exercício de aperfeiçoamento das habilidades técnicas do artista. E
também pode ser aplicado no próprio processo artístico, na realização de esboços e criações
que vão sendo organizadas na composição da obra musical, literária, plástica, teatral.
O objetivo da utilização do etiud teatralmente não difere de seu uso em outras artes, já
que pode ser apenas um exercício ou parte do processo investigativo na criação do espetáculo
teatral.
A prática do etiud consiste na pesquisa laboratorial que reflete a pedagogia teatral
desenvolvida para a transmissão do “sistema” de Stanislávski.
Segundo Nair D‟Agostini237, a prática do etiud foi amplamente trabalhada no Estúdio
de Ópera Dramática, nos últimos anos de vida do mestre russo. No Estúdio de Ópera
Dramática, Stanislávski estava totalmente voltado para a experimentação de meios para
colocar em prática a sua nova metodologia, o método das ações físicas. É importante observar
que ele não estava preocupado com uma possível mise-en-scéne, mas com o desenvolvimento
da individualidade criativa do ator e com o fortalecimento de sua linha de ação (interna e
externa), para que ela se tornasse firme e ininterrupta, pela lógica e coerência. E, assim,
237
DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da
criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São
Paulo, 2007, pp. 98-99.
101
“todos os elementos do sistema, considerados inseparáveis um do outro, também passaram a
fazer parte do processo unitário de criação (...)”238.
Nesse sentido, destacamos que a prática do etiud deve contemplar o processo de
desenvolvimento de um acontecimento, isto é, deve apresentar o progresso de uma linha de
ação desde o seu início até o final. Podendo consistir em um exercício de ação com objetos
imaginários e na improvisação sobre uma cena, inventada ou provinda de material textual.
Segundo Stanislávski, a prática da ação com objetos imaginários proporciona aos
atores uma ampla compreensão do método das ações físicas, já que se configura na
concretização cênica da sua nova perspectiva de trabalho, na qual o ator deve partir do “agir
para crer”.
Segundo o pesquisador russo, a técnica psicofísica da execução de ações com objetos
imaginários “deveria ser a tarefa diária e constante para o ator como é o trabalho vocal para
o cantor ou os exercícios de barra para a bailarina.”239 Stanislávski insistia na necessidade
do ator exercitar-se na ação com objetos imaginários por alguns minutos diariamente,
imaginando diversas circunstâncias e colocando-se nelas de forma consciente.
De acordo com Stanislávski, a importância da prática da ação com objetos imaginários
reside, essencialmente, na exigência do exercício em “tomar consciência do que na vida real
se faz mecanicamente”240. Ao acionar a concentração e a imaginação do ator, em sua
integralidade psicofísica, aos detalhes do que está sendo executado, o ator pode elaborar,
conjuntamente, precisão e organicidade nas ações executadas. Conforme aponta Nair
D‟Agostini:
A ação sem objetos obriga o ator a penetrar de forma atenta e profunda na
natureza das ações físicas, estudá-las e dominá-las a tal ponto, que se tornam
próprias, orgânicas. (...). Após um período prolongado de repetição das
ações sem objeto, em que o ator se torna capaz de identificar e realizar todos
os seus diversos momentos, a natureza corporal do ator passará a agir por si
238
DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da
criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São
Paulo, 2007, p.98.
239
STANISLÁVSKI, K. in JIMENEZ, S. (org.) El Evangelio de Stanislávski según sus apostoles, los apócrifos,
la reforma, los falsos profetas y Judas Iscariote. México: Gaceta, 1990, p. 262. (Tradução nossa)
240
STANISLÁVSKI, K. El trabajo del actor sobre si mismo en el proceso criador de las vivencias. Buenos
Aires: Quetzal, 1980, p.366. (Tradução nossa)
102
mesma, como respondendo a uma necessidade natural e orgânica,
constituindo-se numa segunda natureza. (DAGOSTINI)241
O estímulo para essa prática provém da imaginação e da memória psicofísica do ator,
da memória de seus músculos. A prática atenta da ação com objetos imaginários, como
salienta D‟Agostini, envolve os elementos do “sistema” na totalidade psicofísica do ator,
possibilitando a formação de uma segunda natureza, de um corpo/mente em estado criativo. E
também, por meio dessa técnica, é possível gerar novas e surpreendentes imagens e resgatar
memórias vividas em diferentes experiências. Para D‟Agostini 242, a exigência da observação e
da concentração leva o ator a tomar consciência de que toda e qualquer atividade artística
exige o comprometimento da totalidade do ser no momento da realização da ação. Essa
consciência o leva ao aperfeiçoamento como produtor artístico e ao crescimento como ser
humano. Pois a imaginação amplia o horizonte vivencial do sujeito.
Dessa forma, a ação com objetos imaginários consiste em um dos principais meios
para desenvolver em si a atenção na lógica e na coerência das ações, bem como, entrelaçada a
isso, a linha contínua interna e externa da ação.
No período final de suas pesquisas, Stanislávski também passa a utilizar mais
intensamente em sua metodologia a criação de etiud sem uma obra escrita a priori. O mestre
russo experimenta a possibilidade de uma criação realizada em conjunto, entre ator, diretor e
autor. Para isso, em um primeiro momento dos ensaios, coloca a criação da palavra e das
ações, por meio da improvisação, nas mãos dos atores. A ideia era de que a investigação da
ação, por meio da criação de etiud, partisse do ator dentro de acontecimentos propostos. Por
exemplo, a partir do relato, sem muitos detalhes, de um acontecimento, os atores deveriam
buscar concretizá-lo em cena, por meio de ações físicas improvisadas. Aos poucos, em cada
repetição do etiud, eram propostas novas circunstâncias que permitiam o aprofundamente e o
desenvolvimento mais pleno da criação. O próprio Stanislávski expõe esse processo no artigo
intitulado “O método das ações físicas” 243, do seguinte modo:
241
DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da
criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São
Paulo, 2007, p.78.
242
Comentário de orientação.
243
Este artigo provém de um manuscrito de Stanislávski que data originalmente de 1936, mas foi escrito à
máquina em 1937, contendo mais correções à mão feitas pelo autor. Ao que parece, sua intenção era incluir esse
material na primeira parte de “O trabalho do ator sobre si mesmo”. Segundo nota dos editores, este documento se
encontrava no arquivo do TAM e foram investigadores teatrais poloneses que o resgataram. Eugênio Barba teve
103
É possível atuar uma obra não escrita. (...) Não acreditam em mim? Faremos
uma prova. Tenho uma ideia da obra. Contarei fragmentos de sua história e
vocês a atuarão. Ficarei atento ao que vocês, pelo improviso, façam e digam,
e o anotarei. Dessa maneira mediante um esforço comum escreveremos e de
imediato atuaremos uma obra, todavia não escrita. Repartiremos a função de
autor em partes iguais. (STANISLÁVSKI)244
A ideia dessa prática, levada a cabo no Estúdio de Ópera Dramática, já havia sido
apontada pelo mestre russo por volta de 1911, quando preparava o “sistema” para ser
experimentado pelos atores do TAM.
Nesse período, contando com a colaboração de
Máximo Gorki (1868-1936), Stanislávski havia levantado a possibilidade de criação do texto
e das ações partindo dos atores, com base em roteiros e argumentos. O texto definitivo seria
escrito por Gorki, apoiado na criação realizada pelos atores e pelo diretor. Em 1912, a criação
de etiuds já era utilizada no Primeiro Estúdio do TAM, como meio de experimentação,
aprofundamento e transmissão, pela prática, dos elementos do “sistema”.
No que se refere à aplicação do etiud partindo de uma obra literária ou dramatúrgica,
explicitamos esse processo por meio do seguinte relato de Stanislávski-Torstóv na
improvisação de uma cena de “O Inspetor Geral”, de Nicolai Gógol:
“Com qual finalidade realizo eu todas estas ações?”... Analisando e somando
tudo o que foi feito, chego à conclusão de que o meu objetivo e ação
principal foi: “comer, saciar a fome”. Para isso vim, por isso adulava e
cativava o servente e logo brigava com ele. No futuro dedicarei todas as
minhas ações nestas cenas a esse objetivo primordial: “comer”.
(STANISLÁVSKI)245
Nesta cena, Klestakov, faminto, volta para o quarto do hotel sem ter conseguido
arranjar comida, nem dinheiro e encontra Ossip, seu amigo e ajudante, descansando em sua
cama. Ao analisar as ações realizadas pelo aluno/ator, o mestre demonstra a importância de
possuir um objetivo principal que estimule e justifique as ações.
acesso à única tradução, que foi feita para o polonês, e a entregou para que fosse traduzida ao espanhol e fizesse
parte do projeto El Evangelio de Stanislávski, que foi organizado por Sérgio Jimenez.
244
STANISLÁVSKI, K. in JIMENEZ, S. (org.) El Evangelio de Stanislávski según sus apostoles, los apócrifos,
la reforma, los falsos profetas y Judas Iscariote. México: Gaceta, 1990, p. 243. (Tradução nossa)
245
Ibidem, p. 258.
104
3.3.1 A Análise Ativa e a criação de etiud
Ressaltamos que, após a morte de Stanislávski, diferentes vertentes da aplicação do
método de análise ativa, de criação por meio de etiud, se formaram na Rússia. Em nosso
estudo enfocamos Maria Knébel que junto a Alexéi Popov aplicou e desenvolveu esse método
no GITIS246, em Moscou, tendo como importantes discípulos Anatoli Vassiliev e Gueorgui
Tovstonógov que, juntamente com Arkádi Katzman, representa o desenvolvimento desse
conhecimento prático no LGITMiK247, em São Petersburgo, e teve entre seus discípulos Nair
D‟Agostini, que continua suas pesquisas pedagógicas e artísticas dentro desse método no
Brasil.
Reflexões sobre a abordagem da Análise Ativa e a criação de etiuds conforme Maria
Knébel
Passamos a discorrer sobre a prática do etiud provinda do seu desenvolvimento a partir
dos ensinamentos de Maria Knébel, mestre de Vassiliev e Tovstonógov e discípula de
Stanislávski e Nemiróvich-Dântchenko.
Maria Knébel inicia a sua reflexão sobre a análise ativa nos ensaios com etiuds
descrevendo esse trabalho como “estudos com texto improvisado”248. Antes de iniciar os
ensaios ressalta que é preciso que o diretor realize o que Stanislávski denominava
“exploração racional”249, isto é, a análise da estrutura da obra de modo a “formar um tecido
vivo para o ator”250. Por meio da análise ativa é possibilitado ao ator que “comece a
imaginar claramente o que seu personagem faz na obra, o que quer alcançar, contra quem
luta e com quem se alia, como se relaciona com os demais personagens” 251.
Conforme Knébel, a ação deve ser dividida nos acontecimentos principais e
secundários, esclarecendo, desse modo, as tarefas internas e externas criadas pelo autor. Para
246
De acordo com Nair D‟Agostini, a partir de 1991, o GITIS – Instituto Estatal de Arte Teatral de Moscou
passa a ser denominado RATI – Academia Russa de Arte Teatral.
247
Conforme Nair D‟Agostini, em 1993, o LGITMiK – Instituto Estatal de Teatro, Música e Cinema de
Leningrado passa a ser chamado de SPGATI – Academia Estatal de Arte Teatral de São Petersburgo.
248
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, p.69. (Tradução nossa)
249
Ibidem, p.69.
250
Ibidem, p.69.
251
Ibidem, p.69.
105
ela, essa divisão detalhada da obra em acontecimentos ajuda manter o ator dentro da obra,
dentro das circunstâncias dadas do papel.
Para Knébel, depois de conhecer os acontecimentos e ações das personagens da obra e
compreender a linha de pensamento da sua própria personagem, é possível iniciar o trabalho
de criação de etiud, improvisando as palavras do texto. De acordo com a encenadorapedagoga, “as palavras nas quais o ator se apóia não têm a menor importância. O
importante é que essas palavras estejam ditadas pelos pensamentos que o autor colocou no
fragmento executado no etiud” 252. Muitas das palavras improvisadas pelo ator serão
diferentes, porém, o curso das ideias do autor deve ser preservado durante a criação pelo
etiud.
Depois da realização do etiud, o ator deve tornar a ler na obra o acontecimento
trabalhado para verificar não apenas a “correspondência lógica do texto improvisado com as
ideias do autor”253, mas para avaliar se compreendeu “o que é que engendra a agitação
poética do autor, o que é que serve de alimento à vida da personagem quando fala” 254 e se
conseguiu alcançar essa expressão na sua improvisação.
Desse modo, Knébel afirma que “a finalidade perseguida pelos etiuds é conduzir o
ator até o texto do autor” 255, um caminho que, por meio da criação de etiuds, se constitui em
uma via de aprendizagem orgânica da essência da obra. A imaginação do ator se torna
fundamental nesse processo ao levar o ator a “adaptar-se ao inesperado”256.
Percepções sobre a criação de etiuds na prática proposta por Anatoli Vassiliev
Refletimos sobre a prática cênica de Anatoli Vassiliev, aluno de Maria Knébel, a partir
de encontros com o encenador russo257. Nestes encontros, tivemos a oportunidade de
acompanhar a abordagem de Vassiliev na criação de etiuds, que foi demonstrada em um
processo pedagógico feito a partir da obra “A Gaivota”, de Anton Tchekhov. Segundo
252
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, p.72. (Tradução nossa)
Ibidem, p.73.
254
Ibidem, p.74.
255
Ibidem, p.75.
256
Ibidem, p.83.
257
Como parte do Encontro Mundial das Artes Cênicas – ECUM, que teve como tema a pedagogia teatral russa,
foi oferecida uma oficina teatral ministrada por Anatoli Vassiliev, da qual participei. Os encontros ocorreram
durante cinco dias em outubro 2010, em São Paulo.
253
106
Vassiliev, o seu processo de trabalho com etiuds trata-se de uma variação da prática de etiud
realizada por Stanislávski e desenvolvida por Knébel.
Anatoli Vassiliev denomina o seu processo criativo de “Arte da composição”,
entendendo que, para compor em arte, antes é preciso decompor. Segundo Poliakov: “As
palavras desconstrução e montagem podem igualmente dar conta do termo russo razbor, que
traduzido como análise, fica mais concreto. Ele tem o mesmo significado etimológico de:
desmontar, desfazer, separar as partes.”258
O emprego de razbor na prática de Vassiliev, assim como em Stanislávski, também o
aproxima mais de uma ideia de desconstrução do que construção. Desconstrução para
composição. Para Poliakov, “a composição é a arte de dispor as partes em conjunto
conforme uma ordem racional. O termo designa também a criação da obra na literatura e na
música.”259
No teatro, ainda segundo a reflexão de Poliakov, “essa disposição das partes” pela arte
da composição deve ser dinâmica, isto é, pela ação. Constituindo uma análise para o jogo,
liga-se assim diretamente ao método de análise ativa, que Poliakov afirma ser a herança mais
preciosa que Vassiliev recebeu durante a sua formação no GITIS.
Observamos que Vassiliev parte de uma análise que busca esclarecer as relações entre
as personagens, a linha de conflito existente entre eles. Para Vassiliev, “é necessário
desmontar cada personagem, falar de suas relações mútuas” 260. Por exemplo: Tréplev X
Nina, Tréplev X Trigórin, Tréplev X Arkádina. Ele busca determinar o que é mais importante
para cada um deles e como esses desejos individuais devem se contrapor. A partir dessas
relações, feitas de ações que se opõem pelos desejos das personagens, o conflito vai se
desenrolando em cada ato.
Antes de ir para a prática do etiud, Vassiliev determina no acontecimento o ponto de
partida e o seu ponto principal, “depois disso, o ator é convidado a agir. Ou seja, a encontrar
uma saída sozinho” 261. Conforme Vassiliev, o momento principal consiste no ápice, que
corresponde, na totalidade da obra, à “zona do drama onde se resolve o conflito da peça”262.
258
POLIAKOV, S. Anatoli Vassiliev: L‟art de la composition. França: Actes Sud, 2006, pp.51-52 (Tradução
nossa)
259
POLIAKOV, S. Anatoli Vassiliev: L‟art de la composition. França: Actes Sud, 2006, p.52 (Tradução nossa)
260
Anotações das explanações de Anatoli Vassiliev na oficina teatral O texto literário e a improvisação,
ministrada em São Paulo, durante o Encontro Mundial das Artes Cênicas – ECUM, em outubro de 2010.
261
VASSILIEV, A. Texto literário e improvisação. Aula dada em Bruxelas, durante a primeira edição de Ecole
dês Maîtres, em 21 de setembro de 1990, p.10.
262
Ibidem, p.11.
107
Sendo que, enfatiza que a solução final do acontecimento, após o ponto principal, deve ser
criada pelos atores.
Vassiliev traça duas linhas, a linha do texto das palavras e a linha do texto das ações.
Isto é, o que se está fazendo não corresponde necessariamente ao que se diz, é preciso saber a
diferença entre essas linhas claramente. Nesse ponto, com o intuito de complementar esse
pensamento, nos remetemos à seguinte reflexão de Maria Knébel: “Nem sempre coincide o
significado do que ocorre em cena com o significado direto das palavras pronunciados pelo
personagem; às vezes por trás das palavras se oculta a verdadeira causa do progresso da
ação de uma cena.”263
Nessa afirmação, Knébel está se referindo ao conceito de “segundo plano”, utilizado
por Nemiróvich-Dântchenko e Stanislávski, observando que seus mestres exigiam que o ator
se aprofundasse na compreensão do mundo interno das personagens que criavam, sendo este
um processo ativo, de estímulo à vida interna do ator nas circunstâncias do papel. Para Knébel
trata-se de descobrir o verdadeiro objeto do ator, como exemplifica com as personagens
Tuzenbakh e Irina no quarto ato de “As três irmãs”, de Anton Tchekhov:
(...) na cena da despedida, Tuzenbakh tende todo o seu ser para Irina, pois
para ele não existe nada mais valioso do que ela, ainda que seu „objeto‟ de
todas as formas é outro. O pensamento sobre o iminente duelo, acerca de que
„pode ser que dentro de uma hora esteja morto‟, (...) preenche seu cérebro e
seu coração. (KNÉBEL)264
Para Knébel, se o ator possui a compreensão do “segundo plano” da sua personagem,
por meio do desenvolvimento da imaginação no acúmulo de imagens sobre a vida interna da
personagem, encontra o objeto autêntico de sua comunicação, possibilitando a sensação
orgânica de sua presença e relação em cena.
Para Vassiliev, o que a personagem faz pertence à linha do texto; o que o ator
improvisa diz respeito ao etiud, ao texto cênico. Ele compara, então, o texto literário e o
cênico com duas margens de um rio, que o ator precisa atravessar: "A travessia é feita com
certo trabalho. Se não tiver esse trabalho o barco seguirá a correnteza. O trabalho a fazer se
chama ação."265
263
KNÉBEL, M. El último Stanislávski. Madrid: Editorial Fundamentos, 1996, p.98. (Tradução nossa)
Ibidem, p.102.
265
Anotações das explanações de Anatoli Vassiliev na oficina teatral O texto literário e a improvisação,
ministrada em São Paulo, durante o Encontro Mundial das Artes Cênicas – ECUM, em outubro de 2010.
264
108
O encenador continua a sua reflexão sobre a ação da seguinte forma: "Estudar a ação
e educar a ação em si é a arte do ator. É preciso descobri-la em si mesmo, para começar a
estudá-la, a pesquisá-la."266
Então, Vassiliev questiona: "Onde se encontram essas ações? Onde elas vivem? Na
pessoa. E quem nos ajuda a encontrá-las em nós mesmos? Encontramos essas ações no texto
literário. O texto é dramático porque nele nós encontramos as ações, nele estão escondidas
as ações."267 Por esse motivo, para desvendar as ações que estão ocultas no texto do autor,
realiza a desmontagem da obra e dos papéis, utilizando os procedimentos da análise ativa.
Nesse sentido, observamos que Vassiliev considera importante que antes da
improvisação do etiud os atores entrem em acordo sobre os temas das suas falas. “Sobre o
que estou falando, sobre o que as personagens falam?”268. Ele divide o tema do que vai ser
desenvolvido na fala segundo o conflito existente entre duplas de personagens, tentando
estabelecer oposição entre elas. Por exemplo, Nina e Tréplev no primeiro ato de “A Gaivota”,
tem interesses que se contrapõem. Nina fala sobre a sua performance de atriz na cena da peça
escrita e dirigida por Tréplev, que será apresentada a público, ela quer impressionar o famoso
escritor Trigórin, que estará na plateia. Treplév fala sobre a sua encenação, ele busca obter o
reconhecimento de sua mãe, a famosa atriz Arkádina, que também estará na plateia, sobre o
seu talento como escritor e diretor, e ao mesmo tempo quer estar ao lado de Nina, por quem
está apaixonado.
Antes do etiud, Vassiliev divide a cena em fragmentos. Esses fragmentos são
originados pela entrada de novas informações, ou seja, circunstâncias, que se constituem em
nós que geram mudanças na condução da ação, originando novos fragmentos. Na criação do
etiud esses nós estabelecem uma readaptação e uma nova orientação da ação cênica, da
relação e do tema que gera a palavra. Esses esclarecimentos são importantes para ele como
uma base que permite e impulsiona a liberdade da invenção, para que os atores consigam
improvisar o texto das palavras sem romper o tema da obra.
266
Anotações das explanações de Anatoli Vassiliev na oficina teatral O texto literário e a improvisação,
ministrada em São Paulo, durante o Encontro Mundial das Artes Cênicas – ECUM, em outubro de 2010.
267
Ibidem.
268
Ibidem.
109
Desse modo, de acordo com Vassiliev, “no etiud se busca encontrar a ação correta
pela relação que se estabelece entre os partners. A palavra livre com base no assunto da
cena, do fragmento”269.
A ação é gerada pela relação estabelecida entre os partners e a palavra provém do
desenvolvimento, entre os partners, do assunto em cada fragmento da cena. Como salienta o
pesquisador, “as ações, relações, referem-se à rede que vocês tecem no espaço e essa rede é
invisível. Não pensem que se dizemos que é invisível, não pode ser vista. Imediatamente tudo
será visto”270.
Para Vassiliev, o etiud consiste numa troca que se dá em três níveis diferentes, o
físico, o psíquico e o da fala. O que vai se tornar visível através dessa rede invisível é
consequência dessa troca na relação entre os partners, nas relações que se opõem.
Vassiliev diz buscar que a natureza adentre o trabalho do etiud “pouco a pouco, uma
coisa depois da outra, tudo começará a se conectar, se ligar por si mesmo” 271. Relacionamos
aqui a importância da lógica e da coerência na sequência das ações compostas pelo etiud.
Na seguinte afirmação de Vassiliev: “Somente quando vocês começam a inventar na
relação encontram o texto vivo” 272; encontramos uma importante conexão com o
pensamento/prática de Stanislávski, pois, para este, como já foi citado, o papel que é dado
pelo autor é morto, a sua “vida” é criada pela imaginação e a adaptação dos atores nas ações
dentro das circunstâncias dadas. Complementando essa reflexão, para Vassiliev, “a
imaginação se abre imediatamente por meio das perguntas detalhadas”273; nesse sentido,
também encontramos uma referência direta à análise stanislavskiana, na qual se deve buscar
esclarecer o mundo e as circunstâncias que dizem respeito a cada personagem por meio de
questionamentos. A partir disso, Vassiliev busca estimular a imaginação e esclarecer a relação
entre dois personagens: “Pensem, vivam a situação. O que acontece aqui? O que acontece
entre os dois? Eles se procuram. Como eles se aproximam? O que nós fazemos?” 274. Ou seja,
o que faríamos “se” estivessemos nessas circunstâncias?
Percebemos aqui que Vassiliev utiliza os verbos de ação “procurar” e “aproximar”
intencionando que os atores entendam o que está acontecendo entre as personagens. O “se”
269
Anotações das explanações de Anatoli Vassiliev na oficina teatral O texto literário e a improvisação,
ministrada em São Paulo, durante o Encontro Mundial das Artes Cênicas – ECUM, em outubro de 2010.
270
Ibidem.
271
Ibidem.
272
Ibidem.
273
Ibidem.
274
Ibidem.
110
mágico também aparece quando o pesquisador lança a pergunta “o que nós fazemos?” para os
atores, a fim de ativar a sua ação e a imaginação dentro das circunstâncias dadas.
Considerações sobre a Análise Ativa e a criação de etiuds na visão de Gueorgui
Tovstonógov
Gueorgui Tovstonógov275 ressalta que a sua compreensão sobre o método de análise
ativa provém do conhecimento adquirido no GITIS com seus mestres A. Popov, A. Lobanov e
M. Knébel, discípulos de Stanislávski, e do desenvolvimento de seu próprio trabalho prático e
artístico como pedagogo e diretor teatral. Considerando também que teve a oportunidade de
encontrar-se com Stanislávski e de assistir suas conferências, bem como a suas encenações no
TAM.
A essência do método de análise ativa, para Tovstonógov, reside na possibilidade de
reproduzir em cena a “intrincada „vida do espírito humano‟ através da mais simples das
sequências de ações físicas”276.
Segundo Tovstonógov, para conduzir a criação a partir do método de análise ativa é
preciso que o diretor tenha uma ampla compreensão do conflito central e das circunstâncias
dadas da obra, “cada segundo da ação supõe uma confrontação ininterrupta. O diretor deve
se lembrar que não existe vida cênica sem conflito”277. O conflito não deve ser entendido
apenas como um choque entre pontos de vista diferentes, pois engloba também as diferentes
circunstâncias nas quais estão as personagens, circunstâncias estas que criam obstáculos para
que as personagens exponham o seu conflito. Para ele, é necessário descobrir esses conflitos
ocultos, que consistem na sustentação da cena, sem isso não se pode pensar em uma “ação
verdadeira”278. Em cada personagem existe uma linha de conflitos internos que cria a linha de
ação, que gera a atmosfera da cena.
A respeito do processo de criação do espetáculo segundo o método de análise ativa,
Tovstonógov defende que se trabalhe diretamente sobre a cadeia lógica dos acontecimentos
divididos na estrutura da obra, desde os principais até os menos importantes, para que se
possa chegar, em um processo conjunto do diretor com os atores, à unidade da obra. Contudo,
275
TOVSTONÓGOV, G. La profesion de diretor de escena. La Habana: Ed.Arte y Literatura, 1980, pp.375-388.
(Tradução nossa)
276
Ibidem, p.375.
277
Ibidem, p.379.
278
Ibidem, p.380.
111
nada impede que durante os ensaios essa sequência de acontecimentos possa ser alterada. Para
Tovstonógov, a busca dos atores pela criação de ações psicofísicas acontece a partir do
choque entre as linhas de conflito estabelecidas na análise ativa. Nessa busca, a criação de
etiuds pode ajudar a despertar a imaginação dos atores levando-os a uma compreensão mais
clara do conflito.
Salientamos ainda, com base no pensamento de Tovstonógov, a importância da
improvisação para o trabalho do ator sobre o método de análise ativa. Para ele, todo o elenco
deve se encontrar “em um constante estado de improvisação criadora” 279. O método de
análise ativa requer flexibilidade e contínua adaptação dos atores, exigindo um artista criador.
Por esse motivo, o diretor não pode decidir como o ator expressará o conflito de sua ação, não
pode conhecer o resultado antes que o ator busque ativamente concretizar suas ações e
relações em cena. Tovstonógov também ressalta que, de acordo com os ensinamentos de
Stanislávski, os atores não devem aprender o texto por meio de uma memorização mecânica.
A partir da realização de ações que expressem a lógica contida na obra, as palavras escritas
pelo autor surgirão no decorrer dos ensaios, “ao expressar a ideia do autor por meio de
palavras próprias, às vezes mesmo com falta de destreza, o ator alcança o sentido da obra
através da ação, desenvolvendo o significado da peça até a sua conclusão lógica”280.
Para Tovstonógov, a imaginação é um dos elementos fundamentais desse trabalho, que
é como se fosse um “jogo de crianças”. A imaginação nesse processo criativo “tem que ser
flexível, ativa e capaz de reagir diante dos estímulos concretos” 281. De acordo com ele, tanto
o ator como o diretor devem acumular em si um depósito de observações e reflexões sobre as
coisas da vida, buscando vencer o utilitarismo ao qual estamos normalmente ligados no dia a
dia, a este depósito Tovstonógov chama de combustível da imaginação. É de percepções
pessoais provindas de uma observação mais atenta e de pensamentos sobre as questões da
vida que surgem as associações que impulsionam a criação durante o processo de ensaios.
Ao finalizar nossa reflexão sobre o pensamento e prática de Tovstonógov no que
concerne ao método de análise ativa, destacamos o seu profundo respeito com os
ensinamentos stanislavskianos.
279
TOVSTONÓGOV, G. La profesion de diretor de escena. La Habana: Ed.Arte y Literatura, 1980, p.384.
Ibidem, p.387.
281
Ibidem, p.393.
280
112
A Análise Ativa na criação de etiuds partindo da abordagem de Nair D’Agostini
Para dar continuidade ao nosso estudo sobre a criação de etiud e a sua relação com o
método da análise ativa, entrevistamos282 a Profª. Drª. Nair D‟Agostini, cuja prática está
embasada no conhecimento recebido de seus mestres Gueorgui Tovstonógov e Arkádi
Katzman. Nesta entrevista, solicitamos uma reflexão que estabelecesse relação entre a análise
ativa, as ações físicas, a imaginação e a prática do etiud.
Os etiuds são núcleos de criação que contém a estrutura dramática de um
acontecimento, como se fossem “microespetáculos” criados no processo de
educação e formação do diretor e do ator, e constituem a base de criação
artística de uma obra. O etiud, além de investigar a ação, expressa o
conteúdo do acontecimento, desvelando o caráter da personagem e as suas
relações. O seu conteúdo fica claro por meio da ação do ator e de seu
comportamento em cena. (DAGOSTINI)
Lembramos que o etiud pode ser criado a partir de qualquer material, de uma ideia, de
um tema, de um texto, que vai receber um tratamento artístico através da ação do ator no
desenvolvimento de um acontecimento dramático. Essa estrutura diz respeito aos pontos
principais do acontecimento.
Na estrutura do etiud, é necessário, em sua primeira etapa, criar o momento
inicial que esclarece o universo no qual o acontecimento vai se desenvolver,
ou seja, é preciso criar cenicamente o que acontece antes do surgimento da
circunstância que dará início ao conflito. (DAGOSTINI)
Para esclarecer o universo no qual o acontecimento se desenrola e concretizá-lo
cenicamente, por meio do momento inicial, é preciso considerar as circunstâncias do núcleo
criativo que será trabalhado pelo diretor e o ator. Com o surgimento da principal circunstância
dada é gerado o começo do conflito:
Na segunda etapa, chamada de fundamental, inicia-se e desenvolve-se o
processo de luta para alcançar o objetivo, através da ação. (DAGOSTINI)
282
Entrevista realizada em abril de 2011.
113
Com o esclarecimento do universo inicial e do surgimento da principal circunstância
dada, é possível compreender e visualizar as forças opostas que formam o conflito que
impulsionará o desenvolvimento do etiud rumo ao momento central.
Segue-se, então, o terceiro momento, chamado de central, que constitui o
ápice da tensão dramática e, como consequência desse desenvolvimento, é
gerado o momento final. (DAGOSTINI)
Desde o momento fundamental, passando pelos momentos sequenciais, até o central, o
desenrolar do conflito é traçado pela linha transversal de ação283. Esta linha direciona o
objetivo das personagens para o ápice do conflito do etiud.
Cada um desses momentos funde-se com o subsequente com a entrada de
novas circunstâncias, as quais obstaculizam a ação a ser realizada para o
cumprimento da tarefa proposta. Esses momentos que constituem o processo
de evolução da ação dramática dentro do acontecimento sofrem mudanças
qualitativas através da entrada de novas circunstâncias, portadoras de sinais,
que se constituem em obstáculos, os quais levam a reações, reconhecimentos
e valorizações por parte do ator. (DAGOSTINI)
No processo da análise ativa é de suma importância perceber o surgimento de novas
circunstâncias no decorrer do acontecimento, pois o desenvolvimento da trama depende do
aprofundamento das circunstâncias, que provocam maior complexidade ao conflito. Em vista
disso, o ator é obrigado a solucionar esses obstáculos que o impedem de alcançar o seu
objetivo e, desse modo, é impulsionado a agir.
Com relação à análise ativa a partir de um texto na criação de etiuds entendemos que
existe uma desconstrução da obra para passar a uma recriação pelo ator:
A estrutura do etiud, ou seja, do acontecimento, é composta das mesmas
etapas da análise geral da obra. Essa microestrutura do etiud corresponde à
macroestrutura da obra, que sofre um procedimento similar de
desestruturação, ou seja, de decifração do sistema do autor pelo diretor, que
parte do geral para o particular, dos quatro grandes acontecimentos da obra
que compõem a sua totalidade. (DAGOSTINI)
283
Segundo Nair D‟Agostini, a linha transversal de ação do espetáculo consiste em uma linha ininterrupta que
liga todas as ações realizadas pelos atores, reunindo todos os elementos, as diferentes partes e objetivos, num
único fecho e os dirige para o objetivo geral. (DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski
como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado,
Universidade de São Paulo, FFLCH, São Paulo, 2007, pp.32-33).
114
A análise ativa, de acordo com a sistematização que nos foi transmitida por Nair
D‟Agostini, contempla o desvendamento dos seguintes elementos da análise geral da obra:
- Universo inicial: consiste no contexto no qual a história está contida e inicia o seu
desenvolvimento, considerando época, questões culturais, sociais, morais e todas as
informações que têm relação com a obra em sua totalidade.
- Acontecimento inicial: este acontecimento concretiza cenicamente o universo inicial
da obra.
- Principal circunstância dada: consiste na circunstância que dá origem ao início do
conflito da obra, a qual gera o acontecimento fundamental.
- Acontecimento fundamental: acontecimento que dá início à história gerada pela
entrada do conflito. É nele que inicia a linha transversal da obra.
- Acontecimento central: consiste na realização cênica do ápice do conflito da história,
em que termina a linha transversal de ação.
- Acontecimento final: acontecimento de finalização que se dá no grande círculo, no
universo geral da obra, como resultado da história.
- Acontecimentos sequenciais: são acontecimentos que se encontram entre os quatro
grandes acontecimentos - inicial, fundamental, central e final. São parte intrínseca da história.
- Grande círculo: corresponde ao universo que contém a obra em sua totalidade.
- Médio círculo: corresponde à esfera que contém o desenvolvimento do conflito,
abrangendo a história desde o acontecimento fundamental até a finalização do acontecimento
central.
- Pequenos círculos: correspondem a cada acontecimento singular da obra.
- Ideia: consiste na elaboração de um pensamento que contemple a complexidade da
obra, a sua síntese, abrangendo o universo inicial, o tema, a linha transversal de ação, o
acontecimento central e o acontecimento final.
- Tema: é depreendido dos acontecimentos da trama da história, está ligado à fábula.
- Superobjetivo da obra: a concretização cênica da ideia do autor.
- Superobjetivo de cada personagem: consiste no principal objetivo almejado pela
personagem.
- Linha transversal de ação da obra: consiste na linha ininterrupta da obra que une
todos os objetivos e ações para concretizar o seu superobjetivo.
115
- Linha transversal de ação de cada personagem: consiste na linha de ações traçada ao
longo da obra na luta de cada personagem para alcançar a realização de seu superobjetivo.
- Linha transversal de contra-ação da obra: consiste em um contínuo obstáculo à
realização da linha transversal de ação, sendo responsável pela manutenção do conflito da
obra.
- Objetivo de cada acontecimento: cada acontecimento possui um objetivo que
contribui para o desenrolar da obra e da história.
- Circunstância geradora de cada acontecimento: a circunstância que origina o
acontecimento deve se opor ao objetivo deste, gerando conflito que dá origem a ação.
- Objetivo de cada personagem dentro do acontecimento: dentro de cada
acontecimento, cada personagem possui um objetivo, o qual estabelece a luta contra as
circunstâncias dadas. 284
Análise do conto “A Feiticeira”, de Anton Tchekhov
Como exemplo de análise geral da obra, refletimos sobre a análise e o exercício
criativo que realizamos a partir do conto “A Feiticeira”, de Anton Tchekhov.
O conto “A Feiticeira”, ou “Bruxa” (Viédma - Ведьма) em tradução literal do original
russo, chama a atenção primeiramente pela temática e época remetida. Foi escrito por
Tchekhov no final do século XIX, em 1886, porém, sua história nos remete à mentalidade da
Idade Média. O conto possui duas personagens principais, Raissa e Saveli, e duas personagens
secundárias, o carteiro encarregado do transporte da mala postal e o seu ajudante, o cocheiro.
A história trata de uma mulher que é acusada pelo marido de provocar tempestades
para atrair viajantes perdidos em busca de abrigo e seduzi-los. Diante dessa acusação o
marido a ameaça de ser entregue à Igreja, que ainda pratica atos medievais contra o que
considera bruxaria.
Ao longo do conto de Tchekhov são reveladas informações que nos levaram a
determinar o seu universo inicial como um mundo de mentalidade servil de valores
condicionados pelo poder patriarcal e crenças medievais. Essas crenças medievais se refletem
284
Ressaltamos que não pretendemos realizar aqui um estudo detalhado acerca desses elementos, o que acabaria
nos desviando do foco do nosso trabalho pela demanda de uma extensa reflexão sobre os mesmos. Para um
conhecimento aprofundado sobre a análise ativa e seus elementos vide: DAGOSTINI, N. “O Método de Análise
Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator.” Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São Paulo, 2007.
116
na própria ameaça feita por Saveli de entregar a mulher para ser punida pela Igreja na
condição de bruxa.
Pela narrativa de Raissa ao carteiro, ficamos sabendo que ela não teve escolha ao se
casar com Saveli. O pai de Raissa, que era diácono de uma longínqua província da Rússia,
antes de morrer providenciou que quem assumisse o seu posto de chantre junto à igreja
deveria ser solteiro e se casar com a sua filha. Então, Raissa foi entregue como esposa a
Saveli, um homem de idade avançada, que passou a ser o novo chantre e “dono” de Raissa e
da casa em que ela e o pai moravam.
Percebemos o universo inicial em que a personagem Raissa está inserida pelo que nos
relata Tchekhov: “Nem desejos, nem tristeza, nem alegria – nada transparecia em seu rosto
de nariz arrebitado e faces marcadas de covinhas. Assim como nada expressa uma bela fonte
quando não está jorrando”.285
Apesar desse aparente estado de passividade, Tchekhov cria uma analogia entre a
tempestade que está acontecendo fora da casa com a interioridade da personagem, que
apresenta sua natureza sufocada.
A rebeldia interna de Raissa, isto é, o inconformismo com o seu destino é concretizado
no acontecimento inicial, o qual denominamos “Espera Secreta”. Nesse acontecimento inicial,
Raissa se encontra costurando sacos de estopa junto à janela, como se estivesse tecendo seus
próprios sonhos. A tempestade que ocorre do lado de fora representa a rebeldia de Raissa, que
está sendo reprimida em suas forças vitais:
Uma força vitoriosa corria pelos campos; danificava a floresta e o telhado da
igreja; batia furiosamente nas janelas; varria; rasgava – e qualquer coisa
vencida urrava e chorava. O gemido lamuriento ouvia-se, ora além da janela,
ora no telhado, ora descendo pela chaminé – e não era um apelo de socorro
que se sentia nele, mas angustiada consciência de que não havia mais
salvação, de que era tarde demais... (TCHEKHOV)286
A tempestade, assim como a verdadeira natureza de Raissa, corre, bate, esbraveja e
chora, conforme nos disse Tchekhov.
Raissa, conhecedora profunda desse mundo em que vive, sabe que quando acontecem
essas tempestades o único lugar possível de socorro, na localidade isolada em que moram, é a
sua casa. Por isso, enquanto costura, espera secretamente junto à janela com uma pequena
285
286
TCHEKHOV, A. Contos. Vol. IV. Relógio D‟Agua Editores: Lisboa, 2005.
Ibidem.
117
lamparina para atrair os forasteiros, sob o olhar vigilante de Saveli. Quando dois viajantes
perdidos estão prestes a chegar, Tchekhov relata que:
(...) subitamente, seus cílios começaram a mover-se, a atenção brilhou em
seus olhos. Saveli que, sob as cobertas, vigiava sem cessar as expressões de
seu rosto, ergueu a cabeça e perguntou: - Que há? Raissa respondeu,
docemente: Nada. Parece que está chegando alguém (...) (TCHEKHOV)287
Saveli pressente o perigo, pois sempre que a mulher se coloca nesse estado algo
acontece, mas não consegue descobrir o “mistério” que envolve a chegada dos viajantes em
sua casa e, com um lapso de inteligência, acusa a mulher de um poder sobrenatural. Assim,
entendemos que a principal circunstância dada surge com a acusação de Saveli de que a
mulher é uma feiticeira:
Sei que és tu que fazes tudo isso, mulher diabólica. É obra tua... Esta
tormenta, o correio extraviado... És tu a culpada... És tu!(...) És uma
feiticeira. (...) Sempre que teu sangue ferve, faz logo mau tempo e, a cada
tormenta, surge-nos um cretino qualquer... (TCHEKHOV)288
Com essa acusação Raissa passa a viver internamente a força que estava ocorrendo na
natureza. Por isso, denominamos o acontecimento fundamental de “Ameaça”, como
consequência direta dessa acusação, constituindo-se em um tormento, no qual Raissa se torna
refém do marido. Saveli ameaça Raissa de que, se alguma coisa acontecer naquela noite, ele
dirá ao padre que ela é uma feiticeira, para que seja punida:
Embora sejas minha mulher e de condição eclesiástica, direi em confissão o
que és... É meu dever. (...) Então, pobre de ti, mulher! Serás punida, não só
no Juízo Final, mas aqui mesmo, neste mundo, também! Para isso existem os
rituais... (TCHEKHOV)289
Com a entrada da principal circunstância dada, que gera o acontecimento
fundamental, inicia a história que tem como tema “o espírito de servilismo”. Determinamos a
linha transversal de ação da história como a luta para ser livre, que é carregada por Raissa e
corresponde ao médio círculo. Essa luta se opõe ao universo inicial, chamado de grande
círculo, que corresponde à mentalidade patriarcal e preconceitos medievais, representado por
287
TCHEKHOV, A. Contos. Vol. IV. Relógio D‟Agua Editores: Lisboa, 2005.
Ibidem.
289
Ibidem.
288
118
Saveli na manutenção do domínio deste poder. Essa contra-ação da linha transversal, que é
carregada por Saveli, consiste no maior obstáculo para que a liberdade se realize.
O conflito de Raissa consiste na luta entre ser livre e ser considerada feiticeira e
punida. O conflito de Saveli resulta da sua impotência e impossibilidade de amar e ser amado
por Raissa. As diferenças entre eles ficam evidentes em sua incomunicabilidade, por
constituírem em sua essência naturezas distintas. Eles têm mentalidade, sonhos e desejos
opostos.
Os acontecimentos que se seguem ao acontecimento fundamental são chamados de
acontecimentos sequenciais, os quais compõem o desenvolvimento da história e são também
denominados de pequenos círculos. São eles: “Acolhida”, “Encantamento” e “Sedução”.
Por meio desses acontecimentos, a história se desenrola da seguinte forma: Após o
acontecimento “Ameaça”, dois homens da mala postal, o carteiro e seu ajudante, que
perderam a trilha por causa da tempestade e atraídos pela luz da lamparina, pedem abrigo na
casa de Saveli e Raissa. Denominamos esse acontecimento como “Acolhida”, no qual Raissa
recebe os homens em sua casa, enquanto que Saveli, contrariado, permanece deitado em sua
cama resmungando. Segue-se o acontecimento “Encantamento”, em que Raissa não consegue
deixar de admirar o carteiro, em uma constante contemplação que incomoda Saveli e o leva a
expulsar os homens de sua casa argumentando o dever de seu trabalho com a mala postal.
Enquanto Saveli está do lado de fora da casa carregando o material com o cocheiro, acontece
a “Sedução” entre Raissa e o carteiro. Ato que é interrompido pela volta de Saveli que obriga
a sua saída.
O ápice da história, ou acontecimento central, foi chamado de “Rebelião”, conforme
podemos perceber no relato do autor:
Muito pálida, de início, enrubesceu logo. Seu rosto convulsionou-se de ódio.
A respiração ofegava. Os olhos brilharam num lampejo de irritação
selvagem e cruel. Andando como se estivesse presa em uma gaiola,
lembrava um tigre espicaçado com ferro em brasa. Deteve-se um instante,
lançando um rápido olhar sobre o alojamento. O leito ocupava quase a
metade do compartimento: (...) com seu colchão sujo, seus travesseiros duros
e cinzentos, suas cobertas feitas de trapos. (...) Tudo, sem excluir Saveli,
apresentava-se no superlativo da imundície (...). Raissa correu à cama,
estendeu a mão, como se quisesse dispersar, pisar aos pés, reduzir a pó tudo
aquilo. (TCHEKHOV)290
290
TCHEKHOV, A. Contos. Vol. IV. Relógio D‟Agua Editores: Lisboa, 2005.
119
Nesse acontecimento Raissa toma consciência do mundo em que ela vive e da situação
em que ela se encontra presa àquele marido: “– Sou muito desgraçada (...). – Se não tivesses
aparecido, talvez eu casasse com um negociante, ou com um nobre. Se meu marido fosse
outro, eu o amaria agora.”291
A linha transversal de ação é finalizada no acontecimento central “Rebelião”, que
corresponde ao fim do círculo médio. Após a rebelião de Raissa, a história desemboca no
grande círculo com o acontecimento final, chamado de “Calmaria”. Assim como a
tempestade que tem momentos de tormenta e calma, Raissa também tem reações semelhantes
à natureza.
Percebemos pelo acontecimento final que o universo não se altera, Raissa, assim como
no acontecimento inicial, continua aprisionada por esse universo patriarcal e medieval.
Considerando que Tchekhov sugere uma noção de continuidade ao final do conto, podemos
dizer que a luta de Raissa por liberdade continua, enquanto permanecerem esses preconceitos.
O autor sugere que as tempestades vão continuar, Raissa é um símbolo da natureza e a
natureza diante da opressão e ameaças constantes tende a se rebelar. No acontecimento final,
a tempestade presente em Raissa aparentemente se apazigua: “Chorou longamente. Por fim,
suspirou bem fundo e acalmou-se. A tormenta crescia cada vez mais, além da janela. Na
lareira, na chaminé, do outro lado das paredes, alguma coisa chorava (...)”.292
Saveli passa a acreditar que a mulher realmente tem poderes de feiticeira e, por isso, se
sente encantado por ela: “(...) Esse mistério e essa força selvagem davam à mulher, deitada a
seu lado, um fascínio especial, incompreensível mesmo, que nunca percebera antes.” 293
Porém, quando ele tenta se aproximar dela, acariciando o seu pescoço é fortemente
repelido por Raissa, com uma batida no nariz. Tchekhov também dá ideia de continuidade por
meio das duas últimas frases do conto: “A dor do chantre acalmou-se logo. Mas seu suplício
continuou...”294
Por fim, definimos a ideia da obra como: num mundo de mentalidade e preconceitos
medievais o espírito de servilismo tende a continuar, sendo que a luta pela liberdade ainda não
se concretizou.
291
TCHEKHOV, A. Contos. Vol. IV. Relógio D‟Agua Editores: Lisboa, 2005.
Ibidem.
293
Ibidem.
294
Ibidem.
292
120
Da análise para a criação de etiuds
Após a análise realizada pelo diretor, passa-se à criação de etiuds pelo ator, em que
são improvisados os acontecimentos selecionados, bem como os tangenciais ao texto,
considerados necessários para o entendimento da totalidade da vida das personagens. Cada
etiud, ou acontecimento trabalhado, deve possuir uma totalidade: momento inicial,
fundamental, central e final. Conforme esclareceu D‟Agostini, “a microestrutura do etiud
corresponde à macroestrutura da obra”.
Pela realização da análise ativa o diretor pode conduzir o ator na criação dos
acontecimentos da obra, ou pequenos círculos, que compõem tanto o universo total da obra,
ou seja, o grande círculo, quanto o núcleo onde se desenvolve o conflito, isto é, o médio
círculo.
Ao improvisar o etiud o ator deve tornar concretos os círculos de atenção
grande, médio e pequeno, por meio da imaginação, nos diferentes momentos
de sua ação. (...) Ao recorrer a essas imagens concretas, situadas na
totalidade da obra, por meio dos círculos de atenção, o ator concretiza a
imaginação através da ação. (DAGOSTINI)295
A consciência desses círculos de atenção ajuda a orientar o ator em sua criação durante
a improvisação do etiud, de modo a tornar a sua ação concreta, com imagens e focos de
atenção claros e precisos no momento presente, evitando uma atuação geral.
Para a realização da análise ativa é necessária uma verdadeira desconstrução da obra
para, em uma segunda etapa, passar ao processo de recriação pelo ator e montagem do
espetáculo pelo diretor. Como ressalta Nair D‟Agostini, na decomposição da obra é exigido
do diretor conhecimento profundo da natureza humana, imaginação e capacidade analítica.
Em uma segunda etapa, é preciso liberdade criativa por parte dos atores na improvisação dos
etiuds, na investigação da ação, e domínio do diretor sobre a arte do ator para conduzir esse
complexo processo. Desse modo, cumprindo com essas exigências, é possível entender e
concretizar a obra em seus conflitos em cada acontecimento.
Com essa reflexão e exposição de diferentes caminhos de aplicação do etiud,
entendemos que esses caminhos mais se assemelham e se complementam do que se opõem.
295
Esta citação é parte da entrevista realizada com Nair D‟Agostini em abril de 2011.
121
Assim, compreendemos que a prática do etiud possui alguns princípios gerais na sua
aplicação: a ação, o seu desenvolvimento lógico e coerente; as circunstâncias; os
acontecimentos; o estabelecimento do conflito nas relações entre as personagens; a geração da
palavra em cena pela improvisação dos atores; o ator como agente criativo e o diretor como
condutor desse processo. Estes são exemplos de elementos e princípios que fazem parte da
essência do método da análise ativa desenvolvido por Stanislávski e seus seguidores.
Finalizamos este estudo com a seguinte afirmação de Stanislávski durante as aulasensaios sobre Hamlet, de William Shakespeare, no Estúdio de Ópera Dramática, em 26 de
outubro de 1937:
(...) através de simples ações físicas vocês conseguem acordar a inteligência,
a vontade e o sentimento e fazê-los trabalhar. Quando vocês os puxarem,
surge o sentimento de verdade e a imaginação. Uma vez que há imaginação
e sentimento de verdade, significa que surge a crença. Atraindo, no trabalho,
toda sua vida psicológica, vocês estendem a linha, que necessitam. (...)
Vocês têm possibilidade de trabalhar qualquer peça pela linha física, fazer
études em qualquer linha da peça (...).296 (STANISLÁVSKI)
296
STANISLÁVSKI, K. apud DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para
a leitura do texto e da criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São
Paulo, FFLCH, São Paulo, 2007, p.127.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
(...)
A expressão reta não sonha.
Não use o traço acostumado.
A força de um artista vem de suas derrotas.
Só a alma atormentada pode trazer para voz um formato de pássaro.
Arte não tem pensa:
O olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê.
É preciso transver o mundo.
Isto seja:
Deus deu a forma. Os artistas desformam
É preciso desformar o mundo:
Tirar da natureza as naturalidades.
Fazer cavalo verde, por exemplo.
Fazer noiva camponesa voar - como em Chagall (...).
(MANUEL DE BARROS)297
Na trajetória de realização deste estudo constatamos a necessidade intrínseca à arte do
ator de se desformar, desconstruir, abrindo espaços vazios para criar, transver, imaginar. Não
havendo receita para essa desconstrução e tampouco para o uso da imaginação. O que pode
existir é a busca contínua e infinita pela consciência de si mesmo e dos princípios a
desenvolver, em um processo que será diverso para cada artista. Um corpo/mente que age no
espaço com autonomia criativa, “cavalo verde”, noiva camponesa a voar. Como nos diz
Tovstonógov, não se pode “exercitar e desenvolver a imaginação usando a cabeça de outra
pessoa” 298
O trabalho de Stanislávski, de certa forma, ficou associado na visão de muitos a uma
realização cênica realista ou naturalista. A investigação sobre o método das ações físicas, a
análise ativa e a criação por meio de etiuds nos prova que as pesquisas do mestre russo foram
muito além de uma proposição estética. Os princípios do “sistema” de Stanislávski
continuaram em um processo de desenvolvimento, por meio de práticas pedagógicas e
artísticas de seus herdeiros diretos e indiretos, numa constante tentativa de não fechá-los em
uma fórmula ou receita. Cada artista, em uma jornada de descoberta pessoal, precisa
desenvolvê-los em si mesmo abrindo seus próprios caminhos. Por isso, os ensinamentos do
“Trabalho do ator sobre si mesmo” seguem sendo a base de formação e criação de grandes
nomes do teatro até hoje.
297
298
BARROS, M. de. Livro Sobre Nada. 1ªed. Rio de Janeiro: Record, 1996.
TOVSTONÓGOV, G. La profesion de diretor de escena. La Habana: Ed.Arte y Literatura, 1980, p.345.
123
A partir do uso da imaginação objetivada pelas ferramentas da análise ativa,
Stanislávski busca desconstruir a forma, desformar o texto, vê-lo e transvê-lo em suas
entrelinhas, desvendando o mundo imerso sob suas palavras, fazendo nascer uma nova vida,
pelo voo da imaginação, pela “imagem em ação”299. Pois, como o próprio mestre diz o texto
teatral, literário, traz uma forma pronta/final, impressa no papel.
É preciso quebrar a casca do texto enformado, a casca dos bloqueios, dos hábitos e dos
preconceitos, para voar, para criar. Como na citação que Andrea Copeliovitch faz de Hermann
Hesse: “Quem quiser nascer tem de destruir um mundo.”300 Dessa perspectiva, Copeliovitch
questiona:
Que mundo é esse que eu quero quebrar? (...) Que definições que dão um
ponto final ao caminho do pensamento, ao caminho do criador? Como
quebrar esse ovo de ilusões, essa casca que vai se fechando ao redor de nós e
que nos faz com-formar (formar conjuntamente, concordar sobre a forma) o
mundo tal qual o vemos? (COPELIOVITCH)301
E se for possível destruir/quebrar esse mundo, o ator chegará a sua própria essência
vital, à integral disponibilidade criativa e imaginativa?
Segundo a autora é preciso esvaziar o espaço interno do ator para que este possa dar
uma vida inteiramente nova à sua criação cênica, fazer nascer um mundo a partir da obra em
si mesmo.
“Que mundo é esse que eu quero quebrar?”
Em seus escritos, o filósofo e escritor franco-argelino Jacques Derrida (1930-2004)
busca desconstruir um mundo de conceitos e princípios legitimados como verdade pelas
estruturas de pensamento da sociedade.
Com relação ao pensamento que tenta se assegurar a partir de conceitos e princípios,
Mónica Cragnolini coloca a questão da desconstrução derridiana como “um constante
tremor”302, para ela:
299
Utilizando o termo do Prof. Dr. Manuel Antônio de Castro.
HESSE, H. apud COPELIOVITCH, A. O ator guerreiro frente ao abismo. Natal: Edufrn, 2009, p.40.
301
COPELIOVITCH, A. O ator guerreiro frente ao abismo. Natal: Edufrn, 2009, p.40.
302
CRAGNOLINI, M. Temblores del pensar: Nietzsche, Blanchot, Derrida. Publicado en «Pensamiento de los
Confines», Buenos Aires, número 12, junio de 2003, pp. 11-119. Edición digital de Derrida en Castellano. In
http://www.jacquesderrida.com.ar/comentarios/temblores.htm (Tradução nossa)
300
124
Enquanto que o discurso hegemônico da tradição ocidental pretende que o
edifício seja seguro, que seus cimentos sejam sólidos, a desconstrução torna
patente a incerteza303. Deste modo, põe em xeque as certezas, as noções de
verdadeiro e falso, as oposições de forma e profundidade, ou forma e
conteúdo, os supostos centros e origens. (CRAGNOLINI)304
Se os conhecimentos fazem parte de uma realidade que foi construída pelo homem,
pela tradição ocidental, por meio de acordos que permitem que a convivência entre os homens
se realize mais ou menos harmonicamente, no sentido de afirmar as experiências que deram
certo e evitar ou descartar o que fracassou, essas experiências de sucesso são as estruturas de
pensamento vistas como viáveis. São elas que vão construindo a nossa realidade. O homem
torna-se então um construtor de conhecimento, construindo e reconstruindo permanentemente
a sociedade e suas representações de modo equilibrado e controlado. O homem perpetua essas
verdades que chegam prontas através da história e também os novos conhecimentos que são
produzidos, desconsiderando o que não pode ser enquadrado.
De acordo com Friedrich Nietzsche (1844-1900):
Esta armadura e este chão gigantesco dos conceitos, aos quais o homem
necessitado se agarra durante a vida para assim se salvar, não é para o
intelecto liberado senão um andaime e um joguete para suas obras de arte
mais audaciosas; e quando ele o quebra, o parte em pedaços e o reconstrói
juntando ironicamente as peças mais disparatadas e separando as peças que
se encaixam melhor, isto revela que ele não precisa mais daquele expediente
da indigência e que não se encontra mais guiado pelos conceitos, mas pelas
intuições. (NIETZSCHE)305
Conforme Rafael Haddock-Lobo306, Derrida afirma que temos contato com os rastros
das coisas, nunca com a “coisa em si”, em um mundo em que tudo se configura como
possibilidade (abertura), nada como verdade (fechamento).
De acordo com a leitura de Haddock-Lobo, a desconstrução proposta por Derrida é
como um “labirinto estranho e assimétrico” 307 no qual “são muitas as portas de saída e de
303
Grifo nosso.
CRAGNOLINI, M. Temblores del pensar: Nietzsche, Blanchot, Derrida. Publicado en «Pensamiento de los
Confines», Buenos Aires, número 12, junio de 2003, pp. 11-119. Edición digital de Derrida en Castellano. In
http://www.jacquesderrida.com.ar/comentarios/temblores.htm (Tradução nossa)
305
NIETZSCHE,
F.
Sobre
Verdade
e
Mentira
no
Sentido
Extra-moral.
In
http://pt.scribd.com/doc/56671019/Nietzsche-Sobre-a-Verdade-e-a-Mentira-No-Sentido-Extra-Moral
306
HADDOCK-LOBO, R. Derrida e o labirinto de inscrições. Porto Alegre: Zouk, 2008.
307
HADDOCK-LOBO, R. Derrida e o labirinto de inscrições. Porto Alegre: Zouk, 2008, p.11.
304
125
entrada, infinitas”.308
São muitas as influências de Nietzsche no pensamento de desconstrução derridiano.
Para Nietzsche, no decorrer da história o homem construiu as estruturas de pensamento e as
tomou como verdade, esquecendo que elas foram inventadas por ele. E assim, determinadas
verdades construídas vão se perpetuando de geração em geração como se fossem verdades
autênticas. Nietzsche acredita no caráter parcial de todo conhecimento, não na verdade
absoluta. Derrida acredita nas possibilidades.
Entendemos que por meio da consciência artística podemos adquirir a percepção de
que a vida é composta de realidades possíveis e de que vivemos a partir de interpretações
dessas possibilidades. A arte não almeja estruturar a sua experiência criativa como viável para
a construção de uma realidade cotidiana e tampouco é regida pelas normas do senso comum
do que é viável ou não. A arte proporciona abertura para um mundo em que os fracassos e as
fraquezas não precisam ser evitados ou eliminados. O risco que estes oferecem ao equilíbrio
das estruturas de conhecimento instituídas pelos acordos é parte do próprio movimento
criativo. Pensando desse modo, talvez o mundo vivenciado na arte possa ser mais vivo e
verdadeiro do que o chamado “mundo real”. A arte faz “cavalo verde”.
Também para Antonin Artaud, o teatro se constituía no único lugar possível para o
alcance de uma vivência plena, longe das limitações do cotidiano. Para ele, a arte precisa ser
viva. Artaud buscava atingir e envolver o público pela força das sensações, das imagens, dos
sons, de modo a produzir tremores309 em suas convicções mais estabelecidas.
E, da mesma forma, para Stanislávski a arte precisava ser viva. Estudando a sua obra
encontramos a desconstrução na base de sua metodologia; desconstrução como abertura de
possibilidades e interpretações, pela ausência de verdades fixadas como absolutas.
Esta pesquisa busca apontar dois tipos de desconstrução em Stanislávski, no trabalho
do ator sobre si mesmo e no trabalho sobre o texto, que buscam o encontro da vida poética
daquilo que não está estruturado ou aparente.
Quando Stanislávski propõe a desconstrução da obra a partir da análise ativa
encontramos “escombros” e as possibilidades que existem embaixo deles. Conforme nos fala
Nietzsche, quando o homem quebra a sua armadura e desconstrói a segurança de seu chão de
conceitos em busca de algo vivo, esses escombros acumulados ao longo da vida não mais se
308
309
HADDOCK-LOBO, R. Derrida e o labirinto de inscrições. Porto Alegre: Zouk, 2008, p.11.
Termo utilizado pela Profª. Drª. Mónica Cragnolini.
126
constituem como limitações para ele, mas se tornam impulsos para a manifestação artística. É
nesse sentido que relacionamos Derrida, Nietzsche e Artaud a Stanislávski.
Da mesma forma que o substantivo razbor310, a análise ativa reúne em uma mesma
ideia as características de desconstrução e de composição dinâmica, ou seja, não se cristaliza
em formas, se realiza pelo contínuo movimento criativo do ator. Em um processo que permite
desmembrar e recriar a obra, recriação que deve conter um movimento vivo, isto é, um
movimento permanente de recomposição, de revivescência, em cada momento, em cada
apresentação.
Stéphane Poliakov, em sua reflexão acerca do trabalho criativo de Vassiliev, relaciona
composição e jogo, destacando que além de dar sentido ao texto, a análise é necessária
sobretudo para colocá-lo em ação pelo jogo cênico, pela criação do ator.311 Jogo cênico e
criação que, em Stanislávski, são guiados pelos elementos desvendados na análise da ação da
obra. O jogo abriga o inusitado.
Ressaltamos que os elementos encontrados por meio da análise ativa não devem ser
fixados como verdades absolutas. Uma mesma obra pode ter variações em cada análise que é
feita sobre ela, a análise depende da individualidade criativa de quem analisa, quando analisa,
está ligada a sua maturidade artística, referências históricas, culturais, filosóficas, bem como,
as suas experiências afetivas e sociais.
A análise ativa promove uma abertura na obra e, por meio dessa abertura, torna-se
possível enxergar com mais clareza o movimento contido na obra, suas motivações e
oposições, e transpor/transver as verdades aparentes que podem constar na superfície do texto.
A partir disso, o jogo do ator pode acontecer com maior liberdade corporal e imaginativa na
investigação das possibilidades cênicas que formarão a composição artística da cena.
Dessa forma, entendemos que a ação física é uma estrutura viva, em movimento,
porque é ação, assim como a imaginação, que se forma e em um instante desaparece, em um
constante movimento de desconstruir, abrindo espaços para suas possibilidades inesperadas, e
compor, tornando a se desconstruir. Formando, assim, um processo verdadeiramente vivo e
criativo proporcionado pelo método de análise ativa que, segundo nos diz Tovstonógov, exige
do ator espontaneidade e capacidade para a improvisação. E nos alerta que:
310
311
Vide p.85.
POLIAKOV, S. Anatoli Vassiliev: L‟art de la composition. França: Actes Sud, 2006, p.65. (Tradução nossa)
127
Um ator provido de uma crosta dura de hábitos e reflexos desenvolvidos,
conta com seus próprios critérios fixos como meios para representar a vida
em cena, e se mostra incapaz ou resistente a aceitar o princípio da
improvisação vivaz. Ele se ajusta ao texto, às palavras, e ainda que não
exteriorize abertamente nenhum protesto contra a orientação das relações e
das circunstâncias, na realidade não está habilitado para trabalhar conforme
o método. (TOVSTONÓGOV)312
As buscas de pesquisadores como Maria Knébel, Gueorgui Tovstonógov, Anatoli
Vassiliev, Jerzy Grotowski, Peter Brook e Eugênio Barba confluem pela retirada de bloqueios
convenções para a revelação da organicidade e da criação autêntica, a grande questão
proposta por Stanislávski.
Sublinhamos novamente que: Stanislávski, a partir do trabalho do ator sobre si mesmo,
busca desconstruir o ator libertando-o das convenções, dos estereótipos construídos em cada
um; Grotowski busca o desvelamento do ator, a essência do homem/ator por um caminho de
eliminação, o que relacionamos com uma via de desconstrução; Brook aponta um caminho de
demolição, no qual trata da necessidade de criar um “espaço vazio” de abertura criativa;
Barba, por meio da antropologia teatral, desconstrói, separa princípios expressivos que
considera essenciais à manifestação artística do homem para recriá-los na composição de uma
segunda natureza.
Buscamos Derrida, ao se referir a Artaud: “O teatro da crueldade não é uma
representação. É a própria vida no que ela tem de irrepresentável. A vida é a origem não
representável da representação.”313
A vida, portanto, sendo irrepresentável só pode ser vivenciada, experienciada. Derrida
tenta situar a sua escrita “no espaço onde se coloca a questão do dizer e do querer-dizer”314
e, para ele, o importante é que “a escrita literalmente não-queira-nada-dizer.”315 “E, no
entanto, que ela, com isso, diga tanto...”316, reflete Haddock-Lobo. O ator também deve
apenas viver sua ação pela integralidade psicofísica sem se preocupar em dizer ou expressar
algo.
312
TOVSTONÓGOV, G. La profesion de diretor de escena. La Habana: Ed.Arte y Literatura, 1980, pp.384-385.
DERRIDA, J. A escritura e a diferença. São Paulo: Perspectiva, 1995, p.152.
314
DERRIDA, J. Posições. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p.20.
315
Ibidem, p.20.
316
HADDOCK-LOBO, R. Derrida e o labirinto de inscrições. Porto Alegre: Zouk, 2008, p. 26.
313
128
“Se o ator se expressa, é porque ele deseja expressar-se. E assim surge novamente a
divisão. Há uma parte do ator que ordena e uma parte que executa as ordens. A expressão
verdadeira, poder-se-ia dizer, é a de uma árvore.”317
Para Grotowski, quando o ator deseja se expressar, ele já está dividido e não colocado
de corpo e mente na cena, ou seja, uma parte dele faz e a outra parte expressa. A árvore não
quer ser, não parece ser, simplesmente é, existe.
Stanislávski busca restaurar na cena a integralidade psicofísica que possuímos na vida.
Na vida não objetivamos expressar, expressamos porque vivenciamos nossas ações “no aqui e
no agora”. Para Derrida, cada leitura deve ser inventada no momento em que se lê, assim
como cada ação na cena, para Stanislávski, deve ser vivenciada no momento em que é
realizada, como se estivesse sendo improvisada/inventada pelo ator naquele exato momento,
ou seja, gerada pela imaginação.
A arte do ator deve ser a arte do eterno refazer, arte que se desfaz a cada instante e
assume os rastros, pois sobrevive neles, nas impressões. Natureza é fluxo de vida, fluxo que é
transformação. A arte teatral, para Stanislávski, para Artaud e para os seus seguidores e
pesquisadores, se alimenta desse mesmo fluxo inerente à natureza humana. A arte do ator
exige integridade psicofísica na vivência da ação e necessita de “eterna vigília, eterna
prontidão”318 para uma contínua desconstrução das formas que insistem em se fixar.
Enxergamos na arte da vivência a possibilidade de desconstrução das “verdades” construídas
em si mesmo, em um eterno ato de criação, desconstrução e recriação.
As investigações de Stanislávski na arte teatral são grandiosas, contemplam não
apenas a busca artística, mas princípios e meios pedagógicos e uma noção ética que devem
abranger tanto o trabalho criativo quanto a conduta na vida. “O que posso fazer para conduzílos a um conhecimento mais elevado do trabalho criativo sobre a cena e também na vida?”319
Questiona o mestre russo, apontando para a necessidade do ator de adquirir consciência sobre
si mesmo, consciência que se estende para além da vida cênica:
317
GROTOWSKI, J. in BARBA, E. & SAVARESE, N. A arte secreta do ator: dicionário de antropologia
teatral. São Paulo: Hucitec; Campinas, SP: Editora da UNICAMP 1995, p.237. Grotowski se refere ao problema
do logos e bios, em que “logos está ligado ao raciocínio descritivo, analítico. (...) Logos e bios representam
divisão e, portanto, é muito perigoso falar da expressividade do ator.” (Ibidem, p.237)
318
Segundo a leitura do Prof. Dr. Rafael Haddock-Lobo sobre a questão da desconstrução em Jacques Derrida, a
desconstrução é “destranquilizante”, não está amparada e acolhida por um pensamento que quer chegar a uma
verdade una, fixa, é “eterna vigília, eterna prontidão”. (HADDOCK-LOBO, R. Derrida e o labirinto de
inscrições. Porto Alegre: Zouk, 2008, p. 26)
319
STANISLÁVSKI, K. Etica y disciplina/Metodo de acciones fisicas (Propedéutica del actor). Seleção e notas
de Edgar Ceballos. México: Grupo editorial Gaceta, 1994, p. 89. (Tradução nossa)
129
Antes de começar a me concentrar sobre um papel específico, antes de
pensar na criação do círculo de atenção no qual tenho que fazer entrar estas
ou aquelas “circunstâncias dadas” do papel, tenho primeiro que libertar a
mim mesmo das diferentes crostas e capas de minha vida privada que
carrego320 até o momento em que comecei o trabalho criativo.
(STANISLÁVSKI)321
Nessa busca que se dava “em nome de questões superiores da arte” para a criação do
“espírito humano na cena”, Stanislávski voltava especial atenção ao início da formação do
ator. Para ele, “os mestres de atuação tem de mostrar com o próprio exemplo como o amor
sobre a profissão pode influenciar o trabalho cotidiano. E como este trabalho criativo pode e
deve arder como um fogo vivo”322, para alcançar uma arte verdadeira, “livre de toda a
convenção e obtida pelas forças criativas que cada um tem de desenvolver em si mesmo” 323.
Stanislávski salienta o desenvolvimento dos elementos do “sistema” na totalidade do ator,
contemplando precisão e espontaneidade para transmitir a sinceridade em sua atuação. E para
isso, ele propõe que o ator treine diariamente, tornando esses elementos presentes e vivos em
seu corpo, de modo a alimentar continuamente a segunda natureza.
Para Andrea Copeliovitch, conforme a sua leitura de Artaud, “o ator é um atleta
afetivo, que através do rigor com que trabalha o seu corpo, desvela para o espectador o
invisível”.324 De acordo com ela, a técnica é o espaço de segurança para que o ator realize o
salto no abismo que é arder como “fogo vivo” em cena 325:
Somos lançados nesse aberto em que se dá a tensão entre inesperado e
preciso, entre a disciplina e a fúria do guerreiro, com os quais o ator tenta
lidar (já disse Artaud que o mais difícil para um ator é não cometer um
assassinato...). (COPELIOVITCH)326
É essa tensão entre o inesperado e a técnica do ator que garante que o “fogo vivo” de
que fala Stanislávski possa acontecer na cena sem incendiar o teatro. É possível que
320
Grifo nosso.
STANISLÁVSKI, K. Etica y disciplina/Metodo de acciones fisicas (Propedéutica del actor). Seleção e notas
de Edgar Ceballos. México: Grupo editorial Gaceta, 1994, p. 89. (Tradução nossa)
322
Ibidem, p. 83.
323
Ibidem, p. 83.
324
COPELIOVITCH, A. O ator guerreiro frente ao abismo. Natal: Edufrn, 2009, p.99.
325
Comentário de orientação.
326
COPELIOVITCH, A. O ator guerreiro frente ao abismo. Natal: Edufrn, 2009, p.114.
321
130
Stanislávski tenha sido o primeiro a propor o termo partitura para o trabalho do ator.327
Relembramos o trabalho sobre a técnica da ação com objetos imaginários, o qual fazia parte
da chamada toalete do ator, considerada por Stanislávski uma necessidade diária que garantia
ao ator a organicidade e a consciência sobre a precisão, lógica e coerência de todos os
momentos constituintes da ação dentro de uma partitura. Em Artaud a precisão da partitura
de ações foi idealizada com o rigor do atleta afetivo. Dentro disso, a grande questão é a vida, e
para obter essa vida é preciso uma desconstrução de si, um treinamento, um rigor, para a
construção de uma segunda natureza que proporcione essa vida viva em cena.
Ryszard Cieslak (1927-1990), ator do Teatro Laboratório de Grotowski, fala da
importância da segurança e do rigor da partitura de ações em seu trabalho. Para ele, ao contar
com o caminho seguro da partitura, a chama da vida, da imaginação, pode se manifestar
plenamente em seu corpo/mente. Ele compara, assim, a partitura de ações com um vaso de
vidro no qual se encontra uma vela acesa:
O vidro é sólido, está ali, pode confiar. Contém e guia a chama. Porém não é
a chama. A chama é meu processo interior cada noite. A chama é o que
ilumina a partitura, o que o espectador vê através da partitura. A chama está
viva. Assim como a chama atrás do vidro se move, flutua, cresce, diminui,
está por apagar-se e de repente brilha com força, reage a cada sopro de
vento, também minha vida interior varia cada noite, de momento em
momento... Cada noite começo sem antecipar nada. Esta é a coisa mais
difícil de aprender. (...) Quero somente estar pronto para o que poderá
acontecer. E me sinto pronto a me entregar ao voo (imaginação)328, o que
poderá acontecer, se me sinto seguro em minha partitura, sei também que
quando não sinto quase nada, o vidro não se romperá, porque a estrutura
objetiva, trabalhada por meses me ajudará. Mas quando vem o momento em
que posso arder, brilhar, viver, revelar, então estou pronto porque não o
antecipei. A partitura é a mesma, porém cada coisa é distinta, porque eu sou
distinto. (CIESLAK)329
Como esclarece Tatiana Motta Lima 330, devemos considerar que a „estrutura‟, em
Grotowski, não deve ser colocada separadamente da „espontaneidade‟331 ou da sua „linha
orgânica‟, esta tendo como referência Stanislávski. Para Motta Lima:
327
Vide PAVIS, P. apud MARINIS, M. De (a cura di) Drammaturgia dell‟Attore. Bolonha: I Quaderni del
Battello Ebbro, 1997, p.63.
328
Grifo nosso.
329
In TAVIANI, F. Ryszard Cieslak, in Memorian (1927-1990). Revista Máscara, n.16. México: Escenologia,
1994, p.22.
330
MOTTA LIMA, T. Conter o incontível: apontamentos sobre os conceitos de „estrutura‟ e „espontaneidade‟
em Grotowski. Sala Preta – Revista de Artes Cênicas. Departamento de Artes Cênicas da Escola de
131
A „estrutura‟ é uma espécie de canalização que configura uma dada
experiência e, ao mesmo tempo, traz em seu bojo a possibilidade de
aprofundamento dessa experiência que terá sempre, porque experiência, um
dado de risco, de desconhecimento, de inconsciência. ” (MOTTA LIMA)332
A estrutura proporciona segurança para a abertura de possibilidades, apoio para o ator
enfrentar o desconhecido, a dose de mistério que existe na manifestação da chama de sua
vivência.
Apontando a grande precisão e, ao mesmo tempo, sensação de improviso que havia no
espetáculo “O príncipe Constante”, de Grotowski, Motta Lima reflete que: “o exemplo
precisa ser reenviado à prática de cada um: perceber que, talvez, não seja o momento de
„fechar‟ excessivamente uma „partitura‟, mas de deixá-la, ainda, „aberta‟ às descobertas.”333
Ou seja, manter esse fogo vivo.
Segundo Franco Ruffini:
(...) improvisar não é difícil. Repetir é difícil. Ser ator, não da improvisação,
mas da repetição. A improvisação vem antes, mas o que vocês devem fazer
todas as noites é a repetição. Não a repetição morta. A repetição
improvisando dentro da repetição. (RUFFINI)334
O ator não deve fixar as formas, porque a imaginação, a criação, a vida não são fixas.
É preciso “eterna vigília, eterna prontidão” para alcançar uma adaptação viva no momento da
ação. Cada vez que usamos elementos que aparentemente servem para compor realizamos,
simultaneamente, o movimento oposto, de decompor.
De acordo com Nair D‟Agostini:
Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo, n.5, pp.47-67, 2005, p.52. In
http://www.eca.usp.br/salapreta/PDF05/SP05_05.pdf
331
Tatiana Motta Lima cita que o conceito de „espontaneidade‟ começa a aparecer nos textos de Grotowski após
o espetáculo Shakuntala (1960), até então as estruturas com as quais o pesquisador trabalhava eram precisamente
elaboradas, mas careciam de vida interna.
332
MOTTA LIMA, T. Conter o incontível: apontamentos sobre os conceitos de „estrutura‟ e „espontaneidade‟
em Grotowski. Sala Preta – Revista de Artes Cênicas. Departamento de Artes Cênicas da Escola de
Comunicações e Artes - Universidade de São Paulo, n.5, pp.47-67, 2005, pp.62-63. In
http://www.eca.usp.br/salapreta/PDF05/SP05_05.pdf
333
Ibidem, p.65.
334
RUFFINI, F. Seminário Internacional "Teatro em Fim de Milênio”. Palestra proferida por Franco Ruffini em
Porto Alegre – RS, em agosto de 1994.
132
Para manter o processo vivo orgânico em cena, sempre com novas
adaptações, dentro de uma partitura de ações já determinada, há a exigência
constante, por parte do ator, de buscar novas „iscas‟, que desencadeiem,
estimulem e renovem a criação sem se desviarem de seu objetivo cênico e da
precisão da ação. (DAGOSTINI)335
Para Stanislávski, é preciso jogar (igrát‟) sem bloqueios, reagindo às “iscas” que
surgirem, permitindo que a força criativa que se encontra na natureza de cada ator o leve a
realizar adaptações vivas, não limitadas por seu lado racional, mas experienciadas de corpo e
mente no momento da ação. A força da adaptação reside no jogo vivo, que surpreende, no
ajuste inesperado.
Nesse sentido, retomamos o exemplo de Stanislávski, citado anteriormente, dos
elementos e ferramentas que constituem o “sistema”, especialmente a ação física, como sendo
a pista segura e consciente de onde decola o avião, ou o trilho por onde é guiado o trem. A
partir desse caminho seguro e harmônico entre o conhecido e o desconhecido, trilhado pelo
ator, a espontaneidade da criação, a imaginação e a vida podem se manifestar livremente.
Mas essa pista, ou trilho, não se encontra pronta para a utilização do ator. Enquanto
obra, formada de acontecimentos e de ações, ela precisa ser desvendada e recriada a cada vez,
por meio da partitura de ações, pelo ator. E como arte do instante, que é o teatro, ao mesmo
tempo em que as ações são recriadas e vivenciadas, se esvaem, desaparecendo até a próxima
recriação ou “repetição”.
Assim, a desconstrução de que falamos é também composição, pois necessita de uma
partitura de ações, como pista segura para manifestar o voo da imaginação no trabalho do
ator. O ator precisa da constituição de uma segunda natureza que permite flexibilidade mental
e corporal para criar e recriar constantemente as invenções da imaginação e a capacidade de
se adaptar ao inusitado do jogo, a cada vez.
“É preciso transver o mundo. (...) É preciso desformar o mundo”.
Como no mundo surpreendente do sonho de Alice, é como se a grama não se mexesse
com o vento, mas farfalhasse pelo andar apressado do coelho branco.
335
DAGOSTINI, N. “O Método de Análise Ativa de K. Stanislávski como base para a leitura do texto e da
criação do espetáculo pelo diretor e ator.” - Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo, FFLCH, São
Paulo, 2007, p.84.
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139
APÊNDICES
140
APÊNDICE A - Exercício de variação de velocidades
Relacionamos o exercício de variação de velocidades com o tema de nossa pesquisa: a
desconstrução e a concretude da imaginação no corpo/mente do ator.
O exercício de variação de velocidades foi elaborado por Nair D‟Agostini e possui em
sua base os princípios e elementos agregados na prática do elemento tempo-ritmo. Conforme
D‟Agostini, o tempo-ritmo adquiriu grande ênfase nas últimas pesquisas de Stanislávski. O
mestre russo percebeu que pelo exercício deste elemento o ator tinha a possibilidade de
conjugar e experienciar todos os demais elementos do “sistema”.
A partir da incorporação técnica do exercício de variação de velocidades é possível
utilizá-lo como meio de criação de ações físicas e de etiuds.
Ressaltamos a importância de se compreender essa técnica como uma experiência
prática a ser adquirida. Esta é a única maneira de assimilá-la e compreendê-la, não havendo
uma forma estabelecida de como se deve proceder após a sua absorção. A utilização dessa
técnica depende da criatividade e individualidade artística de cada um.
O exercício começa com a prática corporal consciente do simples andar, observando
que esse movimento seja realizado colocando primeiramente o calcanhar e depois a ponta do
pé em contato com o chão. Nesse andar pelo espaço são trabalhadas basicamente nove
velocidades. A primeira velocidade deve ser executada dentro do tempo-ritmo de um passo a
cada cinco segundos. As velocidades subsequentes seguem a mesma medida de tempo, isto é,
cinco segundos, e o número de passos não pode ser múltiplo da medida de tempo. Dessa
forma, o ritmo varia pela quantidade de passos dados dentro dessa medida fixa de tempo, na
execução do andar. Assim, por exemplo, na velocidade nove o ator deve realizar de dezoito a
dezenove passos em cinco segundos. Pelo treino, na execução do andar dentro dessas
variações rítmicas, o ator deve alcançar o fluxo contínuo do movimento.
Remetemo-nos assim, à necessidade apontada por Stanislávski de que o ator deve
reaprender a andar, tornando este ato consciente, em todo o seu mecanismo.
Após o ator alcançar o fluxo do movimento em cada dinâmica pelo andar, dentro de
cada velocidade, podem ser experimentadas outras ações simples como sentar, levantar,
deitar, rolar e subir (em cadeiras, bancos). Cada uma dessas ações deve ser realizada dentro da
velocidade estabelecida mantendo o controle muscular na execução da ação. O ator tem de
encontrar formas de organizar as tensões e o seu fluxo contínuo, sem quebras e sem a
141
utilização de movimentos desnecessários na execução da ação. Por exemplo: levantar ou
sentar sem apoiar as mãos no chão.
Gradativamente, pela absorção da técnica desse exercício, o próprio corpo vai
percebendo quais músculos devem ser acionados para executar determinada ação física, a
cada momento, e a necessidade da sua variação dinâmica. Como também, tornam-se
perceptíveis quais são as tensões e movimentos desnecessários, isto é, o que é possível
eliminar e desbloquear fisicamente. Dessa forma, o ator, conscientemente, controla e lapida o
seu movimento permitindo diferentes dinâmicas em seu fluxo ininterrupto, dando qualidade à
ação.
Constatamos que a apropriação física consciente e atenta do exercício de variação de
velocidades gera no ator sensações e estados de ânimo que, continuamente, remetem a
associações imagéticas correspondentes, estas variam de acordo com a ação e ritmos
experienciados. Por exemplo, na segunda velocidade, cuja dinâmica é de dois passos a cada
cinco segundos, o ator pode experimentar sensações e estados de ânimo que remetam a
imagens, e à própria atmosfera, da realização de um ritual.
Consideramos que o exercício consiste em uma técnica objetiva que deve ser
dominada pelo ator. O ator tem de incorporar em si cada uma das nove velocidades, iniciando
pela execução do andar e evoluindo a outras ações simples e complexas. O domínio desta
técnica deve acontecer a tal ponto que o ator não precise mais pensar sobre a quantidade de
passos realizados em cada medida de tempo. O objetivo perseguido com esse exercício é que
cada dinâmica e ação física se transforme em uma segunda natureza no corpo do ator,
ajudando-o a constituir um corpo consciente de seu aparato psicofísico para que possa
concretizar a imaginação em seu corpo. A própria absorção da técnica vai proporcionar a
consciência e a total liberdade de experimentação, improvisação e criação em infinitas
possibilidades de variação tempo-ritmicas e de ações físicas, nas mais diversas combinações
conforme o jogo vivenciado em cada momento. A partir dessa consciência de corpo e mente e
a liberdade de movimentos, o ator se coloca em estado de constante prontidão, aberto às
possibilidades criativas que podem surgir na cena.
Após adquirir esse domínio em si, o ator está apto para criar e entrar em relação com
seus objetos de atenção em cena. Aqui a variação de velocidades e ações deve ser
impulsionada pela interação com outros atores, objetos reais e imaginados, circunstâncias, o
142
espaço e suas limitações. A partir da incorporação dessa técnica, é possível tornar o
corpo/mente mais disponível para criar, abrindo a sua imaginação e percepção ao jogo cênico.
Essa técnica pode ser desenvolvida como treinamento/aprimoramento do corpo/mente
do ator em relação aos elementos do “sistema” de Stanislávski, como também pode ser
aplicada na criação cênica de etiuds e espetáculos.
A partir da vivência com o exercício de variação de velocidades em processos
criativos, observamos que tanto os movimentos corporais provindos desse exercício podem
influenciar no estímulo da imaginação quanto às imagens formadas no corpo/mente durante a
realização da variação rítmica do movimento podem influenciar na criação.
Constatamos que esse exercício oferece possibilidades criativas, ricas em plasticidade
e imagens cênicas, surpreendentes, pois contam com a improvisação, isto é, com a adaptação
do ator ao momento do jogo.
O fato do ator se colocar em sua totalidade de corpo e mente na execução do exercício
de variação de velocidades o leva a um estado criativo, uma presença cênica, em que suas
imagens, sensações, emoções, respiração e energia corporal se transformam organicamente no
processo da criação. A criação parte de uma base concreta, isto é, a variação rítmica na
realização de ações físicas. A partir de uma base objetiva, o exercício de variação de
velocidades ativa e expande a imaginação do ator em possibilidades criativas, associações
provindas do seu “depósito” de imagens, pensamentos e memórias, que é acionado em reação
as circunstâncias e objetos de atenção, em um processo que gera novas respostas de corpo e
mente, desde as sutis, mesmo imperceptíveis, até as mais visíveis e explosivas.
143
APÊNDICE B – Descrição de parte do processo criativo do experimento cênico
realizado com o conto “A feiticeira”, que teve o exercício de variação de velocidades
como base técnica para a criação de etiuds
Concomitantemente ao nosso estudo teórico, realizamos uma prática experimental de
criação de etiuds a partir do conto “A feiticeira”, de Anton Tchekhov 336, tendo como base
técnica o exercício da variação de velocidades. Essa experimentação foi estruturada
cenicamente por etiuds que foram realizados sobre cada acontecimento presente na análise
ativa exposta anteriormente. Os etiuds foram criados por meio da improvisação de ações
físicas no estabelecimento de relação entre os atores.
Salientamos que a descrição e a reflexão sobre essa prática não tem por objetivo
exemplificar o estudo teórico realizado ao longo deste trabalho, devendo ser vista e
compreendida como uma experiência que buscou gerar impressões, percepções e reflexões.
Para objetivarmos a reflexão sobre essa experiência, optamos por enfocar o processo
criativo do etiud do acontecimento sequencial “Sedução”. Para isso, passamos,
primeiramente, à análise dos principais momentos deste acontecimento.
Estabelecemos a circunstância que dá origem ao acontecimento “Sedução” como a
decisão de Saveli em expulsar os forasteiros, dando um basta ao encantamento da mulher pelo
carteiro.
Gerado por essa circunstância, o momento inicial foi denominado “Intimidação”.
Saveli se dirige bruscamente ao carteiro, que está dormindo, intimando-o a ir embora,
alegando a necessidade do cumprimento do seu dever com a mala postal. Nesse momento,
devido ao estado sonâmbulo, o carteiro, por alguns instantes, confunde realidade e miragem, a
agressividade de Saveli e a visão de Raissa:
- Afinal, quando pretendes partir? A mala postal existe para chegar a tempo,
não compreendes? Vou mostrar-te o caminho. (Disse Saveli) O jovem
entreabriu os olhos. Aquecido, prostrado, amolecido pela doçura do primeiro
sono, não totalmente desperto ainda, via, como através de um véu, o colo
branco, o olhar fixo e úmido de Raissa: fechou os olhos e sorriu, como se
tudo aquilo não passasse de um sonho. (TCHEKHOV)337
336
Esse experimento cênico teve a participação dos seguintes atores: Débora de Magalhães, Paula Lafayette,
Paulo Saldanha, Rafael Sieg e Thaís Chilinque. E foi realizado entre março e junho de 2010 no espaço cênico do
“Instituto do Ator”, localizado no centro do Rio de Janeiro – RJ, e contou com duas apresentações públicas no
mês de junho do mesmo ano.
337
TCHEKHOV, A. Contos. Vol. IV. Relógio D‟Agua Editores: Lisboa, 2005.
144
Apesar da pressão de Saveli, o carteiro, ainda sonolento, quer prolongar a sensação de
conforto que está sentindo junto à figura de Raissa: “O jovem ergueu-se, espreguiçou-se e,
sem pressa, vestiu o casaco.” Ao mesmo tempo em que Raissa continua com o firme
propósito de atraí-lo para si: “Raissa olhava seus olhos, como se procurasse sondar-lhe a
alma... – Pelo menos, deviam tomar um pouco de chá...”.
O jovem carteiro responde: “- Bem que eu gostaria. (...) – Mas já está tudo
preparado... É verdade que, de qualquer maneira, já estamos atrasados...”.
Acontece, então, o segundo momento do acontecimento, ou momento fundamental, a
“Súplica” de Raissa: “Então fique – sussurou a mulher, olhos baixos, tocando-lhe a manga...
(...)- Que lindo pescoço! Acariciou-lhe levemente o pescoço, com a ponta dos dedos. Sentindo
falta de resistência, tocou suas mãos, seu colo, seus ombros. – Como és bela! (...) – Fique –
dizia a mulher. – Veja como a tempestade está rugindo”.
Ao ser tomado pelo desejo, o carteiro esquece “todas as coisas do mundo” e isso gera
o terceiro momento, isto é, o momento central, a “Atração”, somente Raissa passa a existir
para ele nesse momento:
Ainda não totalmente desperto, não podendo resistir ao apelo amolecedor de
um sono sadio, o jovem foi tomado subitamente do desejo da mulher
próxima, esquecendo os sacos de cartas, os trens-correios, todas as coisas do
mundo... (...) abraçou a mulher pela cintura e já se debruçava sobre a
pequena lâmpada, para extingui-la... (TCHEKHOV)338
Nesse instante, ocorre o momento final, a “Expulsão”, no qual Saveli interrompe a
sedução e o arranca desse momento intenso com Raissa, concretizando a expulsão do carteiro:
...quando ouviu ruído de botas no corredor e o cocheiro apareceu. Por trás do
ombro do cocheiro, Saveli espreitava. Deixou cair rapidamente os braços,
hesitante. – Tudo pronto – disse o cocheiro. (...) Por um segundo, ficou
imóvel. Depois, sacudiu a cabeça e, completamente desperto, seguiu o
cocheiro. Raissa ficou só. (TCHEKHOV)339
Após a exposição da análise do acontecimento “Sedução”, voltamos ao exercício de
variação de velocidades, nossa base para a criação do etiud que concretizou cenicamente este
338
339
TCHEKHOV, A. Contos. Vol. IV. Relógio D‟Agua Editores: Lisboa, 2005.
Ibidem.
145
acontecimento. Nesse processo, contamos com três atrizes, para o papel de Raissa, e dois
atores, um para o papel de Saveli e outro para o papel do Carteiro.
A partir do momento em que os atores começaram a mostrar certo domínio corporal
com a execução de ações simples em cada velocidade, iniciamos a criação de relação entre
eles e demais objetos de atenção existentes, o espaço, cadeiras e um banquinho.
Caminhando pelo espaço, percebendo um ao outro, reagindo ao mínimo estímulo do
partner e do ambiente, foi sendo criada uma atmosfera de atenção, de troca, de conexão e
inter-relação entre eles, estimulando a imaginação na criação de ações. Foi solicitado aos
atores que as suas ações fossem geradas como reações aos estímulos percebidos nas relações
entre eles. Desse modo, pelo estabelecimento de uma relação atenta, foi possível criar uma
condição de jogo. A partir dessa proposição, durante a improvisação realizada pelos atores,
selecionamos duas sequências de ações criadas por eles, solicitando a repetição das mesmas
logo após o momento em que aconteceram.
Na primeira sequência, o ator, que viria a ser o carteiro, rola no chão com o corpo
esticado e segurando um banquinho, que coloca no chão para uma das atrizes340, passar por
cima dele. A atriz, que está em cima de uma cadeira passa por cima do banquinho e muda a
cadeira de lugar, formando um caminho para passar sem que precise pisar no chão. O ator
gira, continuamente, tirando o banquinho do chão assim que a atriz passa do banco para a
cadeira, tornando a colocá-lo na frente da cadeira, para que ela possa novamente passar e
assim sucessivamente.
Na segunda sequência o ator corre em torno da cadeira na qual a atriz sentou. Ela vai
subindo na cadeira aos poucos, na medida em que ele aumenta a velocidade ao redor, até ela
ficar em pé.
Essas sequências de ações foram utilizadas na estruturação do etiud do acontecimento
“Sedução”.
A partir desse momento, começamos a direcionar a criação dos atores para o conto “A
feiticeira”. Utilizando a variação de velocidades no jogo, nas relações, ações e reações entre
os atores, esse direcionamento foi feito pelo estímulo de verbos de ação.
340
Mais tarde, estabelecemos que as três atrizes fariam conjuntamente o papel de Raissa, por entendermos que,
na atualidade, essa temática da subjugação da mulher se mostra ainda muito presente. O fato de haver três
Raissas para representar um só papel proporciona possibilidades imagéticas que expressam fortemente a carga
dramática do papel e da condição da mulher.
146
Por exempo: depois de estabelecida conexão entre os atores, pelas reações aos
partners e ao ambiente, sugerimos os verbos de ação “atacar” para o ator/Saveli e “defender”
e “impedir” para as atrizes. Desse estímulo foi criado o momento inicial do acontecimento, a
“Intimidação”. Enquanto o ator/Carteiro está adormecido, o ator/Saveli decide mandá-lo
embora, para que Raissa pare de contemplá-lo (enfeitiçá-lo). Ele, então, parte na direção do
ator/Carteiro para acordá-lo e expulsá-lo, as três atrizes tentam impedi-lo. Duas atrizes se
aproximam e uma delas se coloca entre os atores, o ator/Saveli a afasta e acorda o
ator/Carteiro, saindo em seguida para apressar a arrumação do material da mala postal para a
partida.
Momento Inicial: INTIMIDAÇÃO
A partir dos verbos de ação “agradar”, “envolver” e “suplicar”, para as atrizes/Raissa,
e “resistir”, para o ator/Carteiro, foi criado o momento fundamental, a “Súplica”. No
momento inicial o Carteiro está deitado, adormecido, utilizando o próprio casaco como
cobertor. No material textual do conto, ele começa a se preparar, sem pressa, para ir embora.
Na sequência de ações criadas pelos atores, o início do momento fundamental se dá quando
uma das atrizes o ajuda a se levantar, puxando-o pela mão. Como se ele fosse se preparar para
ir embora. Porém, ela segue conduzindo-o lentamente, aproximando-o de si, sem que as mãos
se soltem. Outra atriz pega o casaco, o abraça e segue o ator, aproximando-se também. A
terceira atriz observa e começa a se aproximar. Nessa condução, acontece certa resistência do
ator/Carteiro. Mas, no momento em que os pés dele e das duas atrizes se tocam, durante a
condução da caminhada, o contato gera o desejo que se concretiza no momento central que é a
“Atração”.
147
Momento Fundamental: SÚPLICA
Para criar esse momento, foi proposto que os atores improvisassem a partir do
estímulo dos verbos de ação “perseguir”, “envolver”, “fugir” e “cercar”, tendo como base o
exercício de variação de velocidades. A partir das ações e relações resultantes dessa
improvisação foi realizada uma partitura com a sequência já descrita anteriormente, da corrida
do ator ao redor da cadeira, enquanto a atriz sobe, até ficar em pé. Enquanto o ator corria ao
redor de uma cadeira, em que estava uma atriz, uma segunda atriz corria ao redor de outra
cadeira, uma terceira atriz observava. A conexão de olhares devia acontecer simultaneamente
entre todos os atores, estabelecendo uma relação de imantação entre eles.
Momento Central: ATRAÇÃO
148
A partir do momento em que optamos por trabalhar com três atrizes no papel de Raissa
reforçamos o potencial imagético da criação e o desdobramento do caráter envolvente da
“feiticeira”.
Ainda dentro do momento central, também inserimos a primeira sequência criada, da
ação do ator de rolar no chão e do caminho traçado pela cadeira e o banquinho, para a atriz
passar. Essa sequência foi sendo aprimorada, resultando na seguinte partitura. Uma atriz
trilhava um caminho sobre duas cadeiras e um banquinho, sendo que o ator/Carteiro rolava no
chão lentamente com o banquinho colocando-o no momento preciso para a atriz dar o passo.
Os dois passos subsequentes eram dados sobre as duas cadeiras colocadas pelas atrizes e,
assim, sucessivamente, criando uma espécie de engrenagem. Foi estabelecido que cada ator
deveria realizar as suas ações em diferentes velocidades.
Momento Central: ATRAÇÃO
A estrutura de ações criada sugeria a imagem cênica do desejo de “libertação” de
Raissa da situação em que se encontrava - a sua linha transversal de ação - , a expressão
imagética de uma possibilidade de caminho que o viajante/Carteiro representa para ela. O
caminho é finalizado quando o ator coloca o banquinho no chão pela última vez, uma das
atrizes senta no banquinho de costas para ele e o ator/Carteiro passa a mão no pescoço da atriz
e vai descendo por suas costas, estabelecendo entre eles um contato mais intenso.
Acontece nesse instante o momento final, a “Expulsão” que é gerada pelo retorno de
Saveli. No etiud, a relação entre o carteiro e as Raissas é totalmente interrompida e
rapidamente todos se afastam e estatizam. Para criar as ações desse momento, todos os atores
149
improvisaram com os verbos “separar”, “interromper”, “afastar”, “surpreender”, com
variações bruscas de velocidade.
Momento Final: EXPULSÃO
Ainda durante o momento final, o ator/Carteiro se recompõe, pega o seu casaco e vai
embora, o ator/Saveli o aguarda constrangendo-o a sair. As atrizes/Raissa permanecem onde
estão. Raissa fica só. Essa circunstância gera o próximo acontecimento, que denominamos
“Rebelião”. Para concretizar cenicamente esse momento final, realizamos uma improvisação
pela conexão de olhares entre todos e a imobilidade das atrizes enquanto o ator/Carteiro se
recompõe e vai embora, sob a vigília do ator/Saveli.
Assim, tendo como base o exercício de variação de velocidades, com a utilização do
estímulo de verbos de ação, criamos o etiud do acontecimento “Sedução”, parte do exercício
cênico “Feiticeira”, apresentado a público em junho de 2010.