O uso da vara na educação das crianças

Transcrição

O uso da vara na educação das crianças
PNV 338
O uso da vara na
educação das crianças:
um importante diálogo
Múria Carrijo Viana
Klaus Paz de Albuquerque
São Leopoldo/RS
2016
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Série: A Palavra na Vida – Nº 338 – 2016
Título: O uso da vara na educação das crianças: um importante diálogo
Autores: Múria Carrijo Viana e Klaus Paz de Albuquerque
Revisão ortográfica: Nelson Kilpp
Capa: Artur Sanfelice Nunes
Editoração: Rafael Tarcísio Forneck
ISBN: 978-85-7733-251-9
Múria Carrijo Viana é graduada em Filosofia e Direito pela PUC Goiás; pós-graduada em
Modernidade Filosófica e Educação pela PUC Goiás; contadora de histórias, pelo Grupo Gwaya,
da UFG; integra a equipe do Centro de Documentação Dom Tomás Balduíno, da CPT Nacional;
facilitadora de estudos bíblicos com crianças e adolescentes, pela parceria MAC/CEBI; faz parte
da equipe de coordenação do CEBI Goiás.
Klaus Paz de Albuquerque é graduado em História pela UEG; graduado em Pedagogia pelo
Instituto de Educação Superior de Brasília; mestre em Ciências da Religião pela PUC Goiás;
mestre em Educação, pela UFG; facilitador de estudos bíblicos com crianças e adolescentes, pela
parceria MAC/CEBI; professor da rede pública de ensino do estado de Goiás, integra a equipe de
coordenação nacional do MAC.
Sumário
Introdução.............................................................................................4
1. Concepções de infância.....................................................................6
2. A infância na Antiguidade.................................................................8
3. A educação semita no mundo antigo.................................................13
4. Mas... o que é a Palavra de Deus?.....................................................16
5. O fundamentalismo violento e o uso injusto da Bíblia.....................19
6. A “Lei da Palmada” e os significados da vara na Bíblia Hebraica....22
7. Pode-se perguntar ainda: “Todo e qualquer escrito bíblico deve ser
entendido literalmente como regra de comportamento cristão?”.....27
8. Nem em jumento deve-se usar a vara...............................................32
9. Ela apanha mesmo quando está doente.............................................37
10. Após o que foi dito, como quem caminha para a conclusão,
algumas considerações....................................................................41
Referências bibliográficas.....................................................................43
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Introdução
Não é fácil refletir sobre o ato de educar as crianças sem bater nelas, seja por meio de palmadas, varadas ou outros tipos de agressões físicas, pois muitas pessoas adultas ditas conscientes são favoráveis a uma
varadinha, tapinha ou palmadinha de leve para “despertar o espírito das
crianças”, ou à ideia de que criança precisa apanhar para aprender. Quem
bate, alega que “bater com amor não causa dor” feito aqueles discursos de
alguns homens que batem em mulheres e dizem: “eu bati nela por amor”.
Há também quem se diz adepto da “peiologia”, como quem, ao unir
as palavras peia com lógos, coloca-se favorável ao grupo daqueles/as que
defendem a surra, o açoite e a agressão física como “método científico”
infalível nos processos educativos.
Existe também a compreensão de que educar a criança com afeto,
diálogo e carinho faz com que ela perca o respeito pelas pessoas responsáveis por sua educação. Nesse sentido, muitas vezes, em um ato incoerente
por parte dos adultos, a criança apanha para aprender que não deve bater.
Como se não bastasse, muitos/as adolescentes reproduzem e defendem a educação na “base da peia”, ou seja, reforçam, reproduzem comportamentos agressivos em um contexto cultural e familiar de violência.
A nossa primeira pergunta é: Na correlação de forças (força física
mesmo!) entre adultos e crianças, existe palmadinha ou varadinha leve?
Imaginem a força de um tapa ou outro instrumento de agressão
desferido por uma mão adulta sobre o corpo de uma criança. Por mais
leve que a pessoa adulta julgue que seja, não será leve. Aliás, se observarmos atentamente, uma criança sempre passa a mão no lugar em que
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recebeu a agressão, como que para aliviar a dor, mesmo que ela não chore
no momento.
A nossa segunda pergunta é: Por que, mesmo na leitura mais fundamentalista da Bíblia, a vara é tranquilamente ressignificada, ou seja,
substituída por chinelo, sandália, sapato, cinto, correia, corda, chicote, fio
das mais variadas espécies, qualquer pedaço de pau, ou pela própria mão
(palmadinha), mas nunca interpretada como diálogo?
Para refletir sobre essa questão, é necessário pensar sobre as concepções de infância no decorrer da história, pois, na nossa compreensão, a
pessoa adulta age sobre a criança a partir da forma que a concebe.
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1 Concepções de infância
Aqui, o termo infância será entendido como sendo a fase de vida da
criança e do adolescente, mesmo sabendo que, em muitas culturas, a ideia
de adolescente não existe.
Para início de conversa, entendemos que, da mesma forma como
se leva em consideração as discussões sobre gênero, classe e raça/etnia,
também é preciso pensar a categoria geracional. Pois, além de serem dominadas por sua condição social, seu sexo e sexualidade, sua cor de pele e
etnia, crianças e adolescentes também são dominadas/os simplesmente por
serem crianças e adolescentes.
Por parte dos adultos, é corrente a utilização dos termos “imaturidade”, “criancice”, “infantilidade”, “meninice”, “coisa de criança” para
deslegitimar ou desclassificar um comportamento ou discurso que não os
agrada. Essa associação da infância com o que não é legítimo e com o descartado já é uma amostra do lugar que os adultos reservaram (e reservam)
para as crianças e adolescentes.
Desde milênios, associar a criança com coisas sem importância já
era usual. Segundo Snyder (citado por MONTEIRO, 2001, p. 138), “os
escravos na antiguidade, os negros colonizados, os criados, o povo e as
mulheres têm sido chamados de crianças e foram frequentemente tratados
como crianças”.
A partir desta afirmação, é possível dizer que a identificação de outros adultos – “inferiores” ao senhor, patrão e marido – com a criança não
se dá apenas numa dimensão psicológica – como incapazes, débeis ou ignorantes – mas também numa analogia de submissão corporal. Pois, assim
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como os escravos, os servos e as mulheres, que eram açoitados, agredidos e espancados, também a criança sofria os desmandos deste adulto “em
potencial”.
As lutas históricas de emancipação dos corpos escravizados trouxeram a nova consciência social de que ninguém é dono do corpo de ninguém. Assim fica moralmente inconcebível que alguém tenha o poder sobre o corpo de outra pessoa para castigá-la e obrigá-la a fazer coisas contra
a sua vontade. Em menor grau, a luta das mulheres pela sua emancipação
tem aos poucos criado certa consciência de não agressão às mulheres pelas mãos masculinas. Porém, parece que a consciência de não agressão às
crianças não tem ganhado tantos adeptos. É muito mais aceitável o grito
contra a violência sobre a mulher do que contra a criança. E mais, essa
agressão vem justificada em nome da educação: bater para educar, para
fazer as coisas corretas. Bater porque se ama.
Esta justificativa de bater em nome do amor é duramente combatida
por muitos grupos organizados em defesa da mulher. Frases como “quem
ama não bate” são utilizadas em campanha de erradicação da violência
contra a mulher.
Já no que diz respeito às crianças, muita gente defende o “bater
por amor”. Não é raro encontrar uma apologia à educação pela violência. Costumam até fazer trocadilhos com um órgão do poder judiciário e
um galho de árvore, a “vara da infância”, no sentido de menosprezo ao
primeiro e de supervalorização do segundo. Ou, na pior das hipóteses,
justificam biblicamente o uso da vara na educação das crianças especificamente a partir de alguns versículos do livro dos Provérbios, assunto
que trataremos mais adiante.
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2 A infância na Antiguidade
A reflexão sobre a infância na Antiguidade foi desenvolvida por
Klaus Paz de Albuquerque, por ocasião de seu Trabalho de Conclusão do
Curso de Pedagogia, em 2012, e faz parte do segundo capítulo desta obra,
intitulado “Concepções de Crianças e Adolescentes na Sociedade Ocidental”. Trata-se de um breve panorama histórico das visões e tratamentos
dispensados à infância na mesma época em que foi escrito o livro bíblico
de Provérbios, defensor da educação de crianças e adolescentes pela violência. O conhecimento do contexto contribuiu para entender melhor os
significados dados a esses textos bíblicos.
Karl Marx e Friedrich Engels (2002, p. 36-37), pesquisadores que
melhor explicaram a sociedade industrial capitalista, falam que, há milhares e milhares de anos, a criança já era tratada como uma posse do homem
adulto e por ele era dominado.
Com a divisão do trabalho, na qual estão dadas todas estas contradições, e
a qual por sua vez assenta na divisão natural do trabalho na família e na separação da sociedade em famílias individuais e opostas umas às outras, está
ao mesmo tempo dada também a repartição, e precisamente a repartição
desigual tanto quantitativa como qualitativa, do trabalho e dos seus produtos, e portanto a propriedade, a qual já tem o seu embrião, a sua primeira
forma, na família, onde a mulher e os filhos são os escravos do homem. A
escravatura latente na família, se bem que ainda bem rudimentar, é a primeira propriedade [grifo do autor].
Sobre o tratamento dado às crianças e aos adolescentes da Antiguidade sabe-se muito pouco (POSTMAN, 1999). Da pouca informação que
se tem, a grande maioria procede do mundo greco-romano. Contudo, a
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citação de Marx e Engels nos dá algumas indicações. Em outras civilizações e sociedades anteriores aos romanos e aos gregos, as crianças e
os adolescentes eram posse e propriedade do adulto. Na divisão social do
trabalho, as crianças, além de pertencerem aos adultos como escravos “rudimentares”, são valiosa mão-de-obra para o trabalho e fonte de acúmulo
e benefícios para o pai. É pela força que o adulto domina a criança, e o
homem a mulher. É pelo corpo masculino, mais robusto e mais forte, que o
pai domina seus filhos e o esposo a sua esposa.
Tal indicação de Marx e Engels sobre as crianças na Antiguidade
mostra que a ideia de crianças-filhos não foi sempre a que temos hoje. O
carinho e a proteção das crianças e dos adolescentes nem sempre foram
algo normal nem tampouco foram uma preocupação da família, da sociedade e do Estado.
Pelo grande acervo documental dos gregos e dos romanos, assim
como pela sua influência no mundo ocidental, é possível dizer um pouco
mais sobre as crianças nessas civilizações da Antiguidade.
No caso grego, apesar de se reconhecer que foram eles os inventores
da noção de escola – e “onde quer que haja escolas, há consciência, em algum nível, das peculiaridades dos jovens” (POSTMAN, 1999, p. 21) – mesmo assim é ambíguo o que os gregos entendem por jovens. Pois, o termo
jovem parece abarcar “quase qualquer um que esteja entre a infância e a
velhice” (POSTMAN, 1999, p. 20). De todo modo, ainda é possível identificar um pouco da situação em que vivem as crianças e adolescentes gregos.
As crianças vivem uma primeira infância em família, assistidas pelas mulheres e submetidas à autoridade do pai, que pode reconhecê-las ou abandoná-las, que escolhe seu papel social e é seu tutor legal. A infância não
é valorizada em toda a cultura antiga: é uma idade de passagem, ameaçada por doenças, incerta nos seus sucessos; sobre ela, portanto, se faz um
mínimo de investimento afetivo, como salientou Áries para as sociedades
tradicionais em geral (CAMBI, 1999, p. 81-82).
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Continua o mesmo autor sobre a infância na sociedade da antiga
Grécia:
A criança cresce em casa controlada pelo “medo do pai”, atemorizada por
figuras míticas semelhantes às bruxas (as Lâmias, em Roma), gratificadas
com brinquedos (pense-se nas bonecas) e entretidas com jogos (bolas, aros,
armas rudimentares), mas sempre colocadas à margem da vida social. Ou
então por esta brutalmente corrompida, submetida a violência, a estupro, a
trabalho, até a sacrifícios rituais. O menino – em toda a Antiguidade e na
Grécia também – é um “marginal” e como tal é violentado e explorado sob
vários aspectos, mesmo se gradualmente – a partir dos sete anos, em geral
– é inserido em instituições públicas e sociais que lhe concedem uma identidade, lhe indicam uma função e exercem sobre ele também uma proteção
(CAMBI, 1999, p. 82).
As poleis gregas, Atenas e Esparta, criaram modelos de educação
destinados ao público jovem, incluindo as crianças e os adolescentes.
Atenas cria a paideia, uma formação ampla, que incluía dimensões sociais, culturais e antropológicas. Esparta, por sua vez, tinha uma educação mais restrita, baseada, sobretudo, no conformismo e no estadismo
(CAMBI, 1999).
Na cidade de Esparta, “as crianças do sexo masculino, a partir dos
sete anos, eram retiradas da família e inseridas em escolas-ginásios onde
recebiam, até os 16 anos, uma formação de tipo militar, que deveria favorecer a aquisição da força e da coragem” (CAMBI, 1999, p. 83). Já na cidade
de Atenas,
Numa primeira fase, a educação era dada aos rapazes que frequentavam
a escola e a palestra, onde eram instruídos através da leitura, da escrita,
da música e da educação física [...]. O rapaz (pais) era acompanhado por
um escravo que o acompanhava e o guiava: o paidagogos. [...] Central
também era o cuidado do corpo, para torná-lo sadio, forte e belo, realizado
nos gymnasia. Aos 18 anos, o jovem era “efebo” (no auge da adolescência), inscrevia-se no próprio demo (ou circunscrição), com uma cerimônia
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