cONfINtEA I
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cONfINtEA I
REPORTAGEM Podemos sonhar ao ler Texto António Simões do Paço # Fotografias Paulo Figueiredo “Novas Oportunidades a Ler+” é um projecto do Plano Nacional de Leitura e da Agência Nacional para a Qualificação destinado a apoiar o desenvolvimento do gosto pela leitura junto do público adulto dos Centros Novas Oportunidades. Fomos a Alcáçovas ver como funciona no terreno esta iniciatiiva. AO LONGO DA VIDA 1 REPORTAGEM « P Francisca Valério, Alexandra Correia e Elsa Branco. odemos sonhar ao ler, imaginamos as situações contadas, os dramas vividos, os acontecimentos, as mudanças», diz Marisa Berrucho, de 27 anos, recepcionista no Centro Paroquial de Torre de Coelheiros, no concelho de Évora. Acrescenta Marisa que «faço parte do grupo que está a fazer a fazer o processo de RVCC, em São Bartolomeu do Outeiro», uma aldeia com pouco mais de meio milhar de habitantes no concelho alentejano de Portel. «Com o processo de RVCC pesquisei imenso, li muitas páginas na Internet», diz Marisa, que quer «ler bastante, para melhorar a minha escrita, a minha pronúncia, a minha cultura, as minhas ideias…» O último livro que leu foi O Crepúsculo, de Stephenie Meyer (Gailivro). Estou a pensar comprar Lua Nova», do mesmo autor. João Peralta, de 35 anos, é proprietário de uma papelaria e na sua família sempre se leu. «A minha mãe adora livros, e tem uma autêntica biblioteca em casa. A última vez que os contámos já tinha mais de cinco mil livros.» João reside em Aguiar, uma freguesia de 700 habitantes no concelho de Viana do Alentejo, e aí frequentou o programa de validação do 12.º ano em 2009, onde tomou contacto com o programa “Novas Oportunidades a Ler+”. «O facto de estar inscrito nas Novas Oportunidades», diz ele, «levou a que utilizasse cada vez mais a Internet como meio de pesquisa, logo criou em mim um novo hábito de leitura. Actualmente, quando preciso de saber alguma coisa ou fazer algum trabalho recorro a este meio.» O 2 APRENDER último livro que leu foi Margarida na Aus trália, de Margarida Vila-Nova (Guerra e Paz): «Fascinou-me. Relatava uma viagem à Austrália, em forma de diário, escrito de uma forma simplesmente viciante, talvez por ser um dos meus grandes sonhos viajar até lá.» «Hoje não passo sem um livro para ler» «Quando iniciei o processo de validação do 9.º ano, os meus hábitos de leitura resumiam-se a apenas algu mas partes dos jornais desportivos. Confesso que nunca me tinha ocorrido ler um livro», admite logo de entrada Paulo Manzoupo, de 42 anos, vereador da Câmara Municipal de Viana do Alentejo desde 11 de Outubro de 2009. E prossegue: «Quando me informaram de que para validar o 9.º ano devia ler um livro, pensei que ia ser uma grande “seca” e fui adiando essa tarefa, até que, quando faltava pouco mais de uma semana para entregar os trabalhos, deci di iniciar a leitura.» Como não sabia por onde escolher, pediu à sobrinha que lhe indicasse um livro. Ela trouxelhe A Saga de um Pensador, de Augusto Cury (Pergaminho). «Nesse serão iniciei a leitura.» Decidiu ler uma hora por dia, «para não se tornar muito maçador», mas deixou-se «envolver completamente pela história» e nos «dias que se seguiram, em vez de ler apenas uma hora, lia três a quatro horas». O que pensava ser um passatempo maçador «tornou-se um hábito que me dava muito prazer, e passados cinco dias do início da leitura do livro já o estava a terminar». «Assim que surgiu a oportunidade», prossegue Paulo, «inscrevi-me no pro grama de validação do 12.º ano. Senti que não queria ficar por ali. Sentia muita confiança em mim para ler e escrever sobre qualquer coisa.» «O processo de validação do 12.º ano foi bem mais difícil, muito exigente a nível de escrita e leitura. Isso levou-me a começar a ler outro tipo de livros, nomeadamente biografias. Das que li, a que mais gostei foi a de Eric Clapton. Já o conhecia bem como cantor, mas foi muito interessante ficar a conhecer a história da sua vida.» Hoje, remata, «não passo sem ter um livro para ler». O que há de comum entre Marisa Berrucho, João Peralta e Paulo Man zoupo, além de viveram os três em pequenas localidades do Alentejo, é terem frequentado o processo de reco nhecimento, validação e certificação de competências (RVCC) num centro do programa Novas Oportunidades, e nesse quadro terem entrado em contacto com a iniciativa “Novas Oportunidades a Ler+”, um projecto do Plano Nacional de Leitura (PNL) e da Agência Nacional para a Qualificação (ANQ) destinado, como se diz numa brochura explicativa, «a apoiar o desenvolvimento do gosto pela leitura junto do público adulto dos Centros Novas Oportunidades e, através destes, junto dos seus círculos de familiares e de amigos». Para sabermos melhor como fun cionam no terreno as “Novas Oportu nidades a Ler+”, a Aprender ao Longo da Vida deslocou-se à vila alentejana de Alcáçovas para encontrar-se com ele mentos da associação Terras Dentro, aqui sedeada, cujos formadores pro curam criar hábitos de leitura nos fre quentadores dos cursos das Novas Oportunidades e de Educação e For mação de Adultos (EFA) em diversas localidades do Alentejo e com forman dos dos cursos do CNO. Eis algo do que ficámos a saber à conversa com Alexandra Correia e Elsa Branco, da direcção da associação, Francisca Valé rio, profissional de RVC, e Fernando Moital, animador cultural. Ler em comum, debater «Os formandos dos cursos das Novas Oportunidades», afirma Francisca Valé rio, profissional de RVC, «devem esco lher um livro e lê-lo. Temos umas 200 pessoas em processos de RVCC – no concelho de Viana do Alentejo (Alcá çovas), mas também nos concelhos de Alvito, Évora (algumas freguesias), Montemor-o-Novo, Portel e Vidigueira». Além do livro, diz esta socióloga de 42 anos, mestre em Ciências da Educação, natural de Portel e a viver em Beja, «lêem em comum artigos, notícias, lendas … e debatem-nos em grupos que oscilam entre as seis e as 14 pessoas. Procuramos que os grupos não ultrapassem as 15 pessoas. Ao intervirmos nos debates temos de ser não só professores, como psicólogos, confidentes…» «Também estamos a promover o gosto pela leitura entre os formandos dos cursos EFA. Temos actualmente 78 formandos nos concelhos de Viana, Portel, Beja, Vidigueira, Montemor e Évora.» «Numa zona de grande dispersão geográfica, como é o Alentejo», afirma Alexandra Correia, da direcção da Terras Dentro, «temos por estratégia estabelecer parcerias com instituições locais em toda a nossa zona de intervenção. Assim, para podermos chegar aos adultos que pretendam certificar o 4.º, 6.º ou 9.º ano de escolaridade, e também o secundário, partimos para um serviço itinerante onde a relação com os parceiros é fun damental para os objectivos a que nos propomos: contribuir para a valorização pessoal e social de uma camada popula cional pouco escolarizada e para o desen volvimento do capital humano de uma região deprimida e fortemente marcada pelo envelhecimento». Os parceiros são autarquias, escolas, bibliotecas, associa ções de pais e outras. «Como nós, das Terras Dentro, nos deslocamos muito», diz esta socióloga, «levamos livros con nosco. E emprestamo-los.» Alexandra Correia nota que biblio tecas como a de Beja «têm grupos de leitura e estão muito activos», e a de Évora procura seguir pelo mesmo caminho, mas lamenta que as bibliotecas fechem às 17h30 e não abram aos fins-desemana. «Estamos a tentar que abram noutras alturas para que as pessoas que trabalham as possam frequentar», diz. «Embora seja necessário criar formas de as utilizar, para que uma vez abertas não fiquem às moscas.» A Terras Dentro – Associação para o Desenvolvimento Integrado, nasceu em 1991 em Alcáçovas, concelho de Viana do Alentejo, onde tem a sua sede. O objectivo inicial era apoiar e estimular localmente o desenvolvimento integrado do mundo rural, mas depressa se esten deu a outros, como a criação do Centro Uma biblioteca numa cabine telefónica Uma aldeia de 800 habitantes no Somerset (Sudoeste de Inglaterra), Westbury-sub-Mendip, decidiu salvar a sua cabine telefónica vermelha, modelo de 1935, e ao mesmo tempo criar uma biblioteca que substituísse a falta da biblioteca itinerante que deixou de visitar a aldeia. A cabine telefónica foi comprada pelo parish council (equivalente a uma junta de freguesia) de Westbury-sub-Mendip à British Telecom por 1 libra, e os mora dores trataram de instalar prateleiras e guarnecê-las com livros usados, que assim vão trocando com os vizinhos. A biblioteca tornou-se um grande sucesso, noticiado pela imprensa nacional, e oferece mais de 100 opções que vão desde livros de receitas aos clássicos, e incluindo também DVD e CD. Apesar de o modelo K6 da tradicional cabine telefónica vermelha datar já de 1935, esta pequena biblioteca é bastante moderna: está aberta 365 dias por ano, 24 horas por dia, e mantém-se iluminada durante a noite para os leitores mais noc tívagos. A fim de manter a selecção de títulos fresca, há uma verificação perió dica para determinar que títulos são real mente procurados. Os indesejados pelos habitantes locais são enviados para uma loja de uma instituição caritativa. (ASP) AO LONGO DA VIDA 3 REPORTAGEM Novas Oportunidades Terras Dentro e a sua participação no projecto “Novas Oportunidades a Ler+”, o tema que aqui nos ocupa. Eis algumas das iniciativas que se propõem realizar neste âmbito: – organizar uma biblioteca itinerante (ligada ao Centro de Documentação da Terras Dentro, que funciona na sede da associação, em Alcáçovas) que permita o acesso aos livros e revistas em todos os locais onde o CNO realiza itinerâncias; – fazer um boletim de sugestões de leitura por área de competência chave; – fazer uma recolha e publicar um livro de poemas dos adultos do CNO (a Terras Dentro, entre outras iniciativas editoriais, já publicou, em 1996, uma antologia de poesia tradicional do Alentejo, intitulada Em cada casa uma porta, em cada porta um postigo); – dinamizar o blogue do Centro, com maior envolvimento dos adultos do CNO. – editar um boletim mensal do CNO com notícias, artigos e trabalhos de adultos, sugestões de leituras, etc. – sessão «Os Pais gostam de ler histó rias», a dinamizar na feira do livro da Quinzena Cultural de Alcáçovas; – convidar o Teatro Azul a apresentar a sua peça de teatro sobre a imple mentação da República, integrada nas comemorações do Centenário da República, no Cineteatro Vianense, no dia 7 de Outubro de 2010. O Plano Nacional de Leitura «é desesperadamente necessário» Num documento intitulado A Dimen são Económica da Literacia em Portugal: Uma Análise, editado pelo Gabinete de Estatística e Planeamento da Educação, do Ministério da Educação, afirma-se que «os resultados documentam clara mente o baixo nível médio de compe tências de literacia da população por tuguesa» (terceiro a contar do fim, numa lista de 22 países membros da OCDE). «O Plano Nacional de Leitura», pros segue esse documento, «lançado em Junho de 2006 pelo Governo portu guês para promover a leitura nas esco las, nas bibliotecas públicas e noutras organizações sociais, é um elemento cru cial do esforço nacional para melhorar 4 APRENDER Hélder Silva e Fortunata Monteiro. «Quando era jovem», diz Fortunata, hoje com 46 anos, «li bastante: Eça de Queirós, Júlio Dinis… Li também Os Miseráveis, de Victor Hugo». Leu também um livro sobre Os Segredos da Atlântida. a oferta de competências de literacia no País e, por esse motivo, deve beneficiar de apoio político e financeiro sustentado. O Plano Nacional de Leitura poderá vir ter, oportunamente, um impacto benéfico, mas precisa de ser complementado por um esforço concertado que também melhore a qualidade do ensino inicial e desenvolva um sistema eficaz de edu cação e de formação de adultos com incentivos adequados para atrair os muitos portugueses adultos que perde ram oportunidades educativas em fases anteriores da sua vida. Melhorar a oferta de competências de literacia é apenas uma parte, embora importante, desta equação. A outra é a melhoria da procura de competências de literacia na econo mia e na sociedade portuguesas. O reco nhecimento, a validação e a remuneração das competências de literacia no mercado de trabalho constituem, por isso, um enorme desafio para o País.» (p. 10) Sem algo como o Plano Nacional de Leitura, conclui o documento citado, que «é desesperadamente necessário» (p. 121), «Portugal terá grandes problemas em manter a sua competitividade nos mercados europeu e mundial e terá cada vez mais dificuldades em atrair investimento directo estrangeiro». E reforça: «se Portugal não obtiver um aumento rápido e substantivo no nível de literacia funcional de toda a sua população, o País terá dificuldades em realizar os seus objectivos económicos e sociais, e só transferências maciças da União Europeia evitarão um declínio relativo do seu nível de vida». Levar a leitura a todos os recantos do País não é fácil. Hélder Silva e Fortunata Monteiro, um casal de agricultores com quem falámos em Alcáçovas, frequen tam o CNO local, mas afirmam que lhes «falta o tempo» para ler. Hélder confessa que lê pouco. No curso, leu «um artigo da Dica da Semana sobre carros eléctricos» e escreveu sobre o que leu. De resto, as suas leituras ficam-se pelos manuais de instruções das máqui nas agrícolas e pelos rótulos dos fitofármacos. «Quando era jovem», diz Fortunata, hoje com 46 anos, «li bas tante: Eça de Queirós, Júlio Dinis… Li também Os Miseráveis, de Victor Hugo». Leu também um livro sobre Os Segredos da Atlântida. «Mas agora tenho menos vagar», admite com alguma pena. E fala com orgulho da filha de 12 anos «que gosta de ler e que eu lhe leia». Paulo Manzoupo, o vereador de Viana do Alentejo, considera que «foi muito importante o incentivo que os formadores me deram para ganhar hábitos de leitura. Hoje não lhe restam dúvidas de que «a mudança dos meus hábitos de leitura permitiu-me validar o 12.º ano com relativa facilidade». «Se hoje consigo desempenhar melhor as minhas funções e encarar os novos desafios com maior segurança, posso agradecê-lo aos formadores que me acompanharam e me incentivaram a ler com regularidade», finaliza. n DOSSIER Na pátria dos clubes de leitura campanhas, notícias, projectos e redes, pesquisa e outros recursos, eventos e links para outros sítios como o do Reading For Life. http://www.readingforlife.org.uk/home/ Neste site pode encontrar: WikiReadia Uma enciclopédia editável onde se pode fazer pesquisa sobre boas práticas de literacia (ler, escrever, falar e ouvir). «Que filme, lançado em 1978 e adaptado de um romance de Agatha Christie, viu Peter Ustinov pela primeira vez no papel de Hercule Poirot? a) Morte no Nilo b) Morte no Sena c) Morte no Tamisa.» Esta é a primeira pergunta de um questionário – um exemplo, colhido no site inglês Bookbite, de uma actividade associada à leitura e bastante popular entre nós: um concurso, no caso sobre filmes e livros. (A resposta certa é, como os fãs de Agatha Christie saberão, Morte no Nilo.) A «velha» Inglaterra é a pátria dos book reading clubs, os clubes de leitura, que envolvem milhares de pessoas por todo o país e tanto são organizados pelos vizinhos de uma rua como pelas maiores cadeias nacionais de livrarias. Por isso, visitámos alguns sites ingleses ligados à leitura onde se podem colher ideias – como a do concurso acima referido –, boas e em quantidade. http://www.literacytrust.org.uk/ Nos menus do site do National Literacy Trust encontra informação sobre Reading Gardens (Jardins de leitura) É um projecto que o ajuda a encontrar lugares de inspiração para ler. Os jardins públicos são excelentes lugares para ler, mas aqui também pode encontrar ideias sobre como arranjar um canto dedicado à leitura no seu próprio jardim. Teachers TV É um grande recurso on-line com programas na TV e on-line. Pode ver os episódios da Reading for Life sobre os programas de leitura das escolas e romances em banda desenhada. Resources and downloads Uma área de recursos e downloads. Projects (Projectos) Dá-lhe hiperligações (links) e descrições de todas as áreas especializadas do National Literacy Trust, abrangendo todas as áreas da leitura, desde «Converse com o seu bebé» a uma secção que procura captar a atenção dos que só se interessam por futebol. Reading Ideas (Ideias de leitura) São listas de ideias com instruções passo-apasso, especificamente concebidas para famílias, adultos, crianças, empresas, autores, escolas e editoras. http://www.bookbite.org.uk/ O site Bookbite, como se diz na sua apresentação, pretende «ajudá-lo a obter mais da leitura e da escrita». «Quer tenha sempre o nariz metido num livro ou se limite a folhear o jornal local, quer escrever para si signifique escrever histórias, manter um diário ou uma simples nota num cartão de cumprimentos», o site convida as pessoas a participarem no seu clube de leitura ou de escrita, em competições, a fazerem buscas nas suas listas de livros, dá conselhos sobre como escrever histórias curtas, oferece ajuda para investigar a história familiar e social, sugere listas de livros, incluindo «O Livro do Mês». E muito mais. (ASP) n AO LONGO DA VIDA 5 Luís Maria Fernandes Areal Rothes é doutor em Ciências pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto. Na mesma instituição tinha já concluído, em 1995, o Mestrado em Ciências de Educação, Desenvolvimento e Mudança Social). Em 1991, obteve na Escola Superior de Educação do Porto um Diploma de Estudos Superiores Especializados em Animação Comunitária e Educação de Adultos sendo, desde 1981, Licenciado em Ensino da História e Ciências Sociais pela Universidade do Minho. É professor adjunto na Escola Superior de Educação do Porto. Nesta escola é coordenador da Área Cientifica de Sociologia e Animação Comunitária e do Departamento de Ciências de Educação. Tem vários trabalhos publicados, designadamente na área de educação e formação de adultos tendo participado, com apresentação de comunicações, em diversos colóquios, seminários e conferências. Esteve igualmente implicado em diferentes projectos de intervenção educativa, tendo colaborado em projectos nacionais e europeus de investigação, nos domínios de educação e da formação. 6 APRENDER ENTREVISTA Luís Rothes gosta de se definir como um optimista moderado. Nesta entrevista à Aprender ao Longo da Vida, ele considera que a massificação da educação de adultos promovida pela iniciativa Novas Oportunidades é um património conquistado que deve ser valorizado. Mas não esquece o desafio de articular o que foi feito com outras áreas de intervenção. E adverte para o risco sério de ficarmos dependentes, quase em exclusivo, dos programas comunitários. Luís Rothes Entrevista de Rui Seguro # Fotografias de Miguel Baltazar Vamos valorizar as competências dos adultos, mas sempre assumindo que são insuficientes AO LONGO DA VIDA 7 Nunca houve um investimento tão grande do Estado na Educação de Adultos. Quase poderíamos dizer que estamos numa das primeiras fases de massificação da educação de adultos. Que pensa desta realidade? Acho que a quantidade é uma das dimensões da qualidade de qualquer intervenção política na área da educação, mas não esgota os critérios que a afirmam. Acolho essa massificação que agora se verifica, com a iniciativa Novas Oportunidades, com mui to bom grado. Significa que estamos a conseguir densificar a inter venção neste campo e a conseguir chegar à pequena freguesia. É um património conquistado que deve ser valorizado. Os desafios mais interessantes são pensar como vamos conseguir, valorizando aquilo que foi feito, articulá-lo com outras áreas de intervenção da educação de adultos para que se perca essa sensação de que há muitas coisas que estão a ser negligen ciadas, subestimadas. Penso que esse é um desafio futuro, mas parece-me estar perfeitamente ao nosso alcance. Vive mos muito um certo pensamento utópico, que é inerente ao trabalho na educação de adultos, e às vezes criamos a ideia de que estamos sempre muito aquém do que seria desejado. Penso que é positivo pensarmos essa utopia, termo-la sempre presente, olharmos criticamente aquilo que fazemos; mas também devemos ver o que aí há de positivo e é suporte para o trabalho que é necessário ver realizado. Desse ponto de vista, tenho uma leitura positiva, estamos melhor agora para vencer os desafios que temos pela frente do que estávamos antes dessa massificação. Como vê a evolução da articulação entre o Reconhecimento de Competências e os Cursos EFA? Se partimos daquilo que se desencadeou a partir de 2005, das Novas Oportunidades, temos alguns problemas e desafios a vencer, e um deles tem exactamente a ver com essa articulação entre os processos de reconhecimento e validação, e os percursos formativos em que os adultos estão envolvidos. Creio que temos de evoluir no sentido de pensar que todos os adultos têm competências, vamos valorizar essas competências, reconhecê-las, validá-las mas, simultaneamente, temos sempre de assumir que são competências insuficientes, sempre! Nesse sentido, acho que os percursos em que adultos estão envolvidos, a partir do contacto que têm com as Novas Oportunidades, têm de ser encarados como processos em que há reconhecimento de competências, validação parcial dessas competências, mas também articuladas com a construção de projectos de vida que sejam também projectos de formação. Isso é um desafio importante. Até porque se não o fizermos nem sequer vamos conseguir avançar na validação, sobretudo ao nível do secundário. A dificuldade que estamos a verificar nos processos de reconhecimento e validação no secundário só são ultrapassáveis com o reforço desta lógica de validação parcial, e que é complementar com processos de formação. Quando os Cursos EFA começaram, eram essencialmente realizados por organizações locais. Neste momento, temos uma situação completamente diferente. A questão interessante é pensarmos que essas lógicas de apropriação são, quer no início do processo quer hoje, plurais. Tanto no início do processo como agora, encontramos essas várias lógicas de acção presentes no campo de educação e formação e na forma como os Cursos EFA são desenvolvidos. Admito que o peso destas diferentes lógicas de acção se vá alterando, creio que nós, muito provavelmente com esta massificação, estaremos a reforçar lógicas que são muito de prevenção social, com tudo o que isso significa. Também admito que, em alguns casos, se esteja a alargar uma certa lógica meritocrática de ver os Cursos EFA. Creio que essas duas lógicas se estarão neste momento a reforçar e admito também que, com esta massificação, outras lógicas que tinham algum peso se possam estar a diluir, como sejam as mais associadas ao desenvolvimento local. Mas não quero também afirmar que se tenham diluído de todo, por exemplo esta lógica de desenvolvimento local. Parece-me expectável que se estejam a reforçar essas lógicas da prevenção social e essas lógicas meritocráticas, nalgum caso, isso admito que sim. Como vê a entrada do mundo escolar nos Cursos EFA? Parece-me incorrecto pensar que todas as escolas entram da mesma forma nestas iniciativas. Não entram – em cada escola, em muitos casos, está presente mais do que uma lógica de acção que se combina de uma forma às vezes mais tensa, outras mais fácil. Mas parece-me que não haverá grandes dúvidas de que, com a entrada da escola, há um certo reforço dessa lógica meritocrática. Esta forma de encarar os Cursos EFA valoriza muito o mérito, o esforço individual, valoriza muito os conteúdos que devem ser Os percursos em que adultos estão envolvidos têm de ser encarados como processos em que há reconhecimento de competências, validação parcial dessas competências, mas também articuladas com a construção de projectos de vida que sejam também projectos de formação. 8 APRENDER ENTREVISTA transmitidos, persegue a avaliação de uma forma ainda muito selectiva, encara o formador numa lógica de transmitir saberes que estão associados à escola; e portanto admito que estas lógicas se reforcem com o peso crescente das escolas neste campo. É um processo engraçado porque, apesar de os professores que estão agora envolvidos nos Cursos EFA serem professores novos, que não viveram os cursos nocturnos de antigamente, notase uma saudade do tempo em que os alunos do ensino nocturno eram alunos que se esforçavam, que se empenhavam, que estudavam muito, que é um tempo que hoje já não faz nenhum sentido, porque o tipo de adultos que nessa altura se envolvia nesses processos não tem nada a ver os adultos que hoje se envolvem. Com tudo isto, com a entrada da escola haverá o reforço dessa lógica mais meritocrática mas quero também deixar claro que conheço muitas escolas em que isso não acontece, em que se combina com outras lógicas. O facto de a escola entrar não condena que as coisas sejam assim, mas reforça a probabilidade de isso acontecer. Mas não corremos o risco de a escola reproduzir com os adultos um modelo dirigido aos jovens, que já por si, vem sendo largamente contestado? Creio que é um problema central neste campo. Não podemos subestimar o facto de esta expansão do campo da educação e formação de adultos ter sido muito recente, e o facto de ser muito recente significa que tivemos de ir buscar entidades, profissionais, responsáveis cuja formação não foi feita neste campo. Este campo constrói-se com o recurso a áreas adjacentes, nuns casos muito viradas para a área social. Estão envolvidas no campo da educação de adultos entidades, pessoas, profis sionais que vieram de uma área de intervenção numa lógica de prevenção social, e que trazem para este campo lógicas e perspectivas que foram construídas nesse campo como trou xeram, sobretudo nesta ultima fase, com as Novas Oportuni dades, as lógicas que estão presentes nas escolas. Isso é uma realidade que nem sei se seria fácil evitar, porque a expansão rapidíssima que se fez deste campo teve de recorrer a áreas adjacentes com as lógicas que aí estavam presentes. O problema que temos é uma falta de tradição consolidada na educação de adultos, de reflexão construída neste campo, com lógicas de trabalho consolidadas e isso é indesmentível, não tenho a menor dúvida que esse risco existe. Vamos sempre bater nesse ponto fraco. Na sua tese faz uma análise da evolução da educação de adultos em vários países e quando chegamos à realidade portuguesa os resultados são sempre débeis. Sou um optimista moderado e creio que há, apesar de tudo, um aspecto interessante no que tem acontecido nos últimos anos e sobretudo no que aconteceu a partir de 1998, com o Grupo de Missão e depois com a ANEFA, que é o facto de se estar a construir um campo profissional com jovens que fizeram a sua socialização profissional neste campo. Isto hoje já é uma realidade com muito significado, são pes soas que fizeram essa socialização profissional de uma forma rápida, acelerada, com os riscos que isso também comporta mas que, apesar de tudo, não vieram de outras áreas, construíram-se nesta área. Neste momento estão a fazer pós-graduações, e portanto também admito que estejam a fazer processos de reflexão sobre as próprias práticas que estão a desenvolver. Isso é que nos pode dar alguma esperança em termos futuros. Vejo aqui um problema, que é o facto de estarmos a focalizar muito a intervenção da educação de adultos em áreas que conduzem à certificação escolar, seja através de processos de reconhecimento e validação, seja através de processos de for Tenho uma leitura positiva, estamos melhor agora para vencer os desafios que temos pela frente do que estávamos antes dessa massificação. AO LONGO DA VIDA 9 mação. Significa que esta socialização profissional tem sido, continua a ser, afunilada nesta área da certificação. Só ganharíamos em termos estes profissionais, estas enti dades envolvidas noutro tipo, noutras áreas tradicionais de intervenção da educação de adultos. Mas, para isso, nin guém se iluda, terá de significar uma aposta política clara, a existência de programas destinados a promover esse tipo de práticas não-formais de educação de adultos. Se isso for feito, se construirmos esta articulação entre este campo, com muitos jovens, que têm estado mais vocacionados para a certificação, com outras áreas de intervenção, isso pode alterar muito do que acontece neste momento, isso é que me dá esse optimismo moderado, mas esse optimismo. Não podemos esquecer que os contributos que a educação de adultos trouxe para o próprio pensamento educativo foram contributos que resultaram muito do facto de ter sido um campo com um lastro imenso de experiência no campo dessa educação não-formal. E trouxe muitos contributos para todas as outras áreas da educação. Só podemos continuar a enriquecer este campo se reforçarmos esse lastro, se considerarmos este lastro e enriquecermos a nossa reflexão em torno dessas práticas não formais, com tudo o que isso significa e que conhecemos, que é a valorização das experiências dos adultos, que é o carácter dialógico das práticas que desenvolvemos, que é o considerar a vida quotidiana das pessoas como os contextos mais interessan tes para que os processos de formação se realizem. Todo esse património que construímos e consolidamos, é um património que tem agora de se estender a estes novos profissionais que estão envolvidos neste campo. Nos últimos anos houve uma grande preocupação em certificar os Cursos EFA. Não considera que essa preocupação foi excessivamente valorizada em detrimento de uma educação mais preocupada com uma dimensão social? Concordo consigo. Uma coisa de que consegui aperceber-me no estudo, é que houve várias fases de adesão aos cursos EFA. Inicialmente, o Grupo de Missão e depois a ANEFA chamaram aquelas entidades que tinham esse tal lastro de intervenção no campo da educação de adultos e que trouxeram para os Cursos EFA essa visão que tínhamos consolidado. Mas é bom não nos iludirmos, muito rapidamente esses Cursos EFA foram promovidos por entidades que não tinham experiência na edu 10 APRENDER cação de adultos, entidades de cariz social, empresas de forma ção, que recorreram, em muitos casos, a professores, em que todas as outras lógicas foram estando presentes. E aí está o grande problema, a educação de adultos em Portu gal, mesmo depois do 25 de Abril, foi sempre muito dicotómica. Tivemos meia dúzia de entidades, grupos muito limitados que faziam intervenções na área da educação de adultos mas já com grande suporte de reflexão teórica, programática; e depois a iniciativa social no campo da educação de adultos, sendo meri tória, é uma iniciativa de pequenas associações, muitas vezes muito periféricas que, desenvolvendo um trabalho interessante, é muito pouco reflectido. Quando os Cursos EFA surgem só pudemos contar, mesmo no Grupo de Missão e depois na ANEFA, com um pequeno núcleo de entidades. Sempre que procurámos estender a intervenção, inevitavelmente tivemos de ir buscar entidades e pessoas cujas lógicas de intervenção são diversas. Isso era inevitável, acho que não tínhamos grandes alternativas e a única forma de escapar a isto é assegurar um leque amplo de programas e de intervenções, aí sim, podemos ir consolidando em todo este campo estas lógicas diversas e estes contributos que Vejo um problema – o facto de estarmos a focalizar muito a intervenção da educação de adultos em áreas que conduzem à certificação escolar, seja através de processos de reconhecimento e validação, seja através de processos de formação. Significa que esta socialização profissional tem sido, continua a ser, afunilada nesta área da certificação. ENTREVISTA fomos concretizando. O desafio passa por aqui e tem de haver um esforço muito sistemático para promover essas dimensões não formais. Creio muito francamente que se não o fizermos estamos a condenar o esforço que estamos agora a realizar para certificar adultos. Quando digo que é preciso articular cada vez mais processos de reconhecimento e validação com processos de formação, não quero com isto dizer processos de formação certificada – o que é preciso é articular o envolvimento de adultos em experiências educativas mais diversas, que depois serão possivelmente vali dadas no contexto dos processos de RVC. Conhecendo o que se passa noutros países, caminharemos inevitavelmente para isso. Também não podemos esquecer que o nosso país tinha um desafio distinto do dos outros países desenvolvidos. Temos uma circunstância de uma população adulta com níveis de qualificação escolar absolutamente catastróficos. Nesse sentido, percebo que haja esta ênfase na certificação, é um desafio que era imprescindível, e quero ver, com esse meu optimismo moderado, o lado positivo dos resultados destes esforços, mesmo quando os processos se realizam de forma que não é a que mais me agrada. Verifica-se, e os dados mostram isso sem a menor dis- cussão, que as pessoas que passam por esses processos ficam com uma vontade de continuar percursos educativos – uma coisa absolutamente fascinante. Muitas vezes significa passar para etapas seguintes dos percursos de certificação escolar, mas em muitos casos não. As situações de pessoas que passaram por esses processos e desde aí começaram a ler regularmente, ou que foram aprender línguas estrangeiras... Este tipo de situações parece-me certa, o problema é como potenciamos isto, o que significa, em articulação com a rede existente, criar essas novas vias, essas novas soluções. Aí estaremos a conseguir fazer uma revolução na aprendizagem em Portugal. Há dias um formador dizia-me que era muito importante manter as pessoas estimuladas intelectualmente, porque assim liam jornais, livros e tinham outro tipo de preocupações. Exactamente porque tínhamos essa realidade impensável em termos de certificação escolar da população adulta, conseguimos conquistar imensos adultos para um contacto com entidades que promovem educação. Por isso é um erro imperdoável se não utilizarmos esta conquista fantástica para AO LONGO DA VIDA 11 alargar os âmbitos da intervenção. O que também obrigará a um empenhamento muito mais forte neste esforço para o concretizar, por parte das autarquias. Que novas prioridades acha que precisamos de estabelecer? Estas novas prioridades podem ser encaradas de várias formas. Podemos pensar em novas prioridades em termos de âmbitos de intervenção, e aí o alargamento é óbvio, mas mesmo quem tem estado tradicionalmente envolvido na educação de adultos também precisa de alargar um pouco a forma como isto tem sido encarado. Uma das coisas com que me tenho confrontado na minha experiência como educador de adultos, é aperceber-me como é cada vez mais importante ajudar as pessoas a fazer uma outra leitura, não apenas do mundo social, que tem sido uma das nossas preocupações interessantes, mas do próprio mundo físico – por exemplo ao nível das ciências físicas e naturais. Na educação de adultos sempre fizemos percursos muito próximos das humanidades, mas hoje, no contacto que tenho com pessoas de todo o tipo, uma das ambições que encontro nelas é encontrar a resposta. Por exemplo, porque estou, neste momento, a ver na televisão um jogo de futebol que decorre na África do Sul? O que torna possível que esse jogo seja transmitido em directo? O que é isto da televisão? O que permite que a electricidade funcione na minha casa? Isto tem dimensões sociais que devem ser vistas, mas há estas outras dimensões de compreensão do mundo físico que me parecem imprescindíveis. Estas novas prioridades têm a ver com uma marca fortíssima da educação de adultos e que se tem perdido, que é renovar e reforçar esta lógica mais comunitária do trabalho da educação de adultos e que faz todo o sentido para as pessoas. Não quero que um educador de adultos que faça trabalho comunitário faça apenas um trabalho de proximidade, que ouça as pessoas; não quero só isso. Conheço muitos animadores sem nenhuma formação que fazem esse trabalho de uma forma fantástica, mas o que preciso é tornar esse trabalho comunitário uma oportunidade que permita às pessoas, por exemplo, reforçar a aprendizagem em termos de matemática para a vida, ou de compreensão do mundo físico, ou de compreensão do mundo social, e isso é que é difícil. Este trabalho comunitário é muito interessante, mas é um trabalho também de assegurar uma intencionalidade educativa nestes processos, e é esse contributo que o educador de adultos pode dar relativamente a outros trabalhadores da área social – assegurar que estes processos se tornem o mais enriquecedores possível para as pessoas. E isso também é algo fascinante. Com encara a ligação dos Cursos EFA à componente de formação profissional? Quando se pergunta aos adultos o que ganharam, no fim desse percurso, mesmo nos percursos de dupla certificação, é muito curioso verificar que os ganhos fundamentais são os que têm impacto na vida profissional mas que se adquirem não apenas na formação profissional, mas na educação em geral – esse gosto por aprender, a curiosidade sobre as coisas, a capacidade de construir projectos. E esses são os desafios fundamentais e que têm um impacto na vida profissional, mas também nas outras dimensões da vida dos adultos enquanto cidadãos. Sem menosprezar a importância da formação profissional, mas se perdemos de vista que é sobretudo isto que se ganha e que é sobretudo isto que é importante também na vida profissional, acho que se perde o essencial na educação de adultos. Quero encarar este campo da educação de adultos como um campo em que há experiências muito diversas, umas que me agradam, outras que me agradam menos, não quero um campo talhado à medida dos meus gostos, quero um campo suficientemente multiforme para assegurar que não se esgota na formação profissional, não se esgota na certificação escolar e assegura aquilo que são as experiências da educação de adultos que estes reconhecem como mais enriquecedoras. Mas não tenho nada contra que se continue a fazer formação profissional, porque admito que haja circunstâncias em que ela é válida. ENTREVISTA A educação de adultos acaba por estar muito dependente economicamente do Estado e dos programas comunitários. Como encara estas mudanças e que consequências trouxeram? Condiciona muito. Neste momento, os programas, designa damente os programas comunitários, condicionam muito aquilo que se realizou no campo da educação e formação de adultos. No caso português é mais sério do que noutros países, porque o Estado não tinha uma intervenção tradicional neste campo. Portanto o que acontece é que um campo que hoje vive muito desses programas comunitários está muito dependente das orientações desses programas. E essas orientações não são apenas em termos das áreas de intervenção, mas são mes mo dos próprios protagonistas. Sabe-se, claramente, que as transições dos quadros comunitários é que implicaram que se considerasse que era necessário reforçar os grandes temas públicos numa intervenção que se queria muito estendida. Parece-me um risco sério, estarmos a ficar dependentes, quase em exclusivo, desses programas, desses mecanismos de financiamento. Só poderemos ultrapassar isso quando, ao nível do Estado, se reforçar o peso quer das autarquias quer das entidades regionais, quando elas se vierem a constituir. Não me parece possível alargar a intervenção da educação de adultos sem isso acontecer. Nos concelhos em que as autarquias apostam nesta área começa a verificar-se uma clara diferença relativamente aos restantes concelhos. Vai acontecer o mesmo que se está a passar com as escolas? A haver cada vez mais uma participação das autarquias? Aqui vamos ter um problema. Acho que não devem ser as autarquias a promover, acho que devem ser as autarquias a criar mecanismos de apoio às iniciativas de educação de adultos. E aqui temos uma dificuldade, que não vale a pena minimizar, que é a realidade autárquica, uma realidade muito diversa, a começar pela dimensão das autarquias. Creio que, em alguns casos, os concelhos já têm uma dimensão que permite que a autarquia crie programas interessantes nesta área, mas admito que noutras autarquias isso seja muito mais difícil. Mas pareceme absolutamente fundamental um reforço das autarquias, sem terem a tentação de querer controlar tudo. Não nos iludamos: na área da acção cultural isso já se verificou – o papel das autarquias revela-se decisivo, e nesta área de educação de adultos vai ser decisivo também. Em Portugal há um patamar regional que poderia ter muito significado, mas que tem sido sistematicamente adiado e que torna difícil essa intervenção. Neste número abordamos numa reportagem o trabalho que a Associação Terras de Dentro começou a desenvolver no âmbito de incentivo dos adultos à leitura, e deu para perceber que apesar do trabalho meritório desenvolvido ainda há um largo caminho a percorrer. Em relação a esse plano nacional de leitura, agora vocacionado para os adultos, começam a surgir em alguns CNO’s as pessoas a tomar contacto com a possibilidade de constituir comunidades de leitores. É algo de que não temos tradição nenhuma, mas começa a perceber-se essa possibilidade, começam a pensar noutras soluções. O que por vezes falta é o contacto, claro que a revista já é interessante, mas mais interessante ainda é quando começar a haver um intercâmbio de técnicos para conhecerem estas experiências. Muitas vezes é isso que falta também, mas acho que vai acontecer – cá está outra vez o meu optimismo moderado – porque neste momento há já vários CNO’s que começam a encarar a sério esta questão, – o que vamos fazer com os adultos que fizeram percursos aqui, fizeram o B3 e agora vamos envolvê-los no secundário, mas muitos deles já fizeram também o secundário e qual será o passo seguinte? A vontade de manter o contacto com estes adultos também vai ajudar a que as pessoas pensem outros contextos, outros âmbitos, outros projectos sem os quais também não há educação de adultos. A educação de adultos é assumir que é bom mexer com as pessoas. Se não, não se é educador de adultos, e para isso necessariamente tenho de ser um optimista. Para terminar. Há algum tema que gostasse de abordar, de que ainda não tenhamos falado? Por a educação de adultos ser um campo a que afluíram, há muito pouco tempo, muitas pessoas, muitas entidades, um dos problemas que temos é que muitas dessas pessoas têm uma visão limitada das possibilidades que este campo tem. Nesse sentido, uma das coisas interessantes é a existência de associações como esta e de revistas como a Aprender ao Longo da Vida. Um das coisas que se percebe nos Centros de Novas Oportunidades e nas entidades que promovem Cursos EFA, uma das curiosidades na leitura desta revista, não é tanto ver o que conhecem já, mas exactamente perceber outras possibilidades que, para muitas pessoas, não são visíveis. E este alargamento de campo precisa muito de contributos como o da Associação e o da Revista. Plataformas como estas são decisivas. n Tem de haver um esforço muito sistemático para promover essas dimensões não formais. Creio muito francamente que se não o fizermos estamos a condenar mesmo o esforço que estamos agora a realizar para certificar adultos. AO LONGO DA VIDA 13 E RECOMPOSIÇÃO INDUZIDA DO CAMPO DA EDUCAÇÃO BÁSICA DE ADULTOS Lógicas de apropriação local num contexto político-institucional redefinido. LUÍS ROTHES, 2009 Fundação Calouste Gulbenkian, Fundação para a Ciência e Tecnologia. 556 pp Por Olívia Santos Silva Coordenadora da Equipa Novas Oportunidades da DREN (Direcção Regional de Educação do Norte) 14 APRENDER m mais de 600 páginas muito bem escritas, permeadas pelos contributos teóricos de autores consagrados e pelos discursos de diversos actores, Luís Rothes desenha, de modo dinâmico e abrangente, o percurso da educação de adultos (EA) em Portugal, nas suas relações e contrastes com o contexto internacional, detendo-se no período de duração da ANEFA, em que os cursos EFA surgem como analisadores do processo de recomposição de um campo que se tornou heterogéneo e complexo e que raramente conseguiu superar a sua fragilidade histórica e a desvalorização social e política do direito dos adultos à educação. Nesta tese, tecida numa trama con ceptual eminentemente sociológica, mas conhecendo outros contributos disciplinares, é possível perscrutar o campo da EA em múltiplos ângulos de acção e organização, permitindo a diferentes leitores ir em busca de esclarecimento para as suas preocupações, questões e interrogações. Nada parece ter ficado de fora. Não me querendo prender com a densidade dos conceitos, sublinharia a textura desta narrativa que nos permite compreender como é que, nos contínuos movimentos de abertura e retraimento, de crises e resistências, o campo da educação de adultos se foi reconfigurando, com marcas evidentes da visão e do posicionamento do Estado face às políticas educativas, mas também à luz das grandes transformações sociais, económicas e tecnológicas da moder nidade que não foi capaz de cumprir todas as suas promessas de “afirmação dos direitos sociais e educativos para todos”. Assumindo-se transversalmente com o papel de Estado Avaliador, durante um longo período, o tempo mais longo do seu processo histórico, na sua relação com a educação de adultos, predominou um Estado Constrangente que fechou a educação de adultos na forma escolar, reservando-lhe um lugar marginal no sistema educativo, estreitou e entravou os movimentos e as iniciativas sociais neste domínio. Num segundo momento, o tempo da ANEFA inspirador da mudança, em que se reconhecia a importância da qualificação no desenvolvimento social e económico e se preconizava um novo modelo de educação de adultos, assistimos à sua deslocação para um Es tado Paradoxal marcado por hesitações, ambiguidades e veladas resistências ao abandono das lógicas escolarizantes até aí dominantes. Mantém-se o ensino recorrente ligeiramente ajustado na rede das escolas públicas, malgrado os frus trantes resultados anunciados pela avaliação encomendada pelo governo de então, o IEFP apropria os cursos EFA de acordo com a sua matriz racional, uniformizadora e centralizada, e as novas ofertas são toleradas na iniciativa social, suportada por e dependente dos fundos comunitários, num campo que o autor descreve como um “quase-mercado”. Percebe-se que a proposta da ANEFA – orientada pelas lógicas de “serviço público” e de “programa”, alinhada pelas políticas europeias e desvinculada do modelo escolar – só haveria de encon trar eco no seio de operadores privados atraídos pelos fundos comunitários onde, para responder com a indispensável “lógica de candidatura” num processo que se apresenta muito concorrencial, jogam o seu “capital de candidatura”, enquanto incorporação do capital social e do capital cultural detido pelos dirigentes e técnicos das dis tintas organizações. Estes operadores, com diferentes estatutos institucionais e sociais e com intensidade variável nas suas ligações à educação de adultos, vão construindo, estratégica e intencionalmente, a sua acção entre privilegiadas relações “hori zontais” locais e num jogo hábil de articulações “verticais” com os serviços públicos. Foram ingressando no campo da EA por “vagas” que, sem obedecer a uma sequência deliberada, aconteceram na convergência das diversas, por vezes coexistentes, lógicas de acção que monitorizam os modos de agir das organizações envolvidas, entre as quais se destacam a lógica do serviço meritocrático, a lógica de mercado, a lógica da transformação social e do crescimento pessoal e a lógica RECenSão do desenvolvimento local. Deste modo, se foi ampliando e complexificando o leque de promotores de cursos EFA. Os primeiros promotores foram desafiados pelo seu “mérito” ou pelo seu envolvimento no “desenvolvimento local”, porque se lhes reconheceu pro pósitos inovadores, se observou uma intervenção abrangente mas com prá ticas consistentes na formação de adul tos e porque, com experiência noutros programas europeus, detinham, simul taneamente, o imprescindível capital de candidatura para acederem aos financia mentos e executarem com sucesso e eficiência os projectos. Estas entidades são designadas pelo autor como “consolidados expectáveis”. O reconhecimento do potencial ape lativo das pessoas e das instituições do modelo, que assegurava a existência de interessados, e a credibilização social dos cursos EFA que, pela valorização dos saberes prévios dos sujeitos, pelo seu enraizamento na vida quotidiana e pela incorporação dos tempos e espaços da vida comunitária, testemunhavam a sua capacidade para manter os adultos ao longo de todo o processo formativo, conduziriam à forte adesão de um segundo ciclo de entidades que viriam a organizar um universo plural e heterogéneo, surgindo denominadas como “adjacentes aproximáveis”. São “entidades locais institucionais”, “grandes entidades supra-locais” e empresas de formação, já existentes ou entretanto criadas, com inequívocos fins lucrativos, agindo portanto numa “lógica de mercado”, que viriam a constituir um grupo de dimensão apreciável no desenvolvimento desta oferta formativa. A necessidade de financiamentos para subsistência destas organizações fez com que o campo da educação e formação de adultos se configurasse como um espaço de mercado assistido. No terceiro movimento de adesão, caracterizado por um carácter de incuba ção da formação, emergem promotores sem capital de candidatura, colectividades institucionais e periféricas, movidas por preocupações de “transformação social e crescimento pessoal”, que dependem de entidades acreditadas para elaborarem e executarem os projectos. São, nesse sentido, intituladas como “dependentes precários”. A interpretação das práticas das ins tituições promotoras dos cursos EFA, na diversidade das suas concepções, da sua natureza ideológica e da sua missão, é realizada à luz de ambiguidades, limi tes, tensões e contradições que o autor se propõe analisar através da construção teórica de dilemas, enquanto problemas que se oferecem a soluções contrárias ou encruzilhadas que desafiam à criação de regras nas quais os actores institucionais se sustentam para tomar decisões orga nizacionais e pedagógicas. É, pois, entre duas opções contraditórias que os distintos promotores apropriam e concre tizam um mesmo modelo formativo. São colocados três dilemas em obser vação. O primeiro remete para uma “perspectiva programática”, que faz oscilar o cursor de análise entre a preven ção social e a transformação social, opções respectivamente associadas ao papel preponderante do estado, de um lado, e do mercado, do outro, ou dito de outro modo, entre a justiça e coesão social e os interesses económicos. O segundo dilema coloca-se na inter dependência externa das organizações, ora fechadas na formação que, entendida como unidade de execução, visa acima de tudo superar as carências cognitivas e sociais dos formandos, independentemente dos seus contextos sociais e profissionais, ora colocando o ênfase na participação e na transformação social e cívica, em que a comunidade e o território surgem como recursos educativos fundamentais e em que a formação ganha conteúdo, significado e sentido no olhar crítico sobre a realidade comunitária e na problematização das condições de existência dos sujeitos. Estamos, assim, perante duas concepções limite, uma que, suportada pelo princípio da autonomia relativa, se firma “em lógi cas de modernização tecnocrática da educação”, e outra que preconiza, para a educação, uma abordagem contex tualizada, comprometida com práticas de trabalho comunitário, que busque um “sentido transformador e demo cratizante” da vida individual e social. O terceiro dilema evocado prende-se com as opções sobre a abordagem ao currículo, apresentando duas visões divergentes. De um lado, o currículo pres crito, centralmente definido, desligado dos contextos de acção e interacção dos formandos, concebido como transmissão e acumulação passiva de conteúdos situados no interior das próprias disciplinas, percebidas como de fronteiras fechadas, e numa sequência linear pré-estabelecida, onde há pouco espaço para a construção do conhecimento pelos próprios apren dentes; o enfoque coloca-se nos resultados, enquanto produto da formação. Do outro lado, perspectiva-se o currículo como projecto aberto, flexível e integra do, trabalhado no diálogo entre saberes disciplinares, planificado pelos formadores e pelos formandos de modo colaborativo, em contextos democráticos e informados pelo conhecimento proveniente de diversas fontes dentro e para além das áreas disciplinares, em que a aprendizagem se organiza em unidades temáticas centradas em problemas, questões e situações emanados das percepções, crenças, valores, preocupações e interesses dos sujeitos, numa abordagem que recons trói, aprofunda e amplia a compreensão de si próprios e do seu mundo, apresentando-se como um desafio à imaginação e à descoberta, concretizando-se em experiências curriculares construtivas e reflexivas, defendendo que, quanto mais significativa for a aprendizagem, mais situada em contexto e mais enraizada no conhecimento cultural, pessoal e meta cognitivo, mais rapidamente o conhe cimento é compreendido, aprendido e recordado; sem perder de vista os resultados, privilegiam-se os processos. Por limitações textuais, nesta modesta síntese de um trabalho que nos concede um estudo amplo e denso da educação de adultos em Portugal, muito ficou retido nas páginas de uma obra que é de referência. Para aqueles se preocupam com esta temática, fica o convite à sua leitura integral. n AO LONGO DA VIDA 15 C ONFI DOSSIER SEXTA CONFERÊNCIA INTERNACIONAL EDUCAÇÃO DE ADULTOS 16 APRENDER INTEA Este dossier é dedicado à CONFINTEA VI, que decorreu em Belém do Pará, no Brasil, em Dezembro. Esta conferência, que é da responsabilidade da UNESCO e só se realiza de dez em dez anos, é sempre um momento importante para quem se interessa pela educação de adultos, trazendo a lume discussões teóricas, promovendo o entendimento das pessoas que trabalham para os governos e da sociedade civil. A Aprender ao Longo da Vida reuniu opiniões de personalidades portuguesas e estrangeiras que podem ajudar os nossos leitores a reflectirem sobre os caminhos que se colocam à Educação de Adultos no mundo e particularmente em Portugal. AO LONGO DA VIDA 17 18 APRENDER DOSSIER CONFINTEA VI Timothy Ireland Doutor em Educação na Universidade de Manchester, foi Director Nacional de Educação de Jovens e Adultos no Ministério da Educação, em Brasília. Actualmente, trabalha na Representação da Unesco no Brasil onde coordenou a organização da CONFINTEA VI pelo lado brasileiro. A CONFINTEA vista da cozinha: viva o carimbó * Relato de quem trabalhou na ‘cozinha’ de uma CONFINTEA marcada, de um lado, pelo fato de ser a primeira realizada no hemisfério sul e, de outro, gestada numa conjuntura de múltiplas crises, a ameaça cada vez mais presente de aquecimento global e do colapso do sistema financeiro mundial acompanhado por uma profunda recessão econômica. A organização de uma conferência inter nacional nunca é tarefa fácil, uma CONFINTEA menos ainda: esta, por ser conferência intergovernamental (categoria II na classificação da UNESCO), já nasce complexa, regida por um conjunto de regras e procedimentos formais (sem falar em questões cerimoniais e de segurança) que lhe confere importância e, ao mesmo tempo, impõe certa rigidez e limita as possibilidades de inovação. O relato apresentado aqui não pre tende avaliar o impacto da VI CON FINTEA, realizada em Belém do Pará, Brasil, nem comparar os seus resultados e processos com os da CONFINTEA anterior, realizada em Hamburgo (será que, no futuro, Belém terá o mesmo status que Paris quando comparada com Tóquio?). Não pretende tampouco narrar o longo processo formal de sua preparação, com as antecedentes mobilizações tipo de conferências merece uma rápida nacionais e conferências regionais, nem explicação. A responsabilidade pela pro contar as anedotas dos seus bastidomoção das CONFINTEAs é da UNESCO. res (as vísceras de um complexo corpo A Conferência Geral da Organização multilinguístico, multicultural e de lógi delegou ao Instituto para Aprendizagem cas bizantinas). Pretende, muito modes ao Longo da Vida (UIL), em Hamburgo, tamente, tentar externar a lógica de uma como centro especializado em apren parte da organização do evento, que prodizagem e educação de adultos, a res vavelmente os participantes não enxerponsabilidade pela organização do garam de fora. É o relato de quem trabaevento. Por meio de um acordo (Host lhou na ‘cozinha’ de uma CONFINTEA Country Agreement) o governo do país marcada, de um lado, pelo fato de ser anfitrião responde pela infra-estrutura a primeira realizada no hemisfério sul, da conferência. Por sua parte, o governo num país emergente e numa região trobrasileiro, por intermediação do Minis pical e, de outro, gestada numa conjuntério da Educação, estabeleceu parcerias tura referenciada por múltiplas crises, a com a Representação da UNESCO ameaça cada vez mais presente de no Brasil (conhecido cari aquecimento global e do co* Nota: nhosamente como UBO – lapso do sistema financeiCarimbó: género UNESCO ro mundial acompanhamusical de origem do por uma profunda indígena. O seu nome, em recessão econômica. tupi, refere-se ao tambor com o E isso, sem mencio qual se marca o ritmo, o carimbó. nar a pandemia de Surgido em torno de Belém na zona do gripe H1N1, temida à Salgado e na Ilha de Marajó, passou época internacional- de uma dança tradicional para um mente! ritmo moderno, influenciando a A organização desse lambada e o zouk. AO LONGO DA VIDA 19 No dia de abertura, os participantes VIPS plantaram espécies de árvores nativas da região amazônica no complexo administrativo do HANGAR. Mais 156 árvores – uma para cada delegação nacional – completaram o que será conhecido como O Bosque das Nações. Brasilia Office) e o Governo do Estado do Pará, representado principalmente pela Secretária Estadual de Educação (SEDUC/PA), que formaram a coordenação nacional e criaram o comi tê organizativo local. É desse processo organizativo que vamos falar aqui. Contudo, antes disso, as questões mais prementes eram: em qual cidade brasileira realizar a CONFINTEA e como escolher o anfitrião? De início foi decidido que seria numa cidade das regiões norte ou nordeste. Após convidar todos os Estados das duas regiões a enviarem propostas, a cidade de Belém foi selecionada. Apresentava um exce lente centro de convenções, um forte compromisso com a educação de jovens e adultos, uma rede hoteleira adequada, e, acima de tudo, Belém, no coração da região amazônica, exemplifica um dos maiores desafios mundiais: a promoção do desenvolvimento humano a partir de paradigmas de sustentabilidade, um dos principais temas da conferência. As críticas não tardaram em chegar, resumidas na pergunta: por que escolher uma cidade tão distante da ‘civilização’ (de São Paulo, do Rio, de Brasília, etc.) e de difícil acesso? A resposta foi a de que segurança, conforto e bem-estar dos participantes seriam critérios sempre pre sentes, porém, seria inconcebível realizar uma CONFINTEA ‘pasteurizada’ no Bra sil – pelo contrário, a Amazônia possui uma diversidade cultural, linguística, étnica e ecológica como poucos lugares no mundo e são esses os desafios que a aprendizagem e educação de adultos têm de abraçar. Escolhida a sede, partimos para for mar o comitê organizador. O comitê nasceu com uma missão incômoda: como conciliar o tema (“aprendizagem e educação de adultos”), o lema (“Vivendo 20 APRENDER e aprendendo para um futuro viável – o poder da aprendizagem de adultos”), o local, a conjuntura geral de crise e a organização interna da Conferência? Três princípios básicos terminaram se impondo para orientar as decisões: respeito pela cultura de sustentabilidade, pela participação democrática e solidária e pela indissociabilidade entre educação e cultura. Assim, a receita básica para a Conferência emergiu do forno coletivo. Em âmbito nacional, o UBO, o Minis tério da Educação e alguns outros Minis térios, com destaque para o Ministério de Relações Exteriores, já estavam bem articulados. Em Belém, representantes do Governo do Estado, da Prefeitura, das duas universidades públicas (estadual e federal) e de outros órgãos públicos for maram sete grupos de trabalho – ceri monial, cultura, segurança, logística, universidades, comunicação e ambien talização. Os desafios: como preparar a infra-estrutura da conferência de tal maneira que seria possível minimizar a agressão ao meio ambiente da cidade; como fazer da organização da confe rência um processo democrático e par ticipativo e, ao mesmo tempo, sem ferir o seu status de conferência intergover namental, como permitir uma parti cipação mais ampla aproveitando as novas tecnologias de comunicação e, por último, como fazer da cultura uma parte integral do programa da CONFINTEA? Perpassando tudo, havia o desejo de fazer do processo organizativo um profundo processo de aprendizagem coletiva – a procura da coerência entre forma e conteúdo! Na busca pela cultura de sustenta bilidade da conferência, adotamos algu mas medidas mais corretivas que inova doras. Um eficiente sistema de inscrição on-line para as delegações nacionais, articulado com uma boa base de dados, minimizou o uso de correio e papel. Durante a conferência os delegados receberam um pen-drive no kit para diminuir a costumeira montanha de papel e fotocópias. O local do evento – Centro de Convenções da Amazônia – HANGAR - oferecia acesso à internet gratuitamente por meio de wi-fi e computadores espalhados pelo prédio. Cada participante também recebeu um squeeze para água, no afã de reduzir aquele constante fluxo de copos de plástico. Até os ministros presentes na Conferência fizeram a sua parte – em lugar de carros individuais colocamos vans executivas à disposição. Simbologia sempre desempenha um papel necessário numa conferencia internacional. No dia de abertura, os participantes VIPS plantaram espécies de árvores nativas da região amazônica no complexo administrativo do HAN GAR. Mais 156 árvores – uma para cada delegação nacional – completaram o que será conhecido como O Bosque das Nações. Um inventário da emissão de gases de efeito estufa (GEE) em toneladas de CO2 gerados pela Conferência foi convertido em um número estimado de árvores nativas regionais a serem plantadas para minimizar o impacto de aquecimento global. Os organizadores locais da VI CONFINTEA estão prepa rando o plantio adicional de 144 espécies nativas, para compensar a emissão de GEE durante os quatro dias do evento. Cada delegação foi convidada a plantar o número de árvores nativas regionais em seus próprios países, proporcional ao tamanho da delegação e à distância percorrida. Argumentos de que a Confintea é elitista não são estritamente verdade. O processo Confintea, em contraponto DOSSIER CONFINTEA VI ao evento Confintea, demanda estra tégias amplas de mobilização e discus são. No Brasil, a mobilização abarcou encontros estaduais, regionais e nacio nal. Ao levantarmos a bandeira da par ticipação democrática e solidária, não foi com a intenção de criticar, mas a de buscar meios para viabilizar que o maior número de pessoas pudesse acom panhar (sem intervir) as discussões e deliberações da conferência. Assim, organizamos a transmissão on-line para pontos de recepção no Estado do Pará e para qualquer pessoa, em qualquer parte do Brasil ou do mundo, acompanhar o evento pelo seu computador. Como componente local da transmissão, as universidades programaram o que ficou conhecido como a Confintea Ampliada. Além de poder acompanhar as mesas redondas e palestras, foram organizadas duas mesas redondas sobre EJA nos países africanos de língua portuguesa e nos países latino-americanos, aproveitando a formaram o espaço para a tomada de decisões e para diversos níveis de articu lação com os governos (estadual e muni cipal) e a sociedade civil local. Ques tões como segurança exigiam complexa coordenação de diferentes níveis de agen tes e atores – polícia federal, polícia militar, polícia civil, polícia rodoviária, guarda civil, etc. – cada um com suas respectivas atribuições e hierarquias. Transporte e rotas precisavam ser planejados com os mínimos detalhes junto à Secretaria de Trânsito da Prefeitura, sempre arti culada com a Polícia Rodoviária que faria a escolta dos VIPS. Discussões sobre cerimonial tendem a ocupar um tempo desproporcional enquanto se decide quem terá direito a discursar e por quantos minutos (no fundo uma discussão fútil porque VIPS, por serem VIPS, tendem a se sentir no direito de falar sem restrições temporais), em que ordem as VIPS falariam e quem iria sentar em qual lugar. Alimentação, saúde, REALIZAR UMA CONFINTEA ‘pasteurizada’ no Brasil é inconcebível – pelo contrário, a Amazônia possui uma diversidade cultural, linguística, étnica e ecológica como poucos lugares no mundo e são esses os desafios que a aprendizagem e educação de adultos têm de abraçar. presença dos delegados na cidade. A Influenza (gripe) A acrescentou uma variável inesperada. A partir da decisão prudente, em maio de 2009, de o governo brasileiro adiar a conferência como medida cautelar frente à pande mia (como os nossos dedos nos traem – escrevi ‘pandemônio’ antes de me corrigir!), tivemos, com efeito, que des fazer a organização para maio, re-fazer para dezembro e, assim, na prática, foi como organizar duas conferências segui das. Porém, ao retomar as atividades da coordenação nacional e do grupo organizador local, a capacidade e deter minação coletivas de superar o revés transpareceram-se. Os grupos de trabalho e as plenárias transporte, hotéis, interpretação simul tânea, sinalização adequada, vistos de entrada, são todos motivos para noites mal dormidas. Sem mencionar, por mais boa vontade que exista, a complexidade de articular vários níveis de governo, diferentes ministérios e secretarias, ten dências e partidos políticos, governo e sociedade civil. No espírito da participação democrá tica, ficou projetado que o enorme salão de exposições, com quase 70 stands, constituiria um espaço para a troca de informações e experiências educacionais sem o direito a comercialização. Era obrigatório formalizar a solicitação de stand por meio de um sistema web espe cialmente desenvolvido para essa fina CONFINTEA I Dinamarca, 1949 A primeira Conferência Internacional de Educação e Adultos ocorreu em 1949, em Elsinore, na Dinamarca, num contexto de pós-guerra e de tomadas de decisões em busca pela paz. Reuniram-se 106 delegados, 21 organizações internacionais e 27 países, sendo eles: Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, China, Dinamarca, Egipto, Finlândia, França, Alemanha, Grã-Bretanha, Irão, Irlanda, Itália, Líbano, Holanda, Nicarágua, Noruega, Paquistão, Suécia, Suíça, Síria, Tailândia, Turquia, Estados Unidos. Quatro comissões de delegados recomendaram: • que os conteúdos da Educação de Adultos estivesse de acordo com as suas especificidades e funcionalidades, • que fosse uma educação aberta, sem pré-requisitos; • que os problemas das instituições e organizações com relação à oferta precisariam ser debatidos; • que se averiguassem os métodos e técnicas e o auxílio permanente • que a educação de adultos seria desenvolvida com base no espírito de tolerância, devendo ser trabalhada de modo a aproximar os povos, não só os governos e, • que se levasse em conta as condições de vidas das populações de modo a criar situações de paz e entendimento. Os delegados acordaram sobre a continuidade da Conferência em razão das premências da educação de adultos em termos mundiais. AO LONGO DA VIDA 21 lidade e todos os pedidos foram subme tidos à coordenação nacional para apro vação. Pesavam na análise um vínculo estreito com a aprendizagem e educação de adultos e um equilíbrio entre regiões, entre pedidos nacionais e internacionais, entre governos e o terceiro setor. A organi zação oferecia aos expositores um estande padronizado sem cobrança de taxas. Em mais uma expressão da Confintea Ampliada, duas oficinas de leitura foram organizadas em uma escola pública. A oficina serviu ao mesmo tempo para lan çar um livro de leitura: O pequeno livro das grandes emoções, preparado especialmente para neoleitores, cujos primeiros usuários foram 60 jovens e adultos de Belém matriculados em classes de EJA da rede estadual. As oficinas foram conduzidas por uma das duas organizadoras do livro, ela mesma uma autora de livros para esse público, e ganhadora do Prêmio Jabuti em 2009. Na primeira noite, a oficina recebeu uma visita da Princesa Laurentien dos Países Baixos, que, como Enviada Especial da UNESCO, tem defendido a bandeira da alfabetização como direito humano fundamental. Uma conferência internacional, em que mais de 150 paises participam, exi ge um pequeno exército de pessoas for madas para oferecer serviços de infor mação e apoio aos delegados. Coube a nós descobrir como fazer dessa necessidade uma oportunidade de for mação e inclusão para jovens universi tários das duas universidades públicas, sem correr o risco de explorar o traba lho estudantil. No inicio de 2009, 204 estudantes com domínio de uma língua estrangeira foram selecionados para um curso, inicialmente previsto para durar quatro meses, de formação para o even to, com encontros semanais a cada sábado. O curso visava aperfeiçoar a capacidade lingüística dos jovens, bem como oferecer-lhes acesso a outra língua estrangeira, além de tratar de temas amplos como relações internacionais, políticas educacionais para jovens e adultos, a história das CONFINTEAS, o papel da UNESCO e outras agências internacionais, diversidade cultural, cidadania crítica, história da cidade e da região e temas práticos voltados para a hospedagem, alimentação, geografia da cidade, como receber, segurança, saúde, etc. Palestras foram proferidas em inglês, 22 APRENDER Uma conferência internacional, em que mais de 150 paises participam, exige um pequeno exército de pessoas formadas para oferecer serviços de informação e apoio aos delegados. Coube a nós descobrir como fazer dessa necessidade uma oportunidade de formação e inclusão para jovens universitários. espanhol e francês. Os estudantes – moni tores bilíngües – receberam uma bolsa. Com o adiamento da Conferência, o curso foi estendido por mais dois meses. Durante o período da conferência, esses monitores bilíngües atuaram na recepção de delegados no aeroporto, nos hotéis, nos museus e no próprio Hangar, informando, direcionando, apoiando, sob a coordenação dos gru pos de trabalho a quem foram alocados. Ajudaram a lembrar que em muitos paí ses em desenvolvimento são os jovens que povoam os programas e projetos de educação de ‘adultos’, ao tempo em que alegraram o ambiente com a sua energia, sorrisos, bom humor, irreverência e curiosidade frente ao desconhecido. A programação cultural interna e externa foi planejada para expressar a rica diversidade cultural da região, para interagir com a cidade e criar outro mecanismo de participação demo crática, para criar um diálogo entre a cultura popular e erudita e entre as dife rentes linguagens culturais – música, dança, folclore, poesia, teatro – e, acima de tudo, para dialogar com os debates sobre a aprendizagem e educação ao longo da vida como um componente indissociável e inegável do processo de desenvolvimento humano e social e da busca da liberdade. Internamente, as apresentações ocupa vam espaços temporais e espaciais inte gradas à geografia comum da conferência – a escada, o restaurante, o auditório prin cipal, os espaços de circulação, a entrada e saída e até o ‘fumódromo’. Criavam um ambiente em que as pessoas se sentiam acolhidas e confortáveis, questionadas e acalmadas, surpreendidas e ‘estranhadas’. Um ambiente propício para o diálogo e debate. Externamente, a cidade abria as portas dos seus acervos e patrimônios históricos, religiosos e culturais para os visitantes. Os horários dos principais museus foram estendidos para facilitar a visita dos delegados depois do término diário da Conferência. Os participantes receberam um ‘passaporte’ para visitar gratuitamente o parque ecológico Mangal das Garças. A vida noturna cotidiana da cidade oferecia um leque de opções gastronômicas, etíli cas e boêmias. O carimbó esquentava as noites que a brisa da Baia do Guajará tentava esfriar. Na última noite, ao encerrar a Con ferência, o Cortejo da Diversidade Cultural cimentou esta integração da cidade com a diversidade linguística e multiculturalidade dos participantes da CONFINTEA. Quase mil artistas da cidade de Belém e da região desfilaram informalmente, embalando os presentes nos sons, cores, cheiros, ritmos e sabores de uma noite encantada, mila grosamente sem chuva, levando-os pela Cidade Velha para o píer e os shows finais da Banda do Arraial do Pavulagem e do Cordel do Fogo Encantado. O evento CONFINTEA terminava e o pro cesso ganhou novas inspirações. Ao refletir sobre esse processo interno da CONFINTEA, tenho uma enorme vontade de sair da cozinha e sentar-me de novo junto aos comensais. Descobri que, apesar de todos os seus encantos, a cozinha é o lugar onde menos se alimenta e onde mais se trabalha. Agora, só me resta esperar a CONFINTEA VII. n DOSSIER CONFINTEA VI Carlos Alberto Torres É Director fundador do Instituto Paulo Freire da Argentina (2003), Director fundador do Instituto Paulo Freire da Universidade de Los Angeles desde (2002) e Director fundador do Instituto Paulo Freire de São Paulo (1991). É professor de Ciências Sociais e Educação Comparada, Director do Centro Latino-americano e sociólogo político da educação. Recriando o Conceito de Aprendizagem ao Longo da Vida A CONFINTEA VI foi uma tentativa de dar novo vigor à educação e aprendizagem de adultos em todo o mundo, forçando os governos a aceitar que não fizeram o suficiente, e sugerindo novos caminhos na educação e aprendizagem de adultos, especialmente ao nível da implementação de políticas. O encontro tentou levar os governos a pôr em prática as visões teó ricas propostas pela CONFINTEA V, em Hamburgo. A declaração de Hamburgo avançou, há 12 anos, os princípios mais progressivos para a educação e aprendizagem de adultos. O quadro seguinte sintetiza esses princípios: Mais do que um direito, a educação de adultos é a chave para o século XXI. É uma consequência e uma condição para uma cidadania activa. A educação de adultos engloba todo o corpo dos processos activos de aprendizagem. A educação de adultos engloba a educação formal e contínua, a aprendizagem não formal e o espectro da aprendizagem acidental, disponível numa sociedade multicultural de apren dizagem. A educação de adultos deverá con tribuir para a criação de uma cidadania informada e tolerante, para o desenvolvimento económico e social, para a promoção da literacia, o alívio da pobreza e a preservação do ambiente. A Conferência reconheCE que a cir cunstância particular dos Estados Membros irá determinar as medidas que os governos poderão introduzir para promover o espírito dos nossos objectivos. A educação de adultos é concebida dentro da estrutura da aprendizagem ao longo da vida. O papel do Estado alterou-se: den tro das novas parcerias entre o público, o privado e os sectores da comunidade, o papel do Estado é não só ser um fornecedor de serviços de educação de adultos, mas também um conselheiro, um financiador e uma agência de moni torização e de avaliação. A educação básica para todos não é apenas um direito, mas um dever; é o centro da aprendizagem de jovens e adultos. O objectivo principal da educação de jovens e adultos é a criação de uma sociedade de aprendizagem, dedicada à justiça social e ao bem-estar geral. A literacia, amplamente considerada como o conhecimento e capacidade básicos de que todos necessitam, num mundo em constantes e rápidas mudan ças, é um direito humano fundamental. O reconhecimento da educação e do direito de aprendizagem ao longo da vida é, mais do que nunca, uma neces sidade. AO LONGO DA VIDA 23 A aprendizagem de jovens e adul tos deve dar prioridade à expansão de oportunidades para mulheres. A educação de adultos deve con tribuir para a construção de uma cultura de paz e de educação para a cidadania e para a democracia. A educação de adultos deve re flectir e respeitar a riqueza da diver sidade cultural e procurar alcançar a igualdade. A educação de adultos deve provi denciar um acesso equitativo e susten tável aos conhecimentos de saúde. A educação ambiental de adultos deve ajudar a promover a sustentabili dade ambiental. A educação de adultos deve pro videnciar oportunidades para a aprendizagem ao longo da vida a povos indígenas e nómadas. A educação de adultos deve tra balhar na promoção do desenvolvi mento de competências, no contexto das novas políticas laborais para o emprego, inseridas nas economias globais. A responsabilidade da educação de adultos é limitar o risco de exclusão numa crescente sociedade de informação, e impedir que as sociedades percam de vista a dimensão humana. A educação de adultos deve reco nhecer os contributos das populações idosas e criar mais opor tunidades de aprendizagem, em termos de igualdade. A educação de adultos deve pro mover a integração e acesso às pes soas portadoras de deficiência. A educação de adultos deve ser uma parte vital de um plano de subsídios e de investimentos para o futuro. A Conferência pede à UNESCO, como a maior agência da ONU, que promova e facilite a educação de adultos como parte de um sistema integral de aprendizagem. Pede-se à UNESCO que encoraje os Estados Membros a adoptar legislação que facilite às pessoas portadoras de deficiência programas educativos e que seja sensível à diversidade cultural, linguística, económica e de género. A Conferência adopta a proposta de um movimento “uma hora de apren dizagem por dia”, e o desenvolvimento de uma Semana da ONU para a Educação de Adultos. 24 APRENDER No entanto, aconteceram mudanças dramáticas entre as duas Conferências, bem sintetizadas por Richard Desjardins: · “Há pelo menos duas grandes ten dências, que rodeiam a educação de adultos, que se intensificaram nos últi mos anos. A primeira envolve o fenó meno da globalização e a subsequente transnacionalização das políticas de educação, a qual tem uma série de implicações para os estudos políticos. A segunda envolve uma pressão reno vada para uma investigação relevante em termos estratégicos e políticos. As duas estão relacionadas, mas suscitam diferentes tipos de questões, que pertencem ao campo da educação de adultos e também à necessidade de diferentes respostas.”1 Há uma tensão conceptual e prática entre a aprendizagem ao longo da vida e a educação ao longo da vida. No entanto, qualquer reorganização de conceitos sobre a aprendizagem ao longo da vida deve reconhecer uma alteração importante no discurso educacional das duas últimas décadas, uma passagem de “educação” para “aprendizagem”. · A conceptualização da aprendizagem ao longo da vida faz parte de discursos hegemónicos, que são classificados em termos de raça e de género.2 A ênfase num conjunto de capacidades, resultados e competências instru mentais, técnicas e mecânicas tende a seguir “construções neo-liberais da aprendizagem ao longo da vida, inseridas num individualismo hierár quico.”3 · Há uma tensão conceptual e prática entre a aprendizagem ao longo da vida e a educação ao longo da vida. No entanto, qualquer reorganização de conceitos sobre a aprendizagem ao longo da vida deve reconhecer uma alteração importante no discurso educacional das duas últimas décadas, uma passagem de “educação” para “aprendizagem”. Assim, o foco passou do professor para o aluno, e das experiências formais de aprendizagem para as não formais, dentro e fora de instituições educativas, no ambiente de trabalho e por via de uma nova cultura cibernética, em praticamente todo o lado. A parte de “aprendizagem” da história é também um novo desenvolvimento, não necessariamente completamente incorporado ou praticado em todo o lado.4 · Finalmente, a questão do “ao longo” é importante. Quando a aprendizagem passa a ser ao longo da vida, afastamo-nos de um período de tempo na vida de um indivíduo, e afastamonos de um conjunto de instituições muito claramente definidas, que pro videnciam tal educação e facilitam tal aprendizagem. · A aprendizagem ao longo da vida também aborda algumas das necess idades mais básicas dos seres huma nos, incluindo o crescimento e desenvolvimento pessoal, a melhoria da saúde e do bem-estar, ligando explicitamente a aprendizagem e a educação a capacidades laborais e a emprego, à competição numa econo mia global, à inovação e à sociedade do conhecimento como um novo factor produtivo. · No entanto, o conceito é tão abran gente que inclui também contribuições para o desenvolvimento tecnológico e digital, as relações interculturais e linguísticas, as populações mais idosas e as suas escolhas de vida (tanto públicas como privadas) para a denominada “Terceira Idade”. Por último, o conceito aborda o âmago da socialização, participação e inte gração política de sociedades civis e governação democrática, incluindo os desafios da emigração e do multi culturalismo. · Se considerarmos o conjunto de res ponsabilidades de aprendizagem e DOSSIER CONFINTEA VI de resultados de aprendizagem que estão incluídos no conceito, ou seja, o conhecimento, as capacidades e as competências mais alargadas, podemos perguntar-nos exactamente o que fica de fora do conceito de aprendizagem ao longo da vida, para além das experiências educativas e de aprendizagem da infância. · A ‘evanescência’, a complexidade e a heterogeneidade do objecto de estu do exigem uma reflexão e análise sérias de questões conceptuais e de ter minologia. Este enigma conceptual é alimentado pelas tensões entre expe riências nacionais e supra-nacionais em educação de adultos, e tensões global-local e local-local no sistema mundial. · “Porque as políticas e práticas da edu cação de adultos são essencialmente nacionais, um grande leque de factores contribui para a condição da educação de adultos em qualquer país, incluindo: a cultura sociopolítica vigente, que engloba crenças e valores sobre o papel do Estado em geral, e em relação à educação e formação em particular; os pontos de vista vigentes sobre a função da educação e a formação – neste caso, a educação de adultos – em relação aos objectivos e prioridades sociais, culturais, políti cos e económicos de um país; os pontos de vista predominantes sobre a optimização de equilíbrio de poder, papéis e actividades, entre as três maiores instituições sociais: Estado, mercado e sociedade civil; os sistemas da governação da educação de adultos em operação, incluindo o papel dos parceiros sociais; o nível de desenvolvimento social e o nível de investimento na educação e na for–mação.”5 · A Conferência CONFINTEA VI não conseguiu abordar todos os impasses teóricos. O relatório especial, escrito por um grupo de distintos especia listas, o Relatório Geral sobre a Edu cação e Aprendizagem de Adultos, apenas foi distribuído no final do encontro. Os discursos de representantes gover namentais foram, quando muito, superficiais, e apresentaram apenas formas de referir no programa qual quer pessoa que conseguisse chamar a atenção dos organizadores. Para um encontro sobre educação de adultos a ter lugar na América Latina, o Continente onde o neoliberalismo encontrou mais resistência e con testação, e um local onde ocorreu a maioria das experiências inovadoras em educação de adultos, pouca ou nenhuma representação foi feita acerca da forma como os movimentos sociais e governos progressistas agiram neste campo de decisões políticas. · Apesar destas falhas, deixei a Con ferência com uma boa sensação. Estas Conferências do Sistema Mundial têm uma importância simbólica. Para quem se interessa pela educação de adultos, a CONFINTEA VI foi um sucesso porque teve lugar, agitou os ambientes da educação de adultos, refrescou o entendimento das pessoas que trabalham para os governos, trouxe a lume algumas discussões teóricas e compromissos políticos da Conferência de Hamburgo, e pode, finalmente, ter dado novo vigor ao compromisso de algumas pessoas, embora o número de participantes tenha sido baixo, de procurar uma educação de adultos que ajude a criar, na feliz frase de Paulo Freire, um mundo no qual será mais fácil amar. O apelo à acção ainda está por se ouvir. n 1 Richard Desjardins, Proposal for an ESREA network on Policy Issues in Adult Education. Copenhaga, Dinamarca, rascunho, 2008, página 1. 2 Como afirma claramente Rosa María Torres no seu relatório: “Qualidade e igualdade continuam a ser temas chave por resolver, relacionados, por ordem de importância, com (a) condição socioeconómica, (b) zona de residência (urbana-rural), (c) identidade étnica, e (d) género, tal como confirmado por inúmeros estudos e avaliações da região.” Rosa María Torres, “Youth and Adult Education and Learning in Latin American and the Caribbean: Trends, Issues and Challenges, “ Rascunho de Documento, 2008, página. 3. 3 Burke e Jackson, op. cit. página 2. 4 O relatório de Rosa María Torres sobre as sociedades latino-americanas e caribenhas exprime claramernte este ponto. 5 Helen Keogh, “Adult Learning and Education in the Unesco region of Europe, North America and Israel. Rascunho de relatório, 30 de Setembro de 2008, página 45. CONFINTEA II Canadá, 1960 A segunda Confintea aconteceu em 1960 em Montreal, Canadá. Sob a premissa de um mundo em mudança, de acelerado crescimento económico e de intensa discussão sobre o papel dos Estados frente à Educação de Adultos reuniram-se 47 Estados-membros da UNESCO, dois Estados como observadores, dois Estados Associados e 46 ONGs. Cada país-membro elaborou o seu relatório nacional com base nos seguintes tópicos: 1. Natureza, objectivo e conteúdos da Educação de Adultos; 2.Educação cidadã (in civics); 3. Lazer e actividades culturais; 4.Museus e bibliotecas; 5.Universidades; 6.Responsabilidade para com a educação de adultos; 7.Urbanização; 8.Educação das mulheres. O principal resultado desta segunda Conferência foi a consolidação da Declaração da Conferência Mundial de Educação de Adultos que contemplava um debate sobre o contexto do aumento populacional, de novas tecnologias, da industrialização, dos desafios das novas gerações e a aprendizagem como tarefa mundial, onde os países mais abastados devessem cooperar com os menos desenvolvidos. AO LONGO DA VIDA 25 Maria do Carmo Gomes Socióloga, doutoranda do Programa de Doutoramento em Sociologia do Instituto Superior de Ciências do Trabalho e da Empresa. Investigadora do CIES -ISCTE desde 1998. Vice-Presidente da Agência Nacional para a Qualificação, I.P. e chefe da delegação portuguesa à Confintea VI, em representação da Sra. Ministra da Educação. Da retórica à acção As cores vivas dos trajes tradicionais africanos, as diversas cores de pele, as fortes cores das flores que decoravam as salas davam o mote para que um dos princípios da educação e formação de adultos estivesse permanentemente presente – a diversidade! O colorido na sala fazia antever uma das características prin cipais dos três dias da CONFINTEA VI. Cores vivas dos trajes tradicionais africanos chamavam a atenção, diversas cores de pele tocavam-se em apertos de mão, fortes cores das flores decoravam as salas… cores, cores, cores! Estava dado o mote para que um dos princípios da educação e formação de adultos estivesse permanentemente presente – a diversidade! E foi com esse espírito de respeito pela diferença, de tolerância e de solidariedade que se iniciaram e desenvolveram os trabalhos desta grande e importante conferência internacional. Concretizar as políticas públicas A mensagem principal está na assina tura da CONFINTEA VI – passar da re tórica à acção. É essa a urgência, é esse o caminho, e é essa a esperança para muitos adultos e jovens que devem ter uma oportunidade de iniciar, prosseguir ou desenvolver os seus estudos, independentemente da idade, sexo, religião ou estatuto social. Os objectivos neste cam- 26 APRENDER po são sempre definidos de modo muito ambicioso. E estes não eram diferentes. Reunidos os especialistas, académicos, peritos, governantes, políticos, diplomatas era necessário discutir o modo como se podem tirar esses ‘objectivos’ do papel. Alguns documentos oficiais têm enun ciado essa ambição para as políticas de educação e formação de jovens e adultos, como forma de combate à pobreza, à exclusão social, às desigualdades, pro movendo uma sociedade mais justa, igualitária, informada e desenvolvida. Esses objectivos, porém, não passam na maioria das vezes de um conjunto de enunciados teóricos ou de princípios retóricos. A bondade dessas intenções e princípios faz acreditar que a mudança é possível, mas na prática os exemplos demonstram que se mantém a urgência de transformar a realidade. Os Objectivos do Milénio foram tidos como pano de fundo para essa mudança e para os atingir será necessário que cada país, cada governo, cada Estado, se empenhe intensamente na concepção e execução de medidas de política pública que podem fazer a diferença. Passar da retórica à acção é pois um imperativo à escala global na área da educação e formação de adultos e jovens. Uma conferência, várias regiões, um documento Olhar para o campo da educação e formação de jovens e adultos a partir da CONFINTEA VI permite uma perspectiva global das configurações institucionais, práticas pedagógicas, currículos e metodologias, políticas públicas, entre outros aspectos. Essa perspectiva mundial conduz em primeiro lugar a uma constatação que traduz (e pode também ser traduzida por) outras dinâmicas de desenvolvimento social e económico das diferentes regiões do nosso planeta. Três regiões muito distintas surgem neste contexto – a partir das regiões habitualmente utilizadas pela UNESCO neste domínio: África; América Latina e Caribe; Ásia e Pacífico; Europa, América do Norte e Israel; Estados Árabes – tra duzindo contextos diferentes de desen volvimento económico e de organização social e política e enunciando problemas diversos face às dinâmicas de educação e formação de adultos e jovens. Para as regiões mais desenvolvidas – as chamadas sociedades modernas e avançadas, segundo algumas concep tualizações sociológicas – a discussão sobre as políticas na área da educação DOSSIER CONFINTEA VI reunidos os especialistas, académicos, peritos, governantes, políticos, diplomatas era necessário discutir o modo como se podem tirar esses ‘objectivos’ do papel. e formação de adultos e jovens centrase na construção de Sistemas Nacionais de Qualificações e suas ligações e arti culações dentro dos espaços de decisão e coordenação de diferentes Estados, como é exemplo a União Europeia. Neste conjunto de países (e de modo muito vanguardista, poder-se-ia dizer) definem-se políticas inovadoras e solu ções arrojadas que tentam responder aos diferentes contextos e processos de ensino-aprendizagem que pautam a vida humana, tendo em conta que a ‘escola’ é hoje um conceito de grande amplitude e de múltiplas formas coexis tentes e, em primeiro plano, entendido como espaço gerador de igualdade de oportunidades. Reconhecer compe tências adquiridas em contextos for mais, não formais e informais (quer escolares quer profissionais); conceber currículos flexíveis, modulares, baseados em resultados de aprendizagem e capi talizáveis entre diferentes modalidades de educação-formação; e diversificar as possibilidades e opções para atingir os mesmos objectivos de escolaridade e/ ou qualificação são os três pilares em que assenta o estado da arte da educação e formação de adultos e jovens nestas regiões do mundo. Num segundo conjunto podemos encontrar as regiões emergentes – América Latina, Oriente e Ásia1 – nas quais as políticas de educação e formação de adultos assumem uma configuração quase paradoxal. Ao mesmo tempo que necessitam de resolver as situações de analfabetismo de grande parte das suas populações, estas tentam avançar com um conjunto de intervenções que pretendem acompanhar o que se faz nos países mais desenvolvidos, partilhando e transferindo conhecimento em redes de cooperação transnacional e obtendo resultados muito interessantes com significativos efeitos de catching-up relativamente aos seus parceiros num estádio de desenvolvimento mais avançado. Em terceiro lugar, encontramos as que poderiam designar-se como regiões de esperança – a África e o Médio Oriente. Esperança por diferentes motivos. África tem de assumir-se como o continente da esperança por excelência, trazendo para os seus diferentes países e populações um horizonte de políticas que vão desde o combate à pobreza extrema até à implantação de modelos democráticos de governação e representação dos seus povos, passando pela necessidade de definição e concretização de políticas que CONFINTEA III Japão, 1972 Em 1972, na cidade de Tóquio (Japão) a terceira edição da CONFINTEA reuniu 82 Estados-membros, três Estados na categoria de observador (incluindo Cuba), três organizações pertencentes às Nações Unidas, 37 organizações internacionais. Trabalhando as temáticas de Educação de Adultos e Alfabetização, Média e Cultura, apostou nas premissas de que a Educação de Adultos teria como elemento essencial a aprendizagem ao longo da vida e que seria importante realizar esforços para fortalecer a democracia e preparar o enfrentamento mundial da não diminuição das taxas de anal fabetismo. Diante da constatação de que a instituição escolar não dá conta de garantir a educação integral, adoptase a ampliação do conceito sobre sistemas de educação que passam a abarcar as categorias de ensino escolar e extra-escolar, envolvendo estudantes de todas as idades. O relatório final concluiu que a educação de adultos é um factor crucial no processo de democratização e desenvolvimentos da educação, económico, social e cultural das nações, sendo parte integral do sistema educacional na perspectiva da aprendizagem ao longo da vida. AO LONGO DA VIDA 27 A RECÉM-CRIADA iniciativa Novas Oportunidades tornou possível responder em larga escala ao também imenso problema de baixas qualificações da população portuguesa. possibilitem a disponibilização de direitos e infraestruturas básicas (humanas, sociais e económicas). Destas últimas fazem claramente parte as políticas de educação e formação dos milhões de cidadãos africanos que ainda hoje a elas não têm acesso. No caso dos Estados Árabes, para além de partilharem nalguns casos os mesmos problemas que alguns países africanos, a questão religiosa é determinante, nomeadamente no que se refere às discriminações no acesso à educação pelas mulheres. São por isso regiões com forte ambição e esperança no futuro e na concretização de políticas que possam efectivamente reduzir a pobreza extrema e as desigualdades sociais de género e de classe. É esta a imagem mundial do campo das políticas de educação e formação. É um mundo desigual, com ritmos de desenvolvimento e prosperidade muito diferenciados, mas também com um enorme potencial de evolução. Con gregar num único documento o espírito das diferentes políticas, a definir e a concretizar, por todos os países presen tes é, por isso, uma tarefa de enorme exigência. Mas a CONFINTEA VI conseguiu também ser bem sucedida nesse aspecto, tendo sido produzido e aprovado o Quadro de Acção de Belém, documento que enforma as intervenções a realizar no domínio da educação e formação de adultos e jovens nos próximos anos. 28 APRENDER Um olhar a partir de Portugal E Portugal? Onde estamos neste pa norama das políticas públicas no domínio da educação e formação de jovens e adultos? Foi um privilégio ter participado na CONFINTEA VI e ter chefiado a delegação oficial portuguesa, como já afirmei. Mas este atributo sobre a minha participação é mais do que apenas uma formalidade, é uma posição analítica baseada nos factos que caracterizam hoje as políticas de qualificação de jovens e adultos no nosso país. As transformações ocorridas nos últimos anos, em Portugal, são muito relevantes, quer no que se refere à diversificação das vias de conclusão da esco- laridade pelos jovens em idade escolar, quer no que diz respeito à concepção e desenvolvimento de um sistema de educação e formação de adultos que, desde 1999, com a introdução dos Cursos de Educação e Formação de Adultos e do Sistema Nacional de reconhecimento, validação e certificação de competências, nos coloca a par dos países com práticas mais avançadas e inovadoras. A recém-criada Iniciativa Novas Opor tunidades trouxe uma consolidação e uma integração destas medidas de política, que tornou possível responder em larga escala ao também imenso problema de baixas qualificações da população portuguesa. Assente num esforço de concretização de objectivos muito ambicio- DOSSIER CONFINTEA VI Portugal colocou no centro da sua agenda política as políticas de qualificação dos jovens e adultos e esse esforço é hoje reconhecido quer pela Comissão Europeia, quer pela OCDE, quer também pela Unesco. sos, de simultaneidade na concepção e na intervenção, de legibilidade e “transferibilidade” no contexto europeu e de forte integração das políticas de educação e formação profissional, esta Iniciativa é hoje entendida como um movimento so cial a favor das qualificações, que está a provocar uma revolução no modo como os portugueses valorizam a educação e a formação em qualquer idade e acessível a todos. É este o verdadeiro espírito que deve nortear as políticas de aprendizagem ao longo da vida, fazendo com que todos os espaços de construção do saber, formais, não formais e informais, e todos os dispositivos de educação-formação, sejam pensados para que um cada vez maior número de pessoas possa ter oportunidades semelhantes de acesso, frequência e conclusão. Portugal colocou no centro da sua agenda política as políticas de quali ficação dos jovens e adultos, e esse esforço é hoje reconhecido quer pela Comissão Europeia, quer pela OCDE, quer também pela Unesco, identificando o nosso país e a nossa estratégia como um caso de ‘boas práticas’ a seguir com atenção. reencontrar colegas de outros países, como o Florêncio Varela, de Cabo Verde, o Timo thy Ireland, da Unesco, a Carmen Gatto, do Brasil, a Francisca, da Guiné, o Filipe, de São Tomé e Príncipe, e ter conhecido outros como o Filomeno, de Timor-Leste. Em se gundo lugar, evocar alguns dos momentos de descontracção vividos na cidade de Belém, com o rio Amazonas e as suas águas turvas e fortes a banhar uma cidade que tem muitas influências portuguesas, e uma zona históri ca e portuária que em tudo se assemelha ao que podemos encontrar em Portugal. E por último, associado aos dois aspec tos anteriores, não podia deixar de referir a língua e a cultura portuguesas como patri mónio comum entre todos os amigos citados, espaços e contextos de interacção partilha dos – o privilégio de falar a mesma língua e o fazer questão em falá-la foi, sem dúvida, para mim, um outro marco da CONFIN TEA VI, que em muito poucas conferências internacionais pode acontecer. Muito obri gada, Brasil. n Algumas notas pessoais 1 Num outro registo gostaria de deixar uma nota mais pessoal sobre a CONFIN TEA VI. Em primeiro lugar, foi um prazer CONFINTEA IV Paris, 1985 Sob a temática “Aprender é a chave do mundo”, reuniram-se em Paris, França, no ano de 1985, 841 participantes de 112 Estados-membros, Agências das Nações Unidas e ONGs. Este encontro salientou a importância do reconhecimento do direito de aprender como o maior desafio da humanidade. Entendendo por direito o aprender a ler e escrever, o questionar e analisar, imaginar e criar, ler o próprio mundo e escrever a história, ter acesso aos recursos educacionais e desenvolver habilidades individuais e colectivas, a conferência incidiu sobre as lacunas das acções governamentais quanto ao cumprimento do direito de milhares de cidadãos terem as suas passagens pelos bancos escolares com propostas adequadas e com qualidade. Ao mesmo tempo, o ICAE - Conselho Internacional de Educação de Adultos cria, em para lelo à Conferência, um caucus de ONG’s e governos progressivos que se reúnem afim de concretizar a adesão à Declaração sobre o direito a aprender. Apoiaram este movimento os governos da China, Canadá, Países Nórdicos, Índia e Liga Árabe. Alguns dos países pertencentes a estas regiões estão numa situação que os coloca mais perto das regiões avançadas como é exemplo, a Coreia do Sul ou o Japão na região asiática. AO LONGO DA VIDA 29 Licínio Lima Professor catedrático do Departamento de Sociologia da Educação e Administração Educacional, do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho, departamento que dirigiu durante vários anos. Actualmente é director do Curso de Mestrado em Educação e coordenador da Área de Especialização em Organizações Educativas e Administração Educacional. Director da Revista “Aprender ao Longo da Vida” Notas breves de um participante Estamos a subordinar a aprendizagem e a educação ao longo da vida a um pedagogismo de raiz económica e gerencial, baseados na crença ingénua de que, pela aprendizagem ao longo da vida de cada indivíduo mudaremos a sociedade e a economia, em sentidos pretensamente claros e estabelecidos de forma consensual. C onvidado pelo Con selho Internacional de Educação de Adultos (ICAE) a participar no FISC – Fórum Inter nacional da Sociedade Civil, que se realizou em Belém do Pará, entre 28 e 30 de Novembro de 2009, integrei um painel temático sobre “O significado da educação de jovens e adultos”, moderado por Alan Tuckett (NIACE) e com intervenções de Lola Cendales (América Latina) e Cecilia Soriano (Ásia). Aí apresentei uma comunicação intitulada “De Hamburgo, 1997 a Belém do Pará, 2009: a hegemonia da aprendizagem para a produção de competências economicamente valorizáveis”, desenvolvendo alguns dos principais argumentos que tinha exposto num debate promovido antes pelo ICAE, na Internet (A Educação num Contexto de Múltiplas Crises – http://www.icae2.org), através de um pequeno texto intitulado “Aprendizagem? Que Aprendizagem?”. Em ambos os casos, chamava a aten ção para o exagero do elogio da aprendizagem ao longo da vida, especialmente quando conduzido a partir de lógicas funcionalistas e adaptativas que, na maioria das vezes, se colocam à margem 30 APRENDER de uma concepção democrática, humanista e crítica de educação de adultos e ao longo da vida. Ao procurar adaptarse perfeitamente às estruturas sociais, à competitividade económica e à busca da empregabilidade, as políticas públicas de fomento da aprendizagem ao longo da vida operaram uma transição radical do conceito de educação para o conceito de aprendizagem, atribuindo a este uma conotação marcadamente individualista e pragmatista. A própria UNESCO tem admitido esta espécie de efeito não desejado, particularmente presente em certas políticas públicas após a CONFINTEA V (Hamburgo, 1997), seja contribuindo para desresponsabilizar o Estado pela definição de políticas globais e integradas, pelo financiamento e provisão de uma rede pública suficientemente acessível e diversificada em termos de ofertas, seja também pelo crescente protagonismo do mercado, para aí se remetendo as respostas educativas a muitos cidadãos, não obstante a sua falta de recursos enquanto clientes. Frequentemente, as dimensões edu cativas de certos processos de formação, aprendizagem, qualificação ou aquisição de competências, de acordo com a linguagem dominante, encontram-se ausentes, ou diluídas, nos respectivos programas. Consequentemente, a educação, considerada na sua globalidade e integralidade, compreendendo não apenas saberes técnicos e instrumentais, competências profissionais ou vocacionais, mas também dimensões culturais, sociais e políticas orientadas para a interpretação crítica do mundo complexo em que vivemos, e para a participação cívica??? cidadã no processo da sua transformação, surge simplesmente secundarizada, quando não mesmo conotada com escolarização e burocratização. A súbita descoberta, por responsáveis políticos e económicos, do potencial das aprendizagens não formais e informais parece que originou uma alternativa à educação de adultos e à educação popular, ou educação liberal de adultos, consoante as tradições. Como se, quer a educação, quer a aprendizagem, pudes sem fazer tudo e resolver todos os nossos problemas. Estamos, com efeito, a subordinar a aprendizagem e a educação ao longo da vida a um pedagogismo de raiz económica e gerencial, baseados na crença ingénua de que, pela aprendizagem ao longo da vida de cada indivíduo mu- DOSSIER CONFINTEA VI A cada problema social e económico a sua terapia, ou remédio, de aprendizagem, requalificação, ressocialização, como se fosse possível afrontar problemas estruturais apenas, ou sobretudo, através de soluções biográficas, através da acção insular de sujeitos úteis, eficazes, altamente competitivos e sós. daremos a sociedade e a economia, em sentidos pretensamente claros e esta belecidos de forma consensual. A cada problema social e económico a sua terapia, ou remédio, de aprendizagem, requalificação, ressocialização, como se fosse possível afrontar problemas estruturais apenas, ou sobretudo, através de soluções biográficas, através da acção insular de sujeitos úteis, eficazes, altamente competitivos e sós. No contexto do FISC, não obstante a sua diversidade, aquelas críticas foram partilhadas por muitos sectores que, na teoria e na prática, conhecem os impasses das lógicas de modernização tecnocrática e os insucessos das políticas e dos programas realizados à margem da promoção do espírito crítico, da emancipação e da transformação social. Ou seja, orientações que recusam, ou ignoram, o capital de teorias educativas e de metodologias de trabalho, de participação e mobilização socioeducativas, socialmente construído ao longo do século XX, em diferentes geografias e permeado por uma grande diversidade cultural. Na CONFINTEA VI (1-4 de Dezem bro), onde participei a convite da UNES CO, na qualidade de representante da sociedade civil, pude observar posições e discursos extremamente diversos, alguns dos quais muito bem informados do ponto de vista teórico e respaldados por ricas experiências de terreno, embora tenha sido dominante a tendência para os discursos épicos, reproduzindo muitas vezes, e de modo superficial, os lugares-comuns conceptuais e terminológicos que hoje fazem fortuna à escala global, da União Europeia à OCDE, e de há muito afectando também, ainda que talvez menos radicalmente, a própria UNESCO. O ambiente revelou-se demasiado formal e as sessões plenárias chegaram a inibir a participação dos próprios dele gados governamentais. Estes, em muitos casos, intervieram para apresentar as suas políticas e para elogiar as suas medidas, não sendo raro um certo ufanismo, a contrastar com as críticas e a impaciência dos participantes inconformistas. Trata-se, na verdade, de uma reunião mundial de escala impressionante e os impactos da divulgação e circulação das suas recomendações não podem ser desprezados. E, no entanto, fico com o sentimento de que a Conferência contém alguns elementos estruturais contra ditórios relativamente a uma concepção dialógica, de debate e de argumentação em, e sobre, aprendizagem e educação ao longo da vida. Não se trata de um problema de organização, pois aí os colegas brasi leiros foram inexcedíveis no sentido de criar boas condições de trabalho e de, especialmente, mobilizar o mundo da educação e a sociedade civil através de vários fóruns, bem como de tentar, de múltiplas formas, evidenciar que a educação é uma política cultural. Criativamente, realizaram ainda várias sessões no âmbito do que designaram por “CONFINTEA Ampliada”, alargando a reflexão às universidades de Belém do Pará, por exemplo, através de um painel, que despertou muito interesse, sobre a situação da educação de adultos nos países de língua oficial portuguesa, em que intervim relativamente ao caso português. As contradições a que me refiro prendem-se com o formato gigantesco, o protocolo e respectivas formalidades, a ainda limitada possibilidade de intervenção dos representantes da sociedade civil face às autoridades governamentais, não obstante a retórica das parcerias, do papel das organizações da sociedade civil e do chamado “terceiro sector”. Mesmo a vertente mais acadé- AO LONGO DA VIDA 31 As contradições a que me refiro prendem-se com o formato gigantesco, o protocolo e respectivas formalidades, a ainda limitada possibilidade de intervenção dos representantes da sociedade civil face às autoridades governamentais. mica, com maior tradição e, de resto, indispensável numa realização deste nível, encontra-se relativamente invisível e desvalorizada. Note-se que, não obstante a produção de um importante Relatório Global de Aprendizagem e Educação ao Longo da Vida (GRALE), preparado por conhecidos académicos com base nos relatórios nacionais e regionais, onde se formulam críticas e recomendações relevantes, tal documento não teve o acolhimento necessário em termos de divulgação e de debate, tal como con cluiu Carlos Alberto Torres, um dos seus autores. Para além do texto da Conferência, que ainda não está disponível no momento em que escrevo estas linhas, e do documento intitulado “Belém Frame work for Action”, talvez um dos resultados mais importantes seja o processo de reflexão, o ponto de situação, a mobilização crítica que são conseguidos antes e depois da Conferência, seja por governos, seja por associações e outros sectores da sociedade civil. No que concerne ao documento referido, a UNESCO continua, muito positivamente, a insistir, embora pouco escutada por muitos governos, na necessidade 32 APRENDER de: basear a aprendizagem e educação de adultos em valores inclusivos, emancipatórios, humanistas e democráticos; desenvolver esforços sistemáticos no domínio da alfabetização; conceber e executar polí ticas compreensivas e integradoras, não limitadas à agora designada educação e formação vocacional; garantir a participação da sociedade civil, não apenas em termos de parcerias e de prestações em nome do Estado, mas desde logo na definição das políticas públicas, o que está muito longe de acontecer; aumentar substancialmente o financiamento para a educação, tendencialmente para cerca de 6% do Produto Nacional Bruto; expandir a oferta e a rede públicas e definir grupos prioritários; aumentar o acesso, a qualidade, as taxas de participação e as estruturas disponíveis a nível comunitário. Quanto à mobilização propiciada pela Conferência, a situação vivida em DOSSIER CONFINTEA VI CONFINTEA V Talvez Alemanha, 1997 um dos resultados mais importantes seja o processo de reflexão, o ponto de situação, a mobilização crítica que são conseguidos antes e depois da Conferência, seja por governos, seja por associações e outros sectores da sociedade civil. Portugal só pode ser considerada como francamente negativa, até mesmo num contexto em que o Programa Novas Oportunidades apresenta grande visibilidade pública e os discursos governativos atribuem grande centralidade à lógica das qualificações dos portugueses. O governo nada fez de substancial, até mesmo durante o processo de produção do respectivo relatório nacional que apresentou, sem divulgação e sem debate, de resto incidindo sobre vectores de actuação relevantes, mas muito limitados face a um conceito amplo, e a práticas que apesar de tudo continuam a ocorrer, de educação de adultos. Para encontrar uma visão global e integrada de educação de adultos e suas relações privilegiadas com a educação popular, liberal, comunitária, e a promoção da cidadania democrática, o leitor terá de ir ler relatórios de outros países, e não apenas do chamado “terceiro mundo”, mas por exemplo de França, de Espanha, ou da Suécia. Quanto ao ensino superior, a situação é a clássica, uma vez que não temos tradição, nem estruturas, nem políticas institucionais, mas apenas alguns docentes e investigadores interessados e, quase sempre, isolados. Finalmente, quanto à sociedade civil, houve o esboçar de algum interesse pon tual, porém sem dinâmica e sem escala, confirmando que o papel de organizações da sociedade civil, ou de movimentos sociais, intervindo em educação de adultos, nunca chegou a emergir de forma minimamente continuada e organizada em Portugal. Pode ser que a recepção da Declaração de Belém encontre mais eco entre nós, a todos os níveis, no futuro próximo, contribuindo para mobilizar os diferentes actores em torno de políticas e práticas de aprendizagem e educação ao longo da vida, expressão que sai reforçada da CONFINTEA VI e que, pelo menos, tem a vantagem de retornar aos conceitos de educação e de formação de adultos, conceitos esses francamente desvalorizados ao longo da última década no âmbito de discursos e de orientações políticas nacionais e transnacionais, a favor das qualificações, competências e habilidades economicamente valorizáveis. Mas, como se sabe, estas podem, no limite, não representar necessariamente experiências educativas, bem pelo contrário. n Realizada em 1997, em Hamburgo (Alemanha) num contexto de con tinuidade de outras Conferências Internacionais que vinham a acontecer na mesma década, realizou-se a V CONFINTEA. Esta conferência consta na história da EJA de maneira singular, por ter posto em marcha um intenso movimento de preparação mundial com certa antecedência. Ela acontece a partir de um amplo processo de consultas preparatórias realizadas nas cinco grandes regiões mundiais consideradas pela UNESCO, acrescidas da Consulta Colectiva às ONGs, de onde foram consolidados relatórios para a Conferência Internacional. Sob o tema da aprendizagem de adultos como ferramenta, direito, prazer e responsabilidade, o evento contou com a participação de mais de 170 estados membros, 500 ONGs e cerca de 1.300 participantes. Foi uma conferência onde a mobilização atravessou fronteiras temáticas e de acção: através da liderança do ICAE e alianças com governos progressivos, houve uma intensa mobilização de ONGs e do movimento de mulheres (REPEM E GEO),mesmo que sem direito a voto. AO LONGO DA VIDA 33 Controlando o poder e o potencial Da educação e aprendizagem de adultos Para um futuro viável Quadro de Acção de Belém Tradução: Daniela Silveira Preâmbulo 1 Nós, os 156 Estados Membros da UNESCO, representantes das organizações da sociedade ci vil, dos parceiros sociais, das agências das Nações Unidas, das agên cias intergovernamentais e do sector privado, reunimo-nos em Belém do Pará, no Brasil, em Dezembro de 2009, como participantes da Sexta Confe rência Internacional de Educação de Adultos (CONFINTEA VI), para avaliar o progresso feito na educação e apren dizagem de adultos desde a CONFINTEA V. A educação de adultos é reconhecida como um elemento essencial do direito à educação, e temos de traçar um novo e urgente plano de acção para permitir aos jovens e adultos o exercício deste direito. 2 Reiteramos o papel fundamen tal da educação e aprendizagem de adultos, conforme estabelecido durante as cinco Conferências Internacionais de Educação de Adultos (CONFINTEA I-V), desde 1949, e comprometemo-nos unanimemente a fazer progredir, com um sentido de urgência e em passo acelerado, a agenda da educação e aprendizagem de adultos. 3 Confirmamos a definição de educação de adultos que foi descrita pela primeira vez na Recomendação de Nairobi para o Desenvolvimento da Educação de Adultos, de 1976, e posteriormente desenvolvida na Declaração de Hamburgo, de 1997, nomeadamente, a educação de adul 34 APRENDER tos denota “todo o corpo de processos decorrentes de processos de aprendiza gem, formais ou não, através dos quais as pessoas consideradas adultas pela sociedade à qual pertencem desen volvem as suas capacidades, enriquecem o seu conhecimento e melhoram as suas qualificações técnicas ou profissionais, ou as voltam para uma nova direcção, para dar resposta às suas próprias necessidades ou às da sua sociedade”. 4 Afirmamos que a literacia é a mais significativa fundação sobre a qual se deve construir uma aprendizagem integral, inclusiva e integrada, para todos os jovens e adultos. Dada a magnitude do desafio global de literacia, consideramos vital que redobremos os esforços para assegurar que os objectivos e prioridades existentes para a literacia para adultos, como foram definidos pela Educação para Todos (EFA), a Década de Literacia das Nações Unidas (UNLD) e a Iniciativa de Literacia para Fortalecimento (LIFE), são atingidos, através de todos os meios disponíveis. 5 A educação de jovens e adultos permite aos indivíduos, espe cialmente às mulheres, lidar com diferentes crises sociais, económicas e políticas, e com as alterações climatéricas. Assim, reconhecemos o papel chave da educação e aprendizagem de adultos no sucesso dos Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio (MDGs), Educação para Todos (EFA) e da agenda das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável em termos humanos, sociais, económicos, culturais e ambientais, incluindo a igualdade entre os sexos (CEDAW e a Plataforma para Acção de Pequim). 6 Assim, adoptamos este Quadro de Acção de Belém para nos guiar no controlo do poder e potencial da educação e apren dizagem de adultos, para um futuro viável para todos. Em direcção à Aprendizagem ao Longo da Vida 7 O papel da Aprendizagem ao Longo da Vida é crítico na abordagem às questões e desa fios educativos globais. A Apren dizagem ao Longo da Vida “do berço até à cova” é uma filosofia, um enquadramento conceptual e um princípio organizativo de todas as formas de educação, baseadas em valores de inclusão, emancipação, humanidade e democracia; é abrangente e parte integrante da visão de uma sociedade baseada no conhecimento. Reafirmamos os quatro pilares da apren dizagem, recomendados pela Comissão Internacional de Educação do Século XXI, nomeadamente aprender a saber, aprender a fazer, aprender a ser e apren der a viver em comunidade. 8 Reconhecemos que a educação e aprendizagem de adultos repre senta uma componente signi ficativa do processo de Apren dizagem ao Longo da Vida, que abraça DOSSIER CONFINTEA VI ANEXO Declaração de Prova Abordando questões e desafios globais e educativos 1. A educação e formação de adultos desempenham um papel crítico na resposta aos desafios culturais, económicos, políticos e sociais contemporâneos. O nosso mundo globalizado abriu caminho a muitas oportunidades, entre as quais a possibilidade de aprender com culturas ricas e diversas, que transcendem as fronteiras geográficas. No entanto, as desigualdades passaram a ser características dominantes da nossa era. Muita da população mundial vive na pobreza, com 43,5% a subsistir com menos de US $2 por dia. A maioria dos pobres do mundo vive em zonas rurais. Os desequilíbrios demográficos, com populações jovens florescentes no Sul e populações envelhecidas no Norte, são exacerbados por uma migração em grande escala, das zonas pobres para as zonas ricas – dentro e entre países – e fluxos de números significativos de pessoas deslocadas. Somos confrontados com o acesso desigual a alimentos, água e energia, e a degradação ecológica ameaça a nossa existência a longo prazo. Juntamente com a privação de materiais está a muito vista pobreza de capacidades, que impede um funcionamento eficaz da sociedade. Um número inaceitável de crianças encara a perspectiva de desemprego na juventude, enquanto um número crescente de jovens “desligados” social, económica e politicamente sente que não tem papel na sociedade. Enfrentamos mudanças estruturais na produção e nos mercados de trabalho, inseguranças e ansiedades crescentes na vida quotidiana, dificuldades em conseguir uma compreensão mútua e, agora, uma profunda crise económica e financeira no mundo. Ao mesmo tempo, a globalização e a economia de conhecimento forçam-nos a actualizar e a adaptar as nossas capacidades e competências a novos ambientes de trabalho, formas de organização social e canais de comunicação. Estas questões, e as nossas exigências urgentes de aprendizagem, colectivas e individuais, questionam os nossos dogmas e princípios nesta área e em alguns aspectos das fundações dos nossos sistemas e filosofias educativas estabelecidas. Em muitos países, a literacia de adultos continua a ser um grande desafio: 774 milhões de adultos (dois terços dos quais são mulheres) não possuem capacidades básicas de literacia, e não existe uma provisão suficiente de programas de literacia efectiva e de conhecimentos para a vida. Na Europa, quase um terço da força de trabalho tem apenas o equivalente ao ensino básico, sendo que dois terços dos novos empregos exigem qualificações ao nível do ensino secundário ou superior. Em muitos países do Sul, a maioria da população nem sequer tem o nível de instrução do primeiro ciclo do ensino básico. Em 2006, cerca de 75 milhões de crianças (a maioria das quais eram meninas) tinham abandonado a escola muito cedo, ou nunca a tinham frequentado. Quase metade destas crianças era da África subsaariana e mais de 80% era do meio rural. A falta de relevância social do currículo educativo, os números inadequados e, em alguns casos, a insuficiente formação dos educadores, a pobreza de materiais e métodos inovadores, e barreiras de todo o tipo minam a capacidade dos sistemas educativos existentes para fornecer uma aprendizagem de qualidade, que possa lidar com as disparidades nas nossas sociedades. Houve esforços internacionais concertados para encarar estes desafios. O progresso tem sido feito no sentido de atingir os seis objectivos da Educação para Todos (EFA) (2000) através de uma cooperação liderada pelos governos com as agências das Nações Unidas, organizações da sociedade civil, fornecedores privados e mecenas. Foram disponibilizados recursos crescentes para a Educação Primária Universal, através da Fast Track Initiative da 2. 3. 4. AO LONGO DA VIDA 35 uma continuidade de aprendizagem, que vai desde a educação formal à educação não formal e à educação informal. A educação e aprendizagem de adul tos servem as necessidades de apren dizagem de jovens, adultos e idosos. A educação e aprendizagem de adultos cobre um largo espectro de conteúdos – temas gerais, questões vocacionais, literacia familiar e educação familiar, cidadania e muitas outras áreas – com prioridades que dependem de necessi dades específicas de cada país. 9 Estamos convictos e inspirados pelo papel crítico da apren dizagem ao longo da vida, na resposta a questões e desafios globais e educativos. É também nossa convicção que a educação e aprendi zagem de adultos deve equipar as pes soas com o necessário conhecimento, capacidades, competências e valores para exercer e fazer progredir os seus direitos e controlar os seus destinos. A educação e aprendizagem de adultos é também um imperativo para o sucesso da equidade e da inclusão, para o alívio da pobreza e para a construção de sociedades equitativas, tolerantes, sustentáveis e baseadas no conhecimento. Recomendações 10 Embora reconheçamos os nossos sucessos e progresso desde a CON FINTEA V, estamos cien tes dos desafios com os quais ainda nos confrontamos. Reconhecendo que o cumprimento do direito à educação 36 APRENDER para adultos e jovens é condicionado por considerações políticas, de governa ção, patrocínios, participação, inclusão, equidade e qualidade, como definidas no anexo Declaração de Evidência, estamos determinados em perseguir as seguintes recomendações. Os desafios particulares enfrentados pela literacia levam-nos a trazer à discussão reco mendações sobre literacia de adultos. Literacia de adultos 11 A literacia é um alicerce indispensável, que per mite aos jovens e adultos envolverem-se em opor tunidades de aprendizagem em todas as fases da aprendizagem contínua. O direito à literacia é uma parte inerente do direito à educação. É um pré-requisito para o desenvolvimento do potencial pessoal, social, económico e político. A literacia é um meio essencial para a construção das capacidades das pessoas para lidar com os desafios e complexidades da vida, da cultura, da economia e da sociedade. Dada a persistência e escala do desa fio da literacia, e o desperdício conco mitante de recursos e de potencial humanos, é imperativo que redobremos os esforços para reduzir, até 2015, a iliteracia em 50% em relação aos níveis de 2000 (Objectivo EFA 4 e outros com promissos internacionais), com o objectivo final de prevenir e quebrar o ciclo de baixa literacia e de criação de um mundo completamente alfabetizado. Para estes fins, comprometemo-nos a: a) Assegurar que todas as pesquisas e recolha de dados reconhecem a lite racia como um continuum. b)Desenvolver um mapa com objectivos e prazos claros, para dar resposta a este desafio, baseado nas avaliações críticas dos progressos realizados, obstáculos encontrados e fraquezas identificadas; c) Mobilizar e aumentar recursos e espe cialidades internos e externos, para levar a cabo programas de literacia com maior escala, alcance, cobertura e qualidade, para patrocinar processos integrais e de meio-termo, para assegurar que os indivíduos obtêm uma literacia sustentável; d)O desenvolvimento da provisão da literacia, que é relevante e adaptada às necessidades dos alunos, e que leva ao conhecimento funcional e sustentável, às capacidades e compe tências dos participantes, dando-lhes ânimo para continuar a aprender ao longo da vida, cujos sucessos são reconhecidos através de métodos e instrumentos de avaliação apropriados; e) Concentrar as acções de literacia nas mulheres e em populações com gran des desvantagens, incluindo povos indígenas e prisioneiros, com um enfoque especial nas populações rurais; f) Estabelecer indicadores e objectivos internacionais para a literacia; g) Rever e reportar o progresso, de forma sistemática, entre outros, no inves timento e na adequação de recursos na literacia em cada país e a nível global, incluindo uma secção espe cial no Relatório Global de Moni torização da EFA; h)Planear e implementar a educa DOSSIER CONFINTEA VI EFA. A Década de Literacia das Nações Unidas (UNLD) (2003-2012) fornece apoio para atingir o objectivo de literacia da EFA, através do apoio e tomada de consciência internacional. A Iniciativa de Literacia para Fortalecimento (LIFE) fornece um enquadramento global dentro da UNLD para apoiar países com maiores necessidades em termos de literacia. Dois dos Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio (2000) abordam explicitamente a educação: conseguindo a educação primária universal e paridade de sexos. No entanto, em nenhum destes esforços houve um papel específico para a educação e aprendizagem de adultos para além das capacidades básicas de literacia e de vida. De forma encorajadora, a Década de Educação para o Desenvolvimento Sustentável (2005-2014) estabelece um largo mandato no qual a educação e aprendizagem de adultos podem desempenhar um papel altamente visível. A educação e aprendizagem de adultos é uma resposta crítica e necessária aos desafios com que nos confrontamos. É um componente chave de um sistema de educação e aprendizagem ao longo da vida holístico e abrangente, que integra a educação formal, não-formal e informal, e que aborda, explícita ou implicitamente, os alunos jovens e adultos. Afinal, a educação e aprendizagem de adultos tratam de providenciar contextos e processos de aprendizagem que sejam interessantes e que respondam às necessidades dos adultos como cidadãos activos. Tratam de desenvolver indivíduos auto-confiantes e autónomos, que constroem e reconstroem as suas vidas em culturas, sociedades e economias complexas e em rápida mudança – no emprego, na família e na comunidade e vida social. A necessidade de avançar para diferentes tipos de emprego no decurso da vida, a adaptação a novos contextos em situações de deslocação ou migração, a importância de iniciativas empresariais e a capacidade de sustentar melhorias na qualidade de vida – estas e outras circunstâncias socioeconómicas pedem uma educação continuada ao longo da vida. A educação e aprendizagem de adultos não só oferecem competências específicas, mas são também um factor chave no sentido de melhorar a auto-confiança, a auto-estima e uma sensação de identidade e apoio mútuo. Estima-se hoje que, por cada ano que o nível médio de educação da população adulta sobe, há um aumento correspondente de 3,7% no crescimento económico a longo prazo e um aumento de 6% no rendimento per capita. Ainda assim, a educação e aprendizagem de adultos é muito mais do que um item para gastos sociais ou despesas financeiras. É um investimento na esperança do futuro. 5. ção contínua, formação e desenvol vimento de capacidades, para além das capacidades básicas de literacia, apoiadas por um ambiente literário enriquecido. Política 12 As políticas e medidas legislativas para a edu cação de adultos têm de ser abrangentes, inclusivas e integradas numa perspectiva de aprendizagem ao longo e ao largo da vida, baseadas em abordagens inter- e trans-sectorais, que cobrem e ligam todos os componentes da aprendizagem e da educação. Com este fim, comprometemo-nos a: a) Desenvolver e implementar políticas subsidiadas, planos objectivos e legis lação para abordar a literacia de adul tos, a educação para jovens e adultos e a aprendizagem ao longo da vida; b)Desenhar planos de acção específicos e concretos para a aprendizagem e educação de adultos, que são inte grados nos MDG, EFA e UNLD, assim como outros planos de desenvolvi mento, nacionais e regionais, e com actividades da LIFE, onde estas exis tam; c) Assegurar que a educação e aprendi zagem de adultos são incluídas na iniciativa “ONE United Nations”; d)Estabelecer mecanismos de coorde nação apropriados, tais como comités de monitorização, envolvendo todos os participantes activos na educação e aprendizagem de adultos. e) Desenvolver ou melhorar estruturas 6. Progresso na educação e aprendizagem de adultos desde a CONFINTEA V Os relatórios nacionais submetidos por 154 Estados Membros, em preparação para a CONFINTEA VI e em discussão sobre práticas eficazes durante as conferências preparatórias regionais, mostraram algum progresso e inovação na educação e aprendizagem de adultos, dentro de uma perspectiva de aprendizagem ao longo da vida. Exceptuando o exemplo da Estratégia de Aprendizagem ao Longo da Vida da União Europeia, introduzido no ano 2000, e políticas nacionais relacionadas nos Estados Membros, alguns Estados Membros do Sul introduziram políticas e legislação abrangente sobre educação e aprendizagem de adultos, e alguns até contemplaram a educação e aprendizagem de adultos nas suas constituições. Abordagens sistemáticas à educação e aprendizagem de adultos, orientadas por enquadramentos políticos, estão a ser desenvolvidas, e houve casos de reformas políticas sem precedentes. Os planos, programas e campanhas de literacia foram reactivados e acelerados em alguns Estados Membros. O período 2000-2006 assistiu a um aumento das taxas globais de literacia, de 76% para 84%. O progresso foi especialmente marcado nos países em desenvolvimento. Alguns governos procuraram activamente trabalhar com a sociedade civil para fornecer 7. 8. AO LONGO DA VIDA 37 e mecanismos para reconhecimento, validação e certificação de todas as formas de aprendizagem, estabele cendo molduras de equivalências. Governação 13 Uma boa governa ção facilita a imple mentação da política de educação e apren dizagem de adultos de forma eficaz, transparente, responsável e justa. A representação e participação de todos os intervenientes é indispensável para garantir a resposta às necessidades de todos os alunos, em especial os mais desfavorecidos. Com este fim, comprometemo-nos a: a) Criar e manter mecanismos para o envolvimento de autoridades públicas em todos os níveis administrativos, nas organizações da sociedade civil, parceiros sociais, sector privado, organizações comunitárias e de alu nos e educadores adultos, em desen volvimento, implementação e ava liação das políticas e programas da educação e formação de adultos. b)Adoptar medidas de construção de capacidades que apoiem o envolvi mento construtivo e informado das organizações da sociedade civil, das organizações comunitárias e de alunos adultos, como apropriadas, no desenvolvimento, implementação e avaliação das políticas e dos progra mas. c) Promover e apoiar a cooperação inter-sectorial e inter-ministérios. d)Apoiar a cooperação transnacional 38 APRENDER através de projectos e redes para partilha de saberes e de práticas ino vadoras. Patrocínios 14 A educação e aprendi zagem de adultos repre senta um investimento valioso, que traz benefícios sociais, ao criar sociedades mais democráticas, pacíficas, inclusivas, produtivas, saudáveis e sustentáveis. Um investimento financeiro significativo é essencial para assegurar a provisão de qualidade da educação e aprendizagem de adultos. Com este fim, comprometemo-nos a: a) Acelerar o progresso em direcção ao sucesso da recomendação da CON FINTEA V, para procurar um investimento de pelo menos 6% do PIB na educação, e trabalhar para o aumento do investimento na educação e aprendizagem de adultos; b)Expandir os recursos e orçamentos educativos existentes através de todos os departamentos governamentais, para ir ao encontro dos objectivos de uma estratégia integrada de educação e aprendizagem de adultos; c) Considerar novos, e aumentar os já existentes, programas transnacionais de fundos para a literacia e a educação de adultos, nas linhas das acções do Programa de Aprendizagem ao Longo da Vida da UE. d)Criar incentivos para a promoção de novas fontes de fundos, por exem plo, do sector privado, ONGs, comu nidades e indivíduos, sem prejudicar os princípios da equidade e da inclusão; e) Dar prioridade ao investimento na aprendizagem ao longo da vida a mulheres, populações rurais e pes soas com deficiência. Para apoiar estas estratégias, pedimos aos parceiros internacionais de desen volvimento que: f) Cumpram o seu compromisso de preencher os vazios orçamentais que impedem o sucesso dos objectivos da EFA, especialmente os objectivos 3 e 4 (aprendizagem de jovens e adultos, literacia de adultos); g) Aumentem os fundos e o apoio técnico para a literacia, aprendizagem e educação de adultos e explorem a praticabilidade de usar mecanismos alternativos de financiamento, tais como alteração ou perdão de dívidas; h)Exijam que os planos do sector educativo, submetidos à Fast Track Initiative (FTI) incluam acções credíveis e investimento na literacia de adultos. Participação, inclusão e equidade 15 A educação inclusiva é fundamental para o sucesso do desenvol vimento humano, social e económico. Equipar todos os indivíduos para desenvolver o seu potencial contribui de forma significativa para os encorajar a viver em comunidade, em harmonia e com dignidade. Não pode haver exclusão baseada na idade, sexo, etnia, estatuto de imigrante, língua, religião, deficiência, ruralidade, identidade DOSSIER CONFINTEA VI oportunidades de aprendizagem não-formal em abordagens como faire-faire, com um amplo leque de conteúdos, objectivos e grupos alvo. A abrangência da educação não-formal diversificou-se, cobrindo tópicos como os direitos humanos, cidadania, democracia, fortalecimento das mulheres, prevenção da SIDA, saúde, protecção ambiental e desenvolvimento sustentável. Eventos informativos tais como as Semanas dos Alunos Adultos e festivais de aprendizagem, bem como movimentos abrangentes, tais como as Cidades de Aprendizagem e as Regiões de Aprendizagem, contribuem substancialmente para a educação e aprendizagem de adultos. Houve sinais convincentes e um aumento do reconhecimento, entre os Estados Membros, dos benefícios de uma provisão consciente de género na educação e aprendizagem de adultos, especialmente no que diz respeito às mulheres. As tecnologias de informação e comunicação e a aprendizagem aberta e à distância estão a ser adoptadas e estão a responder lentamente às necessidades específicas dos alunos que, até há pouco tempo, tinham sido excluídos. A aprendizagem da língua materna está a ser abordada, de forma crescente, nas políticas nacionais em contextos multilingues e multiculturais, embora poucos tenham implementado políticas abrangentes. Foram introduzidos sistemas de informação, documentação, monitorização e avaliação da educação e aprendizagem de adultos. Estão a ser criados, gradualmente, instrumentos e sistemas eficazes de reconhecimento, validação e acreditação da aprendizagem, incluindo corpos de controlo de qualidade e de procedimentos. Está provado que criar sinergias entre a educação e a aprendizagem formal, não-formal e informal obtém melhores resultados, para os alunos individuais e sistemas de educação, conforme os recursos e competências existentes são usados de forma mais eficaz. A educação de adultos floresce quando os estados implementam iniciativas decisivas em aliança com instituições chave da sociedade civil, o sector empresarial e associações de trabalhadores. As parcerias público-privado estão a ganhar força, e a cooperação Sul-Sul e triangular está a dar resultados tangíveis na criação de uma nova forma de aprendizagem de adultos para um desenvolvimento, paz e democracia sustentáveis. Os corpos e agências regionais e supranacionais têm papéis cruciais e transformadores, influenciando e complementando os estados. 9. ou orientação sexual, pobreza, deslocação ou privação de liberdade. Combater os efeitos cumulativos de desvantagens múltiplas é de especial importância. Devem ser tomadas medidas para aumentar a motivação e o acesso para todos. Com estes fins, comprometemo-nos a: a) Promover e facilitar um acesso e par ticipação mais equitativos na apren dizagem e educação de adultos, promovendo uma cultura de apren dizagem e eliminando as barreiras à participação; b)Promover e apoiar um acesso e par ticipação mais equitativos na educação e aprendizagem de adultos, através de uma orientação objectiva e bem definida, bem como de actividades e programas como a Semana do Aluno Adulto e festivais de aprendizagem; c) Antecipar e responder a grupos iden tificáveis que entram na trajectória de múltiplas desvantagens, em especial no início da idade adulta; d)Criar espaços e centros comunitários de aprendizagem e melhorar o acesso e a participação no leque completo de programas de educação e aprendizagem de adultos para mulheres, registando as exigências particulares de um percurso de vida no feminino; e) Apoiar o desenvolvimento da escrita e da literacia nas várias línguas indí genas, desenvolvendo programas, métodos e materiais relevantes, que reconheçam e valorizem as culturas, conhecimentos e metodologias indí genas, ao mesmo tempo que desen volvem de forma adequada o ensino da segunda língua, de maior comu nicação; 10. 11. Desafios para a educação e aprendizagem de adultos Apesar deste progresso, os relatórios nacionais e o Relatório Global de Educação e Aprendizagem de Adultos (GRALE) produzido para a CONFINTEA VI mostram novos desafios sociais e educativos que emergiram juntamente com problemas existentes, alguns dos quais se agravaram no interregno, a nível regional, nacional e global. De forma crucial, a expectativa de que reconstruíssemos e reforçássemos a educação e aprendizagem de adultos, na sequência da CONFINTEA V, não se concretizou. O papel e o lugar da educação e aprendizagem de adultos na aprendizagem ao longo da vida continuam a ser minimizados. Ao mesmo tempo, os domínios da política, fora da educação, não conseguiram reconhecer e integrar as contribuições distintivas que a educação e aprendizagem de adultos podem oferecer para um maior desenvolvimento económico, social e humano. O campo da educação e aprendizagem de adultos continua fragmentado. Os esforços de apoio dissipam-se num sem número de frentes, e a credibilidade política dilui-se precisamente porque a natureza díspare da educação e aprendizagem de adultos impede uma identificação próxima com uma arena de políticas sociais específica. A frequente ausência da educação de adultos das agendas das agências governamentais vai ao encontro da parca cooperação inter-ministerial, de fracas estruturas organizacionais e de ligações pobres entre a educação (formal e não-formal) e outros sectores. No 12. 13. AO LONGO DA VIDA 39 f) Apoiar financeiramente um enfoque sistemático em grupos desfavorecidos (por exemplo, povos indígenas, imigrantes, pessoas com necessidades especiais e pessoas que vivem em zonas rurais) em todas as políticas e abordagens educativas, que podem incluir programas livres de encargos ou subsidiados pelos governos, com incentivos para a aprendizagem tais como bolsas de estudo, perdão de propinas e licenças sabáticas pagas; g) Fornecer educação de adultos nas prisões, em todos os níveis apropriados; h)Adoptar uma abordagem holística e integrada, incluindo um mecanismo de identificação dos intervenientes e das responsabilidades do estado na parceria com as organizações da sociedade civil, os intervenientes do mercado de trabalho, alunos e edu cadores; i) Desenvolver respostas educativas eficazes para imigrantes e refugiados, como ponto-chave para um trabalho de desenvolvimento. Qualidade 16 A qualidade na edu cação e aprendizagem é um conceito e uma prática holística e multidimensional que exige uma atenção constante e um desenvolvimento contínuo. Patrocinar uma cultura de qualidade na educação de adultos requer um conteúdo e modos de transmissão relevantes, uma avaliação centrada nas necessidades do aluno, a aquisição de múltiplas competências e conhecimentos, o profissiona- 40 APRENDER lismo dos educadores, o enriquecimento dos ambientes de aprendizagem e o fortalecimento de indivíduos e comunidades. Com estes fins, comprometemo-nos a: a) Desenvolver critérios de qualidade para os currículos, materiais de aprendizagem e metodologias de ensino nos programas de educação de adultos, registando os resultados e medidas de impacto; b)Reconhecer a diversidade e plura lidade de fornecedores; c) Melhorar a formação, construção de capacidades, condições de emprego e a profissionalização dos educadores de adultos, por exemplo através do estabelecimento de parcerias com instituições de ensino superior, associações de professores e organizações da sociedade civil; d)Elaborar critérios para avaliação dos resultados da aprendizagem de adultos em vários níveis; e) Pôr em prática indicadores precisos de qualidade; f) Prestar maior apoio à investigação interdisciplinar sistemática na educa ção e aprendizagem de adultos, com plementada com sistemas de gestão de conhecimentos para a recolha, análise e disseminação de dados e boas práticas. Monitorizar a implementação do Quadro de acção de Belém 17 Retirando forças da nossa vontade colec tiva para revigorar a educação e aprendiza gem de adultos, nacional e internacio nalmente, comprometemo-nos com as seguintes medidas de responsabilização e monitorização. Reconhecemos a ne cessidade de dados qualitativos e quan titativos válidos e confiáveis para infor mar os legisladores de educação e aprendizagem de adultos. Trabalhar com os nossos parceiros para criar e imple mentar mecanismos de registo regular a nível nacional e internacional é impres cindível na realização do Quadro de Acção de Belém. Para estes fins, comprometemo-nos a: a) Investir num processo de desenvol vimento de um conjunto de indi cadores comparáveis de dados para a literacia, como um contínuo e para a educação de adultos; b)Recolher e analisar regularmente os dados e informações sobre partici pação e progressão de programas de educação de adultos, desagregados por sexo e outros factores, para ava liar a mudança com os tempos e partilhar boas práticas; c) Estabelecer um mecanismo regular de monitorização para avaliar a implementação dos compromissos da CONFINTEA VI; d)Recomendar a preparação de um relatório de progresso, trienal, para ser submetido à UNESCO; e) Iniciar mecanismos regionais de moni torização com avaliações e indicadores; f) Produzir um relatório nacional de progresso para uma Revisão de Meio Termo da CONFINTEA VI, que coincida com a EFA e o MDG de 2015; g) Apoiar a cooperação Sul-Sul para o acompanhamento do MDG e da EFA DOSSIER CONFINTEA VI que diz respeito ao reconhecimento e acreditação da aprendizagem, os mecanismos nacionais e os esforços internacionais dão uma ênfase indevida a capacidades e competências formalmente acreditadas, raramente incluindo a aprendizagem não-formal, informal e experiencial. O fosso entre a política e a implementação aumenta quando o desenvolvimento de políticas é levado a cabo isoladamente, sem participação ou opiniões externas (do campo e de instituições de ensino superior) e de outras organizações de educadores de jovens e de adultos. Não foi estabelecido um planeamento financeiro suficientemente alargado ou financeiramente adequado para permitir à educação e aprendizagem de adultos fazer contribuições significativas para o nosso futuro. Além disso, a tendência corrente e crescente de descentralização na tomada de decisões nem sempre tem paralelo em distribuições financeiras adequadas a todos os níveis, ou por uma delegação apropriada com autoridade orçamental. A educação e aprendizagem de adultos não figura grandemente nas estratégias de ajuda de mecenas internacionais e não foi sujeita a esforços actuais de coordenação e harmonização de doadores. Até agora, o perdão da dívida não beneficiou de forma marcada a educação e aprendizagem de adultos. Embora presenciemos uma variedade crescente de programas de educação e aprendizagem de adultos, o foco primário de tal provisão está agora na educação e formação vocacional e profissional. Estão em falta abordagens mais integradas à educação e aprendizagem de adultos para lidar com o desenvolvimento, em todos os seus aspectos (económico, sustentável, comunitário e pessoal). Iniciativas mainstream nem sempre levaram a programas mais relevantes para uma maior participação das mulheres. De forma semelhante, os programas de educação e aprendizagem de adultos raramente dão resposta a povos indígenas, populações rurais e migrantes. A diversidade de alunos, em termos de idade, sexo, background cultural, estatuto económico, necessidades específicas – incluindo deficiência – e língua, não se reflecte nos conteúdos e práticas programáticas. Poucos países têm políticas multilingues consistentes, que promovam a língua materna, mas isso é muitas vezes crucial para a criação de um ambiente de literacia, especialmente para as línguas indígenas e/ou de minorias. A educação e aprendizagem de adultos, quando muito referida apenas em traços muito gerais, surge poucas vezes em muitas agendas e recomendações internacionais de educação, e é muitas vezes vista como um sinónimo de aquisição básica de literacia. No entanto, a literacia tem, indiscutivelmente, uma enorme importância, e o imenso e persistente espectro do desafio da literacia representa uma denúncia da adopção desadequada das medidas e iniciativas lançadas em anos recentes. As consistentemente elevadas taxas de iliteracia, colocam a questão sobre se se terá feito o suficiente, em termos políticos e financeiros, pelos governos e agências internacionais. A falta de profissionalização e de oportunidades de formação para educadores tem tido um impacto negativo na qualidade da provisão da educação e aprendizagem de adultos, tal como a fraca qualidade do ambiente de aprendizagem, em termos de equipamento, materiais e currículos. Só raramente é que a avaliação e investigação de necessidades são conduzidas de forma sistemática no processo de planeamento, para determinar os conteúdos, pedagogia, modo de transmissão e infra-estrutura de apoio adequada. Os mecanismos de monitorização, avaliação e feedback não são uma característica consistente no horizonte de qualidade da educação e aprendizagem de adultos. Onde existem, os seus níveis de sofisticação estão sujeitos à tensão de equilibrar qualidade com quantidade de provisão. Esta Declaração de Prova fornece o argumento de apoio para as recomendações e estratégias acima delineadas no Quadro de Acção de Belém. n 14. nas áreas da literacia de adultos, educação de adultos e aprendizagem ao longo da vida; h)Monitorizar a colaboração na edu cação de adultos através das disci plinas e dos sectores, tais como agri cultura, saúde e emprego. Para apoiar o acompanhamento e moni torização a nível internacional, pedimos à UNESCO e às suas estruturas: i) Que providencie apoio aos Estados Membros, desenhando e criando um sistema de livre acesso de gestão de conhecimentos para compilar dados e estudos de caso de boas práticas, para o qual os próprios Estados Membros irão contribuir; j) Que desenvolva linhas de orientação sobre todos os resultados de apren dizagem, incluindo os adquiridos através da aprendizagem não-formal e informal, para que possam ser reconhecidos e validados; k)Que coordene, através do Instituto da UNESCO para a Aprendizagem ao Longo da Vida, em parceria com o Instituto de Estatística da UNESCO, um processo de monitorização a nível global, para avaliar e informar periodicamente o progresso na educação e formação de adultos; l) Que produza, nesta base, o Relatório Global sobre Educação e Aprendizagem de Adultos (GRALE), a intervalos regulares; m) Que reveja e actualize, até 2012, a Re comendação de Nairobi sobre o Desen volvimento da Educação de Adultos (1976). n 15. 16. 17. 18. AO LONGO DA VIDA 41 Celita Eccher Secretária-Geral do Conselho Internacional de Educação de Adultos (ICAE), uma ONG internacional que representa mais de 700 associações dedicadas à literacia, educação de adultos e aprendizagem ao longo da vida. O FISC, uma plataforma de lançamento O Fórum Internacional da Sociedade Civil (FISC) foi um encontro de carácter mundial, que se realizou em Belém do Pará, Brasil, nos dias 28, 29 e 30 de Novembro de 2009. O s seus objectivos eram: A) preparar a participação da sociedade civil na Conferência Inter nacional de Edu cação de Adultos (CONFINTEA VI); B) articular os diferentes movimentos, redes e organizações da sociedade civil de diversos países para aprofundar a reflexão, o debate democrático de ideias, a formulação de propostas, o intercâmbio livre de experiências e a articulação para obter acções eficazes na incidência de políticas públicas que fortaleçam o exercício do direito à educação ao longo da vida. A CONFINTEA é a mais importante conferência internacional no campo da educação de pessoas jovens e adultas (EPJA). É coordenada pelo Instituto da UNESCO para a Educação ao Longo da Vida e tem lugar a cada 12 anos. A sexta edição teve lugar em Belém, entre os dias 1 e 4 de Dezembro. Foi a primeira 42 APRENDER vez que a Conferência se realizou num país do Sul. As “CONFINTEAS” reúnem os Esta dos-membros da UNESCO, que estão representados pelos Ministérios da Edu cação, e procura obter directivas inter nacionais para as políticas educativas no campo da EPJA. A sociedade civil organizada procura incidir sobre as diferentes etapas deste processo, com vista a influir no docu mento final e nos compromissos assu midos pelos governos. É neste sentido que o FISC surge como espaço de encontro, plural, não confessional, não governamental e não partidário, aberto à diversidade de iden tidades e temas presentes nas práticas da EPJA, que advoga o respeito pelos Direitos Humanos, a prática de uma democracia participativa e um modelo de desenvolvimento que seja sustentá vel em relação aos recursos naturais e à preservação da diversidade, por relações igualitárias, solidárias e pacíficas entre pessoas, etnias, géneros e povos, conde nando todas as formas de dominação, assim como a sujeição de um ser humano por outro.1 É necessário que as Organizações da Sociedade Civil gerem amplas alianças. Se aprendemos com as redes, movi mentos e outras organizações da socie dade civil, desde a década social das conferências das Nações Unidas, nos anos 90, que um bom documento é muito importante para o trabalho de influência nas políticas públicas, tam bém aprendemos que o processo pre paratório destas conferências é uma boa motivação para fortalecer e intensificar as organizações da sociedade civil. É nesse sentido que o processo preparatório da CONFINTEA VI foi um excelente pretexto para promover uma movimentação das organizações que trabalham pelo direito a uma educação ao longo de toda a vida. Podemos organizar este processo em três fases sucessivas e inter-relacionadas: DOSSIER CONFINTEA VI o processo preparatório destas conferências é uma boa motivação para fortalecer e intensificar as organizações da sociedade civil. 1. A fase preparatória do FISC, na qual se realizou um Seminário Virtual com participação aberta de todas as regiões do mundo, que teve o seu ponto alto num seminário presencial em Leicester, em Maio de 2008. Neste seminário participaram, para além do ICAE, a Campanha Latino-ame ricana pelo Direito à Educação, Action Aid, o Gabinete de Género e Educação do ICAE, peritos especialmente convi dados, e a Plataforma Africana. Ali deu-se prioridade às principais áreas de influência e elaborou-se um primeiro documento de discussão, para ser submetido a debate com todas as redes e organizações que assim o desejassem, funda mentalmente através da ordem de traba lhos: (CONFINTEA) especialmente criada para debater e promover a participação a todos os níveis, assim como boletins elec trónicos e websites das diversas organizações promotoras, ao que se juntou o website do FISC, o blog, Facebook e Twitter, no momento da sua realização. A plataforma africana2 é, sem dúvida, um dos sucessos visíveis deste processo: depois de mais de uma década, África pôde acordar um trabalho conjunto das suas redes com a criação desta Plata forma, utilizando os espaços gerados pelos seminários regionais africanos, organizados pelo ICAE no processo pre paratório da CONFINTEA. Também, e como outro exemplo, a partir desses seminários presenciais cria ram-se redes nacionais que permitiram avançar na sensibilização dos governos e da sociedade civil em diversos países, em várias regiões e, sobretudo, fortalecer a sociedade civil, na sua luta pelo direito à educação. Em outras regiões, as asso ciações realizaram diversas actividades e apresentaram também as suas tomadas de posição. Como resultados da organização da CONFINTEA, formaram-se três comis sões:3 Uma de nível internacional, outra regional, formada por redes, movimentos e ONGs da América Latina e do Brasil, e outra local, em Belém. Isto permitiu a inter-relação dos di versos níveis de participação. A segunda fase foi composta por duas partes: 2.1 O FISC propriamente dito, que permitiu a participação de uma ampla representação mundial de diversos actores da educação e de movimentos sociais. Procurou-se que fossem abordados no FISC os temas mais importantes que são hoje uma preocupação do EPJA, num esforço de pôr em prática a interseccionalidade e ressaltar as múltiplas esferas onde a educação tem um papel importante, através de painéis com especialistas convidados.4 O segundo dia foi dedicado a activi dades de auto-gestão, nas quais assegurámos a inclusão de outras propostas e a diversidade de visões sobre as temáticas, uma vez que foram os próprios participantes a decidir qual a actividade a apresentar, nos diversos ateliers. Este evento anterior à CONFINTEA permitiu não só conhecer, partilhar e reconhecermo-nos como actores que trabalham pelo direito à educação, mas também uma coordenação assegurada na conferência, com um documento emanado da sociedade civil, a partir dos contributos de vários grupos (de mulheres, regionais, temáticos) que se consolidou no grupo da sociedade civil.5 2.2 Na conferência propriamente dita, esta preparação permitiu muitas coisas: A principal foi o ganho político: a sociedade civil esteve presente, aliada e com força, pressionando a cada momento que considerou necessário, por exemplo, fazendo advocacia com o documento, que foi referendado por muitos países num todo, e por muitos outros com algumas modificações, como emenda ao documento original, ou exigindo respeito pelos procedimentos do Comité de Redacção. Foi uma aprendizagem de como é possível ter uma presença efectiva e uma acção coerente e consistente na sociedade civil, na conferência. Não menos importante, a mobiliza ção e o entusiasmo do FISC transmitiuse à CONFINTEA, e deu-lhe um impulso para ser um espaço onde ocorrem certos AO LONGO DA VIDA 43 DOSSIER CONFINTEA VI debates que não teriam acontecido sem a presença da sociedade civil, concretamente no debate do Quadro de Acção de Belém. Este processo levou-nos a essa plata forma imaginária de lançamento, para fortalecer um movimento de defesa do direito humano à educação em todas as idades e em todo o mundo. Hoje, preparámos um caminho e temos uma oportunidade de cultivá-lo e alargá-lo. Temos a oportunidade de continuar a estabelecer alianças com os movimentos sociais, de ter uma presença mais importante em algumas temáticas, como as alterações climatéricas e outras, que têm a ver com a sobrevivência da humanidade no planeta. Já está aberto o processo de conti nuidade através da comissão do Grupo da Sociedade Civil, que criou um grupo de trabalho com o objectivo de processar a enorme e rica produção de material que se deu durante o processo, através dos seminários virtuais, da ordem de trabalhos da CONFINTEA e durante a própria conferência. n A mobilização e o entusiasmo do FISC transmitiu-se à CONFINTEA, e deu-lhe um impulso para ser um espaço onde ocorrem certos debates que não teriam acontecido sem a presença da sociedade civil. 1 Ver Carta de Princípios: http://www.fisc2009.org/index.php?option=com_content& view=article&id=29&Itemid=8 2 Mais informação: http://www.africacsplateforme.org / 3 Mais informação: http://www.fisc2009.org/esp/index.php?option=com_content&vi ew=article&id=13&Itemid=12 4 Ver PROGRAMA: http://www.icae2.org/files/portugues.pdf 5 Ver Documento da Sociedade Civil: http://www.fisc2009.org/images/CS_Advocacy_ Paper_FINAL_DRAFT_16_Sept_POR.pdf LINKS Pagina web FISC: www.fisc2009.org BLOG FISC: http://www.fisc2009.wordpress.com Pagina web ICAE: www.icae.org.uy DA RETÓRICA À AÇÃO COERENTE Documento com as contribuições da sociedade civil ao Quadro de Acção de Belém, apresentado no dia 1° de dezembro de 2009. http://fisc2009.wordpress.com/2009/12/02/sociedade-civil-apresenta-propostaspara-a-declaracao-de-belem/ Reacções finais do caucus da sociedade civil. Documento apresentado no dia 4 de Dezembro de 2009. http://fisc2009.wordpress.com/2009/12/07/sociedade-civil-apresenta-suasconsideracoes-finais-sobre-a-confintea-vi/ 44 APRENDER AO LONGO DA VIDA 45 artigo Ao reatar os laços teórico-analíticos com a tradição crítica da educação de adultos encontramos as bases para reinventar uma praxis que possibilite esgravatar um pouco mais fundo os contextos educacionais. Investigar e Agir para Desafiar o Carácter Instrumental da Nova EFA Pistas para Reanimar a Educação de Adultos como Pedagogia de Oposição Texto de Rosanna Barros, Universidade do Algarve # Ilustração Luis Miguel Castro A consideração de um modo alternativo de reflexão global na investigação sobre educação de adultos, que valorize o seu legado crítico e radical e a sua divulgação na academia e fora dela implica já, por si só, um desafio, na medida em que estamos num momento em que há uma inflação de novos discursos tecnicistas, maioritariamente elaborados em torno de um entendimento instrumental dos conceitos de aprendizagem e de competências, que possuem um grande potencial para encobrir e ocultar do debate público as estratégias contidas nas agendas políticas sobre educação (Barros, 2009). Ao reatar os laços teórico-analíticos com a tradição crítica da educação de adultos encontramos as bases para reinventar uma praxis que possibilite esgravatar um pouco mais fundo os contextos educacionais e pensar um pouco mais criticamente a realidade social, partindo do legado dos pedagogos críticos e radicais, de onde sobressai a filosofia político-pedagógica de Paulo Freire. Trata-se sobretudo de procurar construir para a época actual uma ontologia e uma epistemologia educacional que retome a politização dos conceitos e a dignidade universal e ética da condição humana. Uma ontologia radical que significa indagar acerca do significado de ser-se um ser humano e humanizado no âmbito dos limites actuais criados pelo capitalismo neoliberal, uma reflexão crítica de base, fundamental para compreender que, sendo a história uma construção social, há sempre alternativas para as ‘situações limite’ de opressão, e tal como enfatizam Allman e Wallis mesmo com as mais fortes limitações “um potencial 46 APRENDER para nos tornarmos mais humanos pode ser alcançado – um potencial que podia ser entendido e desenvolvido por toda a humanidade se quiséssemos transformar as actuais relações sociais, criando outras novas” (Allman e Wallis, 1997: 20). Colocada desta forma, uma ontologia radical de inspiração freiriana é tanto crítica como esperançosa porque exige que se analise o ‘estar sendo menos’, presentemente, com os critérios e pressupostos derivados de uma visão humanista, democrática e socialmente justa do que pode vir a significar ‘ser-se mais’, no futuro. Uma epistemologia educacional de cariz radical pressupõe, por seu turno, que se aprofunde a crítica ao modo ainda dominante de pensar a realidade, que a fracciona e dicotomiza, bem como à forma instrumental segundo a qual educadores e educandos se relacionam actualmente com o conhecimento, nos contextos hegemónicos, para poder criar as condições teóricas possibilitadoras da concepção de caminhos alternativos. Isto porque se desejarmos, verdadeiramente, que a pesquisa científica e a educação possam contribuir para a apreensão do real, de modo a propiciar um ganho de consciência crítica que facilite a transformação social, então é necessário um engajamento, por parte dos intelectuais e dos educadores, com o outro, numa procura partilhada de relações sociais, económicas e políticas alternativas, que visando um entendimento mais radicalmente democrático da democracia, represente as bases e os fundamentos para a organização de um movimento global de resistência à opressão. Um movimento global e contra-hegemónico que, como acentuam Allman e Wallis, “ergue-se pela Uma epistemologia educacional de cariz radical pressupõe que se aprofunde a crítica ao modo ainda dominante de pensar a realidade, que a fracciona e dicotomiza. união entre saber e ser, de maneiras completamente diferentes e humanizadas” (Allman e Wallis, 1997: 21). Isto significa ter a responsabilidade de aprender e ensinar a compreender a nossa realidade de forma dialéctica, o que implica desde logo que uma epistemologia radical é impossível de ser elaborada na ausência de uma também radical ontologia. Ora, uma das consequências que se podem destacar do exercício dialéctico entre uma ontologia e uma epistemologia radicais é o resgate da dimensão colectiva da educação de adultos atribuindo-selhe um valor simbólico de bem colectivo, que faz com que, para muitos, o conceito de educação não possa ser entendido sem a sua base humanista e democrática que lhe serve de essência. Posto isto, na reflexão acerca das relações de poder envolvidas na relação entre educação e sociedade, há que começar por restituir à esfera pública o debate de ideias para poder pensar criticamente a trilogia que relaciona a questão dos valores e bens comuns, a questão da cidadania democrática e a questão da ideologia, questões que nos parecem fundamentais para estruturar uma agenda radical para a educação de adultos que vá assumidamente em contra-mão da actual perspectiva hegemónica da aprendizagem ao longo da vida. Insistir em restituir o debate crítico de ideias associado à educação, ou seja, o debate de princípios e ideologias que enformam e justificam as finalidades passíveis de ser atribuídas à educação, é já uma atitude radical face ao actual contexto que tende a uniformizar os discursos e o pensamento educativo em torno de uma perspectiva geral assente numa pretensa neutralidade da educação e na importância da aquisição funcional de competências. Admitir que muita da oferta educativa para adultos se transformou hoje numa mera mercadoria transaccionada nos termos do mercado (numa lógica vocacional) implica também reconhecer que há uma crescente comunidade de práticas que tem vindo a aderir à abordagem baseada na lógica das competências. Resta investigar se essa adesão é feita com a real consciência crítica de que este tipo de abordagem é limitativa de uma visão que procure encarar a educação enquanto projecto libertador, ou se se trata de uma adesão assente numa ‘consciência ingénua’ e conseguida através dos mecanismos de sedução e manipulação próprios da sociedade de consumo em que actualmente vivemos. O sintoma deste cenário, que se alastra hoje no campo da educação de adultos, é visível quando cada vez mais, como notam Shaw e Crowther, “os debates intelectuais, sociais e morais próprios da prática educacional são banidos para dar lugar a uma ‘educação’ vista como um exercício técnico” (Shaw e Crowther, 1997: 210). Nesta mesma linha de argumentação crítica Melo, Lima e Almeida referem que quando indagamos AO LONGO DA VIDA 47 acerca do papel atribuído à educação e formação de adultos no âmbito das transformações ocorridas no contexto mundial “transparece por vezes uma perspectiva mais do tipo ‘reactivo’, ou seja, visando facilitar a adaptação dos indivíduos e sociedades às novas exigências, do que ‘pró-activo’, isto é, de capacitação para interagir criativamente e influenciar as circunstâncias condicionantes, individuais e colectivas” (Melo, Lima e Almeida, 2002: 21). Canário, por seu turno, critica também este estado da arte afirmando que actualmente “à educação é reservado o papel de promover seres adaptáveis e não interventores (…) o consenso em torno da aprendizagem ao longo da vida corre sérios riscos de a transformar numa espécie de cartilha repetida à exaustão por funcionários zelosos” (Canário, 2003: 205). Assumindo que a educação de adultos está hoje numa encruzilhada, parece-nos fundamental que se convoquem todos os agentes e actores da educação de adultos para a criação de um movimento políticofilosófico, que sendo teoricamente robusto e empiricamente activo, possa conferir carácter e identidade endógeno à agenda da educação de adultos. Este contexto educacional (desenvolvido desde o último quartel do século XX) basicamente representa, no nosso entender, um episódio nebuloso na história da educação de adultos. Trata-se de um cenário de instrumentalização do campo causado por dois factores principais que são: por um lado, a erosão dos pilares modernos do pensamento ocidental, em que a educação de adultos foi no essencial erigida; e por outro lado, o deliberado esvaziamento da dimensão política da educação, operado na esfera pública internacional pelas instâncias políticas e económicas supranacionais. Estes são dois factores que, em conjunto, parecem indicar que mais do que uma recomposição do campo estamos talvez a testemunhar presentemente a sua mutação. Ora, neste contexto há, pois, certamente uma responsabi lidade acrescida para os investigadores e educadores, movidos por uma consciência crítica, que consiste em reflectir, debater e posicionar-se acerca das diversas possibilidades que as principais ideias e problemáticas-chave existentes no âmbito da educação de adultos sugerem. Se optarmos por resistir e combater esta rápida instrumentalização da educação de adultos, tornarse-á crucial pensar na maneira de desenvolver, sempre que possível em rede, um novo sentido, de carácter mais humanista, para a educação, que possibilite construir uma nova missão e agenda para a educação de adultos, baseada no compromisso com valores opostos à competição e ao lucro, como suportes da nossa vida colectiva. Para tal parece-nos ser imprescindível res- 48 APRENDER tituir, ao campo da educação de adultos, o debate de princípios que tem vindo a ficar refém da presente perspectiva dominante. Para este debate, a investigação crítica pode dar um significativo contributo, resgatando a história dos conceitos e perspectivas da educação de adultos ao mesmo tempo que se revisita neste exercício abordagens e correntes de pensamento social de autores que exploraram a dimensão política da educação, de modo a instituir um debate de ideias esclarecido e inspirador de novos caminhos que podem perspectivar um novo futuro. Não se trata de essencializar e imobilizar o passado, mas de o conhecer e convocar para melhor interpretar o quadro actual existente neste sector, e assim definir linhas analíticas relevantes para uma construção crítica de conhecimento que se afirme e oponha a um estado da arte que hoje tende a celebrar como pertinente apenas aquele conhecimento que se revela pragmático, segundo os critérios económico-financeiros que dominam o panorama das políticas sócio-educativas. Na «educação e formação de adultos», defendemos que ao actual consenso vocacionalizante imposto há, pois, que contrapor ideias e opiniões, de um cariz humanizante, como forma de alargar o leque de possibilidades críticas perspectivadas no projecto de construção de uma cidadania radicalmente democrática e respeitadora dos direitos humanos. Como, por exemplo, sugere Fieldhouse quando apela para o necessário engajamento “com os novos movimentos sociais pela paz, direitos femininos, justiça racial, direitos homossexuais e os assuntos ambientais (…) para [construir] um conceito menos restrito e mais crítico de cidadania (…) que confronte a redefinição de ‘cidadania’ operada pela ‘Nova Direita’ com a sua maior ênfase nos deveres sociais do que nos direitos” (Fieldhouse, 1998: 400). Deste modo, o desafio essencial está, insistimos, em trazer para a esfera pública um debate de ideias que revalorize a dimensão político-filosófica da educação de adultos, incentivando a disseminação de práticas reflexivas no campo que problematizem as implicações do acto educativo. Indagando sobre a questão dos valores e do bem comum, numa óptica tributária da velha educação permanente, que pense a educação de adultos promovendo-a enquanto projecto educativo integral, para deliberadamente contrariar esta nova ortodoxia educacional que pode reduzir o campo a um mero serviço privado ao dispor das necessidades económicas, sociais e culturais do novo capitalismo e dos interesses da elite dominante. No fundo, trata-se de reinventar para a época actual as velhas preocupações de uma educação de adultos crítica e radical relacionadas com a defesa da igualdade, da democracia, da participação e da justiça social, postas de novo na ordem do dia, mas de uma nova maneira, compatível com as características da sociedade actual. Na chamada sociedade da informação, cabe também à educação de adultos contribuir para organizar um movimento global de renovação cultural, instaurador de uma cultura de problemas, de debate e diálogo, de praxis crítica, capaz de “servir de bússola ao educando para navegar nesse mar de conhecimento, superando a visão utilitarista de só oferecer informações ‘úteis’ para a competitividade” (Gadotti, 2001: 35). No mundo contemporâneo vivemos na era do acesso fácil à informação, mas não na era do conhecimento e da comunicação, na medida em que as tecnologias da informação e comunicação (TIC) não significam comunicação humana, pelo que temos necessidade, artigo por isso mesmo, de construir uma “esfera pública cidadã” (Habermas, 1988). Assumindo que a educação de adultos está hoje numa encruzilhada que, ou significará a sua recomposição crítica e radical ou a sua mutação para algo substancialmente diverso, parece-nos fundamental que se convoquem todos os agentes e actores da educação de adultos para a criação de um movimento político-filosófico, que sendo teoricamente robusto e empiricamente activo, possa conferir carácter e identidade endógeno à agenda da educação de adultos, que se encontra presentemente repleta de contradições teórico-conceptuais e fortemente dominada por factores político-económico-financeiros de cariz exógeno ao campo. Trata-se de reinventar a linguagem do social, o que é incumbência de actores sociais e pedagogos críticos capazes de perceber e assumir coerentemente uma tomada de consciência da politicidade da educação e da história como construção social e fonte de possibilidades. truir, desconstruindo primeiro as falsas evidências, uma nova agenda para a educação de adultos, assumidamente contra-hegemónica. Esta agenda de reflexão-acção terá de ser construída desde um ponto de vista que recoloque o indivíduo no contexto colectivo, sem isolar as necessidades e particularidades individuais dos objectivos e efeitos mais amplos partilhados no âmbito de um colectivo social. Uma forma de iniciar este processo pode muito bem ser demonstrando, pela investigação científica e crítica, que há já um legado radical no corpus teórico da educação de adultos que se orienta pelos princípios da justiça social e de uma ética universal do ser humano que interessa resgatar, sobretudo para ressuscitar a velha luta engajada de intelectuais e educadores pela dignidade humana, que se encontra hoje de novo ameaçada de ruir pelo poder das forças da globalização neoliberal em curso. Trata-se de reinventar a linguagem do social, o que é incumbência de actores sociais e pedagogos críticos capazes de perceber e assumir coerentemente uma tomada de consciência da politicidade da educação e da história como construção social e fonte de possibilidades. No resgate e reconstrução crítica da versão humanista do papel da educação de adultos há, pois, que enfrentar o desafio difícil de desenvolver ideias fecundas no âmbito do pensamento transformador, que permitam imaginar novas e múltiplas soluções político-educativas, essenciais para o nosso tempo. Novas propostas que recoloquem o ser humano no centro da relação entre o viver, o aprender e o trabalhar, e que rompendo com a doxa instituída da ideia da aprendizagem ao longo da vida como um item educativo contribua para a reintroduzir no debate como aquilo que realmente ela é, um item político. n ReferÊncias Bibliográficas: Com efeito, a aceitação generalizada da agenda técnico-instrumental para a educação de adultos só pode ser compreendida tendo em consideração a actual fase do desenvolvimento histórico do capitalismo. Trata-se de uma fase de reestruturação que, tal como noutros momentos do passado, visa assegurar a sobrevivência do sistema capitalista, actualmente em moldes que geram uma absoluta opressão social global (Petrella, 1998; Chomsky, 2000). Para fazer face a este capitalismo selvagem, como vem sendo designado, é fundamental desocultar os mecanismos que o sustentam, o que implica, desde logo, que os educadores necessitam desenvolver, não tanto um variado leque de competências técnicas, mas sim uma compreensão crítica e dialéctica da realidade e do modo segundo o qual o capitalismo funciona no mundo contemporâneo. O contributo da investigação crítica pode, pois, representar, nesta fase da nossa história, uma fonte de ligação para o desenvolvimento de um movimento contemporâneo na educação de adultos capaz de fazer face à actual realidade de opressão, concentrando-se em intervir nas suas causas e não nos seus sintomas e em interrogar as assumpções e estratégias em que se fundamentam as actuais políticas (educativas?) para o sector. Trata-se de promover uma reflexão que apoiada numa retrospectiva intenta identificar qual o estado da arte actual do campo para prospectivamente pensar e contribuir para cons- Allman, P. & Wallis, J. (1997). Challenging the Postmodern Condition. Radical Adult Education for Critical Intelligence. In Marjorie Mayo & Jane Thompson (eds.). Adult Learning Critical Intelligence and Social Change (pp. 18-33). Leicester: NIACE. Barros, R. (2009). Políticas para a Educação de Adultos em Portugal – A Governação Pluriescalar da «Nova Educação e Formação de Adultos» (19962006). Braga: Universidade do Minho. [Tese de Doutoramento]. Canário, R. (2003). A “Aprendizagem ao Longo da Vida” – Análise Crítica de um Conceito e de uma Política. In Rui Canário (org.), Formação e Situações de Trabalho (pp. 189-205). Porto. Porto Editora. Chomsky, N. (2000). O Neoliberalismo e a Ordem Global – Crítica do Lucro. Lisboa: Editorial Notícias. Fieldhouse, R. (1998). A History of Modern British Adult Education. Leicester: National Institute of Adult Continuing Education. Gadotti, M. (2001). Educar Adultos hoje na Perspectiva de Paulo Freire. Revista Portuguesa de Pedagogia, 35 (1), 31-40. Habermas, J. (1988). Teoria de la Acción Comunicativa. Madrid: Taurus Ediciones. Melo, A., & Lima, L. C., & Almeida, M. (2002). Novas Políticas de Educação e Formação de Adultos - O Contexto Internacional e a Situação Portuguesa. Lisboa: Agência Nacional de Educação e Formação de Adultos. Petrella, R. (1998). Vers une Société de Welfare Mondial. Les Limites du Capitalisme de Marché. In João Ferreira do Amaral (coord.). Eupopa Social – Actas do Seminário Internacional (pp. 79-98). Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian. Shaw, M. & Crowther, J. (1997). Beyond Subversion. In Marjorie Mayo & Jane Thompson (eds.). Adult Learning Critical Intelligence and Social Change (pp. 204218). Leicester: NIACE. AO LONGO DA VIDA 49 Aprender ao longo da vida Assine a revista Envio de um exemplar da revista à cobrança, com os portes incluídos: 4 euros APARTADO 30005 · 1350 - 999 LISBOA · Telefone: 969 593 912 · e-mail: [email protected] www.direitodeaprender.com.pt NOME: MORADA: TELEFONE: LOCALIDADE: FAX: E-MAIL: Pretendo aderir à Associação “O Direito de Aprender” (Distribuição gratuíta da Revista aos associados) (Cota anual: 30 euros) Pretendo ser assinante da revista “Aprender ao Longo da Vida” (4 números por ano) (O preço da assinatura anual é de 13,50 euros) O pagamento pode ser efectuado por cheque para a Associação “O Direito de Aprender” ou para a conta da Caixa Geral de Depósitos, com o NIB: 003500270008163483055 transferência bancária Artigo A educação de adultos na Andaluzia percorreu um longo caminho desde os jovens que aspiravam a “dar-se aos outros” até agora. Um caminho que não fez a administração educativa, mas sim as pessoas e comunidades, e que continua vivo em experiências concretas. Evolução da Educação de Adultos na Andaluzia (Espanha) Texto: Emilio Lucio-Villegas, Universidade de Sevilha (Espanha) # Tradução: Daniela Silveira Introdução A grande caminhada em direcção à democracia, em Espanha, possui um elemento que não deve ser esquecido. Essa longa, penosa e muitas vezes sangrenta marcha está indissoluvelmente ligada à recuperação da diversidade cultural e social dos diferentes e variados territórios que a Ditadura tentou eliminar, física, geográfica, idiomática ou culturalmente. Assim, a construção do Estado Constitucional, a partir de 1978, culmina – ou talvez está ainda por culminar – na explosão imparável da diversidade dentro do Estado. Falar de um modelo unificado de educação no conjunto do Estado – e de outros elementos, como os serviços de saúde ou de transporte, incluídos nos impostos – é um pouco complicado. Por exemplo, falando de educação, e antes de se chegar à Educação de Adultos, existe uma Lei de Educação (2006) a nível do conjunto do Estado, mas a Andaluzia tem uma lei de educação própria, desde 2007. Se considerarmos a educação de adultos, a questão diversifica-se ainda mais: não existe uma Lei de Educação de Adultos no conjunto do Estado, existem leis: Galiza (1992); Comunidade de Valência (1995); Canárias (2003); ou Ilhas Baleares (2006). Curiosamente, a Andaluzia, que foi o primeiro território a possuir uma Lei de Educação de Adultos (1990), aboliu-a em 2008. Isto não quer dizer que o Estado perdeu a sua capacidade de legislar – não mais do que a perda de soberania legislativa que supõe, em muitos âmbitos, a entrada na União Europeia. O AO LONGO DA VIDA 51 que sucede é que, partindo de um marco legislativo geral – a Lei de Educação, por exemplo - os governos dos diversos territórios têm uma ampla capacidade para legislar. Apesar dessa afirmação – ou talvez em consonância com ela – num Estado que apresenta uma grande diversidade nacional e territorial é muito difícil – ou talvez impossível – apresentar um território como exemplo dos restantes. Assim, devemos clarificar que não é nossa intenção apresentar a Andaluzia como exemplo do restante Estado, mas tão simplesmente como mais uma singularidade no seio de um Estado plural. Após esta breve introdução, vamos dividir a nossa revisão em três elementos: a) algumas características socioeconómicas, educativas e culturais da Andaluzia; b) algumas experiências de educação de adultos, que se situam entre a ditadura e a democracia, e que têm influência nos diversos territórios – a Andaluzia entre eles –; e c) a evolução da educação de adultos na Andaluzia desde 1982 até à actualidade. Alguns dados sobre a situação da Andaluzia Com uma superfície de 87.268 km², a Andaluzia é maior do que a Irlanda, a Áustria ou a Dinamarca, e três vezes maior do que a Holanda. A sua situação geográfica condicionou historicamente o seu desenvolvimento. Esta situação geográfica facilitou o surgimento de uma série de elementos gerais que a caracterizam, no nosso entendimento, de uma forma muito ampla: – uma importante posição geoeconómica, que a converte em paragem obrigatória para as rotas de transporte, e como ponte natural entre a Europa e o Norte de África, no transporte de pessoas e mercadorias, mas nunca como ponte cultural. – uma posição geoestratégica como fronteira meridional da NATO para o controlo do Mediterrâneo ocidental e oriental. Assim, existem na Andaluzia duas das bases militares mais importantes do Estado: Morón de la Frontera (Sevilha) – de onde partiram os bombardeiros dos EUA para bombardear Bagdad, e outros alvos nas duas guerras – e Rota, em Cádis. Exceptua-se a utilização do porto de Gibraltar como base de abastecimento de submarinos nucleares da NATO. 52 APRENDER Podem considerar-se diversas Andaluzias dentro da Andaluzia. Geralmente, distinguem-se três grandes zonas. Em primeiro lugar, o que poderemos chamar – embora este termo possa referir-se a todo o conjunto – a Andaluzia marginalizada, caracterizada por uma deterioração crescente, do ponto de vista ecológico, demográfico e cultural. Ocupa aproximadamente metade do território, mas concentra apenas 20% da população. Seria uma periferia dentro da periferia (Wallerstein, 1984). No outro extremo, encontra-se a Andaluzia próspera, caracterizada por uma grande densidade populacional e um rendimento aceitável. Trata-se dos grandes núcleos urbanos e da cada vez mais devastada, ecológica, social e culturalmente, costa dedicada apenas ao turismo. Concentra cerca de 60% da população e quase 75% do rendimento global. No meio, num difícil equilíbrio entre uma e outra, querendo unir-se à segunda, mas cada vez mais perto da primeira, encontra-se uma Andaluzia indefinida, cada vez mais marginal e unida ao mundo exterior apenas pelo cordão umbilical de uma televisão devastadoramente embrutecedora, contra a qual se insurge a educação de adultos. Dentro do conjunto do Estado Espanhol, o rendimento per capita é a penúltima de todas as Comunidades Autónomas. Assim, tradicionalmente, a Andaluzia tem sido uma zona fornecedora de força de trabalho a outras regiões do Estado e a outros Estados do conjunto europeu. A estrutura económica encontra-se configurada por um aumento do desemprego. Em épocas de crise, e fora delas, a taxa de desemprego da Andaluzia – 24,63% de acordo com os dados do terceiro trimestre de 2009 – duplica em relação à média do conjunto do Estado. Paralelamente, a estrutura económica e de emprego fundamentam-se na agricultura e no turismo, que são o paradigma dos mercados de trabalho temporário e de elevada precariedade. A criação de focos turísticos ou de agricultura intensiva fez com que, por outro lado, os desequilíbrios entre as três Andaluzias aumentem ainda mais, criando centros nas periferias (Gualda et al, 2009). Para terminar, faremos algumas referências à população e artigo A Espanha entrou no século XX com 60% de pessoas analfabetas. É uma percentagem mais elevada do que a Suécia, o Reino Unido ou outros países europeus no século XVIII. ao nível de instrução. A população total da Andaluzia, segundo o Padrão Municipal de Habitantes, a 1 de Janeiro de 2009, é de 8.302.923 habitantes, dos quais 4.113.383 são homens e 4.189.540 são mulheres. A evolução demográfica caracterizase pelo envelhecimento da população: existem já mais pessoas com mais de 75 anos do que com menos de 5 anos. O nível de instrução é um dos elementos que nos interessa particularmente. Segundo o Censo de População de 2001, os números são os seguintes: sobre uma população de 5.956.718 (com 16 ou mais anos) 260.125 pessoas indicam não saber ler ou escrever; 1.016.072 tem menos de 5 anos de escolaridade; e 1.319.889 não possui o Título de Graduado do Ensino Secundário. Esse total compreende 2.596.086, 43,58% da população com mais de 16 anos. Os dados mais actuais não estão organizados desta forma, mas podemos considerar algumas questões: i) o índice de analfabetismo absoluto – se tal coisa existe – é de 4,1% nas mulheres e de 2,4% nos homens – em 2006; ii) a percentagem de pessoas analfabetas e pessoas consideradas sem estudos é, também em 2006: 17,1% - 19,9% são mulheres e 14,2% são homens. Assim, podemos ver que os números não variam muito. Devemos somar a tudo isto as pessoas que abandonaram os estudos ou que foram abandonadas pela escola. Podemos dizer, para terminar, que a sociedade andaluza está caracterizada por grandes desequilíbrios territoriais, uma situação laboral marcada pelo desemprego, o trabalho temporário e o trabalho subsidiado – ou melhor, o trabalho não subsidiado – ; e por um manifesto abandono, por parte dos poderes públicos, da construção de um discurso e de práticas que assentem na reconstrução da cultura autóctone, mais além da venda estereotipada para o turismo. A Educação de Adultos em Espanha A primeira consideração surpreendente é que Espanha entrou no século XX com 60% de pessoas analfabetas. É uma percentagem mais elevada do que a Suécia, o Reino Unido ou outros países europeus no século XVIII (Viñao, 1990). Ainda mais surpreendente é que apenas existe um esforço importante nos primeiros 75 anos do século passado, para alterar esta tendência: trata-se dos anos da Segunda Republica, incluindo os da Guerra Civil. Estabelecida a ditadura, a noite escura instaura-se em todos os recantos, e algo semelhante a educação e cultura populares apenas volta a florescer a partir de 1975/76. É importante assinalar que, entre 1970 – a última lei educativa da Ditadura (Lei Geral da Educação) – e 1990 – Lei de Ordenação Geral do Sistema Educativo (LOGSE) – não existe um desenvolvimento legislativo amplo – com independência da utilização da educação como arma política e outras constantes alterações em função da cor política do governo do Estado. Além disso, até 1981, o risco de regressão era certo e, até princípios dos anos 90 do século passado, outras preocupações estavam na mente das pessoas: desemprego, crise económica, etc. Assim, não é demasiado rebuscado dizer que a educação de adultos – até um certo momento – se desenvolveu sozinha, sem demasiado controlo por parte do Estado – a qualquer dos seus níveis – e partindo mais dos interesses das pessoas do que de um currículo definido. A Educação de Adultos explode com a democracia e converte-se num elemento de referência da própria democracia. Esta hipotética falta de controlo permitiu o surgimento e desenvolvimento de experiências muito interessantes e sugestivas, no conjunto do Estado. Destacamos três: As Escolas Campestres: Fundamentalmente em Castela e Leão, mas também em outros locais, são uma referência imprescindível para entender a conexão entre o mundo rural, os sistemas produtivos rurais, a preocupação com a segurança e a qualidade alimentar, etc. As Escolas Campestres foram uma referência para as pessoas que trabalharam em educação de adultos no meio rural. Serviço de Educação Permanente de Trabalhadores. Tratase de um importante movimento na Catalunha. O seu objectivo era levar aos trabalhadores os níveis elementares de educação e potenciar uma alfabetização comunitária. É essencial para entender grande parte da tradição que une a Educação Popular e o Trabalho Comunitário. Movimentos de Renovação Pedagógica. Foram colectivos muito importantes na pressão para explorar, primeiro, e para integrar, depois, muitas inovações educativas. A partir dos anos 80 do século passado, com a chegada de governos do Partido Socialista Operário Espanhol (PSOE) a diversas administrações do Estado, muitos dos seus dirigentes foram preteridos e o movimento ficou órfão. A educação de Adultos na Andaluzia Vamos dividir a sua evolução em três momentos diferentes. Primeira fase. O início. Não existe uma história – ou, melhor dizendo – diversas histórias locais que nos ajudem a reconstruir os processos de início e de desenvolvimento da educação de adultos na Andaluzia, em especial a partir de 1981. A versão oficial diz que o programa de Educação de Adultos começou com 36 professores e 1990 estudantes adultos, e apresenta-o como um êxito – o que é coerente com um certo elogio triunfalista que sempre perseguiu a Educação de Adultos na Andaluzia. Se se AO LONGO DA VIDA 53 Se houve algo que caracterizou o início e o desenvolvimento da educação de adultos na Andaluzia – e, possivelmente, de norte a sul do Estado – foi a ligação permanente entre as escolas de adultos e os territórios onde se encontravam. quer fazer a divisão, estamos a falar de 52 estudantes adultos por professor, o que, a princípio, não parece ser um grande êxito, sobretudo se formos ao nível das histórias locais. No período compreendido entre 1980 e 1982/84, o nascimento dos Centros de Educação de Adultos teve pouco a ver com as iniciativas propostas pelo Governo – Central ou Autónomo – e mais com um encontro histórico e maravilhosamente criativo entre determinados Movimentos Sociais – sobretudo Associações de Moradores nos bairros das grandes cidades – e jovens que queriam trabalhar em educação, e para quem a educação de adultos pressupunha o grande desafio de desenvolver um trabalho social criativo e produtivo, com um certo espírito de missão ou, quem sabe, de revolução, mas que, em todo o caso, dava resposta a essa expressão mágica de Orlando Pineda: “dar-se aos demais”. No meio rural, o casamento aconteceu mais entre jovens professores e munícipes preocupados com a educação de adultos, no calor dos processos de transformação social que o conjunto do Estado vivia na época e que viveu pelo menos até 1986. De facto, uma expressão percorria a Andaluzia, não como um fantasma, mas sim como um relâmpago de esperança: “numa vila, há dois lugares abertos às 9 da noite: o bar e o centro de educação de adultos”. Isto não acontecia só na Andaluzia. Em outros territórios, outros professores, ligados à comunidade, faziam semelhantes trabalhos libertadores. Este período culmina com o chamado “Novo Desenho Curricular” (1985), um currículo específico para a educação de adultos, que se definia por uma metodologia sustentada na Investigação Participativa e que aspirava a ser: i) activa, considerando cada pessoa como um sujeito activo do seu próprio processo de aprendizagem; ii) dialogante, não tanto num sentido “freireano”, mas sim seguindo as directivas de Francisco Gutiérrez; e iii) participativa. A pressão sustentada de educadores e educandos leva à aprovação da “Lei da Educação de Adultos da Andaluzia”, em 1990 (lei agora abolida). A aprovação da lei é o canto de cisne deste processo. 54 APRENDER Segunda fase. A partir da comunidade, de volta à escola. Se houve algo que caracterizou o início e o desenvolvimento da educação de adultos na Andaluzia – e, possivelmente, de norte a sul do Estado – foi a ligação permanente entre as escolas de adultos e os territórios onde se encontravam. De facto, o modelo andaluz foi apelidado de modelo territorial, porque ligava intimamente o território às escolas. Mas, mais importante do que isso, era que os temas de trabalho, os núcleos geradores, estavam ligados ao meio ambiente, eram derivados da vida quotidiana das pessoas. Isso supunha uma grande potência transformadora na educação de adultos, potência que, até meados dos anos 80, não tinha sido controlada pelo poder. Por detrás do controlo, o passo seguinte era desmontar essa estrutura educativa transformadora e libertadora. Curiosamente, o primeiro passo foi a aprovação da Lei de Ordenação Geral do Sistema Educativo, que aumentava a escolaridade obrigatória em dois anos – até aos 16 -, instituía um Ensino Secundário Obrigatório e criava um novo título mínimo: Graduado do Ensino Secundário Obrigatório. Imediatamente, a preocupação fundamental passou dos problemas ocasionados pela falta de alfabetização para a exigência de conceder esse novo título a toda a população. Este desequilíbrio supõe, no mínimo: a) o abandono dos sectores educativamente mais desfavorecidos, processo que culmina num novo Currículo (1997), e uma nova estrutura educativa que supõe, entre outras coisas, que uma pessoa pode permanecer na Formação Inicial de Base (alfabetização) apenas dois anos, sendo depois necessário progredir ou abandonar; b) o abandono do modelo territorial e socioeducativo. O fundamental são os conteúdos, que devem ser partilhados na escola, incluindo o desenvolvimento comunitário, aos quais devem ser dedicadas quatro horas semanais. O culminar de todo este processo é o já citado Currículo de 1997, que abandona o modelo socioeducativo, retira todo o poder de deliberação à educação de adultos e regula até ao mais pequeno pormenor do currículo, para que a realidade, a comunidade e as pessoas se mantenham fora da escola. ARTIGO Uma expressão percorria a Andaluzia, não como um fantasma, mas sim como um relâmpago de esperança: “numa vila, há dois lugares abertos às 9 da noite: o bar e o centro de educação de adultos”. Terceira Fase. Existe uma educação de adultos? Não obstante, a educação de adultos continuava a ser um campo específico. O passo seguinte era fazê-la desaparecer, escondida sob uma miríade de regulamentações, normativas, decretos, etc., sempre ao serviço da emergente “Aprendizagem ao longo da vida”, ou seja, do mercado. Existem três elementos essenciais para explicar o processo. Primeiro, a estabilização, em muitos casos acesso à condição de funcionário, dos docentes. O que era um passo em frente – recordemos que deixámos muitos educadores, umas linhas mais acima, a fazer trabalho voluntário, depois passaram a ser contratados por diversas administrações e municípios – e o que pressupunha alcançar estabilidade laboral, converteu-se – por parte da administração – na possibilidade de transferir muitos professores para outros âmbitos educativos, retirando da educação de adultos muitos professores com vinte anos de experiência, e não os substituindo, ou substituindo-os por pessoas sem formação e/ou sem experiência específica neste campo. Em segundo lugar, com a ruptura definitiva com o modelo territorial. Uma ordem de Julho de 2006 organizava os Centros – já chamados de Educação Permanente – com base nas grandes estruturas burocráticas e não nos territórios – aldeias e bairros – nos quais assentavam. O poder de actuação dos centros ficava assim diminuído ou, simplesmente, desaparecia sob uma montanha de documentos burocráticos, reuniões, normas, etc. Em último lugar, aprovou-se em 2007 a Lei de Educação da Andaluzia, que supõe: a) a revogação da Lei de Educação de Adultos da Andaluzia; e b) a não utilização do termo Educação de Adultos – ou da sua utilização numa mistura estranha, que fala de Educação Permanente de Adultos. De facto, a Educação de Adultos insere-se na Direcção Geral da Formação Profissional e Educação Permanente. No final, o artigo 111.4 da Lei de Educação da Andaluzia afirma: “Podem estabelecer-se casos de colaboração entre os centros que integram as redes de aprendizagem permanente e aqueles que incluem, na sua oferta formativa, acções de inserção e de reinserção laboral dos trabalhadores, e outras orientadas para a formação contínua das empresas, que permitam a aquisição e actualização permanente das competências profissionais”. Num artigo (Chaves, 2008), o então presidente da Junta da Andaluzia, indica que a principal finalidade da educação de adultos na Andaluzia é adaptar as pessoas à sociedade do conhecimento e às novas exigências que surgem, derivadas de uma economia global e de um mundo globalizado. Não há melhor epitáfio para enterrar um projecto educativo que se baseou, durante muito tempo, em enfrentar as tendências homogeneizadoras e despersonalizadas do mercado, para se centrar na vida quotidiana e nos problemas, necessidades, interesses e desejos das pessoas e comunidades. E no entanto, move-se. Mas não é fácil enterrar os desejos e aspirações de libertação das pessoas. A educação de adultos na Andaluzia percorreu um longo caminho desde os jovens que aspiravam a “dar-se aos outros” até agora. Um caminho que não fez a administração educativa, mas sim as pessoas e comunidades, e que continua vivo em experiências concretas que mantêm a relação, a estreita e frutífera ligação, entre a educação e a vida quotidiana das pessoas, nas suas comunidades. Isso é hoje visível quando os moradores de uma aldeia tentam resistir à passagem de um comboio que altera alguns dos seus modos de vida e de subsistência tradicionais; quando outros tentam recuperar a sua história perdida, cancelada e reprimida pelos horrores da Guerra Civil e pela feroz repressão; ou outros se comprometem em tarefas de participação cívica na educação de adultos. Nos resquícios do sistema do pensamento único depredador, a promessa que promovem e encerram as actividades libertadoras encontraram o seu abono e florescem – nunca deixaram de fazê-lo – como espaços de esperança. A evolução que relatámos não é semelhante em todos os territórios do Estado. Se bem que as pressões homogeneizadoras do pós “Aprendizagem ao Longo da Vida” são semelhantes, os movimentos de resistência são diferentes nos diferentes territórios e inclusive dentro destes. n AO LONGO DA VIDA 55 REPORTAGEM Ateliers de cerâmica Trabalhar a própria terra Nos ateliers do Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha, adultos aprendem a moldar o barro e a transformá-lo em peças de cerâmica. Um ofício ancestral, que é quase como trabalhar a própria terra. Texto Luis Leiria # Fotografias Sara Matos S ão nove peças belíssimas, de grandes dimensões, de cerâmica vidrada, da autoria de Rafael Bordalo Pinheiro, que compõem a exposição “Uma flor e oito bichos” no espaço de exposições temporárias do Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha. O grupo de visitantes observa com atenção o girassol, o caracol, o lagarto, o caranguejo, o cavalo marinho, o peixe, a andorinha, a cobra, a cabeça de burro, antes de passar ao atelier para sujar as mãos de barro e reproduzir algumas daquelas peças. São oito idosos, utentes do Centro de Dia da Associação de Solidariedade Social da Foz do Arelho, que vieram numa tarde do início da Primavera aprender as técnicas básicas de modelar o barro e dar forma à flor e aos bichos apreciados antes. “Estas peças foram feitas recentemente na fábrica, a partir da recuperação do moldes iniciais do Rafael Bordalo Pinheiro. São todas peças de grande dimensão”, explica-lhes Teresa Leal, ceramista dos serviços educativos do museu. Já no atelier, vestem os aventais e sentam-se em torno de uma mesa, orientados pela ceramista. Alguns já lá tinham estado antes, e mostram algum desembaraço a dar a primeira forma às bolas de barro distribuídas a todos. Outros, mais tímidos, precisam de incentivo para superar o bloqueio inicial. “Eu não vou fazer nada!”, exclama, num tom rezingão, a D. Piedade. Mas em pouco tempo já está a conseguir dar forma a um dos bichos que nem sequer é dos mais fáceis de modelar: o caranguejo. 56 APRENDER A distribuição dos “bicharocos” entre os aprendizes é combinada no início. De comum acordo, decidem não fazer a cobra, porque “é fácil demais”. Os que vão fazer o caracol ou o caranguejo começam com uma bola de barro, os que ficaram com o lagarto e o cavalo-marinho começam com uma forma mais estirada, em canudo. Para ajudar, há fotografias das peças originais que servem de modelo. Quarenta e cinco minutos depois, já todos têm diante de si uma peça modelada, e só falta incrustar a assinatura de cada um para mais tarde continuarem o trabalho, pintando a peça – que entretanto passará pelo forno –, o que lhe dará depois o aspecto vitrificado. Durante esse tempo, Teresa Leal explicou a técnica de dar mais robustez à ligação das patas do caranguejo, ajudou nos acabamentos, mostrou como se fazem as incisões para dar forma ao corpo do cavalo-marinho. Para Sheila Filipa dos Santos, assistente social da associa ção, o resultado destes ateliers é muito interessante: “Mesmo as pessoas que se sentem mais oprimidas no princípio acabam por ficar muito satisfeitas e a auto-estima delas acaba por subir”, observa. Passam assim a ver a vida com outros olhos: “Não que estão no fim, mas que estão no princípio e ainda podem aprender muito”. A associação tem 48 utentes, em centro de dia e lar. O grupo que veio às Caldas é composto pelas “pessoas mais autónomas que nós temos e que participam mais das actividades”, explica Quarenta e cinco minutos depois, já todos têm diante de si uma peça modelada, e só falta incrustar a assinatura de cada um para mais tarde continuarem o trabalho. Sheila dos Santos, que organiza com frequência visitas dos utentes a museus e igrejas. Manuela Maria de Melo, uma das participantes da visita, gostou muito da experiência. “Fiz um girassol e um caracol. Quando cheguei, pensei que era mais difícil, mas consegui fazer as peças.” Ela gostaria de voltar a trabalhar com o barro. “Vamos ver a peça depois de cozida, depois de pintada.” Henrique Bernardino dos Santos é o único do grupo que tem uma ligação à indústria de cerâmica. Antes de se reformar, trabalhava na fábrica Secla, onde “abastecia a passadeira, para as senhoras embalarem a loiça”. Já tinha frequentado um atelier anterior, onde modelara um girassol. Mesmo assim, “pensava que não ia conseguir fazer o lagarto, mas com a ajuda da senhora, fiz, e ficou bonito.” Foi um tempo bem passado. Vinte rãs todas diferentes Há 12 anos que Teresa Leal está envolvida com o museu. Responsável pelos ateliers de cerâmica, tem de gerir muito bem o tempo disponível porque chega a ter dois ou três grupos numa tarde, e com mais do que as oito pessoas daquele dia. “Chegam a estar 20 nesta sala”, diz, com um sorriso, “têm de se apertar todos um pouco”. Para a ceramista, o atelier do dia correu bem: “Eu tinha tra balhado há dois anos com alguns elementos deste grupo. Mas dois anos, é muito tempo, quando eles regressam, é começar AO LONGO DA VIDA 57 Os “aprendizes” do Centro de Dia da Foz do Arelho exibem as suas obras. As peças vão ser criadas aqui, para depois serem pintadas no centro de artes. 58 APRENDER REPORTAGEM tudo de novo. De qualquer forma, eles hoje já utilizaram aqui algumas das técnicas, dessas pequenas regras. No fundo é este o meu trabalho: ajudá-los com as colagens, para que a peça depois tenha resistência, para tornar-se mesmo uma peça”, explica. Nem sempre o atelier decorre da mesma maneira. “Há vezes”, recorda Teresa Leal, “que seleccionamos um elemento, eu mostro como é que faço a minha rã, e depois cada um deles faz a sua rã, e ficamos com 20 rãs todas diferentes, umas muito magras, outras mais cheiinhas, enfim... Só para perceberem o processo do modelar.” Outras vezes o tempo não rende da melhor forma: “Acontece muitas vezes que estamos aqui 45 minutos, e eles andam ali à volta de qualquer coisa, e não sai nada. E depois quando chega a altura de terminar, é que estão muito interessados, e muito empenhados, às vezes precisam desse tempo, que nós não temos.” O tempo limitado também condiciona voos mais altos, quando os ateliers se enchem de estudantes de escolas secun dárias: “Vêm cheios de ideias, querem modelar um carro, uma moto, mas eu tenho os tais 30 a 45 minutos.” Além disso, a regra é sempre fazer os ateliers em torno de peças do acervo do museu. “Vamos sempre ao encontro das nossas colecções... Muitas vezes eles perguntam se, em vez do lagarto, não podem fazer uma águia, porque ‘eu gosto mais da águia’... Mas a águia não faz parte das nossas colecções”, explica Teresa Leal. Os adultos, em geral, reagem muito bem aos ateliers. “Por exemplo, as senhoras, habitualmente, rejeitam fazer o lagarto. Mas a rã, toda gente faz sem problema. Também o caracol, ou uma flor, uma folha, um fruto”. Com as escolas realizam-se por vezes projectos mais longos: “Demoram três meses, e o grupo vem de 15 em 15 dias. Começam o projecto na escola, e depois vão desenvolvendo todas as fases, até chegarmos ao produto final”, relata a ceramista, que recorda um trabalho com uma turma do 9º ano, em que os alunos fizeram peças todas com uma finalidade: “porta-CDs, um cabide para colocar numa porta, queimadores de incenso, molduras...” Museu da Cerâmica das C aldas da R ainha Foi criado oficialmente em 1983 e está instalado na Quinta Visconde de Sacavém, adquirida para o efeito pelo Estado em 1981 e situada na zona histórica da cidade, próximo da antiga fábrica de Bordalo Pinheiro. A Quinta foi mandada construir, na década de 90 do século XIX, pelo 2º Visconde de Sacavém, sendo constituída por um Palacete em estilo romântico revivalista, um edifício secundário e uma área ajardinada. Os jardins, de traçado romântico, constituem um conjunto evocativo do gosto do final do século XIX, com as suas alamedas, floreiras e lagos. Decorações cerâmicas ornamentam todo o conjunto. A cerâmica das Caldas da Rainha está representada por peças desde o século XVII até à 1ª metade do séc. XX, com especial destaque para o núcleo dedicado a Rafael Bordalo Pinheiro, um dos conjuntos mais representativos da produção do grande mestre caldense. Da produção nacional, o museu integra núcleos de faianças da Fábrica do Rato (1767- 1779), de olaria tradicional e de produção local de escultura e miniatura cerâmicas dos séculos XIX e XX, representativos dos principais centros cerâmicos portugueses (Fábricas Bandeira, Rocha Soares, Gaia, Darque, Barcelos, Ratinho, Juncal, Estremoz, Sacavém, Viúva Lamego, Vista Alegre, Aleluia, Santana) e estrangeiros (França, Espanha, Itália, Holanda, Bélgica, China). O núcleo de cerâmica contemporânea de autor inclui peças de Llorens Artigas, Júlio Pomar e de Manuel Cargaleiro, entre outros. Existe ainda uma colecção de azulejaria portuguesa, hispano-mourisca e holandesa, do séc. XVI ao séc. XX, constituída por cerca de 1200 azulejos e por 40 painéis. n AO LONGO DA VIDA 59 Teresa Leal orienta os trabalhos. “Neste momento dá-me mais gozo isto, fazer essa troca com as pessoas, e ajudá-los a construir as peças, do que eu fazer uma peça do início ao fim. Quando terminou o 12º ano, Teresa Leal fez curso de cerâmica, no CENCAL - Centro de Formação Profissional para a Indústria Cerâmica, uma instituição de formação e de apoio técnicopedagógico, sediada nas Caldas da Rainha, vocacionada para o sector da indústria cerâmica portuguesa, criada em 1981. Foi lá que fez a formação específica em cerâmica. Depois, como parte do curso ainda fez um estágio, que, por acaso, já foi no museu. “O meu primeiro contacto com o museu foi esse, no estágio”. Assim, há 12 anos que está envolvida com o museu. “Logo durante o estágio”, recorda, “foi-me proposto que fizesse algumas actividades com crianças. Acho que tenho aprendido também muito com o facto de trabalhar com todos os tipos de público, isso tem sido muito estimulante e importante.” O trabalho com as pessoas no dia-a-dia ajudou-a muito: “Dão-me muitas sugestões, que eu aproveito e uso no dia-a-dia.” Quando fez o curso, Teresa Leal chegou a pensar que ia abrir um pequeno atelier, decisão deixada de lado depois do convite de ir para o museu. “Neste momento dá-me mais gozo isto, fazer essa troca com as pessoas, e ajudá-los a construir as peças, do que eu fazer uma peça do início ao fim. Há muito 60 APRENDER Sheila Filipa dos Santos: “a auto-estima deles sobe” tempo que eu não faço uma peça começada e terminada, e não sinto essa necessidade, conclui a ceramista. “A cerâmica é quase trabalhar a própria terra, e transformá-la” O atelier de cerâmica do museu foi criado no final dos anos 90. “Houve uma iniciativa muito interessante e de muita visibilidade que foi a criação de placas de ruas”, recorda a directora do Museu de Cerâmica das Caldas da Rainha, Matilde Tomaz do Couto. “Temos duas formas de criar os grupos”, explica. “Esta oficina já é bastante conhecida, e muitas vezes pedem-nos visitas escolares, das associações, do Lar de 3ª Idade, visitas que tenham ateliers, e há um calendário em que se procura satisfazer esses desejos.” Por outro lado, prossegue, há a oferta regular de ateliers temáticos. “Agora estamos a organizar REPORTAGEM Matilde Tomaz do Couto, Directora do Museu. “Quando fazemos as nossas intervenções, o nosso trabalho questiona o trabalho dos outros. Por isso, quanto mais autónomos formos, mais poderemos fazer o nosso trabalho. um atelier para a Páscoa, chamado Prendas de Páscoa, em colaboração com o centro de artes. As peças vão ser criadas aqui, para depois serem pintadas no centro de artes. Há também um protocolo com o Centro Social Paroquial local. Matilde Tomaz do Couto tem consciência da crise por que passa o sector da cerâmica das Caldas da Rainha: “a fábrica Secla fechou, outras foram fechando ao longo dos anos, a fábrica Bordalo Pinheiro persistiu graças à intervenção do Estado. A Molde ainda está a funcionar. Mas acho que há um esforço das Caldas da Rainha para que a cerâmica possa persistir como um rosto desta cidade, e como história, como memória também.” A directora tem confiança em que a cerâmica vai permanecer viva na cidade: “A cerâmica tem muito a ver com a terra, que é um dos três elementos – os outros são a água e o fogo. A cerâmica é quase trabalhar a própria terra, e transformá-la.” Para Matilde Tomaz do Couto, “o ofício do oleiro é um ofício ancestral, que tem a ver também com o quotidiano, com objectos de uso comum, que depois vai recebendo decoração ou vai-se transformando em objecto ele próprio decorativo.” Esse percurso da cerâmica continuará a ser popular nesse função e nos elementos decorativos, “mas depois vai envolvendo outros sectores não artesanais, mas artísticos, onde vamos encontrar cerâmica de autor, onde vamos encontrar o designer, os grandes nomes que trabalharam a cerâmica”, diz, recordando que na Secla e nas Caldas trabalharam artistas, como Júlio Pomar, António Quadros, Ferreira da Silva... “Temos, portanto, um percurso da cerâmica que é popular, que é utilitário, e, por outro lado, há a cerâmica artística, a cerâmica de artista, que invade a escultura”, conclui. n AO LONGO DA VIDA 61 LIVROS DOSSIER Mundos do Trabalho e Aprendizagem Canário, Rui e Rummert, Sónia Maria (org.) 2009 Lisboa, Educa, 188 pp N este livro reúnem-se onze artigos de investigadores portugueses e brasileiros que perspectivam as relações entre o Trabalho e a Educação identificando especificidades e convergências com o «objectivo éticopolítico de construir colectivamente um novo projecto societário» (Canário e Rummert, p. 16). São, portanto, autores comprometidos social e politicamente, que assumem uma não neutralidade na investigação que produzem. Os textos reunidos representam o testemunho do intercâmbio entre universidades de Portugal e Brasil no quadro de projectos comuns de pesquisa, que se têm vindo a desenvolver desde os anos 90. O título desta obra remete-nos para ‘mundos’ diferentes, com narrativas e tensões entre e ‘intra’ as respectivas áreas de produção de conhecimento, os campos empíricos, as evoluções e tendências societárias; o seu conteúdo dá-nos pistas reflectidas de reais possibilidades, não só de interligação entre os dois ‘mundos’ tradicionalmente opostos, mas também (ou sobretudo) de superação dos actuais modelos de sociedade capitalista e particularmente, dos conceitos já reformados de educação de massas e de workfare. Esta abordagem comum entre os investigadores dos dois paises acentua o carácter internacional das transformações do mundo do trabalho e do discurso neo-liberal que o suporta e que tem justificado os programas políticos de inclusão e alargamento da escolaridade. As perspectivas reunidas nesta obra são olhares que, apesar da sua transversalidade temática, analisam inequivocamente a partir da Educação e questionam o carácter marginal atribuído à educação de jovens e adultos trabalhadores e a subordinação da Educação às necessidades de controlo social ou ortopedia social, pontuando a divergência entre o conceito de Educação como um direito universal (que todos os autores defendem) e Educação como um obrigação e responsabilização individual, numa lógica da gestão de si. Numa primeira parte são questiona- 62 APRENDER das as políticas de inclusão e de elevação da escolaridade face ao aumento das desigualdades no quadro do capitalismo contemporâneo, enquanto numa segunda parte, são associados os artigos que reflectem sobre os Movimentos Sociais Populares na óptica dos trabalhadores, evidenciando a importância decisiva de «processos educativos não formais, que se combinam e confundem com formas de acção e de luta pela transformação social» (Canário, 2007, in: Tiriba, p. 158). Os autores que construíram os artigos da primeira parte colocam-se se em perspectivas de superar o capitalismo, ultrapassando os determinismos e as abordagens estruturalistas e fazendo a apologia de processos formativos e pedagógicos que transformam os trabalhadores em sujeitos com consciência de classe. Nestes processos de luta contra-hegemónica – Gramsci é, sem dúvida, um autor de referência para estes autores – é dada uma importância maior às questões da cultura e da linguagem. Gaudêncio Frigotto refere uma ‘novlangue’, aparentemente sem origem que, ao mesmo tempo que institui um vocabulário e ideário que naturaliza conceitos (globalização, flexibilidade, governabilidade, exclusão, inclusão, competência, empregabilidade, qualidade total, empreendedorismo, capital humano) constitui um condicionamento de classe numa doutrina neoliberal. Este vocabulário faz parte de um novo paradigma pós-classista e pós-industrial, de uma sociedade do conhecimento que rompe com o paradigma da modernidade e as suas meta-narrativas. Neste quadro, Natália Alves situa criticamente o novo mandato da educação – o de combater as exclusões e fomentar a empregabilidade. Partindo das expressões exclusão social e empregabilidade (difundidas como categorias universais e ideologicamente neutras) faz um percurso fundamentado em Castel, Schnapper, Laville, Méda, Touraine e Paugam para desconstruir os discursos actuais sobre a sociedade e o indivíduo, deixando claro que os novos quadros cognitivos foram criados para que o desemprego estrutural deixe de ser considerado como um problema económico e político e passe a ser concebido como um problema individual cuja origem reside num défice de competências de empregabilidade. Nesta linha, Cármen Cavaco interroga os processos RVCC e evidencia os paradoxos que os atravessam: se por um lado a argumentação remete para uma visão utopista de valorização da pessoa, a sua operacionalização aponta explicitamente para a empregabilidade como principal preocupação. Os artigos que compõem a segunda parte deste livro partem de experiências de movimentos sociais, tão variados quanto: o trabalho associado e de autogestão, a partir da herança da Ergologia; os processos educativos e de trabalho no tempo revolucionário do PREC, em Portugal no pós-74; o associativismo popular no caso particular de Almada enquanto processo de autonomia das classes trabalhadoras e de superação da questão social por contraponto à análise crítica do actual terceiro sector; a educação do campo e o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST) no Brasil; as escolas rurais em Portugal; e o Movimento Operário e do Movimento Camponês. Estes autores en- NOTÍCIAS DOSSIER Projecto PALADIN tendem a educação como «auto-produção na qual o ser humano transformando-se a si mesmo, criando conhecimento, ciência e cultura, como auto-produção na qual o ser humano transforma o mundo e se transforma com este mundo» (Marlene Ribeiro, p. 120). Nesta parte para além de ser evidenciada a possibilidade de correspondência entre os movimentos sociais de base educativa constituídos em Portugal e no Brasil, ressaltam as possibilidades revolucionárias de entender os Mundos do Trabalho e Aprendizagem: um Trabalho que educa na medida em que pressupõe uma nova organização e uma nova cultura, o trabalho socialmente útil, o que tem vitalidade para articular a teoria e a prática, que possibilita a ressignificação e reconstrução dos elementos materiais e simbólicos para novos sentidos do trabalho e da produção de saberes. E uma Escola que contenha em si um projecto de mudança, que possibilite o desenvolvimento total, completo, das potencialidades humanas, com base na formação experiencial e com uma democratização do conhecimento. A distinção de Stephen Stoer entre alfabetização e poder popular faz presente que o controlo operário tinha como desafio lutar contra o monopólio do saber e reconstruir os saberes sobre o mundo através das experiências vividas e percebidas. Dizia Stoer (2008, p.107) que «atribuir à educação a necessidade de responder às exigências da economia permanece uma componente central da política de educação […]. Todavia, a questão de responder ao apelo de maior correspondência ensino-trabalho e de maior qualidade no ensino, tem privilegiado, de acordo com a formação política no poder, ora os mecanismos do mercado ora a intervenção do Estado». É esta a discussão que atravessa todo o livro. n Por Isabel Passarinho, doutoranda em formação de adultos no Instituto de Educação, UL Referência Bibliográfica: Stoer, Stephen (2008). Textos escolhidos. Porto: Edições Afrontamento, Lda./CIIE O Projecto PALADIN – Promover a Aprendizagem e Envelhecimento Activos de Cidadãos Seniores em Situação de Desvantagem – visa capacitar os maiores de 50 anos possuidores de baixas qualificações, através do desenvolvimento das suas capacidades de auto-formação em 5 áreas: Actividades (Emprego e Voluntariado), Saúde, Finanças, Cidadania e Educação (Formal, Não-Formal e Informal). Sobre o PALADIN O Projecto PALADIN (Promover a Aprendizagem e o Envelhecimento Activo dos Seniores em Situações de Desvantagem) visa capacitar os seniores em situações de desvantagem (maiores de 50 anos com baixas qualificações) através do desenvolvimento das suas capacidades de auto aprendizagem em 5 áreas: Objectivos Gerais – Desenvolver e testar um conjunto de instrumentos e metodologias de modo a facilitar o processo de auto aprendizagem dos seniores em situações de desvantagem (acima dos 50 anos com baixas qualificações); – Estabelecer uma rede de actividades inovadoras, centradas na autoaprendizagem a nível local. Objectivos Operacionais – Produzir um índex de autoaprendizagem para seniores; – Produzir 20 ferramentas didácticas de auto aprendizagem; – Desenvolver 5 escalas de prontidão para a auto aprendizagem em 5 áreas específicas; – Organizar 25 debates públicos em 5 países; – Organizar 4 Eventos Científicos Internacionais – Produzir um Memorandum de “Lições e recomendações para decisores políticos em matéria de aprendizagem ao longo da vida”. A parceria do PALADIN, é constituído por 8 Instituições de 6 países: Portugal, Espanha, Bulgária, Grécia, Malta e Hungria. É uma parceria multidisciplinar que inclui centros/organizações de investigação, comunidade educativa e autoridades locais/decisores políticos. Envolve países Mediterrânicos e da Europa Central que apresentam baixos índices de participação na aprendizagem ao longo da vida. * INFORUM irá desempenhar o papel originalmente destinado ao Instituto Nacional de Telecomunicações (Polónia) Saiu recentemente a primeira news letter deste Projecto, em língua portu guesa, que pode ser consultada em http://www.projectpaladin.eu/ n AO LONGO DA VIDA 63 NOTÍCIAS DOSSIER A luta contra a pobreza e a exclusão social figura entre os principais objectivos da União Europeia e dos seus Estados Membros. Em Março de 2000, por ocasião do lançamento da estratégia de Lisboa, os Chefes de Estado e de Governo comprometeram-se a dar «um impulso decisivo à eliminação da pobreza» até 2010. Apesar dos esforços desenvolvidos, uma parte significativa da população europeia vive ainda em profunda carência e não tem acesso a serviços de base, como os cuidados de saúde. Esta situação está em contradição com os valores comuns da União Europeia de solidariedade e de justiça social. Porquê este Ano Europeu 2010? A pobreza e a exclusão não só afectam o bem-estar das pessoas e a possibilidade de participarem na vida da sociedade como também prejudicam o desenvolvimento económico. A União quer reafirmar a importância da responsabilidade colectiva na luta contra a pobreza, o que envolverá, não só os decisores, mas também os demais intervenientes dos sectores público e privado. O Ano Europeu vai, nomeadamente, procurar dar a palavra a quem vive, no dia a dia, a pobreza e a exclusão social. Desde 1983, a Europa lança todos os anos uma campanha de sensibilização chamada «Ano Europeu», visando informar e promover o diálogo com os cidadãos europeus, a fim de fazer evoluir as mentalidades e os comportamentos. Esses anos são também ocasiões para atrair a atenção dos governos nacionais para as temáticas de natureza «societal». Em 2008, a União celebrou o Ano Europeu do diálogo multicultural, em 2007 a igualdade de oportunidades, em 2006 a mobilidade dos trabalhadores. 2010, Ano Europeu de luta contra a pobreza e a exclusão social. 64 APRENDER Alguns números. Os nossos sistemas de protecção social contam-se entre os mais desenvolvidos no mundo e, contudo, ainda hoje existem demasiados europeus a viver na pobreza. Este fenómeno reveste formas complexas mas alguns números falam por si mesmos: – 78 milhões de pessoas vivem aquém do limiar de pobreza (fixado em 60 % da mediana de rendimento do respectivo país); o que representa 16 % da população europeia. – Um europeu em cada dez vive numa família onde ninguém trabalha. Aliás, o trabalho nem sempre previne contra o risco de pobreza. – Para 8 % dos europeus, o emprego não é suficiente para sair da pobreza. – Na maioria dos Estados Membros, as crianças estão mais expostas a este problema do que o resto da população. Com efeito, 19% delas estão ameaçadas de pobreza, ou seja, 19 milhões de crianças. Os objectivos Quatro objectivos transversais vão estar no cerne do próximo Ano Europeu: – Reconhecimento: reconhecer o direito fundamental das pessoas em situação de pobreza e de exclusão social a viverem na dignidade e a tomarem uma parte activa na sociedade; – Responsabilidade partilhada e participação: aumentar a adesão do público às políticas de inclusão social, sublinhando a responsabilidade colectiva e individual na luta contra a pobreza e a exclusão social, promovendo o envolvimento de todos os actores públicos e privados; – Coesão: promover uma maior coesão na sociedade e assegurar que ninguém duvide das vantagens que resulta, para todos, de uma sociedade sem pobreza; – Envolvimento e acção concreta: renovar o envolvimento da UE e dos Estados Membros de lutarem contra a pobreza e a exclusão social e de associaram, para isso, todos os níveis de poder. Ver www.2010combateapobreza.pt Pobreza: uma pessoa vive na pobreza se o seu rendimento e recursos são insuficientes e a impedem de ter um nível de vida considerado como aceitável na sociedade em que vive. Devido à pobreza a pessoa pode enfrentar múltiplos problemas: desemprego, fraco rendimento, alojamento desconfortável, falta de benefícios de saúde e enfrenta obstáculos nos acessos à aprendizagem ao longo da vida, à cultura, ao desporto e aos lazeres. Ela encontrase portanto marginalizada e excluída da participação nas actividades (económicas, sociais e culturais) que são norma para as outras pessoas e o seu acesso aos direitos fundamentais pode ser restrito. (Tradução do Relatório Conjunto Sobre Inclusão Social, COM 2003, 773 Final). n