MEDIAÇÃO SET 2010 FINAL.p65

Transcrição

MEDIAÇÃO SET 2010 FINAL.p65
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2
ISSN 1808-2564
revista de educação editada e
produzida pelo colégio medianeira
Diretor
Pe. Rui Körbes, S.J.
Diretor Acadêmico
Prof. Adalberto Fávero
Diretor Administrativo
Gilberto Vizini Vieira
Uma visita especial às aulas de violão
Lucas Feron ....................................................................................................................................... 7
Coord. Comunitário e de Esporte
Prof. Francisco Alexandre Faigle
Coordenação Editorial
Nilton Cezar Tridapalli
Luciana Nogueira Nascimento
A “capital europeia”
Diego Zerwes ................................................................................................................................
10
(MTB 2927/82v)
Revisão
Nilton Cezar Tridapalli
Projeto Gráfico e Diagramação
Os desafios da escola na era da digitalização
Carolina Prestes Yirula ..................................................................................................................
13
Sonia Oleskovicz
Ilustrações
Marcelo Cambraia Sanches
Colaboraram nesta edição
Adalberto Fávero, Carolina Prestes Yirula,
Danielle Mari Stapassoli, Diego Zerwes,
Fernando Guidini, Francisco Carlos Rehme,
Lucas Feron, Luciana Nogueira Nascimento,
Marcelo Pastre, Paulo Venturelli, Vinícius
Soares Pinto
Compro, logo sou feliz?
Vinícius Soares Pinto ....................................................................................................................
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Consumo, logo existo
Metáfora inepta e desconexa sobre a felicidade
Adalberto Fávero ..........................................................................................................................
21
Tiragem
3000 exemplares
Papel
Reciclato Suzano 90g/m2 (miolo)
“Sofro, logo compro” ou olho, logo preciso!
Luciana Nogueira Nascimento .....................................................................................................
25
Reciclato Suzano 240 g/m2 (capa)
Número de Páginas
52
Macacos como lembranças?!
Danielle Mari Stapassoli ...............................................................................................................
27
EQUIPE PEDAGÓGICA
Educação Infantil e Ensino
Fundamental de 1ª a 4ª séries
Coordenadora
Profª Silvana do Rocio Andretta Ribeiro
O lazer do homem moderno
Marcelo Pastre ...............................................................................................................................
34
Ensino Fundamental de 5ª e 6ª séries
Coordenadora
Profª Eliane Dzierwa Zaionc
Ensino Fundamental de 7ª e 8ª séries
Psiu... não espalha, mas sou apaixonada por Paraty
Francisco Carlos Rehme ...............................................................................................................
37
Coordenadora
Profª Roberta Uceda
Ensino Médio
Coordenador
Um autor de extraordinária criatividade
Paulo Venturelli ..............................................................................................................................
Prof. Marcelo Pastre
40
Coordenador de Pastoral
Pe. Guido Valli, S.J.
Coordenador de Midiaeducação
Nilton Cezar Tridapalli
Educação Inaciana: o início de um percurso...
Fernando Guidini ...........................................................................................................................
44
Assessoria de Comunicação e Marketing
Luciana Nogueira Nascimento
Os artigos publicados são de inteira responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a opinião dos editores e do Colégio
Nossa Senhora Medianeira. A reprodução parcial ou total dos textos é permitida desde que
devidamente citada a fonte e autoria.
Linha Verde • Av. José Richa, 10546
Prado Velho • Curitiba • Paraná
fone 41 3218-8000/ fax 41 3218-8040
www.colegiomedianeira.g12.br
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Saudade - Pe. Raimundo Kröth, S.J.
ENTREVISTA ..................................................................................................................................
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Pensar, existir, consumir e ser feliz um desafio contemporâneo
É possível ser feliz sem consumir nos tempos atuais? Ou é impossível consumir e não ser
feliz? Que diferença há nas relações entre quem
faz do consumo um meio de felicidade e quem
nega o consumo na tentativa de ser feliz? A sociedade contemporânea apresenta desfios à humanidade que convive com a era tecnológica e da
informação, com o individualismo exacerbado e
premente, com o presentismo acentuado e veloz e que busca freneticamente formas de felicidade, momentos de realização e o sentimento
de completude diante de sua existência.
Para nos ajudar a refletir, a pensar e ser, três
artigos debatem o tema principal desta edição:
Consumo e felicidade. Primeiro tratamos do conceito de felicidade e sua relação histórica, uma
busca que não é exclusiva da contemporaneidade. Em seguida, o tema nos é apresentado por
uma metáfora sobre o conto infantil João e Maria. No caminho entre a floresta e a casa de doces, muitas reflexões propõem uma análise sobre a sociedade neoliberal. João e Maria convivem agora com as metrópoles, as vitrines, as tentações e atrações do mundo capitalista. No entanto, refletem sobre a miséria, a fome e a busca
da felicidade, que parece sempre momentânea,
passageira e ligada a um produto que, depois de
adquirido, perde o sentido. "A felicidade fica sempre ao alcance da mão: comprável, mas fugaz;
alcançável, porém célere; distante, no entanto
desejável!" Por fim, as crianças, sem limites e os
pais, sem norte, são os personagens em busca
da felicidade. Vítimas de um mundo de telas,
cores e produtos intermináveis que prometem a
felicidade ao alcance das mãos, apenas com a
senha do cartão de crédito, as crianças são o novo
e melhor alvo do mix de marketing. E como resistir a ele? Leia e descubra.
Entre o consumo e a felicidade, o leitor ficará
dividido pela música, a literatura, a arte e o lazer.
Uma análise sobre o contexto brasileiro e a visão de nossa realidade dentro e fora do país, nos
provoca e convida a dialogar com as crianças
sobre o tema.
Finalmente, encerramos esta edição com uma
homenagem. Pouco antes do fechamento da Revista Mediação, recebemos a triste notícia da
perda de nosso ex-diretor Pe. Raimundo Kröth,
um dos maiores idealizadores desta publicação.
Ela nasceu sob a direção de Raimundo, que sempre nos cobrava a busca pela excelência. Uma
Revista do Colégio Medianeira não poderia ser
menos que o melhor de cada um de nós. Pe. Raimundo era provocativo, perspicaz e muito afetivo, embora mantivesse as características rigorosas de seus ascendentes alemães. Com saudade
e a memória povoada por boas lembranças, republicamos uma entrevista dada pelo Pe. Raimundo ao número zero da Revista Mediação. É uma
forma singela de recordá-lo e a seus ensinamentos e de homenageá-lo e agradecer pelo tempo
em que tivemos o privilégio de tê-lo conosco.
Boa leitura e não esquece de escrever pra gente!
Luciana Nogueira Nascimento
[email protected]
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Caro Professor Henrique!
Sou mãe do Mateus da Silva Oliveira
Stavis, da 5a série B, e gostei do seu artigo
“História dentro de casa”. Achei importante o registro de onde viemos, mas também
os questionamentos como: por que nossos
antepassados vieram de tão longe? Como
eles viviam? Quais suas necessidades e as
expectativas de viver no Brasil? A nossa
família é um pedaço da história que, infelizmente, se perde em três ou quatro gerações, pois os registros escritos são escassos. Somos brasileiros, uma mistura que dá
samba e, além disso, dá história.
Com vontade de deixar algum registro
para as próximas gerações, fizemos uma
prévia pesquisa, com ajuda de dos avós e
bisavós e principalmente de Internet. Descobrimos um braço da família vindo da
França e da Alemanha, que chegou pelo
porto de Paranaguá, como muito imigrantes. Também existe um outro braço vindo
do Rio Grande do Sul, um tataravô lutou na
Guerra do Paraguai, apaixonou-se por uma
índia Paraguaia que veio morar no Brasil.
Isto é uma pequena parte de um quebracabeça que tem data para ser montado,
pelo menos parcialmente. Nestas férias, iremos fazer uma pesquisa de campo e viajaremos para montar algumas peças. Seu artigo nos instigou a continuar o trabalho.
Atenciosamente,
Liege da Silva Oliveira Stavis
Fiquei estarrecido ao ler
o texto “É pra
polemizar? então tá...”,
na revista Mediação número 16
. A defesa de um regime ass
assino,
comandado por um ditad
or sanguinário como Fidel e seu
politburo genocida, relativiz
ado
por comparações esdrúx
ulas
(“quantos cidadãos AM
ERICANOS estão presos nos
EUA
por ‘dissidência ideológic
a’
em um país que reiterad
amente é am ea çad o pe lo ter
ror ism o islâ mi co?
Quantos fugiram dos EU
A por serem contrários à forma que o Gover
no trata os terroristas presos?”) não se coa
duna com os princípios de humanidade que
sempre encontrei no
Colégio Medianeira.
Espero que barbaridades
deste tipo não
contaminem meus filhos
que estudam neste
grande Colégio.
Meu veemente protesto!
Sérgio Leoni
sor Mauro Braga:
Resposta do Profes
ios de humaado pelos “princíp
Justamente norte
Colégio Mediatais tanto para o
nidade”, fundamen
que cada ser
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ação, que está
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em quer buscá-la.
disponível para qu
Cordialmente.
Mauro M. Braga
5
Prezados senhores
Meu nome é Abimael Alves de Oliveira
Junior e sou pai do aluno Abimael Alves de Oliveira Neto, da
7ª Série. Primeiramente gostaria de informar o alto nível dos
artigos publicados na revista
Mediação. Leio-os com grande satis
fação, pois sei que estou lendo
algo que vai enriquecer meu conhecim
ento e cultura. Gostaria de
comentar sobre o artigo “É pra pole
mizar? Então tá...” da revista
Mediação, nº 16, Ano VI.
Quero aqui propor alguns comentá
rios, já que o próprio artigo
fala em polemizar. Compreendi perf
eitamente os comentários feitos e apresentados e apreciei muito
a postura do autor em mostrar
pontos fortes de Cuba. Porém, man
ifesto aqui minha postura de
discordar sobre a polêmica do trat
amento aos presos políticos de
Cuba.
Penso que, antes de qualquer cois
a, devemos observar que o
regime político de Cuba já fala por
si. É um regime autoritário e
tirano. Logo, não se pode duvidar de
que o povo cubano viva amedrontado e em constante pensamento
de Guerra ou invasão (e nem
seria diferente), o governo Cubano
(como todo poder autoritário e
aí lembremo-nos de nosso vizinho Cha
vez e nosso novo amigo Ahmadinejad) é justamente de controla
r a mídia e manter o povo
sempre informado das coisas do regi
me.(...)
Concordo plenamente que nos são
apresentadas nos jornais e
na mídia informações controladas
pela elite, mas não podemos
pensar que estes governantes cuba
nos estão vivendo um socialismo “romântico”. Infelizmente não
é assim. O que se vê é tirania
pura e, em Cuba, isto começa na raiz.
Não é socialismo, é tirania.
Socialismo é o que se vê na França,
na Holanda, onde o povo vive
com dignidade, onde as empresas não
detêm todo o capital, onde
se pode estudar, ir ao hospital, orgu
lhoso de seu país, não importando se nasceu nas cercanias de Pari
s ou se nasceu aqui na América (Guiana Francesa e Suriname).
(...)
Gostei muito do artigo. Realmente
trouxe a polêmica, mas não
posso concordar que Cuba é um país
que trata bem seus presos
políticos ou quem vai contra o regime.
Que simplesmente diz para
os contrários ao Regime “paguem sua
passagem, podem ir embora; quando chegarem lá, escrevam
”. Não, não é isto. E quem está
em Miami são filhos dos que saíram
de Cuba durante a revolução.
Penso que é bom que nossos filhos
e alunos do Colégio leiam o
artigo e pesquisem um pouco mais
sobre Cuba, sua história, problemas e soluções (a Medicina dom
iciliar e do esporte é uma das
melhores do mundo) para que iden
tifiquem e entendam este país
e este povo tão sofrido. Desta form
a, todos nós, e muito mais eles,
poderão ficar mais céticos quanto
ao que a mídia lhes passa de
informação (ou desinformação).
Obrigado.
Abimael Jr
6
Resposta do professor Mauro Braga:
Olá, Abimael.
Agradeço sua contribuição nesse debate. Achei pertinente, dentro da perspectiva da boa polêmica,
apenas rebater algumas citações de seu comentário, que produziram discordância de minha parte(...).
Abimael, falo com sinceridade: se um dia você for
a Cuba e conversar com as pessoas, verá lá uma
realidade muito diferente disso. O apoio ao regime é genuíno e maciço. Lá temos a noção do que
seja um “governo popular”.
Se você critica Ahmadinejad e Chavez por “controlarem a mídia”, sugiro investigar as grandes corporações de informação que dominam o mundo
ocidental, e suas relações promíscuas com o poder. Pressuponho, também, que cidadãos cultos e
educados (como os cubanos, por exemplo) saibam
como filtrar essas coisas muito melhor do que os
milhões de miseráveis ou mal-informados da classe média de países como o Brasil, não?
Discordo veementemente dessas afirmações: por
favor, reveja a história imperialista da França e da
Holanda para verificar a origem desse “bem estar
social”. Depois, informe-se sobre a enorme tensão
gerada pela convivência entre os cidadãos nativos
e os imigrantes e seus descendentes, quanto à
partilha desse “bem estar” social. Certamente verá
que isso está anos-luz distante do socialismo –
muito mais do que a sociedade cubana, com certeza.
Há um excelente artigo recentemente publicado
no jornal “Brasil de Fato”, entrevistando um defensor do regime que mora em Miami e convive
com os reacionários. É importante registrar, no
entanto, que Miami hoje é como a Chicago dos
anos 30, controlada por poderosas máfias de cubanos poderosíssimos(...). Fico tranquilo em saber,
no entanto, que estes nunca mais terão chance em
Cuba, pois o povo jamais permitirá que eles voltem a governá-lo. Exatamente porque amam Cuba
e reconhecem as conquistas da Revolução.
Cordialmente,
Mauro M. Braga
Uma
VISITA ESPECIAL
às aulas de
violão
Por Lucas Feron
A música é – e ninguém
duvida – uma forma de
comunicação. Veja como
compositores de outros
tempos são atuais e
enriquecem a experiência
estética de crianças. E vai
o convite: experimente
você também.
7
E
Em um dia desses, um dia qualquer, resolvi
convidar um amigo especial para visitar as oficinas de violão. Talvez alguns de vocês o conheçam de nome, pois sua música, com certeza, já foi ouvida por todos nós (em maior ou
menor escala), seja em casa, em eventos festivos – como um casamento, ou até mesmo em
trilhas sonoras de filmes. Estou falando de Johan Sebastian Bach.
Dentre muitos os “poderes” que a música
possui, certamente um dos mais fascinantes é
o de poder realizar uma conexão com nossos
antepassados, sejam eles mais recentes, aqueles que acompanharam a vida de nossos avós,
por exemplo, ou até mesmo antepassados de
séculos atrás, como é o caso de Bach (16851750). Através de sua obra deixada em manuscritos para a humanidade, nos presenteou com
tamanha genialidade e beleza artística, seja em
suas suítes, seu cravo bem temperado, suas tocatas e fugas ou em praticamente qualquer obra
que tenha produzido.
Deixe-me contar um pouco melhor sobre essa
história de visita às aulas de violão. Em certa classe, como de costume, trouxe algumas músicas
de gêneros variados e autores diversos para uma
breve apreciação no final da aula. Neste dia, escolhi trazer para a audição algumas obras de
Bach, o famoso compositor alemão que influenciou – e ainda influencia – muitos compositores,
músicos e amantes da música, é claro.
Deixei rolarem algumas obras, como a famosa
Ária na corda sol e também a célebre Tocata e fuga
em ré menor. Após as audições, pedi para que os
alunos imaginassem a cena de um filme que se
adequasse a cada obra ouvida e que cada um descrevesse para a turma o que foi imaginado.
Para a primeira obra ouvida, Ária na corda sol,
as descrições feitas pelos alunos giraram em torno de cenas de despedidas, sejam de amigos e
pessoas queridas se despedindo por tempo indeterminado, sejam de pessoas prestes a partir
para o outro lado da vida. Outros relatos descreveram reencontros de pessoas que não se viam
há muito tempo. Também, como destaque, coloco a sinceridade das crianças, como no caso
8
de um aluno da primeira fase do Ensino Fundamental, que se disse realmente encantado pelos
sons do violino, até mesmo simulando um maestro na aula, um pouco desajeitado pela empolgação, mas certamente muito sincero e animado
com a ideia.
Para a segunda obra, o clima de suspense tomou conta das mentes atentas ao fabuloso som
do órgão de tubo, executado na Tocata e fuga
em ré menor. Aí a imaginação foi longe, e – minha nossa! – como essa geração possui talento
para descrever cenas de suspense. Ao ouvir a
música, o nome de “Conde Drácula” tomou conta de quase todos os relatos, além de castelos e
figuras das mais diversas que foram descritas
com detalhes e muita atenção pelos alunos.
No início das audições, houve alguns comentários por parte dos alunos questionando o porquê de ouvir este tipo de música em uma aula
de violão. Porém, foi apenas uma questão de
minutos para que vários alunos se rendessem à
música. Quando observei, já estavam anotando
em seus cadernos o nome de Johan Sebastian
Bach e as obras citadas, para, imagino eu, procurar no Youtube ou até fazer um download na internet, a fim de apreciar a obra com mais calma.
O mesmo ocorreu com Heitor Villa-Lobos,
considerado o “maior compositor das Américas”. Uma verdadeira surpresa para qualquer
brasileiro é saber que é de nossa terra que brotou o “maior compositor das Américas” e que
o próprio chegou a reunir 40.000 cantores para
um concerto no estádio de futebol do clube
Vasco da Gama. Para se familiarizar melhor com
a magnitude da obra do Villa, recomendo a audição de sua série das Bachianas Brasileiras.
Comece pelas de número 2 (O trenzinho do caipira), 4 e 5, além, é claro, de sua obra completa
para violão, ou seja, os cinco prelúdios, os doze
estudos, a suíte popular brasileira, o choros nº
1 e o concerto para violão e orquestra. Aliás,
talvez você possa ter feito alguma analogia do
nome “Bachianas” com o nome do compositor
alemão que citei no início deste artigo. Realmente, as “Bachianas”, que são inspiradas em melodias do sertão brasileiro, são homenagens do
compositor carioca ao alemão, que tanto o influenciou em suas obras, cada um deles inspirado em seu próprio folclore.
Uma observação de minha parte é
que – não importa a época ou o estilo –
todas as obras de arte possuem algo
em comum, ou seja, a vida humana e
seus diversos momentos. Pois, ao ouvir uma obra com cerca de 300 anos de
vida, um aluno de Ensino Fundamental
relata que imaginou uma cena de despedida. Isso nos demonstra que a conexão da obra de arte com a vida é inevitável, sendo como um espelho da própria vida, em que cada um enxerga um
pouco de si, de sua imaginação e de
seus sentimentos quando em contato
com uma obra. Seja ela de qualquer
época, o que realmente importa é sua
beleza, a vida e o autoconhecimento
que ela nos traz.
É claro que neste artigo, resumo
apenas alguns trechos destes momentos. Temos muitos outros artistas que
também nos honraram com suas visitas, não apenas os vulgos “compositores eruditos”. Também fomos visitados
por Luiz Gonzaga, Os Mutantes, Geraldo Vandré e, para o segundo semestre,
muitos outros já estão com visita previamente agendada. Convido todos sugerirem novas visitas em nossa aula, para
que a oficina fique cada vez mais bem
frequentada e torne-se um verdadeiro
ponto de encontro, de construção de
conhecimento, de amizade, de paz, de
crescimento, de história e muita música, é claro.
(Comente este artigo em
[email protected])
UMA BREVE HISTÓRIA DA MÚSICA
AUTOR: BENNET ROY
Editora Jorge Zahar
Este livro apresenta os caminhos da música do Ocidente a partir do século IX, quando surgiram as primeiras ‘composições’; o
desenvolvimento da escrita e das idéias musicais e também os instrumentos e práticas adotadas nos diversos períodos dessa
evolução. Quadros sinópticos de cada período mostram os vários tipos de música,
seus locais de origem, sua gênese cronológica e os principais compositores da época.
ALUCINAÇÕES MUSICAIS
AUTOR: OLIVER SACKS
Editora Companhia das letras
A música é uma das experiências humanas mais assombrosas e inesquecíveis, e
o livro do neurologista e escritor Oliver
Sacks, ‘Alucinações musicais’, nos faz
entender por quê. A exemplo de seus livros anteriores, entre os quais se destacam ‘Tempo de despertar’ e ‘O homem que
confundiu sua mulher com um chapéu’,
Sacks nos oferece aqui histórias musicais
cheias de drama e compaixão humana
envolvendo pessoas comuns ou portadoras de distúrbios neuroperceptivos. O estudo de casos surpreendentes de pessoas com distúrbios neurológicos ou perceptivos ligados à música reitera a crença de Sacks em uma medicina que
humaniza o paciente e tenta, junto com a abordagem clínica, integrar as dimensões psicológica, moral e espiritual tanto das afecções quanto de seu tratamento.
A MÚSICA E A CIÊNCIA SE ENCONTRAM
AUTOR: LEINIG, ESPÍNOLA CLOTILDE
Editora Juruá
Email para sugestões:
[email protected]
Lucas Feron é professor de violão
do Departamento de Arte e Cultura
do Colégio Medianeira. É também
graduando nos cursos de Educação
Musical na UFPR e Bacharel em
violão – EMBAP.
Neste livro a professora e musicoterapeuta
Clotilde Espínola nos presenteia com sua
enorme bagagem de conhecimentos, trazendo as mais diversas relações da música
com nosso mundo de conhecimentos. Os
capítulos trazem assuntos como a Música e
a Física, a Biologia, a Química, a Antropologia, a Psicologia e muito mais.
9
a
“CAPITAL
europeia”
Por Diego Zerwes
Se falta sensibilidade
para que as pessoas
percebam que há
muitos negros em
Curitiba, poderia ser
dito que, em grande
parte, isso seria
causado pela falsa
representação de
Curitiba, que estamos
acostumados a ver e a
ouvir desde crianças.
10
C
Caro leitor, se você estiver em Curitiba, olhe ao seu
redor. Observe as pessoas. Se você encontrar algum
negro (preto ou pardo) e ele estiver trabalhando, tome
nota que, de acordo com os dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ele recebe, em
média, 2,6 salários mínimos. Já digo, de antemão, que
será uma tarefa difícil, porque, de acordo com alguns
curitibanos, há poucos aqui. Essa máxima, de que há
poucos negros em Curitiba, é contestada pelos dados
do IBGE. De acordo com o senso de 2005, 19,7% dos
moradores da capital são pretos ou pardos. A média
de anos que os negros estudaram e do salário que recebem já pode soar alarmante. Imagine, então, compará-los com os dos brancos: os negros estudam 7,4 anos;
os brancos 9,3. Enquanto os negros recebem os 2,6 salários mínimos, os brancos, 4,7. Para o Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), os negros recebem em média 60,5% do salário
dos brancos.
Bem, esse “fenômeno” tem uma explicação histórica e atende pelo nome de “invisibilização”. Ele foi objeto de estudo de Marcilene Lena Garcia de Souza, Doutora em Sociologia pela Unesp e pesquisadora sobre
Relações Raciais no Paraná. Ela, junto com o também
Doutor em Sociologia Pedro Bodê, remontam as ques-
tões históricas. Curitiba recebe a alcunha de “a
capital europeia do Brasil”, o que seria, para os
pesquisadores, utilizando um termo de Eric Hobsbawn, um “processo de ‘invenção de tradições’”. Não que Curitiba não tenha recebido imigrantes europeus, o que de fato aconteceu, mas
o problema, contudo, é a supressão da identidade negra.
Sob esse aspecto, um jovem negro – que participa de um movimento que valoriza a cultura
afro-brasileira, entrevistado por Souza e Bodê,
indica algo sintomático: “foi criado um monte de
praças [...], aí criaram a Praça do Zumbi [dos Palmares]”. Esse “monte de praças”, referenciado
por ele, diz respeito às que carregam várias etnias em seus nomes, como a Praça do Japão, Praça da Espanha, Praça da Ucrânia, Bosque do Alemão, Memorial Polonês, Memorial Árabe. Quanto à Praça do Zumbi, ele relata: “me diga, aonde
que é? Bem lá no Pinheirinho, tem um bairro, tem
a favela e, depois da favela, a valeta; depois da
valeta é a praça”. Sendo este artigo de 1999 (Revista de Sociologia e Política nº 13: 7-19 nov.),
ainda não podia contar com a informação da reforma, salientada por Rogério Waldrigues Galindo na matéria “Curitiba descobre seus negros”,
publicada pela Gazeta do Povo em 29/05: “A inauguração da nova praça, com direito a homenagem aos 54 países africanos, teve direito a pompa e circunstância. O prefeito Luciano Ducci, que
terminou a obra iniciada por Beto Richa, fez questão de dizer o quanto o local era importante e de
homenagear a comunidade afro da cidade. Reflexos da Copa? Parece ser mais que isso”.
O que Galindo pretende dizer é que “os negros descobriram sua própria força”. Ou seja, não
foram os próprios políticos que descobriram
uma comunidade a mais de eleitores. Para ele,
“o movimento negro é que criou um grupo que
se reconhece como força nova. A ideia de por
cotas na prefeitura, a reforma na praça, o projeto
de mapear quilombos no interior do estado e
tudo o mais são uma tentativa de correr atrás
desse novo público”. Ele lista alguns feitos por
essa comunidade, como o cursinho pré-vestibular para afrodescendentes, ou as pesquisas do
Instituto de Pesquisa da Afrodescendência e ainda as cotas da UFPR.
Há outro fato que revela a natureza da tentativa de branqueamento da capital paranaense.
Pare para pensar: além da praça, há algum monumento que suscite a presença negra em Curitiba? Muito bem, você pode ter pensado na Negra Lata D’água, nos fundos do Paço da Liberdade. Souza e Bodê constataram que a escultura não
é um tributo aos negros. É uma homenagem ao
escultor Erbo Stenzel. A jornalista e estudante de
Ciências Socias da UFPR, Marisa Rodrigues, conta
que a obra foi realizada no período em que Erbo
estava no Rio do Janeiro. Para ela, a influência
negra vem do local onde ele se encontrava: o
Rio. Contudo, a escultura estava abandonada no
quintal de sua casa, já em Curitiba. Rafael Greca a
resgatou em 1966, não por ser uma representação da cultura afro, mas por ser uma obra de um
artista paranaense.
Além desse monumento, “‘descobrimos’ ainda um bloco de granito localizado na Praça Santos Andrade (no centro da cidade), na qual há
uma placa em bronze com uma dedicatória ‘à
colônia afro-brasileira’. A ‘homenagem’ da Câmara de Vereadores de Curitiba à ‘etnia negra’ vem
reforçar nossa tese. A obra que lembraria a população negra passa despercebida em meio à
paisagem’”, dizem Souza e Bodê. Há ainda outros lugares, ou nomes históricos. Bairro Rebouças, ou os Voluntários da Pátria.
Se a presença negra em Curitiba passa ao largo
dos políticos, para alguns intelectuais, não. Wilson
Martins, Ruy Wachowicz, Romário Martins são os
que se destacam, segundo Souza e Bodê, por
exemplo, ao negar a existência de escravos no Paraná, cuja definição Wilson Martins compõe: “Sem
escravidão, sem negro, sem português e sem índio, dir-se-ia que a sua definição humana não é brasileira”. Essa corrente de pensamento é contestada por Octavio Ianni: “Em linhas gerais, [...] o que
ocorreu foi, inicialmente, uma predominância de
índios ou seus descendentes; depois os negros e
mestiços seus começaram a aumentar relativamente aos outros, chegando a dominar numericamente”. Ele chega a afirmar que em 1767, a população
negra de Curitiba chegou a 50%. Mesmo que a fonte apresentada não seja totalmente precisa, indica
a presença de escravidão por estas terras, ao contrário do que pensa Wilson Martins.
11
Se falta sensibilidade para que as pessoas
percebam que há muitos negros em Curitiba,
poderia ser dito que, em grande parte, isso seria
causado pela falsa representação de Curitiba, que
estamos acostumados a ver e a ouvir – eu, pelo
menos – desde crianças. Resolvi pesquisar no
youtube o que há sobre Curitiba. No vídeo de
aniversário de 316 anos da cidade, aparecem
quase 40 pessoas. Dessas, três ou quatro podem
ser consideradas pardas. Nenhuma negra. Outro,
intitulado “Orgulho”, de seis personagens, uma
é negra. Os mesmos números são para um vídeo sobre vandalismo. Talvez do início dos anos
2000, talvez antes, há um vídeo sobre o transporte público de Curitiba, o sempre elogiado transporte público. Eu não identifiquei nenhum negro.
Bem, há algo de errado. Já sei! No começo dos
anos 2000, ou ainda no final dos 90, ainda não
havia esse dito politicamente correto. Portanto,
a necessidade de colocar figurantes de todas as
etnias não era uma “obrigatoriedade”.
Quando esse assunto veio a mim pela primeira vez, eu olhei na minha sala de aula, 4° ano de
Publicidade e Propaganda em uma universidade
privada de Curitiba. Quantos negros na minha
sala? Nenhum. Olho agora a foto da formatura,
com mais de 100 alunos. Três pardos. Aí eu me
lembro da sala de aula da especialização, dessa
vez em uma universidade pública. De 40 alunos,
um negro. Tudo bem que isso é uma amostra
pequena no grande universo que é o de Curitiba.
Contudo, para mim, é uma amostra irrefutável de
que há um sério problema por aqui.
O objetivo deste texto não foi mostrar algo inédito, já que, como vocês puderam notar, ele é um
recorte de uma realidade já apresentada. A proposta é tentar desmascarar este embuste que há décadas esconde a verdadeira Curitiba, é tornar visível
estes 19,7% que formam a linda “capital europeia”
que, das cidades do Sul, é a que mais concentra
negros e a que mais tenta escondê-los. A “capital
europeia” é, aliás, uma das poucas capitais em que
o Dia da Consciência Negra não é feriado.
(Comente este artigo em
[email protected])
Diego Zerwes é formado em Publicidade e
Propaganda (Universidade Positivo),
especialista em Literatura Brasileira (UTFPR) e
aluno de Letras (UFPR). No Medianeira,
trabalha na Biblioteca da fase II.
A UTOPIA BRASILEIRA E OS MOVIMENTOS NEGROS
AUTOR: ANTÔNIO RISÉRIO
Editora 34
O QUE É RACISMO
AUTOR: JOEL RUFINO
DOS SANTOS
Editora Brasiliense
Alguns tentam provar que as
diferenças sociais são determinadas por fatores biológicos.
Outros explicam que o racismo
surgiu da necessidade de justificar a agressão. Seria verdade? Faria o racismo parte da natureza humana? Neste livro, os
primeiros passos para a compreensão deste fenômeno universal, suas modalidades e suas implicações sociais.
12
Avesso ao academicismo e alheio ao politicamente correto, o poeta, sociólogo e ensaísta Antonio
Risério aborda neste livro atualíssimo o sempre
controverso debate sobre a questão racial brasileira. Mobilizando noções de História, Política, Lingüística, Sociologia, Semiótica, Estética e Antropologia com rara e poderosa intuição, o autor examina sob diferentes ângulos os mais variados aspectos relacionados ao tema, como as enormes
diferenças da questão racial no Brasil e nos Estados Unidos; a influência africana em nossa história e cultura, da língua à literatura, da culinária ao urbanismo, da religião à música e ao cinema; a mestiçagem e o sincretismo como traço e
valor do modo de ser brasileiro, e os movimentos negros na história do
Brasil, desde a luta contra a escravidão até os atuais debates sobre cotas
e ações afirmativas. Livro escrito não para os especialistas - embora com
eles também dialogue - mas para um público amplo, ‘A utopia brasileira
e os movimentos negros’ desloca os problemas de seus nichos habituais
e revela perspectivas insuspeitadas para a compreensão da realidade
brasileira.
os
DESAFIOS
DA ESCOLA
na era da
digitalização
Por Carolina Prestes Yirula
Para entender como as tecnologias podem ser mais do que produtos de
marketing escolar e realmente ser um integrador entre a escola e outros
espaços educativos, é necessário ampliar o conceito de educação. O aluno
não se educa apenas quando está dentro de uma sala de aula.
13
D
Diante do cenário global da atualidade, é possível pensarmos em uma nova configuração de
mundo, em que as relações sociais se dão, predominantemente, por meio de aparatos tecnológicos, como televisão, rádio, computador, celular. Podemos assumir, devido a essas novas
maneiras de interação social, que o mundo está,
de forma crescente, tornando-se um espaço digital. Para Pierre Lévy, estudioso do tema, o ciberespaço é, hoje, “o terreno onde está funcionando a humanidade”.
Esse fenômeno gera diversos impactos sociais, altera comportamentos e reorganiza a dinâmica de um mundo antes marcado pela cultura
do impresso. Diferentes campos sociais são afetados por essa crescente presença da tecnologia
em nossas vidas, dentre eles o da educação.
O aluno que hoje está na sala de aula acessa
diversos aparelhos tecnológicos, fazendo deles
extensões de seu próprio corpo, consome conteúdos midiáticos, vai ao cinema, vai a shows, vai
à escola. Vemos então que a instituição de ensino deixa de ser o elemento que centraliza as referências do jovem.
Frente a este cenário, o surgimento e a intensificação do uso de novas tecnologias representam uma nova possibilidade de repensar e desenvolver as práticas educativas. A presença significativa das tecnologias da informação na vida
dos alunos cria novos desafios para a escola, que
deve arriscar-se e questionar-se frente às novas
exigências que surgem em decorrência deste
mundo, cada vez mais “digital”.
Educação e Comunicação
Para falarmos sobre o encontro das áreas da
educação e da comunicação, sugiro compreendermos, de início, o que entendemos (neste texto) por educação. Em um primeiro momento, falar em educação pode remeter ao espaço escolar, que se constitui como um espaço de ensino
institucionalizado, de aprendizagem formal; contudo, para o professor Carlos Brandão, doutor
em Ciências Sociais pela USP, é importante considerarmos também que “a educação existe onde
14
não há escola e por toda parte pode haver redes
e estruturas sociais de transferências de saber”.
Desta forma, a instituição de ensino conhecida
como escola passa a dividir espaço com outras
instituições que cooperam para a construção do
saber, e então ocorre o que podemos chamar de
“pedagogia cultural”, termo que, segundo os autores Shirley Steinberg e Joe Kincheloe, enquadra a educação numa variedade de áreas sociais,
incluindo – mas não se limitando – a escola.
Essas áreas sociais podem ser, segundo os
referidos autores, denominadas também como
“áreas pedagógicas”, que seriam aqueles lugares
onde o poder é organizado e difundido, incluindo-se bibliotecas, televisão, cinemas, jornais, revistas, brinquedos, propagandas, videogames,
livros, esportes, etc. Sob este ponto de vista podemos entender, portanto, que o poder da instituição escolar divide espaço com outras instituições sociais, como a igreja, trabalho, família, mídia, entre outros e, assim, aqueles que se encontram dentro da dinâmica social (os agentes sociais) buscam e constroem suas referências de
mundo e seus saberes não apenas a partir do
conteúdo exposto em sala de aula, mas a partir
das mais diversas áreas pedagógicas com as
quais entram em contato.
Desta maneira, entenderemos, por educação,
não apenas o ensino institucionalizado, encontrado na escola, mas sim o contato do homem com
essas diferentes “áreas pedagógicas”.
Portanto, ao pensarmos no ensino formal, iremos pensar também nessas outras áreas pedagógicas, pois existe uma permeabilidade entre
elas; a escola, os meios de comunicação, a família acontecem simultaneamente na vida do jovem, além de acontecerem entre si; o que é divulgado na mídia pode ser pautado na escola; o
que se discute na escola pode aparecer como
tema de debate em casa; o que se passa em casa
pode ser retratado pela mídia e assim segue-se
a lógica que entrelaça as diversas áreas pedagógicas presentes na vida dos jovens.
Com a revolução tecnológica, as possibilidades de comunicação expandiram-se e os educadores passaram a ter ao seu alcance novos
sistemas capazes de contribuir com o ensino em
sala de aula. A inserção de aparatos tecnológi-
cos ao ensino formal é fundamental, pois amplia as possibilidades de aprendizado, além de
exercitar novas capacidades e habilidades dos
jovens; contudo, essa aproximação requer uma
análise profunda, pois, para que a revolução tecnológica possa contribuir com o sistema de ensino da escola, é preciso que ela seja incorporada e entendida como fundamental para que, junto com o progresso tecnológico, ocorra uma
abertura que permita pensar (e questionar) a
educação formal – colocando-a em sintonia com
as mudanças e avanços que ocorrem fora do
espaço físico da escola.
Porém, para que seja possível o alcance dessa sintonia, existem diversos pontos que devem ser repensados no que diz respeito ao
currículo escolar, o qual, segundo Ruth Sabat,
doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), é diretamente afetado pelos “saberes que são produzidos
através do currículo cultural desenvolvido pela
mídia”. Desta forma, para atualizar-se frente às
mudanças do ambiente externo, a educação
formal deve levar em consideração estímulos
que afetam os seus alunos fora do ambiente
da escola, e esses estímulos encontram-se na
relação dos alunos com a família, com os amigos e com conteúdos midiáticos.
Para Margarida Kunsch, professora titular da
USP, a escola coloca-se como “a institucionalização da educação formal em uma determinada
sociedade, que tem por função possibilitar a
apropriação e a assimilação de conhecimentos e
habilidades úteis e/ou necessários à vida do indivíduo dentro da vida social”. Portanto, ao sugerir que almeja preparar o jovem para a vida e
para o convívio social, é indispensável que a escola dê atenção ao que ocorre com esse aluno
fora da sala de aula – assim, a escola deve entender quem são os “educadores” deste aluno quando ele não está em aula, para então compreender se há adequação do currículo escolar à realidade do aluno fora da sala de aula.
Nas palavras de Roxana Morduchowizc, professora de Comunicação na Universidade de Buenos Aires e especialista em comunicação e culturas juvenis, “as identidades dos jovens se definem não apenas pelo livro que lêem, mas também, e principalmente, pelos programas que as-
sistem na televisão, pelos sites que visitam, pela
música que escutam e pelo filme que decidem
ver” (tradução nossa) – desta forma, as relações
que se dão fora do espaço escolar também educam e geram comportamentos e, por isso, são
tão importantes quanto a educação formal.
A educação informal pode acontecer por meio
do contato com mensagens midiáticas veiculadas em cinema, televisão, revistas, internet, jornais, rádio. Ela é uma realidade incontestável na
vida dos jovens pós-modernos, os quais, segundo a professora da Faculdade de Educação da
USP, Maria da Graça Setton, pertencem a uma
“geração que precocemente sociabilizou-se com
a cultura midiática”. Assim, frente a esta convivência do jovem com o conteúdo midiático, é
importante entender como ocorre a conciliação
entre o consumo do conteúdo escolar e o consumo do conteúdo disponibilizado pela mídia.
A interação do jovem com o conteúdo divulgado pela mídia interfere diretamente nas condutas por ele assumidas. Para Tânia Esperon Porto, doutora em Educação pela USP e mestre em
Tecnologia Educacional, “o aluno convive com
duas situações: ora tendo que seguir parâmetros
propostos e exigidos por uma escola reprodutora e ora vendo, através da mídia, uma realidade dinâmica e estética da sociedade cuja cultura
está em constante efervescência”. Esse paralelismo interfere no comportamento do jovem em
sala de aula; por isso, surge a necessidade de
repensar a educação formal e de considerar a integração com a educação informal. Se a escola
15
quer ser significativa na vida dos jovens, deve
compreender a realidade em que eles vivem.
Neste contexto surge um novo tipo de estudante, com novas habilidades e capacidades e,
para atender a este novo perfil de aluno, surge a
necessidade de pensar em uma nova configuração para o ensino formal, além de outro desafio – a necessidade de pensar em um novo perfil de educador, o qual passaria a ser um “educomunicador” e que seria, segundo Ismar Soares, coordenador-geral do Núcleo de Comunicação e Educação da USP,
(...) um agente cultural com conhecimentos suficientes no campo da educação e com manejo profundo das teorias, linguagens e técnicas da comunicação. Sobretudo um profissional com capacidade
de criação, para dar vida e sentido aos recursos colocados pela civilização a serviço de toda a humanidade, trata-se de um verdadeiro gestor de processos comunicacionais: faz nascer e gerencia projetos
e produtos na área da comunicação nos espaços do
ensino formal e não formal.“
Com esse perfil, o educomunicador assume
papel fundamental, pois se responsabiliza por trazer para a sala de aula a linguagem do jovem, a
cultura da mídia e a realidade de um mundo mediado, essencialmente, pela tecnologia. Assim,
seria construído um espaço de debate, que por
meio do currículo escolar tradicional possibilitaria o questionamento e postura crítica e reflexiva
dos alunos acerca dos fatos que os rodeiam fora
das paredes da escola. Ele aproxima, portanto, a
escola e a mídia – ambas “frequentadas” pelos
alunos, e responsáveis por seus comportamentos, aprendizados, costumes, valores.
Segundo a professora Margarida Kunsch, ao
promover essa aproximação, a escola assume
que é um “mecanismo social ao lado de outros”,
e reconhece não ser a única instituição detentora do processo de ensino. Essa posição contribui para o seu sucesso, já que passa a considerar as necessidades de seus educandos e, segundo Tânia Esperon Porto, a entender que as “novas gerações têm novos modos de compreender e de se envolver com as questões atuais”.
Esse entendimento acerca da necessidade
de trazer à dinâmica escolar aquilo que ocorre
fora dela configura-se como uma necessidade
já reconhecida. No Brasil, foi instituída, em 1996,
a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Entre outros aspectos, ela defende que o
ensino formal deve valorizar as experiências extraescolares de seus alunos, vincular as práticas
pedagógicas às práticas sociais, articular-se com
a família e a comunidade, criando processos de
integração da escola com a sociedade. Esse reconhecimento leva o ensino formal a reorganizar e repensar seu modelo de atuação; a partir
do momento em que temas presentes na vida
social são integrados às matérias e conteúdos
formais, podemos pensar em uma “transversalidade na educação”, que valoriza a presença da
realidade extraescolar dentro da proposta pedagógica. Essa “transversalidade” pode ser vista nos próprios Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs), que sugerem que “temas transversais”, como ética, saúde, consumo, orientação
sexual, trabalho, sejam integrados ao conteúdo
programático escolar, visto que são importantes e presentes na vida dos alunos.
Essa tendência à transversalidade pode favorecer o envolvimento do aluno com o conteúdo
que lhe é passado em sala de aula; apresentar
conteúdos com os quais os jovens se deparam
em seu dia-a-dia e fazer uso de linguagens que
são comuns a eles pode reduzir a dispersão em
aula, e dar maiores possibilidades para que o aluno torne-se interessado no conteúdo oferecido
pelo currículo escolar. Além disso, segundo Maria da Graça Setton, ao trazer “a mídia para den-
16
tro das salas de aula (...) como material didático,
como fonte de informação, como registro de uma
época e história (...) servindo como instrumento
ideológico que ajuda na construção das identidades individuais e coletivas”, o educador oferece caminhos para que o aluno consiga posicionar-se dentro de sua realidade extraescolar, tornando-o capaz de criticar, questionar, problematizar aquilo que lhe é apresentado por meio dos
conteúdos midiáticos.
Carolina Prestes Yirula é formada em
Comunicação Social pela Escola Superior de
Propaganda e Marketing (ESPM-SP). Esse
artigo foi escrito a partir dos estudos que
desenvolveu em seu Trabalho de Conclusão
de Curso (TCC), que teve como grande área
de pesquisa a Educomunicação.
(Comente este artigo em
[email protected])
ALIENÍGENAS NA SALA DE AULA – UMA INTRODUÇÃO AOS
ESTUDOS CULTURAIS EM EDUCAÇÃO
ORGANIZADOR: TADEU TOMAZ DA SILVA
Editora Vozes
A obra é um conjunto de ensaios focalizados em torno da perspectiva dos ‘estudos culturais’. Tem o objetivo de abrir esse campo de estudos para uma discussão entre as pessoas envolvidas com educação no Brasil. Analisa a área de ‘estudos culturais’ e sua aplicação à análise e à crítica educacional.
A CULTURA DA MÍDIA NA ESCOLA – ENSAIOS SOBRE
CINEMA E EDUCAÇÃO
AUTORA: MARIA DA GRAÇA JAVINTHO SETTON
Editora Annablume
“Neste livro, enfrentamos um desafio. Sabendo que a escola, na atualidade, vem se
deparando com outros parceiros em sua ação pedagógica - e aqui ressaltamos a
emergência da mídia - seria necessário aprendermos, como educadores, outras
linguagens passíveis de transmitir e produzir conhecimento. Ainda que o código
escrito seja o grande difusor e matéria-prima de toda e qualquer produção e manipulação do conhecimento característico dasformações modernas, é preciso observar o surgimento de outros estímulos criativos em nosso meio cultural. Mais especificamente, tratando-se de sociedades latinoamericanas como a brasileira, é preciso
atentar para a presença de uma cultura de massa, com força socializadora, que preenche a vida de
nossas populações, estas muitas vezes ainda não plenamente familiarizadas com a linguagem culta e
letrada.” (Graça Setton)
17
Apropriando-se
ironicamente da máxima
cartesiana do “Penso, logo
existo”, os três artigos que se
seguem mostram como
algumas noções de
felicidade são, no mínimo,
confusas na nossa vida e no
nosso mundo do consumo.
Isso é atual, é verdade, mas
não é exclusividade do jeito
contemporâneo de viver.
compro,
logo SOU
?
FELIZ
Por Vinícius Soares Pinto
18
D
Definir felicidade, não sendo por meio de
exemplos, é um grande desafio. É uma daquelas
palavras que todos parecem saber o que é, mas
na hora de explicar sobre o que, exatamente, se
trata, a situação se complica. O mesmo acontece
quando somos perguntados sobre o que é o tempo, a justiça, o pensamento e a razão. Santo Agostinho, filósofo da Idade Média, consegue ilustrar
o que quero dizer, quando questionado sobre o
que seria o tempo: “Se ninguém me perguntar
eu sei, porém, se quiser explicar a quem me perguntar, já não sei”. Pois bem, o que é felicidade
para você? Há quem diga que é ter dinheiro de
sobra para comprar objetos de desejo, alguns
diriam que é ter saúde e muitos amigos, para
outros talvez seja sinônimo de casa cheia, com
filhos e netos, ou seja, pode ser um monte de
coisas diferentes, mas todas parecem ir para o
mesmo caminho: algo que faça o homem viver
melhor. O dicionário Aurélio também não diz algo
muito diferente: 1. Qualidade ou estado de vida.
2. Bom êxito; sucesso.
Indepentende do significado de felicidade,
parece ser natural que todo homem vá atrás dela,
que busque as coisas que, acredita, lhe proporcionarão uma vida mais feliz. Pode ser que, no
fim das contas, muito do que o homem acredite
proporcionar a prometida felicidade realmente
não a traga. Isso é muito comum de ser observado, pois a felicidade nunca nos foi tão prometida
e oferecida como agora. Hoje, você pode encontrá-la em potes de margarina, em celulares coloridos, em roupas finas, ou, se você quer, realmente, ser muito feliz, em apartamentos com áreas
de lazer privativas – lugar onde sua família estará
segura e distante dos seres infelizes, aqueles que
não podem pagar pela felicidade.
Certamente, a maior responsável por associar
felicidade à compra é a Publicidade, esta ciência
que se utiliza de belos modelos sorridentes, dotados de discursos convictos e treinados para
oferecer possíveis atalhos para a felicidade, para
uma vida melhor. Desta forma, para ser feliz, basta
escolher, sacar o cartão e digitar a senha. Caso
não possa comprar a felicidade à vista, não faz
mal! Ela cabe no seu bolso, em sessenta prestações. Nas palavras do consagrado fotógrafo Oli-
viero Toscani, “a publicidade não vende produtos nem ideias, mas um modelo falsificado e hipnótico da felicidade”.
Além da procura desenfreada por uma vida
mais feliz a partir da compra por objetos que,
num primeiro momento, aparentam ser a solução para a ausência de felicidade, existe o problema do homem não se conformar com a realidade e querer imitar uma hiper-realidade a qual
lhe é apresentada a todo momento, por meio das
mensagens publicitárias. A pessoa começa a não
distinguir mais a realidade da fantasia, sente-se
seduzida e atraída a querer fazer parte desta, tentando tornar-se imagem e semelhança dos protagonistas dos anúncios. O escritor inglês Frederic Beigbeder, no livro $29,99, consegue ilustrar
muito bem esta mistura entre realidade e fantasia vivida pelo homem pós-moderno, ao dizer
que, diferente de tempos anteriores, quando a
publicidade imitava a vida, hoje é a vida que imita a publicidade.
Na década de 1950, por exemplo, não é difícil encontrar anúncios que reproduzam típicas
donas de casas para convencer sobre os benefícios de um novo eletrodoméstico. No entanto,
hoje é diferente. A realidade não basta. É preciso recorrer a uma hiper-realidade, uma hiper-felicidade. Desta forma, a figura da típica dona de
casa é substituída por mulheres com corpos corrigidos por computadores e figurinos sensuais,
com o objetivo de convencer o quão necessário
é o produto anunciado. O perigo está quando a
pessoa comum não consegue distinguir sua realidade da fantasia anunciada, sendo capaz de acreditar e fazer das suas ações uma busca interminável pelo conceito de felicidade ligado aos produtos. Ainda de acordo com Toscani, “a publicidade nos ensina como nos comportar na sociedade do consumo. Ela propõe um modelo social: ‘compro, logo sou’”.
Apesar da busca pela felicidade por meio do
consumo parecer ser tema de discussão recente, geralmente ligada à realidade pós-moderna,
bombardeada pela avalanche de simulacros e a
valorização do imediatismo, há quem critique
este modo de vida já há três séculos antes de
Cristo. Refiro-me ao filósofo grego Epicuro, cujo
discurso critica o hábito das pessoas de procurar a felicidade nos lugares errados. Para ele, bas-
19
tam três coisas para o homem ser feliz: ter amigos, uma vida autoanalisada e liberdade. Não por
acaso, grande parte da publicidade faz associações dos produtos anunciados à liberdade e aos
amigos. Repare: qual anúncio de carro ou cartão
de crédito não lhe promete liberdade ou uma
viagem ao lado de amigos? A reflexão e a autoanálise, obviamente, não serão argumentos para
a venda de um produto, pois a partir do momento que o homem a pratica, também não age por
impulso e, consequentemente, pensa duas vezes antes de consumir.
Portanto, quando o homem cai na tentação da
compra, atraído pelas promessas de se tornar
alguém mais feliz, na verdade apenas materializa
na forma de um bem o seu desejo por liberdade
e companhia de amigos. No entanto, se o homem
não reflete sobre sua vida e atitudes, essa alegria
é passageira e, num curtíssimo espaço de tempo, sente novamente a necessidade de materializar suas carências. Com o intuito de conscientizar e lembrar as pessoas de que elas não se tornariam mais felizes ao comprar, um epicurista da
cidade de Oenoanda, Diógenes de Oenoanda, em
A PUBLICIDADE É UM CADÁVER
QUE NOS SORRI
AUTORA: OLIVIERO
TOSCANI
120 d.C, construiu um enorme muro de pedra
em que escreveu toda a filosofia da felicidade de
Epicuro, próximo a um movimentado mercado.
Para encerrar, tome como exemplo a atitude
de Diógenes e imagine um mundo onde, ao invés existirem, por todos os lados, apenas anúncios luminosos e coloridos que nos estimulam a
comprar, houvesse mensagens nos questionando o quão, realmente, precisamos daquilo que
compramos e lembrando-nos de nossos desejos verdadeiros.
(Comente este artigo em
[email protected])
Vinícius Soares Pinto é formado em
Publicidade e Propaganda (UP), estudante de
Filosofia (UFPR) e pós-graduando em
Comunicação, Cultura e Arte (PUCPR).
Trabalha no Laboratório Audiovisual do
Colégio Medianeira.
$ 29,99
AUTORA: FREDERIC
BEIGBEDER
Editora Record
Editora Ediouro
O livro conta a trajetória de Toscani desde
os tempos em que ra
fotógrafo de moda
das principais publicações européias, narra
os bastidores das conversas com Luciano
Benetton e todo o processo de criação do premiado e ao mesmo tempo combatido publicitário. Oliviero diz que o consumidor do mundo
atual é bombardeado com promessas ridículas
e slogans repetitivos.
20
$ 29,99 é uma parábola sobre a
propaganda, seus súditos e profissionais, entre eles o próprio
autor. Octave é um publicitário
famoso, com um salário invejável e capaz de atrair ainda mais
dinheiro, mulheres e cocaína em
quantidades suficientes para torná-lo uma espécie de super-homem. Mas, na verdade,
logo o leitor descobre que Octave está mais para morto
do que vivo, é infeliz, insatisfeito e nem todo o aparente
glamour de sua vida o impede de ser um eterno nostálgico, noite e dia suspirando pela mulher que o deixou.
consumo,
logo
EXISTO
Metáfora Inepta e Desconexa
Sobre a Felicidade
Por Adalberto Fávero
Não nasceu de nenhuma costela, não conheceu nenhuma
serpente, não ofereceu nenhuma maçã a ninguém e
tampouco Deus chegou a lhe dizer ‘parirás com dor e teu
marido te dominará...’ Enfim, todas essas histórias são
mentiras descaradas que Adão contou aos jornalistas.
(Eduardo Galeano, De pernas pro ar)
21
J
João e Maria, depois de se perderem na floresta, quase serem comidos pela bruxa, voltarem
para casa e “serem felizes para sempre”, agora
já são um casal comum (ainda que com certa idade, é óbvio), desses que adoram a cidade em que
moram e costumam pintá-la em cores de arcoíris, com seus teatros de arame, de madeira ou
de alvenaria, pré-montados ou embelezados vagarosamente... a diferença pouco importa.
Não por acaso residem numa capital projetada
como referência de um desses reinos do sul, agora em ascensão na geografia do mundo. São pouco acostumados a duvidar das coisas. Enxergam o
mundo por óculos de grau muito bem definido e
com uma lente só. Mesmo assim, ultimamente,
andam pensativos e desconfiados, ou melhor, espantados com algumas novidades das poucas ruas
e dos muitos anúncios que costumam acompanhar.
Há quem diga que os dois estão se tornando
filósofos ou bom pensadores em vista de algumas impressões que manifestam, além de certo
ar de desconforto presente nos seus olhares.
Em tempos de política, de textos raivosos na
internet, de propagandas gratuitas, certo dia falaram numa só voz que algo anda errado com a felicidade. Pareceu, a seus amigos, que essa expressão assemelhava-se a afirmar que há algo de quente no gelo. No entanto, o que lhes passava pela
mente é que as coisas andam muito fugazes e que
todo dinheiro que tinham não lhes satisfazia o bem
estar subjetivo. Coisa de filósofo, pensaram eles.
Pareceu estranho ouvir isso das plácidas e
educadas bocas de João e Maria, mas afinal já
não se tratava apenas do tal casal da história de
contos de fadas e sim de gente moderna, atual,
de uma cidade admirada, abençoada e cantada
pelo país afora.
Acontece que essa tal metrópole anda amarrotada de shoppings e ali não é lugar onde se
encontre amor, amizade, ajuda em hora de necessidade, respeito a um colega sofrido... Parece mais provável encontrar indiferença, solidão
na multidão e o desejo incontrolável de consumir. Nesses locais acontece um encontro inalienável – mas alienado – entre o consumidor e a
mercadoria. Já não se sabe o que mais importa,
se o consumidor ou o que ele consome, porém
as bolsas nos braços e as marcas de grife dão a
22
impressão de constituir os sujeitos, o que se comprova pelos seus andares altivos entre a multidão alheia ao que se passa.
Essa prática de medir a felicidade pela quantidade e qualidade do que se consome é cada
vez mais presente, mas também mais frustrante
na subjetividade pessoal e coletiva. Enfim, o
marketing tem se proposto a produzir felicidade
pelo consumo e isso tem causado indigesta frustração na propaganda. Isso parece ser verdadeiro porque o consumo não pode acabar e assim
não se chega à felicidade de fato e sim à alegria
momentânea e sem ponto de chegada.
João e Maria sempre adoraram a moda como
se ela fosse uma espécie de certificado de validade pública do seu status e de sua realização.
De alguma forma, era a exposição da própria felicidade. O problema é que, ao confiar nas marcas, recebe-se um certificado de felicidade de
curto prazo e vai se hipotecando o futuro. Passase a ser reconhecido pela grife e a própria identidade está impressa nesse reconhecimento. Tal
situação tem incomodado os nossos heróis desde que descobriram que as antigas fadas e bruxas há muito tinham sido assassinadas “pelo realismo empírico” da notícia.
Antes eles tinham um projeto de futuro que
dava sentido aos passos e agruras da vida. Nessa nova situação, veem-se tentados a anular o
passado, renascer e adquirir um novo eu a cada
dia e a cada nova proposta de consumo. Há um
desejo crescente de fugir do próprio eu, adquirir
algum sossego em pacote já acabado e arranjar
um jeito mais fácil de conseguir a felicidade.
No entanto, alguma coisa parece morrer dentro deles ao não traçar mais metas que pareçam
impossíveis, mais ou menos como na tentativa de
chegar ao horizonte e perceber que ele se afasta,
mas isso apenas obriga a continuar a caminhada
em sua direção. A felicidade, anteriormente, sempre se apresentava com essa característica.
A impressão de João e Maria é de que a
felicidade está cada vez mais cara; no entanto, é tão fugaz quanto as migalhas de pão que
um dia jogaram no chão para achar o caminho
de volta para casa. Essa série de novas compras que a propaganda anuncia ser suficiente
para alcançar a felicidade é vendida nas lojas
e restaurantes, porém a maioria está impossibilitada de alcançá-la.
O fundamental é não deixar acontecer a autodepreciação. O resto é tédio. O sonho maior de
estabilidade vai se consumindo pragmaticamente na luta pela sobrevivência à revelia das utopias coletivas. As mortes violentas apavoram, os
vizinhos são suspeitos, os barulhos aterrorizam,
o fanatismo ideológico impressiona, o desejo de
vida pacífica cerca-se de arames elétricos... não
se aspira mais revolução, transpira-se medo!
Há um sentimento de desistência do presente diante do futuro inconcebido que exige salvavidas de satisfação em curto prazo e o culto dos
resultados. Os trabalhadores e as empresas agora vivem e se alimentam deles. 24 horas por dia
o marketing impinge a necessidade de conquistar a felicidade pela mercadoria e pelo resultado
imediato e instantâneo.
Às vezes, João e Maria acham que não voltaram para casa e estão ainda em algum canto da
terrível floresta com a velha madrasta à caça da
própria destruição. Não importa tanto no que
acreditam, é necessário ter pressa.
Essa metrópole onde vivem levanta brindes
e profere altos vivas ao cimento e ao asfalto. De
um lado ou outro foram criados enfeites para
enganar os olhares insanos – porém o calor aumentou. A chuva caiu refrescante. Aí se brindou
a chuva, mas veio a enchente. Os rios, escoadouros e cisternas não venceram. Houve o caos, sobretudo nas periferias. Pedras caíram dos morros e as casas e as vidas foram levadas. Houve
mortes. Houve espanto.
No centro de toda água boiaram manequins
e marcas de grife. Chefiando o carrossel de esperanças perdidas estavam a nike, restos de sanduíches mcdonald’s, esfirras do habib’s e um
outdoor com a inscrição “amai-vos como eu me
amei.” Atrás dessas promessas de felicidade vinham corpos, todos descorados e indigentes
pela indigência da cidade, do cimento, do asfalto e dos esgotos malcheirosos.
A ideia de fazer da vida uma obra de arte quer
dizer viver em transformação permanente, se autodefinir continuamente e o eu antigo precisar ser
desconstruído e tecido de novo, ininterruptamente. Entretanto, a mercadoria despersonaliza e aniquila quando reduz a cidadania do homem ao status de consumidor. Ela própria é que adquire personalidade e sentido. É como retirar a cafeína do
café: pode ser bom para a saúde, mas é insalubre
para o bom degustador. Não parece café.
O inferno, se de fato existe, deve estar repleto desses personagens insalubres e frios, daqueles que desistiram de viver com alegria e paixão
e se contentaram com a voraz volúpia do mercado. Consumo, logo existo, deve ser a loa coletiva e permanente a satanás!
Nossos heróis têm um ponto de vista confuso sobre a situação em que vivem, porém essa
pode ser uma virtude, caso deflagrem a aventura arrojada de andar em alguma perspectiva menos instantânea e vazia. Essa questão do lugar de
onde se fala e do ponto de vista é estratégica
para uma saída em direção a um novo horizonte.
Isso faz lembrar que “do ponto de vista do oriente do mundo, o dia do ocidente é noite. Na Índia, quem está de luto se veste de branco. Na Europa antiga, o Negro, cor da terra fértil, era a cor
da vida, e o branco, cor dos ossos, era a cor da
morte. Segundo os velhos sábios da região Colombiana do Chaco, Adão e Eva eram negros e
negros eram seus filhos Caim e Abel. Quando Caim
matou seu irmão com uma bordoada, trovejaram
a ira de Deus. Diante da fúria do Senhor, o assassino empalideceu de culpa e medo, e tanto empalideceu que branco se tornou até o fim dos dias.
Os brancos, somos todos filhos de Caim.” (Eduardo Galeano, em De pernas para o ar).
A propósito do lugar de onde olham o mundo, João e Maria possuem muitas dúvidas. Nem
mesmo lhes é claro se estão na terrível floresta
de outrora, no meio de um belo sonho de consumo ou se presos num emaranhado de pedras.
Isso é explicável, porque cresce neles a sensação de que, em torno de seu convívio, os mesmos que fabricam a miséria declaram guerra aos
desesperados da terra. A lei oficial surge a seus
olhos como uma frágil teia de aranha que só apanha os pequeninos que se arriscam a atravessar
23
seus limites claramente impostos e expostos.
Não segura peixe grande!
Perguntam-se, permanentemente, se chegará um momento em que poderão e saberão lançar âncoras sobre essa situação transitória em
que vivem. Ou será que a situação está mais para
a catapulta constantemente içada e capaz de
jogá-los para frente sem noção de ancoradouro
e porto seguro? Será a autocriação e a autoinvenção permanente? Terá a roda do mundo
emperrado quando ruiu o muro de Berlim? Com
ele terá desmoronado o edifício do bem e do
mal, deixando órfão o próprio diabo? As drogas mais vendidas na atualidade serão mesmo
as da produtividade e eficiência? Resumirão elas,
de fato, as novas tábuas da lei? Inovação será
mesmo sinônimo de resultados?
Talvez fosse melhor a João e Maria enfiaremse novamente nos livros dos contos antigos ou
reiniciar os caminhos da velha floresta, ainda que
sem as migalhas de pão. Ou não? Quanto mais
olham para o universo, mais ele lhes parece com
um pensamento e quanto mais o examinam mais
imprevisível se apresenta. Impressiona-os o fato
de que os seres humanos foram reduzidos a seres urbanos e eles são de um tempo em que os
mágicos são os engenheiros da alma.
Essa situação sufoca, causa espanto e impotência. A felicidade fica sempre ao alcance da
mão: comprável, mas fugaz; alcançável, porém
célere; distante, no entanto desejável!
Há um pessimismo arguto e angustiante no ar
como se os dias atuais fossem incapazes de possibilitar a felicidade ou como se as amarras do consumo prendessem o ser e a capacidade do sonho.
Vale lembrar, outra vez, Galeano falando de
certa vista do final do século:
Está envenenada a terra que nos enterra ou desenterra. Já não há, só desar. Já não há chuva, só chuva ácida. Já não há parques, só parkings. Já não há
sociedades, só sociedades anônimas. Empresas em
lugar de nações. Consumidores em lugar de cidadãos. Aglomerações em lugar de cidades. Não pessoas, há públicos. Não há realidades, só publicidades. Não há visões, só televisões. Para elogiar uma
flor, diz-se: “Parece de plástico”.
Aí estão João e Maria, Maria e João, a vida, a
cidade, a metrópole, a esperança, a empresa, o
consumo, a pessoa, a sociedade e a nação. O
esbanjo e a falta de pão. A felicidade ou não?
Andar para a frente, ver o futuro, contentar-se
com o consumo ou enfiar a cabeça no chão? Fazer história, caminhar novos caminhos ou aceitar
ficar presos no alçapão?
É isso, João e Maria, Maria e João!
(Comente este artigo em
[email protected])
Adalberto Fávero é diretor acadêmico do
Colégio Medianeira. Formado em Pedagogia,
História e Teologia, é especialista em
Currículo e Práticas Educativas (PUC-RJ) e
mestre em Educação (PUCPR).
VIDA PARA CONSUMO
AUTOR: ZYGMUNT BAUMAN
DE PERNAS PRO AR
AUTOR: EDUARDO
GALEANO
Editora L&PM Editores
Há cento e trinta anos, depois de
visitar o País das Maravilhas, Alice entrou num espelho para descobrir o mundo ao avesso. Se Alice renascesse em nossos dias,
não precisaria atravessar nenhum
espelho: bastaria que chegasse à
janela.
24
TRADUTOR: MEDEIROS, CARLOS ALBERTO
Editora Jorge Zahr
Zygmunt Bauman nos revela a verdade oculta, um segredo bem guardado da sociedade contemporânea - a
sutil e gradativa transformação dos consumidores em
mercadorias. As pessoas precisam se submeter a constantes remodelamentos para que, ao contrário das roupas e dos produtos que rapidamente saem de moda,
não fiquem obsoletas. Bauman examina ainda o impacto da conduta consumista em diversos aspectos da
vida social - política, democracia, comunidades, parcerias, construção de identidade, produção e uso de conhecimento. E não
esquece de analisar como esta característica parece evidente no mundo virtual - redes de relacionamento, como Orkut e MySpace, não trabalham com a
idéia do homem como produto?
“SOFRO,
logo
COMPRO”
OU
OLHO,
logo
PRECISO!
Por Luciana Nogueira Nascimento
A angústia do ter no lugar do ser não atinge apenas os adultos.
As crianças são as maiores vítimas do hiperconsumo que impõe
sentimentos e necessidades ligadas ao emocional e exige escolhas
imediatas para a sobrevivência dos pequenos consumidores. Os
pais... ah! quantas dúvidas diante de tanta responsabilidade!
25
Q
Quatro horas por dia na escola, oito na frente
da televisão. Entre os enredos que fascinam estão mundos prá lá de fictícios, absolutamente irreais, porém sedutores, encantadores e que despertam os sonhos mais profundos e sinceros de
que a vida fosse mesmo um conto de fadas, com
vestidos rodados e sedosos, cabelos perfeitamente penteados, corpos desenhados com varinhas de condão ou espaçonaves fantásticas e
armas milagrosas capazes de exterminar qualquer
contrariedade. Os sonhos surgem para as crianças, como ocorreu um dia para os adultos de hoje,
que muitas vezes acabam usando os filhos para
realizar desejos contidos na infância, para uma
geração que conheceu o significado da palavra
escassez e que procura, ao máximo, poupar os
filhos desta frustração, do querer e não poder.
Gilles Lipovestky defende que o consumo
emocional, diferente do marketing tradicional,
apela para a memória afetiva e sua ligação direta
com a marca. Esta estratégia funciona não só com
as crianças um pouquinho mais crescidas, os
adolescentes, mas com os adultos que vibraram,
por exemplo, com o relançamento dos personagens da Vila Sésamo ou da boneca Susi ou do
Capitão Marwell. Não são brinquedos ou personagens de programas atuais. Todos foram relançados intencionalmente para o público infantil,
mas com o apelo ao público mais velho.
Na sociedade do hiperconsumo, os "abusos"
do consumo são permitidos segundo o livro A
Felicidade Paradoxal: Ensaios sobre a sociedade de hiperconsumo, de Gilles Lipovetsky. Para
o autor, "neste momento, os indivíduos não compram mais tão motivados pela pressão social,
mas motivados pela vontade, para a satisfação
do próprio prazer. Vivemos num momento de
hedonismo, onde o indivíduo necessita para a
visibilidade social se apresentar como pleno,
satisfeito e feliz". O mesmo se aplica ao consumo na infância. Embora a criança não tenha plena
compreensão do que significa "visibilidade social", ela percebe as reações de crianças e adultos diante de seu comportamento de consumo
e associa esta reação ao sucesso ou à frustração.
Complementando ou parafraseando a máxi-
26
ma cartesiana, "sofro, logo compro" resume a
ideia do que Lipovetsky trata como o ópio da
sociedade. As "pílulas da felicidade" encontradas
nos shoppings, nos cartões de crédito, nas compras online, são a medicalização, a saída encontrada para as já muito comuns síndromes, depressões e pânicos decorrentes não apenas do
não saber lidar com grandes desafios ou situações de fracasso, mas também como uma forma de fuga. Fuga, por exemplo, de responsabilidades ou do sentimento de culpa pelo desejo
incontrolável de ascensão social e profissional,
o que obriga os pais a assumirem cada vez mais
compromissos profissionais e a ocuparem o
tempo cada vez menos com os filhos, em casa.
Hoje não é simples ser criança e conviver com
os apelos da mídia, a escassez de apelos da escola, o despreparo ou ganância dos pais, a cobrança dos colegas e a imposição dos intervalos
comerciais. Como a criança pode se apropriar de
seu contexto, entender sua posição na família e
na sociedade, compreender o que é conhecimento, limites, respeito, amizade e felicidade na sociedade de consumo? Susan Lin, pesquisadora
da Universidade de Harvard, constatou que o
excesso de publicidade provoca inúmeros distúrbios nas crianças. A ela estão relacionadas a
obesidade precoce e a anorexia, a sexualidade
precoce e os distúrbios familiares. Em referência a esta mesma pesquisa, Frei Betto comenta
no artigo "Dia da Criança: cidadão ou consumista?" que são menos felizes as crianças influenciadas pelas ideias de que sexo independe de amor,
a estética do corpo predomina sobre os sentimentos e a felicidade reside na posse de bens
materiais. Entretanto, os pais não percebem com
facilidade esta infelicidade.
Consumo e felicidade se confundem na cabecinha dos inocentes seres de 1 a 6 anos e nos
nem tão inocentes de 7 a 13 anos. Como receber enxurradas de mensagens que ordenam e
seduzem, ditando a boneca do momento ou o
carrinho que faz as acrobacias mais "maneiras",
as roupas que mais os fazem parecer com artistas do cinema, os produtos que os tornarão mais
adultos e livres para escolher e determinar o que
querem, e não mais pedirem aos pais? Como
eles podem não querer tudo o que surge nas
propagandas esteticamente perfeitas, coloridas
e sonoras, que sugerem que a felicidade pode
ser encontrada em cada brinquedo, em cada produto apresentado? É impossível resistir à frase
"Eu quero...", "Eu preciso...". No livro Crianças do
consumo - a infância roubada, Susan Lin pergunta: "Como pode uma família, sozinha, proteger
os filhos de uma indústria que gasta US$ 15 bilhões anualmente para manipulá-los?"
E esse é o novo estratagema dos magos do
marketing para as crianças - manipulá-las não só
sobre querer consumir, mas sobre como consumir, já que elas mesmas não podem ir ao shopping sozinhas e pagar pela compra. Além de criar
na cabecinha delas uma necessidade, que não
existe, eles ensinam, de maneira sutil e quase
imperceptível aos menos atentos e desavisados
- e neste grupo estão prioritariamente as crianças - como se deve fazer para se ter o que quer.
Agora, mais do que querer um determinado produto, a criança é induzida a argumentar com os
pais a sua necessidade. Não estranhe quando
entrar em uma loja de brinquedos e encontrar os
filhos dizendo aos pais "mas mãe, você não entende, eu preciso dessa boneca. Ela será minha
amiga e companheira, vai me ajudar a passar o
tempo quando estou sozinha em casa, vai me
fazer companhia enquanto você vai trabalhar".
Bingo! Quase com lágrimas nos olhos e um arrebatador sentimento de culpa, a mãe se dirige ao
caixa com a boneca e mais meia dúzia de acessórios que compensam a criança pela ausência
dos pais em algumas horas do dia.
E, uma vez que a fórmula funciona, não há
mais caminho de volta. A criança passa a se especializar na argumentação até ter tudo o que quer
ou até que os pais retomem a consciência e a rédea da situação e se lembrem da aplicação das
palavras educação, limite, consumo e respeito.
Apesar disso, não é a atitude da criança que
deve ser condenada. Ela foi colocada oito horas
por dia em frente a uma babá eletrônica que emite
som e imagens com o consentimento, e às vezes por determinação, dos pais. E não vamos
entrar aqui na polêmica dos milhares de "desculpas" do mundo contemporâneo: preciso trabalhar, não tenho com quem deixar, não tenho
como sair do trabalho para ficar com o filho, quando estou em casa tenho tantos afazeres que não
dá tempo de brincar, não dá tempo de conver-
sar, eu queria muito, mas... Todos somos reféns
desta dinâmica familiar. Mas todos devemos
assumir verdadeiramente o papel de educadores quando se trata de tecer as tramas, os tecidos, a cadeira de relações que moldarão a adolescência e a vida adulta destas crianças.
"Crianças são seres miméticos por natureza.
A melhor maneira de interessar um bebê em
música é colocá-lo ao lado de outro que já tenha
familiaridade com um instrumento musical. Ora,
o que esperar de uma criança que presencia os
pais humilharem a faxineira, tratarem garçons
com prepotência, xingarem motoristas no trânsito, jogarem lixo na rua, passarem a noite se
deliciando com futilidades televisivas?", argumenta Frei Betto em seu artigo. E não há argumento melhor. As crianças são o reflexo dos pais
em casa, dos professores e colegas na escola.
Elas agem, até certa idade, por reflexo. Depois,
por comparação.
O Instituto Alana, dedicado à questão do consumo na infância, criou um manual "O que fazer
para proteger nossas crianças do consumo". Uma
das primeiras considerações diz que "questionando, denunciando abusos, orientando e dizendo
não sempre que preciso poderemos deter este
ciclo nitidamente vicioso onde a criança manipulada manipula os pais e estes, manipulados também, cedem ao apelo consumista, confundindo
amor com permissividade".
Talvez o que nem todos tenham é preocupação ou o entendimento de como orientar a criança sobre o que ela vai receber nestas oito horas
diárias. A primeira e, acredito, mais importante
atitude a tomar é o diálogo, importante para o
contraponto da instantaneidade das mensagens,
para a descartabilidade dos produtos, que se
estende às pessoas, para a construção da autonomia e da liberdade de escolha frente à imposição da mídia, para que se teçam relações sólidas,
saudáveis e de confiança para que a criança encontre um porto seguro em meio ao mar de ansiedade criado pelo desejo de consumo. E todo
momento disponível deve ser aproveitado para
se ter uma boa conversa com os filhos. Sem formalidades ou imposições, apenas uma boa e equilibrada conversa que fará toda a diferença.
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Como habituar
os filhos ao uso
moderado da TV
A televisão é o meio mais poderoso para
a formação do hábito de consumo. Por
isso, aí estão algumas ideias para moderar a exposição da criança à TV:
•
Diminuir o número de televisores em casa e retirar os aparelhos dos quartos das crianças ou evitar colocá-lo ali.
•
Dividir o tempo frente à TV com outros membros da
família pode levar a conflitos, mas também pode ajudar as crianças a aprender regras importantes como
negociação, cooperação e comprometimento.
•
Limitar o número de horas frente à TV é fundamental para as crianças de qualquer idade, lembrando que quando a criança é pequena, fica ainda
mais fácil fazer isso: "É de pequenino que..."
•
Desligar a televisão durante as refeições, além de
diminuir a exposição à publicidade, permite que a
criança se concentre no que está comendo e per-
28
ceba quando já está saciada, evitando, assim, os
riscos de distúrbios alimentares.
•
Os pais de bebês e de crianças com menos de dois
anos podem atender as recomendações dos profissionais de saúde mantendo-os longe das telas
o quanto puderem.
•
Não fique atraído por vídeos e jogos de computador para crianças pequenas que alegam aumentar o seu QI e torná-las mais espertas. Eles
não fazem isso.
•
A TV ligada, como barulho de fundo enquanto as
crianças brincam, interfere na concentração das
mesmas produzindo efeitos negativos no desenvolvimento de sua inteligência.
O QUE OS PAIS PODEM
FAZER... EM CASA
o Antes de podermos ajudar as crianças
a lidarem com as suas vulnerabilidades temos que entender as nossas
próprias, incluindo as tendências de
gastar demais ou de nos voltarmos aos
produtos como forma de gratificação.
o Podemos criar o hábito de fazer coisas junto com nossos filhos que não
envolvam a mídia tais como: ler, jogar
cartas ou brincar com jogos de tabuleiro, cozinhar juntos ou tocar instrumentos.
o É importante conversar com as crianças ajudando-as a captar o real objetivo da publicidade para que elas comecem a captar as suas atitudes em
relação a ela.
o Encontre maneiras de ajudar as crianças a descobrir o significado das celebrações que vão além do comercial e
da quase sempre compulsória troca
de presentes.
o Participe de eventos nacionais tais
como Semana do Desligue a TV ou Dia
sem Compras.
CRIANÇAS DO CONSUMO - A INFANCIA ROUBADA
AUTOR: SUSAN LINN
Editora Alana
Em 'Crianças do consumo', a psicóloga Susan Linn faz um estudo detalhado do 'mercado infantil', como é conhecido pelos profissionais da publicidade, realizando um exame dos paradigmas da infância moderna
corrompida por interesses comerciais vindos
de todos os lados. As crianças são a bola da
vez do marketing, alvos de tudo, desde brinquedos até a indústria de fast-food. Todos
os aspectos da vida das crianças - saúde, instrução, criatividade e valores - estão correndo o risco de serem comprometidos
pelo seu status no mercado consumidor. Apoiada em histórias
reais do marketing para crianças, teorias do desenvolvimento
infantil, nas pesquisas mais recentes sobre o tema e até na opinião dos profissionais de marketing sobre o seu trabalho, Susan Linn revela a gravidade do problema e mostra o que pode
ser feito sobre o assunto.
A FELICIDADE PARADOXAL
ENSAIO SOBRE A SOCIEDADE DE HIPERCONSUMO
AUTOR: GILLES LIPOVETSKY
Editora Companhia das Letras
Luciana Nogueira Nascimento é
formada em Jornalismo pela
PUCPR, especialista em Marketing
pela FAE Bussiness School. É exaluna e assessora de comunicação e
marketing do Colégio Medianeira.
O consumo traz felicidade? Tentando entender a ambigüidade de uma época em que a
felicidade é valor máximo, mas carrega consigo inúmeras aflições do espírito, Lipovetsky cria a tese de que, na sociedade de
hiperconsumo, essa felicidade é paradoxal.
De um lado, estão dadas as condições para
que as aspirações individuais sejam satisfeitas pelo mercado; de outro, também estão
postos os obstáculos que se contrapõem à postura hedonista do
indivíduo contemporâneo. O hiperconsumidor tem acesso ao ter,
mas aspira a ser; os mais diversos prazeres sensoriais estão ao seu
alcance, mas é preciso preservar a saúde, evitar os excessos, fazer
regime, manter a forma. O que Lipovetsky propõe é a reavaliação
da formação do indivíduo, com vistas ao fortalecimento da autonomia e da crítica, para que se possa resistir à sedução feérica da
publicidade e do espetáculo.
29
MACACOS
como
lembranças?!
Por Danielle Mari Stapassoli
Erguer uma estátua a quem diz que pode chegar no Brasil,
explodir tudo e ainda receber macaquinhos como souvenires é
sintoma de que algo não está certo. Como desenvolver e
vivenciar valores morais e éticos coletivos, quando aquilo que
priorizamos é o individualismo e o espetáculo?
30
P
Estamos envoltos em situações amplamente
noticiadas nos meios de comunicação que nos
dão a forte sensação de impunidade, do menosprezo da legalidade. Menores que cometem crimes cruéis e que não são devidamente punidos,
ou, pior ainda, que os cometem por saberem que
não serão duramente punidos e que são utilizados como soldados por pessoas que planejam
e articulam os crimes; homens ditos figurões da
política, da economia, que desviam grandes verbas públicas da saúde, da educação, ou que simplesmente guardam em casa grandes somas de
dinheiro (sonegação? falcatruas?); jovens que
circulam com carrões de seus pais em alta velocidade atropelando e matando outros jovens;
policiais que atiram em vias públicas e que matam inocentes com balas perdidas...
Questões como segurança pública e vida política no Brasil parecem caóticas. Estamos em
ano eleitoral e o que ouvimos dos candidatos?
É hora de avaliar, de usar as notícias divulgadas
para escolher nossos representantes políticos.
No Paraná, conforme noticiado em jornais de
grande circulação, nos últimos quatro anos,
muitos políticos tiveram um aumento médio em
seu patrimônio de 150%. Com certeza, uma aplicação financeira muito rentável que a grande
maioria da população desconhece!
No contexto nacional, a maioria dos programas de TV noticia, numa disputa frenética por
IBOPE, cada vez mais e mais situações que nos
deixam deprimidos diante da nossa realidade.
Programas que desrespeitam a vida humana,
banalizam ações criminosas, fragmentam notícias na superficialidade da informação sem reflexão. Em um momento, a dor, a revolta de um
pai, e, logo em seguida, para esquecer, a convocação da nova seleção brasileira!
Como ter orgulho de ser brasileiro quando
as notícias que circulam sobre nós em escala
mundial são em tantos aspectos negativas? Até
mesmo astros hollywoodianos megalomaníacos se acham no direito de dizer que aqui é permitido matar pessoas, explodir tudo e que ainda damos macacos como lembranças!
No entanto, como numa espécie de garim-
po, alguns programas de TV ainda se propõem
a discutir estas questões com mais profundidade. Funcionam como uma luz no fim do túnel, ou melhor, como uma rara mina de extração. Foi bom perceber em um mesmo dia, e
em horários diferentes, três programas que
discutiram os problemas sociais brasileiros.
Logicamente, foram transmitidos em horários
pouco assistidos pela grande maioria da população. O primeiro deles era local e abordava a
eficiência ou ineficiência do sistema penitenciário no Brasil e no Paraná. O segundo, o Roda
Viva, entrevistava a escritora e especialista em
medicina do comportamento, Ana Beatriz Barbosa Silva, que discutia os distúrbios de comportamento em todas as esferas da vida social.
E o terceiro programa entrevistava um jurista e
discutia a ação policial na sociedade brasileira.
Com relação à entrevista no programa Roda
Viva, a escritora colocou que a sociedade moderna privilegiou a liberdade individual e que
isto se tornou hoje a grande contradição de nossa sociedade. Como desenvolver e vivenciar valores morais e éticos quando se prioriza a individualidade? Arnaldo Jabor, em seu texto “Os
psicopatas são os novos heróis do cinema e da
TV” (2008) faz uma reflexão muito interessante
sobre nossa sociedade, baseando-se nos estudos de Ana Beatriz B. Silva, quando diz que o
psicopata é um prenúncio do futuro, quando todos seremos assim para sobreviver. A psiquiatra também colocou a importância da criação
dos limites, da disciplina firme que deveria começar na família e continuar em todos os espaços sociais. Regras claras e imparciais são ações
que buscamos construir. Será possível?
O fato é que a discussão sobre o comportamento humano e, neste caso, brasileiro, merece
sim grande atenção por parte da sociedade e dos
educadores. Os espaços sociais privilegiam cada
vez mais a individualidade e a busca pelo estrelato. Anos atrás, com famílias numerosas, a primeira experiência social que tínhamos como crianças era a de um lugar coletivo, uma casa cheia
de irmãos, primos, tios e tias. Por isso, havia a
necessidade de se aprender a buscar uma individualidade na qual se descobrisse a própria identidade na coletividade. Era necessário dividir e,
depois, conquistar um espaço. Hoje, o movimen-
31
to é contrário. A primeira experiência que se dá
às crianças, em grande parte das famílias de classe média e alta, é a do reforço da individualidade. Depois, mais tarde, ao frequentar a escola, é
que a criança passa a vivenciar espaços mais coletivos e tenta construir a noção de coletividade
que deveria vir do próprio conceito de família.
No entanto, a noção de família modificou-se. Não
que seja para melhor ou para pior, coloco aqui
que apenas “modificou-se”, acompanhando as
próprias modificações que ocorreram nas sociedades. O que parece preocupante nesta modificação é o desaparecimento da importância dos
papéis sociais na formação dos valores: pai, mãe,
tios e avós. As crianças não são mais incentivadas a conviverem com os mais velhos e não
aprendem a respeitá-los e valorizá-los, nem dentro da família e muito menos na sociedade. Se
eu não vivencio momentos nos quais possa entender a importância destas pessoas na minha
vida, como posso entender a importância destas pessoas nas vidas das outras pessoas? Nesta
nova configuração, os mais velhos – se não quiserem ser esquecidos como objetos usados – é
que devem correr atrás das crianças, devem buscar a eterna juventude. Valorizamos prédios históricos, viajamos para longe em busca da arte e
da cultura, mas esquecemos das histórias dos
nossos familiares. Num contexto maior, desvalorizamos nossas raízes indígena e africana. Aqui
no sul, é quase uma regra considerar que todo
cidadão descende de italianos, alemães, ucranianos... mas se há na família um membro indígena
ou negro, será que consideramos que isto faz
parte da nossa nacionalidade e que por isso mesmo somos BRASILEIROS? Talvez seja por isso
que valorizamos mais os outros (das nações ditas desenvolvidas) do que nós mesmos. Por acaso, por sermos descendentes de europeus registrados em nossos nomes, somos menos brasileiros em outros países? As notícias nos mostram que não. Não cuidamos da nossa própria
casa, não a valorizamos, não lutamos para fazer
dela um lugar bom e digno para viver. Por isso,
quando comentários como o de Sylvester Stallone explodem em nossos ouvidos como bombas absurdamente irritantes, ainda é preciso
engolir um profundo vazio de decepção e de
que há muito o que fazer.
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Outro dia, acessando o site
da TV Cultura em busca de vídeos, encontrei um com o
tema: “Brasil-Portugal: lá e cá”,
no qual há uma troca de visões
sobre as culturas destes dois
países, discutidas entre os jornalistas Paulo Markun, do Brasil, e Carlos
Fino, de Portugal. É triste constatar o
que já sabemos: muitos portugueses (é
claro que não só eles) veem o Brasil como
um país muito inseguro para morar. Sabemos que nossas maravilhas naturais são atrativas para os turistas estrangeiros e agora até para,
novamente, os megalomaníacos hollywoodianos.
Porém, sabemos também que a imagem que circula sobre a sociedade brasileira é justamente a
que mais nos esforçamos, sem sucesso, para combater: a de uma sociedade violenta, corrupta, com
muito tráfico e prostituição. Quantas de nós, mulheres, não nos sentimos envergonhadas por sermos brasileiras quando sabemos de notícias que
vinculam a mulher brasileira à exploração sexual
fácil e farta em nossas belíssimas praias?
Uma questão para refletirmos agora em época de eleição diz respeito à colocação do Brasil
em alguns rankings mundiais. Recentemente, tivemos a Copa do Mundo de futebol e, para a
tristeza de muitos e muitos brasileiros, o Brasil
ocupa hoje a 8ª. colocação mundial. Muito triste, não é? Mas o que dizer da sua colocação
quanto à educação? No ranking do índice de desenvolvimento humano, o Brasil ocupa hoje o
88º. lugar, atrás do Paraguai, Equador e Bolívia.
Isto não deveria ser de suma importância para
nossos governantes e até mesmo para a população? Não parece ser mesmo, o que fica bem
evidente quando acompanhamos a discussão
sobre a decisão de Curitiba ser ou não uma das
cidades-sede para a Copa de 2014. De onde virá
o dinheiro para a reforma do estádio de futebol, cerca de 130 milhões? Isto só para o estádio, sem contar com todas as obras necessárias, em áreas já valorizadas, e as inúmeras licitações públicas com atos ilícitos.
Enquanto isto, em revistas de circulação
nacional, nós, educadores, nos sentimos de
mãos atadas quando somos expostos como profissionais incapazes de oferecer uma educação
de qualidade aos nossos alunos
“desmotivados”. Onde está a
verba da educação para escolas públicas, transporte escolar,
valorização do profissional? Talvez esteja nos 150% de aumento
de patrimônio de nossos políticos
ou nas verbas para obras públicas que
não se concretizam.
É ano eleitoral e os “macacos” como
lembranças estão à solta! Avalie. Pesquise.
Acompanhe. Converse com seus filhos sobre
a realidade em que vivemos. Na maioria das vezes, as crianças ouvem os assuntos que estão circulando na mídia e têm uma opinião sobre o assunto, seja porque ouviram em casa ou na escola
entre os colegas. Esta opinião, quando discutida
e orientada, acaba por assumir a forma do grupo
ao qual pertencem. Que valores nortearão suas
ações e escolhas? É importante fazer uma reflexão sobre os assuntos que estão em evidência
com as crianças. Por mais simples que seja, esta
ação faz a criança criar vínculos afetivos com suas
referências de comportamento: pais, irmãos mais
velhos, tios, avós, professores... Leia ou assista a
algumas notícias, informalmente, e comente-as
com eles, valorizando a opinião em formação,
acrescentando pequenos questionamentos que
os façam refletir sobre suas próprias opiniões.
Além de conhecerem a realidade em que vivem,
conseguirão participar de discussões em aula,
sentindo-se participantes, terão como argumentar suas opiniões, poderão expandir suas próprias
ideias em textos, fazer questionamentos... Não
discutir estes assuntos com as crianças, quando
necessário, é ignorar seu amadurecimento, seu
crescimento, e o papel que cada um de nós tem
na formação da sociedade que queremos!
O QUE É O BRASIL?
AUTOR: ROBERTO DAMATTA
(Comente este artigo em
[email protected])
Danielle Mari Stapassoli é Graduada em
Pedagogia (PUCPR), especialista em
Organização do Trabalho Pedagógico (UFPR)
e também em Currículo e Prática Educativa
(PUC-RJ). No Medianeira, professora de
História e Geografia da 4ª série.
O QUE FAZ O BRASIL, BRASIL?
Editora Rocco
AUTOR: ROBERTO
DAMATTA
Roberto DaMatta é conhecido pelos ensaios
antropológicos que escreve para adultos. Só
que agora seu brilhantismo pode ser desfrutado também pelo público infanto-juvenil. Em
O que é o Brasil?, um ensaio que faz parte da
coleção Palavra da Gente, o professor leva a
garotada a pensar a identidade brasileira a
partir dos aspectos mais populares e conhecidos da sociedade: a casa, a rua, as relações raciais, a comida, as mulheres, o carnaval, a malandragem e a religião. Como é que sei o que sou? Como se
constrói uma identidade nacional? Como um aglomerado de gente
se transforma num Brasil? Essas são as perguntas levantadas por
Roberto DaMatta neste ensaio, cujas idéias são, muitas vezes, polêmicas. Isso porque sua primeira função não é a de convencer, mas a
de provocar o debate e estimular o pensamento. No livro, o objetivo
do autor é mostrar a seu novo público que a identidade de um povo
se revela através das pequenas coisas e que essas pequenas coisas
são capazes de render entusiasmadas discussões.
Com a exposição e análise das
mais expressivas manifestações
culturais brasileiras formadoras
da sua identidade como nação,
Roberto DaMatta procura responder a pergunta título de seu livro
- ‘O que faz o Brasil, Brasil?’. Ao
examinar os grandes acontecimentos como o Carnaval, o Dia
da Pátria, as procissões religiosas, os hábitos alimentares, o futebol, a política e as artimanhas de seus representantes, a economia, o jeitinho com que são dribladas as dificuldades - todos elementos formadores da nossa brasilidade -, Roberto DaMatta tenta explicar como os vários brasis se ligam entre si, fazendo ver que é através da cultura, por mais
variada e extensa que seja, que uma sociedade se expressa e pensa sobre si mesma.
Editora Rocco
33
O lazer
no
MUNDO
moderno
Por Marcelo Pastre
O lazer pode ser utilizado como uma possibilidade
múltipla de visualização da sociedade local e da
vida urbana. É necessário pensar no lazer como um
símbolo, uma nova referência da civilização, uma
representação que se constitui como matriz de
práticas construtoras do mundo social.
34
S
Situar o lazer no mundo moderno significa
identificar mudanças, decifrar continuidades,
reconhecer diversidades e desvelar desigualdades. É o contraste e a coexistência de antigas manifestações e modos de vida não dissolvidos convivendo com o novo, com novos
costumes e hábitos culturais.
A compreensão do lazer utilizada neste artigo
está baseada nos estudos de Norbert Elias e Eric
Dunning, em seu livro A Busca da excitação: desporto e lazer no processo civilizacional, no qual
identificam o lazer como um elemento estratégico para conhecer a sociedade. Seus estudos apontam para a possibilidade de discutir o lazer e o tempo livre na sociedade moderna como conceitos
diferentes entre si e, sobretudo, não tomando
como ponto de partida a categoria trabalho.
Para eles, o lazer é visto como uma esfera pública, em que as decisões individuais podem ser
tomadas tendo em vista a satisfação, os impulsos
e os sentimentos de cada indivíduo. O lazer não
pode ser analisado como se obedecesse a uma
finalidade predeterminada, pois depende das configurações de poder entre os indivíduos e entre
grupos, as quais são dinâmicas e estão fundadas
em relações de interdependências.
Nas sociedades contemporâneas, as atividades de lazer ocuparam um espaço antes reservado às atividades religiosas e às crenças, no relaxamento das restrições impostas ao indivíduo
e à sociedade. Através dessas atividades, estabeleceu-se uma maior ou menor tolerância pública à exteriorização de manifestações da excitação. Por intermédio destas atividades de lazer,
estabelece-se na vida cotidiana da sociedade
moderna o equilíbrio de tensões posto pela relação complementar entre a busca da excitação
e o controle das emoções.
As atividades de lazer dentro dos limites estabelecidos socialmente permitem experiências
emocionais que normalmente não são vividas
nas atividades rotineiras. A emoção explicitada
em público, quer seja “real”, quer seja representada, é sempre objeto de observação, o que em
si já é um potencial controle, ou seja, o descontrole emocional controlado em que a restrição
rotineira de emoções pode, até certo ponto, ser
publicamente reduzida e com aprovação social,
em um autodomínio dos impulsos e sentimentos, mais do que qualquer outra atividade.
Para Elias, a civilização resulta também de
um processo de mudanças no nível de controle das emoções. Nível esse que também está
intrinsecamente relacionado com o crescente
grau de entrelaçamento e interdependência
entre as pessoas que compõem a sociedade.
O nível de controle das emoções de qualquer
sociedade é diretamente proporcional ao grau
de “civilidade” dessa sociedade, ou seja, quanto mais elevado for esse patamar, mais distante essa sociedade estará da barbárie.
Buscando reforçar as ideias até aqui apresentadas da relação do lazer e das emoções, tomaremos o estudo de Ademir Gebara, “Sociologia
configuracional: emoções e lazer” (em Lazer e
Ciências Sociais, diálogos pertinentes), o qual
retoma algumas questões relativas a esta relação, que são reivindicadas pelos configuracionistas como uma das grandes contribuições
para o estudo da área.
O lazer deve ser compreendido tendo em vista as transformações não planejadas das configurações da sociedade, em uma perspectiva de
longa duração. Decorre dessa afirmação que a
questão do lazer, para os configuracionistas, assenta-se sobre três aspectos fundamentais:
1. O lazer moderno não é sinônimo de liberdade,
é sim um efeito histórico específico, afetando
situações de equilíbrio e restrições em suas
múltiplas esferas; o lazer hoje é mais privatizado, individualizado, comercializado e menos
violento. A junção destas facetas modernas do
lazer explica-se pela complexidade e generalidade das relações sociais (interdependências),
emergentes na civilização urbano-industrial.
2. O descarte de emoções violentas, espontâneas e intensas na sociedade moderna devese ao alto desenvolvimento de limiares de
contenção “civilizada”, tomando-se em consideração nosso passado mais distante.
3. O lazer moderno é uma atividade crescentemente correspondente a formas de comportamentos miméticos (representações). Para pre-
35
O lazer pode ser utilizado como uma possibilidade múltipla de visualização da sociedade local
e da vida urbana. É necessário pensar no lazer
como um símbolo, uma nova referência da civilização, uma representação que se constitui como
matriz de práticas construtoras do mundo social.
Enquanto representação da sociedade, as práticas do lazer devem ser tomadas como um estudo particular, como uma formação social na
qual se definem de maneira específica as relações existentes entre os sujeitos sociais e as dependências recíprocas que ligam os indivíduos
uns aos outros, produzindo códigos e comportamentos originais.
cisar o sentido desta afirmação, afirma-se que
as atividades de lazer, de jogo, de brincadeiras
permitem emoções intensas, porém controladas, de tal maneira que, em público, a moderação é um componente destas atividades.
Cabe aqui a afirmação de pensarmos mais e
melhor sobre o papel do lazer como um símbolo, uma nova referência, enquanto portador do
signo da modernidade e da civilização.
Marcelo Pastre é coordenador do Ensino
Médio do Colégio Medianeira. Licenciado em
Educação Física (UFPR), é mestre em Mídia e
Conhecimento – Engenharia de Produção
(UFSC) e doutor em Educação (UNIMEP).
O PROCESSO CIVILIZADOR: FORMAÇÃO DO
ESTADO E CIVILIZAÇÃO. VOLUME 2.
A BUSCA DA EXCITAÇÃO: DESPORTO E
LAZER NO PROCESSO CIVILIZACIONAL
AUTOR: NORBERT ELIAS
Editora Jorge Zahar
Neste segundo volume, Elias examina
as condições sociais, econômicas e políticas que provocaram mudanças na
sociedade européia, desde os tempos
de Carlos Magno até o século atual. Baseando-se em grande volume de dados
históricos, sociológicos e psicológicos,
formula uma originalíssima teoria sobre
a formação do Estado. Este verdadeiro
clássico na historiografia sobre o tema
é considerado por estudiosos de psicologia, sociologia e história uma das maiores obras interdisciplinares das últimas décadas.
36
(Comente este artigo em
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AUTOR: NORBERT ELIAS
E ERIC DUNNING
Editora Difel (Lisboa)
Por que razão a sociedade industrial gasta grande parte do
seu tempo de lazer em esportes
que tendem para a violência?
Como relacionar a violência
dentro e fora das atividades esportivas com as necessidades e
as orientações sociais e psicológicas? Eis duas das questões
da maior atualidade a que este
livro, escrito por dois sociólogos consagrados, procura dar resposta.
PSIU...
não espalha,
mas sou
apaixonado
por
PARATY
Por Francisco Carlos Rehme
Não tem como não espalhar: Paraty, no Rio de
Janeiro, é um mosaico muito bem engendrado
de elementos como a terra, o ar, o mar e o ser
humano, cheio de sonhos materializados em
palavras, livros e aventuras.
37
A
Assim com “Y” mesmo, já que nos transporta aos tempos coloniais (e nos transporta
no balanço do lombo das mulas, já fatigadas,
mas ainda assim teimosas, persistentes “feito
mula”, desde a descida da Serra da Bocaina).
Combina mais com o jeito de ser da cidade:
caprichosamente parada no tempo e inteligentemente plugada ao tempo.
ções que duram a eternidade mesmo. As páginas amarelecidas de Paraty, com plagas de bolor
e poeira acumulada não desagradam. Ao contrário, é o charme de quem naturalmente envelheceu. A avançada idade de uma das primeiras cidades nascidas em território americano se revela na bem conservada arquitetura de seus sobrados, das igrejas e no calçamento de suas ruas.
Assim, andar – e só se pode andar: os automóveis são impedidos de circularem na parte
histórica da cidade – pelas estreitas ruas centrais da velha Paraty é caminhar por alguns capítulos do livro de história do Brasil. Capítulos
de belos enredos, dramáticos desfechos, repletos de heróis anônimos e de muito sofrimento. O pé de moleque do calçamento das
ruas, por tanto tempo pisado pelos pés descalços de moleques e marmanjos negros, calado, conta histórias da colônia.
Vá pelo meio da rua e perceba: ele é propositalmente mais baixo para facilitar o escoamento das águas das chuvas e do próprio mar. Do
mar mesmo! Pois, nas marés de sizígia, a preamar lava as ruelas mais próximas do porto. Em
quase todas as esquinas, nos cruzamentos de tais
ruas, sutilmente a maçonaria deixou sinais de sua
presença politicamente poderosa. O triângulo
maçom, quando não está evidente nas fachadas
dos sobrados, se insinua de alguma forma pelas
calçadas, pelas paredes caiadas, pelos portais de
madeira, algo entre o secreto e o notório.
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Ocorre que há pouco tivemos a oitava edição
da FLIP. Parece nome de personagem de desenho animado, de história em quadrinho. Pode ser
isso tudo, mas é ainda mais: a Feira Literária Internacional de Paraty é um encontro de gente que
curte ler, com quem curte aquele que curte ler,
com esses e essas caras que inventam vida em
folha de papel, os escritores. Não vou dizer que
não podia haver outro lugar, senão Paraty... xi! já
disse. Existiriam sim algumas outras cidades no
Brasil que abririam suas páginas para que milhares de apaixonados leitores as lessem.
Mas, convenhamos, se você conhece Paraty,
com todo respeito a sua opinião, creio que há de
concordar que o casamento entre a literatura universal e a geografia local é dessas raras institui-
38
Na calada da noite – é verdade que a noite por
lá se cala bem mais tarde, sobretudo em dias de
festa –, sentado no banco da praça diante de uma
das tantas igrejas, quem sabe você ainda ouça o
som de castanhola do tropel que transportava
ouro das minas gerais até o porto. Ao sentir a
brisa, pode ser a terra lhe sussurrando no ouvido uma trama entre piratas, tupinambás e negros
fujões, pronta para macular a ordem lusitana,
supostamente solidificada como a pedra da praça que estampa a já gasta cruz de malta. Dizem
os antigos que essa mesma brisa, quando dobra
as quadraturas das esquinas, entoa as melodias
dos bailes dos avarandados palacetes dos barões
do café que mandavam na cidade.
O mar de Paraty também faz parte desse precioso livro de história, geografia, romance e que
imagino ter o título em letras douradas e lom-
bada em couro. Do velho porto não se vislumbram mais galeões e caravelas. Mas, pode se
embarcar noutro barco e navegar pela baía, lavar a alma com o vento e borrifo das ondas quebradas na proa. Vá longe e pare em alguma ilha,
onde há praias magníficas e sossegadas. Outras
nem tanto. Algumas têm dono. Fico a me perguntar: alguém de fato pode ser proprietário de
um pedaço do mar, de praias, de uma ilha? Não,
não precisa responder, prefiro permanecer na
minha santa ingenuidade...
O mar de Paraty encanta. Ele embalou um dos
mais ilustres filhos dessa terra: Amir Klink. Amir
ouviu o canto da sereia e logo voltou para o mar.
Uma vez ele saiu da costa africana e foi para onde
apontava o seu nariz: veio parar em Paraty. Outra
vez, ele saiu de sua terrinha natal, onde faz escalas curtas e só parou na Antártida. Esperou o gelo
derreter, desprendeu o veleiro e... sossegou?
Claro que não! Foi para o polo ártico, noutro lado
do mundinho que para ele é ainda mais azul. Alguém o vê fora do seu barco, longe do mar? É
Capelo Gaivota em pessoa.
Não bastasse a beleza histórica da cidade, a
aura literária que orna os beirais de suas casas,
os recônditos santuários de vida marinha e insular que se espremem entre os morros, nas cos-
tas de Paraty tem mais espetáculo: a Serra do
Mar, donde se debruça a Floresta Atlântica e descem cascatas em águas cristalinas e geladas.
As costas de Paraty... é que ela é o tipo da cidade – com a permissão de Italo Calvino – que
tem rosto, tem coração e tem costado também.
O rosto você descobre quando chega da baía da
Ilha Grande e divisa o casario de Paraty no horizonte. Não tenha dúvida, trata-se daquele encontro fatal de olhares e que te fisga para toda a vida.
Os olhos castanhos, coloniais, caiçaras da cidade com reflexos de sol e mar na vidraça das janelas faiscando nos seus. Bem, aí é tarde: você
chegou ao coração da cidade. Caia fora se puder
ou admita, mesmo que discretamente, sua paixão por Paraty e seu entorno, que tão dignamente a moldura.
(Comente este artigo em
[email protected])
Francisco Carlos Rehme, o Chicho, é
geógrafo, professor de Geografia de 5ª. série
do Ensino Fundamental e da 3a. série do
Ensino Médio no Colégio Medianeira.
Especialista em Geografia Física – análise
ambiental pela UFPR e em Currículo e Prática
Educativa (PUC-Rio) é mestre em Geografia,
dentro da linha de pesquisa “Dinâmica das
Paisagens” (UFPR).
OLHARES: ANGRA, PARATY E RIO CLARO
AUTOR: NELIO RODRIGUES
Editora Desiderata
Seleção de fotografias de Nélio Rodrigues e de textos literários de diversos autores nativos sobre a região de Angra
dos Reis, Paraty e Rio Claro, que retratam as características
dos habitantes, seus costumes, o artesanato e sua interação com a paisagem.
39
um
AUTOR de
EXTRAORDINÁRIA
criatividade
Por Paulo Venturelli
Se os livros oferecidos
nas vitrines e estantes das
livrarias parecem iguais, o
contato com a literatura
do angolano Gonçalo M.
Tavares fará o leitor
perceber o quanto a
linguagem literária pode
ser criativa, inventiva e ter
a propriedade de abrir o
mundo para a
instabilidade do humano.
40
S
Se você costuma ler obras literárias, deve ter
percebido que para a literatura o enredo é fator
secundário. Uma obra de arte genuína neste campo precisa enfocar antes de tudo a linguagem, a
visão de mundo, a prospecção nos personagens,
retratando-os não como gente feito nós, mas na
completude do livro, em que tudo que nos interessa saber sobre os mesmos nos é dado pelo
autor/narrador. Por isto, a prática de leitura é uma
tarefa fundamental na vida. Em constante contato
com o mundo ficcionalizado, você absorve elementos para organizar um pouco o caos do mundo e da vida e, em especial, conhecer-se melhor.
A literatura é um espelho mágico a mostrar como
nossa identidade não é algo sólido, pronto, estratificado e, sim, um processo sempre em construção. O que há de angustiante nisto, apela para a
nossa maturidade: aprendemos que ser maduros
não é ser inteiriço, pleno, sem brechas. Ser/estar
no mundo é um jogo de teatralizações em que o
devir está sempre à nossa porta e o aqui-e-agora
completo e fechado não passa de miragem.
Tais questões podem servir de introdução para
abordarmos um escritor de primeira grandeza que,
apesar de novo, tem causado frisson todo especial com sua obra: Gonçalo M. Tavares.
Este escritor nasceu em Luanda (Angola) em
1970, de pais portugueses e aos três aos transferiu-se para Lisboa, onde mantém sua residência
atual. Em pouco mais de dez anos, sua produção
ultrapassa os vinte livros e foi traduzido para mais
de 30 países. Sua obra é composta por romances, contos, ensaios, poesia e teatro. Há duas
“vertentes” no que ele tem escrito: O Bairro e O
Reino. A primeira série é uma reunião de livros
em que ele homenageia escritores que admira,
seja por meio da ironia, do absurdo, do humor.
Só para destaque: O senhor Calvino, O senhor
Valéry, O senhor Brecht. A segunda série é composta pela tetralogia Jerusalém, Um homem:
Klaus Klump, Aprender a rezar na era da técnica
e A máquina de Joseph Walser (este recém-lançado no Brasil). Nestes últimos Tavares debruçase sobre o mal, mas nega que os romances são
um atestado de descrença na humanidade. Como
ele próprio afirma: “Não diria que o olhar sobre
estes personagens é para tentar ver o mal, mas é
um olhar que tenta percebê-los completamente
humanos. E no limite os comportamentos humanos têm uma base animalesca, que é quase linear
– defender o espaço, o território, sobreviver”
(Folha de S. Paulo, 17 jul. 2010).
O reconhecimento adveio com os vários
prêmios recebidos por Jerusalém: LER/Millennium,
2004; José Saramago, 2005; Portugal Telecom, 2007.
E é sobre este livro que gostaríamos de nos
deter um pouco mais, chamando sua curiosidade para as incríveis inovações praticadas pelo
autor. Jerusalém deixa de ser uma simples leitura e torna-se uma aventura intelectual, daquelas
que alargam nossas vidas e acrescentam uma
dose de pimenta em nossas retinas cansadas
pelo cotidiano esbatido pela rotina.
Em primeiro lugar, o título não indica o local
onde ocorre o a história. Jerusalém só é referida
na citação de um salmo. E é evidente a intenção
do autor/narrador de não nos oferecer elementos para localizar sua narrativa no espaço ou no
tempo, porque estamos diante de uma espécie
de alegoria sobre a brutalidade, que se pode passar em qualquer tempo e lugar, independente de
coordenadas geográficas ou históricas. O que
num primeiro instante parece ser um romance
realista se esfarinha na oscilação entre passado
e presente. Possivelmente, como diz Moacyr
Scliar, o tema seja a loucura, mas a “loucura moral” muito focada no século XIX, quando os psiquiatras pensavam dominar a mente de seus clientes, fato este que gerou entre nós uma obraprima como O alienista, de Machado de Assis.
Sobre o “retorno ao mundo”, depois de passar
temporada no hospício, diz o narrador:
“Esforçara-se por aprender de novo a contactar com
as pessoas normais, e não apenas isso: também com
os dias normais: os dias que esperam pelo humano
para que este decida o que fazer deles. É que durante anos fora treinado no instinto contrário: o instinto de aceitação, de disciplina total, de ordem: o dia
surgia-lhe à frente já preparado, medicado, dir-se-ia
– não no sentido farmacêutico, mas num sentido
quase de engenharia: o dia seguinte estava já resolvido, construído, as perturbações e os exageros haviam sido afastados, a rotina diária era uma simplificação impressionante da existência. Os dias eram
isso mesmo: medicados. E, apesar do esforço, esse
passado no Georg Rosenberg deixara os seus res-
41
tos sobre os anos seguintes, os anos de Aparente
liberdade, os anos em que a doença de Ernst já não
se manifestava. A sua cabeça encontrava-se dentro
dos limites de segurança – tanto para si como para
os outros – mas havia ainda coisas por esclarecer: a
conta do seu mundo interior não estava terminada:
a cabeça não era matéria que permitisse uma fácil
construção de diques; as barragens não barravam,
tudo continuava em circulação, em passagem, os
pensamentos ligavam-se uns aos outros de uma maneira não previsível (...).”
Em suma, o romance é de uma crueza acachapante. Temos um impacto profundo ao avançar por suas páginas. Gonçalo M. Tavares, com
segurança e artesania, implode todos os conceitos que podemos fazer de romance. Se Joyce,
Virginia Woolf e Proust tinham colocado a arte
de narrar num nível insuperável, Tavares vai além,
mesmo que não faça pirotecnias verbais e frasais. A palavra, a frase, o tema, a visão e a forma
de conduzir a trama em suas mãos ganham outra
investidura até agora nunca explorada por ninguém – uma fusão de lírica agreste e inóspita,
com uma ironia catastrófica.
da narrativa. É como se o autor nos desse um
tracejado do que deve ser bordado. Não nos dá
a linha. Esta deve vir de nosso repertório e sensibilidade. E assim, ao ler, vamos complementando aquele bordado, chegando a configurações
que possivelmente não foram de todo previstas
pelo escritor.
Ele abre possibilidades para um gênero que
parecia esgotado (basta ver o número de críticos rosnando que o romance acabou e o grande
número de escritores que não fogem de um registro jornalístico-realista, produzindo com vistas no cinema ou na tevê, como se sua história
fosse um pré-script de um roteiro), porque mesmo mantendo um certo conteúdo que vai da loucura, passa pela medicina, aproveita-se do existencial, mergulha no vazio da vida sem sentido,
no mundo inabitável, na desumanidade das relações, na perplexidade ante ocorrências inesperadas, também consegue explorar a forma de
narrar de modo inovador.
Livre de qualquer escola literária, Gonçalo
Tavares põe na mesa um cardápio alucinante de
ingredientes justapostos, sobrepostos, contraditórios, cingidos por uma liga de temperos que
repelem um ao outro. Num movimento centrífugo, o que ele traz diante de nossos olhos escapa,
num primeiro momento, da racionalidade que
toda leitura precisa manter para ser um exercício de certa lógica e confortável, produtivo e prazeroso, impondo ao ato de ler um trabalho de
construção milimétrica que seja capaz de ir às
minúcias, às entrelinhas, ao subtexto para ganhar
uma certa dimensão daquela racionalidade esgarçada pelas artimanhas do romance.
Faz do narrar um jogo de cartas, em que estas
estão embaralhadas, dão saltos, retroagem e analogicamente se distendem numa configuração
arrebatadora pelo que têm de instigante e provocador para o sentido. O leitor precisa estar
atento na montagem deste sentido, obrigandose a ser um interlocutor sagaz e lúdico, porque
tem diante de si uma palheta de cortes muito
novas e desconhecidas, mas que ele terá de combinar para sair do aparente caos e construir algo
próximo do sentido que em Gonçalo Tavares já
é outra história e não apenas seguir o vai e vem
Gonçalo M. Tavares não é apenas uma revelação nas letras portuguesas, é revelação na literatura universal, porque vem escrevendo de um
modo que ninguém mais o faz no mundo, capaz
de fundir num mesmo plano invenção e um discurso consistente, apontando suas artilharias para
as mazelas do mundo contemporâneo. Sabemos
que o romance hoje está muito confundido com
a indústria cultural – os best-sellers de digestão
rápida e mero entretenimento. Com este autor
português, o romance recupera seu espírito real:
ser um antigênero, um artefato que angustia, faz
42
refletir, desmonta qualquer conforto existencial,
provoca na mente do leitor ilações cruciais por
exigir deste uma nova postura não só diante da
página escrita, mas, principalmente, diante de si
e do mundo. Bakhtin afirma que o romance nasceu do mundo da praça pública, por isso tem um
profundo lastro iconoclasta, ou seja, tira a falsa
cerimônia com que os atos dos homens querem
se ver cercados. A romanesca de Tavares está
neste filão. Suas garras afiadas vão bem de encontro aos absurdos da existência: as hierarquias, as guerras, a infidelidade, o tédio, o horror
de atitudes impensadas, o descompromisso, a
loucura, a falta de solidariedade, o cotidiano
como pesadelo, os desmandos políticos, as tiranias, o esmagamento de um pelo outro, a trapaça e também o humor que se pode tirar das condições mais adversas da vida.
JERUSALÉM
43
Saramago dizia que Gonçalo Tavares não tem
o direito de escrever tão bem estando apenas
na faixa dos 30 anos e vaticinou-lhe o prêmio
Nobel daqui uns trinta anos. Independente disto, é um privilégio lermos um autor de nossa
língua com tal poder de criatividade, de raciocínio tão ágil, de desvestir todas as estátuas e
mostrar como estamos nus diante das voltas
que o mundo dá.
(Comente este artigo em
[email protected])
Paulo Venturelli é escritor. Doutor em
Literatura (USP), é professor da
Universidade Federal do Paraná.
A MÁQUINA DE JOSEPH WALSER
AUTOR: GONÇALO M.
TAVARES
AUTOR: GONÇALO M.
TAVARES
Editora Companhia das Letras
Editora Melhoramentos
O médico Theodor Busbeck anda empenhado em descobrir se o horror está
aumentando ou diminuindo ao longo
da História. Mylia, sua ex-mulher, tem
a capacidade de ver a alma e sofre de
uma dor lancinante no ventre. Acabou
internada num hospício pelo próprio
marido. Gomperz, diretor do hospício,
mantém uma amizade ambígua com
Theodor e desperta cada vez mais ódio em seus pacientes.
Kaas tem as pernas magras e problemas de dicção. Hanna é
uma prostituta que vive com Hinnerk, um ex-combatente que
atemoriza as crianças do bairro. Tratando de relações de dominação, desejo, repulsa e agressividade, Jerusalém costura a vida
desses personagens em direção a um desenlace inesperado.
Ocupados em lidar com os limites da sanidade, todos se sentem
acossados por um perigo sem nome. Num estilo seco e desconcertante, Jerusalém aponta para as dimensões pessoais e coletivas do terror e expõe a capacidade humana de vigiar, oprimir e
torturar.
Com A máquina de Joseph Walser, o
autor de Jerusalém (prêmio Portugal Telecom 2007) volta a atrair as atenções
no Brasil. O romance integra a tetralogia O Reino, dedicada ao mal, e é escrito numa prosa cuja habilidade narrativa é apenas superada pela desenvoltura com que Tavares combina ficção e investigação filosófica. O pacato funcionário Joseph Walser leva uma vida previsível, enquadrada pelos movimentos
repetitivos da máquina industrial que opera. Nem mesmo a
guerra é capaz de afetar a estabilidade de seu cotidiano. Entretanto, Walser tem uma paixão secreta: a enorme coleção
que mantém fechada à chave, protegida até mesmo dos olhares de Margha, sua calada mulher. Pela propriedade com que
trata de temas universais como o poder, a morte e o acaso, A
máquina de Joseph Walser merece ser comparado a obrasprimas perturbadoras como Auto-de-fé, de Elias Canetti, e O
processo, de Franz Kafka.
43
EDUCAÇÃO
INACIANA:
o início de um
percurso...
Por Fernando Guidini
Saiba mais sobre a
Companhia de Jesus e
veja como sua trajetória
está completamente
envolvida no
compromisso com a
educação, sempre
buscando a excelência,
o mais e o melhor para
e com o outro.
44
A
A data do dia 31 de julho marca a festa do Santo fundador da Companhia de Jesus: Inácio de
Loyola (1491-1556). Rememorar uma data como
essa é voltar no tempo e relembrar a história de
Inácio: seus primeiros anos em Loyola, sua estada nas armas como militar, a conversão e os estudos universitários, seus primeiros companheiros, a fundação da Ordem, os trabalhos missionários. Em um contexto social de uma modernidade nascente em meio a conflitos religiosos,
avanços nas ciências, descobertas de novas terras e formação de Estados Nacionais, a Companhia de Jesus se estabelece como um estandarte cristão trazendo em seu bojo o ardor missionário. Inácio imprime em seu grupo de amigos
e companheiros o propósito da contemplação
na ação, convidando os jesuítas a verem Deus
em todas as coisas, e todas as coisas em Deus.
Com a aprovação oficial pelo Papa Paulo III no
ano de 1540, a Companhia se firma como ordem
missionária. O desejo inicial do primeiro grupo
de amigos – ir à terra santa, não se realiza. Decidem, então, colocar-se à disposição do Papa, para
que os enviem em missão segundo as necessidades da igreja. Inácio, já em Roma, assume a
direção e o cuidado do grupo de amigos no Senhor enquanto alguns de seus companheiros
partem em missão por diferentes lugares da Europa, Ásia, África e América.
Dentre os diferentes campos missionários
estabelecidos pelos Jesuítas, a educação se impõe como um vigoroso espaço de evangelização e formação cristã, mesmo que a Ordem fundada não tivesse como primeiro objetivo e propósito a educação. A fundação de colégios ou
universidades não fazia parte dos ideais de Inácio e de seus companheiros que almejavam o
serviço a Deus e à Igreja de uma forma livre e
abnegada, dedicando-se à pregação, confissões
e missões, ministérios apostólicos diretos e correntes na época. Entretanto, o discernimento
constante fez com que esses homens percebessem tanto a necessidade quanto a importância
de se alavancar um projeto missionário capaz de
contemplar a educação, formando bem tanto os
seus, isto é, os Jesuítas, quanto aqueles que se
apresentassem para estudar em um colégio da
Companhia. Tais ideias se encontram referendadas na parte IV das Constituições da Companhia
de Jesus na qual Inácio escreve:
“O fim que a Companhia tem diretamente em vista é
ajudar as almas próprias e as do próximo a atingir o
fim último para o qual foram criadas. Este fim exige
uma vida exemplar, doutrina necessária, e maneira
de a apresentar. (...) Para isso, funda colégios e também universidades, onde os que deram boa conta de
si nas casas e foram recebidos sem os conhecimentos e doutrinas necessários possam instruir-se neles
e nos outros meios de ajudar as almas”. (2004, p. 115)
O primeiro colégio administrado pela Companhia para alunos externos foi em Goa. Registros mostram que já no ano de 1544 os Jesuítas assumiram a direção desse colégio (conforme TAVARES, 2007, p. 121-134). No ano de
1545, dois outros colégios: um na Alemanha;
outro na Irlanda. Em 1546, Gandia, na Espanha.
Percebe-se, portanto, como que desde os primórdios, Inácio admitia e incentivava o apostolado nos colégios, julgando-os, como salienta SCHMITZ (1994), “um dos apostolados prioritários da Ordem, especialmente por causa do
efeito multiplicador que se exercia através dos
formados por eles” (p. 13).
Mas é ao Colégio de Messina, na Sicília, que
compete o estatuto de ser o primeiro colégio
criado pelos Jesuítas para a educação da juventude. Em 1548, a pedido do vice-rei, Dom Juan
de Veja, Jeronimo Nadal e outros nove religiosos deram início ao que seria o primeiro colégio
da Companhia de Jesus. Ao Colégio de Messina
segue a fundação do Colégio de Palermo (1549)
e do Colégio Romano (1551), atual Universidade
Gregoriana. Foi em Messina que pela primeira vez
os Jesuítas “aplicaram um plano de estudos e um
método pedagógico bem definidos, plano de
estudos e método que, posteriormente, viriam a
ser adotados por todos os outros colégios da
Companhia” (GOMES, 1994).
Tal método foi o modus parisiensis. Inácio e
seus companheiros, formados pela Universidade de Paris, não hesitaram em implantar nos colégios da Ordem o método de estudos utilizado
45
nessa Universidade, considerado o melhor em
“matéria de repetições, disputas, competições,
interrogações e declamações” (FRANCA, 1952).
Além disso, o método privilegiava em sua estrutura de estudos a divisão dos alunos em classes,
os exercícios escolares em horários definidos, o
incentivo para o trabalho escolar (premiações) e
a piedade. Como afirma Gomes (1994),
“A concentração do ensino nos Colégios implicou o
encadeamento orgânico das matérias, a articulação
metódica das disciplinas, a sua gradação em níveis
sucessivos, a exigência de sólidas bases gramaticais,
a progressão nos estudos, a estrutura bem aparelhada dos programas e, consequentemente, a divisão dos alunos em classes”. (p. 188)
O método consistia em um conjunto de 467
regras bem distribuídas (provincial, reitor, prefeito de estudos, professores, exames, prêmios,
estudantes internos e externos, bedel, academias). Sua origem se encontra na prática educativa efetuada nos Colégios e na Parte IV das Constituições a qual trouxera as linhas mestras “da organização didática e sobretudo sublinhara o espírito que deveria animar toda a atividade pedagógica da Ordem” (Franca, 1952, p. 16). A intenção do fundador, aplicada à ação dos professores
nos Colégios da Companhia, culminou nessa obra
de importância singular na educação moderna.
A leitura do Ratio como um tratado pedagógico torna-se impossível, pois se trata de um plano de estudos que em seu conjunto universaliza
a proposta educativa da Companhia de Jesus,
precisando, assim como os Exercícios Espirituais, ser vivenciada e colocada em prática. Os estudos inferiores e superiores propostos nos Colégios e mediatizados pelo Ratio, pautaram
“a organização e as atividades de numerosos colégios fundados e dirigidos pela Companhia de Jesus.
Essas instituições multiplicaram-se rapidamente, chegando a um total de 728 casas de ensino em 1750,
nove anos antes da expulsão dos Jesuítas do Brasil
e dos demais domínios portugueses, e 23 anos antes da supressão da Ordem pelo Papa Clemente XIV”
(SAVIANI, 2008, p. 57).
Concentra-se em Messina, portanto, o nascimento do primeiro plano de estudos dos Jesuítas. Segue-se a essa inicial experiência um movimento de estudos e discussões pedagógicas
internas à Ordem que durará meio século. Tal
movimento reflexivo, centrado na prática educativa dos Colégios, culminou no ano de 1599
com a publicação daquele que seria o método
pedagógico dos Jesuítas: o Ratio atque Instituio
Studiorum Societatis Iesu, mais conhecido
como Ratio Sdutiorum.
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Elementos teóricos e pedagógicos subjazem
a presente reflexão. Dentre eles, destaca-se: a filosofia e a teologia presentes na educação jesuítica, a aquisição do conhecimento mediante a didática adotada, a disciplina em sala e a organização dos alunos em classes, a função do professor especialista em seu ofício e disciplina, a administração dos colégios e sua manutenção, a
dimensão da palavra presente nos princípios da
Contra-Reforma Católica e sua força na educação,
a dialogia Igreja-Estado, a organização dos estudos e a manufatura nascente, dentre outros.
Essa discussão, ao volver seu olhar sobre a
história inicial da educação na Companhia de Jesus, abordou sinteticamente alguns dos elementos centrais do projeto educativo jesuítico em
seus princípios, propósitos e método de trabalho pedagógico. A festa de Santo Inácio de Loyo-
la deu forma à reflexão e trouxe à pauta a rememoração dessas ideias, demonstrando, mais
uma vez, a centralidade da pessoa de Inácio frente ao trabalho educativo dos Jesuítas.
Perpassados quase cinco séculos desde a
fundação da Companhia e dos primeiros colégios, considerar-se herdeiro desse grande projeto e optar por essa forma de ensino é, à força
da identidade motriz, responder de forma crítica e ao mesmo tempo criativa aos desafios educativos hoje propostos. Acreditar na educação,
em uma constante leitura e releitura do momento presente por meio do conhecimento, e conceber os agentes envolvidos nesse processo
como sujeitos, torna-se a condição de possibilidade para a educação de pessoas humana e
academicamente equilibradas e inseridas em
seu tempo e espaço. As características presentes na educação da Companhia de Jesus, em sua
pedagogia propriamente inaciana, lançam luzes
sobre esse caminho.
HISTÓRIA DAS IDÉIAS
PEDAGÓGICAS NO BRASIL
(Comente este artigo em
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Fernando Guidini é graduado em Filosofia pela
FAJE-BH, pós-graduado em Comunicação e
Semiótica pela PUCPR e mestrando em
Educação pela PUCPR. É Orientador
Educacional das 5ª e 6ª séries no Colégio
Medianeira.
REFERENCIAIS
BIBLIOGRÁFICOS
CONSTITUIÇÕES DA COMPANHIA DE JESUS. São Paulo: Loyola, 2004.
GOMES, Joaquim Ferreira. O modus parisiensis como matriz da pedagogia dos Jesuítas. In Revista Portuguesa de filosofia. Braga, n. 50,
PP. 179-196, 1994.
SCHMITZ, Egídio. Os Jesuítas e a Educação. A filosofia Educacional da
Companhia de Jesus. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 1994.
TAVARES, Célia C. da S. Francisco Xavier e o Colégio de Goa. In Em
aberto. Brasília, v. 21, n. 78, PP. 121-134, dez. 2007.
ATUALIDADE DA PEDAGOGIA JESUÍTICA
AUTOR: LUIZ FERNANDO KLEIN
AUTOR: DERMEVAL
SAVIANI
Editora Autores Associados
‘História das Idéias Pedagógicas’
é um compêndio sobre a história da educação. O autor divide
a obra em quatro partes - 1. as
idEias pedagógicas no Brasil entre 1549 e 1759 - monopólio da
vertente religiosa da pedagogia
tradicional; 2. entre 1759 e 1932
- coexistência entre as vertentes religiosa e leiga da
pedagogia tradicional; 3. entre 1932 e 1969 - predomínio da pedagogia nova; e 4. entre 1969 e 2001 - configuração da concepção de pedagogia produtivista.
Editora Loyola
A pedagogia jesuítica tem logrado notável atualização no último decênio ao conjugar a fidelidade aos princípios do Ratio Studiorum, o discernimento educativo contemporâneo. Destacase pela ousadia das metas e pelas estratégias
personalizadoras de ensino e aprendizagem. Ressalta a atenção à pessoa amada com atitude básica pra formar homens e mulheres competentes e comprometidos com a transformação das
estruturas injustas da sociedade. Enfatiza a coresponsabilidade dos diversos segmentos da escola em vista de sua
otimização. Empenha-se pela abertura e integração da escola com
outras instâncias da sociedade. Impregnado de valores o processo
educativo, a atual pedagogia jesuítica demonstra sua relevância em
vista do terceiro milênio.
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SAUDADE
Pe. Raimundo Kröth, S.J.
C
Com pesar e profunda tristeza, a comunidade acadêmica do Colégio Medianeira recebeu a notícia do falecimento do ex-diretor Pe.
Raimundo Kröth, aos 68 anos de idade e 47 de Companhia de Jesus. Ele morreu no dia 3 de outubro, às 22h, na Casa de Saúde dos
Jesuítas, em São Leopoldo, RS, vítima de câncer. Seu corpo foi enterrado no Cemitério dos Jesuítas, junto ao Santuário do Pe. Reus,
em São Leopoldo.
Pe. Raimundo dirigiu o Colégio Medianeira por duas vezes. De
1975 a junho de 1986, assumiu diversos encargos como professor,
orientador espiritual, Superior da comunidade religiosa e Diretor
geral. De 2000 a 2007, assumiu novamente a Direção geral do Colégio e foi o responsável por mudanças estruturais importantes e
pelo Planejamento Estratégico, realizado entre 2006 e 2007, que
garantiu novos rumos e objetivos para a instituição até 2012, com
o compromisso pelo grupo de constante atualização.
De personalidade forte, visionária, reflexiva e analítica, Pe. Raimundo Kröth foi diretor, educador, amigo e conselheiro dos educadores do
Colégio Medianeira. Para ele, dirigir um colégio da Companhia de Jesus era mais que uma tarefa ou um desafio, era uma missão de vida e
um compromisso com os paradigmas da educação jesuíta. Exigente,
discreto, espirituoso e bem-humorado, o Pe. Raimundo tinha a busca
da excelência como meta e cultivava a autonomia e a liberdade como
essenciais para a sobrevivência dos homens e das instituições, sem,
no entanto perder de vista os votos feitos durante a vida religiosa,
principalmente o da fidelidade à Companhia.
Foram 47 anos de dedicação inquestionável. Sua fama de visionário o levou nos dois últimos anos ao Colégio Santo Inácio, de
Fortaleza, no qual chegou como diretor. Lá, em dezembro de 2009,
passou a ter problemas de saúde. Descobriu então se tratar de um
câncer. Vislumbrando os dias que viriam, entregou a direção do
Colégio e mudou-se para a Casa de Saúde dos Jesuítas, em São
Leopoldo, onde, resignado, permaneceu.
Na posição de educador e Jesuíta, Pe. Raimundo Kröth, S.J., passou os 47 anos na Companhia de Jesus. Em sua segunda missão,
como Diretor do Colégio Medianeira, nos falou, na edição no. 0 da
Revista Mediação. Esta entrevista reeditamos, como uma forma de
homenageá-lo, relembrando suas palavras sempre sábias, prontas
para análises lúcidas e diretas, porém com ternura, humildade e carisma, de um jeito próprio que ele sabia demonstrar.
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O que diferencia a educação jesuíta? No que uma
escola jesuíta é diferente das demais?
ver desse modo, mas o grupo de amigos tem outros valores.
É uma questão de conceitos. É muito forte (e bastante comum no colégio) a ideia de formar homens e
mulheres para os demais. Depois, a excelência. Santo Inácio não suportava medíocres, ele dizia que Deus
merece o melhor. Quem queria ser companheiro de
Santo Inácio, na Companhia, tinha de entrar com essa
noção da maior glória de Deus. Isso se prescrevia para
todos os setores, e também para a educação. Então,
geralmente, onde há uma escola dos jesuítas, é uma
escola academicamente boa, já pelo valor que as ciências têm, nessa visão de Santo Inácio da maior glória
de Deus, de que o toque de Deus está presente em
tudo aquilo que o ser humano pode descobrir ou inventar para beneficiar a raça humana. E evidentemente também entra a evangelização, mas é a evangelização pela cultura. A característica sempre é essa busca da excelência.
Santo Inácio tem muito a noção de que nós fomos criados por Deus e isso foi um ato de amor.
Nós somos à imagem e semelhança de Deus, portanto em nós há a marca da grandeza de Deus, e isso
nós podemos expressar para fora, na fraternidade,
na convivência, mas também na literatura, na pintura, na música, na ciência.
Como é possível persistir nessa meta de ser para os
outros, para os demais, se os alunos vêm de uma
sociedade essencialmente egoísta?
É evidente, a família que vem, vem da sociedade,
e mesmo nós, se nos descuidamos, somos engolidos por isso. Em primeiro lugar, você tem de saber
que está contra a correnteza, contra a corrente da sociedade. E é preciso abrir os valores, e exatamente aí
entra a importância do Reino pregado por Cristo, que
se centraliza em Deus e na pessoa humana. São os
dois grandes valores. Toda pessoa humana tem igual
valor. Essa sensibilização não é só por atividades religiosas. Eu diria até que é o que menos ocorre na escola. Ocorre também, mas é mais pela História, pela
Biologia, pela Geografia. Todos devem entender que
são ciências que podem privilegiar alguns, mas podem também privilegiar a todos. Criar a
sensibilidade da pessoa, fazer
com que perceba. Naturalmente é muito lento, e eu diria que
sempre um pouco em conflito.
Às vezes o conflito não é na
sala de aula, mas quando, por
exemplo, eles aprendem alguma coisa aqui no colégio, vão
para casa, e a família não vive
isso, já começa o conflito. Depois, quando eles querem vi-
Existem mil e uma formas, e ele as valorizava
muito, por isso a ciência e as artes sempre foram coisas bastante desenvolvidas nas escolas jesuítas.
E o educador de uma escola da Companhia de Jesus, como ele deve ser?
Em princípio, deve ser uma pessoa humanamente rica, isso é básico, e em segundo lugar que busque, de uma ou outra forma, a excelência, ou esteja disposto a fazer o caminho da excelência. Mas
também seja uma pessoa que tenha, minimamente, fé. Claro que isso tem muitos níveis, e as circunstâncias da vida das pessoas são muito diferentes, mas é importante que a fé não seja algo estranho, mas algo valorizado.
Esses seriam os aspectos principais: ter minimamente fé, poder viver a esperança, a fraternidade; ter
um olhar para o outro um pouquinho educado pelo
olhar de Cristo, de Deus, e ao mesmo tempo ser uma
pessoa que busca a excelência.
E qual a posição do estudante? As escolas jesuítas
estimulam participação política, por exemplo?
Certamente, porque se nós vamos formar homens
e mulheres para os demais, a política é um caminho. Formamos para
a consciência crítica, e daí para a política é um passo. Só que nós não
fazemos uma determinada opção
política, isso fica aberto, as pessoas têm liberdade, os jesuítas também têm liberdade, como as famílias têm liberdade, e temos uma variedade enorme de alternativas.
Mas uma coisa é certa: a consciência crítica certamente os leva a um
olhar crítico para dentro da política, e daí para tomar posições não
demora nada.
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E quando se formam tantos espíritos críticos, como
é que se administram esses espíritos críticos, que
também são contestadores dentro da escola?
Na medida em que são contestadores, eles sabem
que também precisam abrir espaço para diálogo.
Contestar o quê? Por quê? Como poderia ser? Enquanto a proposta que eles fazem não contraria valores que a escola tem como centrais, caminhamos com
eles. Evidentemente, se há um choque, mostra-se o
choque e diz-se não. Mas é certo que é preciso abrir
espaço para o diálogo, para o diferente, para a proposta deles. E os alunos veem abertura, não se afirmam pelo contraste, porque nossos professores caminham com eles, têm muita amizade, o que esvazia
o confronto e abre o diálogo de amigo para amigo.
O Medianeira é uma escola em que se percebe nos
estudantes muita autonomia e liberdade. Como isso
é gerado e administrado?
É uma autonomia que tem uma direção. Vamos
pegar um caso muito simples, o namoro. Se proibirmos, vão namorar do mesmo jeito. Se permitirmos,
vão namorar e poderemos acompanhar. Quando há um
excesso, chamamos e conversamos. A maioria sabe
levar isso direitinho. Fazemos disso um elemento educativo, e aí está a importância de ter na escola pessoas
que são capazes de conversar criativamente com os
alunos, e se for necessário questioná-los. A gente sempre diz que os jovens não querem ser questionados.
Se o jovem não for questionado naquilo que sabe que
esteja errado, amanhã ele te joga na cara: "você devia
ter feito e não fez, você sabia melhor que eu, e não
tomou uma atitude". Para nós, é muito claro: há autonomia, mas há limites. Há um trabalho educativo de
explicitar os valores que se quer, mas nem sempre todos se conformam, eles fazem as tentativas, nos testam, e aí o educador tem de chegar e conversar, em
uma outra parte desse trabalho educativo. Tem de fazer disso um elemento construtivo.
As famílias compreendem esses diferenciais todos
de uma escola jesuíta?
Quando falamos em família, falamos de muitas coisas diferentes. Temos famílias em diferentes extremos. Temos desde famílias altamente conservadoras até famílias militantes de esquerda, só para citar
dois extremos. De vez em quando há um estranhamento, "vocês são um colégio do PT". Não somos.
Nós formamos para valores e consciência crítica. Se
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depois eles encontram mais respaldo num partido ou
noutro, não é algo que a escola esteja privilegiando.
Ou, por exemplo, quando se dá a catequese, alguns
querem doutrina. Há grupos na igreja que são mais
fundamentalistas e vão pela doutrina, mas gente sabe
que isso não funciona com os jovens. Não que eles
não devam ter a doutrina, mas é muito mais eficaz
lhes dar reflexão através da prática, da experiência, e
isso eles adoram. Quanto mais corajosa e ousada a
experiência, mais eles gostam. Basta ver a semana da
Páscoa, quando nossos estudantes passam alguns dias
morando com famílias pobres. Isso os marca profundamente. Aí, sim, você pode refletir, dar os elementos
de doutrina, e eles aceitam bem. Mas se quiser só ficar enfiando doutrina na cabeça, não dá certo.
Padre Raimundo prezava pelos momentos de isolamento e reflexão. Mas também apreciava o encontro com os amigos que cativou no Medianeira. Ele
era graduado em Filosofia, Pedagogia e Teologia e
pós-graduado em Pedagogia Inaciana. Seus pais, já
falecidos, vieram da Alemanha e se instalaram no lugar onde ele nasceu, "um pouquinho além de Chapecó", em Santa Catarina, chamado Saudade.
É este o sentimento que ele nos deixou, além dos
ensinamentos e conselhos, e que nos preenche sempre que nos lembramos do Padre Raimundo.
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