Tecnologias Híbridas e as Ciências Sociais
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Tecnologias Híbridas e as Ciências Sociais
Tecnologias Híbridas e as Ciências Sociais: questionando divisões e fragmentações Holgonsi Soares Gonçalves Siqueira ¹ Márcio Felipe Salles Medeiros ² O desenvolvimento da tecnociência na contemporaneidade estabelece novos padrões de interação entre indivíduos e tecnologias, resultando novos arranjos sociopolíticos que ressaltam a importância do conceito de “hibridismo”. A problemática trazida por esses novos arranjos, ao promover um profundo questionamento do estatuto moderno com suas rígidas oposições binárias, imprime desafios à metodologia clássica das Ciências Sociais, na medida em emergem no/do contexto atual, novas exigências de interpretações/entendimentos das relações natureza-cultura, sujeito-objeto, tecnologiasociedade. Neste sentido, nosso trabalho levanta a questão sobre os desafios para a renovação teórica-metodológica das Ciências Sociais, a partir de uma análise críticoreflexiva sobre o conceito de hibridismo. Dialogando criticamente com a metodologia tradicional destas ciências, optamos como suportes teóricos principais as perspectivas de Bruno Latour, Donna Haraway e Boaventura dos Santos. palavras-chaves: tecnologias híbridas, ciências sociais, interdisciplinaridade A temática deste artigo pertence ao GT 7 - Debates teóricos y metodológicos en el estudio social de la ciencia y la tecnologia” _____________________ ¹ - Doutor em Educação. Professor Adjunto/4 do Mestrado e do Curso de Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria – RS – Brasil Fone: +55 (55) 3222 3359. Líder do Grupo de Pesquisa-CNPq “Globalização e Cidadania em perspectiva interdisciplinar”. E-mail: [email protected] ² - Graduado em Ciências Sociais bacharelado. Mestrando do programa de pósgraduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Santa Maria – RS – Brasil. Fone: +55 (55) 3217-8071. Linha de Pesquisa: Globalização, Novas Tecnologias e implicações socioculturais. Bolsista CAPES. E-mail: [email protected] Da modernidade à tecnociência O papel das ciências e das técnicas na constituição humana é inegável, na medida em que “tudo que espontaneamente adentra o mundo humano, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da condição humana” (ARENDT, 2008, p.17). Desta forma, refletir sobre a produção tecnocientífica significa compreender uma importante faceta da sociedade, na medida em que ela tem interagido com a sociedade produzindo inúmeras transformações sociais. Porém, para que possamos analisar as questões político-epistemológicas relacionadas a esta produção tecnocientífica na contemporaneidade, bem como as possíveis repercussões nas Ciências Sociais e Humanas, primeiramente se faz necessário uma reflexão sobre a ciência moderna, especificamente no que tange à série de dualismos e assimetrias consagradas pela mesma. A constituição moderna, ao tratar questões relativas à emergência da ciência e das técnicas dentro do contexto social, procura de forma sistemática executar fragmentações, estabelecendo o conhecimento científico através de fronteiras ostensivamente policiadas, como bem elucida Boaventura (1987), entre ciência de um lado, e humanidades e senso comum de outro. Estas separações operam com traços próximos a “sacralização religiosa” (BLOOR, 2009), no qual os sectários das misturas são tratados como hereges e condenados pelos inquisidores das ciências puras. No entanto, a própria ciência, que renega a heterogeneidade é heterogênea ao separar, por exemplo, “pura e aplicada, ciência e tecnologia, teoria e prática, popular e séria, de rotina ou de fundamento.” (Ibid p.80) As fragmentações produzidas pela modernidade atuam como um de seus motores, na medida em que estas fragmentações ecoam na sociedade que as acolhem, e desta forma produzem agenciamento de “actantes” (LATOUR, 2000) que constroem as condições de desenvolvimento das tecnologias. A possibilidade de convergências puras (entre ciências e técnicas), ou convergências profanas (entre ciência e sociedade), é negada pela visão moderna, o que exclui a possibilidade de se pensar, politicamente, o desenvolvimento tecnocientífico, pois as relações entre objetos e atores sociais não são permitidas, não são evidenciadas e/ou são negadas. Como resultado, os mundos social, econômico, político, científico e técnico são postos distantes, como se cada um deles pudesse existir isolado um do outro. A ciência, a partir da fragmentação, postula sobre a supremacia da razão sobre as práticas sociais, partindo da premissa de que “a ciência nada mais é que a consciência levada a seu mais alto ponto de clareza.” (DURKHEIM, 1999, P17). Este postulado encontra dificuldades explicativas, na medida em que pensar o conhecimento como autônomo, atribuindo a conjugação com a sociedade o erro inerente a sua construção (BLOOR, 2009), incorre em uma tautologia, visto que esta convicção parte precisamente de crenças que barram sua análise 1. O conhecimento enquanto autônomo, de forma fática, é uma crença na medida em que, caso tomarmos o mesmo princípio empirista da ciência moderna, não teríamos provas materiais de que o conhecimento é efetivamente autônomo, pois o mesmo não é estudado em seus fundamentos, mas apenas sacralizado em suas práticas. A análise do ocidente, pela crença na ciência e na superioridade da razão e da fragmentação como imperativos do desenvolvimento, impediu por um bom tempo de voltar-se para a compreensão daquilo que é central, ou seja, a ciência em sua organização. Assim, voltou-se para compreender as práticas centrais das sociedades não ocidentais, que por misturarem suas crenças e práticas eram colocadas como inferiores. Por isso “Centenas de etnólogos visitaram todas as tribos imagináveis, penetraram florestas profundas, repertoriam os costumes mais exóticos, fotografam e documentaram as relações familiares ou os cultos mais complexos. E, no entanto, nossa indústria, nossa técnica, nossa ciência, nossa administração permanecem bem pouco estudadas.” (LATOUR, 1997, p.17-18) Desta forma a modernidade “não apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações inerentemente internas”.(HARVEY, 1989, p.22). Assim, concordando com Bloor (2009) e Latour (1994), concebemos a modernidade como fragmentada, sacralizada em seus valores e assimétrica em seu discurso (LATOUR, 1994). 1 Esta premissa é detalhada por David Bloor (2009), quando este analisa a construção cientifica, através da perspectiva de Lakatos, que coloca a “história interna” da ciência como sendo pura e lógica, e a “história externa” como sendo ilógica, e causadora de erros lógicos a construção cientifica. No entanto, esta definição colocaria o estudo da ciência somente no erro cientifico, retirando todos os elementos de conflitos políticos, econômicos, pessoais, etc. do contexto de produção da “ciência que deu certo”. A assimetria colocada pela modernidade guia, dentro do discurso científico, uma idéia de ordenamento do mundo, de organização da complexidade da natureza sob a ótica da organização da matéria, da harmonia do mundo, que não raro torna-se dogma seguido de forma ascética. 2 Ao mesmo tempo em que a modernidade opera pela fragmentação, busca a harmonia dos objetos através de leis que fragmentam as possíveis óticas sobre os objetos constituindo niilismo, reduzindo a complexidade e as incertezas, centrando no indivíduo racional a capacidade de operar as variáveis e enxergar através de óculos modernos a harmonia através do caos. Buscamos utilizando a razão dominar a natureza complexa, no entanto “a Natureza é mais criativa do que nós” (GLEISER, 2010, p.16). As certezas e harmonia produzida pelas leis, as fragmentações e a crença na supremacia da razão são características constitutivas da ciência moderna, constituindo o ethos que orienta seu discurso através de assimetrias discursivas entre as práticas de constituição e a forma de representação dentro dos espaços públicos. Entretanto, o processo de constituição da ciência tem sido rediscutido a partir de outras perspectivas, que não necessariamente operem através da fragmentação. Esta proposta inclui analisar as múltiplas dimensões que compõem o fazer científico, desconfiando do discurso dos cientistas (LATOUR, 1997) – fragmentado e canônico –, procurando compreender as redes que se formam para que o fazer científico exista. A retórica da ciência para funcionar necessita de muito mais do que a razão aplicada aos fenômenos e objetos estudados, pois não conseguiria funcionar “sem o alistamento de muitas outras pessoas, sem as sutis táticas que ajustam simetricamente recursos humanos e não-humanos” (LATOUR, 2000, p.239). Desta forma, a existência da ciência envolve extrapolar os muros da ciência e compreender as relações entre humanos e não-humanos, bem como diferentes instâncias da sociedade, que se mesclam dentro dos produtos reificados da ciência. Ainda conforme Latour (2000, p.262), salientamos que a produção tecnocientífica apresenta como esqueleto que sustenta sua organização, divisões. Sua anatomia, que se sustenta na divisão interior/exterior é o resultado provisório de uma relação inversa entre 2 Esta questão da dogmatização da ideia de simetria da matéria é profundamente destacada na obra Criação Imperfeita, de Marcelo Gleiser (2010), na qual o autor apresenta como o pensamento centrado na perfeição e simetria do universo, ou seja, na redução da complexidade inerente a constituição do universo é simplificada em visões que não são reflexivas, mas dogmáticas. o recrutamento “externo” de interesses – o sociograma – e o recrutamento “interno” de novos aliados – o tecnograma. A cada passo do caminho, altera-se a constituição daquilo que é “interno” e daquilo que é “externo”. A rede, ao mesmo tempo em que constrói uma perspectiva analítica que sustenta uma visão complexa de uma teia de elementos que compõe o fazer científico, é autocrítica em seus elementos, pois possibilita questionar o próprio estatuto do conhecimento. “Desde então, o conhecimento não seria mais passível de redução a uma única noção, como informação, ou percepção, ou descrição, ou idéia, ou teoria; deve-se antes concebê-lo com vários modos ou níveis, aos quais corresponde cada um desses termos.” (MORIN, 2008, p.18) Desta forma, podemos falar de uma antinomia entre a forma de conhecimento postos pelos modernos e a perspectiva de análise que emerge da pós-modernidade sobre este conhecimento, possibilitando perceber o fenômeno de emergência da tecnociência na sociedade não mais como dogmático e sacralizado, mas de forma reflexiva e interligada com os fenômenos sociais. A tecnologia, fenômeno constitutivo da tecnociência, apresenta-se como eidos da sociedade moderna, atuando como importante imperativo de organização social. “é dimensão essencial da criação de conjuntos representada por cada forma de vida social e isso antes de tudo porque ela é, tanto quanto a linguagem, elemento da constituição do mundo enquanto mundo humano e em particular da criação, por cada sociedade, do que, para ela, é real-racional, pelo que entendemos o que ela estabelece como impondo-se a ela” (CASTORIADIS, 1987, p.306) Este real-racional estabelece-se como constitutivo da certeza moderna, nas convicções da sociedade sobre os não-humanos que nos rodeiam. Não dominamos o conhecimento necessário para compreender os objetos técnicos que interagem conosco, mas acreditamos no funcionamento dos mesmos e reproduzimos esta confiança, que atinge o próprio fazer científico. “Em suma, a construção de fatos e máquinas é um processo coletivo” (LATOUR, 2000, p.53). Este processo coletivo está nos valores, nas crenças, formas de interação que são simétricas entre a sociedade e a ciência. Cabe ressaltar que o enfoque dado à produção científica tem sido alterado nas últimas décadas, e consecutivamente, o enfoque dado pela sociedade também. Deixamos de utilizar o conhecimento somente para alterar a natureza, mas para a produção de mais conhecimento, constituindo o “paradigma tecnológico ou da informação”, e no qual, de acordo com Castells (1999, p.111), o processo de convergência entre diferentes campos tecnológicos, resulta de sua lógica compartilhada na geração da informação. Esta convergência não deve ser entendida apenas sob o viés tecnológico, mas, destacamos aqui, que a mesma se realiza também entre diferentes elementos sociais, e entre estes elementos e a tecnologia. Associamos as convergências resultantes deste novo paradigma tecnológico às dobras deleuzianas, as quais, ao produzirem rompimentos nos processos lineares e no modelo da simplicidade, gerando desconstruções e novas construções, tornam-se núcleos organizadores da ciência e das técnicas através de princípios como o não-completo, a instabilidade, as conexões e as relações. Neste sentido, as misturas entre diferentes saberes, conhecimentos e técnicas não são mais encarados como profanos, mas essenciais em uma sociedade-cultura que se estrutura com base na complexidade. Assim, compreendemos que “o paradigma da tecnologia da informação não evoluiu para o seu fechamento como um sistema, mas rumo a abertura como uma rede de acessos múltiplos. É forte e impositivo em sua materialidade, mas adaptável e aberto em seu desenvolvimento histórico. Abrangência, complexidade e disposição em forma de rede são seus principais atributos.” (CASTELLS, 1999, p.113) Reafirmamos que a produção da ciência continua sendo parte constitutiva da condição humana (AREDNT, 2008), no entanto, a forma de organização da mesma começa a assumir uma lógica aberta, ampliando as redes de agenciamento de humanos e não-humanos. Sob esta lógica, a maneira de fazer ciência deve ser vista sob a ótica da complexidade, e com formas de auto-representação distinta em relação à ciência moderna. No contexto pós-moderno, o princípio da rede de relações produz convergências entre tudo o que foi separado pela modernidade, repercutindo questionamentos no âmbito da ciência contemporânea. Não obstante alguns indicativos de mudança de paradigma na ciência, as aberturas que se processam nesta área são apenas parciais. As convergências produzidas pela ciência, além de produzir mobilizações para agenciar humanos e nãohumanos e conseguir se consolidar dentro do fazer científico, opera através da “autonomização” e “alianças” (LATOUR, 2001). Ao mesmo tempo em que produz convergências para avançar no desenvolvimento da tecnociência através de alianças, produz rupturas autonomizando essas convergências dentro de campos do saber. A autonomização do conhecimento é o que produz, de um lado, o conflito entre áreas do conhecimento sobre uma verdade, de outro lado, apresenta importância dentro da constituição moderna na medida em que opera como promotor da verdade (quando esta área autônoma consegue agenciar o maior número de actantes do que outras sobre uma verdade), chancelando a visão de certeza produzida pela ciência. Somente através de um saber consolidado, se consegue atingir um grau de promoção da verdade, e desta forma, se mobilizar as representações públicas sobre si, conseguindo captar recursos para que o mesmo seja desenvolvido. Desta forma, o fluxo sanguíneo da ciência torna-se dinâmico, ágil e diferenciado em seu foco – não mais na matéria e sim no conhecimento –, no entanto, não se produz uma ruptura profunda na forma de organização moderna em relação à fragmentação. A ciência, ao mesmo tempo em que promove autonomizações de conhecimento, prolifera híbridos dentro de seu sistema circulatório (Latour, 1994), através do agenciamento de pares humanos e não-humanos. A proliferação de híbridos ocorre concomitante com a negação dos híbridos através dos processos de purificação, constituindo discursos fragmentários que distanciam natureza e cultura, ciência e sociedade do interior do processo de fazer científico. Desta forma, vemos uma antinomia entre o discurso cientifico clássico-puro (ordenado e que nega a possibilidade de relação entre ciência e sociedade), do fazer da “ciência em construção” 3 (Latour, 2000), repleta de híbridos e contradições A proliferação dos híbridos Consolidando a separação total entre humanos e não-humanos, e tendo por base a questão da separação entre o poder científico e o poder político, destacamos aqui que a modernidade se organizou sob a influência de três garantias constitucionais (LATOUR, 1994), sendo elas: 1) “ainda que sejamos nós que construímos a natureza, ela funciona como se não a construíssemos”; 2) “ainda que não sejamos nós que construímos a sociedade, ela funciona como se nós a construíssemos; e 3) a natureza e a sociedade devem permanecer absolutamente distintas; o trabalho de purificação deve permanecer 3 Latour trabalha o conceito de ciência em construção em sua obra “Ciência em Ação” (2000), na qual trabalha de forma detalhada a distância entre o discurso científico se tomado como pronto, ou seja, tomar a verdade científica por ela mesma, e a ciência em construção, na qual uma série de contradições e atores sociais faz parte do fazer científico, direcionando os caminhos que a ciência percorre. absolutamente distinto do trabalho de mediação.” (p.37). Através das contraposições entre estas garantias, a modernidade tinha como objetivo principal tornar invisível e impensável a construção dos híbridos. No entanto, a mesma ciência que operou através das três garantias constitucionais, e consecutivamente chancelou a separação entre natureza e cultura, proliferou seus híbridos na medida em que a própria produção científica é híbrida (LATOUR, 1994, 1997 e 2000). “A ação não é uma propriedade de humanos, mas de uma associação de atuantes (...)” (LATOUR, 2001, p.210), misturas entre natureza e cultura, humano e nãohumanos, enfim, o rompimento de fronteira entre os binômios é o que permite que o fluxo sanguíneo da ciência continue pulsante, e não a sua constituição. A produção científica está repleta de seres híbridos, de ciborgues, que mesclamse às máquinas na produção de suas tecnologias. Estes ciborgues, quimeras modernas, são fruto da conjugação entre natureza e cultura, no qual “uma não pode ser objeto de apropriação ou incorporação com a outra” (HARAWAY, 2009, p.39), mas devem ser vistos de forma relacional. Pensar de forma relacional significa, pensar humanos associado a seus pares não-humanos, e cada um deles apresenta sentido apenas se visto de forma conjugada (LATOUR, 2001). Os ciborgues podem existir de diversas maneiras, seja de forma radical, através de implantes que potencializam as atividades humanas 4, seja através da associação com máquinas, as quais estão se tornando tão íntimas que fica difícil definir aonde inicia o humano e termina a máquina (uso de aparatos tecnológicos). Assim, entendemos o ciborgue como o resultado de qualquer relação entre humanos e não-humanos no atual contexto tecnocientífico. Desta forma, não faz sentido falarmos de humanos ou de não- humanos, mas sim de híbridos, de ciborgues. Tomamos o ciborgue como figura síntese do discurso e das práticas tecnocientíficas em geral, e, nesta direção, entendemos que o mesmo se firma como uma expressiva dimensão do capitalismo tecnocientífico, servindo-nos também, dentro dos objetivos deste trabalho, como horizonte epistemológico, devido ao potencial analítico, crítico e construtivo deste conceito. Afirmamos isto porque o ciborgue nos possibilita produzir denúncia e análise, bem como pensarmos a construção de um novo estatuto através de uma severa crítica às dicotomias. 4 Como nos projetos de Kewin Warwick, no qual o pesquisador desenvolve formas de interação direta entre indivíduos e tecnologias, na qual a interação seja profunda e permita tanto movimentar aparelhos a distância, como receber sensações produzidas pelo objeto. Este trabalho pode ser visto no sítio <http://www.kevinwarwick.com/index.asp> A relação híbrida, pensada a partir da perspectiva de Latour (1994), também significa analisar de forma reflexiva a própria condição dos objetos, dos não-humanos. Os não-humanos, dentro da era do ciborgue, não são apenas objetos inertes que são subjugados a vontade humana, mas são seres que possuem existência apenas se colocados simetricamente frente aos indivíduos e sendo tão agentes quanto seus pares humanos. Desta forma, a ação dos humanos e dos não-humanos não existe per se, mas através de interrelação. Assim, podemos pensar a produção científica como híbrida já que sua produção passa necessariamente pela associação dos indivíduos com a tecnociência, constituindo as tecnologias que serão apropriadas pela sociedade. Desta forma, o hibridismo ocorre simetricamente nos laboratórios e na sociedade, na medida em que aquilo que é desenvolvido pela ciência é fruto de hibridismo, e em um segundo momento, é apropriado de forma híbrida pela sociedade. Seria difícil concebermos humanos desprovidos de tecnologias, sobretudo quando esta se complexifica, constituindo aglomerados tecnológicos em um único aparelho, como é o caso dos computadores e seus softwares, que tornam uma série de tarefas impossíveis sem a sua utilização. Portanto, podemos verificar uma simetria entre a produção tecnocientífica dentro dos laboratórios e a sociedade, no qual ciência e sociedade apresentam conexões simétricas. Ao mesmo tempo em que concebemos a ciência como social (LATOUR, 1994, 2000, 2001), executamos uma verificação inversa na qual a sociedade também é científica, articulando uma relação simétrica entre sociedade e ciência, sendo estas promotoras da constituição de indivíduos híbridos, de ciborgues que mapeiam a realidade social. A técnica, dentro da sociedade da informação (CASTELLS, 1999), está ligada a produção de conhecimento, de técnicas e artefatos científicos. Estes vínculos, elementos constitutivos da tecnociência, permitem que estes se voltem para a natureza ressignificando-a do ponto de vista científico (SANTOS, 1992), por um lado, e mesclandose aos indivíduos, de outro lado, constituindo híbridos que se ligam a uma diversidade de elementos. Dentro da era do ciborgue, natureza e cultura assumem uma nova dimensão, na qual as linhas que definem os binômios são obscurecidas, formando misturas na qual tanto a ciência quanto a natureza mesclam-se e são ressignificadas dentro de um contexto hibrido, no qual o indivíduo enquanto agente e promotor de ações no mundo (cidadão), acaba sofrendo uma série de consequências. Desta foram, podemos verificar o “enorme impacto da tecnologia contemporânea sobre o homem concreto (ao mesmo tempo como produtor e como consumidor), sobre a natureza (efeitos ecológicos alarmantes), sobre a sociedade e sua organização (ideologia tecnocrática, pesadelo ou sonho paradisíaco de uma sociedade cibernatizada) (…). (CASTORIADIS, 1987, p.294) Assim, ressaltamos a figura do ciborgue como representativa da transição do capitalismo, em um momento em que a tecnologia assume uma grande proeminência, potencializando novas formas de relacionamento entre indivíduo e tecnologia, as quais se orientam positivando mesclas entre indivíduos e máquinas. O desenvolvimento da tecnociência, na busca de desenvolver novas tecnologias, tem constituído campos do saber que trabalham através da ruptura de barreiras, promovendo convergência entre tecnologias a fim de desenvolver novas tecnologias (ECHEVERRIA, 2009). Estas tecnologias produzem um fenômeno de hibridismo em relação ao conhecimento, visto que a própria questão da interdisciplinaridade acaba sendo re-significada. A interdisciplinaridade, marcada pela conjugação dos saberes dentro do contexto de produção da tecnociência, e, sobretudo através de uma análise ampliada dos saberes que aborde outros elementos frente à convergência das tecnologias, produz um fenômeno no qual a mesma se amplia, pois foge do domínio dos saberes e encontra outros elementos, constituindo uma “interdisciplinaridade ampliada”. Neste contexto, Echeverria (2009), evoca a necessidade de se pensar a convergência entre as tecnologias também de forma ampliada, olhando para a questão da produção de conhecimentos com um olhar que ultrapasse a própria construção do conhecimento, e seja hibrida de outros elementos fora dos laboratórios, como por exemplo os elementos econômicos, políticos, sociais e culturais. Tomamos estas convergências de saberes como impulsionadoras da tecnociência contemporânea, pois produzem tecnologias híbridas de saberes antes separados, na busca de superar as limitações colocadas pela fragmentação moderna. Neste contexto, surgem as tecnologias que se associam com os indivíduos, mescla de info-nano-biocogno-tecnologia, as quais trazem consigo inúmeras potencialidades para o corpo humano, que limitado através do isolamento com a técnica, vê sua constituição alterada e ampliada através da conjugação com as tecnologias. “A tecnociência contemporânea almeja ultrapassar todas as limitações biológicas ligadas à materialidade do corpo humano, rude obstáculos orgânicos que restringem as potencialidades e obstáculos dos homens.” (SIBILIA, 2002, p.49) Através da convergência entre saberes constituindo hibridismo de saberes acadêmicos com saberes sociais, em conjunto com a constituição de indivíduos híbridos, podemos verificar uma série de misturas que acabam alterando a construção da subjetividade. A tecnociência permite que nossa subjetividade abra-se “aos objetos comuns que tecem num mesmo gesto simétrico a inteligência individual e a inteligência coletiva” (LEVY, 1996, p.133), com influências que indo além do corpo físico, repercutem nas maneiras de pensar, sentir e imaginar. Desta forma, a tecnociência, ao construir os corpos, possibilita a conectividade entre o mundo exterior e interior, possibilita que o corpo, enquanto “mistura imprecisa de corpo e alma” 5 (SERRES, 2001, p20), misture-se as tecnologia produzindo consciência de mundo ampliada. Nesta nova maneira de viver torna-se cada vez mais necessário considerarmos a vida como resultado de circuitos tecnocientíficos, institucionais e econômicos. Em suma, o hibridismo produzido pela tecnociência traz alterações tanto na produção científica, como na sociedade e na própria forma com a qual o indivíduo se projeta no mundo, sendo um fenômeno multidimensional, e por isso, necessitando de uma compreensão, orientada por estes novos conceitos e novas categorias, que de conta de sua complexidade. Conclusão A partir de nossa análise sobre a construção da ciência e da produção de híbridos, compreendemos que pensar o contexto de hibridismo tendo por base a figura/conceito do ciborgue, evoca uma compreensão ampliada tanto das condições de produção e apropriação pela sociedade das tecnologias, como também uma compreensão ampliada dos indivíduos, híbridos em seus relacionamentos e suas ações. 5 Michel Serres, em sua obra Os Cinco Sentidos trabalha a questão do hibridismo de sentidos na constituição da subjetividade, e desta forma, coloca como a alma a tomada de consciência evocada pelo sentido, no qual o corpo se dobra sobre um ponto produzindo subjetividade. No sentido do hibridismo, esta dobra pode ocorrer no corpo humano ou não-humano, na medida em que nossos sentidos podem estar direcionados a um objeto imaterial, canalizando a nossa subjetividade e produzindo convergências de sentidos humanos e não humanos, constituindo uma subjetividade ampliada. A produção tecnológica, ao ser pensada enquanto híbrida, necessita do mapeamento de redes de actantes, na qual estejam presente atores humanos e nãohumanos que fazem parte do fazer científico. Salientamos que nesta rede, se realiza uma mistura de saberes, informações, conhecimentos, interesses e poderes. Entendemos que através desta imagem, ultrapassamos a visão moderna no que tange às limitações e barreiras que foram sacralizadas pela mesma, e sob as quais torna-se também impossível questionar o conhecimento científico. A simetria proposta por Latour (1994, 2000, 2001) entre ciência e sociedade para compreender a produção científica, torna-se necessária para compreender do outro lado o próprio ator social, visto que este se encontra imerso às tecnologias que moldam seu corpo físico, seus hábitos, sentimentos e práticas, interferindo diretamente na totalidade da vida. Desta forma compreender o ser humano torna-se uma tarefa complexa, ultrapassando a unilateralidade promovida pelas fragmentações da ciência. A ciência que fragmenta e mantém a visão moderna, é a mesma que impossibilita que tenhamos uma visão ampliada sobre o homem. Embasando-nos em Edgar Morin, afirmamos que a falta desta visão ampliada, coloca-nos uma idéia miserável de homem, podendo-se, como conseqüência última, até mesmo eliminá-la. Reafirmamos então, a necessidade de uma revisão profunda nas maneiras de pensar, compreender e fazer ciência hoje, em um mundo marcado por novas experiências e sensações provenientes do intenso grau de desenvolvimento das tecnociências. Questionar divisões e fragmentações significa não cairmos em reducionismos, ou seja, não descartarmos humanos e não-humanos, assim como não tomá-los isolados, mas na dialética de suas profundas relações. Pensarmos na própria constituição humana através do hibridismo e do conceito de ciborgue, significa refletirmos, de um lado, sobre as novas possibilidades colocadas pelo cenário tecnocientífico (potencializações produtivas das ações humanas), e de outro lado, sobre as problemáticas socioculturais e sócio-políticas que resultam da “parte” humana, ou seja, de corpos que se apresentam inertes frente ao avanço das novas tecnologias. Porém salientamos que a compreensão desta dialética contemporânea passa por uma revisão sobre a constituição da ciência, tornando-se a mesma reflexiva tanto em seus valores como em suas conseqüências, na produção de compreensões ampliadas que ao invés de reduzir o homem a uma mera parte, veja este enquanto ser complexo e interligado as suas teias sociotécnicas. É com base nestas idéias, que compreendemos a contradição-produtiva das tecnologias híbridas para as ciências sociais, ou seja, estamos nos referindo aos desafios epistemológicos proporcionados por estas tecnologias para uma profunda revisão/renovação das ciências sociais e humanas em um contexto pós-tradicional. Uma revisão/renovação que valorize e se fundamente em práticas interdisciplinares, efetivando-se através destas práticas uma visão ampliada das relações entre ciênciatecnologia-sociedade-cultura, e, portanto, uma visão ampliada da relação entre humanos e não-humanos. Somente através de uma visão ampliada, podemos reverter quadros de inércia dos corpos, e desta forma, constituir indivíduos ativos, capazes de agir no mundo, tornando-se o hibridismo não uma condição de associação na qual a “parte maquínica/não-humana”, domina a “parte humana”, mas uma condição na qual o homem desenvolve suas competências em todas as dimensões a partir das potencialidades tecnocientíficas. Questionar divisões e fragmentações a partir das tecnologias híbridas significa questionar o binômio natureza-cultura, que, se foi fundamental às ciências sociais e humanas sob o estatuto da modernidade, torna-se insuficiente agora em um contexto cuja compreensão e possibilidades dependem de olhares e práticas inter-relacionais, complexas e indisciplinadas. Colocamos nosso enfoque como um profundo desafio, pois sabemos que esta empreitada não é simples. A ciência continua marcada por dogmas, colocando a supremacia da razão frente aos objetos de estudo, o que inclui pensar o próprio ser humano de forma racional e fria, dentro de uma cultura que baliza a apreensão através de limites muito bem demarcados. Neste sentido pensamos que romper com a ultra-especialização e com o isolamento entre as ciências, re-significar o entendimento do senso comum, des-construir a supremacia da ciência frente à sociedade, permitir-se ligações simétricas entre a produção científica e o fazer cotidiano, tornam-se questões fundamentais para a construção de conhecimentos e práticas reflexivas e efetivamente críticas, capazes de pensar e dar conta dos limites, das possibilidades, e da complexidade do novo “humanonão humano”. Referência Bibliográficas ARENDT, Hannah. A condição humana. 10° ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. BLOOR, David. Conhecimento e imaginário social. São Paulo: Editora UNESP, 2009. CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. 10° ed. São Paulo: Paz e Terra, 1999. CASTORIADIS, Cornelius. As encruzilhadas do labirinto I. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. DELEUZE, Gilles. A dobra: Leibniz e o barroco. Campinas, SP: Papirus, 1991. DURKHEIM, Emile. Da divisão do trabalho social. 2° ed. 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