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1 UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA - UFPB CENTRO DE EDUCAÇÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM EDUCAÇÃO - PPGE ZILDA MARIA COELHO MONTENEGRO A ESCOLA TÉCNICA DE SAÚDE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA E A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE ENFERMAGEM PARA OS ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA: Os desafios da relação docente. JOÃO PESSOA 2007 2 ZILDA MARIA COELHO MONTENEGRO A ESCOLA TÉCNICA DE SAÚDE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA E A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE ENFERMAGEM PARA OS ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA: os desafios da relação docente. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, em cumprimento às exigências para obtenção do grau de mestre em Educação. Linha de pesquisa: Educação de Jovens e Adultos. Orientador: Prof. Dr. Luiz Gonzaga Gonçalves JOÃO PESSOA 2007 3 M777e Montenegro, Zilda Maria Coelho. A escola técnica de saúde da universidade federal da Paraíba e a formação de profissionais de enfermagem para os assentamentos da reforma agrária: os desafios da relação docente./ Zilda Maria Coelho Montenegro. - João Pessoa, 2007. . . p. Orientador: Luiz Gonzaga Gonçalves Dissertação (mestrado) – UFPB/CE 1. Educação de Jovens e Adultos. 2. Ensino Técnico - troca de saberes. 3. PRONERA – Ensino Técnico – Enfermagem. UFPB/ BC CDU: 37 – 053.6/.8 (043) 4 ZILDA MARIA COELHO MONTENEGRO A ESCOLA TÉCNICA DE SAÚDE DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA E A FORMAÇÃO DE PROFISSIONAIS DE ENFERMAGEM PARA OS ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA: os desafios da relação docente. Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Educação da Universidade Federal da Paraíba, em cumprimento às exigências para obtenção do grau de mestre em Educação. Linha de pesquisa: Educação de Jovens e Adultos. Dissertação aprovada em _______/________/_______ Banca Examinadora: ________________________________________ Prof. Dr. Luiz Gonzaga Gonçalves (UFPB) Orientador _________________________________________ Prof.ª Dr.ª Irene Alves de Paiva (UFRN) ________________________________________ Prof.ª Dr.ª Ana Dorziat Barbosa de Melo (UFPB) 5 AGRADECIMENTOS Ao Deus que vive em cada ser da natureza, por ter me enviado seus anjos, na figura de pessoas e animais que me animaram a seguir adiante; Ao meu orientador professor doutor Luiz Gonzaga Gonçalves, por tudo o que representou nessa minha jornada. Agradeço-lhe pelo grande educador que é. O exemplo em pessoa da amorosidade freiriana que, com a sabedoria de homem do campo, me levou a realizar minhas próprias descobertas e a acreditar mais em mim; À minha mamãe, Maria de Lourdes Vieira Coelho, por me dispor sempre o seu colo quentinho de carinho. Ao meu pai, Heronides Alves Coelho Filho que segue vivo dentro de mim, em cada célula, em cada momento; À Ana Carolina e Marquinho, meus amores, por tudo o que são em minha vida; À minhas queridas irmãs Miriam, Gracinha e Susana, Cláudia e Letícia as responsáveis por eu ser tão mimada, pelas orações e companheirismo; À Edna Furukawa Pimentel, mais uma irmã-anjo que apareceu na minha vida, parceira de produções e publicações, companheira sempre presente nos bons e maus momentos, mesmo à distância, lá na Bahia, com a ajuda do MSN; À cada uma e a cada um dos meus colegas da 25ª turma do Mestrado em Educação, pelos afetos e trocas. Agradeço às amigas: Isabel França, Nozângela, Hélia Braga, e Rosângela pelas pessoas especiais que são; Um carinho especial à professora doutora Edineide Jezine; À Mira, Marta, Lae e Nelsina; 6 Às colegas professoras da ETS, em especial Eliete, Nailze, Bernadete e Jeane e Icléia, pelo apoio; Às professoras, alunos e alunas do curso técnico em enfermagem e suplência do ensino médio que tornaram a pesquisa possível, respondendo às entrevistas; À Mônica Montenegro pela tradução para o inglês do Resumo/Abstract e Palavras-chave/Keywords. Por fim, agradeço a Germana, pelos ouvidos, ao menino Glauco e ao jovem João, por ter-lhes privado de alguns (mas preciosos) momentos a mais na companhia do pai. 7 RESUMO Esta pesquisa buscou compreender como se deu o processo de realização do curso técnico em enfermagem destinado às pessoas jovens e adultas dos assentamentos da reforma agrária na Paraíba, inserido no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA. O estudo foi construído como um estudo de caso, realizado na Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba, envolvendo duas turmas, que iniciaram o curso em 2004. Uma das turmas estava voltada especificamente para a formação de técnicos de enfermagem, já concluída no ano em curso. A outra turma necessitava concluir o ensino médio e a formação de técnicos de enfermagem, com previsão de término em 2008. Optou-se por uma pesquisa qualitativa, sendo utilizada a técnica da análise de conteúdo. A atenção esteve concentrada nos caminhos percorridos pela coordenação pedagógica, pelo corpo docente e discente, em suas tentativas voltadas para superar as muitas dificuldades e desafios pedagógicos e didáticos apresentados no transcorrer do curso. Elegemos como categorias de análise: o projeto político pedagógico da ETS, a pedagogia da alternância, a relação docente e aprendente. Nesse processo de estudo trouxemos autores como: Edgar Morin (2003), Paulo Freire (2000, 2002, 2005), Rosely Caldart (1997, 2004), Lucília Machado (2002), Gonçalves (2002, 2003), entre outros. Pudemos identificar que a escola técnica, docentes e discentes foram levados a uma busca constante de superação dos entraves impostos à realização do curso e da identificação de alternativas capazes de gerar troca de saberes mais eficazes nas relações docentes. PALAVRAS-CHAVE: Educação de Jovens e Adultos, Ensino Técnico, troca de saberes. 8 ABSTRACT This work searched for understanding how the process of carrying out the technial course on Nursery, for young and adult people from the settlement land reform in Paraíba, inserted in the National Program of Education in Agrarian Reform PRONERA. The study was built as a case study, conducted by Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba, involving two groups, which started the course in 2004. One of the classes was geared speciffically for training of technicians in Nursing, already completed in the current year class. The other group needed to complete the high school and the training of technicians in Nursing with estimated completion in 2008. A qualitative research was chosen and the analysis of content technique was used. The attention has been concentrated in the pedagogical coordination, by teachers and students, in its several tries to overcome the difficulties and challenges presented throughout the educational teaching process Some categories of analysis were considered: the political pedagogical project of the Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba, the alternation of pedagogy, the relation between the teacher and student. In this process of study we have considered some authors as: Edgar Morim (2003), Paulo Freire (200, 2002, 2005), Rosely Caldart (1997, 2004), Lucília Machado (2002), Gonçalves (2002, 2003), among others. We have identified that the technical school, teachers and students were a search for overcoming obstacles to the achievement of the current taxes to the identification of alternatives able to generate efficient exchange of knowledge. Keywords: young and adult education; technical course, exchange of knowledge. 9 LISTA DE SIGLAS E ABREVIATURAS CNE/CEB – Conselho Nacional de Educação / Câmara de Educação Básica CCS – Centro de Ciências da Saúde CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil COFEN – Conselho Federal de Enfermagem CONSUNI – Conselho Universitário COREN – Conselho Regional de Enfermagem CPT – Comissão Pastoral da Terra EJA – Educação de Jovens e Adultos ENERA – Encontro Nacional dos Educadores da Reforma Agrária ETS – Escola Técnica de Saúde INCRA – Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária LDB – Lei de Diretrizes e Bases da Educação MST – Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra OFOC – Oficina Organizacional de Capacitação PROEJA – Programa Nacional de Integração da Educação Profissional com a Educação Básica na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos PPP – Projeto político-pedagógico PRONERA – Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária PSF – Programa de Saúde na Família SEAMPO – Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares TC – Tempo-Comunidade TE –Tempo-Escola UFPB - Universidade Federal da Paraíba UnB - Universidade de Brasília UNESCO - Organização das Nações Unidas para a Educação UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância UTI – Unidade de Terapia Intensiva USF – Unidade de Saúde na Família 10 SUMÁRIO 1 O CAMINHO PERCORRIDO: DO DESEJO À PESQUISA 11 1.1 Os caminhantes: seres inconclusos na busca de “ser mais” 15 2 O CURSO TÉCNICO DE ENFERMAGEM DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA 22 2.1 A dicotomia na formação escolar do povo brasileiro: educação geral e educação profissional 23 2.2 A Escola Técnica de Saúde e o Curso Técnico de Enfermagem 27 2.3. Uma compreensão da techné vinculada à prática de enfermagem 36 3. O CURSO DE FORMAÇÃO DE TÉCNICO DE ENFERMAGEM E SUPLÊNCIA DO ENSINO MÉDIO – PRONERA 42 3.1 As Diretrizes Operacionais do PRONERA e o Projeto do Curso Técnico de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio 42 3.2 O PRONERA na Escola Técnica de Saúde: Gênesis 51 3.3. Ensinando e aprendendo novas lições: as aprendizagens docentes no processo de implantação do curso. 59 4. O SABER QUE VEM DO CAMPO. 72 4.1 A pedagogia da Alternância 73 4.1.1 A Escola Técnica de Saúde e a metodologia da alternância 80 4.2 Omnilateralidade: convite para pensar uma formação humana nas suas diversas dimensões 90 4.3 A versatilidade do povo do campo e a prática da enfermagem 95 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 101 REFERÊNCIAS 104 APÊNDICES ANEXOS 109 114 11 1 O CAMINHO PERCORRIDO: DO DESEJO À PESQUISA O desejo de realizar esta pesquisa nasceu em 2004, praticamente junto com o anúncio de que seriam implantadas duas turmas destinadas à formação técnica de enfermagem de assentados e assentadas da reforma agrária, na Escola Técnica de Saúde (ETS) do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde trabalhamos como docente das disciplinas de Psicologia Aplicada à Saúde e Enfermagem em Saúde Mental. Tratava-se do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), cujo objetivo é a escolarização e formação das pessoas jovens e adultas dos assentamentos, desde a alfabetização à pós-graduação. As articulações para a execução do projeto iniciaram-se em 2003, por iniciativa da direção da ETS, que procurou o Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares (SEAMPO) / UFPB, com o objetivo de tornar a ETS mais uma parceira, através da oferta do Curso Técnico de Enfermagem. Assim, foi estabelecida uma parceria entre a ETS, o SEAMPO, a Comissão Pastoral da Terra (CPT) e o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA). O projeto contou também com a assessoria pedagógica do Centro de Educação da UFPB. A perspectiva de aprofundar nosso conhecimento sobre o universo das assentadas e dos assentados que, no nosso imaginário, teriam um quê de heróis na luta contra o latifúndio, nos motivou tanto quanto a vontade de mergulharmos no universo da educação popular. 12 Naquela ocasião, sabíamos pouco acerca dos futuros educandos. Somente mais tarde, após a leitura dos memoriais produzidos por eles durante a semana preparatória para o curso, pudemos perceber o quão heterogêneas eram aquelas duas turmas do PRONERA e que, portanto, nem todos participaram diretamente do movimento de luta pela posse da terra, como pensávamos a princípio. Do desejo à decisão de realizar a pesquisa foi necessário apenas que participássemos do primeiro encontro pedagógico do projeto, onde estavam as professoras da ETS e convidados/convidadas para ministrar algumas disciplinas para as quais as docentes da Escola Técnica de Saúde não estavam habilitadas ou não tinham disponibilidade de tempo, como era o caso das disciplinas do curso de suplência do ensino médio. Na ocasião, percebemos que havia entre as professoras da escola uma expectativa muito grande pelo desconhecimento do trabalho com educação popular ou pela pouca experiência com pessoas de uma realidade cultural diferente da dos alunos que a escola atendia regularmente. O depoimento da professora Alfazema1 confirma o que dizemos: Eu só acho o seguinte: essa questão do trabalho de educação no campo tem muita coisa que eu não sei. Também do processo educacional, eu também não sei. Eu acho que o nosso orientador pedagógico está dando um duro danado para poder dar todos esses processos de interferência. Interferência assim, de modificação, de sugestão. O desconhecimento revelado pela professora Alfazema era comum a todas as outras, que apresentavam – algumas mais, outras menos – dúvidas diversas que iam desde questões curriculares até como superar a provável 1 Nome fictício. 13 fragilidade dos educandos e educandas em relação ao domínio da leitura e da escrita, resultante da falta de uma política educacional voltada às pessoas que vivem e trabalham no campo em nosso país. Essas preocupações em vez de desestimular, provocaram nas professoras certa animação para participar da atividade. Talvez porque fosse essa a primeira vez que a equipe se reunia para dialogar sobre questões exclusivamente pedagógicas, tendo a oportunidade de compartilhar suas dificuldades e descobertas. Diante desse quadro inicial nos indagamos se estaria - a ETS inaugurando naquele momento uma relação dialógica entre as suas professoras. A inquietação e a curiosidade provavelmente nos remeteriam – a pesquisadora e as demais professoras – a um repensar de nossa prática e de nossa postura profissional. Nesse aspecto, a atuação do assessor pedagógico também foi fundamental, por fomentar a curiosidade e animar o grupo a buscar suas respostas. Nesse processo, sentimo-nos cada vez mais impelidas a realizar uma investigação que nos levasse a uma melhor compreensão de como as professoras, os professores, alunas e alunos superariam os desafios que lhes seriam apresentados na jornada que então se iniciava. Era a primeira e poderia ser a única experiência da ETS com o PRONERA. Programas de governo raramente têm longa vida. Em sendo a primeira, a pesquisa poderia contribuir para identificar tanto os aspectos positivos do trabalho realizado, como os aspectos negativos, a fim de que se pudesse corrigi-los para que não se repetissem. Caso se tratasse da única, certamente repercutiria na atuação docente da ETS, pelas reflexões e aprendizagens que proporcionaria. De uma forma ou de outra, a contribuição se estenderia aos outros educadores que 14 porventura tivessem interesse nos diálogos aqui travados na tentativa de descrever e compreender como se deu o processo de implantação do curso técnico em enfermagem e suplência do ensino médio, desde os seus primeiros momentos, até a conclusão da primeira turma. Porém salientamos que nossa principal intenção foi a de contribuir modestamente para o repensar do ensino técnico em enfermagem destinado ao homem e à mulher do campo, acenando para a necessidade de os/as docentes valorizarem e estimularem a utilização das habilidades que educandos e educandas possuem, que foram construídas a partir das relações de trabalho e vida nas suas comunidades. Podemos afirmar, no entanto, que essa caminhada repercutiu sobre a atividade docente da pesquisadora, uma vez que cada momento de reflexão sobre a pesquisa despertava o repensar sobre a própria atuação e, imediatamente, levava à busca da assunção de uma postura mais adequada à construção de uma educação emancipatória. Assim, a partir do nosso ingresso no Curso de Mestrado em Educação, no ano de 2005, teve início o processo de pesquisa através da leitura de vasto material teórico, orientada pelos professores e professoras das diferentes disciplinas. Dessa forma pudemos adentrar no estudo de temas relacionados à educação popular, educação de jovens e adultos e metodologia da pesquisa científica, que muito contribuíram para a definição do referencial teóricometodológico da pesquisa, levando-nos a autores como Morin (2003), Paulo Freire (1980, 2000, 2002, 2005) Machado (2002), Caldart (2004), Gonçalves (2003, 2006), Manacorda (1991) entre outros. Por tratar-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter descritivo, este estudo de caso teve a preocupação de revelar as convicções dos/das 15 entrevistados/entrevistadas acerca do processo por eles/elas vivenciado. Conforme Minayo, [...] a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. (2000, p. 21-22). Para tanto, elegemos a técnica da análise de conteúdo, com um enfoque amplo de natureza dialética, que foi desenvolvida obedecendo as seguintes fases: 1 - A pré-análise (organização do material) que envolveu a leitura e escolha dos documentos a serem analisados, na qual foram eleitos o Manual de Operações do PRONERA; o Projeto Político-pedagógico do Curso Técnico de Enfermagem da Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba; o projeto do Curso de Formação de Técnicos em Enfermagem e Suplência do Ensino Médio; atividades propostas para o Tempo Comunidade; Memoriais dos alunos e alunas; Trabalhos de Conclusão de Curso; trabalho sobre versatilidade, realizado pelos estudantes na disciplina Educação do Campo2. Além dos documentos citados, procedemos à análise do conteúdo das transcrições das entrevistas semi-estruturadas respondidas por educadoras e estudantes do Curso de Formação de Técnicos de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio que concordaram em participar da pesquisa. 2 – A análise do material ou descrição analítica – em que foi feita a categorização das informações. 3 – O tratamento dos resultados, no qual buscamos dar uma interpretação qualitativa dos dados acerca das categorias eleitas com base na insistência com 2 Foram utilizados para análise apenas os documentos redigidos pelos alunos participantes da pesquisa. 16 que apareceram nos documentos e entrevistas. (BARDIN, 1988) Queremos esclarecer que, ao optar pela utilização de entrevistas semiestruturadas buscamos valorizar a exposição espontânea do pensamento dos sujeitos respondentes, de modo que eles participassem da elaboração do conteúdo da pesquisa, pois ao expressarem seus pontos de vista em relação aos diferentes aspectos da experiência do curso estavam fornecendo o material sobre o qual iríamos construindo nosso estudo. Decidimos por transcrever as falas sem efetuar nenhuma “correção gramatical”, pois aqui buscamos respeitar a maneira de cada grupo falar, e porque essa questão também é colocada como tema por uma das entrevistadas. Para Bardin, o pesquisador que utiliza a análise de conteúdos trabalha com vestígios. Mas os vestígios são a manifestação de estados, de dados e de fenômenos. Há qualquer coisa para descobrir por e graças a eles. Tal como a etnografia necessita da etnologia, para interpretar suas descrições minuciosas, o analista tira partido das mensagens que manipula, para inferir (deduzir de maneira lógica) conhecimentos sobre o emissor da mensagem ou sobre o seu meio, por exemplo. Tal como um detetive, o analista trabalha com índices cuidadosamente postos em evidência por procedimentos mais ou menos complexos. (BARDIN, 1988, p. 39) Podemos dizer que nesse aspecto a análise de conteúdo se aproxima do paradigma indiciário, uma vez que a atenção aos indícios permite que as pessoas “arrisquem a antecipar mentalmente o desenlace de algum evento, que ainda não se completou para a compreensão de quem investiga”. (GONÇALVES, 2003, p.30). Portanto, utilizamo-nos da análise de conteúdo - cuja unidade de registro teve base não gramatical, tratando-se de uma análise temática - para descrever, 17 da forma mais distanciada possível, a primeira experiência do curso de Formação de Técnicos em Enfermagem e Suplência do Ensino Médio da Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba, uma vez que esta se presta tanto ao estudo das motivações, atitudes, valores, crenças, quanto ao “desvendar das ideologias que podem existir nos dispositivos legais, princípios, diretrizes, etc., que, à simples vista não se não se apresentam com a devida clareza”. (TRIVIÑOS, 1987, p.160). Nessa perspectiva, traçamos um roteiro de entrevistas (APÊNDICES A e B) de forma que, ao permitir a livre expressão do entrevistado, trouxesse à tona os aspectos que lhes foram mais significativos no curso para, a partir daí, podermos identificar os temas mais freqüentes nas falas dos sujeitos e realizar nosso diálogo com os teóricos sobre esses aspectos assinalados pelas pessoas entrevistadas. Os caminhantes: seres inconclusos na busca de “ser mais”. Consideramos que a situação em que nos encontrávamos, enquanto pesquisadores, era privilegiada porque trabalhamos na Escola onde se desenvolveu a pesquisa. Portanto não tivemos dificuldades em estabelecer com os sujeitos entrevistados um clima de confiança para que pudessem expor seus pensamentos e sentimentos acerca da experiência de formação técnica. Ao mesmo tempo, corríamos sério risco de fazer leituras precipitadas das falas e 18 situações, devido ao nosso envolvimento. Cientes dessa possibilidade nós procedemos sob inspiração da atriz de teatro que fomos um dia, quando exercitávamos a análise do texto teatral. Buscando entender as contradições de cada personagem e aceitar a nossa personagem como ela era, com suas crenças e sua visão de mundo, mesmo que diferente da nossa. Isso era necessário para que pudéssemos representá-la com “verdade cênica”3. Dessa forma acabávamos por exercitar-nos, sem saber, para a prática da pesquisa científica. Ou seja, ali aprendíamos a não permitir que a nossa subjetividade transformasse a personagem em alguém com intencionalidades diferentes da pensada pelo autor, fazendo com que a interpretação fosse fidedigna à “realidade da ficção”. Desta maneira, nossa intenção na pesquisa foi a de buscar manter fidelidade às pessoas entrevistadas, respeitando o seu universo de compreensão. Para participar da pesquisa os sujeitos foram escolhidos aleatoriamente4 entre os educandos e também entre os educadores, pela sua disponibilidade em participar do estudo. Todos e todas concordaram formalmente em participar da pesquisa, estando plenamente cientes de que seus nomes seriam preservados e que poderiam desistir da participação a qualquer momento que desejassem. Dessa maneira, da turma do Pós-médio, composta por estudantes que já haviam concluído o ensino médio quando ingressaram no curso, que contava com 44 alunos cursando efetivamente, participaram cinco sujeitos, sendo quatro do sexo masculino e um do sexo feminino. Da turma do curso de Suplência 3 Termo utilizado em teatro para designar uma interpretação realmente convincente ao espectador. A pesquisadora procurou as duas turmas e informou sobre a pesquisa, perguntando se havia pessoas dispostas a participar da mesma. Assim sendo, os sujeitos se apresentaram voluntariamente. 4 19 do Ensino Médio, formada por 46 estudantes que ainda não haviam concluído o ensino médio ao ingressar no Curso Técnico, participaram da pesquisa também cinco sujeitos, sendo quatro do sexo feminino e um do sexo masculino5. Portanto, de um universo de 90 estudantes, 10 constituíram a amostra, perfazendo um total de 11,11 %. Entre as educadoras, optamos por entrevistar apenas as pertencentes ao quadro da Escola Técnica de Saúde (ETS) que atuaram no PRONERA. Cinco professoras foram entrevistadas, de um universo de 12 docentes, o que equivale a 41,6% do total. Para preservar a identidade das pessoas entrevistadas, adotamos nomes fictícios, de tal forma que às/os estudantes chamamos por nomes de pessoas que se sobressaíram na luta pela terra, como Pedro (Teixeira), Zé Divino (Valdivino), Margarida (Maria Alves), Elizabeth (Teixeira) entre outros. Às educadoras, demos os nomes de plantas medicinais utilizadas nos assentamentos, como Alfazema e Malva, por exemplo. Com o objetivo de favorecer uma melhor identificação quanto à formação dos educandos, acrescentamos as letras (p.m.) aos nomes das pessoas da turma do Técnico de Enfermagem - Pós-médio, e a letra (s), àqueles que cursam a Suplência do Ensino Médio e Técnico de Enfermagem. Gostaríamos de salientar que se trata de uma turma bastante heterogênea, tanto pela faixa etária, tipo de trabalho, vida escolar, estrutura do assentamento, quanto pelo modo de participação na conquista da terra: alguns eram filhos de pessoas que já viviam nas terras, empregados dos fazendeiros; outros(as), ainda crianças na ocasião, presenciaram cenas de violência e a adesão de seus pais à luta dos acampados; outros já eram possuidores da terra de fato, os quilombolas, desde os seus ancestrais. Alguns permanecem tentando conquistar seu pedaço de chão. Assim, temos entre os entrevistados: Anastácio (p.m.), 39 anos, profissão: Agricultor e Agente Comunitário de Saúde; Jósimo (p.m.) 26 anos, considera-se um defensor da cultura afro5 Ao convidarmos os sujeitos para responder a pesquisa, o critério gênero não foi levado em consideração. Coincidentemente acabamos por contar com cinco pessoas de cada gênero. 20 brasileira, pois vive numa comunidade de quilombolas. Por este motivo, não houve luta pela posse da terra em sua comunidade. Teve problemas de saúde na infância, sofrendo várias internações hospitalares. Na sua comunidade não há Unidade de Saúde na Família (USF), nem médicos. Há agente comunitário de saúde. A partir dos oito anos trabalhou na roça. Dos dez aos dezoito anos passou a trabalhar com o gado. Tem participação voluntária na CPT, como agente mobilizador. Não trabalha na agricultura atualmente; Chico (p.m.), 32 anos. Considera que sua infância foi muito boa, tendo brincado bastante com seus primos. Segundo Chico, o seu pai foi o primeiro a ingressar na luta pela terra na sua localidade, no ano de 1983, enfrentando os capangas da usina. Atualmente não mais se trata do proprietário de uma usina, mas de empresários do ramo de criação de camarão. Ingressou na luta pela terra no ano de 2000, quando conheceu a CPT, através da qual conheceu outras áreas de onde as pessoas estão sendo expulsas das suas posses. É posseiro. Tem participação voluntária na CPT acompanhando área de conflito. É agricultor e sindicalista. “Hoje estou bastande convencindo que so com a partilha da terra e que podemos acambar com a fome” (CHICO, memorial). Concluiu o ensino médio no ano de 1998; Zé Divino (p.m), Não trabalha na agricultura. Não participou da luta pela posse da terra. Seus pais já moravam na localidade antes de ser feito o assentamento. O pai era vaqueiro da fazenda; Margarida (p.m), 25 anos. Milita no MST, é casada e tem uma filha com um ano e meio de idade. Foi selecionada para o curso devido à sua inserção na luta. Não acredita em vocação. Ingressou no curso pela necessidade da comunidade e pela vontade de estudar. Afirma que hoje aprendeu a amar a enfermagem; Elizabeth (s), 19 anos, solteira. Órfã de pai. Elizabeth vive com a mãe, com as quatro irmãs e o irmão. É professora de Educação de Jovens e Adultos no PRONERA. Não participou da luta pela terra, pois seu pai já morava no local, trabalhando para a usina. Seu assentamento é uma agrovila, o que faz com que a casa fique um pouco distante da roça. Nem ela nem os irmãos trabalham na terra, mas todos estudam; Dorothy (s) morava no assentamento com os avós, que eram posseiros, quando começou a luta pela terra; 21 Anunciada (s), 28 anos. A nona filha de uma prole de dez. “Vejo-me como uma pessoa um pouco fraca nos estudos, principalmente quando estou preocupada, pois não consigo fazer nada.” (memorial). Tem a religião Católica como referência de vida. Já participou da CPT, mas não atua mais nem exerce atividade profissional. Considera-se indecisa, insegura e ainda “muito infantil”. Recentemente foi instalada uma Unidade de Saúde da Família (USF) na sua comunidade, que conta com médico, enfermeira, auxiliar de enfermagem, dentista e seis agentes de saúde. Antes disso, não havia assistência alguma, com muitos casos de mortes a caminho do hospital; Inês(s) considera sua infância feliz e ao mesmo tempo infeliz, pelas necessidades que passou, mas até hoje gosta de brincar. No seu assentamento não houve conflito nem luta pela terra. Houve inscrição para o assentamento no sindicato. “Tenho uma tristeza comigo, pois no assentamento não existe escola e as criança aparti de 4 anos vão em cima de uma camioneta para o sítio vizinho” (memorial). No assentamento não há USF. “Eu já cobrei da prefeitura e da câmara dos vereadores um posto de saúde aqui no assentamento”. Participava das reuniões da CPT. Não vivenciou o processo de luta pela posse da terra, pois houve acordo com o fazendeiro na sua área. Casada, uma filha. Já tem uma proposta de emprego para quando terminar o curso. Quanto às professoras, podemos dizer que apenas uma não tem formação em enfermagem. Todas são pós-graduadas, sendo uma especialista e quatro mestras. Todas essas pessoas protagonizaram a pesquisa, uma vez que ao se disponibilizarem a participar, o fizeram com satisfação, algumas mais falantes, outras menos, sabendo que a investigação serviria para promover junto à comunidade escolar e instituições parceiras do projeto, o repensar de alguns aspectos do curso visando seu aprimoramento. Ao mesmo tempo, tanto a pesquisadora quanto professoras e estudantes entrevistadas/os, reconheceramse (implicitamente - nas falas), como seres inconclusos em busca de “ser mais”, vivendo numa realidade inacabada, posto que histórica. De acordo com Paulo Freire: “O inacabamento do ser ou sua inconclusão é próprio da experiência vital. Onde há vida, há incacabamento. Mas só entre mulheres e homens o inacabamento tornou-se consciente”. (2005, p.50). Para o autor, foi a consciência de sermos inacabados que nos tornou – aos homens e mulheres - seres 22 responsáveis e éticos. Aos cinco de fevereiro do ano de 2007, demos início às entrevistas, que foram gravadas, com estudantes e professores na Escola Técnica de Saúde. Naquela ocasião, a turma do Pós-médio já estava próxima da conclusão do curso, podendo expor suas impressões acerca da experiência prática nos estágios. Já a turma da suplência, cujo curso se prolongaria por mais alguns meses, não havia tido a vivência dos estágios, portanto, não podendo opinar sobre o mesmo. Após a transcrição e a realização de uma leitura inicial das primeiras entrevistas, sentimos necessidade de uma complementação da mesma, realizando uma segunda “rodada” de entrevistas. Desta vez, devido à indisponibilidade de tempo dos alunos na Escola – só tínhamos o horário das refeições – as entrevistas foram realizadas no alojamento, entre uma lavagem de roupa ou um cochilo e um banho. Nessa segunda rodada, encerrada aos 25 de maio do mesmo ano, conseguimos completar o número de estudantes programado para a pesquisa. A ida ao alojamento serviu para nos dar a dimensão real das condições de estadia dos e das estudantes em João Pessoa, inclusive de alimentação durante o tempo-escola, bem como as visitas aos assentamentos6 nos permitiram conhecer um pouco acerca das condições de vida e estudo dos educandos durante o tempo-comunidade. Isto proporcionou à pesquisadora uma visão mais ampla do processo que ali se tecia, facilitando bastante o entendimento das falas das pessoas entrevistadas na pesquisa. Diante desse quadro, trabalhamos ancoradas em algumas categorias que foram selecionadas dentre as unidades de registro, tais como o Projeto Políticopedagógico, a relação docente, o ensino técnico em enfermagem e a pedagogia da alternância, onde entendíamos a atividade pedagógica como uma unidade dialética, entre a atividade docente e a discente. Para descrever essa trajetória buscamos, no capítulo 2, iniciar o diálogo descrevendo o contexto da educação profissional no nosso país, momento em que abordarmos o dualismo na formação escolar do povo brasileiro, as implicações da dicotomia entre formação geral e formação técnica, desta feita, dialogando com Frigotto, Ciavatta e Ramos(2005). Em seguida tentamos 6 Fizemos uma visita (a autora, outra professora da ETS, duas bolsistas e uma professora do Centro de Educação), antes do início do curso a um assentamento. Durante o curso, fizemos mais algumas visitas a outros assentamentos, conforme escala da coordenação, para acompanhamento das atividades do tempo-comunidade. 23 apresentar ao leitor alguns dados relevantes sobre a Escola Técnica de Saúde (ETS), a partir de uma breve viagem pela história do ensino técnico de enfermagem no Brasil, ancoradas em Bartmann (2007) e da ETS em particular, através do olhar da atual diretora Icléia Honorato da Silva Carvalho. Tratamos ainda de apresentar, neste capítulo, alguns aspectos do Projeto Políticopedagógico (PPP), em um diálogo com Machado (2002) e Ramos (2002). Buscamos introduzir uma discussão sobre a importância do cultivo da versatilidade, que compreendemos como sendo a capacidade de desempenhar atividades variadas e diferentes utilizando-se dos recursos disponíveis no meio. Esta qualidade está implícita no PPP da ETS, mas não parece estar sendo problematizada conscientemente como uma característica vinculada à atuação profissional do técnico em enfermagem. Tentamos ainda compreender a vinculação entre a técnica e a prática de enfermagem, baseadas em autores como Jaeger (1995), Gonçalves (2003). No capítulo seguinte buscamos descrever a trajetória do curso técnico de enfermagem e suplência do ensino médio – PRONERA, enfocando as relações docentes no que se refere às fragilidades da formação escolar dos educandos e educandas do curso de formação de técnicos em enfermagem e suplência do ensino médio – PRONERA. Em seguida tratamos especificamente da necessidade da compreensão da metodologia da alternância não apenas como uma forma de organização do tempo, mas como um componente necessário à promoção das trocas de saberes e construção de conhecimentos indispensáveis à prática de enfermagem em áreas de assentamento, considerando não só a escola, mas todos os espaços como locais de aprendizagem. Contamos nesse capítulo, com os aportes teóricos de Arroyo (2004), Caldart (2004, 2007), Freire (2000, 2005), Gonçalves (2003), entre outros. No quarto capítulo convidamos o leitor a um repensar da educação a partir da (re)descoberta da potencialidade humana para realizar diferentes atividades, nas diversas áreas do conhecimento, incluindo as artes, a partir dos instrumentos de que dispõe. Para tanto, partimos do conceito marxista de onilateralidade, através de Manacorda (1991), para chegarmos à proposta de voltarmos nossos olhares para a possibilidade da utilização dessa característica humana de ser versátil, que é tão necessária às profissões da área de saúde e da educação. Finalizando, apresentamos nossas considerações, que não pretendem ser 24 finais, pois desejamos que os debates que a pesquisa possa suscitar, gerem inquietações nos levando a empreender novas buscas e ações no sentido da transformação da nossa realidade onde o respeito, a amorosidade e o tratamento igualitário sejam as regras e não exceções. 2. O CURSO TÉCNICO EM ENFERMAGEM DA UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA. Quando Freire nos convoca a estabelecer certo distanciamento do objeto para admirá-lo, convida-nos a pôr de lado nossa posição ingênua, a sair do nível espontâneo para a assunção de uma posição crítica, tomando a realidade como “objeto cognoscível e na qual o homem assume uma posição epistemológica”. (FREIRE, 1980, p.26). Buscaremos olhar o fenômeno, apesar do envolvimento de trabalho com a escola, com um distanciamento que também poderíamos chamar de brechtiano. Brecht, conhecido dramaturgo marxista alemão, propunha a utilização de uma técnica de distanciamento ou estranhamento teatral7 utilizada para afastar o ator do personagem ou o espectador da ação, para que este pudesse analisá-la criticamente. Ou, dito em outras palavras, para conduzir o espectador a uma consciência histórica. (PEIXOTO, 1981). Através dessa técnica8, Brecht buscava evitar que o envolvimento emocional - do ator e da platéia -, com os personagens impedisse ou dificultasse a leitura crítica da história que se passava no palco, levando espectador e ator a refletirem sobre a realidade na qual estavam inseridos. Sabemos que quando a escola se abre para uma investigação científica dessa natureza, é chamada a uma reflexão sobre sua ação no momento em que vivencia o distanciamento provocado pelos questionamentos da pesquisadora, que no nosso caso em particular também é parte da escola. Assim buscamos sair de um nível espontâneo ou, como preferem outros autores, sair da cotidianidade, para tentar descrever os desafios da relação docente no Curso Técnico de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio, 7 O distanciamento ou estranhamento é uma técnica milenar do teatro chinês, também encontrada em espetáculos populares de rua, em circos e até em algumas pinturas. 8 O ator distancia-se da personagem que faz quando, por exemplo, em plena cena ele “sai” da personagem e tece algum comentário sobre o que está se passando em cena, retornando em seguida à ação na peça. Já para distanciar o espectador da cena pode ser utilizada, por exemplo, uma música, cuja letra comente o que se passa na história que está sendo contada. 25 realizado pela Escola Técnica de Saúde (ETS) da Universidade Federal da Paraíba. E as constatações que aqui fizemos, longe de nos encaminharem à acomodação, nos movem ainda mais em direção às transformações necessárias, pois, segundo Paulo Freire (2000, p. 91), “Constato não para simplesmente me adaptar, mas para mudar ou melhorar as condições objetivas através de minha intervenção no mundo”. 2.1 A dicotomia na formação escolar do povo brasileiro: educação geral e educação profissional. A ETS, desde 1999, oferecia o ensino técnico aos seus educandos e educandas, sem a preocupação com a formação geral, ou seja, sem necessitar ofertar disciplinas do currículo do ensino médio, pois os/as estudantes já deveriam ter concluído aquele nível de ensino para submeter-se ao processo seletivo para o curso. Desta forma, os alunos e alunas concluintes, poderiam ingressar no mercado de trabalho imediatamente, ou optar por seguir um curso universitário. Vale salientar que parte dos alunos e alunas que freqüentam os bancos escolares da ETS pertence à camada social média, mas busca o curso técnico principalmente pela valorização salarial que esse seguimento profissional vem conquistando com as novas políticas públicas de saúde, e pela escassez de vagas em outras áreas de atuação. Ao longo da história da educação no nosso país observamos - no que diz respeito à formação de pessoas jovens e adultas -, certa indefinição sobre que forma ou que tipo de educação seria o mais adequado à realidade brasileira para essa parcela específica da população, sempre prevalecendo o que seria de interesse das classes dominantes. Brandão (2002), citando Franco, informa que já em 1884 havia, no Arsenal de Guerra do Rio de Janeiro, duzentos jovens aprendendo diferentes ofícios e, concomitantemente, lhes eram ensinados o desenho e as primeiras letras. Eram admitidos nesses cursos meninos com idade entre os oito e doze anos e ao contarem vinte e um anos de idade, ao receber o certificado de mestre na especialidade para a qual se habilitaram, eram contratados como operários efetivos, com direito ao soldo. Durante o período de aprendizagem os alunos, que deveriam ser órfãos indigentes ou filhos de pais reconhecidamente pobres, eram acompanhados por um pedagogo que contava 26 com o auxílio de um guarda e dois serventes para cada grupo de cinqüenta alunos. Em 1909, no governo de Nilo Peçanha, foram criadas escolas de aprendizes e artífices em todas as capitais brasileiras, destinadas aos filhos das pessoas mais desfavorecidas economicamente. De acordo com Cunha, citado por Brandão (2002), a implantação dessas escolas não decorreu das necessidades de mão-de-obra, uma vez que o desenvolvimento industrial ainda era muito incipiente na época. Na década 1930, foram criadas algumas escolas técnicas nas escolas de engenharia. A partir de 1942, todas as escolas de aprendizes e artífices, com a Lei Orgânica do Ensino Industrial, passaram a oferecer cursos técnicos, em equivalência parcial com o sistema regular de ensino, permitindo inclusive o acesso aos cursos superiores relacionados com os cursos técnicos. A Lei Orgânica forneceu as bases para a criação do Sistema S, uma vez que criou o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI) em 1942, e o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), em 1946, para atender as necessidades das empresas que os custeavam. As propostas curriculares dessas escolas dificilmente se voltavam para a formação teórica, sendo de cunho eminentemente prático. Assim, o ensino no nosso país sempre foi marcado por uma diferenciação que destinava aos despossuídos uma educação para o trabalho e aos filhos das classes mais abastadas a educação propedêutica para o ensino superior. Esse dualismo toma um caráter estrutural especialmente a partir da década de 1940, quando a educação nacional foi organizada por leis orgânicas. A Lei Orgânica do Ensino Secundário de 1942, promulgada durante o Estado Novo, na gestão do Ministro Gustavo Capanema, acentuava a velha tradição do ensino secundário acadêmico, propedêutico e aristocrático. Juntamente com esta, havia o conjunto de leis orgânicas que regulamentaram o ensino profissional nos diversos ramos da economia, bem como o ensino normal. Se havia organicidade no âmbito de cada um desses segmentos, a relação entre eles ainda não existia, mantendo-se duas estruturas educacionais paralelas e independentes. A equivalência entre os ensinos secundário e técnico veio a ser estabelecida, primeiro, nos anos de 1950, com as Leis de Equivalência e, depois, a equivalência plena somente com a LDB de 1961, podendo os concluintes do colegial técnico se candidatar a qualquer curso de nível superior. (FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS, 2005, http://www.uff.br/trabalhonecessario/MMGTN3.htm) Ainda segundo esses autores, as lutas da sociedade civil em defesa da 27 escola pública, marcaram de maneira significativa os acontecimentos entre as leis orgânicas do ensino técnico de 1942 e o Decreto n. 2.208/97. Em 1998, a sociedade civil organizada acompanhou de perto a apresentação do primeiro projeto da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) à Câmara dos Deputados, feita pelo Deputado Federal Otávio Elísio, que propunha para o 2º grau uma formação politécnica, “necessária à compreensão teórica e prática dos fundamentos científicos das múltiplas técnicas utilizadas no processo produtivo”. (BRASIL apud FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS, 2005). Porém esse projeto não foi aprovado naqueles termos e ao final, a formação integrada pretendida pelos educadores foi proibida e a educação profissional foi regulamentada de acordo com a política de formação do Ministério do Trabalho e Emprego e sob a alegação das necessidades de mercado, de modo que permitiu-se uma formação profissional aligeirada e fragmentada, através do decreto n. 2.208/97 e outros instrumentos legais, como a Portaria n. 646/97. (FRIGOTTO, CIAVATTA, RAMOS, 2005). Em 2004, o decreto 5.154 de 23 de julho de 2004 instituiu a articulação entre a educação profissional técnica de nível médio e o ensino médio, que pode dar-se na mesma instituição de ensino, contando com matrícula única para cada aluno; concomitantemente, com matrículas distintas para cada curso e, de forma subseqüente, para quem já concluiu o ensino médio. (BRASIL, 2004). Ao referirem-se ao decreto 5.154 de 2004, Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005) afirmaram: O documento é fruto de um conjunto de disputas e, por isso, mesmo, é um documento híbrido, com contradições que, para expressar a luta dos setores progressistas envolvidos, precisa ser compreendido nas disputas internas na sociedade, nos estados, nas escolas. Sabemos que a lei não é a realidade, mas a expressão de uma correlação de forças no plano estrutural e conjuntural da sociedade. Ou interpretamos o Decreto como um ganho político e, também, como sinalização de mudanças pelos que não querem se identificar com o status quo, ou será apropriado pelo conservadorismo, pelos interesses definidos pelo mercado (http://www.uff.br/trabalhonecessario/MMGTN3.htm). Segundo esses autores, com os quais concordamos nesse aspecto, o governo do presidente Lula não está se propondo a conduzir mudanças estruturais, principalmente em virtude das alianças com grupos conservadores. Por esse motivo, mesmo com a integração do ensino médio ao ensino técnico, 28 não vislumbramos modificações no sentido da viabilização do ensino politécnico e unitário. Parece-nos que a turma de suplência do curso de formação de técnicos de enfermagem conseguiu se aproximar, em alguns momentos, de uma vivência do que poderia ser uma formação integrada. Claro que para isso foi necessário o empenho dos professores da formação geral em conhecer questões básicas da área de saúde, principalmente de saúde coletiva, para adaptar seus conteúdos de forma a contemplar também a formação do técnico em enfermagem numa perspectiva interdisciplinar, na medida do possível. Ao mesmo tempo, aos professores e professoras das disciplinas técnicas coube reforçar as ligações com as disciplinas do ensino médio, buscando facilitar a assimilação de alguns conteúdos. Pois como afirmou Freire (2005b, p132), Numa perspectiva progressista, a educação popular não pode, por outro lado, reduzir-se ao puro treinamento técnico de que grupos de trabalhadores realmente precisam. Esta é a maneira necessariamente estreita de formar, que à classe dominante interessa, a que reproduz a classe trabalhadora como tal. Na perspectiva freiriana, sob o olhar de uma das entrevistadas faltou o aprofundamento em temas que levassem os educandos e educandas a refletir sobre sua realidade, problematizando-a. Essa necessidade é apontada pela educanda Margarida (p.m.): E outra coisa é que o curso, ele abre um espaço para ter uma formação política e ideológica para essas pessoas, para que eles não sejam mais um perdido na capital, não é? Vá para a cidade, deixe seus lugares de origem e ajudem a crescer o êxodo rural. Vá se embora procurar emprego na cidade... então... E a educanda complementa mais adiante: São filhos de agricultores, de assentados, Então são pessoas da... da... Da região. De lá dos assentamentos mesmo. Mas que infelizmente eles têm que ter mais uma formação política e ideológica que é para que eles se conscientizem do que eles são. Eles enxerguem não é? Eu sou isso. Eu quero isso para a minha melhoria e que no campo é bom. Entendeu? Não é que a cidade é melhor. Que isso não existe. E que você pode ser um bom profissional tanto no campo quanto na cidade. Não é? Que você pode desenvolver seu trabalho do mesmo jeito que desenvolve no campo desenvolve na cidade. E não que aconteça o que sempre aconteceu, o êxodo rural. As pessoas não têm oportunidade no campo aí joga todo mundo para a cidade... Ta aí as favelas, não é? Ta aí do jeito que ta e o campo se acabando. Dando espaço para as grandes indústrias. 29 Como informamos anteriormente, Margarida é uma militante do MST, o que explica a sua forma de ver e pensar o mundo. Nesse aspecto, concordamos com a educanda, ou seja, acreditamos que essa questão não teve o destaque que merecia dentro da sala de aula propriamente dita, embora algumas educadoras tenham abordado esse tema. Mas o que realmente podemos fazer para que consigamos abandonar aquela maneira estreita de formar, baseada no repasse de conteúdos, que vai favorecer apenas aos interesses da classe dominante? Pensamos que a linha metodológica da Educação Popular - que vem sendo posta em prática pelos movimentos sociais do campo através dos seus educadores e educandos-, é um caminho que se abre para que nos aproximemos de uma formação integral do ser humano, na medida do que é possível numa sociedade capitalista. 2.2 A Escola Técnica de Saúde e o Curso Técnico de Enfermagem. Remonta à década de 1890 a criação da primeira escola de enfermagem no nosso país, quando o marechal Deodoro da Fonseca criou a Escola Profissional de Enfermeiros e Enfermeiras, no Hospício Nacional de Alienados do Rio de Janeiro. O próprio decreto de criação da Escola ditava o currículo e os requisitos mínimos de ingresso no curso: ler e escrever corretamente e conhecer a aritmética elementar e apresentar atestado de bons costumes. Além dessa escola, entre 1890 e 1916 aconteceram outras pequenas e isoladas experiências de “organização da enfermagem e treinamento de pessoal no âmbito hospitalar em situações de emergência.” (BARTMANN, 2007, http://www.senac.br/informativo). De acordo com Bartmann, o surgimento das endemias e epidemias (febre amarela, varíola, peste bubônica) na década de 1920, atingiu em grande escala os trabalhadores portuários que tinham que permanecer em quarentena quando atingidos por estas doenças. Foi em decorrência dessa demanda que surgiu de maneira informal, a profissão de auxiliar de enfermagem. Isto se constituiu em um problema econômico para o país, uma vez que o comércio internacional acontecia por via marítima e era um importante motor de crescimento para o Brasil. Diante dessa situação, as autoridades governamentais do campo da saúde passaram a voltar suas 30 preocupações para a esfera da saúde pública, “numa clara articulação com os meios de produção dominante. Assim, os Serviços de Saúde Pública tiveram que ser reformulados e passaram a exigir um novo tipo de pessoal de enfermagem.” (BARTMANN, 2007, http://www.senac.br/informativo). Naquelas circunstâncias, o Departamento Nacional de Saúde Pública, com o auxílio de enfermeiras norte-americanas que para cá vieram, organizou um serviço de enfermagem de saúde pública que respondesse aos problemas que se apresentavam. A necessidade de pessoas para atuar nesses serviços resultou na criação, em 1926, da Escola de Enfermeiras Dona Ana Néri. No caso desta escola o pré-requisito de ingresso era o diploma de conclusão da escola normal ou do curso secundário. O exercício da enfermagem no Brasil foi regulamentado através do Decreto nº 20.109.12, que estabeleceu as condições para que as Escolas de Enfermagem se equiparassem à Escola de Enfermeiras Ana Néri9. Esta foi incorporada, em 1937, à Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro. A origem da Escola Técnica de Saúde (ETS) remonta a pouco mais de cinqüenta anos, após a promulgação da Lei 775/49, que previa os cursos de nível superior (enfermeiro) e médio (auxiliar de enfermagem). Na década de 1940, de acordo com Bartmann, A complexidade do Hospital de Clínicas e a influência dos modelos administrativos preponderantes trouxeram a divisão de trabalho para dentro do hospital. Essa divisão de trabalho se estendeu também à enfermagem, conforme afirma Ferraz, devido ao grande número de leitos e o pequeno número de enfermeiras; as ações administrativas e de educação ficaram com as enfermeiras, cabendo ao pessoal auxiliar as ações assistenciais, o cuidado direto do paciente. Para que pudesse desempenhar melhor sua função, o pessoal auxiliar passou a receber treinamento específico para a área hospitalar. A divisão de trabalho na enfermagem brasileira, iniciada naquela época, se mantém até os dias de hoje. (2007, http://www.senac.br/informativo) Ainda segundo Bartmann, a partir de 1950, com a ampliação do parque industrial e o crescimento da população urbana e previdenciária, a saúde pública, entendida como o combate às epidemias e endemias que prejudicassem o comércio exterior, foi gradativamente perdendo importância, inclusive nos programas oficiais. Por outro lado, a atenção médica individualizada começou ser valorizada. No que diz respeito à atuação das enfermeiras, ela afirma que: 9 A profissão Auxiliar de Enfermagem surgiu informalmente no Brasil, segundo Bartmann (2007), em meados dos anos 1920, quando grandes endemias e epidemias (peste bubônica, varíola, febre amarela) assolavam o país. Devido à grande carga de trabalho, sentiu-se a necessidade de pessoal para auxiliar as enfermeiras. Assim, as enfermeiras da Escola Ana Neri – primeira escola de enfermagem do Brasil - eram responsáveis por preparar as auxiliares para o trabalho. 31 Os hospitais incorporaram a moderna tecnologia médico-científica e passaram a requerer, cada vez mais, a participação de enfermeiras de "alto padrão", como também eram chamadas as enfermeiras diplomadas. Ampliaram-se, portanto, as oportunidades de trabalho para as enfermeiras e também para os auxiliares, já que o número de enfermeiras era insuficiente. E a enfermagem científica brasileira, que nasceu eminentemente preventiva, passou a ocupar a rede hospitalar majoritariamente privada, empresarial e lucrativa, atendendo aos interesses capitalistas. Na medida em que se ampliavam as oportunidades de trabalho, crescia o número de escolas e cursos de enfermagem e de auxiliares. De 1940 a 1956, foram criados 43 cursos de Auxiliares de Enfermagem. Nesse contexto, em 1953 foi criada a Escola de Auxiliares de Enfermagem da Paraíba. Segundo o que nos relatou em entrevista a atual diretora da ETS, professora Icléia Honorato da Silva Carvalho, a Escola de Auxiliares de Enfermagem da Paraíba foi criada através da Lei Estadual 875 de 21 de janeiro de 1953, para promover a formação de pessoal para o serviço de enfermagem. Por meio da Portaria 343, o Ministro de Estado da Educação e Saúde autorizou o funcionamento do curso, mais precisamente aos 30 de maio de 1953. Naquela ocasião a escola era mantida pelo estado da Paraíba. Quando houve a federalização da universidade, em 1960, a escola passou a ser parte da Universidade Federal da Paraíba (UFPB) e do Centro de Ciências da Saúde (CCS), através do Departamento de Enfermagem do curso de graduação. E quando isso aconteceu a nossa escola ficou... É... Ela não foi extinta, a Escola de Auxiliar de Enfermagem da Paraíba, ela não foi extinta, mas é como se existisse apenas o curso. A visão de escola – ela foi apagada, ela foi eliminada. Apesar de que oficialmente ela não foi extinta. Mas com a federalização da universidade, essa imagem de escola deixou de ser visualizada, uma vez que ela ficou funcionando dentro do departamento. Era o curso de graduação de enfermagem que tinha também o curso de auxiliar de enfermagem. Quer dizer: essa visão de escola, ela deixou de existir. (ICLÉIA HONORATO DA SILVA CARVALHO) Assim permaneceu a Escola de Auxiliares de Enfermagem por vários anos até que, em 1995, a Resolução 1/95, do Conselho Universitário da UFPB criou no Centro de Ciências da Saúde (CCS), o Departamento de enfermagem de Nível Médio. Porém, apenas em março de 1999, foi criado o curso de formação técnica em enfermagem e no mês de junho daquele ano houve a autorização para o seu funcionamento. De acordo com o que a diretora da ETS informou durante a entrevista: Através da resolução 03 de 2003, do CONSUNI, nós conseguimos modificar a resolução 04 de 1999 que criava o curso de complementação técnica e criamos, na verdade, o curso de habilitação de técnico de enfermagem. Porque acompanhando toda a legislação da educação profissional e principalmente a legislação dos conselhos responsáveis pela profissão, dos conselhos profissionais, no nosso caso, CONFEN e COREN, percebemos que existia uma necessidade urgente de formar o profissional técnico, que é o profissional melhor qualificado, com acesso a diversas unidades de tratamento que, muitas vezes o auxiliar, por melhor formação que ele receba, o acesso é restrito a esse profissional, como nas unidades de UTI e Centro Cirúrgico. Então, formar o profissional técnico, nós estamos dando... É uma formação mais completa. 32 Ainda segundo a atual diretora, para que a escola recebesse a atual denominação, foi necessário percorrer mais algumas etapas: Na verdade, após a criação do departamento de nível médio, é... Nessa época eu já estava (trabalhando na escola), mas não fazia parte da administração. Houve um entendimento da Direção do Centro com a chefia do Departamento de Nível Médio e parece que fizeram uma consulta à Procuradoria Jurídica e, nessa consulta, a Procuradoria percebeu que a escola nunca havia deixado de existir e não lembro qual foi a resolução, mas houve uma mudança. Uma nova denominação. De Departamento de Enfermagem de Nível Médio, a nova denominação passou a ser Escola de Enfermagem de Nível Médio. E após eu assumir a direção da Escola de Enfermagem de Nível Médio, junto com o Conselho Escolar, percebemos a necessidade de modificar mais uma vez essa denominação para Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba. Para que houvesse uma maior abrangência dos cursos que seriam de responsabilidade dessa escola oferecer e formar profissionais, não só na área de enfermagem, mas também contemplar outras áreas da saúde. Elaboramos um projeto e, através da resolução 5/2000, o Conselho Universitário aprova dando a nova denominação. E a nossa escola está sendo chamada de Escola Técnica de Saúde da Universidade Federal da Paraíba. Hoje, com instalações físicas próprias, contando com os equipamentos didáticos, necessários para o seu funcionamento, e um quadro docente formado por 20 professores, sendo 2 doutores, 13 mestres e 5 especialistas, a ETS oferece quatro cursos regulares: técnico de enfermagem; técnico em prótese dentária; técnico de agente comunitário de saúde; e técnico em biodiagnóstico. Este último iniciado no período 2007.1, conta com professores cedidos pelo CCS. Além destes, a ETS realiza o Curso Técnico de Enfermagem e suplência do ensino médio em convênio com o PRONERA. Em se tratando especificamente do curso técnico em enfermagem a ETS vem seguindo uma orientação voltada prioritariamente para o trabalho hospitalar, uma vez que este ainda é o modelo de atendimento hegemônico em nosso país, embora passos estejam sendo dados no sentido de um atendimento preventivo, a exemplo do Programa de Saúde da Família (PSF). Seguindo esses passos, e também como resultado das aprendizagens realizadas no trabalho com o PRONERA, que proporcionaram uma reflexão importante acerca de questões como interdisciplinaridade, diálogo, problematização, currículo, a ETS desencadeou um processo de reformulação do Projeto Político-pedagógico do curso técnico de enfermagem, que se encontra em andamento. O Projeto Político-pedagógico do curso técnico em enfermagem foi 33 elaborado, no ano de 2000, por uma comissão de professoras da ETS que contou com a colaboração de alunos e funcionários e com uma assessoria pedagógica do Centro de Educação. Atualizado em 2003, o PPP tem como objetivos do processo educativo “a formação do aluno centrada nas capacidades de observação, articulação, reflexão, análise, criação, reconhecimento de valores, julgamento, comunicação, convívio, cooperação, decisão e ação”. (2003, p. 3). Ao trabalhar essas capacidades, a escola busca atingir o seu objetivo geral que é “habilitar Técnicos e qualificar Auxiliares de Enfermagem visando ao exercício profissional, para atender, de forma eficiente, demandas do mercado de trabalho e prerrogativas da sociedade de um modo geral”. (UFPB, 2003). Podemos perceber, com base nestes objetivos, que ao tentar promover a formação do aluno enfatizando estas capacidades citadas acima, a ETS é chamada a favorecer o desenvolvimento da versatilidade nos educandos. Esta é uma exigência do trabalho em saúde, uma vez que os técnicos de enfermagem precisam observar sinais e sintomas dos pacientes para relatá-los aos demais profissionais da equipe; manusear instrumentos médico-hospitalares; ministrar os medicamentos prescritos; lidar com o doente, a família deste e a equipe de saúde; realizar procedimentos; tomar decisões. Ainda é de sua competência atuar na educação em saúde, através de orientação individual, palestras e campanhas diversas. Assim, quando afirmamos que a escola é convidada a favorecer o desenvolvimento dessa versatilidade, queremos dizer que a profissão de técnico de enfermagem exige do seu e da sua praticante essa disponibilidade para lidar com o novo, para a atuação curiosa, e inventiva, que lhes permita transitar entre os problemas e desafios cotidianos, aperfeiçoando o seu aprendizado. No seu texto o projeto determina as competências, as habilidades e as bases tecnológicas necessárias à formação do auxiliar de enfermagem, apontando o perfil de conclusão esperado: O auxiliar de enfermagem deve ter competência e habilidades para cuidar da pessoa saudável ou doente de forma humanizada, no âmbito das ações básicas de saúde, ou das unidades de internação, obedecendo aos limites estabelecidos para sua categoria profissional, olhando a pessoa sob seus cuidados de forma holística, respeitando seus valores espirituais, éticos e morais. Deve atuar em situações emergenciais pré-hospitalares e hospitalares utilizando, de forma hábil e adequada, técnicas e procedimentos indicados para os diferentes casos. Registrar informações de apoio e suporte ao diagnóstico de forma clara, com domínio do vocabulário técnico. Para isso, deve manter-se atualizado, tanto no conhecimento quanto nos procedimentos técnicos que embasam sua prática, atendendo o 34 princípio legal do aprender a aprender. (UFPB, 2003, p.4) Já o técnico de enfermagem, ao terminar o curso, segundo o Projeto político Pedagógico da escola, deve, entre outras coisas: [...] ter capacidade para analisar os diferentes contextos no âmbito de sua prática com espírito crítico, e cuidar do indivíduo sob um olhar holístico, respeitando seus valores espirituais, éticos e morais. Em outros termos, deve exercer a enfermagem com senso de responsabilidade, contextualizando o objeto de sua prática de forma articulada e tratar os problemas de enfermagem com espírito críticoreflexivo. (UFPB, 2003, p.5) Com a criação de outros cursos (técnico em prótese, agente comunitário de saúde, técnico em biodiagnóstico, formação de técnicos de enfermagem e suplência do ensino médio), além da introdução do PROEJA, cada um com suas especificidades, o corpo docente da ETS sentiu necessidade de atualizar o PPP do Curso Técnico de Enfermagem, o que está sendo feito, a passos lentos. Acreditamos que este trabalho é urgente e que deveria ser assumido pela totalidade do corpo docente, com participação de alunos e funcionários. Pensamos que a experiência com o grupo do PRONERA também traz grandes contribuições para o redimensionamento do projeto específico do curso técnico de enfermagem. O PPP do curso técnico de enfermagem da ETS aponta para a necessidade da formação de profissionais crítico-reflexivos, e “visa ao desenvolvimento de habilidades implícitas na formação para o exercício eficiente da enfermagem, nos aspectos técnico-científico, ético e legal.”(UFPB, 2003, p.3). Ele tem como base as Diretrizes Curriculares para o Ensino Técnico na Área de Saúde, de abril de 1999, que estabelecem uma série de competências a serem desenvolvidas pelos alunos, voltadas para o atendimento hospitalar e o domiciliar. A noção de competência, inserida nos currículos das escolas de formação profissional, foi introduzida como seu referencial primordial depois da aprovação da Lei 9394/96, com o Decreto 2.208/97, que reformou a educação profissional do país, promovendo uma separação estrutural entre o ensino médio e o técnico. De acordo com Ramos (2002), estas reformas foram resultantes das pressões dos organismos financiadores internacionais, como o Banco Mundial, o 35 Banco Interamericano de Desenvolvimento e a Organização Internacional do Trabalho, que consideravam o ensino técnico ineficaz, ineficiente e custoso em relação aos fins a que se propunha - e que encontraram respaldo no governo neoliberal de Fernando Henrique Cardoso. A resolução CEB Nº 4/99, em seu artigo 6°, estabelece que a competência profissional refere-se à “capacidade de mobilizar, articular e colocar em ação valores, conhecimentos e habilidades necessários para o desempenho eficiente e eficaz de atividades requeridas pela natureza do trabalho”. É esta definição de competência que norteia os PPPs das escolas técnicas. No que se refere aos usos da noção de competência, aportamo-nos em Machado, quando afirma que: O emprego da noção de competência, tendo em vista o estabelecimento de parâmetros de condições de desenvolvimento da educação profissional, requer, assim, reconhecer que as representações construídas sobre o que é competência não são independentes das finalidades que têm em vista aqueles que a constroem. (MACHADO, 2002, p. 257) Ela afirma que os usuários do termo competência são variados, embora o seu sentido seja relativamente comum a todos: “[...] a capacidade de sujeitos agirem com eficácia quando se encontram no desenvolvimento de ações que envolvem o exercício de atividades de trabalho”. (MACHADO, 2002, p. 251). Acreditamos que, para os alunos e alunas que se propõe a melhorar as condições de vida e de saúde de sua comunidade, o que vai pesar realmente na sua atuação é a versatilidade que lhes é inerente, para lidar com as adversidades do trabalho em saúde nos assentamentos, considerando-se a falta de infra-estrutura naquelas localidades. Muitas vezes o profissional de saúde terá que recorrer a soluções improvisadas para salvar uma ou mais vidas. Isto irá requerer necessariamente o recurso aos saberes técnico-científicos e à capacidade de mobilizar saberes e conhecimentos adquiridos tanto na escola como na comunidade. Como a escola poderia promover o aprimoramento da versatilidade dos educandos é uma questão que merece um estudo mais aprofundado. As professoras entrevistadas direta ou indiretamente ressaltaram essa qualidade dos educandos como um aspecto facilitador da sua aprendizagem. 36 O Projeto Político-pedagógico da ETS, seguindo a orientação das diretrizes curriculares nacionais, acentua a formação para o atendimento das demandas do mercado de trabalho e também para a competência no trabalho, tendo o cuidado de orientar seus educandos ao desenvolvimento de uma visão holística do ser humano e de valores “espirituais, éticos e morais”. Nele estão elencadas as competências, habilidades e as bases tecnológicas a serem desenvolvidas nas subfunções de cada módulo (Básico, Profissional I e Profissional II). Também estão discriminadas as ementas e os conteúdos programáticos de cada disciplina. Esta forma de organização curricular, aliada à formação das professoras, favoreceu uma prática docente focada nos conteúdos, onde cada disciplina existe de forma quase que totalmente isolada das outras, pois há algumas disciplinas que são pré-requisitos de outras havendo certa ligação entre elas. Pode ser que aqui tenha ocorrido o “emprego naturalizado da noção de competência”. Machado (2002, p. 254) explica que: Com a sua naturalização, as competências transformam-se em coisas, objetos de consumo ou meios de produção, entes sem história, fora das relações sociais. Não é difícil perceber a forte conotação normativa e a função ideológica desse processo, por meio do qual se presume a existência de modelos de comportamentos, caracterizados por tendências e disposições subjetivas pretensamente manifestáveis como realidades relativamente independentes dos contextos históricos e culturais e das relações sociais. A autora prossegue afirmando que essa maneira de abordar a competência aparentemente ignora o fato de que o processo de sua manifestação é uma construção social que não se desvincula do contexto histórico e cultural e das relações sociais. Assim, para Machado, esta relação de habilidades e capacidades para o desempenho profissional acaba se revelando inútil para a atuação dos sujeitos em situações concretas de trabalho. Isto ocorre porque, segundo Machado (2003, p.257) “[...] não existe uma estrutura geral e universal de competência, assim como é impossível descrever os traços que conformariam o ser humano universal”. O trabalho em saúde é de uma complexidade grande. O fator emocional está sempre em evidência, uma vez que os sujeitos deparam-se, em todo momento, com aquilo que qualquer ser humano mais teme: a dor, a morte 37 enquanto possibilidades concretas. O/A profissional técnico/técnica em saúde geralmente empreende também, na sua atividade um esforço físico considerável no trato com a pessoa doente. Além disso, há os riscos de contaminação por vírus e bactérias. Algumas vezes, situações inesperadas exigem decisões e ações imediatas e corretas. Portanto, há um horizonte de competências que pode ser vislumbrado para estes/estas profissionais, mas o estabelecimento e a persecução de um perfil igual para todos eles não é viável porque eles estarão vivendo realidades diferenciadas com sujeitos também diferenciados, além de apresentarem subjetividades que influenciam sua atividade profissional. Machado evoca alguns fatores objetivos como o sistema social, as condições de trabalho, o nível de complexidade da atividade; e alguns fatores subjetivos como as lógicas de construção de saberes, as trajetórias dos indivíduos, suas habilidades, conhecimentos anteriores, entre outros que justificariam a inoperância da naturalização das competências. Assim, é fundamental levar em conta que a competência é uma construção pessoal e social, que é aprendida quando os sujeitos se confrontam com uma situação que coloca problemas, exigindo descobrir, inventar ou adquirir soluções, sintetizar teoria e prática. (MACHADO, 2002, p. 258, grifo da autora). Nessa perspectiva, a práxis é o que leva à competência. Ou seja, a atividade prática - não o praticismo – refletida e transformadora é quem favorece o desenvolvimento de competências para a atuação profissional. Quanto à avaliação, o PPP aponta diferentes instrumentos tais como: [...] provas, estudo dirigido, dramatização, trabalhos em grupo, visitas domiciliares, projetos, relatórios, pesquisas, ficha individual do aluno, além da observação constante do desempenho das atividades teóricopráticas, apresentação pessoal e do relacionamento interpessoal [...]. (UFPB, 2003). Para as docentes do Curso Técnico de Enfermagem, as oportunidades de avaliação dessas competências ocorrem durante os estágios e as atividades práticas em enfermagem. Isto porque é no fazer que o sujeito defronta-se com situações inesperadas onde tem que associar os conhecimentos científicos da profissão à situação vivenciada, levando em consideração as normas procedimentais e as atitudes. Na ETS busca-se avaliar tanto os conhecimentos, 38 através da utilização das tradicionais provas ou trabalhos escritos, como o saber fazer e o ser, na atuação prática. Para a avaliação prática existe uma ficha de acompanhamento do aluno, onde estão listadas as atitudes esperadas, que vão desde o seu aspecto físico (indumentária, higienização) e pontualidade, até a utilização de termos técnicos e a execução dos procedimentos, para as quais a professora atribui notas. 2.3 Uma compreensão da techné vinculada à prática de enfermagem O Curso Técnico de Enfermagem da ETS tem - como o próprio nome explicita - a função de formar pessoas para a utilização de um conjunto de técnicas específicas na atuação profissional na área de enfermagem, que inclui também o desenvolvimento de atitudes voltadas para o atendimento humanizado aos que estão sob seus cuidados. A pessoa egressa desse curso terá que dominar conhecimentos especializados em função de sua atuação prática. Esses conhecimentos especializados diferem da teoria concebida por Platão como ciência pura, pois são acionados em função de uma prática. Portanto a palavra grega techné é algo que transcende a arte10, e refere-se àquelas profissões práticas que se fundamentam em um conjunto de conhecimentos especializados. (JAEGER, 1995). Convém ressaltar a forma que Platão caracterizou a techné utilizando-nos das palavras de Jaeger (1995, p.656), As características essenciais do conceito de techné são: primeira, é um saber baseado no conhecimento da verdadeira natureza do seu objeto; segunda, é capaz de dar conta das suas atividades sempre que tem consciência das razões, segundo as quais procede; finalmente, tem por missão servir a parte melhor do objeto de que se ocupa. Uma das funções do técnico de enfermagem é a de executar os procedimentos determinados pelos enfermeiros junto à pessoa que se encontra em tratamento de saúde, observando as reações e a ocorrência de eventos esperados e/ou inesperados para relatá-los posteriormente à equipe de saúde, através do relatório no prontuário e de comunicação oral, dependendo da situação. Não tendo prerrogativas para realizar um diagnóstico e determinar a terapêutica, o/a técnico/técnica pode contribuir com sua realização através do repasse de informações relevantes à equipe de saúde. Ao lidar com a pessoa doente ele/ela precisa mobilizar conhecimentos e habilidades que se aproximam dos que são do domínio dos médicos hipocráticos, tais como os descreveu Gonçalves: 10 Arte entendida, segundo o Dicionário Eletrônico Aurélio Séc. XXI, como a capacidade humana de colocar uma idéia em prática valendo-se da faculdade de dominar a matéria. 39 A atitude fundamental que se espera do médico hipocrático é a de desenvolver uma atenção para identificar tecnicamente a(s) alteração(ões) da physis de seus pacientes e saber as opções de intervenção técnica capazes de auxiliar para a recuperação do estado de saúde. É, portanto, uma arte, um saber fazer que tem uma base racional (episteme) e um conhecimento racional voltado para intervir tecnicamente. O bom médico vai ser reconhecido pela acuidade dos sentidos, pela sua inteligência e pela habilidade de suas mãos. (GONÇALVES, 2003, p 49) Acreditamos que, nos dias atuais, grande parte dessas habilidades se aplica ao técnico de enfermagem. Sentidos acurados, habilidade manual e conhecimento racional que levam ao saber fazer são requisitos importantes para a boa atuação profissional. Segundo o educando Chico (p.m.): A gente vê assim: “eu vi a professora fazendo, eu também sei”. Mas quando você pega, você vai sentir a diferença. Você vai ver bem é quando você pega. Pelo menos lá, a gente fazendo um curativo... Eu. E um colega ao lado sempre me catucando: _ “pegue de tal jeito”. E na hora que terminou o meu, chegou a vez dele, noutro paciente. Creia em mim: errou totalmente. Mas ele tava seguro que tava ensinando o outro. É, ele estava o tempo todo me catucando. Quando foi no horário dele foi um geral, por que? Porque é diferente quando você vê e quando você faz. O depoimento de Chico (p.m) enfatiza a importância e a necessidade da prática para uma boa formação do técnico em enfermagem, ressaltando que nesse caso, o conhecimento racional, por si só, não leva ao saber fazer “dentro da técnica”, para utilizar as palavras das professoras enfermeiras. O colega de Chico (p.m.) teoricamente sabia realizar o procedimento, mas ainda não tinha, assim como Chico (p.m.), desenvolvido a habilidade manual para fazer tal coisa. Lembremos que Chico é agricultor e os instrumentos que utiliza no seu trabalho são mais pesados, requerendo a utilização da força física. O trabalho com os instrumentos de enfermagem utilizados ao se fazer um curativo, por exemplo, requer firmeza e leveza ao mesmo tempo. Há alunos e alunas que sentem dificuldades na compreensão da teoria, fato o que consideramos resultado de uma série de acontecimentos que vão desde a fragilidade da formação escolar recebida no campo, até a sobrecarga de horas-aula do curso, que não lhes deixa tempo para elaborar as informações adquiridas no decorrer do dia, o que acaba se concretizando durante a atividade prática. Foi o que revelaram os alunos Jósimo (p.m.) e Zé Divino (p.m.): 40 Eu acho o seguinte: a dificuldade é nas aulas teóricas. Porque o tempo é curto. Agora, a facilidade maior é na parte prática. Quando você passa a estagiar, você aprende duas vezes mais do que na parte teórica. (Jósimo) Durante a teoria a gente acha que tudo é difícil. Quando passa à prática vem de imediato a lembrança do que a gente viu na sala de aula, durante a teoria. (Zé Divino) A professora Arruda pensa de forma semelhante aos educandos e educandas: Aprendem com muita facilidade as técnicas. Nas técnicas eles “dão um banho”. Acho até que nas teóricas eles têm mais dificuldades, mas as técnicas, tanto as que eles fizeram no hospital fizeram muito bem feitas, como aprendem aqui as técnicas, não dão trabalho nenhum para aprender. Como eles aprendem com facilidade, porque eles são é... aí está o pensamento concreto, não é? Para eles é muito mais fácil, não é? As questões teóricas para eles são muito mais difíceis. Mas estão acompanhando, não é? Vale salientar que a professora baseou sua fala em conversas com colegas cujas disciplinas ofereciam aulas práticas em enfermagem, o que não era o seu caso. As professoras Camomila e Malva ministraram uma disciplina na qual havia o estágio obrigatório. Sobre esse momento, a professora Camomila afirmou: Eu tive todas as oportunidades lá junto com os funcionários do hospital, e me surpreendeu, realmente, a desenvoltura deles e o querer aprender. Não houve muita técnica, até porque eu fiquei mais na outra parte e ‘Malva’ foi quem ensinou mais a técnica mesmo. Mas eles aprendiam com uma facilidade incrível. É a curiosidade deles. Demais, demais, demais. Achei muito proveitoso, aula prática, muito. Surpreendente. Portanto, para podermos construir esse conhecimento da verdadeira natureza do objeto, não podemos separar a teoria da prática. De acordo com Gonçalves (2003, p. 50), “A techné corresponde às tarefas práticas e atividades profissionais que exigem saber empírico, mas também regras gerais e conhecimentos consolidados”. Portanto, a construção dos conceitos relacionados aos cuidados de enfermagem poderia ser facilitada, a nosso ver, se a prática ao invés de ser efetivada após os estudos teóricos, fosse realizada concomitantemente a eles, na medida do possível. Aqui recorremos a Hannoun 41 que, segundo Pereira (2007), foi buscar em Varela o conceito de enação, afirmando que para procurar transcender a visão cartesiana, deve-se romper com a imagem dual de mundo e com os binarismos tais como teoria e prática, de forma que estes se encaixassem com naturalidade. A aluna Margarida (p.m.) expôs seu pensamento acerca dessa relação entre teoria e prática da seguinte forma. E principalmente quando você tem a teoria e a prática, fica melhor ainda, porque você consegue ligar uma coisa com a outra. Eu acho que uma coisa não existe sem a outra. Mas a prática é bem mais fácil para você aprender. Parece-nos que há um consenso entre os educandos de que a prática é mais fácil de ser aprendida e que a teoria passa a ser compreendida mais facilmente quando aplicada à prática. Eu não sinto dificuldade em nenhuma não, mas acho que você aprende mais na prática. Porque assim é bom porque você tem a teoria e a prática. Não é? Teoria e a prática. Não dá tempo de você esquecer. Então eu acho que os dois são interessantes. Agora que para a gente, eu acho que para aprender mais, melhor mesmo, é na prática. (MARGARIDA) Essa facilidade de aprender na prática é inerente ao ser humano. Se recorrermos às fases do desenvolvimento humano, tanto ontogenética como filogeneticamente, nós veremos que as primeiras aprendizagens ocorreram a partir da prática, do concreto. A criança, por exemplo, para compreender o mundo adulto com todas as suas relações precisa brincar, realizando o jogo do faz de conta. Já, no processo de hominização, os seres humanos passaram por mutações genéticas que, segundo Morin (1973, p.54) [...] realizam as transformações anatómicas e o aumento do tamanho do cérebro; uma “seleção” do bipedismo por um meio natural adequado, que já não é a floresta mas sim a savana; um novo tipo de vida que, fazendo desse animal simultaneamente presa e predador, desenvolve numa dialéctica pé-mão-cérebro aptidões cerebrais que até então não tinham sido sistematicamente exploradas pelo chimpanzé, acarreta a utilização de armas defensivas e ofensivas e a construção de abrigos, iniciando, portanto, o desenvolvimento técnico no seio de uma nova práxis. Dito em outras palavras, os seres humanos começaram a se diferenciar dos demais animais a partir do momento que liberaram suas mãos para o 42 trabalho, o que facilitou o desenvolvimento de suas aptidões cerebrais. Acreditamos que por este motivo nós, seres humanos, ainda aprendemos mais facilmente se nos for dada a oportunidade de utilizar nosso corpo nesse processo. Se nos for dada a chance de realizar atividades que nos façam construir, em interação com outros seres humanos, o conhecimento teórico. Há, inclusive, um sábio ditado milenar oriental que é citado em muitas produções sobre educação e que retomamos neste trabalho: “Se escuto, esqueço; se vejo, relembro; se faço, aprendo”. Poderíamos compreender esse fazer que leva à aprendizagem como a atividade que surge das necessidades do viver. Como já afirmaram Marx e Engels (1991, p.37), “Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência”. Nesse sentido, Maturana segundo um estudo realizado por Vieira (2004), aponta para a relação entre o conhecer e o viver. Entendendo cada ser vivo como um sistema fechado, mas ao mesmo tempo existindo em relação com outros organismos, ele afirma que cada ser vivo organiza seu conhecer a partir do seu próprio viver em relação com outros seres. Na sua busca para entender como o ser vivo conhece o mundo, Maturana chegou à conclusão de que o ser vivo “age e re-age diante das circunstâncias, já que vai organizando seu conhecer a partir do próprio ato de viver”. (VIEIRA, 2004, http://www.humanitates.ucb.br/2/maturana.htm). A teoria, derivada do verbo theoréo, que significa “observar, examinar, contemplar” passou a referir-se aos “que contemplam com os olhos da inteligência ou do espírito e, portanto, que examinam idéias, conceitos, essências, com o significado de raciocinar, pensar, demonstrar, julgar, meditar e refletir.” (CHAUÍ, 2002, p.512) Os educandos teorizam através da contemplação, do exame das idéias e conceitos ao observar e ao refletir sobre sua própria prática, relacionando-a de imediato com as teorias que a orientam. E, ao conversar sobre elas, não estão sendo ouvintes passivos de palavras proferidas pelo professor fadadas ao esquecimento. Estão sim convivendo e, ao mesmo tempo, sendo os autores do próprio conhecimento. De acordo com Freire (2002, p.41), a prática “[...] ganha uma significação nova ao ser iluminada por uma teoria da qual o sujeito que atua se apropria lucidamente.” Ele alerta para a necessidade de compreendermos que nossa ação envolve uma teoria, mesmo que não tenhamos conhecimento disso. Por 43 isso orienta-nos a refletir sobre a ação desvelando seus objetivos, seus meios e sua eficiência. Para tanto, é necessário o estabelecimento de uma relação dialógica, para que não incorramos na antidialogicidade. Freire afirma que uma das características da ação antidialógica é a invasão cultural, na qual “[...] o invasor reduz os homens do espaço invadido a meros objetivos de sua ação”. (2002, p. 41) Com estudantes de áreas de assentamentos, corre-se o risco de atuar de maneira a impor o pensamento docente, principalmente quando este insiste no ensino conteudista, sem promover a problematização necessária ao ato de aprender. Para Freire (1980, p. 81), A educação problematizadora está fundamentada sobre a criatividade e estimula uma ação e uma reflexão verdadeiras sobre a realidade, respondendo assim à vocação dos homens que não são seres autênticos senão quando se comprometem na procura e na transformação criadoras. Em resumo: a teoria e a prática bancária, enquanto forças de imobilização e de fixação, não reconhecem os homens como seres históricos; a teoria e a prática críticas tomam como ponto de partida a historicidade do homem. O diálogo é inseparável da problematização, pois nele reflexão e ação direcionam-se à transformação e humanização. Portanto, o diálogo representa uma ação contrária ao repasse de conteúdos pré-estabelecidos que, segundo Freire (1980) não pode se limitar a uma troca de idéias, nem transformar-se numa discussão hostil. Para haver diálogo tem que haver amor, fé, esperança e pensamento crítico que conduzem a ação transformadora do homem sobre si mesmo – humanização – e sobre a realidade que o cerca. 3. O CURSO DE FORMAÇÃO DE TÉCNICO DE ENFERMAGEM E SUPLÊNCIA DO ENSINO MÉDIO – PRONERA Tentaremos, neste capítulo, descrever o processo de implantação do curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio na Escola Técnica de Saúde do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba. Por ser, o curso, inserido no Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA), buscaremos tratar de alguns 44 aspectos do programa que julgamos necessários à compreensão do fenômeno em estudo. Em seguida, tentaremos estabelecer um diálogo, centrado nas relações docentes e discentes, para trazer à tona algumas dificuldades enfrentadas por eles na construção desse curso, desde aspectos relacionados à infra-estrutura como às questões didático-pedagógicas e subjetivas das pessoas envolvidas. 3.1 As Diretrizes Operacionais do PRONERA e o Projeto do Curso Técnico de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio Com as construções pedagógicas voltadas para levar em consideração as experiências culturais existentes na zona rural, vem se consolidando um modelo de educação do campo tendo, na atualidade, o MST como o seu maior articulador. Após a promulgação da Constituição, a luta por uma educação de qualidade que respeitasse a identidade do homem e da mulher do campo, com suas especificidades culturais de gênero, etnia, idade, continuou. Portanto, desde os anos 1990, os movimentos sociais do campo vêm buscando, junto às universidades, condições de acesso e permanência dos trabalhadores rurais nestas instituições, objetivando uma formação profissional que atenda às suas especificidades. Naquela época, [...] a partir das pressões dos movimentos sociais do campo, surgem iniciativas institucionais para a criação de uma agenda voltada para o encaminhamento de políticas para a educação no campo, envolvendo seguimentos da sociedade organizada. (FURTADO, 2006, p. 68) Nesse contexto, em julho de 1997, o MST realizou o primeiro ENERA, Encontro Nacional dos Educadores e Educadoras da Reforma Agrária, em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), Organização das Nações Unidas para a Educação (UNESCO), Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), e Universidade de Brasília (UnB). Com resultados bastante proveitosos, decidiu-se pelo desenvolvimento de um projeto mais amplo, que contemplasse todos os sujeitos do campo e seu contexto. A realização da I Conferência Nacional por uma Educação do Campo foi resultado do ENERA. Além das entidades participantes daquele I ENERA, a I Conferência 45 contou com a participação de organizações não governamentais, sindicatos, universidades, e entidades outras ligadas ao processo de educação no campo. A valorização das culturas do campo, a luta por políticas públicas pelo direito à educação básica no campo, e a vinculação das práticas de educação básica do campo com a construção de um projeto popular de desenvolvimento nacional, foram alguns dos compromissos definidos naquela Conferência. As conclusões da I Conferência foram divulgadas e discutidas por todo o país. De acordo com Caldart (2004, p.13), a I Conferência Nacional por uma Educação Básica no Campo foi o marco do “novo jeito e lutar e de pensar a educação para o povo brasileiro que trabalha e vive no e do campo”. Foi o debate preparatório para essa Conferência que deu origem a Articulação Nacional Por Uma Eduação do Campo. Para Caldart (2004, p.19) A educação do Campo se constitui a partir de uma contradição que é a própria contradição de classe no campo: existe uma incompatibilidade de origem entre a agricultura capitalista e a Educação do Campo, exatamente porque a primeira sobrevive da exclusão e morte dos camponeses, que são os sujeitos principais da segunda. Em nosso debate isso tem sido referido como a principal oposição com a educação rural ou para o meio rural, que historicamente tem sido o nome dado às iniciativas do Estado de pensar a educação da população trabalhadora do campo, de modo a escamotear esta contradição e fazê-la de objeto e instrumento executor de políticas e de modelos de agricultura pensados em outros lugares, e para atender a outros interesses que não os seus como grupo social, classe e pessoas. A aprovação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica nas escolas do Campo (Parecer nº 36/2001 e resolução nº 1/2002 do Conselho Nacional de Educação) foi conquista resultante das lutas dos homens e mulheres do campo e das pessoas da cidade que abraçaram esta causa. Digna de nota foi também a instituição, em 2003, do Grupo permanente de Trabalho de Educação do Campo, com a participação de representantes dos movimentos sociais e sindicais de trabalhadores e trabalhadoras do campo. Atualmente, na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD) do Ministério da Educação, há uma Coordenação-Geral de Educação do Campo. De acordo com a resolução CNE/CEB I, de 3 de abril de 2002, no Artigo 3º, o Poder Público deverá garantir a universalização do acesso da população do campo à Educação Básica e à Educação Profissional de Nível Técnico. Porém, 46 como consta no Artigo 6º da mesma resolução, o Poder Público atuará em “regime de colaboração entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios”, para proporcionar a educação infantil e o ensino fundamental às comunidades rurais, incluindo os que não o concluíram na idade prevista, cabendo especialmente aos estados a garantia de acesso ao ensino médio e à educação profissional de nível técnico. Acreditamos que dificilmente o Estado possibilitará de forma eficiente o acesso ao ensino médio e profissional de nível técnico às pessoas do campo, pelo menos a curto e médio prazo, pela própria história de não prioridade à educação no nosso país. Arroyo (2004, p.105) enfatiza a importância da responsabilidade do Estado em se tratando da educação, quando afirma: Seria ingenuidade política dos movimentos sociais tentar assumir a tarefa da educação prescindindo do público. A história mostra com nitidez que a garantia dos direitos sociais somente acontece quando assumidos como dever do Estado, no campo do público. À sociedade, às famílias, aos movimentos sociais cabe mostrar a diversidade de direitos, denunciar até sua negação para os diversos grupos humanos e pressionar para que o Estado os garanta como direitos universais iguais para todos, em espaços públicos através de leis, recursos e políticas públicas. A educação do campo não é responsabilidade única dos movimentos sociais, mas da sociedade toda, especialmente do Estado e dos diversos governos. O PRONERA surgiu como resultado das pressões dos movimentos sociais, por uma educação adequada às pessoas do campo. No entanto permanece como um paliativo, que ainda não se efetivou como uma política pública permanente de EJA. Em que pesem as críticas a este programa, deve-se destacar a sua importância político-social, na medida em que pauta sua atuação na participação, mobilização, organização, enfim, num projeto coletivo que valoriza o outro, abrindo o diálogo, respeitando as diferenças, estabelecendo parcerias e construindo novas relações de poder. O Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária (PRONERA) foi criado em 16 de abril de 1988, pelo Ministério Extraordinário de Política fundiária através da Portaria Nº 10/98, para atender à grande demanda por educação para as pessoas jovens e adultas das áreas de Reforma Agrária. Trata-se de um programa amplo que inclui alfabetização, educação básica, formação técnicoprofissional e formação continuada de professores, através de cursos normais de nível médio, cursos superiores de licenciatura plena ou cursos de pós- 47 graduação. O PRONERA, que tem o objetivo de contribuir para a promoção do desenvolvimento sustentável, tem como princípios político-pedagógicos: a inclusão, que consiste no acesso à educação como um direito social fundamental na construção da cidadania dos jovens e adultos da reforma agrária; a participação, que implica na tomada de decisões junto com os parceiros, sobre a elaboração, execução e acompanhamento dos projetos; a interação, ou seja, a formação de parcerias entre órgãos governamentais, instituições públicas de ensino e instituições comunitárias de ensino sem fins lucrativos, movimentos sociais e sindicais de trabalhadores rurais e as comunidades assentadas; e a multiplicação, que visa à ampliação do número de educadores e educadoras, técnicos e técnicas e do número de pessoas alfabetizadas e formadas nos diferentes níveis nas áreas de reforma agrária (BRASIL, 2004). Os princípios e pressupostos teórico-metodológicos dos projetos, segundo o Manual de Operações do PRONERA são os seguintes: Princípio do diálogo: é preciso garantir uma dinâmica de aprendizagem-ensino que assegure o respeito à cultura do grupo, à valorização dos diferentes saberes e produção coletiva do conhecimento. Princípio da Práxis: é preciso construir um processo educativo que tenha por base o movimento ação-reflexão-ação e a perspectiva de transformação da realidade; uma dinâmica de aprendizagem-ensino que ao mesmo tempo valorize e provoque o envolvimento dos educandos/educandas em ações sociais concretas, e ajude na interpretação crítica e no aprofundamento teórico necessário a uma atuação transformadora. Princípio da transdisciplinaridade: processo educativo que contribua para a articulação de todos os conteúdos e saberes locais, regionais e globais garantindo livre trânsito entre um campo de saber e outro. É importante que nas práticas educativas os sujeitos identifiquem as suas necessidades e potencialidades e busquem estabelecer relações que contemplem a diversidade do campo em todos os seus aspectos: sociais, culturais, políticos, econômicos, de gênero, geração, etnia. (BRASIL, 2004, p. 22) Com inspiração nesses princípios, foi elaborado o Projeto de Formação Técnico-profissional: Cursos de Habilitação de Técnico de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio, que teve como instituição proponente a Universidade Federal da Paraíba: Escola Técnica de Saúde, Setor de Estudos e Assessoria a Movimentos Populares – SEAMPO, Colégio Agrícola Vidal de Negreiros. O projeto contou, ainda, com assessoria pedagógica do Centro de Educação da UFPB. Este projeto veio ao encontro dos anseios das comunidades 48 assentadas, não só pela necessidade de escolarização das pessoas, mas também pelas lacunas ainda existentes no atendimento à Saúde pelo Sistema Único de Saúde (SUS), principalmente em áreas pouco populosas. Assim, de acordo com o Relatório Resumido Ano II – 2005, do PRONERA, o Projeto de formação técnico-profissional: Cursos de Habilitação de Técnico em Enfermagem e Suplência do Ensino Médio tem como metas finais: Ao terminar o curso os profissionais com formação em técnico em enfermagem devem ter competências e habilidades para cuidar da pessoa saudável ou doente de forma humanizada, quer seja nos serviços de ações básicas de saúde ou nos diversos setores das instituições hospitalares. Deve atuar de forma hábil e adequada, utilizando técnicas e procedimentos indicados para os diferentes casos. (UFPB, 2005, p. 5) A necessidade de habilitação de pessoa para o trabalho de saúde nos assentamentos foi relatada pelos próprios alunos do curso, quando abordaram os motivos que os levaram a fazer o curso técnico em enfermagem: Um dos motivos que mais me motivou foi isso também. Quer dizer: saber o que estou falando e com segurança do que eu falo e poder, através daí, reivindicar alguma coisa para o benefício da comunidade. Que antes, pra falar a verdade, isso eu não tinha. Na verdade, eu não sabia de nada até hoje. Depende de que... Como a maioria... Hoje não. Já mudou. Hoje ta tendo treinamento, mas no início... Isso foi em 95, 94. Na área de saúde eu praticamente não sabia de nada. Eu tiro por mim. Eu passei dois anos. O que eu sabia era fazer as visitas, era perguntar o que os outros mandavam, mas fazia apenas isso. Mas fazia porque tava escrito. Vai preencher uma ficha, eu ia e preenchia. Mas não tinha nenhuma noção. E com esse curso é diferente. (Chico – p.m.) O educando Chico (p.m) acompanha uma área de conflito no município de Rio Tinto. È posseiro. Atua na CPT e reside na comunidade de Areia Branca. É membro da diretoria do sindicato rural. Participa das reuniões do Conselho de Saúde do seu município e é também agente comunitário de saúde. Esta vivência possibilitou o conhecimento das necessidades de saúde das pessoas das localidades onde atua e isto aliado ao compromisso social que foi construído ao longo da sua vida o fizeram sentir o desejo de ser um técnico em enfermagem: poder atuar com propriedade em benefício da comunidade. Chico (p.m.) afirmou que após cursar algumas disciplinas sentiu-se mais seguro: “Teve reunião em Rio Tinto, agora, do Conselho de Saúde, do que eu participei. Aí eu já tenho 49 noção do que eu tava falando, do que tava acontecendo na reunião e eu podia falar com mais segurança.”. Este desejo de ajudar ao próximo nos remete, mais uma vez, a teoria de Maturana, quando este trata da amorosidade. Segundo este biólogo, nossas emoções nos permitem transitar de um percurso explicativo a outro, no curso do nosso emocionear11. “En fin, nos movemos em um camino explicativo o en el otro según nuestras emociones”. (2000, www.gritzgestalt.com/artimaturana.htm). Para Maturana, falar de emoções é falar de classes de condutas relacionais, ou seja, sentimos qualquer emoção como medo, ternura, amor, ódio, agressão, porque nos relacionamos. E quando há amor o outro, a outra ou o próprio individuo surge como o legítimo outro em convivência. La expresión “legítimo” sólo quiere decir el outro, la outra o uno mismo no tiene que disculparse por ser. Cada vez que alguien se disculpa por ser revela que se encuentra em um espacio en el cual no surge em su legitimidad en relación con los otros. (MATURANA, 2000, www.gritzgestalt.com/artimaturana.htm) Poderíamos dizer que amar é aceitar-se e ao outro na convivência sem anular-se, mas reconhecendo e respeitando as diferenças e o lugar do outro, buscando com-partilhar. Portanto, a amorosidade é o vínculo que permite aos educandos mover-se no sentido da superação dos seus próprios limites para traçar novos percursos no sentido do encontro com a sua comunidade, para que possam realizar ações transformadoras a partir dos conhecimentos técnicos que buscaram adquirir no curso. A educanda Anunciada (s) que atuou durante um ano como agente da CPT, visitando as áreas e os acampados onde pode ver os problemas de saúde enfrentados pela população, já desejava dedicar-se ao ofício da medicina antes mesmo de ser ventilada a possibilidade do curso técnico em enfermagem no seu assentamento. O que me motivou... Foi assim, lá na minha comunidade existe muita necessidade na questão da saúde. Então eu via muita necessidade. E eu sempre tive vontade de fazer faculdade de medicina. (ANUNCIADA) Além disso, outro fator relacionado à solidariedade cristã potencializou esse 11 Maturana entende emocionear diferentemente de emocionar. Segundo o autor Emocionear é o processo dinâmico do fluir das emoções, como linguagear é o fluir da linguagem. 50 desejo que Anunciada (s) tem de ajudar ao próximo. As freiras, ao longo da história, têm voltado sua atuação para as áreas da educação e da saúde, principalmente exercendo a função de professoras e enfermeiras. É porque eu sempre gostei assim de ajudar o próximo, de estar no meio do povo, ajudando. Então, eu fui freira e depois eu voltei pra casa e então eu queria encontrar, assim, um meio de ajudar as pessoas. Então apareceu essa possibilidade então eu vi que aí, também, a partir de meu desejo, é... Era uma possibilidade assim de eu ajudar mais as pessoas. A aluna Margarida (p.m.), que faz parte do setor de saúde do MST, discute a questão da vocação que para ela é uma imposição da sociedade. Segundo ela, a luta por transformações é tão árdua que não há tempo para pensar em vocação. Acima desta questão está a necessidade do povo. A sociedade, ela impõe muito a questão da vocação, não é? Ela impõe assim que você faça um teste vocacional para ver se é isso ou aquilo que você quer. E eu me vejo muito pelo seguinte: como você tem um povo que precisa de você, que está ali, na luta, seja no cabo da enxada, seja numa mobilização, qualquer coisa em busca de um objetivo,então para a gente estudante pensar, para muitos, pensar o que seria uma vocação, o que queria, é complicado. Porque eu pensei muito na necessidade do povo.[...] Hoje eu aprendi a amar a enfermagem. A amar o que eu estou fazendo. Quero continuar na área de saúde sempre. Mas não foi aquela coisa assim: será que tenho vocação, se não tenho... Foi a necessidade que juntou com a oportunidade. Tinha a necessidade do povo, tinha a minha necessidade de estudar e foi a oportunidade que eu encontrei. (MARGARIDA) Parece-nos que foi por ser uma pessoa versátil que a educanda conseguiu satisfazer sua necessidade de estudar e a necessidade do povo da sua comunidade, sem ater-se à questão da vocação. E sua versatilidade lhe permitiu aprender a amar o que faz, pois esses movimentos a conduzem ao encontro amoroso com o outro. Neta de posseiros, vivendo no assentamento Santa Helena, a aluna Dorothy (s) não milita em nenhum movimento social. Abraçou o curso como a única oportunidade de prosseguir estudando e afirmou: Eu quero ajudar a minha comunidade no que eles precisarem, porque lá eles precisam muito. Por as casas ser dispersas, não ter hospitais perto, tudo o que eu aprendi foi para eles. (DOROTHY) A dispersão das casas deve-se a estrutura do assentamento. Alguns estão 51 estruturados sob a forma de agrovilas, onde as casas ficam próximas, formando ruas. O assentamento a que Dorothy se refere não é uma agrovila. As casas são distantes umas das outras, por situarem-se próximas ao roçado . Este modelo de assentamento deixa as famílias mais isoladas, o que para a aluna é um dos motivos, junto com a falta de uma unidade hospitalar, para que estude no curso. Já Inês (s), que freqüentava as reuniões da CPT, justificou sua opção pelo curso técnico de enfermagem afirmando que no seu assentamento não existe “posto médico”. Há apenas um na pequena cidade próxima à sua comunidade para atender a aproximadamente dois mil habitantes. Como sua colega Anunciada (s), Inês (s) já desejava atuar na área de saúde desde algum tempo, mas a falta de condições financeiras a impedia. Bom eu, desde adolescente, eu já pensava de eu tivesse condições de fazer um curso já na área de saúde. Só que eu nunca tinha tentado, por falta de recurso. Não tinha condições. Aí como apareceu essa oportunidade para mim foi uma das melhores coisas que aconteceu na minha vida. [...] Lá no assentamento não existe posto médico. A cidade é pequena ainda. Um número dois mil e pouco de habitantes. Só existe um posto médico (na cidade). Não tem nenhum hospital na cidade. Ela é muito pequena ainda. Só tem o posto médico na cidade. Nos sítios agora começou o atendimento uma vez por mês, é... No sítio que a população for maior. No caso o meu assentamento não ficou. Ficou no sítio vizinho. Aí uma vez por mês o médico vai para esse sítio. O pessoal de lá vai. Ou então os que quiserem, precisarem ir ao médico durante a semana, para... Antes desse dia que o médico vem, vai com meu esposo (em uma motocicleta). Ele leva duas pessoas por dia para o médico. (INÊS) Como se pode perceber por estes depoimentos, o Curso de Formação de Técnico em Enfermagem e Suplência do ensino médio veio ao encontro das necessidades dos assentados/assentadas da reforma agrária, para que possam contribuir com a melhoria da qualidade de vida da população local, ou seja, para que sejam sujeitos de transformação da realidade das suas localidades e também para que prossigam os estudos e adquiram uma profissão. Não importando o grau de inserção nos movimentos sociais, a preocupação com o seu povo está presente em todos os depoimentos no que se relaciona à motivação para fazer o curso. A questão grave que se apresenta aqui é a de como vai ocorrer a inserção dos alunos e alunas do curso no mercado de trabalho. Parece-nos que não houve preocupação por parte do PRONERA em garantir a fixação das pessoas 52 formadas no curso técnico em enfermagem e suplência do ensino médio no seu local de moradia. Queremos salientar a atuação da coordenação desse curso e da direção da ETS no sentido de favorecer a permanência dessas pessoas no campo. Sem medir esforços, a direção da escola visitou cada município do estado onde se houvesse um assentamento vinculado ao curso para tentar garantir, junto à secretaria de educação a absorção profissional dos / das estudantes formados(as) pelo curso. Esta medida emergencial foi uma tentativa da ETS de fazer cumprir o objetivo do PRONERA em relação à permanência das pessoas no campo. E durante todo esse percurso com essa formação, também participei de visitas às secretarias municipais de saúde, fazendo contato com os secretários e as secretárias com o objetivo de mostrar a importância da formação desses alunos que estavam sendo... nas áreas de assentamento, e o benefício, enquanto profissional, que ele traria para o município. Então foi muito receptiva, a essas informações, e também pedi o apoio para que essas secretarias absorvessem eles enquanto profissionais, após a conclusão do curso. E todos me atenderam muito bem e se comprometeram a realmente atender a esse pedido. Porque tinha a secretaria de saúde que necessitava do técnico em enfermagem e a própria comunidade não tinha esse profissional e ele estava contratando técnicos das cidades vizinhas, de cidades vizinhas. Então nesse sentido assim, foi muito gratificante a formação dessa primeira turma porque ao término, a maioria já estava empregada. Já estava absorvida pelo mercado de trabalho local. (ICLÈIA HONORATO DA SILVA CARVALHO) Esta atitude da direção foi motivada pela tomada de conhecimento acerca dos resultados práticos de um curso técnico em enfermagem também inserido no PRONERA do vizinho estado de Pernambuco, onde o percentual de absorção de concluintes pelo mercado de trabalho local foi, até aquele momento considerado insatisfatório, segundo depoimento de suas coordenadoras. Agindo dessa maneira, a direção proporcionou aos educandos e educandas a possibilidade de refletir e debater sobre essa questão, uma vez que esta atitude foi comunicada aos mesmos. Isto possibilitou novas aprendizagens, fora do contexto específico da sala de aulas. O Projeto de Formação técnico-profissional: cursos de habilitação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio, inspirado nos princípios e pressupostos metodológicos do PRONERA, e elaborado de acordo com as especificações do seu Manual de Operações, tem como objetivo geral 53 Promover a formação profissional de técnicos em enfermagem dentro dos princípios éticos, para atender de forma eficiente às demandas da comunidade de assentados e assentadas em áreas de reforma agrária com a concepção de saúde coletiva. (UFPB, 2003, p.8). A carga horária do curso é de 3000 horas/aula, sendo que 1.200 horas/aula destinam-se à Suplência do Ensino Médio e 1.800 horas/aula ao Curso de Habilitação de Técnico em Enfermagem. A carga horária para o Tempo-Escola da Suplência do Ensino Médio é de 840 horas/aula e de 360 horas/aula para o Tempo-Comunidade. Para o Curso Técnico de Enfermagem a carga horária é de 1.260 horas/aula para o TE e 540 horas/aulas para o TC. Como a proposta pedagógica do curso apresenta, como referencial orientador, a pedagogia problematizadora “cujo objetivo é preparar o aluno, futuro profissional, como ser social, ativo, reflexivo, criativo e solidário” (UFPB. 2003, p.10), consideramos elevado o número de alunos em cada uma das turmas: o Curso Técnico de Enfermagem com 44 alunos e o Curso Técnico de Enfermagem e Suplência do Ensino Médio com 46 alunos. Se, por um lado, esse número proporciona o contato dos e das estudantes com um número maior de diferenças, por outro lado, limita as possibilidades de um trabalho docente de acompanhamento mais individualizado às/aos discentes. 3.2 O PRONERA na Escola Técnica de Saúde: Gênesis É possível que a história de conquistas que marca a trajetória da Escola Técnica de Saúde, desde os anos em que se chamava Escola de Auxiliares de Enfermagem até os dias atuais, mesmo atuando nos moldes tradicionais (com os quais tenta romper gradativamente), deva-se ao fato de estar sempre em busca de novos desafios, superando os próprios limites. Dessa maneira, a realização da parceria entre a UFPB, através da ETS/CCS e do SEAMPO/CCHLA, a CPT e o INCRA/PB, com o PRONERA, para a realização do Curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio foi mais um entre tantos desafios, que aconteceu, segundo a diretora da Escola Técnica de Saúde, por iniciativa da própria escola. No seu relato, ela esclareceu como a escola deu os primeiros passos para o trabalho junto aos assentados / assentadas da reforma agrária. Alguém telefonou para mim e me perguntou se a escola tinha condições de conseguir um local para hospedar trinta a quarenta alunos que viessem do interior. Inicialmente foi assim que começou. E eu não sabia, não conhecia o PRONERA, nada sobre isso. [...] E aquilo me chamou atenção e eu procurei Lúcia Guerra: “Lúcia Guerra, que alunos são esses? Que é até um quantitativo alto. Como é que nós podemos fazer um convênio?” E saí investigando e descobri que ia 54 haver uma reunião no SEAMPO, com o pessoal da Universidade, do SEAMPO, da CPT, do MST... E fui me apropriando dos assuntos que eram abordados e a partir daí comecei a fazer parte do grupo e apresentar o nosso projeto do curso técnico em enfermagem, colocando à disposição tanto do INCRA quanto do SEAMPO, do MST e da CPT, a possibilidade da escola fazer essa formação técnica. A partir daí, começou a tomar corpo o projeto do curso e sua proposta pedagógica e metodológica, construída pelas instituições parceiras. O projeto especifica as responsabilidades e atribuições de cada membro da parceria, cabendo à UFPB, entre outras responsabilidades, a de indicar os professores para o corpo docente do curso, “de forma a garantir as diretrizes e os princípios teórico-metodológicos do programa” (UFPB, 2003, p, 4), assim como acompanhar e avaliar sua atuação e a dos discentes. À CPT coube, além de outras tarefas comuns a todos os parceiros, a mobilização dos interessados em participar do processo seletivo entre os assentados; acompanhar as atividades e o desempenho dos alunos e assegurar a presença no Tempo-escola e nas atividades previstas no tempo-comunidade. E, ao INCRA, coube divulgar, articular, implementar e acompanhar o PRONERA, no âmbito da superintendência, além de outras responsabilidades comuns aos parceiros. O Curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio é coordenado por duas professoras da ETS e conta com assessoria pedagógica do profº Dr. Luiz Gonzaga Gonçalves, do Centro de Educação/UFPB. O corpo docente é o do curso técnico em enfermagem da ETS, ao qual se juntaram outros professores convidados para as disciplinas da suplência – Ensino Médio -, e as disciplinas pensadas especificamente para o programa, como é o caso de Educação Popular, Educação do Campo, Plantas Medicinais. Superada a etapa inicial de elaboração de projeto, seleção dos alunos e dos docentes, organização do equipamento escolar e de apoio aos alunos (alojamento, transporte, alimentação), teve início o curso que atendeu a assentados / assentadas de todas as regiões do estado da Paraíba, além de dois alunos do vizinho estado de Pernambuco. O mapa abaixo contempla as os municípios paraibanos atendidos pelo projeto. LEGENDA: 01 - Alagoa Grande Areia; 02 - Cajazeir 06 - Jericó; 55 07 - Sossêgo; 08 - Riachão; 10 - Alagoinha, Araçagi; 11 - Itabaiana, Mogeiro; 13 - Conde; 14 - Capim, Rio Tinto, Jacaraú; 15 - Pitimbu, Alhandra, Caaporã; 18 - Sapé, Cruz do Espírito Santo, São Miguel de Taipu; 22 Marizópolis, Aparecida, São Domingos, Paulista FIGURA 1 – Mapa do Estado da Paraíba destacando os 24 municípios de abrangência do Projeto nas 23 regiões paraibanas. Fonte: <http//:www.citybrasil.com.br>. Dados de 2004. Os critérios de seleção dos alunos, segundo o Projeto de formação técnico profissional: Cursos de habilitação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio foram os seguintes: “Os candidatos devem ser apresentados pela CPT; Apresentar comprovante de ensino fundamental (até 8ª série); Residirem em áreas de assentamento acompanhadas pela CPT; Disposição e disponibilidade de tempo para desenvolver as atividades do Tempo-Escola e Tempo-Comunidade.” (UFPB, 2003, p. 13). Dessa maneira a ETS recebeu 90 (noventa) estudantes apresentados pela CPT segundo os critérios estabelecidos. Tratava-se de um grupo bastante heterogêneo quanto à faixa etária (que variava entre 18 e 40 anos); quanto ao tempo que passou fora da escola; quanto à inserção nos movimentos sociais (havia pessoas da CPT, do MST, sindicalistas e pessoas não vinculadas a movimentos sociais nem sindicatos); quanto à história de luta pela terra (alguns participaram ativamente da luta, outros ainda estão em luta, e outros não tiveram nenhuma participação) e de trabalho no campo (agricultores, estudantes, agentes de saúde, professores). Estas diferenças passaram a ser identificadas pelo corpo docente do projeto após o início das atividades, através dos grupos focais realizados na semana preparatória. A informação inicial que chegara à equipe era a de que o grupo, como um todo, 56 seria muito politizado e extremamente questionador, reivindicador, e exigente quanto às questões pedagógicas e de funcionamento do curso. E a gente também tava muito, é... tendo muito cuidado com essa questão porque a gente achava também que os alunos eram mais politizados. Esperava mais deles. Então a gente preveniu muito os professores: “São um público diferente, são uns alunos diferenciados, um pessoal que lutou pela reforma agrária, um pessoal mais reivindicativo, eles vão se dedicar mais. Vão exigir mais de vocês. (ARRUDA) De fato, havia alguns alunos com estas características, mas em número pequeno. Não sendo a politização ou a capacidade de reivindicar, parece-nos que o que aproximava a quase todos, independentemente da vinculação ou não aos movimentos sociais, era a vontade de que seus esforços resultassem em melhoria das condições de saúde das suas comunidades, como podemos perceber nas falas abaixo: Bem, é, esse curso, desde pequeno, pra mim era um sonho. Já tinha tentado em outras escolas, lá na minha cidade, mas só que o custo, realmente, desse curso era muito alto. Aí apareceu essa oportunidade aí me interessou muito. E também em benefício da comunidade que sempre é o motivo da gente estar aqui. (Jósimo (p.m) - agente voluntário da CPT) Até porque eu quis, a vontade é de ajudar as pessoas que precisam porque é difícil. Eu achava difícil assim... É... Ver uma pessoa precisando de minha ajuda e eu não saber ajudar. (Elizabeth (s) - não tem vinculação com movimentos sociais) E é muito gratificante você saber que você vai se formar como técnico de saúde. E você vai servir ao povo. Independente de ser sua família, de ser seus amigos. Porque ali é a família, na verdade, os assentados. Não é? São pessoas que necessitam. Que você sabe a vida de cada um. Que confiam no seu trabalho. Que dá a vida assim mesmo, no cabo da enxada para a gente estar vivo. (Margarida (p.m) – milita no MST) Estas palavras nos remetem de imediato a Paulo Freire quando, em Pedagogia da Indignação (2000) nos lembra que o educando deve se perguntar: “Em favor de que estudo?” Uma vez que, segundo Freire (2000, p. 80) “Ninguém pode estar no mundo, com o mundo e com os outros de forma neutra”. E embora haja estudantes que não têm inserção nos movimentos sociais e que talvez não saibam que sua “neutralidade” pode servir aos interesses dos seus opressores, percebe-se que há uma preocupação real com a situação da sua comunidade, pois de uma forma ou de outra, todos os educandos entrevistados afirmaram que 57 estudam em favor da própria comunidade. Será que a escola está desafiando os alunos, como propôs Freire (2005, p.80), “para que percebam, em termos críticos, a violência e a profunda injustiça que caracterizam sua situação concreta.”? Como afirmamos anteriormente, esta foi a primeira experiência da escola com alunos vindos das áreas de assentamentos. Por este motivo, antes da realização da primeira etapa com os/as estudantes, houve uma semana preparatória para o corpo docente, quando este entrou em contato com memoriais de alunos do curso de Magistério do PRONERA, assistiu a vídeos com depoimentos de camponeses, assistiu a uma palestra sobre educação do campo e trocou idéias e informações sobre o processo que estava por se iniciar. Durante o processo de implantação do curso, a coordenadora do mesmo viveu o que denominou apropriadamente de sessão de sustos. Ao deparar com as exigências do programa e a realidade escolar, a coordenação descreveu o seguinte quadro: O curso técnico em enfermagem da ETS era hospitalocêntrico, conteudista, tradicionalista e no qual o aluno não aparecia como preocupação, uma vez que o processo seletivo garantia alunos com saberes prévios já aguardados pelo corpo docente. Além disso, a coordenação considerava o corpo docente capacitado nos conhecimentos de enfermagem, mas tradicionalista no ensino, possessivo em relação às disciplinas, mas com um aparente desejo de mudança. A coordenação caracterizou os alunos do PRONERA como: “fortes na oralidade; fortes na visualidade; dificuldades na escrita; existência de saberes práticos”. Este diagnóstico levou a equipe a se perguntar: Como articular o ensino médio com a educação profissional, atendendo às especificidades da educação do campo, referenciada pela pedagogia problematizadora e no sistema de alternância? Como articular o domínio dos saberes práticos com os saberes sistematizados? Como levar o aluno a ser protagonista na aprendizagem? Como colocar a aprendizagem como questão? (Informação Verbal)12 Inspirada na resposta do assessor pedagógico: “não sabemos, vamos construir juntos...” (Informação Verbal)13, a Coordenação colegiada do projeto iniciou a fase preparatória com os professores, enfatizando a diferença entre docência 12 Palestra proferida pela professora Eliete Alves da Silva (Coordenadora do curso de Formação de Técnicos de Enfermagem e suplência do Ensino- Médio/UFPB - PRONERA), em Palestra na Universidade do Rio Grande do Norte (UFRN), em 15 de dezembro de 2006. Com o tema: Experiências de aprendizagem no PROEJA. 13 Ibidem. 58 com aprendizagem acumulada e uma docência com aprendizagem aberta. A primeira é aquela na qual o professor acredita que domina de forma satisfatória o processo educativo de sua disciplina, incluindo os conteúdos, os procedimentos didáticos, o perfil dos alunos e o tipo de avaliação. A segunda, que ocorreu com as docentes da ETS no PRONERA, possibilitava novas aprendizagens às educadoras, uma vez que o perfil dos alunos - que é muitas vezes quem define a metodologia e a forma de avaliação -, e o trabalho em alternância, não eram conhecidos pelo corpo docente. (CARVALHO et al, 2007) A Coordenação procurou sensibilizar os professores para direcionar o planejamento para as especificidades da educação do campo, referenciada pela pedagogia problematizadora. Para atingir esse objetivo, a coordenação buscou: Aprofundar as discussões teórico-metodológicas, no sentido de tornar sintonizadas as atividades pedagógicas, quanto aos instrumentos de avaliação das disciplinas, quanto a valorização dos saberes dos alunos, além do planejamento de estratégias pedagógico-didáticas adequados para os estudos e investigações dos alunos durante o Tempo comunidade. (Informação Verbal)14 Foto 1 - Atividade da Semana Preparatória do corpo docente. Fonte: Arquivo do PRONERA. A professora Camomila comentou sobre a importância da semana preparatória: Quando eu soube que nós íamos ter essa turma realmente eu fiquei numa expectativa muito grande. Mas graças a Deus me surpreendi quando eles chegaram, até, desde o início, mesmo antes de dar aula, eu já percebi o interesse que eles tinham, pelo curso, a disposição. É... 14 Apresentação de Eliete Alves em 15 de dezembro de 2006. Com o tema: Experiências de aprendizagem no PROEJA, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte. 59 Eles são pessoas assim, inteligentes, centradas, e quando eu fui dar aula, eu achei uma experiência assim maravilhosa. Talvez até pelo fato de eu ser filha de agricultores, então a gente trocava assim muita conversa, muita experiência, sabe? E, achei assim, claro que antes de nós darmos aula, a coordenação nos reuniu, temos um coordenador pedagógico muito bom, por sinal, e nós tivemos algumas ilustrações em termos de metodologia de ensino para aquele grupo que a gente considera assim um grupo um tanto quanto especial. De acordo com o projeto do curso, a primeira etapa realizada com os/as alunos/alunas foi a Semana Preparatória. Esta foi pensada com o objetivo de “juntar os elementos que possam subsidiar uma reflexão e análise das experiências acumuladas dos alunos sobre a realidade onde vivem com o contexto social e global”. (UFPB, 2003, p.12). Assim, na semana preparatória dos/das educandos/educandas, os alunos participaram de uma série de atividades que incluiu a realização da mística, prática constante no decorrer do curso, cujos objetivos estão ligados valorização da identidade cultural, de acordo com Chico (p.m). A mística, a gente faz, a gente volta muito para a nossa origem. Vamos dizer para o campo, para o movimento, para a participação atual que vem acontecendo. Essas mística ela ajuda muita gente. Agora eu digo muito isso. Às vezes eu vejo alguma coisa e digo: “gente, não vamos esquecer a nossa origem”. Acho que nós temos um papel muito forte aqui. É de mostrar que somos capaz, mas sem perder a nossa origem. E a gente tem algumas colegas que não gostam das místicas, e a gente percebe que é porque ta vivendo num outro universo da vida que ele viveu, e as vezes quer viver essa vida aqui, esquecendo de onde ele veio e da nossa origem, que é uma origem camponesa. Um povo do campo, um povo que tem capacidade para defender a nossa originalidade. Da onde a gente veio. Para Elizabeth e Anunciada, as místicas são importantes, pois apontam formas de procedimento das leituras de mundo dos participantes: Eu acho que toda a mística, como uma dramatização ou uma fala assim, você quer passar alguma coisa. E a mística é isso. Ela não quer só dramatizar uma coisa. Ela quer ver qual é a forma que você vê, que você olha tal situação. (Elizabeth – S) A mística eu acho muito importante na nossa vida. Porque ela vai nos ajudar a ver as coisas de uma forma diferente. (Anunciada – S) Por este motivo as místicas também fazem parte do processo ensinoaprendizagem, oferecendo aos educandos e educandas a possibilidade de refletir sobre questões relacionadas à sua identidade histórica e cultural, e aos educadores e educadoras a oportunidade de refletirem também sobre a 60 realidade dos seus alunos e alunas e sua própria ação no mundo. Foto 2 - Atividade da Semana Preparatória Discente Fonte: Arquivo do PRONERA A semana preparatória culminou com a realização de grupos focais, com o objetivo de que cada aluno/aluna produzisse seu memorial a fim de subsidiar o trabalho docente. Assim, os alunos foram distribuídos aleatoriamente em pequenos grupos, onde se apresentaram aos demais participantes do grupo e relataram oralmente suas memórias e reflexões acerca da sua vida no campo, enfocando a escola, a família, o trabalho, e os aspectos relativos ao lazer, luta pela terra, saúde, a organização comunitária. Após a expressão oral, os/as assentados/assentadas foram estimulados a escrever seus memoriais, a partir do relato feito à turma. Esse material produzido pelos alunos serviu para a ETS conhecer os estudantes e ter uma noção preliminar do que poderia ser explorado em termos de conteúdos. Para Gonçalves et al (2006) que analisaram os memoriais, As histórias de vida dos que estão buscando o curso de enfermagem deixam claro que a vida nos assentamentos e as lutas coletivas conseguiram criar um ambiente capaz de democratizar o acesso aos recursos da sociedade e de bens culturais. Oportunidades desiguais enfrentadas na infância e adolescência não se tornam obstáculo intransponível para que os assentados possam continuar seus estudos, superar suas deficiências formativas anteriores. Buscando superar essas deficiências, que já eram previstas pelas educadoras, outra atividade realizada nesta primeira fase, que merece menção, 61 foi a sondagem dos conhecimentos em língua portuguesa e matemática das duas turmas. Esse processo revelou que alguns dos alunos apresentavam problemas graves nas duas áreas, principalmente - mas não exclusivamente - os alunos do curso de Suplência. O fragmento de memorial abaixo é de um aluno do pós-médio. A minha infancio fio muito Bão lenbro do meis de maio onde Todas as Tarde eu juntos com outra criacas ira Busca Flor para inFeitar o Alta de nossa Senho era muito lindo da um que tentalh trazer as flores mais bonintas da manto eu lmbro muito bem do Flores de canaFistra. (Chico) Ao analisarmos a história da educação no campo brasileiro facilmente concluímos que esta situação é resultado do descaso das instâncias do poder público, responsáveis pela área da educação, uma vez que nunca investiu seriamente na formação de professores e na infra-estrutura das escolas da zona rural brasileira. O acesso ao mundo da escrita se dá apenas através da professora e dos livros didáticos que lá chegam, ou da literatura de cordel, em alguns lugares. Revistas, jornais e livros fazem parte da cultura urbana, aos quais eles dificilmente têm acesso. Isto limita ainda mais as possibilidades de dominar esta forma de comunicação. 3.3 Ensinando e aprendendo novas lições: as aprendizagens docentes no processo de implantação do curso. Como descrevemos anteriormente, a ETS era uma escola que atuava nos moldes tradicionais, com uma visão hospitalocêntrica, e onde o aluno não era o protagonista junto com as professoras do processo ensino-aprendizagem. Isso não impedia que os resultados para aquilo a que se propunha – preparar os alunos para as demandas do mercado de trabalho – fossem bastante positivos. Talvez um dos fatores para este sucesso esteja no fato de que os alunos ingressam na ETS através de um processo seletivo bastante concorrido, que inclui provas de português (interpretação de texto e gramática) e biologia. A 62 seleção possibilita que a escola conte com os alunos mais preparados15. Parece-nos que essa postura tradicional adotada pela escola é fruto da formação docente, uma vez que as professoras graduaram-se em enfermagem e optaram pela licenciatura como uma complementação à sua formação. Acreditamos que o ranço do positivismo e do tecnicismo ainda pode estar presente nos cursos da área de saúde. A estudante Margarida (p.m.), referiu-se à maneira tradicional de alguns professores atuarem: Eu até que acho pela questão da visão que os professores têm porque, quer queira ou quer não, a gente é um aluno especial. Não é? Então eles, os professores às vezes só costumam passar a escola tradicional, a ensinar os alunos tradicional. É provável que essa maneira tradicional de trabalhar ocorra porque os professores da graduação de enfermagem não foram formados para a docência. É certo que cursaram mestrado e doutorado, mas não foram preparados para o ensino. Sem formação pedagógica consistente, estes docentes acabaram influenciando as práticas das professoras da ETS. Estas, só vieram a cursar as disciplinas específicas de licenciatura no final do curso ou após terem concluído o curso superior de enfermagem, como um complemento à sua formação, ou porque queriam dedicar-se ao magistério. Além disso, a compartimentalização dos saberes e a hiperespecialização na área de saúde são evidentes e repercutem na atuação dos professores formados nesse contexto. Concordamos, portanto, com Morin (2003, p.149): Os setores especializados do saber são compartimentados e fechamse todos em um domínio, muitas vezes delimitado de maneira artificial, ao passo que deveriam estar unidos em um tronco comum e se comunicar entre si. Mais profundamente, nosso sistema educacional ensinou-nos a isolar os objetos, separar os problemas, analisar, mas não a juntar. Nós devemos pensar o ensino com base na consideração dos efeitos cada vez mais graves da hiperespecialização dos saberes e da incapacidade para articulá-los uns com os outros. A hiperespecialização impede que se veja o global (que ela fragmenta em parcelas), assim como o essencial (que ela dissolve). Como o corpo docente, apesar do trabalho tradicional, apresentava na sua quase totalidade16 uma postura profissional aberta às mudanças, o processo de 15 Na ETS já houve e ainda há alunos e alunas que estão cursando ou que já possuem o nível superior completo (fonoaudiologia, letras, educação física, pedagogia, fisioterapia, psicologia, entre outros). Houve e há também pós-graduados, porém em número quase insignificante em relação ao total de alunos e alunas. 63 descobertas e de construção de conhecimentos a partir da experiência com o PRONERA foi acontecendo gradativamente e sendo compartilhado no percurso. Essa experiência permitiu que as professoras passassem a olhar mais para o global e atuassem de acordo com ele. Este esforço docente encontrou uma resposta bastante positiva entre os educandos graças ao que consideramos uma característica do povo camponês: a versatilidade. Como no meio rural as atividades essenciais não são tão especializadas talvez haja menos fragmentação do saber, os sujeitos acabam descobrindo na prática, com aguçada sensibilidade para a observação, as soluções para os seus problemas, o que lhes pode permitir a abertura para novas experiências escolares. Assim, como relataram algumas professoras, elas ousaram inovar em sala de aula, e a atuação dos alunos do PRONERA em alguns aspectos superou o desempenho das turmas regulares da escola: Se pedir uma música para eles cantarem... Eles não têm essa dificuldade. Achei eles muito corajosos e destemidos porque saíram do seu interior e vieram para cá com muito sacrifício. (Camomila) A professora Camomila reconhece a importância dos saberes práticos e valoriza as aprendizagens que ela realizou através dos seus alunos e alunas. Eu aprendi muita coisa com eles, até assim coisas do dia-a-dia, que são coisas de pessoas de idade mais avançada, coisas que a gente vai utilizar no nosso dia-a-dia. (Camomila) Dentre as questões que mais preocupavam as educadoras se destacavam: a dificuldade de leitura e escrita dos/das alunos/alunas, a necessidade da utilização da terminologia técnica, o vocabulário restrito dos/das estudantes naquele domínio de conhecimento. A formação deles é muito frágil, é muito frágil. Anos interrompidos de estudos, escolas rurais, escolas que funcionam com professores... A capacitação desses professores, como esses alunos seguiram... Muitos fizeram supletivo. Começaram o curso e não tinham nem supletivo de primeiro grau. Pagaram o supletivo primeiro para entrar no curso, quer dizer, frágil demais a formação. (Arruda) Foi o contato direto com os educandos e educandas em sala de aula que 16 Devemos esclarecer que estamos nos referindo à maioria das pessoas do corpo docente. Houve - como costuma acontecer em todos os processos de mudança - algumas pessoas que resistiram a adaptar-se à proposta pedagógica do curso. 64 fez com que tais dificuldades se tornassem mais evidentes. As primeiras atividades escritas indicaram que alguns dos educandos do curso de suplência não podiam ser considerados plenamente alfabetizados, apesar de haverem concluído o ensino fundamental. Como a professora Arruda ressaltou, muitos deles concluíram o ensino fundamental através de cursos supletivos, que por serem aligeirados em função da necessidade de formar pessoas que ultrapassaram a faixa etária própria para o ensino regular, não atingiram os objetivos esperados. Assim, cada professora desenvolveu uma estratégia própria para buscar favorecer, o máximo possível e dentro das condições de tempo impostas ao curso, o desenvolvimento das competências e habilidades necessárias para a atuação profissional dos seus alunos. De acordo com a professora Malva, Você tem que saber “mastigar” bastante. Entendeu? No caso de estar falando uma palavra assim... Numa cirurgia, é... Histerectomia, então é difícil. Estes termos... Entendeu? Eles têm dificuldade. Têm dificuldade, agora tem de trabalhar de outras formas. Várias dinâmicas, músicas... [...] Que a gente tem que realmente trabalhar, “mastigar” bem os conteúdos porque os que têm idade mais avançada, têm mais dificuldade. No dicionário eletrônico Aurélio Século XXI, encontramos o verbete mastigar que, além do significado de uso mais corrente, significa também “repetir, repisar as palavras”, e ainda “ponderar, examinar, pesar (um assunto...)”. Assim, a professora Malva buscava pela repetição e pelo questionamento, fazer com que os alunos e alunas, principalmente os de idade mais avançada, pudessem aprender. Eis o depoimento de um dos educandos a respeito dessa professora: E a metodologia da professora também foi muito boa. E ela aplicava o assunto, mas sempre quando a gente relatava ou dramatizava ou fazia qualquer coisa ela sempre perguntava o porquê. O porquê disso, o porquê daquilo, então isso dificultava um pouco para a gente responder no momento, sabe? Mas com certeza, quando você... Ao desenrolar da coisa, você respondia e aprendia muito mais. Aí você nunca mais esquecia. (Jósimo – p.m.) Já a professora Marcela acreditava que se fazia necessário buscar trabalhar de acordo com o entendimento dos alunos, sem cobrar demasiadamente o aspecto gramatical. Em termos, assim, de dificuldade na escrita eles também têm. A prova 65 que eu tentava fazer de acordo com o entendimento deles, procurando aceitar tudo o que eles escreviam, até porque também não podia ser tão rígida, tão taxativa de querer que eles colocassem as frases corretas, escrevessem correto. Então, aproveitando o máximo para poder facilitar o entendimento deles. (Marcela) Mas a professora Camomila mostra outro aspecto ao afirmar, ainda durante a entrevista: Não senti assim muita dificuldade com relação à escrita. Eles têm, claro. Têm alguns erros de português. Mais, talvez, do que as nossas turmas regulares. Mas eles têm facilidade de falar. Eu achei-os até um pouco mais desinibidos do que algumas turmas que a gente já teve. Eles não têm medo de ir, lá na frente, falar. E assim eles são muito criativos. Criativos demais. Eles têm uma facilidade de fazer um repente. Com o que Alfazema concorda: O aluno do PRONERA não. Ele tem uma oralidade muito forte. Uma visualidade muito forte. E ele tem a dificuldade da escrita. Muitas vezes a gente diz assim: “Olhe: eles sabem do conteúdo. Eles só não sabem, muitas vezes, colocar no papel, porque ele pensa que não sabe escrever”. Porque a academia estruturou uma forma de escrita sistematizada que você tem que escrever bonito. Então, se você escreve aquilo que você pensa, está feio. E ele tem vergonha de mostrar. Sabe? Porque ele pensa o que está escrito. Mas ele sabe oralmente, está certo? E ele pensa que não sabe escrever, só que ele sabe escrever. Ele pode não saber escrever nos moldes que a academia exige. Porque é, sinceramente, o que é uma estupidez nossa, enquanto professor, querer moldar, não é? Ou colocar uma viseira no nosso educando, de que ele tem que escrever desse jeito, ele tem que pensar desse jeito. (Alfazema) Vemos na fala da professora Alfazema uma questão que gostaríamos de salientar, relacionada às normas da escrita. A professora questiona a necessidade de se cobrar que os educandos escrevam sob o rigor da norma culta. Acreditamos que aos homens e mulheres do campo e das classes populares em geral, deve ser dado o direito, através da educação escolar, de escreverem o que pensam, dentro da norma culta, para que possam ser por todos entendidos, e para que possam entender o que outros escrevem com maior facilidade. É claro que diante das condições nas quais determinados alunos e alunas chegaram ao curso, é praticamente impossível que superem todas as limitações que trazem, embora haja um esforço coletivo para isso. A expectativa da coordenação pedagógica do curso é a de que os alunos comecem a dedicar atenção ao modo com que escrevem, de maneira que 66 possam, por conta própria, aperfeiçoar sua redação. É... O que eu achei de mais interessante foi com “Chico (p.m.). Chico para mim é um exemplo. É... Chico tem uma escrita péssima, mas tem uma forma de se expressar. É... Dorme muito em sala de aula, mas ele tem uma forma de se expressar, interesse na prática, que, para mim, aquilo ali superou. Entendeu? Então eu fiquei desesperada com a primeira avaliação dele, com a escrita dele que, até então. Que até então eu não tinha, eu não conhecia a turma. Então quando eu vi a primeira avaliação, eu sabia que ele sabia. Mas ele não sabia botar no papel. Ele não sabia botar no papel. Então para mim, isso foi terrível. Como eu sei que ele sabe? Porque ele respondia coerente. Mas ele não sabia botar no papel. (Marcela) O consenso entre as docentes acerca da fragilidade da formação escolar da maioria dos/das estudantes do PRONERA na escola, as levou a buscar reforçar, cada uma em sua disciplina a área da língua portuguesa. As soluções bem sucedidas de umas passavam a ser compartilhadas com outras que buscavam utilizá-las e às vezes aprimorá-las17. Assim, Malva recorria às dinâmicas e músicas, como quase todas. E, enquanto uma professora utilizou um glossário no final de cada texto, outra, a partir dessa idéia, construía coletivamente o glossário com seus alunos, em uma cartolina afixada na parede da sala. A leitura, que seria uma atividade extra-classe, passou a ter um tempo em sala de aula. Além disso, as produções escritas dos/das educandos/educandas, em diversas disciplinas, chegavam às mãos da professora de português, para que esta pudesse dar o tratamento adequado à questão nas aulas de reforço. Tudo o que era produzido e que estivesse ao alcance da mesma, era motivo de uma aula. Um exemplo que podemos citar: cartazes produzidos por um grupo de educandos para a aula de psicologia, que foram afixados nos corredores, foram problematizados na aula de português. A professora Camomila confirma o esforço de mudança na atuação da equipe: [...] a gente modificou um pouco a nossa metodologia, as aulas deveriam ser bem mais dinâmicas, e foi o que nós fizemos, até porque eles tinham aula de manhã, de tarde e de noite, e com professores diferentes em disciplinas diferentes. Nós tínhamos que fazer alguma coisa para despertá-los, não é? Para que eles tivessem interesse em aprender. 17 Compartilhar vivências, estratégias, pensamentos e experiências era algo que nunca acontecera na ETS, pelo menos formalmente, até a realização do curso do PRONERA. Possivelmente pela inexistência de uma equipe técnica (psicopedagógica), que orientasse esse processo. 67 Entre os educandos, por outro lado, havia divergência quanto à necessidade do domínio da forma de comunicação escrita para o exercício da profissão de técnico em enfermagem. Eu mesmo, eu tenho uma facilidade de entender as coisas muito fácil. Talvez, a dificuldade que a gente tenha é a dificuldade de colocar no papel. Mas de entender de ter esse... Esse... Compreensão. Acho que toda a turma está tendo. (Chico -p.m.) Este mesmo educando afirma que as dificuldades que tem não são impedimento para o bom exercício da profissão de técnico em enfermagem: Eu acho que não interfere não. Justamente porque a gente vê a prática. Muitas vezes, você tira boa nota, mas às vez, na prática, não consegue. Porque justamente a prática, até eu digo assim: se a gente pegar uma pessoa, uma leiga, que nunca participou, mas levar ele para praticar, talvez ele vai fazer aquilo. Com habilidade, muitas vezes. Um exemplo que a gente demos é lá no município. Lá no meu posto, onde eu estagiei, tem uma atendente, auxiliar geral de serviço. Ela é auxiliar geral, de serviços gerais. Mas ela fica lá como atendente. E ela, muitas vezes, ela quem faz alguns procedimentos. Tem vez que a técnica não está e ela faz os curativos, e faz muito bem feito. Por isso que eu digo. E ela não sabe ler nem escrever. Mas ela de tanto ver aquilo ela vai pegando. Ela vai se habilitando naquilo. (Chico – p.m.) Quando Chico (p.m.) diz “ela vai se habilitando naquilo” de tanto ver, está nos dando pistas de como ele vê a formação do técnico em saúde. Para ele é a partir da observação e da prática, da repetição, que a pessoa se habilita, tornase apta para o exercício da profissão pela experiência. Mas quando Chico fala acerca do seu trabalho de conclusão de curso (vide anexo), que requer a utilização de uma linguagem formal e a organização em determinada estrutura pré-estabelecida, demonstrou reconhecer a importância do domínio da língua portuguesa: Me ajudou, o TCC18. E na minha, na organização do tcc a gente teve dificuldade. Eu mesmo tive. Até para por conta que a história da digitação, a história até mesmo do português... A professora disse o seguinte. Que o trabalho foi bem feito, só faltou organizar, por exemplo: eu fiz o meu trabalho 3 vezes. Agora mesmo vou precisar dar um ajustezinho. Tirar palavra, colocar outra, tirar dum canto e colocar noutro, o trabalho foi feito e está perfeito. Falta só isso: organizar. Coisas que você fez na introdução que vai para o procedimento teórico... É dar uma organizada. Me ajudou muito. E também fez com 18 Assim foi provisoriamente denominado o relatório de pesquisa que os alunos realizaram ao final do curso. 68 que a gente estudasse mais. Jósimo (p.m.) seguiu a mesma linha de raciocínio de Chico (p.m.), quando perguntado se as dificuldades na área da leitura e da escrita interferem na prática do profissional técnico em enfermagem: Não. Eu acho que não. Porque a partir do momento em que você observa alguém fazendo um procedimento, você também é capaz de realizar, só é prestar bem atenção. A estudante Dorothy (s), pensa como os seus colegas: Não. Eu acredito que não porque apesar deles não ter uma leitura, mas eles são muito inteligente, apesar de ser analfabeto, mas são muito inteligentes, muitas vezes, são mais inteligentes do que nós, que temos estudos. E complementa: Eles (os colegas de escola) têm bastante dificuldades. Só que muitos têm dificuldades na escrita e na leitura, mas na hora de desempenhar as atividades eles são muito bons. Na maneira de se expressar. (Dorothy) Aqui ela apresenta a mesma percepção que as professoras, tanto em relação à capacidade de expressão oral, quanto ao desempenho prático dos estudantes do curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio. Inês (s) discorda dos que afirmam que as dificuldades na área da lectoescrita não interferem na atuação prática: Eu acho que sim. É mais difícil porque ali vai dificultar na leitura. Aquela pessoa vai ter mais dificuldade em tudo. Eu acho que sim. A aluna Margarida (p.m.) aponta para o fato de que, ao lidar com a vida humana, essa questão assume outras proporções: Na verdade é o seguinte. Infelizmente, as pessoas que são tiradas de áreas de assentamento, para fazer os cursos são pessoas que têm o segundo grau, não é? Foram tiradas... Mas como é que foi feito esse segundo grau? Como é que foi feito esse primeiro grau? Não é? E como é que essa pessoa, mesmo como pessoa, se interessa. A questão da leitura, não é? De procurar aprender. Então eu acho que essas pessoas, que têm dificuldade, têm. Porque a gente tem prova no nosso curso. Teve muita gente que teve muita dificuldade. E o curso é uma coisa muito séria porque se você não souber ler uma medicação 69 você pode matar uma pessoa. Margarida (p.m.) levanta ainda a preocupação com os conhecimentos da matemática para prática do técnico em enfermagem: Se você não souber fazer a contagem de quantos ml vai administrar numa pessoa, você pode matar, não é? Até um bebê lá você vai... Vai aferir uma pressão, por exemplo. O estetoscópio está quebrado, o tensiômetro. Se você não tem o conhecimento, você vai dar uma medicação e... E aí, como é que fica não é? Um bebê: tem tal peso. É uma gota de remédio por peso. Aí você não soube pesar, não soube ler direitinho19, você vai matar essa pessoa. Então é uma coisa muito séria para você colocar qualquer pessoa. A necessidade é grande, é. De se formar pessoas, de que é uma luta que a gente tem enquanto movimento social, mas tem que ser pensada. Hoje, o meu pensamento é esse. Tem várias questões. Então, não que essas pessoas não possam vir fazer esse curso. Ela aponta sugestões para a solução dessas dificuldades: Mas que pelo menos tenham o reforço de português, de matemática, entendeu? Que seja incluso. Já que as professoras estão avaliando que... Eu acho que com certeza as professoras avaliaram que certas pessoas têm dificuldade na leitura, na escrita. Então que peguem essas pessoas mesmo, sejam realistas, expliquem para elas que vão lidar com vidas. “Olhe você vai lutar, você vai estudar para trabalhar com pessoas, com vidas. Certo? Pode ser até sua mãe. Então você tem que ter. Você tem que ser uma pessoa que seja capacitada para fazer isso. Pelo seu bem e das pessoas que você vai trabalhar. Você vai ter que ter um reforço de português, de matemática, do que tem que ser feito. (Margarida – p.m) Margarida (p.m) demonstrou uma clara compreensão da importância de o profissional técnico em enfermagem dominar a língua portuguesa. Além de ter sido uma questão amplamente discutida pelas professoras da escola e pelos professores convidados, ela teve a oportunidade de perceber as dificuldades enfrentadas pelos colegas e as suas próprias. Mas parece-nos que o esforço da coordenação do curso para proporcionar atividades extras de reforço no domínio da língua portuguesa, ou não foi percebido ou foi considerado insuficiente pelos alunos. O educando Pedro (s) expressa uma posição semelhante à de Margarida (s) que propõe um reforço escolar na área. Ele acredita na capacidade de superação dessas dificuldades pelo grupo. 19 Acreditamos que a aluna está se referindo à leitura da prescrição médica. 70 Eu acho que deve ter sido uma experiência para a própria universidade aqui na Paraíba, não sei se na Escola Técnica, não é? Acho que única, no momento. Esse projeto de pegar jovens agricultores, também agricultoras, sem o ensino médio completo e começar a fazer o curso técnico dentro da Universidade. Assim a gente percebe que existem algumas dificuldades também. É... A linguagem é muito diferente, técnica, é coisa que você, no dia-a-dia a gente não menciona essas palavras técnicas, não é? A gente sabe do popular. Você chega no popular, a gente consegue. Agora quando se vem para uma área, palavras científicas, a gente enrola um pouco a língua. Mas isso vem também para a gente se desenvolver no sentido de ler mais. De pegar nossas apostilas, nossos livros que a gente tem, e ler mesmo. Não decorar, mas aprender. Pedro(s) demonstrou uma boa capacidade de análise ao apontar as dificuldades enfrentadas pela ETS, por ser esta a primeira vez que a escola lidou com pessoas que não tinham concluído o ensino médio. Ao evocar a diferença entre a linguagem técnica e a linguagem coloquial como outro fator que gera a dificuldade traz à tona a necessidade de maior dedicação à leitura fazendo um contraponto entre a memorização e aprendizagem: Mas aprender e tem que ser curioso no sentido de... Tem algo ali que eu não estou conseguindo fazer, não sei fazer: perguntar. E... Não sei... Dar... Criar um método de aprender parece que Paulo Freire tem bem desenhado assim a coisa, acho que a gente consegue superar. Por exemplo, a gente tem tido um desempenho no sentido prático bom, tem sido bom, eu acho que até hoje não chegou nenhuma informação assim nesse sentido que foi negativo. (Pedro – s) Duas questões importantes foram aqui mencionadas por esse aluno. A primeira diz respeito ao valor que dá à curiosidade e à busca das respostas. Freire, em vários dos seus trabalhos aponta a curiosidade como elemento que deve ser exercitado tanto por educadores quanto por educandos. A fala deste educando aproxima-se do pensamento de Freire no trecho que se segue: A construção ou a produção do conhecimento do objeto implica o exercício da curiosidade, de sua capacidade crítica de “tomar distância” do objeto, de observá-lo, de delimitá-lo, de cindi-lo, de “cercar” o objeto ou fazer sua aproximação metódica, sua capacidade de comparar, de perguntar. (FREIRE: 2005 c., p. 85, grifos do autor) O educando propõe a criação de um “método de aprender”, que ajudaria os educandos na superação das suas dificuldades, baseado nas propostas freirianas. E prossegue o aluno: 71 Também no sentido das provas, que tem muito aluno que tem notas excelentes, assim, dez, nove, oito, atingindo a média dentro da escola, fica um ou outro em recuperação, é normal, em toda escola acontece isso. A gente faz uma recuperação, recupera da coisa. Acho que no momento, até então, ninguém foi reprovado ainda. Está concluindo agora a primeira turma, não é? O técnico, que é o pessoal do pósmédio, e até o momento ninguém foi reprovado. Foram dois anos de curso, até os filhos de agricultores está conseguindo a dizer: “Não, somos camponeses, mas também temos a competência de chegar na universidade e fazer bonito”. Poder dizer: “Não. Sou do campo, não esqueci as minhas origens, mas eu sou do campo e eu estou aqui e posso competir com qualquer um outro”. Agora sabendo que é difícil no sentido do nosso estudo precário. (Pedro-s) Pedro(s) apesar de reconhecer as limitações do “estudo precário” dos alunos do PRONERA, acredita na competência e no potencial do povo camponês, vítima de um sistema educacional falho, mas que consegue superar barreiras que outros considerariam impossíveis de ser ultrapassadas. Tem município mesmo que é o pior desempenho de educação, do Brasil. Você tem Cruz do Espírito Santo mesmo, não é? Lá é precário demais o sistema educacional. Então, tem uma menina mesmo de lá que é nota dez em sala de aula. Nove, oito, sete, dez. E mostra que a gente passa... Aí também vê muito o eu. A gente tem que ver o eu. É você olhar para você. Dizer: eu posso, eu quero, eu sou capaz. (Pedros) Acreditamos que a consciência que o aluno tem sobre os seus limites é decorrente da sua história de luta construída com perdas e com vitórias e conquistas. Mas em vez de transformá-lo numa pessoa derrotista, essa consciência o leva a querer mostrar o seu valor e o valor das pessoas do campo. Por isso ele enfatiza também o aspecto individual, a necessidade de acreditar no seu potencial, na sua capacidade de superação. Esta é uma das questões que requerem um olhar especial por parte do corpo docente e discente da ETS. Queremos deixar claro que não estamos subestimando a capacidade de os camponeses iletrados realizarem aprendizagem de certos procedimentos e, inclusive, do aparato teórico que os embasa. Como na história do aluno Luiz que, conforme relatou a professora, até dorme em sala, mas quando perguntado sobre o assunto da aula, responde com correção, se o questionamento for oral. Ou no exemplo dado por um aluno de que a auxiliar de serviços gerais de determinada localidade realiza curativos bem feitos sendo ela analfabeta. Ela pode até saber o porquê da necessidade de limpeza do local, da utilização de certos instrumentos, ou o porquê de umas lesões requererem o curativo e outras 72 não, conhecer até o percurso realizado pelos cientistas que determinaram a forma apropriada de realização do procedimento, se este conhecimento tiver sido a ela transmitido. Mas sua atuação estaria possivelmente limitada a este tipo de intervenções. Também observamos, nos depoimentos, que os/as alunos/alunas que têm um desempenho melhor no trato com as regras gramaticais básicas para a comunicação escrita têm posição diferente, ou seja, acreditam ser necessário o domínio da lecto-escrita para a atuação técnica. Freire (2000) afirmou que se quisermos formar realmente o educando não podemos dicotomizar a capacitação técnico-científica dos conhecimentos necessários ao exercício da cidadania. A formação técnica em enfermagem não pode limitar-se ao mero treinamento ou ao simples repasse de conhecimentos científicos ou informações. Freire considera que: Na perspectiva progressista, naturalmente, a formação técnica é também uma prioridade, mas a seu lado, há outra prioridade que não pode ser posta à margem. O operário que está aprendendo, por exemplo, o ofício de torneiro, de mecânico, de pedreiro, de marceneiro, tem o direito e a necessidade de aprende-lo tão melhor quanto possível, mas tem, igualmente, o direito de saber a razão de ser do próprio procedimento técnico. Tem o direito de conhecer as origens históricas da tecnologia, assim como o de toma-la como objeto de sua curiosidade e refletir sobre o indiscutível avanço que ela implica mas, também, sobre o riscos a que nos expõe [...] (FREIRE, 2005. b, p. 132, grifo do autor) O projeto do curso tem entre suas metas finais que os alunos tenham consciência “[...] da necessidade de manter-se atualizados no conhecimento, bem como na tecnologia que dão sustentáculo a sua prática profissional. Isto implica assimilação do princípio legal do aprender a aprender”. (UFPB, 2003, p. 9). Nessa perspectiva, compreendemos que o domínio da leitura se faz realmente necessário, já que a saúde é uma área em que a ciência avança a passos largos, e que a atualização, principalmente para as pessoas que vivem em áreas afastadas dos centros de formação, se dá através de livros e revistas especializadas ou da rede de computadores. Constatar a gravidade das dificuldades dos alunos na área da leituraescrita foi um dos momentos mais preocupantes para as educadoras. A escola teria que se superar para ajudar os educandos nessa área, no curto espaço de 73 tempo disponível para o curso. Tratar a língua portuguesa junto com a saúde da mulher, da criança, termos cirúrgicos, nomes de instrumentos, técnicas de primeiros socorros... Por outro lado, os professores do curso de suplência português, matemática, artes, entre outros - buscavam sempre articular seus conteúdos aos da área de enfermagem. Assim, o professor de matemática, por exemplo, ao ensinar os alunos a trabalhar com percentagem sugeria o cálculo da relação peso e idade das crianças para verificar o percentual de crianças com desnutrição na comunidade, com base na tabela de correspondência entre peso e idade fornecida pela professora da área. É um processo de construção que conta inclusive com a participação dos alunos, que o avaliam periodicamente. Então eu melhorei a minha escrita. E já melhorei assim, em geral, meu conhecimento. (Anunciada –s) E a gente consegue fazer essa sintonia entre técnico aqui, na federal, na universidade, que a gente sai do nosso interior e vem para a capital, e depois volta para o campo, e traz também o que a gente tem lá no campo, de sabedoria popular, para a universidade. Fazendo Essa... Essa troca. Universidade e o campo. O campo e a universidade. Então isso tem... Assim me ajudado muito na formação pessoal, também, e me ajudado na comunidade, fazer palestras e coisas que eu pensava em fazer e que não tinha a formação adequada. Hoje, não tudo ainda, que eu estou na fase, em processo de formação ainda, mas que, diante do que já aprendi nesses assuntos técnicos já... Já passo alguma coisa para a comunidade. (Pedro –aluno da suplência) Pedro(s), abordando a troca de saberes, reconhece a diferença e importância do saber popular e do saber produzido pela universidade e valoriza essa experiência para a sua formação pessoal. Paulo Freire chama a atenção para a necessidade da realização da pesquisa epistemológica antes ou concomitante com as práticas docentes, principalmente em áreas camponesas, com a finalidade de explicitar para o camponês o valor do saber produzido na sua comunidade. Este vem sendo, hoje, entre nós, no Brasil, um que fazer caro à etnociência. Saber como os grupos populares rurais, indígenas ou não, sabem. Como vêm organizando o seu saber, ou sua ciência agronômica, por exemplo, ou a sua medicina, para o que desenvolveram uma taxionomia amplamente sistematizada das plantas, das ervas, dos matos, dos cheiros, das raízes. E é interessante observar como matizam a exatidão taxionômica com promessas milagreiras. Raízes cujo chá cura, ao mesmo tempo, câncer e dores de amor desfeito; ervas que combatem a impotência masculina. Folhas especiais para o resguardo da parturiente, para a “espinhela caída”, etc. (FREIRE, 2005 b, p.135) Mas, segundo Freire, promover as trocas apenas, não é o suficiente. É “imprescindível que se discuta com os camponeses que as universidades estão comprovando através de outros métodos, a validade de alguns dos seus saberes. É uma tarefa política de alta importância pedagógica”, diz Freire (2005 b, p.135). Agindo dessa maneira os educadores e educadoras estarão favorecendo o desenvolvimento da auto-confiança, elemento indispensável à luta dos homens e mulheres do campo do nosso país. 74 Como vimos no depoimento do educando Pedro(s), o Curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio está, na medida do possível, procurando promover a articulação dos conteúdos e saberes locais, regionais e globais, buscando estabelecer relações onde esteja contemplada a diversidade do campo, aproximando-se do princípio da transdisciplinaridade constante no Manual de Operações do PRONERA, da forma que é ali colocado. 4. O SABER QUE VEM DO CAMPO. Ao procedermos à leitura das entrevistas realizadas com as professoras do curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio PRONERA, identificamos nas suas falas e nas dos educandos e educandas alguns aspectos que merecem destaque: a versatilidade, a curiosidade, a criatividade, a motivação para a aprendizagem, a capacidade de superar os limites. Estas qualidades tão peculiares ao corpo discente do grupo do PRONERA, pela história de vida e pela cultura camponesa nordestina, nos remetem ao ideário da formação integral do ser humano. A concomitância do ensino médio com o ensino técnico, onde pudemos testemunhar a expressão artística dos/das alunos/alunas nas aulas de Artes, as descobertas sobre a história do seu país durante as aulas-passeio, as reflexões sobre a sua comunidade e o sentimento de pertencimento àquela localidade – um dos motivos da sua dedicação ao estudo -, nos levaram a vislumbrar a possibilidade da construção, no futuro, de uma educação que realmente busque promover a formação integral do ser humano. 75 Foto 3 - Aula-passeio de História Fonte: Arquivo do PRONERA Mesmo não tendo conquistado o sonho de uma sociedade onde haja igualdade de direitos e deveres para todos, podemos tentar construir uma educação, para o tempo presente, como o próprio Marx idealizou na sua época, que busque restaurar o educando fragmentado pela divisão do trabalho, pela separação entre a atividade intelectual e a atividade manual, tornando-o um ser inteiro. Consideramos esta possibilidade, pois acreditamos que a utopia, aqui entendida como o sonho de vivermos em uma sociedade sem exploradores e explorados, é que nos faz caminhar na busca de uma educação que proporcione a formação dos homens e mulheres para que possam buscar esta sociedade sonhada, que permita ao ser humano o seu desenvolvimento integral. Que permita às pessoas realizar aprendizagens, expressar o seu pensar e o seu sentir, rompendo as amarras que lhes têm sido impostas ao longo dos séculos, desde que se instalou o processo de divisão e exploração de um ser humano pelo outro. O diálogo acerca da Pedagogia da Alternância abre o quarto capítulo, por trazer à baila questões relacionadas às relações de saber, enfocando algumas possibilidades e limites do ensino técnico em enfermagem para os assentados e as assentadas da reforma agrária dentro do PRONERA. 76 4.1 A pedagogia da Alternância Há uma tendência nos meios educacionais a confundir-se a modalidade da Alternância com o Ensino à Distância. Na verdade, são processos metodológicos que diferem quanto aos objetivos e pressupostos teóricos. De acordo com a página20 da internet do Curso Técnico Produção Agropecuária (2007), a Pedagogia da Alternância surgiu a partir da experiência da inicialmente chamada “Maison Familiale” ou Escola Família Agrícola, que foi criada na França pelo padre Granereau, em 1935, com o objetivo de ajudar às pessoas de sua paróquia a melhorar a qualidade de vida da comunidade. A idéia ganhou adeptos pela Europa, chegando primeiro à Itália após a II Grande Guerra, inicialmente num lugar chamado Soligo, situado na região de Treviso. Na Itália, com o nome de “Scuola della Famiglia Rurale” ou Scuola Famiglia, funcionava sob a forma de cooperativa de agricultores, sendo estes os gestores da escola. A metodologia não era a mesma da França. Foi adaptada à realidade italiana. Assim, os cursos de nível médio eram realizados em um ou dois anos, com duas áreas de formação: geral e profissional. As escolas para moças eram separadas das escolas para rapazes. Elas forneciam certificados para que os jovens prosseguissem os estudos nos Institutos Profissionais do Estado para a Agricultura, que lhes conferia o título de agrotécnico. Havia ainda outra opção para o jovem da “Scuola Famiglia” que não desejasse o título de agrotécnico: estudar mais um ano na “scuola” e se especializar em uma das áreas oferecidas, podendo escolher entre cultivo de cereais, horticultura, fruticultura, vinicultura ou zootecnia. No Brasil, a Pedagogia da Alternância entrou pelas mãos do padre Humberto Pietrogrande, de origem italiana, no ano de 1969. Assim como o padre Granereau, Pietrogrande desejava a melhoria das condições de vida das pessoas do município de Anchieta, no Espírito Santo, que se encontravam “empobrecidos pela política do intervencionismo econômico estatal que excluía a agricultura familiar em detrimento da grande empresa agrícola e moderna.” (BEGNAMI. 2004, p.4, grifo do autor). Pietrogrande expressou assim sua 20 http://www.eterancharia.com.br/agropecuaria.html 77 insatisfação com a escola da localidade em que exercia suas funções sacerdotais: Descobri que a escola que havia não prestava (...) compreendi que se continuasse ensinando naquela escola, estaria perdendo meu tempo, formando jovens incapazes de contribuir para o desenvolvimento de sua comunidade. Era uma escola que transmitia conhecimentos, mas não servia para uma ação transformadora. (PIETROGRANDE apud SILVA, 2003, p 65) Nessa época a teorização sobre a prática da alternância era bastante reduzida. As experiências aconteciam, portanto, sem aportes teóricos específicos. As descobertas davam-se no fazer cotidiano. De acordo com Begnami (2004), as primeiras EFA’s acolhiam somente homens (atualmente são mistas), jovens rurais filhos de agricultores. Eram escolas informais, sem autorização legal para funcionamento. Tinham duração de dois anos, e a alternância era de uma semana na escola e duas com a família. A finalidade dessas escolas era formar agricultores técnicos. Para Begnami, um dos resultados positivos dessa primeira fase, foi a permanência da maioria dos alunos na zona rural, onde passaram a desenvolver atividades agrícolas ou em outras áreas. Essa fase inicial durou um curto período, entre 1969 e 1972. A segunda fase correspondeu ao período compreendido entre o início dos anos 1970 e os anos iniciais da década subseqüente, atendendo a jovens e adultos em regime de educação supletiva. A terceira aconteceu entre o início dos anos 80 e o dos anos 1990, já com a oferta do ensino regular, inclusive para crianças a partir dos 9/10 anos. E a última perdura até os dias atuais abrangendo o ensino médio e profissionalizante. Segundo Lourdes Helena Silva (2007), que é uma das poucas pesquisadoras sobre a Pedagogia da Alternância no Brasil, as experiências que utilizavam essa metodologia multiplicaram-se pela Europa, animando os estudos e produções acadêmicas, principalmente no início dos anos 80. Os principais trabalhos europeus sobre a formação na Pedagogia da Alternância enfocam a problemática das diferenças culturais, inclusive no que se refere à formação e a produção. Dentre eles se encontram os trabalhos de Gimonet, “[...] que considera que é justamente porque a alternância cria rupturas entre os lugares, os momentos e os conteúdos da formação, que ela obriga a existência de relações” 78 (SILVA. 2007, p.4); Charlot e Tanguy (1985, apud SILVA, 2007), cujos trabalhos põem em evidência as limitações da adequação formação-trabalho. Na perspectiva pedagógica, Silva aponta Malglaive e Weber (1983), e Aballea (1991), sendo que os primeiros definem a articulação entre a teoria e a prática em termos de saberes ou conhecimentos, de maneira que “enquanto a teoria é reservada aos saberes que portam sobre o conhecimento do real, os saberes práticos correspondem aos conhecimentos relativos à ação” (SILVA, 2007, p.5). Aballea também discute a relação teoria e prática, considerando que existe “um vai e vem” necessário ao confronto do saber formalizado com a prática e à formalização da prática. Ainda na perspectiva pedagógica, mas voltados para as questões de aprendizagem, destacam-se, segundo SILVA (2007) os trabalhos de Malglaive (1992), Bourgeon (1979) e Gimonet (1984), que apontam três abordagens de alternância: a dedutiva, onde o período fora da escola é compreendido como a aplicação dos conhecimentos adquiridos na mesma; a indutiva, na qual as vivências práticas ilustram o curso teórico; e a integrativa, onde os diferentes atores coordenam o processo permanentemente, conservando sua autonomia e especificidade, uma vez que cada um dos atores segue a lógica própria do seu meio. A dinâmica da Alternância, realizada no caso específico do PRONERA, a nosso ver, não se trata apenas de uma forma de organização das atividades entre escola e comunidade. Apesar de não ter havido tempo hábil para as educadoras aprofundarem-se no estudo da pedagogia da alternância enquanto uma metodologia com seus referenciais e pressupostos teóricos, e de terem tratado a questão apenas como um requisito do curso, ou como mera organização do tempo, foi o tipo de tarefa proposto que fez a diferença e provocou o que os alunos ora chamaram de troca de saberes, ora de troca de experiências. Ou seja, não se pode negar a existência de algo mais do que uma simples execução de tarefa para cumprimento da carga-horária do tempo comunidade. Então há uma grande troca de saberes. Excelente troca de saberes. É total que eles... Eles nos informam aqui, nos deixa bem claro que quando nós chegamos na comunidade não vamos se sentir por cima do salto, achando que somos donos da situação. E sim tentar conciliar o saber daquele pessoal que está ali, que vem há muito 79 tempo fazendo aquilo e mostrar como eles mais ou menos deve fazer aquela mesma coisa, agora na hora certa e com a coisa certa para que não venha problema no futuro. (Anastácio – p.m.) Anastácio (p.m.) afirma que os professores orientam para a necessidade de conciliar o saber das pessoas da comunidade, aquilo que elas vêm fazendo há muito tempo, com o conhecimento adquirido na escola, respeitando-o. Com sua linguagem própria, o educando compreendeu que aquele saber da comunidade deve ser respeitado e ampliado, na medida do possível, com a sua colaboração técnica e com os conhecimentos que adquiriu na disciplina educação em saúde. A professora Camomila assim falou sobre os conhecimentos trazidos pelos alunos: E depois eles também vêm com uma bagagem muito boa de conhecimentos. Eles não têm esse conhecimento teórico do curso, mas eles têm os outros conhecimentos que junta aos nossos conhecimentos. Eu acho que eles têm uma bagagem boa de alguns conhecimentos sim. Não em termos de enfermagem, não é? Mas de experiência de vida. Acreditamos que sob esse aspecto, a ETS tem realizado um trabalho positivo, uma vez que o saber que mais os educandos se orgulham é o da utilização das plantas medicinais, que foi desenvolvido pelas pessoas do campo através das gerações. Porque a gente... Eles passam a experiência da área técnica, e nós passamos a experiência dos nossos assentamentos, como é que a gente trabalha a saúde dentro dos assentamentos e são respeitadas ambas as partes. Então é interessante porque há, sempre há uma nova experiência, não é? A questão, por exemplo, de como era que a gente tratava a saúde do nosso povo, antes de adquirir conhecimento dentro da universidade, e agora, como é que a gente vai fazer. A mesma coisa eles querem saber. O que é que a gente está fazendo de interessante, então há uma troca de experiências. (Margarida –p.m.) A professora Marcela concorda com as afirmações dos alunos: Mas, assim, em termos de troca, de aprendizado, foi muito rico. Porque eles têm, assim, uma experiência de vida, uma vivência. Então quando você adapta o problema, a situação à experiência de vida deles fica muito mais fácil, não é? No caso de fazer... É... De falar, no meu caso, em termos de cirurgia, quando eu falava numa cirurgia, eu associava a alguma coisa da experiência deles e ficava bem mais fácil de eles entenderem, não é? Por isso, assim, eu não tive muita dificuldade. Porque eles já vêm com uma bagagem, não é? No limite do curso. Mas 80 em termos de compreensão, de atenção, de vontade, eles são riquíssimos. São riquíssimos. Diante destes depoimentos, pode-se perceber que as atividades realizadas no tempo-comunidade contribuíram para mudanças de certos hábitos nos locais de moradia dos educandos, bem como os fez perceber que há respeito e interesse pelos fazeres e saberes de cada comunidade, pelo menos por parte da maioria dos educadores envolvidos. Foto 4 - Professora acompanhando atividades no tempo-comunidade. Fonte: Arquivo do PRONERA Quanto às relações entre as instituições participantes do processo de formação, poucas são as pesquisas voltadas para este tema, destacando-se o estudo de Landry (1992), que identifica no desenvolvimento das relações institucionais duas condições que considera serem fundamentais: as estruturais e as perceptivas, que são relativas às percepções, às atitudes e aos valores dos atores das instituições. (SILVA, 2007). Também são pouco numerosos os estudos que tratam das relações entre os atores participantes do processo, mas SILVA destaca Clénet e Gérard (1994) e Mazalon (1995), que evidenciam o lugar dos atores na construção da formação em alternância. No Brasil a alternância passou a ser, segundo Begnami (2004), um método de ensino e aprendizagem e, ao mesmo tempo, um sistema educativo que é desenvolvido pelas Escolas Famílias Agrícolas – EFA’s. Concordamos com Begnami (2004), quando afirma que mesmo tendo surgido em terras de além mar, a pedagogia da Alternância ao aportar em solo 81 brasileiro, ganhou novas cores, as nossas, aproximando-se da Pedagogia Libertadora de Paulo Freire. Ao apostar na criatividade, conscientização, solidariedade, religiosidade, sentimento comunitário, problematização, dialogicidade, autonomia, abraçou a causa freiriana de libertação. Acreditamos que o MST foi um dos responsáveis por esta aquarela brasileira, pois no desejo de promover uma formação que respondesse às necessidades e aos desafios da luta por transformações sociais no Brasil, buscou construir um conjunto articulado de estratégias pedagógicas que favorecesse a inserção e permanência na escola daqueles que por séculos foram dela excluídos: os trabalhadores rurais. Assim constituiu-se a OFOC – Oficina Organizacional de Capacitação, como uma opção metodológica de formação através do Curso Técnico em Administração de Cooperativas – TAC. De acordo com Caldart (1997), a OFOC, ao utilizar o modelo da alternância como um dos seus fundamentos pedagógicos, apenas se inspirou nas EFA’s, não se identificando com o conjunto das suas propostas políticopedagógicas. Presente na OFOC encontra-se a idéia de que a fonte e o destino de qualquer aprendizagem são as práticas sociais, sendo a “necessidade o motor da aprendizagem”. Portanto, é preciso potencializar a pedagogia do primado da prática, valorizando a relação prática-teoria-prática. Além disso, uma vez que a consciência é formada a partir da existência social, “(...) o processo de formação precisa alterar as relações sociais através das quais serão produzidos os novos saberes, conhecimentos, valores” (CALDART. 1997, p.116). Considera-se também na pedagogia da OFOC a relação das pessoas com o trabalho, por ser este uma das dimensões fundamentais da existência social. Na medida em que as atividades cotidianas dos sujeitos levam-nos a produzir objetos, e na medida em que estes objetos lhes trazem outras necessidades, o ser humano, ao buscar satisfazê-las, realiza novas aprendizagens e constroem novos saberes. Assim, Ao conduzir o processo de aprendizagem, o objeto, contraditoriamente, devolve ao sujeito aprendiz o seu lugar central na formação, à medida que consegue ao mesmo tempo acelerar e respeitar o ritmo de aprendizagem de cada um, o que a média dos formadores tem muita dificuldade de fazer. (CALDART, 1997, p. 117) Caldart compreende o termo ‘objeto’, não como uma coisa, mas como 82 uma atividade a ser perseguida. Ou seja, é a atividade que coloca o aprendiz no centro do processo formativo, cabendo às educadoras e educadores, nos processos de capacitação, no caso da OFOC, “ajudar na construção do objeto”, garantindo o acesso do aluno às teorias que possibilitem dialogar com o objeto em questão. A capacitação também é impulsionada pelos conflitos intra e interpessoais, que devem ser trabalhados pedagogicamente pelos educadores. A possibilidade de utilização dessa metodologia da OFOC em outras áreas, como o Magistério, por exemplo, foi pensada algum tempo depois da experiência do TAC. Assim, após uma reflexão mais aprofundada, uma vez que o curso de Magistério tem suas especificidades, passou-se a adotar esta metodologia nesse curso também. A sistematização da experiência do curso de Magistério do MST, feita por Roseli Caldart, trata de como foi vivenciada a Pedagogia da Alternância por aquele movimento. Decorrente da experiência com o curso de magistério, que foi constantemente avaliada e sistematizada, houve um aprimoramento do processo. Avaliada como positiva, a pedagogia da Alternância foi incorporada ao PRONERA. À exceção do de Caldart, parece-nos que todos os estudos sobre alternância foram realizados em escolas que formavam para a aquisição de conhecimentos técnicos ou o seu aprimoramento, para o trabalho na produção de alimentos ou outros bens de consumo. O caso específico da nossa investigação apresenta outra característica. A ETS está formando técnicos para o atendimento em saúde, ou seja: a experiência que ora descrevemos tem o diferencial de tratar-se de um curso técnico em enfermagem, que se refere diretamente à preservação da vida humana, sendo principalmente sobre o corpo humano que os procedimentos técnicos, incluindo as orientações sobre cuidados de saúde, são realizados. Nessa perspectiva, durante o processo de planejamento das disciplinas para o curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio, as questões que inicialmente preocupavam as docentes eram: como estabelecer as atividades para o período em que os educandos teriam que cumprir na comunidade; como acompanhá-los nessas atividades; como garantir nesses momentos a aprendizagem necessária para a formação do técnico em 83 enfermagem; como trabalhar os conteúdos nas comunidades - e com as comunidades? Como promover a articulação entre teoria e prática? Estariam os monitores da CPT preparados para dar o suporte necessário aos alunos? Para algumas disciplinas havia maior facilidade nessa interconexão, mas para outras o processo se tornava mais complicado devido às especificidades da matéria de estudo. 4.1.1 A Escola Técnica de Saúde e a metodologia da alternância A pedagogia da Alternância, por partir do pressuposto de que o processo educativo não se dá exclusivamente na Escola, tem importante valor para as populações rurais uma vez que lhes possibilita o acesso à educação sem afastar as pessoas da sua comunidade. Ao invés de provocar esse afastamento, a pedagogia da alternância, por considerar que as práticas educativas acontecem na sociedade como um todo, propõe uma inserção ainda maior dos educandos no seu local de trabalho e moradia, com a realização de trocas conhecimentos e saberes entre educandos-comunidade-educandos-escola. Segundo Gimonet, a alternância cria um confronto entre campos culturais, estando o educando no centro dele. Ele aponta três faces desse confronto: A cultura de um local, de um território de onde vem o alternante, e onde mora com sua família, com sua maneira de ser, de pensar, de falar sua linguagem, suas expressões, suas referências; a cultura da empresa com suas próprias referências, seu registro de língua especializada, sua cultura profissional; a cultura da escola com suas palavras, sua finalidade, seu ambiente, suas próprias referências, mais ou menos longe, das outras culturas, na medida em que está afastada, até em ruptura com o mundo circunvizinho. (GIMONET, 2004, P.25) A fala da aluna Dorothy, do curso de suplência, põe em evidência a forma como percebe esse confronto cultural: No assentamento nós temos dificuldades de falar a mesma linguagem dos agricultores porque quando nós chegamos na sociedade temos a maior dificuldade de falar a mesma língua que a sociedade. Somos criticados, às vezes. E no assentamento nós temos que falar com palavras que eles entendam. A nossa linguagem, a nossa cultura. Eu acho que é muito diferente. Fazendo a comparação da nossa linguagem, nossa cultura, a nossa linguagem tem muito da nossa cultura. E já na cidade é muito diferente. A maneira com que as 84 pessoas conversam um com o outro. Nós somos criticados. Por exemplo, nós temos uma comunidade do quilombo, que era de Caiana dos Crioulos. E essa comunidade sofre preconceito até mesmo dentro de nossa sala, às vezes. Porque eles trocam, muito, o “o” pelo “a”. No caso de “bomba”, eles falam: “bamba”. E são muito criticados pelos próprios colegas, pelas pessoas da sociedade também. Colocada no centro do processo de confronto cultural, como afirmou Gimonet, a educanda entende que precisa adequar sua maneira de falar tanto ao ambiente escolar como ao assentamento. Compreende e aceita as diferenças culturais, mas aponta para o fato da existência do preconceito lingüístico entre as culturas da cidade e do campo bem como entre as diferentes comunidades camponesas. Talvez tenha faltado à escola uma ênfase maior na discussão sobre a aceitação das diferenças, tanto individuais quanto culturais. Para Freire (1996, p. 41), Uma das tarefas mais importantes da prática educativo-crítica é propiciar as condições em que os educandos em suas relações uns com os outros e todos com o professor ou a professora ensaiem a experiência profunda de assumir-se. Assumir-se como ser social e histórico como ser pensante, comunicante, transformador, criador, realizador de sonhos, capaz de ter raiva porque capaz de amar. Assumir-se como sujeito porque capaz de reconhecer-se como objeto. A assunção de nós mesmos não significa a exclusão dos outros. É a “outredade” do “não eu”, ou do tu, que me faz assumir a radicalidade do meu eu. (grifos do autor) O educando Chico (p.m.) demonstra certa inquietação sobre se estaria ou não correspondendo às diferentes expectativas dos sujeitos envolvidos, ao mesmo tempo em que deseja afirmar a capacidade de aprendizagem do povo do campo: O curso, no geral, ele presta uma oportunidade, uma abertura para o pessoal do campo. Até para mostrar para a universidade, também para os professores, até para os alunos também da universidade que o pessoal do campo, que muitas vezes é um pessoal mesmo sem-terra, são pessoas que têm capacidade. Falta apenas a oportunidade. Eu acho que não sei se eu estou correspondendo à expectativa do movimento e da própria universidade e da escola. A alternância entre períodos vividos pelos alunos na escola, chamados de Tempo-Escola, e os períodos em que passa na comunidade, denominados Tempo-Comunidade sem interrupção no seu processo de formação é a marca dessa pedagogia que, segundo Sousa (2002, p.449), Consiste em atividades e em uma preparação e uma formação permanente, pessoal e social em que se procura desenvolver a 85 imaginação, a criatividade, a conscientização, a solidariedade, a religiosidade e o sentimento comunitário. Por essa pedagogia, o jovem conserva ou descobre o amor a terra, às plantas e aos animais e, sem se desenraizar, adquire conhecimentos técnicos e culturais. Sousa refere-se precisamente ao modelo de alternância que ocorre nas EFA’s do Espírito Santo e da Bahia. Ela afirma que o processo pedagógico da alternância é pautado numa dialética, pela indissociabilidade da teoria e prática, o que leva à “ação X reflexão” e contribui para uma nova concepção de pessoa no universo, de educação e de escola. Para Sousa (2002, p. 449), “a alternância é o pressuposto principal da metodologia da EFA, procurando demonstrar que a vida ensina e educa.”. A alternância no curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio, de acordo com o projeto do curso, funciona de forma que 70% da carga horária do curso destinem-se ao Tempo-Escola (TE), e os 30% restantes ao Tempo-Comunidade (TC). No entanto, diferentemente do que ocorre nas EFA’s ou nas experiências do MST, a alternância sofreu um processo de descontinuidade causado por problemas burocráticos de repasse de verbas, obrigando aos alunos a ficar até um ano sem atividades no Tempo-Escola (TE) e, no retorno, a permanecer por um tempo maior na Escola, o que tornou o processo muito cansativo e estressante. Hoje eu posso dizer que eu não tenho mais medos, mas, no ano passado eu tive medo. Tive medo quando passou o ano todo sem ter nenhuma etapa. Então assim, eu tive muito medo de não terminar o curso porque passou o ano todinho sem ter nenhuma etapa. Mas esse ano não. Esse ano eu consegui superar. Eu creio que quando... No final do ano a gente vai conseguir terminar. (Anunciada – s) As aulas à noite. Apesar de ter aula principalmente que a gente está assistindo agora, saúde mental, é uma aula gostosa, mas mesmo assim é, é muito cansativo. É cansativo até demais, dez horas/aulas durante o dia. Você passa o percurso todinho, de manhã, à tarde, aí quando chega as quatro e meia, já vai dando uma canseira, aí pronto, aí tem que ligar para a noite. Aí é muito difícil, uma dificuldade enorme... Que aí a gente poderia melhorar. (Jósimo – p.m.) Essa preocupação do aluno Jósimo (p.m.) é compartilhada por todos os outros sujeitos (alunos, professores, coordenação e direção) da pesquisa, ou seja, 100% dos sujeitos pesquisados abordaram o peso da carga horária em sala de aula para os/as alunos/alunas. Além do cansaço físico e mental, há também o desgaste emocional, em função da distância dos seus familiares e amigos, da “terrinha”, dos costumes, mas tudo isso é superado por uma motivação maior 86 que é o retorno do investimento à comunidade. Para mim é ótimo. É cansativo. É... Teve o ano passado que teve um imprevisto, que a gente passou um ano parado, mas para mim... É tanto que eu vim duas etapas grávida, estou aqui com a menina (um bebê de dois meses a quem amamentava enquanto falava). Para mim, tirando o que aconteceu o ano passado, é nota dez. (Inês –s) Eu sou casada, tenho uma filha de um ano e meio. Deixamos em casa famílias, filhos, tudo, para participar. Nós passamos meses longe da família. Tem gente que vem de outro Estado, tudo em prol de uma causa, não é? Eu acho que isso é o que move mais. A gente tem uma carência assim, afetiva, muito grande, não é? Um beija o outro, abraça. Bom dia. Boa tarde. Boa noite. Dorme junto... Na verdade é uma carência que a gente supre um com o outro. Porque não é fácil você passar um mês estudando de manhã, à tarde e à noite, longe de seus familiares, filhos... Os filhos adoecem. A gente não está lá... Tem que deixar os filhos com pessoas estranhas, para nossos filhos que não é o pai e a mãe, mas por necessidade a gente tem que deixar lá na... [...] O meu marido ficou em casa. Nós passamos uma barra. Ela [a sua filha] ficou internada aqui cinco dias. Eu estudava de manhã, à tarde e à noite, terminava o curso, eu pegava dois ônibus, e ia dormir no hospital. Dormir, não. Passar a noite. Mas ela graças a Deus ficou boa. (Margarida – p.m.) Bem. Como dificuldade, como eu já coloquei foram, justamente, as etapas. O fato de ter que se deslocar de casa, vir para cá, passar 30 até 40 dias longe de casa. Com comidas diferentes, com costumes diferentes, horários diferentes... Essas, para mim, foram algumas das maiores dificuldades. Com relação ao andamento do curso, para mim foi muito bom, até porque a turma teve um grande envolvimento com o corpo docente da escola, que facilitaram e também se interessaram pela causa, sabendo que, nós como alunos de zona rural, tivemos os professores que se demonstraram interessados e sempre nos deram força. (Zé Divino – p.m.) O corpo docente reconhecendo as dificuldades enfrentadas pelos discentes, e esforçou-se para dinamizar as aulas no sentido de torná-las menos cansativas. Agora claro que eu acho assim, que a sobrecarga é muito grande para eles. Por isso eu os considero vitoriosos. Porque eles assistem aula de manhã, de tarde e de noite. Até no sábado. No começo era no sábado o dia inteiro. Eles só tinham livre o domingo. Eles teriam que assumir o compromisso de todas as disciplinas, os trabalhos que são passados e o seu dia-a-dia, cuidar da sua roupa, cuidar... Comprar alguma coisa para eles tudo isso só no domingo que eles faziam. E eles... É interessante que eles sempre deram conta de tudo. Eles são pontuais, não são de chegar atrasados, não são de estar pedindo para sair o tempo todo da sala de aula. Às vezes, é claro, que quando está sufocante eles vêm para a gente e conversam:”professora, porque eu não estou agüentando, minha cabeça está doendo...” mas que é normal, faz parte, não é? (Camomila) 87 Foto 5 - Aula de educação em saúde Fonte: Arquivo do PRONERA. O curso de formação de técnico em enfermagem e suplência do ensino médio, para adequar-se ao tempo previsto para sua conclusão e ao custo da estadia dos alunos e alunas em João Pessoa, acabou submetendo os mesmos a uma jornada estressante de aulas: das 7 às 11 horas; das 13 às 17 e das 18 às 20. O almoço e o jantar ocorriam no Restaurante Universitário, dentro do próprio Campus. Assim, a rotina consistia em acordar por volta das 5 horas, para que pudessem chegar a tempo hábil na escola após a higiene matinal e o café da manhã. Chegando ao alojamento às 21 horas aproximadamente, era o momento de os alunos revisarem algum conteúdo antes de dormir. Esta rotina acontecia de segunda a sexta-feira. Aos sábados as aulas ocorriam no turno matutino e, em algumas ocasiões, até no vespertino. O tempo-escola variava de acordo com a carga-horária das disciplinas de cada um deles, podendo durar vinte e cinco, trinta ou trinta e cinco dias, por exemplo. Por exemplo, eu acho que foi assim, corrido demais, eles têm aula de manhã, de tarde e de noite. A gente depois aí vai fazer uma avaliação para ver realmente como foi esse aprendizado. Não é? Porque não é brincadeira, puxa muito por eles. Um dia desses, eu fui dar aula lá onde eles estão alojados, e a aluna disse: “Professora, vocês querem cozinhar os miolos da gente”. Eu achei uma graça, mas aquilo tem significado sim. E eu fiquei calada. Porque naquele dia eu que estava ficando até com pena dos alunos, mas eu não tinha culpa. Eu estava lá como professora para dar a minha aula. Aí eles se queixaram e eu os fiz ver que não era eu, a pessoa de (nome próprio) que estava lá, mas era a professora que tinha que cumprir com o seu dever. Não é? Inclusive eles, coitados, tinham que chegar lá às onze horas, o carro chegou para pegá-los ao meio dia, eles chegaram lá 88 quase uma hora da tarde e eu tinha que encontrar com eles às duas horas. Não tinha saída. Só tinha aquele momento. Mas eu ainda fui lá. Fui nos alojamentos, deixei eles cochilarem uns cinco minutinhos, para depois atendê-los. Mas eles não são assim de muita reclamação não. Acho que eles são mais de agir. (Camomila) Essa carga horária extremamente elevada levou algumas educadoras a proporcionar mais momentos em sala de aulas para leitura e estudo individual e coletivo, que em situação regular (onde o aluno tem apenas quatro horas-aula por dia) é feita em horário oposto ao da escola. Isto deixou uma defasagem ainda maior em relação às atividades propostas para o T.E. do PRONERA. Por outro lado, certas professoras esmeraram-se no preparo das aulas para o grupo do PRONERA, apresentando materiais variados e mais ricos em detalhes. Isso foi percebido pelas alunas e alunos bolsistas do curso regular que atuavam junto ao PRONERA e que chegaram a indagar as professoras sobre o porquê de elas não terem utilizado aqueles recursos também com eles. Mesmo assim, sabemos que isso não diminui o cansaço. Apenas ajuda a esclarecer melhor os conteúdos facilitando sua assimilação pelos alunos e alunas. Com tudo isso, esses jovens homens e mulheres assentados conseguiam permanecer firmes na busca do seu objetivo. Mas eles têm um bom interesse. Eles têm interesse, força de vontade... Estudar de manhã, de tarde e de noite?! Eu achei que... Eu achei... Porque é assim, sabe, a metodologia é qual? Participativa, metodologia ativa, mas como é que eles podem fazer isso estudando manhã, tarde e noite. Porque você vê, a metodologia é problematizadora, então vamos aplicar isso aí. Eu apliquei. Se consegui aplicar? Eu consegui aplicar, entendeu? Mas chega uma pessoa tão cansada, que teve que lavar roupa, não sei o que... Como é que pode? Ela está cansada, não consegue, entendeu? (Malva) A problematização exige maior envolvimento e participação de alunos/alunas, que se torna menos intenso quanto maior o número de pessoas na sala. Sabe-se que o número de alunos do Curso, por sala de aula não é apropriado. Acreditamos que 25 alunos, no máximo, seria o ideal. E dez horas-aula, sem ter tempo para estudar as disciplinas, passam 35 dias aqui sem ter tempo de rever nenhum dos conteúdos que viram, então vai ver qual é... Como é que estão saindo? Por que não dá. É humanamente impossível. Final de semana eles têm o sábado à tarde para lavar toda a roupa usada durante a 89 semana e o domingo para rever alguma coisa que estudou. (Arruda) Mais uma vez, nas falas das educadoras, enfatiza-se a capacidade de superação das dificuldades pelos seus alunos e alunas. Quando a gente ia pensar que um trabalhador de uma zona que você tem que passar, atravessar um rio, depois de atravessar o rio pegar uma moto para chegar num município próximo, depois de um município, porque não chega carro. No município pegar um carro para um outro município, desse município pegar um ônibus para vir para João Pessoa... Uma criatura dessa, um ser humano desse, para mudar completamente a sua vida. Porque muda completamente a sua vida. Porque a gente tem alunos aqui que são mães, que são pais, que são filhos... Tem senhoras aqui que têm que deixar sua vida durante um mês, vinte dias, vinte e cinco dias para vir para cá estudar. Não é fácil não, sabe? (Alfazema) Esse problema do excesso de carga horária no Tempo-escola, sobrecarregando os alunos, precisa ser considerado quando forem abertas novas turmas do PRONERA. Apesar de todo esse esforço, quando os desgastes físicos e emocionais se evidenciam, os alunos e as alunas do PRONERA seguem com força em busca do objetivo que é retornar ao assentamento como profissionais técnicos em enfermagem. Além do forte desejo de contribuir com sua comunidade, a elevação da auto-estima e o reconhecimento social também são potencializadores desta vontade de concluir o curso. As professoras ressaltam o interesse e a força de vontade dos educandos e educandas. Algumas os consideram mais interessados do que os alunos do curso regular, por suportarem tamanha carga de atividades no tempo-escola e o afastamento dos seus locais de moradia. Observei que os alunos do curso regular não têm aquela vontade que eles têm de aprender. (Malva) [...] foi, assim, uma experiência maravilhosa, eles ficavam encantados, e a gente podia observar o interesse que eles tinham. A boa vontade em querer aprender. Claro que tinha alguns que cochilavam... Mas aí eu brincava e dizia algumas coisas e contava assim tipo uma piada, as minhas experiências de vida, eles sorriam muito, mas só que eles tinham pique. Inclusive eles assistiam aula de manhã, de tarde e à noite, e eram pessoas que a gente percebe que querem mesmo aprender. Vieram com muita disposição, com muita garra. (Camomila) E complementa em outro momento da entrevista: Achei eles muito corajosos e destemidos porque saíram do seu interior e vieram para cá com muito sacrifício. Mas eles querem, a gente percebe que eles querem realmente concluir. [...] eu acho que é 90 a questão do querer. Eles querem acima de tudo, eles valorizam demais esse curso. Eu acho que eles se acham importantes para a comunidade. E depois eles também vêm com uma bagagem muito boa de conhecimentos. (Camomila) Alfazema sugere uma redução da carga horária para pelo menos oito horas diárias, mas justifica o horário por razões financeiras. Pelas questões financeiras que se tem, do projeto. Se tem que cumprir uma carga horária muito extensa, que no lugar de se cumprir uma carga horária de dez horas, se cumprisse, pelo menos, uma carga horária de oito horas, daria tempo a um descanso mental, um descanso físico. A se pensar, não é? Pelo menos isso. Tem um processo de se relaxar, não é? Era bem mais diferente. Mas eles são muito bons. (Alfazema) A professora Marcela considera que o fato de educandos e educandas suportarem tão grande jornada é a prova de que o seu interesse pelo curso é maior do que o dos e das estudantes do ensino regular. Dessa turma do PRONERA, o interesse é muito maior. Por que? Pelo esforço deles, pela carga horária gigantesca que eram praticamente dez horas de aula, no estágio e na teórica. Eram dez horas por dia. E a gente via que por mais cansados que eles estivessem, eles estavam lá em pé ainda, se arrastando, e a gente vê que se fosse o aluno regular ele não teria aquele desempenho. Ele não teria aquele desempenho. Então o que me fez tirar... Eu disse “vocês são uns vencedores realmente porque vocês, encarando uma jornada dessa, e estarem assim ainda aptos. E muitos dizem: “Professora eu quero.”- “Deixe, eu quero”. - “Eu vou fazer” – “Como é que faz isso?” – “Como é que faz aquilo”, demonstrando,realmente, interesse. (Marcela) Anastácio, aluno do pós-médio chega a comentar as reclamações de seus companheiros e companheiras de curso em relação a carga horária: Tem alguns alunos que reclamam. “Não, a carga horária é muito grande”. Mas não tem outra saída. A gente tem um tempo determinado. Se a gente tivesse um tempo mais prolongado então tinha como abranger mais. Mesmo parecendo estar conformado com a carga horária, a última frase do educando Anastácio revela o que realmente pensa sobre isto. Ou seja, para ele o tempo limitado reduz a abrangência do curso. Este esforço quase “sobre-humano”, atingido com uma forte dose de “boa vontade” e “coragem”, a nosso ver, deve-se a fatores tais como: 1 – A falta de oportunidade de estudo nos assentamentos; 2 – O fato de ser um curso realizado 21 pela universidade federal, que para os educandos e educandas tem uma importância muito grande ; 3 – A necessidade de corresponder às expectativas da comunidade que os e as indicou para o curso: 4 – O status que uma formação na área de saúde ainda detém na zona rural, principalmente pela escassez desses profissionais na área. 21 Em vários momentos da entrevistas, alguns alunos reportaram-se orgulhosamente ao fato de estarem estudando em uma universidade federal. 91 É certo que essa sobrecarga horária trata-se de uma questão decorrente da inadequação da verba destinada a cada aluno para as despesas de hospedagem e alimentação. Segundo Relatório Resumido Ano II, 2005, o valor determinado pelo INCRA é de R$ 3.000,00 (três mil reais) por aluno ao ano, para os cursos da área de saúde. Este valor que deve cobrir todas as despesas dos educandos/educandas, incluindo desde as vestes brancas, os calçados e as batas, até alojamento, alimentação e transporte tanto dos assentamentos até a escola, quanto na cidade de João Pessoa, é considerado baixo pela coordenação. Outro aspecto bastante relevante a considerar foi a interrupção do curso por aproximadamente um ano, pelo não repasse das verbas pelo INCRA nas datas previstas, que levou professores e alunos a acreditarem, em determinado momento, na possibilidade da não conclusão do curso. Para a aluna Margarida (p.m), integrante do MST, o motivo da suspensão do repasse de verbas, que interrompeu o curso por um ano, foi de ordem política: Então é interessante até para uma discussão, para você ter elementos para discutir até em relação a isso: a um projeto pensado pela gente que está dando certo e que para a sociedade é um tapa na cara, entendeu? Dar um projeto que foi feito por agricultores está dando certo. Nós estamos tendo acesso à universidade com muita luta. Está certo que ficamos um ano sem estudar, porque foi político, não é? Porque não é interessante para a sociedade, quanto mais eles arquivarem, melhor. Então o que eu acho muito interessante e que com foice, com facão, com enxada, com nossos instrumentos de trabalho a gente ocupa o INCRA, ocupa o que tiver que ocupar, vai para as ruas, fala, reivindica para conseguir ficar dentro da universidade. E que continuamos... E que nós possamos continuar, lutando, é mesmo agora, uma turma vai se formar agora em maio, outra em dezembro, não é? (Margarida) Para Pedro (s), liderança comunitária que já foi ligado à CPT, foram questões burocráticas que provocaram a interrupção do repasse, e considera este como o aspecto negativo do curso: Assim... O que eu acho de negativo é... No sentido muitas vezes de repasse de recursos. Eu acho que isso é uma das coisas que... Por exemplo: o nosso curso. A gente ia terminar em 3 anos, está indo em quase 4 anos. Então, o recurso atrasa, a burocracia é muito grande. Em que pesem essas questões financeiras, que devem ser solucionadas o mais rapidamente possível para permitir que o processo da alternância não seja um empecilho para a aprendizagem dos estudantes e professores, a experiência com a alternância em algumas disciplinas superou a dimensão da simples organização do tempo para a viabilização do curso para pessoas dos assentamentos do estado da Paraíba. Desde as disciplinas de língua portuguesa e matemática até as específicas do curso de enfermagem pudemos encontrar atividades para o TC com a intenção de levar os educandos a aprofundar o conhecimento da realidade 92 sócio-cultural e de saúde da sua comunidade (VIDE ANEXOS A, B, C e D). A execução das atividades possibilitaria aos educandos e educadores a realização de uma diagnose das comunidades envolvidas. Porém os resultados desses trabalhos não foram divulgados aos demais professores, que poderiam ter utilizado estes dados para planejar suas atividades com os alunos tanto no TE como no TC, de forma a aprofundar o estudo e a intervenção nos aspectos considerados mais necessários pelos e pelas estudantes-comunidades- professores. Mesmo sendo a Alternância desconhecida dos professores enquanto uma Metodologia de Ensino que considera todos os espaços – sejam da escola ou da comunidade - como locais onde ocorre a aprendizagem, estes acabaram por buscar aliar a prática à construção teórica junto com os alunos, ainda que sem conhecimento sobre os estudos já produzidos acerca do assunto. Assim, acreditamos que a utilização da metodologia da alternância deve ser pensada não apenas para fins de organização do tempo para viabilização de cursos para a população do campo, mas como um recurso metodológico importante que possibilita o diálogo entre as diversas pessoas envolvidas nos mais variados espaços, o encontro de muitos saberes, a investigação, a pesquisa e a ação transformadora. 4.2 Omnilateralidade: convite para pensar uma formação humana nas suas diversas dimensões Foi por sua capacidade de aprender e de compartilhar com os outros o saber que construíram através da ação e da reflexão, que os seres humanos chegaram a esta sociedade cujas inovações, no campo da ciência e da tecnologia, seriam inimagináveis ou apenas ficção científica para quem viveu, por exemplo, na primeira metade do século passado. No princípio – assim descrevem os que contam a história da humanidade -, os homens e mulheres eram coletores / coletoras e pescavam com as próprias mãos, depois passaram a desenvolver instrumentos que possibilitaram a caça/pesca e defesa do grupo. Na sua arte venatória desenvolveram muitas habilidades que eram repassadas aos demais no processo do fazer: a capacidade de observação, de leitura de sinais que utilizava todos os órgãos da sensibilidade corporal, como olfato, tato, e até paladar, além da visão e da audição. Quando aprenderam a técnica do plantio e da criação de animais, 93 aprenderam também a guardar provisões para os tempos de escassez. Aprenderam que poderiam acumular bens e instituíram a propriedade privada e a subjugação da mulher ao espaço doméstico. Se antes eram grandes pela sua versatilidade, pela capacidade de solucionar problemas nas diversas dimensões da vida, compartilhando as descobertas com os semelhantes, e sem a dicotomia entre a atividade intelectual e a manual, com o acúmulo de bens, passaram também a sonegar o saber que lhe interessava para garantir a sobrevivência própria e do grupo. De acordo com Freire (ano, p. 79 – a importância do ato de ler), Os homens e as mulheres trabalham, quer dizer atuam e pensam. (...) Trabalham porque se tornaram capazes de prever, de programar, de dar finalidades ao próprio trabalho. No trabalho o ser humano usa o corpo inteiro. Usa as suas mãos e a sua capacidade de pensar. O corpo humano é um corpo consciente. Por isso está errado separar o que se chama trabalho manual do que se chama trabalho intelectual. Manacorda, reportando-se a Marx, afirma que “a divisão do trabalho ou a propriedade privada, tornou-nos obtusos e unilaterais”. (1991, p. 68). Esta divisão introduziu a especialização, e o domínio individualizado de determinados conhecimentos e/ou de determinados saberes, que, segundo Marx citado por Manacorda (1991), aprisiona os operários a um determinado ramo da indústria, impedindo sua mobilidade. De acordo com Machado (1999), as pessoas que trabalham na fábrica, sempre resultam insatisfeitas com o trabalho por ser desinteressante, cansativo e opressor. Há uma divisão hierárquica que tem por função o controle do pessoal, para que produza segundo os critérios dos que planejam a produção. Ou seja, Com esta divisão, vem junto a própria deformação e mutilação do trabalhador, que é levado a desenvolver apenas uma parte da sua potencialidade, ao executar uma atividade específica durante todo o tempo, reprimindo o desenvolvimento de todas as outras aptidões de que é portador. Neste sentido, esta deformação atinge, indiscriminadamente, qualquer trabalhador parcial, desde aquele que executa, mas não concebe, até o outro que concebe, mas não executa. A divisão do trabalho do período manufatureiro traz consigo, portanto, a divisão entre mão e cérebro, entre o pensar e o fazer. Assim, não só o trabalho se divide, mas ao se separar, cinde o próprio homem. (MACHADO, 1989, p.21) No campo, apesar de a organização do trabalho ocorrer de forma diferente, pois o agricultor continua participando de todo o processo da produção 94 agrícola, do plantio à colheita e/ou à comercialização do produto, em alguns casos como o dos assentados do PRONERA, o trabalhador rural também é vítima da exploração do grande capital, que compra sua força de trabalho22 a baixo custo. O educando Anastácio (p.m) nos trouxe mais próximos a essa reflexão, quando falou: Então a gente vê uma realidade onde nós, agricultores, desde pequenos produtores... Porque o agricultor – quando muitas vezes se fala: agricultor -, trabalhador rural, sempre se dirige ao grande. Ao... Grande proprietário. Então o pequeno produtor é aquele que a gente chama o humilhado agricultor. Que é o sabido, que é quem faz a coisa. Que sabe fazer. E os ricos pagam para o pequeno fazer. E é que muito pequeno ainda não viu isso. Acha que o rico, o proprietário é quem sabe. Mas quem sabe é os pequenos. É quem ta lá plantando, é quem ta lá cavando, é quem ta lá colhendo. Estas palavras do educando Anastácio (p.m) refletem bem a divisão entre o trabalho intelectual, do rico, e o trabalho manual – do “humilhado agricultor”. Ele tem consciência da exploração de que são vítimas os agricultores, os “pequenos produtores”. Segundo ele, são estes últimos que detêm o saber fazer, que é explorado pelo grande. Sua fala demonstra que ele reflete sobre a situação de exploração de que é vítima, o mesmo não acontecendo, segundo ele, com outros camponeses. Se essa fala de Anastácio tivesse ocorrido na sala de aula e não na entrevista, seria possível que as discussões caminhassem para a intencionalidade existente no tratamento de “pequeno produtor” dado a eles. Novamente recorrendo ao Dicionário Eletrônico Aurélio Séc. XXI, o verbete ‘pequeno’ significa, entre outras coisas, pouco apreciável, de pouco valor; e também pode significar modesto. Qual a verdadeira intencionalidade desse adjetivo dado ao homem e a mulher do campo que lavram a terra, que plantam para a própria subsistência? Acreditamos que a intenção por trás desse tratamento é diminuir ou mesmo anular a sua auto-estima. “E muito pequeno ainda não viu isso”, disse Anastácio (p.m). A escola também não viu a necessidade de abrir-se a esta discussão. Qual seria o papel da Escola diante dessa e de outras questões que sobressaem nas falas dos alunos? Ao descrever o homem unilateral que surgiu com a divisão do trabalho, 22 É o caso dos cortadores de cana e trabalhadores da agro-indústria de maneira geral, que são contratados por temporada, às vezes só para o plantio, ou só para a colheita. 95 Marx viu na educação uma maneira de se tentar reconquistar a onilateralidade perdida. Assim propôs os princípios básicos para uma educação que proporcionaria a formação multilateral das pessoas mediante o ensino politécnico. Manacorda garimpou, nos escritos de Marx, fragmentos que indicassem o que ele compreendia por onilateralidade. Marx levantava a hipótese de que numa sociedade comunista, onde inexistiria a divisão de classe, e a sociedade regularia a produção geral, seria possível que os seres humanos se aperfeiçoassem no ramo de atividade que quisessem, possibilitando que prazerosamente realizasse diversas atividades nos horários que mais lhes aprouvessem. Marx até exemplifica dizendo que uma pessoa poderia “fazer hoje esta coisa, amanhã aquela, de manhã ir à caça, à tarde pescar, ao anoitecer tratar do gado, depois do jantar exercer a crítica, como bem lhe apeteça, sem tornar-se um caçador, pescador, pastor ou crítico”. (MARX apud MANACORDA 1991, p. 832) Essa era a idéia de onilateralidade pensada por Marx, só possível numa sociedade sem exploradores e explorados. Porém há aqueles grupos que buscam a promoção de uma formação que chegue o mais perto possível da educação sonhada por Marx. Caldart, referindo-se ao curso “Pedagogia da Terra da Via Campesina”, ocorrido também dentro do PRONERA, entre os anos de 2002 e 2005, pensa a onilateralidade como uma perspectiva que deve ser intencionalmente buscada no trabalho de formação docente, tentando a realização de uma formação o máximo possível integral. Ela aponta como facilitador da materialização dessa intencionalidade o formato do curso que descreve, ressaltando as “etapas, alternância, constituição de turmas [...]” (2007, p.33). Caldart ressalta ainda a convivência em tempo integral com os alunos e alunas, no tempo-escola, que traz para o seu interior a “vida real” com sua multidimensionalidade, intencionalmente ou não. Para ela: A questão que se coloca neste caso é se vamos tomá-la como parte (que é todo) do processo formativo do curso, ou não; se vamos apenas admitir que esta vida está pulsando entre nós e deixa-la “acontecer” ou se vamos buscar intencionalizá-la em uma mesma totalidade formadora, e desde um mesmo projeto de ser humano. (CALDART,2007, p.33) 96 Ao entrarmos em contato com a experiência relatada pela professora Roseli Caldart, nos damos conta que no caso em estudo, não houve a preocupação com esta questão. Os passos em direção a esse caminho, no princípio, foram dados sem a intencionalidade que houve na experiência relatada pela professora Caldart e pelos alunos e alunas formados naquele curso. Provavelmente por ser tudo tão novo para as professoras da ETS23, que ainda não tinham conhecimento da educação do campo enquanto uma proposta de educação alternativa à que se observa na maioria das escolas do meio rural. Mesmo assim, parte pela intuição, parte pela experiência, pelos conhecimentos, pelos diálogos, parte pela orientação pedagógica recebida, estão construindo o seu caminho e o seu aprender nesse processo. Porém, mesmo com algumas limitações nessa construção, os caminhos trilhados estão apresentando resultados satisfatórios tanto em relação ao crescimento dos educandos, educandas, professores e professoras, quanto no seio de cada assentamento. De acordo com Carvalho et al (2007): Podemos dizer que no decorrer do curso, o processo educativo ganha visibilidade nos assentamentos. Os alunos trazem para a sala de aula, conforme relato dos docentes, informações que comprovam sua atenção mais detalhada aos problemas de saúde nos seus assentamentos. Isso diz respeito ao cuidado e ações mais efetivas de atenção ao meio ambiente, principalmente no que diz respeito à melhoria da qualidade da água utilizada e ao destino do lixo e dejetos, além da discussão acerca do uso nem sempre criterioso dos agrotóxicos. Além disso, os alunos relatam que as experiências adquiridas durante o curso têm influenciado efetivamente no seu desempenho quanto às organizações locais e aos outros serviços de alcance social. Além dos relatos dos docentes, constatamos essa visibilidade da importância do curso através das entrevistas, onde os educandos e educandas relataram as modificações que vêm ocorrendo. Inês (s) relatou-nos o seguinte: Bom, lá no meu assentamento é... Na etapa passada, eu já levei o aparelho de verificar pressão. Não precisou nem eu sair para as casas. Eles iam me procurar. E falavam que seria muito bom isso aí, no caso tem muitas pessoas hiper-tensas lá e precisa. 23 Sempre lembrando que quando nos remetemos ao corpo docente da ETS, a pesquisadora se encontra incluída. 97 Já Pedro (s), concentrou suas ações na melhoria da infra-estrutura da comunidade, que atingiram diretamente a saúde da população. A gente reuniu a comunidade, não tinha coleta de lixo, então através desse curso a gente já conseguiu coleta de lixo, tanto para a comunidade de Barra de Antas quanto para o assentamento que não tinha. Ele afirma que o conhecimento adquirido no curso foi o responsável para garantir atendimento médico à sua comunidade. Atendimento médico: o médico está vindo mensalmente, a gente teve um abaixo assinado junto com a comunidade, incentivando, pra reivindicar. Tem... agora recente foi feito um posto âncora na comunidade Barra de Antas, que é pegado com o acampamento – é... O acampamento pertence a essa comunidade –. Então a gente conseguiu agora um posto âncora, que não tinha. O atendimento era feito num salão, no memorial João Pedro Teixeira, que é uma área onde a gente faz... Resgata um pouco essa história das Ligas. E é um salão, e lá a gente montou, por iniciativa também até minha mesmo. Assim, juntei, falei com o padre responsável, ele cedeu, e o médico vinha e atendia o pessoal na cozinha do salão, a gente arrumava e deixava tudo pronto, com ventilador, pia, tudo direitinho, então era o postinho onde funcionava. Mas a gente nunca deixou de cobrar da prefeitura que fizesse um local específico para o atendimento. Hoje tem. Uma salinha pequena, mas tem uma areazinha coberta, tem uma sala para fazer as fichas, gabinete médico... Que antes não tinha nada era...complicado. A gente pegava, reunia numa sala e fazia o atendimento. Hoje a gente já conseguiu. E foi através do, através desse esclarecimento, dessa formação que eu estou recebendo aqui na universidade, diante de saber, é... O conhecimento maior no sentido dos direitos, da questão da saúde. Que antes era mais da terra, a legislação, essa coisa toda. E hoje não. Hoje é saúde também. É uma discussão constante. Porque a gente não pode ser só a terra. A gente tem direito à terra, à saúde, à educação de qualidade, a... a tudo. (Pedro – s) Houve, no início da luta pela reforma agrária, aqueles que acreditavam que bastava a posse legalizada da terra para que todos os problemas dos povos camponeses estivessem solucionados. E isso foi um engano. Como afirmou Pedro (s), os agricultores e agricultoras necessitam de terra, mas também de saúde, educação de qualidade, entre outras coisas. Mas, nessa fala, queremos chamar a atenção do (a) leitor(a) para uma frase em especial: “A gente não pode ser só a terra.” Aqui o autor pode ter utilizado o verbo ser como sinônimo de saber. Porém se admirarmos essa frase sob outro ângulo podemos considerar que o educando está tão envolvido com as coisas da terra, que se sente mesmo parte dela, por ser sua fonte principal de 98 vida e motivo da sua luta. 4.3 A versatilidade do povo do campo e a prática da enfermagem “Não existe atividade humana da qual se possa excluir toda intervenção intelectual, não se pode separar o homo faber do homo sapiens”, professou Gramsci. (1968, p.7, grifos do autor). Ocorre que na sociedade alguns exercem a função de intelectuais e outros não, dependendo do peso que a elaboração mental ou o esforço físico tenham no seu processo de trabalho. No caso dos homens e mulheres trabalhadores rurais que lidam diretamente com o plantio, o esforço “muscular-nervoso” prevalece, fazendo com que seu trabalho não seja considerado intelectual. “Todos os homens são intelectuais, poder-se-ia dizer então; mas nem todos os homens desempenham na sociedade a função de intelectuais”. (GRAMSCI, 1968, p.7). De acordo com Gramsci, os camponeses sonham com a elevação do nível social da família, através do exercício de uma atividade intelectual, por um de seus filhos. Lembrando que, no campo, quem exerce até hoje a função de intelectuais são os padres e outros líderes religiosos, professores, médicos, enfermeiros, advogados. Gramsci propôs a criação de um novo tipo de intelectual, que se contraporia ao intelectual tradicional, mediante a modificação da relação entre atividade intelectual e o esforço muscular-nervoso, de forma a se obter um equilíbrio. Isto seria alcançado com a educação técnica, onde o aluno aprenderia não só para realizar uma técnica, mas para transformar a sociedade. Embora a realidade camponesa tratada por Gramsci seja a européia, especificamente italiana da primeira metade do século XX, ele dedica dois parágrafos do livro “Os intelectuais e a organização da cultura”, à análise da questão dos intelectuais na América do Sul e na América Central, afirmando que àquela época a maior parte dos intelectuais era de tipo rural, ligada ao clero e aos grandes proprietários. (GRAMSCI, 1968) Passado quase um século desde que Gramsci realizou seu estudo, temos um contexto diferente, provocado pelo êxodo rural, o aumento do número das grandes indústrias, o processo de globalização, enfim, sofremos, neste período, 99 modificações sócio-político-econômicas, tecnológicas que fizeram os intelectuais tradicionais concentrarem-se principalmente na zona urbana, havendo escassez desse pessoal na zona rural. Em se tratando dos intelectuais orgânicos, aqueles que pensam e formam opinião em defesa dos interesses de uma classe específica, continuam presentes no campo os ligados ao poder hegemônico. Porém uma ação contra-hegemônica a partir dos oprimidos com seus próprios intelectuais (aos quais se somam os que não são camponeses, mas que abraçaram a sua causa), vem se consolidando ao longo dos anos do século passado, da qual as Ligas Camponesas e o MST (surgido a partir da CPT) e a própria CPT são exemplo. Dentre esses intelectuais, um grupo dedicou seus esforços para pensar uma educação para o trabalhador rural que atendesse suas aspirações e as necessidades daquele grupo de excluídos. Desse esforço um dos resultados foi o PRONERA. É certo que ainda nos encontramos longe do ideal, mas pelo menos a educação das pessoas jovens e adultas do campo brasileiro está acontecendo, mesmo que com os graves problemas que descrevemos anteriormente e sem o alcance desejado em termos quantitativos. Na experiência que ora ocorre na ETS / CCS/ UFPB, certos traços culturais da comunidade rural têm chamado a atenção de alguns educadores. Principalmente porque, como afirmou Morin (2000, p. 56), “(...) cada cultura é singular.” Mas nesse tópico enfocaremos um traço que acreditamos poder ser mais um subsídio à reflexão acerca do ensino técnico em enfermagem: a versatilidade humana. Provavelmente, pelo contato mais próximo da natureza, que faz com que o ser humano tenha uma sensação de pertencimento ao ecossistema, os povos do campo têm maior possibilidade de utilizar sua versatilidade para lidar com os fatos do cotidiano. A falta de especialistas também contribui para que nas localidades distantes dos centros urbanos, as pessoas produzam soluções alternativas, a partir do material de que dispõem no seu entorno. Enquanto isso, a população das cidades, que foi atingida mais diretamente pela lógica do pensamento moderno, o qual costuma provocar uma fragmentação das atividades cotidianas, levando as pessoas a limitarem-se a especializações que restringem suas potencialidades criativas. Isso aborta no ser humano sua disponibilidade vital, a de pensar e agir de maneira versátil. 100 Também é possível que a dinâmica da vida urbana não lhe permita o tempo necessário para tal. A escola, na sua forma de conduzir o ensino, foi uma das maiores responsáveis por essa limitação imposta às pessoas. Isto não significa que estas sejam menos versáteis. Apenas que não lhes foi permitido descobrir que possuem essa característica também. Em relação aos educandos e educandas do PRONERA, a versatilidade chega a ser percebida facilmente pelas educadoras e educadores: Sabe, eles são muito assim... são versáteis, não é? Isso ajuda muito, entendeu? Eles sempre chegam com idéias novas, sabe? Eu senti isso. Eles têm aquela sede de buscar, não são todos, mas uma boa parte. Uma sede de buscar, de conhecimento. (Malva) Nesta fala, Malva associa a versatilidade à inventividade, à curiosidade e à busca de conhecimentos, que são, a nosso ver, características essenciais para quem está construindo conhecimentos. Reconhecer essas características pode ser o passo inicial para o desvelamento da maneira como os educandos e as educandas conhecem. Isto possibilitaria, em verdade, a ampliação das possibilidades de construção de novos saberes e novos conhecimentos. De acordo com Paulo Freire: O exercício da curiosidade convoca a imaginação, a intuição, as emoções, a capacidade de conjecturar, de comparar, na busca da perfilização do objeto ou do achado da sua razão de ser. Um ruído, por exemplo, pode provocar minha curiosidade. Observo o espaço onde parece que se está verificando. Aguço o ouvido. Procuro comparar com outro ruído cuja razão de ser já conheço. Investigo melhor o espaço. Admito hipóteses várias em torno da possível origem do ruído. Elimino algumas até que chego a sua explicação. Satisfeita a curiosidade, a capacidade de inquietar-me e buscar continua em pé. Não haveria existência humana sem a abertura de nosso ser ao mundo, sem a transitividade de nossa consciência. Quanto mais faço essas operações com rigor metódico tanto mais me aproximo dos achados de minha curiosidade (2005c, p.88). Para garantir a vida, o ser humano, desde os tempos imemoriais, precisou desenvolver e aguçar cada vez mais a curiosidade e capacidade de observação, pois isso lhe permitiu solucionar os problemas que se colocavam no seu caminho. Os avanços tecnológicos e científicos da humanidade não atingiram tão diretamente aos camponeses e as camponesas quanto aos moradores da cidade. Desta maneira os trabalhadores e trabalhadoras do campo continuam 101 tendo que transitar pela vida com mais dificuldades do que a maioria das pessoas da zona urbana, pelo isolamento provocado pela distância dos centros urbanos e carência de meios de transporte e comunicação mais eficientes. Por outro lado, contam com uma maior disponibilidade de tempo e com o constante contato com a natureza. Isto, no nosso entender, exige capacidade de improvisação para superar as dificuldades do dia-a-dia. E esta só é acionada através da curiosidade que se articula à imaginação, intuição, emoções e demais capacidades que proporcionam o ato da criação. Na disciplina Educação do Campo, ministrada à turma de suplência, o professor buscou comprovar, junto aos seus alunos, a sua hipótese de que as pessoas do campo possuem e utilizam-se dessa característica vital para garantir sua sobrevivência. Assim, solicitou aos alunos que inicialmente descrevessem o perfil de uma pessoa que eles julgavam versátil, para em seguida relatarem como se viam em relação à versatilidade. A aluna Elizabeth (s) assim descreveu a pessoa da comunidade: Descrevo aqui o perfil de uma pessoa cuja considero versátil. [...] casado, tem três filhos, com a 1ª fase do ensino fundamental incompleta e atualmente trabalha mais, na pequena agricultura. Suas atividades identificadas são: carpinteiro, agricultura, arquitetura, barbeiro, pedreiro, caçador, pescador, prever os fenômenos atmosféricos terrestres, como chuva, estrela cadente. [...] antes de morar no assentamento ele viveu uma temporada no Rio de Janeiro e em João Pessoa, cujo afirmou que construiu e estudo, escalou edifícios e casas. Não deu para seguir mesmo a função por causa do grau da escolaridade que era muito baixa. Pessoas como a descrita acima são exemplos do que entendemos como sendo alguém versátil. Constroem saberes que lhes permitem alcançar condições menos árduas de vida. Mesmo não tendo a escolarização completa, sabem transitar por vários campos do conhecimento. Embora com as limitações próprias de quem não teve possibilidade de escolarização, a pessoa citada pela aluna pode planejar e construir sua moradia, sua mobília, plantar seu alimento na época apropriada, pois prevê a chuva ou sua ausência. Também pode prover sua família da carne da caça e da pesca, se assim necessitar. Ao seu próprio respeito, Elizabeth escreveu: Eu, considero-me uma pessoa versátil diante das atividades que pratiquei, pratico e tenho habilidade para tal ou acredito que sou capaz 102 de exercer com habilidade. Um fato marcante é que, achava que como professora não seria capaz de passar com transparência conhecimentos e me enganei, me comprometi a ensinar justamente pelo PRONERA no programa do EJA e tenho convicção de que já aprendi muito e minha turma também evoluiu bastante, foi uma experiência marcante na minha vida. Mas além disso, tenho experiência com: Literatura, filosofia, costuro, Desenho, consinho, faço plantação, colheita, manicure, cabeleireira, artesanato, carpintaria, decoração, bijuteria. É essa versatilidade que permite a Elizabeth mover-se no mundo e com o mundo. Apenas o fato de reconhecer-se versátil, de pensar sobre as próprias potencialidades, possibilita a elevação da auto-estima, o que consideramos um elemento essencial para lhe propiciar mais segurança. Os educandos conseguem identificar facilmente pessoas assim. Vejamos outro exemplo, apresentado pelo aluno Pedro (s) [...] é uma pessoa que desempenha várias atividades na nossa comunidade. Ela faz parte da diretoria do assentamento, trabalha no roçado, estuda, cuida do gado, faz parte de um grupo de feirantes que cultiva verduras sem agrotóxico e comercializa na feira na cidade de Sobrado. Ela ainda é coordenadora da comunidade, é educadora da turma de EJA e é voluntária da pastoral da criança. Veja bem! Tudo isso que ela faz, inclusive participa de congressos e faz bolos, tortas, salgados de... em casa para vender e ajudar o marido dela nas dispesas de casa. Anunciada (s) descreve a pessoa que considera versátil desta forma: Ele é carpinteiro, pedreiro, encanador e trabalha na agricultura. Eu o considero uma pessoa super inteligente, pois o mesmo faz de tudo um pouco, eu o admiro muito; Mas que pena ele não sabe explorar essa inteligência que o Senhor o Criador lhe concedeu. Ele gosta muito de beber e quando bebe não faz nada. Estes saberes apontados acima, pelos educandos, foram construídos provavelmente fora da escola, no momento da execução da atividade em si, sob a orientação de alguém mais experiente ou não. De acordo com Carvalho et al (2007), O arrogante pensamento domesticado, moderno, científico que se consolidou a partir do século XV, cercado de certezas, leis, determinismos, causalidades, teleologias, deixou de lado a preocupação com a totalidade, com a intuição, com o imaginário, passando a se concentrar no entendimento do fragmento, da parte, supondo que, assim, seria possível atingir uma objetividade sem parêntesis. Com isto virou as costas para o sujeito, para a incerteza e para a complementaridade, privatizou terras e mares, considerou 103 magias e mitos como algo irracional, produto descartável criado pela mente obscura de selvagens, ou por alucinações de civilizados saudosos de um suposto estado de natureza no qual os homens seriam mais felizes e íntegros. A principal conseqüência dessa visão de mundo, no plano da educação, acabou por consagrar, em décadas posteriores, a figura do especialista, esse humano fechado em si mesmo, egoísta, que descarta e desconsidera tudo aquilo que ocorre para além dos contornos infinitamente pequenos de sua existência e de seu objeto de pesquisa. (2002, p. 4-5) Em educação a versatilidade tem um papel essencial, pois permite diferentes possibilidades de construção do aprender. Quantas são as relações que Elizabeth pode fazer entre os seus saberes culinários, de carpintaria, cabeleireira, manicure, com a enfermagem? Acreditamos que muitas relações. Os aprendizados que construiu numa área podem servir para que ela os utilize e até os aprimore em outra. Cabe às professoras e aos professores descobrir mecanismos que facilitem o estabelecimento dessas relações. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Sempre tivemos uma sensação de prazer no aprender. O prazer da realização de descobertas. Um prazer que nos toma o corpo todo que, por inteiro, participa desse processo. A aprendência como um amálgama de todas as dimensões que compõem o nosso ser, repercute no corpo tanto pelas dores de cabeça, das costas, pelas cólicas que sentimos - um desprazer -, quanto pelas sensações maravilhosas que ocorrem no gozo do insight, onde o coração acelera com as descobertas. Assmann (2004, p.171) busca explicar esse prazer quando propõe resgatar a dimensão de prazerosidade “intrinsecamente ligada à intencionalidade ou dinâmica operante dos seres vivos no sentido da sua autopreservação e de seu auto-incremento, individual e socialmente cooperativo.” Ele afirma que o prazer é uma força que dinamiza a aprendizagem. Assim vivi entre dores e prazeres os pouco mais de dois anos de duração deste curso de mestrado. Como os exploradores a desbravar os novos mundos, eu percorria, nessa pesquisa exploratória, caminhos inusitados. Traçava rotas que, algumas vezes, conduziam a lugar nenhum. Outras vezes, esses percursos levavam-me a confirmar as tristes constatações de tantos estudiosos da 104 educação brasileira e também a momentos de esperança na educação do presente e do futuro, principalmente pelas características do nosso povo. Nesse trajeto, o diálogo com meu orientador me fez ver o quanto é necessário valorizar o jeito de ser, de fazer e a produção teórica da nossa gente latino-americana. Isso não quer dizer que os grandes teóricos d’além mar devam ser esquecidos. Não se trata disso. Mas somos diferentes e temos que trabalhar considerando estas diferenças culturais, sociais, econômicas, geográficas, que imprimem o nosso jeito de ser gente. A escola em que trabalhávamos passou a ser nosso universo de estudo, e conseqüentemente, para estudar o fenômeno que ali ocorria, dela acabamos nos distanciando. Precisávamos afastar-nos, distanciarmo-nos do objeto, para tentar conhecê-lo na sua complexidade. Sabendo que pelo dinamismo com que a vida acontece, não é possível conhecermos tudo sobre alguma coisa, mas podemos buscar entender como o fenômeno está ocorrendo com aquele grupo específico e naquela situação específica. Com essa compreensão, acreditamos que o estudo por nós desenvolvido evidenciou aspectos importantes do processo de construção do Curso de formação de técnicos de enfermagem e suplência do ensino médio, dentro das categorias que nós elegemos, atentas aos caminhos desenhados pela coordenação pedagógica, pelo corpo docente e discente nas tentativas de superação das dificuldades e dos desafios pedagógicos e didáticos que se lhes apresentaram no transcurso da experiência. Assim, tentamos apontar algumas possibilidades e alguns limites que podem ser alargados de acordo com o desejo das pessoas envolvidas no projeto, no sentido de buscar garantir o objetivo do Programa de “Fortalecer o mundo rural como território de vida em todas as suas dimensões: econômicas, sociais, ambientais, políticas, culturais e éticas” (2004, mimeo). Além disso, atentamos para as aprendizagens docentes, que deverão ter repercussão na sua atuação junto às turmas do curso regular. A docência necessariamente exige das professoras uma versatilidade que lhes possibilite atuar de forma a atender todas as dimensões do processo pedagógico. Embora isso nem sempre seja destacado nos meios acadêmicos, pensamos que essa característica vital foi importante na adaptação das educadoras às exigências do PRONERA. Consideramos que as contribuições que a ETS tem dado ao debate sobre o Programa Nacional da Reforma Agrária, também foram valiosas para a 105 consolidação do mesmo. A partir do levantamento e tratamento dos dados, o estudo demonstrou que há certa influência da experiência com o PRONERA no processo de reformulação do PPP que se instalou na ETS, principalmente no que diz respeito à concretização de um trabalho mais interdisciplinar. Outra questão relevante é o fato de que a problematização tornou-se um objetivo a ser perseguido pelas educadoras, quando constataram que de fato não estavam favorecendo a problematização dos conteúdos de forma a conduzir os estudantes a um pensar crítico. A procura, por parte das educadoras, por cursos de atualização na área de metodologia problematizadora é um exemplo disto. Ainda em relação ao PPP, observamos a necessidade de atentarmos para a explicitação da versatilidade dos educandos e educandas, sejam estes do campo ou da cidade, pois o Projeto Político-pedagógico considera que a formação do aluno e da aluna deve centrarse nas capacidades de observação, articulação, reflexão, análise, criação, reconhecimento de valores, julgamento, comunicação, convívio, cooperação, decisão e ação, o que exige uma atuação versátil. Assim, acreditamos que a partir do momento em que a ETS concluir esse processo de transição, com a atualização do seu PPP dando o lugar devido à problematização tenderá a tratar o tema da versatilidade dos educandos e educandas com a devida atenção. Diante do que foi visto, acreditamos ser interessante aprofundarmos os conhecimentos acerca dos reflexos do Curso de formação de técnicos de enfermagem e suplência do ensino médio nas comunidades e na Escola Técnica de Saúde, para identificarmos até que ponto a experiência com o PRONERA proporcionou o desejo de transformação das práticas pedagógicas baseadas no modelo hospitalocêntrico e conteudista que prevalece na escola, em práticas voltadas para uma visão mais coletiva e preventiva, acolhendo os alunos e alunas enquanto autores de saberes e de conhecimentos. 106 REFERÊNCIAS ARROYO, Miguel G. Por um tratamento público da educação do campo. In MOLINA, Monica C., JESUS, Sonia M. A. de (orgs). Contribuições para a construção de um projeto de educação do campo. Brasília, DF: Articulação nacional “Por uma Educação do Campo”. 2004. ASSMAN, Hugo. Curiosidade e prazer de aprender: o papel da curiosidade na aprendizagem criativa. Petrópolis, RF: Vozes, 2004. ______. 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MOTIVAÇÃO PARA O CURSO: 02.1 - Como tomou conhecimento do curso? 02.2 – Quais os motivos que te fizeram matricular no curso? 02.3 – Qual o principal motivo para você querer ser técnico(a) de enfermagem? 02.4 – Pretende permanecer trabalhando na comunidade, ou tentará emprego em outras localidades? O que pretende fazer ao concluir o curso? 03. TROCA DE SABERES: 03.1 – Como você vê a troca de saberes na escola? 03.2 – Qual o perfil ideal de professor(a) para você? 03.3 – Que tipo de atividades você considera que facilitam mais sua aprendizagem? 04. TEORIA E PRÁTICA DE ENFERMAGEM: 04.1 – Você já teve a oportunidade de estagiar? 04.2 – Como você se sentiu ao manusear e utilizar instrumentos de enfermagem? 04.3 – Quando você estava realizando um procedimento, conseguia relacionar com a teoria? 05 – DIFICULDADES NA LECTO-ESCRITA: 05.1 – Como você vê a relação entre a dificuldade na leitura e na escrita com a aprendizagem dos conteúdos de enfermagem? 115 APÊNDICE B – Roteiro para entrevista semiestruturada (professores) 116 ROTEIRO PARA ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA (professores) OBJETIVO: Compreender o processo de implantação do curso técnico de enfermagem e suplência do Ensino Médio/ PRONERA, na Escola Técnica de Saúde, com foco nas relações docentes e discentes. TEMÁTICAS: 01. Diferenças Culturais; Pedagogia da Alternância; Troca de Saberes. 01 – DIFERENÇAS CULTURAIS: 01.1 – Você percebe alguma diferença entre os alunos do curso regular da escola técnica e os alunos e alunas do PRONERA? 01.2 – O que mais lhe chama atenção no grupo do PRONERA? 01.3 – Como você vê o desempenho dos alunos do PRONERA nas atividades práticas e nas aulas teóricas? 02 – PEDAGOGIA DA ALTERNÂNCIA: 02.1 – Como você viu o trabalho em alternância? 02.2 – Sentiu alguma dificuldade ao estabelecer atividades para o tempocomunidade? 02.3 – Você acredita que um bom aproveitamento do tempo-comunidade? 03 – TROCA DE SABERES: 03.1 – Como você vê os saberes e conhecimentos trazidos pelos educandos e educandas do PRONERA? 03.2 – Você acredita na possibilidade de haver uma troca de saberes entre você e eles? 03.3 – O que mais lhe chama atenção nesses alunos e alunas? 117 ANEXOS 118 ANEXO A – Atividade do tempo-comunidade - Matemática 119 ANEXO B - Atividade do tempo-comunidade – Língua Portuguesa 120 ANEXO C – Atividade do tempo-comunidade – Fundamentos de Enfermagem I 121 ANEXO D – Atividade do tempo-comunidade – Enfermagem em Doenças Infecto-Contagiosas