MNatali_Da violencia_Seminario DTLLC

Transcrição

MNatali_Da violencia_Seminario DTLLC
Da violência, da verdadeira violência
(sobre “El Ojo Silva” de Roberto Bolaño)
1
Marcos Natali
“Lo que son las cosas” são as palavras que abrem “El Ojo Silva”, conto de
Roberto Bolaño, e na expressão é possível ouvir um apelo, a convocação de uma
voz a um olhar. Em “Fíjate cómo son las cosas”, implícito nessa versão, a fala
busca, no momento mesmo em que a narração se descortina, conduzir o olhar
do ouvinte àquilo que ela não quer que deixe de ser visto.2 Com “Lo que son las
cosas” a narrativa também faz uma promessa, anunciando o relato de um
acontecimento cuja aparência pode sugerir seu pertencimento ao campo do
anedótico, mas que ao mesmo tempo possuirá, apesar de sua particularidade,
um sentido geral. A promessa desde esse momento passará a pairar sobre o
relato, e o episódio narrado carregará o peso da expectativa de ser exemplar,
1
Uma versão deste texto será publicada no livro Toda a orfandade do mundo: escritos sobre
Roberto Bolaño (Ed. Relicário, 2016), organizado por Antônio Marcos Pereira e Gustavo Silveira
Ribeiro. Outra versão do trabalho foi apresentada na Unicamp em outubro de 2015.
2
Roberto Bolaño, “El Ojo Silva”, Putas asesinas. 3ª ed. Barcelona: Anagrama, 2006, p.11. Na
tradução do conto ao português feita por Eduardo Brandão, o que se lê é “Vejam como são as
coisas”, onde, além da explicitação da referência à visão e ao gesto de apontar em determinada
direção com o dedo do discurso, o que se insere no texto é também a especificação de um
destinatário coletivo, ausente do original, que omite qualquer delimitação (Roberto Bolaño, “O
Olho Silva”. Putas Assassinas. Trad. E. Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.11).
Já na tradução ao inglês a expressão é suprimida por inteiro, e o conto é introduzido pelas
palavras “Mauricio Silva, also known as ‘The Eye’...”, como se o preâmbulo fosse dispensável
(Roberto Bolaño, “Mauricio (‘The Eye’) Silva”. Last Evenings on Earth. Trad. Chris Andrews.
Nova York: New Directions, 2007, p.106).
um caso específico do qual se espera a capacidade de apontar algo a respeito de
um conjunto maior, talvez até sobre o funcionamento geral desse conjunto.
Estamos entrando, tudo indica, nos terrenos da fábula e da parábola, com a
narração prometendo dar a ver algo que pertence ao domínio da generalidade:
é de como são as coisas, de como é a vida, do que é feito o mundo que o conto
tratará – e de como o mundo é infelizmente, pode-se pressentir desde já, pois
aquele que narra não parece estar em sintonia com o estado que começa a
descrever. Há desde o início dissonância entre essa voz que passa a historiar
uma vida alheia (a de Mauricio Silva, o “Ojo” do título) e o mundo em que esta
vida transcorreu.
Seja lá o que for que o conto tem a expor, não se tratará, pois, de uma
descoberta a ser anunciada com entusiasmo, e será mesmo certo tom de
resignação e tristeza que predominará ao longo de todo o relato. O que a
história tem a ensinar não será aprazível, pertencendo muito mais ao terreno
das verdades tristes (como quando alguém diz algo como: “Veja só como são as
coisas: meu vizinho cuidava tanto da saúde e foi morrer atropelado”). Estamos
em um território em que já não parece haver muito a se fazer, talvez já não
exista mesmo mais nada a ser feito – inclusive porque, afinal, “ya han pasado
tantos años” desde os acontecimentos. Se for mesmo uma fábula, já se pode
antecipar que será parte daquele subgênero em que as fábulas se aproximam
das histórias de terror.
3
Se isso tudo está na expressão inicial, que serve como um prefácio à
narrativa, antes dela, já no título, o que se anunciava era que se trataria de uma
biografia (ficcional), o simulacro da história da vida daquele que lá é nomeado.
Juntando um e outro, título e prefácio, o que se tem é a promessa de inclusão
em uma série ainda mais restrita: a história da vida singular que possui um
significado maior. Não é outra coisa o que a narração logo proclamará: “El caso
del Ojo es paradigmático y ejemplar”.3
Há outra promessa insinuada na expressão introdutória “Lo que son las
cosas”, esta referente a uma propriedade estrutural do relato que se inicia: em
algum momento da narrativa haverá um giro. Essa característica estrutural não
está desconectada daquilo que pode ser o sentido do relato, pois é esse
movimento brusco no interior da narrativa que fará com que a verdade das
coisas, que é possivelmente a verdade do mundo, venha à tona, comprovando
sua inevitabilidade e, se a expectativa inicial se confirmar, seu horror. O caráter
enigmático é portanto parte do sentido das coisas, e é seu desvelamento o que
o receptor aguarda a partir desse momento. Assim, a existência de uma regra
geral para aquilo que o mundo é, para aquilo que as coisas são, é anunciada,
mas ainda terá que ser exposta, justamente pelo desenrolar da história; a
narração será essa exposição. O “Lo que son las cosas” é deste modo tanto ponto
3
Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.11.
4
de partida para o relato quanto seu prometido ponto de chegada. É de onde se
sai e aonde se espera chegar, simultaneamente origem e destino.
Ao parecer a promessa logo se cumpre, e antes do que se esperaria (talvez
cedo demais para que confiemos nela, como veremos). A revelação do sentido
geral da existência e do princípio organizador da história (também da
História?) virá logo em seguida, ainda na primeira frase do conto:
Mauricio Silva, llamado el Ojo, siempre intentó escapar de la violencia
aun a riesgo de ser considerado un cobarde, pero de la violencia, de la
verdadera violencia, no se puede escapar…4
O giro narrativo que havia sido prenunciado portanto já ganha um nome: há o
desejo de exterioridade em relação à violência, há tentativas de fuga, mas
haverá também, superior aos dois, o retorno avassalador da violência.
Formalmente, o recurso não é diferente daquele encontrado na abertura
do romance Amuleto, que também está fundado sobre uma promessa, nesse
caso relacionada ao pertencimento a um gênero: “Ésta será una historia de
terror”, pressagia a narradora Auxilio Lacouture. (No romance o movimento e
a tensão virão da diferença entre a definição do gênero da narrativa e sua
aparência: “Pero no lo parecerá” 5.) Já em 2666, romance posterior às duas
narrativas, não é preciso esperar sequer até as primeiras linhas, o anúncio
aparecendo na epígrafe tomada da tradução de um verso de Baudelaire: “Un
oasis de horror en medio de un desierto de aburrimiento.” 6 (Aí o movimento
4
Ibidem.
Bolaño, Amuleto. Barcelona: Anagrama, 1999, p.11.
6
Bolaño, 2666. Barcelona: Anagrama, 2004, p.9.
5
5
imaginável é entre o oásis distópico e o deserto que o cerca e contém, ou seja,
entre o horror e o tédio). Na verdade, no romance póstumo a profecia é
inclusive anterior à epígrafe, uma vez que seu título ao mesmo tempo aponta
para o futuro (dois mil e...) e o nomeia e define como apocalipse e catástrofe
(666). Violência, terror, horror e catástrofe, portanto: como em outros textos
do autor, ler “El Ojo Silva” é confrontar, por um lado, a expectativa gerada pela
proclamação feita no início da narrativa, onde o sentido da parábola sombria
já é proposto, e, por outro lado, o que sobra – o que sobra na história e da
história, mas também o que sobra de história, pois o que sobrevive e chega até
nós é finalmente uma narrativa. Trata-se, assim, do exercício de examinar a
equivalência entre o princípio organizador e a narrativa, isto é, do trabalho de
discernir se existe na narrativa algo que exceda e desestabilize o princípio
geral. Assim, como em todo discurso profético, tudo no conto se jogará nessa
relação entre a profecia e o seu resto.
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

A questão é enorme. Dizer que é do tamanho do mundo seria pouco, pois
ela é maior do que ele, abarcando inclusive aquilo que ainda não é e está ainda
por vir (só isso justificaria a contundência da afirmação: “no se puede
escapar”). Por onde começar, por onde começar a falar sobre o futuro? E caso
começássemos, onde terminaria uma história como essa, uma história do
futuro?
6
Ela poderia passar, por exemplo, pelo futuro nos versos de César Vallejo
(poeta que aparece como personagem em Monsieur Pain, outro romance de
Bolaño), nas súplicas dirigidas por eles a alguém já reconhecido como morto:
“¡No nos dejes!”, “¡Vuelve a la vida!”.7 Dolorosamente, o amor – a intensidade
de um amor – será apresentado como argumento contra a morte – “¡No mueras;
te amo tanto!” –, para encontrar a indiferença fria com que a morte trata o
afeto: “Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.” E, no entanto, nos últimos versos,
quando o poema caminha para sua catástrofe particular, os versos sonham que
uma reunião de toda a humanidade seria capaz de tocar o morto:
Entonces, todos los hombres de la tierra
le rodearon; les vio el cadáver triste, emocionado;
incorporóse lentamente,
abrazó al primer hombre; echóse a andar...
Os versos são a cena para a irrupção de um futuro além da morte, mas quando
o cadáver se levanta quem termina é o poema, que então encontra seu próprio
fim, matizando a esperança ressurrecional.
É também a um moribundo que será dirigido o apelo dos versos de Pier
Paolo Pasolini, em poema de 1962: “Te suplico, ah, te suplico: não queiras
morrer.” Aqui, como em Vallejo, a súplica sucede o anúncio do fim: “Era o único
modo de sentir a vida, / a única cor, a única forma: agora acabou.”8 Décadas
7
César Vallejo, “Masa”. Obra poética, 2ª ed. Madri: ALLCA XX, 1996, p.475.
Citado em Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova e
Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p.7.
Era l’unico modo per sentire la vita,
l’unica tinta, l’unica forma: ora è finita.
Sopravviviamo: ed è la confusione
8
7
mais tarde, os mesmos versos, desse poema sobre tudo aquilo que já teria
acabado, voltarão à tona e serão o início e o ponto de partida de outro texto,
um estudo de Georges Didi-Huberman sobre a possibilidade da sobrevivência
daquilo que, mantendo a referência a Pasolini, será chamado de “vaga-lume”.
Ao aparecerem como uma das epígrafes de Sobrevivência dos vaga-lumes,
os versos de Pasolini terão um funcionamento mais furtivo do que o mero
anúncio do que está por vir (no livro, em cujo começo aparecem, mas não só).
“Supplica a mia madre” (“Súplica à minha mãe”) abre o livro de Didi-Huberman
para que este possa, por sua vez, mais de quarenta anos depois, ensaiar outro
final para o discurso profético de Pasolini, esboçando um desfecho alternativo
para o poema (e talvez para nada menos do que a história do mundo!). DidiHuberman passará a rabiscar sobre o texto de Pasolini, voltando a ele
obstinadamente e em cima dele gravando sua própria escrita. Segundo a
hipótese de leitura exposta no livro, em seus textos tardios Pasolini teria
procurado teorizar, como tese histórica, o fim da possibilidade do
acontecimento,
naquilo
que
Didi-Huberman
chamará
de
“tese
do
desaparecimento dos vaga-lumes”:
o improvável e minúsculo esplendor dos vaga-lumes, aos olhos de
Pasolini – esses olhos que sabiam tão bem contemplar um rosto ou deixar
o gesto perfeito se desdobrar no corpo de seus amigos, de seus atores -,
di una vita rinata fuori dalla ragione.
Ti supplico, ah, ti supplico: non voler morire.
Em Pier Paolo Pasolini, The Selected Poetry of Pier Paolo Pasolini, edição bilíngue, Chicago, The
University of Chicago Press, 2014, p.314-316.
8
não metaforiza nada mais do que a humanidade reduzida a sua mais
simples potência de nos acenar na noite.9
Para o Pasolini, segundo Didi-Huberman, “O vaga-lume está morto, perdeu seus
gestos e sua luz na história política de nosso contemporâneo sombrio, que
condena à morte sua inocência.”10 Com pesar, Sobrevivência dos vaga-lumes
acompanhará Pasolini por um bom tempo, permanecendo próximo de seus
textos e inserindo-os no próprio, ao longo de dezenas de páginas, onde
aparecerão uma e outra vez versões das figurações do horror que teriam levado
Pasolini a ressaltar aquilo na democracia que ele enxergava como continuação
do fascismo:
Em 1974, Pasolini desenvolverá amplamente seu tema do “genocídio
cultural”. O “verdadeiro fascismo”, diz ele, é aquele que tem por alvo os
valores, as almas, as linguagens, os gestos, os corpos do povo. É aquele
que “conduz, sem carrascos nem execuções em massa, à supressão de
grandes porções da própria sociedade”, e é por isso que é preciso chamar
de genocídio “essa assimilação (total) ao modo e à qualidade de vida da
burguesia”. Em 1975, perto de escrever seu texto sobre o
desaparecimento dos vaga-lumes, o cineasta dedicar-se-á ao tema trágico e apocalíptico - de um desaparecimento do humano no coração
da sociedade atual: “Faço simplesmente questão de que tu olhes em torno
de ti e tomes consciência da tragédia. E que tragédia é esta? A tragédia é
que não existem mais seres humanos; só se veem singulares engenhocas
que se lançam umas contra as outras.” 11
9
Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.30.
Ibidem, p.24.
11
Ibidem, p.29-30. Veja-se, como contraste a essas imagens sombrias, o que, décadas antes, nos
anos quarenta, Pasolini enxergara em uma reunião de amigos:
A amizade é uma coisa belíssima. Na noite da qual te falo, jantamos em Paderno e, em
seguida, na escuridão sem lua, subimos até Pievo del Pino, vimos uma quantidade
imensa de vaga-lumes (abbiamo visto una quantità immensa di lucciole), que formavam
pequenos bosques de fogo nos bosques de arbustos, e nós os invejávamos porque eles
se amavam, porque se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes. (...) Pensei
10
9
E então, de repente, no primeiro grande giro no livro, Didi-Huberman
interrompe o raciocínio e suas certezas altissonantes para uma pausa, detendose no anúncio de que “agora acabou”. “Diabos!”, escreverá ele,
Tudo isso não se assemelha à descrição de um pesadelo? Ora, Pasolini
insiste em nos dizer: esta é a realidade, nossa realidade contemporânea,
esta realidade política tão evidente que ninguém quer vê-la pelo que ela
é, mas que “os sentidos” do poeta – esse vidente, esse profeta – acolhem
tão fortemente.12
E, prossegue, algumas páginas adiante:
uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão
rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. Assujeitou-se o
mundo, assim, totalmente como o sonharam – o projetam, o programam
e querem no-lo impor – nossos atuais “conselheiros pérfidos”? Postulálo é, justamente, dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer crer. É
ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos projetores. É agir como
vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho
sem resto nem resistência.13
Como contraponto a essa figura da vitória definitiva e absoluta de uma
“máquina” onipotente capaz de colonizar inteiramente o mundo, DidiHuberman lançará mão então do vocabulário de restos, lampejos e faíscas,
perguntando finalmente se não teriam sido destruídos, não os vaga-lumes
então no quanto é bela a amizade, e as reuniões dos rapazes de vinte anos, que riem
com suas másculas vozes inocentes e não se preocupam com o mundo a sua volta,
continuam vivendo, preenchendo a noite com seus gritos. (p. 19)
Esses rapazes “continuam vivendo”, é importante lembrar, em plena guerra.
12
Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.38.
13
Ibidem, p.42. Grifo meu.
10
propriamente, mas algo no desejo de ver – “no desejo em geral, logo, na
esperança política – de Pasolini”.14
Para o francês, a questão não é apenas Pasolini, embora a tristeza e a
empatia visíveis em suas observações estejam relacionadas àquilo que o
cineasta parece representar para ele (é também o que impedirá que o texto seja
uma espécie de culpabilizaçaõ do cineasta). No segundo movimento importante
de Sobrevivência dos vaga-lumes, o Pasolini tardio será aproximado de Giorgio
Agamben, em particular do Agamben de Infância e história, onde, na esteira de
Benjamin, o filósofo italiano volta à ideia de destruição da experiência na
sociedade contemporânea. A longa citação inserida abaixo é do livro de
Agamben, reproduzida aqui tal como é citada por Didi-Huberman (inclusive
com uma supressão, à qual voltarei depois). A referência no início do trecho é
a Benjamin, nomeado no parágrafo anterior.
Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma
catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência
cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente
suficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase
nada que seja ainda traduzível em experiência: nem a leitura do jornal,
tão rica em notícias do que lhe diz respeito, a uma distância insuperável;
nem os minutos que passa, preso ao volante, em um engarrafamento;
nem a viagem às regiões ínferas nos vagões do metrô; nem a
manifestação que de repente bloqueia a rua; nem a névoa dos
lacrimogêneos que se dissipa lenta entre os edifícios do centro e nem
mesmo os súbitos estampidos de pistola detonados não se sabe onde;
nem a fila diante dos guichês de uma repartição ou a visita ao país de
Cocanha do supermercado; nem os eternos momentos de muda
promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no ônibus. O homem
moderno volta para casa, à noitinha, extenuado por uma mixórdia de
14
Ibidem, p.59.
11
eventos - divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou
atrozes –, entretanto nenhum deles se tornou experiência.
É esta incapacidade de se traduzir em experiência que torna hoje
insuportável - como em momento algum no passado – a existência
cotidiana. [...] Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação
turística é, desse ponto de vista, particularmente instrutiva. Posta diante
das maiores maravilhas da terra (digamos, o patio de los leones, no
Alhambra) a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a
experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter
experiência delas.15
Chama a atenção no trecho, que está nas primeiras páginas de Infância e
história, a confiança com que o diagnóstico totalizante é enunciado, com a
acumulação vertiginosa de referências à “destruição da experiência”, à
“distância insuperável”, à “catástrofe”, à “incapacidade” de tradução, ao
caráter “insuportável” do cotidiano, à “mixórdia de eventos”, que podem ser
“agradáveis ou atrozes”, mas serão sempre incapazes de se transformar em
“experiência”.
Para Didi-Huberman, que colocará em questão inclusive a precisão da
leitura que Agamben faz de Benjamin, seria uma necessidade da “matriz
filosófica” do italiano primeiro afirmar a destruição radical, para depois poder
erigir uma nova “transcendência” 16, em movimento pendular entre os extremos
da destruição e da redenção (que podem até inverter posições, podendo estar
tanto na origem quanto no destino). Continuamos no campo das profecias,
15
Giorgio Agamben, Infância e história. Trad. H. Burigo Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p.212; citado em Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.75.
16
Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.77.
12
então, como é o caso também do seguinte comentário, extraído de uma
entrevista de Jacques Rancière, com o qual encerro esta série de longas
citações:
There are many ways of understanding the role of the philosopher — in
general or in the current situation. Most people seem to identify it today
with some kind of prophecy about the disaster threatening culture,
civilization, the symbolic order, and so on. All the elements of social
criticism and the critique of culture have been recycled in order to sustain
those prophecies about the impending disaster produced by individualism,
democracy, consumption, the spectacle, and so on.17
Cada um dos elementos que, de acordo com a fala cética de Rancière, são
comumente apontados em discursos proféticos como responsáveis pela
catástrofe iminente – individualismo, democracia, consumo, espetáculo –
aparecem, um por um, nos prognósticos de Pasolini.



Voltemos a “El Ojo Silva”, que havíamos abandonado no momento em que
ocorria a nomeação do que parecia ser o princípio organizador da existência,
princípio introduzido por uma conjunção adversativa que dá ao enunciado
forma semelhante à do trecho de Infância e história reproduzido acima (do
“Porém, nós hoje sabemos que...” de Agamben ao “pero de la violencia, de la
verdadera violencia, no se puede escapar” de Bolaño). Ainda não se sabe se serão
estabelecidos limites geográficos ou temporais para a afirmação – se esta seria,
17
Jacques Rancière, “Aesthetics against Incarnation”, op.cit., p.188. A entrevista foi concedida
em inglês.
13
por exemplo, válida apenas para as sociedades contemporâneas – , mas o que
já é possível vislumbrar é que a questão narratológica decisiva será mesmo a
relação entre a profecia e seus restos: o que restará do conto (após o anúncio
de um sentido geral já no primeiro parágrafo) e também o que restará da vida
(após a intervenção da violência). Os restos, aqui, são também excessos: nessas
circunstâncias, o que pode haver em um relato que justifique sua existência
apesar de tudo? Professado o sentido daquilo que virá, e que é definido como
ineliminável, por que insistir em narrar? Ou então, dobrando o problema do
comando de um princípio organizador sobre a questão da produtividade da
leitura: para que ainda ler? Para que ainda ler quando, como algumas leituras
críticas de Bolaño asseguram, em um princípio geral como esse já estaria a
chave para toda a obra do autor?
No
conto,
algo
acontecerá
com
a
contundência
da
afirmação
generalizante quase imediatamente após a sua enunciação: sim, prossegue o
narrador, é mesmo certo que da violência “no se puede escapar” – mas ele então
titubeia: “al menos no nosotros, los nacidos en Latinoamérica en la década de
los cincuenta, los que rondábamos los veinte años cuando murió Salvador
Allende”.18 Agora parecer haver dentro do grupo maior um subconjunto, e para
este, sim, seria incontestável o domínio da violência. A ressalva implanta já na
apresentação uma dúvida a respeito da existência de um possível limite –
18
Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.11.
14
geopolítico? geracional? – para o alcance da violência. O movimento é do maior
ao menor, do geral ao particular, e a afirmação inicial – ninguém, presume-se,
escapa – é circunscrita, não sem antes situar o narrador e o Ojo Silva dentro
dos marcos desse grupo menor que acaba de ser delineado. A biografia de
Mauricio Silva prometida no título ganhará assim ares de autobiografia
coletiva, uma impossível autobiografia na primeira pessoa do plural, e aquilo
que seria o relato de uma vida passa a aludir à história de uma “geração” (a
palavra é importante na obra de Bolaño e mereceria análise mais detida). Desse
modo, se é possível que a violência não seja evitável para qualquer um, e se
para o narrador parece provável que seja assim, o que é certo é que dela não
pôde se evadir a geração de latino-americanos que eram jovens durante os
golpes militares que aconteceram em boa parte do continente nos anos 1960 e
1970.
Será necessário voltar depois – ainda não saímos da primeira frase! – à
pergunta sobre o que há de particular na relação entre a violência, a experiência
de uma geração que chegou à vida adulta e foi formada pela irrupção ditatorial,
e o nome de Allende (e sua morte),19 mas que pelo menos fique constatado desde
já que a fórmula tomada como ponto de partida do conto e desta minha leitura
continha mais instabilidade do que parecia à primeira vista, suscitando o
19
Para uma leitura do conto que aborda sua relação com o golpe militar chileno, além de tocar
na questão da violência sacrificial, que aparecerá também aqui mais adiante, ver Jaime
Ginzburg, “El ojo silva, de Roberto Bolaño”. Em Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik
Schøllhammer (orgs.), Cenários contemporâneos da escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013.
15
disparo de uma série de perguntas algo extravagantes, mas plausíveis diante
da hesitação do narrador. Em primeiro lugar, que tipo de conhecimento seria
necessário para que fosse possível estabelecer, sem hesitação, que de fato não
se poderá, jamais, fugir da violência? Desde qual lugar seria legítima e teria
sentido uma afirmação dessa ordem?
O acesso a respostas estaria disponível somente a quem estivesse já além
do fim da história, e não apenas além do fim da história de Mauricio Silva – que
é justamente o lugar de enunciação do narrador – mas também além de todas
as histórias para as quais este relato particular serve como um caso
“paradigmático y ejemplar”. Mas mesmo que nos fosse dado conhecer que
efetivamente a fuga da violência não foi e não será em qualquer circunstância
realizável, imagina-se que sobrariam ainda diferenças entre as tentativas de
escapar dela. Em outras palavras, existiriam ainda distinções importantes
entre as formas do fracasso.20 Se nos fosse revelado que é o inferno o que nos
aguarda no fim do percurso, restaria a questão da relevância de se percorrer o
caminho com o filho no colo – e escrevendo.21 Haveria aí uma fórmula, uma
teoria ou uma ética da literatura? Se houver, parece ser algo que parte da
importância de insistir que, embora esteja presente em algumas tradições
20
Remeto o leitor ao capítulo 2, onde, em discussão de Arguedas, também aparece uma ética
da disputa pela forma da derrota.
21
“Escribiendo poesía en el país de los imbéciles. / Escribiendo con mi hijo en las rodillas. /
Escribiendo hasta que cae la noche / con un estruendo de los mil demonios. / Los demonios que
han de llevarme al infierno, / pero escribiendo.” (Roberto Bolaño, La Universidad Desconocida.
Barcelona: Anagrama, 2007, p.7-8).
16
literárias a crença na imunidade da literatura ao horror, nem nela se escapa da
violência.
Os movimentos seguintes do conto serão mais uma vez semelhantes
àqueles vistos em Amuleto: primeiro definição e promessa (“esta será una
historia de terror”), depois recuo e narração (“Yo llegué a México Distrito
Federal en el año 1967 o tal vez en el año 1965 o 1962”22). Em “El Ojo Silva”, o
recuo será como o de um gato, encolhendo-se para aumentar o alcance do salto;
do anúncio de que a história é uma parábola (paradigmática, exemplar) e da
enunciação de seu princípio geral, da referência à morte de Allende, a narrativa
retrocederá ao começo da história do Ojo, que é na verdade a história de uma
tentativa de fuga.
En enero de 1974, cuatro meses después del golpe de Estado, el Ojo Silva
se marchó de Chile. Primero estuvo en Buenos Aires, luego los malos
vientos que soplaban en la vecina república lo llevaron a México, en donde
vivió un par de años y en donde lo conocí.23
Trata-se, portanto, e muito concretamente, de uma série de tentativas
fracassadas de fuga, primeiro do Chile rumo à Argentina, depois dali ao México,
aparente refúgio em meio aos golpes militares que foram tomando os governos
de outros países latino-americanos. Entretanto, o México que Silva, o narrador
e outros exilados chilenos encontrarão não será propriamente um oásis
(embora também seja o lugar da experiência decisiva de uma comunidade
22
23
Bolaño, Amuleto, op.cit., p.12.
Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.11.
17
poética possível, o exílio mexicano será, em Amuleto, Los detectives salvajes e
2666, o lugar de novos massacres). A história de Silva precisará dar um salto
para fora da América Latina, para atravessar a Europa e encontrar seu desfecho
(sua forma particular de fracassar?) em um vilarejo na distante zona rural da
Índia.



Se este ensaio tem se deslocado entre duas línguas, não havendo entre
ele e o conto estudado uma língua comum, no relato, onde a linguagem à
primeira vista não parece estar cindida pela presença de dois idiomas, também
surgem entraves para a instituição de um espaço linguístico homogêneo,
começando pelo fato de que não está claro, como ocorre também em outros
textos de Bolaño, que não exista mais de uma língua dentro do espanhol.24 Além
disso, a incerteza sobre a existência de uma língua comum é tema recorrente
nas conversas – delicadas, frágeis, hesitantes – entre os dois amigos (Silva e o
narrador).
El Ojo parecía de cristal, y su cara y el vaso de vidrio de su café con leche
parecían intercambiar señales, como si se acabaran de encontrar, dos
fenómenos incomprensibles en el vasto universo, y trataran con más
voluntad que esperanza de hallar un lenguaje común.25
24
Em “La parte de Fate” em 2666, por exemplo, o idioma utilizado não será exatamente o
espanhol, embora pareçam pertencer ao espanhol as palavras que lemos. Sobre a língua em
Bolaño, ver Mariana Ruggieri, De um lugar a outro via 2666. Dissertação de Mestrado,
FFLCH/USP, 2013, e Brett Levinson “Case Closed: Madness and Dissociation in 2666”. Journal
of Latin American Cultural Studies (2009), 18: 2, p.177-191.
25
Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.13.
18
O trecho aparece em meio à descrição de um encontro no Café La Habana,
quando o Ojo revela ao amigo que é homossexual e vai deixar o México.
Silva fugira do Chile ao México, onde reencontraria o conservadorismo
de que tentara escapar entre os exilados chilenos, “gente de izquierdas que
pensaba, al menos de cintura para abajo, exactamente igual que la gente de
derecha que en aquel tiempo se enseñoreaba de Chile”.26 A passagem, mesmo
breve, é suficiente para complicar qualquer relato monológico ou homogêneo
de resistência. Não há, aqui, uma comunidade sem fraturas anterior à ruptura
do exílio, como não haverá após o seu fim. Como não há garantia no passado,
não há no futuro, como se vê na pergunta dirigida a Ernesto Cardenal em um
poema:
Padre, en el Reino de los Cielos
que es el comunismo
¿tienen un sitio los homosexuales?27
É outra questão gigantesca: qual é a imagem de futuro – comunista ou cristão
ou ambos - que guarda um lugar para a homossexualidade? Qual é histórico de
exclusões no inventário de imagens do futuro sonhadas por comunistas, por
padres católicos, por padres comunistas? Nas palavras de um ensaio de Bolaño,
onde também aparecerá a referência à geração nascida nos anos 1950,
“luchamos por partidos que de haber vencido nos habrían enviado de inmediato
a un campo de trabajos forzados”.28
26
Ibidem.
Bolaño, La Universidad Desconocida, op.cit., p.371.
28
Roberto Bolaño, Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2006, p.37.
27
19
O narrador, supondo haver uma relação de causalidade entre a revelação
de Silva e sua viagem, entende que Silva deixará o país por ser homossexual,
como se entre “México” e “homossexualidade” houvesse uma discordância
insuperável. É também nessa conversa, um pouco mais tarde, que Silva afirma
que “la violencia no era cosa suya”, para então completar, dirigindo-se ao
narrador: “Tuya sí, me dijo con una tristeza que entonces no entendí, pero no
mía. Detesto la violencia”.29
A proclamação da diferença em relação à violência, definida pelo Ojo
como externa e estranha, algo que não lhe pertence, é assombrada aqui por
aquilo que já foi exposto ao leitor, lá nas primeiras linhas do conto, e que venho
chamando de sentido geral desta parábola. A confiar na narração, o Ojo Silva
parece saber nesse momento menos do que o narrador, esse escritor que,
embora afirme compartilhar a aversão à violência (“Yo le aseguré que sentía lo
mismo”), já sabe, e já nos disse, onde terminará a esperança em uma fuga
possível. O sentido da asseveração do início do conto começa aqui a ganhar
contornos mais claros: “pero de la violencia, de la verdadera violencia, no se
puede escapar” é uma espécie de resposta ao “la violencia no es cosa mía” do
Ojo (e talvez também ao “Tuya sí”).
29
Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.14. Ao declarar seu ódio à violência, Silva afirma que ela não
era odiada pelo escritor, seu interlocutor, observação que se desdobra de inúmeras maneiras
nos textos de Bolaño.
20
Silva logo deixa o México e na França trabalhará em uma agência de
fotografia, até que “pasaron los años. Muchos años”, tantos que para o narrador
o rosto do amigo começa a perder nitidez, embora persista a lembrança de sua
forma de ser, que paradoxalmente é um modo de estar ausente.
Con el paso del tiempo empecé a olvidar hasta su rostro, aunque siempre
persistió en mi memoria una forma de acercarse, un estar, una forma de
opinar desde cierta distancia y desde cierta tristeza nada enfática que
asociaba con el Ojo Silva, un Ojo Silva que ya no tenía rostro o que había
adquirido un rostro de sombras, pero que aún mantenía lo esencial, la
memoria de su movimiento, una entidad casi abstracta pero en donde no
cabía la quietud.30
Um novo encontro entre os dois, desta vez em uma praça de Berlim, vai
espelhar o anterior no Café La Habana, e com ele retorna a dificuldade do
diálogo e do reconhecimento do outro diante de si. Quando se encontram, o
narrador inicialmente não identifica o amigo, não reconhece seu olhar, que por
sua vez é desviado, ao chão e aos lados, esquivando o contato. Mesmo assim,
“Reencontrarlo, pensé, había sido un acontecimiento feliz”.31
A conversa que segue, e que atravessará a noite, consiste na história da
vida do Ojo entre a saída do México e aquela madrugada em Berlim, história
que Silva parece estar contando pela primeira vez, como se o relato tivesse se
tornado possível graças ao reencontro com o amigo. Essa será, adverte o
narrador, “la verdadera historia del Ojo”, a referência à verdade ecoando a
30
31
Ibidem, p.14.
Ibidem, p.15.
21
anterior: a verdadeira história do Ojo é seu encontro com a violência; a verdade
da violência é sua inescapabilidade.
Silva fora enviado à Índia para tirar fotos que acompanhariam
reportagens sobre o país em duas revistas francesas, entre elas uma matéria
especialmente exoticizante sobre zonas de prostituição. O texto, já pronto, é
anterior às fotografias, que eram aguardadas como confirmação da palavra
escrita: “sus fotos iban a ilustrar un texto de un conocido escritor francés que se
había especializado en el submundo de la prostitución”.32 Os cafetões indianos,
informantes nativos do fotógrafo que deseja documentar a prostituição local,
procuram oferecer ao estrangeiro algo que corresponda a seu desejo,
mencionando mulheres e homens e, diante de suas recusas sucessivas,
chegando finalmente a meninos, muito novos, crianças que haviam sido vítimas
de uma cerimônia religiosa em que foram castrados. Um deles, uma criança que
parece ter menos de dez anos, é levado a Silva: “parecía una niña aterrorizada”,
lembra-se ele, “aterrorizada y burlona al mismo tiempo”.33
“¿Lo puedes entender?”, pergunta o Ojo ao amigo em Berlim, ele mesmo
respondendo à pergunta: “Nadie se puede hacer una idea. Ni la víctima, ni los
verdugos, ni los espectadores”. No entanto, no prostíbulo, diante do olhar do
menino, o que o Ojo faz é tirar uma foto. “Saqué mi cámara”, conta, “y le hice
32
Ibidem, p.17. O conto dialoga com a longa tradição de relatos colonialistas da barbárie
oriental, narrativas de viagens a um interior cada vez mais abjeto.
33
Ibidem, p.20. Grifo do autor.
22
una foto. Sabía que estaba condenándome para toda la eternidad, pero lo hice.”34
Em resposta à fragilidade do rosto do menino aterrorizado, portanto, produzse uma foto. Lembremos o final do trecho de Infância e história reproduzido
acima para dramatizar o significado que pode ter o ato de Silva:
É esta incapacidade de se traduzir em experiência que torna hoje
insuportável – como em momento algum no passado – a existência
cotidiana. (...) Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação
turística é, desse ponto de vista, particularmente instrutiva. Posta diante
das maiores maravilhas da terra (digamos, o patio de los leones, no
Alhambra) a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a
experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter
experiência delas.35
No trecho não citado por Didi-Huberman, onde em Sobrevivência dos vagalumes aparecem reticências entre parênteses (como no trecho acima), há uma
página inteira sobre a “recusa aparentemente disparatada” da experiência,
culminando na constatação de que experiências, hoje, quando existem, “se
efetuam fora do homem”. São elas – essas experiências externalizadas, como
aquelas diante das “maiores maravilhas da terra” – que o ser humano sente a
necessidade de afastar com a prótese da máquina. A questão é o poder do
dispositivo, que certamente não é apenas a máquina nas mãos do fotógrafo,
mas todo um modo de ver (e deixar de ver) o outro. Encontraríamos muitas
avaliações semelhantes ao longo da atribulada história da recepção crítica da
fotografia, como a seguinte, por exemplo, feita por Lévinas: “Se você concebe
34
35
Ibidem, p.20
Agamben, Infância e história, op.cit., p.21-2.
23
o rosto como objeto do fotógrafo, decerto você está lidando com um objeto como
um outro objeto qualquer”.36 Caberia aqui a pergunta de Didi-Huberman,
formulada em meio à leitura dos momentos mais angustiados dos textos de
Pasolini e Agamben: quem negará que eles têm razão?
Certamente não o Ojo, o fotógrafo do conto, cuja desconfiança levará a
uma previsão (mais uma, a se somar às outras já feitas): tirar a foto seria
suficiente para sua condenação, “para toda la eternidad”. E mesmo assim,
diante do menino indefeso, o Ojo transforma seus dois olhos em um só, os dois
os que emolduram o j de seu nariz convergindo na lente do dispositivo
singularizante (será a violência justamente essa passagem do dois ao um?).
Segura a câmera, aponta a lente, seu novo olho, e acontece o nascimento do
ciclope anunciado desde o título. Toda a construção da cena, nessa nova
História do olho, assinala a indecência da fotografia e do gesto que, frente ao
olhar aterrorizado do outro, reage com a captura de seu sofrimento.
No entanto, apesar da foto, que chega mesmo a ser produzida, na verdade
apesar de tudo,37 a história dará um giro desconcertante: o dispositivo da
máquina fotográfica não será capaz de anular a possibilidade do acontecimento,
o distanciamento da máquina não garantirá a recusa e a indiferença ao outro e
não será suficiente para assegurar a imunidade do Ojo a ele. Continuando com
a história, vai se tornando cada vez mais difícil sustentar que a câmera impede
36
37
Poirié, E. Lévinas: Ensaio e entrevistas, op.cit., p.85.
Sobre “aquilo que aparece apesar de tudo”, ver Didi-Huberman, op.cit., p.65.
24
que se “tenha experiência” do outro, para usar a expressão de Agamben, ou
transforma o rosto em um objeto fotográfico comparável a qualquer outro, para
falar com Lévinas (ou pelo menos que é apenas isso que ela faz). O desenrolar
da cena é radicalmente outro: após a foto, retorna a insistência do cafetão, que
quer levar o fotógrafo a mais um bordel, com ofertas de diversos tipos; Silva
permanece imóvel, incapaz de escapar, já refém do olhar do menino: “No podía
irse. Se lo dijo así: no puedo irme todavía. Y era verdad, aunque él desconocía
qué era aquello que le impedía abandonar aquel antro para siempre”.38 Começa
a ganhar outro sentido a profecia de condenação de Silva, sua infinita
condenação diante do outro. Jogado do cavalo, cegado pelo rosto do menino,
este é o começo de sua conversão – a palavra utilizada não é outra: “el Ojo se
convirtió en otra cosa”.39 Perder-se, condenar-se, aí, é reconhecer-se já e para
sempre preso àqueles olhos, olhos que suplicam, ordenam, arrebatam um
espectador que, levado por uma espécie de “amor místico” (“mystical love”),40
terá que permitir que algo novo possa surgir, transformando-o em outro. No
caso, em algo bastante específico: “Y entonces el Ojo se convirtió en otra cosa,
aunque la palabra que él empleó no fue ‘otra cosa’ sino ‘madre’”.41 Um homem
38
Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.20.
Ibidem, p.22. Na tradução ao português desaparece a conversão: “o Olho se transformou
noutra coisa” (Bolaño, “O Olho Silva”, op.cit., p.22).
40
Simon Critchley, The Faith of the Faithless: Experiments in Political Theology. Londres: Verso,
2012, p.20, onde a expressão é entendida como “that act of spiritual daring that attempts to
eviscerate the old self in order that something new might come into being” (“aquele ato de
ousadia spiritual que busca destripar o antigo ser para que algo novo possa vir a ser”).
41
Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.22.
39
25
pode ser mãe, é também a lição que se aprende aqui: a “família”, no conto, está
desvinculada da “biologia”, também ela contingente. Forma-se quase por
acidente, como resultado de um encontro improvável, e a qualquer momento
pode ser desfeita. Sem a garantia de continuidade, a filialidade também não
tem como ser pretexto para o desejo de reprodução de um pai ou uma mãe.
Ao invés do rosto como objeto, então, comparável a qualquer outro e por
ele intercambiável, o que se narra, apesar da presença da câmera, é o encontro
com um rosto que
não é da ordem do visto, não é um objeto, é aquilo cujo aparecer conserva
uma exterioridade que é também um chamado – ou um imperativo dado
à sua responsabilidade. Encontrar um rosto é, de pronto, ouvir um pedido
e uma ordem. (...) Pode-se dizer uma vez mais: o rosto, por trás da feição
que ele se dá, é como exposição de um ser à sua morte, o sem defesa, a
nudez e a miséria de outrem. Ele é também o mandamento de tomar a si,
a seu cargo, outrem, de não o deixar só; você ouve a palavra de Deus. (...)
se você encontra o rosto, essa responsabilidade está nessa estranheza de
outrem e em sua miséria. O rosto se oferece à tua misericórdia e à tua
obrigação.42
Mais até do que uma decisão ou a escolha de uma alternativa entre várias
possíveis – o que fazer? – o que ocorre é a experiência de passividade que
resulta de se descobrir refém do outro: “Eu fui eleito para ser o responsável por
outrem; nessa posição, para essa função, eu sou único, insubstituível”.43 A
partir daí tudo no conto será excessivo, hiperbólico, sentimental, 44 em uma
42
Poirié, E.Lévinas: Ensaio e entrevistas, op.cit., p.85.
Ibidem, p.29.
44
Como no conto “Muerte de Ulises”: “Lo que sigue es caótico y sentimental.” (Roberto Bolaño,
“Muerte de Ulises”. El secreto del mal. Barcelona: Anagrama, 2007, p.169). Resta a questão
43
26
palavra, ridículo (de fato, “Pinche Robert Bolãno: / besa en la boca lo patético y
lo ridículo”45). “A exigência ética de Jesus é uma exigência ridícula”, escreve
Simon Critchley sobre as demandas infinitas proferidas nos Evangelhos. O
mandamento de amar os inimigos e “ser perfeito”, por exemplo, coloca o
“ethical subject in a situation of sheer ethical overload”.46
É assim também com o desenrolar dessa estranha parábola de Bolaño:
inicialmente inabalável diante da insistência do cafetão, os atos de Silva fazem
de sua passividade força, e ele é logo cegado pela busca de uma escapatória.
Eles transformarão a narrativa, na qual até então predominava o tom
resignado, em um relato de aventura no qual não faltarão elementos que não
sem razão poderiam ser tidos como melodramáticos e sentimentais, próprios
de gêneros comumente considerados suspeitos.
O que haverá no conto será o seguinte: tensão e conflito; o resgate dos
dois meninos do prostíbulo; fuga da cidade (primeiro de táxi, depois em ônibus
e trem); e a chegada a um refúgio (“hasta que finalmente se detuvieron en una
aldea en alguna parte de la India y alquilaron una casa y descansaron”47). O Ojo
“adota” as crianças e a família recém-formada passa a ter uma vida campestre
em uma província indiana, com Silva se dedicando a educar os meninos em
meio à pobreza de uma região em que, diz, até os mais ricos eram pobres. Tudo
sobre o que acontece exatamente – intensificação? matização? negação? – quando algo é
anunciado como sentimental.
45
São versos do poema “Calles de Barcelona”, La Universidad Desconocida, op.cit., p. 78.
46
Critchley, The Faith of the Faithless, op.cit., p.220.
47
Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p. 23.
27
isso será efetivamente narrado, mas com uma mudança de ritmo em relação à
prosa que predominara até então, ao longo de parágrafos acelerados em que
prevalecerão a incerteza e a imprecisão, quase como se a narrativa tivesse
perdido interesse pelos detalhes do narrado, como se ela tivesse se
desinteressado de sua mecânica, como se nada houvesse de relevante após o
registro do acontecimento decisivo: “Lo que sucedió a continuación de tan
repetido es vulgar”, ou “El resto, más que una historia o un argumento, es un
itinerario”.48 Inclusive o heroísmo que poderia haver no ato extraordinário de
Silva será diluído, com a passagem à domesticidade e à longa duração de sua
maternidade.
É difícil escapar aqui da constatação de que o que ocorre é rigorosamente
o contrário daquilo que fora anunciado (por Silva, por Agamben, por
Lévinas...): mesmo após fotografar o outro, é o Ojo quem será tomado por ele
e arremessado à conversão. De fotógrafo errante, morador transitório de
apartamentos alugados e quartos de hotel ao redor do mundo, Silva se
transforma em pequeno agricultor e pedagogo, residente de uma aldeia rural
indiana. Sem que isto tenha sido em momento algum um plano, um programa
ou um projeto, torna-se mãe solteira de dois meninos abandonados.
Em contos e romances de Bolaño há diversas cenas estruturadas de modo
semelhante ao dessa passagem de “El Ojo Silva”. Uma delas, em que até a
48
Ibidem, p. 22.
28
distribuição espacial das personagens lembra o episódio no bordel, ocorre em
Amuleto, em episódio em que Auxilio, Arturo Belano e Ernesto San Epifanio
resgatam a vítima de um cafetão.49 Nessas narrativas, como em “El Ojo Silva”
–é esse o elemento decisivo – seria difícil sustentar a indiferença do mundo aos
atos do sujeito ético. Parece até duvidoso afirmar, baseando-se nessas cenas,
que de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar. Na história
do Ojo Silva, por exemplo, apesar de todos os riscos que a atravessam, o
resultado é a fuga, tortuosa, mas bem-sucedida, de um recinto deplorável.50
Assim, no conto o Ojo consegue fugir – do bordel, da cidade em que se
encontrava, de seus perseguidores. Para pensar o conto, ajuda lê-lo não em
termos de sua verossimilhança, em busca da avaliação de sua referencialidade
ou seu “realismo”. Em poucas palavras, o que parece se revelar finalmente é o
49
Bolaño, Amuleto, op.cit., p.78-89.
E tudo nela é arriscado, evidentemente. (“No me siento seguro / En ninguna parte. / La
aventura no termina.” Roberto Bolaño, “Tu lejano corazón”, La universidad desconocida, op.cit.,
p.160.) Entre outros, persiste dentro da história, como uma das consequências possíveis das
decisões tomadas, o risco da reprodução do colonialismo; é, afinal, a possibilidade que
assombra toda pedagogia, toda maternidade. Para o conto, o dilema é se ele será capaz de
dificultar sua inserção na tradição orientalista já referida acima, tradição tantas vezes
reproduzida por escritores latino-americanos, até como maneira de entrar no cânone literário
europeu. (O fotógrafo Ojo Silva, lembre-se, é enviado à Índia para produzir fotos para um texto
francês já pronto.) Avaliar os resultados dessa operação exigiria uma reflexão que passaria
pelo lugar complexo de Borges nessa tradição, e por tudo o que acontece com o orientalismo na
obra de Borges, algo merecedor de estudo mais aprofundado. O que é certo também é que o que
se encontra na Índia evoca referências latino-americanas e não europeias: “La fiesta tiene la
apariencia de una romería latinoamericana”, mas com tudo em excesso, “más alegre, más
bulliciosa y probablemente la intensidad de los que participan, de los que se saben participantes,
sea mayor”. Tanto em Bolaño quanto em Borges, embora existam sinais que apontem para a
delimitação regional – “Al fin me encuentro / con mi destino sudamericano” (Borges, “Poema
conjetural”, Obras completas, v.2, Buenos Aires, Emecé, 1994, p.245) –, o destino finalmente
será global, como raras vezes se viu na narrativa latino-americana. O fato é que ao final os dois
mortos, as vítimas fatais da violência, não nasceram nem na América Latina, nem nos anos
1950.
50
29
seguinte: a promessa que devia ser levada a sério era a de que o texto seria uma
parábola! A história deve mesmo ser lida como “exemplar”, desde que a palavra
seja entendida como significando excepcional, extraordinária, única. Do mesmo
modo, não conheceremos os nomes das cidades indianas pelas quais o Ojo
passou, não saberemos sequer os nomes dos meninos resgatados, dificultando
a circunscrição do enredo e aproximando-o também nesse sentido da parábola,
embora seja uma estranha parábola que tem como movimento principal a
subversão do princípio que parecia enunciar desde o início, desembocando em
algo como o seguinte: de la violencia, de la verdadera violencia, al menos una
vez se pudo escapar.51
É verdade que, para que tudo isso pudesse acontecer, foi necessário
abandonar a fotografia (a arte). Ao fazê-lo, Silva reproduz a explicação
fornecida tantas vezes pelo próprio Bolaño, em entrevistas e ensaios,
justificando sua passagem da poesia à prosa. O comentário, que cita a chegada
do primeiro filho e a necessidade de sustentar a família, será reproduzido por
51
É verdade que, após o idílio no vilarejo provinciano, com educação para as crianças e diversão
diária no campo, as duas morrerão. Por mais trágicas que sejam, no entanto, essas mortes não
parecem ser o resultado do fracasso da fuga, não ocorrendo com a chegada de policiais ou
cafetões, perseguidores que na trama acabarão tendo contornos mais espectrais do que reais,
sempre prestes a alcançar o Ojo apenas em seus pesadelos persecutórios. Os meninos morrem
graças a uma “doença” não nomeada que atinge a aldeia: “Después llegó la enfermedad a la
aldea y los niños murieron” (p.24). Não se trata de naturalizar a morte por doença entre
camadas vulneráveis da sociedade, e evidentemente nesse lugar onde até os camponeses ricos
são pobres as condições existentes são uma forma de violência que propicia ou permite a
contaminação. Mas é assim, com essa rapidez, que a narrativa passa pelo acontecimento, o que
não impede que nossa leitura dê a ele uma centralidade que não tem no relato. Seria possível
inclusive ressignificar a tese da inescapabilidade da violência, e minha hipótese a respeito de
sua escapabilidade no conto, a partir dessas mortes; uma segunda possibilidade de
problematização da hipótese será apresentada ao final deste capítulo.
30
muitos textos críticos (sugerindo que o que precisa ser pensado é também a
disposição da crítica para aceitar a explicação do autor, como se ela fosse a
resposta a um desejo já presente entre os leitores). O que a explicação faz é
preservar a poesia e o prestígio a ela atribuídos, inclusive nos contos e
romances do próprio autor, enquanto situa o escritor em lugar peculiar: mais
do que verdadeira (ou falsa), a justificativa deve ser entendida como um gesto
que permite ao escritor continuar a se definir como fundamentalmente um
poeta, ao mesmo tempo em que se dedica exaustivamente à prosa. Ela permite
também que o escritor continue a afirmar sua preferência pela poesia, além da
superioridade ética desta, tema também de diversos textos de Bolaño.52



Na continuação da entrevista de Rancière citada na primeira parte deste
ensaio,
após
a
caracterização
de
algumas
tendências
na
filosofia
contemporânea como profecias de desastres iminentes, o autor propõe, como
alternativa, um exercício imaginativo de outra ordem:
From my point of view, the true philosophical or critical task is to do away
with that so-called critical trend, which has become nothing more than the
discourse of a police order. It is to do away with the prophetic tone and
with the plot of decadence that is only the reversal of the former trust in
52
É significativo o contraste com contos de Cortázar que também tematizam a fotografia. Neles
– “Apocalipsis de Solentiname”, “Las babas del diablo” – a fotografia não é abandonada; ao
contrário, é o meio para a denúncia, o suporte para a revelação gradual do horror, ideia que
contém toda uma teoria da arte diferente da que traçamos aqui. (Julio Cortázar, “Apocalipsis
de Solentiname” e “Las babas del diablo”. Cuentos completos, 2 (1969-1982). Madri: Alfaguara,
1994, p.155-160 e p.214-224.) Não se trata de erguer o abandono da arte como regra ou dever,
mas de reconhecer que é um horizonte possível e pensável. Falta considerar o fato de que, se a
fotografia é abandonada, o conto não o será. (Agradeço a Miriam Gárate a sugestão de comparar
os contos de Bolaño e Cortázar, algo que apenas começo a fazer aqui.)
31
the sense of history and to focus on the existing forms of intellectual,
artistic, and political invention. Hope is not the precondition of action. On
the contrary, it is the product of the openings and expectations brought
about by the dynamic of those inventions.53
Seria possível, e quem sabe até um passo em direção a uma tarefa inventiva
como a que Rancière descreve, empreender leituras de textos de Agamben que
também identificam heterogeneidade no presente, apesar das referências a
uma destruição já realizada e finalizada; serviria também como demonstração
da complexidade formal de alguns desses textos proféticos, que incorporam de
diferentes maneiras a contradição e a possibilidade do novo. Esse exercício
poderia apontar como no trecho do começo de Infância e história citado acima,
por exemplo, o “nós” do início (“nós hoje sabemos que, para a destruição da
experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária”) serve para
distanciar o autor dos anos 1930 (o livro de Agamben é de 1978), quando
Benjamin “havia diagnosticado com precisão esta ‘pobreza da experiência’”,
funcionando portanto como delimitação cronológica. Unida a seu complemento
– “a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim,
perfeitamente suficiente”, essa existência tendo efeito equivalente ao da
catástrofe (a guerra, para Benjamin) – a construção sugere uma circunscrição
ainda maior, permitindo que seja formulada a pergunta sobre variedades de
experiência dentro do mundo contemporâneo. Em outras palavras, se Agamben
tem o seu “de la violencia no se puede escapar”, também tem o “al menos no
53
Rancière, “Aesthetics against Incarnation”, op.cit., p.188.
32
nosotros”: a mera qualificação dessa experiência como própria de cidades de
determinado tamanho indica a possiblidade, mesmo que frágil, de uma situação
diferente fora das metrópoles. Ou ainda, quando lemos, na continuação do texto
de Agamben, que a vida cotidiana “não contém quase nada que seja ainda
traduzível em experiência”, tanto o “quase” quanto o “ainda” (que indica, ao
menos no plano da memória, acesso a uma experiência anterior) inserem certo
jogo em formulações que apontavam para a totalização.
Mais do que uma questão de evidência empírica, que viria a comprovar
ou não essas possibilidades, chamo atenção aqui para a persistência material
dentro do texto de fissuras de diversos tipos, que se abrem e se fecham com o
encadeamento das frases. Assim, enquanto uma oração anuncia que “Todo
discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela
não é mais algo que ainda nos seja dado fazer”54, não muito distante
encontraremos referências a uma “humanidade que vem”55 e ao fato de que a
incapacidade de transformar em experiência a vida cotidiana não impede que,
“talvez”, “se esconda, no fundo desta recusa aparentemente disparatada, um
grão de sabedoria no qual podemos adivinhar, em hibernação, o germe de uma
experiência futura”.56 Há, então, a possibilidade de um esconderijo, e dentro
54
Agamben, Infância e história, op.cit., p.21.
Ibidem, p.17.
56
Ibidem, p.23.
55
33
dele grãos, germes, em hibernação e à espera das condições necessárias para
desabrochar.
De Pasolini – de seus filmes, poemas e ensaios – também há como extrair
imagens menos homogêneas do presente e do futuro, algo que a própria leitura
de Didi-Huberman também já se esforçará por mostrar, citando conferência de
1975 em que o cineasta observa que, apesar da angústia e da visão apocalíptica,
se “não houvesse também em mim uma parte de otimismo, ou seja, o
pensamento de que é possível lutar contra tudo aquilo, eu simplesmente não
estaria aqui, no meio de vocês, para falar”.57 Há aí, primeiro, o reconhecimento
da presença de outros, interlocutores e destinatários diante dos quais se
encontra aquele que fala, e nesse mesmo momento se identifica no ato de falar
algo próximo da esperança, isto é, da expectativa de uma criação subversiva
por meio do encontro com os ouvintes.
Além de profecias, então, o que é possível ouvir na fala de Pasolini, como
no conto de Bolaño, são promessas, sendo a primeira delas aquela que está
presente já em toda fala. Na estrutura de “El Ojo Silva” essa promessa é pelo
menos dupla; coexistem desde o início dois relatos – o de Silva ao narrador em
Berlim, depois o do narrador a um destinatário indefinido. Este, que é o que
começa com “Lo que son las cosas”, tem como objetivo principal o registro de
uma fala anterior (a do Ojo), como se aquilo de que era necessário dar
57
Em Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.53.
34
testemunho era como, apesar de tudo, havia sobrevivido no Ojo o compromisso
com um amigo, e, portanto, com um futuro. Pois mais do que “diálogo” o que
há na fala de Silva é exposição, o que vai exigir do receptor uma decisão, versão
atualizada da decisão alucinada que o fotógrafo tomou diante dos olhos
suplicantes do menino indiano. Com o relato do Ojo, essa cena é transmitida ao
escritor como um legado: agora é ele quem se encontra, na praça de Berlim,
diante de um par de olhos em sofrimento. Os olhos de Silva, que até então
vagavam inquietos pelas sombras da noite alemã, se insurgem e transbordam,
tomados inteiramente por lágrimas. O que fazer quando o olho diante do qual
se está, mais do que ver, mais do que me ver, chora, expandindo-se para fora
de si? Como narrar o choro? Como recebê-lo?
Nas lágrimas do Ojo há um apelo e uma demanda, um mandamento e
uma súplica, de modo que o sequestro de que ele foi vítima se repete, com o
testemunho do sofrimento agora despejado sobre o escritor, que se torna ele
também testemunha. Apesar do aparente encerramento em si, mesmo no
suspiro ou no grito já há busca de alteridade, dirá Lévinas, talvez já “a primeira
prece”.58 Para Didi-Huberman, uma prece sempre pede outra prece: sobre
Stephen Dedalus, escreverá que vê
com seus olhos os olhos de sua própria mãe moribunda erguerem-se para
ele, implorarem alguma coisa, uma genuflexão ou uma prece, algo, em
todo caso, ao qual ele terá se recusado, como que petrificado no lugar.59
58
Lévinas, em Poirié, op.cit., p.96.
Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998,
p.31.
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35
Diante do olhar aterrorizado do outro, o que Silva fez foi primeiro tomar uma
foto dos olhos do menino, para então ser tomado por eles, e o narrador
subitamente se encontra no lugar do Ojo, precisando responder ao sofrimento
do outro, como se agora se colocasse também para ele a necessidade da
conversão em mãe.
O escritor então evita os olhos de Silva, a quem escuta soluçar a seu lado
no banco da praça alemã. Vê, através de uma janela, uma luz se acender, vê os
faróis de um carro que passa, enquanto os olhos do Ojo continuam a se nublar
por trás das lágrimas. Se sua primeira tarefa era escutar o Ojo, e escutá-lo até
o fim, a seguinte é renovar a promessa contida em sua fala, essa prece peculiar,
por meio de uma nova narração, aquilo que o conto representará. É pouco?
Certamente, e aí as possibilidades de “transformação”, de “comunidade”, até
de “política” são fragilíssimas. Mas não é nada: como se lê em outro conto de
Bolaño, “parecían fiarlo todo al sexo, a la seducción, a gustar y ser gustados, lo
que no era mucho, (…) pero al menos era algo”.60
Nesse espírito, seria mais preciso afirmar, a respeito daquilo que passou
a ser conhecido como a “obra” de Bolaño e seu suposto sentido geral, que ao
longo
dela
há
conflitos
recorrentes
entre
um
princípio
sombrio,
frequentemente reconhecido e anunciado explicitamente no texto, muitas vezes
já no início do relato, e aquilo que sobra dele – o que sobra nas 15 páginas de
60
Bolaño, “El provocador”, El secreto del mal, op.cit., p.174.
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“El Ojo Silva”, por exemplo, nas 150 páginas de Amuleto ou nas 1100 páginas
de 2666. Em cada caso a sobrevivência e a instabilidade se darão (ou não) de
modo particular, mas o que não há como haver é uma força capaz de garantir
que a narrativa será um horror sem sobras, mesmo quando é isso que é
anunciado como lema.61 A possibilidade do transbordamento do sentido
durante a narração é afinal o risco (e a potência) de toda parábola, e é a
exposição desse funcionamento o significado mais importante da obra.
Assim, se em textos como “El Ojo Silva” o triunfo da violência não está
dado, a questão a ser analisada passa a ser a disposição comum entre leitores
de Bolaño para aceitar o prognóstico inicial e confirmar a profecia, insistindo
neles mesmo quando eles se desfazem dentro do próprio texto. Esse acaba
sendo outro futuro monstruoso da narrativa: por que, afinal, se aceita com
tamanha prontidão o diagnóstico que mais parece uma “metafísica da agressão”
ou da violência?62 E assim nos encontramos de volta à pergunta inicial: quem,
em que lugar, desde qual perspectiva, poderia ter a confiança necessária para
afirmar, estendendo a sentença ao infinito, que da violência não se poderá
jamais escapar?
61
Lema, princípio ou segredo: “Nadie presta atención a estos asesinatos, pero en ellos se esconde
el secreto del mundo.” (Bolaño, 2666, op.cit., p.439).
62
A expressão “metafísica da agressão” aparece em texto de Jonathan Lear a respeito de Freud,
em quem Lear enxerga o julgamento de que a agressão é parte da ordem fundamental do nosso
universo, estando, portanto, fora do alcance da análise (Happiness, Death, and the Remainder
of Life. Harvard U.P., 2000, p.153). Lear recomendará que essa metafísica seja abandonada:
“We can accept the obvious – namely, that aggression is a fundamental problem for humans, both
as individuals and socially – without committing the fallacy of assuming that therefore there
must be a fundamental force which expresses it” (p.154).
37
Muito diferente disso, o inesperado gesto amoroso do conto é aquele que,
como um vaga-lume na escuridão das piores expectativas, desenterra das
profundezas da profecia violenta dois encontros: um, carregado de retidão, com
o olhar de um menino apavorado; e outro, delicado e terno, com um amigo, na
noite de uma praça alemã (e o lugar do acontecimento ganha relevância63).
Como narrar cada uma dessas duas histórias é uma decisão associada à
pergunta sobre como viver; essa, por sua vez, se aproxima de outra: como
amar? Em Critchley, por exemplo, onde as duas perguntas são formuladas em
inglês, a diferença é mínima, apenas uma letra separando “how to live?” de
“how to love?”, viver e amar sendo então praticamente a mesma coisa.64



Há ainda uma última possibilidade a considerar, uma que atenua o tom
afirmativo que predominou nas últimas páginas. A hipótese de leitura
construída ao longo deste ensaio propôs que em “El Ojo Silva” não haveria
propriamente uma metafísica da agressão, embora algumas leituras do conto se
aproximem dessa conclusão e inclusive busquem definir toda a obra de Bolaño
em termos semelhantes. Como parte desse esforço, foram realçados os
movimentos na narrativa que escapam do domínio da violência e não tem a
agressão como origem ou fim. Viu-se como, diante de uma conjuntura difícil,
em um prostíbulo indiano, o Ojo Silva decide agir (ou é tomado pela
63
64
Ver Ginzburg, “El ojo silva, de Roberto Bolaño”, op.cit., p.110.
Critchley, The Faith of the Faithless, op.cit., p.20.
38
necessidade de agir), o que o conduz a um ato ético hiperbólico. Após a
descrição dessa guinada, e após a mudança no tom da narração, o relato que
segue – isso é importante – não traz a revelação de motivos sórdidos escondidos
por trás da decisão do fotógrafo. Também não veremos, no desenrolar da
narrativa, a deformação progressiva do ato primeiro, com a retidão aos poucos
se transformando em vileza. Contrariando aquilo que se anunciava desde o
início, contrariando até um horizonte de expectativas que em certos ambientes
talvez já tenha se tornado habitual (a “ordem policial” de que fala Rancière?),
a força da violência como princípio organizador da existência será abalada
através de um movimento no interior da narrativa que responde a outras
potências.
Continuo convencido de que essa leitura se sustenta, mas lhe
acrescentaria agora um elemento complicador. A violência da qual não se pode
escapar, a violência da qual não se pôde escapar, pode ter sido na verdade
outra: aquela que foi exigida de Silva após o encontro com o menino, a violência
que foi necessária para levar a cabo o resgate e a fuga. Nesse caso, o inescapável
não teria sido sofrer mas praticar a violência. Efetivamente, diante do impasse
no bordel, são tentadas primeiro formas mais amenas de pressão – o diálogo, o
suborno, a ameaça; quando todas essas alternativas fracassam, a violência,
39
contra aquilo que Silva afirmara ser de seu feitio, se torna um dever: “Lo único
cierto es que hubo violencia”.65
Exatamente qual foi a violência que houve no episódio não saberemos.
Golpes, ferimentos, assassinato? A questão é crucial, mas fica sem resposta.
Sabe-se, isso sim, do ódio de Silva à violência, o que é suficiente ao menos para
instaurar a economia sacrificial (para alguém que não odiasse a violência, não
haveria propriamente decisão a ser tomada; não haveria aporia, paradoxo,
dilema ou impasse). Mas ao ocultar do leitor o modo e a extensão da violência
praticada por Silva torna-se impossível fechar a conta (valeu a pena, afinal?),
deixando a estrutura sacrificial em suspenso mesmo após o fim do conto.
Interdita-se, assim, o conforto de uma avaliação que pudesse justificar
definitivamente, de uma vez por todas, o preço que foi pago e a preferência pela
violência menor, diante da ameaça de uma violência maior. Ainda que não seja
exatamente uma metafísica da agressão o que se encontra no conto, há uma
violência triste e trêmula que não foi possível evitar,66 e com isso regressamos
enfim à ressalva presente na fórmula do início do conto: “de la violencia, de la
verdadera violencia, no se puede escapar, al menos no nosotros, los nacidos en
Latinoamérica en la década de los cincuenta, los que rondábamos los veinte años
cuando murió Salvador Allende”. Agora com outros olhos, é possível olhar (ou
65
Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.22.
Embora não seja possível estabelecer se suficientemente triste, isto é, em que medida a
violência não terá sido na verdade uma tentação: ao narrar a história, Silva “Recuerda con
viveza la sensación de exaltación que creció en su espíritu, cada vez mayor, una alegría que se
parecía peligrosamente a algo similar a la lucidez, pero que no era (no podía ser) lucidez” (p.22).
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chorar) mais uma vez para aquilo que representou em algum momento o nome
de Allende: a possibilidade de uma aproximação entre as palavras democracia
e socialismo.
Aí, diante da necessidade de uma resposta a um choro que não cessa, o
conto termina.
Y su amigo francés le dijo que sí, que por supuesto, que lo haría de
inmediato, y también le dijo ¿qué es ese ruido?, ¿estás llorando?, y el Ojo
dijo que sí, que no podía dejar de llorar, que no sabía qué le pasaba, que
llevaba horas llorando. Y su amigo francés le dijo que se calmara. Y el Ojo
se rió sin dejar de llorar y dijo que eso haría y colgó el teléfono. Y luego
siguió llorando sin parar.67
67
Ibidem, p.25.
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