MNatali_Da violencia_Seminario DTLLC
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Da violência, da verdadeira violência (sobre “El Ojo Silva” de Roberto Bolaño) 1 Marcos Natali “Lo que son las cosas” são as palavras que abrem “El Ojo Silva”, conto de Roberto Bolaño, e na expressão é possível ouvir um apelo, a convocação de uma voz a um olhar. Em “Fíjate cómo son las cosas”, implícito nessa versão, a fala busca, no momento mesmo em que a narração se descortina, conduzir o olhar do ouvinte àquilo que ela não quer que deixe de ser visto.2 Com “Lo que son las cosas” a narrativa também faz uma promessa, anunciando o relato de um acontecimento cuja aparência pode sugerir seu pertencimento ao campo do anedótico, mas que ao mesmo tempo possuirá, apesar de sua particularidade, um sentido geral. A promessa desde esse momento passará a pairar sobre o relato, e o episódio narrado carregará o peso da expectativa de ser exemplar, 1 Uma versão deste texto será publicada no livro Toda a orfandade do mundo: escritos sobre Roberto Bolaño (Ed. Relicário, 2016), organizado por Antônio Marcos Pereira e Gustavo Silveira Ribeiro. Outra versão do trabalho foi apresentada na Unicamp em outubro de 2015. 2 Roberto Bolaño, “El Ojo Silva”, Putas asesinas. 3ª ed. Barcelona: Anagrama, 2006, p.11. Na tradução do conto ao português feita por Eduardo Brandão, o que se lê é “Vejam como são as coisas”, onde, além da explicitação da referência à visão e ao gesto de apontar em determinada direção com o dedo do discurso, o que se insere no texto é também a especificação de um destinatário coletivo, ausente do original, que omite qualquer delimitação (Roberto Bolaño, “O Olho Silva”. Putas Assassinas. Trad. E. Brandão. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.11). Já na tradução ao inglês a expressão é suprimida por inteiro, e o conto é introduzido pelas palavras “Mauricio Silva, also known as ‘The Eye’...”, como se o preâmbulo fosse dispensável (Roberto Bolaño, “Mauricio (‘The Eye’) Silva”. Last Evenings on Earth. Trad. Chris Andrews. Nova York: New Directions, 2007, p.106). um caso específico do qual se espera a capacidade de apontar algo a respeito de um conjunto maior, talvez até sobre o funcionamento geral desse conjunto. Estamos entrando, tudo indica, nos terrenos da fábula e da parábola, com a narração prometendo dar a ver algo que pertence ao domínio da generalidade: é de como são as coisas, de como é a vida, do que é feito o mundo que o conto tratará – e de como o mundo é infelizmente, pode-se pressentir desde já, pois aquele que narra não parece estar em sintonia com o estado que começa a descrever. Há desde o início dissonância entre essa voz que passa a historiar uma vida alheia (a de Mauricio Silva, o “Ojo” do título) e o mundo em que esta vida transcorreu. Seja lá o que for que o conto tem a expor, não se tratará, pois, de uma descoberta a ser anunciada com entusiasmo, e será mesmo certo tom de resignação e tristeza que predominará ao longo de todo o relato. O que a história tem a ensinar não será aprazível, pertencendo muito mais ao terreno das verdades tristes (como quando alguém diz algo como: “Veja só como são as coisas: meu vizinho cuidava tanto da saúde e foi morrer atropelado”). Estamos em um território em que já não parece haver muito a se fazer, talvez já não exista mesmo mais nada a ser feito – inclusive porque, afinal, “ya han pasado tantos años” desde os acontecimentos. Se for mesmo uma fábula, já se pode antecipar que será parte daquele subgênero em que as fábulas se aproximam das histórias de terror. 3 Se isso tudo está na expressão inicial, que serve como um prefácio à narrativa, antes dela, já no título, o que se anunciava era que se trataria de uma biografia (ficcional), o simulacro da história da vida daquele que lá é nomeado. Juntando um e outro, título e prefácio, o que se tem é a promessa de inclusão em uma série ainda mais restrita: a história da vida singular que possui um significado maior. Não é outra coisa o que a narração logo proclamará: “El caso del Ojo es paradigmático y ejemplar”.3 Há outra promessa insinuada na expressão introdutória “Lo que son las cosas”, esta referente a uma propriedade estrutural do relato que se inicia: em algum momento da narrativa haverá um giro. Essa característica estrutural não está desconectada daquilo que pode ser o sentido do relato, pois é esse movimento brusco no interior da narrativa que fará com que a verdade das coisas, que é possivelmente a verdade do mundo, venha à tona, comprovando sua inevitabilidade e, se a expectativa inicial se confirmar, seu horror. O caráter enigmático é portanto parte do sentido das coisas, e é seu desvelamento o que o receptor aguarda a partir desse momento. Assim, a existência de uma regra geral para aquilo que o mundo é, para aquilo que as coisas são, é anunciada, mas ainda terá que ser exposta, justamente pelo desenrolar da história; a narração será essa exposição. O “Lo que son las cosas” é deste modo tanto ponto 3 Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.11. 4 de partida para o relato quanto seu prometido ponto de chegada. É de onde se sai e aonde se espera chegar, simultaneamente origem e destino. Ao parecer a promessa logo se cumpre, e antes do que se esperaria (talvez cedo demais para que confiemos nela, como veremos). A revelação do sentido geral da existência e do princípio organizador da história (também da História?) virá logo em seguida, ainda na primeira frase do conto: Mauricio Silva, llamado el Ojo, siempre intentó escapar de la violencia aun a riesgo de ser considerado un cobarde, pero de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar…4 O giro narrativo que havia sido prenunciado portanto já ganha um nome: há o desejo de exterioridade em relação à violência, há tentativas de fuga, mas haverá também, superior aos dois, o retorno avassalador da violência. Formalmente, o recurso não é diferente daquele encontrado na abertura do romance Amuleto, que também está fundado sobre uma promessa, nesse caso relacionada ao pertencimento a um gênero: “Ésta será una historia de terror”, pressagia a narradora Auxilio Lacouture. (No romance o movimento e a tensão virão da diferença entre a definição do gênero da narrativa e sua aparência: “Pero no lo parecerá” 5.) Já em 2666, romance posterior às duas narrativas, não é preciso esperar sequer até as primeiras linhas, o anúncio aparecendo na epígrafe tomada da tradução de um verso de Baudelaire: “Un oasis de horror en medio de un desierto de aburrimiento.” 6 (Aí o movimento 4 Ibidem. Bolaño, Amuleto. Barcelona: Anagrama, 1999, p.11. 6 Bolaño, 2666. Barcelona: Anagrama, 2004, p.9. 5 5 imaginável é entre o oásis distópico e o deserto que o cerca e contém, ou seja, entre o horror e o tédio). Na verdade, no romance póstumo a profecia é inclusive anterior à epígrafe, uma vez que seu título ao mesmo tempo aponta para o futuro (dois mil e...) e o nomeia e define como apocalipse e catástrofe (666). Violência, terror, horror e catástrofe, portanto: como em outros textos do autor, ler “El Ojo Silva” é confrontar, por um lado, a expectativa gerada pela proclamação feita no início da narrativa, onde o sentido da parábola sombria já é proposto, e, por outro lado, o que sobra – o que sobra na história e da história, mas também o que sobra de história, pois o que sobrevive e chega até nós é finalmente uma narrativa. Trata-se, assim, do exercício de examinar a equivalência entre o princípio organizador e a narrativa, isto é, do trabalho de discernir se existe na narrativa algo que exceda e desestabilize o princípio geral. Assim, como em todo discurso profético, tudo no conto se jogará nessa relação entre a profecia e o seu resto. A questão é enorme. Dizer que é do tamanho do mundo seria pouco, pois ela é maior do que ele, abarcando inclusive aquilo que ainda não é e está ainda por vir (só isso justificaria a contundência da afirmação: “no se puede escapar”). Por onde começar, por onde começar a falar sobre o futuro? E caso começássemos, onde terminaria uma história como essa, uma história do futuro? 6 Ela poderia passar, por exemplo, pelo futuro nos versos de César Vallejo (poeta que aparece como personagem em Monsieur Pain, outro romance de Bolaño), nas súplicas dirigidas por eles a alguém já reconhecido como morto: “¡No nos dejes!”, “¡Vuelve a la vida!”.7 Dolorosamente, o amor – a intensidade de um amor – será apresentado como argumento contra a morte – “¡No mueras; te amo tanto!” –, para encontrar a indiferença fria com que a morte trata o afeto: “Pero el cadáver ¡ay! siguió muriendo.” E, no entanto, nos últimos versos, quando o poema caminha para sua catástrofe particular, os versos sonham que uma reunião de toda a humanidade seria capaz de tocar o morto: Entonces, todos los hombres de la tierra le rodearon; les vio el cadáver triste, emocionado; incorporóse lentamente, abrazó al primer hombre; echóse a andar... Os versos são a cena para a irrupção de um futuro além da morte, mas quando o cadáver se levanta quem termina é o poema, que então encontra seu próprio fim, matizando a esperança ressurrecional. É também a um moribundo que será dirigido o apelo dos versos de Pier Paolo Pasolini, em poema de 1962: “Te suplico, ah, te suplico: não queiras morrer.” Aqui, como em Vallejo, a súplica sucede o anúncio do fim: “Era o único modo de sentir a vida, / a única cor, a única forma: agora acabou.”8 Décadas 7 César Vallejo, “Masa”. Obra poética, 2ª ed. Madri: ALLCA XX, 1996, p.475. Citado em Georges Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes. Trad. Vera Casa Nova e Márcia Arbex. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2011, p.7. Era l’unico modo per sentire la vita, l’unica tinta, l’unica forma: ora è finita. Sopravviviamo: ed è la confusione 8 7 mais tarde, os mesmos versos, desse poema sobre tudo aquilo que já teria acabado, voltarão à tona e serão o início e o ponto de partida de outro texto, um estudo de Georges Didi-Huberman sobre a possibilidade da sobrevivência daquilo que, mantendo a referência a Pasolini, será chamado de “vaga-lume”. Ao aparecerem como uma das epígrafes de Sobrevivência dos vaga-lumes, os versos de Pasolini terão um funcionamento mais furtivo do que o mero anúncio do que está por vir (no livro, em cujo começo aparecem, mas não só). “Supplica a mia madre” (“Súplica à minha mãe”) abre o livro de Didi-Huberman para que este possa, por sua vez, mais de quarenta anos depois, ensaiar outro final para o discurso profético de Pasolini, esboçando um desfecho alternativo para o poema (e talvez para nada menos do que a história do mundo!). DidiHuberman passará a rabiscar sobre o texto de Pasolini, voltando a ele obstinadamente e em cima dele gravando sua própria escrita. Segundo a hipótese de leitura exposta no livro, em seus textos tardios Pasolini teria procurado teorizar, como tese histórica, o fim da possibilidade do acontecimento, naquilo que Didi-Huberman chamará de “tese do desaparecimento dos vaga-lumes”: o improvável e minúsculo esplendor dos vaga-lumes, aos olhos de Pasolini – esses olhos que sabiam tão bem contemplar um rosto ou deixar o gesto perfeito se desdobrar no corpo de seus amigos, de seus atores -, di una vita rinata fuori dalla ragione. Ti supplico, ah, ti supplico: non voler morire. Em Pier Paolo Pasolini, The Selected Poetry of Pier Paolo Pasolini, edição bilíngue, Chicago, The University of Chicago Press, 2014, p.314-316. 8 não metaforiza nada mais do que a humanidade reduzida a sua mais simples potência de nos acenar na noite.9 Para o Pasolini, segundo Didi-Huberman, “O vaga-lume está morto, perdeu seus gestos e sua luz na história política de nosso contemporâneo sombrio, que condena à morte sua inocência.”10 Com pesar, Sobrevivência dos vaga-lumes acompanhará Pasolini por um bom tempo, permanecendo próximo de seus textos e inserindo-os no próprio, ao longo de dezenas de páginas, onde aparecerão uma e outra vez versões das figurações do horror que teriam levado Pasolini a ressaltar aquilo na democracia que ele enxergava como continuação do fascismo: Em 1974, Pasolini desenvolverá amplamente seu tema do “genocídio cultural”. O “verdadeiro fascismo”, diz ele, é aquele que tem por alvo os valores, as almas, as linguagens, os gestos, os corpos do povo. É aquele que “conduz, sem carrascos nem execuções em massa, à supressão de grandes porções da própria sociedade”, e é por isso que é preciso chamar de genocídio “essa assimilação (total) ao modo e à qualidade de vida da burguesia”. Em 1975, perto de escrever seu texto sobre o desaparecimento dos vaga-lumes, o cineasta dedicar-se-á ao tema trágico e apocalíptico - de um desaparecimento do humano no coração da sociedade atual: “Faço simplesmente questão de que tu olhes em torno de ti e tomes consciência da tragédia. E que tragédia é esta? A tragédia é que não existem mais seres humanos; só se veem singulares engenhocas que se lançam umas contra as outras.” 11 9 Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.30. Ibidem, p.24. 11 Ibidem, p.29-30. Veja-se, como contraste a essas imagens sombrias, o que, décadas antes, nos anos quarenta, Pasolini enxergara em uma reunião de amigos: A amizade é uma coisa belíssima. Na noite da qual te falo, jantamos em Paderno e, em seguida, na escuridão sem lua, subimos até Pievo del Pino, vimos uma quantidade imensa de vaga-lumes (abbiamo visto una quantità immensa di lucciole), que formavam pequenos bosques de fogo nos bosques de arbustos, e nós os invejávamos porque eles se amavam, porque se procuravam em seus voos amorosos e suas luzes. (...) Pensei 10 9 E então, de repente, no primeiro grande giro no livro, Didi-Huberman interrompe o raciocínio e suas certezas altissonantes para uma pausa, detendose no anúncio de que “agora acabou”. “Diabos!”, escreverá ele, Tudo isso não se assemelha à descrição de um pesadelo? Ora, Pasolini insiste em nos dizer: esta é a realidade, nossa realidade contemporânea, esta realidade política tão evidente que ninguém quer vê-la pelo que ela é, mas que “os sentidos” do poeta – esse vidente, esse profeta – acolhem tão fortemente.12 E, prossegue, algumas páginas adiante: uma coisa é designar a máquina totalitária, outra coisa é lhe atribuir tão rapidamente uma vitória definitiva e sem partilha. Assujeitou-se o mundo, assim, totalmente como o sonharam – o projetam, o programam e querem no-lo impor – nossos atuais “conselheiros pérfidos”? Postulálo é, justamente, dar crédito ao que sua máquina quer nos fazer crer. É ver somente a noite escura ou a ofuscante luz dos projetores. É agir como vencidos: é estarmos convencidos de que a máquina cumpre seu trabalho sem resto nem resistência.13 Como contraponto a essa figura da vitória definitiva e absoluta de uma “máquina” onipotente capaz de colonizar inteiramente o mundo, DidiHuberman lançará mão então do vocabulário de restos, lampejos e faíscas, perguntando finalmente se não teriam sido destruídos, não os vaga-lumes então no quanto é bela a amizade, e as reuniões dos rapazes de vinte anos, que riem com suas másculas vozes inocentes e não se preocupam com o mundo a sua volta, continuam vivendo, preenchendo a noite com seus gritos. (p. 19) Esses rapazes “continuam vivendo”, é importante lembrar, em plena guerra. 12 Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.38. 13 Ibidem, p.42. Grifo meu. 10 propriamente, mas algo no desejo de ver – “no desejo em geral, logo, na esperança política – de Pasolini”.14 Para o francês, a questão não é apenas Pasolini, embora a tristeza e a empatia visíveis em suas observações estejam relacionadas àquilo que o cineasta parece representar para ele (é também o que impedirá que o texto seja uma espécie de culpabilizaçaõ do cineasta). No segundo movimento importante de Sobrevivência dos vaga-lumes, o Pasolini tardio será aproximado de Giorgio Agamben, em particular do Agamben de Infância e história, onde, na esteira de Benjamin, o filósofo italiano volta à ideia de destruição da experiência na sociedade contemporânea. A longa citação inserida abaixo é do livro de Agamben, reproduzida aqui tal como é citada por Didi-Huberman (inclusive com uma supressão, à qual voltarei depois). A referência no início do trecho é a Benjamin, nomeado no parágrafo anterior. Porém, nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária, e que a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente. Pois o dia a dia do homem contemporâneo não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência: nem a leitura do jornal, tão rica em notícias do que lhe diz respeito, a uma distância insuperável; nem os minutos que passa, preso ao volante, em um engarrafamento; nem a viagem às regiões ínferas nos vagões do metrô; nem a manifestação que de repente bloqueia a rua; nem a névoa dos lacrimogêneos que se dissipa lenta entre os edifícios do centro e nem mesmo os súbitos estampidos de pistola detonados não se sabe onde; nem a fila diante dos guichês de uma repartição ou a visita ao país de Cocanha do supermercado; nem os eternos momentos de muda promiscuidade com desconhecidos no elevador ou no ônibus. O homem moderno volta para casa, à noitinha, extenuado por uma mixórdia de 14 Ibidem, p.59. 11 eventos - divertidos ou maçantes, banais ou insólitos, agradáveis ou atrozes –, entretanto nenhum deles se tornou experiência. É esta incapacidade de se traduzir em experiência que torna hoje insuportável - como em momento algum no passado – a existência cotidiana. [...] Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação turística é, desse ponto de vista, particularmente instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da terra (digamos, o patio de los leones, no Alhambra) a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter experiência delas.15 Chama a atenção no trecho, que está nas primeiras páginas de Infância e história, a confiança com que o diagnóstico totalizante é enunciado, com a acumulação vertiginosa de referências à “destruição da experiência”, à “distância insuperável”, à “catástrofe”, à “incapacidade” de tradução, ao caráter “insuportável” do cotidiano, à “mixórdia de eventos”, que podem ser “agradáveis ou atrozes”, mas serão sempre incapazes de se transformar em “experiência”. Para Didi-Huberman, que colocará em questão inclusive a precisão da leitura que Agamben faz de Benjamin, seria uma necessidade da “matriz filosófica” do italiano primeiro afirmar a destruição radical, para depois poder erigir uma nova “transcendência” 16, em movimento pendular entre os extremos da destruição e da redenção (que podem até inverter posições, podendo estar tanto na origem quanto no destino). Continuamos no campo das profecias, 15 Giorgio Agamben, Infância e história. Trad. H. Burigo Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2005, p.212; citado em Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.75. 16 Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.77. 12 então, como é o caso também do seguinte comentário, extraído de uma entrevista de Jacques Rancière, com o qual encerro esta série de longas citações: There are many ways of understanding the role of the philosopher — in general or in the current situation. Most people seem to identify it today with some kind of prophecy about the disaster threatening culture, civilization, the symbolic order, and so on. All the elements of social criticism and the critique of culture have been recycled in order to sustain those prophecies about the impending disaster produced by individualism, democracy, consumption, the spectacle, and so on.17 Cada um dos elementos que, de acordo com a fala cética de Rancière, são comumente apontados em discursos proféticos como responsáveis pela catástrofe iminente – individualismo, democracia, consumo, espetáculo – aparecem, um por um, nos prognósticos de Pasolini. Voltemos a “El Ojo Silva”, que havíamos abandonado no momento em que ocorria a nomeação do que parecia ser o princípio organizador da existência, princípio introduzido por uma conjunção adversativa que dá ao enunciado forma semelhante à do trecho de Infância e história reproduzido acima (do “Porém, nós hoje sabemos que...” de Agamben ao “pero de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar” de Bolaño). Ainda não se sabe se serão estabelecidos limites geográficos ou temporais para a afirmação – se esta seria, 17 Jacques Rancière, “Aesthetics against Incarnation”, op.cit., p.188. A entrevista foi concedida em inglês. 13 por exemplo, válida apenas para as sociedades contemporâneas – , mas o que já é possível vislumbrar é que a questão narratológica decisiva será mesmo a relação entre a profecia e seus restos: o que restará do conto (após o anúncio de um sentido geral já no primeiro parágrafo) e também o que restará da vida (após a intervenção da violência). Os restos, aqui, são também excessos: nessas circunstâncias, o que pode haver em um relato que justifique sua existência apesar de tudo? Professado o sentido daquilo que virá, e que é definido como ineliminável, por que insistir em narrar? Ou então, dobrando o problema do comando de um princípio organizador sobre a questão da produtividade da leitura: para que ainda ler? Para que ainda ler quando, como algumas leituras críticas de Bolaño asseguram, em um princípio geral como esse já estaria a chave para toda a obra do autor? No conto, algo acontecerá com a contundência da afirmação generalizante quase imediatamente após a sua enunciação: sim, prossegue o narrador, é mesmo certo que da violência “no se puede escapar” – mas ele então titubeia: “al menos no nosotros, los nacidos en Latinoamérica en la década de los cincuenta, los que rondábamos los veinte años cuando murió Salvador Allende”.18 Agora parecer haver dentro do grupo maior um subconjunto, e para este, sim, seria incontestável o domínio da violência. A ressalva implanta já na apresentação uma dúvida a respeito da existência de um possível limite – 18 Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.11. 14 geopolítico? geracional? – para o alcance da violência. O movimento é do maior ao menor, do geral ao particular, e a afirmação inicial – ninguém, presume-se, escapa – é circunscrita, não sem antes situar o narrador e o Ojo Silva dentro dos marcos desse grupo menor que acaba de ser delineado. A biografia de Mauricio Silva prometida no título ganhará assim ares de autobiografia coletiva, uma impossível autobiografia na primeira pessoa do plural, e aquilo que seria o relato de uma vida passa a aludir à história de uma “geração” (a palavra é importante na obra de Bolaño e mereceria análise mais detida). Desse modo, se é possível que a violência não seja evitável para qualquer um, e se para o narrador parece provável que seja assim, o que é certo é que dela não pôde se evadir a geração de latino-americanos que eram jovens durante os golpes militares que aconteceram em boa parte do continente nos anos 1960 e 1970. Será necessário voltar depois – ainda não saímos da primeira frase! – à pergunta sobre o que há de particular na relação entre a violência, a experiência de uma geração que chegou à vida adulta e foi formada pela irrupção ditatorial, e o nome de Allende (e sua morte),19 mas que pelo menos fique constatado desde já que a fórmula tomada como ponto de partida do conto e desta minha leitura continha mais instabilidade do que parecia à primeira vista, suscitando o 19 Para uma leitura do conto que aborda sua relação com o golpe militar chileno, além de tocar na questão da violência sacrificial, que aparecerá também aqui mais adiante, ver Jaime Ginzburg, “El ojo silva, de Roberto Bolaño”. Em Heidrun Krieger Olinto e Karl Erik Schøllhammer (orgs.), Cenários contemporâneos da escrita. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2013. 15 disparo de uma série de perguntas algo extravagantes, mas plausíveis diante da hesitação do narrador. Em primeiro lugar, que tipo de conhecimento seria necessário para que fosse possível estabelecer, sem hesitação, que de fato não se poderá, jamais, fugir da violência? Desde qual lugar seria legítima e teria sentido uma afirmação dessa ordem? O acesso a respostas estaria disponível somente a quem estivesse já além do fim da história, e não apenas além do fim da história de Mauricio Silva – que é justamente o lugar de enunciação do narrador – mas também além de todas as histórias para as quais este relato particular serve como um caso “paradigmático y ejemplar”. Mas mesmo que nos fosse dado conhecer que efetivamente a fuga da violência não foi e não será em qualquer circunstância realizável, imagina-se que sobrariam ainda diferenças entre as tentativas de escapar dela. Em outras palavras, existiriam ainda distinções importantes entre as formas do fracasso.20 Se nos fosse revelado que é o inferno o que nos aguarda no fim do percurso, restaria a questão da relevância de se percorrer o caminho com o filho no colo – e escrevendo.21 Haveria aí uma fórmula, uma teoria ou uma ética da literatura? Se houver, parece ser algo que parte da importância de insistir que, embora esteja presente em algumas tradições 20 Remeto o leitor ao capítulo 2, onde, em discussão de Arguedas, também aparece uma ética da disputa pela forma da derrota. 21 “Escribiendo poesía en el país de los imbéciles. / Escribiendo con mi hijo en las rodillas. / Escribiendo hasta que cae la noche / con un estruendo de los mil demonios. / Los demonios que han de llevarme al infierno, / pero escribiendo.” (Roberto Bolaño, La Universidad Desconocida. Barcelona: Anagrama, 2007, p.7-8). 16 literárias a crença na imunidade da literatura ao horror, nem nela se escapa da violência. Os movimentos seguintes do conto serão mais uma vez semelhantes àqueles vistos em Amuleto: primeiro definição e promessa (“esta será una historia de terror”), depois recuo e narração (“Yo llegué a México Distrito Federal en el año 1967 o tal vez en el año 1965 o 1962”22). Em “El Ojo Silva”, o recuo será como o de um gato, encolhendo-se para aumentar o alcance do salto; do anúncio de que a história é uma parábola (paradigmática, exemplar) e da enunciação de seu princípio geral, da referência à morte de Allende, a narrativa retrocederá ao começo da história do Ojo, que é na verdade a história de uma tentativa de fuga. En enero de 1974, cuatro meses después del golpe de Estado, el Ojo Silva se marchó de Chile. Primero estuvo en Buenos Aires, luego los malos vientos que soplaban en la vecina república lo llevaron a México, en donde vivió un par de años y en donde lo conocí.23 Trata-se, portanto, e muito concretamente, de uma série de tentativas fracassadas de fuga, primeiro do Chile rumo à Argentina, depois dali ao México, aparente refúgio em meio aos golpes militares que foram tomando os governos de outros países latino-americanos. Entretanto, o México que Silva, o narrador e outros exilados chilenos encontrarão não será propriamente um oásis (embora também seja o lugar da experiência decisiva de uma comunidade 22 23 Bolaño, Amuleto, op.cit., p.12. Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.11. 17 poética possível, o exílio mexicano será, em Amuleto, Los detectives salvajes e 2666, o lugar de novos massacres). A história de Silva precisará dar um salto para fora da América Latina, para atravessar a Europa e encontrar seu desfecho (sua forma particular de fracassar?) em um vilarejo na distante zona rural da Índia. Se este ensaio tem se deslocado entre duas línguas, não havendo entre ele e o conto estudado uma língua comum, no relato, onde a linguagem à primeira vista não parece estar cindida pela presença de dois idiomas, também surgem entraves para a instituição de um espaço linguístico homogêneo, começando pelo fato de que não está claro, como ocorre também em outros textos de Bolaño, que não exista mais de uma língua dentro do espanhol.24 Além disso, a incerteza sobre a existência de uma língua comum é tema recorrente nas conversas – delicadas, frágeis, hesitantes – entre os dois amigos (Silva e o narrador). El Ojo parecía de cristal, y su cara y el vaso de vidrio de su café con leche parecían intercambiar señales, como si se acabaran de encontrar, dos fenómenos incomprensibles en el vasto universo, y trataran con más voluntad que esperanza de hallar un lenguaje común.25 24 Em “La parte de Fate” em 2666, por exemplo, o idioma utilizado não será exatamente o espanhol, embora pareçam pertencer ao espanhol as palavras que lemos. Sobre a língua em Bolaño, ver Mariana Ruggieri, De um lugar a outro via 2666. Dissertação de Mestrado, FFLCH/USP, 2013, e Brett Levinson “Case Closed: Madness and Dissociation in 2666”. Journal of Latin American Cultural Studies (2009), 18: 2, p.177-191. 25 Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.13. 18 O trecho aparece em meio à descrição de um encontro no Café La Habana, quando o Ojo revela ao amigo que é homossexual e vai deixar o México. Silva fugira do Chile ao México, onde reencontraria o conservadorismo de que tentara escapar entre os exilados chilenos, “gente de izquierdas que pensaba, al menos de cintura para abajo, exactamente igual que la gente de derecha que en aquel tiempo se enseñoreaba de Chile”.26 A passagem, mesmo breve, é suficiente para complicar qualquer relato monológico ou homogêneo de resistência. Não há, aqui, uma comunidade sem fraturas anterior à ruptura do exílio, como não haverá após o seu fim. Como não há garantia no passado, não há no futuro, como se vê na pergunta dirigida a Ernesto Cardenal em um poema: Padre, en el Reino de los Cielos que es el comunismo ¿tienen un sitio los homosexuales?27 É outra questão gigantesca: qual é a imagem de futuro – comunista ou cristão ou ambos - que guarda um lugar para a homossexualidade? Qual é histórico de exclusões no inventário de imagens do futuro sonhadas por comunistas, por padres católicos, por padres comunistas? Nas palavras de um ensaio de Bolaño, onde também aparecerá a referência à geração nascida nos anos 1950, “luchamos por partidos que de haber vencido nos habrían enviado de inmediato a un campo de trabajos forzados”.28 26 Ibidem. Bolaño, La Universidad Desconocida, op.cit., p.371. 28 Roberto Bolaño, Entre paréntesis. Barcelona: Anagrama, 2006, p.37. 27 19 O narrador, supondo haver uma relação de causalidade entre a revelação de Silva e sua viagem, entende que Silva deixará o país por ser homossexual, como se entre “México” e “homossexualidade” houvesse uma discordância insuperável. É também nessa conversa, um pouco mais tarde, que Silva afirma que “la violencia no era cosa suya”, para então completar, dirigindo-se ao narrador: “Tuya sí, me dijo con una tristeza que entonces no entendí, pero no mía. Detesto la violencia”.29 A proclamação da diferença em relação à violência, definida pelo Ojo como externa e estranha, algo que não lhe pertence, é assombrada aqui por aquilo que já foi exposto ao leitor, lá nas primeiras linhas do conto, e que venho chamando de sentido geral desta parábola. A confiar na narração, o Ojo Silva parece saber nesse momento menos do que o narrador, esse escritor que, embora afirme compartilhar a aversão à violência (“Yo le aseguré que sentía lo mismo”), já sabe, e já nos disse, onde terminará a esperança em uma fuga possível. O sentido da asseveração do início do conto começa aqui a ganhar contornos mais claros: “pero de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar” é uma espécie de resposta ao “la violencia no es cosa mía” do Ojo (e talvez também ao “Tuya sí”). 29 Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.14. Ao declarar seu ódio à violência, Silva afirma que ela não era odiada pelo escritor, seu interlocutor, observação que se desdobra de inúmeras maneiras nos textos de Bolaño. 20 Silva logo deixa o México e na França trabalhará em uma agência de fotografia, até que “pasaron los años. Muchos años”, tantos que para o narrador o rosto do amigo começa a perder nitidez, embora persista a lembrança de sua forma de ser, que paradoxalmente é um modo de estar ausente. Con el paso del tiempo empecé a olvidar hasta su rostro, aunque siempre persistió en mi memoria una forma de acercarse, un estar, una forma de opinar desde cierta distancia y desde cierta tristeza nada enfática que asociaba con el Ojo Silva, un Ojo Silva que ya no tenía rostro o que había adquirido un rostro de sombras, pero que aún mantenía lo esencial, la memoria de su movimiento, una entidad casi abstracta pero en donde no cabía la quietud.30 Um novo encontro entre os dois, desta vez em uma praça de Berlim, vai espelhar o anterior no Café La Habana, e com ele retorna a dificuldade do diálogo e do reconhecimento do outro diante de si. Quando se encontram, o narrador inicialmente não identifica o amigo, não reconhece seu olhar, que por sua vez é desviado, ao chão e aos lados, esquivando o contato. Mesmo assim, “Reencontrarlo, pensé, había sido un acontecimiento feliz”.31 A conversa que segue, e que atravessará a noite, consiste na história da vida do Ojo entre a saída do México e aquela madrugada em Berlim, história que Silva parece estar contando pela primeira vez, como se o relato tivesse se tornado possível graças ao reencontro com o amigo. Essa será, adverte o narrador, “la verdadera historia del Ojo”, a referência à verdade ecoando a 30 31 Ibidem, p.14. Ibidem, p.15. 21 anterior: a verdadeira história do Ojo é seu encontro com a violência; a verdade da violência é sua inescapabilidade. Silva fora enviado à Índia para tirar fotos que acompanhariam reportagens sobre o país em duas revistas francesas, entre elas uma matéria especialmente exoticizante sobre zonas de prostituição. O texto, já pronto, é anterior às fotografias, que eram aguardadas como confirmação da palavra escrita: “sus fotos iban a ilustrar un texto de un conocido escritor francés que se había especializado en el submundo de la prostitución”.32 Os cafetões indianos, informantes nativos do fotógrafo que deseja documentar a prostituição local, procuram oferecer ao estrangeiro algo que corresponda a seu desejo, mencionando mulheres e homens e, diante de suas recusas sucessivas, chegando finalmente a meninos, muito novos, crianças que haviam sido vítimas de uma cerimônia religiosa em que foram castrados. Um deles, uma criança que parece ter menos de dez anos, é levado a Silva: “parecía una niña aterrorizada”, lembra-se ele, “aterrorizada y burlona al mismo tiempo”.33 “¿Lo puedes entender?”, pergunta o Ojo ao amigo em Berlim, ele mesmo respondendo à pergunta: “Nadie se puede hacer una idea. Ni la víctima, ni los verdugos, ni los espectadores”. No entanto, no prostíbulo, diante do olhar do menino, o que o Ojo faz é tirar uma foto. “Saqué mi cámara”, conta, “y le hice 32 Ibidem, p.17. O conto dialoga com a longa tradição de relatos colonialistas da barbárie oriental, narrativas de viagens a um interior cada vez mais abjeto. 33 Ibidem, p.20. Grifo do autor. 22 una foto. Sabía que estaba condenándome para toda la eternidad, pero lo hice.”34 Em resposta à fragilidade do rosto do menino aterrorizado, portanto, produzse uma foto. Lembremos o final do trecho de Infância e história reproduzido acima para dramatizar o significado que pode ter o ato de Silva: É esta incapacidade de se traduzir em experiência que torna hoje insuportável – como em momento algum no passado – a existência cotidiana. (...) Uma visita a um museu ou a um lugar de peregrinação turística é, desse ponto de vista, particularmente instrutiva. Posta diante das maiores maravilhas da terra (digamos, o patio de los leones, no Alhambra) a esmagadora maioria da humanidade recusa-se hoje a experimentá-las: prefere que seja a máquina fotográfica a ter experiência delas.35 No trecho não citado por Didi-Huberman, onde em Sobrevivência dos vagalumes aparecem reticências entre parênteses (como no trecho acima), há uma página inteira sobre a “recusa aparentemente disparatada” da experiência, culminando na constatação de que experiências, hoje, quando existem, “se efetuam fora do homem”. São elas – essas experiências externalizadas, como aquelas diante das “maiores maravilhas da terra” – que o ser humano sente a necessidade de afastar com a prótese da máquina. A questão é o poder do dispositivo, que certamente não é apenas a máquina nas mãos do fotógrafo, mas todo um modo de ver (e deixar de ver) o outro. Encontraríamos muitas avaliações semelhantes ao longo da atribulada história da recepção crítica da fotografia, como a seguinte, por exemplo, feita por Lévinas: “Se você concebe 34 35 Ibidem, p.20 Agamben, Infância e história, op.cit., p.21-2. 23 o rosto como objeto do fotógrafo, decerto você está lidando com um objeto como um outro objeto qualquer”.36 Caberia aqui a pergunta de Didi-Huberman, formulada em meio à leitura dos momentos mais angustiados dos textos de Pasolini e Agamben: quem negará que eles têm razão? Certamente não o Ojo, o fotógrafo do conto, cuja desconfiança levará a uma previsão (mais uma, a se somar às outras já feitas): tirar a foto seria suficiente para sua condenação, “para toda la eternidad”. E mesmo assim, diante do menino indefeso, o Ojo transforma seus dois olhos em um só, os dois os que emolduram o j de seu nariz convergindo na lente do dispositivo singularizante (será a violência justamente essa passagem do dois ao um?). Segura a câmera, aponta a lente, seu novo olho, e acontece o nascimento do ciclope anunciado desde o título. Toda a construção da cena, nessa nova História do olho, assinala a indecência da fotografia e do gesto que, frente ao olhar aterrorizado do outro, reage com a captura de seu sofrimento. No entanto, apesar da foto, que chega mesmo a ser produzida, na verdade apesar de tudo,37 a história dará um giro desconcertante: o dispositivo da máquina fotográfica não será capaz de anular a possibilidade do acontecimento, o distanciamento da máquina não garantirá a recusa e a indiferença ao outro e não será suficiente para assegurar a imunidade do Ojo a ele. Continuando com a história, vai se tornando cada vez mais difícil sustentar que a câmera impede 36 37 Poirié, E. Lévinas: Ensaio e entrevistas, op.cit., p.85. Sobre “aquilo que aparece apesar de tudo”, ver Didi-Huberman, op.cit., p.65. 24 que se “tenha experiência” do outro, para usar a expressão de Agamben, ou transforma o rosto em um objeto fotográfico comparável a qualquer outro, para falar com Lévinas (ou pelo menos que é apenas isso que ela faz). O desenrolar da cena é radicalmente outro: após a foto, retorna a insistência do cafetão, que quer levar o fotógrafo a mais um bordel, com ofertas de diversos tipos; Silva permanece imóvel, incapaz de escapar, já refém do olhar do menino: “No podía irse. Se lo dijo así: no puedo irme todavía. Y era verdad, aunque él desconocía qué era aquello que le impedía abandonar aquel antro para siempre”.38 Começa a ganhar outro sentido a profecia de condenação de Silva, sua infinita condenação diante do outro. Jogado do cavalo, cegado pelo rosto do menino, este é o começo de sua conversão – a palavra utilizada não é outra: “el Ojo se convirtió en otra cosa”.39 Perder-se, condenar-se, aí, é reconhecer-se já e para sempre preso àqueles olhos, olhos que suplicam, ordenam, arrebatam um espectador que, levado por uma espécie de “amor místico” (“mystical love”),40 terá que permitir que algo novo possa surgir, transformando-o em outro. No caso, em algo bastante específico: “Y entonces el Ojo se convirtió en otra cosa, aunque la palabra que él empleó no fue ‘otra cosa’ sino ‘madre’”.41 Um homem 38 Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.20. Ibidem, p.22. Na tradução ao português desaparece a conversão: “o Olho se transformou noutra coisa” (Bolaño, “O Olho Silva”, op.cit., p.22). 40 Simon Critchley, The Faith of the Faithless: Experiments in Political Theology. Londres: Verso, 2012, p.20, onde a expressão é entendida como “that act of spiritual daring that attempts to eviscerate the old self in order that something new might come into being” (“aquele ato de ousadia spiritual que busca destripar o antigo ser para que algo novo possa vir a ser”). 41 Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.22. 39 25 pode ser mãe, é também a lição que se aprende aqui: a “família”, no conto, está desvinculada da “biologia”, também ela contingente. Forma-se quase por acidente, como resultado de um encontro improvável, e a qualquer momento pode ser desfeita. Sem a garantia de continuidade, a filialidade também não tem como ser pretexto para o desejo de reprodução de um pai ou uma mãe. Ao invés do rosto como objeto, então, comparável a qualquer outro e por ele intercambiável, o que se narra, apesar da presença da câmera, é o encontro com um rosto que não é da ordem do visto, não é um objeto, é aquilo cujo aparecer conserva uma exterioridade que é também um chamado – ou um imperativo dado à sua responsabilidade. Encontrar um rosto é, de pronto, ouvir um pedido e uma ordem. (...) Pode-se dizer uma vez mais: o rosto, por trás da feição que ele se dá, é como exposição de um ser à sua morte, o sem defesa, a nudez e a miséria de outrem. Ele é também o mandamento de tomar a si, a seu cargo, outrem, de não o deixar só; você ouve a palavra de Deus. (...) se você encontra o rosto, essa responsabilidade está nessa estranheza de outrem e em sua miséria. O rosto se oferece à tua misericórdia e à tua obrigação.42 Mais até do que uma decisão ou a escolha de uma alternativa entre várias possíveis – o que fazer? – o que ocorre é a experiência de passividade que resulta de se descobrir refém do outro: “Eu fui eleito para ser o responsável por outrem; nessa posição, para essa função, eu sou único, insubstituível”.43 A partir daí tudo no conto será excessivo, hiperbólico, sentimental, 44 em uma 42 Poirié, E.Lévinas: Ensaio e entrevistas, op.cit., p.85. Ibidem, p.29. 44 Como no conto “Muerte de Ulises”: “Lo que sigue es caótico y sentimental.” (Roberto Bolaño, “Muerte de Ulises”. El secreto del mal. Barcelona: Anagrama, 2007, p.169). Resta a questão 43 26 palavra, ridículo (de fato, “Pinche Robert Bolãno: / besa en la boca lo patético y lo ridículo”45). “A exigência ética de Jesus é uma exigência ridícula”, escreve Simon Critchley sobre as demandas infinitas proferidas nos Evangelhos. O mandamento de amar os inimigos e “ser perfeito”, por exemplo, coloca o “ethical subject in a situation of sheer ethical overload”.46 É assim também com o desenrolar dessa estranha parábola de Bolaño: inicialmente inabalável diante da insistência do cafetão, os atos de Silva fazem de sua passividade força, e ele é logo cegado pela busca de uma escapatória. Eles transformarão a narrativa, na qual até então predominava o tom resignado, em um relato de aventura no qual não faltarão elementos que não sem razão poderiam ser tidos como melodramáticos e sentimentais, próprios de gêneros comumente considerados suspeitos. O que haverá no conto será o seguinte: tensão e conflito; o resgate dos dois meninos do prostíbulo; fuga da cidade (primeiro de táxi, depois em ônibus e trem); e a chegada a um refúgio (“hasta que finalmente se detuvieron en una aldea en alguna parte de la India y alquilaron una casa y descansaron”47). O Ojo “adota” as crianças e a família recém-formada passa a ter uma vida campestre em uma província indiana, com Silva se dedicando a educar os meninos em meio à pobreza de uma região em que, diz, até os mais ricos eram pobres. Tudo sobre o que acontece exatamente – intensificação? matização? negação? – quando algo é anunciado como sentimental. 45 São versos do poema “Calles de Barcelona”, La Universidad Desconocida, op.cit., p. 78. 46 Critchley, The Faith of the Faithless, op.cit., p.220. 47 Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p. 23. 27 isso será efetivamente narrado, mas com uma mudança de ritmo em relação à prosa que predominara até então, ao longo de parágrafos acelerados em que prevalecerão a incerteza e a imprecisão, quase como se a narrativa tivesse perdido interesse pelos detalhes do narrado, como se ela tivesse se desinteressado de sua mecânica, como se nada houvesse de relevante após o registro do acontecimento decisivo: “Lo que sucedió a continuación de tan repetido es vulgar”, ou “El resto, más que una historia o un argumento, es un itinerario”.48 Inclusive o heroísmo que poderia haver no ato extraordinário de Silva será diluído, com a passagem à domesticidade e à longa duração de sua maternidade. É difícil escapar aqui da constatação de que o que ocorre é rigorosamente o contrário daquilo que fora anunciado (por Silva, por Agamben, por Lévinas...): mesmo após fotografar o outro, é o Ojo quem será tomado por ele e arremessado à conversão. De fotógrafo errante, morador transitório de apartamentos alugados e quartos de hotel ao redor do mundo, Silva se transforma em pequeno agricultor e pedagogo, residente de uma aldeia rural indiana. Sem que isto tenha sido em momento algum um plano, um programa ou um projeto, torna-se mãe solteira de dois meninos abandonados. Em contos e romances de Bolaño há diversas cenas estruturadas de modo semelhante ao dessa passagem de “El Ojo Silva”. Uma delas, em que até a 48 Ibidem, p. 22. 28 distribuição espacial das personagens lembra o episódio no bordel, ocorre em Amuleto, em episódio em que Auxilio, Arturo Belano e Ernesto San Epifanio resgatam a vítima de um cafetão.49 Nessas narrativas, como em “El Ojo Silva” –é esse o elemento decisivo – seria difícil sustentar a indiferença do mundo aos atos do sujeito ético. Parece até duvidoso afirmar, baseando-se nessas cenas, que de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar. Na história do Ojo Silva, por exemplo, apesar de todos os riscos que a atravessam, o resultado é a fuga, tortuosa, mas bem-sucedida, de um recinto deplorável.50 Assim, no conto o Ojo consegue fugir – do bordel, da cidade em que se encontrava, de seus perseguidores. Para pensar o conto, ajuda lê-lo não em termos de sua verossimilhança, em busca da avaliação de sua referencialidade ou seu “realismo”. Em poucas palavras, o que parece se revelar finalmente é o 49 Bolaño, Amuleto, op.cit., p.78-89. E tudo nela é arriscado, evidentemente. (“No me siento seguro / En ninguna parte. / La aventura no termina.” Roberto Bolaño, “Tu lejano corazón”, La universidad desconocida, op.cit., p.160.) Entre outros, persiste dentro da história, como uma das consequências possíveis das decisões tomadas, o risco da reprodução do colonialismo; é, afinal, a possibilidade que assombra toda pedagogia, toda maternidade. Para o conto, o dilema é se ele será capaz de dificultar sua inserção na tradição orientalista já referida acima, tradição tantas vezes reproduzida por escritores latino-americanos, até como maneira de entrar no cânone literário europeu. (O fotógrafo Ojo Silva, lembre-se, é enviado à Índia para produzir fotos para um texto francês já pronto.) Avaliar os resultados dessa operação exigiria uma reflexão que passaria pelo lugar complexo de Borges nessa tradição, e por tudo o que acontece com o orientalismo na obra de Borges, algo merecedor de estudo mais aprofundado. O que é certo também é que o que se encontra na Índia evoca referências latino-americanas e não europeias: “La fiesta tiene la apariencia de una romería latinoamericana”, mas com tudo em excesso, “más alegre, más bulliciosa y probablemente la intensidad de los que participan, de los que se saben participantes, sea mayor”. Tanto em Bolaño quanto em Borges, embora existam sinais que apontem para a delimitação regional – “Al fin me encuentro / con mi destino sudamericano” (Borges, “Poema conjetural”, Obras completas, v.2, Buenos Aires, Emecé, 1994, p.245) –, o destino finalmente será global, como raras vezes se viu na narrativa latino-americana. O fato é que ao final os dois mortos, as vítimas fatais da violência, não nasceram nem na América Latina, nem nos anos 1950. 50 29 seguinte: a promessa que devia ser levada a sério era a de que o texto seria uma parábola! A história deve mesmo ser lida como “exemplar”, desde que a palavra seja entendida como significando excepcional, extraordinária, única. Do mesmo modo, não conheceremos os nomes das cidades indianas pelas quais o Ojo passou, não saberemos sequer os nomes dos meninos resgatados, dificultando a circunscrição do enredo e aproximando-o também nesse sentido da parábola, embora seja uma estranha parábola que tem como movimento principal a subversão do princípio que parecia enunciar desde o início, desembocando em algo como o seguinte: de la violencia, de la verdadera violencia, al menos una vez se pudo escapar.51 É verdade que, para que tudo isso pudesse acontecer, foi necessário abandonar a fotografia (a arte). Ao fazê-lo, Silva reproduz a explicação fornecida tantas vezes pelo próprio Bolaño, em entrevistas e ensaios, justificando sua passagem da poesia à prosa. O comentário, que cita a chegada do primeiro filho e a necessidade de sustentar a família, será reproduzido por 51 É verdade que, após o idílio no vilarejo provinciano, com educação para as crianças e diversão diária no campo, as duas morrerão. Por mais trágicas que sejam, no entanto, essas mortes não parecem ser o resultado do fracasso da fuga, não ocorrendo com a chegada de policiais ou cafetões, perseguidores que na trama acabarão tendo contornos mais espectrais do que reais, sempre prestes a alcançar o Ojo apenas em seus pesadelos persecutórios. Os meninos morrem graças a uma “doença” não nomeada que atinge a aldeia: “Después llegó la enfermedad a la aldea y los niños murieron” (p.24). Não se trata de naturalizar a morte por doença entre camadas vulneráveis da sociedade, e evidentemente nesse lugar onde até os camponeses ricos são pobres as condições existentes são uma forma de violência que propicia ou permite a contaminação. Mas é assim, com essa rapidez, que a narrativa passa pelo acontecimento, o que não impede que nossa leitura dê a ele uma centralidade que não tem no relato. Seria possível inclusive ressignificar a tese da inescapabilidade da violência, e minha hipótese a respeito de sua escapabilidade no conto, a partir dessas mortes; uma segunda possibilidade de problematização da hipótese será apresentada ao final deste capítulo. 30 muitos textos críticos (sugerindo que o que precisa ser pensado é também a disposição da crítica para aceitar a explicação do autor, como se ela fosse a resposta a um desejo já presente entre os leitores). O que a explicação faz é preservar a poesia e o prestígio a ela atribuídos, inclusive nos contos e romances do próprio autor, enquanto situa o escritor em lugar peculiar: mais do que verdadeira (ou falsa), a justificativa deve ser entendida como um gesto que permite ao escritor continuar a se definir como fundamentalmente um poeta, ao mesmo tempo em que se dedica exaustivamente à prosa. Ela permite também que o escritor continue a afirmar sua preferência pela poesia, além da superioridade ética desta, tema também de diversos textos de Bolaño.52 Na continuação da entrevista de Rancière citada na primeira parte deste ensaio, após a caracterização de algumas tendências na filosofia contemporânea como profecias de desastres iminentes, o autor propõe, como alternativa, um exercício imaginativo de outra ordem: From my point of view, the true philosophical or critical task is to do away with that so-called critical trend, which has become nothing more than the discourse of a police order. It is to do away with the prophetic tone and with the plot of decadence that is only the reversal of the former trust in 52 É significativo o contraste com contos de Cortázar que também tematizam a fotografia. Neles – “Apocalipsis de Solentiname”, “Las babas del diablo” – a fotografia não é abandonada; ao contrário, é o meio para a denúncia, o suporte para a revelação gradual do horror, ideia que contém toda uma teoria da arte diferente da que traçamos aqui. (Julio Cortázar, “Apocalipsis de Solentiname” e “Las babas del diablo”. Cuentos completos, 2 (1969-1982). Madri: Alfaguara, 1994, p.155-160 e p.214-224.) Não se trata de erguer o abandono da arte como regra ou dever, mas de reconhecer que é um horizonte possível e pensável. Falta considerar o fato de que, se a fotografia é abandonada, o conto não o será. (Agradeço a Miriam Gárate a sugestão de comparar os contos de Bolaño e Cortázar, algo que apenas começo a fazer aqui.) 31 the sense of history and to focus on the existing forms of intellectual, artistic, and political invention. Hope is not the precondition of action. On the contrary, it is the product of the openings and expectations brought about by the dynamic of those inventions.53 Seria possível, e quem sabe até um passo em direção a uma tarefa inventiva como a que Rancière descreve, empreender leituras de textos de Agamben que também identificam heterogeneidade no presente, apesar das referências a uma destruição já realizada e finalizada; serviria também como demonstração da complexidade formal de alguns desses textos proféticos, que incorporam de diferentes maneiras a contradição e a possibilidade do novo. Esse exercício poderia apontar como no trecho do começo de Infância e história citado acima, por exemplo, o “nós” do início (“nós hoje sabemos que, para a destruição da experiência, uma catástrofe não é de modo algum necessária”) serve para distanciar o autor dos anos 1930 (o livro de Agamben é de 1978), quando Benjamin “havia diagnosticado com precisão esta ‘pobreza da experiência’”, funcionando portanto como delimitação cronológica. Unida a seu complemento – “a pacífica existência cotidiana em uma grande cidade é, para esse fim, perfeitamente suficiente”, essa existência tendo efeito equivalente ao da catástrofe (a guerra, para Benjamin) – a construção sugere uma circunscrição ainda maior, permitindo que seja formulada a pergunta sobre variedades de experiência dentro do mundo contemporâneo. Em outras palavras, se Agamben tem o seu “de la violencia no se puede escapar”, também tem o “al menos no 53 Rancière, “Aesthetics against Incarnation”, op.cit., p.188. 32 nosotros”: a mera qualificação dessa experiência como própria de cidades de determinado tamanho indica a possiblidade, mesmo que frágil, de uma situação diferente fora das metrópoles. Ou ainda, quando lemos, na continuação do texto de Agamben, que a vida cotidiana “não contém quase nada que seja ainda traduzível em experiência”, tanto o “quase” quanto o “ainda” (que indica, ao menos no plano da memória, acesso a uma experiência anterior) inserem certo jogo em formulações que apontavam para a totalização. Mais do que uma questão de evidência empírica, que viria a comprovar ou não essas possibilidades, chamo atenção aqui para a persistência material dentro do texto de fissuras de diversos tipos, que se abrem e se fecham com o encadeamento das frases. Assim, enquanto uma oração anuncia que “Todo discurso sobre a experiência deve partir atualmente da constatação de que ela não é mais algo que ainda nos seja dado fazer”54, não muito distante encontraremos referências a uma “humanidade que vem”55 e ao fato de que a incapacidade de transformar em experiência a vida cotidiana não impede que, “talvez”, “se esconda, no fundo desta recusa aparentemente disparatada, um grão de sabedoria no qual podemos adivinhar, em hibernação, o germe de uma experiência futura”.56 Há, então, a possibilidade de um esconderijo, e dentro 54 Agamben, Infância e história, op.cit., p.21. Ibidem, p.17. 56 Ibidem, p.23. 55 33 dele grãos, germes, em hibernação e à espera das condições necessárias para desabrochar. De Pasolini – de seus filmes, poemas e ensaios – também há como extrair imagens menos homogêneas do presente e do futuro, algo que a própria leitura de Didi-Huberman também já se esforçará por mostrar, citando conferência de 1975 em que o cineasta observa que, apesar da angústia e da visão apocalíptica, se “não houvesse também em mim uma parte de otimismo, ou seja, o pensamento de que é possível lutar contra tudo aquilo, eu simplesmente não estaria aqui, no meio de vocês, para falar”.57 Há aí, primeiro, o reconhecimento da presença de outros, interlocutores e destinatários diante dos quais se encontra aquele que fala, e nesse mesmo momento se identifica no ato de falar algo próximo da esperança, isto é, da expectativa de uma criação subversiva por meio do encontro com os ouvintes. Além de profecias, então, o que é possível ouvir na fala de Pasolini, como no conto de Bolaño, são promessas, sendo a primeira delas aquela que está presente já em toda fala. Na estrutura de “El Ojo Silva” essa promessa é pelo menos dupla; coexistem desde o início dois relatos – o de Silva ao narrador em Berlim, depois o do narrador a um destinatário indefinido. Este, que é o que começa com “Lo que son las cosas”, tem como objetivo principal o registro de uma fala anterior (a do Ojo), como se aquilo de que era necessário dar 57 Em Didi-Huberman, Sobrevivência dos vaga-lumes, op.cit., p.53. 34 testemunho era como, apesar de tudo, havia sobrevivido no Ojo o compromisso com um amigo, e, portanto, com um futuro. Pois mais do que “diálogo” o que há na fala de Silva é exposição, o que vai exigir do receptor uma decisão, versão atualizada da decisão alucinada que o fotógrafo tomou diante dos olhos suplicantes do menino indiano. Com o relato do Ojo, essa cena é transmitida ao escritor como um legado: agora é ele quem se encontra, na praça de Berlim, diante de um par de olhos em sofrimento. Os olhos de Silva, que até então vagavam inquietos pelas sombras da noite alemã, se insurgem e transbordam, tomados inteiramente por lágrimas. O que fazer quando o olho diante do qual se está, mais do que ver, mais do que me ver, chora, expandindo-se para fora de si? Como narrar o choro? Como recebê-lo? Nas lágrimas do Ojo há um apelo e uma demanda, um mandamento e uma súplica, de modo que o sequestro de que ele foi vítima se repete, com o testemunho do sofrimento agora despejado sobre o escritor, que se torna ele também testemunha. Apesar do aparente encerramento em si, mesmo no suspiro ou no grito já há busca de alteridade, dirá Lévinas, talvez já “a primeira prece”.58 Para Didi-Huberman, uma prece sempre pede outra prece: sobre Stephen Dedalus, escreverá que vê com seus olhos os olhos de sua própria mãe moribunda erguerem-se para ele, implorarem alguma coisa, uma genuflexão ou uma prece, algo, em todo caso, ao qual ele terá se recusado, como que petrificado no lugar.59 58 Lévinas, em Poirié, op.cit., p.96. Didi-Huberman, O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São Paulo: Editora 34, 1998, p.31. 59 35 Diante do olhar aterrorizado do outro, o que Silva fez foi primeiro tomar uma foto dos olhos do menino, para então ser tomado por eles, e o narrador subitamente se encontra no lugar do Ojo, precisando responder ao sofrimento do outro, como se agora se colocasse também para ele a necessidade da conversão em mãe. O escritor então evita os olhos de Silva, a quem escuta soluçar a seu lado no banco da praça alemã. Vê, através de uma janela, uma luz se acender, vê os faróis de um carro que passa, enquanto os olhos do Ojo continuam a se nublar por trás das lágrimas. Se sua primeira tarefa era escutar o Ojo, e escutá-lo até o fim, a seguinte é renovar a promessa contida em sua fala, essa prece peculiar, por meio de uma nova narração, aquilo que o conto representará. É pouco? Certamente, e aí as possibilidades de “transformação”, de “comunidade”, até de “política” são fragilíssimas. Mas não é nada: como se lê em outro conto de Bolaño, “parecían fiarlo todo al sexo, a la seducción, a gustar y ser gustados, lo que no era mucho, (…) pero al menos era algo”.60 Nesse espírito, seria mais preciso afirmar, a respeito daquilo que passou a ser conhecido como a “obra” de Bolaño e seu suposto sentido geral, que ao longo dela há conflitos recorrentes entre um princípio sombrio, frequentemente reconhecido e anunciado explicitamente no texto, muitas vezes já no início do relato, e aquilo que sobra dele – o que sobra nas 15 páginas de 60 Bolaño, “El provocador”, El secreto del mal, op.cit., p.174. 36 “El Ojo Silva”, por exemplo, nas 150 páginas de Amuleto ou nas 1100 páginas de 2666. Em cada caso a sobrevivência e a instabilidade se darão (ou não) de modo particular, mas o que não há como haver é uma força capaz de garantir que a narrativa será um horror sem sobras, mesmo quando é isso que é anunciado como lema.61 A possibilidade do transbordamento do sentido durante a narração é afinal o risco (e a potência) de toda parábola, e é a exposição desse funcionamento o significado mais importante da obra. Assim, se em textos como “El Ojo Silva” o triunfo da violência não está dado, a questão a ser analisada passa a ser a disposição comum entre leitores de Bolaño para aceitar o prognóstico inicial e confirmar a profecia, insistindo neles mesmo quando eles se desfazem dentro do próprio texto. Esse acaba sendo outro futuro monstruoso da narrativa: por que, afinal, se aceita com tamanha prontidão o diagnóstico que mais parece uma “metafísica da agressão” ou da violência?62 E assim nos encontramos de volta à pergunta inicial: quem, em que lugar, desde qual perspectiva, poderia ter a confiança necessária para afirmar, estendendo a sentença ao infinito, que da violência não se poderá jamais escapar? 61 Lema, princípio ou segredo: “Nadie presta atención a estos asesinatos, pero en ellos se esconde el secreto del mundo.” (Bolaño, 2666, op.cit., p.439). 62 A expressão “metafísica da agressão” aparece em texto de Jonathan Lear a respeito de Freud, em quem Lear enxerga o julgamento de que a agressão é parte da ordem fundamental do nosso universo, estando, portanto, fora do alcance da análise (Happiness, Death, and the Remainder of Life. Harvard U.P., 2000, p.153). Lear recomendará que essa metafísica seja abandonada: “We can accept the obvious – namely, that aggression is a fundamental problem for humans, both as individuals and socially – without committing the fallacy of assuming that therefore there must be a fundamental force which expresses it” (p.154). 37 Muito diferente disso, o inesperado gesto amoroso do conto é aquele que, como um vaga-lume na escuridão das piores expectativas, desenterra das profundezas da profecia violenta dois encontros: um, carregado de retidão, com o olhar de um menino apavorado; e outro, delicado e terno, com um amigo, na noite de uma praça alemã (e o lugar do acontecimento ganha relevância63). Como narrar cada uma dessas duas histórias é uma decisão associada à pergunta sobre como viver; essa, por sua vez, se aproxima de outra: como amar? Em Critchley, por exemplo, onde as duas perguntas são formuladas em inglês, a diferença é mínima, apenas uma letra separando “how to live?” de “how to love?”, viver e amar sendo então praticamente a mesma coisa.64 Há ainda uma última possibilidade a considerar, uma que atenua o tom afirmativo que predominou nas últimas páginas. A hipótese de leitura construída ao longo deste ensaio propôs que em “El Ojo Silva” não haveria propriamente uma metafísica da agressão, embora algumas leituras do conto se aproximem dessa conclusão e inclusive busquem definir toda a obra de Bolaño em termos semelhantes. Como parte desse esforço, foram realçados os movimentos na narrativa que escapam do domínio da violência e não tem a agressão como origem ou fim. Viu-se como, diante de uma conjuntura difícil, em um prostíbulo indiano, o Ojo Silva decide agir (ou é tomado pela 63 64 Ver Ginzburg, “El ojo silva, de Roberto Bolaño”, op.cit., p.110. Critchley, The Faith of the Faithless, op.cit., p.20. 38 necessidade de agir), o que o conduz a um ato ético hiperbólico. Após a descrição dessa guinada, e após a mudança no tom da narração, o relato que segue – isso é importante – não traz a revelação de motivos sórdidos escondidos por trás da decisão do fotógrafo. Também não veremos, no desenrolar da narrativa, a deformação progressiva do ato primeiro, com a retidão aos poucos se transformando em vileza. Contrariando aquilo que se anunciava desde o início, contrariando até um horizonte de expectativas que em certos ambientes talvez já tenha se tornado habitual (a “ordem policial” de que fala Rancière?), a força da violência como princípio organizador da existência será abalada através de um movimento no interior da narrativa que responde a outras potências. Continuo convencido de que essa leitura se sustenta, mas lhe acrescentaria agora um elemento complicador. A violência da qual não se pode escapar, a violência da qual não se pôde escapar, pode ter sido na verdade outra: aquela que foi exigida de Silva após o encontro com o menino, a violência que foi necessária para levar a cabo o resgate e a fuga. Nesse caso, o inescapável não teria sido sofrer mas praticar a violência. Efetivamente, diante do impasse no bordel, são tentadas primeiro formas mais amenas de pressão – o diálogo, o suborno, a ameaça; quando todas essas alternativas fracassam, a violência, 39 contra aquilo que Silva afirmara ser de seu feitio, se torna um dever: “Lo único cierto es que hubo violencia”.65 Exatamente qual foi a violência que houve no episódio não saberemos. Golpes, ferimentos, assassinato? A questão é crucial, mas fica sem resposta. Sabe-se, isso sim, do ódio de Silva à violência, o que é suficiente ao menos para instaurar a economia sacrificial (para alguém que não odiasse a violência, não haveria propriamente decisão a ser tomada; não haveria aporia, paradoxo, dilema ou impasse). Mas ao ocultar do leitor o modo e a extensão da violência praticada por Silva torna-se impossível fechar a conta (valeu a pena, afinal?), deixando a estrutura sacrificial em suspenso mesmo após o fim do conto. Interdita-se, assim, o conforto de uma avaliação que pudesse justificar definitivamente, de uma vez por todas, o preço que foi pago e a preferência pela violência menor, diante da ameaça de uma violência maior. Ainda que não seja exatamente uma metafísica da agressão o que se encontra no conto, há uma violência triste e trêmula que não foi possível evitar,66 e com isso regressamos enfim à ressalva presente na fórmula do início do conto: “de la violencia, de la verdadera violencia, no se puede escapar, al menos no nosotros, los nacidos en Latinoamérica en la década de los cincuenta, los que rondábamos los veinte años cuando murió Salvador Allende”. Agora com outros olhos, é possível olhar (ou 65 Bolaño, “El Ojo Silva”, op.cit., p.22. Embora não seja possível estabelecer se suficientemente triste, isto é, em que medida a violência não terá sido na verdade uma tentação: ao narrar a história, Silva “Recuerda con viveza la sensación de exaltación que creció en su espíritu, cada vez mayor, una alegría que se parecía peligrosamente a algo similar a la lucidez, pero que no era (no podía ser) lucidez” (p.22). 66 40 chorar) mais uma vez para aquilo que representou em algum momento o nome de Allende: a possibilidade de uma aproximação entre as palavras democracia e socialismo. Aí, diante da necessidade de uma resposta a um choro que não cessa, o conto termina. Y su amigo francés le dijo que sí, que por supuesto, que lo haría de inmediato, y también le dijo ¿qué es ese ruido?, ¿estás llorando?, y el Ojo dijo que sí, que no podía dejar de llorar, que no sabía qué le pasaba, que llevaba horas llorando. Y su amigo francés le dijo que se calmara. Y el Ojo se rió sin dejar de llorar y dijo que eso haría y colgó el teléfono. Y luego siguió llorando sin parar.67 67 Ibidem, p.25. 41