402 - Rede de Pesquisas em Favelas

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402 - Rede de Pesquisas em Favelas
Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade - SECAD
Ministério
da Educação
UFF Universidade Federal Fluminense
Ricardo Henriques
Caminhadas de universitários de origem popular
“(...) Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes e
ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços
sociais. Esses livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de
centenas de jovens, rapazes e moças, que contrariaram a forte estrutura
desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais pobres às
universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com
menor prestígio social.”
UFF
Caminhadas
de universitários de origem popular
Caminhadas
de universitários de origem popular
UFF
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Organização da Coleção:
Jorge Luiz Barbosa
Coordenação Técnica:
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Ministério da Educação
Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Programa Conexões de Saberes: diálogos entre a universidade e as comunidades populares
Caminhadas
de universitários de origem popular
Rio de Janeiro - 2006
Coleção
Presidente da República
Caminhadas
de universitários de origem popular
Luiz Inácio Lula da Silva
Ministério da Educação
Fernando Haddad
Ministro
José Henrique Paim Fernandes
Secretário Executivo
André Luiz de Figueiredo Lázaro
Secretário Executivo Adjunto
Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade - SECAD
Ricardo Henriques
Secretário
Departamento de Desenvolvimento e
Articulação Institucional
Francisco Potiguara Cavalcante Junior
Diretor
Programa Conexões de Saberes:
Diálogos entre a Universidade e
as Comunidades Populares
Jailson de Souza e Silva
Bolsistas Autores
Alexandre Vieira Diniz
Ana Paula Morais dos Santos
Aparício Arruda Viana
Ariela Couto da Silva
Cíntia Carla Penha Silva
Cláudia Amanda Gouvêa Dutra
Euna Márcia Borges Silva
Giselle Pinto
Josenir do Nascimento Andrade
Lisangela Fernandes de Aquino
Luciana Oliveira da Silva
Marcelo Costa da Silva
Neli dos Santos Conceição Gomes
Quesia da Costa Izidoro
Rita de Cássia Corrêa da Silva
Rodrigo Coutinho Andrade
Rodrigo Pimenta Souz
Simone da Cruz
Valma Barbosa de Souza
Vanessa Silva de Lima
Waleska Maria dos Santos
Fotografias Internas
Coordenação Nacional
André Brandão
Ana Ribeiro
Anderson Paulino da Silva
Coordenação na Universidade Federal Fluminense
Universidade Federal Fluminense
Cícero Mauro Fialho Rodrigues
Reitor
Antonio José dos Santos Peçanha
Vice-Reitor
Jorge Luiz Barbosa
Pró-Reitor de Extensão
Instituição Parceira:
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro
Jailson de Souza e Silva
Dalcio Marinho Gonçalves
Coordenação Editorial da Coleção
“Caminhadas de Universitários de Origem Popular”
Marcelo Monteiro
Prefácio
A sociedade brasileira tem como seu maior desafio a construção de mecanismos que
permitam, sem abrir mão da democracia, o enfrentamento da secular desigualdade social
e econômica que caracteriza o país. E, para isso, a educação é um elemento fundamental.
A possibilidade da educação contribuir de forma sistemática para esse processo implica uma
educação de qualidade para todos, portanto, uma educação que necessita ser efetivamente
democratizada, em todos os níveis de ensino, e orientada, de forma continuada, pela melhoria
de sua qualidade. O Ministério da Educação, no atual governo, persegue de forma intensa e
sistemática esses objetivos.
Conexões de Saberes é um dos programas do MEC que expressa de forma nítida a luta
contra a desigualdade, em particular no âmbito educacional. O Programa procura, por um
lado, estreitar os vínculos entre as instituições acadêmicas e as comunidades populares e,
por outro, melhorar as condições objetivas que contribuem para os estudantes universitários
de origem popular permanecerem e concluírem com êxito a graduação e pós-graduação nas
universidades públicas.
O programa, criado pelo MEC em dezembro de 2004, é desenvolvido a partir da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (SECAD-MEC) e representa
a evolução e expansão, para o cenário nacional, de uma iniciativa elaborada, na cidade do
Rio de Janeiro no ano de 2002, pela Organização da Sociedade Civil de Interesse Público
Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Na ocasião constitui-se uma Rede de Universitários de Espaços Populares com núcleos de formação e produção de conhecimento em várias
comunidades populares da cidade. O Programa Conexões de Saberes criou, inicialmente,
uma rede de estudantes universitários em cinco universidades federais, distribuídas pelo país:
UFRJ, UFF, UFPE, UFMG e UFPA. A partir de maio de 2005, ampliamos o programa para
mais nove universidades federais: UFAM; UFC; UFPB; UFBA; UFMS; UnB; UFES; UFPR
e UFRGS. Em 2006, o Ministério da Educação já assegurou, em todos os estados do país, 31
universidades federais integrantes do programa.
Essas Universidades, a partir do Conexões de Saberes, passam a ter, cada uma, ao menos
25 universitários que participam de um processo contínuo de qualificação como pesquisadores;
construindo diagnósticos em suas instituições sobre as condições pedagógicas dos alunos de
origem popular e desenvolvendo diagnósticos e ações sociais em comunidades populares.
Dessa forma, busca-se a formulação de ações voltadas para a melhoria das condições de
permanência dos alunos de origem popular na universidade pública e, também, aproximar os
setores populares da instituição, ampliando as possibilidades de encontro dos saberes destas
duas instâncias sociais.
Nesse sentido, o livro que tem nas mãos, caro(a) leitor(a), é um marco dos objetivos do
Programa: a coleção “Caminhadas” terá 14 livros publicados em 2006, reunindo as contribuições das universidades integrantes do Conexões de Saberes em 2005. Em 2007, teremos
17 novas obras, que reunirão os relatos dos estudantes das universidades que ingressaram
no Programa em 2006. Com essas publicações, busca-se conceder voz a esses estudantes
e ampliar sua visibilidade nas universidades públicas e em outros espaços sociais. Esses
livros trazem os relatos sobre as alegrias e lutas de centenas de jovens, rapazes e moças, que
contrariaram a forte estrutura desigual que ainda impede o pleno acesso dos estudantes mais
pobres às universidades de excelência do país ou só o permite para os cursos com menor
prestígio social.
Que este livro contribua para sensibilizar, fazer pensar e estimular a luta pela construção
de uma universidade pública efetivamente democrática, uma sociedade brasileira mais justa
e fraterna e uma humanidade a cada dia mais plena.
Ricardo Henriques
Secretário de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade
Ministério da Educação
Sumário
Apresentação ................................................................................................... 9
Introdução ..................................................................................................... 11
Parte 1 – Família
Capítulo 1 – Uma vida de ausências ............................................................
Capítulo 2 – Mãe-referência ........................................................................
Capítulo 3 – Menina “dondoquinha” ...........................................................
Capítulo 4 – Uma pequena guerreira ...........................................................
15
29
34
39
Parte 2 – Território
Capítulo 5 – Aruana: fé e luta!..................................................................... 49
Parte 3 – Escola
Capítulo 6 – Escola: uma parte da minha vida ............................................
Capítulo 7 – Neli ..........................................................................................
Capítulo 8 – Relatos... .................................................................................
Capítulo 9 – Conquista da Universidade Pública:
Uma história entre outras ........................................................
57
63
69
72
Parte 4 – Redes
Capítulo 10 – Nostra cultura est nostra vita................................................. 79
Capítulo 11 – Histórias das candaces .......................................................... 85
Parte 5 – Trabalho
Capítulo 12 – Sobre obstáculos e conquistas:
minha trajetória até a universidade pública .......................... 95
Capítulo 13 – A rua nunca sai do lugar ..................................................... 101
Capítulo 14 – No despertar de uma nova consciência ............................... 106
Capítulo 15 – Speeder, o cronômetro e os seus 30 mil caracteres ............. 111
Parte 6 – Vestibular
Capítulo 16 – Entre verdades e sofismas prefiro as batatas ....................... 123
Capítulo 17 – O confronto com a Hidra de 9 cabeças ............................... 127
Capítulo 18 – Relatos de uma moradora de
comunidade, hoje universitária ........................................... 134
Parte 7 – Universidade
Capítulo 19 – Foi (quase) sem querer..., mas querendo muito .................. 143
Capítulo 20 – Histórias Quesianas ............................................................ 149
Capítulo 21 – Nos caminhos da UFF ......................................................... 154
Apresentação
O livro que agora vem a público é o primeiro produto bibliográfico do Projeto
Conexões de Saberes, implantado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, através
da Pró-Reitoria de Extensão. Este projeto, por sua vez, está vinculado ao Programa Nacional de mesmo título, que conta com o apoio da Secretaria de Educação Continuada,
Alfabetização e Diversidade do MEC e com a parceria do Observatório de Favelas do
Rio de Janeiro.
Apresentamos aqui relatos de trajetórias vividas por um grupo de vencedores. Vinte
e um jovens marcados pela pobreza e pela desigualdade. Oriundos de famílias pouco
escolarizadas, formados em uma rede pública de ensino médio precária do ponto de vista
material e limitada no âmbito pedagógico. Moradores de territórios estigmatizados, onde
a desigualdade social se reproduz no cotidiano de tantas vidas.
Vinte e um jovens que, retirando das dificuldades sua força, chegaram às salas de
aula de uma universidade pública.
As vidas destas moças e destes rapazes apontam para a imensa dívida da sociedade
brasileira para com as camadas populares. Todos os indicadores sociais poderiam nos
levar à previsão de que este grupo seria arrastado pela inércia da “ordem das coisas” que
se impõe nas favelas e periferias onde cresceram.
Contrariando as estatísticas, elas e eles caminharam pela estrutura escolar.
Conseguiram vencer o ensino fundamental. Conseguiram ultrapassar o gargalo do ensino
médio. Finalmente galgaram um lugar na universidade pública enfrentando um modelo
de vestibular – vigente em quase todo o Brasil – que executa com brilhantismo o papel
de reproduzir a cada ano uma nova leva de desigualdades.
Neste livro, nossos(as) jovens olharam para seu passado recente e falaram, refletiram,
escreveram, riram e se emocionaram com ele. Cada texto que compõe este livro carrega
um amálgama de sentimentos, sentidos e experiências que culminam na certeza de que
seu autor fez o melhor possível e por isso chegou onde havia desejado.
O uso de um relato que tangencia a biografia pode nos induzir ao erro de tomar a
existência individual como um elemento isolado, fora da rede de relações que trançam o
inesgotável tecido da sociedade. Poderíamos então esquecer que não há divórcio possível
entre os indivíduos e a estrutura social. Isto pelo simples fato de que os indivíduos carregam as configurações materiais e culturais coletivas em suas mentes e em seus corpos,
mas ao mesmo tempo, através de suas práticas, atualizam a estrutura, a modificam e a
colocam em movimento.
Assim, o que desejamos salientar nesta apresentação não é uma pressuposta força
do indivíduo, tão cara aos princípios liberais. Ao contrário disto, o que desejamos
ressaltar é a solidariedade e o sentido de coletividade existente entre os mais pobres.
Os relatos aqui expostos mostram que cada vencedor esteve sempre ancorado em uma
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rede de coadjuvantes – família, amigos, movimentos sociais, trabalhadores voluntários,
organizações não-governamentais – que compuseram um indispensável pano de fundo
para seu sucesso na trajetória escolar.
Esperamos que estes relatos demonstrem a configuração destas quase intransponíveis
barreiras que os jovens de camadas populares enfrentam em suas trajetórias escolares.
Esperamos também que a alegria e a esperança contida no sucesso de cada um
destes jovens seja um fator de sensibilização dos demais segmentos sociais no sentido
da construção de uma ordem econômica mais justa e socialmente generosa.
Que o relato destes vinte e um jovens que tiveram a coragem de remexer em
suas lembranças e expor suas vidas auxilie a caminhada de muitos outros no rumo da
universidade.
Prof. Dr. Jorge Luiz Barbosa
Prof. Dr. André Augusto Brandão
Coordenação Conexões de Saberes - UFF
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Caminhadas de universitários de origem popular
Introdução
Caminhadas de um Memorial
Integrei-me ao Projeto Conexões de Saberes em meados de junho de 2005. Minha tarefa
seria trabalhar, junto aos bolsistas universitários, os textos do memorial para o livro: a história
de suas trajetórias rumo à universidade. Já de cara, recebi cerca de 18 textos escritos pelo grupo
contendo um esboço de suas histórias. Cada um tinha uma média de 10 páginas. Esses relatos
seguiam a orientação de contagem cronológica dos fatos a partir de tópicos como: origem
familiar, vida na escola, ingresso na universidade... Com os textos, veio também uma questão:
depois de ler o terceiro ou quarto relato, a imensa identidade existente nas trajetórias fazia os
memoriais parecerem repetidos. Em vários pontos, as histórias se assemelhavam. Estávamos
diante do risco de ter um material riquíssimo em termos de conteúdo, mas monótono enquanto
produto literário com que se pretende fazer comunicação ou conexão.
Essa primeira questão foi respondida da seguinte forma: pensar que todas as trajetórias
formam em verdade uma grande e complexa caminhada, que se inicia nos setores populares
da sociedade e segue rumo ao ingresso na academia. O conjunto das histórias desenhava a
trajetória de um ser coletivo, um amálgama da experiência do grupo na árdua trilha que leva
à formação no ensino superior. Com base nos textos iniciais, e respeitando o destaque natural
que cada bolsista deu a determinados aspectos da sua história, dividimos a caminhada coletiva
em várias etapas: influência dos pais, conciliação de trabalho e estudo, experiência do prévestibular, estratégias de permanência na universidade etc. Cada texto se concentraria numa
fase específica, a partir da escolha do universitário.
Chegou-se, então, a uma segunda tarefa na construção do memorial. Como já foi
colocado, o livro não é um souvenir acadêmico, muito pelo contrário, faz parte de um
projeto político de reestruturação das bases excludentes nas quais se constrói a universidade brasileira. É um projeto de comunicação de uma parcela da universidade formada
pelos estudantes de origem popular para o resto da sociedade. O pior que se poderia
fazer, nesse caso, é assumir o condicionamento acadêmico tão comum nas monografias,
dissertações e teses que é fazer texto para ninguém ler. Não! O livro e suas histórias
precisavam estar bem escritos, de leitura acessível e agradável, inseridos numa estratégia de comunicação. Foi iniciado assim, o segundo processo de trabalho: oficinas de
texto criativo que tiveram a duração de um mês, com um ou dois encontros por semana.
Como atividades, fazíamos a leitura de cronistas consagrados: Carlos Drummond de
Andrade, Rubem Braga, Raquel de Queirós, Fernando Sabino entre outros. Se tivéssemos
que copiar alguém, que fossem os melhores! Junto com os estudos literários, realizaramse oficinas de criação de textos a partir de estímulos musicais. Complementavam essas
atividades, dicas de construção textual.
Terminado esse ciclo de oficinas, os esboços iniciais das trajetórias foram devolvidos ao
grupo, acompanhados por sugestões e orientações para re-elaboração da história no formato
combinado. A fase seguinte era a que desembocava na conclusão do trabalho: acompanhar
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individualmente cada bolsista na elaboração do texto final, a partir de sua produção literária.
Em diálogo, negociávamos o desenvolvimento maior de alguns aspectos da história, a abreviação de alguns relatos e a supressão de outros. Também fazíamos revisão de pontuação,
coesão e coerência textual. Essa parte final, que só terminaria com o texto pronto, durou
cerca de 2 meses.
Por fim, os 21 textos ficaram prontos. Não sei se ficaram como o planejado, mas com
certeza, como tinham de ser. As histórias assumem um estilo de crônica infanto-juvenil;
estratégia pensada para permitir o acesso do conteúdo do livro a estudantes de segundo grau,
pré-vestibulandos, jovens de diferentes setores sociais etc. Estudantes que venham a se identificar com as histórias, ou descobrir nelas trajetórias outras de se chegar e estar na universidade.
Cada história mantém sua individualidade e independência. Mesmo aprofundando o relato
num recorte de sua caminhada, permite enxergar o desenho do todo da trajetória pessoal de
cada bolsista. O espírito do livro, no entanto, é relatar uma jornada coletiva de ingresso na
universidade ancorada na experiência de quem vem dos setores populares.
Um último e importante comentário: apesar do formato literário, não se deve esperar folhear o livro como quem lê assuntos de variedades. As narrativas e histórias são densas, plenas
de alegria, de dor, superação...; algumas delas, marcadas pelo ininterrupto confronto com as
estruturas de um mundo que tem como principal marca a desigualdade social: na escola, no
trabalho, na universidade. Enfim, o livro é permeado por um ethos marcial, guerreiro e traz a
história daqueles que, forçando a porta de frente, entraram e lançaram a pergunta: “Se a casa
também é minha, por que não me deram a chave?!” e dos que, depois de entrar, questionaram
consternados: “Se me é de herança estar aqui, por que nenhum quarto tem meu nome?!”
São estas questões centrais na utopia e prática dos que acreditam na possibilidade do
Homem Novo, da Sociedade Nova e, por que não dizer, da Universidade Nova.
André Esteves
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Caminhadas de universitários de origem popular
Parte 1
FAMÍLIA
Capítulos
Uma vida de ausências
Mãe-referência
Uma menina “dondoquinha”
Uma pequena guerreira
Capítulo I
Uma vida de ausências
Por muito tempo, o meu questionamento existencial foi: “Mãe é aquela que pari? Mãe é
a que cria? Quem teve várias famílias pode dizer que teve mãe?” O conceito de maternidade
é uma questão muito pessoal e individual. Por isso, como falar de influência da mãe se não
tive esta experiência? Como sentir falta de sua presença, se sua ausência foi o traço mais
marcante na minha vida? Escrevo minha trajetória para levar aos leitores deste livro minha
experiência - que na verdade é a realidade de vários jovens. E para mostrar que, apesar de
todas dificuldades, consegui vencer e sobreviver neste mundo cão.
Meu nome é M. que significa solitária, recatada, uma característica que sempre incorporei
na minha história de vida, principalmente na infância, onde recorri à solidão e ao recato dos
meus sentimentos para sobreviver à amargura do meu viver. Apesar de ter nascido em 1974,
só vim ser feliz em 1992. Todos os meus irmãos serão representados por números, que estão
dispostos segundo a ordem de nascimento. Eu sou a nº 5.
Deste modo, começo a descrever histórias que me foram contadas quando ainda era
criança. Minhas irmãs falavam que nossa avó era índia de uma tribo muito pequena, quase
extinta na época, lá para as bandas da Bahia. Minha avó fugiu para a cidade de Itabuna com
meu avô - um negro descendente de escravo. Foi onde deram origem à minha família materna. Minha mãe, mulher de gênio muito difícil, se tornou retirante, uma espécie de cigana,
que vivia de cidade em cidade. Sua vida era muito pobre e complicada. Teve cinco filhos na
Bahia: quatro meninas e um menino, cada um de homem diferente. Minha irmã mais velha
contava que ficava trancada dentro de casa com meus outros irmãos por dias. Como era uma
casa de pau-a-pique, os vizinhos furavam as paredes para jogar bolinhos de feijão com farinha.
Contava também que, às vezes, eles fugiam para uma barreira onde existia uma cachoeira.
Lá havia várias macumbas, com doces, farofas e frutas que meus irmãos comiam. Minha mãe
dizia que ficava tantos dias fora de casa porque trabalhava em feiras, mas minha irmã n° 1
tem quase certeza de que ela se prostituía.
Um dia, o pai do meu irmão apareceu e o levou embora. Quando minha mãe chegou em
casa e soube o que tinha acontecido, deu uma surra em todas as meninas. Os vizinhos quiseram linchá-la, mas ela fugiu do bairro. Neste novo lugar, conheceu meu pai, que era casado
e a sustentava. Até um dia em que minha mãe foi na casa dele e fez um tremendo escândalo.
Recordo-me do meu pai: de estatura média, cerca de 1,60m, cabelos louro-cinza, olhos verde
claros, descendente de italiano. Era estudado, tinha o 2º grau completo e trabalhava como
conferente da Transportadora Mercúrio, com sede em São Paulo, para onde pediu transferência.
Então, não demorou muito, ele se mudou com minha mãe para São Paulo.
Daí em diante eu me recordo muito vagamente das coisas de casa e da minha família,
que ficou constituída assim: cinco meninas, sendo eu a única filha do meu pai. Além de quatro
meninos: um do meu pai com minha mãe, dois meninos filhos do meu pai com a ex-esposa e
um outro menino mais velho, filho de outro relacionamento de minha mãe. A casa era pequena
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para tanta gente. Éramos onze pessoas. Eu devia ter uns cinco anos. Fomos todos morar em
Santo Amaro, um município de São Paulo, no Bairro de Piraporinha. Era uma casa pequena
com dois quartos, sala, cozinha e banheiro. Tinha também um quintal grande, onde existia
uma escada que dava acesso a uma rua muito movimentada. Segundo duas das minhas irmãs,
por ordem do meu pai, elas chegaram até a ir à escola de uma senhora explicadora que dava
aula em sua própria casa. Dessa época, me recordo de coisas tristes como:
Minha mãe traindo meu pai dentro de casa, enquanto ele viajava a trabalho;
De minha mãe me esconder dentro do guarda-roupa com o nariz quebrado no momento
em que meu pai chegava para o almoço. Quebrou meu nariz só porque eu tinha falado para
a faxineira - que me acusava de ter comido um de seus bifes - que a minha mãe é que tinha
feito isso;
De minha mãe chegar armada e com a cabeça quebrada por ter brigado na rua;
Da minha irmã nº 1 chorar sempre e contar para nós que meu pai ficava mexendo com
ela de madrugada;
De minha mãe maltratar escondida meus irmãos por parte de pai, colocando um deles
para comer uma bacia de comida até vomitar. Tudo isso por ele ter dito para o pai que não
comia direito;
Da saída do meu pai de casa levando os filhos e quase tudo o que era dele.
Minha mãe era mesmo como uma cigana. Não criava vínculos de amizade nos lugares,
principalmente por ser uma mulher difícil de lidar. Geralmente, a mãe é a coluna de sustentação
da família. Mas neste caso foi e infelizmente continua sendo a pessoa que desune, desestrutura.
Chegamos a mudar para o Bairro de Vergueiro. Segundo a minha irmã nº 3 (que sempre se
recorda das coisas com mais detalhes do que eu), moramos quase sete anos em Santo Amaro,
antes de nos mudarmos para o bairro do Brooklin, na Rua Nova York. Assim, minha família
ficou constituída da seguinte forma: cinco meninas e dois meninos. Meu irmão nº 7 era do
meu pai. Nem minha mãe sabe quem era o pai do meu irmão nº 6.
Mudamos para um terreno muito grande beirando um rio de água poluída, onde
minha mãe construiu um barraco com um único cômodo feito de uma madeira bem grande
e vermelha. Este barraco foi construído em um único dia. Não tinha banheiro, luz, água...
Só tínhamos as roupas, pois tudo na outra casa era do meu pai. A situação era indescritível,
tipo aquelas reportagens nordestinas que mostram barracos de apenas um cômodo cheio de
crianças desnutridas, descabeladas, sem comida e sem a presença da mãe. Fomos expulsos
do terreno pela prefeitura e jogados na rua. No entanto, penalizado com a situação da gente,
meu pai voltou para casa.
A vida da minha mãe sempre foi inconseqüente. Eu não sabia disso até começar a
entender as coisas da vida. Era o ano de 1981. Meu pai queria levar meu irmão e eu, mas ela
nunca iria permitir que isso acontecesse. Retiradas do terreno pela Prefeitura, nossas vidas
tomaram outro rumo: o das veredas do crime.
Meu pai comprou no mesmo bairro, um quarto em um grande terreno, que tinha uma
grande barreira, numa vila popular. A casa era daquele tipo comum de se ver que era vendida
nas ruas dos bairros populares: terreno cheio de mato, casebre velho no fundo, paredes mofadas.
Nas proximidades tinha uma escola que se chamava Ennivoss (ou algo assim!), onde minhas
irmãs nº1, 2, 3 e 4 estudaram no ano de 1981. Para minha mãe, o estudo nunca foi necessário.
Ela era analfabeta e dizia não sentir necessidade dos estudos. Quando fomos morar neste novo
lugar, ela pegou a escritura da casa e jogou todas as roupas do meu pai na rua. Também me
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Caminhadas de universitários de origem popular
colocou dentro de um saco de pano marrom em cima do forro da casa e disse que se eu me
mexesse iria cair de lá de cima, enquanto todos os meus outros irmãos estavam trancados dentro
de casa. Tenho lembranças desse dia: de que chovia muito, do meu pai dizendo que não queria
mais saber dela, do deboche da minha mãe jogando as roupas do meu pai na rua cheia de poças
d’água, expulsando-o da vila aos gritos que ressoavam por todos os becos.
As coisas da minha infância me deixam tão triste que há muito tempo não quis me
recordar. O relacionamento da minha família era baseado no medo, na tortura, no espancamento e, principalmente, na impunidade da minha mãe. Não lembro de palavras de amor.
Até as fotos deveriam ficar do jeito que ela queria.
O bairro Brooklin era de casas lindas, mas nós morávamos em uma comunidade pobre.
Era uma vila que tinha três saídas. E ainda existia uma outra, localizada nos fundos do nosso
quintal. Fomos incumbidos de construir nossa própria casa. Durante o dia, cavávamos o barranco, que era cheio de formigas. Durante a madrugada, éramos forçados a sair pelas ruas
passando nas lojas de materiais de construção para roubarmos - pois ela queria construir um
bar, que chamava de tendinha. Roubamos tanto material de construção, que ela construiu uma
mansão com três quartos, uma sala, dois banheiros, uma cozinha grande, um grande salão,
além de uma grande varanda com um jardim e bar. Removemos toda terra que tinha no barranco, aterrando os fundos do quintal. Dessa forma, conseguiu-se espaço para construir toda
a casa. Tudo isso em menos de um ano. Nossas mãos eram iguais as de um pedreiro, toda
esfolada e calejada. Eu lembro que não tinha unha nos dedos indicadores.
O gasto para manter toda a casa era muito grande e mesmo assim minha mãe não trabalhava.
Então, nas madrugadas, recolhíamos jornais e garrafas para vender durante o dia. Também pedíamos esmola. A minha irmã nº 1, não agüentando aquele tipo de vida, fugiu de casa várias vezes,
sempre trabalhando como doméstica nas proximidades. Por falar em trabalho, nunca lembro de
minha mãe ter trabalhado em sua vida. Sempre foi sustentada por homens que se relacionavam
com ela, ou então, colocava os filhos para trabalhar e um carrasco para tomar conta de nós: minha
irmã nº 2. Para piorar a situação, apanhávamos da minha mãe e da minha irmã carrasco.
O envolvimento com o crime foi uma questão de tempo. Minha mãe envolveu-se com
um grande traficante e montou um cassino que funcionava à noite. Lá rolava de tudo: drogas,
trocas de mercadorias roubadas... Afinal, não posso esquecer de que toda a mobília de casa fora
troca de roubo. Como este novo modo de vida deu certo, ela passou a procurar minha irmã nº 1
e infelizmente a encontrou. Assim, minha irmã passou a ser garçonete do cassino. Ela devia ter
uns 15 anos nesta época e além de trabalhar no cassino, também era obrigada por minha mãe a ir
buscar a droga na favela. Eu ia junto por ser pequena. Então, o traficante colocava as drogas na
minha mochila. Ainda lembro da cor da mochila. Era azul, cheia de Olívia Palito e ficava com
um cheiro horrível de maconha. Eu chorava porque minhas costas doíam, pois eles colocavam
vários tijolos da droga dentro da minha mochila. Eu e minha irmã não podíamos pegar ônibus
para não sermos pegas. Andávamos vários quilômetros para chegar em casa.
Daí em diante, minha mãe se envolveu mais e mais com o crime. Minha irmã nº 2 se
envolveu com outro traficante. Ela deveria ter uns treze anos na época. Nossa vida era um
inferno! A polícia sempre invadia a casa com várias armas, mas nunca encontrava nada, pois
as minhas irmãs 3 e 4 ficavam responsáveis de sair pela outra passagem: um buraco no muro.
E a impunidade se fazia presente na vida de minha mãe. Durante este período, não lembro
de minhas irmãs e irmãos freqüentarem a escola. Elas dizem que freqüentaram a tal escola
Ennivoss. Como já foi dito, para minha mãe, estudo não era importante.
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As pessoas sempre falam que quem cresce vendo o errado começa a ver o erro como
natural. Mas eu nunca vi, nem achei as coisas da minha família certas. Sempre pensei em
fugir para bem longe de todo mundo. Na verdade, não me sentia nem parte daquela família.
Muitas vezes pensei em sumir, sumir mesmo. Tipo esses desaparecidos de quem nunca mais
se tem notícia na vida. Contudo, até aquele momento, não tinha coragem suficiente.
Em uma madrugada de janeiro de 1985, chegou um caminhão baú e começou a colocar
toda a mobília para dentro do caminhão. Minha mãe disse que não podíamos amanhecer na
nossa casa, pois o traficante iria matá-la pela manhã. Ela vendeu a casa sem falar com os
filhos, armou tudo sem nos comunicar. Passei vários dias sem entender o que aconteceu. Só
depois entendi que ela dedara o traficante aos PMs. Minha mãe sempre falava que preferiria
ser “X-9” a ser pega, podendo ainda escapar viva.
Minha primeira infância foi a parte mais traumática da minha vida. Não consigo lembrar
de coisas boas como: aniversário, parque de diversão, brincadeiras, comidas e tudo que uma
criança normal costuma ter quando pequena. Às vezes, lembro de um vestido azul que meu
pai me deu e de ficar chorando com um ódio dele por não me levar embora, como fez com
os outros filhos.
Na mudança, viemos todos dentro da parte de traz do caminhão. Lembro que a porta
não estava totalmente fechada e que não consegui dormir. Estava com muita vontade de
vomitar, mas não o fiz com medo de apanhar. Só quando chegamos é que ficamos sabendo
que nossa nova casa era na Cidade do Rio de Janeiro - mais precisamente no centro do Rio,
numa pensão que ficava perto do Hospital dos Servidores. Minha mãe tinha comprado a
casa de um homossexual. A parte de cima era um grande salão com o chão de tábua corrida e com umas janelas de porta de madeira, que tinham uns detalhes tipo decalque, e com
uma pequena sacada. Tinha também um banheiro que era dividido com o tal homossexual.
Ele morava em um quarto que ficava na parte de traz. Embaixo, havia um restaurante que
ficava perto de uma praça. No início deu certo manter o restaurante, mas minha mãe atrasava
muito o almoço e começou a perder a freguesia.
Começamos a vender doces pelas noites do Rio. Andávamos desde a Praça Mauá até
a Cinelândia, passando por todos os restaurantes das redondezas. Mas mesmo assim, não
adiantou muita coisa, porque a pensão foi leiloada pela Caixa por estar com todos os seus
impostos atrasados. A ordem de despejo dava dez dias para sairmos de lá. Como sempre,
minha mãe se envolveu com um jovem de uns dezenove anos do tráfico do morro da
Providência. Ela o sustentava em tudo. Isso tudo aconteceu em questão de meses.
Durante a madrugada, o homossexual roubou todas as coisas de valor da pensão e da
casa, pois ele tinha a chave. Minha mãe apelou para o amante, que matou o homossexual.
No entanto, não trouxe todas as coisas porque a maior parte estava quebrada. Ficando novamente na miséria, com o resto do dinheiro que sobrou da venda da casa de São Paulo, ela
comprou vários pontos de barracas de doces na Central do Brasil, no Terminal Rodoviário
Coronel Fontenelle.
Mudamos para Nova Brasília, no Condomínio Vila Verde - que hoje já não existe mais.
Era uma casa bonita, toda branca, mas era alugada. Lá, eu me recordo de sermos matriculados
numa escolinha de fundo de quintal com um professor maluco chamado Marcos, que dava aula
de química para as crianças do CA. Mas quase nunca íamos para a escola, porque ficávamos
a noite toda vendendo doces e a aula era na parte da manhã. Esta situação me causava uma
sensação de impotência, uma inveja das outras crianças que podiam ir à escola, que tinham
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Caminhadas de universitários de origem popular
cadernos cheios de dever de casa com letra colorida. Este sentimento se refletia em mim por
meio de um silêncio quase mudo, porque os mudos ainda emitem algum som, e eu não passava de mero complemento da cadeira dentro da sala de aula.
A ausência da minha mãe era uma coisa impressionante. Vendo agora, percebo que
não passava de fuga da realidade. Um total descaso com a família. As pessoas na rua sempre
supunham que minhas irmãs mais velhas eram as mães.
O ditado popular diz: miséria pouca é brinquedo. Em uma tarde que estávamos
comprando doces para vender, minha irmã nº 2 passou mal no ônibus. Quando chegamos
ao hospital de Bonsucesso, ela estava dando a luz a um bebê do traficante de São Paulo.
Ela tinha uns quinze anos. Ninguém sabia que estava grávida. Quando chegamos em casa
com aquele bebê, uma menina linda, branca e gordinha, minha mãe teve pena de expulsar
minha irmã de casa. Não por piedade, mas porque ela era a braço direito dela.
A minha irmã nº 1 neste tempo, tinha fugido de casa novamente. Trabalhava numa loja
de roupas em Copacabana, na Rua Nossa Senhora de Copacabana, onde conheceu um alemão
que a levou para morar com ele e, depois, para a Alemanha. Ela nos levou algumas vezes
para visitarmos seu apartamento em Copacabana. Foi quando minha mãe conheceu o bairro
que se tornou um dos lugares em que mais ganhamos dinheiro em nossas vidas. Pedíamos
dinheiro e vendíamos dropes e cigarros Malboro e Camel. Ganhávamos em dólares. Contudo,
minha mãe sempre esbanjava muito. Dizia que encontrara a fonte que sempre procurou e esta
nunca secaria. Nunca ficávamos com o dinheiro, porque era para o sustento dos amantes.
Infelizmente, posso afirmar que ela gastava todo o dinheiro com drogas: para ela, os amantes e seus amigos. Eu sentia uma tristeza mortal nesta época e muita raiva da minha mãe,
porque mesmo as crianças que vendiam doces à noite, iam à escola e não trabalhavam nos
dias de chuva e de pouco movimento. No inverno, só nós estávamos nas ruas. Nunca entendi
o porquê de tanta exploração. Se ousássemos perguntar, levávamos tapas na cara de tirar
sangue. Não tínhamos amigos, não falávamos com os vizinhos. Ficávamos por vários dias
trancados dentro de casa, enquanto que ela sumia durante todo o dia. Todos tinham medo da
gente e nos tratavam à distância.
Novamente nos mudamos. Desta vez, para Pilares, no Morro do Urubu. Ficamos lá
mais ou menos uns seis meses, de dezembro até a Páscoa. Mas ela se envolveu novamente
com o crime, com facções rivais ao tráfico de drogas da favela Nova Brasília e o do Morro
do Urubu. Tivemos que sair fugidos de lá.
Nunca freqüentamos escolas durante um ano letivo completo até ano de 1987, quando
mudamos para Madureira. Freqüentamos a Escola José Carlos da Fonseca Carmela Dutra,
na Avenida Leopoldina de Oliveira, ao lado do Campo Cajueiro. Não me recordo dos nomes dos professores, mas gostei muito daquela escola. Lá fiz alguns amigos. Com muita
alegria, me lembro que eu tinha uma mochila azul, cadernos, estojo de madeira com uma
porção de lápis, uniforme com calça azul marinho e blusa branca, encardida por ser lavada
por mim mesma e, ainda, um kichute preto engraxado para ficar sempre com cara de novo.
Recordo também que antes de voltar para casa, fazíamos todo dever de casa na sala de aula
– principalmente, as continhas e os problemas de matemática. Naquela época, eu adorava
matemática.Eu e meu irmão nº7 sempre saíamos mais cedo para a casa de três coleguinhas
que minha mãe não conhecia. Tenho certeza de que foi por isso que tivemos estes amigos.
Na casa deles, víamos desenhos, almoçávamos e, depois, corríamos para casa. Dessa forma,
minha mãe não desconfiava de nada. Ela nunca foi a nenhuma reunião de pais da escola.
Universidade Federal Fluminense
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Nem no dia das mães ela foi! Todo o material e uniformes que tivemos naquele tempo era
distribuído pela própria escola. Minha mãe não gastava um centavo. Nem os livros foram
comprados, tudo foi dado.
Todas as minhas descobertas nunca eram compartilhadas com a minha família. Nada
para eles tinha importância, nada tinha a graça da descoberta. A cada dia que passava, eu
deixava de gostar mais e mais da minha família. Daí em diante, passei a ficar mais só.
Quando saíamos para trabalhar, fugia da minha irmã e passei a ter amigos que a minha
família não conhecia. Tinha medo que eles quisessem tirar proveito deles, pedir dinheiro ou
fazer chantagem. Dois desses amigos eram um casal de americanos. Eles eram negros e pude
perceber que queriam me adotar. Sempre me compravam todos os meus doces. Eu ficava
com eles o tempo todo. Passeávamos no Shopping, cinema, restaurantes, fazia tudo que uma
criança queria e gostava. A dona me dava banho e trocava minha roupa, me dava carinho e
eu tinha até roupas lá na casa deles. O casal estava hospedado no Copacabana Palace Hotel.
O dia mais terrível da minha vida foi quando o casal viajou de volta para os EUA. Fiquei dois
dias com eles, não fui nem em casa. Não quis nem saber de nada, disse toda a verdade para
eles. No entanto, me disseram que para me levar, eu tinha que contar tudo para a polícia, o
que eu me neguei a fazer. Então, o casal disse que não poderia me levar sem documentação
judicial. Eu era menor e, na época, era muito comum levar crianças brasileiras para fora do
país para tráfico de órgãos. Fiquei muito triste, mas eles me deram um dia de despedida. Fomos
às praias da Barra e comemos em um restaurante beirando o mar, que até hoje posso sentir
o gosto. Depois, foram embora e deixaram comigo seu endereço. Eu não quis levar nada do
que tinham comprado para mim, porque eu sabia que traria muita confusão.
Quando minha mãe me encontrou na rua, me levou para casa e perguntou onde eu havia
ficado aqueles dois dias. Eu não disse nada, fiquei calada, mesmo levando tapas no rosto.
Quando ela viu que eu estava queimada de praia, tirou toda minha roupa e me olhou pelas
partes íntimas para ver se eu tinha tido relações sexuais com alguém. Depois chorou e disse
que eu nunca mais tentasse fugir dela. Naquela semana eu não fui trabalhar. Ela tinha medo
que eu voltasse a fugir.
A vida para mim tinha se tornado um sofrimento. Até porque nos mudamos para um
lugar muito perigoso. O tal do Morro do Urubu. Sempre vi a morte de perto, mas lá sentia
sua presença constante, espreitando as ruelas daquele lugar. Imagine só: para chegar em
casa, eu tinha que passar por um vale de terra vermelha, cheio de urubus, que corriam atrás
de todos os que passavam por ali. Lá era um lugar de desova de cadáveres, onde por várias
vezes passávamos e víamos os corpos, na sua maioria, de homens jovens. Era um morro,
com vielas, barracos de madeira, sem água e o percurso para casa era de dois quilômetros de
distância da pista principal, com ruas escuras de barrancos e um grande vale de mato dos dois
lados, onde ficavam os corpos. Nem gosto de lembrar que depois de trabalhar a noite toda,
tínhamos que descer até a pista para pegar água. Usávamos um cabo com duas latas de água
para encher três galões de dezoito litros de água. Depois íamos para a escola e só dormíamos
do meio dia até umas sete horas da noite. Essa era a minha rotina diária.
Até hoje, eu não consigo compreender como minha mãe conseguia gastar todo o
dinheiro com tanta rapidez. Não guardava nada do dinheiro do nosso trabalho, não possuía conta bancária. E por não tomar conta dos pontos de vendas, perdeu todas as barracas
da Central. Tudo o que tínhamos era o que ganhávamos - desde roupas à comida. Nunca
comprávamos nada. Nada mesmo! A casa era uma bagunça, roupas por todos os lugares.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Toda obrigação da casa era feita por nós. Toda segunda-feira era dia de faxina, já que o
movimento nas ruas nesse dia era fraco. Era esse nosso dia de descanso. Eu morria de medo
daquele lugar, sabia que minha mãe não prestava, tinha medo por ela e pela vida dos meus
irmãos. Os bandidos daquele lugar não tinham compaixão de ninguém. Toda semana, eles
mesmos se matavam. Lembro que um dia, fizeram uma chacina na família de um ex-comparsa. Mataram até um bebê! Daí em diante, minha mãe planejava sair de lá. Foi um dos
únicos lugares que ela não se envolveu com o tráfico. Até porque tinha medo dos bandidos
dali. Ficamos neste lugar até junho de 1987.
A nossa vida se restringia a um constante recomeço, que nunca tinha fim. E isso me
dava uma angústia, que aos poucos foi se transformando em agressividade. Era um tipo de
angústia que me consumia por dentro. Pensei várias vezes em acabar com minha vida. Pedia
a Deus para me levar. Dali em diante, fui me tornando uma criança seca por dentro. Não tinha
apego por ninguém, nunca queria demonstrar nenhum tipo de dor ou prazer. Nem quando
apanhava era capaz de chorar.
O sangue cigano da minha mãe nos levou a conhecer a Baixada Fluminense. O primeiro
lugar que moramos no ano de 1987 foi em São Bernardo, beirando um rio de águas poluídas, na
Rua Caramuru. Era um barraco de madeira com telhas esburacadas. Quando chovia, molhava a
casa toda. E se a chuva fosse forte, dava enchente e alagava a casa. Tínhamos que sair antes
que a água chegasse até a metade da parede.
Relatando estes fatos, penso que minha mãe tinha e ainda tem um espírito destrutivo.
Tudo o que possuía, ela mesma destruía. Acabava com as coisas em questão de dias.
Quando construía, reformava ou comprava um imóvel, era para depois vender a um preço
abaixo do que foi gasto. Sempre notei esse gosto pelas coisas ruins. Sempre desafiei minha
mãe, dizendo tudo o que eu achava dela. Não queria mais compactuar com suas vontades.
Por muito tempo, minha mãe me vigiava, porque até 1988, era a única filha que restara
para fugir de casa. Todas tinham saído na adolescência - geralmente por causa de homens
que prometiam mundos e fundos. E acabavam sofrendo por ter escolhido a pessoa errada.
Eu nuca me deixei levar por sentimentalismo barato. Queria ir embora de casa para nunca
mais voltar, não queria ter a mesma sina das minhas irmãs. Mas elas nunca desafiaram
minha mãe - e de certa forma, encontravam a mesma sorte. Até então, só minha irmã
que foi para Alemanha quebrou este ciclo de miséria, de dependência de homens para
sobreviver e de sempre retornar para casa em uma situação pior do que saiu.
Certa vez minha mãe chegou a me jogar uma TV, porque eu disse que a odiava e preferia
ter morrido ao nascer dela. Falei que estava cansada de ser explorada e que iria denunciá-la
para a polícia para ela apodrecer atrás das grades. Por dentro, eu morria de medo e nunca faria
isso. Deste dia em diante, minha mãe começou a me insultar. Chamavam-me de sapatão, de
mulher macho, querendo denegrir minha imagem perante as pessoas.
No Município de Belford Roxo, morei do ano 1988 a 1992. Minha mãe mora por lá
até os dias de hoje. Tenho certeza de que a experiência de Madureira a fez pensar duas vezes
antes de voltar para a vida do crime, mas infelizmente, não a levou a ser mais responsável,
apenas mudou das drogas para as noitadas. Em menos de um ano moramos em seis localidades diferentes. Quando mudamos para Santa Amélia, no final do ano de 1988, eu fiquei lá
até o ano de 1992.
Nesses quatro anos, estudamos nas seguintes escolas: Pingo de Gente, em São Bernardo,
onde eu e meu irmão menor estudamos o CA. Foi nessa escola que eu também estudei as
Universidade Federal Fluminense
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primeiras séries do ensino fundamental. Pela primeira vez, minha mãe gastou dinheiro com
uma escola particular. Colégio Estadual União em São Bernardo, que agora é conhecida como
Escola Pública Maria Braga, onde minha irmã nº3 estudou as 2ª, 3ª e 4ª séries. Neste tempo,
ela tinha sido a única que tinha concluído a quarta série do ensino fundamental.
Uma escola particular próxima à Escola Manuel Gomes, na Rua Joaquim da Costa,
onde eu estudei a 2ª série. Não recordo os nomes dos professores porque moramos em vários
lugares diferentes e os nomes se confundem na minha memória.
A minha saída de casa se deu a partir do momento em que eu passei a recusar a ir trabalhar na madrugada. Ao encontrar minha irmã nº 2 na rua, já tarde da noite, pedi que me
deixasse morar em sua casa. Percebendo o meu sofrimento, concordou. Até mesmo porque
também precisava de alguém para tomar conta de suas filhas. Morei com ela de 1991 ao
início de 1992. Falei claramente para minha mãe que não queria ter a mesma vida que ela
proporcionou a todos os seus filhos. E caso não concordasse com a mudança, sumiria definitivamente. Acho que ela só aceitou, porque eu fui a única a avisar, antes de sair de casa - mas
também por temer o companheiro de minha irmã. Fui morar, então, com minha irmã nº 2.
E aqui é preciso dizer: minha ex-irmã carrasco mudou sua personalidade totalmente depois
que teve filhos. Talvez, tenha percebido a tempo que se continuasse como minha mãe, suas
filhas passariam pelo mesmo sofrimento.
No Bairro de Santa Amélia, morei na Rua Natuba e estudei na Escola Santa Amélia.
Foi onde conclui a 3ª série do ensino fundamental. O companheiro da minha irmã assumiu sua
filha – que era de outro homem. Este foi meu primeiro trabalho: tomava conta das meninas e
da casa. Quando minha mãe soube onde ela morava, fez da vida dela um inferno até seu companheiro a deixar. Mesmo assim, minha irmã nº 2 não voltou a morar com minha mãe. Trabalhava vendendo flores pelo centro da cidade e Zona Sul do Rio de Janeiro e ficava fora todas as
madrugadas. Graças à minha irmã, tive as minhas primeiras oportunidades de estudar na parte
da tarde, de conhecer os professores Maurício de Matemática e Luciana de Português, de estar
realmente me dedicando ao estudo - coisa que, até aquele ano de 1991, nunca tinha feito.
Neste mesmo ano, conheci uma pessoa muito importante, que me fazia refletir a respeito do que eu queria ser no futuro. Era a senhora Néia, dona da Escola Santos Netos, onde
minha sobrinha maior estudava. Eu passei a varrer o pátio da escola e ela me deixava assistir
algumas aulas de historia e geografia, além de me pagar pelo trabalho. O convívio religioso
foi me apresentado pela Dona Néia. Passei a freqüentar a Igreja Católica Nossa Senhora
de Fátima, freqüentando o grupo jovem – através do qual fiz minha primeira comunhão.
Não posso esquecer que minha irmã fez uma festa e convidou todos os meus amigos. Foi
uma das únicas festas de que me recordo ter tido.
Ao completar 17 anos, passei a fazer parte do grupo vocacional para vida religiosa.
Padre Miguel era o responsável pela Paróquia. Instruía as vocacionadas a respeito da
vida religiosa e também da vida secular. Mostrava-me que minha mãe tinha problemas
psicológicos sérios e que eu não deveria guardar rancor dentro do meu coração para não
atrapalhar minha vida pessoal. A Igreja de Nossa Senhora de Fátima promoveu, no final
do ano de 1991, o mês vocacional quando os jovens conheciam vários mosteiros e conventos. Naquela época vi uma chance única à minha volta. E a ela me agarrei com unhas e
dentes. Uma oportunidade de mudar de vida saindo daquele mundo de derrotas e misérias.
Assim, ingressei no Convento Nossa Senhora de Fátima, localizado no Bairro Pita, do Município de São Gonçalo.
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Caminhadas de universitários de origem popular
A minha felicidade neste ano foi imensa. Ingressei no convento no mês de junho.
Graças a Deus, me afastei da presença da minha mãe e passei a residir no convento.
Fui para casa das postulantes onde as meninas recém chegadas ficam nos primeiros sete
meses de convívio de vida religiosa. Todas as minhas melhores recordações são do tempo
em que eu queria ser freira. Mesmo sabendo que foi uma forma de fugir daquela minha
realidade de vida. Em todo momento, eu era instruída acerca de tudo: da vida sexual e do
comportamento pessoal. Oportunidades começaram a surgir durante minha estada lá. Estudei
no Colégio Cônego Goulart no Bairro Pita, em frente ao Tulipão. Conclui as 4ª, 5ª e 6ª séries
do ensino fundamental. Durante estes três anos, passei pelas seguintes ordens: aspirante 1º
ano, postulante 2º ano e noviça 3º ano. O aprendizado me foi de grande importância. Em
momento algum, me foi forçada a permanência ou a profissão da ordem.
Falo agora um pouco sobre minha estada na congregação: no início, a aspirante à vida
religiosa tem uma vida secular e não tem o convívio direto com as religiosas. No entanto,
existe uma irmã superiora que fica responsável por todas as meninas. O contato era indireto
e se dava nos seguintes períodos: durante as orações em comunidade (são três: às 6 horas
- vespertina, às 12 horas - Ave Maria e às 18 horas - matutina). A Irmã Maria Consolata era
responsável por tudo das jovens. Era como se fosse a mãe: cuidava do aniversário à consulta
médica. Todas as aspirantes dão continuidade nos estudos porque ao chegar ao período de
noviciado, as jovens param os estudos durante um ano para estudar tudo sobre a vida religiosa
e da congregação. Lá tínhamos varias aulas internas de postura religiosa, educação sexual
direcionada à castidade, de etiqueta e sobre como auxiliar em uma missa.
A casa das aspirantes e postulantes ficava na sede principal da congregação. É onde
funciona uma creche chamada de Pastorinhos de Fátima. As aspirantes dividiam os dias nas
seguintes tarefas: orações, obrigações de casa e estudo secular. Além do revezamento na ajuda,
durante a noite, com as crianças que ficavam durante a semana na creche. Foi tão prazerosa
para mim esta fase! Conheci tantas meninas, de todos os estados brasileiros. Particularmente
gostava mais das mineiras, eu as achava mais carinhosas. Foram amigas inesquecíveis:
Andréa, Maria do Carmo e Maria Aparecida. Meu amadurecimento pessoal, o enriquecimento
cultural e científico ajudou-me a superar toda a minha infância traumática. Antes, eu não
conseguia me relacionar emocionalmente com as pessoas. Meu trauma principal era medo e
nojo dos homens. Por isso, eu achei que tinha vocação para a vida religiosa. Mas lá, tudo isto
foi tratado, superado e passei a não ter medo de amar, de expor meus sentimentos, passando
a ser bem comunicativa e transparente com as pessoas.
Fiquei três anos na sede principal, sete meses de aspirante e um ano de postulante e
noviça. Para cada período, era feita uma formatura e uma prova de superação. A minha foi a
de convidar minha família para a formatura de Noviça, onde eu deveria perdoar minha mãe
por tudo o que ela me fez, dizendo isso pessoalmente para ela. Ela não gostou muito, mas
eu pude ver que meu coração não estava mais amargurado, não acelerava na sua presença.
Ao me dirigir a ela, não sentia mais nenhum tipo de medo ou angústia de estar na sua presença.
Só um sentimento de afeto e respeito pelo que representava para mim.
Dessa forma, dei continuidade à minha vida e passei a guardar a lembrança daquela mãe
que me abraçou e beijou, desejando-me felicidades no meu novo caminho. Passei a orar por
ela, acreditando em sua mudança, desejando isso do fundo da alma. Com o tempo, percebi
que minhas preces foram em vão. Com a morte da irmã nº 2, minha mãe passou a explorar
as netas. Peguei as meninas e levei para o convento por cerca de sete meses. Ao chegar ao
convento, uma das crianças estava constantemente doente. Durante idas e vindas ao médico,
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descobriu-se que ela era soro positivo. No meio do tratamento, minha mãe pediu a guarda das
meninas e a juíza expediu um mandato de busca das crianças. Que tristeza! Eu não pude fazer
nada, pois ainda não era freira. Como não tinha uma profissão e nem uma casa, a guarda me
foi negada. Ainda assim, consegui com que uma Assistente Social fizesse visitas esporádicas
à casa da minha mãe, trocando o benefício de R$ 180 (cento e oitenta reais) da menina por
mantimentos, com a obrigação de dar continuidade ao seu tratamento médico.
Toda a minha história de vida foi marcada por seguidas injustiças. Em conseqüência
disso, entrei em um quadro de depressão profunda no ano de 1995. Foi quando desisti de
dar continuidade à vida religiosa. Sentia-me desestimulada com a própria vida. Tentando me
animar, a Madre Superiora e Fundadora do convento, Irmã Lúcia, me deu a oportunidade de
conhecer outras sedes da congregação antes de ingressar no noviciado. Fui transferida para
o Estado do Espírito Santo, em Guarapari, onde pude apreciar as belezas das praias e dos
mosteiros. Fiquei encantada com o trabalho das freiras no asilo da congregação, onde fiquei
hospedada por sete meses. Depois fui ao Estado de Sergipe, na Cidade de Propiá. As freiras
residiam dentro do seminário. Fiquei ali por um ano. Gostei muito da cidade, que tem um
povo hospitaleiro, festivo e fervoroso nos dogmas da Igreja Católica. Tive a oportunidade de
conhecer também Pernambuco de passagem.
Terminando o tempo de experiência, no ano de 1997, fui convidada a fazer o Noviciado
na Itália, fazendo parte de uma das primeiras turmas a se formarem fora do país. No entanto,
me desculpei com a Madre e disse que não queria ser mais freira e que o certo seria que eu
fosse embora naquela mesma semana. Mas as freiras tinham consciência da minha realidade.
Por isso, o convento me acolheu. As próprias irmãs buscavam um trabalho para mim. Assim,
no mês de abril de 1998, eu fui conhecer o meu novo trabalho.
Escolheram uma casa de uma pessoa conhecida. Lá trabalhei como doméstica uns sete
meses, de março a outubro de 1998. A casa se localizava no bairro do Ingá. Apesar de as coisas
estarem caminhando bem, meu quadro de depressão continuava a me abater. Eu estudava na
parte da manhã e já tinha certeza do que queria ser. Via nos estudos as possibilidades de ter
um destino diferente, de poder escolher minha própria trajetória, de escrever minha própria
história. Isto era bem claro na minha mente. Os professores do Instituto Dom Bosco, onde
estudava, enfocavam sempre que a instrução traz novas oportunidades e horizontes. E que a
sabedoria é um bem único, que não pode ser roubado. O Instituto se localizava na sede atrás
do Plaza Shopping. Lá, funcionava o supletivo, onde conclui a 7ª série. A senhora para quem
trabalhava tinha três filhos: duas meninas e um menino, que também estudavam no período
da manhã. Dessa forma, eu dava conta de todas as tarefas durante a tarde.
Continuei a ir aos finais de semana para o convento, voltando para o trabalho nas segundas pela manhã. Meu quadro de desânimo aumentava a cada dia. Sentia-me só no mundo e já
não tinha nem um tipo de perspectiva de retornar para casa. As freiras com grande sabedoria
encontraram o endereço da minha irmã que morava na Alemanha. Contaram a ela a minha
história. Então, minha irmã nº 1 e seu marido fizeram contato e decidiram me levar para
morar na Europa. Compraram as passagens de ida e volta – já que eu não poderia embarcar
só com a ida. Quando eu chegasse lá, pediria o visto provisório. Tranquei os estudos no ano
de 1998 para poder viajar.
Nunca escondi nada da senhora para quem trabalhava. Inclusive, ela me auxiliou a
escolher as malas de viagem, alertando-me a respeito do tráfico de estrangeiras para a máfia
da prostituição, acompanhando-me ao aeroporto e ainda ofereceu o emprego na volta, caso
não desse certo minha estadia por lá.
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Caminhadas de universitários de origem popular
A minha ansiedade de rever minha irmã foi tão grande que passei mal durante a viagem
– mas também porque nunca tinha viajado de avião. Foi um vôo de dezessete horas de São
Paulo a Frankfurt/Main. Minha cabeça pesava tanto! Sentia muita dor de ouvido e um enjôo
muito forte. Ainda assim, não conseguia parar de imaginar como era a família da minha
irmã. Sentia uma mistura de medo com saudade. Ao chegar na Alemanha em Frankfurt, fui
ao guichê e apresentei meu passaporte, mas o atendente pedia outros documentos. Como eu
não falava alemão, veio um funcionário falando italiano. O nome da minha irmã foi chamado pelo alto-falante. Aconteceu um pequeno mal-entendido: minha aparência, na opinião
dos funcionários da imigração, não condizia com a idade dos documentos e do passaporte.
Por fim, minha irmã assinou o termo de compromisso e eu pude sair do aeroporto.
Eu não conseguia parar de chorar e nem de abraçar minha irmã. Ela estava grávida de
sete meses e acompanhada dos filhos e do marido. Naquele momento, senti uma felicidade
tão grande que, até hoje, quando lembro, meu coração dispara. É verdade que eu fiquei com
medo de parar os estudos, de sair do país sem saber falar o idioma alemão. Mas apesar disso,
me apeguei ao sentimento que há muito tinha esquecido: do amor e o do laço familiar. Nunca
me arrependi de ter viajado e de conhecer toda a família da minha irmã. Foi uma experiência
inesquecível.
A casa da minha irmã fica no sul da Alemanha, em Teningen. É uma cidade a
duas horas de Frankfurt. Ao chegar lá, fomos a um restaurante típico da cidade, onde
eu comi makkaroni – macarrão de batata com azeite – com carré de porco mal passado.
Eu só comi o macarrão. Tudo era tão lindo, igual a filme de Hollywood. A maioria das
casas tinha a mesma forma. Estava muito frio e tinha neve por toda parte. Os floquinhos
caiam sobre meu rosto, fazendo meu nariz congelar. Fique muito impressionada, pois
era diferente de tudo o que já tinha visto na vida. As pessoas me olhavam tanto que me
envergonhavam. Minha irmã falava que eu estava chamando a atenção por ser estrangeira,
diferente e bonita. Quando cheguei a casa dela, tinha uma pequena recepção para mim,
com as cunhadas, sogro e sogra da minha irmã. Tomamos chá com torradas e biscoitos.
Fui apresentada a toda família. A felicidade de todos nós era tão grande que ficamos
a noite toda acordados conversando - minha irmã traduzia tudo, é claro! A família da
minha irmã gosta tanto dela que se entristeceu ao saber sobre problemas da minha mãe.
Eles sabiam que minha irmã nº 1 tinha alimentado esperanças de mudanças na vida da
minha mãe, coisa que não aconteceu.
Nos primeiros dias, eu tive que dormir embaixo do aquecedor por não suportar o frio.
Fiquei no quarto do meu sobrinho, que na época tinha cinco anos. Ele sempre queria dormir
comigo, mas de madrugada ia procurar os pais. Com o uso de roupas pesadas, manifestei um
tipo de alergia a tecidos de lã – é que lá, no inverno, usa-se uma meia calça de lã embaixo
de tudo que se veste. Meus dentes doíam por causa do frio. Tive que fazer um tratamento de
sensibilidade nos dentes. Mesmo assim, ao sair nas ruas, eu comia a neve que estava sobre
os muros. Era uma sensação tão gostosa!
A rotina de vida da minha irmã era a de ser dona de casa. Ela ficava responsável das
tarefas de mulher, como: tomar conta da casa, levar as crianças na escola, fazer cursos e
atividades de dona de casa. E não tinha nem um tipo de problema com isso, mesmo sabendo
que a sociedade mostrava-se preconceituosa em relação às mulheres da América Latina.
O pensamento era o seguinte: as estrangeiras, por não terem estudos, procuravam casar-se
com os europeus para terem uma vida melhor, já que as européias defendem a emancipação
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feminina e o casamento como um prazer tardio. Pude perceber que o preconceito principal
era em relação ao grau de instrução dos estrangeiros. Sempre era interrogada a respeito dos
meus planos para o futuro e qual faculdade eu iria escolher.
Minha irmã se impressionou ao saber que eu não queria casar com um europeu - e muito
menos deixar o meu país e meus estudos. Ela incorporou para si, a visão de que o Brasil, por
ser um país do terceiro mundo, não dava opção de vida a sua população de baixa renda. Tentei
mostrar que era difícil, mas não impossível. E que fui à Alemanha para revê-la e que gostei
muito, mas meu objetivo principal era entrar na universidade. Ela sabia que era difícil. Pensava
até ser impossível, mas compreendeu minha posição. Em relação ao homem europeu, sempre
tentei impor certo respeito em todos os lugares que freqüentava, mas eram comuns os admiradores, na sua maioria, homens bem mais velhos. Eu tinha um tipo de nojo deles, não gostava
nem que me tocassem. Na vizinhança, havia um jovem, que era muito bonito. Eu fingia não
saber de sua intenção para comigo. Inclusive, quando minha irmã foi ter o bebê, me advertiu a
respeito de que se ele estava interessado, viria a mim. Por ela ter sofrido abuso quando criança,
pediu-me que, se acontecesse alguma coisa em sua ausência, lhe contasse. Nunca foi me faltado
o respeito e sempre fui bem tratada por toda a família. Conheci muitas brasileiras, na sua grande
maioria, donas de casa. Somente duas trabalhavam fora e tinham dinheiro para pagar uma babá
– que lá, custa muito caro. Observei também que trabalhar em loja de roupas é coisa de jovens
estudantes e que, dos dezenove para os vinte anos, se ganha um apartamento ou um carro em
comemoração à chegada da maioridade. As crianças desde os três anos freqüentam escola e têm
aulas de tantas coisas: música, canto, teatro. Ficam cerca de sete horas fora de casa.
As minhas férias na Alemanha foi um período muito festivo. Duraram de dezembro a março,
me permitindo acompanhar todas as festas típicas. Fiz visitas às cidades tradicionais, vi o carnaval
alemão - que é um desfile de rua, tipo sete de setembro, só que com blocos de mascarados e de
trajes típicos das cidades. Carnaval à fantasia, só nos clubes fechados. Todos os finais de semana
saíamos para conhecer um lugar novo. Só não fui para os países de fronteira vizinha e para Berlim. Esquiei com carrinho de trenó e congelei os dedos. Só descobri quando coloquei os pés na
água quente. Nunca tive a oportunidade de me divertir tanto e, ao voltar ao país, em 1999, não
tinha mais sintomas da depressão. Acho que por ter compreendido ser a felicidade um estado de
espírito, um sentimento individual e que família é aquela que nos acolhe com todo amor e respeito.
Pude concluir que, apesar de não ter uma família carnal, tive várias que me acolheram.
Quando retornei ao Brasil, trouxe dinheiro que minha irmã me deu. Ela queria que
eu tivesse oportunidade e tempo de encontrar outro trabalho. Dessa forma, distribui meu
currículo em várias lojas. No entanto, cheguei ao Brasil em pleno mês de março, que é um
período de rescisão de trabalho temporário e não de admissão. Foi me oferecido, então,
um outro emprego em uma casa que não tinha criança. Os patrões ficavam o dia todo fora,
eu só os via nos finais de semana. Foi a oportunidade para dar continuidade aos meus
estudos no mesmo Instituto Dom Bosco. Já no mês de maio, estudava na parte da manhã.
Ao retornar à escola, fiz novas amizades. Uma delas, até hoje faz parte da minha vida.
Essa amiga me chamou para estudar à noite. Foi lá que conheci meu esposo, com quem
casei no ano de 2002.
Depois de um tempo, mudei de emprego. Eu tinha o objetivo de comprar uma casa,
de poder me manter sem necessitar da ajuda do convento e da minha irmã. Queria ser
mais bem remunerada para alcançar meus sonhos, de entrar em um vestibular, de pagar
um professor particular de língua portuguesa. Nessa época, meus erros de ortografia
26
Caminhadas de universitários de origem popular
eram muitos. Também queria ter oportunidade de ter aulas de Espanhol. Corri atrás e fui
trabalhar com uma senhora em Icaraí, perto do Campo São Bento, que me pagava dois
salários mínimos. Lá trabalhei de maio de 1999 até entrar na universidade, o que aconteceu em outubro de 2002. Essa dona tinha três filhos, todos crescidos: dois meninos e
uma menina que, na época, tinha síndrome do pânico. Esta família contribuiu muito para
minha entrada na universidade. Meu patrão, sempre que possível, tirava minhas dúvidas
nas matérias de física, matemática e química. Sabendo do meu histórico familiar, me
levavam de férias com eles. Tornaram-se uma família para mim. Até hoje tenho contatos
com as três casas em que já trabalhei. Mas a família que mais contribuiu para minha
entrada na universidade foi essa última.
Um pouco da minha trajetória de estudos do ano de 1999 a 2002. No Instituto Dom
Bosco, estudava com bolsa liberada pelo professor Salomão Nasser, fundador da instituição,
do ano de 1999 a 2000. Minha opção de profissão estava entre os cursos de Serviço Social
e de Educação Física. A primeira por ser uma paixão de criança, misturada com questões
religiosas e sociais, nas quais sempre depositei mais esforços. A segunda por ser uma paixão
da juventude: eu sempre gostei de fazer atividade física e tinha uma adoração pela rotina de
atividades dos professores de academias, principalmente, depois que aprendi dança do ventre
com a professora Domitila, que era mais nova do que eu.
A minha maratona diária não era nada fácil. Acordava às sete horas, ia para academia,
voltava para casa e começava a trabalhar das oito da manhã às cinco da tarde. Sempre
estudando à noite. Nos finais de semana, tinha duas horas de aula de português com a
professora Priscila, no Fonseca. De 2000 a 2001, eu estudava em dois pré-vestibulares
comunitários. Um era em Charitas, com o qual eu tinha um grande gasto com passagens.
O outro ficava em Santa Rosa, que tinha a vantagem de poder ir a pé. Pagava os simulados
do Curso Nit, um pré-vestibular do Bay Market e do Projeção de Santa Rosa, no qual
eu tinha uma bolsa. Toda minha perspectiva de melhor emprego e ascensão financeira
foi depositada em uma graduação acadêmica - até porque toda sociedade aposta que ao
entrar na universidade, o futuro estará garantido. Minha concepção de vida acadêmica
e profissional não poderia ser diferente. Quase todo o meu salário era gasto com meus
estudos. Tentei vestibular para três Universidades: UFRJ, UERJ e UFF. Dei preferência
à UFF. Foi justamente a única em que pedi isenção de taxa, conseguindo a gratuidade
total na inscrição para o vestibular.
Concluindo minha história de vida: passei na reclassificação da UFF, em junho de 2002.
Fiquei muito feliz. Na verdade, depositei na universidade todas as minhas esperanças, meus
sonhos de um futuro próspero e de constituir uma família diferente da minha. A noção que
eu tinha de faculdade era que ela seria a solução dos meus problemas, que ao ingressar ali
teria um emprego garantido ao terminar os estudos. No início, tive muitas dificuldades em
acompanhar a grade curricular. Sabendo que vitória sem luta não tem o sabor da conquista,
me joguei de cabeça nessa empreitada acadêmica. Meu marido teve participação especial.
Foi ele quem me deu a maior força para que eu pudesse me manter dentro da faculdade e
me dedicar exclusivamente aos estudos.
Hoje, acho até engraçado a minha ilusão, da inocência de dar à universidade um
poder tão grande de transformar o meu futuro. Até sei que hoje tenho mais chances de um
futuro próspero, mas isto não significa que será no aqui e agora. Percebo que a maioria
dos universitários está na mesma posição que eu. Depositei na universidade, o poder de
Universidade Federal Fluminense
27
transformar minha vida, como num passe de mágica, como ganhar na loteria. Não nego a
grande importância da academia e sua contribuição na aquisição dos meus conhecimentos
e mesmo de me propiciar grandes oportunidades. Um exemplo foi poder participar de uma
bolsa de extensão no Programa Conexões de Saberes, ter a oportunidade de escrever minha
história de vida e publicá-la. Torço para que ao lê-la, outros jovens percebam que por mais
que a vida seja difícil, vale a pena correr atrás, dar a volta por cima. Meus sonhos ainda
não se concretizaram. No entanto, já me casei, tenho minha casa e sei que as escolhas que
faço hoje são degraus nas minhas conquistas e aproximação dos meus ideais no amanhã.
Tenho plena certeza de que, se continuasse com minha família, não teria nenhuma destas
oportunidades que hoje me são oferecidas. Ao olhar para trás, fico triste em constatar que
minhas irmãs e irmãos não conseguiram quebrar o ciclo da miséria e suas conseqüências.
Euna Márcia Borges Silva
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Caminhadas de universitários de origem popular
Capítulo 2
Mãe-referência
Meu pai foi assassinado com tiros na cabeça, no ouvido e no pescoço. Eu estava
com dez anos e tinha dois irmãos: um com treze anos, outro com dezoito, além de minha
mãe com quarenta anos. Nesta época, eu estava na 3ª série e foi quando em pleno terceiro
bimestre tirei minha primeira nota vermelha. Não tinha cabeça para estudar. Não queria
voltar a morar lá no mesmo bairro onde ele foi assassinado, em Nova Iguaçu. Pensava que
as pessoas que o mataram iriam matar o resto da minha família. Por quinze dias ficamos
na casa do meu tio e, só depois, voltamos para nossa casa. Não saía sozinha e fiquei traumatizada por longos anos.
Por que começar o texto com uma história trágica? Para demonstrar a importância da
minha mãe em minha vida. Neste período, presenciei a mudança radical de uma mulher.
A pessoa que antes tinha um papel coadjuvante na cena familiar, assume de forma repentina
o papel principal e minha mãe se torna a cabeça da casa. São raras as mulheres que possuem
tal coragem, de em pouco tempo retornar para o local de moradia após uma tragédia. Mas
como ela disse: “Meus filhos, nós não devemos nada a ninguém. Não tenham medo, seu
pai morreu por ser muito brigão. Nada irá nos acontecer!”.
Nesse período eu não queria mais estudar. Foi preciso minha mãe chegar perto de
mim e dizer: “Seu pai jamais se alegraria em ver um filho fora da escola”. Somente assim,
conscientizei-me que deveria ser alguém. Desde a primeira série, só tirava notas oito, nove
e dez. Após esta conversa, nunca mais admiti tirar menos que sete. Retornei para a escola
e recuperei a nota baixa, que acabou não entrando em meu histórico escolar.
Minha mãe ficou sozinha com seus três filhos e se viu diante de uma dura realidade: criar e dar educação para nós três. Passou a ser pai e mãe ao mesmo tempo, o que
ela sempre soube fazer muito bem. Apesar de nova, não quis mais casar nem namorar.
Viveu e vive até hoje para nós. Penso, às vezes, que isso foi reflexo de acontecimentos de
sua infância. Filha de paraibanos, foi surpreendida pela morte de seu pai quando tinha doze
anos. Numa história que se repetiria no futuro, sua mãe também ficou com três crianças
pequenas e não quis saber de casar novamente. Minha avó tem hoje oitenta e nove anos.
Nessa época, minha mãe era a filha do meio. Ela saiu da Paraíba com 27 anos, em direção
ao Rio de Janeiro. Como todo migrante nordestino, veio em busca de uma vida melhor e
aqui conheceu meu pai. Em pouco tempo se casaram. Meus pais nasceram na Paraíba, meus
irmãos e eu, no Rio de Janeiro.
Retomando o assunto da minha vida escolar, não é exagero dizer que minha mãe sempre
esteve presente. Ela nunca precisou chamar a minha atenção para estudar, sempre fui uma
aluna dedicada. Não gostava de tirar notas baixas. Só para ilustrar isso, cito aqui um caso que
ocorreu quando estava na 5ª série. Meu irmão Lauro foi ver sua nota na escola primeiro que
eu e logo que chegou em casa me disse: “Larissa, você ficou de recuperação em português,
ficou com nota quatro!!”. No que ele me disse isso, retruquei com minha mãe: “Se eu tiver
Universidade Federal Fluminense
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mesmo de recuperação, não vou fazer a prova!”. E eu não faria mesmo a tal recuperação.
Não admitiria isso! Preferia ficar reprovada direto a fazer recuperação. Após o desabafo, chorei,
chorei muito. Aí minha mãe disse: “Minha filha, você nem foi lá e já diz isso! Seu irmão sabe
como você é. Quem sabe falou isso para ver sua reação. Vai lá olhar sua nota!”.
Passada a choradeira, fui à escola ver minha nota. Antes, comentei com algumas colegas
minha apreensão. Uma delas me disse: “Você, de recuperação?! É impossível isso! Se você tiver
ficado em recuperação, eu fui reprovada direto” e fomos juntas ver uma a nota da outra. Tinha passado direto com nove e meio em português. Não preciso dizer que teve briga em casa nesse dia.
Relato estes fatos porque nem mesmo no ambiente acadêmico, eu admito ficar em recuperação (que na UFF, onde estudo, atualmente, se chama verificação suplementar, vulgo
VS). Eu estudo muito e até hoje eu sempre digo para minhas amigas: “Se algum dia ficar de
VS, prefiro ficar reprovada. Se eu tive um semestre inteiro para aprender e não consegui, não
vai ser em uma semana que aprenderei.” Desde mais nova penso assim e me considero um
pouco dramática. Minha mãe sempre comenta que não devo ser assim. Se algum dia for para
VS, acha que devo fazer a prova: “Há momentos em nossas vidas, que nem sempre estamos
cem por cento com nossa mente boa para os estudos”, diz ela.
Minha mãe é meu espelho. É uma pessoa humilde, amiga, companheira. Tem poder de
decisão, é decidida, sabe fazer escolhas. Fala tudo que pensa sobre as pessoas cara a cara e
não tem medo de encarar o novo. É uma mulher branca, “fofinha”, com cabelos escuros, e eu
a chamo assim de “fofinha” por ser um pouco gordinha Sua aparência é de muito nova para a
idade que tem. Dessa forma, eu meio que já me descrevi. Possuo muito das qualidades da minha
mãe. Quando vejo algo errado, logo falo. Critico e gosto de ser criticada, pois só assim, aprendo
com os outros. Mas neste ponto, acho que saí uma versão mais zangada do que minha mãe.
Por ser sincera demais, acabo magoando as pessoas. Porém, quem me conhece e rompe este
muro de primeira impressão, descobre como eu sou amiga, companheira, sensível. Já ouvi de
amigas: “Você é muito autoritária e mandona!”. E estas não são qualidades da minha mãe.
Desde pequena, minha mãe dizia que eu deveria me dedicar aos estudos, que seria através
deles que poderíamos ser alguém na vida. Na rotina de casa, eu não fazia nada. Somente meus
dois irmãos. O Lauro arrumava a casa e o Wando arrumava a cozinha. Já minha tarefa, era o
estudo. Minha mãe dizia que meu trabalho era esse. Eu só ajudava em casa quando eu queria
e não tinha nada para estudar. Já meus irmãos, tinham que ajudar em casa e estudar.
Completei meu ensino fundamental no mesmo lugar. Depois, nos mudamos para um
lugar mais próximo do colégio do meu irmão Lauro. Ele chegava meia noite em casa e
minha mãe tinha medo. Quando nos mudamos para a periferia de Nova Iguaçu, moramos
em uma quitinete por um bom tempo, até que nossa casa ficasse pronta no mesmo bairro.
Minha mãe teve de procurar uma escola para mim. Meu irmão já estudava em Edson Passos à noite. Nesta época, o Wando já tinha se casado e não morava mais conosco.
Foi muito difícil conseguir vaga na escola próxima à estrada de Madureira. Depois de muitas
lutas, minha mãe conseguiu uma vaga no turno da noite em formação geral. Era o que eu
queria. Meu sonho era ser marinheira e pretendia fazer formação geral para ingressar em
uma universidade pública. Com dezesseis anos, não ia para a escola sozinha. Sempre ia com
um primo e com um amigo que adorava matar aula. Por conta disso e por ter medo de sair
sozinha, principalmente à noite, pedi a minha mãe para conseguir uma vaga no ano seguinte
no turno da manhã. Em 1997, fui transferida de turno e entrei na turma de 2° ano de formação
de professores, já que não tinha formação geral pela manhã.
30
Caminhadas de universitários de origem popular
Após três meses de aula, recebi o seguinte comunicado: eu e outros colegas não poderíamos freqüentar o curso, uma vez que não fizemos o primeiro ano do normal, nem os estágios
e as disciplinas básicas do curso. Fiquei apavorada pensando que ficaria sem estudar por um
ano. No entanto, a diretoria encontrou uma solução. Deveríamos cumprir durante o 2° ano
dois estágios, fazer trabalhos, seminários, provas das disciplinas básicas do primeiro ano. Foi
muito turbulento este ano. Ficava de manhã até de tarde na escola, muitas vezes sem almoçar.
À noite, chegava em casa, tomava banho jantava e ia dormir.
No terceiro ano, quando só cumpria as disciplinas, foi mais tranqüilo. Dentre os professores que deixaram lembranças dessa época, destaco a de Didática. Ficava impressionada
com seu compromisso com a turma. Ela morava em Magé. Saía de casa às quatro da manhã
para chegar às sete. Nunca faltava.
Eu estava no Curso Normal por falta de opção. Não me encontrava na turma. Nada do
que fazia – principalmente em Artes – saía perfeito como o das outras amigas. Eu dizia que
não levava jeito para ser alfabetizadora, que aquilo não era minha vocação, que meu desejo
era ser marinheira, andar toda de branco.
Minha mãe fez questão de pagar minha formatura em 1998 – assim como fez questão
de pagar a do Lauro quando ele se formou em 1997. Somente o Wando não concluiu o
ensino médio até hoje. Passada essa fase, entrei num pré-vestibular, convencida de que
faria Ciências Biológicas ou História, disciplinas nas quais mais me destaquei ao longo da
vida escolar. Consegui isenção em todas as universidades. No entanto, quase na véspera
de fazer as provas, fiquei muito doente. Por conta disso, não pude fazer os exames vestibulares. Quase morri de tuberculose e anemia, imaginava que fosse falecer. Minha mãe
ficou desesperada. Junto com a Márcia, não deixou que os médicos me internassem.
Tive todos os cuidados em casa e passei a ter uma alimentação reforçada. Não saía no
sereno nem saía na chuva. Um ano após esses cuidados, fiquei curada e retornei para o prévestibular. Ao mesmo tempo, por incentivo de uma amiga, comecei a trabalhar em projetos
de alfabetização. Tive que ir de casa em casa procurando alunos para estudar e depois de
conseguir trinta alunos, pedi à uma igreja católica para me ceder uma sala. E foi assim que
comecei alfabetizando adultos – e, mais tarde, jovens, através de um projeto desenvolvido
pelo Serviço Social da Indústria (SESI).
Ainda me recordo do primeiro dia de aula como alfabetizadora. Fiquei muito nervosa
e quase não conseguia falar. Eu estava um poço de insegurança. Com o tempo, a insegurança passou. Novamente, minha guerreira assumiu sua posição de combate ao meu lado.
Minha mãe resolveu voltar a estudar para me ajudar. Ela tinha parado seus estudos na quarta
série. A maior dificuldade dela era em português, já em matemática, minha mãe é melhor do
que eu. Ela consegue fazer operações mentais matemáticas rápidas, coisa que eu não consigo.
Foi nesta experiência como alfabetizadora em projetos que descobri minha verdadeira vocação.
E os alunos tiveram um papel importante nisso. Eu tinha uma aluna chamada Luzia, uma
senhora de sessenta e seis anos. Era uma aluna muito quieta e tímida. Mas com o trabalho
que desenvolvi na turma, sua timidez foi passando. Ela nunca tinha pegado num lápis e tive
que desenvolver vários trabalhos de coordenação motora. Aos poucos começou a rabiscar,
a escrever seu nome, a identificar as letras, contribuir na produção de textos coletivos, a ler
palavras vistas na rua etc.
Eu trabalhava à noite alfabetizando. Pela manhã, fazia pré-vestibular todos os dias.
Recebia uma bolsa no valor de R$ 200,00 (duzentos reais) para alfabetizar em minha
Universidade Federal Fluminense
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comunidade. Atualmente, sou bastante conhecida pelo bairro. Chamam-me de professorinha. Até hoje, quando encontro ex-alunos, sempre me perguntam se voltarei a dar
aula no bairro.
Com esta experiência abandonei a idéia de fazer Ciências Biológicas ou História. Decidi
por Pedagogia. Juntei dinheiro para o caso de não passar nos vestibulares. Se fosse preciso,
pagaria algumas parcelas na Universidade de Nova Iguaçu, já que com a nova lei de diretrizes
e bases da educação nacional, todos os professores com curso normal devem ter nível superior.
Entretanto, graças a Deus e ao meu esforço, passei para todas as universidades públicas para as
quais me inscrevi: UFF, UFRJ e UERJ. Escolhi estudar na UFF e com o dinheiro que juntei,
fiquei um bom tempo pagando minhas passagens, cópias de textos, livros e lanches.
Quando soube de minha aprovação no vestibular de 2002 fiquei feliz. Mas por outro
lado sentia tristeza ao ver meu irmão Lauro, que desde 1997 tentava sem êxito entrar para
a universidade. Seu sonho era fazer Direito, mas nunca conseguiu. Após tantas tentativas
fracassadas resolveu tentar outros cursos: Ciências Sociais, História, Pedagogia e Serviço
Social. Fizemos o pré-vestibular, prestamos exames juntos; contudo, só eu passei. Ele
trabalhava de manhã e estudava a noite. Chegava cansado e, às vezes, cochilava por
cima dos cadernos estudando, mas ele nunca desistiu. Atualmente, estuda na UFF e faz
Pedagogia também.
O meu primeiro dia de aula na universidade foi mágico. Tinha a sensação de flutuar
ao andar. Tudo parecia impregnado por essa magia: os professores, as aulas, as amizades.
Logo no primeiro dia tivemos que escolher entre duas atividades: Cinema e Sociedade ou
Educação na Cidade. Eu e metade da turma escolhemos a segunda opção. Com base nessa
atividade, nosso professor desenvolveu uma política educacional em Niterói. Ele é hoje
Secretário de Educação da Cidade.
Na UFF, alguns professores me chamaram a atenção pelo modo de ministrar as aulas. Em
História da Educação IV, as aulas eram nas praças de Niterói. Tivemos inclusive uma aula em
Paraty. Só assim visitei a cidade que tanto sonhara em conhecer. O receio de ir para um lugar
estranho me fez pensar: “vou... não vou, vou... não vou”. Foi minha mãe quem disse: “Vai, minha
filha. É uma oportunidade de conhecer outro lugar. Você vai aprender muito nessa aula lá... não
deixe escapar essa oportunidade”. Arrumei, então, minhas coisas e fui para Paraty com a turma.
Tudo era divertido no primeiro período. Nada me cansava. Acordava às 4 h:30 da
manhã para pegar às seis horas o ônibus no centro de Nova Iguaçu e chegar na universidade
às 8 horas. A viagem era muito longa da minha casa até a universidade. Gastava todos os
dias onze reais em passagem. Chegava em casa às 14h30min para almoçar. À noite dava aula
de alfabetização para os adultos de minha comunidade. Não tinha tempo para quase nada.
Não estudava durante a semana, somente aos sábados e domingos. Era quando me dividia
entre os estudos e em preparar aula para a semana seguinte.
No início do segundo período, resolvi morar em Niterói, próximo à universidade. E mais
uma vez minha guerreira mãe me deu apoio. Consegui algumas amigas para dividir um apartamento e me mudei. O período de adaptação foi muito complicado. Não é fácil morar com pessoas
com outras experiências, níveis e culturas diferentes. Todos os dias eu chorava com saudade
de minha mãe e do meu irmão. Nesta fase de minha vida tive que tomar, sozinha, inúmeras
decisões, coisa nada simples para quem foi acostumada a conversar tudo com a mãe.
Minha cunhada também me ajudou muito. Ela também faz Pedagogia na UFF e foi
minha monitora em História V, quando me incentivou a fazer prova de monitoria para as
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Caminhadas de universitários de origem popular
disciplinas em que mais me destaquei. Resolvi ouvir seu conselho e, no quarto período, fiz
prova de monitoria para as disciplinas de História V e Epistemologia das Ciências da Educação. Passei nas duas disciplinas e escolhi ser monitora de Epistemologia.
Dessa forma, aprendi muito no meio acadêmico. Tinha uma concepção de que dar aula
para nível superior era totalmente diferente de dar aula para o ensino fundamental ou ensino
médio. Bobagem! Tudo é o mesmo jeito, não tem diferença nenhuma.
Eu ajudei a professora de Epistemologia na dinamização da aula. Desenvolvi um tema
que englobava a teoria de Michel Foucault, adaptando-a para o meio escolar. Quando fui
apresentar o trabalho na Semana de Monitoria fiquei um pouco nervosa, mas consegui apresentar todo o trabalho no tempo previsto. Aqui vai um conselho: todo mundo deveria passar
pela atividade de monitora. É uma experiência que traz um grande crescimento intelectual e
mesmo profissional. Depois de pensar e repensar sobre a minha trajetória educacional, pude
perceber que ao longo de minha vida escolar, sempre tive dificuldade em me expressar diante
de um público muito grande. Após a prática de monitoria, esta insegurança passou.
Procuro participar de todos os cursos e eventos gratuitos dentro da universidade, já que
estou morando em Niterói. Minha mãe fala para participar de tudo o que puder para acrescentar
ao meu currículo acadêmico.
Escrever minha história não foi fácil. Tive que relembrar o momento mais triste de minha
vida e os percalços por que minha família passou. Neste relato parto da tragédia que assolou
minha família e da dificuldade de uma mulher sozinha em cuidar e dar educação para seus
três filhos. Uma mulher na qual eu tenho total admiração. Se eu passasse por isso sozinha,
talvez não agüentasse. Assim como ela quase não agüentou.
Minha mãe trabalhou em casa de família até sair a sua pensão para que não passássemos
privações. Naquela fase, contamos com a ajuda de um amigo de meu pai e da família que todo
final de semana chegava com um saco de vinte quilos com compras. Ele não deixava faltar
nada para gente. Seu nome é Sebastião. Ele veio também da Paraíba e é meu compadre – sou
madrinha de dois filhos dele. Naquela época, minha família por parte de pai, no entanto, nos
abandonou e nos deixou sem nenhuma ajuda financeira.
Agora, já quase ao final, me apresento: tenho 25 anos, curso o 7º período de Pedagogia. Moro na periferia de Nova Iguaçu. E para concluir: dedico essa história à pessoa mais
importante da minha vida por ser uma mulher vitoriosa e por quem tenho total e profunda
admiração, minha mãe, um exemplo de mulher: forte, dedicada, decidida, companheira,
humilde, corajosa...
Josenir do Nascimento Andrade
Universidade Federal Fluminense
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Capitulo 3
Uma menina “dondoquinha”
Os poderosos podem matar uma, duas ou até três rosas.
Mas nunca conseguirão deter a primavera.
(Ernesto Che Guevara)
Esse memorial começa como uma peça de teatro com a apresentação dos três personagens principais. A primeira é uma estudante de Pedagogia que atualmente cursa o 7°
período na UFF. Desde pequena já gostava de dar aula, sempre brincando de escolinha com
suas coleguinhas. E quando sua vovozinha conversava sobre o que ela queria ser quando
crescer, saía com o seguinte: “Quero ser professora. Vou estudar e me formar no Instituto
de Educação”. Uma observação: essa personagem sou eu.
A conquista do sonho de ser professora teve uma importante participação do empenho e
zelo de um outro personagem dessa história: minha mãe. Acho que ela projetou em mim seu
sonho de ser professora. Minha mãe sempre dizia: “Ensinar uma pessoa a ler e a escrever é
muito gratificante. Ser professora tem suas vantagens. Você pode trabalhar só meio período em
algum colégio aqui perto de casa. Com o restante do tempo livre pode fazer outra coisa”.
Minha mãe nasceu na cidade de Portela, no interior do Estado do Rio. Ela é filha de um
pedreiro descendente de escravos e de uma dona de casa descendente de portugueses, que
vieram na década de 1950 para São Gonçalo com os filhos pequenos. Desde cedo, minha mãe
e sua irmã cuidavam dos afazeres domésticos. Na adolescência, fazia trabalhos artesanais e
os vendia para ajudar a família. Mais tarde, ela conseguiu um emprego de auxiliar de enfermagem. Em decorrência disso, minha mãe possui apenas o ensino fundamental incompleto.
A característica mais marcante de sua personalidade é a determinação. Meiga e com sábias
experiências, minha mãe é a melhor companheira na minha trajetória de vida e escolar.
No quesito de aparência física, somos idênticas: morenas, baixinhas e com os mesmos traços
faciais. É comum alguns parentes ou amigos antigos da família dizerem: “Você é a cópia fiel
de sua mãe quando jovem”. Em relação ao temperamento, me assemelho mais com meu pai:
de cara ninguém percebe, mas sou muito geniosa.
O terceiro personagem dessa história? É o meu pai. Não foi tão influente em minha
trajetória como minha mãe, mas sempre financia o que eu quero realizar na área de educação. Talvez, por não ter conseguido terminar seus estudos, ele veja em mim a realização
dos seus sonhos e a esperança de uma vida melhor. Meu pai nasceu em Campos, norte do
Estado do Rio. Ele é filho de um lavrador mulato e de uma dona de casa descendente de
alemães. É membro de uma família humilde constituída de 15 pessoas. Seus relatos relembram uma vida difícil e sofrida. Desde cedo, meu pai e seus irmãos começaram a trabalhar
para ajudar no sustento da família. Por isso, meu pai, assim como minha mãe, não concluiu
seus estudos. Ele possui apenas o ensino fundamental completo e já trabalhou em muitos
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Caminhadas de universitários de origem popular
empregos. O último foi o de faturista, na Parmalat. Hoje ele é aposentado. Apesar de não
ter concluído os estudos, ele é considerado pelos amigos como um autodidata. Está sempre
estudando e aprimorando seus conhecimentos: de leitura bíblica até filosofia! Sua menina
dos olhos é uma coleção de jornais que relatam a história do mundo. Sei também que sua
verdadeira paixão é a Matemática. Sempre fala que se fosse cursar uma faculdade iria fazer
Matemática. E tenho certeza que seria um ótimo aluno. Volta e meia, ele assume o papel
de explicador para um ou outro amigo em preparação para concurso.
Em 1980, eu nasci. Morávamos em São Gonçalo. Durante a minha infância, meu principal campo de convivência sempre foi meus familiares. A não ser quando eu brincava com
minhas vizinhas. Mas mesmo assim, no quintal da minha casa. Recordo até hoje das nossas
brincadeiras prediletas: casinha, estátua e também esconde-esconde. O quintal da minha casa
era grande e tinha muitas flores. Meus pais nunca gostaram que eu ficasse na casa de pessoas
outras que não fossem meus avós e tios. Diziam que estando perto deles, sempre estariam a
par de tudo o que acontecesse comigo. Com isso, minhas amizades foram a minha família e
filhos de amigos conhecidos dos meus pais. Não condeno essa atitude dos meus pais e vejo
hoje quão benéfico foi esse ensinamento para mim. Essas orientações nunca me fizeram sentir
uma pessoa diferente. Os ensinamentos da minha família e as minhas amizades formaram a
base sólida para a construção de meu saber e caráter.
Tive o acompanhamento de meus pais durante toda a minha trajetória escolar, em
especial, o de minha mãe. Na primeira etapa do Ensino Fundamental, da primeira à quarta
série, estudei em apenas dois colégios, ambos particulares. No começo, a minha adaptação
foi um pouco difícil. No primeiro colégio isso aconteceu porque eu era pequena e não estava
acostumada com o ambiente escolar. Nessa fase, o que me ajudou muito a quebrar o gelo com
a escola foram os trabalhos escolares, que minha mãe faz questão de guardar de lembrança
até hoje, além do carinho dos funcionários, especialmente da diretora. Fui alfabetizada nesse
mesmo colégio e dessa etapa escolar, a recordação mais marcante, foi ter sido a primeira aluna
a terminar de ler a cartilha. Quando passei para a primeira série, precisei mudar de colégio e
de bairro. Meu pai mudou de trabalho e o transporte de ônibus para seu novo serviço ficava
inviável onde morávamos.
Mudamos para uma casa própria no bairro onde resido atualmente. Um fato singular
que me lembro deste colégio: minha mãe sempre deixava explicações e publicações das
Testemunhas de Jeová com as professoras e com a equipe pedagógica. Essa era a crença da
minha família e o colégio era católico, onde festividades religiosas e cívicas eram sempre
comemoradas. Sentir o respeito mútuo, a seriedade e a delicadeza com que fomos tratados
lá, foi muito marcante para mim. Principalmente por ser hoje uma educadora e estar lidando
a todo o instante com a grande diversidade religiosa existente, e estar preparada e convicta,
assim como minha mãe, a travar um diálogo e entendimento de minhas crenças quando meus
filhos estiverem em período escolar.
Quando concluí a primeira etapa do Ensino Fundamental, meu pai reuniu a nossa
família para dizer algo assim: “Não posso continuar a pagar a escola particular. A mensalidade aumentou muito. Se eu continuar pagando, vai afetar o orçamento aqui de casa”.
Foi então que minha mãe procurou uma amiga merendeira na escola estadual na esquina
da nossa rua. Pediu ajuda para conseguir uma vaga lá. Após essa amiga conversar com a
diretora, imediatamente fui matriculada na 5ª série. Lembro, como se fosse hoje, a angústia
por ter deixado de estudar numa escola particular para estudar em uma escola pública. Não
Universidade Federal Fluminense
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era aquela escola e nem aqueles tipos de colegas que eu queria para a minha convivência.
Por alguns meses me senti inferiorizada por estudar em uma escola pública. No entanto,
continuava sendo uma boa aluna com notas exemplares. Com o decorrer do ano letivo, me
adaptei à nova realidade estabelecendo amizades com pessoas de um outro contexto familiar
e escolar daquele que eu estava acostumada. Minha mãe como sempre, era a peça chave
nessa nova fase. Ela conversava comigo: “O fato de você estudar em uma escola pública,
em nada afeta sua formação. O que faz a diferença é apenas o seu empenho e dedicação
nas coisas que fizer”. Hoje sou uma das referências nessa escola de alunos que, oriundos
de uma escola pública, conseguiu percorrer o caminho até a Universidade Pública.
Na 8ª série, ocorreu um episódio que mexeu com a minha vida: foi o desemprego do
meu pai. A partir desse momento, comecei a refletir sobre como contribuir no orçamento
familiar. Fiquei tão preocupada em como conseguiríamos prover nosso sustento, que pensei
em parar de estudar para começar a trabalhar. Após muitas conversas com a minha melhor
amiga e companheira, minha mãe, foi me dito: – “As dificuldades que estamos passando e
que provavelmente iremos passar, não podem interferir nos seus estudos. No que depender
de mim e do seu pai, você prosseguirá nos estudos a fim de galgar mais oportunidades na
vida”. Confiante nos conselhos dos meus pais, decidi continuar os meus estudos e escolher
qual caminho seguir. Mas agora com uma diferença: eu sabia exatamente quais os passos iria
percorrer. Sempre soube que a profissão de magistério não era tão rentável do ponto de vista
financeiro. Contudo, isso nunca me importou, queria mesmo era ser professora.
Realizei um sonho alimentado desde pequena: fui estudar no Instituto de Educação
Clélia Nancy, em São Gonçalo, a fim de me formar como professora. Naquele momento do
curso, eu tinha contato com amigas que já estavam prestes a se formar e acabava escutando
relatos positivos e negativos do curso e dos professores. Comecei, então, a me questionar
sobre a opção que havia feito. Primeiro vieram as dúvidas, logo depois, a insegurança e um
pouquinho mais tarde, o descaso com o curso. Fiz amizades com meninas da minha própria
turma que, popularmente falando, “não queriam nada com a hora do Brasil”. Com o passar
dos meses, o meu desempenho escolar foi decaindo. Não prestava mais atenção às aulas e
os trabalhos mal elaborados eram expressos nas notas vermelhas ao final de cada bimestre.
Não conseguindo recuperar as notas e escondendo o boletim dos meus pais, resolvi continuar
minhas aventuras. Pensava: “Recupero essas notas no quarto bimestre”. Envolvia-me cada dia
mais com essas amizades. Chegou a um ponto em que quase não freqüentava mais as aulas.
O final do primeiro ano foi se aproximando e com ele o acúmulo das notas baixas. Fiquei tão
desesperada que minha mãe me chamou para conversar e acabei confessando como estava
o meu desempenho escolar.
Minha mãe logo contratou um professor particular para sanar minhas dúvidas acumuladas durante o ano letivo. Isso me possibilitou recuperar a aprendizagem perdida.
Através dessa experiência negativa, aprendi importantes lições: a principal é que sempre os
nossos melhores amigos serão os nossos pais. São quem sempre estarão ao nosso lado em
todos os momentos. Serão também os primeiros e talvez os únicos a estender a mão para nos
ajudar nos momentos mais difíceis. A partir de então, resolvi encarar o curso com seriedade
e responsabilidade. No 3º ano, com as práticas de ensino, confrontei-me com a insegurança
e com o medo. Achava não estar preparada para o exercício da profissão. Com o decorrer do
ano letivo e com a dedicação de alguns professores, esses sentimentos foram passageiros.
Assim, ao final do ano de 1998, me formei em professora.
36
Caminhadas de universitários de origem popular
Logo após a minha formatura, algumas amigas me incentivaram a continuar os estudos; agora, na Universidade. Pensei muito. Conversei com minha mãe e ela então me
falou: se eu não me sentisse preparada para dar esse passo, deveria esperar mais um pouco.
Ela estava certa. A minha prioridade naquele momento era mesmo começar imediatamente
a trabalhar, ter a própria renda. Não demorou muito e logo consegui um emprego perto da
minha casa. Comecei a trabalhar em um colégio pequeno que abrangia apenas a educação
infantil, a alfabetização e a primeira série. Lembro como se fosse hoje, a alegria de ter
recebido o meu primeiro salário! No começo, eu fiquei muito confusa e receosa. Achava
não estar preparada para assumir uma turma mesmo com poucos alunos. Com o decorrer
dos dias, me adaptei à turma e também aos professores. Destaco em especial a professora
da alfabetização, uma pessoa de quem me recordo com muito carinho. Amiga, companheira
e uma excelente alfabetizadora. Aprendi muito observando no cotidiano a sua dedicação,
o seu carinho ao tratar os alunos e o seu profissionalismo. Afeiçoei-me muito a ela e logo
nos tornamos boas companheiras de trabalho. As minhas turmas nessa escola foram maravilhosas e é dessa pequena escolinha que guardo na lembrança os melhores momentos
que até agora eu tive com relação ao ofício de professora.
Permaneci dois anos nesta escola: de 1999 a 2000. Em 2001, uma amiga recém-formada
professora conseguiu um trabalho em uma escola bem próxima de sua casa. Como também
faltava professor para a 2ª série, ela me recomendou para a diretora. No dia seguinte, fiz a
entrevista e fui contratada. Uma das razões que me levou a trocar de escola foi poder ter a
carteira assinada. Esse novo colégio situava-se perto da minha casa e era bem maior que o
anterior, com muito mais professores. No começo, a insegurança e o receio insistiam em
me rodear. As expectativas de adaptação a este novo emprego eram o meu maior obstáculo.
Com o tempo e o apoio de minha mãe, esses sentimentos foram deixados para trás. A minha
turma era pequena e logo me apeguei aos alunos. Um deles era portador de necessidades
especiais e precisava mais ainda de meu carinho e minha atenção. Os outros alunos já
estudavam com ele há alguns anos e eram muito companheiros, o ajudando no que fosse
preciso. No decorrer do ano letivo, várias situações foram despertando o meu interesse
com respeito à educação. Um exemplo: não entendia a pressão que tanto a coordenação e
a direção exerciam sobre os professores com respeito aos conteúdos a serem abordados.
O mesmo acontecia com os métodos de avaliação, os testes e provas. Eram nítidos os temores dos alunos e a indignação de alguns professores com respeito a isso. Essas reflexões
me fizeram pensar: chegou o momento de retomar os estudos.
No ano de 2000, prestei vestibular para Pedagogia na UFF. Não foi uma escolha
pensada e sim um impulso. Fiz porque uma amiga também havia feito. Acho que por isso
não consegui passar. Sempre com o apoio de meus pais, resolvi no ano seguinte prestar
novamente vestibular para Pedagogia. Sabia que este curso me apontaria caminhos de
reflexão sobre a minha própria prática. Nesses momentos, minha mãe, companheira fiel,
esteve presente comigo e durante toda a trajetória do vestibular. Chegou até a me acompanhar nos dias das provas. Esperava do lado de fora para voltarmos para casa juntas.
No local de prova, sempre encontrava suas companheiras: outras mães presentes na vida
de seus filhos.
Dos preparativos para o vestibular, recordo que não estudei muito. Apenas li algumas
matérias sobre literatura, português e história. Contei com a ajuda de meu pai. Sabia que o
diferencial seria a interpretação que eu fizesse na prova. Terminado o vestibular e depois de
Universidade Federal Fluminense
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umas três semanas de espera, recebi a notícia que eu mais almejava: a aprovação para a UFF.
Em minhas lembranças está viva a alegria dos meus pais ao saberem da minha aprovação em
uma Universidade Pública.
Tinha concluído uma fase da minha vida. Mas a nova etapa trazia expectativas a respeito
da vida acadêmica. No primeiro dia de inscrição, fui à faculdade acompanhada de minha
mãe. Comecei a perceber o aumento da carga de responsabilidades nos meus atos e decisões.
Com o início do semestre, veio a convivência com novas amizades. Lembro também das aulas
do professor de História da Educação IV, mas lembro, sobretudo, da viagem que fizemos a
Paraty. Confirmei assim ser este curso a dar suporte para o meu novo crescimento intelectual.
Pretendo continuar na carreira docente, lecionar em escolas públicas, fazer mestrado... e ajudar
outros alunos provenientes de classes populares como eu.
No 2º período, realizei um trabalho em grupo sobre a Estrutura e Funcionamento dos
CIEPs. Renasceu, então, em mim a vontade de voltar para a sala de aula, principalmente na
rede pública. Sinto-me estar mais preparada. Sei como é grande a discriminação de alunos
provenientes de classes populares e também sei que cabe a nós profissionais qualificados
intervir nessa questão. Também penso no aspecto profissional com o desejo de melhorar de
vida, já que agora estou casada e penso em dar uma vida confortável para os meus filhos,
além de ajudar os meus pais no que for preciso.
Hoje, estou em pleno processo de elaboração de monografia. Meu tema estuda questões
como a avaliação e o fracasso escolar. Durante o curso, despertei para as perversidades e
preconceitos escondidas em algumas atitudes que nós professores cometemos sem perceber;
coisas como não valorizar as experiências de vida dos alunos, a agressividade nas formas
de avaliação e classificação das escolas... Percebi a importância de refletir sobre a nossa
formação e a opinião de cada aprendiz, analisar a função e o desenvolvimento do professor
ao se deparar com questões complexas no cotidiano do trabalho nas escolas... e aprender a
sair vencedor de tais situações.
Vanessa Silva de Lima
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Caminhadas de universitários de origem popular
Capítulo 4
Uma pequena guerreira
“Sempre quis falar nunca tive chance
Tudo que eu queria estava fora do meu alcance”
(Charlie Brown Jr.)
– Mãe, vou dormir cedo! Amanhã tenho que acordar às sete. Vai sair no jornal a
resposta do vestibular da UFF. Pela contagem de pontos que fiz, acho que passei, mas não
sei, estou nervosa assim mesmo, acho que nem vou conseguir dormir.
No outro dia, pela manhã...
– Podem deixar que eu trago o pão. Hoje não vai ter briga para comprar. Mas era seu
dia né, queridinho! Impliquei com meu irmão.
Na banca não tinha a Folha Dirigida, apenas O Globo, mas o resultado do vestibular
estava ali também, só que mais difícil de achar. A lista dos aprovados não estava pelo
nome, e sim pelo número de inscrição. Como eu tinha em mãos a fichinha de inscrição e ali
estava o tal número, sem problema. Procura aqui, procura ali: bingo! Passei para Serviço
Social, no 14º lugar.
– Aaaahhhh! Consegui! Entrei. Estou lá agora. Sou uma Universitária. Meu futuro
começa agora. Este ano não vai ser igual àquele que passou. Repetia para mim mesma,
como nas promessas de fim de ano.
Enquanto caminhava para a banca, sentia que a partir daquele dia de março de 2001,
eu começaria a escrever uma história onde eu fosse a verdadeira autora. Eu não queria mais
ser apenas coadjuvante. Dessa vez, eu seria a estrela e dirigiria o roteiro da minha vida.
É isso que estou fazendo agora, escrevendo e estrelando minha história de vida.
Para iniciá-la, eu gostaria de falar um pouco dos meus sonhos. Como todo mundo, eu
sempre sonhei muito. Sempre sonhei em cursar uma faculdade, fazer um curso superior.
Ainda no ensino fundamental, estudei, de 1991 a 1997, na Escola Municipal Honorina
de Carvalho, localizada no Bairro de Remanso Verde, em Niterói, onde conversava com
minhas amiguinhas de escola sobre o que ia ser quando crescer. Já quis ser pediatra,
advogada ou administradora – como uma prima minha. Queria trabalhar na Petrobrás e
ficar bem de vida.
Ainda sobre sonhos. Por detrás da necessidade de ganhar bem por meio do acesso
à universidade, existe o sonho de ter uma casa bonita, grande; um lugar onde eu pudesse
ter o meu próprio quarto ROSA! É. Porque meu sonho sempre foi ter um quarto rosa, com
cama e armário brancos, ter uma penteadeira também branca com espelho enorme, redondo,
parecido com o das princesas dos filmes da Disney e uma colcha rosa com flores cobrindo
minha cama. Também tive outros sonhos tais como: aprender a nadar; ganhar uma Barbie
verdadeira, com a casa e o carro; uma bicicleta; uma mochila bonita e nova.
Universidade Federal Fluminense
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Parecem sonhos bobos, mas para mim fazem todo o sentido. Tive uma infância muito pobre.
Minha mãe sempre ganhou pouco, teve de sustentar a mim e ao meu irmão, sozinha, desde que meu
pai nos abandonou. Eu tinha apenas um ano de vida e meu irmão, pouco mais de dois anos.
Quando minha mãe conheceu meu pai, não sabia que ele era casado e já tinha até filhos!
Depois de já ter perdido um filho ainda na barriga, aos 30 anos, minha mãe engravidou do
meu irmão. Dá tudo certo na gravidez, e é uma festa o nascimento do meninão. Ele não nasce
muito saudável, mas apesar disso, tem uma série de problemas a partir de vinte dias de vida, e
dá muito trabalho para os pais. Alguns meses depois do nascimento do menino, eis que vem
por aí, um outro bebê. “Caramba! Outro? E AGORA?” É o que deve ter passado na cabeça
deles. Pois é, eu resolvo nascer logo depois do meu irmão. Acho que foi para apertar os laços
familiares. Meu pai não ficou muito feliz com a notícia e pediu para minha mãe abortar. Ainda
bem que ela recusou, senão, eu não estava aqui escrevendo esta história.
Mas a partir daí, ele muda o comportamento com ela – até porque, já tinha três filhos
do casamento oficial, e agora, ficaria com dois bastardos: dois mais três são cinco. Ele seria
pai de cinco filhos no total. Guerreiro? Nada. Nesse meio tempo, minha mãe encontrou uma
multa do Detran no carro dele e descobriu que o ordinário era casado: a confusão estava armada! “Era por isso que ele vivia viajando!” – refletia indignada minha mãe. Enquanto meu
pai dizia que estava viajando, estava com a outra família e vice-versa. Nossa! Parece coisa de
livro mesmo. Quanto tempo de mentira! Mentira, palavra que acompanha minha trajetória.
Sinto-me, muitas vezes, o fruto de uma mentira.
Quem sobrou nessa história toda? Dá para adivinhar: uma mãe, um irmão e eu. Minha
mãe não tinha com quem nos deixar para trabalhar naquela época. Além disso, ela estava
encostada pelo INSS por estar com feridas na perna por cicatrizes não curadas de um acidente
na infância que deixou 30% do seu corpo queimado. Nessa altura, o Algoz já tinha sumido
do mapa. Só para piorar, chegou uma ordem judicial dizendo assim: “ordem de despejo pelo
seguinte motivo: estar muito tempo sem pagar o aluguel”. Fomos todos para o olho da rua.
Minha mãe teve de vender meu berço, os armários, a geladeira, a mesa, enfim, quase tudo.
Não tínhamos onde ficar. Avó e avô eu não tinha. Existia apenas uma única tia. Morava no
Rio de Janeiro, num lugar chamado Sepetiba. Tinha dois filhos e era casada. No entanto, nunca
pôde nos ajudar. Ficamos lá apenas uma semana, logo após o despejo. Depois, voltamos para
Niterói. Nem sei se ficar na minha tia ajudou tanto. Fez minha mãe se sentir o pior dos seres
humanos. Só faltou dizer: “Não quis ter filhos?! Agora agüenta!” De volta para Niterói, agora
em outro bairro, Baldeador, contamos com a ajuda de vizinhos da comunidade. Ficamos na
casa de uma senhora que meu irmão e eu chamávamos de avó. Moramos na casa dela por um
tempo, mas também não deu certo. Aí, uma vizinha de rua, uma senhora cristã, conseguiu
um terreninho no Novo México, uma favela do Baldeador. Nessa época, o Algoz apareceu
e nos ajudou muito, muito mesmo! O dito cujo arrumou as tábuas para construir o barraco.
Isso sempre me soou estranho: se ele trabalhava, porque não alugou um lugar para ficarmos?
Infelizmente, pergunta sem resposta.
No barraco não havia água e minha mãe tinha que buscá-la muito longe e depois
subir com as latas d’água uma escadaria de barro imensa. Na época das chuvas os degraus
viravam sabão. A enxurrada entrava no barraco sem pedir licença e levava nossa tranqüilidade e o que havia sobrado dos móveis. Descrevo um caso acontecido nesse barraco:
conta minha mãe que uma vez ela me deixou dormindo na cama. Colocou água no fogo
para aquecer e foi buscar mais para me dar banho. Meu irmão estava acordado, esperando
40
Caminhadas de universitários de origem popular
mamãe chegar. De repente, ela começa a ouvir uma voz fininha falando: “Tá pegando fogo! Tá
pegando fogo! Mãe, tá pegando fogo!”. Minha mãe largou a lata na escada e veio correndo ver.
Quando chegou, a cena era dramática. Com o vento, uma cortina posta na janela perto do fogão
pegou fogo e, na hora em que ela chegou, havia caído em cima do botijão de gás. Como a ação
foi rápida, deu tudo certo. Graças a Deus e a meu irmão esperto, que só tinha três anos.
Passados alguns anos, minha mãe vendeu o barraco na favela e alugou um quarto numa
rua próxima à rua em que nasci. Era o tipo de local chamado de cabeça de porco, onde moram
muitas famílias amontoadas no mesmo lugar. Depois de alguns aborrecimentos ali, como o
roubo de nossas roupas e comidas pelo telhado do quarto, minha mãe resolveu alugar uma
casa mesmo, na mesma rua onde morava quando nasci, ainda no Baldeador. Para dar conta
das despesas, ela começou a trabalhar em dois empregos. Nessa época, já havia recebido alta
do INSS. Trabalhava como cozinheira de restaurante durante o dia e como camareira de motel
à noite. Era uma rotina de trabalho desvantajosa: ela vivia cansada, não nos dava atenção
direito, estava sempre com problemas, não podia nos ajudar nos deveres da escola.
No início da idade escolar, ficamos em uma creche comunitária, em Santa Bárbara, onde
fizemos o CA. Mais tarde, fomos para uma escola estadual chamada Antônio Coutinho cursar
a alfabetização. Ficava no mesmo bairro e o ensino era tão ruim, tão ruim, que minha mãe
nos matriculou em uma outra escola e tivemos que fazer de novo a alfabetização. Até meu
irmão, que deveria estar na primeira série nessa época, teve de retornar para a alfabetização.
A vantagem é que agora estudaríamos numa boa escola, particular, chamada Santa Marta,
localizada no Fonseca, Niterói. Conseguimos desconto e tivemos uma alfabetização que nos
ajudaria no futuro. Mas só pudemos estudar na escola particular apenas um ano. A vantagem
maior foi que eu consegui migrar para a 2ª série direto, não fiz a primeira e não me atrasei
no ensino fundamental. Isso fez toda a diferença! Meu irmão, ao contrário, não passou nas
provas de nivelamento na escola. Ficou na primeira série.
Nesse período, após a alfabetização, minha mãe conseguiu comprar, financiado e com
extremo sacrifício, um terreno de posse em Maria Paula. Era uma região ainda em início
de ocupação, onde havia chances de comprar terrenos a preços baixos. Saímos, enfim, do
aluguel. Nessa fase da nossa vida, minha mãe não trabalhava mais em restaurante nem em
motel. Sua fonte de renda vinha da elaboração de comidas congeladas. Ela ia à casa das pessoas, cozinhava para o mês inteiro.
Começamos a estudar na escola estadual Barão de São Gonçalo, localizada em Maria
Paula, antes mesmo da mudança – que aconteceu no meio do ano de 1990. Quitado o pagamento do terreno, dois cômodos feitos, lá estávamos nós na nova casa, em plena Copa de 90.
Não importa se o Brasil perdeu e não conseguiu seus objetivos; nós conseguimos. Agora sim,
saímos da idade da pedra, do nomadismo, e entramos no início da história moderna.
O tempo avança, e eis que eu chego ao Ensino Médio. Continuava sonhando. Entrei
no primeiro ano do segundo grau e estava decidida a ser advogada; queria ajudar crianças a
conseguir seus direitos. Sempre vi minha mãe buscar os meus e os do meu irmão. Ela cansou
de ir à Vara de Família em Niterói, tentando colocar meu pai na justiça para ele pagar pensão
para a gente. Nunca teve êxito, o Algoz parecia o fantasma. Quando minha mãe conseguia
o endereço de um trabalho, pluft! Mudava logo de emprego. Desaparecia sem deixar rastro,
como num passe de mágica. Acho que nem o Mr. M resolveria esse mistério. Nunca soubemos
onde ele morava. Tinha outra família, mais três filhos, nunca se importou conosco. Só vinha
nos visitar a cada três anos ou mais. Deve ser porque criança não dá lucro; só prejuízo.
Universidade Federal Fluminense
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Um dia, estava eu em casa, quando apareceu um homem alto, moreno, de barba ficando grisalha, de óculos grandes e um sorriso estranho. Eu olhei para aquela figura e corri
para chamar minha mãe. No que ela apareceu na cozinha, eu falei: “Mãe, tem um cara no
portão, eu acho que conheço, mas não lembro de onde”. Quando ela chegou na porta da
cozinha, falou: “Ué? Ressuscitou?” Daí eu perguntei: “Quem é?” A resposta foi: “Seu pai,
menina!”. Meu Deus! Acho que nem sei descrever o que senti na hora. Um misto de raiva
com saudade, toda a minha infância passou na minha cabeça, como um filme, de drama,
claro! Havia pelo menos cinco anos que eu não o via. Eu estava com 14 anos!
Bom, já dá para entender porque eu queria fazer Direito no início do Ensino Médio.
Isso era idéia fixa! Porém, quando eu estava no 2º ano, mataram um grande advogado no
país. Infelizmente não me lembro de seu nome, apenas do caso, que foi marcante. Lá em
casa, ficamos muito assustados. Pintou um medo de eu nunca conseguir trabalhar numa
grande empresa ou no serviço público e ter de me tornar uma advogada de porta de cadeia.
Nessa época, já tinha me atentado para o fato de não ter nenhum advogado na família para
me arrumar emprego. Até porque, no Brasil, existem quantas mulheres negras advogadas
bem de vida? Eu não conheço nenhuma.
Com todos estes conflitos mentais e essas brigas interiores, resolvi ser assistente
social ainda no Ensino Médio. Não sabia de todos os lugares onde esse profissional poderia atuar, mas eu sabia que ajudava as pessoas. Uma decisão influenciada pela Madre
Tereza que mora dentro da gente, ou porque meu irmão estava sendo atendido no Conselho Tutelar por uma assistente social. O motivo? Acho que essa ferida merece secar,
não vou mexê-la.
Fui até o terceiro ano dizendo que faria vestibular para Serviço Social, mas dois
fatos me desestimularam. Eis o primeiro: certo dia caminhando para a escola, encontrei
com uma professora de português. Verdade seja dita, não ia muito com a cara da criatura.
Como diz minha mãe: “Meu santo não batia com o dela”. Mas fomos andando juntas e a
conversa entrou no assunto do vestibular. Ela me perguntou se eu estava estudando, em qual
profissão eu havia me inscrito, coisa e tal. Respondi que estava em dúvida entre Serviço
Social ou História. Foi o suficiente para ouvir uma desanimadora ladainha: “Ai, não faz
Serviço Social, não! Eu tenho uma amiga que fez esse curso e está desempregada faz cinco
anos, desde que se formou. Faz História, pelo menos você arranja um lugar para trabalhar”.
Foi como um balde de água fria.
Segundo fato desestimulante: certo dia, algumas meninas da minha turma resolveram
tirar dúvidas sobre a atuação de alguns profissionais na área de interesse delas. Assistente
Social estava na lista delas. Não gostei nem um pouquinho de saber que iria concorrer com
essas garotas. Ao decidir qual curso me inscrever para o vestibular, pensei resmungando
com meus botões: “Essas meninas da minha turma vão concorrer comigo. Isso não é
bom!”. Inscrevi-me, então, para História, na Faculdade de São Gonçalo. Tudo só para não
concorrer com as colegas de turma, que eu inocentemente julgava serem meus obstáculos.
Tola ilusão. A concorrência verdadeira seria com pessoas de todos os cantos, de todas as
tribos e, principalmente, com os alunos das temidas particulares.
Comecei a pensar em outra profissão para me inscrever no vestibular da UERJ, que
estava aberto naquele meio de ano de 2000. Eu iria tentar a isenção, uma vez que minha
família estava passando por um momento financeiro péssimo e não teria como me ajudar
a pagar a taxa, muito cara para meu padrão de vida pobre!
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Caminhadas de universitários de origem popular
Consegui a isenção da UERJ, para as duas provas: objetiva e discursiva, primeiro e
segundo tempo. Brinco assim porque o vestibular parece decisão de campeonato, tem o jogo
de ida e volta para decidir quem é o ganhador. As inscrições são separadas e são pagas duas
taxas. Passei na primeira fase, ou ganhei o primeiro jogo. Por apenas uma questão, eu não
somei dez pontos e não saí com vantagem na segunda fase, mas pelo menos havia conseguido
passar para a próxima etapa. Ah, estava na final.
Continuando na busca de um lugar ao sol, eu concorri também à isenção da UFF e fiz
o exame do ENEM. Este seria o teste, antes das provas, era o INMETRO das Universidades,
pelo menos era assim que eu e os outros estudantes de escolas estaduais o víamos.
Após fazer a prova de segunda fase da UERJ, comecei a sonhar com a UFF. Também
pesquisei mais sobre o Serviço Social e tive certeza de que era isso que eu queria fazer. Nada
de ouvir professor, amigos. Chega! Eu agora sabia o que eu queria e onde. Mas não era boba.
Conhecia as dificuldades que enfrentaria para entrar e para permanecer na UFF. De qualquer
forma, tinha uma vantagem: a faculdade ficava no Centro de Niterói. Se eu conseguisse um
emprego por lá, seria fácil chegar à faculdade. Por isso, escolhi o turno da noite. Não teria
como fazer faculdade sem trabalhar.
Fazer a prova da UFF de primeira fase não seria mais um campeonato. Era a Copa do
Mundo! E eu me sentia muito mal, parecia o Ronaldinho na Copa de 98. Estava muito preocupada com a possibilidade de não passar no vestibular. Não só o de 2001, mas talvez pudesse
estar condenada eternamente a nunca passar! Nossa. Isso me atormentava! A universidade
é uma esfinge para quem vem de escola pública. O colégio no qual cursei o ensino médio
localizava-se num bairro popular. A qualidade do ensino não era ruim, mas não chegava nem
perto do nível das escolas particulares de Niterói, de um Colégio Salesianos, de um Colégio
São Vicente de Paula, de um Instituto Abel da vida, todas escolas tradicionais, caríssimas e
com alto índice de aprovação nos vestibulares.
A baixa auto-estima batia sempre, parecia uma sombra. Quando eu pensava na prova,
no tamanho das questões, no conhecimento exigido para passar no vestibular, eu ficava assustada e, ao mesmo tempo, triste e desanimada. Muitas vezes eu chorava inconsolável, pois
sabia das pedras e espinhos que viriam pela frente. Não só pelo monstro de sete cabeças
que é o vestibular, mas também pelo pensamento de que se eu passasse teria de enfrentar o
monstro de 30 cabeças que é se manter na universidade. Como compraria os livros? Como
ajudaria em casa? Eu já estava com 17 anos. Não dava mais para esperar só pela minha mãe.
Até porque, ela não poderia fazer muita coisa por mim, pois, nessa época, não trabalhava mais
com muitos congelados, sustentava-nos apenas com as encomendas que fazia de salgadinhos
e docinhos e para ajudá-la, eu vendia salgados grandes, como aqueles vendidos em bar, na
rua onde nasci no Baldeador.
No ano 2000, eu estava no terceiro ano e comecei a trabalhar com quentinhas junto com a
minha mãe. Ela preparava a comida. Eu buscava os fregueses e fazia as entregas. Começamos
no período das minhas férias de meio de ano. E ela continuou, mesmo depois que eu voltei às
aulas. Meu irmão não ajudava nisso, ele buscava fazer outras coisas. Era ajudante de pintura,
de caminhoneiro, mas ganhava muito pouco e também nunca foi de ajudar em casa.
Durante todo o segundo grau, eu busquei algum tipo de ocupação, mas sempre foi
muito difícil. Houve uma época em que eu precisava trabalhar a todo custo, sem conseguir
nada. Por isso, ajudava minha mãe nessas atividades. As dificuldades para continuar estudando foram muitas: para comprar livros da escola, comprar o uniforme de educação física,
Universidade Federal Fluminense
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que era caro. Apesar de a escola ser pública, eles adotavam bons livros e bons uniformes.
O problema dos livros foi resolvido das mais variadas formas. O de Português foi conseguido
por uma das minhas amigas de turma com o tio que trabalhava numa editora. O livro de
Física foi obtido através de descontos conseguidos pelo professor da matéria e minha mãe
se apertou para comprar. O de Biologia e Inglês meu vizinho de rua tirou xérox na empresa
onde trabalha. A professora de História fez um sistema de xérox de um capítulo por aula.
O professor de Matemática não adotou livro. A professora de Espanhol vendia sua apostila
por cinco reais. E assim fomos apagando os incêndios. E o ensino médio seguiu.
Para dar conta do vestibular e poder concorrer de verdade, eu comecei a fazer um
horário fixo de estudos: toda noite, eu estudava de sete até meia noite. Eu ia pela manhã
para a escola, fazia os trabalhos e deveres de tarde, ajudava em casa, e estudava para o vestibular à noite. Tive muitos amigos que me ajudaram, me emprestaram livros de Literatura
Brasileira e também de Física, Matemática e Geografia.
Minha mãe, na medida do possível, tentava me incentivar ao máximo. Não sei se ela
acreditava que eu passaria no vestibular. Até porque ela nem sabia direito o que era fazer
faculdade, ter uma profissão de nível superior. Seus estudos pararam nas séries iniciais do
ensino fundamental. Acho que o importante para minha mãe era eu ter uma perspectiva de
vida melhor e, assim, ter mais chances de dar certo na vida. E isso era o que importava.
Para me ajudar nesse período de estudos, ela comprava, quando tinha dinheiro, os jornais
da folha dirigida, que saíam por temas. Cada semana saía um: Português, Matemática,
Física... E, assim, fui conseguindo ampliar um pouco mais meus conhecimentos. Tentando
me preparar para a Copa do Mundo do Vestibular.
Na minha família, entre os parentes de primeiro grau não há ninguém com formação
universitária. Ninguém entre minha mãe, meu pai e seus três filhos. Meu irmão, por exemplo,
seguia junto comigo na alfabetização. Mas quando fomos fazer o Ensino Fundamental, no
Barão de São Gonçalo, ele começou a mostrar sinais de que não iria seguir a diante nos
estudos. Em 1991, mudamos de escola. Eu fui para o Colégio Honorina de Carvalho, mas
meu irmão não quis mais ficar na mesma escola comigo, talvez por medo de eu vigiá-lo.
O prejuízo foi dele, ficou numa escola muito ruim, longe do bairro onde moramos. E daí
por diante, tornou-se um cigano. Não parava em escolas, até abandonar os estudos na quarta
série. Infelizmente, não chegou a lugar algum. Penso que ele não sonhava tão alto quanto
eu, ou não tinha forças para tentar.
No restante da família, minha tia e seu marido não foram além do segundo grau.
Dos meus dois primos, apenas um terminou o ensino médio e ingressou na Aeronáutica,
conseguindo uma vida de razoável estabilidade. Meus avôs e avós, tanto por parte de mãe
quanto por parte de pai, não tinham o ensino médio. Meus avós maternos foram todos criados no interior do Estado do Rio de Janeiro, na Cidade de Cachoeiras de Macacu. Minha
família por parte de mãe é descendente de escravos, minha bisavó chegou a pegar o fim da
escravidão. O marido dela era índio e também não tinha estudo.
Dos meus primos e primas de segundo grau, apenas cinco tinham feito a faculdade.
Duas eram filhas da irmã de meu avô e tinham condição social melhor que o restante da
família. Apesar de eu ter me espelhado em uma delas na infância, quando sonhava fazer
administração, nunca tive contato direto com estes primos. Aliás, com quase ninguém.
Nossa família é muito dispersa. Não tem a cultura de se reunir, de se encontrar, fazer visitas
uns aos outros. Nem mesmo festas.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Na família da minha avó de consideração – que na verdade é a família que eu conheci
– a situação é ainda pior. Dos seus três filhos, nenhum deles tinha curso superior. Apenas
a filha completou o ensino médio. O restante não concluiu nem o ensino fundamental.
Dos netos dela, que são sete, no total de quatro mulheres e três homens, apenas o mais novo
dos homens concluiu em tempo normal o ensino médio. Quase todos os netos dela arrumaram
filhos, dois por média. Seguem suas vidas do jeito que podem: os homens com dificuldades de
se manterem no mercado de trabalho, as mulheres vivendo de pensão dos pais das crianças.
A desilusão daquelas pessoas com a vida, explica uma situação que me deixou constrangida. Assim que passei no vestibular, fui até a casa deles, muito feliz, contar a novidade
e uma das minhas tias fez pouco caso da universidade. Ela resmungou algo assim: “Fazer
faculdade não garante nada porque tem muita gente que fez faculdade e não chegou a lugar
algum, está vendendo balas, trabalhando como camelôs, e tem até curso de Direito”. Eu e
minha mãe ficamos chateadas com essa fala. Talvez tenha dito isso com o intuito de justificar
para si mesmo o fato de nem ela nem a filha terem passado. De qualquer forma, eu sabia
mesmo que a vida na universidade não seria fácil. Afinal, quando algo na minha vida foi
fácil? Sinceramente, não me lembro!
Quinto Horácio Flaco, um poeta latino nascido a menos de um século antes de Cristo, tem
uma expressão deixada em Epístolas, que é expressivamente forte: “Ousa Saber! Começa!”.
É um convite dirigido a todos que permanecem indecisos e que continuam à espera dos acontecimentos da vida. Horácio tinha plena consciência de suas palavras. Ele fora filho de escravos
libertos e, assim como a maioria dos jovens pobres e negros brasileiros, teve de enfrentar
inúmeras dificuldades para conquistar seus objetivos. Ele se tornou um dos maiores poetas
satíricos de todos os tempos. Falava na ousadia porque sem ela, não haveria possibilidade
para renovação de paradigmas, e nem chegaríamos às grandes conquistas da História.
Ousar saber e começar significa sair da estagnação mental e partir para a busca de
novos conhecimentos, de outros saberes, de novas formas de alcançar a felicidade humana.
A educação é esse agente capaz de realizar as mudanças necessárias e de possibilitar essa
transformação.
Em abril de 2001, iniciei as aulas no curso de Serviço Social na UFF. Em 2004 já estava
formada como Assistente Social. Como nunca paro de sonhar, meus planos na academia foram além. Por ser “ousada e abusada”, como diz minha mãe, em agosto de 2005, entrei para
o sonhado MESTRADO em Política Social na Escola de Serviço Social da UFF. Esta é uma
parte da minha história de luta, garra, ousadia... e vida.
Giselle Pinto
Universidade Federal Fluminense
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Parte 2
TERRITÓRIO
Capítulo:
Aruana: fé e luta
Capítulo 5
Aruana: fé e luta.
Nas antigas tardes de dezembro, lá vinha o velho Abílio, um dos mais antigos moradores
do Morro do Estado. Descia a ladeira, cercado pelos seus enormes porcos de engorda. Era a
alegria da gurizada, uma guerra do cão para se aproximar dos porcos. A criançada caçoava
dos bichos, um caçoar cheio de inocência pueril. Lembro-me do dia em que um colega ao
chuchar mão na cara do porco, ganhou uma bela de uma dentada, forte a ponto de arrancar a
cabeça do dedo, que virou quitute na boca do bicho. O coitado foi parar no Hospital Antônio
Pedro, levar pontos e receber mais tarde sua herança social: o apelido de Toquinho.
Aquele velhinho, negro, pequeno, verdadeiro Preto Velho lá das terras do Estado, me traz
boas recordações da infância. Ah, Seu Abílio! Nobre e singular figura do morro. Veio morrer aos
95 anos. Deixou 20 filhos e tantos netos e bisnetos, de onde surgiram advogados, enfermeiros
e cidadãos exemplares. Representava a destreza em lidar com os conflitos, já que viu o morro
nascer e se desenvolver como comunidade de homens. Foi testemunha ocular da chegada da
água e luz, da vinda das famílias de imigrantes, da construção das primeiras casas e ruelas. Sabia
o porquê dos nomes dos locais: Cocozal, Campinho, Escadinha, CP, Vila, Chácara...
Diga-se de passagem: o Morro de Estado é um dos maiores e mais antigos espaços
populares de Niterói. Meus primos por parte de mãe foram nascidos e criados no próprio
Morro. Por morar perto dali, praticamente na subida da comunidade, aprendi a compreender
o cotidiano das pessoas trabalhadoras: pedreiros, donas de casa, estudantes. Nas minhas
lembranças, vêm imagens do período em que era comum carregar água com latas d’água,
das gambiarras que faziam o maior foguetório no verão, das brigas de mulheres traídas, dos
bailes. E da inocência de nós, crianças de hoje, parcialmente perdida!
Era comum jogarmos bola até altas horas da noite lá em cima do morro, sem se preocupar
com tiros, sustos e principalmente com a polícia; tentáculo do Estado que sempre agiu de forma
covarde e impune com as diversas gerações de moradores. O desrespeito sempre foi a sua marca!
Até hoje, muitas das pessoas que conheço, andam, primordialmente, com a carteira de trabalho,
não com sua identidade. Um ranço, talvez, das abordagens preconceituosas de policiais com os
moradores de morros. Melhor do que ninguém, os negros da favela sabem bem disso.
Ao falar desse período, saliento a importância ainda existente das relações familiares.
Mas registro também como o tráfico de drogas uniformizou o cotidiano das pessoas moradoras
ou não do Morro. Estabeleceram-se novas relações de troca. Imposta cumplicidade, neutralidade e respeito ao poder local. Sai a figura do Poder Público e entra a dos novos traficantes
que, devido ao rodízio de chefes, reacomodava constantemente os territórios dos Comandos.
Tornou-se comum ver após a queda de um chefe, a fuga de todos os seus familiares, fato
cruel para diversos inocentes.
Em 1986, eu fazia parte de um projeto no SESC. O nome do projeto era “Meninos do
Morro” e fazia um registro do cotidiano local. Faziam perguntas tipo: “O que você vai ser
quando crescer?” Nossos sonhos pueris, a inocência e a esperança impregnavam a perspectiva
Universidade Federal Fluminense
49
de futuro de nossas trajetórias sociais. Ao rever o vídeo produzido pelo projeto, me dou conta
de que muitos dos nossos já partiram desse mundo. Para a maioria, a educação foi um divisor
de águas. Infelizmente, parte da minha geração não conseguiu atravessar a difícil estrada da
formação educacional institucionalizada.
Quando pequeno, minha mãe usava de diversas estratégias para continuarmos na escola
– inclusive a violência. Ela sempre falava: “A única coisa que pobre pode deixar de herança
para os filhos, é a obrigação dos estudos!”. Minha mãe via na educação as maiores chances
de transformação econômica e social. Lembro-me que passávamos vergonha por não ter todo
o material escolar, ou, então, das piadinhas de mau gosto por não possuir roupa de marca
e da moda. Lembranças de quem morava em favela e tinha bolsa para estudar em escola
particular. Era o colégio Plínio Leite, onde entrei em 1979 e só saí em 1990, após concluir
o ensino médio.
Lembro de Dona Marielza, inspetora durona, mas que me ajudava bastante. Ela me dava
camisas velhas de uma outra escola, que eu mesmo me encarregava de costurar para uso no
cotidiano escolar. A minha singela vingança era sempre ter as melhores notas e poder passar
de ano no primeiro semestre. Todas as professoras gostavam de mim e dos outros alunos
que se esforçavam para manter o nome da escola. Apesar de servir de chacota em função da
minha origem social, não tenho do que me queixar, uma vez que ali formei minha rede de
amizades até a conclusão do segundo grau.
Eu prossegui na dura estrada da formação educacional, mas muitos de meus amigos do
morro não tiveram forças psicológicas para ir adiante. Hoje, sentem o reflexo da limitação
funcional no mercado de trabalho: são pedreiros, carpinteiros, serventes, mecânicos, garis,
catadores de papel e até mendigos. Alguns morreram ao manifestar seus sonhos através de
cooptação pelo crime e pelas drogas.
Sei que o estudo não é principal ferramenta da formação do indivíduo, uma vez que as
vivências pessoais podem até ser mais efetivas na estruturação do que é uma pessoa, mas no
mundo globalizado da atualidade, o estudo faz diferença. Tenho hoje formação superior, mas
falo isso sem arrogância ou ar de prepotência, tão comuns nos meios acadêmicos. É difícil se
manter puro. Contudo, não me distanciei ainda dos meus territórios de vida.
Acredito que minha trajetória escolar teve como diferencial familiar, a obrigatoriedade
que minha mãe dava aos nossos estudos. Ganhamos inclusive a pecha de preto e pobre metido
a rico! Éramos sempre uma referência para as pessoas simples ao nosso redor. Minha mãe
sempre foi de poucas palavras. A dureza de sustentar cinco filhos a tornou um pouco fria e
distante das nossas vivências. Tornei-me PHD nas artes de apanhar das mais variadas formas:
fio de ferro, chinelo, régua, vara de goiaba, mão e outros requintes de uma certa crueldade.
Mas também reflexo do medo e necessidade de controlar os cinco filhos que moravam ao
lado do Morro do Estado.
Era sempre meio constrangedora a cobrança em cima de nós para estudar. Estávamos
em uma escola particular, éramos bolsistas e tínhamos a obrigação da aprovação final.
Caso contrário, perderíamos as bolsas integrais. No período das compras de materiais escolares,
era um desespero custear material para todo mundo. Eram gastos com uniformes, matrículas,
agendas de atividades extracurriculares, gastos que tinham prazo determinado para ser pago.
Todas essas demandas eram atendidas, pelo menos parcialmente. Quando comprava tênis
para um, faltava para o outro! E vivíamos sempre felizes, conforme o nosso grau de pobreza.
No colégio, nas épocas de festas e reuniões, nunca podíamos contar com a presença de nossos
50
Caminhadas de universitários de origem popular
pais. Papai era taxista e trabalhava no turno da tarde e da noite. Também exercia a atividade
de funcionário público do Estado até se aposentar na época do governador Garotinho, em
1996. Mamãe sempre foi faxineira. Em 1992, conseguiu uma vaga como servente num
CIEP até se aposentar.
Pouco antes de meu pai falecer em 2004, fizemos a única viagem da família. Fomos
em dois carros: minha irmã e sua família em um; papai, mamãe, dois sobrinhos de meu
irmão, minha esposa, eu e meus filhos em outro. Era uma viagem de carnaval para Campos.
Foi muito bom, parecia que estava prevendo sua partida. Sinto muito que ele não pôde ver
minha formatura na Reitoria, formação que defendi com unhas e dentes. Deus o tenha em
bom lugar!
Meus pais nunca puderam estudar, tinham o trabalho como a escola da vida. Eles se
conheceram em Campos, onde eram nascidos. Com o nascimento da minha irmã Maurinha,
portadora de deficiência cerebral, tiveram que se mudar para Niterói em busca de maior
assistência médica. Para isso se desfizeram de um pequeno negócio em Campos. Foi uma
fase muito pesada, devido à pouca condição financeira para nos manter dignamente. Mesmo
assim, conseguiram comprar uma pequena casa, próxima ao Morro do Estado.
Neste período, vivíamos na rua brincando, nas casas dos vizinhos e sempre participando
das atividades sociais no SESC, no Brasinha e na própria rua. Éramos felizes e não sabíamos!
Como era bom ficar até as altas horas da noite, madrugadas de sexta para sábado, ver o amanhecer do primeiro dia do ano. Ah, que saudade das festas nas casas de amigos, o famoso Hi-Fi
ao som dos vinis! Meninos levando refrigerantes, meninas trazendo a comida. Dançávamos de
rostinho colado, com aquela inocência respeitosa entre amigos. Era legal curtir aquela galera!
Neste período, o mundo tinha seu ritmo amistoso de cordialidade e respeito.
As pessoas sempre nos admiravam e, até hoje, tentamos manter essa nossa marca.
Todos os irmãos lá em casa estudaram e concluíram o ensino médio. A Suely era e é
obstinada. Conseguiu aprender Espanhol, Alemão e Italiano. Com seus vinte e três anos,
trabalhando como mulata e passista de carnaval da Companhia de Samba Show do Sargentelli, viajou para a Europa e conheceu lugares como Espanha, Portugal e Itália; além
da Argentina e Colômbia. Toda grana que ganhava, mandava para minha mãe. Grande é a
admiração que minha mãe tem por ela. Casada, vive na Itália com sua família.
Meu irmão Luís, o Dunga com o mesmo apelido dado a um dos Sete Anões, foi o que
teve mais oportunidades na vida. Estudava e trabalhava no colégio Plínio Leite. Chegou
a fazer o curso de contabilidade. Treinou futebol de campo e de salão, jogando em alguns
clubes de Niterói no Rio de Janeiro. Participou de partidas inclusive no Maracanã. Meu pai
se dedicou muito ao meu irmão, fazia o possível e o impossível. Infelizmente, não soube
aproveitar as oportunidades. Hoje, vive sem paradeiro, apesar de casado.
Minha irmã Conceição vive para sua família. Sempre a aconselhei tentar um curso
universitário, mas se acomodou com a vida que tem. Eu, não! Desde pequeno tive que correr atrás dos meus objetivos na vida. Ajudei muito minha família, cuidando da minha irmã
doente. Trabalhei em tudo quanto foi lugar: em feira livre, como carregador de compra;
na rua, vendendo cartão de natal e papel de presente; para o colégio, entregando panfleto
na praia; em supermercado e lanchonete, na atividade da caixa; em shopping, na C&A;
fazendo trabalhos pela Coca-cola e pela Prefeitura de Niterói. Estes trabalhos constituíram
uma estratégia de sobrevivência, que jogou luz em minha caminhada. Imaginava um dia
ajudar pessoas que, como eu, nunca desistiram de seus sonhos.
Universidade Federal Fluminense
51
Minha própria infância foi uma mescla de brincadeiras, compromissos e muito trabalho. Tive que amadurecer cedo demais, privando-me de alguns bens materiais e sociais:
brinquedos, tênis, roupas, lazer, cinemas, passeios, atividades escolares, viagens. Ficava triste
por não poder contar com meus pais, mas sabia que não era por mal. Éramos muitos pobres!
Nosso cotidiano resumia-se às festas normais do calendário e às dos vizinhos, quando éramos
convidados. Além do tempo vivido na escola.
Meu primeiro emprego de carteira assinada foi no McDonald’s. Ralava feito um cão
para ajudar em casa e tentar pagar parte da bolsa da escola. Mais tarde, trabalhei na C&A,
durante nove anos e meio. Foi quando visualizei a limitação de horizontes que essa atividade
me trazia. Era um sacrifício, engolindo sapos da gerência e dos clientes, dando troco e recebendo dinheiro, simulando alegria, Promessas de promoções e venda de ilusões para nos
transformar em funcionário padrão com direito a brindes e bonificações. Uma escravidão dos
tempos modernos, uma verdadeira podridão do capitalismo!
Como ralei para poder terminar meus estudos! Concluído o ensino médio, fui trabalhar. O primeiro vestibular foi em 1992, para História. Após o insucesso dessa empreitada só
voltei a tentar de novo o ingresso na universidade em 1999. Também não passei. Em 2000,
tentei Museologia na UniRio, Geografia na UFF, História na UERJ. Quando conferi a lista
de aprovados da UniRio, comentei com meu pai: “Passei para a faculdade de Museologia!”
Ele me respondeu: “Tá bom, mas isso aí dá dinheiro?”. Nesse mesmo ano também passei na
reclassificação para Geografia na UFF. Foi esse o curso que escolhi. No primeiro período
achei tudo tão difícil que pensei: “Que burrada que eu fiz!”. No entanto, a partir do período
seguinte acertei os eixos.
Formei-me em 2005. Na minha formatura, convidei vizinhos para terem o prazer de
participarem da cerimônia de Colação de Grau, na Reitoria da UFF, em Icaraí. Quase ninguém foi. Infelizmente, os espaços públicos em lugares tidos como nobres: UFF, shopping,
teatros, cinemas, museus e centros culturais refletem a dificuldade de circulação pela cidade
das populações pobres da região metropolitana do Rio de Janeiro. Muitos moradores de
Niterói, de diversos estratos sociais, não conhecem o próprio município. Falo isso, pois vejo
como o sentimento de sentir-se parte da cidade é inculcado no indivíduo de classe popular.
Pela pouca experiência de contatos com outras favelas e de morros de Niterói, posso dizer:
o cotidiano do Morro do Estado, não foge à regra: baixa auto-estima, pouca escolaridade,
desarticulação familiar, inserção nas drogas, limitadas perspectivas e a banalização cada vez
maior da vida e da morte. Contudo, se adentrarmos no cotidiano de uma favela o suficiente
para percebermos sua organicidade, verificaremos que as ações, estratégias e lutas para com
sua relação de espaço e tempo, sempre foram calcadas e direcionadas para superar limitações:
sociais, políticas, históricas, espaciais e principalmente humanas. Ser favelado é uma cultura
única, pois demonstra a rica gama de estratégias de como é possível viver dignamente bem
conforme o limitado grau de oportunidades na sociedade.
Meus amigos hoje me cobram maior participação social. Explico que uma vez formado,
preciso sempre tentar nortear minhas ações e retornar para a comunidade o que aprendi. Sonho
em montar um simples local que tenha caráter de laboratório de estudo, cidadania e cultura.
Esta necessidade me angustia, pois queria avançar nas minhas ações no próprio morro.
Minhas vivências como ator social se iniciaram num trabalho para a Prefeitura no
projeto de meio-ambiente, em 2001. Na UFF, atuei desde cedo em projetos de extensão.
Em 2003, me integrei à Rede Universitários de Espaços Populares (RUEP) e desde 2004 venho
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Caminhadas de universitários de origem popular
atuando no Morro do Preventório. Hoje participo do projeto Biblioteca Comunitária no
próprio morro. Meu trabalho de campo ali, visitando famílias que freqüentam a Biblioteca me impressionou com o grau de pobreza das pessoas e sua expressão física: casas
de chão batido, sem estruturas e sem esperança, vivenciadas no pensamento e atitudes.
Neste sentido, tínhamos como obstáculo sócio-histórico, a baixa auto-estima dos usuários.
Percebi que o velho quilombo e o quilombo urbano das favelas se diferem por mudanças específicas na sua espacialidade e temporalidade. A composição dos barracos e casebres atende
às novas demandas urbanísticas do modelo capitalista. No entanto, expressam a mesma lógica de desigualdades. O que vejo é que as favelas, guetos, morros e as periferias somam um
grande contingente de pessoas que representam uma parcela significativa da nossa sociedade.
Como Zé Kéti dizia: “quando o morro descer, a cidade vai cantar”. O respeito aos moradores das periferias seria o primeiro passo para a construção democrática num ambiente
socialmente igual de chances e oportunidades.
Paulo Freire, em seu livro “A importância do ato de ler”, em três artigos que se complementam, salienta que o povo deve ser o sujeito da pesquisa e não objeto. Logo, o nosso
comprometimento moral, social e intelectual - jovens de espaços populares - nos transforma
em referências de mudança social e quase sempre não percebemos o nosso verdadeiro valor.
Saliento isto, após ter recebido recentemente o prêmio Josué de Castro, da Pró-Reitoria de Extensão da UFF, conquistado através do projeto da Biblioteca Comunitária do Preventório.
Considero hoje que sou um privilegiado. Sinto sim, que realizei vários sonhos e que posso
ampliá-los constantemente. Minha trajetória é a mesma das pessoas pobres do Brasil. Têm
em comum, na essência, a busca por uma transformação e o não esquecimento do próximo.
Meu nome é Aparício, sou casado e tenho um casal de filhos. Agradeço aos meus pais, pelo
ser humano que sou e espero passar meus simples valores para meus herdeiros.
Hoje conto estas histórias, uma espécie de memória viva para filhos e sobrinhos de um
ser formado no cadinho do universo popular.
Aparício Arruda Viana
Universidade Federal Fluminense
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Parte 3
ESCOLA
Capítulos:
Escola: uma parte da minha vida
Neli
Relatos...
Capitulo 6
Escola: uma parte da minha vida
A primeira coisa que fazia ao chegar à escola era correr para dar-lhe um abraço. Tia Lina
era tão gordinha, tão fofa, com aqueles cabelos brancos fininhos, que mais pareciam algodão.
E ela nem era professora, mas uma servente. Nos tempos vagos – que não eram poucos,
pela falta de professores – ficava comendo os salgadinhos que a Tia Lina me vendia fiado.
Em troca, eu a ajudava carimbando as cadernetas. É bem verdade que alguns alunos tinham
certa implicância com ela. Principalmente, quando eram impedidas de entrar por atraso. Mas
eu sempre entendi que esta era sua função: controlar os limites estabelecidos pela direção da
escola para que as aulas dos professores não fossem prejudicadas. Junto com a Professora
Marlene, professora de Português, Tia Lina tentava evocar um espírito patriota em nossos
corações. Ela nos organizava em fileiras no pátio da escola para cantar o hino. Isso todos
os dias, antes de entrarmos nas salas. Faz mais ou menos dez anos que não vejo Tia Lina.
Mas apesar de todo esse tempo, não perdi o imenso carinho que tenho por ela.
São tantas as lembranças boas que tenho desta fase. Tudo está ainda tão significativo na
minha memória que posso citar os nomes de cada professora do meu primário: Tia Lucélia,
Tia Eliana, Tia Sônia, Tia Ana Cristina. No CA fui alfabetizada pela Tia Eliane, uma pessoa
tão calma! Quanta paciência ela tinha! Falava tão baixo. Acredito que era desta forma que
conseguia manter a turma igualmente calma, pois sem fazer silêncio ninguém conseguiria
ouvi-la.
Por que iniciar minha história com essas recordações? É que a parte da minha trajetória
vivida no universo escolar constitui a parcela mais vívida das experiências, dos relacionamentos e das descobertas. Muito mais até do que no ambiente familiar. Talvez até pela rigidez da
educação lá em casa, onde meus pais tinham uma longa lista de proibições: não se relacionar
com cicrano, não ir às festas de noite, não dormir na casa de amigas. Era a lista do NÃO!
Já a Escola era o reino do Sim! Desde a alfabetização, tive a oportunidade de ser orientada
por professoras tão dedicadas, que acabei tomando bastante apreço pelos estudos. Era muito
prazeroso ler, escrever e estudar tanto quanto ir para a escola e brincar na hora do recreio.
Eu fui uma aluna tão estudiosa no primário, que era sempre convidada para as gincanas que
testavam o conhecimento dos alunos. Todo ano participava dessas olimpíadas do saber que
as escolas municipais disputavam entre si. Nossa! Como foi boa essa época, período em que
aprender não parecia obrigação; tamanha era a energia para gastar!
Foi nesse período, mais ou menos por volta de 1988, que meu pai largou o emprego
de mecânico de refrigeração no Centro da Cidade. Fez uma opção pelo seu próprio negócio:
montou uma barraca na frente da casa, em Santíssimo, na Zona Oeste do Rio, onde moro até
hoje. No bairro não havia muitas opções de comércio – tinha muito mal uma padaria e uma
mercearia! Com isso, meu pai pôde comercializar miudezas de consumo diário: açúcar, arroz,
macarrão, molho de tomate, pães e o quase extinto leite de saquinho. Ele adquiriu bastante
lucro com as vendas destas mercadorias. Já minha mãe, estava desempregada. Isso para mim
Universidade Federal Fluminense
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representava a maior felicidade do mundo. Imagina só, ter minha mãe o dia todo em casa
era uma alegria tremenda. Poder sair da aula e vê-la na porta da escola me causava a melhor
sensação do mundo. Melhor até que a sensação de tirar nota 10 na prova.
Passei para a primeira série e conheci a já citada Tia Lucélia. Ela era o tipo de professora
que vivia intensamente o seu trabalho. Notava-se algo diferente na nossa rotina, Tia Lucélia
nos chamava em um cantinho na hora do recreio e tentava descobrir o problema. Quando
não era possível para algum responsável buscar as crianças no final da aula, era ela quem
nos acompanhava até a porta de casa. E não importava a distância. Se necessário, entrava
para uma conversa com os pais. Como ela era bonita! Todos os dias ela recebia várias flores
catadas no caminho pela gente. Sem contar os presentes, as festas surpresas de aniversário
e dia do mestre que eram realizadas para ela. Foi neste mesmo ano que nasceu meu irmão.
Que gracinha de bebê! Só que eu não tinha uma gotinha sequer de paciência para lidar com
ele. Quando começava a chorar, eu tinha vontade de enfiar uma fralda em sua boca. Mas,
todas as noites antes de dormir, pedia perdão por esses pensamentos. Depois que Arian nasceu,
algo ficou bastante modificado em mim. Parece que deixei de me sentir inteira, ele passou a
ser uma parte de mim. Até hoje implicamos um com o outro, brigamos como duas crianças,
mas não imagino a vida sem meu irmão fazendo parte dela. Cheguei na 2ª série com a mesma
empolgação de sempre, a mesma saudade dos colegas, o mesmo capricho com o material
novo, com o uniforme, com a escola pintada e o carinho igual pela professora, que desta vez
se chamava Eliane. É engraçado, mas toda vez que quero me situar sobre uma época da minha
vida tenho que fazer uma ligação com algum ano letivo escolar. Quando tenho que buscar
alguma informação no passado, só assim consigo remontar a situação. A escola sempre foi
a continuidade da minha casa. De certa forma, a rua também foi e, por um certo tempo, a
igreja. Desde pequena percebo a importância de desfrutarmos a vida com as pessoas que estão
próximas, momentos e amigos que ficam na memória. São nossos verdadeiros tesouros que
ninguém - nem nada - pode nos tomar.
Na 3ª série, estudei com a Tia Sônia. Nessa época minha mãe já havia voltado a trabalhar em um supermercado e meu pai havia passado a nossa barraca de doces e bebidas.
Dessa forma, eu e meu irmão ficamos sendo cuidados por uma moça, vizinha da nossa casa.
Marta era uma pessoa evangélica e sob seus cuidados, também fizemos parte de sua igreja.
Era muito autoritária, tratava meu irmão de forma grosseira. Qualquer coisa que a desagradasse, lá estava Arian em pé virado para a parede de castigo e, isto tudo, aos berros.
Após algum tempo, ela mesma reconheceu não ter muita vocação para babá e devolveu-nos
aos cuidados dos meus pais. Não sem antes dizer que éramos crianças muito mal criadas.
Minha mãe ficou extremamente envergonhada. No momento em que percebi que não havia
mais riscos de ela ser nossa babá novamente, contei o que acontecia. Minha mãe ficou tão
culpada que pediu demissão do emprego para cuidar pessoalmente da gente.
Nessa época, meu avô materno, veio morar um tempo conosco. Foi maravilhoso. Todas
as tardes, após chegar da escola tomava meu banho, almoçava e sentava ao sofá com meu
avô para assistir algum filme de faroeste ou do Elvis Presley na sessão da tarde. Ele adorava
uma televisão. Vaidoso do jeito que era acho que sonhara em ser um galã de filme. Meu avô
foi uma pessoa muito presente na minha infância. Não me lembro de ter ganhado sequer
um pirulito de suas mãos. Mas gostava dele de graça, sempre muito carinhoso e brincalhão.
Ele se virava como podia. Nunca teve um emprego fixo, fazia um bico aqui e outro ali. Contava
também com uma ajudinha de uma filha ou outra. E assim ia levando a sua vidinha.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Na 4ª série, não foi mais possível chamar as Professoras de “tia”. Coisas trazidas
pela proximidade da 5ª série, um novo ciclo que exigia uma postura mais madura dos alunos. Parece simples, né? Mas chamar a tia Ana Cristina pelo nome se tornava assustador.
Como quase tudo em nossa vida, tivemos de nos acostumar, o que também não foi difícil.
Até porque a professora era muito próxima da gente. Era quem sempre organizava as peças
de teatro, treinava os alunos para participar das gincanas de disputa de conhecimento entre
escolas. Eu estava sempre metida e empolgada com essas atividades. Toda Páscoa era sempre
eu quem representava a coelhinha principal nas festas. A explicação das professoras dizia:
“É que ela tem a fantasia!”. Mas eu tinha plena convicção de ser escolhida por ser uma ótima
atriz. Aquilo tudo era apenas uma preparação para minhas futuras aparições nas novelas.
Fantasias à parte, o tenebroso momento de ruptura havia chegado: o dia da formatura
do primário. Foi um dos dias mais tristes da minha vida. Na escola em que estudei não havia
ginásio e teríamos de ser transferidos para outras escolas. Como também havia uma defasagem
de vagas em escolas, as turmas que se formavam seriam espalhadas para locais distintos.
No meu caso, fui encaminhada para uma escola longe toda vida da minha residência. Só que
aí o custo de passagem de ônibus para minha mãe me acompanhar todo dia seria muito alto.
Acabei sendo matriculada num colégio particular próximo de casa. Neste período, ocorreram
várias outras mudanças na minha vida. Minha mãe se separou de meu pai. Ele passava por
grave problema relacionado ao álcool. Chegou inclusive a voltar para a Bahia na tentativa de
se recuperar. Enquanto isso, minha mãe buscava tirar o nosso sustento através da vendinha,
que voltava a ser nossa. Foi um período de muita dificuldade financeira. Minha mãe abria a
barraca bem cedinho e só fechava tarde da noite. As vendas já não eram mais tão rentáveis.
O bairro já estava bastante ocupado e existiam diversos outros comércios nas proximidades.
Mesmo assim, ela foi muito valente, conseguiu pagar todas as dívidas deixadas por meu
pai e prover novamente nossa renda, só que com algumas restrições. E isso incluía os meus
estudos. Não podiam mais ser pagos. Eu teria de abandonar o colégio no meio do ano e ser
transferida para uma escola pública novamente.
Foi uma experiência muito louca. Na escola particular, eu tinha entrado num mundo
ao qual não pertencia, de meninos e meninas da minha idade com uma realidade totalmente
diferente. Viviam em belas casas, seus pais possuíam bons empregos, carros, roupas caras.
Apesar disso, não permitia que nada me diminuísse. Tampouco me permiti ficar deslumbrada
ou com inveja de coisa alguma. E quando finalmente começava a superar a saudade dos
amigos do primário, era hora de me separar dos novos companheiros conquistados na nova
escola. Retornei para a realidade escolar que meus pais podiam financiar. Esse processo foi
mais doloroso para eles do que pra mim, já que se empenhavam em me proporcionar uma
boa formação, sonhavam com meu ingresso numa faculdade.
Estudar numa escola em Campo Grande, distante da minha casa, trouxe como conseqüência um amadurecimento imenso. Tinha que tomar dois ônibus para chegar à escola.
Saía de casa enquanto ainda estava escuro. Minha mãe só me acompanhou no primeiro dia de
aula, o restante eu ia sozinha. Minha adaptação à nova escola se deu rapidamente. Já estava
um tanto quanto calibrada com as mudanças. Logo fiz amizades e me enturmei fácil com os
colegas e funcionários da escola. Foi nessa época que conheci a Tia Lina.
Em 1993, meu pai já havia retornado para casa e minha mãe voltado a trabalhar fora.
Não tinham mais tanto contato com a escola; nem bem a diretora os conhecia, tão pouco os
professores, já que estes eram tantos. Sem o cabresto dos pais, fazíamos o que nos proporUniversidade Federal Fluminense
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cionava mais prazer. Nossa diversão era ficar conversando fora da aula ou passeando pelas
redondezas sem tantas obrigações com deveres escolares. Nossa justificativa era sempre a
mesma: aula chata, professor que não sabe dar aula, matéria que não vai servir pra nada.
Essa iniciação da adolescência era tão confusa. Toda semana era um amor diferente
e um sofrimento infinito; uma profissão nova a desejar; um curso novo a buscar. Quanta
insegurança nos assolava os pensamentos e a certeza sobre algo só vinha na hora de rebater
as ordens e argumentações de nossos pais. Achava que após os quinze anos esta fase se
acalmaria. Não via a hora de me tornar independente e dona do meu nariz. Discutia muito
com meu pai. Não aceitava as suas imposições sobre a minha educação. Eram muito mais
proibições do que imposições: era proibido falar com várias pessoas, ir a lugares mal vistos,
ultrapassar horários estabelecidos e conversar além do coloquial.
Algumas pessoas me diziam para eu aproveitar o máximo da vida antes dos quinze
anos. Depois, o tempo voaria. Passamos a vida toda, ansiosos pela idade em que se alcança nossa independência e quando nos aproximamos dela ficamos inseguros. É uma
fase onde decisões que influenciarão nossos destinos precisam ser tomadas. Nossos atos
não são mais encarados com descontração. Somos julgados pelos erros e cobrados a
planejar acertos. Não foi nada fácil. Mal tinha entrado no segundo grau e as cobranças
vinham de todos os lados, mas fui ganhando tempo. Havia sido aprovada para estudar o
Ensino Médio em uma outra escola pública muito disputada em Campo Grande, próximo
ao bairro em que eu morava. Como o sistema de ensino público continuava defasado, era
necessário selecionar os alunos através de provas para o ingresso nas melhores escolas
da redondeza. Eu bem que gostaria de te ingressado em uma vaga nas escolas tradicionais na Cidade do Rio de Janeiro. No entanto, a minha auto-estima e da minha família
eram muito baixas com relação a essas aspirações. Já cheguei até a prestar prova para
um Colégio Federal, no final do primário, e nem me interessei em conferir o resultado.
Tinha medo de criar falsa expectativa.
Nessa última escola de Campo Grande, existia um grupo de alunos muito engajados
politicamente na escola. Eu não tinha muito esclarecimento sobre essas coisas. Não me
intrometia muito nisso. Mas curiosidade não me faltava. Na verdade, esse contato político
era muito distante da minha realidade. A minha geração, pelo menos a da minha classe e
espaço social, estava muito voltada aos ideais propostos pela mídia. Tínhamos profunda
admiração pelas histórias de luta dos anos dourados. Contudo, tudo ficava pequeno diante
da preocupação com a roupa que iríamos usar na festinha do final de semana. A mídia impõe
de forma tão massacrante a filosofia de vida na vida dos jovens, que a nossa geração parece
um exército de vendas nos olhos, vulneráveis a qualquer mudança de estação.
Meu pai sempre colocou os estudos como prioridade. Era o segundo item básico, depois
da comida. Sempre me proporcionou total liberdade para estudar sem precisar trabalhar
e me sustentaria o tempo que fosse preciso, desde que se certificasse dos meus esforços.
Porém, eu ainda estava um pouco sem direção, o que causou atraso no ingresso na faculdade. Continuava a acreditar que não tinha espaço para mim em uma universidade pública,
que era uma espécie de Olimpo, onde os eleitos eram somente os jovens de classe média
e alta. Como meus pais não possuíam dinheiro para pagar uma faculdade e com medo de
vencer algumas barreiras sociais, concluído o Ensino Médio, acabei largando meus planos
de estudo e trabalho aqui no Rio e fui buscá-los em outro lugar: na Bahia.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Na busca por meus sonhos, fui parar na cidade de Salvador. Meus familiares por parte
do meu pai viviam lá e alguns possuíam empregos estabilizados e conhecimentos sobre oferta
de trabalho. Já tinha feito essa viagem antes com meu irmão e meu pai. Foi quando conheci
meus avós paternos, tios, primos, toda uma família que me despertava muito amor, mesmo
sem qualquer contato anterior. Foi muito bacana ver pessoas que te querem tão bem, sem ao
menos lhe conhecer pessoalmente. Conheci também uma cultura muito diferente no nosso
jeito de ser carioca: a culinária, as músicas, a arte, o sotaque, o clima, as vestimentas. Foi um
aprendizado muito rico para mim a primeira ida à terra do meu pai.
Na segunda viagem, tentei fazer o caminho inverso ao do meu pai: ganhar a vida no
Nordeste. Talvez, não tenha tido a mesma garra e coragem para agüentar a distância ou
mesmo a saudade da família – principalmente da minha irmãzinha, nascida neste período.
Além disso, procurava emprego em uma cidade que naquele ano alcançava o maior índice
de desemprego no país. Sobre o sonho de ingressar na universidade: na Bahia, a situação
era muito mais complicada. A oferta de vagas era muito mais disputada do que aqui no Rio,
devido ao número bem inferior de universidades públicas. E as particulares eram muito mais
caras do que as nossas numerosas universidades privadas espalhadas pelo Estado. Após quatro
meses, retornei para minha casa, mas não me dei por derrotada. Estava decidida a encontrar
uma vocação na minha vida. Enquanto a ficha não caia, ficar parada esperando era impossível
na minha condição: distribuí currículos por toda a cidade, mesmo sem ter qualquer tipo de
experiência. Depois de algumas semanas de insistência, fui contratada para trabalhar em uma
loja de vendas de calçados e bolsas num Shopping em Campo Grande.
Sempre me virei realizando atividades que gerassem alguma renda: tomei conta de
criança, revendia roupa, bijuterias, vendia salgados e bolos na escola e até pintava móveis.
No entanto, só quando trabalhei fora é que pude ter a noção da importância do dinheiro.
Minha primeira experiência de emprego foi nesse Shopping em Campo Grande e foi muito
traumática, tanto que não gosto de ir lá. Como não existia salário fixo, o ganho era por comissão.
Quer dizer, a regra era vender o máximo possível para receber um bom salário. Era a forma
mais desvantajosa possível de ser vendedora. Recebíamos apenas o equivalente a quatro por
cento da mercadoria vendida. Enquanto isso, o dono da loja ficava com todo o resto. Éramos
incitadas a buscar sempre competir umas com as outras. O arranca rabo na nossa equipe era
sinônimo de aumento de vendas. Existia a obrigação de sempre bater cotas de vendas, o que
dobrava o horário de expediente. O trabalho ia de segunda a segunda e incluía até nossas
folgas, controlada pela gerente que invadia de forma absurda a nossa vida privada.
Aos trancos e barrancos, agüentei este trabalho por um ano. Queria juntar uma quantia para poder depois me dedicar aos estudos. Não consegui acumular muita coisa. Após o
nascimento da minha irmã, minha mãe não voltou a trabalhar fora. O dinheiro arrecadado
por meu pai na barraca tinha que ser redistribuído para um grupo maior: para o meu irmão
ainda em fase escolar, para minha irmã menor, além da autora dessa história. De saco cheio,
pedi demissão daquela loja no shopping e consegui outro emprego em uma loja no centro
do Rio. Saí do forno para cair na frigideira. Era a mesma exploração. Minha última aventura
empregatícia foi numa loja de sapato infantil em Campo Grande. Não suportei mais de duas
semanas. Pedi dispensa em plena época de natal.
Tanta insatisfação acabou servindo a um propósito útil em minha vida. Foi o que me
deu coragem para voltar a perseguir os meus sonhos. Passados dois anos, percorrendo outros
caminhos resolvi retomar os estudos. Agora era só eu e os livros. Nada de amigos ou diversões,
Universidade Federal Fluminense
61
sem pessimismos ou qualquer outra coisa capaz de desviar a atenção dos meus objetivos.
E assim, após um ano de reclusão, lá estávamos nós: meu pai, minha mãe e eu pulando de
alegria ao receber a gloriosa notícia: eu havia ingressado na UFF. Foi o dia mais feliz da
minha vida. Fiquei pelo menos um mês com a boca dolorida de tanto sorrir. Meu pai era um
orgulho só e minha mãe ficava ansiosa por cada novidade que eu trazia da faculdade.
Chamam-me por Ariela, meu nome de batismo. Tenho 25 anos bem vividos, desfrutados com muitas alegrias e aprendizado, forjado nos momentos difíceis e tristes da vida.
Estudo Serviço Social na UFF e adoro o que faço. Adoro estar sempre em processo de estudo.
Enfrentei muita dificuldade nesses três anos de universidade. Mas todas foram superadas.
Hoje, sempre que eu olho para trás, a escola está lá; minha família está lá; está lá o
abraço macio de tia Lina; as festas juninas escolares; os passeios ao zoológico com minha mãe
e estão também todos os momentos de dificuldades, as divergências com meu pai, o stress
e o cansaço após um dia de trabalho sem sentido. São momentos alegres outros nem tanto,
um diferente do outro, mas todos com algo em comum: foram os elementos constituintes da
minha formação como ser humano.
Ariela Couto da Silva
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Caminhadas de universitários de origem popular
Capítulo 7
Neli
Gastei uma hora pensando um verso que a pena não quer escrever.
No entanto ele está cá dentro inquieto, vivo.
Ele está cá dentro e não quer sair.
Mas a poesia deste momento inunda a minha vida inteira.
(Carlos Drummond de Andrade)
Naquele dia foi diferente. Como sempre acontecia, minha mãe me deixou na escola.
Mas nesse dia foi realmente diferente. Ao invés de ir embora, foi direto na diretoria. Eu, sem
saber de nada, fui para a sala. De repente, a aula foi interrompida pela entrada do diretor e,
logo atrás dele, A MINHA MÃE! Eu pensei comigo: “O que minha mãe está fazendo aqui?”
Imagina: uma turminha de 7 anos, os rostinhos brancos surpresos com aquela pessoa estranha
interrompendo a aula da 1ª série. Uma surpresa que se transformou em susto, logo que aquela
figura de tez negra começou a falar.
Tento rememorar extratos do que foi dito naquele dia:
“Eu não gostaria que situações como essas se repetissem. Ter a cor da pele diferente
da de vocês, não faz de Lara uma pessoa pior. Muito pelo contrário: ela não é igual a vocês
e não tem porque ser. Já perceberam que ninguém é igual aqui. A Lara estuda aqui, porque
é uma escolha que eu fiz. Da mesma forma como os pais de vocês escolheram essa escola e
querem o melhor para vocês, eu também quero o melhor para Lara. Eu também pago a escola
da mesma forma que os pais de vocês... e é aqui que a Lara vai estudar...”.
Ali, caiu a ficha para todo mundo. Ainda lembro aqueles rostinhos, da cara assustada da
professora constrangida ao ver que alguém tinha coragem de dizer o que ela já tinha percebido e
não sabia como falar. Mas se a própria professora não sabia como lidar com isso, imaginem eu!
O fato é esse: as outras crianças não me aceitavam por ser negra. No recreio, enquanto
meninos e meninas brincavam de roda, pique e amarelinha, eu ficava num canto com minha
única amiguinha. Não entendia como isso acontecia. Crianças!!! Como apesar de pequenininhas, podem ser tão cruéis.
Pergunto-me se a ida da minha mãe à Escola naquele dia, não tinha algo a ver com sua
própria trajetória. Ela só estudou até o que é hoje o ensino fundamental. Nunca gostou de
escola, porque estudava em colégio interno, o que a separava da família. Era uma época em
que o colégio era muito rigoroso e eficaz na tarefa de disciplinar os corpos. Castigos como
ajoelhar no milho, escrever mil vezes num caderno “não devo responder à professora” e mão
vermelha com marca de palmatória foram coisas comuns para os estudantes daquele tempo.
Minha mãe sempre entendeu que tínhamos de ter a melhor educação que ela poderia nos dar.
Essa é minha mãe! Certamente que não é perfeita, mas é tudo de bom. Tudo que sou se deve
em muito a ela. Acho que fica clara agora a razão de permanecer naquela escola.
Universidade Federal Fluminense
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Era um colégio tradicional, de uma família muito conceituada na região. Meus coleguinhas – ou as bestinhas, como dizia uma amiga minha – tinham uma situação financeira
tipo classe média. No fim das contas, a questão de classe se misturava também com a racial.
O trajeto da escola era feito a pé, num grupo formado por vizinhos que estudavam na minha
escola ou num colégio público próximo. O trajeto era relativamente curto. Parecia romaria:
as mães ou responsável iam mais atrás, com olhar atento para ninguém correr pelo asfalto.
As crianças seguiam na frente, conversando de tudo um pouco: sobre programa da Xuxa, ou
o kichute dos meninos ou ainda sobre o tênis conga das meninas. Aliás, que nós odiávamos!
Pena que não éramos da mesma sala. Essa era a parte feliz do dia escolar. Essas conversas
me faziam esquecer para onde ia.
O colégio ficava depois da praça central do bairro. Seu muro branco podia ser visto da
rua principal, só que a entrada ficava numa rua transversal. Era um grande portão azul por
onde se tinha acesso a seu único e grande bloco, com a secretaria na frente e todas as salas
de aula enfileiradas. O terreno da escola era muito grande. No lado esquerdo, existia uma
grande área gramada com um parquinho e muitas árvores. Ali, todas as manhãs, tínhamos de
cantar o Hino Nacional ou fazer uma oração. Nos dias de sol muito quente, o Hino era cantado
em ritmo acelerado para entrarmos rápido para a sala. A coordenadora da escola costumava
esperar o término da primeira parte e dizia: “Estão com essa pressa toda por quê? Vocês não
vão a lugar nenhum. Comecem tudo outra vez”. Ficávamos com uma raiva! Mas como diz
o velho ditado: manda quem pode, obedece quem tem juízo e lá estava todo mundo no sol
quente cantando tudo de novo. Eu detestava aquilo, detestava aquela escola!
O pior, é que eu detestava desde o início. Já na primeira semana se revelou um tormento.
Quando o portão da escola se abria, eu me sentia num castelo assombrado e eu chorava muito,
não queria entrar. Já na sala, arrumava minhas coisas e dizia: “Eu vou embora!”. Azar o meu
que a bendita sala ficava em frente à secretaria. O diretor, então, se encarregava de capturar
a fugitiva. Depois, tentava me distrair com cobras, escorpiões e insetos guardados em vidros
de formol situados na prateleira de uma estante na secretaria. Era isso: cobras e escorpiões
para me distrair, mas nunca enfrentando o problema real de eu ser a única negra na sala e das
crianças da minha classe não me aceitarem. O fato é que a partir da fatídica cena com que se
inicia essa história, as coisas começaram a melhorar. Desde a fala da minha mãe para a turma
de olhinhos esbugalhados, o gelo foi se quebrando.
Pensando sobre minha trajetória escolar, percebo-a dividida em duas fases. Quando eu
não gostava da escola e o momento em que eu passei a gostar. A história acima diz respeito
a um período em que eu não gostava da escola. É claro, nenhuma história é uma seqüência
linear de fatos tipo: ou isto ou aquilo. Mas sempre um isto e aquilo embolado com uma
série de outras coisas; uma colcha de retalhos de pedaços de vida que, aos poucos, vai sendo
construída. E já que eu dividi minha vida na escola em duas partes, seria injusto não falar
da parte boa.
Na alfabetização, eu achava a escola muito legal. Com certeza, o ambiente contribuiu
muito para isso. Fui alfabetizada na sede da associação de moradores de meu bairro localizado
na periferia de São Gonçalo. Havia poucas casas no local. Seu prédio ficava no alto de um
pequeno morro e era vizinho da casa do presidente da associação. Lembro que nossas aulas
de higiene bucal eram dadas na casa dele. Sua esposa também era professora. Era um morro
de barro vermelho. Alguém tem idéia de como ficava quando chovia? Escorregadio que nem
sabão! Tínhamos que ir pelo cantinho onde a grama crescia.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Essa foi uma fase muito feliz da minha vida e de grandes descobertas. Não só pela
aquisição da leitura e escrita. Mas pela socialização fora do círculo familiar. Era uma
convivência saudável. Minha professora morava na mesma rua que eu. Minha casa era
no início e, a dela, no final da rua. As crianças da sala eram vizinhas das ruas próximas.
Estudar era um prazer. Tanto quanto ir para a escola. Sempre íamos todos juntos, em
comitiva, sabe? Na nossa sala, as carteiras eram duplas. Brincadeiras e cantoria de músicas
não faltavam em nosso dia-a-dia escolar: “Escravos de Jó”; “Seu Francisco”; “Se eu fosse
peixinho”; “Abóbora, melão e melancia”; “Tanta laranja madura...”. Nessa época, estudar
foi muito bom e gostar da escola foi fácil. Há cerca de uns cinco anos, minha professora
se mudou do bairro e perdemos o contato. Quando acontecia de nos encontrarmos e tinha
alguém por perto, ela dizia orgulhosa: “Essa daqui foi minha aluna na alfabetização...
ainda me chama de tia...”.
Vem dessa época, a percepção do meu bairro como uma comunidade. Os problemas
de infra-estrutura da área eram coletivos: água, luz, esgoto... e a busca de soluções também.
Minha família sempre morou neste lugar. Meu pai participou do loteamento da região que
hoje constitui o bairro. Hoje é uma comunidade bastante povoada e, ainda assim, em franca
expansão. Meus pais dizem que quando nasci, só havia quatro casas em torno da nossa.
Passadas duas décadas, são tantas, que não há como contar. Acho que não conheço metade
das pessoas que moram na minha rua. É tanta gente diferente!
Saindo do assunto casa e voltando para o da escola, acrescento que apesar de tudo, eu
estudei lá, na escola das metidinhas, da 1ª a 5ª série. Você contava nos dedos das mãos os
alunos negros que havia. Mesmo os mulatos e mestiços, quando andavam com as metidinhas,
se comportavam diferentes. Como em todo país, aquela escola vivia na ilusão da democracia
racial. Por isso o medo do encarar “de frente” a questão.
Minha melhor amiga e vizinha estudava comigo. Ela tinha uma ascendência indígena
muito forte e também sofria na pele a nossa falsa democracia racial. Mas se alguém viesse
com piadinha sobre ser índio e coisas assim, ela já se encrespava para o lado da pessoa.
Nós ficamos juntas por alguns anos. Na 5ª série aconteceu uma mudança brusca. Fui reprovada
e sai da escola. Foi decepcionante para mim. Depois de tantos sacrifícios para me manter ali,
eu não sabia como contar para minha mãe. No entanto, existe um tipo de sabedoria que só
as mães têm: a de compreender os filhos. Ela me disse: “Tudo bem Lara, você vai para outra
escola. Você é novinha e tem tempo para se recuperar”.
É obvio que ela ficou triste. E eu mais triste ainda. Mas a verdade é que naquela bendita
5ª série, eu não gostava de nada. A única matéria que me interessou foi História. A 5ª série
é uma mudança muito brusca com muito professor, muita matéria. Acho que encerrei um
ciclo. Mudei-me para uma escola bem mais popular e aberta que ficava em frente à antiga.
Era dirigida pela avó dos diretores da outra escola onde eu estudava. É uma família muito
tradicional e que, de certo modo, monopolizou a educação na região.
Eu senti aquela expectativa, quase um receio, de como seria lá. A escola funcionava
em dois prédios distintos, um em cada lado da rua. Eu fiquei na turma que estava no prédio
principal. Não gostava muito de estudar, mas o novo colégio e a minha turma eram muito
legais. Foi ali que comecei a me interessar por esportes. Apesar de não termos quadra, os
professores de educação física eram muito bons. Nossas atividades esportivas eram realizadas num terreno perto da escola ou no pátio da igreja católica. Durante aquele ano, fizemos
atletismo. Isso era um prazer. Mais tarde, nos dedicamos aos esportes olímpicos.
Universidade Federal Fluminense
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Mesmo nessa época, eu não gostava da escola, ou melhor, não fazia muita diferença.
Acho que fui aprendendo a gostar aos poucos. Odiava matemática. Aquilo para mim não
tinha o menor fundamento. Nunca houve a preocupação de fazer com que aquelas matérias
fossem significativas em nossa vida. A única disciplina que eu sempre gostei era História.
Independentemente de qualquer coisa, de quem fosse o professor. Eu só comecei a gostar
de estudar na 7ª série. A turma do meu bairro não estava muito preocupada em estudar.
Nessa fase da vida, ser igual aos outros é muito importante e eu ficava dividida no conflito
de acompanhar meus colegas do bairro que não se importavam muito em estudar, ou assumir
maior responsabilidade na Escola. Eu valorizava o estudo porque minha mãe fazia questão
e meu pai apoiava.
Minha família é bem tradicional no sentido dos papéis sociais de homem e mulher,
principalmente meu pai. Sempre a velha história: mulher tem que ficar em casa, fazer comida,
cuidar dos filhos, ser sustentada. Pensamentos de um homem que nasceu no interior, um
típico fruto de sua época. Minha sorte era que viajava muito a trabalho. E aí, eu escapulia.
Acredito que muitas das posturas que tenho diante da vida, foram conquistadas em casa primeiro. Ali, não era uma briga declarada, mas fui tomando posições em pequenos conflitos.
Quando me dizia: “Você só pode ir para a igreja”. Eu respondia: “Tá bom” e ia para outro
canto. Eu respeito e amo muito meu pai, admiro sua história de vida. Hoje eu sei que ele me
respeita muito também e que se orgulha de mim. Temos muitos conflitos e somos diferentes
em quase tudo. Quando essas diferenças emergem, ele diz: “Você está tão esquisita. Isso é
coisa da faculdade”.
Posso afirmar que o estudo me permitiu entender cada vez mais o porquê das coisas
acontecerem assim ou assado. Afirmo-me como mulher e negra, mas antes de tudo me afirmo
como ser humano e como sujeito de direitos, com todas as possibilidades e responsabilidades
que isso acarreta na vida.
A 7ª série foi importante na minha trajetória escolar. Foi quando encontrei pessoas,
professores que me valorizavam. Não posso deixar de lembrar de Antônio, meu professor de
Geografia. Ele acompanhava a turma há três anos, desde a 5ª série e sempre fez suas aulas
serem dinâmicas, interessantes, mesmo sem grandes recursos. Sabia quem nós éramos e
isso me ajudou a tomar consciência das mudanças ocorridas em mim. Tenho presente em
minhas lembranças o final de um bimestre, quando tínhamos feito uma prova e estávamos
muito curiosos, queríamos saber as notas. Antônio disse que não podia entregar as provas por
ordens da direção. No entanto, nos deixou ver as notas e ao final, fez um comentário geral
dizendo que todos estavam bem e, diante da turma, destacou que eu havia sido a aluna que
mais havia crescido, amadurecido durante o tempo que acompanhava a turma. Ressaltou que
isso se refletia nas minhas notas, na minha participação. Ele me deu os parabéns e disse que
estava feliz e eu também, por receber um elogio de alguém que admiro.
Parte de minha adolescência foi complicada. Eu tive problemas de auto-afirmação, não
era do tipo muito convencional. Eu não gostava de funk, gostava de MPB e samba. Aprendi
esse gosto com a minha família. Desde pequena, essa era a música que se ouvia em minha
casa nos fins de semana, dia de arrumar as coisas: limpar o quintal, lavar roupa, cuidar das
plantas e tudo isso feito ao som bem alto de Elis Regina, Maria Betânia, Milton Nascimento,
Gonzaguinha. Na casa da minha avó, nas festas e feriados, a gente dançava a noite toda.
Hoje, eu sou bem eclética. Digamos que a arte, de uma maneira geral, me comove. Nesse
sentido, meu professor de literatura e educação artística Carlos Henrique muito contribuiu
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Caminhadas de universitários de origem popular
para meu desenvolvimento, na formação de um olhar mais crítico e observador. Dizia que para
vermos melhor não podíamos nos contentar em ficar nas superfícies planas, mas tínhamos
de subir nas montanhas para ver mais e melhor. Respeitava nossa opinião, nossos gostos,
estimulavam nossa produção cultural. Quando fui fazer formação de professores acreditei que
era por falta de opção. A outra possibilidade era Contabilidade. E, vamos combinar, como
dizia o cara do filme: “Sem chance!” Eu odiava matemática.
Embora algumas pessoas dissessem que o curso de formação de professores era difícil,
pois havia muitos trabalhos, muitas atividades, o estágio, sem falar na grande carga de leitura.
No entanto, a minha turma e eu não pensávamos assim. Era até estimulante. Um monte de
disciplinas novas e diferentes, como Filosofia, Sociologia, Psicologia, Alfabetização e Educação Infantil. Sem contar com as matérias específicas como Português, Matemática, Ciências e Estudos Sociais. Nós tínhamos as aulas práticas e ficamos responsáveis pelos murais
comemorativos que enfeitavam a escola. Ajudávamos a organizar as festas: dia das mães,
páscoa, dia das crianças. Éramos “as maiorais” da escola. Era trabalhoso, mas não difícil.
O professor Carlos Henrique foi nos dar aulas de literatura infantil e aquela aula era uma
viagem. Ali, a universidade passou a ser uma possibilidade real. Penso que havia o desejo, o
sonho, mas não era uma utopia, um lugar distante a ser alcançado.
Certa vez, o professor José de Geografia, na 8ª série, perguntou o que iríamos fazer depois do fundamental. Ao ouvir alguns escolhendo profissões que passavam pela universidade,
foi taxativo: “Essa é uma escolha equivocada. O mundo está cheio de médicos, advogados;
professores, então, nem se fala. Vocês têm que fazer um ensino médio técnico e entrar logo no
mercado de trabalho”. Foi triste aquele dia, uma decepção tão grande ouvir isso de um professor.
Não estávamos preparados. Ficamos nós ali: uns meio perplexos e outros tantos questionando
se ele tinha razão ao dizer aquilo. Lembro da expressão de uma colega que estava ao meu lado,
a Tatiana. Ela ficou passada. Tinha a pele bem clarinha e os cabelos avermelhados. Estava tão
perplexa que sua pele ficou da cor dos cabelos. E eu não menos revoltada. Fiquei decepcionada
com o tal professor. O pior era que ele acreditava de fato no que dizia. Constantemente falava que
a universidade pública era difícil e só quem passava eram os filhinhos de papai, que a faculdade
particular era cara, enfim, uma tática de guerra para minar nossos sonhos.
Retornando às aulas de literatura infantil. Pelo menos nas nossas conversas de alunos,
a universidade não parecia impossível. Decidi-me: vou fazer sim uma universidade. Fiquei
dividida entre dois cursos e fiz vestibular para áreas e universidades diferentes, mas não tinha
muita esperança. Fiquei surpresa ao saber que passei na reclassificação. No dia de fazer a
inscrição em disciplina, eu estava doente e perdi a inscrição. Foi um dos piores dias da minha
vida, eu fiquei arrasada. Eu fui à UFF com minha mãe e chorava tanto que uma funcionária,
contrariando normas da universidade, me enviou para a reitoria. Fiz um requerimento justificando a falta. No entanto, o reitor disse que não poderia fazer nada. Muitas pessoas estavam
na mesma situação e não havia vagas para todos. Foi uma frustração, um tempo difícil em
que minha vida praticamente parou. Quem sabia da história não acreditava: como alguém
poderia perder assim uma vaga na universidade pública?
Tomei a decisão de fazer novamente o vestibular, dessa vez, só para a UFF. Eu fiz a
prova muito tranqüilamente e sentia que havia uma grande possibilidade de passar. Quando
eu passei, acreditei e, ao mesmo tempo, não acreditei. Fazer o vestibular de novo foi uma
decisão muito particular, ninguém esperava. Fiquei cheia de dúvidas, não tinha certeza se
teria condições de cursar a universidade. Mas foi a decisão das mais acertadas da minha vida.
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Eu amo meu curso de Pedagogia e não posso pensar em outra possibilidade profissional.
Quando não havia mais possibilidade de perder a vaga, após a inscrição de disciplina, eu
contei primeiramente a minha mãe. Dei como um presente no dia das mães de 2002, afinal
se eu estou aqui é muito fruto da participação e trabalho dela. Sou a primeira da família a
freqüentar uma universidade. Gostaria muito que minha irmã também pudesse estar cursando o ensino superior. Ela sempre foi um exemplo para mim, ainda que sejamos muito
diferentes. Quando era pequena, às vezes, ela me levava junto para a escola dela para eu
não ficar sozinha em casa já que os nossos pais trabalhavam. Sempre admirei muito sua
inteligência e confesso: morria de inveja da linda letra que ela tem. O que foi até bom.
Ao tentar copiar sua letra, melhorei muito a minha e descobri que a minha escrita tinha
traços interessantes e bem particulares. Eu também aprendi a gostar de ler e isso foi uma
das minhas maiores conquistas. Meu primeiro livro foi dado pela minha irmã: Terras do
Sem Fim, de Jorge Amado.
Minha trajetória escolar foi muito marcante e uma parte significativa da minha vida.
Antes, eu considerava que fui fazer formação de professores por falta de opção. Hoje, relendo
essa minha história, meus caminhos, erros e acertos, minhas escolhas, penso que ser professora
é uma conseqüência natural. É disso que eu gosto: de pessoas. Tinha, portanto, que escolher
uma profissão que acima de tudo valorizasse o ser humano.
Quando tudo mais acabar
Ainda resta
Minha história
(Samuel Backet)
Neli dos Santos Conceição Gomes
Capítulo 8
Relatos...
Nascido no subúrbio, nos melhores dias! Essa é uma frase marcante para designar minha
raiz e projetar minha caminhada, que começaria aos berros na maternidade Santa Rita de Cássia,
no Bairro do Fonseca em Niterói, no dia 17 de dezembro de 1981. Após uma longa sessão de
berros e muita força, nascia o mais robusto do berçário, uma delícia de visão para as enfermeiras.
Nesse singelo início já se fazia presente um ilustre acompanhante para a eternidade e protagonista
de muitas histórias, meu irmão, que, cansado de ouvir berros, pedia a minha devolução.
Mistura de um branco com uma cabocla, eu era portador de sobrenomes dos mais normais: Coutinho e Andrade. Alimentava sonhos e sorrisos nessa tenra infância, já que quando
se cresce ninguém mais quer pegar no colo. Hoje, me encontro em sala de aula, estudando
e lecionando Geografia com a força de importantíssimos espelhos que o acaso de forma
estratégica posicionou em meu penoso e macio caminhar.
Falar em família necessita a descrição das raízes. Minha mãe é oriunda da cidade de
campos dos Goytacazes, filha de dois legítimos lutadores. Meu pai é niteroiense, criado em uma
família tradicional e conservadora. Depois de um longo tempo de rua, jogando bola e fazendo
o que toda criança do subúrbio fluminense faria; sou hoje um ser cheio de histórias, amigos e
lembranças de um tempo inesquecível. Permitam-me confessar que já fiz muitas artimanhas e
besteiras no período mais gostoso de qualquer vida: jogar bola interminadamente e no fim do
dia ficar ainda insatisfeito, colocar as pipas ao vento, brincar de taco, bola de gude, deixando
de lado afazeres escolares e esperando ansiosas festinhas do final de semana, encontro-me
agora aqui, na responsabilidade acadêmica de um adulto desde cedo. Estou hoje no Projeto
Conexões de Saberes, trabalhando com o que aprendi a gostar no espiral dos acontecimentos
individuais. Eis me aqui escrevendo nesse texto minhas influências, meus espelhos.
Antes de chegar aqui, passei por outro projeto de extensão da UFF, no qual aprendi a
importância do diálogo e da construção coletiva. Conheci um mestre pelas páginas do livro
Extensão ou Comunicação. Soube de suas lutas quando ainda estava vivo. Encontrei, então,
Paulo Freire, um mestre, um condutor de diálogos, um negador da extensão vertical. E isso
se deu no início da Faculdade em 2002.
Na vivência escolar sempre me dediquei aos sorrisos dos amigos, dos pais e dos mestres. Adorava dialogar com cada um após suas aulas. Para meu espanto, era bem recebido e
fazia questão de questionar coisas da vida, saúde ou até o resultado do Flamengo. Conquistei
amigos que me cercam até hoje. A maioria está casada e, alguns, reproduzindo-se.
Somente depois de muito debulhar mapas escolares, certa vez, ao folhear um Atlas
tentando uma passagem para um mundo melhor, descobri na escola a paixão pela carreira
docente, após assistir aulas dialógicas e conflitantes e mesmo coisas de fora da sala de aula.
Descobri então uma paixão para o indefinido campo científico da Geografia.
O ambiente escolar na década de 1990 era o local onde as formigas costumavam andar
pela minha cadeira, segundo alguns professores e confesso aqui: matei aula para ir às famosas
Universidade Federal Fluminense
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passeatas pedindo a saída do ex-presidente Collor. Não suportava ficar mais de uma hora
sentado perante um pseudo-protagonista pedagógico, sendo freqüente a minha presença na
coordenação e a da minha mãe na escola. Lembro-me de uma vez em que ela foi chamada a
comparecer à escola no dia do seu aniversário. Foi, ouviu, pensou e reagiu: mãos em atividade, berros exaustivos e até lágrimas; entretanto, agradeço até hoje por isso. Estudei em
escola pública até o primeiro ano do ensino médio. Depois, minha trajetória escolar se deu
em colégio particular.
Chegou certo momento da vida que a escolha tinha de ser feita. A paixão já estava
descoberta. Termino o segundo grau e parto para o trabalho árduo de office boy, e andava
pelas ruas pagando infinitas contas, levando e trazendo papéis. Um belo dia, eu defini o futuro
num piscar de olhos. Mas isso foi provocado pela ausência de chão acarretada pelo insucesso
do primeiro vestibular.
Após um tempo, eu pensava muito quanto ao sentido das coisas. Decidi sonhar um
pouco. Entrei para um pré-vestibular no ano de 2002, sob a contestação de alguns e aprovação
dos outros. Mas doía ver uma grana escoando para fazer a maldita inscrição. Com a ajuda da
família, largo o trabalho e consigo somente estudar. Mas quando a prova final chega, a famosa
segunda fase, o Rio de Janeiro se infecta com um surto de dengue. E não deu outra: sete dias
de cama, mais três para ficar esperto e fazer a prova. Esperança, sempre a última a morrer.
Um belo dia, saio de mais uma alegre pelada e passo na casa do meu primo, um sujeito
que possuía acesso à grande rede. Peço para que dê uma olhada de leve numa lista e... Pronto.
Passei! Uma noite sem dormir, lágrimas, choros e indefinições. Mais um rito de passagem
que não se sabe onde vai chegar. Hoje sigo no mundo com a necessidade de viajar e conhecer
outras pessoas, histórias e lugares. Quero testemunhar de perto a passagem de um pau-de-arara,
uma terra árida e famílias de migrantes pedindo esmolas nas diversas estradas ou nas esquinas
cinzas das metrópoles. Se é certo que somos uma argila de cerâmica, sempre em mutação,
onde cada pessoa deixa a marca de sua espátula; que também é moldada pelo cotidiano do
bairro, na rua, na escola ou no trabalho, gostaria, então, de falar aqui das pessoas que mais
me marcaram: professores, pais e amigos.
Surge na memória uma professora cujo nome parece estranho ao citá-lo secamente:
Venefrida, um coração de borboleta e uma fúria de mar bravio. Um livro com sua história
contaria a saga de alguém que já apanhou muito para estar ali. Não admitia brincadeiras chulas.
Lembro-me até hoje quando falava dos Flamingos e de um canto da sala surgia a exaltação de
algum engraçadinho: “Mengo, Mengo!” Era esperar dois segundos e desabava o mundo para
o pobre infeliz. E em seguida continuava a sua seriedade docente, sua cobrança por responsabilidade, mas também sua humildade expressa nos constantes diálogos com os alunos que
mais se aproximavam e que tinham de sentir bafos de fumaça exalados por um árido cigarro,
que tingia o verniz de seu sorriso amarelo. Cobrava-nos responsabilidade. E hoje me encontro
em sala de aula com seriedade próxima àquela destilada pela senhorita Venefrida.
A vida se intercalava em escola, rua e casa. Cito agora outra pessoa que marcou muito
meu caminhar pela busca da disciplina em sala de aula e na vida, mas principalmente pela
tentativa de quebra dos padrões normais do cotidiano na sala de aula. Essa pessoa me influenciou pela ciência e pelo método de pensar a Geografia como um caminho, onde o fim
será sempre inédito e nunca editado e sim percebido pelos pulsares conflitantes dos pés e das
almas. Seu lado acadêmico encanta as pessoas pela simplicidade e pelo desabrochar constante
de retóricas consistentes e empolgantes.
70
Caminhadas de universitários de origem popular
Ao caminhar na busca do meu sonho dialoguei e senti com muita força a vibração dos
meus pais e do meu irmão. Comunidade primeira, cujo lema no brasão dizia: “um por todos
e todos por um”. Falar da família é de extrema importância aqui, principalmente no apoio
para o ingresso no sofrido pré-vestibular e na Universidade Federal Fluminense. Em 1995 a
família diminuiu no âmbito do cotidiano. Somente hoje eu entendo a dificuldade da vida a
dois, do sustentar o amor constantemente e os seus possíveis e constantes desgastes. E assim
meu pai saíra do nosso convívio para viver em outro lugar, mas sempre presente – até na
ausência – com seus exemplos de honestidade com a vida e com os outros. Então até hoje
vive o famoso “triângulo mágico”, onde minha eterna mãe virou “pãe”, meu eterno irmão se
tornou uma entidade maior, um conselheiro, um defensor dos ideais de um pai, um grande
ser humano, um gordo de alma.
Há de ser ressaltada nessa trajetória minha passagem pelo esporte. Mais especificamente,
pelo Handebol, através do qual consegui coisas inimagináveis como acordar às seis horas da
manhã e dormir à meia-noite. Ganhei uma bolsa de estudos e descobri a disciplina da alma e
do corpo. Nessa fase, senti que as pessoas ao redor eram leões, acordados ou adormecidos.
Essa percepção me prepararia para tentar a faculdade de Geografia ainda no pré-vestibular
comunitário,
Aos domingos de sol serelepe, eu estou sempre perto dos senhores do famoso grupo
“pós-60 é só pra quem agüenta”, feras no dominó e na sueca do bairro do Zé Garoto em São
Gonçalo, que a cada ano fica mais vazio. Uma pena! E hoje me encontro em sala de aula,
trabalhando em um pré-vestibular comunitário e em um outro privado, construindo amigos,
companheiros de uma caminhada árdua, mas muito valiosa. Esse fato me faz lembrar sempre
das pessoas descritas aqui e suas nuances; do que foi válido para a minha formação e que
hoje vejo sua grande importância para cada aluno, da figura do professor, da presença do
professor crítico e ao mesmo tempo carismático, figura essa, que falta e muito no âmbito
universitário.
Rodrigo Coutinho Andrade
Universidade Federal Fluminense
71
Capítulo 9
Conquista da Universidade Pública:
Uma história entre outras
Eis o retrato de uma brasileira típica. Sou filha de um nordestino do estado de Pernambuco,
da cidade de Surubim. Minha mãe é fluminense, da Cidade de São Gonçalo, no Estado do Rio
de Janeiro. Olha que salada! Ela descende de alemães, indígenas e negros. Já meu pai é filho
de mãe branca e pai negro.
Nasci na primavera de 1984. Media 52 centímetros e pesava 4,65 quilos. Um bebê lindo
por sinal! Cheguei ao mundo em uma fase complicada para a minha família. Meu pai havia
acabado de ficar desempregado e meu avô estava doente de câncer, em fase final. Moral da
história: minha mãe teve uma gravidez bastante tensa, cheia de responsabilidades e preocupações
em excesso. Enquanto ela trabalhava, meu pai ficava comigo. Foi assim até eu completar um
ano e dez meses. Nosso convívio era tanto que minha primeira palavra, balbuciada aos sete
meses, foi Zé, o nome dele - ou pelo menos como minha mãe o chamava. Nessa época, meu
pai trabalhava meio expediente e ficava comigo até minha mãe vir do trabalho. Como ele era
taxista, havia uma flexibilidade de horário.
Fui para a escola cedo, com dois anos e seis meses. Como toda criança novinha, não me
lembro de muita coisa. O colégio se chamava, ou melhor, se chama Marília Mattoso, situado
no Bairro de São Domingos, em Niterói. Era um colégio de classe média alta e por lá fiquei até
completar a alfabetização. Lembro-me bem de um ritual feito todos os dias durante o recreio:
comprar o refrigerante Mineirinho. Hum!!! Posso até dizer que foi o sabor que marcou minha
primeira infância. Fui uma criança alegre e levada como qualquer outra. Mas desde cedo, já
demonstrava ser dona de um temperamento forte. Recordo-me de um carro antigo que meu
pai teve; era um carro muito velho... acho que uma Variant Sedan. Bom, aos domingos sempre
me levava para passear no Campo de São Bento. Ainda em casa, começava uma verdadeira
batalha para me colocar no carro. Eu relutava alegando que o carro era velho, ou melhor, “vélo”.
Eu dizia assim, com cara de brava: “Calo velo, não!! Calo velo, não!!”. Nessa fase, eu tinha apenas
uns três anos. E na volta também tinha choro, porque não queria entrar no bendito carro.
Nessa época, mudamos da casa no Bairro do Fonseca para uma vila, no centro de Niterói, onde havia crianças da minha idade. Para mim foi bom, já que até então era filha única.
Quando tinha mais ou menos quatro anos, minha mãe engravidou novamente. Para mim foi
aquela sensação a possibilidade de ter um irmãozinho. Acompanhava minha mãe nas consultas de ultra-sonografia e ficava empolgadíssima. Tanto, que me deixaram escolher o nome.
Se fosse menino, seria Daniel. É que eu era fã do filme “Karatê Kid” cujo personagem principal
era Daniel San. Se fosse menina, seria Rafaela, era o nome de alguma amiguinha minha de
escola. Nasceu uma menininha. Fiquei tão contente quando a vi pela primeira vez que logo
quis pegá-la no colo.
72
Caminhadas de universitários de origem popular
Quando a Rafaela tinha dois meses fomos morar num apartamento da minha tia, no bairro
do Cubango. Meus pais estavam construindo a nossa casa de Itaipu, para onde nos mudaríamos
mais adiante. Nesse período, mudei de colégio. Fui estudar no Colégio Itapuca, que era bem
na frente do condomínio onde fomos morar. Fiquei lá a primeira série e a metade da segunda
série do primário. Foi uma fase muito boa, na verdade, toda a minha infância foi.
Em 1991, minha tia, dona do apartamento onde morávamos, adoeceu de câncer. Tudo
aconteceu muito rápido. Ela veio a falecer em mais ou menos oito meses. No ano seguinte,
meu tio viúvo, com dois filhos menores, pediu o apartamento de volta. Ele precisava alugálo. Foi uma mudança impactante. Nossa casa ainda estava inacabada e até a minha avó veio
morar com a gente. E o pior é que ela e meu pai não se davam muito bem.
Bom... vou falar um pouco de como era Itaipu, da época em que nos mudamos até hoje.
Para começar, minha rua nem existia. Era um caminho com pouquíssimos moradores. Com a
construção da nossa casa, meus pais mandaram passar o trator na rua até mesmo para facilitar a
chegada dos materiais. Coleguinhas para mim, que tinha apenas sete anos, eram umas meninas
mais novas que eu, filhas de uma moça que trabalhou lá em casa. Minha irmã era um bebê, só
tinha dois anos. Apesar disso tudo, adorei ter me mudado pra lá. Foi a primeira vez que pude
ter um cachorrinho... era a Tati, que viveu treze anos e morreu neste ano de 2005.
Voltando ao assunto colégio. Mesmo após a mudança, continuei estudando no Itapuca
já que minha matrícula estava feita e nos mudamos repentinamente. Mas como era muito
desgastante essa jornada de estudar no Cubango e morar em Itaipu, minha mãe preferiu me
transferir de colégio no meio do ano. Fui estudar no Colégio Acadêmico, no meio da segunda
série primária. A turma estava bem mais adiantada do que eu e quase repeti o ano. Fui salva
pela professora: a tia Rosemeri. No ano seguinte, o colégio mudou de nome para Laplace.
Tudo corria bem até eu chegar à quinta série. Como eu era muita dentuça, as crianças pegavam
no meu pé. Cheguei um dia a dar uma cadeirada num colega. Essa foi minha sorte: sempre fui
um a criança descolada. Mas mesmo tendo um pouco de jogo de cintura, isso não impedia que
eu me magoasse e como isso me chateava! Ainda por cima, comecei a ter dificuldades na escola.
Português se tornou uma tortura pra mim. Jesus! Não sei se era porque a professora tinha uma
figura antipática - ela era baixa, muito gorda, careca e não tinha paciência com as perguntas dos
alunos - ou se era eu que tinha travado por causa das implicâncias da criançada.
O ano de 1996 já começou trazendo novas transformações para a gente lá em casa. Minha
vovó Corina, de 82 anos, faleceu. Isso foi muito forte para mim e Rafaela já que, quando ela
morreu, só eu e a minha irmã estávamos em casa. Eram as férias do mês de janeiro e como
meus pais trabalhavam, a gente ficava com a vovó em casa. Aconteceu assim: a gente estava
em casa brincando no quintal. De repente, ouvimos um barulho dentro de casa e saímos correndo pra ver. Vovó usava muletas e achamos que ela poderia ter caído no chão, como já tinha
acontecido uma vez. Quando chegamos ao quarto, ela estava caída, desacordada. Tentamos
ainda levantá-la, mas como éramos crianças, eu com onze anos e minha irmã com seis, de
nada adiantou nosso esforço. Ainda mais que ela estava desacordada. Foi aí que percebi: algo
estava estranho com a vovó. Notei que ela não estava apenas desmaiada. Corremos até a casa
de uma vizinha amiga para pedir socorro... Minha suspeita se confirmou. Tentamos entrar em
contato com a minha mãe, mas ela tinha acabado de sair do trabalho. Como naquela época
não tinha ainda acontecido a explosão dos celulares no Brasil, o jeito foi esperá-la chegar.
O interessante é que meu pai chegou ao mesmo instante que minha mãe, cada um em seu
carro; parecia estar combinado. Nessa noite dormi na casa da vizinha.
Universidade Federal Fluminense
73
Saí do Laplace no final de 1996, ano em que completei a 6ª série. Nesse período, minha
mãe tinha perdido o emprego onde estava há dezoito anos. E como esse era um colégio caro,
eu e minha irmã fomos transferidas para uma escola mais barata. Comecei a 7ª série na paz
de Deus. Minha mãe estava em casa pela primeira vez na minha vida e meu pai seguia seu
trabalho no táxi, como fazia desde que eu tinha um ano. Mas essa paz durou pouco tempo.
Em junho de 1997, meu pai teve pneumonia. Teimoso, continuou trabalhando até a doença
se agravar em função de sua resistência em ir ao médico. Daí, outros problemas de saúde
entraram em jogo e, após seis meses de internação, veio a falecer.
Nesse ano, apesar de todo sofrimento, passei para a 8ª série. Foi um ano tranqüilo apesar de
algumas brigas no colégio por causa da implicância dos colegas: “Dentuça, dentuça!”. Desde cedo,
aprendi a me defender. Tentava argumentar, até chorava de raiva. Mas às vezes, me inspirava na
dentuça dos quadrinhos e ia mesmo era para a porrada. Nunca tive sangue de barata.
Meu ano escolar foi novamente tranqüilo. No entanto, no ano seguinte estaria no ensino
médio, o que me causava preocupação era que a mensalidade aumentaria muito e minha mãe
estava viúva com pensão de um salário mínimo já que meu pai nunca se preocupou em contribuir para a previdência. Pelo menos, ainda tínhamos o táxi que, alugado, nos dava alguma
renda. Resolvi pedir para minha mãe me matricular no Liceu Nilo Peçanha. Tinham me
falado bem do colégio e isso me animou muito. No entanto, naquele ano de 1999 aconteceu
um fenômeno: muitos estudantes da rede particular como eu foram para o ensino público.
Quer dizer: as vagas do Liceu já estavam preenchidas e me remanejaram para o Colégio
Estadual Raul Vidal localizado no centro de Niterói, quase em frente ao mercado de peixe
São Pedro. O aspecto do colégio era sinistro. Parecia um presídio, com as paredes pichadas
e o danado do cheiro de peixe... Aquele colégio foi o ‘Ó’. Quando cheguei na sala, meio
desanimada, comecei a conversar e percebi que noventa por cento da turma era oriunda de
colégios particulares. Havia também os alunos remanejados do Liceu paro o Raul Vidal como
eu. Isso me confortou um pouco.
O ano letivo foi maravilhoso, aliás, todo ano de 1999 foi muito bom. Fiz grandes amigos, alguns para a vida toda. Minha mãe deu a volta por cima e pegou o táxi para dirigir.
Assim, nossa vida caminhou tranqüila. Também já não existia a implicância dos meus colegas
de sala de aula. Essa época foi bem legal. Comecei a sair para festinhas nas casas das amigas.
Eram as famosas festinhas americanas, onde os meninos levavam refrigerantes e as meninas
levavam o doce ou o salgado. Deixo aqui registrados os nomes dos meus grandes amigos
feitos nesse ano de 1999: Leonardo, Líliam, a Jajá. Destaco a amizade com a Danielle Que,
apesar de nossas vidas terem tomado rumos diferentes, quando nos vemos é como se nos
víssemos sempre. É normal acharem que somos irmãs.
No final desse ano, coloquei na cabeça que ia sair do colégio. Incomodava-me sua péssima
infra-estrutura. Resolvi fazer prova para as escolas técnicas: CEFET e Henrique Lage. Fiz a
prova e passei para o Henrique Lage. Eu tinha passado para o segundo ano do ensino médio,
mas como lá era um colégio técnico, tive que voltar para o primeiro ano. Contudo, isso não me
incomodou. Já que eu era adiantada um ano no colégio, continuei na faixa etária certa.
O primeiro dia de aula foi muito diferente. O colégio era enorme: um pátio gigante,
duas quadras abertas, um ginásio fechado e um campo de futebol. A diversidade de tipos
também era grande: tinha roqueiro, homem namorando homem, os góticos que iam beber
no cemitério eeu acostumada a um padrão de gente certinha, tive que aprender a conviver
com as diferenças.
74
Caminhadas de universitários de origem popular
Havia uma área destinada só para aulas de Desenho. Foi das que eu mais freqüentei.
Fiz o curso de edificações e sou formada em técnico. Essa era a única parte que eu gostava no
curso. Eu não suportava a parte dos cálculos, que não era pequena e passei três anos apoquentada,
louca pra concluir logo o curso. No colégio, fiz muitas amizades – em sua maioria masculina,
já que era um colégio onde predominavam os meninos. Logo, foi onde também conheci meu
primeiro namorado com quem fiquei por quatro anos.
A minha vida toda fui uma aluna mediana por pura falta de empenho, pois não gostava
de estudar. Achava maçante... era um sofrimento estudar. Só pegava nos livros quando estava
‘pendurada’ em alguma matéria. Foi no ano de vestibular que me deu um ‘estalo’. Assustavame a idéia de passar o ano seguinte ‘parada’. Passei a levar o estudo a sério. Ainda mais que eu
estava em dependência de matemática – só para variar! -, mas isso foi muito bom, porque me
obrigou a estudar. Com certeza foi um dos fatores que me fez passar no vestibular na primeira
tentativa. Ingressar na universidade tornou-se meu maior objetivo naquele ano. Só pensava em
qual profissão iria seguir. Só sabia de uma coisa: eu adoro interagir com outras pessoas, adoro
falar... se deixar, faço amizade até com pedras!
Falando sério, minha única certeza era uma inclinação para a área de humanas ou de
ciências sociais. Certo dia ouvi uma CDF da minha sala falar sobre Serviço Social. Fiquei com
aquilo na cabeça e resolvi me informar. Gostei logo de cara.
O ano de 2002 foi caminhando para o fim. Eu havia me matriculado em um “intensivão”,
num esquema que dava um bom desconto para alunos da rede pública. Era um curso específico
para a prova da UFF e acontecia aos sábados à tarde. Ali, descobri uma faceta minha: a seriedade
e a determinação. Pela primeira vez na vida, pasmem, assisti às aulas concentrada! Quando
saiu o resultado, vi que estava aprovada para a segunda fase. Não fiz alarde, afinal, já estava tão
taxada de burra que quis mesmo era pregar uma surpresa nas pessoas que não acreditavam em
mim. Falei apenas para a minha mãe. Fiquei bastante animada com o resultado, tanto que me
escrevi em outro “intensivão” pra segunda fase. Dessa vez, me esforcei em dobro.
Em um domingo do mês de Janeiro de 2003, se realizava a prova da segunda fase da UFF.
Fazia um sol digno de cartão postal. Fui para prova de chinelos de dedo e bermuda. Totalmente
à vontade. Parecia estar fazendo faculdade para surfista. Minha mãe até perguntou se eu tinha
certeza de que estava indo fazer prova de vestibular.
A lista com o nome dos aprovados demorou mais de um mês para sair. Aquele fevereiro
foi o mês mais longo da minha vida. Enfim, chegou o dia “D” e minha mãe já tinha saído
pra comprar o jornal, quando acordei; no entanto, esperou eu me levantar da cama para ver o
resultado. Acordei dando um pulo em cima da Folha Dirigida. Não consegui ver logo o meu
nome. Eu tinha duas amigas que também estavam tentando para Serviço Social: uma na letra
J e outra na letra M. Primeiro, fui na J e ela estava aprovada. Depois, busquei no M e a outra
amiga também estava aprovada. Finalmente, resolvi ir à coluna do meio, na letra L e vi que eu
estava aprovada. Nossa! Foi uma emoção indescritível.
Mas por que Serviço Social? Vou tentar explicar. O processo de adoecimento do meu
pai trouxe o desejo de fazer alguma coisa na área da Saúde. Pensei em Fisioterapia, Nutrição,
algo assim... Mais tarde, fui mudando de idéia e minhas perspectivas migraram para a área de
Humanas. Primeiro pintou o desejo de ser psicóloga. Mas só até eu ler um artigo sobre o
Serviço Social e seu crescimento no mercado de trabalho. Confesso que fiz a prova do vestibular sem muita pretensão de passar. Tinha na bagagem uma trajetória na Escola Pública e
um pré-vestibular intensivo. Fiz mais para ver qual era!
Universidade Federal Fluminense
75
Passada a emoção da aprovação, chegou a hora de confrontar com a realidade da UFF.
Eu havia me inscrito para o segundo semestre e logo de cara peguei uma greve. As aulas
só começaram em outubro de 2003 e, enquanto a aula não começava, arrumei um bico de
animadora de festas infantis. O convívio com as crianças me fez descobrir o seguinte: quanto
mais rica é a criança, mais mal educada ela é. Certa vez, estava tomando conta do pula-pula e
havia um bolo de crianças tentando fazer fila para entrar no brinquedo. Notei que um menino
moreno tentava a todo custo furar a fila. Quando eu o interpelei, ele colocou as mãos na cintura e disse: “Quem você pensa que é, para me mandar?” Pensei em várias coisas pra dizer
ao monstrinho. No entanto, respirei fundo e fiz o jogo dele... Respondi: “Eu sou a dona do
brinquedo! Você só vai brincar se eu quiser!” O pior é que isso deu certo. Na verdade, esse
trabalho era um saco. Mas segurei durante um tempo, enquanto não começavam as aulas.
Permaneci lá até o fim de 2004. Nesse período, tive depressão. Sou uma pessoa muito ativa,
mas nessa época, além desse bico na casa de festas, só fazia dormir e brigar..
Fiquei muito animada quando as aulas recomeçaram. Era um mundo novo que se
abria diante dos meus olhos. Tudo cheirava a novo. Gostei do curso logo de cara. No primeiro
período, tinha aula de Filosofia e História, duas disciplinas que sempre tive interesse.
Mais tarde entraram as matérias que tinham mais a ver com o conteúdo profissional. Aquilo
tudo me agradava; contudo, também tinha um sentimento contraditório, uma sensação de que
todas aquelas teorias não passavam de uma grande balela. Faltava prática. Minha vontade era
de desistir do curso e pedir reingresso em Direito. Sei lá, tava confusa, mesmo! No entanto,
resolvi esperar o quarto período, quando começa o estágio curricular e essa foi a melhor
coisa que fiz:fui estagiar numa ONG no morro do Cantagalo, em Ipanema, Zona Sul do Rio.
Estou lá até hoje. Foi onde finalmente pude relacionar teoria e prática. Agora sim, me vejo
trabalhando como uma assistente social. Realmente nasci para isso! Não é uma profissão fácil
e nem glamurosa, mas é isso que me incentiva cada vez mais a seguir esse caminho.
Acredito que minha mãe tem hoje a sensação de missão cumprida. Conseguiu levar uma
das filhas à faculdade. Mas eu sei que ela só ficará satisfeita na hora em que a minha irmã
também estiver na academia, ou como ela mesma diz, encaminhada. A que já se encaminhou
se chama Luciana, tem vinte e um anos e é uma futura assistente social.
Luciana Oliveira da Silva
Parte 4
REDES
Capítulos:
Nostra cultura est nostra vita
Histórias das candaces
Capítulo 10
Nostra cultura est nostra vita
O palco era o terminal rodoviário de Niterói. Era uma tardezinha ensolarada, com
muitas pessoas que iam e vinham no mesmo ritmo, todos os dias. De surpresa, uma trupe de
três bobos aparece cantando e chamando a atenção. A Valma vestia uma peruca rosa; André
tinha a cara pintada metade triste metade alegre e a Lígia usava uma boina com enormes
plumas amarelas. Impossível qualquer um dos transeuntes deixar de reparar. Rapidamente
uma roda se formou em torno do grupo: trabalhadores cansados pelo dia de labuta, donas
de casa em passeio com os filhos, aposentados a caminho da loteria, crianças de rua... e
mesmo alguns bêbados de fim de tarde passavam por ali naquela hora. Uma interessante
congregação dos mais diferentes tipos. O estranho trio era variado nas apresentações
em números circenses: estrela, cambalhota, bananeira. Comédia Del’Art: sátira de uma
briga entre um conde e uma condessa; provocações para incitar a participação do público.
Depois de pouco mais de meia hora de espetáculo, a peça estava terminada. Todos aplaudiam.
Ao final, os três atores sentiam-se muito bem, sabiam ser os responsáveis por aqueles sorrisos, por aqueles momentos de diversão no meio da tarde conturbada. Foi engraçado. Foi
muito bom. E eu sei de tudo isso porque eu sou a Valma.
A música, o teatro, a dança sempre estiveram presentes na minha trajetória.
Desde pequenininha até hoje, e acho que isso não vai mudar. Através de encontros culturais, de mostras de música e teatro, de concursos de dança me foi possível apresentar um
pouco do que eu gostava, fazia e era. Posso dizer que aquilo que sou hoje é uma fusão de
momentos e aprendizados vividos no campo cultural, na escola, na família, na igreja.
Na verdade, sou descendente de pessoas versadas na arte de vencer dificuldades na
vida. Venho de uma família pobre. Cresci em uma casa em constante processo de construção. Mas uma coisa eu posso garantir: o segredo da minha família é a união. Meu pai
é de Mutum, interior de Minas Gerais. Quando veio para Niterói não tinha onde morar e
com o dinheiro das horas extras no trabalho, fez a nossa casa.
Já minha mãe veio do interior do Rio Grande do Norte. Ela é de São Rafael, um lugar
onde se guardavam as melhores roupas para a missa de domingo. Meu avô trabalhava na
feira e minha mãe o ajudava. Ele faleceu quando ela ainda era muito nova. Eram sete filhos
e uma situação muito difícil. Minha avó subia a serra para colher algodão, debaixo de um
sol muito forte. O lucro era muito pouco. Seguindo a sina de boa parte dos nordestinos,
minha mãe foi para São Paulo e, depois, para o Rio. Aqui conheceu meu pai em 1978 e no
final de agosto de 1979 eles se casaram. Em 1982, nasceu Volmar. Um ano depois, foi a
minha vez de nascer. Meu pai fez uma mercearia em frente a nossa casa, em Rio do Ouro,
um bairro de São Gonçalo. Minha mãe começou a trabalhar como costureira. Após alguns
cursos, exerceu também as atividades de cabeleireira e esteticista. Ficávamos muito tempo
com os nossos pais e com a nossa avó, que era quase nossa vizinha.
Universidade Federal Fluminense
79
Meu jardim de infância foi em uma escola estadual, onde meu irmão estudava a alfabetização. Infelizmente era comum não ter aulas, por isso meus pais não quiseram que
permanecêssemos lá. Fomos transferidos para uma escola particular muito pequena, cujo
preço era bem acessível. Eu fui para a alfabetização, meu irmão para a primeira série. Não
havia quadra, mas um pátio pequeno em que todos brincávamos. Alguns professores eram
muito atenciosos. Ainda hoje, é uma alegria encontrá-los.
Com o passar o tempo, a escola cresceu. Cada ano oferecia uma nova série.
Em pouco tempo, já tinha uma turma de 3º ano do ensino médio. A formatura da minha
turma aconteceu em 2001. Guardo lembranças de alguns professores. O de Educação Artística, Márcio Jorge, sempre me apoiou em muitos passos que dei. Quando fazia balé, ele foi
a uma apresentação. Na época em que eu e meu irmão começamos a cantar MPB, Márcio
também estava lá. Também se alegrou ao saber que passamos para a universidade.
Quando tinha nove anos, minha mãe e meu pai fizeram a seguinte reflexão: “Esses
meninos estão com muito tempo livre, brincam muito na rua... precisam de uma ocupação”.
A idéia era que tivéssemos outras atividades além da Escola. Meu irmão gostava de
música, sempre teve uma percepção rítmica muito boa. Já eu, me preocupava se o ritmo
e a melodia permitiam dançar ou não. Fomos colocados em uma aula de teclado em
Alcântara. Era engraçado: o Volmar desenvolveu a linha melódica muito bem. Ele tinha
muita agilidade. Meu ponto forte eram os acordes. Sabia de todos possíveis de serem
ensinados naquele nível. Enfim: ele tocava muito bem com a mão direita e eu com a
esquerda. Fizemos aulas em três cursos diferentes. No último, fomos preparados para
o ingresso na Escola de Música Villa-Lobos. Eu tinha doze anos e estava na 5ª série.
Estudávamos muito para essa prova e sem deixar cair o nosso rendimento no colégio.
Meu irmão chegou a fazer a prova, passou e se formou lá. Eu perguntei a minha mãe
se poderia fazer balé junto com as aulas de música. Ela falou que eu teria que escolher.
Escolhi a dança e parei com as aulas de teclado.
Minha carreira de bailarina começou com aulas de balé clássico e jazz. Fiquei um
ano e meio estudando dança num curso em Icaraí, um bairro classe média alta de Niterói.
Minhas amigas iam, dos melhores e mais caros colégios, direto para a aula. Mas uma vez
com as sapatilhas nos pés, não havia diferenças: nem financeira, nem racial, ou qualquer
outra. A arte da dança se parece com a música. Precisa da sincronia do conjunto, é uma
atividade de dependência e confiança. Quando eu estava quase completando quatorze anos
fui para um Studio de Dança. Ficava até mais perto da minha casa. Estudei pouco mais de
três anos com a professora Ana Paula, uma excelente bailarina e ótima pessoa. Lá conheci
o balé moderno, o contemporâneo, o sapateado, além de continuar estudando o jazz e o balé
clássicos. Nessa época, assistia aos mais diversos espetáculos: Lago dos Cisnes, Quebranozes e companhias de balé: da cidade, de Portugal, entre outras. A cada apresentação,
entendia e gostava mais de dança. Eu saía do colégio sempre meio-dia e vinte e ia para a
aula de dança, que começava às duas da tarde e terminava às cinco. As aulas aconteciam
duas vezes na semana: terça e quinta. Quando chegava em casa, depois de descansar um
pouco, fazia os deveres e trabalhos da escola, que não eram poucos. Estava na 7ª série e
apesar de ter achado difícil, não ficava com nenhuma disciplina pendente. No Studio, não
tínhamos férias de julho nem de fim de ano. Pelo contrário, eram os momentos em que mais
estudávamos. Fazíamos aulas durante a manhã inteira. Era obrigação perder os quilinhos
a mais do natal e do ano novo.
80
Caminhadas de universitários de origem popular
Em menos de um ano, comecei a fazer aulas de ponta com sapatilha de gesso, a famosa técnica de andar na pontinha dos pés e a usar esparadrapo nos dedos. Comecei a fazer
também sapateado e a ir um dia a mais para o Studio, às sextas-feiras. No final de 1997,
chamaram a professora para dar aulas de balé para criancinhas em uma academia um pouco
mais próxima do centro da cidade. Eu tinha quatorze anos. Ela me perguntou se eu queria
dar aulas em seu lugar. Aceitei na hora. Quinze dias depois, fui dar minha primeira aula.
Já estava até fazendo planos: poder pagar as aulas no Studio, pagar minhas passagens, meus
lanches... e, na minha ingenuidade, pensava ser o início de minha independência financeira.
Com muito nervosismo, debutei como professora de balé e gostei muito da experiência.
De todos os planos feitos em relação ao dinheiro, só seria possível concretizar um:
pagar as minhas passagens. Nem para o lanche dava, só para algumas balinhas. Fiquei lá
como professora durante oito meses. Foi difícil sincronizar os horários. Saía do colégio,
almoçava e ia para o Studio, onde as aulas passaram a ser mais cedo. Depois, tinha exatamente
30 minutos para começar a dar aula na academia. Era o tempo certo de trocar de roupa,
pegar o ônibus, trocar de roupa novamente e, já na academia, começar a aula. Quando a
aula terminava, eu estava hiper cansada. Pegava sempre um ônibus cheio para voltar para
casa. Chegava por volta das 19 horas. Ainda tinha que ter pique para ver os deveres de
casa, o que de tornava muito cansativo. Às vezes fazia só a metade dos deveres à noite e,
para fazer a outra metade, acabava por ter de acordar mais cedo. Ainda assim, não deixava
meu rendimento escolar cair. Às vezes minhas notas oscilavam durante os meses de setembro a dezembro. Era a época das apresentações. Além de eu me preparar para o Studio
tinha ainda que arrumar as minhas alunas: fazer coreografia, ver o figurino, a sonoplastia.
Por isso me dedicava muito aos estudos no começo do ano para chegar ao final com os
pontos para passar de série no 3º bimestre. Então a escola dispensava os alunos daquelas
disciplinas em que eles já haviam passado. Durante este tempo, já tinha ganho experiência suficiente para dar aulas particulares. Sem falar da necessidade de ter mais dinheiro.
Conversei com a minha mãe e fiz o seguinte pedido ao meu pai: fazer uma sala grande
no quintal da nossa casa para poder dar aulas. Como esse projeto ia demorar, minha mãe
falou para eu dar aulas à noite na sala de espera do salão dela. Era um bom espaço. Minha
mãe ainda fez propaganda para formar minha primeira turma. Eu não tinha vergonha de
dar aulas, mas fazer propaganda, não era comigo. Comecei com uma turma de umas dez
crianças, todas meninas. Continuei a fazer aulas de dança até os dezessete anos. Dei aula
até os 22 anos, para ser mais exata, até o mês passado. Dentre os meus planos para 2006,
está o de voltar a praticar o balé de novo, como professora e também como aluna.
Aos quinze anos, meu irmão me chamou para formarmos uma dupla de MPB. Ele falou
que minha voz era bonita, que eu já tinha uma base musical. Bem, eu acreditei. Começamos
a ensaiar e aos poucos, vieram as apresentações: em teatros, festas da igreja. Meses mais
tarde ganhamos coragem e começamos a compor nossas próprias músicas. As de minha
autoria eram as mais melosas e românticas. “... E se da minha janela sob o luar, eu te chamar,
você vem...”. Demorou até eu sair desta linha. Por me sentir um pouco insegura, entrei para
o Conservatório de Música do Estado do Rio de Janeiro. Estudei com a professora Selme,
que já era professora do meu irmão há sete meses. Minha vida virou uma correria só. Estava
na 8ª série, cada dia eu pensava em uma carreira diferente. Havia o colégio, os trabalhos,
o balé, as aulas e, então, as aulas de canto e os ensaios com meu irmão. E eu nem estou
citando minha participação na Igreja, com o grupo jovem e a Legião de Maria.
Universidade Federal Fluminense
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Amei o conservatório. Ali se respirava música. Quando nós passávamos nos corredores,
na frente de cada sala vinha um som de um instrumento diferente, tanto em gênero popular
como erudito, era maravilhoso, novamente uma “mistura” de raças, de classes e de culturas.
Quando tinha audição, uma espécie de apresentação para os professores do conservatório e
para os familiares, amigos etc. Os alunos se juntavam e apresentavam um repertório muito
bom, com música clássica e popular, com chorinho e MPB, instrumentais e obras cantadas
também. Dependendo da escolha da música chamavam algum músico para nos acompanhar.
Uma vez minha professora escolheu uma música para mim, “Uirapuru”. Ela é linda! Tem
um tom brejeiro, poético e clássico também. Fui acompanhada por uma pianista E, com toda
essa convivência, já me sentia muito mais segura para cantar com meu irmão, foi então que
fizemos um show no próprio conservatório de música com a renda revertida em alimentos
para as crianças que viviam então no lixão de São Gonçalo. Sempre pensávamos nessa questão
social: em como existem pessoas em extremas dificuldades financeiras no nosso município e
no Brasil em geral. Podíamos fazer alguma coisa aqui, ainda que pouca. Então procurávamos
deixar algumas apresentações com a renda revertida para alguns projetos sociais.
Com muita dificuldade e trabalho, gravamos um CD com 4 músicas. Enviamos a uma
gravadora. Como resposta, recebemos apenas uma carta otimista dizendo: não desistam.
Corríamos atrás de lugares para nos apresentar, nossos amigos iam para assistir. Participamos
de alguns programas de televisão, a cabo e em TV aberta. Estivemos também em alguns
programas de rádio em Minas e aqui no Rio, aparecemos até em alguns jornais. Fazíamos
shows em teatros, na praia, em restaurantes. Tentávamos economizar ao máximo para comprar
um instrumento melhor, ir a um estúdio melhor para aumentar a qualidade das gravações...
Tudo isto ocorreu dos quinze aos vinte anos. Durante este tempo eu saí do balé, não havia
como conciliar com tantas coisas. O que eu não parei mesmo foi com a escola. Comecei a
me preparar para o vestibular e a me dedicar mais à Igreja e à música.
Conciliar o estudo com minhas atividades culturais era quase uma obra de arte. Fazíamos
a divulgação das músicas em Minas Gerais apenas no período de férias. Era muito bom, pois
a família do meu pai é de Minas, então aproveitávamos para visitá-los. O tempo dedicado à
escola era o período da manhã. No final da tarde ensaiávamos. Nos finais de semana, a gente
participava da Igreja, íamos à missa e, depois, saíamos com os amigos para comer alguma
coisa, assistir a um vídeo ou só conversar mesmo. Em alguns sábados, fazíamos apresentações
em lugares diversos como restaurantes e teatros. No domingo de manhã, aproveitava para
adiantar alguma matéria. Apesar de muitos compromissos, estudávamos para que o rendimento
escolar não diminuísse. Concluí bem o Ensino Médio em 2001. Carregando muitas saudades
dos amigos e professores.
Em 2002, comecei a me dedicar mais seriamente ao vestibular. Não fiz pré-vestibular, me organizei para estudar sozinha. Aumentei o tempo de estudo e diminuí o de ensaio.
Mas ainda assim, conciliava as duas atividades. Foi uma época ótima, com muitas descobertas. Mas vimos também como a caminhada rumo aos nossos projetos de vida é difícil. Foi
tudo uma experiência maravilhosa. Naquele ano, fiz vestibular para jornalismo para UERJ
e UFF, mas não passei.
Para completar meu currículo cultural, eu tinha que fazer teatro também. Em 2003,
com 19 anos, entrei em um curso livre de teatro em Niterói. Fiquei oito meses no primeiro
nível. Depois, fiz preparatório na Oficina Social de Teatro, que na época ficava no SESC.
Lá fizemos algumas apresentações muito importantes. Quando estudamos um pouco da
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Caminhadas de universitários de origem popular
Comédia Del’Arte, montamos uma peça de Arthur Azevedo, que se chamava “Amor ao Pelo”.
A idéia era mesclar o teatro com a arte circense atuando como clown, aqueles palhaços com
narizes vermelhos e sapatos enormes. Mais tarde, incorporamos o uso de acrobacias, algumas
músicas e instrumentos de percussão. Esta peça teve uma repercussão ótima e pude fazer um
trabalho que nunca tinha tido a oportunidade: o teatro de rua.
Estudei também o teatro antigo, o teatro do absurdo, os grandes autores, e adaptações
da literatura para a arte dramática. Foi um amadurecimento muito grande. Pensava em fazer
jornalismo, mas estava disposta a entrar primeiro para Letras devido à concorrência dos cursos
de comunicação. Passei então a me dedicar à Literatura. A oportunidade de mesclar produção
literária com o teatro foi maravilhosa.
Prestei o vestibular em 2004 para a UFF e UERJ. Novamente, não fiz pré-vestibular.
Quando abri o jornal e vi que tinha conseguido passar direto para a UFF e ficado para reclassificação na UERJ fiquei muito feliz. Sai abraçando e beijando todo mundo. No dia da
matrícula na UFF, encontrei pessoas que havia conhecido no dia do vestibular. Já no primeiro
dia de aula, encontrei uma turma muito divertida, com algumas boas diferenças de idade e
professores maravilhosos.
Tentei conciliar o teatro com a universidade. E até estava dando certo. No entanto, recebi
convites para interpretar personagens densos e polêmicos de Nelson Rodrigues. Não estava
preparada e isso me prejudicaria com os trabalhos na faculdade. Resolvi, então, dar um tempo
também no curso. Não o abandonei totalmente. Montei um grupo de teatro infantil, escrevi
uma peça. Continuo estudando, na medida do possível, algumas técnicas de interpretação.
Venho de uma família muito católica. Quando eu tinha nove anos, entrei para a Legião
de Maria, onde toda a semana nós fazíamos visitas a casas, hospitais, orfanatos e asilos.
Toda semana escolhíamos alguém ou alguma instituição para visitar e ajudar no que fosse
possível: oração, atenção e doações. Este trabalho me fez ver a realidade de pessoas que
precisam de ajuda. Há três anos atrás eu e meu irmão começamos a fazer na Igreja, com a participação da comunidade, uma pequena festa de 15 anos para as meninas da paróquia que não
tinham absolutamente nenhuma condição de ter alguma comemoração. Foi muito gratificante.
Foi na Igreja, através da banda e do teatro, que conheci carências com as quais antes eu não
tinha contato. Ainda hoje tenho um grupo de teatro. Estamos trabalhando especificamente o
tema do alcoolismo e suas reações na família.
Há três anos meu irmão conversou com o Padre da nossa paróquia e procurou saber
da possibilidade de se fundar um pré-vestibular comunitário. A idéia era que a mensalidade
custasse só R$10,00 (dez reais). No início de 2005, fui chamada para ser a professora de
redação, eu aceitei. A partir da metade do ano, o pré ficou sem professor de língua portuguesa
e eu também comecei a dar aulas desta matéria. No início fiquei com um pouco de receio.
Estava começando o meu segundo ano da faculdade e a turma tinha pouco mais que 50 alunos,
mas minha primeira aula foi muito boa. Havia feito um planejamento, só que quando cheguei
lá, não pude cumprir com nada. As dúvidas mais simples eram tormento para uma parte da
turma. Passei três aulas tentando fazer uma grande revisão para poder entrar na matéria do
vestibular. Hoje, o número de alunos diminuiu já que muita gente não passou na UERJ, alguns
não conseguiram isenção e outros perderam um pouco da auto-estima.
Meu irmão entrou para Letras na UERJ um ano antes de mim. Em 2004 já participava
de uma bolsa de extensão numa parceria UFF/UERJ. Ele me explicou o papel da extensão
em uma universidade, do diálogo com a comunidade. Achei o projeto muito interessante, o
Universidade Federal Fluminense
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nome era: Rede de Universitários em Espaços Populares ou RUEP. Um ano depois, abriram
vagas para outro projeto também de extensão: Conexões de Saberes. Logo me inscrevi e fui
chamada. Conheci pessoas maravilhosas, me interessei muito pelo projeto, por toda a questão
social que se pretende trabalhar.
Neste final de 2005, estou no meu segundo ano da Faculdade de Letras e no primeiro
ano de projeto. Junto com meu irmão estou montando uma escola do jardim até a 1ª série para
funcionar já em 2006. Já faz tempo que nós trabalhamos como explicadores. Às vezes tínhamos
grupos de até oito alunos na mesma turma para tirar dúvidas ou fazer revisão para a prova.
E as pessoas também sempre perguntavam: “Por que vocês não abrem uma escola?”.
Nossos pais nos incentivam muito no projeto da Escola, mais do que isso: trabalham
com gente. O local escolhido foi o quintal da nossa casa, que é bem grande. A obra ia ficar
muito cara se partíssemos do zero. Meu pai havia construído há 4 anos duas casas para serem
alugadas. Adaptamos as casas, em pequenas salas de aula. O restante do quintal ficou para
os brinquedos e a área de lazer. Fizemos um muro e deixamos o colégio independente. Em
alguns domingos, nós pintamos a escola. Durante a semana, vemos a documentação, a parte
pedagógica. É tanta coisa... Mas é muito bom nos dedicarmos a algo em que acreditamos.
Temos amigos que se integram ao projeto (e seria muito difícil, praticamente impossível, se
estivéssemos sozinhos). São pessoas já formadas em pedagogia e outras que ainda estão se
formando, como nós.
Minha vida e minha formação se assemelham a um quadro multicor: a família, a escola,
a igreja, a música, o teatro, a dança. Tudo isso se amalgamou na pessoa que eu sou hoje, nos
meus projetos de futuro. Não é por acaso que buscaremos trabalhar com esses elementos com
as crianças da nossa escola. A final de contas, se existe um caminho de formação profunda
naquilo em que se transforma cada ser humano, acredito que ele segue a direção dada pelo
horizonte da cultura.
Valma Barbosa de Souza
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Caminhadas de universitários de origem popular
Capítulo 11
HIstórias das candaces
Venho de uma família afro-brasileira: segundo minha árvore genealógica, meus tataravós
foram escravos, segundo minha avó paterna, sua avó foi liberta durante o período da Lei do
Ventre Livre, entretanto, como ainda era muito pequena e não poderia ficar longe de sua
mãe continuava a ser indiretamente escrava. Esta informação foi bastante importante para a
formação que possuo hoje. A escolha do meu pseudônimo está ligada a forma como eu vejo
a questão étnica racial. O termo Candace originário do grego Kandakê é a forma latina, com
influência francesa de Kantakai. Representava um título real comum às rainhas do império
etíope. Este termo representa as mulheres negras do Egito que durante anos lutaram para
preservar seus impérios. Hoje acredito que faço parte do que denomino no meu trabalho
como “Candaces do séc. XXI” As mulheres sempre foram colocadas em segundo plano em
nossa história. O histórico da mulher foi sempre marcado por secularização, menosprezo,
subalternidade e quando se trata da mulher negra este quadro tende a se triplicar. Na época
da escravidão a mulher negra/escrava era exposta às mais terríveis violências institucionalizadas pelos homens brancos na senzala. O número de estupros era absurdo, em alguns
casos a escrava virgem era comparada a remédio para a cura de alguma enfermidade que
os senhores pudessem possuir. Daí o estereótipo que a mulher negra possui: “mulher negra
sensual, gostosa, boa de cama!”
Minha avó paterna possui cinco filhos, três mulheres e dois homens. Três são formados
à nível superior (serviço social, ciência sociais e fisioterapia) em faculdades particulares.
Percebo que ter estes três filhos formados para meus avós era uma grande vitória, visto
que desde cedo precisaram trabalhar para o sustento de casa. Minha avó sempre trabalhou
dentro de casa, meu avô nunca permitiu que ela trabalhasse fora, meu avô trabalhou como
pedreiro. Em 1942, a família Santos se muda para o Rio de Janeiro a procura de melhores
oportunidades para os filhos.
Minha avó materna teve dois filhos, veio a falecer no ano de 1954, sem nunca ter conhecido o Rio de Janeiro. Meu avô paterno constituiu uma nova família na qual teve cinco
filhos. Lembro-me do meu avô como aquele figura serena com cabelos brancos, que dava
duro na roça, de onde tirava o seu sustento e alimento, mas ao final do dia ficava no portão
de casa fumando o seu cigarro de palha.
Quando fui ao interior de Sergipe passar uma temporada com meu tio e minha mãe,
percebi que as pessoas, apesar de humildes, possuíam um grande apreço pela vida. A violência
que cada vez mais assusta os cariocas, lá é como não existisse. Apesar de estar no mesmo país,
a sensação que tive é como se estivesse em outro país. Outra característica é a religiosidade;
festas como São Pedro são comemoradas com grande alegria pelo povo.
Venho de uma mistura de nordestino com carioca. Minha mãe migrou do interior de
Sergipe com 11 anos com seu irmão para tentar uma vida melhor, como a maioria das pessoas
do interior. Chegando ao Rio, instalou-se na favela de Nova Brasília (Complexo do Alemão)
Universidade Federal Fluminense
85
onde ficou durante 10 anos morando com sua tia, somente saindo de lá quando casou com
meu pai cuja família era do interior de Araruama. Sua vida ao chegar no Rio de Janeiro foi
difícil, primeiro devido à adaptação numa cidade nova, totalmente diferente da sua e segundo
devido à dificuldade para arrumar trabalho. Por muito tempo minha mãe trabalhou em casa
de família no Bairro de Botafogo.
Após o matrimônio, meus pais foram morar em Rocha Miranda, subúrbio do Rio de Janeiro,
em um apartamento financiado pela caixa econômica. Após três anos de relacionamento veio o
primeiro filho do casal, Werneck Tadeu dos Santos que hoje está com 26 anos. Werneck cursou
Administração na Faculdade Estácio de Sá, entretanto não concluiu o curso. Acredito que desde
o início não se identificou com o curso, preferiu ser policial. Desde que ele tomou esta decisão
minha família vive em constante medo, principalmente quando ele está em serviço.
Minha gravidez foi planejada pois minha mãe já possuía uma idade considerada pela
medicina de alto risco para a gravidez (37 anos). Meu parto foi cesaria no Hospital Geral de
Bonsucesso às 13h15m. Nasci com 3 quilos e 350 gramas medindo 50 centímetros. Fui praticamente a primeira neta pois a “legítima” primeira neta veio a falecer com 3 anos de elefantíase.
Meu nome, apesar de significar soberana, gloriosa, foi escolhido pela minha mãe, sem motivos
especiais.
Meus pais possuem o segundo grau completo, nunca almejaram concluir o nível superior.
Desde cedo meu pai ingressou nas forças armadas e minha mãe conciliou o trabalho com o
curso de enfermagem na Escola de Enfermagem Ana Neri para se tornar anos depois auxiliar
de enfermagem. Hoje ambos estão aposentados após anos de duros e intensos trabalhos.
São ao todo 27 pessoas na minha família, entre tios, avós, primos e bisnetos, e costumamos
estar sempre juntos, principalmente em datas importantes.
Tivemos um grande susto em 1990 quando meu avô, devido a complicações diabéticas,
teve de amputar sua perna esquerda e logo após os dedos da direita. Para ele foi bastante difícil
a realidade de que nunca mais poderia andar com suas próprias pernas. A família se uniu e
conseguiu comprar uma perna mecânica para ele. A adaptação foi extremamente difícil devido
a sua idade, mas aos poucos conseguiu. Hoje devido a outras complicações meu avô não anda
mais com a perna mecânica, somente com cadeira de rodas.
Em 1996, tive outro grande susto. Meu pai devido a complicações circulatórios teve que
ser operado e amputou o dedão do pé esquerdo. Foi um momento bastante complicado principalmente a sua recuperação, pois apesar de não poder ele continuava a beber e fumar muito.
Devido a isso em 1999 ele voltou ao hospital para operação urgente de coração, hoje meu pai
tem uma ponte de safena e uma mamaria.
Em 14 de março de 2000, tivemos uma perda irreparável, meu tio materno, a única ligação
que minha mãe possuía com sua família, faleceu de AVC; foi um dos momentos mais dolorosos
que vivi. Antes de falecer, ficou a mercê de um tratamento ineficaz do sistema público de saúde,
no qual as condições do hospital eram péssimas e faltava desde o mais básico até instrumentos
principais para salvar a vida de uma pessoa.
Estes dois susto e uma perda foram bastante importantes para a nossa união. Nestas
situações sempre tivemos unidos e fortalecendo um ao outro.
Como toda família afro-brasileira, cada membro de certa maneira é marcado por alguma
história de preconceitos e discriminação. Minha família não poderia ficar longe disto; aprendi
deste cedo que tudo que fizesse teria que fazer bem feito, ou seja, a todo momento teria que
me auto afirmar .
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Caminhadas de universitários de origem popular
Minha infância passei no Bairro de Rocha Miranda, subúrbio do Rio de Janeiro, e fui uma
criança extremamente tímida, devido a motivos pelos quais irei expor mais a frente.
Para a mulher negra acredito que o peso discriminatório aumenta. Fui a “primeira” neta
da família paterna de oito netos e dois bisnetos. Desde criança não via nenhuma referência importante de pessoas negras. Aprendi que bonito era ter cabelos lisos, pele branca e nariz afinado.
Ter pele escura, cabelos crespos e nariz alargado, era feio. Na televisão (nossa que tristeza!),
todas as apresentadoras eram brancas. Quando via alguma coisa relacionada ao negro, eram os
escravos chicoteados nos troncos ou Zumbi, o grande quilombola. Com tudo isto, era difícil
me espelhar em alguém e me sentia um pouco excluída. Esta exclusão aumentou quando entrei
no colégio mais tradicional no meu bairro (Colégio Salesiano), pois acredito que na concepção
dos meus pais era preciso “dar tudo de melhor” para seus filhos para que eles não ficassem
totalmente “marcados”.
Durante minha vida acadêmica, era extremamente tímida, quase não possuía amigos e
me sentia totalmente inferiorizada devido a minha raça (creio que tinha vergonha do que era!).
Lembro-me uma vez falando com minhas amiguinhas da escola dizia que queria ser ‘paquita’
e elas num tom de deboche falaram que eu não poderia ser ‘paquita’, porque não havia ‘paquita
preta!’ Quando tentava me aproximar a fim de brincar com os jogos trazidoss pelas minhas
coleguinhas, nunca tinha vez. Além da exclusão, possuía problemas fonológicos (trocas de
fonemas) e dificuldade para me concentrar nos meus estudos e me sentia uma criança diferente
e triste. Minhas notas eram totalmente baixas, principalmente matemática, com isto tive várias
explicadoras ao longo da escola. Fui reprovada na 2ª série o que aumentou minha baixa estima:
além de preta era burra!
Fiz tratamento fonoaudiológico durante seis anos e mudei algumas vezes de terapeuta
devido à ansiedade pelo tratamento.
Na presença de meus familiares me sentia mais protegida; talvez pelo fato de naquela
época ser a única neta, todas as atenções eram voltadas para mim. possuía poucas amigas que
se resumiam as do meu prédio e em todas as brincadeiras que fazíamos em conjunto eu era
sempre jogada a funções secundárias (empregada, dona de casa, ...). No ambiente escolar, me
sentia um patinho feio.
No ano de 1988, mudei-me para o Bairro de Honório Gurgel, aonde permaneço até hoje.
A mudança de bairro foi essencial para minha vida. Mesmo com a mudança de bairro continuei
no mesmo colégio, entretanto, como minha rua é bastante grande e meu irmão sempre foi bastante
comunicativo passei a conviver com os amigos dele, visto que na minha rua não havia muito a
presença feminina. Apesar da abertura do leque de amizades, continuava a me senti um patinho
feio. Para frustração da parte feminina da minha família, não possuía nenhuma vaidade, detestava
tudo que representasse feminilidade (sutiãs, batom, saia, e, principalmente, namorados ).
No ano de 1990 sofri um acidente. Tive meu olho esquerdo queimado, com queimaduras de 1º e 2º. Foi um grande susto! Brincando com a fogueira que meu pai costumava fazer
para esquentar água, peguei o vidro de álcool que estava com um algodão e me aproximei da
fogueira, a partir daí só me lembro de mim no hospital esperando os primeiros socorros. Minha
recuperação foi gradativa e por muito tempo tive que ficar com meus olho tampado; havia até o
risco de uma deficiência na vista, entretanto, graças à Deus hoje enxergo perfeitamente.
Quando passei da fase da adolescência, não possuía, nenhum interesse pelo que as meninas
da minha idade tinha, principalmente no que diz respeito a namoros, me sentia muito feia
para que algum menino quisesse interessar-se por mim.
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Não sei ao certo quando comecei a aumentar minha auto-estima, mas aos quinze anos
não era nem sombra da menina reprimida que tinha sido na infância. Comecei a freqüentar o
baile funk próximo da minha casa. A principio não porque gostasse, mas sim porque o grupo
gostava. Preferia os bailes charme; ver aquela negada toda arrumada e dançando o mesmo
passo ou cada um a sua maneira seja velho ou criança para mim era contagiante. Lembro-me
uma vez em que estava indo ao baile charme. Estava no ônibus e um rapaz não quis sentar
no banco para não amassar a roupa! Era lindo, ficava torcendo para que os meus amigos
funkeiros mudassem o gosto musical.
Certa vez, fui ao baile funk na comunidade grota, subúrbio do Rio; assim que cheguei
ao local o cheiro de maconha estava terrível, havia pessoas de todo tipo desde os playboys da
zona sul a crianças de colo. Todos cantando músicas de apologia ao crime. Pessoas armadas
tinham livre acesso ao local, os meninos que mal conseguiam sustentar as armas visivelmente
pesadas exibiam as armas com o maior orgulho, como se fosse prêmio. Usavam roupas e
sapatos de marca, conquistando as meninas que almejavam. Hoje, fico pensando que talvez
a maioria daqueles jovens que estavam naquele baile hoje não está mais aqui. Foram mortos
pelos próprios bandidos da comunidade ou comunidades rivais ou por polícias.
Comecei a ter outros amigos com concepções totalmente diferentes da que tinha
na infância. Quando terminei a 8ª série tive que tomar uma decisão: ou eu continuava no
colégio ou mudava para outro e começava a trabalhar. Minha decisão foi a segunda. Entrei
num programa chamado APAR, que pertence ao Rotary Club e que tem como objetivo
capacitar jovens na idade de 14 a 17 para o trabalho de aprendiz. Terminado este curso
fui encaminhada para uma empresa no centro da cidade aonde desempenhava a função de
conferista e onde permaneci até os 18 anos. Na escola estava totalmente familiarizada; ao
contrário do que acontecia no Colégio Salesiano, me identificava muito com meu grupo de
amigos. Eram pessoas iguais a mim que precisavam “ralar” o dia todo para ao final do mês
o dinheiro mal dar para pagar as contas. Meus amigos da rua continuavam a ser os mesmos,
ficávamos horas e horas em rodas sentados na rua discutindo diversos assuntos, que hoje
percebo o quanto foram importantes para minha consciência crítica. Comecei a diferenciar-se
dos meus amigos da rua quando decidi ao terminar meu segundo grau e prestar o vestibular.
Quando tomei esta decisão muitas pessoas vieram me “aconselhar” a não tentar, visto que eu
não iria conseguir por dois motivos óbvios: ser pobre e ser negra. A princípio ficava horrorizada por não conseguir associar o meu acesso a universidade pública a tão cruéis motivos.
Ingressei num pré-vestibular pois não teria base para passar somente com o que aprendi
nos anos anteriores. Foram três anos tentando e a cada tentativa frustada, ao mesmo tempo
que possuía o apoio da minha família em continuar, meus amigos, conhecidos e vizinhos
insistiam nos argumentos que apresentei acima..
Durante este período continuava a trabalhar, em outra empresa aonde desenvolvia a
função de faturista.. Neste período comecei meio que timidamente a me interessar pela temática
racial e comecei a freqüentar alguns seminários, palestras sobre este assunto.
Minha decisão em prestar o vestibular a principio não teve nenhum motivo especial, só
o de que a meu ver era importante ter o diploma. A escolha do curso veio da referência que
tenho da minha tia que é assistente social e que, entretanto não tinha uma postura crítica em
relação ao profissional; possuía o pensamento do senso comum que diz que o profissional é
uma pessoa que faz o “bem sem ver para quem!” A notícia da escolha do curso foi recebida
com bastante alegria pelos meus familiares, principalmente pela minha tia.
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Caminhadas de universitários de origem popular
No último ano, optei por prestar vestibular para serviço social na UFF em Campos
dos Goyagazes e consegui a tão sonhada aprovação. Apesar de estar feliz com a aprovação,
foi uma decisão bastante difícil, pois além de ir para uma cidade, na qual eu não conhecia
ninguém, tive que pedir demissão do meu trabalho que a está altura já me dava certa estabilidade financeira. Tive o total apoio de meus pais e em nenhum momento fui estimulada
a desistir. Minha adaptação foi extremamente difícil, a princípio fiquei numa república
com cinco meninas, todas do interior do Rio, e a maioria era a primeira da família que
estava fazendo faculdade. Apesar de estar separada apenas algumas horas do Rio, sentia
muita falta da minha casa, dos meus amigos e familiares e procurava sempre aos finais de
semana voltar para o Rio, onde de certa maneira procurava recuperar minhas forças para
enfrentar a semana longe de casa. Nesses cinco meses que estive em Campos me senti
bastante enriquecida, pois comecei a dar valor a algumas coisas que a princípio podem
parecer pequenas, mas que no fundo são bastante importantes. Não consegui me adaptar e
solicitei ao meu departamento transferência para a UFF Niterói. Meu pedido foi aceito e
passei a freqüentar as aulas em Niterói. Apesar de eu não ser “caloura” me sentia totalmente
caloura, pois era tudo totalmente diferente da que vivenciava na UFF Campos.
A notícia da minha aprovação no vestibular de uma universidade pública foi recebida
com grande alegria na minha família, pois apesar de meus tios terem concluído o nível superior, fui a primeira da minha família a garantir uma vaga na faculdade pública! As pessoas
da minha rua começaram a me ver diferente de como me viam, algumas com respeito, outras
com admiração, mas o certo é que senti que minha vida nunca mais seria a mesma.
Na faculdade comecei a freqüentar grupos de discussões e movimentos estudantis.
Como estudava a tarde, ficava até altas horas na faculdade com meus amigos, discutindo
questões sobre a universidade. Tive que passar meu curso para a noite, pois comecei a
estagiar e fazer bolsa de pesquisa. Comecei a chegar muito tarde em casa, com isto ficava
cada vez mais vulnerável aos perigosos que a noite oferece. Muitas das vezes chegava em
casa em meio a tiros e gritos. A bolsa de pesquisa foi bastante importante, tanto na parte
financeira quanto na parte intelectual. O objeto de pesquisa era a saúde da população negra,
ou seja, algumas doenças que a esta população está mais vulnerável a ter do que a população
branca. Tive a oportunidade de conhecer alguns autores que foram de extrema importância
para mim: Joel Rufino, Guimarães, Abdias Nascimentos entre outros... Identificava-me com
tudo relacionado a questão étnica racial; talvez por ter sofrido tanto na minha infância com
a falta de identidade, me achava na obrigação de compreender um pouco da minha história
e de alguma maneira reverter isto para a minha sociedade, principalmente o meu bairro.
Comecei a desenvolver um trabalho, a princípio no mês de Novembro, sobre consciência
Negra; tinha a maior preocupação em mostrar não a parte cruel do meu povo, que me foi
apresentada na infância e fez com que eu tivesse vergonha de ser negra, mas acima de tudo
a alegria, a inteligência deste povo sofrido
Em 2000, tive a oportunidade de conhecer Salvador. Fiquei totalmente encantada
com a cidade tão rica em cultura e recordações/manifestações afro brasileiras epassei a
freqüentar outros tipos de lugares, se antes eu gostava de freqüentar baile funk, agora meu
point é a Lapa, Santa Tereza etc, lugares nos quais muitos amigos de bairro meus nunca
pensaram em estar.
Minhas amigas começaram a ter filhos, outras casaram, comecei a perceber que para
elas o fato de casar e ter filhos já estava bom, elas não possuíam nenhuma perspectiva futura.
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Apesar de sentir que era o diferencial nunca deixei de estar com meus amigos, mesmo que
fosse para dizer um ‘alô’. Acho importante ter esta convivência com eles e tento de certa
maneira servir como exemplo para que eles possam criar expectativas e tentar mudar a vida.
Ao longo da vida perdi também muitos amigos; um me chama a atenção : seu nome era
Jamelão. Desde novo era “meio voado” e não possuía perspectivas futuras; o importante para
ele era viver a vida naquele instante. Adorava fumar cigarro de maconha. Um dia começou
a roubar para sustentar o seu vício, num destes roubos não teve sorte e acabou sendo morto
pelos policiais, caiu de olho aberto no asfalto que pelo calor estava “queimando”. Foi uma
cena chocante de presenciar.
No ano de 2003 recebi uma proposta do pároco da minha igreja para desenvolver
um trabalho étnico racial. Na hora aceitei a proposta por compreender que a igreja católica
possui uma divida com os negros e afro-descendentes pelo massacre que foi a escravidão.
Ela foi umas das responsáveis para a manutenção deste massacre. Promovi uma exposição
afro-brasileira, a qual dividimos em três partes: religiosidade afro, personalidade afro e o
negro no Rio de Janeiro. Encerramos as atividade com uma missa inculturada, para a qual
trouxemos algumas culturas afro. A parte conservadora de igreja reprovou a missa, mas a
grande maioria das pessoas aceitaram o nosso trabalho. A partir deste trabalho comecei a
interessar-me mais sobre o assunto.
Entrei na faculdade com bastantes expectativas, queria aproveitar tudo que a faculdade
pública poderia me oferecer. No primeiro ano fiquei encantada. Era como se tudo que eu
estava vivendo fosse um sonho, me auto-afirmar na faculdade para mim era o fator principal por isto sempre procurei fazer o melhor. No quarto período comecei a procurar estágio,
entretanto não poderia me dar ao luxo de fazer estágios não remunerados, então corri atrás
de remunerados. Os estágios foram totalmente importantes para o meu amadurecimento
profissional. Meu último estágio que foi na ONG Grupo Cultural Afro Reggae foi bastante
importante por dois motivos: ser dentro de uma comunidade e ter um recorte racial. Vigário
Geral é uma comunidade do Rio de Janeiro que ficou conhecida pelo massacre da chacina, na
qual, em 29 de agosto de 1993, vinte e uma pessoas foram covardemente assassinadas pela
Polícia Militar em vingança pela morte, no dia anterior ao da chacina, de quatro policiais por
traficantes da favela. Esta ONG foi criada no período em que a comunidade estava com sua
auto-estima abalada devido ao vergonhoso acontecimento. Hoje a ONG é uma espécie de
exemplo para os jovens e famílias que residem na comunidade.
A Segunda ONG em que eu estagiei me fez perceber que nem tudo passado pela mídia
pode ser confiado. A ONG em questão é da atriz global Isabel Filardes que trabalha com a
reciclagem de lixo e tem como público alvo a população em situação de rua. A ONG é passada como um grande incentivo social, entretanto não passa de uma faixada aonde o maior
objetivo não é social, mas sim o financeiro.
Com a experiência de ONGs que possuo, devo concordar com a afirmação do autor
Montaño:
O objetivo de retirar o Estado (e o capital) da responsabilidade de intervenção na questão
social e de transferi-los para a esfera do terceiro setor não ocorre por motivos de eficiência
(como se as ONGs fossem naturalmente mais eficientes que o Estado), nem apenas por
razões financeiras: reduzir os custos necessários para sustentar esta função estatal. O motivo
é fundamentalmente político-ideológico: retirar e esvaziar a dimensão de direito universal
do cidadão quanto a políticas sociais (estatais) de qualidade; criar uma cultura de autoculpa
90
Caminhadas de universitários de origem popular
pelas mazelas que afetam a população, e de auto ajuda e ajuda mútua para seu enfrentamento;
desonerar o capital de tais responsabilidades e, por um lado, uma imagem de transferência
de responsabilidade e por outro a partir da precarização e focalização (não universalização)
da ação social estatal e do terceiro setor, uma nova e abundante demanda lucrativa no setor
empresarial.
A faculdade pública ainda tem muito a evoluir no quesito assistência para alunos
oriundos de comunidades populares, conheço vários alunos que infelizmente tiveram que
desistir do curso (abrir mão do seu sonho), pois não tiveram condições de continuar o curso.
Lembro-me de uma situação na qual uma amiga teve que solicitar o trancamento do curso
pois como o bandejão estava fechado não tinha condições de comer e pagar em outro lugar.
É vergonhoso que um aluno que deu um “duro” para conseguir ingressar numa faculdade
pública não consiga concluir o curso porque a própria faculdade não proporciona ao mesmo
mecanismos para a sua subsistência.
Waleska Maria dos Santos
Universidade Federal Fluminense
91
Parte 5
TRABALHO
Capítulos:
Sobre obstáculos e conquistas:
minha trajetória até a
universidade pública
A Rua nunca sai do lugar
No despertar de uma nova
consciênci
Speeder, o Cronômetro e
seus 30 mil caracteres
Capítulo 12
Sobre obstáculos e conquistas:
minha trajetória até a universidade pública
– Vocês não podem colocar as barracas aí! – disse o comandante da operação.
– Mas estamos na última semana antes do Natal! – retrucou nervoso um dos ambulantes.
– Não adianta argumentar, nós estamos avisando antes! Na volta, vai perder tudo!
– Nem adianta, vamos bater de frente!
O diálogo acima antecedeu mais um confronto entre integrantes da Guarda Municipal - a
responsável pela repressão ao comércio ambulante nas ruas do Centro de Niterói - e dezenas
de camelôs. No entanto, este teve maiores proporções em virtude do fluxo de pessoas nas
ruas do Centro, em função das compras de Natal e a própria intransigência das partes em
confronto.
Os ambulantes pressionavam pela liberação das ruas para poderem vender suas mercadorias após semanas de intensa fiscalização: cosméticos, DVDs de filmes que há pouco
entraram em cartaz, CDs piratas de jogos como o badalado Couter Stryke e brinquedos
dos mais variados tipos: de mini-games a bonecos de personagens de desenhos animados
como Dragon Ball e Pokemon. Uma verdadeira invasão de produtos chineses! E a Guarda
Municipal? Acatando determinação da Secretaria de Segurança, se via obrigada a impedir
que muitos daqueles cidadãos, numa tentativa desesperada de sobreviver, pudessem montar
suas barracas.
– Vamos lá pessoal! Não tem argumento! Bradava um supervisor exaltado, ordenando
a retirada dos camelôs.
Chega a imprensa. Fotógrafos registram o clima tenso. Os flashes das câmeras parecem
desencadear o confronto. Têm início as brigas. Alguns guardas parecem incontroláveis: chutam
e atingem com seus cassetetes tudo e todos a sua frente. A resposta dos camelôs vem sob a
forma de uma chuva de pedras.
Cães, bombas de gás lacrimogêneo e algumas prisões efetuadas pela polícia militar,
que apoiava a operação, diminuem a intensidade do confronto. O trânsito parou no Centro
em frente ao terminal rodoviário.
E eu no olho do furacão me perguntava: “Até quando a administração municipal vai
continuar considerando o trabalho repressivo como solução para esta questão?”
Essa indagação faz parte de um conflito interior em que vivo. Como conciliar um trabalho
cuja natureza é totalmente distinta da carreira que pretendo seguir após a conclusão da minha
graduação em Geografia? Como me posicionar diante do choque de me ver assumindo uma
postura profissional truculenta, como medida para lidar com um fenômeno que tem suas raízes
em profundas mudanças verificadas na economia do país? Esta é uma das questões vividas
por mim desde que entrei na Guarda Municipal, em dezembro de 2001.
Universidade Federal Fluminense
95
O emprego me trouxe alguma segurança em função da estabilidade conferida pelo serviço
público, o que me tranqüiliza no que diz respeito à obtenção de uma renda - ainda longe do
ideal, em virtude do arrocho salarial enfrentado pelo funcionalismo público. Mas apesar de
tudo, é o que auxilia o custeio de uma parte das despesas da universidade.
Desde minha passagem pelo curso de pré-vestibular comunitário na Maré, de
1998 a 2000, já vislumbrava as dificuldades por que passa um aluno oriundo do espaço
popular durante sua vida acadêmica. Dentre elas, destacavam-se as de cunho financeiro.
Eu pensava algo mais ou menos assim: “Se eu passar no vestibular, como vou custear
minhas despesas na universidade?” Nessa época, os gastos voltados para a manutenção
no ensino superior me pareciam incompatíveis com meu poder aquisitivo. Eu trabalhava
em uma empresa de segurança privada e vigilância, recebendo uma remuneração que não
ultrapassava dois salários mínimos. O que dizer então sobre as dificuldades no que dizia
respeito ao tempo disponível para acompanhar as aulas e aquele reservado para a leitura
e confecção dos trabalhos exigidos pelos professores! Por outro lado, dedicar-se ao prévestibular não era menos complicado, como salientava um dos professores, na medida
em que conciliar os horários, de trabalho e estudo, já se constituía como um desafio – e
que em muitas ocasiões me desestimulava.
Somava-se a esse cenário de lutas, a defasagem no que diz respeito aos conteúdos
programáticos nos ensinos médio e fundamental, muito aquém do que viria a ser cobrado no
vestibular. Conseguir chegar ao pré-vestibular poderia ser considerado um feito. Por quê?
Analise comigo: o número de moradores que consegue concluir o ensino fundamental, por
exemplo, é bem reduzido. Lembro de uma pesquisa da Secretaria Municipal do Trabalho do
Rio de Janeiro, em comunidades de baixa renda, feita em 1999, que constatou que 62% dos
jovens não completaram o ensino fundamental. Estar no pré-vestibular da Maré era sentir-se
no topo de uma pirâmide no que diz respeito à educação. Era ter a exata noção de que consegui
me sobrepor a um número nada pequeno de percalços.
Hoje fico feliz por não ter engrossado as fileiras daqueles que evadiram da escola.
A interminável lista dos que, com a necessidade de contribuir com a renda familiar, se vêem
lançados numa inserção prematura e precária no mercado de trabalho quase sempre marcada
pelo subemprego. É justamente essa situação de vulnerabilidade que torna uma parcela dos
adolescentes de espaços populares, alvo preferencial de alguma rede ilegal como o tráfico de
drogas. Se eu segui por caminhos diferentes, boa parte dos créditos deve ser dada ao esforço
de minha mãe.
Migrante nordestina e analfabeta, ela teve a árdua tarefa de sustentar seu único filho, sozinha, após a separação de seu cônjuge - ele também oriundo do Nordeste, analfabeto, operário
da construção civil. Daí o seu retorno ao trabalho como empregada doméstica e a ausência de
qualquer garantia trabalhista. Minha mãe somente teve um único registro em sua carteira de
trabalho em 37 anos de exercício profissional desde sua chegada ao Rio de Janeiro. Natural
da cidade de Guarabira, na Paraíba, chegou à Cidade Maravilhosa na década de 1960. Logo
depois, começou a trabalhar como faxineira em residências de famílias de classe média alta
na Zona Sul carioca. Costumava recordar que a primeira comunidade popular que conheceu
foi o Morro Dona Marta, em Botafogo, aonde mais tarde viria a morar.
Já em 1971, com as economias que havia poupado, conseguiu adquirir um lote onde
se formava uma das comunidades originais da Maré: o Parque União, estabelecido sobre
um aterro feito por uma empresa particular que, por problemas financeiros, repassou o ter96
Caminhadas de universitários de origem popular
reno para a Caixa de Amortização da União. A ocupação da comunidade foi organizada por
um advogado, Margarino Torres, que já havia defendido a permanência dos moradores na
comunidade vizinha de Rubens Vaz contra as tentativas de expulsão feitas pelo Estado.
A dor pelo falecimento de minha mãe em junho de 2003 continuará forte por muito
tempo. Perdi, sobretudo, meu referencial de honestidade e dedicação ao trabalho. Sua estatura
mediana e porte franzino escondiam a sua gigantesca disposição para a dura lida com as
jornadas de vida que tinha de enfrentar: ser mãe, dona de casa, empregada doméstica. Sem
falar de sua doçura e carinho comigo, que a caracterizavam como uma mãe protetora. A vida
sem minha mãe por perto está bem mais difícil.
A tarefa de ser empregada doméstica e ter de cuidar da própria casa incluía o acompanhamento de minha vida escolar - que durante o ensino fundamental somou três reprovações
e uma aversão mortal à Matemática e outras inimigas afins como Química e Física; matérias
que só existiam quando havia professor. Por outro lado, desde cedo foi surgindo uma simpatia
e, porque não dizer, maior dedicação com relação à História e Geografia. Mas nessa época,
sequer suspeitava que essas duas disciplinas influiriam em minha escolha no vestibular.
Aos 15 anos de idade e na 8ª série do ensino fundamental, já ingressava no mercado de
trabalho por força da necessidade de auxiliar nas despesas domiciliares. Mas também para
diminuir as preocupações de minha mãe com relação à ociosidade, vista por ela como fator
de risco. Inicia-se neste momento, minha sina de enfrentar a dupla jornada: trabalho-escola.
Para a minha mãe, o mais importante era começar a trabalhar e afastar-me das ruas e de eventuais más companhias. Afinal, já diz o imaginário popular: cabeça vazia, oficina do capeta!
Minha adolescência ficou marcada pelo meu primeiro afastamento dos estudos.
Concluído o ensino fundamental, somente ingressaria no ensino médio dois anos depois.
Minha única preocupação era continuar trabalhando, o que me assegurava os recursos embora parcos! - destinados a ajudar minha mãe. Além disso, possibilitava a aquisição de
alguns bens de consumo não duráveis, vestuário e calçados, bem como dispor de dinheiro
suficiente para o entretenimento, mais especificamente, cinema – sempre algum Blockbuster estadunidense. Sem falar das saudosas tardes de domingo no Maracanã para ver
meu rubro-negro jogar.
Em 1990, ingressei no ensino médio, voltando a enfrentar dificuldades para conciliar o
horário da escola com meu trabalho. Foi assim até sua conclusão, já em 1994. Todavia, um
problema ainda maior se apresentava: a qualidade do ensino oferecido pela escola onde estava
matriculado: o Colégio Estadual Bahia, situado às margens da Avenida Brasil. Naquele momento, pude perceber com mais clareza, o sucateamento da educação pública. Não apenas sob
a forma de uma escola com suas instalações físicas deterioradas. Mas também pela ausência
de professores para diversas matérias: Geografia, Química e Biologia – sendo as duas últimas, minhas maiores dores de cabeça durante minha passagem pelo pré-vestibular da Maré.
Como miséria pouca é bobagem, ainda me deparava com o desestímulo dos poucos professores em atividade que em virtude da baixa remuneração e divergências quanto à política de
educação então em vigor, não ofereciam maiores perspectivas no horizonte profissional.
Diante desse quadro, não vislumbrava conseguir uma melhor colocação no mercado de
trabalho, algo que almejava de imediato. Nem mesmo qualquer possibilidade de mobilidade
social pela via da educação, o que desejava conquistar a médio ou longo prazo. O vestibular,
inclusive, me parecia algo inatingível nessa época. Aliás, jamais tive qualquer informação a
seu respeito no ensino médio.
Universidade Federal Fluminense
97
Posso afirmar, categoricamente, que passei três anos e meio - de 1995 até o segundo
semestre de 1998 - completamente afastado dos estudos. As únicas exceções foram alguns
cursos de informática realizados neste intervalo de tempo. A minha fonte de informações
sobre atualidades na política, economia e demais temas era a leitura de jornais - Jornal do
Brasil e O Globo. Era um hábito cultivado desde a adolescência e que hoje se resume a
leitura nos fins de semana, inclusive de outros veículos de comunicação: a Folha de São
Paulo, e as revistas Caros Amigos e Carta Capital.
O retorno à sala de aula ocorre no segundo semestre de 1998. Essa volta aos estudos
está ligada ao surgimento do pré-vestibular CPV-Maré, primeiro projeto implantado por
aquela que viria a ser a mais importante organização não-governamental atuante no hoje
bairro Maré: o CEASM – Centro de Estudos e Ações Solidárias da Maré. Aqui vale uma
confissão: a princípio, duvidava da credibilidade desta iniciativa. Temia tratar-se de um
projeto de caráter oportunista de algum político clientelista. No dia-a-dia do curso as dúvidas
iniciais se dissiparam. Ficou clara a seriedade do projeto. Logo nas primeiras aulas, já era
evidente que a empreitada exigia dedicação e esforço ímpares. O programa do vestibular
era impiedoso! E a defasagem trazida do ensino médio, criava um abismo entre minha
bagagem e o que seria exigido.
Por se tratar de uma iniciativa promovida por uma organização cujo objetivo é a
transformação da realidade social da Maré, o CPV não visava, tão somente, o acesso de
estudantes ao ensino superior. Tinha como meta conscientizar os alunos a respeito das
contradições do mundo e do Brasil em particular, marcada por profunda desigualdade na
distribuição de renda e oportunidades, gerando as mazelas que tanto nos assolam: fome,
violência... Sendo que é interessante pensar essa última palavra na sua concepção mais
ampla. Não só a violência letal que tantas vidas tem ceifado, principalmente nas periferias
das grandes cidades. Mas também as violências ocultas manifestando-se na precariedade
das redes públicas de saúde e educação ou num mercado de trabalho que absorve cada
vez menos mão-de-obra, obrigando muitos a buscar alternativas para sobreviver, como
biscateiros ou ambulantes.
O CPV-Maré constitui-se como um curso de formação política e apartidário. Exerceu
papel fundamental na minha vida e de muitos daqueles que passaram por suas salas, auxiliando
a desvendar nossa sociedade e a construir um olhar crítico sobre os fatos.
No entanto, minha dedicação não foi, nem de longe, integral ao curso. E o resultado?
Nada surpreendente! Simplesmente não consegui a vaga na única universidade para a qual
naquele ano prestei vestibular: a UFRJ. O projeto de entrar na universidade foi adiado
para o ano seguinte. Mais que nunca, o trabalho dificultou ao máximo o acompanhamento
das aulas. Nessa época, eu ralei muito! Uma doideira! Minha carga horária como vigilante
era estafante: 66 horas semanais, de oito da manhã a oito da noite, com trabalho aos sábados e em Duque de Caxias, outro município da região metropolitana do Rio de Janeiro.
Não seria novidade se eu dissesse que não pude acompanhar o conteúdo do curso. E, mais
uma vez, fracassei em meu intento.
Em 2000, resolvi mudar de ares. Tive uma breve passagem pelo pré-vestibular oferecido pelo SINTUFRJ - o Sindicato dos Trabalhadores da UFRJ – o que me foi possível
graças a minha filiação ao sindicato representante da minha categoria profissional. Contudo, lá para o meio do curso, em função de uma crise que eclodiu entre a coordenação do
curso e a direção do SINTUFRJ me desliguei do pré. Decidi, então, voltar ao CPV-Maré.
98
Caminhadas de universitários de origem popular
O retorno tinha como objetivo desfazer as mal-sucedidas passagens anteriores, conquistando
definitivamente uma vaga nas instituições para as quais prestei vestibular: UFRJ, UERJ e
UFF. Agora seria para valer!!! E foi.
Em 2001, consegui ingressar no curso de graduação em Geografia da UFF, onde,
aliás, tive uma excelente classificação no vestibular - até em função de tudo aquilo por que
passei em minha vida escolar, profissional e familiar: fui o 20º classificado entre os 317
candidatos que disputavam as 100 vagas oferecidas.
Contudo, chegar à universidade aos 29 anos é bem diferente do que fazê-lo aos 18,
como a maioria dos jovens de classe média. Estar na academia em idade mais avançada
cria barreiras como a impossibilidade de integrar alguma atividade além das aulas, como
projetos de pesquisa. Um exemplo é o acesso à bolsa de iniciação científica, oferecida pelo
CNPQ – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, onde a idade
é um critério excludente, os interessados não podem ter mais de 25 anos.
Vivi um momento delicado ao ter que decidir pela saída da empresa onde trabalhava,
já que não eram cumpridas as obrigações trabalhistas. Mas precisava conseguir outro emprego. Foi aí que surgiu o anúncio sobre o concurso para a Guarda Municipal de Niterói,
em julho de 2001. Logo despertei interesse em participar. Era a oportunidade de trabalhar
e estudar em uma mesma cidade, algo vantajoso no que diz respeito ao tempo de deslocamento entre ambos.
Hoje, na graduação, a frase de um dos professores do CPV-Maré me acompanha no
dia-a-dia do curso: “Mais difícil que passar no vestibular, é concluir o curso de graduação,
é sair da universidade formado”. Na minha memória continuam vivas as dificuldades surgidas na minha e em outras trajetórias de alunos universitários de origem popular. Chegar
ao ensino superior ainda é um privilégio somente desfrutado por parcela ínfima dentro do
universo de jovens provenientes das classes populares. Ainda assim, esse cenário é melhor
hoje do que há 10 anos, graças a iniciativas ou políticas de ações afirmativas para democratizar
o acesso às universidades públicas.
Minha vivência nestes quatro anos na Academia foi marcada pela irregularidade,
pelo menos nos primeiros períodos. Apropriar-se de forma consistente das características
e do que é exigido pela vida acadêmica e pela cultura do escrito foi meio barra pesada
no início. As leituras e discussões pareciam muito subjetivas e difíceis de compreender.
Tem até uma pesquisadora da PUC do Rio que fala sobre isso, a professora Tânia Dauster.
Um de seus estudos trata da construção de identidades de estudantes universitários oriundos de estratos sociais diferentes. No entanto, a partir do 5º período meu desempenho
em uma parte das disciplinas melhorou substancialmente, assim como meu coeficiente
de rendimento.
A convivência entre os alunos do curso de Geografia acaba reproduzindo os muros
simbólicos que dividem as diferentes classes sociais no cenário urbano. Alunos de classe
média costumam ter seu grupo fechado. O mesmo acontece com universitários de origem
popular. O diálogo entre esses grupos se dá de forma tímida. São relacionamentos onde
ainda persistem os olhares atravessados, marcados pelo preconceito quanto à minha origem.
É algo que ficou patente na pergunta de uma colega de turma, ainda no primeiro período:
“Mas onde você mora não é perigoso? Como é que você consegue morar lá?!”, uma clara
alusão ao que é veiculado nos meios de comunicação, que representa o espaço popular
como o lugar onde surge e se irradia a violência na cidade.
Universidade Federal Fluminense
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Incomodava também a desconfiança quanto a minha capacidade de apreender os conteúdos abordados em aula. Um exemplo para ilustrar esse comentário aconteceu no segundo
período, na elaboração de um trabalho, de uma disciplina eletiva. Havia no nosso grupo,
uma aluna de classe média, filha de um profissional liberal e de uma funcionária pública.
Tive a ingrata surpresa de ser informado por um colega, que minha parte escrita do trabalho
foi entregue pela menina a um outro aluno para ver se valia à pena aproveitar alguma coisa:
“vê se o texto desse favelado presta.” Melhor: não só prestava como ele ficou admirado pela
forma de exposição dos principais eixos do tema do trabalho, algo sobre o Neoliberalismo.
Apesar do medo de a minha “natureza de favelado” puxar a nota do grupo para baixo, minha
dedicação rendeu uma das melhores notas e elogios da professora responsável pela matéria.
E não só pelo trabalho, mas pela minha participação em suas aulas e envolvimento nas discussões promovidas.
A convivência é mais amistosa com os alunos provenientes de outras favelas ou bairros
da periferia. O mesmo acontece com os universitários vindos dos demais municípios da região
metropolitana do Rio de Janeiro, como os da Baixada Fluminense. Acredito que existe uma
natural empatia em função da semelhança de nossas trajetórias, marcadas, sobretudo, pela
mesma origem familiar. Assim como eu, muitos são filhos de migrantes nordestinos e estão
submetidos a uma dupla jornada: trabalho-universidade. São pessoas que trazem também o
desejo de transformar a realidade social de seus espaços de origem.
E para não fugir à rotina, mais uma vez tento conciliar minha atividade profissional com
os estudos. Mas, desta vez, são as atividades desenvolvidas na universidade: aulas, palestras,
trabalhos de campo etc. A necessidade de trabalhar para manter-se na universidade contribuiu
decisivamente para a minha participação no concurso público para a Guarda Municipal de
Niterói, um cargo que não possui a mínima afinidade com meu curso de Geografia.
Não me agrada realizar uma das tarefas destinadas a Guarda Municipal: a repressão aos
camelôs. O crescimento da economia informal, onde estão inseridos os vendedores ambulantes
é o desdobramento mais visível do desemprego estrutural de nossa sociedade globalizada,
contribuindo para o crescimento do exército de reserva. Espero tão logo conclua minha graduação e consiga aprovação em um concurso para a área da educação, não mais permanecer
neste emprego e não participar mais de histórias como a que iniciou esse texto.
“Reagrupar pessoal, reagrupar!”, determinava aos berros um supervisor ao fim do
confronto. E todos voltaram para a sede da Guarda Municipal, com o saldo de algumas
mercadorias apreendidas e a preocupação de que novos confrontos poderiam ocorrer.
Um trabalho truculento e paliativo em virtude dos descaminhos tomados por nossa desgovernada sociedade do século XXI.
Marcelo Costa da Silva
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Caminhadas de universitários de origem popular
Capítulo 13
A rua nunca sai do lugar
Tive que tomar banho frio. Meu pai ainda não tinha consertado o chuveiro. Depois da
ducha gelada, coloquei a roupa branca de novo, tomei o Danone de novo, saí pela mesma
porta de novo e segui para o trabalho de novo... de novo, de novo, de novo.
Saio de casa por volta de nove e meia. Dobro a rua, aquela que nunca sai do lugar e que
está sempre do mesmo jeito. Pensava: “Será que é a rua... ou eu que não mudei o rumo da
minha vida?” Caminho, então, de forma automática, em direção ao meu redundante destino.
No meio da rua, uma voz me pergunta:
– Cíntia, tem uma vaguinha pra mim na agenda do Doutor?
– Tá bom! Vou marcar para aquele dia da semana que você acha melhor; naquele
horário, né?
Uma outra voz me pede:
– Cíntia, vê se dá um jeitinho para mim também!
– Claro, pode deixar comigo!
Aproximo-me do portão do consultório, distante uns 100 metros da minha casa. Como
todo dia, brigo com a chave e a fechadura. Sei que a chave dessa forma não abre. Tento, como
das outras vezes, de outro jeito e pronto.
Abro a segunda porta e chego ao consultório dentário para mais um dia. Guardo a
bolsa numa estante branca cheia de formulários de faturamento. A sala é branca, apenas com
uma pequena janela basculante que fica em frente à cadeira do cliente e que é verde. Ao seu
lado, tem uma mesa de madeira branca que é utilizada para marcar as consultas. Rotinas de
trabalho:
– Rosely, cadê a agenda do Doutor? Tenho que marcar uma restauração. A Ana falou
que o dente dela está doendo.
– Cíntia, até parece que você não sabe que fica dentro da gaveta.
– É... Eu sei! Doutor, como foi a semana?
– Foi muito boa! E a sua?
– Boa também. Nada de novo, não.
– Hum... Rosely faz para mim, por favor, a mistura de alginato para a moldeira A7?
Trim, trim, trim... é o telefone da mesa branca tocando e eu tinha de atender.
– Oi mana, o que você quer?
E após uma breve conversa com minha irmã:
– É... Eu já sabia que não ia passar mesmo. Deixa para lá.
Pus no gancho o telefone. Trim, trim, trim! É o bendito que toca de novo só que,
dessa vez, o que seria conversado, transformaria minha vida. Mas antes de atendê-lo, tenho
de contar uma outra história. Meu pai se chama José Carlos de Souza Silva, morador do
Boasú, uma favela de São Gonçalo. Sua trajetória de vida foi marcada por sofrimento e luta.
Ele nasceu em Itaperuna, município localizado na região norte do Estado do Rio. Lá, teve uma
Universidade Federal Fluminense
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vida melhor e não passava fome. Porém, tinha que trabalhar para ajudar na renda da família.
Meu avô comprou um carrinho de tomate e todas as manhãs meu pai acordava às cinco horas
da matina, horário em que o repassador chegava e fornecia o tomate para ele ir para a feira.
Sua vida mudou quando seu cunhado o chamou para trabalhar em Angra dos Reis, na usina
nuclear, em 1974. Com 24 anos, casou-se com Maria do Carmo Penha Silva, uma nordestina
da Cidade de Gravatá, Pernambuco. Minha mãe morava no sítio Cafundó, onde até 2004 não
existia rede de tratamento de esgoto nem luz. Aos 16 anos, a futura dona Maria do Carmo veio
para o Morro Boasú morar com seu tio em São Gonçalo, onde teria condições de estudar. Minha
mãe só estudou até o ensino fundamental, através de um supletivo.
Agora, um momento chave dessa história. No dia 26 de janeiro de 1985, em São Gonçalo,
eu nasci. É bem verdade que esse dia para os meus pais não foi muito bom. Minha mãe conta
que não tinha nenhuma roupinha de menina; só tinha as coisinhas de meu irmão. Meu pai se
viu, então, obrigado a passar numa loja para comprar uma manta para mim. No trajeto, sofreu
um acidente. Seu carro caiu numa vala de esgoto. Ele não se machucou, mas além do susto,
teve que aparecer na maternidade todo enlameado.
Uma apresentação mais formal: eu sou negra, pois meu pai é negro. A cor da pele de minha
mãe é branca, mas ela possui fortes traços de miscigenação. Seu pai era descendente de índio
e sua mãe de portugueses. Devido a essa diferença, muitas pessoas não acreditam que minha
mãe é minha mãe. Acho que pura e simplesmente pelo fato de ela ser branca e eu ser preta.
E o pior é que isso a fazia sofrer. Seu tio era racista e não aceitava o casamento com meu pai e
meus avós não eram cem por cento a favor do casamento. No entanto, costumavam brincar que
minha mãe, caso tivesse uma filha menina, deveria aprender a fazer trancinha.
Eu morei em São Gonçalo pouco tempo de minha vida. Com um ano de idade, fui morar
no Frade, em Angra dos Reis, onde passei grande parte de minha infância. Meu irmão mais
velho era meu principal companheiro de brincadeiras. Não tínhamos muitos brinquedos e nossa
diversão era fazer bonequinhos de jiló com palitos. Ficávamos ali horas com nossa fazendinha de
jiló. Gostávamos também de subir no pé de carambola – que além de ser gostosa, era um desafio.
Como nossa rua não era asfaltada, fazíamos uma pista no chão e colocávamos os besouros para
disputar corrida ou, então, catávamos as minhocas da terra e as colocávamos para nadar.
Eu estudei minha vida toda em escola pública. Para conseguir uma vaga na Escola Estadual
Roberto Montenegro, minha mãe teve que fazer um grande esforço. É que mesmo sendo uma
escola pública, a preferência era para os alunos das vilas. Lembro que no primeiro dia de aula
eu chorei muito por acordar às cinco horas da manhã para pegar o ônibus.
Quando eu tinha quatro anos, minha irmã mais nova nasceu. Como minha mãe não podia
me levar ao ponto para pegar o ônibus, eu e meu irmão íamos com a Juju, uma vizinhazinha de
nove anos. Para chegar ao ponto de ônibus, tínhamos que andar uns quinze minutos e atravessar
uma pista de mão dupla. Uma vez, eu larguei a mão da Juju e atravessei sozinha. Não vi que
vinha um carro, já que um ônibus impedia a minha visão. Resumo da história: um motorista
teve que jogar sua caminhonete contra uma divisão da rua de concreto para não me atropelar.
Nesse dia, eu não quis voltar para casa com medo de apanhar.
Muitas vezes, eu e meu irmão não tínhamos lanche para levar para o colégio. Quando
chegávamos por volta das seis e meia da manhã, a tia Gel sempre dava para a gente um café com
leite e pão com manteiga. Lembro que ficávamos tristes na hora do recreio. O lanche era comida
normal: arroz, feijão, carne..., mas nós, é claro, queríamos um biscoito daqueles recheados igual
ao das outras crianças. O material escolar e o uniforme eram doados pela escola.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Do que eu não gostava muito era da época de festa junina. Minha casa ficava distante
da escola e minha mãe quase nunca me via dançar quadrilha. Com sete anos, fomos morar
na Vila Operária e eu tive que mudar para uma escola mais próxima de casa: a Escola Estadual Almirante Álvaro Roberto. Mais tarde mudei novamente para a antiga Rua Roberto
Montenegro. No ensino médio, os livros adotados pelos professores não eram doados pelo
governo, logo, eu não tinha todos. Então, dava prioridade aos que achava mais importantes.
Os outros, eu pegava emprestado e estudava antes das minhas amigas.
Minha base escolar no ensino fundamental e médio nem de perto dava suporte para
tentar o vestibular. O famoso e batido exemplo clássico: no terceiro ano, estávamos estudando
a matéria de química do primeiro. Vi-me obrigada a tentar estudar sozinha aquele conteúdo
quase perdido. No terceiro ano, soube que professores do colégio haviam criado um curso prévestibular. Resolvi tentar uma bolsa. Consegui cinqüenta por cento. No entanto, com pouco
tempo de curso, desisti e passei a estudar sozinha, acompanhando o cronograma elaborado
pelas universidades.
Tinha como primeira opção o curso de Comunicação Social - Jornalismo. Nesse período,
urrei de tanto estudar, me dedicando exclusivamente aos estudos. Contudo, depois da decepção
da primeira fase da UERJ cai na ilusão de achar que não valeria a pena perder tempo estudando.
Minha mãe ficou até com medo de eu entrar em depressão porque sabia que eu me dedicava
muito aos estudos. Pedi, então, para minha cunhada Rosely, que trabalhava num consultório
odontológico, me arrumar uma vaguinha com o doutor Benê e consegui.
Nesse período, aos domingos, eu participava do “Promoção Humana”, um grupo da
Igreja Católica. Lá eu tinha contato com uma integrante que, por coincidência, era assistente
social. Ela me contava de seus trabalhos com dependência química, com a população mais
pobre. Por isso, me encantei com a profissão. Coloquei, então, nos meus planos fazer o vestibular para a UFF e me candidatar a uma vaga para Serviço Social.
Sinceramente, eu não acreditava que poderia passar para a faculdade nesse ano de 2002.
Com outra tentativa quem sabe? Desarmada com essa falta de confiança, fiz a primeira fase
do vestibular; só para desencargo de consciência. É verdade que estava mais preparada do que
no meio do ano, quando tentei o vestibular para a UERJ. Surpresa: passei bem para a segunda
fase da UFF. Acertei mais da metade dos pontos. Um pouquinho mais: 38 de 72 pontos.
Meu resultado foi maior do que dos meus amigos que faziam cursinho ou estudavam em escola
particular. Minha expectativa aumentou, mas tudo ainda parecia um sonho distante.
Eu trabalhava no consultório e estava terminando o terceiro ano. Ficava muito cansada
para estudar para o vestibular. Mesmo assim, as últimas horas do dia eram ligadas aos estudos
com o intuito de chegar à universidade. Estudava das seis da tarde às onze horas. Tentava
ainda acompanhar o cronograma. Era uma rotina de estudos cansativa: pegar emprestado o
material das minhas amigas que estavam fazendo cursinho para tirar cópias depois ir à biblioteca da escola para estudar e então pegar emprestado os livros.
Devido à deficiência do ensino público, não tive todo o conteúdo dos anos anteriores.
Estudava sozinha, um professor de matemática tirava as minhas dúvidas e assim foi feito com
as outras matérias. Também pedia ajuda aos meus colegas que faziam cursinho.
Meu chefe me liberava mais cedo para estudar. Comecei a dedicar mais tempo do que
o usual. A minha vontade de entrar na faculdade era muito grande. Eu não queria que minha
vida se limitasse a trabalhar de secretária em consultório. Não que eu não gostasse das pessoas, do lugar, mas ainda não era o futuro que eu queria para mim. Conciliar o trabalho com
Universidade Federal Fluminense
103
o ensino médio, não era coisa muito fácil. Para vocês terem idéia, eu acordava 6 horas da
manhã para ir à escola, chegava ao meio-dia, comia rapidinho e, uma hora depois, ia para o
trabalho. Meu expediente ia até 8 horas e, muitas vezes, até as 9 horas da noite.
Meu pai e minha mãe sempre me incentivaram muito. Acreditavam na minha capacidade
e como era boa aluna, meus pais não me cobraram muito as notas da escola. Falavam que eu
não precisava de cursinho pré-vestibular e que eu passaria direto.
Assim chegamos aquele fatídico dia no qual começa essa história. Tá lembrado? Telefone,
consultório, decepção e a mesma e monótona rua a ser percorrida todos os dias...
Trim, trim, trim. Era o telefone que tocava com minha irmã do outro lado pela segunda vez.
– Oi Monique, o que você quer de novo, garota? Não brinca... fala sério... verdade?
Mudei o rumo da rua.
– Doutor, Rosely, passei no vestibular!!!
E todos viveram felizes para sempre!! Certo? Errado!
Então com dezoito anos, em março de 2003, ingressei no Curso de Serviço Social da
UFF. Como eu havia trabalhado cinco meses no consultório, juntei um dinheiro que me ajudou
a pagar as despesas no começo da faculdade. Moradora de outro município tive a necessidade
de morar em uma república. Durante o primeiro período, a grana conseguiu cobrir os custos.
Mas na medida em que o tempo passava, os recursos iam acabando. Antes de ingressar na
faculdade, pensei na minha dificuldade financeira. Optei pelo curso da noite pela simples
possibilidade de trabalhar na parte da manhã ou tarde. Como eu tinha que pagar o aluguel
e a minha ida e volta para casa em Angra, tentei feito louca uma forma de me subsidiar – é
preciso dizer que eu economizava uma nota almoçando e jantando no bandejão.
Não é novidade que as bolsas voltadas à assistência estudantil são escassas. Também
são restritas a estudantes de períodos mais avançadas ou com um CR elevado. Dessa forma,
quando entrei na faculdade, fiquei meio perdida e sem nenhum horizonte de ajuda à vista.
Prevendo o perrengue, decidi fazer meu currículo para colocar nas lojas da cidade. Bem...,
foi aí que o preconceito me atingiu ferozmente. Apesar de ter experiência com o público, por
diversas vezes, o fato de ser negra inviabilizou a obtenção do emprego. Só um exemplozinho:
um dia, eu fui à Prefeitura de Niterói, onde existe um departamento que encaminha as pessoas para entrevistas. No quadro estava escrito: Precisa-se de moças com idade de 18 a 25
anos com cabelos compridos. O meu é. Perguntei para a atendente do balcão, se poderia me
dar a carta de encaminhamento. A resposta foi: “Não posso! Você não se enquadra no perfil,
nem tem cabelo liso.”
Outro fato ligado a preconceito aconteceu na faculdade. Uma amiga minha me falou
mais ou menos o seguinte: “Se os negros não pararem de falar sobre seu passado, enquanto
a mídia não parar de mostrar a luta dos negros, vocês nunca deixarão de ser dscriminados”.
Disse ainda que eu a irritava falando toda hora que era negra, que devemos lutar por nossos
direitos e com isso pude constatar o quanto a sociedade é racista e demagógica.
No primeiro semestre de 2004, fiquei durante quase três meses correndo atrás de um
emprego para continuar na faculdade. No segundo período da UFF, consegui emprego numa
empresa de telecomunicações. Trabalhei lá um ano e cinco meses. Foi um período muito
cansativo. Só tinha uma folga por semana e não tinha como me dedicar integralmente à
universidade. Recordo-me de certa vez ter passado em todas as etapas de uma seleção para
uma bolsa de pesquisa: redação, entrevista..., mas acabei ficando de fora no desempate, o
CR pesou e fui eliminada.
104
Caminhadas de universitários de origem popular
Naquele momento, percebi que o trabalho me prejudicava mais do que pensava.
A gota d’água foi a falta de tempo para fazer o estágio obrigatório. Resultado: tive que pedir
demissão e procurar algo quase impossível: um estágio em Serviço Social remunerado.
No meu caso, por exemplo, eu não pude estagiar no semestre correto, o quarto período, já
que estava trabalhando. Mais de uma vez, coloquei em cheque se esse esforço valia a pena:
passar muito tempo sem ver a família, ficar com os pés calejados de tanto andar em busca de
um trabalho e ainda uma última pergunta fica martelando a mente: “Será que quando eu me
formar vou conseguir um emprego?”
A verdade é que empregos como o que eu tinha na empresa de telecomunicações só
fortalecem a lógica capitalista que nós, no Serviço Social, tanto somos contra. Eis nossa estranha contradição: estudar Marx na teoria e ser esse trabalhador alienado na outra ponta do
mercado de trabalho. O Projeto Conexão de Saberes foi como uma luz que brilhou no abismo
escuro. Foi muito difícil conseguir uma bolsa de extensão, uma proposta que me incentivasse
a remar contra a maré capitalista... Mas é isso aí, eu consegui!!!
Cíntia Carla Penha Silva
Universidade Federal Fluminense
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Capítulo 14
No despertar de uma nova consciência
“Seja a mudança que você deseja para o mundo”
(Ghandi)
Todos os dias quando ia trabalhar, passava pelo terminal rodoviário, localizado
próximo à Baía de Guanabara, esse mundaréu de água que divide a cidade de Niterói e
o Rio de Janeiro. Ali no terminal, podia observar a linda imagem do Cristo Redentor.
Mas o que me chamava a atenção na paisagem era outra construção: o prédio da Escola
de Serviço Social da Universidade Federal Fluminense; e sempre passava pela minha
cabeça: “Um dia serei aluna de lá e serei muito feliz!” Mentalizava todos os dias esta
possibilidade. Para tanto, seria preciso buscar trabalhar, estudar e estudar. Em fevereiro
de 2003 o sonho se realizou. Hoje eu sou estudante de Serviço Social e venho me realizando nos mais variados sentidos. Mas, para entender essa história é preciso voltar mais
para trás no tempo.
Segundo minha mãe, 14 de fevereiro de 1980, foi o dia que em eu nasci: uma
menina grande, linda, fofinha e forte. Mas ao mesmo tempo frágil, em razão de algumas
infecções. Comecei a andar logo que fiz um ano. Era uma criança muito da emburrada e
pirracenta, tanto é que no meu álbum de fotos de dois anos, não tenho sequer uma foto
sorrindo. Minha mãe conta que antes de engravidar de mim, minha irmã sempre pedia:
– “Mamãe eu quero um bebê, eu quero um bebê branco”. Imagina!? Um bebê branco
de pais negros. O engraçado é que minha mãe diz que nasci uma criança esbranquiçada,
tipo preto claro. O caso é que minha irmã teve a tão adorada boneca branca que esperava.
Mas não se iludam: hoje sou a cara e da cor de meu pai. Ainda bem!
Minha mãe é filha de pequenos agricultores meeiros que residiam na cidade de
Itaperuna, região norte-fluminense. Desde os cinco anos, trabalhava duro na roça com
seus pais e suas três irmãs. Em 1962, veio para uma favela no Bairro da Engenhoca, em
Niterói. Foi onde, com 15 anos, conheceu meu pai. Tive um irmão que faleceu devido
uma infecção de ouvido. Eu tinha 9 anos e, nessa época, minha mãe, cansada das brigas
e da ausência do meu pai, mandou-o embora. Aconteceu num dia de 1989. Sofri bastante
com a ausência dele. Era como se o mundo desabasse sobre a minha cabeça! Cheguei a me
tornar um pouco insegura, isolada. Com o tempo, pude perceber que minha mãe tomou a
melhor decisão. Atualmente, eu e meu pai mantemos um relacionamento tranqüilo.
Até a alfabetização, estudei em colégios próximos à minha casa. Desde meus dois
anos moro no Barreto, um bairro próximo ao centro de Niterói. Não tive dificuldades
para ler e escrever. Lembro de uma experiência desagradável quando uma professora fez
a turma inteira me chamar de: cocoroca, cocoroca, cocoroca! Só porque eu era chorona.
Fiquei traumatizada, o suficiente para mudar de escola. Em compensação, aos seis anos,
106
Caminhadas de universitários de origem popular
fiz balé em meu outro colégio. Penso hoje que esta foi uma das melhores experiências
de minha infância. Sempre gostei muito de dançar e girava, girava e girava... como uma
borboleta! Fiz o Ensino Fundamental no Instituto de Educação Professor Ismael Coutinho,
primeira escola de ensino normal do Brasil. Penso que tinha tudo na época para tornarme uma professora primária. Mas quando chegou o momento em que terminei a 8ª série
e iniciaria o normal, por teimosia e falta de experiência aos meus catorze anos, optei por
sair do colégio. Segui o caminho do ensino de formação geral. Lamento ter feito isso.
Acredito que se tivesse me formado como professora, teria dado outro rumo profissional
em minha vida. Cheguei ao ensino médio com formação geral de forma turbulenta: faltavam professores, passei por greves durante três anos consecutivos e tive alguns péssimos
professores. Enfim, saí com a ampla sensação de que faltava muito o que aprender.
Em 1998, despertou-se em mim o interesse de fazer um pré-vestibular. Minha irmã
havia iniciado o curso de Arquivologia e servia como uma referência neste novo projeto.
Assim, me matriculei num pré-vestibular comunitário em um CIEP de São Gonçalo.
A princípio estava muito empolgada e cheia de expectativas. Mas com o tempo, observei
muitas dificuldades devido às lacunas deixadas no ensino médio. Além disso, as aulas
estavam sempre muito cheias. Imagine: 80 pessoas numa salinha e a maioria mais interessada em atividades como conversar e fazer tumulto do que se dedicar ao curso. Dessa
forma, um pouco antes de fazer o vestibular naquele ano, me desestimulei e abandonei o
pré-vestibular. Apesar de tudo, fiz o vestibular para o curso de psicologia. Não passei.
Depois do pré-vestibular, em 1999, consegui um trabalho temporário e terceirizado
de empacotadora no extinto supermercado Dallas, em Icaraí. Ganhava menos de um
salário mínimo e embora pareça simples empacotar, eu me sentia muito cansada pelo
esforço físico. Ficava de pé o dia todo. Muitas vezes colocavam as empacotadoras para
ir às garagens recolher carrinhos de supermercado. Cinco meses depois, resolvi sair.
Não valia a pena tanto esforço para receber menos de um salário – que sempre atrasava.
Por isso, em busca de uma nova atividade, iniciei dois novos cursos: auxiliar de escritório
informatizado e de recepcionista de turismo.
Às vezes me pergunto: como pode o trabalho ser um fator que liberta e escraviza
ao mesmo tempo?! Pois é... Foi assim que ocorreu comigo. Acredito que todo jovem ao
terminar o ensino médio pensa logo em arrumar seu primeiro emprego de carteira assinada.
Depois de meses distribuindo currículos, surgiu a oportunidade. “Fantástico!”, pensava
naquele momento. Recordo de pedir muito a Deus um trabalho, sobretudo, de operador
de caixa, no qual acreditava ter menos dificuldade. Enfim, o Todo Poderoso atendeu ao
meu pedido e fui operar caixa na pequena loja Comércio e Representações Trevo, no
centro de minha cidade, em Niterói.
Na loja, tive que conciliar trabalho e estudo. Nessa época, já havia iniciado o curso
pós-médio de técnico em administração no Colégio Estadual Aurelino Leal. Foi um
período difícil. Saía já cansada do trabalho por volta das sete e meia da noite e tinha de
ir rapidamente para o Colégio. Como operadora de caixa, sempre era a última a sair e
quando pedia para ir embora mais cedo meu patrão implicava. Apesar disso, não desisti
do estudo. Só faltavam quatro meses para terminar o ano letivo. A experiência de ser
explorada, ganhar pouco e não receber todos os direitos trabalhistas me despertou para
uma consciência de vida que até então eu não tinha.
Universidade Federal Fluminense
107
Passei a pensar mais na condição de vida adversa na qual me encontrava. Comecei a sonhar e acreditar numa realidade onde eu pudesse viver mais construtivamente e
fosse mais feliz! Quando a loja não tinha muito tumulto, curtia muito ouvir música e me
identificava bastante com elas. Na loja, ouvíamos apenas uma estação de rádio: a MPB
FM. Eram os momentos em que batia uma breve sensação de estar livre; sobretudo, para
refletir. Ouvia as músicas de Milton Nascimento, Chico Buarque, Gonzaguinha, Oswaldo
Montenegro, Beto Guedes. Frases de músicas como estas tocavam fundo na minha alma
e me motivam a ter coragem até hoje. Dizia o Milton Nascimento: “Nada a temer senão
o correr da luta... Nada a fazer senão esquecer o medo...”; incitava Oswaldo Montenegro:
“Cante uma canção daquelas de filosofia um mundo bem melhor...” e declarava Beto
Guedes: “Sol de primavera abram as janelas do meu peito... Já sonhamos muito, muitos
se perderam no caminho... A lição sabemos de cor só nos resta aprender...”.
Trabalhar na loja Trevo naquele momento era um fardo. Mas não posso negar que
foi a grande razão de me mobilizar em busca de outros horizontes na vida! Antes, era
um sonho ter um emprego real, ter autonomia. Mas com tempo comecei a me questionar:
“Em vez de me preocupar com roupas, sapatos, com o supérfluo, por que não fazer um
pré-vestibular, e tentar uma faculdade? Por que não ter uma vida mais construtiva, através
da qual eu possa me sentir um sujeito transformador?”
Em julho de 2002, iniciei o curso de pré-vestibular próximo ao local onde trabalhava. Tinha ganhado uma bolsa. Um dado curioso: apesar do cansaço do dia inteiro atrás
de balcão, o pré-vestibular fazia uma lavagem de minha alma e do stress. Ria do humor
dos professores e alunos, conversava com os amigos. Desde aquele momento, estudar
tornou-se uma grande satisfação. Durante as aulas, sentia-me como na teoria de Platão:
saindo do mundo das sombras, da ilusão e, entrando para o mundo das idéias, de descobertas; da natureza, sobretudo, humana. Os professores eram exemplos vivos daquilo
que queríamos atingir e tinham uma relação com a gente muito próxima. Muitos eram
oriundos de espaços populares.
Quando chegou outubro, fiz um acordo no trabalho: sair do emprego para dar continuidade no pré-vestibular. Com a proximidade das festas de fim de ano e o aumento
do movimento no comércio, era difícil conciliar trabalho e estudo. Aquele final de ano
prometia: eu já havia passado para a segunda fase do vestibular do curso de Pedagogia
para a UERJ e estava às vésperas do vestibular da UFF – minha preferência. Assim, dei
total exclusividade para os estudos, passei a freqüentar o pré-vestibular no período diurno e complementava o estudo com os exercícios em casa. Também me reunia muitas
vezes com colegas como: Edimilson, Ana Paula, Elaine e Dayane Que estão todos hoje
também fazendo faculdade nos cursos que escolheram: História, Pedagogia, Serviço
Social e Literatura Inglesa.
Dezembro chegou. Realizei a primeira fase da UFF e a segunda fase da UERJ. Janeiro
iniciou o ano de 2003. Fiz a segunda etapa da prova na UFF e soube o resultado da UERJ.
Passei para pedagogia. Contudo, minha grande expectativa ainda era a Federal Fluminense.
Além de ficar próxima ao meu bairro, desejava mais do que tudo cursar Serviço Social.
Foi de grande importância o apoio e a segurança dados por minha mãe Dária e minha irmã
Adriana, até mesmo meu pai teve a sua participação – apesar de não morar mais comigo.
E, em fevereiro de 2003, soube do tão esperado resultado da UFF: havia passado para Serviço Social.
Dois dias depois era meu aniversário: meus parentes e amigos deram parabéns em dobro.
108
Caminhadas de universitários de origem popular
Em março de 2003, comecei Serviço Social no período noturno. O curso transformou minha vida de uma forma bastante significativa. As teorias apresentadas nas aulas
do curso me fizeram compreender as relações sociais e econômicas de modo bastante
expressivo. Disciplinas como Teoria do Estado, Questão Social Brasileira, Sociologia,
História Política e Social do Brasile Filosofia começavam a me introduzir num mundo
de conhecimento e compreensão que jamais havia tido antes. Também não perco de vista
que a Escola de Serviço Social passa por algumas dificuldades como a falta de professores
titulares, falta de estágios curriculares, períodos de greves. São reflexos do processo de
sucateamento da educação brasileira.
A universidade tem me permitido ampliar o círculo de minhas relações sociais:
Joyce, Beth, Cynthia, Clícia, Andréa, Mônica, Tatiana, Lenilse, Lizângela, Cíntia Carla
constituem hoje laços afetivos de fraternidade e união. Quando uma, entre nós, faz aniversário o presente oferecido costuma ser o mesmo: um livro; símbolo de alimento para
alma e para a vida. É assim que tenho conseguido parte da minha bibliografia do curso.
Um deles é o Código de Ética Profissional de Serviço Social. Tenho participado também
de várias atividades acadêmicas: seminários sobre assistência social, previdência social,
saúde, saúde mental, direitos humanos, gênero, raça, etnia, juventude, terceira idade,
assim como de semanas de extensão na UFF.
Minha opção em cursar Serviço Social se deu em razão de não aceitar as desigualdades sociais tão visíveis em nosso país. No fundo, havia o desejo de uma sociedade
mais justa. Ser Assistente Social para mim significa realizar-se como um profissional
que estuda, executa, planeja e elabora planos, programas, pesquisas e políticas sociais.
Mas, sobretudo, é aquele que atua na luta intransigente dos direitos da população: saúde,
educação, previdência social, habitação, assistência social, trabalho..., fundamentais na
formação de qualquer cidadão.
Também não posso deixar de reconhecer a principal razão de toda esta realização em
minha vida: a ação imprescindível de Deus! Hoje sou espírita e me dedico aos princípios
cristãos e doutrinários baseados nos estudos de Allan Kardec que se fundamentam no amor
e na caridade cristã e que tem me propiciado um constante processo de transformação
íntima. Agradeço muitíssimo a Jesus por estas grandes oportunidades.
Outro importante campo de experiência iniciou-se com o estágio de Serviço Social
num Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico do Sistema Penitenciário do Estado
do Rio de Janeiro. As pessoas internadas ali são portadoras de alguma doença mental
que, num momento de surto ou de crise, cometeram delito contra alguém ou contra a
sociedade. Por determinação judicial, elas são absolvidas do delito, mas em contrapartida
lhes é imposto um tratamento psiquiátrico por meio de uma dita Medida de Segurança.
Esse tipo de prisão-tratamento dura em média de um a três anos.
Por fim, além de cursar a faculdade e o estágio, venho atuando no projeto de extensão pela Universidade Federal Fluminense e pela Pró-Reitoria de Extensão: Conexões de
Saberes, diálogo entre a universidade e as comunidades populares. Considero fantástica
esta oportunidade. Para mim, era muito distante a idéia de ter a possibilidade de participar
de um projeto de extensão – ainda mais através da área que estou cursando. No Serviço
Social, são raras as oportunidades de bolsas de extensão. Quando surgem, são uma,
duas, no máximo três vagas. Neste momento, os bolsistas têm atuado na implantação
de questionários nos variados cursos com o intuito de traçar o perfil dos estudantes da
Universidade Federal Fluminense
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UFF e identificar aqueles que são de origem popular. A idéia é formar subsídios para a
implantação de políticas públicas para os estudantes menos favorecidos e implantar uma
política de assistência e permanência na universidade.
Sendo assim, atuar neste projeto, estar inserida na produção deste livro e articular mais com a universidade, com os coordenadores e os colegas tem sido uma grande
oportunidade e satisfação! Representar pessoas que se identificam com esta realidade é
parte da realização de um sonho do ponto de vista pessoal e profissional. Portanto, penso
ser esse trabalho um meio possível de transformar pelo menos o meio em sua volta e o
íntimo do próprio ser. Vale à pena.
“E não vos conformeis com esse mundo, mas transformai-vos...
(Paulo, Romanos 12,2)
Ana Paula Morais dos Santos
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Caminhadas de universitários de origem popular
Capítulo 15
Speeder, o Cronômetro e
seus 30 mil caracteres
TRIIIM!!! TRIIIM!!! E toca o despertador! É o fim do sono tranqüilo e confortável.
Mas o corpo não respondia aos insistentes toques do relógio. A vontade de ficar mais um
pouco na cama levava vantagem sobre os compromissos daquele dia. Na cama, pedia que os
braços e as pernas me erguessem, mas, até mesmo eles conspiravam contra. Todavia, não tinha
outro jeito. Ainda sonolento abri uma pequena fresta da cortina e depois da janela para ver
como estava o dia que amanheceu chuvoso e frio. Para completar aquele cenário colorido de
cinza “londrino”, corria ainda, um vento gelado parecendo navalha que a qualquer momento
ia cortar a pele. Mas, com chuva ou sem chuva, o dia estava ali. Após todo aquele processo
cronometrado: toma banho, veste a roupa, o café da manhã. Ufa! Pé na estrada.
A etapa seguinte consistia em correr até o ponto, numa maratona que também incluía
o equilíbrio do corpo para não cair nas poças d’água que surgiam a minha frente. E no fim,
pegar a condução sempre lotada.
No ônibus, completamente espremido, conseguia mexer apenas os olhos. Observando a
chuva cair pela janela embaçada, lembrava dos serviços de pintura que deveria fazer. Mas fazer
como?! O serviço programado seria realizado na parte externa da obra... e estava chovendo!
Subitamente, o desespero e o nervosismo começaram a tomar conta das idéias. Seguindo o
trajeto até o trabalho, tomando inclusive um segundo ônibus, meus olhos não desgrudavam
da janela embaçada, parecida com a do primeiro. A mente, fervendo, girava em rotações
incalculáveis na tentativa de lembrar de algum serviço que poderia ser efetuado no interior
da obra. E a chuva não parava de cair. O frio aumentava de intensidade, assim como o vento.
Não conseguia lembrar de nada. Após descer do ônibus, caminhado em direção ao trabalho,
um pequeno estalo na mente fez-me lembrar das benditas portas de madeira que poderiam
ser preparadas para aplicar o verniz. Oba! Nem tudo estava perdido.
Já no trabalho, revistando os armários onde são guardados todos os materiais de serviço,
logo notifiquei a ausência das lixas, da seladora e do verniz. E agora, o que fazer? Nada!
Não havia mais nada que eu pudesse fazer. A chuva não parava de cair, o frio era cada vez
maior e o vento soprava mais intenso ainda. O dia de serviço estava perdido. Para completar
o enredo, o radinho à pilha que ditava o ritmo do trabalho dava a notícia de que o mau tempo
persistiria por mais alguns dias, já que se tratava de uma frente fria estacionada sobre a região
Sudeste. Geograficamente imaginei o tamanho da encrenca.
O dia avançava e a chuva não parava de cair, o frio aumentava e o vento também.
Não tinha como realizar as tarefas programadas. O dia de serviço estava perdido. “A
monotonia tomou conta de mim” e pedia “vento e ventania me leve para qualquer canto
do mundo”, lembranças que me vinham das músicas do Biquíni Cavadão. Não precisava
Universidade Federal Fluminense
111
ser fisicamente, mas qualquer lembrança de algo que servisse de fuga, já seria bem vinda.
Segurando com firmeza a idéia de pensar noutra coisa, lembrei-me da prova de física que
teria à noite. Eis uma revelação: além de trabalhar, também estudava.
Antes mesmo de começar a estudar, olhando para o relógio, dei-me conta da hora do almoço.
Toda aquela situação me tirara o apetite. No entanto, precisava me alimentar para repor as energias
gastas. Opa! Que energia que foram gastas se não trabalhei?! Mas almocei e ainda tirei uma bela de
uma sesta. Depois de uma hora de descanso, fui despertado pelo meu patrão. Na sua benevolência
e diante da situação de trabalho impossível, permitiu que eu ficasse estudando.
Sentado ao lado de uma janela a paisagem continuava cinzenta. Nem mesmo o charme
da bela e ao mesmo tempo agonizante e poluída lagoa de Piratininga, a poucos metros de distância, podia ser contemplada. Abrindo o caderno, todas aquelas fórmulas e abstrações físicomatemáticas saltavam à minha mente, na tentativa de tornarem concretas as minhas chances
em desenvolver uma boa prova. Os conteúdos programáticos não eram tão desafiadores, mas
a ausência de concentração decorrente do dia estressante dificultava a realização dos estudos.
Naquela altura do campeonato, mesmo dando conta da resolução das questões, o estudo de
Física, temido por tantos, também me amedrontava.
O tempo corria. Não esperei o final do expediente para seguir para escola. Uma hora antes
de terminar o expediente, resolvi deixar o local de trabalho, com a intenção de chegar tranqüilamente ao novo destino. Novamente dois ônibus; só que agora até a escola. O primeiro ônibus
veio completamente lotado e antes mesmo de sair de Piratininga, debaixo daquela insistente
chuva, daquele intenso frio e do vento cortante, o pneu traseiro furou. O ônibus seguinte não
aparecia. Olhando para o relógio, os seus ponteiros giravam assustadoramente. De repente, deime conta de que estava mais uma vez num processo de ebulição. Nem mesmo a chuva, o frio e
o vento conseguiam equilibrar o meu temperamento, nem dos outros passageiros. A vantagem
conseguida saindo mais cedo do trabalho não existia mais. O atraso era evidente. E o ônibus
seguinte finalmente chegou. Lotado! Completamente espremido segui viagem até o Terminal
Rodoviário, no Centro de Niterói, numa viagem que parecia ser mais longa que o costumeiro.
Já em Niterói, caminhava em direção à plataforma seguinte para tomar o próximo ônibus,
entretanto, notei algo de estranho no ar. Não conseguia avistar uma condução sequer, cujo
itinerário me deixasse na escola. Não! Não era neblina, nevoeiro ou coisa parecida que não
me permitiam ver os ônibus. Inexplicavelmente, eles não chegavam ao terminal. Olhando de
um lado para o outro, notei um ônibus estacionado noutra plataforma, bem distante. Mas esse
me deixaria num ponto mais ou menos há um quilometro da escola. Não tendo escolha e cada
vez mais atrasado, segui viagem. Agora, não restava outra coisa a não ser esperar. Chegando
ao devido ponto, desci do ônibus ainda em movimento e, como um fundista, saí em disparada.
Não restava mais nada que me impedisse de chegar à escola. Entrando no prédio, sem ao menos
esperar, um colega de classe se aproxima e diz: “Não haverá prova. O professor de Física faltou.
Todos estão dispensados”.
Nenhuma palavra veio à mente naquele momento para ser pronunciada, mas a vontade
de esbravejar era enorme. Enfurecido, deixei o ambiente seguindo em direção ao ponto do
ônibus. É hora de voltar para casa. O longo tempo de espera não era mais suficiente para me
tirar a calma. E segui viagem...
Em casa, depois de um longo e agitado dia, buscando o relaxamento sob um chuveiro morno, cada gota ia relaxando suavemente a musculatura do corpo e os anéis da mente.
O som emitido pela água que caia do chuveiro parecia canção de embalar. Seguindo a idéia
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Caminhadas de universitários de origem popular
do relaxamento, um jantar leve e apetitoso completava o ritual de recomposição das energias.
Feito todo esse cerimonial, não restava mais nada a não ser o encanto e o desejo de um sono
tranqüilo e de paz. Não queria lembrar de mais nada, nem em sonho. O bocejo é a senha. E
logo, me deito. Mas amanhã tem mais... TRIIIIM, TRIIIIM!
Este foi o relato de um dia daqueles. Casa, trabalho, escola, casa. É bem verdade que cada
dia tem sua singularidade, mas no geral, é assim que funciona a máquina do cotidiano de uma
pessoa que precisa conciliar trabalho e estudo.
Trabalho, trabalho... trabalho! Desde o início da minha vida, até mesmo para chegar ao
mundo, dei ou tive trabalho. Ainda que a minha mãe tenha tido uma gestação tranqüila - com
acompanhamento pré-natal inclusive - o momento do parto foi complicado. O obstetra afirmava
com todas as letras: “Vai nascer somente no mês de outubro”. Contudo, a minha mãe, sentindo as
dores das contrações, o questionava dizendo: “Vai nascer hoje, 29 de setembro”. E foi assim que
aconteceu. Durante o demorado parto ocorreram algumas complicações. Vim ao mundo com o
corpo todo arroxeado e a respiração interrompida momentaneamente. Mesmo com o tradicional
tapinha dado pelo médico, não chorei. Após o susto, meus pais, ainda na Casa de Saúde, não se
lembravam mais do nome que anteriormente haviam escolhido. Resolveram, então, adotar um
outro nome sem nenhum motivo especial aparente, mas que carrego até hoje com muito prazer.
Sou o quarto filho de um total de cinco: três homens e duas mulheres. Uma família grande
para os padrões atuais. Porém, não diferente da família dos meus pais. A minha mãe teve onze
irmãos; meu pai, sete. Antes mesmo de se conhecerem, morando em cidades diferentes - a minha
mãe em São Gonçalo e o meu pai em Niterói - ambos passaram por experiências semelhantes
nas suas formações pessoais. Desde cedo, começaram a trabalhar para complementar a renda
familiar. Dessa forma, os seus estudos foram interrompidos. O meu pai, infelizmente, não conseguiu completar o ensino fundamental. Isso prejudicou na sua formação profissional. Após várias
funções exercidas, se aposentou como Auxiliar de Escritório. Até hoje não conseguiu adquirir
uma profissão de fato. Heroicamente criou todos os filhos, sem faltar nada. A minha mãe, por
sua vez, teve melhor sorte, conseguiu completar o ensino fundamental. Trabalhou em vários
locais. Com o casamento, passou a se dedicar ao lar e aos filhos. Ela chegou a realizar alguns
trabalhos em casa para complementar a renda. Como esquecer daquela enorme quantidade de
macacões sujos de graxa dos funcionários da metalúrgica onde meu pai trabalhou. Minha mãe
lavava-os à mão. Ajudávamos a torcer e a estendê-los no varal.
Após quatro residências, todas em regime de aluguel, meus pais conseguiram comprar
uma pequena casa no distante Bairro do Coelho, em São Gonçalo. Vendo a família crescer, com
grandes dificuldades, deram início às obras de ampliação da casa. Sem recursos para contratar
um pedreiro, as obras eram feitas nos finais de semana pelos meus tios e amigos da família, uma
tendência verificada nas obras e construções das classes populares. Nesse momento, o trabalho
começou de fato a entrar em minha vida. Eu e meus irmãos ainda pequenos saíamos pelas
ruas, em busca de pedras e cascalhos para o preenchimento da base da nossa casa. Em meio às
obras e tentando participar mais da construção da minha casa, aos três anos de idade, tomei nas
mãos uma enxada com a intenção de capinar o quintal, quando, de repente, numa só enxadada
sofri a perda da unha do meu dedão do pé direito. Ainda hoje, minha casa não está concluída.
Mesmo assim, em algumas partes, o processo de reforma já se torna necessário.
A precária infra-estrutura do bairro resultava numa baixa qualidade de vida.
A água disponível vinha de uma cacimba distante uns quinhentos metros da minha casa. O
esgoto corria a céu aberto. As doenças, principalmente de pele, proliferavam pelo bairro.
Universidade Federal Fluminense
113
Diante da negligência do governo municipal, os moradores em regime de mutirão, conseguiram viabilizar a distribuição da rede de esgoto e a implantação de uma rede de água encanada. Atualmente, com exceção da via principal do bairro, que é asfaltada, as demais ruas
encontram-se sem pavimentação alguma. Não raro, são alagadas pelas chuvas. O serviço de
tapagem dos buracos e o de capina são feitos pelos moradores com recursos próprios. Sem
nenhuma área de lazer digna para a diversão no bairro, não restava outra alternativa a não ser
o entretenimento na nossa própria rua, ou nos raros campos de várzea existentes na região.
Muitos já não existem mais; foram transformados em loteamentos residenciais.
Aos seis anos de idade comecei a estudar numa pequena escola, onde uma senhora de
cabelos grisalhos lecionava para poucas crianças de diferentes idades e níveis escolares numa
mesma turma. No ano de 1983, fui transferido para uma outra escola. O Instituto Cultural
Brasileiro era uma enorme escola particular, com várias salas, abrigando alunos da região
e de bairros vizinhos. O meu ingresso no Instituto deu-se mediante a uma bolsa de auxílio
educacional adquirida através do Estado - já que, na única escola pública estadual existente
no bairro, não havia mais vagas. No Instituto, permaneci até a 6ª série do ensino fundamental. No primeiro ano sofri com a timidez. O impacto da imensidão do prédio e os inúmeros
alunos me assustavam. Na hora do recreio, costumava ficar num canto quietinho. Custei a
me enturmar com o espaço e com os outros alunos. Mas depois que superei esta fase, foram
dias inesquecíveis: as apresentações folclóricas, as interpretações artísticas, as amizades, as
confusões com os colegas de classe, as suspensões, os professores e funcionários que até hoje
permanecem na memória. Uma desordem gerada pela divergência entre os dois diretores da
escola resultou na saída de profissionais da educação e de vários alunos além da extinção da
minha bolsa oferecida pelo Estado.
Em 1989, transferi-me para a Escola Estadual Professora Adélia Martins, conhecida
por muitos como “o Adélia”, onde conclui o ensino fundamental. Uma nova realidade,
então, estava presente naquela escola. Diferentemente do Instituto, todos os alunos matriculados “no Adélia” eram de origem popular. Além disso, passei a tomar conhecimento e a
tornar-me usuário dos benefícios oferecidos aos alunos da rede pública: refeição escolar,
passe-livre... Para muitos alunos e colegas estes benefícios significavam motivos de permanência na escola. Outra mudança na minha vida escolar foi dividir a mesma classe com
o meu irmão até a conclusão do ensino médio. “No Adélia”, os trabalhos e as pesquisas
em grupo despertaram-me o gosto pela Geografia, curso que atualmente faço na Universidade Federal Fluminense. O gosto pela Geografia gradativamente foi sendo despertado
diante das estratégias de aula traçadas pelo professor Manuel Valente. Ainda lembro dos
debates entre alunos em sala de aula discutindo questões políticas, econômicas, culturais,
a sociedade e o mundo de um modo geral.
Antes de concluir o ensino fundamental, um novo compromisso passou a fazer parte da
minha vida: trabalhar. Como não tinha escolas de ensino médio na região, o deslocamento para
outros bairros ou municípios vizinhos seria inevitável no ano seguinte. Assim, o trabalho se
tornou necessidade mediante às altas despesas que o meu pai teria que arcar com as passagens
para o deslocamento até o Colégio Estadual Paulino Pinheiro Baptista, onde cursei o ensino
médio. Além disso, o dinheiro serviria também para completar as despesas do lar.
Desta forma, mesmo sem experiência alguma comecei a trabalhar como ajudante de
pintor na região oceânica de Niterói. Foi um tempo de aflição: eram cinco conduções para
realizar o percurso casa-trabalho-colégio-casa. Através dos macetes ensinados pelo patrão,
114
Caminhadas de universitários de origem popular
rapidamente aprendi o serviço. No trabalho, cada atividade era cronometrada: lixar-correr,
emassar, lixar, pintar e rever falhas. No entanto, os compromissos escolares quase sempre
ficavam de lado. Sem tempo para rever, em casa ou no trabalho, o que aprendera em sala de
aula, e chegando sempre às altas horas, várias dúvidas não foram reparadas. Os livros e o
caderno, eu pouco os abria. Percebi que a minha dificuldade era igualmente encontrada pelos
outros colegas da turma, que além de estudar também trabalhavam. O cansaço físico me fez
pensar por algumas vezes em desistir dos estudos. E não é só isso: as constantes greves dos
profissionais da educação, o tráfico de drogas, os disparos no interior da escola, uma pessoa
ferida... e, para completar, a falta de alguns professores de disciplinas importantes, me deixaram
sem muita perspectiva para encarar um vestibular. Se eu dependesse do professor de Geografia de lá, com certeza teria desistido do curso. Que diferença do velho e bom Manuel
Valente! Sentia-me inferiorizado em relação a candidatos de outras instituições e de cursos
preparatórios. Ainda assim, em 1993, conclui o ensino médio.
Nesse mesmo período, decidi abandonar o emprego como ajudante de pintor. A inalação
das tintas custou-me uma intoxicação daquelas. Para os meus pais, a importância da formação
educacional e profissional era importantíssima. Entenderam quando eu larguei o trabalho.
Não queriam que os seus filhos tivessem o mesmo destino deles. Recebia dos meus pais o
apoio para continuar os estudos, cursar uma universidade. Mas uma questão continuava insolúvel: estava desempregado e sem dinheiro para pagar simples passagens até um cursinho
pré-vestibular popular.
A perspectiva pessoal tinha alcançado a marca zero. A difícil missão de encontrar um
emprego crescia diante da experiência exigida pelos empregadores. Mas que raio é esse de experiência? Como, se não tinha uma oportunidade sequer?! Aos dezoito anos, o serviço militar
me orientou no sentido de uma nova carreira. Fiz alguns cursos profissionalizantes com o apoio
financeiro de um sensibilizado tio. Busquei adquirir maior qualificação e maiores chances para
o sucesso profissional. As aptidões físicas e médicas adquiridas nos exames do III Comando
Aéreo Regional criaram em mim uma grande expectativa. Durante oito meses aguardei, cheio de
confiança, o resultado do serviço militar. Inclusive, neste período, recusei algumas propostas de
emprego. Não iria trocar uma possível estabilidade nas forças armadas por um emprego duvidoso!
Pois bem..., quer dizer, pois mal: após os oito meses de espera, o resultado foi decepcionante.
A dispensa por excesso de contingente veio que nem ducha fria. Desde então, venho alternando
longos períodos: ora trabalhando, ora desempregado e, em meio a essas duas diferentes faces,
buscava sempre praticar algum curso que fosse gratuito, com a intenção de alcançar melhor
qualificação e ampliar as possibilidades de encontrar um emprego.
Passando a decepção com o serviço militar, em janeiro de 1995, surgiu o primeiro
emprego com carteira assinada. Foi numa empresa localizada no bairro da Penha, subúrbio
da Leopoldina. Trabalhando como office-boy na Cidade do Rio de Janeiro, uma das maiores
do Brasil, os primeiros dias não foram fáceis. Os serviços me conduziam aos mais diferentes
bairros: Vila Isabel, Barra da Tijuca, Ilha do Governador além de alguns que nunca ouvira
falar antes e nem imaginava como chegar: Vila Cosmos, Fazenda Botafogo... Facilmente, me
perdia por tantas ruas e cruzamentos. Uma loucura! A homogeneidade da paisagem urbana
abrange não somente as áreas centrais do Rio, mas, também o subúrbio. Isso gerava em mim
uma dificuldade em perceber espacialmente os limites de cada bairro. A empresa comprou
um guia de ruas para mim, o famoso guia Rex. Com afinco, em pouco tempo, a assimilação
espacial da Cidade do Rio de Janeiro foi sendo superada. No entanto, também confrontei com
Universidade Federal Fluminense
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a brutalidade com que a violência se apresentava em diferentes faces nos grandes centros
urbanos: no trânsito, entre as pessoas... Fui assaltado duas vezes neste emprego. Num destes
assaltos, numa passagem subterrânea na Penha, após ter um cano de revólver pressionado
contra o peito, perdi todos os vales-transportes dos empregados, sem falar que levaram também meus óculos. Nunca esqueci.
Com a idéia de compreender os trâmites contábeis da empresa e desejoso de crescer
profissionalmente ali, matriculei-me no curso de auxiliar de contabilidade do Senac
– Bonsucesso. O expediente na empresa terminava meia hora antes do início das aulas.
Chegar atrasado não era novidade. No Senac, constantemente aconteciam toques de recolher
das turmas. Separada apenas pela estrada de ferro do ramal da Leopoldina, fica o Morro do
Adeus. Os disparos sem origem definida dos conflitos entre traficantes ou incursões policiais
atingiam as paredes do Senac do quarto andar para cima. Na verdade, nunca busquei tomar
conhecimento sobre o que acontecia naquele morro. Assustado e sempre correndo, no final
das aulas mal conversava com os colegas. Olhava com desconfiança qualquer criatura na
rua que vinha em minha direção. Com o tempo cronometrado, corria até a Praça das Nações
para tomar o último ônibus com destino ao Bairro do Alcântara, em São Gonçalo. Perdê-lo
era uma visita ao purgatório. Tinha que pegar outros dois ônibus para chegar até em casa.
Foi um tempo de aflição, mas conclui o curso.
O interesse pelo trabalho deu resultados. Seis meses após minha admissão, fui promovido
a Assistente Contábil. Com o apoio e dicas do contador da empresa, ganhei a confiança do
patrão. Passei a ganhar mais: 3 salários mínimos. Parecia tanta grana que pensei em me casar
com uma menina que acabara de conhecer. Empolgado com minha ascensão profissional, o
estímulo para prestar o vestibular retornou. Estudando por conta própria, inscrevi-me para
o curso de Ciências Contábeis da UFF. Apaixonado pelas Ciências Contábeis, deixei de
lado o desejo pela Geografia. Fiquei confiante com o grande êxito alcançado na primeira
fase das provas. Contudo, assoberbado com minhas tarefas na empresa e desatento com o
calendário do vestibular, deixei fugir aquela chance de ingressar na universidade. Perdi a
data da prova da segunda fase. Dei conta do desastre dias depois. O desgosto tomou conta de
tudo. Não quis tentar novamente. No mesmo período, terminei também o meteórico namoro.
No final das contas, passada a tempestade, só sobrou ele: o trabalho.
A atenção e rapidez na realização das tarefas do cotidiano da empresa custaram-me
o apelido de Speeder – termo em inglês para quem anda à grande velocidade. Na verdade,
desde o tempo de office boy fazia tudo com agilidade. As coisas pareciam tranqüilas, até que
os contatos mais profundos com as rotinas da empresa fossem me decepcionando. Isso foi
acontecendo aos pouquinhos, na medida em que a lida com os números da firma me revelava
suas irregularidades. Nesses casos, quem muito sabe, pouco pode. Logo, logo, após voltar de
férias, após mais de um ano de empresa, recebi o singelo aviso de demissão.
Como diz o ditado da amargura: infeliz no jogo, infortunado no amor, arruinado no
trabalho e azarado nos estudos... A atenuação dessa longa lista de infortúnios vinha da religiosidade. Sou de família tradicionalmente católica. Desde cedo me identifiquei e acolhi
com prazer a doutrina do catolicismo. A participação em movimentos religiosos, como a
Pastoral da Juventude, ampliou o processo de formação religiosa e social. A evangelização
e a promoção humana, um dos objetivos do Grupo Jovem Unipaz, conduziram-me aos
serviços voluntários. Com alguns amigos da igreja, ainda me lembro da construção em
mutirão de uma pequena casa de dois cômodos para uma mãe e um filho despejados de
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Caminhadas de universitários de origem popular
um bairro vizinho. A cada ação realizada com os amigos da igreja junto à comunidade se
ampliava minha percepção de mundo e do outro.
Um dos frutos destas ações veio com a fundação do Coelhense Atlético Clube, em
1996. Após adquirir instruções técnicas para treinamento de goleiro e o gosto pela posição
futebolística, o convite a fazer parte da comissão técnica, trabalhando de forma voluntária,
logo chegou. O objetivo principal do trabalho: desenvolver nos jovens, através do esporte,
uma consciência coletiva. Com o Coelhense disputávamos diversos campeonatos como: o
Gonçalense e o Metropolitano. Perdíamos mais do que o Tabajara Futebol Clube; o nosso
ônibus era uma lata velha, um “piratão”, mas mesmo assim, a molecada não se importava.
As derrotas nos traziam algumas lições da vida. No campeonato gonçalense de juniores,
inclusive, ensaiamos uma reviravolta: sagramos-nos vice-campeões.
A forma de manter as atividades esportivas e a compra de materiais esportivos para
os alunos vinha de recursos financeiros dos próprios integrantes da comissão técnica.
Eram grandes as dificuldades em conseguir patrocinadores. Nem mesmo da carrocinha
de cachorro-quente da esquina. Numa noite, arrombaram o nosso “barraquinho” e todo
o material esportivo do clube foi roubado. A carência de recursos financeiros, humano
e material foi minando pouco a pouco as atividades do clube. Até que no final de 1997,
encerramos suas atividades.
Passei mais alguns meses desempregado. A urucubaca parecia estar de volta.
Mais não me entreguei. Utilizando uma grana que sobrara da indenização do emprego
anterior, aproveitei que a Fundação Escola de Serviço Público estava oferecendo cursos
gratuitos à comunidade e fiz o curso técnico de arquivo e documentação. Em seguida, um
mês depois, estava novamente contratado. Desta vez, para atuar no arquivo de uma empresa
prestadora de serviços de limpeza e conservação no Centro do Rio. No primeiro contato
com o arquivo, pensei em desistir. Na verdade, aquilo não era um arquivo. Parecia tudo,
menos um arquivo. Quando entrei na sala. Um amontoado de documentos misturava-se
com materiais de construção e de limpeza. Aquele cheiro de mofo! Insetos circulavam
livremente sem serem incomodados. Uma loucura! Localizar um documento era o mesmo
que procurar uma agulha no palheiro. Toda vez que um órgão fiscalizador realizava uma
auditoria, a ausência de um ou outro documento custava à empresa uma penalidade.
Aceitando o desafio de Hércules, em oito meses tudo estava organizado. No tempo em
que estive no arquivo da empresa, nenhuma penalidade. Os documentos solicitados eram
localizados com rapidez. O resultado do sucesso e dedicação veio através de um aumento
salarial. Aproveitando certo conforto na empresa, fiz também alguns outros cursos: como
o de locução de rádio, televisão e comerciais. Dizem que tenho voz para isso. Tudo parecia
perfeito na empresa. No entanto, como prestadora de serviços terceirizados, a empresa foi
sucessivamente perdendo seus contratos. As demissões não paravam de acontecer e, em
maio de 1998, aconteceu a minha.
Amargurando um novo desemprego e com grande dificuldade para arrumar um
trabalho, algumas idéias surgiam na mente: por que não investir numa carreira de autônomo? Aproveitando o timbre da voz, com a locução, gravei um vídeo comercial para
a Quaker – empresa de gênero alimentício, aquela com um cara engraçado no pacote.
Parecia o Cid Moreira. Fiz testes para a JB FM, mas a concorrência era grande. Sentiame um peixe pequeno em meio a tubarões, dourados e salmões. Depois, uma gravação
ou outra e mais nada.
Universidade Federal Fluminense
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Aproveitando algumas habilidades autodidatas, como o desenho e a pintura, resolvi me
arriscar como Pintor Letrista. Os meus pais reservaram num pequeno cômodo da casa, um
espaço para eu guardar o material: tintas, pincéis, lixas. No início tudo fluía bem. A clientela
até que era boa. Eles vinham de vários bairros de São Gonçalo e de Niterói. Porém, novamente,
a intoxicação pintou. Somando isso ao aumento da concorrência, desisti dessa atividade, no
entanto, só da pintura; dos desenhos, não.
Com o dinheiro conquistado ajudava nas despesas da casa, pagava cursinhos profissionalizantes. Tirei minha carteira de motorista. Mas, quase não dirijo. Tudo isso, pensando
em encontrar rapidamente um novo emprego, que não vinha. O tempo passava e os trabalhos
com os desenhos diminuíam. Todas as semanas, observando os anúncios nos classificados dos
jornais, percorria as cidades de São Gonçalo, Niterói e Rio de Janeiro em busca de um novo
emprego. Saía cedo de casa, voltava tarde. Era aquela via crucis. O pouco dinheiro não permitia
fazer um lanche sequer. Retornava para casa, exausto, faminto e sempre com aquela mesma
resposta remoendo a cabeça: aguarde que entraremos em contato. Nunca retornaram.
Com perseverança, não desistia. Depois de quase dois anos desempregado, um casal
de amigos me chamou para trabalhar numa livraria em São Gonçalo. Uma cidade com
quase um milhão de habitantes, uma única livraria. Meu trabalho era com digitação e no
sistema de cadastro da livraria. Bem, vieram o contato com os livros, noites de autógrafos,
artistas famosos - toda semana tinha vários lançamentos. Como esquecer daquele bate-papo
com Antônio Calloni ou da Camila Pitanga quando me pediu para lhe mostrar a livraria.
Fascinante! Convivendo lado a lado com livros técnicos, os romances, os didáticos, entre
tantos outros, o pensamento começava a sinalizar para uma nova tentativa no vestibular.
A livraria funcionava nas dependências da Universidade Salgado de Oliveira - Universo.
Alguns dos clientes da livraria eram colegas que se encontravam inseridos naquele meio
universitário. Deles, recebia o apoio para o retorno aos estudos. Em casa também era apoiado
pelos meus pais, mas, principalmente, pela minha irmã Lúcia, a caçula, que cursava Português-Literaturas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Todavia, o horário extenso
e as constantes mudanças de turno na livraria dificultavam a inserção num pré-vestibular.
Com pequenas chances de sucesso nas provas do vestibular daquele ano, decidi adiar mais
uma vez o sonho. Alguns colegas me falavam para eu pedir uma vaga na Universo – ou
pelo menos um desconto no curso que eu quisesse. Ao mesmo tempo em que desejava
uma vaga, esperava também que o meu patrão fosse me oferecer algo. Não me sentia tão
à vontade para fazer tal pedido, mesmo sendo ele sobrinho dos donos da universidade.
O tempo passou e nenhuma coisa nem outra aconteceu.
Ao perceber certa estabilidade na livraria, logo no início de 2001, resolvi ingressar num
curso pré-vestibular. Já fazia oito anos longe dos estudos. Não lembrava de mais nada. Precisava de um novo gás. Entra novamente em cena a era da aflição. Apesar da estabilidade no
trabalho, o horário apertado insistia em ser cruel. Muita ginástica do tempo e malabarismo com
as palavras na tentativa de convencer os patrões. Tudo isso para chegar o menos atrasado possível às aulas. Ao saber do meu ingresso no pré-vestibular, a minha patroa fez cara de poucos
amigos. Não gostou. O meu patrão, ao contrário, facilitava toda aquela investida, permitindo
até mesmo, a utilização da internet para consultar o calendário das universidades. Deixavame sair mais cedo, toda vez que precisava resolver alguma coisa a respeito do vestibular: as
retiradas dos kits de isenção, as postagens desses kits, as inscrições nas universidades; porém,
desde que fossem cumpridas todas as tarefas destinadas à livraria.
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Caminhadas de universitários de origem popular
A distância entre a livraria e onde ficava o curso pré-vestibular era de mais ou menos
um quilômetro. Apesar de ser uma distância relativamente curta, não podia perder tempo
em caminhada. Buscando alcançar o destino em menor tempo, o ônibus ou qualquer outro
transporte alternativo eram sempre bem-vindos. É bem verdade que, por várias vezes, me arrependia. O trânsito insistia em ficar engarrafado. Coisas do horário do rush. O tempo perdido
nos engarrafamentos acabava sendo maior do que o da caminhada.
Como se não bastasse chegar atrasado no pré durante a semana, as aulas de sábado eu não
assistia. Nunca assisti. Eram aulas que serviam para tirar as dúvidas surgidas durante a semana
- além de serem ministradas as aulas de língua estrangeira e de redação. Não me pergunte o que
eram as aulas de sábado; nunca assisti! No mesmo horário, eu trabalhava na livraria.
Minha irmã caçula cursava Português-Literaturas. Nas poucas horas em comum, as
noções para desenvolver uma redação foram sendo adquiridas junto com alguns conhecimentos
de língua estrangeira, como o espanhol. O apoio da minha família foi importantíssimo e fundamental durante toda aquela fase, mas uma coisa era certa: não podia parar de trabalhar!
Todos os dias, aquelas ações cronometradas: em casa, no trabalho e agora no prévestibular. No entanto, não conseguia estudar em casa. Sempre chegando tarde da noite; a
única coisa que queria após o banho e o jantar era dormir. Não agüentava de tanto cansaço.
Raras foram as vezes em que abria o caderno. Longe da sala de aula, o único tempo e lugar
em que conseguia ler e estudar alguma coisa era durante o horário do almoço na livraria. Meia
hora apenas, insuficiente para tanta coisa. Na verdade, uma leitura dinâmica.
No pré-vestibular, ao saber do meu interesse em cursar geografia, o professor Kelly
direcionava as aulas para mim. Sem desprezar os outros colegas, comentava os assuntos e
as questões que poderiam aparecer nas provas. Ajudou muito. Em algumas outras disciplinas, encontrava obstáculos. As constantes mudanças de professores, como na matemática e
na química, dificultavam a assimilação dos conteúdos. O fato de não encontrar um horário
disponível para rever os exercícios e os assuntos vistos em sala de aula me desestimulavam
a continuar os estudos. Havia dias em que eu ia para o cursinho só para me encontrar com
uma lourinha com quem tive um romance.
Diante das dificuldades nos estudos, a perseverança ancorada na religiosidade era a
única coisa que restava e que fazia crer num sucesso quase distante. Recebi da Lúcia, minha
irmã caçula, uma oração intitulada de Oração do Vestibulando que diz assim:
“Obrigado, meu Deus,
pela oportunidade que me deste de seguir em frente à busca
do conhecimento e da profissionalização.
Estou a caminho do vestibular, juntamente com outros estudantes,
que também sonham com uma nova opção de vida.
Inspira-me, ó Deus, para que eu saiba responder com sabedoria e calma
as questões que me forem propostas.
Peço-te que ajudes todos os vestibulandos e os abençoes.
Renova a esperança de todos que ainda não conseguiram ingressar
na universidade, para que não desistam da luta.
Obrigado, Mestre, e faze-me ver o quanto posso ser útil à humanidade,
aprimorando os meus conhecimentos.
Amém!”
Universidade Federal Fluminense
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Nesse ano de 2001 estava mais do que atento ao calendário das universidades.
Logo de início, adquiri a isenção total da taxa de inscrição no vestibular para as duas
únicas universidades que eu desejava prestar o concurso - UFF e UERJ. Foi assim que
me tornei um homem de fé. Realizava diariamente a oração, uma rotina mantida até o
resultado final de cada prova do vestibular. Dos conteúdos, a única coisa que levava
para as provas, era o que aprendera em sala de aula. Não estudava mais em casa ou em
outro lugar. Confesso que não foi fácil. Parecia o meu primeiro vestibular. Na hora
H, ao receber a prova, a mão suava, as pernas tremiam, dava frio na espinha, além
daquela dorzinha na barriga. A cabeça quente não lembrava de nada. Estava diante da
síndrome da página em branco.
O sucesso nas provas da UERJ não veio. Com maior afinco, me agarrei ainda mais às
orações. Recaiam sobre o vestibular da UFF as últimas possibilidades de sucesso. Era tudo
ou nada. A ansiedade por uma resposta positiva era imensa. A ducha de água fria veio com
a frustração de não me encontrar na primeira listagem de classificação. Ainda assim, não
desistia. Dia após dia acompanhava os processos de reclassificação e de remanejamento dos
alunos. Estava próximo da vaga, até que no dia 7 de outubro de 2002 recebi o comunicado
de ingresso na Universidade Federal Fluminense para o curso de Geografia. Não sabia se
chorava ou se sorria. A voz não saia nem para vibrar.
Com o resultado da aprovação nas mãos, fiquei o dia todo pensando em como falar
com o meu patrão. Não queria ser ingrato com aquele que um dia me oferecera um emprego.
Na livraria, andava de um lado para o outro. Não deu para esconder por muito tempo.
Ele já desconfiava. No final do expediente, acabei revelando que tinha passado no vestibular. Disse também que aquilo era importante para mim tanto quanto o trabalho. Mas,
havia um choque de horários entre universidade e trabalho. Com a ajuda da minha família e
compreensão dos meus patrões, a escolha foi pela universidade. Cheguei a pedir demissão.
Mas o meu patrão resolveu fazer um acordo comigo, para eu não perder alguns benefícios
e sair com um dinheirinho a mais.
Fiquei um longo tempo sem trabalhar, vivendo apenas da grana que recebera da indenização e fazendo desenhos. No início de 2005, consegui uma vaga numa pequena escola
particular para dar aula. Ao mesmo tempo, consegui a bolsa da extensão universitária para
atuar no Programa/Projeto Conexões de Saberes. Novamente encontro-me fazendo malabarismo com o tempo - só que agora também com a grana - malabarismos para não ver o sonho
da universidade ser interrompido no meio do caminho.
Hoje, posso dizer de cadeira: os 30 mil caracteres usados para descrever essa história
estão impregnados de perrengues, dificuldades, desilusões, fadiga... Tudo foi conquistado
com muito custo. Mas no final, nessas últimas linhas, posso dizer que me sinto um vencedor.
Campeão de um sonho construído com perseverança, minha e de todos aqueles que estiveram
comigo em cada batalha vencida.
Alexandre Vieira Diniz
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Caminhadas de universitários de origem popular
Parte 6
VESTIBULAR
Capítulos:
Entre verdades e sofismas prefiro
batatas
O confronto com a Hidra de 9
cabeças
Relato de uma moradora de
comunidade, hoje universitária
Capítulo 16
Entre verdades e sofismas prefiro batatas
A televisão ainda estava ligada. Eram quase duas da manhã de uma segunda-feira em
que teria de levantar bem cedo da cama. Se não me engano, estava vigiando as batatas que
coloquei no forno para confeccionar as minhas marmitas. Na cabeça, tinha os ecos da festa
em que fui com minha namorada sábado à noite. Era uma dessas festas anos 80, e que estão
voltando à moda agora. Tinha rolado no Circo Voador: a Ploc 80, com a banda Perdidos
na Selva. Minha atenção se revezava em cuidar das batatas e assistir a TV. Na Sessão Fim
de Noite do SBT, passava um filme bem interessante. A história mostrava uma espécie de
universo paralelo onde o “se” entra em jogo. O filme falava do que poderia ter ou não ter
acontecido, se uma garota conseguisse pegar o metrô pela manhã. Se corresse e entrasse no
metrô, chegaria mais cedo em casa e pegaria o namorado transando com outra. No entanto,
se a correria desse em nada e não pegasse o trem, não encontraria os adúlteros na sua cama.
Por fim: o que batatas, anos 80 e um filme para insones têm a ver com o que pretendo contar num relato sobre a minha experiência no pré-vestibular? Absolutamente nada! Certo?!
“Ou não...” como diria o velho e bom “baianês” de Caetano Veloso.
As batatas já estavam coradas, a hora de dormir já tinha passado e minhas recordações
passeavam pelos anos 80. Mas agora faço um salto daqueles que nem João do Pulo poderia
fazer; um salto histórico: dos saudosos ritmos da década de 80 para o ano de 2002. Lembra do
filme na TV, aquele descrito ali em cima? Aquela coisa do acaso, onde um fato desencadeia
outro com várias possibilidades? Ah! A propósito, vale a pena aqui dar o nome do filme:
“De caso com o acaso” Enfim, tudo isso me traz à cabeça indagações do tipo: De onde viemos?
O que somos? Pra onde vamos? Será que vai ser legal?
O foco desse memorial se concentra agora em 2002; ano da caça ao Bin Laden, do Brasil
pentacampeão do mundo, do Lula enfim presidente e ano em que eu tinha acabado de acabar o
segundo grau numa escola pública. Estudava a noite e trabalhava durante o dia. Tomei conhecimento de um pré-vestibular comunitário: Oficina do Saber. Fui lá e peguei a ficha de inscrição.
Como era o último dia, mais de mil cabeças se estapeavam por uma vaga. Informei-me sobre os
documentos e os prazos. Tentei uma vaga e... e... e... NÃO CONSEGUI! Não consegui sequer
entregar os documentos! Quando você quiser que uma coisa saia bem feita, faça você mesmo.
Foi tudo o que não fiz. Deleguei a tarefa de separar e tirar cópias dos documentos a alguém lá
de casa. Mas eu também tenho minhas desculpas: trabalhava e não tinha tempo de separar os
documentos para o dia seguinte. Bom, o resto da história já dá para imaginar: as cópias não
foram tiradas e o prazo vencia no mesmo dia. Lá fui eu desesperado a procura de uma copiadora e já eram quase seis da tarde: horário limite! Na busca de algum lugar para tirar cópias
dos documentos, subi correndo as escadas do prédio do sindicato dos operários navais, quando
me deparei com uma menina que tinha acabado de rolar escada abaixo! Pensei: “Que se dane!
Tô atrasado e não tenho nada a ver com isso!”. No entanto, o bom samaritano que mora dentro
de mim, foi lá socorrer a menina. E não ganhou nem um beijinho. Só se atrasou e perdeu a
Universidade Federal Fluminense
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chance de alcançar tão almejado sonho: ingressar numa faculdade. Moral da história: bonzinho
só se... ferra. Pensei, então: “Acho que não é minha hora”. Mas logo depois também pensei:
“E se não tivesse me atrasado, se não tivesse socorrido aquela menina, se tivesse entrado no
pré naquele ano?” SE, SE, SE... Lembrou do filme agora?!
No ano de 2003, tentei uma vaga no pré-vestibular comunitário Oficina do Saber.
É, aquele mesmo! Só que dessa vez, consegui pegar a ficha de inscrição que neste ano pedia
menos documentos. Entreguei a ficha, fiz uma redação e fui chamado para a entrevista.
Cada etapa, cada novo passo, uma vibração. Quando vi o resultado final, parecia que tinha
passado no vestibular: “ Tô dentro! “Ninguém me segura!”.
Estava empolgado e ansioso para o começo das aulas. No primeiro dia tudo era muito
legal, muito novo. Na minha sala tinha muita garota bonita, o pessoal e os professores eram
muito legais. Eu era muito legal e me sentava lá no fundo da sala. Já nas primeiras semanas,
todo mundo já sabia meu nome. Participava das aulas, me mostrava interessado. Só que tinha
uma galera lá na frente que não gostava muito disso. De vez em quando, falavam besteira na
aula. Eu tinha de rir, não podia deixar passar em branco. E, de repente, o diabo naquela sala
tinha nome e sobrenome: era Rodrigo Pimenta. Já que a face do mal havia sido revelada, tudo
quanto era problema caia na minha conta. Na coordenação do curso, o meu nome estava no hall
da fama, tinha cinco queixas! Até hoje não sei quais ou qual vil criatura me difamou. Certa vez
estava sentado durante o intervalo, descansando depois de um dia estafante de trabalho, só e
meditativo, quando senti aqueles furtivos e intimidadores três tapinhas nas costas. Era o professor
José Nilton, Coordenador e fundador do Oficina do Saber me fazendo a seguinte pergunta:
– É você que é o Rodrigo?
– Sim - respondi
– Prazer em te conhecer - falou e foi embora.
Depois dessa eu gelei! Pensei: “E agora o que eu faço? Não posso perder essa oportunidade,
não tenho como pagar um curso particular.” Sepulcros caiados, raça de víboras, como ousaram
me atacar assim? Situações extremas exigem medidas extremas. Resolvi que a partir daquele
dia me sentaria destacado e ficaria em silêncio sepulcral. Após essa atitude, me disseram que era
uma falta de personalidade, que eu deveria permanecer na mesma posição. Outros cinicamente
me perguntavam por que estava tão quieto. Bom, minha estratégia estava dando certo, afinal
qualquer bagunça que faziam na sala de aula, para todos os efeitos, eu estava bem destacado.
Passada a tormenta, me dei conta que já havia reparado em certa menina alta, de pele
clara, cabelos negros sempre presos e traços incomuns. Além da sua formosura chamavam a atenção seus trajes e adereços, quase tão apoteóticos quanto uma escola de samba.
Usava calças largas e camisetas sempre pretas. Quando havia alguma concessão, vestia uma
camisa vermelha - se não era do Che era do PC do B - ou amarela - ela gostava daquele tom
bem berrante. Continuando no quesito alegoria e adereços, a moça usava penduricalhos
presos ao corpo: um piercing ao lado da sobrancelha, vários em uma única orelha, brincos
sempre exagerados pendurados nos lugares convencionais, além de suas pulseiras e anéis.
Parecia uma mãe de santo e eu gostava de chamá-la de bonequinha de vodu. Bem, com o
alvo já enquadrado na alça de mira, procurei saber de quem se tratava.
Fiquei sabendo após uma ligeira conversa puxada por mim num sábado, quem era aquela
menina que causou espanto e comentários - eu mesmo falei com um colega: “Ih! Olha, a maluca
deve ter um milhão de brincos pendurados.” Ela era de São Gonçalo, era normalista, militante do
PC do B e ouvia death metal, mas também gostava de MPB. Iria prestar vestibular para História.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Eu sei que minha descrição fê-la parecer noiva do Frankenstein, mas ela era gente boa; os estereótipos enganam. Sabendo dos seus gostos e de que se tratava de uma militante política de
esquerda, despertei para a discussão política nas aulas de geografia do segundo grau. Comentava
política desde cedo. Gostava de assistir as propagandas políticas para ficar zoando os candidatos,
mas nada que me desse uma grande consciência política e base para discutir com uma militante
intelectualizada. Tratei de dar umas pinceladas sobre suas preferências só pra ter assunto. Percebi
que ela me dava trela e que algumas vezes nossos olhares se cruzavam na sala de aula. Sempre
íamos para o ponto de ônibus acompanhados de um amigo. No dia em que ele faltou, senti que era
o momento de atacar, no bom sentido, a mocinha. Ataquei e me dei bem... e fomos felizes para
sempre, certo?! Errado! Quando tudo estava indo bem - ou não tão bem naquela fase de decidir
se ia em frente com o relacionamento, surgiu um caroço no meu angu. Na verdade, um acreano
- deve ser assim que se chama quem nasce no Acre! Todo castigo para pobre é pouco! O cara sai
dos confins do território nacional para atazanar a minha vida. E ainda veio com um papo de que eu
era playboy e mauricinho! Pô, qual é? Playboy era demais! Sou filho de migrantes nordestinos, sou
afro-descendente, estudei a vida inteira em escola pública, vivendo numa dureza danada. Meu pai
trabalhando na construção civil, minha mãe como costureira fazendo pequenos serviços em casa
para complementar a renda. Eu trabalhando igual a um condenado em escritório de contabilidade.
A situação estava tão ruim que eu voltava a pé do curso, uns dois quilômetros até a minha casa.
E esse ano de 2003 foi o pior ano da minha vida: pressão no trabalho, como sempre trabalhando
demais e recebendo uma miséria; pressão em casa com problemas financeiros; a doença da minha
avó materna que custou a ida da minha mãe para o Maranhão, deixando a casa na mão só de homens; a pressão natural do vestibular; e uma tremenda dor de cabeça na vida sentimental. E ainda
me surge esse “comédia” para falar que eu era playboy!
Tive que me segurar para não fazer besteira. O pior é que o cara tinha todo o perfil de
classe média. Pior: era de classe média. A tática adotada foi me fingir de morto para sobreviver. Deu certo e eu até consegui me vingar desse fura-olho, que tava a fim da minha garota.
O rapazola me desqualificava e fazia a propaganda dele de intelectual alternativo. Bem, antes
do final do ano, minha boneca de vodu terminou comigo, ou melhor, sumiu do curso sem me
falar nada e me deixando com uma tremenda dor de cotovelo.
Durante o curso vi que estava muito fraco na área de exatas. Chegava cansado do trabalho
e não tinha o menor saco de assistir as aulas. Ia para o curso por que gostava de lá, conseguia
relaxar, conversar - a minha turma era legal e muito ativa. Sempre fazíamos grupo de estudos,
o que foi essencial para as minhas aprovações, além de churrascos e vôlei na praia depois dos
simulados. As aulas dos sábados eram legais. No começo, parecia até um clube. Mas com o
passar do tempo foi triste ver as pessoas desistindo durante a caminhada. A evasão é grande
depois da prova da UERJ, logo no meio do ano. Depois de um mal resultado, a galera treme
de medo da prova da UFRJ no final do ano e nem tenta a UFF.
Fazíamos planos durante o ano como se todo mundo fosse passar para a UFF e se encontrar na Cantareira, o point da galera da Federal Fluminense. Várias vezes durante o curso,
fomos lá pra nos divertirmos entre os universitários. Com o tempo começamos a nos aproximar
dos barzinhos em frente ao campus da UERJ, em São Gonçalo, já que a gente temia um mal
resultado na UFF e UFRJ. Na UERJ de São Gonçalo, era mais fácil de passar.
Durante as provas, minha tática de guerra era me declarar vencedor e fazer um terror
psicológico. Fazia o maior teatro olhando para prova rindo e passando a impressão de que as
questões estavam ridículas. Mesmo sem ter o que escrever, fingia estar escrevendo um testamento
Universidade Federal Fluminense
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e resolvendo cálculos que nem Newton e Einstein juntos resolveriam. Era legal deixar os meus
concorrentes desesperados. Depois das provas, sempre rolava um churrasco para tirar o estresse.
Acho que nesse caso, a união fez a força, sempre considerando seu colega de curso um parceiro
que está na mesma situação e não um concorrente. Assim conseguimos vencer aquela galera que
estudou a vida toda no ensino privado e fazia os cursinhos mais caros, famosos e usavam camisas
dizendo: “Não se preocupe, a sua vaga já é minha!” Pura guerra psicológica. Lá no Oficina do
Saber, não estudávamos apenas para passar no vestibular, adquiríamos cidadania e consciência
crítica. Tínhamos garra pra enfrentar a vida olhando nos olhos dela.
Com o final do ano e das provas, o jeito era relaxar e esperar chegarem os resultados.
Lá atrás, na inscrição do pré não estava muito certo do que ia fazer. Coloquei como opções:
Comunicação Social e Educação Física. Sempre gostei de escrever e gostava de desenhar, aprendi
sozinho quando criança. Sempre fui criativo e então achei que comunicação social era uma boa.
No entanto, sempre gostei de esporte, fui praticante de capoeira e outras atividades. Próximo ao
vestibular, conheci um profissional da área que me fez ver quanta ciência existe no esporte: Física,
Anatomia, Bioquímica, Fisiologia, Biomecânica, Cinesiologia... Fiquei impressionado e achei
que era uma boa. Mas quando se opta por carreiras tão distantes, as pessoas olham para você e
avaliam: “Esse cara está perdido”.
Na UERJ pensei em tentar Educação Física, mas não consegui fazer muitos pontos
na primeira fase e optei por Geografia na UERJ - São Gonçalo. Na UFRJ minha opção
foi Educação Física. Já na UFF, que fica na minha cidade, tentei uma vaga em Geografia.
Contudo, os mitos e lendas do que se fala sobre o vestibular me fizeram achar que era
muito concorrido e optei por Ciências Sociais na UFF. Brincava que ia ser antropólogo.
A repentina opção por Geografia se deu graças às aulas do segundo grau e a um grande
professor que tive no pré-vestibular: Jorge Mitrano.
Mas o caso é: o cara que teve crise nervosa um dia antes da prova da UERJ, achando que
não ia passar no vestibular e a vida tinha chegado ao fim, descobriu que tinha passado na UERJ
e na UFF e, num sábado muito chuvoso, ainda recebeu o telefonema do coordenador do curso
dando os parabéns por passar na UFRJ. Não acreditei, achei que era brincadeira. Como gostava
de tirar sarro de todo mundo, agora era a minha hora de ser zoado. Pensei: “Vou à banca comprar
a Folha Dirigida para ver o resultado”. Só que as bancas perto da minha casa já estavam fechadas.
Tive de ir a uma banca que fica num Hipermercado, bem mais longe. Conferi o resultado lá mesmo
e tive uma noite em que não consegui dormir pensando para onde iria, afinal de contas era o meu
futuro. De qualquer forma sabia que eu iria ser professor, poderia ajudar a mudar o caminho de
várias pessoas, assim como aconteceu comigo.
Passada a guerra do vestibular ainda apareço lá no curso, sempre ajudo em alguma coisa,
elaboro eventos. Muito mais do que a gratidão, eu descobri que aquele lugar também é meu e sou
parte atuante daquele projeto, um ator social junto com meu parceiro: o coordenador que eu achei
que ia me expulsar do curso. Alguns ex-alunos companheiros de batalha também estão lá.
Quando estamos no olho do furacão, no exato momento dos fatos, tudo é muito intenso.
No entanto, passado algum tempo, vemos que as situações trágicas de então, hoje são cômicas.
O romantismo residente naquilo que já passou é parceiro da nostalgia. Vivemos num ciclo de crises: crise para entrar na universidade, para se formar nela, para se inserir no mercado de trabalho.
De crise em crise vamos: chora agora, ri depois.
Rodrigo Pimenta Souza
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Caminhadas de universitários de origem popular
Capítulo 17
O confronto com a Hidra de 9 cabeças
No dia 23 de dezembro de 1980, às quatro e cinco da madrugada, nascia no Hospital do
Andaraí, a primeira filha do casal Delema e Lázaro. Quem são essas pessoas? Calma, já vou
explicar! Delema é a mãe desta humilde aprendiz de escritora; Lázaro, o pai. Delema, aos
28 anos de idade, veio do Sul do país para o Rio de Janeiro. Ela tinha um “probleminha” de
saúde que a atormentava. Por incrível que pareça, tinha alergia ao frio. Êta coisa esquisita: uma
gaúcha legítima com alergia ao frio, é mole?! Seu médico aconselhou procurar um local mais
quente para viver. Todas as medicações possíveis já haviam sido utilizadas sem resultados
satisfatórios. Em 1978, Delema veio para o Rio de Janeiro. Residiu no Andaraí por um ano.
Mais tarde, veio para Niterói, onde trabalhou como técnica em enfermagem.
Já meu pai, senhor Lázaro de Aquino nasceu por essas bandas daqui mesmo. É de
Três Rios, Rio de Janeiro, onde morou por muito tempo com seus pais. Começou a trabalhar muito cedo e, aos dezoito anos, serviu o Exército. Foi lá que aprendeu o trabalho de
eletricista, ofício exercido por conta própria até hoje. Veio para Niterói no final do ano de
1977 e, um ano depois, conheceu minha mãe, na Praia das Flechas. Inicia-se, então, um
namoro bem rápido: durou apenas três meses. Após esse período de 120 dias, casaram-se
e foram morar no Bairro de Fátima. Dois anos depois de casados, eu nasci. Após muitas
conversas chegaram à escolha de meu nome. A princípio, minha mãe queria me chamar
de Lia, mas meu pai não gostou muito da idéia. Achou o nome muito simples. No entanto,
não tinha nenhuma outra opção. Certa noite, o casal assistia a um filme. No fim, meu pai
viu o nome verdadeiro da atriz: Lizangela... Rapidamente perguntou a minha mãe o que
ela achava: foi assim que me tornei Lizangela.
Morávamos em uma casa alugada no Bairro de Fátima. Passados dois anos depois do
meu nascimento, eu ganhei uma irmãzinha. Seu nome é Camilla, com dois eles, como ela
sempre diz. Quando eu completei 3 anos, a proprietária da casa onde morávamos resolveu dá-la
como presente de casamento para sua irmã. Tivemos que nos mudar para um lugar chamado
Cachoeira, em São Francisco, 30 minutos do centro de Niterói. Passei ali minha infância
entre jogos de amarelinha, queimada, esconde-esconde, seu mestre mandou... Não esqueço
de uma gincana montada por minha irmã na pracinha perto de minha casa. Os candidatos
deveriam dar uma volta por toda a pracinha, passar por dentro de um túnel feito com caixas
de papelão localizado dentro da praça. Depois, pular dentro de vários pneus, saltar uma corda
estendida a uma altura considerável por duas. Além disso, era preciso uma pilha de latinhas
montadas em pirâmide... e novamente contornar a pracinha... Ufa! Só de lembrar fico cansada!
Quem cumprisse essas tarefas em menor tempo era o vencedor. Mais de quinze crianças se
reuniram para participar da brincadeira.
Outro fato curioso de minha infância era minha paixão por animais. Eu brigava pra
valer com quem maltratasse qualquer cãozinho, gatinho... E o pior: havia em minha rua
um grupo de meninos que adorava matar filhotinhos de gato e passarinhos a pedradas.
Universidade Federal Fluminense
127
Aquilo me matava por dentro! Toda vez que um animalzinho era vítima de maus tratos,
vinham até minha casa para que eu fizesse alguma coisa. E lá ia eu, desesperada, correndo
para a rua atrás das crianças que jogavam pedras nos filhote. Numa dessas vezes, eu briguei
tanto com um garoto que ele saiu chorando. Resgatei sua vítima, um gatinho todo ferido.
Saí também chorando para casa cuidar do bichinho. Não conseguia entender como aquelas
crianças sentiam prazer, satisfação em ver um ser tão indefeso sangrando e sofrendo daquele
jeito. Aquilo me agredia demais!
Esse grupo mirim de extermínio sempre implicava comigo. Chamavam-me de macarrão
sem molho, leite azedo, farinha de trigo; tudo por causa do meu ultrabronzeado no melhor
estilo Branca de Neve. Também me apelidavam de a chatinha do colégio particular, só
porque minha irmã e eu éramos as únicas que estudavam em colégio particular da minha rua.
Mal sabiam que nos só estudávamos lá por causa do desconto concedido às pessoas que tinham
mais de um filho matriculado no colégio. Porém, o Governo do Presidente Sarney resolveu
esse problema rapidamente. Com a inflação, o salário da minha mãe não era mais suficiente
para pagar o colégio, nem as contas da casa, da farmácia e, principalmente, do mercado, onde
os produtos mudavam de preço a toda hora.
Assim, aos onze anos, sai do colégio particular e fui para um colégio estadual.
Qual não foi minha surpresa quando no primeiro dia de aula encontrei várias pessoas do colégio
particular no meu novo colégio público. No entanto, continuava a amizade com o pessoal da
escola particular. Certa vez, em um aniversário de uma dessas colegas, a diferença de ensino
se fez expressiva. Todos cantavam uma musica em inglês que haviam aprendido no colégio
e eu não tinha ainda professor definido para as aulas de português.
Tinha doze anos quando comecei a vivenciar esse período complicado; o de conviver
com essas diferenças. Isso me deixava bem chateada. Com o passar do tempo, meus novos
colegas foram tomando cada vez mais espaço em minha vida. De forma gradual, me afastei
dos colegas da outra escola, até não mais ter contato com eles. Neste período, comecei a ir
e voltar do colégio, sozinha. Sentia-me a adulta, a super madura, a Maria-faz-tudo, e me
sentia o máximo com essa experiência. Porém, ainda não podia fazer o que muitas de
minhas coleguinhas, tanto do colégio como da rua já faziam há muito tempo: sair pra dançar.
Ficava extremamente injuriada quando as via se encontrando para irem às matines. Minha mãe
não me dizia o por que de não me deixar ir. Mais tarde descobri que esses mesmos colegas
fumavam e faziam muita baderna pela rua. Só pude ir para a tão sonhada discoteca quando
completei dezessete anos, mesmo assim, acompanhada da irmã de vinte e cinco anos da minha
amiga de sala, sabe como é, né: alguém tinha que cuidar das crianças... Mesmo assim adorei!
Com esta mesma idade entrei para um grupo de escoteiros, onde passava minhas tardes
de sábado em atividades que iam desde treinamento para acampamentos, montagem de pioneiras, treinamento de nós, primeiros socorros ou simplesmente jogos em equipes. Aprendi
muitas coisas, conheci muitas pessoas. O grupo de escoteiro foi uma experiência válida e
significativa para meu crescimento interior. Lembro de meu primeiro acampamento, realizado
numa reserva do Exército localizada em Petrópolis, região serrana do Rio. Foi uma coisa de
louco. O tempo estava ótimo até o segundo dia. Depois disso, ficou tenebroso, uma chuva de
louco, que não parava de jeito nenhum. Bem, chuva em acampamento, sinônimo de problemas.
O solo sofreu um processo de lavagem, ficamos numa verdadeira piscina de lama. Mas o pior
ainda estava por vir. Como ficávamos o durante todo o dia fora das barracas, não pudemos
observar que a barraca da minha patrulha estava furada. Foi um Deus nos acuda quando, às
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Caminhadas de universitários de origem popular
cinco horas da tarde, depois de um dia cansativo catando lenha, abastecendo cantis e cortando
bambu para as pioneiras, encontramos a barraca encharcada. Tudo o que estava dentro dela
estava molhado: sacos de dormir, mochilas, sapatos extras, enfim, tudinho ensopado. Foi uma
loucura! Neste período, a relação com os colegas de minha rua foi ficando um pouco distante,
não só por mim, mas também pela diferença de interesses, gostos musicais, objetivos.
Com dezoito anos, comecei a trabalhar em congressos da área médica: apresentava
data-show, slides, cuidava da recepção; coisas assim. Foi muito gostoso receber meu primeiro salário. Senti-me maravilhosamente satisfeita, sabia que aquele dinheiro era fruto do
meu trabalho e esforço. Mas este emprego não durou muito; apenas um ano e logo tive de
procurar outro, sem obter muito sucesso. Nessa época estava terminando o segundo grau e já
pensava em prestar vestibular, sabia que não seria nada fácil devido à falta de base da minha
trajetória escolar. Durante os três anos do segundo grau, só pude contar com a presença do
professor de Física por quatro meses. Já com os professores de Química e Biologia nosso
tempo foi um pouco maior: seis meses com cada um. Mesmo com tão pouco contato, me
apaixonei por Biologia, o que me fez pensar nela como segunda opção de vestibular, já que
a primeira era medicina veterinária.
Minhas escolhas deixavam minha mãe e eu de cabelo em pé! Como iria passar no
vestibular vindo da escola pública? Como concorrer com pessoas que tiveram professores
maravilhosos durante todo o segundo grau? Como competir com quem fica o dia inteiro no
colégio estudando pela manhã e pela tarde em cursinhos preparatórios super caros?
A única saída era procurar um curso pré-vestibular. E isso foi feito. Aqui começa o
que chamei um dos meus doze trabalhos de Hércules. Para ser mais específica, era minha
luta contra a Hidra. Monstro mitológico com nove cabeças de serpente que, quando cortadas,
nasciam outras em seu lugar. No meu caso, a Hidra tinha outro nome: vestibular; e vocês já
vão entender o por que!
Meu primeiro pré-vestibular foi feito junto com o último ano do ensino médio em 1999.
Uma experiência muito interessante! Era um pré-comunitário chamado Corujão. Lá estudei
pela primeira vez com pessoas da minha rua. As aulas eram loucura! Por volta das dezenove
horas, os alunos chegavam e iam se aglomerando em frente ao portão do colégio onde as
aulas ocorriam. E eu lá, no meio de um mar de gente de tudo quanto era jeito, completamente
admirada com tanta diversidade. Pra mim tudo era novidade. Eu, que sempre estudei com
pessoas da minha idade, agora estava estudando com mães, pais, tinha até uma vovó na minha
sala. Era muito divertido.
Lembro bem de uma das mamães que por não ter com quem deixar seu neném, acabava
levando-o consigo para sala de aula. Era uma farra só, todo mundo ficava babando com aquela
criança linda, completamente bochechuda. Tá certo que quando começava a chorar atrapalhava
um pouco, mas a turma era bem compreensiva. O que mais atrapalhava eram as pessoas que
iam para as aulas obrigadas pelos pais, esses eram os mais bagunceiros. No início não ligava
muito, mas com o passar do tempo foi batendo em mim um leve desespero. Deparei-me com a
primeira cabeça da Hidra! A bagunça estava pior e a cada dia o grupo ganhava novos adeptos.
Na verdade, alunos desestimulados com o tamanho do conteúdo que faltava para completar
o programa, com a proximidade das provas e com o inexplicável desaparecimento de alguns
professores. O somatório desses fatores era a segunda, das nove cabeças da Hidra.
Meu nervosismo só aumentava com a proximidade das provas. Mesmo assim seguia
em frente, tentando não desanimar. E eis que chega o grande dia! O dia do famoso vestibular,
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onde meus conhecimentos seriam testados por meia dúzia de questões. Saí de casa para a
prova pensando: “Não será na verdade nada fácil conseguir passar!”. Fiz a prova assustada,
com a garganta amarrada e muita vontade de chorar. Vi num flash o ano inteiro com risadas,
angústias e esperanças. Porém, não mais me iludia como criança, foi-se o tempo da esperança,
nada mais podia esperar. Bem, o resultado foi o que já era esperado, a aprovação tão desejada não viria naquela hora. Depois de um tempo digerindo aquela derrota, me fiz um novo
convite: “Vamos de novo estudar?” Inicia-se aí uma nova batalha contra a terceira cabeça:
O medo de falhar novamente.
Ainda acabrunhada e bem incerta da resposta achei melhor calar. Mas como não há mal
que sempre dure, recomecei a estudar. Certo dia, quando as energias já estavam repostas e
um novo ânimo batia a minha porta, escutei a seguinte frase de um colega de rua que estudou
comigo no pré-comunitário. Na época, um dos mais esperançosos:
– Você ainda tá nessa? Não desistiu ainda desse troço de vestibular? Deixa de ser trouxa
menina! Não percebeu ainda que faculdade pública é pra filho de patrão! A gente que é pobre
não tem chance, não!
Eis que se apresenta a quarta cabeça do monstro: o pessimismo. Aquelas palavras machucaram meu coração. Não só por me fazerem lembrar das dificuldades, mas também por
toda a amargura e rancor contidos nelas. Era muito triste ver uma pessoa na mesma situação
que eu tão desiludida e tão amarga devido ao vestibular. Tentei transformar aquela situação
em estímulo e mais uma vez me preparar para as provas. Sabia que não estava sendo fácil
para minha mãe pagar meu curso pré-vestibular, que agora era particular. Eu teria de arrumar
um emprego. Mais uma cabeça da hidra se apresenta: falta de recursos financeiros.
Com esse intuito, aos dezenove anos iniciei um curso no SENAC de auxiliar de
escritório informatizado. Ao final do curso, fui atrás de emprego sem maiores resultados. No meio do ano iniciei o já citado curso intensivo preparatório para o vestibular.
Dediquei-me ainda mais, pois sabia não estar sendo fácil pagar aquele curso. Tenho que
admitir, era bem complicado encarar matérias como Física e Química pela primeira vez
de forma tão intensa. Praticamente não vimos essas matérias de modo eficiente no segundo grau. E olha a sexta cabeça da hidra, aí gente! Dessa vez travestida da fragilidade
da minha trajetória escolar. Pra aliviar a tensão, aos sábados, ia para as reuniões de um
grupo ambientalista chamado JAN, que quer dizer: jovens ambientalistas de Niterói.
Essa experiência fez meu interesse por Biologia crescer ainda mais! Neste grupo, discutíamos a possibilidade de a população jovem de Niterói estar atuando de maneira efetiva
nas questões relacionadas aos problemas ambientais da cidade.
Uma das nossas principais atividades era a elaboração e implementação do curso de
capacitação para jovens líderes em questão ambiental. Sua finalidade era identificar junto
aos jovens, principalmente os de comunidades populares, quais aos problemas ambientais
existentes em sua região, como esses problemas atingiam os moradores e quais as possibilidades de atuação dos jovens locais na resolução daquelas questões. Uma outra atividade
em que nos envolvemos foi o Programa de Reflorestamento do Parque da Cidade, localizado
num bairro de Niterói chamado São Francisco. Esse projeto surgiu da idéia de mostrar o
potencial turístico daquela área, incentivando o lazer para população de Niterói e, assim,
reconstituir a vegetação com espécies naturais da região de Mata Atlântica. Tínhamos à
frente de nosso grupo uma equipe composta por geógrafos, biólogos e veterinários, responsáveis pelo suporte teórico do grupo.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Como já mencionei, meus cursos desejados eram Veterinária e Biologia, cursos que
abordam algumas matérias específicas como justamente Física, Química e Biologia. Eu tinha
muito medo de não conseguir aprender tudo a tempo da prova. Olhava para as pessoas da sala
e as via – ou as imaginava – compreendendo as matérias... e eu ali, a boiar quase por completo
nas aulas, afinal, era um intensivo de seis meses, tudo era passado de forma muito rápida e
nem sempre conseguia acompanhar! Se existia uma coisa que acabava comigo era quando o
professor dizia: “Bem, não vou me aprofundar neste assunto porque vocês já aprenderam isso
no segundo grau”. Eu me sentia a pior das criaturas! Mesmo assim persisti, até que chegaram
as provas. Fiz vestibular para a UFF, UENF e Rural. Na UFF e na Rural optei por Medicina
Veterinária e na UENF por Biologia.
Não lembro ao certo qual a ordem das provas, mas lembro que passava muito mal nos
dias de prestar vestibular. Não dormia direito antes das provas, tinha crises de enxaqueca,
era terrível. Mas a pior prova foi a da UENF. Era toda discursiva, dividida em três partes, ou
seja, três dias de prova. Os dois primeiros dias foram relativamente tranqüilos, mas o último
foi complicado desde seu início. A prova seria realizada na Faculdade de Enfermagem da
UERJ no Rio. Logo, eu deveria acordar mais cedo do que o de costume para evitar possíveis
engarrafamentos na Ponte Rio-Niterói. Nesse dia, tinha combinado de dar carona para um
colega de cursinho que também prestava vestibular para a UENF.
O certo é que o garoto se atrasou, meu pai começou a falar que eu ia perder a prova,
que não deveria ter marcado nada com ninguém, blá, blá, blá... De repente, olho para
frente e vejo alguém correndo desesperadamente entre os carros na entrada da Ponte RioNiterói. Era ele, eu nunca havia ficado tão feliz em vê-lo quanto naquele dia. O coitado
estava tão ofegante que mal conseguia falar! Pediu-me mil desculpas e nós fomos fazer
a prova. Ao chegar ao local do vestibular da UENF me deparei com a sétima cabeça
da hidra: o descontrole emocional. Comecei a vomitar de nervoso, estava morrendo de
medo de fazer as provas discursivas de física, química e biologia. Entrei em prece para
me acalmar e aos poucos fui me recuperando. Quando entregaram o caderno de questões,
comecei a folheá-lo e tive uma crise de choro. Dei conta de que sabia fazer várias questões.
Foi uma coisa de louco, incrível! Voltei pra casa me sentindo bem melhor. No entanto,
não estava com coragem de ver o resultado e combinei com meu colega de esperar pelo
resultado através dele.
Quando o resultado chegou, o tal colega ligou para a minha casa e disse que eu, assim
como ele, não havia passado. Fique triste e toda a história de deficiência de meu segundo
grau veio de volta a minha cabeça. Mesmo assim, resolvi ligar para a instituição através do
número indicado no cartão do vestibular para confirmar o resultado. A pessoa que me atendeu
disse não haver nenhuma pessoa com o meu nome na lista de aprovados. Um fato curioso:
uma amiga minha do tempo de escoteiro insistiu muito para que eu fosse confirmar essa
informação. Deixei para lá. Passado quase um ano, cheguei em casa num domingo à tarde.
Pronto: minha irmã vem com a notícia de que eu havia passado no vestibular.
Não acreditei até ver a lista na Internet. Foi uma sensação de perda muito grande e a
oitava cabeça da hidra começava a ganhar cara. Chorei horrores. Na manhã seguinte procurei
o posto do programa Pensando em Você da TVE do Rio de Janeiro para ver se seria possível
fazer algo pelo meu caso. Consultei uma advogada do programa, mas ela me disse que nada
poderia ser feito, mesmo com a informação errada fornecida pela funcionária da UENF, já
que o prazo de 180 dias para recorrer tinha expirado.
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Por um bom tempo, a oitava cabeça da hidra, uma mistura de desânimo, desgosto, falta
de motivação, esteve presente em minha vida. Eu já me sentia cansada de tentar e já estava
quase acreditando que faculdade pública não era realmente para mim, mas graças a minha
família, aos meus amigos queridos e principalmente a Deus, aquele mal estar foi sendo gradativamente posto de lado.
Com muito peso no coração e, frustrada por ter perdido minha vaga em uma instituição pública, tive de começar mais um ano de estudos para o vestibular. Já não queria mais
o curso de Biologia e comecei a pensar em Psicologia. Esse interesse surgiu a partir de uma
pessoa muito interessante, minha amiga Berta, que me apresentou Carl Gustav Jung e eu me
apaixonei por ele. No entanto, mais uma vez, não consegui alcançar minha meta no vestibular
de 2002.
Foi então que minha mãe já cansada de me ver passar sem êxito por tantos vestibulares
decidiu fazer um esforço maior e pagar uma faculdade particular para mim. Fiquei muito triste.
Sabia que aquela situação a deixava muito preocupada, causava mal a ela e também a mim,
pois eu queria estudar numa instituição pública. Mas, como compreendia a angústia de minha
mãe, aceitei a proposta. Iniciei o curso de Psicologia numa faculdade particular, onde minha
mãe tinha o direito de ganhar um desconto. Porém, não desisti da instituição pública.
Mesmo sem ter um contato mais direto com nenhuma universidade pública, sabia que
lá era um mundo muito diferente do que eu estava vivendo na faculdade privada e a cada
dia, me sentia pior; afinal, não havia conseguido o que tanto sonhava. Decidi então, prestar
vestibular novamente, mas agora escondido, sem ninguém saber. Não queria alimentar esperanças de ninguém, como diz a cantora Ana Carolina em uma música: ‘‘... mas é que se
eu perder, eu perco sozinha... ’’
Neste período, lá para junho de 2002, comecei a trabalhar como babá e isto também me
estimulou a prestar vestibular. Sabia que teria o dinheiro para pagar a inscrição. Assim foi
feito; fiz as provas sem que ninguém soubesse. Mas não foi tão fácil quanto parecia. Alguns
dias antes da prova específica, começou a chover muito e na madrugada que antecedia ao
vestibular, faltou luz em minha casa. Triste moral da história: o relógio não despertou e no
meio do meu profundo sono ouvi alguém me chamar, dizendo:
– Lizangela, acorda seu vestibular!
Dei um pulo da cama e o relógio marcava meio dia – havia parado por conta da falta
de luz. Estava chovendo muito e eu fiquei desesperada. Percebi que havia faltado energia e
corri para o telefone para saber que horas eram. Uma voz dizia: Sete e meia da manhã, eu
tinha vinte minutos para chegar ao Valonguinho, um campus da UFF localizado no centro
de Niterói, antes de os portões serem fechados. Geralmente levo meia hora para chegar ao
centro sem chuva e com um trânsito bom. Arrumei-me rapidamente e sai literalmente correndo debaixo de chuva para o ponto de ônibus. Só demorou cinco minutos para passar,
mas para mim pareciam cinco séculos. Desci na Amaral Peixoto, uma avenida do centro de
Niterói, que fica a uns quatro quarteirões do Valonguinho. E lá fui eu, literalmente correndo
até meu sonho.
Cheguei ao Valonguinho sete e quarenta e cinco. Exatamente cinco minutos antes de os
portões serem fechados. Subi correndo, toda molhada. Pouco tempo depois de entrar na sala,
as provas foram entregues. Graças a Deus consegui chegar! Continuei cursando Psicologia até
saber do resultado da UFF. A idéia inicial era continuar na faculdade particular, independente
do resultado do vestibular, que ainda não havia saído.
132
Caminhadas de universitários de origem popular
Mas eis que no grande dia, o dia do resultado, fui para a faculdade e encontrei todas
as máquinas ocupadas no laboratório de informática; comecei a ficar angustiada. Após meia
hora de espera, consegui um computador e travei na frente dele! Fiquei ali, completamente
imóvel com um medo terrível de saber o resultado. Meu coração batia a mil por hora e como
tinha feito vestibular sem falar nada pra ninguém, não tinha ninguém pra compartilhar aquele
momento comigo. Entrei no site da UFF, digitei meus dados e Ah, Ah, Ah, Ah! Comecei a
gritar como uma louca: passei, passei!
Meu sonho havia se tornado real, a batalha chegava ao fim, a terrível Hidra de nove
cabeças havia sido, enfim, derrotada. Todos os meus medos, todas as angústias, todos os momentos de choro e descrença total em mim estavam sendo exorcizados ali naquele instante.
Agora, eu era estudante de uma Universidade Pública. Estava muito feliz, iria dar início a
um novo curso, Serviço Social, que conheci por meio de uma amiga que estava se formando.
Como já mencionei, meu plano era continuar Psicologia na particular. Porém, quando fui
fazer a inscrição no período seguinte, levei o maior susto. A mensalidade tinha aumentado
muito e eu não tinha mais condições de pagar a faculdade. Resolvi, então, ficar só com a
Universidade Federal Fluminense. Contei para minha mãe o que tinha acontecido, ela ficou
extremamente contente e eu mais ainda.
Iniciava-se uma nova fase em minha vida. Mas como nem tudo são flores, mal entrei
na faculdade e já enfrentei de cara uma greve que durou três meses. Fiquei muito angustiada
com isso. Estava louca para estudar e enfrentar de cara aquela paralisação me desanimou
um pouco. De qualquer forma, estava me sentindo muito bem. Já tinha feito alguns colegas
na instituição. Estava cheia de expectativas. Quando as aulas recomeçaram, fui sentindo a
diferença entre a faculdade particular onde estava e a instituição atual.
As discussões eram mais calorosas, a turma mais participativa, as pessoas mais engajadas com a política nacional; muito diferente do clima que eu sentia na outra faculdade.
Fiquei encantadíssima com a minha primeira Agenda Acadêmica cujo tema foi Compromisso
Social: UFF em movimento. Eram tantas as palestras, que ficava difícil saber a qual delas
ir primeiro. Não pude aproveitar muito, uma vez que ainda estava trabalhando como babá à
tarde. No entanto, o que aproveitei foi espetacular.
Passada a empolgação inicial, comecei a me deparar com alguns problemas como falta
de professores, de giz, apagador, ventiladores funcionando. Este cenário de sucateamento de
uma universidade pública me causava tristeza. Mesmo assim, considero um ganho imenso
entrar para a Federal Fluminense, afinal de contas, se não fosse a UFF, não estaria aqui hoje
fazendo parte desse projeto que para mim tem um significado muito forte. No Programa
Conexões de Saberes, conheci pessoas com histórias bem parecidas com a minha e creio
que através dele poderemos melhorar as condições de tantos que, como eu, passam muitas
dificuldades para chegar a uma instituição pública.
Lisangela Fernandes de Aquino
Universidade Federal Fluminense
133
Capítulo 18
Relato de uma moradora de comunidade,
hoje universitária
O dia 8 de novembro de 2005 foi uma data especial para mim. Nesse dia, acontecia a Semana de Extensão da UFF. Alunos de diversas áreas apresentavam os trabalhos de seus projetos
de pesquisa. Eu estava lá com meu amigo Aparício, colega e bolsista da Rede de Universitários
de Espaços Populares, a RUEP. Nosso trabalho era Biblioteca Comunitária: Cultura e Cidadania
na Comunidade do Preventório. Estávamos concorrendo com 12 grupos ao prêmio Josué de
Castro no campo da cultura. Ganhamos o primeiro lugar. Foi uma surpresa para a gente. Receber
o certificado do Prêmio foi uma emoção especial para quem veio de espaço popular, para quem
apesar de tímida apresentou quase todo o trabalho. Mas, principalmente, para uma pessoa que
desde pequena teve que vencer todo tipo de obstáculo possível.
Meu nome é Simone da Cruz. Nasci de cesariana num final de tarde. Era uma quarta-feira de
agosto em 1976. Não foi fácil sair da barriga da minha mãe. Ela ficou em trabalho de parto o dia
inteiro e nasci com alguns problemas de saúde. Sou filha do cabo do corpo de bombeiro Claudino
da Conceição com a segurança Dilma da Cruz. Meu pai faleceu em 1999. Minha mãe já trabalhou
em diversas atividades para me sustentar, inclusive na limpeza. Moro hoje na mesma comunidade
que nasci: no Morro do Preventório, localizado em Charitas, bairro nobre de Niterói.
Meu pai largou minha mãe logo que eu nasci e ela só tinha a minha avó para ajudá-la. Quando
completei 6 meses, fomos despejados de casa. O terreno onde morávamos era uma ocupação
irregular e pertencia ao estado, então, o Corpo de Bombeiro que residia ao lado da nossa casa
resolveu fazer uma piscina que expulsou a gente. O comandante ficou com pena da minha mãe e
da minha avó que permitiu que nós ficássemos na casa até conseguirmos outro lugar para morar,
também obrigou o meu pai a comprar uma casa para a gente em nome da minha mãe. A casa que
conseguimos tinha somente 1 cômodo, o comandante continuou ajudando e permitiu que a nossas coisas ficassem no quartel até termos espaço para colocá-las. Fez uma cozinha, um banheiro
e dividiu o cômodo que já tinha em dois, fazendo sala e quartos.
Quando tudo parecia bem, aproximadamente aos 2 anos comecei apresentar crises de
desmaio, a princípio minha mãe achou que seria uma coisa boba, pois voltei logo, mas tive
outra crise e então ela resolveu me levar ao médico; depois de vários exames foi constatado
que eu tinha epilepsia, o médico disse que isso poderia ter sido causado pelos aborrecimentos
que minha mãe teve durante a gravidez, mas se fizesse o tratamento adequado eu ficaria curada.
Comecei a tomar antibiótico com uma dosagem um pouco elevada, pois estava um pouco
grave o meu caso. O tempo passou e apesar do meu problema de saúde estava conseguindo
levar a vida, até que com 5 anos apareceram outros dois problemas de saúde, pois após eu
ingerir algumas fatias de lingüiça, comecei a ficar empolada e tive que ser levada as pressas
para o hospital. Lá minha mãe descobriu que eu tinha um problema alérgico muito grave e
134
Caminhadas de universitários de origem popular
me deram vários tipos de medicamentos, mas eles pioraram a minha alergia. Hoje não posso
comer quase nada. Neste mesmo período minha mãe notou que eu tinha um problema da
fala, trocava uma letra por outra, então me levou ao médico e ele indicou um psicólogo que
falou para ela que, devido ao meu problema de epilepsia, eu havia desenvolvido um problema
na fala também e que ela tinha de procurar me tratar com um fonoaudiólogo. Avisou para
ela não estranhar se eu tivesse também problema de aprendizado, porque era muito comum
uma pessoa que tinham esta doença estabilizar em uma determinada série ou repetir várias
vezes. Após este relato minha mãe ficou desesperada e pensou no que fazer para melhorar
esta situação. Neste meio tempo aconteceu uma coisa boa, surgiu o meu padrasto nas nossas
vidas e isso foi muito importante para mim, pois o meu pai só vinha me ver de um em um
ano e o meu padrasto foi como um pai para mim. Isso me ajudou e muito, pois a maioria dos
problemas que estava tendo era por causa disso.
Imagina os momentos difíceis que minha mãe passou, pois ela não podia trabalhar porque
minha avó já estava velha e eu precisava muito dela, vivíamos somente com a aposentadoria
da minha avó. Fiz o tratamento todo pelo o INPS, até mesmo o psicólogo a minha mãe não
pagou nada. Quantas vezes a minha mãe teve que acordar de madrugada para pegar senha para
eu ser atendida.
O meu padrasto também era bombeiro, ele ficou com a minha mãe 10 anos. Sempre me
respeitou e me tratou como filha. Quando eu fazia desenhos - mensagens para o dia dos pais - era
a ele que eu dava. Hoje ele já é falecido, morreu em 2003, e apesar de que ele quando morreu já
não estivesse com a minha mãe eu fiquei muito triste. Até hoje penso nele e queria muito que ele
tivesse vendo toda a minha conquista, pois ele torceu tanto para que eu entrasse na faculdade e
depois que eu entrei, ele sempre quando me encontrava perguntava como estavam os estudos.
Minha mãe me matriculou no jardim aos 4 anos e o primeiro colégio que eu freqüentei foi
o Joaquim Távora onde estudei somente um ano e depois ela me transferiu para o Instituto de
Educação Professor Ismael Coutinho (IEPIC), lá eu conclui o jardim e fiz todo o ensino fundamental. Devido ao alerta do médico que teria problema com estudo, quando completei 6 anos
minha mãe, mesmo não tendo condições, resolveu colocar-me em uma professora particular
perto da minha casa, para que eu pudesse aprender a ler e a escrever. Estava tão adiantada que
a direção do colégio resolveu que eu não precisava passar pela alfa. Entrei para a 1ª série com 7
anos, sabendo ler e escrever. Era uma aluna exemplar; tirava só 9 e 10 durante todo o ano, sendo
assim, minha mãe vendo aquilo achou que eu já estava curada e como estava ficando muito
pesado me manter em professora de reforço e pagar as passagens para me levar no psicólogo,
então ela resolveu me tirar das aulas de reforço. Quando cheguei à 2ª série, comecei a apresentar
problemas; tirava notas baixas e acabei ficando em recuperação na matéria de Serviços Sociais,
então minha mãe me colocou novamente nas aulas de reforço e desta vez fiquei tendo este tipo
de aula até a 6ª série. Consegui passar de ano, fiquei em recuperação somente três vezes, uma na
2ª série, outra na 6ª série e a outra foi na 8ª série, mas nunca repeti nem no 2º grau e até mesmo
na faculdade estou já no final e não fui reprovada em nenhuma disciplina.
Tive alta do tratamento aos nove anos e fiquei curada; a única coisa que percebo até hoje
como seqüela da doença é que sou muito desligada e tenho pouca concentração para fazer
as coisas, mas consigo trabalhar bem isto e não deixo que isso me atrapalhe no meu campo
acadêmico e profissional.
Não sei se foram os meus problemas de saúde, a vida difícil, os problemas de saúde da
minha avó ou se porque o meu pai a abandonou, mas a minha mãe ficou muito nervosa e amUniversidade Federal Fluminense
135
argurada. Ela passou a descarregar todo o seu nervosismo em mim: se eu tirasse nota baixa ela
me batia; se eu brigasse na escola e apanhasse ela me batia; se eu fazia alguma coisa por mais
simples que fosse ela me batia. Ela não tinha nenhuma paciência comigo.
Durante o período dos 9 aos 18 anos tive um péssimo relacionamento com a minha mãe
ela me tratava mal, me batia não deixava participar de nada na escola ou fora dela. Acho que ela
não se conformava de o meu pai tê-la largado e eu ter tido muitos problemas de saúde. Às vezes
eu falo para ela que a culpa de ser tão tímida é dela, pois fiz de tudo para perder a timidez, mas
infelizmente ela atrapalhava. Com tudo isso, eu devo muito a ela, pois se não fosse o cuidado dela
com a minha saúde eu não seria quem sou hoje.
Terminei o ensino fundamental, fiz a prova para o Aurelino Leal e passei, então fui fazer
o ensino médio nesta escola. Passei por constantes greves tanto no 1º como no 2º grau e isso me
atrapalhou muito, pois algumas matérias cobradas no vestibular eu vi vagamente. Fiz 2º grau técnico em Secretariado. Hoje me arrependo, pois se eu tivesse feito Formação Geral não seria tão
difícil para passar na faculdade. Tive Química, Física, Matemática, Biologia e Geografia somente
no 1º ano ou após o 2º ano; tendo tido somente as matérias referentes à área de Secretariado. Meu
último ano neste colégio foi no mesmo ano que Ayrton Senna morreu. Eu não era fã dele, mas
quando conheci mais sobre a vida dele fiquei fascinada; costumo dizer que me tornei fã do ídolo
de milhares de pessoas, após sua morte. Comecei a ler e assistir tudo que falava sobre ele, então
teve um concurso no colégio de redação, o aluno do 3º ano que escrevesse a melhor redação teria
esta arquivada para ser mostrada para os alunos que viriam; seria como um modelo de redação.
Fiz a redação e ela foi considerada a melhor entre várias, fui muito elogiada e fiquei muito orgulhosa.
Minha mãe não me encorajava em nada tudo que eu queria fazer ela falava que não era
para mim. Sempre fui uma pessoa muito tímida e sempre fiz de tudo para perder a timidez.
Tentei desfilar pela escola no dia 7 de setembro, quando ela descobriu que eu estava ensaiando ela
me tirou; tentei dançar quadrilha, ensaiei alguns dias quando ela descobriu me tirou; tentei entrar
em aulas de teatro, quando ela descobriu me tirou; a única coisa que eu consegui levar a diante
mesmo assim porque eu a enfrentei foi o funk, pois comecei a fazer aulas e me apresentar em
festas juninas, eramos eu e mais quatro meninas. Ela tentou de todas as formas, mas não conseguiu
impedir, dancei por três anos, porém nunca fui a um baile, somente me apresentava em festas,
pois tinha medo dos bailes; naquela época já estava ficando perigoso.
Durante o ano de 1994, a escola ofereceu aos alunos um pré-vestibular gratuito e eu resolvi
participar juntamente com a minha colega Cristiane, cheguei a ir a algumas aulas e quando minha
mãe descobriu me tirou do curso, conclusão: a Cristiane que tentou a faculdade pela primeira vez
passou na prova e entrou na UFF para o curso de Arquivologia no ano de 1995 e eu que somente
estudei em casa não consegui passar, pois tentei para Direito.
Formei-me em 1994 e no ano seguinte paguei um pré bem barato no centro de Niterói, o
nome do curso era Planc; nem existe mais, pois faliu no mesmo ano. Minha mãe que pagou, pois
nesta época eu não trabalhava ainda. Estudei neste curso o ano todo, mas como o meu estudo foi
muito fraco e a área que eu ia tentar era muito difícil, não consegui obter a pontuação necessária
para entrar na universidade, naquele ano tentei para Engenharia Civil.
Durante o ano de 1996 estudei em casa e comecei a investir em mim, fiz curso de informática
no Senac, estudei Inglês e comecei o curso de Enfermagem do SENE. No início eu não ia fazer,
ia fazer antes o de Recepcionista; então eles trocaram a inscrição e em vez de me inscreverem
no curso de recepcionista me inscreveram no de Enfermagem. Só que eu descobri isso somente
no primeiro dia de aula, como eu já estava querendo mesmo fazer o curso resolvi fazer logo.
136
Caminhadas de universitários de origem popular
Fiz o curso até o final, tirei somente de 8 a 10 nas matérias do curso e me formei em 1997.
Tentei para Enfermagem nos dois anos e em 1998 fiquei por 2 pontos na UFF, então decidir tentar
para qualquer área para ao menos conseguir entrar na faculdade. Neste mesmo ano comecei a trabalhar nas Lojas Americanas e com o salário que ganhava paguei um curso completo de informática
no SOS Computadores e paguei um pré-vestibular intensivo, chamado “Acadêmicos”, para ver se
eu conseguia passar no vestibular e não consegui. Em 1999 resolvi tentar qualquer área para ver se
passava, então tentei Arquivologia que na época era acho que 3 candidatos para 1 vaga. Estudei o
ano todo em casa e só. Para o meu desespero, aumentou a relação candidato/vaga e de novo fiquei
de fora. Foi aí que, em 2000, resolvi fazer um pré de nome (antes me inscrevi no pré-comunitário
da UFF, mas não consegui a vaga) e resolvi depositar a metade do meu salário no GPI. Valeu a
pena, pois através dele e da minha persistência é que estou aqui podendo contar a história da minha
vida. Foi muito difícil estudar lá, pois no início eu estava trabalhando nas Lojas Americanas à
noite de 13h30 as 22h30e às vezes tinha que fazer hora extra até 23h30e de manhã acordava 5h30
para estar no cursinho às 7h. Saía do pré às 12h30 e só dava para almoçar rapidamente e ir para
o serviço. Então resolvi pedir à gerente para mudar de horário. No 2º semestre do mesmo ano ela
resolveu me transferir de horário; só que por causa do favor ela pedia para eu chegar às 8h para
fazer hora extra e à noite saía do pré às 23h. Então dava quase no mesmo. Quando começou a se
aproximar o período de Festas, fazia horas extras direto, então comecei a ficar cansada e comecei
a faltar ao cursinho. Neste ano tentei para as Universidades UFF para Biblioteconomia; UERJ para
letras; UFRJ para Enfermagem e UNIRIO para Enfermagem também. Apesar das dificuldades
que tive durante todo ano tanto financeira como física para levar o pré até o final consegui passar para a 2ª fase nas quatro faculdades. Antes eu nunca tinha conseguido isso. Sempre falei que
quando conseguisse já estava inscrita na faculdade, dito e feito: na 2ª fase das quatro passei em
três; somente na UFRJ zerei em Física, no restante fiquei para reclassificação. Como na da UFF
eu fui logo chamada não acompanhei as outras Universidades. Fui mandada embora do serviço
no início de 2001 e depois de três dias arrumei um emprego no quartel perto da minha casa e lá
trabalhei como recepcionista em uma lavanderia até começar na faculdade.
Apesar dos problemas de aprendizado que o médico disse que teria, consegui terminar o
ensino fundamental e médio sem repetir uma série, somente fiquei em recuperação três vezes:
uma na 2ª serie, outra na 6ª série e outra na 8ª série, esta que foi mais incrível, pois fiquei em recuperação em Química e Física. Passei o ano todo tirando D e E em ambas as matérias e na última
prova consegui tirar C, mas esta nota tive que colar para conseguir tirar, sendo assim conseguir ir
para recuperação, fiquei muito triste pois tinha quase certeza de que não iria conseguir passar, pois
além das matérias serem muito difíceis a Professora era muito temida, o nome dela era Toyoco.
Falavam que os alunos que ficavam em recuperação não passavam nela e eu estava no último ano
tinha que passar para ir para o 2º grau, já tinha feito até prova para o colégio e conseguido passar.
O que fazer? Não consegui durante 1 ano que a matéria que ela ensinava entrasse na minha cabeça
como iria fazer para entrar em 2 meses. Então, comecei a estudar como uma louca e no dia da prova
entreguei na mão de Deus e fui fazer. Consegui concluir a prova toda e acabei até antes de todos,
então quando ela foi dar o resultado, uma semana depois, eu comecei a chorar antes do resultado,
pois jurava que não tinha passado, chorei de soluçar e todas as pessoas que fizeram a prova comigo
me consolaram, até que a professora entrou e me perguntou porque eu estava chorando e eu disse
a ela que tinha certeza de que não tinha passado. Ela falou que eu estava enganada, tanto tinha
passado quanto tinha tirado a nota mais alta da turma, tirei B, estas provas foram feitas por nove
alunos somente quatro passaram e eu fui uma destas quatro.
Universidade Federal Fluminense
137
Minha casa era muito humilde, tinha 4 cômodos para 3 pessoas: eu, minha mãe e minha
avó, pois o meu padrasto tinha casa própria. A casa era muito simples de telhas antigas que
quando chovia tinha vazamento em toda a parte, chão de xadrez, nós 3 dormíamos numa
cama de casal, pois só tinha um quarto.
Entrei para a UFF no 2º semestre de 2001 e já entrei querendo trocar de curso e comecei
a investigar como poderia transferir para o curso de Enfermagem. Na faculdade me informaram que só poderia me transferir para outra área quando eu fizesse até o 3º período e sem
repetir uma disciplina. No início o curso me assustou, pois ficava boiando nas aulas; como
eu já disse o meu estudo foi muito fraco. A minha sorte é que o pré que fiz foi muito bom e
consegui superar as dificuldades. No 1º período fiquei em VS em uma disciplina; ali quase
desisti, mas consegui passar e fui adiante. Também no mesmo período arrumei um estagio
na Igreja que eu freqüento, para montar uma biblioteca juntamente com a minha amiga já
formada em Arquivologia. Até hoje não terminamos este projeto, mas se Deus quiser vamos
terminar, este trabalho é totalmente voluntário.
No 2º período consegui a bolsa treinamento dentro da UFF, recebia R$180,00 (cento
e oitenta reais) para estagiar 15 horas semanais dentro da faculdade. Este dinheiro podia
ser pouco, mas me ajudou a pagar as despesas que tinha com a faculdade como: xerox e
passagens. Neste estágio ajudei a montar uma biblioteca, particular no Departamento de
Estatística da UFF. Como para desenvolver este trabalho tive que ler muito, então comecei
a simpatizar com a área. Quando chegou no 3º período que eu fui ver para trocar de curso,
me falaram que, como eu queria mudar para Enfermagem, eu não ia aproveitar nenhuma
matéria, então resolvi terminar a faculdade, arrumar um emprego e depois fazer a faculdade
que eu desejo. Hoje estou no 8º período fazendo a monografia e pronta se Deus quiser para
encarar o mercado de trabalho.
A minha entrada em projeto de extensão foi meio por acaso. Uma colega da minha
mãe falou que um professor da UERJ estava procurando na comunidade em que moro alunos da UFF ou UERJ para trabalhar em um projeto de extensão chamado RUEP – Rede de
Universitários de Espaços Populares UFF/UERJ. Resolvi procurá-lo e ele me disse que tinha
encontrado somente quatro estudantes de universidades comigo na comunidade só que esta
possui aproximadamente 8 mil moradores. Sempre fui muito tímida, e nunca participei de
nada dentro da comunidade. Só fui participar com o projeto.
Quando estava no último ano do 2º grau teve um pré-vestibular fornecido pela escola;
cheguei assistir algumas aulas, mas minha mãe me tirou e quando fui fazer prova para o vestibular não consegui passar; já minha amiga que fez o ano todo passou na primeira tentativa
na faculdade e começou logo no outro ano a estudar na UFF. A partir daí começou a minha
batalha.
O processo do pré-vestibular foi o mais difícil, pois não consegui pré-vestibular gratuito,
tive que trabalhar para pagar o pré-vestibular. Tentei o vestibular 5 vezes somente na 5ª vez
consegui passar para a 2ª fase. Sempre falei que quando passasse na 1ª fase eu já estaria na
faculdade e dito e feito; quando passei na 1ª fase, consegui entrar na universidade.
Comecei a trabalhar com 21 anos nas Lojas Americanas e aí não tinha tempo para nada.
Antes de começar a trabalhar fiz 2 vestibulares somente estudando em casa. não consegui nem
passar para a 2ª fase, o 1º tentei para Direito e 2º para Engenharia. Já trabalhando, tentei 3
vezes somente para Enfermagem, pois fiz um curso de auxiliar de enfermagem com 19 anos
e gostei então resolvi tentar para esta área; no 1º fiz um pré somente um semestre, no 2º fiz o
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Caminhadas de universitários de origem popular
ano inteiro e fiquei por dois pontos, já no 3º paguei um dos pré-vestibulares mais caros GPI
e, aí sim, consegui passar em 4 faculdades para a 2ª fase. Destas, passei em 3, só que para
duas tentei Enfermagem, para uma Letras e a para outra Biblioteconomia, como fiquei na
reclassificação em três, resolvi fazer Biblioteconomia na UFF. Não era bem o que eu queria,
mas resolvi fazer, pois foi o que os meus estudos me possibilitaram.
Trabalhar e estudar não é uma tarefa fácil; no principio acordava cedo para o pré que
era de 7h as 12h depois ia correndo para o trabalho no qual eu pegava de 13h30 as 22h30. Às
vezes, tinha que fazer hora extra e sai da loja 23h, chegava em casa tarde para acordar cedo
e estudar de manhã. Quando não estava agüentando mais, o meu pedido de troca foi aceito,
trocaram meu horário de trabalho e eu consegui passar para de manhã. Aí pegava de 9h as
18h40, saía correndo para o pré onde estudava de 19h as 22h30 e tinha aulas aos sábados,
que para eu conseguir ir eu tinha que fazer hora extra no serviço pegando às 7h, pelo menos
umas 3 vezes na semana. No pré, os professores passavam a matéria como se todos soubessem
a matéria e só estivessem revisando; eu, como tive um estudo muito fraco, geralmente não
conseguia acompanhar.
Acabei atuando na minha própria área, ajudando a montar uma biblioteca na minha
comunidade e este projeto foi um sucesso que até foi apresentado no Congresso da UFMG em
Minas Geras pelos seus coordenadores. Lá, foram apresentados todos os trabalhos realizados
pelo projeto de extensão até mesmo a Biblioteca Comunitária do Preventório e todos adoraram
o projeto. A bolsa foi renovada e eu comecei a atuar no Espaço Social do Pólo Universitário
de Volta Redonda. e então, continuei atuando na biblioteca, mas ajudei a elaborar algumas
oficinas desenvolvidas em Volta Redonda. O projeto de Volta Redonda estava em fase de
renovação e eu fui vinculada ao projeto Conexões de Saberes no qual estou até o momento.
Na Semana de Extensão da UFF eu apresentei com o Aparício, o meu colega bolsista,
o trabalho “Biblioteca Comunitária: cultura e cidadania na comunidade do Preventório”,
concorrendo com 12 grupos ao prêmio Josué de Castro no campo da cultura. Conseguimos ganhar em 1º lugar, só empatado com mais um grupo. Foi uma surpresa para a gente;
logo nós que viemos de comunidade, ambos tivemos muita dificuldade para chegarmos até
aqui e ganhar um prêmio deste tipo concorrendo com bolsistas tanto quanto ou mais preparados
que nós. Quando o prêmio e o certificado foram entregues foi uma emoção. Foi a prova de
que todo o nosso esforço não foi em vão; ali o nosso trabalho foi reconhecido, admirado e
principalmente ouvido. Com todas as dificuldades que tive, esta vitória me provou que se eu
lutar e tiver muita fé em Deus eu vou chegar lá e ser uma profissional exemplar.
O projeto não me ajudou somente na academia e sim para o meu futuro profissional,
pois tive a oportunidade de coordenar grupos, de desenvolver trabalhos e apresentá-los.
Isso tudo me ajudou a me desenvolver como pessoa e podem estar certos de que depois de
passar por este projeto eu não sou a mesma, mudei muito e para melhor.
Simone da Cruz
Universidade Federal Fluminense
139
Parte 7
UNIVERSIDADE
Capítulos:
Foi (quase) sem querer... mas
querendo muito
Histórias Quesianas
Nos caminhos da UFF
Capítulo 19
Foi (quase) sem querer... mas querendo muito
“Eu odeio esse lugar!”
Acho que esse foi um dos primeiros pensamentos coerentes que tive na vida. E o pior de
tudo é que foi plenamente consciente do significado de cada palavra, além do peso que tinham
ao se reunirem na mesma frase. Foram pronunciadas em 30 de junho de 1979. Eu tinha 5 anos
de idade. Meu pai havia morrido na véspera. Na minha inocência já não tão inocente, sentada
ao lado dos meus amados discos de historinhas, chorando ao vê-los quebrados e arranhados.
Tentava entender o motivo de quererem destruir o que era meu. Já havia sido difícil entender
que nunca mais meu pai chegaria do quartel no final da tarde, trazendo o jornal do dia e uma
barra de chocolate - que eu devoraria, enquanto ele me ensinava a juntar as letras das manchetes. Depois me dava a página dos quadrinhos, enquanto eu fazia questão de me sentar ao
seu lado e imitar cada gesto seu. Eu tinha até a minha poltroninha estrategicamente colocada
ao lado da poltrona preferida dele. Era a única forma de ele conseguir ler o jornal em paz.
Aquele cenário de destruição era obra de assaltantes. Na véspera, enquanto minha
família velava o corpo do meu pai, haviam entrado na casa em que morávamos. Viviam ali:
eu, mamãe, papai e minha irmãzinha, na época, com recém-completos dois anos de idade.
Tinham levado tudo o que poderiam carregar e deixaram apenas os móveis mais pesados.
Naquele momento, jurei que tiraria minha mãe daquele lugar; não importava como.
Mergulhei nos livros que meu pai havia deixado. Eu adoro ler! Aos seis anos, já lia
razoavelmente bem. Com menos de uma década de vida já tinha lido: O Conde de Monte
Cristo, A Cabana do Pai Thomas e Praga. Fomos morar com meus avós maternos. A casa onde
morávamos era alugada e numa vila acima da casa de minha avó. Papai estava comprando
um apartamento. Quando morreu aos 36 anos de idade por causa de um tumor cerebral que
o deixara doente por mais ou menos seis meses, o negócio ainda não estava fechado. Ele era
formado em Ciências Contábeis e não gostava de morar no morro. Foi morar lá por insistência
da minha mãe. Após sua morte, mamãe teve de trabalhar em dois empregos - de manhã na
cozinha de uma escola e, à tarde, como faxineira. Muitas vezes, ficávamos a semana inteira
sem vê-la. Eu era uma criança tranqüila. Dei pouco de trabalho em matéria de obediência,
pois era geniosa e curiosa ao extremo: cansei de desmontar os carrinhos dos meus primos
apenas para ver o que havia dentro.
Um segredo pessoal: eu gosto - gostar é pouco, eu A–D–O–R–O carnaval. Por nada
no mundo, esperaria onze meses depois de nascer para ter o primeiro carnaval da minha
vida. Simplesmente nasci na quinta-feira antes do carnaval de 1974, dia 14 de fevereiro,
quase um mês antes do previsto para meu nascimento. Seria chamada de Micaela, mas tive
o nome alterado aos sete meses da gravidez para Rita de Cassia – isso mesmo, o Cassia é
escrito sem acento gráfico. Aprontei de tudo um pouquinho. Não aquelas travessuras que
provocam espanto e admiração; e sim um monte de invenções frustradas. Uma vez, fui tentar
Universidade Federal Fluminense
143
lamber o fundo da panela de pressão e fiquei com a cabeça presa lá dentro. Vovó teve que
me pegar pelas pernas para soltar. Não há uma única foto minha dos três aos seis anos de
idade em que não esteja com o nariz quebrado. Parecia um cãozinho. Com quinze anos, já
pagava meu curso de inglês e as passagens para o colégio fazendo lembrancinhas e doces
para festas e pequenos bordados. Sou nascida e criada no Morro da Penha, no pequeno
bairro Ponta d’Areia – fica colado ao Centro de Niterói e a maioria de seus moradores tem
alguma relação com a indústria naval, a pesca ou a Polícia Militar.
Em toda a minha vida, estudei em três lugares. Fiz a pré-escola no Jardim de Infância
Portugal Pequeno. Aos seis anos, fui para o Colégio Estadual Raul Vidal – de onde saí
aos quatorze anos, direto para a Escola Técnica Estadual Henrique Lage. Formei-me em
Eletrotécnica: um ensino médio de formação geral estava fora de cogitação e sonhar com
uma faculdade nem pensar: tinha de ser ensino técnico para sair direto para o mercado de
trabalho. Foi no Henrique Lage que aprendi a gostar do mais puro e legítimo rock-and-roll.
Lá, conheci e me apaixonei pela música. Descobri os Beatles e os Rolling Stones, Led Zeppelin, Beto Guedes, Elis Regina e Roupa Nova. O meu grupinho era formado por outros
alunos que, como eu, tinham sérios problemas de entrosamento. Acabamos ligados por uma
sólida amizade que dura até hoje. Tivemos a nossa revistinha em quadrinhos desenhada à
mão. Participamos da Revolta do Macarrão. A comida que serviam no refeitório andava
intragável. Fizemos então músicas como o Blues do Macarrão e o Rock do Feijão, que
retratavam da qualidade do preparo dos alimentos que nos eram servidos. Era algo mais ou
menos assim: “Eu sou o vivo macarrão, aquele que nunca faz digestão...”.
Minha despedida do 2º grau foi em grande estilo: cerimônia de formatura com
missa, padrinhos e madrinhas, paraninfo, discurso da diretora e na qual fui oradora da
turma. Foi também nesse período que eu descobri uma das grandes paixões de minha
vida: o Grêmio Recreativo Escola de Samba Unidos do Viradouro – meu amor eterno e
onde desfilo até hoje.
Como precisava trabalhar, peguei o primeiro emprego que apareceu ao terminar o curso
técnico e fui parar na secretaria de uma creche. Com o trabalho, pude ajudar a melhorar
minha casa e comprar móveis novos. Não desisti de procurar emprego na área que havia
escolhido. Entrei na creche em março e, em outubro, já estava trabalhando como eletrotécnica. Era na cidade de Araruama, na Região dos Lagos. Minha história de morar sozinha dá
um memorial à parte. Para uma garota de 21 anos, era a glória. No entanto, os problemas
começaram logo no segundo dia de independência. Na casa de minha mãe, deixava o copo
em cima da mesa e quando eu precisava, o copo estava no lugar, pronto para ser usado de
novo. Com a toalha do banheiro, era a mesma coisa. Pela manhã, eu a deixava pendurada,
molhada. No final do dia, aparecia quase seca e pendurada na corda.
Infelizmente, só me dei conta desse tipo de coisa no final da minha primeira segunda-feira de liberdade. O dia tinha sido ainda mais cansativo por causa da mudança no
fim-de-semana. Cheguei ao meu apartamento de sonhos e tive uma visão de pesadelo: as
formigas carregando o que havia sobrado de um pacote de biscoitos, o requeijão azedo por
causa do calor e de ter ficado o dia inteiro fora da geladeira, o resto de café com leite na
xícara perfumando toda a cozinha. Enfim, tudo exatamente do mesmo jeito que eu deixei
de manhã. Só conseguia pensar que queria minha mãe ali. Tive de procurar o orelhão mais
próximo de casa e ligar para minha vizinha aqui em Niterói. Minha mãe ficou em desespero
ao me ouvir balbuciar chorando: – “MÃE!..., formiga..., saudade..., leite azedo...”.
144
Caminhadas de universitários de origem popular
Voltei pra Niterói cinco anos depois. Privilegiar muito mais a profissão que a vida
pessoal foi pesando. O trabalho acabou perdendo o encanto: pedi demissão para tentar
organizar meus pensamentos e minha vida. Outras coisas influenciaram muito essa decisão, sendo a maior delas a morte de minha avó materna. A amizade entre mim, minha
mãe e minha irmã é antiga. Nós nos adoramos e uma incentiva e apóia a outra o tempo
todo. Porém, o meu relacionamento com a vovó era insuperável. Ainda sinto o cheiro dos
doces que fazia: nunca mais comi um doce de mamão verde como o dela. Era ela quem
me entendia e sentia quando eu estava bem ou chateada apenas ao me olhar.
Durante essa reclusão voluntária, minha religião teve um papel fundamental.
Foi nela que me amparei. Nas obras da Casa Espírita Miguel Arcanjo, em São Gonçalo
compreendi que, por pior que eu considerasse a minha situação, com toda a certeza do
mundo, existiam outros irmãos em situação pior do que a minha. Pessoas que precisavam
da minha ajuda naquele momento e não depois. Tive uma educação espírita e posso dizer
que só abracei completamente a minha religião depois dessa tempestade.
Ao me recuperar, vi que precisava voltar a estudar. Fui obrigada a admitir que a
rebeldia de adolescente tinha passado: não queria trabalhar em nenhum dos campos da
Engenharia. Na verdade, escolhi eletrotécnica na adolescência só para contrariar minha
família. Sempre quis ser professora de Literatura, mas ainda restava uma dúvida no fundo
do coração. Resolvi deixar para resolver depois. Primeiro, tinha de pensar em como entrar
na faculdade. Estudar sozinha não daria certo, já que tinha terminado há muito tempo.
Além disso, no ensino técnico, nem todas as matérias são enfatizadas. Um exemplo:
Matemática e Português eram instrumentais. Sobre pagar um pré-vestibular, sem chance;
mesmo que barato! As coisas já estavam difíceis, somente minha irmã e minha mãe estavam trabalhando. Não precisava ser um Einstein para perceber que precisaria de ajuda
no que estava me propondo: entrar para uma universidade pública em no máximo dois
anos. O prazo que me dei era esse. Queria estudar um ano para aprender muitas coisas e
relembrar outras tantas; talvez até conseguir fazer uma prova de segunda fase e, no ano
seguinte, estudando sozinha, com uma boa base e muita dedicação, além de uma ajudinha
de São Miguel Arcanjo, conseguiria passar.
Só que Deus tem seus planos e quem sou eu para contrariar qualquer um deles?
E foi assim que um pré-vestibular comunitário foi colocado em minha vida, graças à Lelê,
uma vizinha me que chamou para fazer companhia na visita a um colégio onde um amigo
dava aulas. O tal colégio era o Pré-Universitário Popular Oficina do Saber, um Projeto de
Extensão da Universidade Federal Fluminense, que estava com inscrições abertas para
as turmas de 2003. Já que estava lá, fiz uma redação que foi classificada. Fui chamada
para a entrevista. Não me agüentei de tanta felicidade ao perceber que havia disputado
com 2.700 pessoas e conseguido uma vaga. Aquela era a chance que estava procurando.
A guerra, agora, era contra os onze anos em que só estudei e trabalhei com eletricidade.
No pré, fiz muitos amigos e os professores também me ajudaram muito. Passar na primeira
fase da UERJ ainda no mês de agosto foi um prêmio.
Fiz apenas dois vestibulares: UFF e UERJ. Quando terminei a prova da primeira
fase da UFF, dei a minha missão naquele ano como cumprida. Faria a segunda fase da
UERJ só para ver como seria. Descansaria um pouco e voltaria a estudar. Pensava em
procurar trabalho; já não podia mais ficar sem ele. Não posso deixar de lembrar a rede
de solidariedade que me auxiliou a entrar na universidade. Essas lembranças nesse texto
Universidade Federal Fluminense
145
têm um tom de gratidão. Para as duas Silvias, minha mãe e irmã, que ao saberem de
minha idéia fixa de entrar para uma universidade pública decidiram que naquele ano eu
deveria me dedicar aos estudos e não trabalhar. Para a minha Tia Joana que pagou todas
as minhas inscrições. Para os professores e coordenadores do pré, por suportarem minha
aporrinhação sempre antes da aula com caderno na mão e mil dúvidas na cabeça.
Não contava também com o presente que recebi de um dos colegas do pré: um telefonema, em pleno almoço de Natal que me parabenizava por estar também na segunda
fase da UFF. Minha descrença era tanta que nem me preocupara em ver o resultado.
Com a notícia, mudei meus planos: assistia às aulas de reforço das disciplinas específicas
durante a semana e fazia as provas aos domingos. Estando em duas segundas fases, valia
a pena me dedicar mais um pouquinho. No final do mês, veio minha segunda surpresa:
minhas notas na UFF indicavam que poderia ter uma chance de entrar ainda naquele ano.
Só acreditei que tinha conseguido ao ver meu nome pequenininho com a letra miúda na
Folha Dirigida, cuja página guardo ainda hoje como troféu. Passar nos dois vestibulares
que fiz, foi para lá de bom. O resultado final da UERJ foi meu presente de aniversário
naquele ano.
Depois das comemorações vieram duas questões muito básicas, essencialmente
básicas: Primeira e mais importante questão: “Passei... bom, muito bom!”. Mas como
ficar dentro da universidade? Quem iria bancar o meu curso? Todo o meu planejamento
era para entrar somente no ano seguinte. EU HAVIA PASSADO PARA O PRIMEIRO SEMESTRE NAS DUAS! Segunda questão - e essa era uma dúvida existencial:
Ó, dúvida cruel! Cursar Letras-Literaturas na UERJ e realizar meu sonho de infância
ou Serviço Social na UFF, um curso que passou a me atrair devido à escolha de duas
velhas amigas do Henrique Lage: Raquel e Zanza Maria. Na verdade, sempre resisti a
essa última escolha. Como tantas outras pessoas, tinha a idéia errônea de que a assistente
social é a moça boazinha, daquele tipo que ajuda todo mundo. Sentimentalmente, teria
escolhido Literaturas. No entanto, economicamente, Serviço Social era mais viável. Na
pior das hipóteses, se não tivesse o dinheiro da passagem, iria a pé para a faculdade.
Acabei fazendo a escolha racional. Hoje, tenho a certeza que me poupei um bom trabalho:
sou cada vez mais apaixonada pela profissão que escolhi.
Chegar à universidade aos trinta anos de idade foi emocionalmente horrível. Sentime a mesma menina de tranças no pátio do Henrique Lage, quinze anos antes. Tímida e
insegura, achando que seria engolida a qualquer momento por algum monstro gigante e
totalmente imaginário. Pela primeira vez na vida, percebi que o tempo estava passando
para mim também. Só entendi onde havia chegado e o que isso significava, ao responder
uma inocente pergunta de uma jovem que estava tentando isenção para o vestibular
daquele ano. Ela pediu informação sobre onde pegaria o kit de isenção. Ao respondê-la,
perguntou-me se não iria pegar o meu formulário. Respondi-lhe que não, pois já estudava
ali. Essa resposta me fez pensar sobre tudo o que havia enfrentado até aquele momento
e em tudo o mais que viria pela frente.
A adaptação a um mundo totalmente novo e desconhecido, vou confessar, não foi
fácil, não. Demorei mais ou menos dois meses para colocar as coisas nos eixos: sabia o
horário em que o ônibus passava e a que horas chegaria se o perdesse. Já não precisava
consultar o quadro de horários todos os dias para não entrar na sala errada. Sabia onde
conseguir informações seguras dentro da universidade e como procurar apoio.
146
Caminhadas de universitários de origem popular
Mas esses nem de longe foram os meus maiores problemas. Estava plenamente
integrada na turma – mesmo freqüentando as aulas apenas três dias na semana.
No primeiro período, pegar três matérias em lugar das cinco previstas foi uma solução
encontrada para driblar o problema financeiro. O pior foi ter de descobrir absolutamente tudo sozinha. Os professores só entram em sala de aula querendo saber por que
você escolheu o curso. Não existe uma criatura em todo corpo docente que pergunte:
“Como você chegou aqui?”, “Como irá se manter?”, “Qual sua origem?”. Por incrível
que pareça, a maioria acha que todos vêm de pré-vestibulares pagos e não têm nenhum
problema financeiro. Se eu não era a única com dificuldades na minha turma, imagina
em toda a universidade. Tenho a sorte de morar um pouco próximo do campus e poder
trocar o ônibus por uma caminhada. Mas tenho colegas que moram longe e vão para
a universidade com a sua vasilha de bolo pra vender. Se não venderem, a turma faz
vaquinha para que voltem pra casa.
Infelizmente, professor nenhum quer saber se um ou outro aluno pode tirar cópias de 40 ou 50 páginas de um dia para o outro. Façamos as contas dessa matemática
meio sinistra: cada cópia custa dez centavos, multiplicada por dois professores ao dia.
Isso dá em média 8 a 10 reais. Mas a semana útil tem 5 dias e a conta sobe para 40 ou
50 reais. E o que fazer, se o mês tem 4 semanas? Conclusão: o final dessa equação de
xérox custa em média 200 reais por aluno. Quando se argumenta que é muito caro e
se as cópias não podem ser deixadas para outra semana, eis a resposta. “Procurem a
biblioteca, ora!!”. Que utopia! Como se lá existissem tantos exemplares de um único
livro para todos! Agradecemos a Deus com novena e romaria quando encontramos o
livro ou uma edição mais ou menos recente. A impressão que se tem é que muitos sequer vão à biblioteca para saber o tipo de material que pode ser encontrado lá. Alguns
passam relações com vários livros e dizem: “Esses livros vocês têm que comprar!” Juro
que nós gostaríamos, mas essa não é a realidade: ter poder aquisitivo o suficiente para
comprar dois ou três livros acadêmicos por semana. Infelizmente, o sucateamento da
universidade pública é cada vez mais palpável: faltam professores, sobram salas com
carteiras em estado precário.
Continuo freqüentando o pré-vestibular Oficina do Saber, mas agora com o status
de ex-aluna universitária. É muito bom quando conto minha história para outros jovens
que poderão no próximo ano realizar o sonho de estar na universidade. É como que
servir de exemplo para eles. Digo sempre que o mais importante é nunca deixar de lutar
por seus sonhos, sejam eles quais forem. E, principalmente, que nunca esqueçam que
capacidade não se mede por índices econômicos ou geográficos e, sim, pelo esforço
que se está disposto a fazer. Não posso deixar de alertá-los que o vestibular é apenas
o primeiro degrau e que a universidade pública ainda não está preparada para receber
pessoas de origem popular. É preciso matar um leão por dia para entrar... e depois:
leão, girafa, elefante... o zoológico inteiro para se manter lá dentro e nem sempre tem
bicho para todos.
Coincidência ou não, mesmo depois do progresso na forma de urbanização ter chegado
onde eu morava lá no morro, o sonho de tirar minha mãe de lá ainda habitava no fundo da
alma. A oportunidade surgiu há mais ou menos dois anos. Ainda moramos no morro. Porém,
agora, num trecho mais próximo da rua. É numa casa alugada e os carros podem parar na
porta – na antiga residência, paravam há mais de 50 metros. Apesar de tudo, minha mãe
Universidade Federal Fluminense
147
relutou em sair da antiga casa, o lugar onde nasceu e cresceu. Mas ainda estamos por ali.
Hoje em dia, ela não se imagina morando em outro lugar. Sinto saudades dos amigos que
ficaram ao longo do caminho. Muitos se perderam na vida e outros tantos a morte levou.
Perdi mais amigos para o HIV do que para a violência e as drogas. Não faz diferença: todos
fazem falta da mesma forma.
Hoje, em outubro de 2005, estou no 4º período. Sou bolsista no projeto Conexões
de Saberes e voluntária no projeto que me colocou na Universidade. Fiz muitos amigos
dentro da UFF. Acostumei-me com o dia-a-dia corrido de um estudante universitário.
Criei uma rotina de estudos, que nem sempre cumpro à risca. Contudo, tem ajudado a
compensar as minhas deficiências da trajetória de aluna que estudou em escola pública
a vida inteira. Mesmo com todas as dificuldades – mas afinal, o que é fácil na vida?
– está valendo a pena. Os amigos e a família têm sido fundamentais em todas as horas.
Tenho muito a agradecer a Deus pelos bons irmãos, encarnados ou não, que foram colocados em meu caminho. Por ELE nunca ter desistido de mim, mesmo nos momentos em
que eu mesma não acreditava.
Rita de Cássia Corrêa da Silva
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Caminhadas de universitários de origem popular
Capítulo 20
Histórias Quesianas
Na manhã de julho de 2003, saiu uma pequena nota no jornal O Fluminense. Dizia:
“Um jovem de 17 anos foi assassinado por traficantes, em São Gonçalo, com três tiros na cabeça”.
No dia seguinte, eu iria fazer parte da história daquela nota. Era uma tarde de quarta-feira,
que mais parecia com uma noite de sexta-feira 13. O lugar era sombrio e frio, cercado por pessoas
vestidas de branco, médicos legistas. Também estavam ali outras pessoas. Elas falavam baixo,
parecia que não se podia saber o que se passava com cada uma delas. Sem falar do mau cheiro
típico de um IML, aquele era um ambiente estranho, capaz de fazer as pessoas mais sensíveis
perderem os sentidos. Tivemos que reconhecer o corpo de um jovem, o mesmo da nota acima.
E eu o conhecia. Ele fazia tratamento para dependência química num centro de atendimento onde
eu fazia estágio em serviço social. O adolescente de 17 anos não estava com nenhuma identificação.
Em vida, costumava não portar nenhum documento, muito menos durante a morte. O seu rosto
ficou completamente dilacerado com as balas de fuzil que o acertaram em cheio.
Em companhia de uma assistente social, eu estava no Instituto Médico Legal para reconhecer o corpo. Sua morte ficaria anônima se não o fizéssemos, já que seus vínculos familiares
foram rompidos desde os onze anos de idade, quando começou a usar drogas ilícitas. De fato,
eu e a assistente social cumpríamos mais do que ossos do ofício; constatávamos o fim de uma
história muito parecida com a de milhares de jovens.
Sem sombra de dúvida, esta foi a experiência mais chocante pela qual já passei em
toda a minha vida. Primeiro: nunca havia entrado num IML antes. Em segundo lugar, foi o
primeiro defunto que vi. E para piorar esta estréia, sua cabeça estava completamente aberta
pelo trabalho dos legistas. Muitas pessoas questionaram nossa atitude de ir ao IML já que
não era nossa obrigação reconhecer o corpo de ninguém. Mas nós estávamos lá. É que esse
jovem perdeu os vínculos familiares desde que começou a usar drogas. Começou a roubar
as coisas de dentro de casa para se drogar, passava dias fora de casa, sem dar notícias para
a família, andava com traficantes, enfim, a velha história da lida com o consumo de drogas
que desgastam os laços da família. E desde então, ele passou a ser um integrante da nossa
equipe e não da própria família.
Vivenciar essa experiência e outras tão marcantes só foi possível através da prática de
campo de estágio obrigatória na Faculdade de Serviço Social da UFF. Não apenas os estágios mas o conjunto de conhecimentos e experiências proporcionados pela universidade me
permitiram compreender um pouco mais a sociedade em que vivemos.
No entanto, nem sempre foi assim. Por um longo tempo, até mais ou menos o 5º período,
foi muito difícil o confronto da teoria com a prática no meio acadêmico. Nada parecia fazer
sentido com nada. Era só leitura, leitura... Iamamoto, Marx, Weber... e parecia sempre faltar
algo mais. O curso de Serviço Social, no princípio, parecia não dar suporte para uma atuação
prática. Seu conteúdo teórico era muito pesado. E isso se agravava com a precariedade e a
ínfima remuneração dos campos de estágio.
Universidade Federal Fluminense
149
Apesar de ter uma visão realista da situação do país, da falta de investimento na
educação, não esperava ver tanta precariedade na universidade. Afinal, a UFF é considerada uma das melhores do país. Um exemplo para se ter uma idéia: quando ingressei
na universidade em 2001, enfrentei uma greve de quase 100 dias. Foi uma decepção!
Só deu tempo de provar um pouco daquele espaço: duas semanas de aula. Sem falar da
degradação que a universidade vem sofrendo gradativamente: a falta de professores e
seus substitutos pouco qualificados e mal remunerados; baixos salários de professores
e funcionários; precariedade dos equipamentos necessários à pesquisa; redução dos recursos para manutenção dos prédios, bibliotecas e laboratórios e a completa ausência de
assistência estudantil, principalmente para os alunos de baixa renda. Outro absurdo é a
briga por estágios e bolsas para projetos científicos, cuja seleção está quase se tornando
um vestibulinho.
Essa desilusão se explica pelas minhas expectativas em relação à academia.
Eu entrei na universidade superando as dificuldades de um 2º grau mal feito. Tinha vivido
a conhecida história de não ter tido professores de Química e Física, o que na cadeia de
causa e efeito das coisas da vida nos faz competir, de forma injusta, em um vestibular com
outros candidatos qualificados. E tudo isso é vivido com a crença de que a universidade é
um paraíso. Mas a realidade acadêmica não se mostrou muito diferente das mazelas confrontadas no ensino público de 2º grau.
Os alunos que pleiteiam uma vaga na sonhada universidade não têm conhecimento
sobre os cursos que pretendem realizar. Eu por exemplo, sempre quis fazer o curso de
Serviço Social. Contudo, não tinha noção do perfil da profissão, o que um assistente social
realiza e o que se estuda na faculdade. Foi preocupante escolher sem maiores informações
uma profissão que, assim como o casamento, se pensa para a vida toda.
Os dois primeiros anos da universidade foram muito conturbados. Simplesmente não
há recursos materiais disponíveis: computadores que atendam à demanda dos alunos, vídeo
cassete ou DVD para exposições audiovisuais e por aí vai. Sem falar no já comentado diálogo
truncado da teoria com a prática e daquele monte de disciplinas que parecem não ter nem
um fiapozinho de ligação com a realidade. Após algumas disciplinas como Pensamento
Social I, II, XVII., achamos que sabemos menos do que no início do curso.
Neste período também passei por uma crise na faculdade. Pensava estar no curso
errado e não tinha nada a ver com Serviço Social. Talvez, isso tenha sido reflexo das
dificuldades que presenciava diariamente no campo de estágio. Eram coisas que me
desestimulavam. Causava-me angustiava ver assistentes sociais sem receber por quase
um ano e que ainda sofriam preconceito por parte de outros profissionais. Não é novidade
dizer que o Serviço Social é uma profissão considerada subalterna e seus profissionais
não são valorizados em muitas instituições. Vivi momentos delicados, quando a prática
profissional exigia muito mais do que as teorias rabiscadas nos quadros da universidade.
Tínhamos que intervir na vida das pessoas e, muitas vezes, fracassar ou sermos derrotados
por condições adversas.
Eis uma história para tentar ilustrar isso: um adolescente de 12 anos foi levado até a
instituição pela sua madrasta. Ela estava desesperada e tinha relatado que o adolescente usava
drogas desde os nove anos de idade quando ainda morava com sua mãe. E era justamente ela,
a mãe verdadeira quem dava drogas para o filho. Disse que o estado do menino era crítico. Ele
estaria se drogando com pó de pilha, já que na sua casa não tinha como adquirir outras drogas.
150
Caminhadas de universitários de origem popular
A cada semana, a madrasta trazia fatos novos sobre o adolescente, o que fez a equipe da instituição se mobilizar para atendê-lo. Em equipe, discutimos sobre o caso e todos os profissionais
relataram o seguinte: o menino não parece fazer uso de drogas. Nada constava nos exames
realizados e ele não apresentava um comportamento típico de um dependente químico.
Certo dia, o pai do adolescente compareceu para atendimento com o Serviço Social.
Confirmou toda a história relatada. Informou também que seu filho estava sendo procurado
por traficantes e que precisava sair do local onde morava. Diante do que foi exposto com
tanto pavor, a equipe se mobilizou e providenciou uma internação para o menino numa
clínica de reabilitação no interior do estado. Lá, o adolescente ficou por dois meses.
Nas visitas que fazíamos, o jovem contava que estava sendo bolinado pelos funcionários.
Contou, além disso, que tomava muitos medicamentos diariamente. Investigamos essas
denúncias, mas nada foi comprovado.
Moral da história: tudo isso não passou de uma invenção do pai. Ele não queria pagar
a pensão ao filho, quando o menino morava com a sua mãe. Por isso, mentiu ao acusá-la
de dar drogas para o adolescente para ficar com a guarda do jovem. Pior: por não querer
maiores compromissos com o filho, inventou que ele corria risco na comunidade e que
estava roubando para usar drogas.
Fiquei muito surpresa com esta história! Achava que já tinha visto de tudo, mas sempre
aparecia outro caso que superava nossas expectativas. Foi uma fase de confronto direto com
a realidade, com vidas e famílias. Ficou claro para mim a incapacidade da universidade em
preparar estudante com aquilo que vivenciava no dia-a-dia profissional. Percebi isso, na
fase em que eu mais precisava encontrar na academia um espaço para discutir as questões
pertinentes ao cotidiano das instituições.
Nos momentos difíceis, me recordo do apoio da minha família e do companheirismo
do meu noivo. Eles sempre me incentivaram na faculdade e nos estágios, bancando passagem e alimentação, ouvindo minhas histórias e sofrendo junto comigo. Foi por eles que
não desisti do curso de Serviço Social nos primeiros períodos quando a lida acadêmica
me parecia profundamente insatisfatória. Acreditaram no meu potencial e se sacrificaram
desde a minha infância para que eu chegasse onde estou e, não tenho dúvida, farão muito
mais para que eu vá além.
Contar essas experiências difíceis dos campos de estágio, podem até conduzir a uma
errônea impressão de que não tive uma infância tão tranqüila. Morávamos numa vila na
periferia de Duque de Caxias, município vizinho ao Rio: eu, meu pai, meu irmão e minha
mãe. Com saudades, lembro-me de um rádio prata do meu pai. Ao anoitecer, na ausência
de minha mãe, que fazia plantão como enfermeira à noite, ficávamos em casa, nós três,
ouvindo música. Sempre tocava esta aqui: “... Não está sendo fácil, não está sendo fácil,
não está sendo fácil viver assim, você está grudado em mim...”. Lembrar desta época me
faz reviver a minha história: a casa onde morei, minha infância e o clima de solidão que
pairava nos momentos em que minha mãe não estava presente. Esses sentimentos vêm à
tona quando ouço essa música.
Havia um grupo muito legal de crianças na vila, quase todas da mesma faixa etária.
Pique-bandeira era a minha brincadeira favorita. Isso, antes do meu pai comprar um pulapula para mim. Brincávamos também de escolinha, onde todos ficavam sentados nas escadas
e eu ensinava tudo o que aprendia na escola e na igreja. Aliás, a escada era o point das
brincadeiras, de casinha, escola bíblica, médico e até salada mista.
Universidade Federal Fluminense
151
Lá para o final da década de 80, meu pai não conseguiu mais trabalho de carteira
assinada em estaleiros. Tornou-se autônomo, realizando feiras e exposições. Ficava, às
vezes, um ou dois meses fora de casa, promovendo feiras por todo país. Recordo-me dele
partindo ou chegando em casa com uma bolsa enorme nas costas. Dava a impressão de que
ele cairia para trás com tanto peso! Hoje me sinto muito feliz por ele ter nos sustentado
carregando peso nas costas, sem nunca cair para trás.
Com a falta de emprego fixo, a grana ficou mais curta. Tivemos que morar em Niterói,
onde não iríamos pagar aluguel. No início foi um pouco difícil a adaptação, mas logo nos
acostumamos. Acho que sem a mudança para Niterói não teria ingressado na universidade. O
fato de existir uma UFF próxima da minha casa me estimulou muito. Não passava nem perto
da minha cabeça a possibilidade de morar em Niterói e não estudar na Federal Fluminense.
Depois de ter realizado alguns estágios e estar mais familiarizada com a profissão, me
sinto mais tranqüila. Tenho certeza que descobri o que eu realmente gostaria de ser: uma
assistente social. Por outro lado, me preocupo muito com meu futuro. Questiono se haverá
boas oportunidades de emprego, se toda essa trajetória sofrida de aprendizado realmente
valeu a pena. Tenho esses momentos de crise. Através da prática de estágios, vi coisas
difíceis de serem encaradas por um profissional que passa quatro anos na universidade e
se vê lançado num mercado que mais parece um ponto de interrogação.
Nesse final de 2005, aguardo o fim da greve para concluir o curso e apresentar minha
monografia. Minha pesquisa reflete sobre a reintegração familiar dentro dos abrigos de
criança e adolescente, da prefeitura do Rio de Janeiro. Foi onde estagiei por um ano.
É engraçado como nossos pensamentos e reflexões estão ligadas ao que a gente observa
ao longo da vida. A reintegração familiar foi uma questão muito vivida no último estágio.
No entanto, esse assunto também está relacionado a uma das minhas primeiras experiências
como estagiária – exatamente o caso daquele jovem que inicia o texto, uma pessoa que, cortados seus laços familiares e afetivos, não teve oportunidade de reingressar à sua família.
Ao refletir sobre reintegração familiar sempre me vem à mente a seguinte história de
uma criança de dez anos. Ela estava perambulando pelas ruas do Rio, quando a Fundação
para Infância e Adolescência a encaminhou para o abrigo onde eu estava. Ao chegar, a
menina relatou que havia fugido de casa. Sua mãe a espancava com fio e com borracha.
Por isso, não queria voltar a vê-la. Durante dois meses a menina repetia a história e ficava
muito arredia ao pensar na possibilidade de retornar para casa.
Num determinado dia, cerca de quatro meses após sua chegada, a criança começou a
falar na mãe, nos irmãos. Dizia que gostaria de ir para casa e que estava com saudades da
família. Como a menina não sabia dizer onde morava, eu e a assistente social saímos com
ela na Kombi da prefeitura. A idéia era que a menina nos levasse até a sua casa. Andamos
uns quarenta minutos e nada de a criança se manifestar reconhecendo sua casa. Até que de
repente, ela apontou o dedo com entusiasmo para uma rua e disse: “É ali, tia”.
Tratava-se de um prédio abandonado em ruínas, invadido por centenas de famílias.
Não havia “apartamentos”. Na verdade, eram vários barracos dividindo cada andar.
As escadas eram escuras, as paredes completamente pichadas e um cheiro insuportável de
droga. Os lances de escada subiam o prédio em espiral e, a cada lance, tínhamos a sensação
de que algo desagradável ia me acontecer. A criança também estava apreensiva. Segurava
firme as nossas mãos, uma de cada lado. Ao se aproximar do andar de sua casa, ela apertou
o passo e minha mão também, até que chegou a sua casa. Ela ficou batendo no caixote que
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Caminhadas de universitários de origem popular
servia como o portão dos barracos e ninguém atendia. Chamava incessantemente pelos
irmãos, mas parecia que ninguém ouvia. Até que uma outra criança apareceu por entre
frestas de madeira. Sem conseguir identificar quem estava chamando, entrou novamente.
De repente, apareceram outras duas meninas, que finalmente reconheceram a irmã
e abriram o portão. A menina não sabia quem beijava primeiro, se era a mais nova, ou a
maior, ou todas de uma vez. Nós entramos. Quando a mãe da criança a viu, houve um abraço
muitíssimo emocionado, misturado com lágrimas, com gemidos de “filhinha, filhinha...”,
com voz de criança dizendo “perdão mãe, eu nunca mais faço isso”. Foi um momento tão
intenso, que por mais que eu tente, minhas palavras jamais conseguiriam expressar. E depois,
rolado todo procedimento necessário e burocrático, a reintegração familiar foi realizada.
Por essas e outras histórias, com finais felizes ou não, eu tenho a certeza que estou no
caminho certo. Agora sei onde estou pisando e gosto do caminho que percorro. Atualmente,
realizo um último estágio numa creche comunitária em São Gonçalo, município próximo de
Niterói. Na verdade, trabalho como assistente social e tenho enfrentado novas experiências.
Apesar de não ter ainda concluído a graduação, sobre os meus ombros tenho agora o peso
da responsabilidade de um profissional formado que responde por todos os seus atos.
Quesia da Costa Izidoro
Universidade Federal Fluminense
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Capítulo 21
Nos caminhos da UFF
Já estava no meu horário de sair de casa. O relógio da cozinha marcava sete da
manhã. Tentei comprar o jornal para ver o tão esperado resultado do vestibular. Olhei
numa banca aqui, outra ali, mas não consegui encontrar. Estava dentro da van, indo
para o trabalho, quando passei por uma outra banca que tinha a bendita Folha Dirigida.
O trocador vendo minha agonia, disse que descia rapidinho e comprava. Na verdade,
estávamos no meio de um engarrafamento. O motorista ficou tão sensibilizado que parou.
Todos tinham parado para presenciar aquele momento tão singular na minha vida.
O rapaz voltou com o jornal. Abri a Folha bastante nervosa. Comecei a procurar o
meu nome. Ia me lembrando do ano difícil e sabia que tinha chegado o momento final!
Era a grande hora. Via muitos nomes no jornal. Eu pensava: “Será que o meu é um
deles?” Minha mãe estava comigo, nós trabalhávamos na mesma firma. Ela era chefe
de produção e eu uma auxiliar administrativa, uma espécie de office boy disfarçado.
Meu olhar se perdia naquela infinidade de nomezinhos com letras miúdas, listados no
jornal. Aquela já era a manhã mais longa da minha vida. Eu havia esperado muito por
ela... Mas antes de concluir essa história vou contar um pouquinho lá atrás, onde ela
começa:
Eu sou fruto da miscigenação mais doida que já vi. Meu avô paterno era
italiano e juntamente com a minha avó capixaba, procriaram o meu pai. Já o meu
avô materno que era português, ao casar-se com a minha avó que é carioca mesmo, deu origem a minha mãe. E dessa bagunça multicultural de DNA, eu surgi.
Após o meu nascimento, fiquei três dias sem nome. Aliás, recebi vários nomes
provisórios: Jaqueline, Ana Paula, Carla. Até que chegasse ao meu nome atual.
Tenho mais três irmãos. Meus pais são meus bens mais valiosos na Terra. Como os
amo, ainda que não demonstre! Tudo o que sou e faço, é por eles. Entregaram-se tanto
ao trabalho para me educar... agora é a minha vez de retribuir. Eles já se separaram
muitas vezes, sendo a ultima, a pior.
Sempre morei no Jardim Catarina, na periferia de São Gonçalo. Minha primeira
casa era pequenininha. E eu a adorava por isso. A sala era muito acolhedora e o sofá
era gostoso. Parece insanidade mental, mas o sofá era realmente muito gostoso! Era
um lugar tão especial para mim. Apesar de pouco espaço, tudo se encaixava certinho.
Eu tinha uma casinha de boneca de madeira na parede. Jamais esquecerei dela. Tinha
também uma boneca muito esquisitinha. Aliás, ela somente não se enquadrava aos padrões pré-estabelecidos para as bonecas. Seus olhinhos e sua pele eram negros e o seu
cabelo era bem crespinho. Minha mãe colocou o nome dela de Jupira - que maldade!
“Tadinha”, ela acabou queimando. Foi a boneca que mais me fez feliz.
O quintal da minha casa tinha flores lindas. Meu pai sempre gostou muito de plantas
e eu herdei isso dele. Havia ainda nos fundos, uma piscina daquelas Tony de mil litros.
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Caminhadas de universitários de origem popular
Como fazíamos bagunça nela! Um dia, meu pai quis fazer outra casa na frente da nossa,
maior e mais confortável. Demorou até ficar pronta. Demorou muito, na verdade! Fomos
nos mudando aos poucos. Até que em uma noite chuvosa, caiu uma árvore em cima
de nossa casa velha. Foi quando definitivamente a deixamos. Do contrário, acho que
estaríamos nela até hoje.
A rua em que eu moro hoje, naquela época era uma tragédia! Quando chovia, as
pessoas levavam horas para poder simplesmente atravessar a rua. Era uma ruazinha
aparentemente esquecida do mundo. Porém, as pessoas, as crianças e principalmente
eu ficávamos nos divertindo na rua até altas horas. Uma noite faltou luz e fazia muito
calor. Fomos todos pra rua. Parecia que todos os meus vizinhos estavam lá. Passamos
ali quase a noite toda. O céu estava muito estrelado. Se não foi a melhor noite da minha
vida, foi uma delas. As brincadeiras eram incríveis. Não tínhamos muitos brinquedos,
mas era sensacional a nossa capacidade de criá-los: pique-esconde, polícia e ladrão...
Esse período da minha vida foi essencial para a construção do meu caráter. Nada na
minha vida foi fácil. Jamais alguém me trouxe pronto aquilo que eu queria. Sempre tive
que buscar pelas minhas coisas e muitas das vezes foi preciso de imaginação. Durante
a infância também fiz balé. Como eu amava ser bailarina! Dançava com toda a minha
alma. Cheguei a fazer duas apresentações, mas a academia em que eu cursava faliu e
assim a dança foi passando na minha vida.
Eu sempre fui muito problemática em relação à saúde. Tenho rinite, bronquite,
sinusite e os outras “ites” que existem. Por isso, desde cedo, fiz natação. Era e ainda
é uma necessidade, mas nado mau que só. Enfim: nem tudo é perfeito. Meu tempo de
escola foi muito bom: ainda no terceiro período do jardim, cortei a testa e levei quatro
pontos. Tenho uma cicatriz até hoje.
Quando passei para o Ensino Médio, fui para uma escola estadual Suely Motta
Seixas, numa rua vizinha de casa, que eu odiava! Fui capaz até de fazer concurso para
o Colégio Militar, mas não passei e tive que ir para lá de qualquer jeito. Eu já conhecia
a maioria das pessoas que estudavam na escola e as meninas deixavam claro que não
me suportavam. Acabei passando para uma turma da tarde e me livrei desse pessoal.
Mas não deu para fugir por muito tempo. Precisei trocar de turno e adivinhe em que
turma eu caí? A tal que eu temia.
No começo foi muito difícil. Uma vez, eu cheguei para almoçar e todo mundo foi
embora me deixando sozinha. Com pouquíssimo tempo isso passou. Hoje, a gente não
se desgruda. Fazíamos cada trabalho excepcional. Chegamos a fazer um filme com o
patrocínio do Canal Futura. Eu sempre gostei de encenar. Atuei nessa pequena grande
produção como uma menina recatada, que morria logo no começo do filme. Foi uma
experiência ímpar.
Fizemos também um outro filme baseado no livro “Senhora”, de José de Alencar. Apesar de ser um romance muito meloso e melancólico transformamos sua história numa comédia. Começo a rir quando lembro que eu encenei a Aurélia Camargo, a tal Senhora do livro.
Me “sentia” quando usava aqueles longos vestidos – confeccionamos o figurino com lençóis
e toalhas de mesa de nossas mães. O visual foi completado com os penteados mais exóticos.
Cheguei até a atuar vestida de noiva também, mas com vestido de verdade e com direito a
grinalda, luvinhas e aliança... além do cônjuge, é claro. A professora de Literatura nos disse
que se o José de Alencar fosse vivo nos processava, mas que antes riria bastante.
Universidade Federal Fluminense
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Tive muitos professores. No entanto, poucos me marcaram. Confesso que devo
muito a eles. Lembro de uma em especial, a de História, chamada Regina Araújo. Não me
ensinou muito a história decorrida, mas de como construir uma história futura. Alguns professores puxavam um pouquinho o meu saco – o que irritava a minha turma. Mas eu juro!
Nunca fui “C.D.F”, apenas uma aluna dedicada. Certo dia, meu professor de Biologia
passou um exercício sobre genética, meu assunto preferido. Ele corrigiu errado e como
eu já havia visto a matéria no pré-vestibular, percebi o erro. Iniciamos no meio da
sala um bate-boca daqueles até o “sabido” perceber que estava errado. Imediatamente
a turma ficou em silêncio e, então, mandou que eu me levantasse e corrigisse todo o
restante do exercício no quadro. Foi uma experiência bem legal!
Fiz quase quatro anos de curso de inglês. Não falo muito bem, “tipo” the book is on
the table. Mas dá pra quebrar um galho. Por duas vezes, fui chamada para substituir uma
professora. A primeira foi numa turma de crianças. A outra vez foi em uma turma inicial
e o legal é que os alunos eram mais velhos que eu. Confesso: fiquei toda boba!!
Quando eu estava no primeiro ano do Ensino Médio, fui avisada sobre uma tal
seleção de alunos para desenvolver um projeto em alguma universidade pública. Isso
aconteceria no ano seguinte. O projeto oferecia uma bolsa, além de possibilitar aos estudantes conhecer um espaço de ensino superior. Eu fiquei muito empolgada. Comecei
a estudar muito para ser selecionada. Sabia que seria a oportunidade da minha vida. O
tempo passou, o dia da seleção chegou. Para a minha tristeza, meu nome não entrou na
lista dos bolsistas. Foi o dia em que mais chorei em toda a minha vida, mas resolvi não
desistir. Fui até uma das orientadoras do projeto e pedi então para participar mesmo que
sem a bolsa. Sensibilizada, ela permitiu. Assim, eu entrei no projeto “Jovens Talentos”.
Eu estava encantada com o projeto. Por sorte ou acaso, a diretora da escola descobriu
minha ligação voluntária com o Projeto Jovens Talentos. Então, me chamou até a sua
sala e disse que faria o possível para me conceder a bolsa. Com menos de dois meses,
eu já era uma bolsista. Esse é um dos maiores orgulhos da minha vida. Não aceitei o
primeiro não que recebi. Eu tinha um objetivo e tive que buscá-lo sem olhar para as
dificuldades. Fiz um ano e meio de estágio. Ao completar o Ensino Médio, a minha
bolsa acabou.
Fiquei sabendo que lá mesmo, onde eu fazia esse projeto, funcionava um dos prévestibulares da UFF: o Oficina do Saber. A concorrência por uma vaga era bem grande;
afinal, é um pré-vestibular comunitário. E olha a concorrência aí de novo. Eram apenas
120 vagas para aproximadamente 1200 pessoas. Meu desespero era tanto, que preenchi a
ficha de número 5. Consegui ser selecionada para a entrevista. Era mais um passo dado!
O resultado sairia mais ou menos um mês depois. Eu estava muito ansiosa. Eu precisei
viajar na semana do resultado, não me lembro exatamente o por que. Eu fui e voltei
pensando no resultado da seleção. Assim que cheguei em casa, mesmo cansada, tomei um
banho e fui direto até o Espaço UFF para saber se havia ou não conseguido a vaga. Eu vim
rezando a viagem inteira. Ao chegar lá no local sabia que aquele mural na parede podia
mudar a minha vida! E não é que mudou? Olhei trêmula para as listas afixadas na parede
e comecei a procurar. Era tanta gente! Será que eu era uma delas? Suei frio e... meu nome
era um entre os 120 que estavam num papel colado na parede contemplada com uma vaga.
Foi uma sensação maravilhosa! Eu queria chorar e gritar ao mesmo tempo...
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Caminhadas de universitários de origem popular
Confesso ter pensado: “Meus problemas acabaram aqui!”. Mas logo fui vendo
que não era bem assim Já no primeiro dia de aula, me deparei com outro obstáculo:
dinheiro de passagem. Era um gasto que eu não tinha condições de arcar. Mas tive que
me virar. Foi então que passei a usar minha blusa de escola para ter gratuidade. Não
era fácil, cansei de ser humilhada por motoristas. Certo dia, fiquei presa na porta de um
ônibus porque o motorista não queria me deixar entrar; apesar de querer socar a cara
do safado, tenho que admitir: foi muito engraçado!
Esse ano de 2004 foi bem intenso. Estudava de manhã, fazia o projeto à tarde
e o pré-vestibular à noite e aos sábados. Além de ir à igreja aos domingos. Tive que
aprender a ser responsável. Foi nessa fase da minha vida que eu aprendi que é preciso
saber viver. Ou driblamos as dificuldades, ou seremos driblados pela vida. Apesar do
cansaço, foi um ano muito prazeroso. Fiz amigos que levarei para toda a vida. O que
nos aproximava era o fato de termos histórias em comum: jovens que moravam em
áreas menos favorecidas socialmente, mas com o sonho de mudar nossas histórias.
Por três vezes, estive muito perto de desistir. Foi realmente um ano muito difícil, tive
que aprender a superar todo tipo de barreira. Chegando já ao final de 2004, as provas
se aproximavam. Eu consegui isenção de taxa para a UFF, a UERJ e para a UFRJ. Eu
passaria por seis semanas consecutivas de prova.
Iludi-me mais uma vez ao achar que tudo estava quase resolvido. Quando chegou
a segunda prova, surpresa: meus pais se separaram. Eu mudei de casa e de vida! Era
o golpe final... pior que o golpe de 1964. Se já não bastasse o ano puxado, ainda teria
que contar com mais essa droga! Com o tempo, eu fui conseguindo me acostumar com
a idéia. Respirei, passei um “batonzinho” e fui prestar o tão esperado vestibular. Fui
na cara e na coragem! Durante todas as provas, eu comia muito chocolate, balas... Eu
tentava de todas as maneiras não me entregar. Nessa época também, comecei a trabalhar.
Tornou-se mais difícil estudar. Com pouquíssimo tempo, já estava de saco cheio do
trabalho. Eu era auxiliar administrativo, mas como disse no início, era um office boy
disfarçado. A única diferença é que ao invés de uma moto eu andava a pé. O dono da
empresa era muito estressado! Cada dia de trabalho era um desafio para mim.
Mas aquela manhã era diferente. Que manhã? Ora, aquela em que começa essa história,
da van parada no trânsito, eu procurando meu nome na Folha Dirigida... e lá estava ele!
Era o meu nome! Eu fui aprovada para o curso de Serviço Social na UFF. Chorei e sorri ao
mesmo tempo! Com as mãos trêmulas e a voz rouca, olhei para trás e contei para minha mãe.
Ela ficou muito emocionada. A van inteira entrou em festa e eu comecei a chorar. Liguei
para o meu pai ainda chorando e dei a notícia. Eu tinha esperado toda a minha vida por
aqueles “segundinhos”. Foi muito melhor do que imaginava!
Certo dia, ao sair do trabalho, antes de começarem as aulas, fiquei sabendo do
projeto Conexões de Saberes. Foi numa noite em que resolvi passar no pré-vestibular
para rever o pessoal. Encontrei muita gente, alguns que tinham passado no vestibular,
outros que não. Mas o melhor ainda estava por vir. Eu encontrei também o professor
de História. Um cara que me inspirava. Ele disse que precisava muito falar comigo.
Ainda no começo da conversa, falou de um grupo que havia sido encaminhado para
uma bolsa na UFF e eu estava entre essas pessoas. Fiquei muito feliz. Ele me advertiu
que a coordenação do projeto me ligaria. Fiquei esperando e nada. No segundo dia, eu
liguei para um amigo, que hoje também é um bolsista do projeto. Ele estava na mesma
Universidade Federal Fluminense
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situação que eu. Disse que já havia passado lá com o grupo e se inscrito. Para a minha
felicidade, esse colega teria de voltar lá para entregar uma documentação que acabou
esquecendo. Aproveitei para ir com ele, na cara e na coragem.
O mundo conspirava ao meu favor. Nesse dia, eu precisei sair cedo do trabalho para
fazer a minha matrícula na UFF. Chegando à coordenação do projeto, fiz a inscrição e
pediram que eu aguardasse. Eu rezava muito. Seria a grande chance de eu deixar o meu
emprego. Alguns dias depois, no trabalho, peguei o celular para ver se havia alguma
chamada. De fato havia. Era um número que me pareceu estranho. Imaginei que fosse
do trabalho de um amigo meu. Esperei que voltassem a ligar durante a manhã, mas algo
dentro de mim dizia: “confira esse número, confira esse número...”. Disquei do próprio
celular para o tal número. Ao atenderem a ligação, eu ouvi: “Universidade Federal
Fluminense”, quase desmaiei de susto. Falei com quase todos os ramais, menos o certo.
Falei com os ramais entre 26 e 30. O que eu queria era o 32. Ninguém merece!
Resolvi então ir até a sede do projeto na minha hora de almoço. Ao chegar, não
encontrei ninguém. Eu entrei em desespero já que não lembrava do nome do projeto
e, assim, não consegui saber o número do ramal. Já tinha escutado a palavra RUEP
milhares de vezes, mas nem imaginava que era esse o nome que eu procurava. Deixei
um cartão com o meu nome e telefone. Pedi ao porteiro que o entregasse a alguém do
projeto, comunicando que eu havia estado lá. Gravei o número do telefone em meu
celular com a seguinte identificação: UFF Ramal 32. Cerca de dois dias depois, eu estava no banco, justamente no caixa, fazendo um serviço bem complexo, quando ouço
o meu celular tocando. Vi no visor que era da UFF Ramal 32. Eu entrei novamente em
desespero. Foi uma sensação que eu jamais esquecerei. Uma mistura de alegria com
alívio e preocupação juntos.
A voz no telefone me informou que eu havia sido selecionada para a entrevista.
Imediatamente liguei para o meu amigo. Ele disse que também faria a entrevista. Marcaram um horário para mim, mas acabei fazendo em outro dia para que não precisasse
me atrasar mais um dia no trabalho. A entrevista foi tão rápida! Pensei ter me prejudicado. O resultado final sairia em uma segunda-feira. Eu quase não dormi naquela noite,
apreensiva. Fui trabalhar na expectativa. Ainda de manhã me ligaram. Eu havia sido
selecionada. Minha primeira reação foi perguntar ao Valter, um dos coordenadores do
projeto e meu contato, se eu podia seguramente pedir demissão. Ao ouvir como resposta
um SIM, desliguei o celular e comecei a chorar. Lembrei mais uma vez de tudo o que
eu já havia passado e como aumentava a chance de mudar tudo! Para melhor, claro!
Para muito melhor!
Pedi demissão. Hoje me dedico à universidade e ao projeto. Tenho consciência de
que fui contemplada com um privilégio que poucos alcançam. E esta é a nossa missão,
impulsionar outros colegas, que pensam em deixar a faculdade por passarem por muitas
dificuldades. Eu também passei e ainda passo, mas tento a todo o momento mudar esse
caminho. Vou continuar tentando...
Olhando para trás, percebo a importância que tiveram na minha trajetória os projetos
de extensão universitária. Primeiro, o projeto Jovens Talentos, ainda no Ensino Médio.
Mais tarde, o pré-vestibular comunitário, Oficina do Saber. E hoje, o Conexões de Saberes.
De certa forma, cada um deles funcionou como degrau para chegar ao outro. Foram
projetos que serviram como passaporte e visto de permanência na UFF. Universidades
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Caminhadas de universitários de origem popular
públicas são financiadas com dinheiro de gente rica e de gente pobre. Não podem ser
privilégio apenas de determinados grupos da sociedade. Seus reitores e diretores deveriam repensar o papel da Extensão como proposta de chegar aos estudantes de origem
popular. Assim como eu, Cláudia, ainda existem milhares de jovens nas periferias:
Genilsons, Amandas, Teófilos, Paulas, Eudetes, Marias da Conceição, Rodrigos, Dirleis.
Todos esperando por uma oportunidade!
Cláudia Amanda Gouvêa Dutra
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