Capítulo I
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Capítulo I
OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO I Raízes históricas «Não conhecemos nem verdadeiro início nem verdadeiro fim para as acções humanas.» GASTON ROUPNEL Não há dúvida de que, enquanto concepção de vida política, o anarquismo é um fenómeno relativamente recente. Coincidindo com o aparecimento do nacionalismo e do estatismo e em reacção contra estes movimentos, as suas primeiras manifestações ideológicas e práticas datam do século XIX. Temos de evitar aqui prudentemente aquilo que Lucien Febvre considerava «o pecado dos pecados» em História, «o pecado mais imperdoável de todos: o anacronismo» (1). Tal não obsta a que, se quisermos compreender a natureza profunda do anarquismo e se, mais do que nos limitarmos a uma concepção estrita da anarquia, vista meramente como uma doutrina política entre outras doutrinas políticas, considerarmos, pelo contrário, que o anarquismo é também, e sobretudo, uma maneira de viver e de apreender o real, somos então obrigados a reconhecer que ele ultrapassa a política no sentido vulgar do termo. (1) Lucien Febvre, Le Problème de l’incroyance au XVIe siècle. La Religion de Rabelais. Paris, A. Michel, 1962 (Evol, de l’Hum., n.º 53), p. 6. 17 HISTÓRIA DO ANARQUISMO Isto autoriza-nos, penso eu, a procurar no passado alguns germes libertários que, na altura própria, os Stirner, os Proudhon, os Bakunine e muitos outros saberão fazer frutificar. A ANTIGUIDADE Na Cidade grega, os filósofos cínicos pensaram e viveram como ferozes «libertários». O nome dos cínicos tem origem no local onde se reuniam, o ginásio do Cinosarges, situado no bairro dos metecos em Atenas. Além disso, quer por desafio quer por escárnio, os cínicos comparavam o seu modo de vida ao de um cão (Cínico pode traduzir-se por: «que se parece com um cão»). Em reacção contra o idealismo platónico e a teoria das Ideias, afirmavam que aquilo que existe realmente não é, como pretendia Platão, o arquétipo, o modelo inteligível, a essência genérica dos seres, antes, pelo contrário, os indivíduos que formam uma espécie, tal como os podemos encontrar à nossa volta. A autonomia individual, a auto-suficiência, este é o objectivo a alcançar. Sarcásticos, utilizando a ironia socrática com uma infatigável agressividade, os cínicos nunca deixaram de criticar todas as convenções sociais. Era assim que Antístenes (c. 440-c. 336 a.C.), fundador da Escola, preconizava o desapego completo e o desprezo pelos «tabus», para usar um termo mais moderno. O sábio é um homem livre porque soube renunciar a todos os impedimenta da vida em sociedade. Não rege a sua conduta segundo as leis da Cidade, mas de acordo com a virtude. Os assuntos públicos não lhe dizem respeito. Os homens de Estado são calamidades. Somos todos irmãos. O discípulo Diógenes (494-c. 323 a. C.) levou o ensinamento de Antístenes até aos limites extremos. Vagabundo-filósofo, vivendo nos seus célebres barris, apátrida – sempre da forma mais provocante –, sobre ele abundam as histórias pitorescas mais ou 18 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO menos lendárias, sendo a mais conhecida, por certo, a sua resposta a Alexandre, o Grande. Como o conquistador lhe perguntava o que poderia fazer para lhe ser agradável, Diógenes respondeu-lhe simplesmente: «Afasta-te do meu Sol.» Os cínicos inauguraram certamente, na filosofia ocidental, a procura do homem nu, do homem da natureza. Através da sua crítica radical da civilização, surgiu a apologia do primitivo, do bom selvagem. Cidade e anticidade, a Grécia inventou tudo! Os estóicos retomaram alguns dos temas da filosofia dos cínicos: a busca da autonomia pessoal, estamos «entregues a nós mesmos»; escolha de uma vida conforme à natureza e oposição entre a Natureza e as leis da Cidade, desapego relativamente aos bens terrestres, etc., proclamando-se, enfim, cidadãos do mundo. A IDADE MÉDIA Sabemos que o mundo feudal era alheio à nossa concepção moderna do Estado. Na Idade Média, o poder político era muito fraco. O Estado era tão pouco existente que o próprio termo se usava geralmente no plural: os Estados. Só muito mais tarde adquiriu o seu significado actual. No entanto, apesar da fragmentação territorial e da partilha dos poderes económico e político, pode-se verificar que, neste mundo hierarquizado, a cristandade medieval acaba por encontrar na Igreja o seu princípio de unidade. Com efeito, única autoridade universal reconhecida – o Império, que nunca constituiu unanimidade, era apenas um sonho – num universo votado à separação e à divisão, a instituição eclesiástica, que detinha o monopólio da cultura, dispunha de imenso poder, em que o espiritual mal se distinguia do material. Movida pela lei, para a qual a salvação da alma era a maior preocupação, em que a Igreja punha a sua marca em qualquer evento da existência humana, esta sociedade viu instalar-se um catolicismo totalitário, dentro do qual todas as questões – incluindo 19 HISTÓRIA DO ANARQUISMO as mais profanas – se colocavam necessariamente em termos religiosos. Seria preciso esperar séculos para que o político se separasse do sagrado. Aliás, isto far-se-á a custo de uma transferência do teológico para o antropológico, translação fraudulenta que Stirner denunciará com veemência. As religiões seculares, a sociolatria, a idolatria política, etc., só terão de receber o testemunho. Assim, face ao poder da Igreja, os movimentos revolucionários adquiriram sempre, na Idade Média, a forma de heresia. Note-se que as heresias do período medieval, ao contrário da maioria dos movimentos heterodoxos que se manifestaram no Império Romano após Constantino, já não são contestações de doutrina. Não se tratando geralmente de intelectuais a dirigirem-se em linguagem teológica a outros intelectuais, não visavam o dogma. Pelo contrário, as heresias dos séculos XII e XIII apresentavam-se essencialmente como movimentos sociais, revolucionários e populares. Apesar da sua grande diversidade, todas estas heresias tinham como alvo a hierarquia eclesiástica e o poder de Roma. Face à riqueza da Igreja, acompanhada muitas vezes da indignidade do clero, alguns laicos reivindicaram a autonomia e independência religiosa. Em todos os casos, tratava-se de recuperar a pureza e a pobreza evangélicas traídas pela Igreja romana. É assim que, antecipando a Reforma, os Vaudois pregam, traduzem e lêem a Bíblia em língua vulgar. Quanto aos Cátaros, fora de qualquer controlo eclesiástico, constituíram em Languedoc um clero paralelo. Entre todas as heresias medievais, há uma que merece atenção especial. É aquela que os historiadores designam como o movimento do Livre Espírito ou da Liberdade Espiritual. A natureza e as ramificações deste movimento heterodoxo são difíceis de determinar com rigor, tão numerosos são os vestígios que deixaram em grande parte da Europa. Apesar de todas as perseguições de que foi vítima, esta heresia conseguiu propagar-se durante vários séculos. Encontramo-la, nomeadamente, no seio das con20 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO frarias laicas de Béghards. Infelizmente – como é frequentemente o caso da maioria dos movimentos heterodoxos –, o Livre Espírito é conhecido apenas indirectamente pelo testemunho dos seus adversários ortodoxos. Segundo Norman Cohn, qualquer estudo da escatologia revolucionária deve [...] incluir a heresia do Livre Espírito, ainda que a maioria dos seus adeptos não fosse revolucionária e não encontrasse discípulos nas massas turbulentas dos pobres das cidades. De facto, eram gnósticos cuja própria salvação constituía a principal preocupação, mas a gnose a que chegavam definia-se como um anarquismo quase místico, uma reivindicação de liberdade tão audaciosa, tão absoluta, que equivalia a uma rejeição total de todos os condicionalismos e limitações. [...] Durante os últimos séculos da Idade Média, os adeptos do Livre Espírito eram os únicos que tinham, como parte da sua doutrina de emancipação total, uma teoria social profundamente revolucionária (2). Não sem algum exagero, Norman Cohn chega ao ponto de os considerar precursores de Bakunine e Nietzsche. Os Espirituais, por seu lado, estavam ligados à tradição joaquimita. O monge calabrês Joaquim de Fiore (falecido em 1202) elaborara uma teologia da história que teve prolongamentos consideráveis. Distinguia três grandes períodos na cristandade, que correspondiam a três expressões sucessivas da Revelação e do conhecimento de Deus. Uma primeira idade assistiu ao reino do Pai, exigindo, através do Antigo Testamento, uma submissão absoluta. Depois, o Novo Testamento apela à sabedoria, por intermédio do Filho, o Redentor. O Terceiro Reino que se anuncia será, desta vez, o momento do Espírito Santo, ou seja, o advento da liberdade triunfante, pois S. Paulo disse: «Onde está o (2) Norman Cohn, Les fanatiques de l’Apocalypse. Millénaristes révolutionnaires et anarchistes mystiques au Moyen Âge, Paris, Pyot, 1983, pp. 156-157. 21 HISTÓRIA DO ANARQUISMO espírito do Senhor, está a liberdade» (II Coríntios, 3, 17-18). Esta frase do Apóstolo dos Gentis servirá, muitas vezes, de caução libertária à heresia (3). No início do século XIII, em Paris, a repressão vai abater-se sobre um grupo heterodoxo que apresentava grande afinidades com o movimento do Livre Espírito: a heresia dita dos Amaurícios, com origem no nome de Amaury de Bène, teólogo parisiense que, tendo professado o panteísmo, foi obrigado a fazer uma retractação das suas teses heterodoxas. Retirado em Saint-Martin-des-Champs, morreu neste mesmo lugar em 1206 ou 1207. Os seus discípulos, presos em 1209, ao interpretarem à sua maneira o panteísmo de Amaury defendem que, como existimos em Deus, «é Deus quem faz tudo e não o homem». Por conseguinte, mesmo que façamos o mal, não podemos pecar. A partir daqui, a fazer fé nos seus acusadores, os Amaurícios ter-se-iam entregue aos piores actos imorais. A seita foi condenada em 1210 e, como represália póstuma, o corpo de Amaury foi exumado para ser lançado em terra pagã (4). Um pouco antes, o espírito herético-revolucionário já se manifestara nos Bogomilos. E no período helenístico, momento privilegiado da Gnose, os Euquitas, «aqueles que rezam», também chamados Messalianos, recusavam trabalhar e viviam da mendicidade. Deambulando em bandos pelas estradas, dormindo ao ar livre e partilhando tudo, estes insubmissos perpétuos mostravam-se rebeldes contra as autoridades, tanto espirituais como temporais(5). No século X, apareceu na Bulgária uma heresia gnóstica que se difundiu, a partir do século seguinte, na Ásia Menor: o (3) Para Joaquim de Fiore, cf. L’Évangile éternel. Primeira tradução francesa precedida de uma biografia por E. Aegerter, Paris, Rieder, 1928 (2 vols.), e Marcel Sandrail, Joachim de Flore, le messager des derniers temps. (Bolet. da Assoc. G. Budé, Out. 1870, n.º 3). (4) Corpus magistri Amaurici extrahatur a cimiterio et projiciatur in terram non benedictam, dizia o acto de condenação. (5) Jacques Lacarrière, Les Gnostiques, Paris, Gallimard, 1973 (Idées, n.º 290), p. 127. 22 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO bogomilismo. Os Bogomilos, apelidados de «os portadores de alforges», percorreram a Macedónia, a Sérvia e a Bósnia. No seu Tratado Contra os Bogomilos, Cosmas, o Sacerdote, descreve-os da seguinte forma: Denunciam os ricos, têm horror ao Czar, ridicularizam os superiores, condenam os nobres e proíbem todos os escravos de obedecerem aos seus senhores (6). Podemos verificar que todos estes heréticos pregam a pobreza evangélica. Dizem que a Igreja reside apenas neles: com efeito, são os únicos a seguir os passos de Cristo e os verdadeiros adeptos da vida apostólica, não procuram coisas do mundo, não possuem nem casa, nem terra, nem qualquer bem, escreve, na primeira metade do século XII, Evervin de Steinfeld na sua Carta Contra os Heréticos de Colónia (7). É verdade que, numa época em que a miséria era um flagelo cruelmente sentido, a riqueza ostensiva daqueles que se proclamavam sucessores dos Apóstolos dificilmente lhes podia ser perdoada. Isto porque, no crescimento económico dos séculos XII e XIII, que permitira a acumulação e a circulação de riquezas, com o desenvolvimento do grande comércio, a concentração urbana e o aparecimento de novas técnicas agrícolas, a Igreja era parte interessada. Tanto mais que os monges construtores e cultivadores ou os banqueiros da ordem do Templo [Templários] tinham desempenhado um papel importante neste crescimento económico. Todas estas transformações iriam causar graves problemas à Igreja, dos quais o mais espinhoso era certamente a questão da pobreza. Face à dimensão das heresias populares, a Igreja tentou (6) Cosmas, o Sacerdote, Tratado Contra os Bogomilos. Tradução e estudo de H.-Ch. Puech e A. Vaillant, Paris, Impr. Nationale-Droz. (7) Citado por G. Duby, Saint Bernard. L’art cistercien, Paris, Flammarion, 1979 (Champs, n.º 77), pp. 153-154, nota. 23 HISTÓRIA DO ANARQUISMO recuperar o ideal de pobreza. A criação de ordens mendicantes ilustra bem o seu desejo de reformas. O Poverello de Assis será, portanto, mais pobre do que os pobres Vaudois. Os Irmãos Pregadores sairão dos mosteiros para se juntarem às massas convencidas pela heresia. Significa que, incumbidas de combater os heréticos através da prática da caridade e da pobreza, as novas ordens religiosas, em vez de romperem com o mundo secular, segundo as tradições monásticas das épocas anteriores, irão, pelo contrário, viver entre o povo das cidades. No entanto – mesmo no seio da Igreja, que elas tinham a missão de servir –, estas ordens serão mal aceites por todo o tipo de razões. Foi assim que a entrada de Mendicantes – Dominicanos e Franciscanos – na universidade de Paris como professores provocou um grave conflito com os seus colegas seculares e ateou uma querela que só extinguiu no século XVI. Alguns colocavam em dúvida a pobreza desses monges. Rutebeuf, por exemplo: Os Jacobinos são tão íntegros Que têm Paris e têm Roma. São rei e são Papa E bens têm em grande soma (8). Em O Romance da Rosa, Jean de Meung debruça-se sobre a mendicidade, cujo valor religioso ele contesta: Posso assegurar que não está escrito em lei alguma, pelo menos não na nossa, que Jesus Cristo e os seus discípulos, quando andavam pela Terra, foram vistos a mendigar o seu pão: eles não queriam mendigar [...] O homem robusto deve (8) Rutebeuf, Œuvres complètes. Publ. por Éd. Faral e Julia Bastin, Paris, Picard, 1977 (2 vols.), t. 1, p. 325: Li Jacobin sont si prudhomme Qu’il ont Paris et si ont Romme Et si sont Roi et Apostole Et de l’avoir ont il grant somme. 24 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO ganhar a vida a trabalhar com as suas mãos, se não tiver com que viver, mesmo que seja religioso ou queira servir a Deus. [...] S. Paulo mandava os Apóstolos trabalharem para obterem o necessário, e proibia-lhes a mendicidade, dizendo: trabalhai com as mãos e nunca recebei de outro (9). Naturalmente, a Igreja e o braço secular não atacaram apenas os heréticos. Na primeira metade do século XIII, clérigos vagabundos e contestatários, meio estudantes, meio libertinos, autores de poesias satíricas contra o papa, a corte de Roma e o clero, incorreram em condenações. A Chronica Majora, de Mathieu Paris, refere até um texto que sugere a existência de uma intimidade suspeita entre a rainha Branca de Castela e o núncio pontifício. O cronista atribui a paternidade desta invectiva «àqueles que se designam vulgarmente por Goliardos» (10). Os Goliardos, clérigos marginais que constituíam uma espécie de boémia (9) Guillaume de Lorris e Jean de Meung, Le Roman de la Rose. Fixado em francês moderno por André Mary, Paris, Gallimard, 1949, pp. 195-196. Antecipando Voltaire: «O primeiro que foi rei foi um soldado feliz», Jean de Meung, que, aliás, foi chamado o «Voltaire do século XIII», lembrava Gaston Paris, no seu prefácio a Petit de Julleville, Histoire de la langue et de la litterature française., M. A. Paris, A. Collin, s.d., resume à sua maneira o nascimento do poder: Ung grant vilain entr’eus eslurent, Le plus ossu de ceux que furent. Le plus corsu et le gregnor Si le firent prince et seignor. Em mais de uma apologia do amor livre, a sua sátira tem como alvo o peso do imposto (as «aides»): Quando quiserem As suas aides ao rei levarão, E o rei sozinho ficará Tão depressa quanto o povo quiser. (10) Les Poésies des Goliards, reunidas e traduzidas a partir do latim por Olga Dobiache-Rojdestvensky. Pref. de Lot. Paris, Rieder, 1931, pp. 22-23. 25 HISTÓRIA DO ANARQUISMO intelectual, foram mais libertinos do que libertários. O concílio de Salzeburgo, realizado em 1291, descreve-os da seguinte forma: Eles [os Goliardos] passeiam-se sempre nus em público, dormem nos fornos, frequentam as tavernas, os jogos, as cortesãs; obtêm víveres por meio de delitos. Inveterados na sua seita, não querem deixá-la (11). O RENASCIMENTO Uma vez fora do seio da Igreja romana, os movimentos reformados contribuirão bastante para o reforço do poder do Estado, isto por causa da separação, invocada pelos teólogos protestantes, entre o domínio da fé e o das obras terrestres, confiado por Deus ao soberano. Após a interiorização da fé, o mundo exterior, livre do Absoluto e cada vez mais dessacralizado, em breve obedecerá apenas às suas próprias leis, as que, como dirá um dia Montesquieu, resultam pura e simplesmente da natureza das coisas, segundo uma lógica positiva ligada a um tipo de racionalidade sem qualquer referência (ou, se preferirmos, de forma muito indirecta) à transcendência. A Reforma deu origem ao longo processo da profanação do mundo, cujos sinais prenunciadores começavam já a aparecer na Idade Média. O homem passará então a dispor, sem escrúpulos morais nem religiosos, dos recursos oferecidos à sua indústria pelo universo, considerado uma fonte inesgotável de riquezas e ganhos. O sucesso vai tornar-se o critério do bem e do mal. É conhecida a tese de Max Weber sobre os laços estreitos entre a ética protestante e o espírito do capitalismo (12). Note-se, aliás, que o Século da Reforma protestante foi também uma grande época da filosofia política, com (11) Op. cit., p. 28. ( 12) Max Weber, L’Éthique protestante et l’esprit du capitalisme. Seguido de Les sectes protestantes et l’esprit du capitalisme. Trad. fr., Plon, 1964. 26 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO Maquiavel, Erasmo, Thomas More, Jean Bodin, Althusius, Suarez, só para citarmos alguns grandes nomes (13). Mas os Reformadores não tardam a ser dominados também pelo espírito da ortodoxia. Em 1525, vimos Lutero a apelar às autoridade políticas para uma repressão feroz da revolta dos camponeses, na sua proclamação Contra as Hordas Salteadoras e Assassinas dos Camponeses. Mais tarde, em 1553, em Genebra, a Nova Roma, é a fogueira de Michel Servet que será ateada. Mais uma vez, o espírito da liberdade tem de se refugiar nas muitas pequenas comunidades sócio-religiosas, que prosseguem as lutas travadas na Idade Média pelos movimentos heterodoxos cujas doutrinas prepararam a Reforma. O século XV assistiu ao aparecimento, na Boémia, do movimento dos Taboritas, cujo programa comportava a supressão da organização política. Os Taboritas pregavam a luta armada. Derrotados em 1434 na batalha de Lipany, foram dez anos depois condenados pela Dieta de Praga (14). Contrariamente aos Taboritas, os Irmãos da Unidade ou Irmãos Boémios professavam a não violência e a fraternidade, e rejeitavam o juramento de fidelidade às autoridades seculares. Proibiam-se de qualquer actividade política e recusavam o serviço militar. Mas o movimento que adquiriu maior dimensão foi o anabaptismo. Na Alemanha, Thomas Münzer, inflamado pela mística milenarista, sublevou os camponeses antes de ser decapitado em 1525. Ernst Bloch assinala da seguinte forma aquilo que, segundo ele, constitui a originalidade dos anabaptistas relativamente à Igreja estabelecida: A seita baseia-se numa realidade que está fora de discussão: a bondade original do homem. [...] A Igreja, pelo contrário, tal como o Estado, assenta na corrupção original (13) Cf. Pierre Mesnard, L’Essor de la philosophie politique au XVIe siècle. 2.ª ed., Paris, J. Vrin, 1952. (14) Mesnard, op. cit., p. 237. 27 HISTÓRIA DO ANARQUISMO dos homens, na necessidade de remediar progressivamente esta corrupção, reconhecendo largamente o poder disciplinar das autoridades estabelecidas... (15) A crença milenarista na iminência do reino de Cristo na Terra e do fim dos tempos fanatizava as multidões. Na Alsácia, o pregador Melchior Hoffman anunciava o advento futuro do Reino de Deus na cidade de Estrasburgo. Nos Países Baixos, era o padeiro João Matthys quem arrastava os fiéis. Acompanhado pelo seu discípulo João de Leida, instalou-se em Münster. Em 1534, esta cidade torna-se a Nova Jerusalém. Um comunismo literal é aí posto em prática: ataque à acumulação do dinheiro, os ricos fornecem a alimentação e o vestuário da colectividade. As refeições são tomadas em comum. João Matthys morre ao tentar uma saída e João de Leida toma o poder. Com este, o comunismo transforma-se em despotismo, temperado por uma licenciosidade desenfreada. Por fim, em 1535, a cidade é atacada pelas tropas do Príncipe Bispo. João de Leida e os seus companheiros são torturados e massacrados. Após terem sido exibidos à multidão por todo o país durante seis meses, os seus cadáveres são colocados em gaiolas que serão depois instaladas no campanário da igreja mais alta de Münster. Parece que o macabro dispositivo ainda aqui se encontrava em 1914 (16). Gorada a experiência dos extremistas de Münster, a seita dos anabaptistas readquiriu alguma moderação. Um reagrupamento dos adeptos teve lugar na Frísia, sob a égide de Menno Simons. Os Menonitas puseram então em prática uma doutrina baseada na caridade, na tolerância e no pacifismo. O menonismo conheceu um desenvolvimento considerável na Holanda, onde foi legalmente reconhecido em 1672. Lembremos, de passagem, que vários amigos de Espinosa eram Menonitas. (15) Ernst Bloch, Thomas Münster, théologien de la revolution. Trad. do alemão por M. de Gandillac, Paris, Julliard, 1964, p. 217. (16) Mesnard, op. cit., p. 243. 28 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO Outros Anabaptistas fundaram uma comunidade em Nikolsburg, na Morávia: os Irmãos Morávios. Viveram o seu comunismo evangélico em completa autonomia, recusando servir no exército e não aceitando nem a justiça nem a fiscalidade. Na opinião destes insubmissos, o poder do Estado resumia todo o mal do mundo. Perseguidos, os Irmãos Morávios refugiaram-se na Polónia. Se o luteranismo continuava a admitir os direitos do Estado, o anabaptismo extremo rejeitava ferozmente reconhecer esse direito, fosse qual fosse a sua forma. «Protesto que, em tempo de paz, adquire a figura da anarquia e, em tempo de guerra, a da deserção», sublinha Pierre Mesnard (17), que nota que a objecção de consciência teve como ponto de partida o radicalismo dos anabaptistas, que os levou a recusarem categoricamente qualquer participação na ordem instaurada pelo Estado, por eles considerado «o mal em si» (18). Rejeição do serviço militar, «essa escravatura sanguinária que só tem como objectivo a sobrevivência de um Estado indiferente... Rejeição do dever fiscal, pelo mesmo motivo» (19). Esta rejeição do Estado chegará ao ponto de se recusarem a exercer qualquer função pública. «O cristão não podia ser funcionário, nem sequer rei» (20). * No entanto, limitando-nos a invocar as lutas religiosas e sociais que transformaram a Europa desta época, correríamos o risco de esquecer que o século XVI foi também a época do Renascimento, com o culto da Natureza, uma natureza «mágica», talvez, uma natureza de convenção, sem dúvida, mas concebida como fonte de vida e reserva inesgotável de poderes benéficos para o homem (21). Um século depois, o mecanicismo cartesiano (17) (18) (19) (20) (21) Mesnard, op. cit., p. 264. Ibid. Ibid. Ibid. Cf. Robert Lenoble, Histoire de l’idée de nature, Paris, A. Michel, 1969. 29 HISTÓRIA DO ANARQUISMO esforçar-se-á precisamente por reagir contra o dinamismo do Renascimento e contra a imagem demasiado reluzente de um mundo animado por forças misteriosas. Ou seja, se as convulsões religiosas agitaram este período, apesar das misérias desta época, o riso, «próprio do homem», foi – e continua a ser, hoje mais do que nunca – uma forma insubstituível de libertação. Assim, como não pensar em Rabelais, que dissipa, pela truculência de uma obra que transpira de alegria de viver e do prazer de nos divertirmos com toda a liberdade, o pessimismo dos espíritos tristes e os discursos dos pedantes. Basta ver, ao lermos Gargântua, o modo como se vivia feliz e sem problemas na abadia de Telema, oferecida ao frade Jean des Entommeures, «que não queria cargo nem governo, pois como poderia eu governar outrem, se nem a mim me sei governar»? (cap. LII). Toda a vida dos telemitas «é regida, não por leis, estatutos ou regras, mas segundo as suas vontades e livre-arbítrio [...]. Na regra deles só existe esta cláusula: FAZ O QUE QUISERES» (cap. LVII). Em Rabelais, não há revolta. A libertação do espírito realiza-se de forma simples e sem dramas pelo próprio exercício da liberdade. A natureza humana é essencialmente boa, basta deixá-la manifestar-se livremente. Reprimi-la é pervertê-la. OS TEMPOS MODERNOS Durante o período moderno, o poder do Estado vai começar a desenhar-se, primeiro em esboço – se assim se pode dizer –, antes de se organizar racionalmente a partir do centralismo jacobino que marcou o advento do Estado-Nação, que Napoleão vai depois aperfeiçoar e sistematizar. Doravante, o adversário que o espírito libertário terá de combater vai tornar-se cada vez mais impessoal, até adquirir, nas nossas sociedades contemporâneas, a forma pura da mais irreconhecível das abstracções. Na sua franqueza brutal, a frase célebre, atribuída a Luís XIV: «O Estado sou eu», tinha a vantagem de não deixar qualquer dúvida. O poder era identificável, com autoria e claramente assumido. A ideia de 30 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO soberania do povo introduziu alguma confusão relativa à natureza e verdadeira origem do poder. O cidadão das democracias modernas é realmente, como queria Kant – pelo menos teoricamente –, súbdito e, ao mesmo tempo, legislador. Isto significa que a autoridade política está parcialmente interiorizada. Não há dúvida de que, hoje, é possível afirmar que «o Estado somos nós». Infelizmente, este nós designa tanto os que governam como os que são governados e, entre os governados, é preciso ainda distinguir, aos olhos da lei, a maioria e a ou as minorias. Por conseguinte, quer queiramos quer não, esta hierarquia funcional, inevitável em democracia, introduz novas formas de desigualdade. Mais não seja que por razões práticas, de grau em grau, segundo o lugar ocupado por cada cidadão nas hierarquias do poder, afastamo-nos sensivelmente da origem teórica da soberania. Todas as sucessivas delegações da soberania popular fazem com que, no Estado democrático, a vontade política dos cidadãos tenha de se manifestar constantemente por procuração, o que necessariamente dá lugar a novas alienações. Nas suas críticas ao sistema representativo e ao sufrágio universal, os anarquistas insistiram muitas vezes neste ponto. No fundo, pela sua crítica das instituições da monarquia e pelos seus ataques contra a Igreja (Esmaguemos a infame!), os filósofos do século das Luzes contribuíram fortemente para a criação do estatismo moderno. Não repetia Rousseau que a soberania devia ser absoluta ou não ser nada? Sabe-se que Voltaire, que lutou durante toda a vida contra o fanatismo religioso, não era menos partidário da ordem política, sendo o seu principal receio a subversão da «canalha». Voltaire observava, aliás, com satisfação o progresso do Estado na Europa do seu tempo. A doutrina do despotismo esclarecido procurava, sobretudo, acabar com a desordem, com o arbitrário e com a incompetência, o que implicava um reforço da autoridade e a instalação de um poder forte. À trapalhada económica e política da monarquia francesa em plena ruína, os filósofos opunham a concepção de uma organização racional da sociedade; a justiça e a igualdade parecia-lhes ser uma garantia de eficiência e progresso social e, ao 31 HISTÓRIA DO ANARQUISMO mesmo tempo, a melhor protecção contra a desordem. A autoridade profana tentou ainda restaurar o aparente esplendor da religião, em que o dever cívico devia representar uma obrigação sagrada e a solidariedade sucedia à caridade cristã, etc., mas o Estado laico e dessacralizado perdeu então o seu secular contrapeso religioso. Órfãos metafísicos, os homens do mundo moderno passam a ser definidos, na sua totalidade, como simples elementos da colectividade, e a sua pertença à Cidade terrestre torna-se a única razão da sua existência no Estado. O PADRE MESLIER (1664-1724) No início do século das Luzes, entre os verdadeiros precursores do anarquismo conta-se uma personagem admirável, Jean Meslier. Padre na aldeia de Étrépigny, na região francesa de Champanha, deixou à data da sua morte um volumoso manuscrito que contém a confissão do mais resoluto dos ateísmos e uma crítica às autoridades religiosas e políticas. Em 1762, Voltaire publicaria extractos do Testamento de Meslier, destacando, sobretudo, a sua faceta irreligiosa. Contudo, os ataques de Meslier visam tanto o poder político como a autoridade religiosa. Para ele, a religião e a política ajudam-se mutuamente: Entendem-se como gatunos. [...] A religião apoia o governo político, por pior que este possa ser. O governo político apoia a religião, por mais estúpida e vã que esta possa ser (22). Este sacerdote desejava que «todos os poderosos da Terra e todos os nobres fossem enforcados com as tripas dos padres» (23). (22) Citado por Claude Harmel, Histoire de l’anarchie, des origines à 1880, Paris, éd. Champ libre, 1984 [reed.], p. 32. (23) Ibid. Ver também Proudhon, As Confissões de um Revolucionário: «...não há chefe de bandidos que ouse reivindicar a ideia: E com as tripas do último padre Enforquemos o último rei». 32 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO Esta expressão voltará a encontrar-se formulada, com diferentes variantes, nas paredes de um certo mês de Maio... A casta política, reis, nobres ou detentores de cargos, ou seja, aqueles que hoje se designam por burocratas, grandes ou pequenos, bem como o alto clero e os ricos ociosos, são violentamente atacados. Aliás, o nosso padre conta bastante com o assassinato político como forma de livrar o bom povo dos seus dirigentes: Onde estão aqueles generais matadores de tiranos que vimos nos séculos passados? Onde estão os Brutos ou os Cássios? Onde estão os generais que mataram Calígula e tantos outros monstros semelhantes? [...] Onde estão os Jacques Clément e os Ravaillac da nossa França? Deviam viver ainda no nosso século, [...] para espancarem ou apunhalarem todos esses detestáveis monstros e inimigos do género humano e, deste modo, libertarem todos os povos da Terra do seu domínio tirânico! (24) Meslier protesta também contra a apropriação individual dos bens e das riquezas da terra e preconiza o comunismo social. Nos seus escritos, lança então um verdadeiro apelo ao povo, que deve agir: A salvação está nas vossas mãos. A vossa liberdade só depende de vós, se todos souberdes entender-vos. [...] Uni-vos, pois, povos, se sois sábios. [...] Começai por comunicar entre vós secretamente os vossos pensamentos e desejos. Divulgai por toda a parte, e o mais habilmente possível, os escritos deste tipo, por exemplo, que dêem a conhecer a todo o mundo a vanidade dos erros e das superstições da religião e que tornem odioso o governo tirânico dos príncipes e dos reis da Terra (25). Jean Meslier chega até a considerar a greve dos trabalhadores e dos produtores, de maneira a levar as autoridades – políticas e (24) Ibid. (25) Ibid. 33 HISTÓRIA DO ANARQUISMO religiosas – e os seus serviçais ao arrependimento, privando-os daquilo que lhes é necessário (26). Solitário e clandestino, o padre Meslier aparece retrospectivamente como um autêntico espírito libertário. Ao redigir em segredo, no silêncio do presbitério rural, o seu Testamento, teve certamente o sentimento de ser um precursor e, apesar da sua visão pessimista do género humano, acreditou que as suas ideias poderiam ter alguma influência póstuma, como o prova a advertência que anexou ao papel que envolvia o seu manuscrito, como nos é relatado por Voltaire: Vi e reconheci os erros, os abusos, as vaidades, as loucuras e as maldades dos homens; odiei-os e detestei-os. Não o ousei dizer durante a vida, mas di-lo-ei pelo menos ao morrer e depois da morte; e é para que se saiba isto que faço e escrevo a presente memória, para que possa servir de testemunho de verdade a todos os que a virem e a lerem, se a acharem boa (27). A REVOLUÇÃO FRANCESA. OS RAIVOSOS Durante o período revolucionário, os Raivosos [Enragés] desempenharam um papel que não é fácil de compreender totalmente, de tal modo foram caluniados pelos adversários – e entre os revolucionários quase todos lhes eram hostis. Por outro lado, os próprios historiadores da Revolução estão longe de se entenderem a seu respeito. No entanto, se podemos incluí-los entre os precursores do anarquismo, é, sobretudo, enquanto movimento de homens que estavam muito próximos das massas populares e que rejeitavam qualquer autoridade que não a do povo. É claro que o (26) Op. cit., p. 39. (27) Cf. Voltaire, Mélanges. Texto fixado e anotado por J. Van den Heuvel, Paris, Gallimard, 1961 (La Pléiade), p. 456 34 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO carácter espontâneo e desorganizado de tal movimento devia levar os Raivosos a tomarem, por vezes, posições contraditórios e não podiam esperar impor-se face à ditadura de Robespierre e dos Convencionais. Jacques Roux, Jean Varlet e Théophile Leclerc d’Oze foram os principais representantes desta tendência. Inicialmente sacerdote e professor, Jacques Roux era padre no princípio da Revolução. Em 1790, ocorreram motins camponeses e pilhagens de castelos na sua paróquia e o comissário do rei elaborou um relatório designando-o como «geralmente acusado de ter pregado a doutrina perigosa de que as terras pertencem a todos de forma igual e que se devia recusar pagar os direitos senhoriais» (28). Começava assim a sua carreira de agitador. Mudou-se para Paris e foi nomeado vigário de Saint-Nicolas-des-Champs, após ter prestado juramento à Constituição. Durante toda a sua actividade política, Jacques Roux não deixou de protestar contra a injustiça económica e contra a carestia de vida, exigindo uma lei que fixasse o preço dos géneros alimentícios. Os Convencionais, que viam neste édito da fixação do preço máximo um regresso encapotado à regulamentação do Antigo Regime, aproveitaram para acusar os Raivosos de serem neomonárquicos e adiaram a votação deste projecto. Mais tarde, acabaram por assumir eles próprios esta reivindicação. A denúncia dos açambarcadores e a luta contra todo o tipo de exploradores tornaram-se no cavalo de batalha de Roux e dos seus amigos. Foi a violência da campanha deste movimento que lhes valeu o apelido de Raivosos. Nesta altura, a Revolução Francesa atravessava uma crise económica gravíssima. Instigadas por Jacques Roux, as petições à Convenção multiplicavam-se, acompanhadas de motins populares, provocados pelo fome e pela carestia de vida. Indignados por verem afirmar-se um poder popular paralelo, no qual viam apenas uma manifestação da desordem e da anarquia, Montanheses e Girondinos esqueceram as suas rivalidades (28) Cf. Harmet, op. cit., p. 45. 35 HISTÓRIA DO ANARQUISMO habituais para rejeitarem petições como esta, atrás da qual se adivinhava claramente a inspiração dos Raivosos: Nós, deputados das quarenta e oito secções de Paris, que vos falamos em nome do bem-estar dos oitenta e quatro departamentos, estamos longe de perder confiança nas vossas luzes. Não, uma boa lei não é impossível, vimos propô-la a vós e, sem dúvida, apressar-vos-eis a consagrá-la (29). Na sequência da recusa da Assembleia, rebentaram tumultos em Paris. Grupos de homens e mulheres obrigaram os comerciantes a vender-lhes alimentos a um preço fixado por eles próprios, de maneira a provarem, de facto, que a fixação dos preços das mercadorias era bem possível. O poder revolucionário acusou Jacques Roux de ser o instigador desta operação. Na origem de todas estas reivindicações populares, Robespierre e Marat fingiram ver apenas um pretexto para desordens fomentadas pelos aristocratas e pelo estrangeiro. Era o processo bem conhecido da amálgama. O programa de Jacques Roux – será que se pode falar de programa? – assenta inteiramente na espontaneidade popular, na opinião pública, que, para ele, tem força de lei e não pode errar. É o que se percebe de um discurso pronunciado na secção do Observatório: O despotismo que se propaga sob o governo de vários, o despotismo senatorial é tão terrível quanto o ceptro dos reis, já que tenta acorrentar o povo sem que este perceba, pois está diminuído e subjugado pelas leis que ele próprio devia ditar. [...] Após terdes transposto irrevogavelmente o intervalo imenso entre o escravo e o homem, não podereis admitir que os vossos mandatários desfiram o mínimo ataque aos vossos direitos, que se afastem da opinião pública, que é quem dita as leis, está sempre certa e é todo-poderosa (30). (29) Op. cit., pp. 59-60. (30) Op. cit., pp. 58-59. 36 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO Acusando o governo de frouxidão, Jacques Roux exige violentamente medidas impiedosas contra os ricos, contra os especuladores e contra aqueles que deixam o povo numa situação de fome: O que é a liberdade quando uma classe de homens pode deixar outra com fome? O que é a igualdade quando o rico pode, pelo seu monopólio, exercer o direito de vida e morte sobre os seus semelhantes? Liberdade, Igualdade, República, tudo isto não passa de um fantasma (31). Roux e Leclerc foram acusados pela Convenção de incitarem o povo a «proscrever todo o género de governo» (32). Um convencional acusará Jacques Roux de ter o descaramento de ir à Assembleia preconizar «os princípios monstruosos da anarquia» (33). A injúria é abandonada e é Chaumette quem determinará a acusação, ao denunciar Roux como aquele que tocou «a rebate para a pilhagem e a violação das propriedades» (34). Por fim, preso e condenado, Jacques Roux suicidou-se na prisão. Quanto a Jean Varlet, as suas tendências «populistas» afirmam-se fortemente na Declaração Solene dos Direitos do Homem no Estado Social. Arrebatado pelo lirismo, Varlet declara: Desde há quatro anos, sempre na praça pública entre o povo, os sans-culottes, os maltrapilhos que amo, aprendi que, ingenuamente e sem restrições, os pobres diabos do povo pensam de maneira mais certa e audaciosa do que os bons senhores, os grandes oradores ou os sábios acanhados; se quiserem aprender boa ciência, vão, como eu, falar com o povo (35). (31) Declaração de 21 de Junho de 1793 na Comuna de Paris. Citado por J. Godechot, Les Révolutions, 1770-1799, Paris, PUF, 1963 (Nouv. Clio, n.º 36, p. 171). (32) Harmel, op. cit., p. 45. (33) Op. cit., p. 75. (34) Ibid. (35) Op. cit., p. 64. 37 HISTÓRIA DO ANARQUISMO Daí uma desconfiança extrema relativamente aos que pretendem falar e agir em nome do povo: «Nem sequer em relação aos que receberam os nossos votos podemos evitar a desconfiança» (36). Na sua brochura redigida após o golpe de Termidor – A Explosão –, o jovem Varlet afirma que, tendo a tirania de Robespierre sido suprimida juntamente com o seu autor, «só se extinguiu o tirano, o seu aterrador sistema sobrevive» (37). E estigmatiza aqueles a quem chama «reis revolucionários», que precisam de «fazer dinheiro» para poderem reinar pela corrupção (38). Em Varlet encontra-se, sobretudo, a propósito da questão das relações entre o Estado e a Revolução, a proclamação daquilo que, um dia, virá a ser o leitmotiv dos anarquistas: Que monstruosidade social, que obra-prima do maquiavelismo é este governo revolucionário. Para qualquer pessoa que pense, governo e revolução são incompatíveis, a menos que o povo queira constituir as suas bases de poder em permanente insurreição contra si mesmo, o que é absurdo de acreditar (39). Proudhon dirá que a ideia segundo a qual um governo pode ser revolucionário é contraditória, pela simples razão de que se trata de um governo. Se nos perguntarmos em que sentido é que os Raivosos eram «anarquistas», podemos responder, desde logo, que eles se afirmaram continuamente como os mais ferozes defensores de uma acção directa do povo, por eles considerado o único detentor da soberania. A ideia que daqui decorre necessariamente é que qualquer delegação da vontade popular equivale a uma alienação da sua liberdade. Por isso, proclamaram sempre que um governo é despótico por essência e que tende inevitavelmente a confiscar (36) (37) (38) (39) Ibid. Op. cit., p. 85. Ibid. Op. cit., pp. 85-86. 38 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO essa liberdade. Um governo pode bem ser provisório e indispensável para a instalação de uma justiça revolucionária na sociedade e para anular a oposição contra-revolucionária, mas trairá sempre a sua pretensa missão. Mais ou menos implicitamente, esta forma de ver as coisas manifestou-se no comportamento político dos Raivosos, adversários irredutíveis da ditadura dos Jacobinos. Mais tarde, este dilema entre a autoridade e a revolução renascerá, com todas as discussões em torno do marxismo e na altura da revolução russa. WILLIAM GODWIN (1756-1836) Nascido no condado de Cambridge, em Wisbeach, filho e neto de pastores não anglicanos, Godwin tornou-se também pastor, em 1778. Pertencia àquelas confissões dissidentes que recusavam integrar-se na Igreja de Inglaterra, constituída no século XVI, e que, apesar das perseguições, não aceitavam a subordinação do anglicanismo ao poder temporal e ao Parlamento. Era no seio destas seitas dissidentes que se encontravam muitos partidários das reformas democráticas, adversários da realeza e, com muita frequência, defensores dos rebeldes da América. Em nenhuma outra Igreja, o racionalismo protestante – que coloca na consciência de cada homem a origem da crença – preparou tanto o caminho para o individualismo político e social. Para definir a anarquia, Godwin mais não fará do que estender à sociedade esse espírito de revolta e essa vontade de livre exame (40). William Godwin foi educado no colégio dos dissidentes de Hoxton. Ainda muito jovem, perde a mãe e recebe uma educação muito austera. O pai, de quem ele não gostava nada, trata-o com (40) Op. cit., pp. 94-95. 39 HISTÓRIA DO ANARQUISMO um rigor desumano. Um pequeno episódio basta para nos dar uma ideia da atmosfera dos anos de juventude de Godwin. Num certo domingo, ao ver o jovem filho a passear no jardim do presbitério com um gatinho nos braços, o pastor acusou o pequeno William de profanar com indignidade o Dia do Senhor (41)! Na sua precocidade de criança amadurecida antes da idade, Godwin, com apenas oito anos, tem já um conhecimento aprofundado da Bíblia, e na idade das brincadeiras pueris e da despreocupação própria da infância ainda marcada pela inocência animal, costuma dar sermões sérios e pungentes aos seus pequenos amigos, assustando-os com descrições ameaçadoras das chamas do Inferno. Aos vinte e cinco anos, a leitura dos filósofos franceses leva-o a adoptar o deísmo. Em 1782, abandona o ministério para se dedicar ao seu trabalho literário, ao mesmo tempo que se envolve na vida política entre as fileiras dos liberais. Ocorre então a Revolução Francesa. O «fleumático» Godwin sente a maior emoção da sua vida. No seu Diário, escreve que o coração lhe bateu fortemente em 1789, alvorada da liberdade dos povos: Eu tinha lido com grande prazer os escritos de Rousseau, de Helvétius e dos outros escritores franceses mais populares. Via neles um sistema mais geral e mais simplesmente filosófico do que na maioria dos autores ingleses que tratavam dos mesmos temas; e não pude deixar de ter grandes esperanças numa Revolução da qual tais escritores tinham sido os precursores (42). No outro lado da Europa, outro grande «fleumático», Kant, o filósofo de Königsberg, interrompeu o seu passeio habitual quando soube do mesmo acontecimento histórico. (41) Ibid. (42) Max Nettlau, Histoire de l’anarchie, ed. fr., tradução de Martia Zemliak, Paris, Éd. de la Tête des Feuilles, 1971, p. 36. 40 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO Godwin resolveu escrever um livro que amplificasse as ideias da Revolução Francesa e, ao mesmo tempo, se opusesse ao panfleto anti-revolucionário de Edmund Burke, Reflections on the Revolution in France, obra publicada em 1790, na qual Burke apresentava a Revolução Francesa como a pior das monstruosidades históricas: «Nada parece natural neste estranho caos, em que se misturam ligeireza e ferocidade, uma estranha confusão de crimes e loucuras.» O livro de Godwin, intitulado An Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on General Virtue and Happiness [Investigação Sobre a Justiça Política e a sua Influência na Virtude e na Felicidade], foi publicado em 1793. O autor propõe-se chegar «à concepção completa de um governo simplificado ao máximo» (42 bis) Mas a Inglaterra estava em guerra com a França; por isso, Godwin e os seus escritos não podiam deixar de provocar a desaprovação geral no país. Só os jovens poetas se entusiasmaram com as suas ideias. A sua filha, aliás, foi companheira de Shelley. O termo «anarquia» aparecia na Investigação apenas na sua acepção vulgar, sem que, aliás, Godwin a considere num mau sentido: A anarquia é um mal terrível, o despotismo é um mal pior. A anarquia matou centenas de homens, o despotismo sacrificou milhões e, por isso mesmo, mais não fez do que perpetuar a ignorância, o vício e a miséria. A anarquia é um mal efémero, o despotismo é quase imortal (43). Ao adoptar uma posição intelectualista categórica, Godwin pretende aplicar ao domínio social e ao domínio moral uma só regra: a da razão. Trata-se de substituir os direitos do coração (42 bis) Ibid. (43) Harmel, op. cit., p. 98. 41 HISTÓRIA DO ANARQUISMO pelos da inteligência, já que o homem é, por excelência, um ser de razão. Tudo o que é contrário ao exercício da razão – quer os obstáculos provenham do mundo exterior ou dos nossos instintos – deve ser afastado. Apesar do seu racionalismo, Godwin conserva algo da tradição empirista inglesa. Tábua rasa na origem, o espírito humano passa a ser um produto da experiência das instituições. É sobre esta que se deve agir, se quisermos transformar a condição humana. Na sua opinião, o Estado representa o pior obstáculo ao desenvolvimento e exercício da razão individual. Com efeito, o poder estatal substitui constantemente o juízo e a consciência dos homens. As leis são um obstáculo ao movimento do espírito humano e Godwin propõe a seguinte alternativa: se uma lei é racional, é inútil ao homem racional. Se o não é, então opõe-se à razão e revela-se ilegítima e despótica. Acabe-se com a propriedade individual. A propriedade falseia o juízo e torna-nos escravos. Godwin chega ao ponto de desejar que o homem se liberte de todos os laços afectivos que nos ligam aos outros, para deixar subsistir apenas aquilo que confere mérito relativamente à mais fria razão. O homem virtuoso terá a missão de desempenhar o papel de «inquisidor geral da conduta moral dos seus próximos, com o dever de os reconduzir à virtude, através de qualquer lição que a verdade lhe permita dar e através de qualquer castigo que a livre expressão [lhes] possa infligir» (44). Este puritanismo moralizante que aqui transparece é mais do que detestável. Em defesa de Godwin, porém, diga-se que se trata aparentemente de uma inquisição totalmente verbal e que não requer qualquer intervenção do poder. É uma inquisição sem acusação. O advento da sociedade de Godwin não necessita de qualquer uso da violência. Será o progresso da razão que lhe permitirá (44) Op. cit., p. 102. 42 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO afirmar-se a pouco e pouco. Bastará que alguns indivíduos racionais a reconheçam, para depois convencerem os outros. Vemos aqui até que ponto o racionalista Godwin se mostrou optimista. Apostou tudo na força da razão individual. A sua utopia assenta inteiramente na fé no progresso ilimitado das Luzes. Neste sentido, continua ligado ao pensamento do século XVIII. William Godwin, escritor político, deu-se a conhecer também através de outras obras. Uma selecta de ensaios filosóficos, o Inquirer, romances histórico-filosóficos, uma Vida de Chaucer e uma História da Commonwealth em 4 volumes (1824-1828), obra muito apreciada no seu tempo. Por fim, nas suas Investigações Sobre a População e Sobre as Faculdades de Crescimento da Espécie Humana (1820), Godwin pretendeu responder ao Ensaio Sobre o Princípio da População, de Malthus, publicado em 1798 (45). HENRY THOREAU (1817-1862) Henry David Thoreau nasceu em Concord, povoação próxima de Boston, na Nova Inglaterra, que assistiu, um dia, ao desembarque dos peregrinos refugiados do Mayflower e de onde partiu o movimento dos Revoltosos. O seu avô, um flibusteiro normando de Guernesey [ou Guernsey, no canal da Mancha] que apareceu, não se sabe porquê nem como, nas costas do Massachusetts, legou-lhe um nome bem francês. Thoreau fez estudos sólidos na Universidade de Harvard. Travou amizade com Ralph Waldo Emerson (1803-1882), que, depois de ter renunciado às suas funções de pastor, se instalara em (45) Malthus, Ensaio sobre o Princípio da População, Publicações Europa-América, 1982. Notar que, no prefácio da 2.ª edição do seu livro, Malthus escreve que o seu Ensaio lhe fora sugerido pelo Inquirer de Godwin. 43 HISTÓRIA DO ANARQUISMO Concord, animando um pequeno círculo de discípulos escolhidos que partilhavam o mesmo ideal filosófico-religioso orientado para a investigação concreta, em reacção contra o racionalismo abstracto, doutrina conhecida pelo nome de transcendentalismo. O Transcendental Club, ao qual Thoreau pertencia, marcou, aliás, o ponto de partida de um renascimento intelectual no Novo Mundo. Como bom Americano, Thoreau exerceu os mais variados ofícios: professor com o irmão John, preceptor, pedreiro, agrimensor, carpinteiro, lenhador, conferencista, fabricante de lápis, etc., contentando-se sabiamente com um modo de vida simples e frugal. A sua curta vida (morreu aos 44 anos de idade, vítima de tuberculose), tal como os seus escritos, fazem de Thoreau o modelo completo do homem livre. Reteremos dois aspectos desta forte personalidade. Em primeiro lugar, evidentemente, o apaixonado pela Natureza, aquele que tentou procurar e fazer-nos reconhecer o laço vital biológico e afectivo que nos une ao meio natural. Enquanto os primeiros sinais da industrialização moderna começavam a manifestar-se no continente americano e na Europa, e a atenção dos seus concidadãos se concentrava em peripécias políticas, Thoreau via na chegada da Primavera a Concord um acontecimento mais importante do que a eleição presidencial que então se preparava. A sua obra-prima literária, Walden ou a Vida nos Bosques (1854), é a narração da sua experiência de vida em plena natureza, junto a um lago nas proximidades de Concord, sítio onde viveu solitariamente durante dois anos, tendo como abrigo uma cabana que construiu com as próprias mãos, observando paciente e minuciosamente a fauna e a flora deste pequeno mundo que ele conhecia e compreendia perfeitamente. Este é, certamente, um aspecto da personagem que permite considerar Thoreau um autêntico pioneiro em matéria de ecologia, e os defensores e protectores da natureza podem actualmente invocar o seu exemplo. No entanto, paralelamente à sua luta pelo 44 OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO respeito e conservação de um ambiente natural já gravemente ameaçado nesta época pela falta de cuidado dos homens, combateu também, com coragem e determinação, pela liberdade individual face aos preconceitos e aos excessos do poder do Estado. Será a faceta subversiva deste homem tranquilo que o tornará famoso no mundo. Num espírito libertário, fazia sua uma das divisas favoritas de Thomas Jefferson (1743-1826), autor da Declaração de Independência, que dizia que o melhor governo é aquele que «menos governa». Thoreau acrescentava, com uma ponta de humor, que um governo seria ainda melhor se não governasse de todo. Acreditava, aliás, que, uma vez suficientemente preparados, os homens acabarão por adoptar um governo deste género. Como sinal de protesto contra a guerra do México, recusou pagar o imposto, o que lhe valeu a prisão. Este gesto pouco cívico foi considerado chocante pela sua família e até pelos amigos transcendentalistas. Conta-se que Emerson, ao ir visitá-lo ao presídio para lhe manifestar a sua desaprovação, disse-lhe: «Henry! Por que estás aqui?» E Thoreau respondeu: «E tu, Ralph! Por que não estás aqui?» Contudo, para pôr um fim a esta situação escandalosa, uma das muito honoráveis tias de Thoreau pagou o imposto em nome do sobrinho. Libertado imediatamente, mostrou-se furioso por ver assim frustrada uma manifestação pública que ele queria que fosse o mais retumbante possível, e foi com espanto que se viu um detido protestar energicamente contra a sua própria libertação! Em 1848, um ano após o episódio da prisão, Thoreau deu uma conferência cujo texto foi depois publicado numa revista transcendentalista. Título do artigo: «Resistência ao governo civil em 1849». Quatro anos após a morte do seu autor, o panfleto recebeu o título com que é hoje conhecido: Do Dever de Desobediência Civil. Henry Thoreau não se deixava convencer pelas promessas da democracia política. Quantitativo, o poder maioritário dá apenas uma aparência de equidade à fracção minoritária. De facto, uma 45 HISTÓRIA DO ANARQUISMO autoridade governamental assente na maioria, que se arroga o direito exclusivo de legislar sobre aquilo que considera o bem ou o mal, equivale praticamente a dar a proeminência ao mais forte sobre o mais fraco. Ora, Thoreau pensa que um respeito incondicional e uma confiança cega nas instituições e nas regras criadas pelas autoridades estabelecidas levam os cidadãos a tornarem-se, pela sua passividade, cúmplices dos crimes de um Estado (injustiças, guerras, perseguições, etc.). De igual modo, os actos do Estado devem ser julgados pela consciência dos indivíduos mais esclarecidos. Em todo o caso, cada qual tem o direito – e até o dever moral – de desobedecer às ordens consideradas injustas ou criminosas. Vemos que, com Thoreau, o direito de insubmissão política é acompanhado pela desobediência militar, que ele reconhece aos objectores de consciência e aos pacifistas radicais. Diga-se ainda que «o homem de Concord» não se limitou a travar um combate puramente ideológico. Thoreau participou activamente nas lutas da sua época a favor da emancipação dos negros e dos índios. Fez parte de uma rede clandestina de auxílio aos escravos negros fugitivos que tentavam chegar ao Canadá. Assumiu a defesa do capitão John Brown, antiesclavagista tenaz e chefe de um grupo de sectários, condenado à morte e executado pelo ataque ao arsenal federal de Harper’s Ferry, na Virgínia. Brown pretendia obter armas destinadas aos escravos negros, para preparar a insurreição destes nos estados do Sul. No dia da execução de Brown, Thoreau organizou em Concord uma manifestação em honra do rebelde. Note-se que o próprio Victor Hugo enviou – sem sucesso – uma carta a pedir o indulto do condenado, dirigida à imprensa americana, para que não se visse «Washington a matar Espártaco». O livrinho de Thoreau, que Romain Rolland considera a «Bíblia do grande individualismo», iria inspirar as acções libertadoras não violentas, baseadas na desobediência e no boicote generalizados, de Gandhi (1869-1948) e do pastor Martin Luther King (1929-1968). 46