Capítulo I

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Capítulo I
OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
I
Raízes históricas
«Não conhecemos nem verdadeiro início nem
verdadeiro fim para as acções humanas.»
GASTON ROUPNEL
Não há dúvida de que, enquanto concepção de vida política, o
anarquismo é um fenómeno relativamente recente. Coincidindo
com o aparecimento do nacionalismo e do estatismo e em reacção
contra estes movimentos, as suas primeiras manifestações ideológicas e práticas datam do século XIX. Temos de evitar aqui
prudentemente aquilo que Lucien Febvre considerava «o pecado
dos pecados» em História, «o pecado mais imperdoável de todos:
o anacronismo» (1).
Tal não obsta a que, se quisermos compreender a natureza
profunda do anarquismo e se, mais do que nos limitarmos a uma
concepção estrita da anarquia, vista meramente como uma doutrina política entre outras doutrinas políticas, considerarmos, pelo
contrário, que o anarquismo é também, e sobretudo, uma maneira
de viver e de apreender o real, somos então obrigados a reconhecer que ele ultrapassa a política no sentido vulgar do termo.
(1) Lucien Febvre, Le Problème de l’incroyance au XVIe siècle. La
Religion de Rabelais. Paris, A. Michel, 1962 (Evol, de l’Hum., n.º 53), p. 6.
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HISTÓRIA DO ANARQUISMO
Isto autoriza-nos, penso eu, a procurar no passado alguns
germes libertários que, na altura própria, os Stirner, os Proudhon,
os Bakunine e muitos outros saberão fazer frutificar.
A ANTIGUIDADE
Na Cidade grega, os filósofos cínicos pensaram e viveram
como ferozes «libertários». O nome dos cínicos tem origem no
local onde se reuniam, o ginásio do Cinosarges, situado no bairro
dos metecos em Atenas. Além disso, quer por desafio quer por
escárnio, os cínicos comparavam o seu modo de vida ao de um
cão (Cínico pode traduzir-se por: «que se parece com um cão»).
Em reacção contra o idealismo platónico e a teoria das Ideias,
afirmavam que aquilo que existe realmente não é, como pretendia
Platão, o arquétipo, o modelo inteligível, a essência genérica dos
seres, antes, pelo contrário, os indivíduos que formam uma
espécie, tal como os podemos encontrar à nossa volta.
A autonomia individual, a auto-suficiência, este é o objectivo
a alcançar. Sarcásticos, utilizando a ironia socrática com uma
infatigável agressividade, os cínicos nunca deixaram de criticar
todas as convenções sociais.
Era assim que Antístenes (c. 440-c. 336 a.C.), fundador da
Escola, preconizava o desapego completo e o desprezo pelos
«tabus», para usar um termo mais moderno. O sábio é um homem
livre porque soube renunciar a todos os impedimenta da vida em
sociedade. Não rege a sua conduta segundo as leis da Cidade,
mas de acordo com a virtude. Os assuntos públicos não lhe dizem
respeito. Os homens de Estado são calamidades. Somos todos
irmãos.
O discípulo Diógenes (494-c. 323 a. C.) levou o ensinamento
de Antístenes até aos limites extremos. Vagabundo-filósofo,
vivendo nos seus célebres barris, apátrida – sempre da forma mais
provocante –, sobre ele abundam as histórias pitorescas mais ou
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OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
menos lendárias, sendo a mais conhecida, por certo, a sua
resposta a Alexandre, o Grande. Como o conquistador lhe
perguntava o que poderia fazer para lhe ser agradável, Diógenes
respondeu-lhe simplesmente: «Afasta-te do meu Sol.»
Os cínicos inauguraram certamente, na filosofia ocidental, a
procura do homem nu, do homem da natureza. Através da sua
crítica radical da civilização, surgiu a apologia do primitivo, do
bom selvagem. Cidade e anticidade, a Grécia inventou tudo!
Os estóicos retomaram alguns dos temas da filosofia dos
cínicos: a busca da autonomia pessoal, estamos «entregues a nós
mesmos»; escolha de uma vida conforme à natureza e oposição
entre a Natureza e as leis da Cidade, desapego relativamente aos
bens terrestres, etc., proclamando-se, enfim, cidadãos do mundo.
A IDADE MÉDIA
Sabemos que o mundo feudal era alheio à nossa concepção
moderna do Estado. Na Idade Média, o poder político era muito
fraco. O Estado era tão pouco existente que o próprio termo se
usava geralmente no plural: os Estados. Só muito mais tarde
adquiriu o seu significado actual. No entanto, apesar da fragmentação territorial e da partilha dos poderes económico e político,
pode-se verificar que, neste mundo hierarquizado, a cristandade
medieval acaba por encontrar na Igreja o seu princípio de unidade. Com efeito, única autoridade universal reconhecida – o
Império, que nunca constituiu unanimidade, era apenas um sonho
– num universo votado à separação e à divisão, a instituição
eclesiástica, que detinha o monopólio da cultura, dispunha de
imenso poder, em que o espiritual mal se distinguia do material.
Movida pela lei, para a qual a salvação da alma era a maior
preocupação, em que a Igreja punha a sua marca em qualquer
evento da existência humana, esta sociedade viu instalar-se um
catolicismo totalitário, dentro do qual todas as questões – incluindo
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HISTÓRIA DO ANARQUISMO
as mais profanas – se colocavam necessariamente em termos
religiosos. Seria preciso esperar séculos para que o político se
separasse do sagrado. Aliás, isto far-se-á a custo de uma transferência do teológico para o antropológico, translação fraudulenta
que Stirner denunciará com veemência. As religiões seculares, a
sociolatria, a idolatria política, etc., só terão de receber o testemunho.
Assim, face ao poder da Igreja, os movimentos revolucionários adquiriram sempre, na Idade Média, a forma de heresia.
Note-se que as heresias do período medieval, ao contrário da
maioria dos movimentos heterodoxos que se manifestaram no
Império Romano após Constantino, já não são contestações de
doutrina. Não se tratando geralmente de intelectuais a dirigirem-se
em linguagem teológica a outros intelectuais, não visavam o
dogma. Pelo contrário, as heresias dos séculos XII e XIII apresentavam-se essencialmente como movimentos sociais, revolucionários e populares. Apesar da sua grande diversidade, todas estas
heresias tinham como alvo a hierarquia eclesiástica e o poder de
Roma. Face à riqueza da Igreja, acompanhada muitas vezes da
indignidade do clero, alguns laicos reivindicaram a autonomia e
independência religiosa. Em todos os casos, tratava-se de recuperar a pureza e a pobreza evangélicas traídas pela Igreja romana.
É assim que, antecipando a Reforma, os Vaudois pregam, traduzem e lêem a Bíblia em língua vulgar. Quanto aos Cátaros, fora
de qualquer controlo eclesiástico, constituíram em Languedoc um
clero paralelo.
Entre todas as heresias medievais, há uma que merece atenção
especial. É aquela que os historiadores designam como o movimento do Livre Espírito ou da Liberdade Espiritual. A natureza e
as ramificações deste movimento heterodoxo são difíceis de
determinar com rigor, tão numerosos são os vestígios que deixaram em grande parte da Europa. Apesar de todas as perseguições
de que foi vítima, esta heresia conseguiu propagar-se durante
vários séculos. Encontramo-la, nomeadamente, no seio das con20
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frarias laicas de Béghards. Infelizmente – como é frequentemente
o caso da maioria dos movimentos heterodoxos –, o Livre
Espírito é conhecido apenas indirectamente pelo testemunho dos
seus adversários ortodoxos. Segundo Norman Cohn,
qualquer estudo da escatologia revolucionária deve [...]
incluir a heresia do Livre Espírito, ainda que a maioria dos
seus adeptos não fosse revolucionária e não encontrasse discípulos nas massas turbulentas dos pobres das cidades.
De facto, eram gnósticos cuja própria salvação constituía a
principal preocupação, mas a gnose a que chegavam definia-se como um anarquismo quase místico, uma reivindicação de liberdade tão audaciosa, tão absoluta, que equivalia a
uma rejeição total de todos os condicionalismos e limitações. [...] Durante os últimos séculos da Idade Média, os
adeptos do Livre Espírito eram os únicos que tinham, como
parte da sua doutrina de emancipação total, uma teoria social
profundamente revolucionária (2).
Não sem algum exagero, Norman Cohn chega ao ponto de os
considerar precursores de Bakunine e Nietzsche.
Os Espirituais, por seu lado, estavam ligados à tradição
joaquimita. O monge calabrês Joaquim de Fiore (falecido em
1202) elaborara uma teologia da história que teve prolongamentos
consideráveis. Distinguia três grandes períodos na cristandade,
que correspondiam a três expressões sucessivas da Revelação e
do conhecimento de Deus. Uma primeira idade assistiu ao reino
do Pai, exigindo, através do Antigo Testamento, uma submissão
absoluta. Depois, o Novo Testamento apela à sabedoria, por
intermédio do Filho, o Redentor. O Terceiro Reino que se
anuncia será, desta vez, o momento do Espírito Santo, ou seja, o
advento da liberdade triunfante, pois S. Paulo disse: «Onde está o
(2) Norman Cohn, Les fanatiques de l’Apocalypse. Millénaristes révolutionnaires et anarchistes mystiques au Moyen Âge, Paris, Pyot, 1983, pp.
156-157.
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espírito do Senhor, está a liberdade» (II Coríntios, 3, 17-18). Esta
frase do Apóstolo dos Gentis servirá, muitas vezes, de caução
libertária à heresia (3).
No início do século XIII, em Paris, a repressão vai abater-se
sobre um grupo heterodoxo que apresentava grande afinidades
com o movimento do Livre Espírito: a heresia dita dos Amaurícios, com origem no nome de Amaury de Bène, teólogo parisiense que, tendo professado o panteísmo, foi obrigado a fazer uma
retractação das suas teses heterodoxas. Retirado em Saint-Martin-des-Champs, morreu neste mesmo lugar em 1206 ou 1207.
Os seus discípulos, presos em 1209, ao interpretarem à sua
maneira o panteísmo de Amaury defendem que, como existimos
em Deus, «é Deus quem faz tudo e não o homem». Por conseguinte, mesmo que façamos o mal, não podemos pecar. A partir
daqui, a fazer fé nos seus acusadores, os Amaurícios ter-se-iam
entregue aos piores actos imorais. A seita foi condenada em 1210
e, como represália póstuma, o corpo de Amaury foi exumado
para ser lançado em terra pagã (4).
Um pouco antes, o espírito herético-revolucionário já se manifestara nos Bogomilos. E no período helenístico, momento privilegiado da Gnose, os Euquitas, «aqueles que rezam», também
chamados Messalianos, recusavam trabalhar e viviam da mendicidade. Deambulando em bandos pelas estradas, dormindo ao ar
livre e partilhando tudo, estes insubmissos perpétuos mostravam-se rebeldes contra as autoridades, tanto espirituais como temporais(5). No século X, apareceu na Bulgária uma heresia gnóstica
que se difundiu, a partir do século seguinte, na Ásia Menor: o
(3) Para Joaquim de Fiore, cf. L’Évangile éternel. Primeira tradução
francesa precedida de uma biografia por E. Aegerter, Paris, Rieder, 1928 (2
vols.), e Marcel Sandrail, Joachim de Flore, le messager des derniers temps.
(Bolet. da Assoc. G. Budé, Out. 1870, n.º 3).
(4) Corpus magistri Amaurici extrahatur a cimiterio et projiciatur in
terram non benedictam, dizia o acto de condenação.
(5) Jacques Lacarrière, Les Gnostiques, Paris, Gallimard, 1973 (Idées,
n.º 290), p. 127.
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bogomilismo. Os Bogomilos, apelidados de «os portadores de
alforges», percorreram a Macedónia, a Sérvia e a Bósnia. No seu
Tratado Contra os Bogomilos, Cosmas, o Sacerdote, descreve-os
da seguinte forma:
Denunciam os ricos, têm horror ao Czar, ridicularizam os
superiores, condenam os nobres e proíbem todos os escravos de obedecerem aos seus senhores (6).
Podemos verificar que todos estes heréticos pregam a pobreza
evangélica.
Dizem que a Igreja reside apenas neles: com efeito, são os
únicos a seguir os passos de Cristo e os verdadeiros adeptos
da vida apostólica, não procuram coisas do mundo, não
possuem nem casa, nem terra, nem qualquer bem,
escreve, na primeira metade do século XII, Evervin de Steinfeld
na sua Carta Contra os Heréticos de Colónia (7).
É verdade que, numa época em que a miséria era um flagelo
cruelmente sentido, a riqueza ostensiva daqueles que se proclamavam sucessores dos Apóstolos dificilmente lhes podia ser perdoada. Isto porque, no crescimento económico dos séculos XII e
XIII, que permitira a acumulação e a circulação de riquezas, com o
desenvolvimento do grande comércio, a concentração urbana e o
aparecimento de novas técnicas agrícolas, a Igreja era parte
interessada. Tanto mais que os monges construtores e cultivadores ou os banqueiros da ordem do Templo [Templários] tinham
desempenhado um papel importante neste crescimento económico. Todas estas transformações iriam causar graves problemas
à Igreja, dos quais o mais espinhoso era certamente a questão da
pobreza. Face à dimensão das heresias populares, a Igreja tentou
(6) Cosmas, o Sacerdote, Tratado Contra os Bogomilos. Tradução e
estudo de H.-Ch. Puech e A. Vaillant, Paris, Impr. Nationale-Droz.
(7) Citado por G. Duby, Saint Bernard. L’art cistercien, Paris, Flammarion, 1979 (Champs, n.º 77), pp. 153-154, nota.
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HISTÓRIA DO ANARQUISMO
recuperar o ideal de pobreza. A criação de ordens mendicantes
ilustra bem o seu desejo de reformas. O Poverello de Assis será,
portanto, mais pobre do que os pobres Vaudois. Os Irmãos
Pregadores sairão dos mosteiros para se juntarem às massas
convencidas pela heresia. Significa que, incumbidas de combater
os heréticos através da prática da caridade e da pobreza, as novas
ordens religiosas, em vez de romperem com o mundo secular,
segundo as tradições monásticas das épocas anteriores, irão, pelo
contrário, viver entre o povo das cidades.
No entanto – mesmo no seio da Igreja, que elas tinham a
missão de servir –, estas ordens serão mal aceites por todo o tipo
de razões. Foi assim que a entrada de Mendicantes – Dominicanos e Franciscanos – na universidade de Paris como professores
provocou um grave conflito com os seus colegas seculares e
ateou uma querela que só extinguiu no século XVI.
Alguns colocavam em dúvida a pobreza desses monges.
Rutebeuf, por exemplo:
Os Jacobinos são tão íntegros
Que têm Paris e têm Roma.
São rei e são Papa
E bens têm em grande soma (8).
Em O Romance da Rosa, Jean de Meung debruça-se sobre a
mendicidade, cujo valor religioso ele contesta:
Posso assegurar que não está escrito em lei alguma, pelo
menos não na nossa, que Jesus Cristo e os seus discípulos,
quando andavam pela Terra, foram vistos a mendigar o seu
pão: eles não queriam mendigar [...] O homem robusto deve
(8) Rutebeuf, Œuvres complètes. Publ. por Éd. Faral e Julia Bastin,
Paris, Picard, 1977 (2 vols.), t. 1, p. 325:
Li Jacobin sont si prudhomme
Qu’il ont Paris et si ont Romme
Et si sont Roi et Apostole
Et de l’avoir ont il grant somme.
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OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
ganhar a vida a trabalhar com as suas mãos, se não tiver
com que viver, mesmo que seja religioso ou queira servir a
Deus. [...] S. Paulo mandava os Apóstolos trabalharem para
obterem o necessário, e proibia-lhes a mendicidade, dizendo:
trabalhai com as mãos e nunca recebei de outro (9).
Naturalmente, a Igreja e o braço secular não atacaram apenas os
heréticos. Na primeira metade do século XIII, clérigos vagabundos
e contestatários, meio estudantes, meio libertinos, autores de
poesias satíricas contra o papa, a corte de Roma e o clero,
incorreram em condenações. A Chronica Majora, de Mathieu
Paris, refere até um texto que sugere a existência de uma intimidade suspeita entre a rainha Branca de Castela e o núncio
pontifício. O cronista atribui a paternidade desta invectiva «àqueles que se designam vulgarmente por Goliardos» (10). Os Goliardos, clérigos marginais que constituíam uma espécie de boémia
(9) Guillaume de Lorris e Jean de Meung, Le Roman de la Rose. Fixado
em francês moderno por André Mary, Paris, Gallimard, 1949, pp. 195-196.
Antecipando Voltaire: «O primeiro que foi rei foi um soldado feliz», Jean
de Meung, que, aliás, foi chamado o «Voltaire do século XIII», lembrava
Gaston Paris, no seu prefácio a Petit de Julleville, Histoire de la langue et
de la litterature française., M. A. Paris, A. Collin, s.d., resume à sua maneira
o nascimento do poder:
Ung grant vilain entr’eus eslurent,
Le plus ossu de ceux que furent.
Le plus corsu et le gregnor
Si le firent prince et seignor.
Em mais de uma apologia do amor livre, a sua sátira tem como alvo o
peso do imposto (as «aides»):
Quando quiserem
As suas aides ao rei levarão,
E o rei sozinho ficará
Tão depressa quanto o povo quiser.
(10) Les Poésies des Goliards, reunidas e traduzidas a partir do latim por
Olga Dobiache-Rojdestvensky. Pref. de Lot. Paris, Rieder, 1931, pp. 22-23.
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HISTÓRIA DO ANARQUISMO
intelectual, foram mais libertinos do que libertários. O concílio de
Salzeburgo, realizado em 1291, descreve-os da seguinte forma:
Eles [os Goliardos] passeiam-se sempre nus em público,
dormem nos fornos, frequentam as tavernas, os jogos, as
cortesãs; obtêm víveres por meio de delitos. Inveterados na
sua seita, não querem deixá-la (11).
O RENASCIMENTO
Uma vez fora do seio da Igreja romana, os movimentos
reformados contribuirão bastante para o reforço do poder do
Estado, isto por causa da separação, invocada pelos teólogos
protestantes, entre o domínio da fé e o das obras terrestres,
confiado por Deus ao soberano. Após a interiorização da fé, o
mundo exterior, livre do Absoluto e cada vez mais dessacralizado,
em breve obedecerá apenas às suas próprias leis, as que, como
dirá um dia Montesquieu, resultam pura e simplesmente da
natureza das coisas, segundo uma lógica positiva ligada a um tipo
de racionalidade sem qualquer referência (ou, se preferirmos, de
forma muito indirecta) à transcendência. A Reforma deu origem
ao longo processo da profanação do mundo, cujos sinais prenunciadores começavam já a aparecer na Idade Média. O homem
passará então a dispor, sem escrúpulos morais nem religiosos, dos
recursos oferecidos à sua indústria pelo universo, considerado
uma fonte inesgotável de riquezas e ganhos. O sucesso vai tornar-se o critério do bem e do mal. É conhecida a tese de Max Weber
sobre os laços estreitos entre a ética protestante e o espírito do
capitalismo (12). Note-se, aliás, que o Século da Reforma protestante foi também uma grande época da filosofia política, com
(11) Op. cit., p. 28.
( 12) Max Weber, L’Éthique protestante et l’esprit du capitalisme.
Seguido de Les sectes protestantes et l’esprit du capitalisme. Trad. fr., Plon, 1964.
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OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
Maquiavel, Erasmo, Thomas More, Jean Bodin, Althusius, Suarez, só para citarmos alguns grandes nomes (13).
Mas os Reformadores não tardam a ser dominados também
pelo espírito da ortodoxia. Em 1525, vimos Lutero a apelar às
autoridade políticas para uma repressão feroz da revolta dos
camponeses, na sua proclamação Contra as Hordas Salteadoras
e Assassinas dos Camponeses. Mais tarde, em 1553, em Genebra, a Nova Roma, é a fogueira de Michel Servet que será ateada.
Mais uma vez, o espírito da liberdade tem de se refugiar nas
muitas pequenas comunidades sócio-religiosas, que prosseguem
as lutas travadas na Idade Média pelos movimentos heterodoxos
cujas doutrinas prepararam a Reforma.
O século XV assistiu ao aparecimento, na Boémia, do movimento dos Taboritas, cujo programa comportava a supressão da
organização política. Os Taboritas pregavam a luta armada. Derrotados em 1434 na batalha de Lipany, foram dez anos depois
condenados pela Dieta de Praga (14). Contrariamente aos Taboritas, os Irmãos da Unidade ou Irmãos Boémios professavam a não
violência e a fraternidade, e rejeitavam o juramento de fidelidade
às autoridades seculares. Proibiam-se de qualquer actividade política e recusavam o serviço militar.
Mas o movimento que adquiriu maior dimensão foi o anabaptismo. Na Alemanha, Thomas Münzer, inflamado pela mística
milenarista, sublevou os camponeses antes de ser decapitado em
1525. Ernst Bloch assinala da seguinte forma aquilo que, segundo
ele, constitui a originalidade dos anabaptistas relativamente à
Igreja estabelecida:
A seita baseia-se numa realidade que está fora de discussão: a bondade original do homem. [...] A Igreja, pelo
contrário, tal como o Estado, assenta na corrupção original
(13) Cf. Pierre Mesnard, L’Essor de la philosophie politique au XVIe
siècle. 2.ª ed., Paris, J. Vrin, 1952.
(14) Mesnard, op. cit., p. 237.
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HISTÓRIA DO ANARQUISMO
dos homens, na necessidade de remediar progressivamente
esta corrupção, reconhecendo largamente o poder disciplinar das autoridades estabelecidas... (15)
A crença milenarista na iminência do reino de Cristo na Terra
e do fim dos tempos fanatizava as multidões. Na Alsácia, o
pregador Melchior Hoffman anunciava o advento futuro do
Reino de Deus na cidade de Estrasburgo. Nos Países Baixos, era
o padeiro João Matthys quem arrastava os fiéis. Acompanhado
pelo seu discípulo João de Leida, instalou-se em Münster. Em
1534, esta cidade torna-se a Nova Jerusalém. Um comunismo
literal é aí posto em prática: ataque à acumulação do dinheiro,
os ricos fornecem a alimentação e o vestuário da colectividade.
As refeições são tomadas em comum. João Matthys morre ao
tentar uma saída e João de Leida toma o poder. Com este, o
comunismo transforma-se em despotismo, temperado por uma
licenciosidade desenfreada. Por fim, em 1535, a cidade é atacada
pelas tropas do Príncipe Bispo. João de Leida e os seus companheiros são torturados e massacrados. Após terem sido exibidos à
multidão por todo o país durante seis meses, os seus cadáveres
são colocados em gaiolas que serão depois instaladas no campanário da igreja mais alta de Münster. Parece que o macabro
dispositivo ainda aqui se encontrava em 1914 (16).
Gorada a experiência dos extremistas de Münster, a seita dos
anabaptistas readquiriu alguma moderação. Um reagrupamento
dos adeptos teve lugar na Frísia, sob a égide de Menno Simons.
Os Menonitas puseram então em prática uma doutrina baseada na
caridade, na tolerância e no pacifismo. O menonismo conheceu
um desenvolvimento considerável na Holanda, onde foi legalmente reconhecido em 1672. Lembremos, de passagem, que
vários amigos de Espinosa eram Menonitas.
(15) Ernst Bloch, Thomas Münster, théologien de la revolution. Trad.
do alemão por M. de Gandillac, Paris, Julliard, 1964, p. 217.
(16) Mesnard, op. cit., p. 243.
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OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
Outros Anabaptistas fundaram uma comunidade em Nikolsburg, na Morávia: os Irmãos Morávios. Viveram o seu comunismo
evangélico em completa autonomia, recusando servir no exército
e não aceitando nem a justiça nem a fiscalidade. Na opinião
destes insubmissos, o poder do Estado resumia todo o mal do
mundo. Perseguidos, os Irmãos Morávios refugiaram-se na Polónia.
Se o luteranismo continuava a admitir os direitos do Estado, o
anabaptismo extremo rejeitava ferozmente reconhecer esse direito,
fosse qual fosse a sua forma. «Protesto que, em tempo de paz,
adquire a figura da anarquia e, em tempo de guerra, a da
deserção», sublinha Pierre Mesnard (17), que nota que a objecção
de consciência teve como ponto de partida o radicalismo dos
anabaptistas, que os levou a recusarem categoricamente qualquer
participação na ordem instaurada pelo Estado, por eles considerado «o mal em si» (18). Rejeição do serviço militar, «essa escravatura sanguinária que só tem como objectivo a sobrevivência de
um Estado indiferente... Rejeição do dever fiscal, pelo mesmo
motivo» (19). Esta rejeição do Estado chegará ao ponto de se
recusarem a exercer qualquer função pública. «O cristão não
podia ser funcionário, nem sequer rei» (20).
*
No entanto, limitando-nos a invocar as lutas religiosas e
sociais que transformaram a Europa desta época, correríamos o
risco de esquecer que o século XVI foi também a época do
Renascimento, com o culto da Natureza, uma natureza «mágica»,
talvez, uma natureza de convenção, sem dúvida, mas concebida
como fonte de vida e reserva inesgotável de poderes benéficos
para o homem (21). Um século depois, o mecanicismo cartesiano
(17)
(18)
(19)
(20)
(21)
Mesnard, op. cit., p. 264.
Ibid.
Ibid.
Ibid.
Cf. Robert Lenoble, Histoire de l’idée de nature, Paris, A. Michel, 1969.
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HISTÓRIA DO ANARQUISMO
esforçar-se-á precisamente por reagir contra o dinamismo do
Renascimento e contra a imagem demasiado reluzente de um
mundo animado por forças misteriosas. Ou seja, se as convulsões
religiosas agitaram este período, apesar das misérias desta época,
o riso, «próprio do homem», foi – e continua a ser, hoje mais do
que nunca – uma forma insubstituível de libertação. Assim, como
não pensar em Rabelais, que dissipa, pela truculência de uma
obra que transpira de alegria de viver e do prazer de nos
divertirmos com toda a liberdade, o pessimismo dos espíritos
tristes e os discursos dos pedantes. Basta ver, ao lermos Gargântua, o modo como se vivia feliz e sem problemas na abadia de
Telema, oferecida ao frade Jean des Entommeures, «que não
queria cargo nem governo, pois como poderia eu governar
outrem, se nem a mim me sei governar»? (cap. LII). Toda a vida
dos telemitas «é regida, não por leis, estatutos ou regras, mas
segundo as suas vontades e livre-arbítrio [...]. Na regra deles só
existe esta cláusula: FAZ O QUE QUISERES» (cap. LVII).
Em Rabelais, não há revolta. A libertação do espírito realiza-se de forma simples e sem dramas pelo próprio exercício da
liberdade. A natureza humana é essencialmente boa, basta deixá-la manifestar-se livremente. Reprimi-la é pervertê-la.
OS TEMPOS MODERNOS
Durante o período moderno, o poder do Estado vai começar a
desenhar-se, primeiro em esboço – se assim se pode dizer –, antes
de se organizar racionalmente a partir do centralismo jacobino
que marcou o advento do Estado-Nação, que Napoleão vai
depois aperfeiçoar e sistematizar. Doravante, o adversário que o
espírito libertário terá de combater vai tornar-se cada vez mais
impessoal, até adquirir, nas nossas sociedades contemporâneas, a
forma pura da mais irreconhecível das abstracções. Na sua franqueza brutal, a frase célebre, atribuída a Luís XIV: «O Estado sou
eu», tinha a vantagem de não deixar qualquer dúvida. O poder
era identificável, com autoria e claramente assumido. A ideia de
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OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
soberania do povo introduziu alguma confusão relativa à natureza
e verdadeira origem do poder. O cidadão das democracias modernas é realmente, como queria Kant – pelo menos teoricamente –,
súbdito e, ao mesmo tempo, legislador. Isto significa que a
autoridade política está parcialmente interiorizada. Não há dúvida
de que, hoje, é possível afirmar que «o Estado somos nós».
Infelizmente, este nós designa tanto os que governam como os
que são governados e, entre os governados, é preciso ainda
distinguir, aos olhos da lei, a maioria e a ou as minorias. Por
conseguinte, quer queiramos quer não, esta hierarquia funcional,
inevitável em democracia, introduz novas formas de desigualdade. Mais não seja que por razões práticas, de grau em grau,
segundo o lugar ocupado por cada cidadão nas hierarquias do
poder, afastamo-nos sensivelmente da origem teórica da soberania. Todas as sucessivas delegações da soberania popular fazem
com que, no Estado democrático, a vontade política dos cidadãos
tenha de se manifestar constantemente por procuração, o que
necessariamente dá lugar a novas alienações. Nas suas críticas ao
sistema representativo e ao sufrágio universal, os anarquistas
insistiram muitas vezes neste ponto.
No fundo, pela sua crítica das instituições da monarquia e
pelos seus ataques contra a Igreja (Esmaguemos a infame!), os
filósofos do século das Luzes contribuíram fortemente para a
criação do estatismo moderno. Não repetia Rousseau que a
soberania devia ser absoluta ou não ser nada? Sabe-se que
Voltaire, que lutou durante toda a vida contra o fanatismo
religioso, não era menos partidário da ordem política, sendo o seu
principal receio a subversão da «canalha». Voltaire observava,
aliás, com satisfação o progresso do Estado na Europa do seu
tempo. A doutrina do despotismo esclarecido procurava, sobretudo, acabar com a desordem, com o arbitrário e com a incompetência, o que implicava um reforço da autoridade e a instalação de
um poder forte. À trapalhada económica e política da monarquia
francesa em plena ruína, os filósofos opunham a concepção de
uma organização racional da sociedade; a justiça e a igualdade
parecia-lhes ser uma garantia de eficiência e progresso social e, ao
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HISTÓRIA DO ANARQUISMO
mesmo tempo, a melhor protecção contra a desordem. A autoridade
profana tentou ainda restaurar o aparente esplendor da religião,
em que o dever cívico devia representar uma obrigação sagrada e
a solidariedade sucedia à caridade cristã, etc., mas o Estado laico
e dessacralizado perdeu então o seu secular contrapeso religioso.
Órfãos metafísicos, os homens do mundo moderno passam a ser
definidos, na sua totalidade, como simples elementos da colectividade, e a sua pertença à Cidade terrestre torna-se a única razão da
sua existência no Estado.
O PADRE MESLIER (1664-1724)
No início do século das Luzes, entre os verdadeiros precursores do anarquismo conta-se uma personagem admirável, Jean
Meslier. Padre na aldeia de Étrépigny, na região francesa de
Champanha, deixou à data da sua morte um volumoso manuscrito
que contém a confissão do mais resoluto dos ateísmos e uma
crítica às autoridades religiosas e políticas. Em 1762, Voltaire
publicaria extractos do Testamento de Meslier, destacando, sobretudo, a sua faceta irreligiosa. Contudo, os ataques de Meslier
visam tanto o poder político como a autoridade religiosa. Para ele,
a religião e a política ajudam-se mutuamente:
Entendem-se como gatunos. [...] A religião apoia o governo
político, por pior que este possa ser. O governo político apoia
a religião, por mais estúpida e vã que esta possa ser (22).
Este sacerdote desejava que «todos os poderosos da Terra e
todos os nobres fossem enforcados com as tripas dos padres» (23).
(22) Citado por Claude Harmel, Histoire de l’anarchie, des origines à
1880, Paris, éd. Champ libre, 1984 [reed.], p. 32.
(23) Ibid. Ver também Proudhon, As Confissões de um Revolucionário:
«...não há chefe de bandidos que ouse reivindicar a ideia:
E com as tripas do último padre
Enforquemos o último rei».
32
OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
Esta expressão voltará a encontrar-se formulada, com diferentes
variantes, nas paredes de um certo mês de Maio... A casta
política, reis, nobres ou detentores de cargos, ou seja, aqueles que
hoje se designam por burocratas, grandes ou pequenos, bem
como o alto clero e os ricos ociosos, são violentamente atacados.
Aliás, o nosso padre conta bastante com o assassinato político
como forma de livrar o bom povo dos seus dirigentes:
Onde estão aqueles generais matadores de tiranos que
vimos nos séculos passados? Onde estão os Brutos ou os
Cássios? Onde estão os generais que mataram Calígula e
tantos outros monstros semelhantes? [...] Onde estão os
Jacques Clément e os Ravaillac da nossa França? Deviam
viver ainda no nosso século, [...] para espancarem ou
apunhalarem todos esses detestáveis monstros e inimigos do
género humano e, deste modo, libertarem todos os povos da
Terra do seu domínio tirânico! (24)
Meslier protesta também contra a apropriação individual dos
bens e das riquezas da terra e preconiza o comunismo social. Nos
seus escritos, lança então um verdadeiro apelo ao povo, que deve
agir:
A salvação está nas vossas mãos. A vossa liberdade só
depende de vós, se todos souberdes entender-vos. [...] Uni-vos, pois, povos, se sois sábios. [...] Começai por comunicar entre vós secretamente os vossos pensamentos e desejos. Divulgai por toda a parte, e o mais habilmente possível,
os escritos deste tipo, por exemplo, que dêem a conhecer a
todo o mundo a vanidade dos erros e das superstições da
religião e que tornem odioso o governo tirânico dos príncipes e dos reis da Terra (25).
Jean Meslier chega até a considerar a greve dos trabalhadores
e dos produtores, de maneira a levar as autoridades – políticas e
(24) Ibid.
(25) Ibid.
33
HISTÓRIA DO ANARQUISMO
religiosas – e os seus serviçais ao arrependimento, privando-os
daquilo que lhes é necessário (26).
Solitário e clandestino, o padre Meslier aparece retrospectivamente como um autêntico espírito libertário. Ao redigir em
segredo, no silêncio do presbitério rural, o seu Testamento, teve
certamente o sentimento de ser um precursor e, apesar da sua
visão pessimista do género humano, acreditou que as suas ideias
poderiam ter alguma influência póstuma, como o prova a advertência que anexou ao papel que envolvia o seu manuscrito, como
nos é relatado por Voltaire:
Vi e reconheci os erros, os abusos, as vaidades, as loucuras
e as maldades dos homens; odiei-os e detestei-os. Não o
ousei dizer durante a vida, mas di-lo-ei pelo menos ao
morrer e depois da morte; e é para que se saiba isto que
faço e escrevo a presente memória, para que possa servir de
testemunho de verdade a todos os que a virem e a lerem, se
a acharem boa (27).
A REVOLUÇÃO FRANCESA. OS RAIVOSOS
Durante o período revolucionário, os Raivosos [Enragés]
desempenharam um papel que não é fácil de compreender totalmente, de tal modo foram caluniados pelos adversários – e entre
os revolucionários quase todos lhes eram hostis. Por outro lado,
os próprios historiadores da Revolução estão longe de se entenderem a seu respeito. No entanto, se podemos incluí-los entre os
precursores do anarquismo, é, sobretudo, enquanto movimento de
homens que estavam muito próximos das massas populares e que
rejeitavam qualquer autoridade que não a do povo. É claro que o
(26) Op. cit., p. 39.
(27) Cf. Voltaire, Mélanges. Texto fixado e anotado por J. Van den
Heuvel, Paris, Gallimard, 1961 (La Pléiade), p. 456
34
OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
carácter espontâneo e desorganizado de tal movimento devia
levar os Raivosos a tomarem, por vezes, posições contraditórios e
não podiam esperar impor-se face à ditadura de Robespierre e dos
Convencionais. Jacques Roux, Jean Varlet e Théophile Leclerc
d’Oze foram os principais representantes desta tendência.
Inicialmente sacerdote e professor, Jacques Roux era padre no
princípio da Revolução. Em 1790, ocorreram motins camponeses
e pilhagens de castelos na sua paróquia e o comissário do rei
elaborou um relatório designando-o como «geralmente acusado
de ter pregado a doutrina perigosa de que as terras pertencem a
todos de forma igual e que se devia recusar pagar os direitos
senhoriais» (28). Começava assim a sua carreira de agitador.
Mudou-se para Paris e foi nomeado vigário de Saint-Nicolas-des-Champs, após ter prestado juramento à Constituição. Durante
toda a sua actividade política, Jacques Roux não deixou de
protestar contra a injustiça económica e contra a carestia de vida,
exigindo uma lei que fixasse o preço dos géneros alimentícios.
Os Convencionais, que viam neste édito da fixação do preço
máximo um regresso encapotado à regulamentação do Antigo
Regime, aproveitaram para acusar os Raivosos de serem neomonárquicos e adiaram a votação deste projecto. Mais tarde, acabaram por assumir eles próprios esta reivindicação. A denúncia dos
açambarcadores e a luta contra todo o tipo de exploradores
tornaram-se no cavalo de batalha de Roux e dos seus amigos. Foi
a violência da campanha deste movimento que lhes valeu o
apelido de Raivosos. Nesta altura, a Revolução Francesa atravessava uma crise económica gravíssima. Instigadas por Jacques
Roux, as petições à Convenção multiplicavam-se, acompanhadas
de motins populares, provocados pelo fome e pela carestia de
vida. Indignados por verem afirmar-se um poder popular paralelo,
no qual viam apenas uma manifestação da desordem e da anarquia, Montanheses e Girondinos esqueceram as suas rivalidades
(28) Cf. Harmet, op. cit., p. 45.
35
HISTÓRIA DO ANARQUISMO
habituais para rejeitarem petições como esta, atrás da qual se
adivinhava claramente a inspiração dos Raivosos:
Nós, deputados das quarenta e oito secções de Paris, que
vos falamos em nome do bem-estar dos oitenta e quatro
departamentos, estamos longe de perder confiança nas vossas luzes. Não, uma boa lei não é impossível, vimos propô-la a vós e, sem dúvida, apressar-vos-eis a consagrá-la (29).
Na sequência da recusa da Assembleia, rebentaram tumultos
em Paris. Grupos de homens e mulheres obrigaram os comerciantes a vender-lhes alimentos a um preço fixado por eles próprios,
de maneira a provarem, de facto, que a fixação dos preços das
mercadorias era bem possível. O poder revolucionário acusou
Jacques Roux de ser o instigador desta operação. Na origem de
todas estas reivindicações populares, Robespierre e Marat fingiram ver apenas um pretexto para desordens fomentadas pelos
aristocratas e pelo estrangeiro. Era o processo bem conhecido da
amálgama.
O programa de Jacques Roux – será que se pode falar de
programa? – assenta inteiramente na espontaneidade popular, na
opinião pública, que, para ele, tem força de lei e não pode errar.
É o que se percebe de um discurso pronunciado na secção do
Observatório:
O despotismo que se propaga sob o governo de vários, o
despotismo senatorial é tão terrível quanto o ceptro dos reis,
já que tenta acorrentar o povo sem que este perceba, pois
está diminuído e subjugado pelas leis que ele próprio devia
ditar. [...] Após terdes transposto irrevogavelmente o intervalo imenso entre o escravo e o homem, não podereis
admitir que os vossos mandatários desfiram o mínimo
ataque aos vossos direitos, que se afastem da opinião
pública, que é quem dita as leis, está sempre certa e é todo-poderosa (30).
(29) Op. cit., pp. 59-60.
(30) Op. cit., pp. 58-59.
36
OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
Acusando o governo de frouxidão, Jacques Roux exige violentamente medidas impiedosas contra os ricos, contra os especuladores e contra aqueles que deixam o povo numa situação de
fome:
O que é a liberdade quando uma classe de homens pode
deixar outra com fome? O que é a igualdade quando o rico
pode, pelo seu monopólio, exercer o direito de vida e morte
sobre os seus semelhantes? Liberdade, Igualdade, República,
tudo isto não passa de um fantasma (31).
Roux e Leclerc foram acusados pela Convenção de incitarem
o povo a «proscrever todo o género de governo» (32). Um convencional acusará Jacques Roux de ter o descaramento de ir à
Assembleia preconizar «os princípios monstruosos da anarquia» (33). A injúria é abandonada e é Chaumette quem determinará a acusação, ao denunciar Roux como aquele que tocou «a
rebate para a pilhagem e a violação das propriedades» (34). Por
fim, preso e condenado, Jacques Roux suicidou-se na prisão.
Quanto a Jean Varlet, as suas tendências «populistas» afirmam-se
fortemente na Declaração Solene dos Direitos do Homem no
Estado Social. Arrebatado pelo lirismo, Varlet declara:
Desde há quatro anos, sempre na praça pública entre o
povo, os sans-culottes, os maltrapilhos que amo, aprendi
que, ingenuamente e sem restrições, os pobres diabos do
povo pensam de maneira mais certa e audaciosa do que os
bons senhores, os grandes oradores ou os sábios acanhados;
se quiserem aprender boa ciência, vão, como eu, falar com
o povo (35).
(31) Declaração de 21 de Junho de 1793 na Comuna de Paris. Citado por
J. Godechot, Les Révolutions, 1770-1799, Paris, PUF, 1963 (Nouv. Clio,
n.º 36, p. 171).
(32) Harmel, op. cit., p. 45.
(33) Op. cit., p. 75.
(34) Ibid.
(35) Op. cit., p. 64.
37
HISTÓRIA DO ANARQUISMO
Daí uma desconfiança extrema relativamente aos que pretendem falar e agir em nome do povo: «Nem sequer em relação aos
que receberam os nossos votos podemos evitar a desconfiança» (36).
Na sua brochura redigida após o golpe de Termidor – A Explosão –, o jovem Varlet afirma que, tendo a tirania de Robespierre
sido suprimida juntamente com o seu autor, «só se extinguiu o
tirano, o seu aterrador sistema sobrevive» (37). E estigmatiza
aqueles a quem chama «reis revolucionários», que precisam de
«fazer dinheiro» para poderem reinar pela corrupção (38). Em
Varlet encontra-se, sobretudo, a propósito da questão das relações
entre o Estado e a Revolução, a proclamação daquilo que, um
dia, virá a ser o leitmotiv dos anarquistas:
Que monstruosidade social, que obra-prima do maquiavelismo é este governo revolucionário. Para qualquer pessoa
que pense, governo e revolução são incompatíveis, a menos
que o povo queira constituir as suas bases de poder em
permanente insurreição contra si mesmo, o que é absurdo
de acreditar (39).
Proudhon dirá que a ideia segundo a qual um governo pode
ser revolucionário é contraditória, pela simples razão de que se
trata de um governo.
Se nos perguntarmos em que sentido é que os Raivosos eram
«anarquistas», podemos responder, desde logo, que eles se afirmaram continuamente como os mais ferozes defensores de uma
acção directa do povo, por eles considerado o único detentor da
soberania. A ideia que daqui decorre necessariamente é que
qualquer delegação da vontade popular equivale a uma alienação
da sua liberdade. Por isso, proclamaram sempre que um governo
é despótico por essência e que tende inevitavelmente a confiscar
(36)
(37)
(38)
(39)
Ibid.
Op. cit., p. 85.
Ibid.
Op. cit., pp. 85-86.
38
OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
essa liberdade. Um governo pode bem ser provisório e indispensável para a instalação de uma justiça revolucionária na sociedade
e para anular a oposição contra-revolucionária, mas trairá sempre
a sua pretensa missão. Mais ou menos implicitamente, esta forma
de ver as coisas manifestou-se no comportamento político dos
Raivosos, adversários irredutíveis da ditadura dos Jacobinos.
Mais tarde, este dilema entre a autoridade e a revolução renascerá,
com todas as discussões em torno do marxismo e na altura da
revolução russa.
WILLIAM GODWIN (1756-1836)
Nascido no condado de Cambridge, em Wisbeach, filho e
neto de pastores não anglicanos, Godwin tornou-se também
pastor, em 1778. Pertencia àquelas confissões dissidentes que
recusavam integrar-se na Igreja de Inglaterra, constituída no
século XVI, e que, apesar das perseguições, não aceitavam a
subordinação do anglicanismo ao poder temporal e ao Parlamento.
Era no seio destas seitas dissidentes que se encontravam muitos
partidários das reformas democráticas, adversários da realeza e,
com muita frequência, defensores dos rebeldes da América.
Em nenhuma outra Igreja, o racionalismo protestante – que
coloca na consciência de cada homem a origem da crença –
preparou tanto o caminho para o individualismo político e
social. Para definir a anarquia, Godwin mais não fará do
que estender à sociedade esse espírito de revolta e essa
vontade de livre exame (40).
William Godwin foi educado no colégio dos dissidentes de
Hoxton. Ainda muito jovem, perde a mãe e recebe uma educação
muito austera. O pai, de quem ele não gostava nada, trata-o com
(40) Op. cit., pp. 94-95.
39
HISTÓRIA DO ANARQUISMO
um rigor desumano. Um pequeno episódio basta para nos dar
uma ideia da atmosfera dos anos de juventude de Godwin. Num
certo domingo, ao ver o jovem filho a passear no jardim do
presbitério com um gatinho nos braços, o pastor acusou o pequeno
William de profanar com indignidade o Dia do Senhor (41)!
Na sua precocidade de criança amadurecida antes da idade,
Godwin, com apenas oito anos, tem já um conhecimento aprofundado da Bíblia, e na idade das brincadeiras pueris e da despreocupação própria da infância ainda marcada pela inocência animal,
costuma dar sermões sérios e pungentes aos seus pequenos
amigos, assustando-os com descrições ameaçadoras das chamas
do Inferno.
Aos vinte e cinco anos, a leitura dos filósofos franceses leva-o
a adoptar o deísmo. Em 1782, abandona o ministério para se
dedicar ao seu trabalho literário, ao mesmo tempo que se envolve
na vida política entre as fileiras dos liberais. Ocorre então a
Revolução Francesa. O «fleumático» Godwin sente a maior
emoção da sua vida. No seu Diário, escreve que o coração lhe
bateu fortemente em 1789, alvorada da liberdade dos povos:
Eu tinha lido com grande prazer os escritos de Rousseau, de
Helvétius e dos outros escritores franceses mais populares.
Via neles um sistema mais geral e mais simplesmente filosófico do que na maioria dos autores ingleses que tratavam dos
mesmos temas; e não pude deixar de ter grandes esperanças
numa Revolução da qual tais escritores tinham sido os
precursores (42).
No outro lado da Europa, outro grande «fleumático», Kant, o
filósofo de Königsberg, interrompeu o seu passeio habitual quando soube do mesmo acontecimento histórico.
(41) Ibid.
(42) Max Nettlau, Histoire de l’anarchie, ed. fr., tradução de Martia
Zemliak, Paris, Éd. de la Tête des Feuilles, 1971, p. 36.
40
OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
Godwin resolveu escrever um livro que amplificasse as ideias
da Revolução Francesa e, ao mesmo tempo, se opusesse ao
panfleto anti-revolucionário de Edmund Burke, Reflections on the
Revolution in France, obra publicada em 1790, na qual Burke
apresentava a Revolução Francesa como a pior das monstruosidades históricas: «Nada parece natural neste estranho caos, em que
se misturam ligeireza e ferocidade, uma estranha confusão de
crimes e loucuras.»
O livro de Godwin, intitulado An Enquiry Concerning Political Justice and its Influence on General Virtue and Happiness
[Investigação Sobre a Justiça Política e a sua Influência na
Virtude e na Felicidade], foi publicado em 1793. O autor propõe-se chegar «à concepção completa de um governo simplificado ao
máximo» (42 bis)
Mas a Inglaterra estava em guerra com a França; por isso,
Godwin e os seus escritos não podiam deixar de provocar a
desaprovação geral no país. Só os jovens poetas se entusiasmaram com as suas ideias. A sua filha, aliás, foi companheira de
Shelley.
O termo «anarquia» aparecia na Investigação apenas na sua
acepção vulgar, sem que, aliás, Godwin a considere num mau
sentido:
A anarquia é um mal terrível, o despotismo é um mal pior.
A anarquia matou centenas de homens, o despotismo sacrificou milhões e, por isso mesmo, mais não fez do que
perpetuar a ignorância, o vício e a miséria. A anarquia é um
mal efémero, o despotismo é quase imortal (43).
Ao adoptar uma posição intelectualista categórica, Godwin
pretende aplicar ao domínio social e ao domínio moral uma só
regra: a da razão. Trata-se de substituir os direitos do coração
(42 bis) Ibid.
(43) Harmel, op. cit., p. 98.
41
HISTÓRIA DO ANARQUISMO
pelos da inteligência, já que o homem é, por excelência, um ser
de razão. Tudo o que é contrário ao exercício da razão – quer os
obstáculos provenham do mundo exterior ou dos nossos instintos
– deve ser afastado.
Apesar do seu racionalismo, Godwin conserva algo da tradição empirista inglesa. Tábua rasa na origem, o espírito humano
passa a ser um produto da experiência das instituições. É sobre
esta que se deve agir, se quisermos transformar a condição
humana.
Na sua opinião, o Estado representa o pior obstáculo ao
desenvolvimento e exercício da razão individual. Com efeito, o
poder estatal substitui constantemente o juízo e a consciência dos
homens. As leis são um obstáculo ao movimento do espírito
humano e Godwin propõe a seguinte alternativa: se uma lei é
racional, é inútil ao homem racional. Se o não é, então opõe-se à
razão e revela-se ilegítima e despótica.
Acabe-se com a propriedade individual. A propriedade falseia
o juízo e torna-nos escravos. Godwin chega ao ponto de desejar
que o homem se liberte de todos os laços afectivos que nos ligam
aos outros, para deixar subsistir apenas aquilo que confere mérito
relativamente à mais fria razão. O homem virtuoso terá a missão
de desempenhar o papel de «inquisidor geral da conduta moral
dos seus próximos, com o dever de os reconduzir à virtude,
através de qualquer lição que a verdade lhe permita dar e através
de qualquer castigo que a livre expressão [lhes] possa infligir» (44). Este puritanismo moralizante que aqui transparece é mais
do que detestável. Em defesa de Godwin, porém, diga-se que se
trata aparentemente de uma inquisição totalmente verbal e que
não requer qualquer intervenção do poder. É uma inquisição sem
acusação.
O advento da sociedade de Godwin não necessita de qualquer
uso da violência. Será o progresso da razão que lhe permitirá
(44) Op. cit., p. 102.
42
OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
afirmar-se a pouco e pouco. Bastará que alguns indivíduos
racionais a reconheçam, para depois convencerem os outros.
Vemos aqui até que ponto o racionalista Godwin se mostrou
optimista. Apostou tudo na força da razão individual. A sua
utopia assenta inteiramente na fé no progresso ilimitado das
Luzes. Neste sentido, continua ligado ao pensamento do século
XVIII.
William Godwin, escritor político, deu-se a conhecer também
através de outras obras. Uma selecta de ensaios filosóficos, o
Inquirer, romances histórico-filosóficos, uma Vida de Chaucer e
uma História da Commonwealth em 4 volumes (1824-1828),
obra muito apreciada no seu tempo. Por fim, nas suas Investigações Sobre a População e Sobre as Faculdades de Crescimento
da Espécie Humana (1820), Godwin pretendeu responder ao
Ensaio Sobre o Princípio da População, de Malthus, publicado
em 1798 (45).
HENRY THOREAU (1817-1862)
Henry David Thoreau nasceu em Concord, povoação próxima de Boston, na Nova Inglaterra, que assistiu, um dia, ao
desembarque dos peregrinos refugiados do Mayflower e de onde
partiu o movimento dos Revoltosos. O seu avô, um flibusteiro
normando de Guernesey [ou Guernsey, no canal da Mancha] que
apareceu, não se sabe porquê nem como, nas costas do Massachusetts, legou-lhe um nome bem francês.
Thoreau fez estudos sólidos na Universidade de Harvard.
Travou amizade com Ralph Waldo Emerson (1803-1882), que,
depois de ter renunciado às suas funções de pastor, se instalara em
(45) Malthus, Ensaio sobre o Princípio da População, Publicações
Europa-América, 1982. Notar que, no prefácio da 2.ª edição do seu livro,
Malthus escreve que o seu Ensaio lhe fora sugerido pelo Inquirer de
Godwin.
43
HISTÓRIA DO ANARQUISMO
Concord, animando um pequeno círculo de discípulos escolhidos
que partilhavam o mesmo ideal filosófico-religioso orientado para
a investigação concreta, em reacção contra o racionalismo abstracto, doutrina conhecida pelo nome de transcendentalismo.
O Transcendental Club, ao qual Thoreau pertencia, marcou,
aliás, o ponto de partida de um renascimento intelectual no Novo
Mundo.
Como bom Americano, Thoreau exerceu os mais variados
ofícios: professor com o irmão John, preceptor, pedreiro, agrimensor, carpinteiro, lenhador, conferencista, fabricante de lápis,
etc., contentando-se sabiamente com um modo de vida simples e
frugal.
A sua curta vida (morreu aos 44 anos de idade, vítima de
tuberculose), tal como os seus escritos, fazem de Thoreau o
modelo completo do homem livre. Reteremos dois aspectos desta
forte personalidade.
Em primeiro lugar, evidentemente, o apaixonado pela Natureza, aquele que tentou procurar e fazer-nos reconhecer o laço
vital biológico e afectivo que nos une ao meio natural. Enquanto
os primeiros sinais da industrialização moderna começavam a
manifestar-se no continente americano e na Europa, e a atenção
dos seus concidadãos se concentrava em peripécias políticas,
Thoreau via na chegada da Primavera a Concord um acontecimento mais importante do que a eleição presidencial que então se
preparava. A sua obra-prima literária, Walden ou a Vida nos
Bosques (1854), é a narração da sua experiência de vida em plena
natureza, junto a um lago nas proximidades de Concord, sítio
onde viveu solitariamente durante dois anos, tendo como abrigo
uma cabana que construiu com as próprias mãos, observando
paciente e minuciosamente a fauna e a flora deste pequeno
mundo que ele conhecia e compreendia perfeitamente.
Este é, certamente, um aspecto da personagem que permite
considerar Thoreau um autêntico pioneiro em matéria de ecologia, e os defensores e protectores da natureza podem actualmente
invocar o seu exemplo. No entanto, paralelamente à sua luta pelo
44
OS FUNDAMENTOS DO ANARQUISMO
respeito e conservação de um ambiente natural já gravemente
ameaçado nesta época pela falta de cuidado dos homens, combateu também, com coragem e determinação, pela liberdade individual face aos preconceitos e aos excessos do poder do Estado.
Será a faceta subversiva deste homem tranquilo que o tornará
famoso no mundo.
Num espírito libertário, fazia sua uma das divisas favoritas de
Thomas Jefferson (1743-1826), autor da Declaração de Independência, que dizia que o melhor governo é aquele que «menos
governa». Thoreau acrescentava, com uma ponta de humor, que
um governo seria ainda melhor se não governasse de todo.
Acreditava, aliás, que, uma vez suficientemente preparados, os
homens acabarão por adoptar um governo deste género.
Como sinal de protesto contra a guerra do México, recusou
pagar o imposto, o que lhe valeu a prisão. Este gesto pouco cívico
foi considerado chocante pela sua família e até pelos amigos
transcendentalistas. Conta-se que Emerson, ao ir visitá-lo ao
presídio para lhe manifestar a sua desaprovação, disse-lhe: «Henry!
Por que estás aqui?» E Thoreau respondeu: «E tu, Ralph! Por que
não estás aqui?» Contudo, para pôr um fim a esta situação
escandalosa, uma das muito honoráveis tias de Thoreau pagou o
imposto em nome do sobrinho. Libertado imediatamente, mostrou-se furioso por ver assim frustrada uma manifestação pública
que ele queria que fosse o mais retumbante possível, e foi com
espanto que se viu um detido protestar energicamente contra a sua
própria libertação!
Em 1848, um ano após o episódio da prisão, Thoreau deu
uma conferência cujo texto foi depois publicado numa revista
transcendentalista. Título do artigo: «Resistência ao governo civil
em 1849». Quatro anos após a morte do seu autor, o panfleto
recebeu o título com que é hoje conhecido: Do Dever de
Desobediência Civil.
Henry Thoreau não se deixava convencer pelas promessas da
democracia política. Quantitativo, o poder maioritário dá apenas
uma aparência de equidade à fracção minoritária. De facto, uma
45
HISTÓRIA DO ANARQUISMO
autoridade governamental assente na maioria, que se arroga o
direito exclusivo de legislar sobre aquilo que considera o bem ou
o mal, equivale praticamente a dar a proeminência ao mais forte
sobre o mais fraco. Ora, Thoreau pensa que um respeito incondicional e uma confiança cega nas instituições e nas regras criadas
pelas autoridades estabelecidas levam os cidadãos a tornarem-se,
pela sua passividade, cúmplices dos crimes de um Estado (injustiças, guerras, perseguições, etc.). De igual modo, os actos do
Estado devem ser julgados pela consciência dos indivíduos mais
esclarecidos. Em todo o caso, cada qual tem o direito – e até o
dever moral – de desobedecer às ordens consideradas injustas ou
criminosas. Vemos que, com Thoreau, o direito de insubmissão
política é acompanhado pela desobediência militar, que ele reconhece aos objectores de consciência e aos pacifistas radicais.
Diga-se ainda que «o homem de Concord» não se limitou a
travar um combate puramente ideológico. Thoreau participou
activamente nas lutas da sua época a favor da emancipação dos
negros e dos índios. Fez parte de uma rede clandestina de auxílio
aos escravos negros fugitivos que tentavam chegar ao Canadá.
Assumiu a defesa do capitão John Brown, antiesclavagista tenaz
e chefe de um grupo de sectários, condenado à morte e executado
pelo ataque ao arsenal federal de Harper’s Ferry, na Virgínia.
Brown pretendia obter armas destinadas aos escravos negros,
para preparar a insurreição destes nos estados do Sul. No dia da
execução de Brown, Thoreau organizou em Concord uma manifestação em honra do rebelde. Note-se que o próprio Victor Hugo
enviou – sem sucesso – uma carta a pedir o indulto do condenado,
dirigida à imprensa americana, para que não se visse «Washington a matar Espártaco».
O livrinho de Thoreau, que Romain Rolland considera a
«Bíblia do grande individualismo», iria inspirar as acções libertadoras não violentas, baseadas na desobediência e no boicote
generalizados, de Gandhi (1869-1948) e do pastor Martin Luther
King (1929-1968).
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