A Metáfora Opaca – 5º Capitulo – (texto parcial)

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A Metáfora Opaca – 5º Capitulo – (texto parcial)
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A Metáfora Opaca franklin goldgrub
5º capítulo - (texto parcial)
Luz, câmera, metaforização
Em colaboração com Rosa Goldgrub
Os desinformados parentes de nossos pacientes, que se impressionam
apenas com coisas visíveis e tangíveis - preferivelmente por ações tais
como aquelas vistas no cinema...[1]
Relíquia macabra (The Maltese Falcon)
O leit-motif do filme orbita em torno à dicotomia esconder/revelar,
pólos protagonizados pelos personagens Birgit O'Shaughnessy (aliás
Wonderly LeBlanc)[2] e Samuel Spade. A última cena é reservada ao
duelo final, em que a bela aventureira comparece munida de sua melhor
arma, a sedução, para conseguir do detetive o encobrimento do crime.
Como Ulisses diante das sereias, Spade precisará enfrentar seu próprio
desejo para não ceder. A tarefa é muito mais difícil do que trocar murros,
ameaças e ironias com o pistoleiro Wilder, seu patrão Gutman, os policiais
e o promotor. Na declaração de princípios que antecede o epílogo o
detetive afirma estar obrigado a elucidar a morte do sócio, porque seria
bad business não fazê-lo. Contudo, no terreno metafórico, não entregar
Birgit à polícia seria privilegiar esconder em relação a revelar, ou seja,
perder o duelo.
O ansioso canivete de Gutman revela que o falcão roubado, afinal, é
falso. Mas ele não desiste; conclui, após a decepção, que o general
russo deixou à disposição dos ladrões uma mera réplica. Acredita tão
obstinadamente na existência da estátua feita de ouro e pedras preciosas
como Thurnsby, Archer e Jacoby, capitão do La Paloma, acreditaram no
amor de Birgit O'Shaughnessy. Os que se apaixonam por ela perdem a
vida (mesmo antes de morrer), os que se deixam fascinar pelo falcão
perdem a liberdade (mesmo antes da prisão). A pesada estatueta é feita
da mesma matéria que os sonhos, comenta um shakespeariano Spade
ao surpreso Paulhaus.
A relação entre os fascinados pelo falcão ou pelo amor inclui
inevitavelmente a traição (Gutman trai Wilder, a quem considera um filho;
Iva trai o marido e o amante, Birgit O'Shaughnessy a Gutman, Thurnsby e
Archer, Cairo trai a quem puder e convier, Spade trai Archer, Archer trai
Iva). Os dois policiais também divergem quanto ao tratamento que o
detetive merece. Somente entre Spade e Effie a confiança é total. É a ela,
sem qualquer receio, que o detetive entrega o recibo do correio para que
leve a jóia ao apartamento.
O único espaço que escapa ao reino da traição é a relação profissional
entre os sacerdotes da revelação (os sócios e a secretária da agência).
Em O Falcão Maltês esconder é um verbo feminino: Cairo omite e
O'Shaughnessy mente, diz Spade a Gutman (primeiro diálogo no hotel). O
personagem de Cairo é composto por traços estereotipados de
feminilidade (lenço perfumado, preocupação com a roupa): omitir é quase
mentir. Perante os policiais, e negando ter sido agredido por
O'Shaughnessy, Cairo se agarra à justificativa cinicamente inventada por
Spade. A viúva de Archer ergue o véu do luto para beijar
apaixonadamente seu amante. Quando denuncia Spade à polícia, por
ciúme, recorre à máscara do anonimato. Na noite em que Archer é
assassinado ela havia saído mas não está disposta a admiti-lo. Spade,
aliás, não se indigna.
Effie é o oposto de Birgit e Iva; sua relação com Spade é marcada
simultaneamente pela confiança afetuosa e pela ausência de desejo. Do
outro lado (o dos "ladrões"), Gutman também revela certa sinceridade,
diferentemente de Cairo e O'Shaughnessy. Antes de narcotizar o detetive
conta-lhe a verdadeira história com todos os detalhes, inclusive o valor da
estatueta. Quando mente (acusando O'Shaughnessy de ter ficado com
parte do pagamento), Spade descobre facilmente o truque.
Após o encontro com Gutman e Cairo, chez Spade, O'Shaughnessy diz
que está cansada de mentir e de inventar mentiras. Em seu próprio
apartamento o diálogo gira em torno do que ela poderia oferecer pelos
serviços do detetive, já que guarda as informações necessárias e tem
muito menos dinheiro do que Cairo. Segue-se uma cena amorosa.
Compra assim o silêncio de Spade, que preserva cuidadosamente a
identidade de O"Shaugnessy da bisbilhotice policial. O amor substitui a
verdade = "o amor é uma mentira". Spade não é subornável pelo dinheiro
mas tem seu calcanhar de Aquiles em Venusberg. Graças ao affaire com a
mulher de seu sócio ganhará definitivamente a antipatia do tenente, mas
isso não afeta sua própria escala de valores já que o romance não
interfere com seus deveres profissionais.
Diante do promotor Spade retoma o modus operandi habitual. Alega que
a única chance de não ser incriminado depende de identificar os
criminosos por conta própria. Por isso não pode compartilhar suas
informações com a polícia. Seguindo um princípio simetricamente oposto
ao de O'Shaughnessy, que seduz para nada revelar, o detetive se expõe
ao máximo, provocando tanto os caçadores do falcão como os
representantes da lei com a finalidade de descobrir mais.
A primeira cena no apartamento de LeBlanc / O'Shaugnessy parece
mostrar que a 'busca da verdade' tem apenas um grande obstáculo: o
amor. As ofertas de Gutman (dinheiro) e as ameaças da promotoria
(prendê-lo, retirar-lhe a licença) são comparativamente irrelevantes.
Spade confessa a O'Shaughnessy sua admiração: "Você é boa, você é
muito boa". De fato, ela ludibriou Gutman e Cairo em Istambul, enganou
Thurnsby e Archer em São Francisco e conseguiu que o capitão Jacoby
atravessasse o oceano e a cidade com sua preciosa carga mortal. Além
do mais, ilude Effie, o que Iva não conseguiu[3]. É o maior talento entre os
adoradores da ave de rapina, sem dúvida, e portanto um desafio à altura
de Spade, cuja escala de valores culmina no trabalho bem feito. Não
surpreende que ele se apaixone (ou que ambos se apaixonem). Mas ao
mesmo tempo competem, na medida em que, fiéis ao emblema que os
distingue, não podem renunciar, ela ao engodo, ele à respectiva
decifração.
Cairo recriminará a Gutman ter oferecido muito pela estatueta, dando ao
general russo a pista acerca do seu valor. Trata-se de um veredicto de
incompetência. Wonderly também pagou demais à dupla de detetives,
observa Spade. Extorquir-lhe os últimos dólares significa metaforicamente
obrigá-la a revelar o que sabe. "Não acreditamos em você" - diz Spade à
aflita Wonderly, que se desculpa pelas mentiras- "acreditamos em seus
duzentos dólares". Na cena seguinte, munida apenas dos trocados que o
detetive lhe deixara, ela fornece finalmente algumas pistas. E sobretudo
admite ter mentido desde sempre.
Tudo se passa como se o discurso do filme fosse percorrido pela seguinte
metáfora: os ladrões (muito dinheiro) mentem; os policiais (pouco
dinheiro) se enganam (=mentem a si mesmos). Spade (algum dinheiro), é
o único capacitado a buscar a verdade. Inclusive a sua (amor/desejo por
O'Shaughnessy).
Sem a segurança do salário, que obriga os policiais a prender suspeitos
para contentar superiores e acalmar a opinião pública, e sem a ambição
dos ladrões, fascinados pelo valor da estatueta, o detetive particular
alimenta seu bolso com uma pequena parte do que está em jogo. Outra característica central do personagem de Humphrey Bogart é a
imprevisibilidade, comentário que Gutman e O'Shaughnessy fazem
repetidamente. A respectiva tradução poderia ser: os fascinados pelo
dinheiro e pelo amor[4] não podem deixar de surpreender-se com quem
adota outros critérios.
Os policiais e o promotor estão atrás de culpados (a verdade é
secundária, para eles). Os que buscam culpados se contentam com
aparências. (A mesma afirmação vale para os que buscam dinheiro e são
enganados pelo esmalte que cobre a estatueta). A verdade não está nem
na aparência nem em seu disfarce, mas em outro lugar: no desejo dos
que se iludem[5].
Para as autoridades o fato de ser amante de Iva é quase uma prova de
que Spade matou o sócio. Logo depois o cadáver de Thurnsby faz supor
que Spade vingou o sócio. Os policiais se inclinam aos primeiros indícios
sem qualquer crítica e incorrem em contradições primárias. Quanto a
Spade, descobre e entrega a assassina não em tributo à memória de
Archer mas como parte de seu compromisso com a profissão. Em sua
escala de valores não há lugar para emoções; parecem-lhe ridículas tanto
a idéia de matar por ciúme ou vingança como a fascinação pela jóia[6].
Persegue os assassinos sem qualquer indignação, menos por senso de
justiça do que em obediência a um código.
A metáfora ocultamento vs revelação se desdobra em: amor (ilusão)
vs cinismo (lucidez). O detetive diz a Birgit: " Saber do sentimento que
tenho por você já seria motivo suficiente para ir na direção contrária". O
dinheiro, acrescenta Spade, está do lado do amor [7], mas por um
motivo diferente daquele que consta do roteiro. Metaforicamente isso
pode significar: é tão ilusório quanto.
Não sucumbir à tentação significa deixar em segundo plano o amor (a
mulher), o dinheiro (a transgressão) e a segurança (as convenções, o
dever cumprido). A esse preço a verdade será elucidada. Não que o
detetive seja um puritano. A mentira também tem seu valor, desde que
usada a serviço do objetivo supremo. Perante os policiais Spade acusa O'Shaughnessy de ter tentado suborná-lo com os mil dólares que ele
mesmo havia extraído da algibeira de Gutman. Que diferença faz? Ela de
fato havia pago duzentos dólares na primeira entrevista e o próprio Spade
extorquiu-lhe mais um pouco. Mas a voracidade pelas notas é apenas
uma máscara que esconde seu verdadeiro móvel: descobrir. Tudo se
passa como se 'algum' dinheiro estivesse para 'muita' verdade (Spade)
como 'muito dinheiro' e 'muito desejo' estariam para 'alguma verdade' (a
estatueta falsa, a atração entre Spade e O'Shaughnessy) e 'pouco
dinheiro' (a polícia) para "pouca verdade" (prender e incriminar suspeitos). Spade define sua situação sem hesitação: deve denunciar a autora
do crime ou aceitar tornar-se seu refém. Para permanecer amada e
admirada ela terá que traí-lo, como fez anteriormente. Para manter a autoestima ele terá que entregá-la. Embora bem mais próximos entre si do
que em relação a dinheiro e convenções sociais ( = segurança), amor e
verdade revelam-se igualmente inconciliáveis. O amor é um risco, a busca
da verdade é um risco ainda maior. Quanto maior o risco maior o valor.
Seria essa a região semântica da metáfora opaca? Provavelmente.
O amor seria a suprema ilusão, logo o rival mais forte da "busca da
verdade". O enunciado correspondente à metáfora opaca poderia ser
formulado assim: o desejo propriamente dito (dinheiro, amor, cumprimento
do dever) e o desejo de saber sobre o desejo são incompatíveis.
Conseqüentemente o preço da opção feita por Spade é a solidão, e
não somente porque perde O'Shaughnessy. O detetive tampouco
pertence a qualquer grupo - nem o dos transgressores, nem o da lei, nem
o dos homens fascinados pela mulher. Não tem sequer um sócio (Archer
morreu por colocar em primeiro plano um encontro amoroso quando
estava trabalhando). Resta-lhe Effie. Ou seja, a profissão.
(O filme não deixa de aludir a certas características do processo
psicanalítico.[8] A principal semelhança dá-se no terreno das vicissitudes
transferenciais mas uma referência à nosografia também se faz presente.
O roteiro dá margem a pensar que a adoração do falcão metaforiza a
perversão tanto quanto a repressão policial representa a neurose e a
atitude de Spade a sublimação. Mas tais comentários - meramente
circunstanciais - nada têm a ver com o arcabouço metafórico do filme).
Numa leitura lacaniana provavelmente a estatueta seria vista como
representação do falo, ilusão de completude que magnetiza o desejo e
promove sonhos, perdas e sacrifícios de magnitude proporcional à força
da crença. O roteiro é sugestivo a esse respeito mas novamente é preciso
assinalar que se trata apenas de uma analogia, desta vez entre o
conteúdo manifesto do filme e um conceito teórico. Diferentemente, o
método interpretativo atém-se à busca do sentido imanente ao discurso,
recusando-se a ir além.
Os imperdoáveis (Unforgiven)
Tema central (ou primeira metáfora transparente): a aliança entre a mulher
e o (ex-) marginal contra a ordem estabelecida.
William Munny e Ned Logan, ex-pistoleiros, já disseram adeus às armas,
penduradas na parede de casas rudimentares feitas de pau a pique.
Munny mal consegue subir em seu cavalo - uma égua branca. No rancho
onde cria porcos, o túmulo da esposa, à sombra da única árvore, tem
ares de santuário. Há três anos viúvo, ele não voltou a casar-se e
permanece fiel à memória de Cláudia. Já em Big Whiskey todas as
mulheres são prostitutas. Uma delas é cortada a faca pelo seu cliente, um
jovem vaqueiro, inconformado com a brincadeira sobre seu pequeno
pênis. O episódio culmina com o esfaqueador e seu amigo, que o auxiliou
segurando a moça, amarrados diante do xerife, Little Bill, e de Skinny, o
dono do bar e bordel (mas chamado Bilhar). Skinny reclama uma
compensação (quem vai querer transar com uma prostituta desfigurada?)
para recuperar o investimento.
A pena inicial (chicotadas) é transformada em indenização. Os
agressores terão que pagar alguns potros pelo prejuízo infligido a Skinny.
As prostitutas não aceitam o acordo e decidem contratar pistoleiros para
matar os cowboys. Acontece que em Big Whiskey só o xerife e seus
auxiliares podem andar armados. Quando ele sabe que as moças
prometeram uma recompensa para vingar-se prepara-se para receber os
inevitáveis candidatos.
O embate dá-se então entre mulheres que não aceitam o estatuto
de mercadoria e o establishment de Big Whiskey (Skinny e Little Bill). Os
primeiros candidatos aos mil dólares - foras-da-lei aposentados do crime
- desafiam o tosco cartaz que adverte os forasteiros a não portarem
armas. São capturados e espancados por Little Bill, secundado pelos
colts e winchesters de seus auxiliares. Os pontapés do xerife atingem o
rosto dos malfeitores/justiceiros e deixam ferimentos que evocam as
cicatrizes do esfaqueamento[9]. Na esteira do leit-motif emerge outra
metáfora transparente: as mulheres são os marginais da sociedade.
(Derivação: as mulheres podem ser marcadas, como o gado). Longe da cidade, nos ranchos de Munny e Logan, Claudia e Sally
são objeto de veneração e respeito. Munny, ex-alcoólatra, atribui sua
recuperação a Cláudia. Sally dirige um olhar de reprovação a Logan
quando este decide acompanhar a expedição. Ele sente sua ausência nos
acampamentos provisórios onde a pequena troupe pernoita. Finalmente,
incapaz de apertar o gatilho para ultimar o cúmplice do esfaqueador,
desiste da terceira parte da recompensa e empreende o regresso.
Mas seu amor por Sally não o impedirá de pedir um adiantamento às
garotas do bordel, tal como o jovem aprendiz (the "kid") que aliciou os
veteranos. Munny mantém-se fiel à memória de Claudia; decidiu participar
da empreitada pelos filhos. O negro, o jovem quase cego mas ainda assim
candidato a pistoleiro de aluguel, o ex-alcoólatra e a índia (Sally) perfazem
um verdadeiro quarteto de outsiders.
Quando chegam ao bilhar os dois primeiros sobem para o andar
das moças enquanto Munny é interrogado, desarmado e surrado por
Little Bill, escoltado pelos auxiliares.
O mesmo havia acontecido com Bob, um inglês contratado pelas
ferrovias para balear clandestinos (particularizados como chineses por
Little Bill). Bob tem opiniões monarquistas e venera sua rainha. Atribui o
assassinato de Lincoln ao pouco respeito merecido por um presidente
eleito. Veneração à rainha e proteção das prostitutas = valorização da
mulher. Portanto, enfrentamento com o establishment de Big Whiskey.
Little Bill é um mau carpinteiro, diz um de seus auxiliares aos
colegas, longe do chefe. A casa que está construindo não tem um ângulo
reto. (Skinny o encontra no telhado praguejando por ter acertado o
próprio dedo em vez do prego.) Metáfora do contraste entre a capacidade
em manter a ordem estabelecida e o fracasso em construir.
Postos em fuga pelo xerife, os três não desistem. Acabam por encontrar,
marcando gado, o cowboy que segurou a moça. Ele é morto por Munny,
quase misericordiamente, com dois tiros de espingarda. Nesse momento,
Logan, que não havia conseguido apertar o gatilho, abandona o grupo e
abre mão de sua quota. Munny pede-lhe que vele pelos filhos e reafirma
que lhe levará a terceira parte da recompensa.
A empreitada prossegue; Munny e o jovem aprendiz seguem a pista do
primeiro cowboy, a quem Little Bill havia recomendado sair de circulação
por algum tempo. Descobrem seu refúgio e Munny dá a Kid a
oportunidade de matá-lo. Os disparos atingem o esfaqueador na privada.
Ao encontrar a mensageira do grupo que veio trazer-lhes o dinheiro
Munny e Kid ficam sabendo que Logan, em seu caminho de volta, foi
perseguido e capturado por uma milícia de Big Whiskey. Little Bill o
interrogou, torturou e matou. O garoto desiste da vida de pistoleiro e da
sua quota. Munny, porém, recomenda-lhe que use o dinheiro na compra
de óculos e tenha cuidado para não ser enforcado; pede-lhe também o
revólver. Pela primeira vez em muito tempo vira uma garrafa de whisky.
Anteriormente, numa conversa em torno da fogueira, dissera a Kid que
não se lembrava de nenhuma façanha porque sempre estava embriagado.
A segunda chegada à cidade também se dá embaixo de muita chuva.
"Limpeza" prestes a acontecer?[10] O cadáver de Logan, num caixão sem
tampa encostado quase verticalmente à parede do bilhar, ostenta uma
legenda de advertência. Munny entra no bar quando Little Bill anuncia que
vai persegui-lo. Executa Skinny a sangue frio com um tiro de espingarda
"por ter usado Logan na decoração do estabelecimento". Na seqüência
mata Little Bill e os demais agentes da lei. Sai da cidade recomendando
um enterro decente para Logan e muito cuidado no tratamento com as
mulheres, cujo olhar admirativo o acompanha.
De todos os homens envolvidos nos entreveros Munny é o mais próximo à
mulher. Logan e Kid também condenam os esfaqueadores mas a atitude
de Munny inclui carinho despido de interesse sexual. Trata
respeitosamente a moça cujo rosto está coberto por cicatrizes. É com
delicadeza que declina do seu convite, corrigindo seu comentário anterior
sobre a semelhança entre ambos ("você é muito mais bonita"). Munny tem
uma filha e um filho- as únicas crianças da história.
A metáfora opaca reside na idéia de que a força do homem não jaz no
sexo nem na habilidade com as armas, aliás vinculados no relato de Little
Bill sobre um pistoleiro apelidado "Two Guns", mas no valor que concede
ao feminino. É o que torna Munny invulnerável, ao contrário de Little Bill,
igualmente corajoso mas maculado pelo tratamento discriminatório que
dispensa às prostitutas. Logan, que não tem filhos, cujo amor por Sally
não o afastou das outras mulheres e cujo ódio aos agressores não foi
suficiente para vingá-las, será morto. Kid divertiu-se com as prostitutas e
matou o esfaqueador: sobrevive, embora tenha que cuidar-se (sua quase
cegueira talvez metaforize a idealização da figura do pistoleiro). Bob, o
inglês, fiel súdito da rainha[11], não matou os cowboys mas tampouco
tocou as mulheres. Sobrevive, embora humilhado. O dono do bordel, o
xerife, os cowboys, os agentes da lei, enfim, todos os que de uma forma
ou de outra estão associados à opressão feminina, são fuzilados por
Munny no acerto de contas. A última cena mostra Munny junto ao túmulo
de Cláudia.
O próprio Munny, que cria os filhos e cuida dos animais, desempenha
funções ligadas à vida. Talvez seja essa a representação do feminino no
filme, desde que a mulher não esteja subordinada ao poder masculino
(prostituição). Logo, proximidade ao feminino = proximidade à vida. Munny
é o homem que representa por excelência tanto a característica
apresentada como tipicamente masculina - violência- como seu oposto:
defesa da vida (mulher, filhos). A tarefa que lhe coube só termina quando
os responsáveis diretos pela agressão às mulheres são eliminados. A
metáfora inclui o seguinte enunciado: quando em grupo, a competição
pelo poder (desempenho sexual e coragem) leva os homens a
menosprezarem a mulher. Isso é imperdoável. Em situação
simetricamente oposta se encontram aqueles que se aliam ao feminino.
Munny é o representante extremo dessa posição; seus crimes passados
são expiados pela punição dos opressores.
Fora da cidade, e na relação a dois, a mulher recupera seu valor. Embora
nenhuma mulher (além das moças do bilhar) apareça na cidade (ausência
certamente metafórica), Munny ameaça seus habitantes - caso voltem a
desrespeitar as moças - com a morte de suas esposas. Para ele trata-se
da pena máxima que um homem pode sofrer.
O campo semântico da metáfora opaca refere ainda que o valor
concedido ao feminino é diretamente proporcional à sua falta (viuvez).
Munny, representante por excelência da morte, é também o mais apto a reconhecer a imprescindibilidade da mulher (vida). A idéia de expiar as
culpas passadas (o pistoleiro atribui sua dificuldade com os animais ao
mau trato que lhes dera no passado) também está presente no
desenlace. Munny recorre ao whisky e às armas uma última vez para
homenagear Cláudia, que o salvou da marginalidade, da bebida e da
morte, resgatando as prostitutas de Big Whiskey de sua condição de
párias. Só um homem com suas características seria capaz de vencer o
xerife, ou seja, a ordem estabelecida, que reserva à mulher o segundo
andar do saloon.
Motivo pelo qual, e ao contrário de seus predecessores (Bob e Little Bill),
Munny dispensa os serviços do biógrafo dedicado a registrar os feitos das
celebridades do gatilho (= exaltação do masculino segundo o modelo
convencional).
O silêncio dos inocentes (The silence of the lambs)
Trata-se de um filme que atraiu como poucos a atenção do mundo psi,
em virtude da temática e dos personagens. Nos comentários e artigos
dedicados ao thriller o psiquiatra canibal e o assassino serial que esfolava
suas vítimas foram submetidos a diagnósticos em que abundavam
menções a conceitos como fase oral, narcisismo, sadismo, castração,
psicopatia, projeção, identificação ao agressor e outros.
Na abordagem discursiva (associação livre, atenção flutuante), a
indagação sobre a patologia dos personagens é substituída pela busca do
sentido subjacente à narrativa. A primeira metáfora discernível se presta à
seguinte formulação: "Só uma mulher pode salvar as mulheres da ameaça
masculina. Para tanto ela precisará aliar-se a um homem que odeia os
homens. A maior ameaça à mulher provem menos do desejo sexual
masculino que do fascínio que ela exerce sobre ele, a ponto de fazer com
que, mais do que "possui-la", o homem deseje tornar-se mulher".
Em meio a um verdadeiro exército de policiais a detetive Clarice Starling
está prestes a formar-se quando seu superior hierárquico lhe pede, a título
de estágio, que entreviste um assassino serial cuja sagacidade poderia
ajudar na identificação de "Buffalo Bill". Dessa maneira ela conhece o
temível Hannibal Lecter, cuja notoriedade ultrapassa os limites da
masmorra dirigida por Chilton, seu desafeto. O psiquiatra que matava e
devorava suas vítimas foi encerrado numa cela de vidro que o isola
totalmente do mundo. Privado de todo e qualquer contato humano, ele
passa seu tempo desenhando paisagens de memória. Para acelerar a
colaboração (pois o preso fornece suas contribuições a conta-gotas),
Clarice Starling promete transferi-lo de prisão, oferecendo-lhe vantagens
como direito a passeios diários e até mesmo férias numa ilha. A proposta
não passa de um estratagema da detetive mas Chilton, inimigo do preso e
também de Starling, grava secretamente as entrevistas e
[1] S. Freud, Conferências introdutórias à Psicanálise (1916/17).
Introdução.
[2] A dupla identidade da personagem dá o tom apropriado ao seu papel.
Aliás, os signos "Wonderly" e "LeBlanc" (maravilha, pureza), já indicam a
aura de sedução que a envolve. A aventureira é quase sempre designada
pelo sobrenome (O'Shaughnessy). Equiparação aos homens? Em
contraste, a viúva Archer é referida pelo nome (Iva) e a secretária pelo
apelido (Effie).
[3] Effie, inquirida por Spade, manifesta uma opinião bastante favorável
acerca de Birgit.
[4] No caso de O'Shaughnessy o desejo de ser amada parece pesar tanto
quanto o desejo pelo dinheiro; talvez o segundo se explique pelo primeiro.
[5] O detetive não perde a oportunidade de zombar do tenente,
profundamente decepcionado ao saber que O'Shaughnessy foi quem
matou Archer. Num dos diálogos iniciais ele havia demonstrado
claramente sua expectativa de que o criminoso fosse Spade.
[6] Cf. primeiro diálogo com Iva Archer. segundo diálogo com os políciais e
comentário feito a Effie, quando esta se emociona com a história do
falcão.
[7] "Se a estatueta fosse verda­deira ainda assim você me entregaria à
polícia?", pergunta Birgit.
[8] Cf. "Marlowe como modelo", primeiro capítulo de 'Freud, Marlowe &
Cia'.
[9] Após a surra Munny comenta sua semelhança com a mulher que foi
cortada.
[10] A primeira chuva foi seguida pela surra (=expiação?), mas também
pela execução dos vaqueiros. A segunda, pela execução do xerife e seus
homens.
[11] (= A submissão à mulher acovarda o homem?)
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