Os Sons e os Silêncios

Transcrição

Os Sons e os Silêncios
José Ribeiro Ferreira
Os Sons e os Silêncios
A Memória, a Culpa, a Valsa
José Ribeiro Ferreira
Os Sons e os Silêncios
(Viagem a Berlim, Viena e Salzburgo
José Ribeiro Ferreira
OS SONS E OS SILÊNCIOS
A MEMÓRIA, A CULPA, A VALSA
(Viagem a Berlim, Viena e Salzburgo)
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
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José Ribeiro Ferreira
JOSÉ RIBEI RO FERREIRA
OS SONS E OS SILÊNCIOS
A MEMÓRIA, A CULPA, A VALSA
(Viagem a Berlim, Viena e Salzburgo)
COIMBRA – 2005
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
FICHA TÉCNICA
Título: Os Sons e os Silêncios: A Memória, a
Culpa, a Valsa (Viagem a Berlim, Viena e
Salzburgo)
Autor: José Ribeiro Ferreira
Arranjo gráfico: José Ribeiro Ferreira
Fotografias: José Ribeiro Ferreira e Abílio
Queirós)
Edição: do autor. Em agosto de 2005.
Tiragem: 35 exemplares (para o grupo e
amigos)
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José Ribeiro Ferreira
Este relato – descosido a cada
passo, monótono aqui e ali, as
mais das vezes nunca seguro – foi
terminado em Fátima no dia 20 de
agosto, escutando os sinos do
Santuário
e
o
bruaá
multilinguístico dos peregrinos
que enchiam ruas, lojas, hotéis e
parques.
Vai dedicado a todos os que,
como o relator, gostam de
estudoviajar e com amizade
conviver. Também aos que não
desdenham ler os seus desluzidos
diários de viagem.
Corre em especial ao encontro da
Maria de Deus que, neste dia 20
de Agosto, faz anos e trata da
saúde em S. Pedro do Sul. Nesta
viagem não pôde ser a alegria que
sempre
dispensa,
por
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
circunstâncias
adversas
não
consentirem
que
nos
acompanhasse a Berlim, Viena e
Salzburgo.
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Claridades e sombras na hora da partida
A partida estava marcada para as oito e um
quarto do dia 18 de Março de 2005. E o dia, embora
acordasse frio, apresentou-se ora sorridente, com o
sol a despontar a espaços prometedor e amigo, ora
orvalhado e morrinhoso, deixando-nos a roupa e o
cabelo às camarinhas.
Ainda os ponteiros dos relógios não atingiam as
8h15 e já todos tinham comparecido no local
combinado e habitual, a Avenida Afonso Henriques,
junto ao José Falcão. A alegria de pessoas que se
reencontram, de sorrisos que se manifestam, se
trocam e se abrem de satisfação. Tanto mais que de
novo voltavam e tínhamos no nosso convívio amigos
que connosco costumam estudoviajar: a Zé Alves e a
Maria Miguéns, cuja ausência no ano anterior, na
viagem ao norte da Grécia, sentíramos. Saudámos
também as caras novas que, pela primeira vez,
integravam “Os Estudiosos”: o casal Patrício, a
Elisabete Parra e a Maria Manuel Almeida – ou
simplesmente Mané, como lhe chamam os amigos –
que, com facilidade, se ‘enturmaram’, como diriam
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José Ribeiro Ferreira
os nossos irmãos do outro lado do Atlântico. Alguma
tristeza velada se notava, no entanto: pairava na brisa
que perpassava, envolvia a nossa sensação incómoda
de ausência. Parecia que os olhares, ansiosos,
procuravam, como quem espera mais alguém, outros
rostos que são presença habitual, que agora não
chegam e nos fazem falta: a Júlia, sempre amável e
sensível, embora por vezes pareça alheada e a pairar
por outros reinos. O casal Carlos Seabra e a Bita
Penha, ele sempre urbano, contido, cavalheiro e com
uma história à flor da língua; ela faladora e
exuberante. A Helena Gouveia Monteiro, discreta
sempre, mas interessada em tudo e nunca alheia. O
Jorge Saraiva, que tudo tentou para continuar
‘Estudioso’ este ano, mas logo o neto, ou outros por
ele, havia de marcar o baptismo para essa altura, sem
possibilidade de alterar a data. O casal Urbano, a
Luísa e o Albino, nosso fotógrafo e realizador oficial
e sua inseparável assessora, por nós há muito
diplomados, nossos companheiros habituais, mas
impedidos este ano de o fazerem por circunstâncias
várias. Rostos cuja falta e ausência nos oprime, um
tanto, o peito e a sensibilidade e nos deixa a
incómoda sensação de incompletude.
Mas o dia saudava-nos, a viagem esperava-nos
e prometia. Por isso, bem dispostos, com o sol a
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
sorrir no verde do Jardim da Sereia e nas palmeiras
da Avenida Sá da Bandeira, embora com o peso
daquela ausência no peito e no coração, deixámos
Coimbra no momento exacto em que a velha torre da
Universidade batia o quarto de hora. Cerca de duas
horas e meia até Lisboa, com paragem na Estação de
Serviço de Santarém. Aí não tivemos o habitual, e
sempre gostoso, prazer de encontrar, esta vez, o
sorrisinho pequenino, redondinho, sempre bem
disposto e sempre atencioso, dos nossos amigos
Barata, a quem uma arreliadora doença de última
hora retinha em casa. E o peso da ausência
avolumou-se. E o autocarro, silencioso e pensativo,
retomou o caminho até ao aeroporto, onde nos
esperava a alegria do reencontro com a Berta, a nossa
imprescindível e sempre eficiente guia, da Lídia
Orestes e do José Filipe. Se um novo elemento se
associou ao grupo, a Maximiana, o rol das ausências
também cresceu: a da Lídia Pimentel que uma
intervenção cirúrgica recente obrigava a recolhimento
caseiro por uns dias e impedia voos de migração
transumante.
Ultrapassada a azáfama e ansiedade do checkin, do despachar das malas, do pedido de bons
lugares – «Janela, se for possível» e «Por favor, não
sobre a asa» –, já libertos de boa parte da bagagem,
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José Ribeiro Ferreira
esperámos que chegasse a hora da partida, lenta,
demorada, com atraso.
Por fim, o avião da Lufthanza fez-se à pista,
levanta voo e sobrevoa o casario de Lisboa, não sem
um calafrio ou incomodativa ansiedade a percorrer a
espinha de alto a baixo, sentida por muitos, mas de
imediato superada pela excitação que olhava curiosa
das janelas e reconhecia casas, monumentos, locais,
estradas. Em breve essa excitação inicial foi
esmorecendo até que o silêncio modorrento se
instalou, nem sequer quebrado de todo pela
distribuição de parca refeição.
Só a escala em Frankfurt e a mudança de avião,
com longa e zaguezaguiante caminhada pelos
terminais do aeroporto, trouxe de novo o
açodamento, a excitação, uma certa ansiedade tensa.
Novo embarque, novo levantar voo, novo espiar o
casario da cidade pelas janelas e mais uma vez o
morno silêncio elucidativo a instalar-se, poderoso,
inelutável.
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
A memória e a culpa
Na letargia instalada no corpo lasso e
adormecido dos Estudiosos, que era meio
inconsciência, meio lucidez, Berlim bailava entre
imagens, ora sombrias, ora luminosas, que se
aproximavam, e logo se afastavam com a mesma
fugacidade com que tinham surgido. A consciência
das cidades é densa e funda, como o inconsciente
humano que se peja e sedimenta de culpas e
remorsos. As loucuras de Hitler e o seu Nacional
Socialismo, o genocídio dos Judeus, os horrores do
III Reich, as feridas da guerra, a cidade dividida em
duas pelo muro…
Embalado e absorto nestes pensamentos, que
de mim faziam campo aberto, Berlim apareceu no
horizonte, caíam já as sombras da noite: cidade
longa, ampla, estendida, luminosa. Orvalhava-a,
porém, uma chuva miúda e incómoda que reflectia
revérberos na pista.
Recolha das bagagens, procura do guia,
instalação no autocarro. Depois, já com a noite de
todo cerrada, o olhar atento, o perscrutar rápido, mas
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José Ribeiro Ferreira
interessado, de ruas e edifícios por onde passávamos,
na tentativa de lobrigarmos o Hotel Berlim, ao
dobrar uma esquina da cidade. Por fim, na Praça
Luetzow, ou Luetzowplatz, a ocupar toda uma ala, lá
estava ele, na sua ampla imensidão, buliçoso, mexido
e nunca silencioso, à nossa espera, pronto a acolhernos para descansarmos da espera, da viagem, da
fadiga das horas, os ossos e o corpo mais moídos que
picado.
Comido o jantar, já as nove da noite tinham
passado no girar dos ponteiros, o frio intenso – com
temperaturas que chegavam aos quatro, cinco ou seis
graus negativos – e a chuva, que continuava a cair
esparsa, demoviam o projecto e a vontade de alguns
em saírem numa pequena volta de reconhecimento
pela cidade. Melhor continuar no recolhimento do
hotel e entregar-nos aos lençóis e braços de Morfeu,
quentes e retemperadores. Bem a propósito, que o
dia 19 prometia emoções fortes de reencontro com
um passado tenso de máculas e de mazelas, denso de
arte e de beleza.
E o dia, apesar de frio, acordou prazenteiro,
com o sol a aquecer-nos por entre esparsas nuvens
que por vezes sombreavam um pouco mais, talvez a
sublinhar o negrume da história recente de alguns
pontos por onde passávamos. Tanta sanha contra um
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
povo! E fazer de uma parte da cidade uma prisão,
alegando que a liberdade e felicidade ali moravam!
As cruzes negras lá estão, por centenas, a assinalar
simbolicamente os que encontraram a morte, na
tentativa desesperada de abandonarem esse alegado
paraíso de liberdade e felicidade.
São bem conhecidos de todos os episódios mais
salientes da implantação do nazismo por Hitler e da
formação e queda do III Reich, com a vitória dos
Aliados, divisão da cidade em quatro partes ou
sectores, a que se segue depois a futura criação,
dolorosa e traumatizante, das duas Alemanhas: a
caminhada demagógica de Adolfo Hitler de
desconhecido cidadão vienense até chefe todo
poderoso do III Reich, em janeiro de 1933; a sua
sanha irracional contra os Judeus, aos quais procura
exterminar de forma implacável, cruel, impiedosa; a
anexação metódica, organizada dos países europeus,
uns após outros; a mortífera II Guerra Mundial, de
1939 a 1945, dolorosa, destruidora económica e
psiquicamente; a derrota da Alemanha, a cidade de
Berlim reduzida a escombros e ocupada pelas tropas
soviéticas em 2 de maio de 1945; a rendição
incondicional, assinada em 8 do mesmo mês e ano, e
subsequente divisão de Berlim em quatro sectores
confiados aos quatro aliados vencedores, Estados
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Unidos, Inglaterra, França e União Soviética; as
divergências graves e insuperáveis entre os Aliados,
os três primeiros, por um lado, e a Rússia, por outro,
que levaram à criação das duas Alemanhas, a
República Federal Alemã – com proclamação em 23
de maio de 1949 –, que agrupava as três partes que
haviam ficado sob administração das três potências
ocidentais, e a República Democrática Alemã que,
com proclamação em 7 de outubro do mesmo ano e
com capital em Berlim Leste, era constituída pela
parte administrada pela quarta potência; a
satelização política, social e económica da RDA pela
União Soviética, de quem continuou próxima; o
regime fechado e repressivo instaurado que leva à
construção, a partir de 1961, pelas autoridades de
Leste, do conhecido Muro de Berlim – o chamado
‘Muro da vergonha’ –, na tentativa de impedir a todo
o custo a fuga dos habitantes para a parte ocidental.
E assim, durante vinte e oito anos, a cidade se viu
dividida em duas. Quantos não morreram quando,
ultrapassado o muro, tentavam atravessar a clareira
de cerca de cinquenta metros que o separava das
casas de Berlim Ocidental.
O único ponto de passagem entre Berlim Leste
e Berlim Oeste encontrava-se no cruzamento da
Friedrichstrasse com a Zimmerstrasse, o bem
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
conhecido e tristemente célebre Checkpoint Charlie,
imortalizado em filmes de espionagem. As cruzes
negras de um lado e outro da rua continuam a
recordar os que morreram, ao tentarem passar-se
para Berlim Ocidental, e a assinalar o alto custo que
tantas vezes se paga pelo desejo de liberdade.
Por fim, em 1989, essa política de oclusão e
segregação acaba, com a decisão histórica da RDA,
de 9 de novembro, em reabrir as fronteiras entre as
duas partes da cidade, encerrando uma das épocas
mais sombrias da história de Berlim e da Alemanha.
Quem não desdoba, no fio da memória, as
impressionantes imagens da queda do muro que
correram mundo e mostraram bem o afã, e raiva
mesmo, com que os habitantes da Alemanha de
Leste o derrubaram, pondo assim termo ao ‘paraíso’
em que tentaram enclausurá-los. Hoje, a recordar
esses ominosos tempos de separação e terror,
permanecem a Haus am Checkpoint Charlie e os
restos de muro que sobreviveram ao afã destruidor
de 9 de novembro de 1989, entre os quais os mil e
trezentos metros ao longo do Spree que, pintados
por artistas de todo o mundo, se transformou na
chamada e já célebre East Side Gallery.
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José Ribeiro Ferreira
Pinturas no Muro de Berlim (Fot. Abílio Queirós)
Sancionada a reunificação das duas Alemanhas
em 31 de agosto de 1990, Berlim é declarada capital
em 20 de junho do ano seguinte e lança-se num
frenético,
afanoso,
metódico
processo
de
transformação, de modo a cauterizar mazelas, a
eliminar diferenças, a disfarçar vestígios da divisão, a
aproximar a parte leste da oeste, para que o fosso
desapareça e tudo adquira nível idêntico. Os edifícios
antigos, cinzentos e iguais são arranjados e pintados
de novo; constroem-se novos, a substituir outros em
precárias condições ou em locais vazios como a faixa
ao longo do muro de separação. Oferecem bons
exemplos as zonas de Kulturforum e de Potsdamer
Platz. A primeira, que é paradigmática, confina com
a segunda dessas duas partes da cidade,
imediatamente a oeste, e marca significativamente a
personalidade urbana com edifícios arrojados.
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Edifício Philharmonie (Fot. Abílio Queirós)
Sobressaem a Philharmonie – sede da bem
conhecida Berliner Philharmoniker –, construída
entre 1960 e 1963 com base num projecto de
Scharoun que joga com linhas assimétricas, tem um
tecto em carpa, apresenta uma estrutura interior
pentagonal e oferece uma espantosa acústica.
Não menos emblemático é o edifício que se
ergue à esquerda, a Kammermusiksaal, obra
concebida por Wisniewski e construída entre 1984 e
1987 para concertos de música de câmara e para sede
da chamada Kleine Philharmonie. Nesse complexo
encontra-se ainda a construção em que está instalado
o Musikinstrumenten-Museum que expõe centenas
de instrumentos musicais, com critérios didácticos,
que permitem perfazer a história da ciência musical a
partir do séc. XVI. A região de Potsdamer Platz ou
Praça de Potsdam caracteriza-se pelos seus edifícios
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modernos e ousados, criados por arquitectos, vindos
de diversas partes do mundo. Construções
volumosas, elevadas, mas esteticamente belas e bem
conseguidas, formam um todo harmónico: o Edifício
Mercedes, o Sony Center, a Daimler City, as
Arkaden. Novos e diversificados volumes e formas
que tornam aquele ponto da cidade uma verdadeira
escola experimental de arquitectura; ou, dito de outra
forma, o maior laboratório de arquitectura ao ar
livre.
Nos anos Vinte e Trinta, a Potsdamer era uma
Praça cheia de vida, de comércio, de animação
cultural e social, com os seus cafés, restaurantes e
hotéis de luxo frequentados pelas mais elevadas
personalidades do mundo artístico, político e dos
negócios. Célebre também por motivos bem
sombrios e tristes: nessa Praça estava sediada uma
das instituições mais ferozes e cruéis do nazismo, o
Tribunal do Povo ou Volksgerichtshof, nascido por
vontade de Hitler; nessa mesma zona construiu
Adolfo Hitler o seu búnker, o Führerbunker, onde se
suicidou em 1945, pondo fim à ditadura nazista e
confessando-se derrotado na política de anexações e
de guerra que havia encetado. Essa Praça sofreu
intensos bombardeamentos na fase final da guerra de
39-45 que a devastaram por completo e apagaram
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
todos os traços da glória passada; continuou depois a
sofrer os efeitos de ser posição central entre o sector
ocidental e oriental de Berlim; corou durante anos
com o ultraje que lhe fizeram, ao construírem um
muro a separar as duas partes da cidade.
Daí que, reunificada a Alemanha, de imediato a
Potsdamer Platz foi a primeira das zonas e ser
incluída entre as que deviam ser saneadas e
requalificadas, com uma reconstrução quase do zero.
Dado o custo excessivo do empreendimento
resolveram as autoridades – não sem discussões,
oposições e críticas azedas – vender lotes de terreno a
investidores privados e, com os fundos dessa forma
obtidos, lançaram um concurso para a reconstrução
da restante parte, ganho por dois arquitectos de
Munique, Hilmer e Stattler, cujo projecto foi
considerado tradicionalista e pouco ousado pelos
restantes investidores. Daí que estes – entre os quais
se encontravam a Daimler-Chrysler, a Sony, a ABB, a
Mercedes, a Hertie, a Haus Vaterland AG –
resolveram entregar a outros arquitectos a
urbanização dos lotes que tinham adquirido. Foi
assim que a nova Potsdamer Platz ganhou forma e
características próprias, graças aos arquitectos
Richard Rogers, inglês – o que mais a marcou –,
Rafael Moneo, Arata Isozaki, Helmut Jahn, Giorgio
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José Ribeiro Ferreira
Grassi, Renzo Piano, que conceberam edifícios
marcantes pela ousadia ou desenharam mesmo
bairros inteiros: é o caso da Daimler City, um bairro
destinado a actividades comerciais e a residências de
luxo, em que se distingue o conhecido Grand-Hyatt
Berlin de Rafael Moneo, as Arkaden de Potsdamer
Platz e o Musical Theater de Renzo Piano; a não
menos vanguardista área Sony com risco de Helmut
Jahn, toda em vidro e com uma praça coberta por
uma tela que subtende a parte do Hotel Esplanade
que sobreviveu aos bombardeamentos da guerra – a
célebre sala do Imperador Guilherme II.
Saídos do hotel cerca das 9h00, subimos a
Klingelhöfer em direcção à Praça da Vitória ou a
Siegessäule (1873), uma artística e delicada coluna
que, na sua imponência (69 metros de altura), se
ergue na Grosser Stern – para aí transferida em 1939
da Praça da República, onde anteriormente se
encontrava. É encimada por uma Vitória alada –
tema que também aparece nos relevos que adornam
a sua base, em que assenta, sustida por colunas – e
contém no interior desse pedestal um mosaico que
representa a fundação do império alemão. Antes de a
atingir rodámos para a Tiergartenstrasse, apreciámos
o magnífico parque Tiergarten, ainda em plena
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
hibernação, mas onde se distinguiam, aqui e além,
dispersos entre as árvores despidas, estátuas e
monumentos vários: Goethe, Mozart, Haidn,
Beethoven, Wagner, Bismarck, Frederico Guilherme
III, rainha Maria Luísa. Não deixámos de notar os
belos e diferenciados edifícios de algumas
embaixadas. Lançámos um lance de olhos para o
complexo monumental do Kulturforum, concebido
pelo arquitecto Hans Scharoun: de longe algumas
estruturas, de mais perto outras, por nós foram
passando a Casa da Philharmonie, a Statsbibliothek,
a Kunstbibliothek; a Neue Nationalgalerie que
guarda obras de pintura, escultura e gráfica
contemporânea; o Kupferstichkabinett (1994) e
Gemäldegalerie (1998), onde estão expostas obras de
grandes pintores, do séc. XIII ao XVIII, como Fra
Angélico, Giotto, Dürer, Boticelli, J. Bosch, Cranach,
Bruegel, Van Eyck, Ticiano, Rafael, Memling,
Veronese, Rubens, Mantegna, El Greco, Rembrant,
Murillo, Zurbarán, Goya, Poussin, Watteau, Van
Gogh, Picasso.
Depois virámos para a rua 17 de Junho,
avaliámos a forma em arco e concha da Casa de
Cultura do Mundo ou Kongresshalle que, projectada
por Hugh A. Stubbings, Wernes Düttmann e Franz
Mocken, construída em 1957 e adornada com
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escultura de Henry Moore, é uma obra prima da
arquitectura do séc. XX. Mas logo o olhar se fixou no
belo e harmonioso Reichstag, artístico e grandioso
conjunto de dois edifícios de estilo neoclássico,
ligados por um túnel; obra do arquitecto Paul Wallot,
é erigida entre 1884 e 1894 e, depois de vicissitudes
várias, é restaurada em 1995, sob a direcção de
Norman Foster que lhe acoplou uma moderna e
esplendorosa cúpula em vidro.
(Imagem Portas de Brandenburgo)
Passámos ao lado das Portas de Brandenburgo,
um elegante edifício neoclássico (1789), para cujo
desenho o arquitecto Carl Gotthard Langhans se
inspirou nos Propileus da Acrópole de Atenas.
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Deixando para trás essas emblemáticas portas,
percorremos a Avenida Unter den Linden que,
sombreada por frondosas tílias e ladeada por
imponentes e históricos edifícios (o grandioso
monumento equestre a Frederico o Grande, o
elegante edifício da embaixada da Rússia, a estrutura
neobarroca da Staatsbibliothek, a Universidade
Humboldt, a Antiga Biblioteca, os edifícios
neoclássicos da Staatsoper e da Neue Wache que é
obra de Karl Friedrich Schinkel, Palácio do Príncipe
Herdeiro, a volumosa estrutura barroca da
Zeughaus), se estende até à Schlossbrüke e à
Schlossplatz, quase quilómetro e meio de extensão.
Passámos pelo Nikolaiviertel, belo bairro antigo de
pequenas casas tradicionais, de ruas estreitas e sem
trânsito, que se dispõem em volta da Nikolaikirche –
igreja em estilo gótico tardio (séc. XV) – e que, com
os seus cafés, salões de chá, restaurantes, casas de
artesanato, se enchem de vida e de cor. E por fim
admirámos a ampla Alexanderplatz, com as suas
fontes e lagos, as suas esculturas de vanguarda, o seu
Weltzeituhr ou ‘relógio do mundo’ (1969, obra de
Erich John), o gigantesco Hotel Park Inn, a
Marienkirche, o Berliner Rathaus (1861-1869, obra em
estilo neo-renascentista do arquitecto H. F.
Waesemann) que tem na frente a bela fonte de
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José Ribeiro Ferreira
Neptuno e – a dominar tudo o resto na sua altura de
368m – a Torre da televisão ou Fernsehturm que,
desenhada por Fritz Dieter e Günther Franke e
inaugurada em 1969, oferece uma assombrosa vista
panorâmica sobre a cidade.
Entrada do Pergamon Museum
Chegados à Ilha dos Museus por volta das
10h30, começámos, como estava programado, pela
visita ao Pergamon Museum, um edifício neoclássico,
construído entre 1910 e 1930, a partir de um projecto
de Alfred Messel e Ludwig Hoffmann. É assim
chamado por albergar o célebre Grande Altar de
Zeus, encontrado por arqueólogos alemães nas
escavações realizadas nas últimas décadas do século
XIX na cidade helenística de Pérgamo, sita na actual
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Turquia, e trazido, juntamente com outros achados,
para Berlim e aí reconstituído pedra a pedra a partir
de 1902. É a primeira obra com que deparamos, mal
deixamos a bilheteira e transpomos a porta do
Museu. Um deslumbramento e fascínio para os
olhos. Quase sentimos suspensa a respiração por
momentos.
Pérgamo: Grande Altar de Zeus
Mas o Museu alberga muitos outros
documentos arqueológicos e artísticos de primeira
grandeza: contém a reconstrução de vários
monumentos assírios, babilónios, gregos, romanos.
Retenhamos, por isso, por agora as emoções e
tentemos observar as obras expostas por ordem
cronológica. Lá se encontra, retirado num recanto,
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José Ribeiro Ferreira
parte de antigo palácio Assírio (séc. XII a.C.). Para aí
aceder, temos de passar pela Porta de Isthar e Via
Processional, da Babilónia (séc. VII a.C.), onde no
fundo azul celeste, nítido, por nós passam os leões,
estáticos, solenes, indiferentes, como se ali
esperassem a concretização da eternidade.
Via Processional, Babilónia
Poderíamos referir ainda achados da Pérsia,
Síria e Palestina. Mas concentremo-nos nos
elementos greco-romanos, tanto do domínio
arquitectónico, como escultórico, como pictórico.
Quanto à arquitectura, expõem-se partes do
Templo de Atena, em Pérgamo, que pertence ao
período helenístico (c. 180 a.C.); dos Templos de
Atena Pólias, em Priene, e de Ártemis em Magnésia;
do Templo de Zeus Sosípolis, de Magnésia do
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Meandro (II séc. a.C.); e a Ala norte da Ágora de
Priene, também helenística (séc. II a.C.). Todos eles
são de período helenístico. Já uma imponente porta
da Ágora ou Mercado de Mileto (c.130-120 A.D.) e o
Túmulo de Cartínia, dos Falérios (3º quartel do I séc.
A.D.), são obras romanas.
O Museu de Pérgamo alberga sobretudo
abundante e excelente escultura grega e romana,
desde o período arcaico. Deixamos aqui a
enumeração
de
algumas das obras mais
significativas:
Grupo escultórico de Samos do 3º quartel do
séc. VII a.C.
Estátua da chamada deusa de Berlim (580-560
a.C.). Da Ática.
Deusa de Berlim
Mulher com galinha (?)
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José Ribeiro Ferreira
Relevo tumular de 2 heróis mortos (550-530
a.C.). Encontrado na Lacónia.
Estátua de mulher com galinha pedrês (?)
(570-560 a.C). Proveniente de Mileto.
Estátua da Ornithe (560-550). De Samos.
Cabeça de rapariga (540-530 a.C.). De Dídima.
Cabeça de homem com barba (c. 540 a.C.). Da
Ática.
Estátua de um portador de sacrifício (c. 530520 a.C). De Dídima.
Leão deitado (3º quartel do séc. VI a.C.). De
Mileto.
Torso do chamado Apolo de Omphalos para
completar um Antínoos. Cópia em mármore de um
original grego de c. 460 a. C.
Cabeça
do
Apolo
de
Omphalos.
Transformação romana de um original grego de 460
a.C.
Máscara do deus rio Aqueloo (c. 470 a.C.).
Obra da Ática, proveniente de Maratona.
Estátua de uma deusa sentada no trono (c. 460
a.C.). Proveniente de Tarento, há na escultura um
certo hieratismo, alguma rigidez e arcaísmo formal
(sobretudo na pose e no vestuário) que contrasta com
o desenvolvimento que na altura já se verificava em
outros locais. A face é espécie de máscara, cuja frieza
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
de expressão sugere afastamento divino. Este
distanciamento, vazio expressivo pode ser ainda
considerado, como escreve Robertson, «vício da
seriedade clássica, como o sorriso o é da alegria
arcaica»1
Deusa sentada no trono
A chamada Aspásia, com uma cabeça retrato
romana (cópia romana de um original grego de c. 460
a.C.).
1
- A History of Greek Art(Cambridge, 1975), p. 176).
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Cabeça da chamada Aspásia (cópia romana de
um original grego de c. 460 a.C.). A conhecida milésia
que foi mulher de Péricles, possuía vasta cultura – era
versada em retórica e diz-nos Plutarco (Per. 24) não
haver rejeitado as suas discussões com Sócrates – e
parece não ter tido pequena influência nas questões
da cidade da deusa Atena, divindade das artes e da
sabedoria. E esta cabeça (ou melhor, cópia) é bem o
exemplo de uma mulher com ar concentrado e olhar
distante.
Retrato de Péricles com elmo coríntio. Cópia
em mármore de um original grego de 429 a.C., da
autoria do escultor Krésilas.
Cabeça de Aspásia (cópia) Busto de Péricles (cópia)
31
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Placa de friso iónico de Templo em Ilissos (c.
440-430 a.C). Obra ática.
Relevo com representação de Medeia e as
filhas de Pélias (cópia de um original grego de c.
420-410 a.C.). Mármore do Pentélico.
Amazona ferida (cópia em mármore de um
original grego que data de entre 440-430 a.C.).
Amazona ferida
Segundo Plínio 34. 53, na segunda metade do
séc. V a. C. (c. 440 a.C.), houve um concurso em Éfeso
para esculpir uma amazona ferida, destinada ao
32
José Ribeiro Ferreira
Templo de Ártemis, em que participaram cinco
escultores famosos de então, entre os quais se
encontravam Fídias, Policleto e Crésilas. Decidiu-se
que se daria o prémio àquele que os próprios artistas
declarassem ali mesmo ser o melhor. Venceu a
escultura que obteve mais segundos lugares, a de
Policleto, já que cada escultor atribuiu à sua obra o
primeiro. A segunda foi a de Fídias, a terceira a de
Crésilas, a quarta a de Kydon e a quinta a de
Frádmon. A que se encontra no Pergamon Museum é
uma cópia, possivelmente da Amazona Ferida de
Crésilas, um dos cinco escultores que participaram no
concurso realizado em Éfeso.
Cabeça do Discóforo de Policleto. Cópia em
mármore de um original grego de c. 460 a. C. Mas
uma excelente cabeça. É conhecido em duas cópias,
ambas do começo da idade imperial.
33
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Discóforo de Policleto (cópia)
Torso do Doríforo de Policleto. Cópia em
mármore de um original de c. 440 a. C.
Torso masculino vestido. Cópia em mármore
de um original grego de c. 430-420 a. C.
Estátua do chamado Narciso. Cópia em
mármore de um original grego de c. 400 a. C.
Afrodite com um sapo. Cópia romana em
mármore de um original grego da segunda metade
do séc. V a.C.
Estátua de uma Afrodite (último quartel do séc.
V a.C). Proveniente de Tarquínia. Mármore do
Pentélico.
34
José Ribeiro Ferreira
Cabeça de jovem. Cópia em mármore de um
original grego de fins do séc. V a. C.
Relevo com Hermes e as Ninfas (c. 400 a.C.).
Encontrado em Roma, no Quirinal.
Diversas estelas funerárias, algumas de grande
beleza e elegância, com data de 460 a 330 a.C.
– Estela funerária com duas jovens (c. 460 a.C.).
Chamada estela de Justiniano.
– Estela funerária com um homem (c. 440-430
a.C.).
– Estela funerária em relevo de Sósias e
Cefisodoro (c. 410 a.C.). Da Ática. Mármore do
Pentélico.
– Estela funerária de uma mulher com a serva
(começos do séc. IV a.C.). De Atenas. Na parte
superior, relevo com Sereias.
35
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Estela funerária com mulher e serva
– Estela funerária Silénis (de meados do séc. IV
a.C.). Da Ática.
– Estela funerária de Tráseas e Evândria (c. 350340 a.C.). Da Ática.
– Estela funerária de um soldado e sua mulher
(meados do séc. IV a.C.). Da Grécia
continental.
– Estela funerária de um casal (c. 340-330 a.C.).
Obra ática, proveniente de Atenas.
Cabeça de mulher de um relevo funerário (330320 a.C.). Obra ática, proveniente da necrópole de
Erétria.
36
José Ribeiro Ferreira
Fragmento de monumento sepulcral de
Nikarete (3º quartel do séc. IV a.C.). Ática.
Encontrada entre o Pireu e Atenas.
Rapariga triste (finais de do séc. IV a.C.). Obra
ática, encontrada em Menidi, um demo de Acarnes.
Relevo com reunião de deuses (380-370 a.C.).
Obra da Ática. Proveniente de Mégara.
Relevo com quadriga (inícios do séc.IV a.C.).
Obra ática.
Relevo dedicado a Cibele (380-370 a.C.). Obra
ática, encontrada no Pireu.
Relevo de Cibele
37
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
A deusa está sentada num trono, rodeada de
leões. Na mão direita segura uma taça e a esquerda
balança um timbale. Junto dela uma figura feminina
sobraça uma tocha. Atrás parece encontrar-se uma
figura masculina que tem na direita uma oinochóe.
Relevo de Asclépios (c. de 325 a.C.). Obra ática
Estátua de Ártemis Colonna. Cópia em
mármore de um original de meados do séc. IV a. C.
Cabeça feminina (meados do séc. IV a.C.).
Obra ática, proveniente de Atenas.
Cabeça feminina de estátua. Cópia em
mármore de um original de fins do séc. IV a. C.
Sátiro que deita líquido num chifre, da
autoria de Praxíteles. Cópia em mármore de um
original de Praxíteles de c. 360 a. C.
Torso de Apolo Lykeios. Cópia em mármore
de um original grego de c. 340-330 a. C.
Estátua de Meleagro Cópia em mármore de um
original grego de c. 340 a. C.
Estátua de atleta (c. 340-330 a.C.). Obra da
última fase do período clássico.
Cabeça de Eros. Cópia em mármore de um
original grego de 330-320 a. C.
Estátua de um Tritão (terceiro quartel do séc.
IV a.C.).
38
José Ribeiro Ferreira
Estátua em bronze de efebo (fins do séc. IV
a.C).
Retratos vários: de Anacreonte (cópia em
mármore de um original grego de c. 450 a. C.); de
Sófocles (cópia em mármore de um original grego de
primeiro quartel do séc. IV a. C.); de Platão (cópia
em mármore de um original grego de meados do séc.
IV a. C.); de Epicuro (cópia em mármore de uma
estátua grega de c. 270 a. C.); de uma estátua de
Átalo I (helenístico, de inícios do II séc. a.C.).
Encontrada na Acrópole de Pérgamo; fragmento de
retrato helenístico de Átalo III (meados do séc. II
a.C.).
Com estes retratos e últimas esculturas
referidas, entramos já no período helenístico que tem
as suas escolas e características próprias, bem
exemplificadas neste Museu.
Na escultura, o Período Helenístico estende-se
de 330 a 100 a. C. e nele se verifica um alargamento
de temas, uma maior complexidade de formas, a
tentativa de realismo na expressão do temperamento
e da dor, representação de emoções fortes. O corpo
humano aparece na multiplicidade dos seus planos,
com movimentos em direcções opostas, contorções.
Todas as idades são representadas, incluindo a
infância e a velhice, não apenas a idade ideal da
39
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
juventude e da maturidade, predominantes ou quase
exclusivas nas épocas anteriores. Trata-se de um
período que privilegia o realismo e o individualismo,
que já vinham do século anterior. O sofrimento, a
dor, a ira, o desespero, enfim as emoções, aparecem
com frequência tratadas, bem como as diferenças
raciais. Desenvolve-se a arte do retrato e surgem
cenas rústicas. Dá-se corpo às alegorias. Acentuam-se
as personificações de conceitos, ideias e entidades
abstractas. As figuras são dispostas e trabalhadas
para serem observadas de muitos lados, torcidas, em
grupos complexos. Domina o dramatismo e preferese o movimento violento. Ou seja, como a designa G.
Richter, é uma arte quase teatral1.
Plano da agora da cidade de Pérgamo
1- A handbook of Greek art (London, 81983), p. 170.
40
José Ribeiro Ferreira
As características acima referidas têm um paradigma
excelente na escola de Pérgamo, caracterizada pala
representação da tensão do combate, do sofrimento,
da coragem, da dor, do desespero. Daí saíram
esculturas de grande perfeição e de não menor
dramatismo, de que este Museu de Berlim é o
principal depositário.
Pérgamo, como Estado independente, nasce das
lutas entre os três grandes reinos helenísticos: Egipto
ou reino dos Ptolomeus, o da Ásia ou reino dos
Selêucidas e o da Macedónia.
Começou por ser uma cidade integrada no reino
dos Selêucidas, mas em 262 a. C. Ptolomeu II
convence Êumenes (263-241 a. C.), o governador, a
separar-se, e Antíoco I, que chefiava o Reino da Ásia
ou dos Selêucidas, vê-se obrigado a reconhecer essa
independência, após a derrota desse ano em Sardes.
O sucessor de Êumenes, Átalo I (241-197 a. C),
aparece como campeão do helenismo contra os
bárbaros, ao vencer os Gauleses do interior em 230 a.
C. — vitória que foi muito celebrada e ocupa lugar de
relevo na arte helenística, através das representações
escultóricas de Gauleses vencidos. Com o prestígio
adquirido com essa vitória, dá-se a si próprio o título
de rei; aproveita um momento de lutas e consequente
41
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
fraqueza dos Selêucidas, cimenta o reino e estende o
seu domínio pela Ásia Menor.
Pérgamo transforma-se num centro cultural de
primeira ordem, a ponto de se tornar rival de
Alexandria. O pergaminho, como o nome sugere,
será invenção sua, para fazer face — segundo uma
tradição narrada por Plínio o Antigo (Nat Hist. 13.
70), talvez não fidedigna — à proibição, por parte
dos reis egípcios, da exportação do papiro para o
reino, por razões de rivalidade, para que a sua
biblioteca não superasse a de Alexandria1. Graças às
empresas públicas de têxteis e de pergaminho e a um
hábil sistema de impostos, adquire prosperidade
financeira. Com uma vida privada marcada pela
simplicidade, os governantes mostravam a sua
magnificência nas obras de interesse geral.
Ao contrário dos outros três grandes reinos
helenísticos, onde o elemento bárbaro, além de
influenciar e complicar a evolução política, acaba
também por ter alguma repercussão na expressão
cultural, com a fusão de elementos não gregos,
1-
Sobre o assunto vide E. G. Turner, Greek papyri. An
introduction (Oxford University Press, 1968), pp. 9-10; R.
Pfeiffer, History of classical scholarship (Oxford University
Press, 1968), p. 236.
42
José Ribeiro Ferreira
Pérgamo desenvolve o espírito helénico de uma
forma mais pura, apoiado na antiga tradição iónica.
O reino de Pérgamo torna-se, cerca de 200 a. C.,
o primeiro aliado dos Romanos na Ásia e é integrado
no império destes em 133 a. C., por testamento do
seu rei Átalo III (159-133 a. C.)1. É a partir de então
que Roma cria a província da Ásia.
A estação arqueológica de Pérgamo é extensa e
impressionante: além de vários outros vestígios,
sobressai a Acrópole que se ergue majestática sobre a
cidade. Aí se podem visitar as ruínas de vários
edifícios e monumentos. Os Palácios Reais, uma
Basílica Romana e a Casa de Átalo com frescos. O
Teatro, com uma vista panorâmica fascinante sobre a
cidade e o vale, tem capacidade para dez mil
espectadores sentados. O Asclepiéion, de que pouco
resta, era um afamado centro de cura que, dirigido
por Galeno – médico que viveu durante o Império
Romano e que era procurado por muitos doentes –,
se tornou conhecido por todo o mundo antigo e dele
subsistem uma colunata de mármore, um teatro,
quartos de doentes. O grande Altar de Zeus, um
1-
Quem desejar conhecer mais pormenores sobre o reino de
Pérgamo consulte R. B. Mcshane, The foreign policy of the
Attalids (Urbana, Illinois, 1964); E. V. Hansen, The Attalids of
Pergamum (New York, 21971).
43
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
monumental altar que embeleza actualmente o
Museu de Berlim.
Se bem que no local, na actual Bergama turca,
exista um Museu Arqueológico e Etnográfico onde se
guardam muitos achados da Pérgamo helenística, é
no Museu de Berlim, no Pergamon Museum, que hoje
está exposta a maioria das obras encontradas, de que
sobressai o Grande Altar de Zeus, uma das principais
realizações escultóricas do Período helenístico, de
uma escola que nos legou diversas outras obras
primas que se encontram em museus que não o de
Berlim. É o caso do Gaulês Moribundo (cerca de 240200 a. C.), de que existe uma cópia de mármore nos
Museus Capitolinos de Roma, uma escultura que
representa o guerreiro gálata na nudez "heróica" (os
Gauleses usavam calças), de face sem barba, mas
com bigode, de cabelo em mechas cuidadosamente
notado. Está sentado, com a perna direita dobrada e
a esquerda estendida, de torso inclinado e a cabeça
pendida, o braço direito, apoiado no chão, flecte e já
não sustém o peso do corpo. O Gaulês a suicidar-se
depois de matar a mulher (Palazzo Altemps, Roma),
também de cerca de 240-200 a. C. e também
representado na nudez heróica, manifesta todo o seu
orgulho e amor à liberdade: para evitar a escravatura
sua e da mulher, mata-a e segura-a ternamente com a
44
José Ribeiro Ferreira
mão esquerda, enquanto enfia, resoluto, a espada no
próprio peito.
Esta representação de Gauleses está ligada a
factos históricos: em 279, uma invasão chegou até
Delfos, depois de vencer a Macedónia. Foram
repelidos por uma tempestade de neve e pela
Simpolitia Etólia. Seguiram para a Ásia Menor, onde
exigiram tributo de Antíoco. Nos anos 30, Átalo
recusou pagar tributo e repeliu um ataque dos
Gálatas. E assim o poder destes ficou quebrado, e
Átalo e os seus sucessores fizeram de Pérgamo um
grande centro cultural.
A sua obra mais significativa, o grande Altar de
Zeus (c. 180-150 a. C), encontra-se no Museu de
Berlim, como vimos. O altar encontrava-se em
plataforma elevada, a que se acede por uma
escadaria monumental, rodeado por uma colunata
iónica, como se fosse um templo períptero.
Considerado uma das sete maravilhas do mundo,
segundo algumas listas, foi realizado entre 180 e 150
a. C., embora tenha ficado por acabar. Em Pérgamo,
ainda são visíveis os alicerces da plataforma.
Trata-se de uma construção de mármore,
dedicada a Zeus e a Palas Atena, obra de grande
aparato, decorada por um friso exterior à volta da
plataforma, que representa o combate entre deuses e
45
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
gigantes, e um friso interior no pórtico iónico, que
historiava o mito de Télefo. Tinha imagens nos
acrotérios (algumas conservam-se). Nele trabalharam
vários escultores que assinaram as suas obras.
Reconstituição do Grande Altar de Zeus
De consideráveis dimensões, o Altar de Zeus
retoma a prática arcaica de grandes altares, perdida
na época clássica. Simplesmente, os arquitectos de
Pérgamo pensaram-no como um templo períptero,
cuja colunata foi transferida para o edifício do altar,
como refere R.R.R. Smith (1993).
O friso exterior que rodeia a plataforma,
fascinante e espectacular, com cerca de 120 metros de
extensão, representa a batalha de deuses e gigantes,
46
José Ribeiro Ferreira
em relevo tão alto que é quase escultura de vulto. As
figuras, em que «as diversas linhas se cruzam numa
complexidade barroca»1, têm inscrições e, na opinião
de Susan Woodford, «quase rebentam do fundo.
Músculos retesados e drapejamentos a voar,
transmitem um tremendo sentido de energia
explosiva».
Num dos lados do friso sobressai o combate de
Zeus e no outro o de Atena. Zeus tem o manto a cair
e um corpo poderoso, luta com três gigantes e vai
lançar o raio. A sua ave simbólica, a águia está
omnipresente, tanto à sua direita, como a flanquear
os os que o enfrentam. Estes têm pernas de
serpentes, ou aladas, ou humanas. Há uma cuidadosa
variedade de posições. Porfírion, o opositor principal
do pai dos homens e dos deuses está de costas e o
escultor pretendeu dar-lhe realce, ao representar o
seu dorso saliente, vigoroso, musculado.
1- M. H. Rocha Pereira, Estudos de História da Cultura Clássica I –
Cultura grega, p. 620.
47
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Grupo de Zeus
Atena, escudo redondo na mão esquerda e
armada com a sua característica égide, agarra pelos
cabelos um gigante, Alcioneu, cujas asas preenchem o
alto do espaço, e prepara-se para lhe aplicar o devido
castigo. O sofrimento dele é sugerido pelos olhos
fundos e revirados, pela boca aberta. Olha para Atena
com olhos angustiados, à direita, a deusa Terra, mãe
dos gigantes: com sobrancelhas erguidas, olhos
fundos em súplica, cabeça voltada, pede a Atena que
poupe os filhos. Mas Nike, a Vitória, à direita, já se
prepara para coroar Atena.
48
José Ribeiro Ferreira
Grupo de Atena
O motivo principal de Zeus e Atena, a mover-se
em direcções opostas, mas voltando-se para olharem
um para o outro, é o esquema (invertido) do
pedimento ocidental do Pártenon. E Susan Woodford
acrescenta que se trata de «uma esplêndida e criadora
adaptação de uma grande obra do passado».
As figuras têm inscrições. É de notar que Apolo
e Hélios são divindades distintas.
O friso existente na parte superior do Altar
apresentava a história e mito de Télefo: Héracles
encontra Télefo; companheiros de Télefo; Teutras e
Auge e outras cenas do friso.
Outras esculturas, além dos frisos do Grande
Altar de Zeus, se guardam no Pergamon Museum. É o
caso de
49
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Libertação de Prometeu (obra helenística, entre
159 e 137 a.C.). Grupo de três figuras em mármore.
Estátua de uma flautista a dançar (cópia em
mármore de um original grego de meados do séc. II
a. C.).
Estátua de Atena Parthenos (obra helenística,
da segunda metade do séc. II a. C.). Encontrada no
Templo de Atena em Pérgamo.
Estátua de Atena com a égide que se cruza no
peito (obra helenística de c. 150 a.C.).
Bela cabeça de Pérgamo (obra helenística de c.
150-140 a.C.). Uma bela cabeça encontrada em
Pérgamo.
Imagem da cabeça
50
José Ribeiro Ferreira
Estátua de Hera de Samos (meados do séc. II
a.C.).
Estátua de uma dançarina (segundo quartel do
séc. II a.C.).
Afrodite desatando a sandália (fins do séc. II
a.C.).
Estátua de mulher da Magnésia (obra
helenística, de começos do séc. I a.C.).
Estátua de um escravo (obra helenística, do séc.
III a.C.).
Estátua de um pescador (tipo Séneca). Cópia
em mármore de um original grego de c. 200 a. C.
Estátua do adolescente que tira uma espinha.
Cópia em mármore de um original grego de fins do
período helenístico.
Métopa do Templo de Atena em Tróia,
representando Hélios no seu carro (obra helenística
de 300 a.C.).
Relevos de estelas funerárias.
Vários retratos e cabeças romanos, com
destaque para o de Gaio Júlio César, de M. Vipsanius
Agrippa, do Imperador Adriano, de Antínoos, do
duplo Hermes de Sócrates e Séneca.
Duas urnas funerárias romanas
51
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Relevo das Charites ou Graças (último quartel
do séc. I A. D.).
Alguns mosaicos: de não muito grande
dimensão, mas com qualidade técnica. Mosaico
pavimental, esplêndido que representa Orfeu (fins
do séc. II a.C.).
Mosaico dos Silenos (romano, séc. II A.D.).
Mosaico do Centauro (romano, de entre 128 e
118 A.D.). Um belo mosaico.
Fragmentos de friso e de sarcófago. O do
sarcófago com representação de duas máscaras.
Sarcófago com a representação do mito de
Medeia (romano, meados do séc. II A.D.). Um belo
relevo.
Relevo de um sarcófago com as Musas
(Romano, último quartel do séc. II A.D.).
Sarcófago com cenas dionisíacas (Romano,
último quartel do séc. II A.D.).
Relevo de Mitra (Romano, séc. II A.D.).
Estátua de bronze de adolescente (Romano,
meados do séc. I A.D.).
Estátua em bronze de Baco (romano, séc. II
A.D.).
No domínio da pintura, embora a mais
volumosa, valiosa e representativa colecção de vasos
52
José Ribeiro Ferreira
gregos esteja exposta no Altes Museum, no
Pergamon encontramos vários exemplares de
variadas épocas, além de figuras de terracota: Placa
de cerâmica com cena funerária, uma obra ática, de c.
530 a.C., de Exékias; uma taça ática com a
representação da luta entre Peleu e Tétis, um belo
vaso da autoria de Peithinos (c. 500 a.C.); uma taça
ática de figuras vermelhas com a representação de
uma Gigantomaquia (c. 490 a.C.), excelente obra pelo
Pintor de Brigos.
Taça com Gigantomaquia pelo Pintor de Brigos
Os olhos recaíram ainda numa oinochóe ática de
figuras vermelhas que tem representado um atleta a
ser coroado por divindade (c. 480 a.C.); um lécito
ático de fundo branco, com cenas funerárias (c. 450 a.
53
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
C.), pelo Pintor de Aquiles; um lécito polícromo de
fundo branco (fins do séc. V. a.C.), proveniente de
Alópece, na Ática, perto de Atenas; um cálice-kratêr
de fundo branco, de Paestum, com cena de comédia
(c. 350 a.C.), pintado por Asteas; um kratêr de
volutas apúlio, que representa uma Gigantomaquia
(terceiro quartel do séc. IV a.C.).
De tarde, depois de almoço retemperador que
aconchegou o corpo e serenou emoções excitadas e
vivas, fizemos a visita ao Altes Museum e à Catedral
de Berlim (Berliner Dom).
Frente ao Altes Museum
Com estrutura neoclássica, o Altes Museum fica
junto ao encantador jardim de Lustgarten, tem planta
rectangular e foi mandado construir por Frederico
54
José Ribeiro Ferreira
Guilherme III entre 1823 e 1830, a partir de projecto
de Karl Friedrich Schinkel, inspirado nos templos e
pórticos gregos, com rotunda e cúpula interiores que
imita o Panteão de Roma e exibe colunas coríntias.
Como fachada, apresenta um majestoso pórtico de
dezoito colunas iónicas, precedido por uma
imponente escadaria, ladeada por duas estátuas
equestres. Contém uma excelente colecção de
antiguidades gregas e romanas, a Antikensammlung,
que incorpora achados encontrados em diversos
pontos, em especial Samos, Mileto, Priene, Atenas,
Olímpia, Corinto, Esparta, Cíclades, Pérgamo, cujas
datas se estendem dos tempos micénicos ao Império
Romano. Destaque para a considerável colecção de
cerâmica grega, cuidadosamente exposta, de modo a
valorizar as imagens e cenas representadas, seguindo
a ordem cronológica, conciliada com núcleos
temáticos em determinadas vitrinas, ou realçando um
ou outro pintor. É evidente que o Pintor de Berlim lá
está em evidência, num plano central, a ocupar todo
um expositor, com a sua ânfora – reproduzida na
folha de rosto – que representa Hermes, um veado e
um sátiro sobressaindo do negro intenso e brilhante
que cobre todo o vaso: um grupo em que a
tridimensionalidade se mostra com nitidez. Em
realce também a excelente ânfora ática de figuras
55
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
vermelhas do Pintor de Andócides, com a
representação da luta de Héracles e Apolo pela posse
da trípode délfica. Por trás de Héracles, Atena,
armada de couraça, elmo, escudo e lança, está atenta
à luta. A conhecida taça de Dúris, a que é costume
dar o nome de “A Escola”, proveniente de Cerveteri
na Etrúria.
Mas lá se encontram também, entre muitos
outros vasos, a taça de Sósias, em que Aquiles cuida
de Pátroclo, ferido num braço (c. 500 a.C.). Enquanto
este vira a cara e parece ter um ríctus de dor, o amigo
põe no que faz toda a atenção.
Aquiles cuida de Pátroclo
56
José Ribeiro Ferreira
Não faltam outras obras significativas da
Antiguidade greco-romana. Passam-me pelo fio
inconsútil da memória a cópia romana da cabeça de
Péricles – acima reproduzida –, cujo original grego (c.
430 a.C.) é da autoria de Crésilas; um conjunto
significativo de armas (elmos, couraças, grevas,
escudos, espadas); um Mosaico da Villa Adriana, em
que um Centauro luta contra um leão e defende, com
todo o empenho, a sua companheira que está em
perigo.
Mosaico do Centauro
A Catedral de Berlim é um edifício de estilo
renascentista, mandado construir entre 1894 e 1905
57
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
pelo imperador Guilherme II, a partir de projecto do
arquitecto Julius Carl Raschdorff. Trata-se de um
templo de grandes proporções: com 115 metros de
comprimento, 73 de largura e 116 de altura, é
encimado por enorme cúpula. Destaque para
mosaicos com os quatro evangelistas; para os vitrais
que representam a Ascensão; para o órgão de Sauer
com mais de sete mil tubos. No entanto, olho-a de
frente, observo-a, não me toca emocionalmente. Pelo
seu gigantismo? Pelo negrume que cobre as suas
pedras? Não sinto nessa ampla mole frontal a
proporção e delicadeza da fachada do Altes Museum
que lhe fica logo à direita.
Aproximavam-se os ponteiros das cinco da
tarde quando terminaram as visitas oficiais – com o
guia, José de seu nome, muito engripado e
proclamando-se guia de exteriores e não de museus,
de interiores – e nos dirigimos ao hotel.
Dado ao corpo breve mas merecido descanso,
eis que um grupo – em que o relator se incluía –,
ainda não repleto das emoções nesse dia, combina
uma saída para um passeio rápido pela zona
comercial e toda cheia de movida das
Kurfürstenstrasse, Kleiststrasse, Tauentzienstrasse e
Kurfürstendamm – a que os Berlinenses chamam
58
José Ribeiro Ferreira
mais simplesmente o Ku’dammm – e em visita à
Igreja Memorial do Imperador Guilherme I, a
Gedächtniskirche. Apreciámos a mescla de edifícios
modernos, volumosos e monumentais, com as
construções mais antigas, de fins de Oitocentos e
começos de Novecentos, de que a elegante Iduna
Haus é bom exemplo; os estabelecimentos
comerciais, as butiques e suas artísticas montras; as
pequenas lojinhas e os vendedores ambulantes,
sempre atentos e apelativos; os artistas de rua,
debruçados sobre o seu trabalho e parecendo alheios
ao que os rodeia; os restaurantes e cafés, os hotéis e
lugares de encontro, os teatros e salas de cinema; as
modernas e ousadas obras de arte – cheias de
simbolismo por vezes – que vão aparecendo pelas
ruas; o tráfico intenso e não raras vezes
incomodativo; as agências de viagem, as casas de
cultura e livrarias, os ginásios para recuperação do
físico ou eliminação de adiposidades adquiridas em
refeições mais abastadas e não de todo comedidas. A
meio deparámos com a KaDeWe e o grupo
fraccionou-se: o Abílio e a Ana Maria, a Maria
Miguens, a Mané, a Maria Franco por ali se
quedaram às compras; mais tarde, reencontrados, já
vinham providos de kispos e outros agasalhos, que o
frio era intenso e o corpo solicitava consistente
59
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
cobertura. Os restantes de que faziam parte a Zélia, a
Zé Alves, a Zé Ferreira, a Elisabete, a Helena Morais,
a Lídia Orestes e o José Filipe – e também o relator
destas descosidas linhas – continuaram o seu destino,
alheios ao frio que se infiltrava, agudo e implacável, e
atingia em especial nariz e orelhas. Pararam aqui e ali
e ficaram-se a olhar por momentos para o Magic
Balloon. Lançaram um rabo de olho ao Café
Kranzler, ao Teatro des Westens, à entrada do Jardim
Zoológico. Apreciaram o Europa Center, obra de K.
H. Pepper, construído entre 1963 e 1965, grandioso
centro comercial que alberga lojas várias, butiques,
cinemas, um teatro, o Hotel Palace, o famoso cabaret
“Die Stachelschweine” e um relógio de água.
Sentiram-se seduzidos pela Globe Fountain, ou Fonte
do Mapamundi (1983), sita na Breitscheidplatz, uma
bela e simbólica obra, toda em mármore
avermelhado, que tem por motivo central um globo
seccionado a jorrar água por diversos pontos que
depois desce em cascata por degraus de um e outro
lados; e todo o conjunto aparece ponteado de figuras
humanas e animais, algumas delas exóticas, como é o
caso de um estendido e negro crocodilo.
Mas já os olhos fugiam para a Kaiser Wilhelm
Gedächtniskirche que se erguia mesmo ao lado, sem
o pináculo da torre, esventrada, como a haviam
60
José Ribeiro Ferreira
deixado os bombardeamentos de 23 de novembro de
1943. Igreja construída em 1891-1895, em estilo neoromânico, da autoria de Franz Schwechten, a sua
torre erguia-se a uma altura de cento e treze metros.
Hoje, sem a parte superior, feita em estilhaços pelo
bombardeamento, não ultrapassa os sessenta e oito.
Regressados ao Hotel e jantados, um grupo
lançou às malvas o cansaço, ainda arranjou forças e
sentiu coragem para arrostar o frio intenso, agudo,
penetrante: o desejo ou necessidade de satisfazer a
curiosidade, o impulso irresistível de provar um
pouco da vida nocturna de Berlim. Bem encapuçados
e estofados no mais denso vestuário que possuíam,
meteram-se no autocarro 100, ficaram fascinados
com o Reichstag, as Portas de Bandenburgo, a
avenida Unter den Linden, o Altes Museum
iluminados. Saíram na Alexanderplatz, na intenção
de se dirigirem às animadas ruas do Nikolaiviertel.
Infelizmente, depois de algumas buscas sem sucesso
e de verificarem e sentirem as transformações que os
antigos blocos de apartamentos de Berlim Leste
estavam a sofrer, acossados por um frio cada vez
mais agreste, entraram num dos bares que
encontraram abertos, um bar irlandês, onde foram
recebidos por intensa estridência musical e por tal
densidade de fumo que quase se não viam uns aos
61
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
outros. Não eram passados um a dois minutos, o
grupo fraccionou-se. Houve quem não aguentasse
tão acolhedor ambiente. Uns tantos preferiram retirar
para se acolherem num café que ficava defronte, um
bar vietnamita mais calmo, onde a música rodava
suave, em fundo, encostada aos tectos; onde o fumo
de cigarro não existia, pelo menos não se sentia ou
não era visível. Escolhida a beberagem desejada por
cada
um,
as
bebidas
chegaram quentes:
reconfortaram, suavizaram a noite, aconchegaram do
frio que pesava sobre os ombros. Reunidos todos de
novo, refizeram a pé o trajecto da Alexanderplatz até
às Portas de Brandenburgo: olharam o céu estrelado,
seguindo o piscar da luz vermelha na ponta da Torre
da televisão; admiraram o grupo escultórico em
honra de Marx e Engels, sito à sombra de robustas
árvores na ampla praça quadrangular Marx-Engels
Fórum, e leram no pedestal a inscrição que mão
anónima escreveu: «Wir sind unschuldig» («Nós não
temos culpa nenhuma»).
Puderam ver com cuidado a beleza e realce que
a iluminação dava aos edifícios de Unter den Linden;
e, com o cansaço a pesar já como chumbo nos
músculos das pernas e no ânimo de boa parte, foram
todos surpreendidos pelo recorte soberbo, delicado,
harmonioso de formas das Portas de Brandenburgo
62
José Ribeiro Ferreira
que as luzes faziam resplandecer no negrume da
noite. E o alento voltou nos olhos espantados de
quase todos.
Já o dia 19 dava as mãos ao dia 20, quando
regressaram ao Hotel, em táxi ou em autocarro,
apanhados junto do Reichstag. A noite estava fria, o
corpo pedia descanso e o dia seguinte, o dia vinte,
prometia mais caminhadas e emoções fortes. Era um
dia dedicado ao Palácio Charlottenburg, pela manhã
e ao Museu do Holocausto, de tarde.
Saídos do Hotel por volta das 9h00,
percorremos
de
novo
as Tauenzienstrasse,
reencontrando o Europa Center, a Fonte do
Mapamundi, a Gedächtniskirche; passámos pela
Hardenbergstrasse, Ernst-Reuter-Platz e Ottostrasse
Allee, onde sobrevivem edifícios antigos que
escaparam à guerra, onde se nota uma mescla de
construção e onde não faltam as lojas e o comércio.
Chegados ao Palácio Charllottenburg, demos uma
volta pelos extensos e artísticos jardins – dignos de
serem vistos e apreciados –, uma vez que o horário
de visita começava às dez horas.
Destinado a simples residência de verão,
encomenda de Frederico III a Nering, em fins do séc.
XVII, para a sua segunda mulher Sofia Carlota, o
63
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Palácio Charlottenburg demorou, no entanto, cerca
de um século a construir e tornou-se um dos edifícios
mais sumptuosos de Berlim. Nele colaboraram, além
de
Nering,
outros
arquitectos:
Grünberg,
Knobelsdorff, Schinkel, Langhans.
Além do mobiliário, da pintura, porcelanas que
faziam parte do espólio e hoje constituem um
magnífico conjunto museológico, o Palácio guarda o
Museu de Pré e Proto-História, com destaque para o
chamado “Tesouro de Príamo” ou colecção da antiga
cidade de Tróia, doada em 1881 por H. Schliemann
(boa parte são réplicas, porque desapareceram no fim
da II Guerra Mundial e encontram-se actualmente em
Moscovo).
Durante a Segunda Guerra Mundial, os Russos
tinham levado o espólio de Schliemann, fazendo cair
o silêncio sobre o seu paradeiro. Encontrava-se
recolhido e depositado no Museu Puschkin de
Moscovo e só mais tarde, recentemente, se soube do
seu secreto esconderijo. Depois de muita insistência,
conseguiram estudiosos alemães, em 1994, ver de
novo esses achados e verificá-los pela lista feita por
Schliemann. Para isso levaram umas luvas brancas
especiais que os especialistas russos louvaram, mas
declinaram o seu uso, por terem mais confiança nas
suas e com elas se fez o manuseio, verificação e
64
José Ribeiro Ferreira
estudo
Uma exposição – que decorreu em Bona, de 16
de Novembro de 2001 a 1 de Abril de 20021 –
patenteou de novo aos olhos surpresos dos visitantes
os achados de Schliemann na colina de Hissarlik que
tinham sido levados pelos Russos.
Estamos perante manifestações do fenómeno
cultural, mito ou realidade, que começa a ganhar
corpo quando Schliemann, profundo conhecedor da
Ilíada, inicia as escavações em Tróia — ou melhor, na
colina de Hissarlik, para contentar os cépticos — e
descobre várias cidades sobrepostas. Com uma
localização geográfica muito favorável, à entrada do
Estreito dos Dardanelos, única entrada marítima para
o interior da Ásia, compreende-se que Tróia, desde
muito cedo, mantenha contactos com diversas e
distantes partes do mundo conhecido de então.
1
- Antike Welt 32, 5 (2001) 535.
65
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Contactos de Tróia1
E um dos contactos mais bem documentados,
quer literária, quer arqueologicamente, parece ser o
que Tróia manteve com os Micénios: nome moderno
que lhes advém da cidadela mais opulenta, Micenas,
já que o etnónimo antigo que eles próprios se dariam
deveria ser Aqueus2, esse povo — também ele uma
descoberta de Schliemann — aparece no continente
grego por volta de 1600 a.C., já como Gregos, como
resultado de um longo processo de formação a partir
de grupos de indo-europeus, entrados na Península
Balcânica por volta de 2000 a.C.; em consequência de
1
- Figura colhida em M. Korfmann, A Tour of Troia — Part B
(Istambul, 1992), p. 22.
2- Vide José Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos. I— Génese e
Evolução de um Conceito (Coimbra, 1992), pp. 37-66 e 267268.
66
José Ribeiro Ferreira
uma evolução lenta, em que os Minóicos exercem um
papel de relevo, em muitos aspectos, a ponto de se
poder falar de minoicização pelo menos da
aristocracia, que, no entanto, não chega para lhe
sufocar a originalidade. Seduzidos pela cultura de
Creta, os Micénicos adaptam-na profundamente à
sua mundividência.
Provavelmente sem unidade política e divididos
em reinos mais ou menos extensos que se estendiam
até às ilhas dos mares Egeu e Iónico e às costas da
Ásia Menor1, os Micénios formavam uma sociedade
1-
Os Micénios não apresentavam, ao que tudo indica, unidade
política: a lenda fala de ataques de Micénios contra outros
Micénios (dos Pelópidas aos Perseidas em Micenas, dos
Neleidas que tomam Pilos e combatem contra Héracles), a
que devemos associar as destruições de cidadelas (por
exemplo de Cnossos, nos inícios do séc. XIV, e de Tebas,
em c. 1300 a. C.) e a construção de muralhas (séculos XIV e
XIII a. C.) para sua defesa. Acresce que os dados
arqueológicos não implicam essa unidade, nem as
tabuinhas do Linear B lhe fazem qualquer alusão. Por isso,
hoje, tende-se a falar em "grupos de Micénios" ou reinos
micénicos. O recurso aos arquivos hititas — que falam de
um poderoso reino dos Ahhiyawa em que muitos se
apoiam — e às informações dos Poemas Homéricos, que se
reportam aos tempos micénicos, de modo algum permite
contornar e dilucidar a dificuldade. Sobre a unidade
política dos Micénios e legitimidade para utilizar os dados
dos arquivos hititas e dos Poemas Homéricos vide José
Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos, pp. 33-66.
67
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
opulenta e poderosa, amante da guerra e da caça,
com um comércio florescente e relativamente
desenvolvido, por mar e por terra, que entra em
declínio entre 1200 e 1100 a. C., com uma série de
destruições a atingir os seus principais centros. E aos
poucos cai lentamente sobre a Grécia uma
obscuridade de alguns séculos. Atribuído pela
tradição tal declínio à invasão dórica, deve ele ter
uma origem mais complexa que não deve ser alheia à
célebre Guerra de Tróia.
Caímos na complexa questão da realidade e
localização de Tróia e sua identificação com a que a
arqueologia descobriu na colina de Hissarlik. Se até
aos fins do século XIX não se acreditava na
historicidade da Ilíada nem na da Guerra de Tróia, as
escavações iniciadas por Schliemann nessa colina,
continuadas depois por Dörpfeld, dadas por
concluídas por Blegen e agora retomadas por
Korfmann, puseram a descoberto nove cidades
sobrepostas que cobre o espaço temporal de cerca de
3 000 a.C. ao período romano.
68
José Ribeiro Ferreira
Esquema temporal das camadas de Tróia
A imagem dá um esquema temporal dos vários
sedimentos ou camadas da colina de Hissarlik. Grosso
modo, poderemos datar esses vários estratos como
segue: a Tróia I estende-se de 3000 a 2500. A Tróia II
preenche os dois séculos seguintes; as Tróias III, IV e
V ocupam o tempo que vai de 2300 a 1700. A Tróia
VI situa-se entre 1700 e 1250 e com ela se inicia uma
nova civilização que aprende a domesticar e a utilizar
o cavalo e trazia consigo novo estilo e nova técnica
de olaria, a chamada cerâmica mínia cinzenta —
inovações idênticas às que trouxeram os povos
entrados na Península Balcânica por volta de 2000 e
vieram a dar origem aos Micénios1. A cidade, com
muralhas de 6 a 10 metros de altura e 4 a 4,5 metros
de largura, adquiriu considerável opulência e ruiu,
segundo vários especialistas, em consequência de um
sismo. No ano 1300 a. C.
1
Vide J. Ribeiro Ferreira, Hélade e Helenos I, pp. 12-28.
69
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Extensão de Tróia VI
Tróia VI apresentava este aspecto: no alto, o
palácio e a seus pés a cidade baixa fortificada. O rio
Escamandro banhava as terras circundantes.
Sem solução de cultura, aparece depois a VII
que cobre os cento e cinquenta anos seguintes —
geralmente dividida em VIIa e VIIb —, que parece ter
tido uma vida acidentada e dura, e, segundo Blegen,
muito provavelmente teria sofrido as consequências
de um cerco e teria sido destruída por um violento
incêndio que a teria reduzido a escombros por
meados do século XIII. Com a destruição da Tróia
VIIb, cerca de 1100, verifica-se uma quebra definitiva.
A Tróia VIII — fundada por colonos gregos que aí
chegam possivelmente já no séc. X a.C. — vai até 85
a.C e a IX, já romana, preenche o tempo que vai de 85
a.C. a 500 d. C.
70
José Ribeiro Ferreira
As camadas da Colina de Hissarlik
As ruínas estendem-se por vasta área. As portas
— Ceias, diz a Ilíada —, as grossas muralhas, de
fortes blocos de pedra, consistentes. As camadas
sucessivas indicam as diversas etapas de
povoamento. Pedras e mais pedras. Pouco mais do
que pedras, e números a indicar as camadas.
O tempo deposita os estratos em que, secretos,
pulsam emoções, anseios, gritos, dores. Espera e
escuta o seu silêncio. Dele sobe e pulsa na memória
tropear surdo e tinir de ferros.
A partir das escavações e estudos de Blegen
constituiu-se uma opinião generalizada de que a
Tróia homérica corresponderia à VIIa. Mas
ultimamente
alguns
factos
e
descobertas
71
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
arqueológicas tornaram a avolumar as dúvidas. Dado
o facto de, na colina de Hissarlik, não ter aparecido
qualquer inscrição que permita a identificação sem
margem para dúvidas, Finley desde 1964 (JHS 84, pp.
1-9) recusa a historicidade da Guerra de Tróia, ao
considerar que a cidade aí descoberta não
corresponde à Tróia da tradição épica – opinião
vivamente contestada por outros especialistas – e ao
defender a tese de que os acontecimentos descritos
nos Poemas Homéricos devem ser situados na Idade
das Trevas, nos séculos XI e X a. C.
A questão voltou a merecer a atenção dos
especialistas e instituições e, a partir da década de
1980, adquiriu de novo plano de evidência, com
reuniões científicas especificamente dedicadas a tal
assunto – o colóquio The Trojan War. Its historicity and
context (realizado em Liverpool, em 1981, e
patrocinado pelo Greenbank) e o simpósio Troy and
Trojan War (em Bryn Mawr College, em outubro de
1984), cujas actas foram publicadas em 1984 e 1986,
respectivamente1. E as escavações recomeçaram em
1
L. Foxhall and J. K. Davies (edd.), The Trojan War. Its
historicity and context. Papers of the First Greenbank
Colloquium —Liverpool, 1981 (Bristol, 1984); M. J. Mellink
(ed.), Troy and the Trojan War. A symposium held at Bryn
Mawr College, october, 1984 (Bryn Mawr, 1986).
72
José Ribeiro Ferreira
1988, agora dirigidas por M. Korfmann e pela
Universidade de Tübingen, com uma numerosa
equipa em que entram várias universidades e
instituições e que, além de arqueólogos e
historiadores, inclui também especialistas de
paleobotânica, de paleozoologia, de paleopaisagem,
de arqueologia metalúrgica, de química, de
dendrologia.
Essas escavações mostraram que aí sopravam,
da primavera ao outono, ventos do noroeste muito
fortes — o que curiosamente condiz com o epíteto
«ventosa Ílion», dado pela Ilíada a Tróia —, e que os
barcos que se dirigiam ao Mar Negro tinham de
esperar na Baía de Besik, situada a 8 km de Hissarlik,
que esses ventos amainassem, ficando à mercê da
cidade que aí se erguia.
A força dos ventos na região de Tróia.
73
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Devido a esses fortes ventos e às correntes do
noroeste, os barcos procedentes do Egeu eram
incapazes de passar pelo estreito dos Dardanelos
sem receber ajuda de terra, e a cidade beneficiou da
sua posição estratégica.
E a Tróia confluíam as rotas comerciais da
Antiguidade, entre o oriente e o ocidente, entre o
norte e o sul. Era um empório, onde se trocavam
mercadorias de todo o mundo.
As escavações comprovaram, por outro lado,
que os vestígios arqueológicos dessas zonas costeiras
da Tróade indiciam um florescente comércio
marítimo micénico, talvez mesmo um domínio desse
povo no mar, e que a considerável quantidade de
cerâmica micénica aí encontrada testemunha certa
familiaridade desse povo com os habitantes da
cidade da colina de Hissarlik, o que o leva mesmo a
afirmar que, com base na quantidade de cerâmica aí
descoberta, o local teria sido declarado colónia
micénica senão fora o nome de Tróia e a Ilíada.
Korfmann chama a atenção ainda para a especial
importância estratégica dessa cidade para os
Micénios e sublinha, por outro lado, que o campo de
batalha e o local de acampamento dos Aqueus,
descrito por Homero na Ilíada, se adapta a essa
74
José Ribeiro Ferreira
região da Baía de Besik1. Pensa Korfmann que, dada
a situação estratégica para o controlo da entrada dos
Dardanelos, teria havido várias guerras em Hissarlik,
entre o séc. XIV e o XIII a. C. As escavações,
recorrendo a meios electrónicos modernos de
prospecção, mostraram ainda que a cidade tem uma
extensão dez vezes maior do que se supunha, a partir
das muralhas da Tróia VI; e que a escrita já era
conhecida (sinete de c. 1190-1040 a.C.)2.
Em face do que se acaba de expor, não vê
Korfmann motivos que impeçam que a Tróia VI seja
a Tróia homérica nem encontra razões para duvidar
que o autor da Ilíada conhecia bem os lugares que
descreve.
Todo este substrato cultural, parte do baú que a
humanidade arrasta na memória, explica o interesse
dos povos – e povos tão diferentes, quer no domínio
político, quer no cultural. Foi também essa bagagem
espiritual – que, inseparável de nós, sempre nos
acompanha e é parte da nossa natureza – um dos
1
- M. J. Mellink (ed.), Troy and the Trojan War. A symposium
held at Bryn Mawr College, october, 1984 (Bryn Mawr, 1986),
pp. 12-16.
2 - Sobre essa extensão e novas escavações vide Michael
Siebler, «Troia. Geschichte, Grabungen, Kontroversen»,
Antike Welt 25 (1994), pp. 84-99 e figuras 119 e 129.
75
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
grandes motivos da visita ao Palácio Charlottenburg.
Hoje o Palácio, dos muitos achados
encontrados na colina de Hissarlik, desde as
escavações de Schliemann, contém armas, cerâmica,
algumas jóias…
De tarde visitámos o Museu do Holocausto que
se impõe pela sua arquitectura. Dos edifícios mais
modernos, mais audazes, quanto à forma, mas
também mais discutidos da Nova Berlim, tem risco
de Daniel Libeskind e está acoplado a construção
mais antiga. Com uma estrutura labiríntica, em
ziguezague, parte dela subterrânea, várias das suas
salas contêm uma exposição que ilustra a história dos
Judeus na Alemanha, desde os fins do Império
Romano até à actualidade. Mas o que mais
impressiona, são os espaços vazios, a obstrução de
paredes, os ângulos e arestas, os corredores em
diagonal e de piso inclinado ou em declive, uns sem
qualquer saída, outros a dirigirem-se para locais que
simbolizam horror ou exílio: o que dava para um
espaço quadrado com sete filas de sete colunas
rectangulares de cada lado, a que foi dado o nome
eufónico de Jardim do Exílio e onde, ao passarmos
por entre essas colunas, nos sentimos confusos, um
tanto desnorteados, nauseados mesmo. Outro
76
José Ribeiro Ferreira
termina na Torre do Holocausto, uma câmara
cinzenta em betão, para onde se entra por larga
abertura em diagonal com espessa e pesada porta em
ferro que sobre nós se cerra, mal lá entramos. A
câmara é escura, de clausura total. As paredes, muito
altas e lisas, apresentam apenas uma leve frincha no
topo, por onde penetra, lateralmente, escassa luz
coada. E a aumentar a ideia de aprisionamento, de
inacessibilidade, de impossibilidade de fuga, um
lanço de escadas que partia apenas de uma altura
oito a dez metros acima do solo e se dirigia à débil
claridade que provinha da frincha.
Jardim do Exílio
77
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Quando nos aproximávamos da Torre do
Holocausto pareceu-nos pressentir, cada vez mais
perto e mais nítidos, os soluços resignados de um
violino. Afinámos os ouvidos. Nítida a sensação de
que saíam de uma das vitrinas onde se expunha o
violino que pertencera a um adolescente e que o seu
pai, encarregado das arrecadações para onde iam os
pertences dos presos de Auschwitz, encontrara
juntamente com as roupas dele. Estaria o filho já
morto? Seria ainda um dos muitos cadáveres vivos
que continuavam a penar naqueles armazéns de dor,
angústia, tortura? Os soluços do violino apenas
choravam a angústia de pai. Não dava respostas.
Não tirava dúvidas. Um choro denso, calado, miúdo.
Saídos do Museu do Holocausto e de regresso
às Portas de Bandenburgo e ao Kunturforum,
observámos, de passagem, a polémica e controversa
obra do arquitecto americano Peter Eisenman
Monumento aos Judeus Assassinados na Europa que,
aprovado pelo Parlamento Federal em 1999, já se
encontrava pronto, mas só veio a ser inaugurado em
maio de 2005. Situado entre um renque de edifícios e
o Parque Tiergarten, perto das Portas de
Brandenburgo, são 2711 peças, espécie de
paralelepípedos de betão de altura variável que,
78
José Ribeiro Ferreira
assentes numa estrutura ondulante artificial, dão a
ideia de túmulos em extenso cemitério. Um pequeno
museu subterrâneo elucida sobre a política do
Nacional-Socialismo em direcção ao holocausto, dá
voz a testemunhos de vítimas… Contam-se histórias
de famílias que não mais se recompuseram. E
avoluma-se a sensação de exorcismo de um passado
recente que parece ensombrecer de negrume a alma
da cidade e pulsar no seu inconsciente. Ou somos
pura e simplesmente manipulados por um grupo
influente e economicamente poderoso? O homem é
um animal social – zoon politikon lhe chamou
Aristóteles – e com frequência deixa-se arrastar mais
facilmente atrás das emoções do que submeter-se aos
conselhos sensatos da razão. E hoje a ciência conhece
bem essa sua fraqueza e sabe que cordas sensíveis
harpejar.
Monumento aos Judeus assassinados da Europa
79
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
O dia terminou com uma visita rápida ao
Kulturforum onde, no Kupferstichkabinett, em
exposição temporária, se encontrava o busto de
Nefertiti, com mais de três mil anos, perfeito, bem
modelado, que foi descoberto em 1912 pelo
arqueólogo alemão Ludwig Borchatdt.
Habitualmente a imagem da famosa rainha do
Egipto oferece-se aos nossos olhos no Museu Egípcio
que, situado junto do Palácio Charlottenburg, ocupa
dois edifícios da Schlosstrasse, construídos para
serem, na altura, quartel dos oficiais do Corpo da
Guarda Real.
Busto de Nefertiti
80
José Ribeiro Ferreira
A noite foi dedicada ao descanso e a amena
cavaqueira no bar do Hotel. Fora, o frio era forte e
cortante, convidativo ao recolhimento interior, a uma
bebida quente e aconchegante, a uma conversa
serena e tranquilizadora, entre amigos, que aos
poucos abriu as portas ao riso.
No dia 21, segunda feira, com os museus de
Berlim fechados, os Estudiosos dispersaram-se em
pequenos grupos, conciliando os interesses de cada
um. Um desses grupos, o mais numeroso,
programou uma surtida rápida a Potsdam, que foi
antiga residência dos reis da Prússia, uma cidade
milenária cheia de história e de arte, com belas e
movimentadas ruas, sempre bem pejadas de turistas.
Muito destruída pelos bombardeamentos de 1945 e
pelo após guerra, a cidade veio a ser palco da
conferência que decidiu o destino da Alemanha
vencida e local do tratado que assinou o seu futuro –
a conhecida Conferência de Potsdam entre Truman,
Churchill e Stalin, reunida em Cecilienhof, de 17 de
julho a 2 de agosto de 1945.
Acompanhados pela Berta, sempre atenta e
disponível, saímos do Hotel pelas nove horas e
quinze, tomámos o metro e depois o comboio, ao
81
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
chegar a Potsdam o autocarro que ultrapassou a
cidade e nos levou ao Parque de Sanssouci – um belo
parque que mal começava a espreguiçar-se da longa
hibernação e apenas em potência prometia densa
sombra para o verão.
Jardins do Palácio de Sansouci (Foto de Abílio
Queirós)
Esplêndidos e artísticos lagos e fontes, os
bancos repousantes, os palácios coloridos, rasgados
de janelas e agaloados de estátuas convidavam a
gozar momentos de despreocupação, de meditação,
de silêncio.
Como o palácio de Sansouci – 1745-1747, da
autoria de Knobelsdorff e edificado por ordem de
Frederico II – se encontrava encerrado, por ser
segunda feira, visitámos o Neue Palais, também
82
José Ribeiro Ferreira
mandado construir por Frederico II da Prússia que
entregou a sua realização aos arquitectos Büring,
Manger e Gontard, executada entre 1763 e 1769.
Embora actualmente ali funcione a universidade em
parte das instalações, continua ainda a parte central
como palácio museologizado, de que realço a Sala da
Gruta, decorada com milhares de gemas, minerais,
pedras coloridas, conchas, fósseis que a assemelham
a uma maravilhosa gruta encantada; a Sala de
Mármore, toda em mármore de cores várias; o
gabinete de trabalho, a biblioteca e a sala de música
de Frederico o Grande; o teatro do Palácio.
Depois de rápido passear pelas ruas de
Potsdam e de almoço ligeiro na Praça Luísa, junto de
Porta de Brandeburgo, regressámos a Berlin, ainda a
tempo de visitarmos o museu de arquitectura
Bauhaus-Archiv de Berlim.
À noite, após o jantar, um pequeno grupo foi
ver um concerto musical no Staatsoper, de obras de
autores portugueses contemporâneos: Lopes Graça,
Viana da Mota, João de Freitas Branco.
O dia 22 estava livre até às onze horas,
momento em que devíamos deixar as malas às portas
dos quartos, para às onze e meia abandonarmos o
Hotel e nos dirigirmos ao aeroporto. E cada um
83
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
preencheu esse tempo conforme seu gosto. O relator
da viagem, tomado um rápido pequeno almoço,
aproveitou-o para uma última visita ao Altes
Museum e a sua considerável colecção de vasos
gregos que, na ida do dia dezanove, não conseguira
apreciar com a calma e vagares necessários, e
sobretudo não detectara alguns espécimes que
julgava pertencer a esse museu. Açodado e
consciente de que teria de estar de volta ao Hotel às
onze menos dez ou onze horas, acomodou-se no
autocarro 100, foi revendo locais, edifícios,
monumentos, percorreu toda a Unter den Linden e
saiu em Lustgarten, com a magnífica fachada das 18
colunas iónicas do Museu na sua frente, batiam as
nove e meia. Logo estranhou, porém, a calma solidão
do largo todo deserto. A existência apenas de um
casal, sentado nas escadas. O Museu afinal abria só
às dez e foi necessário contar, pacientemente, os
lentos minutos e, depois, estugar a visita, de novo
sem os vagares que pretendia. Se da primeira vez não
encontrara a taça do Pintor de Pentesileia, que
representava a morte da rainha das Amazonas por
Aquiles, agora também o não descobrira – confusão
lhe ocupara o espírito, porque afinal a taça estava no
Museu de Munique, não no Altes Museum. Reviu o
Pintor de Berlim, as vitrinas sobre symposia e sobre
84
José Ribeiro Ferreira
jogos atléticos, admirou mais uma vez o busto de
Péricles, parou diante de uma ou outra figurinha de
Tanagra, o pequeno mas surpreendente mosaico do
Centauro… E correu de novo para o autocarro 100,
que as dez e meia já estavam ultrapassadas.
Às onze e meia estávamos todos prontos para
deixarmos o Hotel e dirigirmo-nos para o aeroporto,
onde suportámos, com a paciência e estoicismo
possíveis, uma longa, desesperante, desgastante,
desnecessária espera de cerca de duas horas até à
abertura dos balcões para o check-in.
A tarde iniciara já o seu rápido curso de início
de primavera, quando deixámos Berlim. Na retina e
na memória gravados, o afã e o desejo de eliminar
mazelas, de disfarçar cicatrizes, de adoçar arestas, de
delir manchas, de exorcizar culpas. A dolorosa
memória a desfiar actos, sons, imagens, angústias,
remorsos.
85
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
A valsa das formas e os sons das cores
A chegada a Viena e recolha das malas, o
encontro com a Renata, a nossa eficiente e bem
documentada guia de Viena, o acolhimento no Hotel
Ananas ocupou a tarde até às 17h00.
Gastos cinco minutos para levar as malas aos
quartos, saímos ansiosos para uma visita, ainda que
rápida e de passo estugado, à Catedral de Santo
Estêvão e ao centro da cidade. Um apelo irresistível
nos impelia. Viena pairava no nosso imaginário
cultural com séculos de sedimentação: os seus
monumentos e as suas ruas sempre buliçosas e cheias
de promessas; as suas instituições culturais, os seus
museus, as suas casas de espectáculo quase míticas
que apelam à fruição auditiva só de lhes
pronunciarmos o nome; o renomado relógio
Ankeruhr, com as suas simbólicas e históricas figuras
a cumprimentarem os transeuntes, metodicamente,
todos os dias ao meiodia; a Fonte dos Desposados
(1729-1732), obra da autoria de Josef Emanuel Fischer
von Erlach, que representa os esponsais de S. José e
86
José Ribeiro Ferreira
da Virgem Maria; o famoso artesanato de Viena, com
destaque para os objectos de porcelana Augarten e as
peças de cerâmica artística, as bonecas feitas à mão,
os esmaltes, os artigos de couro, a ourivesaria.
Começámos a visita pela Catedral de Santo
Estêvão, a alma pulsátil, densa e flamejante da
cidade. Situada no núcleo primitivo, no canto sudeste
do antigo Castrum Romano, inicia-se em 1359, com a
construção da nave em estilo gótico flamejante – de
110 m de comprido, dividida em três por colunas –, e
só termina em 1570, com a conclusão da cúpula da
torre norte. Como símbolo da cidade, o campanário
da torre sul, gótico, ergue-se a 137 metros e parece
proteger do seu elevado trono a outras três torres: a
norte que, durante muito tempo, esteve incompleta e
já se concluiu em estilo renascentista; as duas que
ladeiam a fachada que se ficam pelos 64 metros e são
chamadas dos ‘Pagãos’, únicos vestígios, com o
chamado Pórtico dos Gigantes, da primitiva igreja
românica, do século XIII, que antecedeu a actual e
que, por sua vez, havia substituído um antigo templo
pagão. Muito destruída pelos bombardeamentos da
II Guerra Mundial e pelo incêndio que se lhe seguiu,
foi cuidadosamente reconstruída por arquitectos,
canteiros e massa anónima. Só os magníficos vitrais
ficaram para sempre sem remédio. Não entrei, como
87
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
antigamente, pela Porta dos Cantores, o tradicional
acesso das visitas masculinas de outros tempos, mas
não deixei de apreciar os magníficos relevos que
encimam essa porta e representam cenas da vida de
S. Paulo.
A hora da missa de Terça Feira Santa impediu
que circulássemos livremente pelo interior. Sentimos,
porém, toda a emoção e toda a densidade religiosa
desse amplo templo. Impressiona pela grandeza,
pelo carácter acolhedor, pela arte que dá mãos ao
recolhimento. Aí entrados, de imediato os olhos nos
fogem, insensivelmente, para dois altares, indecisos
entre privilegiar um ou o outro: ora se fixam na
beleza e harmonia do Altar Mor, em que sobressai
uma pintura do padroeiro, Santo Estêvão, a ser
lapidado (obra de Tobias Bock (ou Pock); ora
deslizam, fascinados, para o altar e retábulo que
ficam à esquerda de quem entra e tem o sugestivo
nome de “Altar dos novos cidadãos de Viena” – altar
que aparece encimado pelas iniciais A.E.I.O.U.
(Áustria est imperium orbis universalis), divisa de
Frederico III que, na nave oposta, de frente, em
magnífico túmulo, cinzelado com delicadeza e
precisão (obra de N.G. von Leiden), olha a Virgem e
o Menino, seguro da benévola intercessão dos dois.
88
José Ribeiro Ferreira
Mas aos poucos os olhos, talvez mais
habituados à penumbra que enche a Catedral, vão
notando outras obras e pormenores dignos de serem
apreciados, alguns a recortarem-se e à procura de
evidência entre baldaquinos, mísulas, altares: a
Virgem do Manto Protector (1450-1500); a Virgem de
Pötschen (de 1697) que veio da aldeia húngara de
Pecs e à qual foi atribuída a vitória do Príncipe
Eugénio sobre os Turcos. E as obras que são marca
inconfundível de Anton Pilgram: a belíssima imagem
da ‘Virgem do Serviço Doméstico’ (séc. XIV); o
púlpito que é obra notável do mesmo artista,
decorado com quatro Doutores da Igreja
(representam quatro temperamentos fisionómicos).
Sobretudo os olhos parecem atraídos por íman para
os dois impressivos autoretratos também de Pilgram
em que o escultor, de compasso na mão em um
deles, assoma a uma janela entreaberta e olha atento
e interessado o interior da Catedral e, de esquadro e
compasso no outro, se debruça sob um pilar de
suporte do primitivo órgão e, com todo o peso da
mísula em triângulos nas costas, perscruta com
minúcia volumes e pormenores.
Só não consegui acercar-me – impedia-o a hora
e a circunstância da solenidade religiosa que se vivia
– do “Cristo com Dor de Dentes”, o irreverente nome
89
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
dado a uma imagem do filho de Deus, situada no
transepto esquerdo, que, segundo a tradição,
castigava com dores de dentes os que dela
escarneciam.
De seguida, com a rapidez que o adiantado da
hora exigia, percorremos algumas ruas e praças do
centro de Viena: a Stephansplatz e a Kärtnerstrasse,
uma rua cheia de lojas comerciais (a maioria toda
enfeitada com os ovos e coelhinhos da Páscoa), com
muita luz e cor, das mais elegantes de Viena; a
movimentada e vistosa rua Graben, em cuja esquina
com a Kärtnerstrasse se encontra o tronco de árvore,
resto de um antigo bosque que até ali chegava, o
chamado “Tronco de Ferro” ou Stock im Eisen.
Cheirámos, em olhadela furtiva, o pequeno mas
famoso Bar Americano, sito na rua Kärtner, cuidada
obra de Adolf Loos (1870-1933), com ostentação de
estrelas e barras, com interior revestido de ónix e
mármore que reflectem uma luz suave, painéis de
mogno, mesas iluminadas por baixo, espelhos que
ampliam e multiplicam o espaço. Apreciámos a
Coluna da Peste, situada também na Graben, em
estilo barroco, com relevos e duas fontes, bela obra
de arte consagrada à Santíssima Trindade e erigida
em consequência de promessa feita por ocasião da
mortífera e devastadora peste de 1679. Demos uma
90
José Ribeiro Ferreira
passagem rápida – espécie de aperitivo nocturno
para a visita que faríamos no dia seguinte – pelo
Palácio Hofburg, onde à entrada, uma majestosa
fachada, apreciámos as monumentais esculturas que
representam quatro trabalhos de Héracles, não sem
antes olharmos os restos romanos que foram
descobertos na praça de S. Miguel. O palácio
iluminado tinha volumes, sombras, fascínios. Parecia
que os rostos das imagens nos olhavam mais densas
e concentradas, que as fachadas haviam perdido as
marcas do tempo.
Reconfortados com o jantar, essa noite foi de
repouso e de descanso, em amena cavaqueira de
grupo. O cansaço físico não fora muito, mas a
viagem, a preocupação das malas e da altitude,
sobretudo a espera, deixaram mossas que um bom e
grato convívio cauterizava melhor e sarava mais
rapidamente do que a mais consagrada mezinha
farmacológica: as graças do Abílio, as anedotas da Zé
Ferreira, os risos francos e espontâneos da Virgínia e
da Zélia varriam sombras e rejuvenesciam e
alegravam, tonificando o espírito para o dia seguinte.
E o relator destas linhas, de invisível microfone
assestado e ouvido atento, tudo registava e tudo
guardava, zeloso e solícito, no fio da memória.
Malhas que o tempo tece e o silêncio destece, ao
91
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
desdobar o longo novelo do vivido, quando se
vasculha o baú onde se foram acumulando passos,
gestos, sons, cores, palavras.
Só uma pequena sombra permanecia, pairando
indelével no sentir colectivo do grupo, imperceptível
quase mas larvar, subterrânea: o casal Patrício que, a
contas com uma incómoda e persistente gripe desde
os primeiros dias de Berlim, recolhera logo ao
quarto. Nada é perfeito nem encontrei nunca a plena
felicidade. De muros a dentro convivem
incompletude e natureza humana. É a total perfeição
incompatível com o homem, natureza imperfeita e
sempre insaciada.
O Belvedere (foto de Abílio Queirós)
92
José Ribeiro Ferreira
O dia 23, depois de rápida passagem
panorâmica por alguns pontos da cidade, iniciou-se
com a visita ao Belvedere (ou ‘da Bela vista’), que
num dos lados se revê em pacífico lago e no outro
contempla, pensativo e extasiado, os jardins que lhe
levam o olhar até à cidade, a estender-se mais abaixo
monumental, solene, espraiada. Obra de estilo
barroco concebida pelo arquitecto Johann Lukas von
Hildebrandt, mandou-a construir, entre 1700 e 1725,
para sua residência, o Príncipe Eugénio de Sabóia,
que desempenhou papel proeminente na Guerra
contra os Turcos. E, nas construções turcas
precisamente, se inspira a forma dos telhados do
palácio. Surpreendem a fachada harmoniosa, a
monumental escadaria, a luminosa Sala de Mármore,
onde, em 15 de maio de 1955, foi assinado o Tratado,
pelo qual os países ocupantes concederam a
independência à Áustria e esta se comprometeu a
manter a neutralidade. Só o soldado soviético, do
alto da sua coluna, continua a lembrar aos Vienenses
esses tempos dolorosos.
93
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Esfinge dos Jardins de Belvedere
Os jardins do Belvedere, simples mas
artisticamente desenhados e dispostos, entrelaçavam
mãos com geométricos lagos que reflectem efebos a
lutarem com cavalos marinhos e crocodilos e de onde
parecem sair esbeltas nereides. Adornavam esses
jardins numerosas esfinges, todas elas de fácies e
perfil diferentes, alguns assemelhando belos rostos
de efebos. Que simbolizam ou representam? Porquê
esses masculinos rostos adolescentes em corpos de
míticas entidades femininas? Sempre a insaciável e
94
José Ribeiro Ferreira
doentia busca dos recessos da alma humana e suas
intenções.
Desses jardins e do Belvedere temos uma
magnífica visão sobre parte da cidade. E, antes de
entrar, ali estivemos um momento a relembrar e
reconhecer edifícios e monumentos, a deleitar os
olhos. O núcleo antigo e a Ringstrasse que marcou
para sempre Viena. Graças talvez a essa circular,
construída sensivelmente pelo perímetro das antigas
muralhas e graças aos edifícios que ladeiam essa
famosa artéria, em grande parte de uma época
determinada (meados do século XIX, inícios do XX),
a cidade apresenta uma grande harmonia
arquitectónica e o ar festivo de baile de gala.
É neste harmonioso Palácio barroco que se situa
a Galeria Austríaca do Belvedere, com a arte dos
séculos XIX e XX exposta no Belvedere Superior. Aí
encontramos salas dedicadas ao estilo Biedermeier,
que privilegiava o estilo neoclássico, ao Jugendstil ou
Arte Nova, à época da construção da Ringstrasse.
Nesse Museu e Galeria do Belvedere se
recolhem abundantes colecções de pintores
austríacos do fim de século, com saliência para Klimt,
Schiele,
Kokoschka.
São
três
pintores
contemporâneos, tão diferentes nas figuras que
apresentam e nas cores que utilizam, se bem que
95
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
alguns elementos há que os caracterizam como
pertencentes à mesma escola. E os Estudiosos
observaram-nos de frente, de lado, recuaram,
aproximaram-se. Em todos se notava, pairava no
olhar e no ríctus facial a sensação incómoda de
inquietação, um misto de repulsa e atracção.
Os quadros de Schiele são agressivos e duros,
com um erotismo exposto e aberto. E as suas figuras,
de contornos angulosos, esqueléticas, ossudas, dão a
sensação de que, na generalidade delas, a doença
lavrou e consumiu o corpo, nele deixando fundos
estragos e sulcos irreparáveis. São bom exemplo o
seu Autoretrato nu (de 1910), bem marcados os ossos
do peito, do ilíaco e das pernas, as costelas, o
abdómen e o pescoço totalmente chupados. E o Nu
sentado (também de 1910), em que o corpo está todo
sugado: ventre e peito exauridos, as costelas e os
ombros salientes, os braços e pernas sem músculos,
de ossos bem marcados, deixam a sensação dolorosa
e inquieta de esqueleto, a que apenas a pele cobre e
não consegue disfarçar.
96
José Ribeiro Ferreira
Nu Sentado de Schiele
Impressão idêntica é a que se sente perante o
quadro conhecido como o Homem e a rapariga ou A
Morte e a rapariga (1915).
A Morte e a rapariga de Schiele
97
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Os mesmos perfis duros das figuras que, sobre um
pano branco em desordem, se abraçam com
desespero, embora sem força, numa paisagem
desolada.
As figuras de Klimt são significativamente
diferentes, embora possamos encontrar afinidades,
como acontece na Rua no Parque do Palácio Kammer
em que há tensão e se privilegia o negro e despido
dos troncos das árvores; em figuras do Friso
Beethoven (1901-1902) da Secessão, como as três
Górgonas e as representações da Doença, da Loucura
e da Morte, que lhe ficam por trás; em As três idades
da vida (1905), sobretudo a figura mais idosa. Nas
obras de Klimt predomina o ouro, como acontece em
Judite I (1901), em que essa figura do Antigo
Testamento aparece representada como uma mulher
fatal vienense, com o seu fácies orientalizado, cabelo
negro e farto, olhos semicerrados e lábios
entreabertos, profusão de ouro em fundo e a
envolver o seu corpo semidesnudo. Há um recurso
assíduo aos ornamentos geométricos, inspirados
sobretudo na arte grega e egípcia (uma característica
do Jugendstil), como se pode ver no Retrato de Fritza
Riedler (1906) e em O beijo (1907-1908). Bem
torneados e harmónicos, os corpos são elegantes,
com frequência sinuosos, flexíveis, sugeridos por
98
José Ribeiro Ferreira
cores suaves e linhas muito finas, como acontece em
Serpentes de água I e II (c.1904-1907), em que, no
quadro I, uma figura feminina, de corpo jovem, com
a cabeça muito inclinada, olhos cerrados e lábios
entreabertos, abraça fortemente outra figura
feminina, de costas para o observador; e no II, figuras
femininas, de corpo ondulante e sensual, deslizam
horizontalmente ao longo da tela.
Klimt, Serpentes de Água I
Nas obras de Klimt observamos um contraste
ou certa ambiguidade entre erotismo e moralidade,
sensualidade e recato, com os corpos enlaçados, a sua
forma levemente sugerida por finos traços ou por
cores suaves. Embora Klimt se distinguisse pela
pintura figurativo-simbolística, as paisagens exercem
também significativo papel na sua obra, com o artista
a privilegiar – como é o caso de Jardim campestre com
girassóis (1905-1906) – as telas quadradas e a prestar
especial atenção à escolha dos ângulos e das cores, de
99
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
modo a criar uma atmosfera próxima do
impressionismo
O beijo ou Os amantes, como também lhe
chamou Klimt, é a mais emblemática e conhecida
obra do autor. O par amoroso que se estreita
ternamente encontra-se num prado atapetado de
flores, mas dá a sensação de que não o pisa, antes
parece levitar acima dele, todo envolto numa espécie
de dourada auréola fulgurante, qual redoma que com
eles forma um todo e de onde descem ramos de hera
também dourados. A figura feminina está de joelhos,
traja um vestido ornamentado com desenhos florais
geométricos de cores vivas, tem os olhos e os lábios
rubros cerrados, lança o braço sobre o pescoço do
homem e dele recebe terno beijo na face – dele que,
profundamente inclinado para ela, enverga um
hábito com motivos ornamentais rectangulares
negros e dourados e todo a parece envolver com a
sua protecção afectiva. Os dois corpos, de linhas
imprecisas e sinuosas, estreitamente enlaçados,
formam um todo, as cabeças e faces unidas, os braços
direitos a envolver o pescoço um do outro, os cabelos
negros enfeitados, com grinalda de hera os dele, com
flores os dela. O par enlaçado encontra-se na orla de
um precipício, alheio contudo ao perigo, protegido
que está pela auréola de ouro que o rodeia. Assim o
100
José Ribeiro Ferreira
quadro não representa um beijo apaixonado mas
algo de atemporal e eternamente válido – a ternura
consistente e intangível do amor, incorruptível ao
tempo e às circunstâncias.
O Friso Beethoven – com 34 metros de comprido
por dois de altura, aproximadamente – é outra obra
emblemática de Klimt. Por ocasião da XIV exposição
da Secessão, dedicada a Beethoven, o pintor executa
esse famoso friso sobre o tema da Nona Sinfonia do
referido compositor e da Ode à alegria de Schiller – o
anelo à felicidade. A obra, concebida e executada à
maneira de uma sinfonia, é uma sequência de
claridade e sombra, de negrume e luz. Nela o
dourado, o gesso negro, a grafite, a madrepérola
predominam. No lado esquerdo, temos o
“sofrimento da débil humanidade” que suplica ao
“homem forte”, como força exterior – bem armado
com espada e com uma armadura dourada e
reluzente – que a dirija e guie para Deus. A
humanidade é precedida por esse homem
resplandecente que parece incitá-la a empreender a
caminhada e a luta pela felicidade. Sobre e por trás
dele, elevam-se a “Compaixão” e o “Orgulho”, como
saindo da sua própria sombra, quais forças interiores.
Este grupo fica separado da parte central por um
espaço de estuque branco apenas pintado na parte
101
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
superior, junto ao tecto, por um friso de figuras
femininas, horizontais, sinuosas, flutuantes, que
representam o anelo da humanidade à felicidade e
ligam o grupo do homem dourado e armado ao
grupo central das figuras hostis.
Essa parte frontal, e painel central, representa
os poderes opostos e maléficos que é necessário
vencer para se conseguir a felicidade: o gigante Tifeu
contra o qual os deuses olímpicos, neste momento,
são ainda ineficazes – aqui figurado como um misto
de gigante, de macaco e de serpente com olhos de
madrepérola – que tem ao seu lado esquerdo as suas
três filhas, as Górgonas, e por trás delas a
personificação da Doença, da Loucura e da Morte.
Do lado direito da cabeça de Tifeu, personificadas, as
forças hostis da Lascívia, da Luxúria e da
Incontinência, com o seu ventre proeminente, que
parecem emanar do próprio corpo peludo e negro do
monstro.
O painel direito representa a realização do
“anelo à felicidade”, através da poesia, da arte e do
amor, realização essa simbolizada numa espécie de
beijo universal que parece abraçar o mundo. O “coro
dos anjos do Paraíso”, elevado e suspenso sobre o
verde de um prado florido, canta como que em
êxtase – possivelmente a Ode à Alegria de Schiller. Na
102
José Ribeiro Ferreira
frente do coro, envolto numa espécie de redoma
dourada, como se fora um halo de luz que ofuscasse
as sombras, um par amoroso, terna e densamente
enlaçado – talvez o homem armado de dourada
armadura –, funde-se, visíveis só os corpos: um par
que tem muitos pontos de contacto com a posição do
par que representa o beijo. Aqui, no entanto, a figura
masculina, inclinada, musculosa, desnuda, está de
costas e quase oculta a feminina que toda se estica
para lhe abraçar o pescoço, o que o aproxima mais de
Realização (1905-1909). E, junto do coro dos anjos e do
par amoroso, a pobre humanidade, com o cabelo
quase em círculo imitando o halo, eleva-se num veio
dourado, qual coluna de fogo que ascende e purifica.
Nessa parede direita, a separar ou ligar as
figuras hostis do painel central deste grupo que
simboliza uma espécie de beijo universal, o mesmo
espaço de estuque branco apenas pintado na parte
superior, junto ao tecto, por um friso de figuras
femininas, horizontais, flutuantes, que representam o
anelo da humanidade à felicidade. Aqui este fino
friso sinuoso, a humanidade apetente e anelante da
felicidade, liga-se a uma figura dourada, a tocar lira,
que simboliza a poesia. É um friso que, pairando
superiormente junto ao tecto, se inicia no painel
esquerdo, parece ultrapassar, escondido, o grupo
103
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
central de Tifeu e dos poderes hostis, reaparece no
painel direito para, superando tudo através da arte e
da poesia, obter a vitória longamente esperada: e,
desejosa de felicidade, a humanidade atinge-a, a tudo
se unindo em harmonia, identificando-se com a
natureza e elevando-se até à divindade. E assim a
superação das forças hostis – que, momento a
momento, se cruzam connosco e com as quais dia a
dia tropeçamos e encalhamos – conduz ao conforto
da melodia do dos anjos, ao abraço universal e à
elevação.
É bem notória, neste Friso Beethoven, a presença
de algumas características que marcam a pintura de
Klimt: superabundância do dourado que aparece no
Homem forte e bem armado, nas serpentes das
Górgonas, no coro de anjos, no veio em que sobe a
pobre humanidade, a envolver o par amoroso;
predilecção pelos ornamentos geométricos que se
encontram no vestuário da Compaixão e do Orgulho,
nas jóias e desenhos da saia da Incontinência, junto
ao par amoroso; corpos estilizados, sinuosos,
sugeridos quase só por traços de grafite, levemente
sombreados e coloridos; recurso ao uso simbólico
dos mitos e figuras da Antiguidade grega.
Esse pendor para utilização de figuras e temas
helénicos está na origem de pinturas como Dánae
104
José Ribeiro Ferreira
(1907-1908), em que a figura feminina, de olhos
cerrados e cabelo ruivo, o corpo enrolado, como que
em posição uterina, recebe a união com Zeus na
forma de chuva de ouro. Palas Atena (1898) que,
armada de égide, elmo e lança dourados, apenas
deixa entrever, por ligeira abertura do elmo, a face de
lábios finos e rubros, os olhos tenuemente glaucos e
leve sugestão do queixo; que deixa cair sobre a
couraça os cabelos louros, saídos sob o elmo; e que
tem por trás, como fundo, silhuetas de figuras de
vasos gregos. A Higeia (1900-1907), deusa que
simboliza a Medicina e aparece representada com
fácies oriental – de sobrancelhas escuras densas,
lábios grossos, cabelo negro adornado com grinalda
de flores – e veste vermelha, sobre a qual caem
filamentos dourados de hera, várias voltas de
serpentes, também douradas, que se entrançam nos
braços. A alegoria da tragédia, a negro e de máscara
na mão. A representação de Atena (1890), no friso da
escadaria do Museu de Belas Artes, que, na sua
túnica vermelha, égide dourada, cabelos negros
caindo em madeixas, fácies oriental, simboliza a
cultura helénica.
105
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Klimt, Alegoria da tragédia
O fresco do Burgtheater (1886-1888) que tem o
título Tespiskarren e representa Téspis, segundo a
tradição o primeiro autor e intérprete de uma
tragédia grega.
Cuidadosa e sabedora, a Renata, nossa guia em
Viena, falou do palácio, explicou o papel do Príncipe
Eugénio de Sabóia na luta contra os Turcos, a
importância do museu e seu enquadramento
temporal. Como o nosso objectivo incidia sobretudo
em Klimt e Schiele, procurou mostrar, no Museu, a
106
José Ribeiro Ferreira
pintura e escultura que se relacionasse, no tempo ou
na estética, com esses dois artistas: impressionismo
francês, movimento Biedermeier, o Jugendstil ou
Arte Nova. Situado na dobragem do século, este
último movimento artístico – em que pontificavam,
na pintura, Gustav Klimt e Egon Schiele – propunhase superar as formas historicizantes e o
conservadorismo da época anterior e criar um estilo
contemporâneo. Essa nova postura artística tinha o
seu centro na Secessão e em Klimt o seu principal
mentor ou um dos mais destacados guias. Dele
arranca o expressionismo austríaco que, em vez de
focar o exterior e a vida das grandes cidades, centra a
sua atenção na interioridade do indivíduo.
Os olhos e atenção do relator destas notas
fugidias incidiram de modo especial em alguns
quadros e estátuas: os quadros Triunfo de Ariadne e
Cinco Sentidos de Hans Makart, o Julgamento de Páris
de M. Oppenheimer; e as esculturas Amor e Psyche e
Filoctetes de Theo Friedl e de J. Nepomuk Schadler,
respectivamente. Todas de temas ou figuras das
antigas Grécia e Roma? Talvez as canoas do relator
frequentem, assíduas, essas úberes águas e
subrepticiamente a deformação profissional lhe tenha
penetrado e inundado os poros.
107
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Depois da visita, ao chegar à loja das
recordações e reproduções do Museu, começamos a
notar que O beijo era uma presença constante: ele
estava no lenço de cabeça e no lenço de mão, cobria
as camisolas e os chapéus de chuva, adornava os
copos e respectivas bases; ele envolvia as canetas e as
esferográficas, estendia-se pelos lápis e pelas
borrachas, enfeitava as capas dos livros; ele sorria
nos postais, acenava nas carteiras e nas caixas,
abanava os leques, encimava os blocos de notas e os
envelopes. Em tudo aparecia, em quanto se
comprava e se vendia. A estranha sensação de que,
aos poucos, se verificara uma verdadeira proliferação
de O beijo, como se brotasse de tudo o que era vida,
cor, forma ou movimento; em tudo nos acenasse. O
beijo preservava os cabelos dos desmandos do vento
ou protegia os ombros da brisa fresca da noite. O
beijo sorria nos seios jovens da donzela apetitosa ou
acenava no peito denso da mulher madura ou da
matrona já entradota. O beijo, em abanico frenético
ou compassado, minorava os calores das mais
afogueadas. O beijo abrigava da chuva e resguardava
dos ardores do sol. As pessoas levavam à boca O
beijo, assoavam-se com O beijo, bebiam em O beijo,
marcavam os livros com O beijo, enviavam aos
amigos O beijo. Escrevia-se com O beijo, desenhava-se
108
José Ribeiro Ferreira
em O beijo, apagavam-se os traços ou figuras da folha
com O beijo. Uma verdadeira pandemia, como se O
beijo houvesse ocupado irresistivelmente espaços,
formas, cores.
O almoço foi comido perto da Ópera e do
Museu Albertina, com o autocarro a deixar-nos na
Albertinaplatz, onde se encontra uma sugestiva
fonte, a Fonte do Danúbio, que representa o famoso
rio e cujas esculturas em mármore branco de Carrara
são da autoria de Johann Meixner. Cada um escolheu
o sítio e a ementa que mais lhe convinha para
almoçar. Curioso foi verificar que a maioria se veio a
reencontrar no Café Mozart, de chávena na mão e
copo de água na frente. Mera coincidência apenas ou
talvez também manifestação de gosto e paladar?
De tarde, visitámos a Hofburg, em especial o
Museu de Éfeso e o Museu de Belas Artes. O
primeiro, situado na Neue Burg, contém algumas das
descobertas arqueológicas de Samotrácia, incluindo
um friso da célebre Vitória que se encontra exposta
no Louvre. Guarda sobretudo boa parte dos achados
das escavações realizadas na antiga, famosa e
cosmopolita cidade que lhe deu o nome, Éfeso, sita
na Ásia Menor, cujas ruínas ainda hoje surpreendem
e maravilham o visitante.
109
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Éfeso, a mágica cidade, cheia de íntimos apelos.
Pronunciam os lábios o seu nome, e logo o
pensamento desfila pelo baú das memórias
acumuladas. Daí que hoje os turistas e visitantes
acorram aos milhares.
Sítio que foi sede de uma povoação micénica,
Éfeso foi uma das cidades fundadas pelas chamadas
Migrações gregas e sua ocupação da zona costeira da
Ásia Menor, formando as três regiões designadas, de
norte para sul, de Eólia, Iónia e Dória – colonização
que estava realizada já no séc. X a.C.
Plano das ruínas de Éfeso
110
José Ribeiro Ferreira
A Éfeso arcaica estendia-se entre o estuário do
Caístro e a encosta ocidental do monte Píon — hoje
Panayir Dagi —, onde deveria estar situada a
acrópole. A cidade – que teria sido fundada segundo
as prescrições do Oráculo de Delfos, ao profetizar
que o lugar apropriado seria revelado por um peixe e
por um javali selvagem – cresceu e a um núcleo
inicial, amuralhado, outros se juntaram. Daí que
Heródoto fale em "cidade antiga".
Segundo Estrabão, Creso teria conquistado
Éfeso e colocado nela uma guarnição lídia (14. 1. 21,
640); para Eliano, deu-lhe autonomia plena, depois
de expulsar o tirano local, Píndaro1.
A localização mudou diversas vezes devido ao
contínuo afastamento das águas do porto. Hoje as
ruínas do antigo porto encontram-se a dez
quilómetros da costa.
O desenvolvimento económico, urbanístico e
social de Éfeso foi poderosamente influenciado pelo
culto da Ártemis Efésica e deve muito ao seu famoso
templo, o Artemísion. O culto de Ártemis, deusa
grega da pureza, dos animais selvagens e dos
espaços exteriores, aí se deve ter misturado com o da
1-
Varia Hist. 3. 26.
111
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
deusa asiática Cibele, transformando-se na famosa
Ártemis Efésica, a tão adorada deusa da
fecundidade, representada com inúmeros seios e
rodeada de leões e veados. O seu templo, o
Artemísion, cresceu e aumentou a sua esfera de
influência, com o andar dos anos, tornou-se o factor
mais importante do desenvolvimento da cidade:
funcionou como banco, aceitava dádivas, emprestava
dinheiro do tesouro do templo. Os sondáveis — mas
nem sempre bem perceptíveis — caminhos do
cruzamento de povos, de interesses, de crenças.
Como a deusa asiática Cibele tinha a forma de
Xoan, ou seja era esculpida ou gravada sobre
madeira, a mais antiga estátua da Ártemis de Éfeso
devia ser também, possivelmente, de tipo xoânico,
traçada sobre madeira sem grande pormenor. Depois
a representação iconográfica da Ártemis Efésica
acompanhou a evolução da escultura grega. E a
análise atenta das muitas estátuas que a representam
– sitas no Museu de Éfeso ou em outros – dá-nos a
prova de que a fusão Cibele-Ártemis obteve morada
definitiva na Ásia Menor. As pernas não têm
movimento, como se estivessem unidas, ou melhor,
fundidas. Por outro lado, se os muitos nódulos que
apresenta no peito, já foram por vezes considerados
seios, não deixa de ser surpreendente a aparência que
112
José Ribeiro Ferreira
apresentam com os testículos de touro, os testículos
dos touros que lhe são sacrificados – interpretação
que também já tem sido avançada e que a liga à
fertilidade da Grande Mãe, já que produzem sémen.
Os leões, touros e esfinges que pendem das suas
vestes indicam-na como protectora dos animais. Por
outro lado, os leões, que encontramos nos relevos de
um e outro lado da deusa Cibele, são nestas estátuas
representados nos braços ou nas mangas.
Ártemis Efésica
113
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Famoso santuário dedicado à deusa de Éfeso,
no período helenístico era considerado uma das sete
maravilhas do mundo. Pausânias, um viajante da
antiga Grécia, atento, sensível e bem informado,
apelidou a sua esplendorosa estrutura como a «maior
maravilha das sete antigas maravilhas» e a «mais
bela obra jamais criada pela mente humana». Por isso
os Efésios sentiam certa relutância em deslocarem-se
para mais perto da costa.
O mais antigo templo, que dataria talvez do séc.
VII a. C., deve ter sido destruído pelos Cimérios,
durante o seu ataque a Éfeso.
O mais conhecido é, no entanto, o chamado
Templo de Creso – nome que lhe advém pelo facto
de este monarca lídio ter ajudado na sua construção
em meados do séc. VI, antes de ter sido derrotado
por Ciro da Pérsia, em 546 a. C. Segundo a tradição,
nesse Templo teria depositado Heraclito, que era
natural de Éfeso, o manuscrito do seu livro – assim
ficava a sua obra sob a salvaguarda da deusa
Ártemis.
No primeiro quartel do séc. VI a.C., os
arquitectos Rhoicos e Teodoro erigiram em Samos –
ilha que se situa mesmo defronte da cidade de Éfeso
114
José Ribeiro Ferreira
– um grandioso templo em honra da sua deusa
protectora, Hera. Esse Heráion, em estilo iónico,
ganhou muita popularidade e incitou os Efésios a
empreenderem a construção de um templo a Ártemis
que superasse em magnificência o da cidade rival.
Entregaram essa tarefa aos arquitectos Quérsifron
(Chersiphron) e seu filho Metágenes, naturais de
Cnossos, Creta.
Mas, ao que parece, porque o local escolhido era
pantanoso como o de Samos, foi também convidado
Teodoro, um arquitecto de grande sabedoria e
engenho que trabalhara no santuário rival, o Heráion
de Samos.
Conceberam um templo díptero – aliás o
Artemision e o Heráion de Samos parecem ter sido os
primeiros templos cercados por um períptero duplo –
, cuja edificação não durou menos de 120 anos. Como
foi totalmente destruído por um incêndio e as ruínas
arrasadas para nova construção, apenas parcialmente
se pode refazer os planos e dimensões1. De qualquer
modo, como os construtores posteriores utilizaram
blocos seus nos alicerces do novo templo muitos dos
detalhes do edifício de Creso foram preservados.
1
- Cf. D. S. Robertson, A Handbook of Greek and Roman
Architecture, gravura 39.
115
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Parece que a plataforma do estilóbato se
elevava dois degraus, em vez dos usuais três do
dórico. O templo, com base apenas no perímetro do
estilóbato, devia medir talvez 55,1m de largura e
109,2m de comprimento. Todavia, como parece ter
possuído um áditon, na parte de trás, teria uma
maior extensão. Mediria 125m por 60m. As paredes
eram de calcário local, embora recobertas a mármore.
Ao contrário do que é tradição nos templos
gregos, não estava orientado para o nascer do sol, ou
seja não tinha a fachada principal voltada para
oriente, mas para oeste, talvez seguindo uma prática
anterior da Ásia Menor1. Na frente do templo havia
duas fiadas de 8 colunas. Assim a colunata exterior
teria 8 colunas de frente, talvez 9 na fachada traseira
e, embora o seu número seja incerto, possivelmente
21 (ou 20) nos lados. As colunas eram de mármore.
Possivelmente havia mais dois renques de colunas no
interior, quer no pronaos, quer no naos ou cela, que
talvez formasse um átrio aberto em volta de outro
templo primitivo mais antigo2. O total de colunas
devia ultrapassar a centena (tal como em Samos). A
1
- A. W. Lawrence, Arquitectura Grega (trad. port. São Paulo,
1998), p. 91.
2 - A. W. Lawrence, Arquitectura Grega (trad. port. São Paulo,
1998), p. 92.
116
José Ribeiro Ferreira
entrada no templo fazia-se por um pórtico com
considerável número do colunas que devia causar
profunda impressão no visitante.
A altura total das colunas do Artemísion,
segundo Vitrúvio, deveria ser oito vezes o diâmetro
mais baixo do fuste, exceptuada a base que era
acrescentada e tinha altura equivalente a metade do
diâmetro do fuste. Este apresentava caneluras em
estilo dórico em número de quarenta e quatro a
quarenta e oito. Os capitéis eram refinados, longos,
com certos pormenores pouco elaborados e as
volutas a projectarem-se como simples nervuras e
decoradas com rosetas, em lugar das habituais
espirais – pelo menos algumas delas. Em
consequência do volume e alcance dessas volutas, o
ábaco, muito baixo, é mais longo do que largo, na
proporção de dois para um, e tanto ele como o
equino continham vários padrões de ornamentação.
Parece ter havido um espaçamento graduado
das colunas na fachada principal, de modo a realçar a
entrada no templo: assim as duas colunas centrais
estavam, de eixo a eixo, distavam 8,62m uma da
outra; o par seguinte cerca de 7,4m e os dois pares
das extremidades. O diâmetro das colunas do par
central excedia o 1,72m, mas parece ter-se reduzido,
lateralmente, por esta sequência: 12,5cm, 15cm e
117
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
2,5cm. Assim os espaços dos intercolúnios eram
diferentes: aos 5,5m do central seguia-se para cada
lado a sucessão de 4,41m e 4,5m.
As colunas, inteiramente de mármore, tinham
bases que assentavam em plintos quadrados altos,
pelo menos algumas delas, e que eram constituídas
por toro e espira, mais ou menos elaborados, por
vezes com caneluras horizontais feitas ao torno, tanto
um como a outra. Em algumas colunas, em especial
as do pronaos, o tambor inferior do fuste tinha entalhe
em relevo (cf. Robertson fig. 42).
O telhado do templo era de telha de mármore
nos rebordos; no resto estava coberto de telha de
terracota.
Este templo foi destruído no séc. IV a. C. Depois
de destruição parcial por incêndio em 395 a.C. (cf.
Aristóteles, Meteor. 3, 371a30), esse grandioso templo
foi completamente arruinado por um incêndio
provocado por Heróstrato (356 a. C.), um pirómano
louco que dessa forma buscava notoriedade. O fim
do Templo de Creso em 356 a. C. é lembrado na
última estância do Canto II de Os Lusíadas (2. 113):
Queimou o sagrado templo de Diana,
Do sutil Tesifónio fabricado,
Horóstrato, por ser da gente humana
Conhecido no mundo, e nomeado.
118
José Ribeiro Ferreira
No mesmo dia em que se verificou o incêndio,
diz a tradição que nasceu Alexandre Magno. Teria
sido por isso, diz a lenda, que Ártemis não protegeu
o seu templo, ocupada que estava com a assistência
ao nascimento da criança.
Rapidamente os Efésios empreenderam a sua
reconstrução, no mesmo local, de novo templo iónico
que, segundo Plínio, teria demorado 120 anos a ser
concluído – tempo que talvez se aplique melhor ao
templo de Creso1.
Plantas dos Templos dos sécs. VI e IV a.C.
1
- A. W. Lawrence, Arquitectura Grega (trad. port. São Paulo,
1998), p. 148.
119
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Os arquitectos originais desse templo parecem
ter sido Paiónios de Éfeso e um escravo do templo
chamado Demétrio, embora haja a possibilidade de
acréscimo posterior de que se encarregou Dinócrates.
Na sua construção, foram aproveitados os alicerces e
os materiais e ruínas do edifício anterior, o que
obrigou à elevação da plataforma. Assim, passou a
ter mais do que dois degraus do templo arcaico e um
plano sensivelmente igual ao do anterior, apenas com
o acrescento de um opistódomo e de uma terceira
fiada de colunas na parte da frente, embora seja
possível essas inovações fossem já acrescento da
restauração subsequente ao incêndio de 395 a.C.
Além das dimensões, o projecto do séc. IV a.C.
mantém também a peculiaridade das colunas com
relevos no pronaos, embora neste Artemísion tardio as
figuras, maiores do que o tamanho normal de uma
pessoa, além de esculpidas em relevo nas bases
cilíndricas, estavam também postadas sobre
pedestais quadrados – duas formas talvez usadas em
locais diferentes do pronaos ou do templo e não juntas
na mesma coluna. Plínio (NH. 36.95), referindo-se
talvez ao templo do séc. IV a.C., fala em 36 colunas
de bases esculpidas e informa que a alturas dessas
colunas era de 60 pés – ou seja, de 17,65m.
120
José Ribeiro Ferreira
O frontão – e parece ser novidade do último
templo – apresentava três aberturas no tímpano.
Possivelmente um expediente para reduzir o peso da
pedra do grande vão central. É pouco provável que
nessas aberturas, ou na sua frente, houvesse
esculturas, como indicam algumas reconstituições1.
Conta-se que, impressionado com a beleza e
magnificência do santuário, quando por ali passou a
caminho da Pérsia, Alexandre Magno manifestou o
desejo de tomar a seu cargo e de financiar a
prossecução dos trabalhos e seus custos (334 a.C.),
com a condição de nele poder gravar o seu nome.
Segundo Cúrcio Rufo, numa biografia de Alexandre,
não teria agradado aos Efésios tal intenção e
preferiram renunciar à sua oferta, mas para evitar
afrontar o Imperador com uma recusa, com recurso à
adulação, alegaram que um deus não podia erigir um
templo a outro deus. Então Alexandre estipula que os
impostos que os Efésios tinham pago até aí aos
Persas fossem devolvidos para financiar a construção
do novo templo.
Primeira grande estrutura a ser completamente
construída em mármore e o maior edifício do mundo
1
- A. W. Lawrence, Arquitectura Grega (trad. port. São Paulo,
1998), p. 148
121
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
grego antigo, o Templo de Ártemis superava o
Pártenon, em superfície, quatro vezes.
Reconstituição do Artemísion
As centenas de milhar de peregrinos que
anualmente acorriam ao santuário aumentaram de tal
modo a sua riqueza que o primeiro banco do mundo
parece ter surgido aí. Hoje, infelizmente, dessa
magnificente estrutura que era o Templo de Ártemis
Efésica, apenas ruínas restam e, das cento e vinte e
sete colunas que o rodeariam, apenas um fuste se
mantém de pé, e em sítio alagado de água em boa
parte do ano. O templo foi saqueado pelos Godos no
século III, secundados depois pelos bizantinos.
Podem observar-se algumas das suas colunas
originais em Agia Sophia em Istambul.
122
José Ribeiro Ferreira
A solidão da única coluna do Artemísion
Éfeso atingiu o seu apogeu depois de 129 a. C.,
quando os Romanos criaram a província da Ásia e
estabeleceram na cidade a capital.
123
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Sítio arqueológico do tempo romano1
Tinha então mais de duzentos e cinquenta mil
habitantes, número apenas superado por Alexandria.
1
- Os números do mapa correspondem aos seguintes
monumentos: 3- Ginásio oriental. 4- Termas de Vário. 5Aqueduto e Ninfeu. 6- Agora pública. 7- Basílica. 8- Odeon. 9Templos imperiais. 10- Edifícios oficiais e Pritaneu. 11Monumento de Mémio. 12- Fonte. 13- Fonte de Polião. 14Templo de Domiciano. 15- Galeria das inscrições. 16- Fonte de
G. Lecânio Basso. 17- Porta de Héracles. 18- Rua dos Curetas.
19- Fonte de Trajano. 20- Torre redonda. 21- Termas de
Scholastika. 22- Latrina. 23- Templo de Adriano. 24- Casas em
socalcos. 25- O Octógono. 26- Fonte bizantina. 27- Bordel. 28Porta monumental. 29- Biblioteca de Celso. 30 e 31- Porta e
Agora de Mazeu-Mitridates. 32- Templo de Serápis. 33- Rua de
mármore. 34- Teatro. 35- Fonte helenística. 36- Estrada do
porto. 37- Ginásio do teatro. 38- Arena dos jogos de Verulano.
39- Ginásio e palestra do porto. 40- Termas do porto. 41- Igreja
da Virgem Maria. 42- Termas bizantinas. 43- Acrópole. 44Estádio. 45- Ginásio de Védio.
124
José Ribeiro Ferreira
As ruínas que hoje se podem observar datam desse
período. S. Paulo reconheceu o significado dessa
impressionante metrópole e aí chega em 50 A. D.
para converter um pequeno grupo de Efésios à nova
religião, aos quais depois dirige uma epístola. Alguns
Efésios viram na expansão do Cristianismo uma
ameaça para o culto de Cibele e de Ártemis e
forçaram S. Paulo a partir.
As escavações de Éfeso foram iniciadas, para o
British Museum, pelo engenheiro inglês J. T. Wood
que descobriu a Porta de Magnésia e conseguiu
encontrar a localização do Artemísion – o famoso
Templo de Ártemis – cuja escavação foi concluída em
1904 por D.G. Hogarth. A Áustria, através do
Instituto Arqueológico Austríaco, também faz
escavações em Éfeso desde 1895, primeiro sob a
direcção de Otto Benndorf, que adquire grande parte
dos terrenos em que se situava a cidade antiga, e
depois sob a supervisão dos Professores Keil,
Miltner, Eicher e Vetters que revelam grande parte
das ruínas e traçado dessa surpreendente e
movimentada cidade greco-romana. A partir de 1954,
também os Turcos realizam escavações no local, sob
a superintendência do Museu de Éfeso que o
Governo Turco – nacionalizada a terra em que estava
implantada a estação arqueológica – criou para
125
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
escavar, acolher os achados descobertos, proceder ao
seu estudo e realizar os devidos restauros.
Se esse Museu é o destino natural das mais
recentes descobertas e se os achados encontrados
pelos Ingleses até 1905 se encaminharam para o
British Museum, grande parte do que a Escola
Austríaca encontrou entre 1895 e 1923 – o grosso das
escavações – foi para Viena. É com esse fundo que
mais tarde, em 1978, se cria e abre o Museu de
Ephesos da Neue Burg, uma das visitas que os
Estudiosos privilegiaram.
Monumento Pártico. Reconstituição
Além de maquetas, reconstituições e muitos
fragmentos arquitectónicos, aí se expõem os
126
José Ribeiro Ferreira
excelentes relevos do colossal friso comemorativo da
vitória de Lucius Verus sobre os Partos em 165 A.D.,
com uma reconstituição do monumento em gesso.
Cena do Monumento Pártico
Outra cena do Monumento Pártico
127
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
O Museu de Belas Artes é um maravilhoso
tesouro, tanto pela arquitectura do edifício (18711890, com concepção de Gottfrid Semper) como pela
quantidade e qualidade das colecções aí expostas.
Uma das grandes atracções de Viena, é visitado
anualmente por mais de milhão e meio de pessoas.
Entrada a porta os olhos irresistivelmente elevam-se
pela sumptuosa rotunda e em seguida sentem-se
atraídos para a monumental escadaria que leva aos
andares superiores e para a bela escultura de Antonio
Canova que, a meio dessa escadaria, representa
Teseu em luta com um centauro (1805).
Teseu luta com Centauro, de Canova
128
José Ribeiro Ferreira
Depois, aos poucos, os pormenores e as cores
impõem-se: as cores dos mármores e das pinturas
decorativas da cúpula e dos frisos da rotunda e da
escadaria – frisos da autoria de Klimt. E de novo me
encontrei com as cores, ora fortes, ora suaves, com a
profusão de dourados, com os esbatidos, com os
traços finos e delicados, com os cabelos negros e
rostos orientalizados que são característica desse
famoso
pintor.
Os
olhos
demoraram-se
insensivelmente – a formação profissional de cada
um, ou mesmo deformação se se quiser, é quase
segunda natureza – nas figuras que representam o
Egipto e o classicismo helénico, Atena. A primeira,
um nu feminino, com o seu característico cabelo e
profusão de colares e pulseiras, segura na mão o
símbolo da vida; por trás uma íbis de longas asas
doiradas. Atena, com seus olhos negros e
sobrancelhas densas, olha-nos de frente, conhecedora
e íntegra. Usa Vestido rubro e a sua característica
égide. Os cabelos negros caem em madeixas sobre a
couraça e o vermelho da veste. Numa das mãos poisa
a mancha negra de uma Nike sugerida e na outra,
ornada de artísticas pulseiras, empunha a lança,
braço estendido quase em paralelo à grega que
sublinha a cor escura, raiada de veios claros, dos
129
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
frisos de mármore e os separa da pintura cor de
vinho do fresco, onde o verde de uma delicada hera
serpenteia.
Klimt, Atena – Friso da escadaria
O rés do chão do Museu apresenta escultura,
artesanato e artes aplicadas, artes decorativas
europeias (lado esquerdo); do lado direito, ficam as
colecções gregas, romanas (com destaque para uma
gema do tempo de Augusto em que o Imperador
130
José Ribeiro Ferreira
vestido de Júpiter se senta ao lado de Roma),
egípcias e do Próximo Oriente. O primeiro andar
recolhe a pinacoteca, com uma soberba exposição
permanente de pintores, de quadros e de esculturas;
o segundo andar guarda as colecções individuais e o
gabinete de numismática; mas ainda a colecção de
antigos instrumentos musicais. Foi uma bela e selecta
visita, a correr, é evidente: os pintores eram muitos e
substancial a obra representada. Serviu, contudo,
para termos uma ideia geral e abrir o apetite para
uma futura visita mais calma e dirigida. Evocou-se o
passado, revivemos a cada passo a história, naqueles
rostos, ora tensos e sisudos, ora prazenteiros e
aliviados. A sensibilidade sentiu-se estimulada e
voou através dos recantos da memória.
De qualquer modo, vimos com mais cuidado
Breughel, de quem o Museu possui a colecção mais
completa das suas obras, em especial as Brincadeiras
de Crianças (1560), o Transporte da Cruz (1563), a Torre
de Babel (1563), os Caçadores na Neve (1565), a Matança
dos Inocentes (c. 1566), a Dança de camponeses (1568), o
Banquete nupcial (1568), As estações.
Merecem-me
algumas
palavras
mais
Brincadeiras de crianças em que foram pintadas mais
de duzentas e cinquenta crianças, a brincar às
cavalitas, com arcos e tonéis, com bocados de
131
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
madeira, de osso. O rosto dessas crianças, a sua
expressão, não permite estabelecer a sua exacta
idade. Será que o pintor pretendeu deixar um aviso
para o perigo de desperdiçar a vida em brincadeiras
ou passá-la como brincadeira de criança?
O Transporte da Cruz apresenta uma multidão
que conversa, brinca, discute, enquanto se dirige para
o local da crucifixão. No meio dela, quase se perde
Cristo caído sob o peso da cruz. Ao fundo, à
esquerda, vê-se a cidade de Jerusalém e o Gólgota, à
direita. No centro, em evidência, um rochedo
encimado por um moinho.
A Torre de Babel aparece numa zona costeira, em
nítida adaptação ao comércio marítimo de que os
Holandeses obtêm a sua riqueza. E desse modo o
pintor introduz elementos e referências à realidade
do seu tempo.
132
José Ribeiro Ferreira
Breughel, Torre de Babel
Por essa época, afluíam a Antuérpia
comerciantes estrangeiros, produtos diversos;
estavam activos os novos grupos religiosos. Todo
esse movimento desorientou os habitantes da cidade
e
criou-lhes problemas de convivência e
entendimento. Daí que o conhecido episódio bíblico
da Torre aparecesse como uma imagem do que
estavam a viver.
Os Caçadores na neve vive de duas cores frias – o
branco da neve e o verde cinza do céu e do gelo –,
133
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
nas quais se recortam as silhuetas negras das pessoas,
das árvores, das aves, dos cães. O sol já se pôs ou
está oculto pelas nuvens, a neve cobre o solo e a
vegetação, até aos cumes gelados ao fundo.
A Matança dos Inocentes, mais um quadro que
retira o tema de outro episódio bíblico famoso: a
ordem de Herodes para que fossem mortos todos os
recém-nascidos do sexo masculino, naturais de
Belém. A paisagem da cena é nitidamente flamenga e
os cavaleiros têm as lanças na vertical, como era
característica dos Espanhóis.
O Banquete nupcial decorre numa quinta: a
parede de fundo é constituída por medas de palha de
cereais, dois milhos de trigo e um ancinho
dependurados evocam o trabalho da ceifa. A noiva
encontra-se sentada frente ao pano preto e por baixo
da coroa nupcial, mas o noivo não aparece
claramente identificado. Os pratos são transportados
e servidos em cima de uma porta, ainda com as
dobradiças. Duas pessoas têm a colher na boca,
outras bebem por canecas, uma criança, em primeiro
plano, lambe os dedos.
134
José Ribeiro Ferreira
Breughel, Banquete nupcial (pormenor)
O terrível deus que é Cronos forçou-nos a uma
visita necessariamente rápida. Olha um quadro aqui,
mais atenção a um pintor ali, pára mais além e dois
passos atrás para admirar e beleza expressiva de um
rosto. Os olhos não deixaram todavia de se ir fixando
em um ou outro quadro, à medida que tragávamos
salas de pintor para pintor. Assim, irresistível íman
os atraiu para contemplar a Virgem com S. João e o
Menino de Rafael; Diana e Calixto, a Virgem cigana
(1510) e o belo quadro Ninfa e Pastor (1570-1575) de
Ticiano; a esplêndida Adoração da Santíssima Trindade
de Dürer; e a exuberante Susana e os Velhos (1555) de
135
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Tintoretto, uma das maiores obras do maneirismo
veneziano.
Tintoretto, Susana e os Velhos (pormenor)
Merece também ser aqui recordado – mais uma
vez a deformação profissional do relator – o
excelente quando Vénus e Adónis de Bartholomäus
Spranger.
136
José Ribeiro Ferreira
Bartholomäus Spranger,
Vénus e Adónis (pormenor)
Rubens, Manto de peles
É evidente que se detiveram também na célebre
série de quadros alegóricos de Giuseppe Arcimboldo
que representam elementos da natureza e estações do
ano, embora sem a admiração que muitos lhe
dedicam. Já essa admiração toda se concentrou no
Autoretrato (1652) de Rembrandt e no retrato da mãe
do artista, representado na figura da profetiza Ana;
em A Oficina do Pintor (c.1665) de Johannes Vermeer,
em que o artista pinta um modelo que representa
Clio – talvez para exaltar um acontecimento histórico
137
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
qualquer. E a curiosidade da atenção não podia
passar sem se deter – Rubens do meu fascínio não o
permitiria – no corpo nacarado e polpudo que a
mulher nua, no Manto de peles (c. 1635-1640) – o
melhor Hélèna Foument –, tenta cobrir, enquanto
fixa em nós os olhos brilhantes e promete os lábios
carnudos.
Em frente do Museu de Belas Artes, obra dos
mesmos arquitectos (1871-1891) e com idêntico
aspecto exterior, ergue-se o edifício que alberga o
Museu da História Natural onde se acolhe uma das
melhores e mais valiosas colecções de história natural
da Europa: mineralogia, paleontologia, pré-história,
botânica, zoologia.
Às cinco horas regressámos ao Hotel Ananas. O
resto do dia seria a gosto de cada um. Um grupo, não
grande – casal Patrício, casal Ferreira, a Fernanda
Requixa e a Helena Vieira – tinham conseguido,
através de uma amiga das duas últimas, bilhetes para
a ópera La Clemenza de Tito de Mozart que se
apresentava na Volksoper, porque a Staatsoper tinha
a lotação esgotada havia meses. Os primeiros
acordes davam-se às oito horas, pelo que o tempo
para cada um se arranjar e jantar não era folgado.
Tínhamos de estugar o enfarpelamento e o garfo
para estarmos prontos a horas condizentes. Viena
138
José Ribeiro Ferreira
não tem módico tamanho e o teatro ficava arredado
do centro, em hora que não era a mais calma em
trânsito
A encenação, modernizada, fez de Tito um
ditador do III Reich, mas os actores-cantores eram
bons e a música pertencia afinal a Mozart. Desse
modo, o grupo sempre conseguiu tomar o cheiro da
ópera em Viena.
No dia seguinte, 24 de março, pelas nove horas,
com a Renata a dar os “Bons Dias”, estávamos todos
prontos a entrar para o autocarro, almoçados,
quartos abandonados e chaves entregues, malas no
átrio. Já pela tarde partiríamos para Salzburgo.
Saídos às nove, à medida que fazíamos o
percurso panorâmico pela Ringstrasse, a Renata
dava-nos informações sobre a Áustria: que oitenta
por cento dos seus habitantes são católicos; que em
Viena cada bairro tem os seus jardineiros e uma
quantia para tratar dos seus jardins; sobre a educação
e o apoio à cultura, sobre o sistema de saúde.
E enquanto a escutava, a memória sobrepunha,
impositiva e sem direito a resistência, as imagens e
edifícios da característica Arte Nova de Viena, tão
diferente da que encontrei em outras cidades, onde
abunda; por exemplo, Barcelona. E o que a retina dos
139
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
olhos atentos, extasiados, seduzidos, guardou na
memória – cores e volumes, linhas e formas,
contornos e pormenores, delicadeza e finura de
desenho, cuidado e minúcia na ornamentação –, tudo
nítido, bem nítido, o fio desdoba e passa o ecrã
recordativo: o Edifício da Secessão ou ‘Couve
Dourada’ – assim chamada devido à cúpula de
filigrana dourada que a caracteriza –, que foi
concebido por Joseph Maria Olbrich (1898) para
receber exposições de arte da vanguarda e que
contém, na sua cave, o famoso Friso Beethoven de
Gustav Klimt e de onde três mochos nos olham,
concentrados, seguros, insistentes.
140
José Ribeiro Ferreira
Edifício da Secessão
Os Apartamentos Wagner (1899) – que tiram o
seu nome do seu arquitecto Otto Wagner – revêemse, quais Narcisos, no rio Wien e um deles, a Casa
Mayólica, apresenta decoração cerâmica a revestir a
fachada, com desenhos florais coloridos, em que
predomina o rosa, o azul e o verde; o outro, o nº 38
tem belos e delicados motivos dourados Jugendstil
de Kolo Moser. Esse famoso arquitecto foi ainda
autor da Postsparkasse, uma repartição da caixa
141
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
económica que é obra prima com trabalho primoroso
e cuidado até ao pormenor, dentro e fora; do
Pavilhão Kaiser (1899), com a dignidade imperial das
suas figuras sisudas. Foi autor das instalações da
antiga estação ferroviária e actual estação do metro
de Karlsplatz (1898-1899), uma obra famosa, em que
se harmonizam as linhas simples do edifício com o
verde cúprico da curvatura dos telhados, os girassóis
que decoram as paredes e o dourado que ornamenta
o mármore e as goteiras. Foi autor de duas atraentes
villas, uma construída entre 1886 e 1888, que
incorpora elementos clássicos, como colunas iónicas,
e apresenta profusão de cor; a outra (construída cerca
de vinte anos depois), ornamentada em estilo
geométrico, com painéis azuis e cabeças de prego, e
decorada com vidros de Kolo Moser. Autor também
da Kirche am Steinhof (1905-1907), magnífica igreja
concebida por si e decorada por Kolo Moser (18681918), foi projectada para ocupar os terrenos de um
antigo hospital de doentes mentais nos arredores da
cidade; apresenta exterior com ornatos de cabeça de
prego e uma cúpula de cobre; contém pilares em
espiral que, encimados por festões, suportam o
pórtico; na fachada – em cujo topo duas figuras,
esculpidas por Richard Luksch, se sentam
comodamente em cadeiras desenhadas por Joseph
142
José Ribeiro Ferreira
Hoffmann – quatro colunas de pedra suportam
sugestivos anjos de Othmar Schimkowitz (18641947), além de outros pormenores e curiosidades. O
interior, com as suas capelas laterais, os seus frisos
dourados e brancos, o seu tecto cravejado de pregos
de ouro, iluminado pela luz coada dos vistosos
vitrais azuis de Kolo Moser, todo se concentra num
harmonioso altar de Remigius Geyling.
E, entretanto, o autocarro percorria a
Ringstrasse e os edifícios passavam por nós, num
deslizar contínuo, em última despedida, uns mais
solenes e hieráticos, mais alegres e coloridos outros,
outros ainda, nas suas linhas clássicas ou medievais,
a procurarem aparentar mais idade do que a sua real.
E assim por nós passou a Igreja de S. Carlos
Borromeu, de estilo barroco, erigida em consequência
de um voto feito pelo Imperador Carlos VI por
ocasião da peste de 1713, tem um pórtico a preceder
a entrada principal com seis colunas iónicas e um
frontão em relevos (de Giovanni Stanetti) que
representam os padecimentos dos Vienenses durante
a referida peste. A ladear esse pórtico, entre ele e as
duas torres laterais – no topo delas olham-nos a
Perseverança, da da esquerda, e a Coragem, da da
direita –, erguem-se duas colunas, inspiradas nas de
Trajano e Marco Aurélio em Roma e encimados por
143
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
dois faróis. Os fustes das duas colunas contêm
relevos em espiral que representam cenas da vida de
S. Carlos Borromeu. O santo padroeiro oferece
também o tema das pinturas da cúpula (1725-1730) e
dos relevos em gesso do retábulo do altar mor, as
primeiras a simbolizarem a Apoteose do Santo e os
segundos a representarem a elevação de S. Carlos ao
céu numa nuvem de anjos.
A Ópera, a Staatsoper, de estilo neo-renascença,
é uma harmonia de linhas e volumes, é cultural
concentração musical de sons, cores, movimento;
ladeiam-na duas graciosas fontes da autoria de Hans
Grasser, uma delas representando a sereia Lorelei e,
na parte inferior, as figuras da Dor, do Amor e da
Vingança. Nesse denso edifício dourado se fixam os
olhos com mais demora, possivelmente a passar no
fio da memória, em rápidas cintilações, as suas cinco
estátuas de bronze da fachada principal que
simbolizam o Amor, o Humor, a Fantasia, o Drama,
o Heroísmo; a recordar a sumptuosa escadaria em
mármore e as muitas estátuas (sete artes liberais de
Josef Gasser), relevos e pinturas que a ornamentam;
talvez a rever imagens o Salão Schwind com a sua
decoração de cenas de óperas (pintadas por Moritz
von Schwind) e os seus muitos bustos de
compositores e maestros, entre os quais um de
144
José Ribeiro Ferreira
Mahler por Rodin (1909). E a atenção recolhe-se na
grande sala de representação.
O Burggarten, com os monumentos a Goethe e
Mozart (1896, obra de Viktor Tilgner) e as artísticas
estufas (obra de Friedrich Ohmann), o volumoso
complexo da Hofburg e da Neue Hofburg. E, à vista
daqueles edifícios, a memória, que nos forma, nos faz
sair da meninice e torna homens, com camadas
sucessivas de sedimentação – de leituras, de imagens
colhidas em postais e na televisão, de filmes, de
fotografias e estampas, de palavras, de narrações de
amigos –, a memória, irresistível, começa a
desbobinar edifícios, fachadas, praças, instituições,
obras de arte, pormenores: o palácio imperial, cuja
solene e majestosa fachada abre para a Praça de S.
Miguel, com uma artística porta em ferro forjado,
ladeada por quatro grupos escultóricos e duas fontes
que simbolizam “O poder do mar” e “O poder da
terra”; o harmonioso pátio interior do Palácio com o
seu relógio e a estátua do Imperador Francisco I, ao
centro, na pose de imperador romano; a colorida
Porta dos Suíços (1532-1552) que dá acesso ao Pátio
dos Suíços e à Capela do Palácio, construída em 1296
e modificada em meados do século XV, com
estatuária e relevos góticos; o Museu Imperial que
guarda tesouro, famoso e sem preço, de obras de
145
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
joalharia, quer religiosas, quer profanas; a Biblioteca
Nacional (1723-1735) que, com uma exuberante mas
harmoniosa arquitectura, frescos nas abóbadas
(Daniel Gran) e possuidora de um fundo, em livros,
em mapas e globos, de valor incalculável (mais de
dois milhões e meio de espécimes), é fascínio para os
olhos e para o espírito; o Museu Albertina, com rica e
volumosa colecção de gravuras, desenhos e
aguarelas, uma das melhores do mundo; o interior
gótico da Igreja dos Agostinhos com o vigoroso e
surpreendente túmulo neoclássico de Maria Cristina,
obra de António Canova.
E a memória, indomável cavalo à solta em
campo aberto, não pára nunca a sua cavalgada, e já
nos sentou na Escola Espanhola de Equitação, em
cuja pista – com 46 colunas, decoração em estuque e
tecto apainelado – imperam perícia, donaire e
elegância de cavalo e cavaleiro. Este, com seu traje a
rigor – calça de pele de gamo, botas a cobrir o joelho,
barrete bicorne preto, jaqueta cor de café – forma
com a sua montada um todo homogéneo que, nos
movimentos, se harmoniza também com os outros
pares, num só bloco que, sendo vário, actua uníssono
e concertado, como se fora um todo único.
Quedou-se agora o desdobar do seu fio
vertiginoso, e a memória apurou os ouvidos e fixou-
146
José Ribeiro Ferreira
se nos sons cada vez mais nítidos que fascinam e, aos
poucos, extasiam os sentidos tensos e expectantes.
Anos sucessivos de audição sedimentada à escuta. E
esses sons, suaves, que seduzem e despertam todos
os poros da emoção, distingue-os bem essa
sedimentação de anos que se sucedem: o coro dos
Pequenos Cantores e a Orquestra Filarmónica de
Viena que todas as manhãs de domingo, durante a
missa das nove e meia, actuam na Capela do Palácio
– uma das mais características e emocionantes
manifestações estéticas da cidade.
O balouçar do autocarro na Ringstraase,
acorda-nos dessa escuta extasiada e desperta-nos
para os edifícios que continuam a acenar-nos, mais
perto ou mais distantes, mas impondo-se sempre na
fita que desnovela. O Parlamento ou Reichstag (18741883, de Theophile Hansen), com uma fachada de
oito colunas coríntias, encimadas pelo respectivo
frontão que representa a promulgação da
Constituição pelo Imperador Francisco José I; ladeiao uma balaustrada na qual se sentam pensativos
sábios gregos e romanos e de onde quatro
domadores de cavalos parecem querer domar e
suster os sonhos; na frente do Parlamento, eleva-se
uma fonte monumental, um harmonioso grupo
escultórico, obra de Kundmann (1902), em que
147
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
sobressai a deusa Palas Atena sobre um tronco de
coluna. Defronte, do outro lado da Circular, o
Volksgarten, ou Jardim do Povo – um dos mais belos
parques de Viena –, onde se encontra o monumento
ao poeta Franz Grillparzer e onde sobressai e se
impõe, na simplicidade de linhas do seu
neoclassicismo perfeito, o Templo de Teseu (1823),
concebido por Peter von Nobile para acolher a
estátua de Antonio Canova que representa o herói
em luta com um centauro, que hoje se encontra na
escadaria do Museu de Belas Artes e a que já
aludimos.
O edifício da Câmara ou Rathaus (1872-1883,
obra do arquitecto Friedrich Schmidt), em estilo
neogótico com elementos renascentistas, tem uma
sumptuosa Sala de Sessões e eleva-se numa torre em
agulha de cerca de cem metros, em cujo topo se exibe
um soldado de arnês e estandarte, com cerca de 3,5
m – a que o povo significativamente resolveu
apelidar “Homem da Câmara”. Na sua frente um
exuberante jardim onde ponteiam monumentos a
antigos autarcas.
O Burgtheater (1888) ou Teatro Nacional, um
dos mais antigos, tradicionais e célebres teatros do
mundo, mostra uma bela fachada neoclássica e uma
vistosa escadaria; as diversas estátuas que
148
José Ribeiro Ferreira
ornamentam as suas fachadas exaltam poetas
famosos e personalidades relacionados com o teatro.
A Universidade, ou Alma Mater Rudolfina, foi
fundada em 1365 por Rudolfo IV; o actual edifício
(1873-1883, de Henrich Ferstel) é de estilo neorenascentista.
Perto, fica a “Casa das Três Raparigas”
(Dreimäderlhaus, 1803) que é uma típica casa
burguesa dos princípios do século XIX e está
associada à biografia de Schubert: conta tradição
lendária que o seu nome derivaria das três
namoradas (“drei Mäderl”) que o compositor teria,
embora a verdadeira razão de assim se chamar está
na opereta dos anos vinte Dreimäderlhaus que utiliza
canções de Schubert.
O antigo Metropol que foi local e sede da
Gestapo.
Não se detém a memória, nem refreia o seu
galope. Talvez procure ultrapassar as sinistras
sombras que por momentos a assediaram. Projecta
agora no ecrã imagens várias de edifícios religiosos: a
Igreja Votiva, templo de estilo neogótico construído
entre 1856-1879, segundo planos de Heinrich Ferstel,
no local onde o Imperador Francisco José escapou a
um atentado em 1853; é a consequência do voto
então feito e salienta-se por setenta e oito pinturas
149
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
nas janelas – vitrais da autoria de Geyerling. A Igreja
de Maria am Gestade que, referida pela primeira vez
em 1158, foi reconstruída em estilo gótico, nos
séculos XIV e XV. A Igreja de S. Roberto, fundada em
740, documentada desde 1161 e remodelada várias
vezes, é o mais antigo edifício sacro que se conserva
em Viena: a capela mor é do século XIII, a abóbada
da nave sul do XV; conserva vitrais barrocos nas
janelas do coro. A imagem do patrono do templo,
padroeiro também dos comerciantes de sal – e tem
uma selha de sal de braçado – lá está atenta, junto à
torre românica, a auscultar o Danúbio – agora Canal
do Danúbio desde que o leito do rio foi desviado
mais para oriente e regularizado – e a olhar os
longes, como a querer afastar de vez os horrores e
sevícias do nazismo e suas consequências.
O autocarro percorria agora a zona moderna de
Viena. Deixáramos a Ringstrasse e dirigíamo-nos a
rápida visita à zona do Prater – em tempos coutada
de caça da família real e da nobreza e aberta ao
público por Francisco II em 1766 –, onde se encontra
o famoso e conhecido estádio de futebol, o Estádio
do Prater, as pistas de competição hípica, moderna
piscina olímpica e outras instalações desportivas. Aí
se situa o “Wurstelprater” ou tradicional parque de
atracções de Viena, onde, entre outros divertimentos,
150
José Ribeiro Ferreira
pontifica a Roda Gigante, construída em 1896-1897
pelo engenheiro Walter Basset, que foi e continua
símbolo da Exposição Universal de 1897. Ao lado fica
a estação do combóio Liliput que permite aos mais
comodistas e cansados gozar pachorrentamente os
frescos verdes de relvas, árvores e jardins do parque
do Prater, com uma extensão de cerca de quatro
quilómetros desde a Roda Gigante ao Estádio.
Visitámos a Uno City ou os cinco edifícios das
Nações Unidas – a simbolizar os cinco continentes –,
de diferente altura, uma zona bem vigiada, onde
trabalham cerca de cinco mil pessoas. Passámos pela
Torre do Danúbio com os seus restaurantes
giratórios.
De caminho, deleitámos os olhos no Parque da
Cidade, com eles respirámos o ar puro que ali se
sente e admirámos vários monumentos que nele
ponteiam: a estátua a Bruckner, a dourada figura de
Johann Strauss empolgado no seu violino e
emoldurado no seu arco de mármore branco de
ninfas e efebos. O recolhimento e concentração de
Franz Lehár que se encaixilha nas colunas inclinadas.
O hieratismo de Franz Schubert que, do alto do seu
pedestal, olha ao longe e parece escutar algo que vem
da distância – será o revolutear da truta e já compõe
mentalmente o célebre quinteto para piano que desse
151
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
peixe tem o nome? Só não consegui dar um passo de
dança no Kursalon, por impedimento do tempo,
também e sobretudo por perrice de pernas.
Deu ainda o rápido percurso para observar a
casa dos compositores, onde viveu Johann Strauss e
compôs a valsa que mais tarde veio a tomar o nome
de Danúbio Azul; e para apreciar o rio Danúbio, que
atravessámos e que de azul já não tem muito, talvez
por patine do tempo ou porque o céu não estivesse
de feição nesse dia. Com os olhos fixos nesse mítico
curso de água, deu a sensação que dele emergiam
sons, uma música conhecida, insensível de início,
depois envolvente, de todo irresistível, possessiva,
uma melodia que se libertava da memória, se
impunha. Parecia nascer do próprio rio e prendianos, atraía os ouvidos e os olhos, que se fixavam nas
águas. As ondícolas, em revérberos, enlaçavam,
deslaçavam, rodavam, rodopiavam, ora vertiginosas,
ora calmas e hieráticas, como em baile de gala. Será
que as ondas sentem os sons que secretamente a
dourada imagem de Johann Strauss arranca do seu
violino e um impulso interior as impele e agita em
ondas e ondinhas? Ou são os peixes que ouvem e
entendem essa música e todos se empolgam nas
voltas da valsa? Ou apenas um baile, ou mero ensaio,
no Kursalon, de onde distantes chegam os sons? Ou
152
José Ribeiro Ferreira
não mais do que construção da memória, puro
arrebatamento seu?
Palácio de Schönbrunn: a Fonte de Neptuno
A manhã terminou com a visita ao Palácio de
Schönbrunn, o palácio de verão da família imperial
que, no seu dourado, todo se recorta e sobressai no
denso verde que o envolve. Local do antigo Moinho,
depois Castelo de Kratter, Maximiliano II adquiriu
essas propriedades em 1568, mandou transformar os
antigos edifícios em pavilhões de caça e aí
estabeleceu um jardim zoológico. O nome deriva da
formosa e fresca fonte (Schöner Brunnen) que
abastecia de água o palácio. O actual edifício, depois
da destruição do anterior pelos Turcos, começou a
153
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
ser construído, segundo desenho de Johann Bernhard
Fischer (1692-1693), por encargo de Leopoldo I, mas
só ficou concluído em 1775, depois de acrescentos e
obras várias devidos a diversos arquitectos. É um
belo palácio, com extensos jardins semeados de
estátuas alegóricas e fontes (Fonte das Ninfas, fonte
“Schöner Brunnen”, a artística e monumental fonte
de Neptuno) e, na colina, o perfil esbelto e
convidativo da Glorieta, com um salão central de
grandes janelas e um terraço de onde se goza de
esplêndida vista de Viena.
Com capela e teatro, o Palácio estende-se por
um total de 1441 aposentos, 390 dos quais salas de
habitação e representação da corte, magníficos
aposentos em estilo rococó, com realce para a
Grande Galeria (pinturas a fresco de Guglielmi no
tecto e sumptuosos candelabros); para a Pequena
Galeria com decoração de Albert Boller e para a Sala
dos Cavalos com cobres gravados; para o Salão de
Porcelana, a Sala das Tapeçarias e o Salão Vermelho;
para a Sala dos Milhões, o quarto de dormir e o
escritório de Francisco José, onde se encontram os
retratos do Imperador e da imperatriz Elisabeth.
154
José Ribeiro Ferreira
Palácio de Schönbrunn
Hoje esses magníficos aposentos, salas e salões
servem para as recepções oficiais.
Não foi possível uma visita ao interior do
palácio: o tempo escasso e obras em curso no
edifício. Apenas uma volta atenta e interessada pelos
jardins, aqui contemplando uma estátua, ali
apreciando a arte e pormenor de uma fonte, além a
cuidada disposição dos canteiros ou a geométrica
colocação das árvores, mais longe as artísticas
estufas.
Atentos a esses pormenores e curiosidades,
nem demos a princípio pela música em crescendo,
ritmada e cadenciada, que se escutava e vinha nem se
sabe de onde – das árvores? Dos canteiros? Da Fonte
de Neptuno? Do sorriso, ora travesso, ora contido,
das estátuas? Aplicados os ouvidos, essa atenta
concentração começa a distinguir progressivamente
os sons e a melodia da valsa do Imperador e vinha
do interior do Palácio. Cada vez mais nítida, parece
que todo o edifício ressoava e volteava na
profundidade dos espelhos.
155
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Sem darmos por isso, o tempo escorrera na
ampulheta dos minutos e o meio dia aproximava-se
célere. E a Renata, metódica e pontual, como
qualquer austríaco, marcara as doze horas para a
despedida. Havia que estugar o passo, tanto mais
que convinha atender à necessidade de muitos:
precisavam de ir às ‘fisico-hidráulicas e ainda
queriam aconchegar o estômago com uma bucha e
uma bebida quente, porque seguia-se a autoestrada
para Salzburgo e o almoço ainda vinha longe.
E, pelas doze horas, nos despedimos da Renata
– excelente guia, muito viva e boa conhecedora dos
sítios e história de Viena. E, rumo a Salzburgo, da
cidade abalámos, de olhos saudosos já e de todo
insatisfeitos do pouco que dela levávamos.
156
José Ribeiro Ferreira
Salzburgo: Centro religioso e Fortaleza
157
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
O corpo e o sabor dos sons
Levou-nos a Salzburgo um autocarro sereno e
confortável que um conhecedor motorista conduziu
por autoestrada não isenta de belezas naturais – um
surpreendente percurso panorâmico ao longo do rio
Danúbio até Linz, com passagem perto de povoações
e locais carregados de história: a aldeia de Dürstein,
com a sua igreja barroca e muito de medieval, com
pitorescas ruelas junto ao rio, com o seu castelo em
ruínas onde esteve preso Ricardo Coração de Leão,
quando regressava da Terceira Cruzada; as grandes
manchas de vinhedos de Rossatz, de Weissenkirchen,
de Jochung e Wösendorf, de Spitz com o seu Muro
do Diabo, a Teufelsmauer, uma célebre falésia sobre
o Danúbio; Willendorf onde foi descoberta a famosa
Vénus que ostenta o nome do local, símbolo da
fertilidade; Aggsbachdorf que recebeu a sua
fundação dos Romanos no século II.
Aos poucos, porém, durante a viagem, fosse da
lembrança dos vapores a produzir por todos aqueles
vinhedos, fosse do insaciável torpor de quem sente o
cansaço nas pernas e a paz no espírito, fosse da
158
José Ribeiro Ferreira
modorra ou do embalo do autocarro, alguns cochilos
tomaram conta dos olhos e do corpo. E a memória,
qual estômago de ruminante ou bossa, começa a
repassar Viena na fieira do tempo e no ecrã da retina,
numa dobadoira fina e imparável. E outros edifícios
desfilam, outras cores, outros sons e formas, outras
pessoas e instituições, evocados sem necessidade de
serem vistos, de culturalmente tão conhecidos e
ouvidos: o avermelhado do belo edifício da
Sociedade Filarmónica e a sua célebre Sala Dourada,
tão famosa pela sua acústica. Comparece a Antiga
Câmara Municipal – com numerosas reconstruções
do século XV ao XVIII – que se distingue pela sua
fachada barroca (1700), em que figuras femininas
encimam as duas colunas que ladeiam e guardam a
porta, e por um harmonioso pátio interior em que
pontifica a “Fonte de Andrómeda” (1741, de Georg
Raphael Donner). Perfilam-se o Palacete Kinsky
(1713-1716) e o Palácio Ferstel (1856-1860) – assim
chamado pelo nome do seu arquitecto Heinrich von
Ferstel – que hoje acolhe o Café Central. E o Palacete
Pallavicini (1783-1784) com o seu duplo par de
cariátides a fazer guarda de honra à porta. Ganha
corpo o notável palácio barroco Liechtenstein (16911704, de Domenico Martinelli), hoje utilizado como
Museu de Arte Moderna. E o imponente edifício do
159
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Arsenal (1849-1856), com seu ar de fortaleza e as suas
muitas estátuas a espiar-nos, do alto, dos seus nichos.
Enfeita-se e acomoda-se a imponente fachada do
Hotel Sacher (1840), e sua, que tem o nome associado
culturalmente ao facto de aí terem estado figuras da
monarquia,
da
nobreza,
políticos,
artistas
proeminentes (escritores, arquitectos, escultores,
pintores, músicos, cantores, bailarinos); e apresenta
como especialidade uma famosa torta de chocolate –
a Sachertorte – irresistível mesmo aos indiferentes,
que fará aos gulosos.
A casa de Hundertwasser
160
José Ribeiro Ferreira
A Casa de Hundertwasser (1983-1985) – o
Hundertwasserhaus – assim chamada devido ao
nome do seu criador, o pintor vienense Friedensreich
Hundertwasser que, por princípios ecológicos
renunciou ao material plástico e utilizou apenas
ladrilhos, tijolos e muita madeira; a fuga, por opção
estilística, às linhas direitas, inclusive os pavimentos,
a verdura nas superfícies horizontais e intenso
colorido das fachadas são características desta já
célebre casa.
Ia eu agora a pensar que bem gostaria de ter
visitado a Biblioteca Nacional, de ter apreciado o seu
edifício barroco (1723), o seu magnífico interior, a sua
colecção de globos, os seus muitos livros e de ter
consultado alguns, mas que o tempo – escasso e
sempre implacável – o não havia permitido, quando
a voz da Berta me acordou das cogitações e quebrou
o
fio
das
recordações.
Passávamos
pela
deslumbradora região da abadia beneditina de Melk
e da barragem de Ybbs. A abadia, em estilo barroco,
imponente e dominadora, erguia-se numa colina,
junto à cidade que, harmoniosa, tem restos da
muralha medieval, casas renascença, ruelas estreitas e
românticas. Alfobre de escultura, pintura e artes
decorativas, esse renomado mosteiro possui uma
161
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
magnífica igreja e uma famosa biblioteca que alberga
uma preciosa colecção de manuscritos e códices, com
data compreendida entre o século IX e o XV. Do
terraço da Abadia alongou Napoleão o olhos
extasiados pelos sucessivos meandros do Danúbio.
Abadia beneditina de Melk
Pensava eu nos monges, nos Beneditinos, na
sua divisa Ora et labora, no gosto estético na escolha
dos locais, de que nunca ou raras vezes abdicam…
Quase nem dei porque o autocarro abrandara a sua
marcha e parava. Chegáramos à estação de serviço
de Strengberg, local escolhido para as físicohidráulicas e para o almoço. Acabavam de bater as
13h30. E não é que o estômago, até aí sossegado e
162
José Ribeiro Ferreira
acomodado, começa em evoluções mais incontidas e
insistentes?!
Aliviados e recompostos com um almoço, mais
ou menos módico, conforme os desejos e as
necessidades de cada um, e retemperados também
motores e motorista do autocarro, retomámos a
viagem às 14h35 e continuámos a atravessar a Alta
Áustria.
Passámos ao lado de Linz, que se distinguia ao
longe, na sua mole imensa de casario. Aí viveu
Kepler e aí também Beethoven compôs a 8ª sinfonia.
Em determinada altura, deixámos a autoestrada
para passar pela zona dos lagos, com paragem em
Gmunden e Traunkirchen para apreciar e contemplar
o Lago Traun.
Casa da Câmara de Gmunden
163
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Gmunden, bela cidade, calma e quase parada
nessa altura do ano, tem um histórico edifício da
Câmara Municipal (século XVI), onde ainda se pode
escutar um carrilhão de cerâmica. Aí viveu Schubert.
Apenas, no lago, muito azul e sereno, os patos e
cisnes nadavam alegres e irrequietos ou imponentes e
majestosos, uns pretos e pinta branca na cabeça,
outros de cores castanhas com laivos esverdeados,
que o garbo superior dos cisnes observava.
Sobranceiro e escalvado, a dominar tudo, com os
seus salpicos de neve, o Monte Grünberg, até onde,
de Gmunden, se sobe por um funicular.
No Lago Traun, em Gmunden
Os patos continuavam nos seus mergulhos e
nas suas evoluções, ora lentas e solenes, ora rápidas e
vivas. Lentamente a memória começa a desfiar,
164
José Ribeiro Ferreira
vindo do íntimo de mim ou do fundo do próprio
lago o alegre saltitar e volteio do Imprompto de
Schubert A Truta. Parecia que os peixes saltavam,
revolteavam, em nítida compita com os patos e
gansos. A alegria vivaz e andante dos patos a
saracotearem de lado para lado, em contraste com a
pose majestática dos cisnes. E a melodia do
violoncelo a acompanhar a alegria do piano.
Andante, o revolutear parece subir degrau a degrau e
vai ganhando inquietação até atingir melancolia e
resignação. Depois, o retomar da alegria ondeante
que várias vezes se repete até à calma dançante e
saltitante do final.
Com esta melodia a ressoar no fundo da
memória, continuámos viagem e começámos a ver os
contrafortes dos Alpes ainda com laivos de neve
nesta altura do ano. A paragem seguinte foi em
Traunkirchen, uma povoação sem outros atractivos –
pelo menos não os detectei – que não seja um belo
relógio de sol (onde, por mais que olhasse, não pude
comprovar as horas, porque o sol entrara de fazer
negaças), a continuação das águas serenas do lago;
um cemitério mesmo sobre o Traunsee, parecendo
até que as campas e jazigos se olham narcisicamente
no espelho claro e calmo das águas; e sobretudo a
sua igreja (como aliás o testemunha o nome).
165
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Distingue essa igreja um belo altar mor, com
profusão de imagens, e um púlpito em forma de
barco, também ornamentado com imagens de
Santos, de Anjos, de Cristo a salvar Pedro de se
afundar nas águas, de peixes e crustáceos… Será que
alude à pesca no lago? Testemunha saudade do mar
que longe ficou, para lá dos montes? Ou é símbolo de
outras pescas?
Púlpito da Igreja de Traunkirchen
Retomada a viagem, deixámos o Lago Traun. A
neve torna-se mais intensa e tudo branqueja, com
166
José Ribeiro Ferreira
manchas castanhas e o verde negro dos abetos.
Passámos por Bad Ischl (as termas de Ischl), onde o
Imperador Francisco José e a Imperatriz Elisabeth
gostavam de veranear. Marginámos e rodeámos o
Wolfgangsee (o Lago de Wolfgang) e o Mondsee (o
Lago da Lua), no meio do qual um cisne se passeava
no prateado das águas: solitário, majestoso, exibia os
seus ademanes, em voltas e gestos lentos, seguros,
estudados. Que espera ou pensa? Serão os
sentimentos calmos como aparenta a pose? Ou sob o
alvo das penas luzidias algo se entrechoca? A certa e
segura harmonia dos contrastes.
Declinava o sol e estendia-se pelos montes e
encostas a magia da luz coada e dourada – o que o
meu Amigo Walter de Medeiros chama «o sortilégio
do entardecer» – quando aportámos a Salzburgo,
chamada a Roma do Norte, com cerca de cento e
cinquenta mil habitantes, ladeada por duas
montanhas, a dos Capuchinhos e a dos Monges, na
qual S. Roberto funda um mosteiro beneditino, e daí
o nome que hoje distingue o Monte. É a cidade de
Mozart, que nela nasce em 1756, e tem como
monumentos principais o Palácio Mirabell, a
Catedral, a Fortaleza.
167
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
O sol esconde-se, rubro, e a lua começa a
erguer-se, no lado oposto, ainda muito empalidecida.
As sombras ganham cada vez mais espessura e
avançam pelos vales, insensivelmente dobram as
esquinas, preparando-se para ocupar e encher as
ruas, as praças, as vielas, tudo o que é espaço e
recanto. As luzes começam a iluminar edifícios,
árvores, desvãos, pessoas. Uma neblina fria e fina,
que sobe do rio Salzach, percorre as ruas e em tudo
se insinua, penetrando nos cantos, espaços, vãos de
escadas.
O silêncio cúmplice de todos trai a expectativa,
antecipa a surpresa que reserva a chegada, denuncia
a emoção de pisar terras míticas, há muito
imaginadas, antevistas.
O ponteiro dos minutos aproximava-se das
18h30 quando chegámos ao Hotel Mercure com os
sentidos despertos e todos a vibrar interiormente: a
terra de Mozart e da música; a terra dos Trapp e de
Música no Coração; a terra do imaginário e de míticos
festivais – Salzburgo. Todas as emoções à escuta,
predispostas, atentas para os sinais e os sons.
Salzburgo, já habitada no tempo dos Romanos
– de acampamento aos poucos se fizera cidade –,
tinha-se transformado em autêntica ruína com o
decorrer do Império e fora reduzida praticamente a
168
José Ribeiro Ferreira
escombros pela chagada dos Hunos. É por isso mais
tarde refundada por S Ruperto, monge beneditino
que aí chega em 696 e por volta de 700 estabelece o
Mosteiro de S. Pedro – o mais antigo dos Beneditinos
em todo o espaço de língua alemã –, nos primeiros
lanços da encosta do Monte que, depois, dos monges
tomou o nome – Mönchsberg. E assim é nesse
mosteiro que afinal se pode encontrar o berço de
Salzburgo. A igreja, construída em estilo românico
entre 1130 e 1143, adquire um aspecto barroco com a
reforma que recebeu no séc. XVIII – o seu interior
(onde Mozart apresentou pela primeira vez a sua
missa em dó menor) é mesmo considerado uma
preciosidade do estilo rococó, com belo altar de
Johann Martin Schmidt. É famoso o seu cemitério a
que chamam o mais belo jardim de Deus. Famoso
também pela lenda que envolve os Crucifixos dos
Sete Túmulos: seriam das sete mulheres do canteiro
Sebastian Stumpfegger, torturadas por ele com
cócegas nos pés até à morte. Afinal apenas manto
diáfano da fantasia que se estende sobre realidade
um pouco diferente e cobre afinal as tumbas do
próprio canteiro, do filho e das cinco mulheres de
ambos.
169
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Fachada do Mosteiro de S. Pedro
Ao lado, numa ligeira plataforma, em
Nonnberg, fica o convento de beneditinas, iniciado
por Erentrudis, sobrinha de Ruperto, que ao
chamamento do tio acorre, aí o funda e dele é a
primeira abadessa – o mais antigo convento de
freiras no norte dos Alpes, que por causa da sua
localização ostenta o nome de Mosteiro de
Nonnberg. A cor vermelha da sua cúpula, estilo
imperial, da igreja é um marco inconfundível no
verde acobreado dos telhados dos outros edifícios.
Destruído por incêndio o edifício românico inicial,
reconstrução da igreja começou em 1463 e concluiuse em 1507. Nela distinguem-se o altar que é
170
José Ribeiro Ferreira
trabalho em madeira, talvez de Veit Stoss, e os
famosos frescos do “Paraíso de Nonnberg”, com
influência bizantina.
Mosteiro de Nonnberg
E assim mais uma vez se cruzaram comigo os
Beneditinos e me reencontrei com o seu espírito
pioneiro, arroteador, fundador.
Um grupo, não muito encorpado, abalançou-se
a uma visita nocturna ao centro da cidade: depois de
passagem rápida junto do Palácio Mirabell e do
Hotel Sacher, atravessaram a Ponte Makart (a
Makart-Steg) e percorreram as ruas estreitas da
cidade antiga, que a cada passo não iam além do
parcamente iluminadas, mas nos surpreendiam a
cada esquina e recanto com maravilhas e verdadeiras
obras de arte que atraíam os olhos e nos retinham os
passos: as passagens sob as casas – espécie de túneis
– e pátios interiores; a Getreidegasse (“Rua dos
171
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Cereais”) que – estendendo-se da Praça Herbert von
Karajan, onde se situam as instalações do Festival de
Salzburgo, à Praça de Mozart, cheia de esplanadas e
de vida – é constante caixinha de surpresas, com as
suas artísticas indiquetas em metal sobre as lojas e
estabelecimentos comerciais; uma plácida Virgem
com o Menino, na esquina de um prédio da mesma
rua; uma sugestiva pietá, em relevo, à entrada de
uma
porta,
cuidadosamente
iluminada,
na
Philharmonikegasse.
E com esta visita a tão vetustas ruas, em que
reinou a alegria e boa disposição, terminava um
recheado dia que nos encheu os olhos da harmónica
grandiosidade do Palácio e organização dos jardins
de Schönbrunn, que nos propinou a beleza e sedativa
calma dos Lagos; que agora nos oferecia no azul
espesso e intenso da noite a carga cultural e a densa
tradição de Salzburgo. O dia 25 estava aos cunhais da
porta e prometia atingir o corpo, a alma, os sentidos,
até às fibras mais íntimas e vibráteis da nossa
emoção.
Até por parecer que canto suave e harmonioso
nos acompanhava os passos, havia tempo, e ainda
não identificáramos, de tão suave e delido que era.
Dava a sensação de brotar das próprias pedras da
calçada, vinha do lado da colina dos Capuchinhos (a
172
José Ribeiro Ferreira
Kapuzinerberg). Em crescendo que ganhava corpo e
nitidez, os acordes e palavras tornavam-se
perceptíveis, familiares:
Noite feliz! Noite feliz!
O Senhor, Deus de amor,
pobrezinho nasceu em Belém.
Eis na lapa Jesus, nosso bem.
Dorme em paz, ó Jesus.
Dorme em paz, ó Jesus.
O célebre canto de Natal “Noite Feliz” (Stille Nacht)
de Joseph Mohr (letra) e Franz Xaver Gruber
(música) – este último recordado em museu e túmulo
ao lado da Igreja de Hallein, onde a melodia nasceu.
Compreende-se esta vibração das pedras, ou da
nossa desgovernada memória. Ao pé da colina dos
Capuchinhos, no beco Steingasse, encontra-se afinal a
casa onde nasceu o autor da letra, Joseph Mohr, e aí,
no número nove, é lembrado em pequeno museu.
Foi ao som dessa suave melodia e na
companhia do cintilar da paz das estrelas que o sono
se acomodou no espírito, que em surdina vai
repetindo, já ou quase inconsciente:
Noite de paz! Noite de amor!
Tudo dorme em redor,
173
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
entre os astros que espargem a luz,
indicando o Menino Jesus.
Brilha a estrela da paz.
O acordar do dia 25 foi madrugador, com o sol,
envergonhado, a entrar pela janela e com o vozear
indistinto que subia do parque de carros e autocarros
logo ao lado. Ou seria Salzburgo a chamar, sedutora,
convidativa, irresistível, um peso cultural de séculos
acumulados?
A saída do hotel, às 9h00, para visita à cidade,
deu-nos a incomodativa surpresa de um céu
carrancudo, carregado de nuvens, apenas com o sol a
luzir a espaços, de tempos a tempos, por uma ou
outra ligeira nesga. Começámos pelos Jardins e
Palácio Mirabell, ou “Bella Vista”, como lhe chamou
Markus Sittikus, em substituição do originário
Altenau, que lhe dera o seu antecessor Wolf Dietrich,
ao construí-lo em 1606 para a sua amante Salomé Alt.
Com diversas remodelações e reconstituições – a
última das quais, depois de um incêndio em 1818,
deu-lhe um cariz classicista –, é actualmente sede da
Administração municipal. Dos vários aposentos e
partes do Palácio, sobressaem o Salão de Mármore e
a Escadaria dos Anjos (obra de Rafael Donner) que,
não afectada pelo incêndio de 1818, mantém o estilo
174
José Ribeiro Ferreira
barroco que era o do edifício. Na frente do Palácio,
um cavalo alado fere a rocha, enquanto se lança em
voo, o fogoso e divino Pégaso (bronze de Kaspar
Gras) no momento em que arranca da terra e faz
brotar a Fonte Pirene.
Os Jardins despertaram a atenção e pediram um
passeio calmo. Construídos em 1689, no reino do
Príncipe Arcebispo Johann Ernst Thun, segundo
planos de B. Fischer von Erlach, receberam o artístico
risco geométrico que actualmente os caracteriza –
descontadas as alterações do séc. XIX – em 1730,
graças a Franz Anton Danreiter.
Os Jardins estão orientados em eixo norte/sul e
na linha da Fortaleza Hohensalzburg e da Catedral.
175
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Jardins de Mirabell
E ao entrarmos nos jardins, recebe-nos
jovem em bronze que, no meio de pequeno
enquanto equilibra na cabeça uma pomba,
artística flexão de pernas nos saúda e,
concentrada, se remira nas águas.
176
uma
lago,
com
toda
José Ribeiro Ferreira
Em que se concentra? Procura admirar, nesse
líquido espelho, a imagem a despontar, sinuosa e
flexível? Contempla o passado ou pensa no futuro?
No tempo das flores, deve ser um fascínio para
os olhos, gulosos, o diverso colorido das flores dos
canteiros, em belas circunvoluções barrocas e figuras
geométricas. Agora os olhos apenas em potência
reconstruíam esse mosaico de cores, nos desenhos e
no verde que desponta, idas as neves e entrada a
primavera.
Nas balaustradas, um conjunto de estátuas de
deuses greco-romanos – Júpiter, Marte, Vulcano,
Hércules, Hermes, Apolo, Diana, Flora, Pomona,
Minerva, Ceres, Vénus, Vesta, Baco, Juno e Cronos
(1689, obra de B. van Opstal) – observam e admiram
o artístico desenho dos canteiros.
Fonte central dos Jardins de Mirabell
177
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
À volta da fonte central dos jardins, dispõem-se
quatro grupos escultóricos (obra de Octavio Mosto,
em 1690) que, pelo recurso a figuras ou cenas
mitológicas, talvez a assinalar os quatro elementos
da natureza. Um par escultórico representa o Rapto de
Helena é constituído por uma figura masculina,
armada (Páris), que agarra vigorosamente uma
jovem, a segura nos braços e a transporta sobre uma
base que representa o mar revolto com âncoras e
peixes. O grupo Hércules e Anteu capta o momento
em que o filho de Zeus ergue nos braços vigorosos o
seu opositor, para o separar da Terra-Mãe e impedir
desse modo que rejuvenesça em contacto com ela.
O Rapto de Helena
Símbolo da água?
Héracles e Anteu
Símbolo da terra?
178
José Ribeiro Ferreira
A Fuga de Eneias de Tróia é outro dos grupos, e nele o
herói carrega o pai Anquises sobre os ombros e leva
o filho Ascânio pela mão, enquanto o fogo toma
conta de Ílion e a cidade se desmorona. Por fim, no
quarto grupo, Rapto de Prosérpina, um jovem forte e
musculado – Plutão, é evidente – sopesa uma figura
feminina e leva-a pelo ar, pairando sobre uma base
de árvores, flores e arbustos. Não simbolizarão esses
quatro grupos os quatro elementos da natureza – a
terra, o fogo, a água e o ar, respectivamente – com
que Empédocles explicou a origem do Mundo?
Passámos pela casa natal de Herbert von
Karajann e junto ao Hotel Sacher, atravessámos o rio
Salzach mais uma vez na Makartsteg, passámos pela
rua dos Cereais, enfiámos por um dos vários
corredores-túneis que furam o renque de casas de
lado a lado – autênticas catacumbas de quarteirão –,
fomos cheirar o mercado diário na Praça da
Universidade, para onde dão as traseiras da Casa de
Mozart. O que de fruta, guloseimas, tentações várias
por lá havia! Os olhos todos se fixavam nas coisas
que a cada um mais condizia e apetecia.
Voltámos à Getreidegasse e entrámos na Casa
Mozart para visita. Trata-se de uma morada
modesta, ou não vistosa, em cujo terceiro andar
179
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
habitava o pai Leopoldo Mozart, então vice-director
da orquesta ao serviço do Arcebispo. Aí nasceu
Wolfgang Amadeus, em 27 de Janeiro de 1756, e aí
viveu até aos 17 anos, já que em 1773, a família se
transferiu para uma casa maior na margem direita do
rio, sita na Makartplatz, a sua casa até 1780. A
vivenda, destruída durante a II Guerra Mundial, foi
recuperada e fielmente reconstruída. Acolhe agora o
Museu Mozart adicional.
Apesar de não lhe ter concedido, de início,
grande acolhimento e aceitação, a cidade vive hoje
do nome e culto a Mozart. Só a casa onde nasceu
recebe diariamente milhares de pessoas que aí vão
em peregrinação, cuja maior parte passa pelo terceiro
andar, onde estão expostos móveis, o trem de
cozinha, objectos vários, partituras, quadros,
instrumentos originais, cartas. E, no entanto, para
que o compositor tivesse uma praça ou rua com o seu
nome foi preciso que o escritor Julius Schilling, em
visita à cidade em 1835, tivesse incitado à construção
de um monumento a Mozart. Sete anos depois, em
1842 – com cerimónias solenes e oficiais de que a
música não podia andar arredada –, essa estátua era
inaugurada no meio de ampla praça, que tomou o
seu nome. É nesses festejos, no programa musical
preparado para a ocasião – e também na tradição
180
José Ribeiro Ferreira
teatral que sempre teve expressão na cidade – que é
usual encontrar os primeiros passos do Festival de
Salzburgo, ainda esporádico, de início, e sem
regularidade anual de hoje. É evidente que se
encontra nele também a ideia de união de povos
através da arte.
O segundo degrau da sua institucionalização
regular foi a criação da Sociedade do Festival de
Salzburgo, por Max Reinhardt, de que eram sócios
fundadores
outras
personalidades
culturais
austríacas, entre as quais Hugo von Hofmansthal,
Richard Strauss, Franz Schalk. É precisamente com a
peça Jedermann – que desde Gil Vicente tem a
tradução consagrada de Todo o Mundo – deste último
que, em 1920, se dá início à celebração regular e
anual do Festival Internacional de Salzburgo. E a
obra dramática Jedermann passou, a partir de então, a
abrir todos os anos o Festival e sempre na Praça da
Catedral. Com excepção dessa peça, actualmente o
Festival decorre em edifícios próprios – Grande
Teatro, Teatro Menor e antigo Picadeiro de Verão do
Conde Arcebispo – situados no chamado Bairro dos
Festivais (Praça Max Reinhardt e na Rua Hofstalla ou
Hofstallgasse). O Grande Teatro – inaugurado em
1960 e obra do arquitecto Clemens Holzmeister – tem
capacidade para mais de duas mil pessoas e o seu
181
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
palco foi escavado na rocha do Monte dos Monges (o
Mönchsberg)
Saídos da Casa Mozart, passámos pelo Alter
Markt, onde fica a Casa Fürst dos chocolates
originais, que de Mozart açambarcaram o nome – os
famosos chocolates Mozart. A guia, que fala
excelente português, ao explicar a confecção, para
designar os conservantes neles utilizados, usou a
palavra “preservativos” – com gargalhada geral e
subsequente explicação do sentido ‘técnico’ da
palavra. As subtilezas, encruzilhadas e traições da
língua.
Demos uma vista de olhos à Catedral, um
edifício barroco, amplo, solene e cheio de
luminosidade. Rodeada pelo Castelo-Residência do
Conde Arcebispo e pela Abadia de S. Pedro, teria
sido construída num local sagrado e palco de rituais e
sacrifícios desde os tempos celtas e romanos – com
começos talvez em 767, por iniciativa, primeiro do
Abade S. Ruperto e depois de S. Virgílio (monge de
origem irlandesa que o nomeado bispo de Salzburgo
em 749) e consagração em 24 de setembro de 774, dia
de S. Ruperto e dia em que o seu corpo é sepultado
na nova basílica. Sofreu vários incêndios (842, 1167,
1598) e reconstruções diversas, até ao edifício barroco
actual – iniciada em 1614 e terminada em 1655. Os
182
José Ribeiro Ferreira
seus cinco órgãos fazem jus à cidade da música que é
Salzburgo. Sentados nos bancos da nave central, a
memória escuta as explicações da guia e os olhos
percorrem abóbadas, altares, janelas e imagens. E
fosse do cansaço que o anda que anda pára e ciranda
de toda a manhã provocou, fosse do ambiente
aconchegado e calmo, aos poucos cai sobre nós uma
sedativa modorra que nos envolve por inteiro – como
se subisse dos mármores do pavimento, entrasse
pelas janelas, descesse das arcadas das naves, saísse
das paredes, viesse dos altares e retábulos – e por
inteiro nos toma a música cadenciada do Requiem de
Mozart: «Memento homo, quia pulvis es et in
pulverem reverteris». É sempre bom este
chamamento à realidade, a quem por sistema e
natureza tem tendência a contemplar narcisicamente
o seu umbigo. Bem o recorda também, no seu estilo
desassombrado e torneado mas vigoroso, o Padre
António Vieira num famoso sermão do Quarta Feira
de Cinzas, proferido em Roma, Santo António dos
Portugueses: «Duas coisas prega hoje a Igreja a todos
os mortais; ambas grandes, ambas tristes, ambas
temerosas, ambas certas. […] E que duas coisas são
estas? Pó e pó. O pó que somos: pulvis es, e o pó que
havemos de ser: In pulverem reverteris». Música e
palavras parecem que se unem e revezam na sua
183
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
salutar e sensata pedagogia. Palavras e música, que
tomaram toda a Catedral, ainda ressoavam em ecos
repetidos quando abandonávamos o templo.
Fora,
a
chuva
caía,
fértil,
fecunda,
transformadora. Tamborilava nos guarda-chuvas e
cruzava a Praça da Residência, num rugir denso,
monótono.
E com essa aspersão celeste, incómoda e
desagradável, para quem anda de visita a uma
cidade, tivemos tempo livre para almoçar, cada um
se acomodando, cosido com os beirais e toldos das
ruas, aos restaurantes e locais que os olhos ou o faro
seleccionaram. E muitos e variados havia por aqueles
lugares. Um grupo, em que o relator se incluía, foi ao
Nortzee.
De tarde, subimos ao Castelo-Fortaleza – mais
precisamente Fortaleza de Hohensalzburg –, a
fortaleza medieval maior e mais bem conservada da
Europa. Trata-se da residência do Conde Arcebispo
que foi recolhendo acrescentos e transformações de
várias épocas. Na igreja gótica de S. Jorge, na
fachada esquerda, lá está o retrato de Leonhard von
Keutschach (1495-1519) que, antes de morrer, aí quis
deixar, em relevo, a sua imagem. No meio do pátio,
junto à cisterna, ergue-se a copa centenar de verde e
184
José Ribeiro Ferreira
densa tília, com vários séculos de sombra, ampla e
acolhedora.
O aposento emblemático da Fortaleza é a
Câmara do Príncipe, mandada construir pelo
arcebispo Leonhard von Keutschach, em 1498-1502,
com ricos relevos nas portas e janelas, quatro colunas
espiraladas em mármore vermelho – uma delas com
uma falha, a meio, provocada, segundo a tradição,
por uma bala lançada durante os tumultos e lutas de
1525, conhecidos como ‘Guerra dos Camponeses’.
Não conseguiram os rebeldes tomar a Fortaleza de
Hohensalzburg, mas reduziram a escombros a de
Hohenwerfen.
O tecto da Câmara do Príncipe, com os seus
três mil botões doirados a simbolizar as estrelas do
firmamento, procura representar a cúpula celeste e é
atravessado, de lado a lado, por uma trave de uma só
peça (17 metros de comprido), toda decorada com
escudos do Império.
185
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Fortaleza de Hohensalzburg. Câmara do Príncipe
Do elevado ponto de observação que é a
Fortaleza, gozámos do belo panorama da cidade e
arredores.
Salzburgo observada da Fortaleza de
Hohensalzburg
186
José Ribeiro Ferreira
A sensação cómoda, mas estranha, de aves
sobrevoando o verde acobreado dos telhados e o
verde tenro dos campos. No meio, a inconfundível
cúpula vermelha da igreja do convento das
beneditinas de Nonnberg.
Desagradável, a chuva, que entretanto
recomeçara a cair, tirou-nos o prazer das compras, da
fruição da tarde na cidade, do gozo da harmonia das
suas ruas e praças, cujos poros respiram séculos de
história, cultura, memória: ruas medievais, ruas
renascentistas, ruas barrocas e modernas com os seus
artísticos anúncios ou indiquetas comerciais, com seu
recanto aqui, surpresa de obra de arte ali, escultura
acolá, praça ampla e bem lançada mais além.
Rua Getreidegrasse. Artísticos anúncios
187
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
À noite, um grupo resolveu ir ao Concerto da
Fortaleza
de
Salzburgo
–
na
Fortaleza
Hohensalzburg, é evidente – com a peripécia do
bilhete esquecido pela Albertina no Hotel. Que susto
e preocupação os da nossa Albertina, que se desfez
em desculpas e perdões, como se do imo de si culpa
ancestral brotasse com séculos de sedimentação
concentrada.
Felizmente tudo se dispõe nos caminhos da
vida. E nessa noite tudo se concertou nas calhas do
funicular que, na sua subida vagarosa e
contemplativa da cidade, nos levou a horas até à
Fortaleza. O concerto decorria na Câmara do
Príncipe. Com os seus ricos relevos nas portas e
janelas, as suas quatro colunas espiraladas em
mármore vermelho, os seus três mil botões doirados
no tecto, a simbolizar as estrelas do firmamento, a
sua trave central de uma só peça, decorada com
escudos do Império – esse aposento é o palco ideal
para um concerto que tem Mozart por autor
principal. Nela nos sentámos para escutar a Mozart
Kammerorchester Salzburg que actuava nesse dia e
tinha no programa Mozart (a serenata Uma pequena
Noite de Música e o divertimento opus 160), Haydn (o
Concerto para piano XVIII:11) e Dvorak (Dança
Eslava e duas valsas). E a música, que aí estava à
188
José Ribeiro Ferreira
nossa espera, nos levou por sendas e recantos “nunca
dantes navegados” ou poucas vezes trilhados. E nos
sons da música nos partimos, suspensos nas asas da
fantasia, arrastados no rodopio e valsas da vida,
embalados no desfiar da memória. Harmoniosa
despedida, antes da azáfama de preparar as malas
para a partida matutina, bem matutina, do dia
seguinte.
À harmonia aliou essa despedida elevação, que
a vista nocturna, a partir da Fortaleza, é
impressionante: o feérico das luzes a demarcar ruas,
praças e jardins. As torres, igrejas e palácios salientes
e bem recortados na paisagem nocturna, em volumes
e formas. E os sonhos partem nos voos das luzes que
levantam no sopé do Monte dos Monges e, delidas
quase, desaparecem nos longes do horizonte. E os
sonhos embalam-se nos sons que tomam arcadas e
recantos e regressam aconchegados de memórias.
Entretanto, os restantes Estudiosos constituíram
o grupo dos Trupe que, sob a maéstrica batuta do
Abílio, animou o silêncio do átrio do Hotel Mercure
que, todo divertido, desperta da sua pesada modorra
de pacatez nocturna.
189
Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
Aleluia do regresso
26 de Março foi o dia de retorno a Coimbra. E
alguns dos Estudiosos – cansados talvez de
estudoviajar – já suspiravam pelo regresso, a
entoarem intimamente «ai quem me dera na minha
alegre casinha, tão modesta quanto eu». O desejo da
paz, do sossego, da calma do lar. O mesmo que
assaltou o aventureiro, insatisfeito e astucioso
Ulisses. A impressão cómoda do conforto do hábito
a invadir os poros, a ocupar os recantos, a instalar-se
nas sensações!
A partida para o aeroporto de Salzburgo
verificou-se às 8h45. Os últimos olhares de despedida
às ruas, às silhuetas dos edifícios, aos volumes dos
monumentos, às torres das igrejas. Despedida
reiterada nos olhos cabisbaixos e saudosos que
muitos lançaram sobre a cidade, quando o avião
descolou, sobrevoou Salzburgo, seguiu por
momentos o curso do Salzach e deixou-nos com os
laivos alvacentos dos últimos flocos de neve que a
primavera ainda não digerira. E aos poucos
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José Ribeiro Ferreira
Salzburgo empequenecera, delira-se na distância,
envolta em névoa e ocultada no alvor da toalha de
nuvens que substituíra as neves dos cumes dos
montes.
A descolagem do avião com um atraso de
quarenta e cinco minutos tornou providencial a
espera de cerca de duas horas que tínhamos em
Frankfurt – próvida folga que, desse modo
encurtada, se ofereceu menos cansativa e saturante
para quem cirandava de país em país, de cidade em
cidade, de hotel em hotel, de museu em museu, de
monumento em monumento.
Passavam poucos minutos das 16h00 quando,
libertadas as malas da passadeira rolante, deixámos o
aeroporto de Lisboa. Feitas as despedidas a quem a
Lisboa pertencia ou por lá se quedava, os Estudiosos
foram empobrecidos da Berta, do Casal Orestes, da
Meximiana e, este ano, também da Zélia que, no
aeroporto, tinha as filhas a aguardá-la, bem como da
Zé Alves, da Virgínia e da Albertina que suas
indefectíveis damas de companhia preferiram
continuar.
Por volta das 19h00 estávamos em Coimbra, ao
som de alegre toque de sinos. E aos olhos
interrogativos dos regressados assaltou a narcísica
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Os sons e os silêncios – a memória, a culpa, a valsa
dúvida se as torres saudavam a nossa chegada ou
chamavam para a missa vespertina de Sábado de
Aleluia: a aleluia do regresso. Insondáveis arcanos da
alma humana e a incorrigível centração ou
concentração no próprio umbigo!
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José Ribeiro Ferreira
ÍNDICE
Claridades e sombras na hora da partida ………. 8
A memória e a culpa ……………………………
12
A valsa das formas e os sons das cores ………… 86
O corpo e o sabor dos sons ……………………… 158
Aleluia do regresso ……………………………… 190
193