princípios cooperativos

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princípios cooperativos
PRINCÍPIOS
COOPERATIVOS
JOÃO SALAZAR LEITE
2010
NOTA INTRODUTÓRIA
Quando em 1993 escrevi o “Enquadramento Histórico - Social do Movimento
Cooperativo” para servir de apoio aos meus alunos que, no Politécnico de Santarém,
frequentavam a única licenciatura em gestão de cooperativas a nível nacional, não sabia
que viria a abandonar o Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo (INSCOOP),
organismo público a que pertencia, no ano seguinte, por um período de treze anos, se
bem que com uma pequena interrupção de 18 meses em que fui colocado em funções de
bibliotecário, longe do contacto directo com as cooperativas.
O Inscoop publicou-me o livro mas, em função da sua reduzida tiragem, acabou por não
o distribuir às organizações cooperativas nacionais. Decidi, por isso, que poderia
recuperar algumas das suas partes, os capítulos sobre princípios, e actualizá-las, na
expectativa de que desta vez possa a todos chegar.
Estando situado no tempo, um tempo anterior aos princípios cooperativos em vigor,
debatia-me com a necessidade de o actualizar, para poder continuar a ministrar acções
de formação que reflectissem a nova realidade.
Durante muito tempo hesitei em fazê-lo, mas o convite dos organizadores das Jornadas
Cooperativas de São João da Pesqueira para que colaborasse no Jornal que acharam por
bem lançar, e que o fizesse com artigos interpretativos dos princípios em vigor,
conduziram-me a dar o passo que faltava.
O “Enquadramento” ainda foi escrito à máquina e a edição foi feita a partir de uma
impressão com recurso aos meios ao dispor do Inscoop na altura. Por isso, já não pude
recuperar o original e tive de recomeçar a escrita em computador, o que levou a algumas
alterações nas partes deste novo trabalho que não são inovadoras. Também, nos 17 anos
que medeiam entre as duas escritas, novos trabalhos foram publicados a nível
internacional que me levaram a acrescentar ou corrigir alguma da anterior versão.
O resultado final é, assim, utilizável pelos que nunca leram o livro original, que diga-se
vai para além da mera temática dos princípios, a deste, e pelos que a ele tiveram acesso.
A sua colocação à disposição do leitor via meios informáticos permite também um mais
amplo acesso e, sobretudo, uma interacção desejável com o leitor, que não era tão fácil
face a um livro em papel.
O conhecimento e o respeito pelos princípios cooperativos continuam a ser uma
obrigação para os cooperadores e suas cooperativas. Mas mais que obrigação, eles são
um capital de incalculável valor para os que vivem e praticam a cooperação, sobretudo
nos dias de hoje em que parece ter sido recuperado o respeito por ela, esquecido por
aqueles que, com uma admiração que é sinónimo de ignorância, verificaram que as
cooperativas foram o tipo de organização sócio - económica menos afectado pela crise
mundial que atravessamos ainda.
Perguntam-se os porquês. Responde-se, simplesmente, que a economia deve estar ao
serviço do homem e não do capital, e as cooperativas sempre tiveram o homem em
ponto de mira.
Cabe agora aos responsáveis máximos cooperativos a nível nacional e internacional
fazer lembrar este facto sempre que possível, e pugnar pelo estatuto de parceiros sociais
e económicos de pleno direito, quer se trate de diálogo social, quer de concertação
política.
Haverá que preparar o Ano Internacional das Cooperativas que a Organização das
Nações Unidas declarou para 2012, para o concretizar a todos os níveis, incluindo por
força de leis nacionais ou de regulamentos comunitários.
As cooperativas são também hoje elemento liderante do sector de economia social.
Houve como que um regresso às origens, época em que cooperativismo, associativismo
e mutualismo eram parte do mesmo cadinho. Implantar o conceito, conceito uma vez
mais, diga-se, centrado no homem, é também dever dos cooperativistas, embora o
devam fazer sem perder a sua identidade própria.
O legislador espanhol, o mais avançado a nível mundial em matéria de leis de economia
social, di-lo claramente. A lei de economia social coexistirá com as leis sobre
cooperativas ou associações existentes a nível nacional ou das autonomias regionais.
Também deverá ser esse o caminho a seguir entre nós, agora que o Governo extinguiu o
Inscoop, e o substituiu por uma Cooperativa António Sérgio para a Economia Social, a
que o sector foi chamado a aderir. Não se conhece outro exemplo a nível mundial, em
que o Estado tenha aberto mão dos seus poderes públicos passando-as a uma
organização do sector cooperativo e social com consagração constitucional.
Todo o sector terá assim controlo sobre o seu próprio futuro, assim saiba trabalhar em
conjunto.
Nesta época de novos desafios, pois, recordar os princípios cooperativos em vigor, e
verificar até que ponto são passíveis de utilização no seio da economia social, pareceume ser um desafio a que não poderia deixar de corresponder.
João Salazar Leite
Janeiro de 2010
ÍNDICE
CAPÍTULOS
NOTA INTRODUTÓRIA
ÍNDICE
PRINCÍPIOS COOPERATIVOS – DE ROCHDALE A VIENA
PÁGINAS
1- 2
3
4 - 12
PRINCÍPIOS COOPERATIVOS – DE VIENA A MANCHESTER
13 - 25
PRINCÍPIOS E VALORES
26 - 30
PRINCÍPIOS COOPERATIVOS – A FORMULAÇÃO DE MANCHESTER 31 - 57
PRINCÍPIOS COOPERATIVOS E ECONOMIA SOCIAL
58 - 67
PRINCÍPIOS COOPERATIVOS – DE ROCHDALE A VIENA
(1844 – 1966)
Os Princípios cooperativos foram tabulados pela primeira vez no XV Congresso da
Aliança Cooperativa Internacional, realizado em 1937 na cidade de Paris.
A discussão fora iniciada sete anos antes em Viena, no XIII Congresso, por iniciativa da
Federação nacional das cooperativas de consumo francesas. O comité nomeado para
tentar a tabulação tomou por base os estatutos e actas das assembleias gerais da
Cooperativa dos Pioneiros de Rochdale, legadas à posteridade nos trabalhos do
historiador Georges Jacob Holyoake, e de outros que reforçaram aquelas fontes com
entrevistas a fundadores, familiares e descendentes dos cooperadores iniciais e com a
consulta directa nos arquivos da cooperativa.
Um desses, G.D.H.Cole (1), no seu “A Century of Cooperation” elenca o que diz serem
os 8 princípios fundamentais de Rochdale, mencionando especialmente que os Pioneiros
não inovaram, antes combinaram várias ideias postas em prática em experiências précooperativas diversas:
- Controle democrático;
- Adesão livre;
- Distribuição de um juro fixo sobre o capital investido;
- Repartição dos excedentes sob forma de retorno;
- Venda a contado;
- Venda de produtos seguros e de boa qualidade;
- Educação dos membros e promoção do comércio mutualista;
- Neutralidade política e religiosa.
Em trabalho publicado sobre o assunto décadas mais tarde, o belga Paul Lambert (2),
acrescenta dois outros princípios que seriam frequentemente referidos:
- Venda ao preço do mercado;
- Adesão voluntária,
e mais três que resultariam dos estatutos dos Pioneiros:
- Devolução desinteressada do activo líquido em caso de dissolução;
- Espírito de serviço, entendido como actividade dirigida a servir os interesses dos
membros, desde que em consonância com o interesse geral da comunidade;
- Aspiração a conquistar e cooperativizar a organização económica e social do Mundo.
Mas já antes, Charles Gide, Bernard Lavergne e Ernest Poisson (3), todos franceses e
umbilicalmente ligados ao cooperativismo dominante à época, o de consumidores,
também nos haviam querido deixar as suas opiniões em matéria de princípios a observar
pelas cooperativas. Foi aliás a delegação francesa, da qual Poisson fazia parte, quem
desencadeou a proposta de tabulação concretizada no Congresso da ACI de Paris.
Para Gide, em 1923, os princípios eram:
- Vendas ao preço de mercado;
- Retorno no final do exercício “a pro rata” das compras;
- Um voto por associado qualquer que fosse o número de quotas detido;
- Vendas à vista.
Para Lavergne, no mesmo ano, os princípios a defender seriam:
- Retorno no final “a pro rata” das compras;
- Uma voz por associado nas assembleias gerais;
- Porta aberta;
- Propriedade e gestão a cargo de delegados directos ou indirectos dos consumidores.
Poisson, em 1932, referia:
- Repartição dos benefícios na base das compras de cada associado;
- Igualdade dos associados quanto ao exercício do direito à gestão;
- Venda ao preço de mercado;
- Indivisibilidade entre os membros das reservas da sociedade.
Como se concluirá várias visões de uma mesma experiência e seus desenvolvimentos
decorrentes do sucesso obtido, a de Rochdale. A Cooperativa dos Pioneiros de
Rochdale, que no início quis ser muito mais que uma loja de venda de bens de consumo,
antes pretendendo um novo modelo comunitário que fosse da produção ao consumo em
circuito totalmente cooperativizado (armazém, casas para os membros, emprego para os
membros desempregados, produção agrícola dos produtos a consumir pelos membros),
rapidamente se transformou em mera cooperativa de consumo, que do serviço a 28
membros fundadores passou em poucos anos a servir milhares de residentes da área de
Manchester (a vila tinha 25000 residentes, a área adjacente quase outro tanto).
Algumas palavras sobre onde foram os Pioneiros buscar os seus oito princípios
orientadores referidos por Cole.
Pedra angular da cooperativa de Rochdale, o controle democrático, a regra “um homem,
um voto”, estivera na base da agitação do movimento cartista (4), e vinha sendo
utilizado nas Friendly Societies (5). Lambert diz que os Pioneiros se inspiraram na “The
Rational Sick and Burial Society” de Manchester.
Porém, desde a primeira hora que uma corrente surgiu em favor do voto em função das
compras efectuadas (6), regra que viria à época a prevalecer apenas nas cooperativas de
cooperativas, que conhecemos hoje por cooperativas de segundo grau. O exemplo
pioneiro foi a Wholesale Society britânica. Ainda hoje, periodicamente, há quem tente
ressuscitar a corrente, utilizando considerações inspiradas na equidade para defender a
injustiça da plena igualdade entre membros que se servem da cooperativa de forma
desigual.
Ligada à igualdade do direito de voto surge o princípio da “porta aberta”, a adesão livre.
Qualquer pessoa deveria poder aderir a uma cooperativa, já que, na expressão de Cole,
se a cooperativa se fechasse sobre o núcleo de fundadores, estes para melhorarem os
resultados de exercício, seriam levados a vender produtos, com lucro, a terceiros.
Se a cooperativa não adoptasse a regra da adesão livre, poderia também originar que
novos membros admitidos tivessem direitos de voto diferentes em função da
antiguidade na cooperativa.
Cole refere que a falta de adesão livre terá sido uma das fraquezas das cooperativas de
produtores, que recorriam à forma jurídica de sociedade anónima ou por quotas para
exercerem as suas actividades.
Se a adesão livre era teoricamente uma estatuição dos fundadores de Rochdale, na
prática aconteceu que, por questões de segurança e sobrevivência da cooperativa e de
incapacidade de servir todos os pretendentes à adesão numa loja de diminuta dimensão,
houve que limitar as adesões. Os Pioneiros propuseram aos potenciais aderentes que se
agrupassem e criassem novas cooperativas.
Os Pioneiros quiseram limitar a 250 o número dos seus membros. Conclui-se tal facto
da sugestão de a cooperativa se limitar a um capital de 1000 libras, e de cada
cooperador subscrever 4 acções de 1 libra. A falência em 1849 da caixa de poupança de
Hawarth fez, porém, com que novos membros fossem admitidos. Nesse ano eram já 390
os membros e o capital da cooperativa ascendeu a 1149 libras.
A regra da adesão livre só obteve vencimento na segunda metade do século XIX, na lei
cooperativa britânica de 1852, possível com o aumento do salário e condições de vida
dos operários – os de Rochdale eram tecelões. Desde aí passou a ser incentivada a fusão
de cooperativas em detrimento de uma ainda maior dispersão no seu número.
O cálculo feito pelos Pioneiros está intimamente ligado à necessidade de concretizar o
princípio da distribuição de um juro fixo sobre o capital investido.
Foi Robert Owen (7) quem o pôs em prática na sua experiência de New Lanark (8). Para
Owen, os resultados não retornados destinar-se-iam a obras em favor do bem-estar dos
trabalhadores da aldeia cooperativa.
Para os Pioneiros, porém, esses resultados “restantes” deveriam ser repartidos sob forma
de retorno pelos membros na proporção das compras efectuadas, o que incentivou e
fidelizou os membros. Alexander Campbell reivindica para si a paternidade do princípio
(1822), posto em prática nas pré-cooperativas de Meltham Mills e de Lennoxtown em
1827.
Em matéria de venda a contado os Pioneiros pretenderam não repetir a anterior
experiência de uma outra pré-cooperativa criada em Rochdale em 1833, que ruiu por
conceder crédito. Com isso, os mais pobres ficaram impossibilitados de aderirà nova
cooperativa, mas a decisão foi devidamente ponderada. Pretenderam também os
Pioneiros educar os seus membros, estimulando a poupança nos anos bons. Os que
mesmo assim atravessassem dificuldades podiam vender as suas partes sociais até ao
limite de uma libra, comprometendo-se a repor as restantes três quando a situação de
crise se invertesse.
Outro princípio que contribuiu para que Rochdale fosse uma cooperativa de operários
remediados foi o da venda de produtos seguros e de boa qualidade. A garantia da pureza
e qualidade dos produtos implicava que eles fossem mais caros, mas à época a má
qualidade imperava, pelo que era importante aos olhos dos consumidores a garantia
oferecida pela cooperativa.
Os Pioneiros nunca aceitaram a posição dos que no Movimento viam apenas um
negócio. Inspirados pelos owenitas, viam o cooperativismo como movimento
educacional, que fornecia uma visão nova dos problemas cívicos e que contribuía para o
desenvolvimento da sociedade.
Havia, assim, que recrutar societários, fazendo deles bons cooperadores. A educação
dos membros ainda hoje é central ao cooperativismo.
O derradeiro princípio enumerado por Cole é o da neutralidade política e religiosa. À
época pretendia-se dizer que os cooperadores deveriam não privilegiar uma das
“capelas” existentes na Grã-Bretanha, por exemplo o racionalismo religioso professado
por Owen; era também defendida a equidistância entre socialistas, cartistas e aderentes à
liga contra as Corn Law (Napoleão havia bloqueado o comércio com as Ilhas, levando
os grandes proprietários rurais britânicos a forçarem a publicação de leis que
aumentaram o preço do trigo, logo também o do pão, como forma de não verem
reduzidos os seus rendimentos enquanto proprietários agrícolas, o que grandemente
afectou os operários).
Só mais tarde é que a abstenção de guerras entre facções dentro da classe operária se
tornou neutralidade entre grandes partidos e entre igrejas. Cole relata-nos que nunca terá
passado pela cabeça dos Pioneiros que conservadores (Tories) pedissem a adesão às
cooperativas, porque ser operário e conservador era uma contradição nos termos. Só em
1867, concedido direito de voto generalizado aos operários, os Tories defenderam a
criação de cooperativas, de que é exemplo a “Rochdale Provident Society”. Séculos
passados, reminiscência dessa época, ainda existe um Partido Cooperativo na GrãBretanha, ligado ao Labour (socialistas), no qual militou a actual Presidente da Aliança
Cooperativa Internacional, Pauline Green.
O artigo 3º dos Estatutos da Aliança Cooperativa Internacional aprovados em 1895,
referia ser um dos objectivos da organização “elucidar pela discussão internacional e
correspondência a natureza dos verdadeiros princípios cooperativos”. Para que ela se
possa fazer conscientemente, nada melhor que reproduzir Henri Desroche (9), que nos
explica os passos dados entre 1930 e 1937 e que conduziram à primeira tabulação clara
dos Princípios cooperativos. À época o movimento cooperativo internacional, mesmo
que ainda dominado pelo cooperativismo de consumidores, começava a reconhecer já
outros ramos cooperativos e o seu contributo para o desenvolvimento futuro do
movimento (10).
(Texto sobre 1930 a 1934)
Foi no XIII Congresso da ACI em Viena, em 1930, que a delegação francesa levantou o
problema.
Os estatutos da ACI estipulavam (artigo 1º) que “continuávamos a obra dos pioneiros
de Rochdale” e, mesmo (artigo 8º), precisavam que o critério de autenticidade
cooperativa era a conformidade “aos princípios rochdaleanos”. A argumentação
visava três objectivos:
1. Circunscrever os ditos princípios, noutros termos, “estabelecer, o que até hoje
nunca fora feito, uma lista exacta e completa dos princípios ditos
rochdaleanos”;
2. Medir as variáveis de aplicação atendendo, quer às alterações conjunturais,
quer à diversidade dos tipos de agrupamento, quer às variáveis interpretativas;
3. Por fim definir normas: “Temos de nos entender sobre as interpretações actuais
das regras de Rochdale, por forma a que este ou aquele método não seja
deixado aos riscos de uma polémica, de um discurso ou artigo de imprensa”.
A moção da delegação britânica pareceu reflectir mau humor: nada há a reconsiderar.
A da delegação soviética pareceu querer cobrir todas as apostas: temos de
reconsiderar tudo: “É absolutamente necessário examinar os princípios rochdaleanos,
revê-los a fundo e adaptá-los ao movimento operário moderno”. Transigiu-se pelo
reenvio do litígio a duas comissões, uma para estudar a tradição, a outra para
auscultar a conjuntura, solicitando que os seus relatórios fossem presentes por forma a
serem incluídos na ordem do dia do Congresso seguinte.
Os resultados do Congresso seguinte (XIV Congresso, Londres 1934) patentearam esse
duplo trabalho preparatório.
A comissão de estudo sobre a tradição teria inquirido localmente os arquivos. “O
secretário geral examinou todos os documentos dos pioneiros disponíveis, deslocandose para o efeito a Rochdale, onde consultou os descendentes dos pioneiros e os
funcionários da cooperativa, que espontânea e voluntariamente colocaram à disposição
do comité o que sabiam e documentos que possuíam”. Que documentos? São referidos
quatro tipos: os estatutos da fundação de Rochdale, os almanaques de Rochdale, as
actas dos “primeiros tempos”, e por último a história de G.J.Holyoake, claro! Tida
pelo “relato mais completo do início do movimento, até hoje elaborado”.
Quanto à segunda comissão, pôde partir de uma nomenclatura dos princípios
“rochdaleanos” definida e aprovada por um (Comité) executivo em Bruxelas, em Abril
de 1931, e nessa base estabeleceu um questionário de trinta e sete questões que
recolheu quarenta e sete respostas de organizações, sendo que somente onze se
resignaram a não responder. Questão a questão o número das respostas variou.
Do cruzamento desta dupla investigação os pais do concílio que eram os congressistas
de 1934 confrontaram-se com uma enumeração de 11 princípios, a saber:
Quatro obrigatórios:
1. Adesão livre
2. Controlo democrático
3. Retorno sobre as transacções
4. Interesse limitado sobre o capital.
Três recomendados:
5. Neutralidade política
6. Venda a contado
7. Desenvolvimento da educação.
Em suma “sete princípios de base constituindo a verdadeira base rochdaleana”.
Quatro considerados como controversos ou supérfluos:
8. Activo indivisível e inalienável
9. Comércio exclusivo com os membros
10. Adesão voluntária
11. Venda ao preço do mercado.
A discussão foi aberta por uma introdução lenitiva do secretário geral: “O comité é do
parecer que nenhuma modificação dos princípios rochdaleanos é necessária ou
desejável”.
Mas aparentemente, ou esta apresentação estava armadilhada ou a audiência decidiu
mostrar-se turbulenta.
Para uma delegação finlandesa, era muito e mesmo demais se se ligar esta
nomenclatura ao artigo 1º dos estatutos da Aliança, artigo que precisava: “A
substituição do regime actual de competição das empresas privadas por um regime
cooperativo organizado no interesse do conjunto da comunidade e baseado na
entreajuda”. Esta delegação representa um movimento “neutro” e, por trás da
“República Cooperativa” pressentia uma convivência com um “sistema socialista”.
Parecia-lhes apenas necessário e também suficiente a melhoria “pela actividade
cooperativa” do “sistema burguês no qual vivemos”.
Para a delegação soviética, inversamente, conviria substituir o princípio da
“neutralidade política” pelo princípio da “solidariedade proletária internacional” e
fazer dele um princípio não apenas recomendado, mas obrigatório. “Quando se trata
da luta de classes, não se trata de uma questão de neutralidade. A neutralidade liga as
mãos do proletariado contra o capitalismo”.
Uma inteligente e discreta intervenção de P. Ramadier (França) convida, por um lado,
os historiadores cooperativos britânicos a continuarem a sua prospecção e , por outro
lado, os economistas cooperativos a teorizar mais as práticas porventura ligadas, coo o
retorno, à dominante economia liberal.
A delegação da Grã-Bretanha confirmou a sua inicial reticência e não esteve com
meias medidas: depositou uma emenda tendente a tornar moralmente não obrigatório,
tanto o princípio da neutralidade política, como o da venda a contado. Sobre o
primeiro de um golpe formava-se uma frente anglo-soviética, quanto ao segundo
ligavam-se bastantes cepticismos. Por isso, no fim, as propostas da comissão não foram
ratificadas, mas reenviadas ao Congresso seguinte.
Em nome da delegação francesa, G. Fauquet reivindicou a classificação, como
princípio fundamental obrigatório, o da devolução desinteressada do activo indivisível
e inalienável. Como se poderia esperar, recusou o rótulo de “princípios” aplicado ao
catálogo das regras costumeiras presentes à discussão e que de qualquer forma “não
poderiam ser interpretadas com um rigor talmúdico”. Sabemos de facto que, para ele,
a dignidade de “princípios cooperativos” não deveria estar confinada a
jurisprudências empresariais, mas sim reservada à ética cooperativa e aos seus
postulados. “O que é a lei sem os costumes?”(11)
Um outro delegado inglês veio secundar a última intervenção para obter o reenvio dos
pontos 5 e 6 a novo exame. Rochdale data de 1844. Nós estamos em 1934. Passaram-se
80 anos. Não sejamos ridículos continuando anacrónicos. Note-se, porém, uma
diferença com a argumentação soviética: esta recusava a neutralidade por forma a
poder afirmar-se pelo seu regime político; o inglês pedia-o para se declarar contra o
seu “presente governo (que) faz tudo que pode para entravar o nosso
desenvolvimento”.
Nessa matéria reservas da delegação sueca à argumentação britânica: “A cooperação
é uma forma de organização económica e não uma forma de organização política”. “A
cooperação não é um instrumento político”. Propõe-se até o reenvio “ de toda a
questão para exame mais aprofundado da matéria”.
A Polónia apoia a posição francesa de Fauquet quanto ao ponto 8 e retorna aos pontos
5 e 6 que um novo interveniente britânico vai qualificar de “obstáculo, pomo de
discórdia”: que a Aliança, num plano internacional pratique a “neutralidade política”,
mas que cada um dos nossos membros possa praticá-la ou não. Finalmente o próprio
relator, em nome da comissão, declara ligar-se à proposta de reenvio ….. a qual é
adoptada por uma forte maioria (12).
(Texto sobre 1937)
Como nos teremos apercebido, a querela não se referia tanto à nomenclatura
septenária, mas ao rigor da observação dessas sete regras como pré-requisito uniforme
para uma filiação na ACI. A amálgama dos três princípios controvertidos (5,6 e 7)
correspondia a uma amálgama de oposição ou de barragens. Finalmente, a querela
parece não ter sido mais que uma querela de honra ou de dissuasão. Disso nos
convenceremos ao compararmos a redacção recusada em 1934 e adoptada por
unanimidade menos dois votos em 1937. Três anos após, com efeito, foi a mesma
nomenclatura septenária – a mesma pérola – que foi entronizada, mas apreciemos as
nuances homeopáticas que diferenciam a vitrina da sua apresentação.
1934
1937
Texto comum
O comité (…..) é do parecer que seria necessário fazer uma certa discriminação quanto
à importância destes sete princípios para decidir o carácter essencialmente cooperativo
de uma cooperação ou de uma organização. Sugere que a observação dos princípios
cooperativos depende da adopção e da prática dos quatro primeiros desses sete
princípios enumerados (….), a saber:
I.
Adesão livre
II.
Controle democrático
III.
Retorno sobre as compras
Distribuição aos membros do excedente na
proporção das transacções
IV.
Interesse limitado sobre o capital
Do parecer do comité os três outros princípios, a saber
V.
Neutralidade política ou religiosa
VI.
Venda a contado
VII. Desenvolvimento da educação
mesmo fazendo parte, sem a menor
mesmo fazendo parte, sem a menor
dúvida, do sistema rochdaleano,
dúvida, do sistema rochdaleano e
podem ser considerados como métotendo sido postos em execução com
dos essenciais de acção e de orsucesso pelos movimentos cooperatiganização, mais do que regras cuvos de países diversos, não constituem
ja não observância destruíria o caentretanto, condição de adesão à
rácter cooperativo da cooperativa.
ACI.
A diferença entre as duas moções não foi, finalmente, mais do que a diferença entre um
“isso sem dizer” e um “isso melhor dito”. A discussão da segunda redacção foi, aliás,
breve. Recolham-se uma nova reserva de G. Fauquet; um insulto entre delegados
britânicos, um (A. Marshall) apelando a um movimento disciplinado a ponto se ser
“coercivo”, e os outros recusando toda a autoridade a tal declaração; um naco de
eloquência soviética deplorando “a energia dispendida em investigações escolásticas”
clamava pelo alinhamento do projecto rochdaleano com a prática socialista da URSS;
um fiasco ao retardador no qual um delegado romeno (Partheniu) lamentava a
ausência de um princípio que teria concedido “a primazia às cooperativas de
consumo”.
A única oposição teria partido de um outro delegado romeno (Ioan): “Não posso deixar
de exprimir a minha grande surpresa em ver (…..) que os três últimos princípios (….)
passem a não constituir no futuro condições de admissão na ACI (…). Por um lado,
propõe-se a apoteose dos pioneiros; do outro, declaram-se antiquados e sem
importância quase a metade dos princípios rochdaleanos. Para onde seremos
conduzidos?
(…..) Querem que a cooperação viva e se desenvolva cada vez mais? Mantenham a
neutralidade política e religiosa, e que todo o mundo possa entrar no templo da
solidariedade. Senão a política, com as suas paixões e o seu exclusivismo, dará um
golpe mortal à cooperação”. Mas este lamento não teve eco. Evitou-se o clash. E a
quasi-unanimidade do voto final estipulava um não aprofundamento da questão.
O Congresso de 1937 dedicou muito menos tempo para debate dos princípios que o de
1934. A atenção principal estava centrada na política, com o emergir do nazismo e as
situações espanhola e austríaca, país onde vários cooperativistas de topo haviam sido
presos e as cooperativas atacadas. Os confrontos entre delegados motivados por
discussões entre os que queriam que a ACI se mantivesse neutral, e os que queriam vêla condenar a quebra da paz e ameaça do fascismo, deixam-nos surpresos quanto à quasi
unanimidade que foi alcançada na votação dos princípios. Um novo Congresso só viria
a ser convocado nove anos após (13).
O elenco de 1937 durou três décadas. Atravessou a Segunda Guerra Mundial e a
reconstrução dos países destruídos: viu nascer a Organização das Nações Unidas e viu a
adesão a ela da ACI, com estatuto consultivo de primeiro grau; conviveu com a Guerra
Fria. Serviu de inspiração às cooperativas e suas organizações de grau superior nos
primeiros passos do comércio internacional e da ajuda ao desenvolvimento. E, no
interior da ACI, foi guia para a criação de departamentos regionais, grupos de trabalho e
comités especializados, estruturas que foram a base de aproximação entre cooperativas
do Norte e do Sul, do Ocidente e do Leste.
Ao assumir os Princípios cooperativos como critérios de adesão à organização e não
como imposição de direito internacional, e ao considerar o princípio da neutralidade
política e religiosa como de não observância obrigatória pelas organizações filiadas, a
ACI acabou por se não eximir aos resquícios dessa guerra entre blocos.
Com efeito, a delegação soviética, por intermédio de A. Klimov, acabou por submeter
ao 22º Congresso da ACI, realizado em 1963 em Bornemouth, uma resolução em que se
afirmava que os princípios cooperativos já não eram universais, por representarem
apenas uma adequação do cooperativismo ao capitalismo e não a todos os tipos de
cooperativas. A posição soviética foi contestada pela delegação francesa com apoio da
belga, esta pela voz de Paul Lambert. A final, uma resolução diferente foi aprovada,
com considerandos diversos dos soviéticos, em que nomeava um novo comité de
revisão dos princípios.
Formavam-no Arnold Bonner, da Grã-Bretanha, na qualidade de representante da
tradição rochdaleana; D.G. Karve, da Índia, em representação dos países em
desenvolvimento; Howard Cowden, dos Estados Unidos, representando o Hemisfério
Ocidental; R. Henzler, da Alemanha, representando a Europa Ocidental; I.A. Kistanov,
e depois por doença, G. Blank, pela URSS. Foi secretário do comité o Director da ACI,
Gemmel Alexander, e seu relator W.P. Watkins.
Nos termos da resolução aprovada deveria este comité: verificar até que ponto os
princípios de 1937 eram observados e quais as razões para a sua não observância;
considerar se os princípios de Rochdale correspondiam às necessidades do movimento
face à situação económica, social e política da altura, ou se necessitavam de ser
reformulados; propor novos textos.
Os trabalhos do comité foram acompanhados e influenciados por debates nacionais e
internacionais, como o Colóquio de Liége (14), reunido em Março de 1966 para debater
“Os Princípios Cooperativos: Ontem, Hoje e Amanhã”. A ele assistiram os principais
teóricos cooperativos franceses e belgas, tendo sido ainda reflectidas as posições dos
serviços cooperativos da Organização Internacional do Trabalho, que à matéria haviam
dedicado especial relevo desde que Maurice Colombain sucedera a Georges Fauquet
como responsável máximo.
O comité deu os seus trabalhos por concluídos a tempo de o relatório ser submetido ao
Congresso de 1966, realizado em Viena.
(1) George Douglas Howard Cole (1889 – 1959) foi um historiador e economista
britânico, membro da Fabian Society e defensor do movimento cooperativo.
Defendeu um socialismo assente em associações descentralizadas de base local,
na participação democrática, e não no aparelho de Estado.
(2) Publicou o seu “La Doctrine Coopérative” em 1964, mas esteve ligado à
reconstrução através de régies cooperativas da Bélgica no após Guerra, conceito
que teorizou, mas que não tem total equivalência com as cooperativas de
interesse público portuguesas, muitas vezes chamadas como tal. Esteve ainda
activo durante o Congresso que discutiu e aprovou os princípios de 1966.
(3) Teóricos cooperativos ligados às cooperativas de consumo, citados por Diva
Benevides Pinho em “A Doutrina Cooperativa nos Regimes Capitalista e
Socialista”, São Paulo, 1966.
(4) Movimento de reforma política e social da sociedade britânica da primeira
metade do século XIX, vai buscar o seu nome à Carta do Povo de 1838.
(5) Associações de tipo mutualista para apoiar os operários na doença e na velhice,
através de pensões, seguros, gestão de poupanças ou bancos cooperativos.
(6) Só entre 1934 e 1937 os princípios foram confrontados com as práticas e
adequados a outros tipos de cooperativas, que não apenas as de consumo.
(7) Owen (1771 – 1858) foi um reformador social galês, que procurou dignificar o
trabalho operário nas indústrias de fiação, pela criação de cooperativas, bairros
habitacionais, creches e outras obras sociais. Crítico da política governamental,
foi expulso da Grã–Bretanha, tendo recriado nos Estados Unidos as experiências
comunitaristas que pusera em prática nas Ilhas.
(8) New Lanark foi o berço do socialismo utópico. As fábricas de fiação fundadas
por David Dale em 1766, foram por influência do seu genro Robert Owen palco
de diverso tipo de experiências sociais e assistenciais pioneiras à época, visando
dignificar a qualidade de vida do operário britânico.
(9) In Archives de Sciences Sociales de la Coopération et du Developpement, 1988,
nº 83, Jan-Mars.
(10) Ver também “Thematic Guide to ICA Congresses 1895 – 1995” , de Rita
Rhodes e Dionysos Mavrogiannis.
(11) Watkins, W.P. – “The International Co-operative Alliance 1895 – 1970, em
edição da ACI, 1970
(12) Com efeito, o Congresso encarregou o comité de avaliar o impacto das suas
conclusões no ambiente vivido pelas cooperativas que não fossem de consumo
(operárias, agrícolas e bancárias, à época), bem como olhar para as organizações
cooperativas secundárias e terciárias, para verificar se o septenário de princípios
de 1934 se lhes adequava.
(13) Sobre esta matéria “The International Co-operative Alliance During War and
Peace 1910 – 1950, de Rita Rhodes, edição da ACI.
(14) Liége é ainda hoje um importante centro de reflexão cooperativa, nele
funcionando a sede do CIRIEC internacional (rede de investigação sobre
economia pública, social e cooperativa). Na região belga valã, de que Liége é
capital, vigora também a primeira lei europeia sobre economia social (aprovada
em Novembro de 2008, entrou em vigor a 1 de Março de 2009).
PRINCÍPIOS COOPERATIVOS - DE VIENA A MANCHESTER
(1966 – 1995)
No Congresso de Viena de 1966 o Vice-presidente da ACI, Robert Southern, introduziu
à discussão o relatório do comité nomeado na sequência do anterior congresso de
Bornemouth, sobre o qual o Comité Central da ACI se havia já pronunciado e aprovado
uma resolução.
Coube ao presidente do comité D.G. Karve referir como haviam trabalhado.
Referiu que o trabalho fora facilitado porque os cooperadores concordaram em aceitar
ser o objectivo da cooperação “a criação de uma comunidade de trabalho em que todos
tivessem um estatuto igual e nenhum retirasse vantagens à custa de outro”; porque todos
“respeitavam as regras e métodos de Rochdale, procurando segui-los na medida do
possível”; e porque todos consideravam, por uma ou outra razão, “reformular uma ou
mais dessas regras e práticas por forma a concretizar mais plenamente os objectivos do
Movimento cooperativo no concreto”. Karve lembrou que já os Pioneiros consideravam
as suas regras e práticas abertas a mudanças, e frisou ser mais importante a substância
dos objectivos a alcançar que a fórmula verbal ou semântica dos princípios (1).
Estes seriam “as práticas essenciais, isto é, completamente indispensáveis, para alcançar
os objectivos do Movimento Cooperativo” (2). Foram redigidos de modo compreensivo
e não como antes enquanto meras fórmulas.
A discussão foi significativamente aberta pelo Presidente da Cooperativa dos
Equitativos Pioneiros de Rochdale (3), F. Applegate, que referiu que a sua cooperativa
nunca viu a fraseologia original dos princípios como imutável, mas considerava
representarem eles verdades fundamentais ainda devendo ser observadas.
Apresentaram-se inúmeras propostas de emendas, de que realçamos as de Paul Lambert
ao pedir que fossem aceites como autênticas as régies cooperativas (cooperativas de
autoridades públicas), bem como a não possibilidade de repartição das reservas; e a
soviética re-insistência em referências políticas, desta vez à luta contra o militarismo,
colonialismo e racismo.
Não houve tempo para que todos os inscritos falassem, mas acabou por ser aprovada a
proposta de princípios apresentada pelo comité, sem que as emendas fossem aceites, a
qual foi aprovada por grande maioria.
Caiu a neutralidade política e religiosa do elenco, a voluntariedade passou a ser inserta
na filiação, foi reintroduzida a educação como princípio essencial e acrescentado o
princípio da intercooperação.
Eis o “elenco” dos princípios cooperativos aprovados em Viena:
1. A filiação numa sociedade cooperativa deveria ser voluntária, ao alcance de
todas as pessoas que podem utilizar os seus serviços e estão de acordo em
assumir as responsabilidades inerentes à qualidade de membro; ela não deveria
ser objecto de restrições que não sejam naturais, nem de nenhuma discriminação
social, política ou religiosa.
2. As sociedades cooperativas são organizações democráticas. Os seus negócios
deveriam ser administrados pelas pessoas eleitas ou nomeadas segundo o
processo adoptado pelos membros, perante os quais são responsáveis. Os
membros das sociedades primárias deveriam ter os mesmos direitos de voto (um
membro – uma voz) e de participação nas decisões respeitantes à sua sociedade.
3.
4.
5.
6.
Em todas as outras sociedades, a administração deveria ser exercida numa base
democrática, sob forma apropriada.
Se um interesse é pago ao capital social, a sua taxa deveria ser estritamente
limitada.
O excedente ou as economias eventuais resultantes das operações de uma
sociedade pertencem aos membros dessa sociedade e deveriam ser repartidos de
modo a evitar que um deles seja beneficiado à custa dos outros.
Segundo a decisão dos membros, essa repartição pode fazer-se como segue:
a) Afectando uma soma ao desenvolvimento dos negócios da cooperativa;
b) Afectando uma soma aos serviços colectivos; ou
c) Procedendo a uma repartição entre os membros, proporcionalmente às
suas transacções com a sociedade.
Todas as sociedades cooperativas deveriam tomar medidas para a educação dos
seus membros, dirigentes, empregados e do grande público, sobre os princípios e
métodos da Cooperação, no plano económico e democrático.
Para melhor servir os interesses dos seus membros e da colectividade, cada
Organização deveria, por todas as formas possíveis, cooperar activamente com
as outras cooperativas, à escala local, nacional e internacional.
Uma vez aprovados os princípios seguiu-se um período que testou a sua adequação
prática. Os Congressos que se seguiram viraram-se para a análise da aplicação prática
de alguns deles (democracia cooperativa em 1972, intercooperação em 1976), bem
como para o papel das cooperativas no apoio ao desenvolvimento ou para a estrutura
interna da organização.
Cedo se começou a notar, porém, que variado tipo de pressões sobre a prática
cooperativa um pouco por todo o Mundo obrigariam a ACI a debater tendências e
adequação das cooperativas ao mundo em mudança.
Coincidiu esse período com a adesão do Inscoop à organização (1979, sendo até hoje o
único organismo de Estado que foi admitido na organização, sob a capa de “organização
promotora do desenvolvimento cooperativo”, e a minha própria vivência pessoal
enquanto representante dele nas principais reuniões realizadas a partir de 1983.
O Congresso de Moscovo de 1980 debate o relatório do canadiano Alexander Laidlaw
(4) sobre “As Cooperativas no Ano 2000” (5), verdadeiro ponto de partida de tudo o
que aconteceu na organização até à revisão dos Princípios em Manchester, 1995.
O relatório Laidlaw destinava-se a “gerar e estimular o debate” em torno das tendências
cooperativas e de novas vias de orientação a propor para enfrentar três crises que
identificou: uma crise de credibilidade, outra de gestão e uma terceira ideológica (6).
Dividido em seis partes, começa por nos fazer uma retrospectiva do movimento
cooperativo, apontando de seguida mudanças e planos para os vinte anos que mediavam
até ao final do século.
Recupera-se parte dos escritos preparatórios do relatório apresentado, que tão actual se
mantém, em grande parte ainda, trinta anos depois:
“As cooperativas encontram-se hoje mergulhadas numa espécie de pântano ideológico.
A cada dia que passa, cada vez se torna mais difícil aos cooperadores explicar a sua
própria posição e definir a direcção por que deveriam caminhar. A visão rochdaleana
tornou-se uma imagem confusa e longínqua de uma época ultrapassada, sem grande
significado actual. Raros são os que ainda partilham a crença de que o mundo moderno
possa ser reformado ou mudado por um sistema circunscrito ao comércio retalhista.
Quase ninguém está verdadeiramente satisfeito com o modo como hoje estão
formulados os princípios cooperativos. Mesmo de um ponto de vista estritamente de
negócios, não se pode afirmar que as cooperativas sejam notoriamente conhecidas
como agências de inovação e equilíbrio social. Muitas desditas afligem os fiéis do
movimento, que começam a exprimir a sua frustração: se as cooperativas se
transformam em firmas como as outras, então porquê mantê-las?
Gostaríamos de estar optimistas quanto ao futuro, mas cada dia que passa traz novos
argumentos e razões acrescidas para estarmos pessimistas. À medida que a estrutura
cooperativa se torna vasta e mais complexa, torna-se cada vez mais difícil garantir
como pode a democracia económica ser expressa pelas cooperativas e tornar-se
operacional. Simultaneamente, uma outra estrutura fundamental, a da educação,
encontra-se gravemente debilitada, mesmo até radicalmente desmantelada. É difícil
nomear um sistema cooperativo num dos países ricos e desenvolvidos que seja
motivado pela educação, como aconteceria há quarenta anos atrás. Parece mesmo que,
quando a prescrição fundamental da educação é levada a sério, isso acontece apenas
nos países pobres e subdesenvolvidos.
Acresce que, em todo o mundo, Estados e Governos, por um lado estendem a sua ajuda
e conferem às cooperativas maiores responsabilidades mas, por outro lado,
sobrecarregam-nas com maiores restrições e mais pesados controlos. O clima de
liberdade, propício às operações cooperativas tradicionais, parece rarefazer-se cada
vez mais e, sobretudo em muitos países em desenvolvimento, as cooperativas alienaram
completamente a sua autodeterminação, funcionando como puras sucursais das
agências governamentais, submetidas ao oportunismo político e ao poder burocrático.
Ema alguns países, as tensões resultantes do controlo exercido sobre as cooperativas
conduziram a um monstruoso complexo de absurdos.
Finalmente, os dirigentes cooperativos devem tomar em conta o que parece ser a
verdadeira perversidade da época que vivemos. Seria uma falta grave, e talvez fatal,
supomos que a via cooperativa se iria prolongar e difundir quase automaticamente pela
razão simples de os seus dirigentes estarem animados de boas intenções e ideias
nobres. Escrevendo há alguns anos, Laurens van der Post interrogava-se: “Houve uma
outra época em que, sabendo-se tão claramente o que se deve fazer, se agiu tão mal,
com tamanha obstinação?”
Face ao movimento cooperativo, tal como representado pelas organizações associadas
na ACI, tudo nos leva a crer que o movimento poderia estar numa encruzilhada,
podendo a saída ser, ou um impulso notável, ou um sério declínio, e isto já na próxima
geração”.
O “impulso notável” seria na opinião de Laidlaw dado pela capacidade de resposta do
movimento a 10 teses propostas para debate no capítulo quinto do seu estudo, teses
vistas como questões vitais que se colocavam às cooperativas de todo o mundo, e que
genericamente também se adequariam às portuguesas.
Antes, porém, abordou o “mundo em que vivemos”, tocando em questões como a
alimentação, os recursos energéticos, o emprego, o ambiente, a ciência e a tecnologia, o
poder das empresas, a urbanização, e suas repercussões no desenvolvimento cooperativo
nos países desenvolvidos e no chamado Terceiro Mundo.
Daí passou à teoria e prática do cooperativismo, tecendo considerações sobre os
princípios cooperativos, temas estruturais, a própria natureza das sociedades
cooperativas, a democracia cooperativa e as relações entre as cooperativas e o Estado,
designadamente a formação de um sector cooperativo autónomo dos sectores público e
privado.
Sobre princípios escreveu (7):
“..... as dúvidas subsistem a respeito da formulação actual, que compreende seis
princípios, e numerosos são os cooperadores que estão longe de se sentir satisfeitos. Ao
que parece, o equívoco provém, sobretudo, de duas séries de lacunas:
1) Quis-se erigir em princípios um conjunto de práticas de uso corrente;
2) A maioria deles deriva, sobretudo, de actividades das cooperativas de consumo
e dificilmente poder-se-iam aplicar a outras categorias, nomeadamente ao caso
das cooperativas agrícolas, operárias e de habitação”.
De forma concisa, o capítulo seguinte dedica-se a analisar os problemas que as
cooperativas “de hoje” devem enfrentar e a diagnosticar as suas debilidades, a que se
segue, num quarto capítulo, uma análise das oportunidades que se lhes deparam. São
examinados factores como o empenhamento dos membros, a participação democrática,
o negligenciar da educação, os papéis desempenhados pelos tecnocratas, gestores e
membros, a divulgação da mensagem cooperativa e a sua imagem. Prossegue com o
envolvimento dos pobres na vida económica e cooperativa, a relação empregador e
empregado das cooperativas com os seus trabalhadores, a intercooperação e o papel do
sector cooperativo na economia internacional.
Em matéria de oportunidades, considera quatro: produção, transformação e distribuição
de alimentos por forma a acabar com a fome no mundo, para o que seria necessário
fazer a ponte entre produtores e consumidores; encorajar a criação de cooperativas
operárias, começo de uma segunda revolução industrial, na qual o capital passa a estar
ao serviço do trabalho e não este ao serviço daquele; melhorar a organização das
cooperativas de consumo, dando o primado ao consumidor; criar comunidades
cooperativas a nível da aldeia, cidade ou região, como forma de fortalecer o
Movimento.
Seguem-se as 10 teses propostas por Laidlaw, começando por perguntar “onde estará a
qualidade dos órgãos dirigentes?” O autor refere o esquecimento a que tem sido votada
a formação de dirigentes cooperativos em detrimento da formação de quadros técnicos.
Diz que a direcção da cooperativa como empresa deverá ser acompanhada de
preocupações sociais, daí que uma boa gestão deva ser contrabalançada por um
conjunto acertado de decisões de cúpula, visando o progresso social dos membros da
cooperativa. E tal progresso deverá ser acompanhado e apoiado por escolas cooperativas
criadas pelos próprios cooperadores.
Questão seguinte versa a divulgação da mensagem cooperativa. Como dar-se a conhecer
ao comum dos cidadãos? Como chegar aos membros com eficiência? Como responder
ao desafio das novas tecnologias, da informatização?
Sendo para tal necessário capitais, à pergunta sobre de onde eles virão, a resposta dada é
o autofinanciamento, “um audacioso sistema de poupança e crédito”, a decidida
libertação dos subsídios concedidos pelo Estado, cujo papel face ao movimento
questiona também, Estado que se deseja não intervencionista e, sim, apoiante e
encorajador. Para Laidlaw “todo o sistema cooperativo deveria ser estruturalmente
organizado sob forma de cooperação bancária e de crédito”. No que aos excedentes
gerados em cada exercício diz respeito, propõe a sua capitalização e não a sua
distribuição.
“Pode-se recuperar forças através da educação?”, pergunta depois Laidlaw. E responde
sugerindo a educação permanente dos membros e através deles da comunidade, que se
acrescentaria á educação permanente sugerida para os dirigentes.
Questão vital é ainda a da necessidade ou não de um tipo de gestão específica para a
empresa cooperativa. Afirmativamente, ela deve ser uma gestão democrática,
partilhada, de equipa. Haverá que distinguir as funções de direcção, das de gestão. A
direcção estabelece planos anuais e orientações precisas, os gestores só têm que os
cumprir sem interferência dos directores, sendo “examinados” no final de cada
exercício. Deste esquema serão, evidentemente, excepcionadas as pequenas
cooperativas, já que nelas todos fazem tudo.
A maior disponibilidade das mulheres para uma participação activa na cooperativa é
também desejada. Reconhece-se hoje que, em certo tipo de cooperativas, mormente nas
dos países subdesenvolvidos. É a mulher que utiliza e trabalha para a cooperativa, mas
muitas vezes quem vota nas assembleias são os homens. Isso deve-se a tradições
culturais e religiosas, mas haverá que pugnar pela igualdade entre sexos.
Preocupa-se depois Laidlaw com a ajuda ao Terceiro Mundo. A cooperação para o
desenvolvimento deve ser entendida em novos moldes. À questão responde o
documento “Política da ACI para o Desenvolvimento cooperativo” de 1982, em que foi
recomendado que, para que o auxílio possa dar os resultados pretendidos, não se deve
proceder a uma simples exportação do modelo cooperativo do país dador, como no
passado, antes se deve previamente estudar o conjunto de problemas que enformam o
movimento cooperativo do país a assistir, e adequar a ajuda em conformidade.
A terminar a série de questões em debate questiona-se o futuro papel da ACI e como se
abrirá a cooperação ao futuro. Para responder à primeira destas duas questões, o Comité
central de 1982 determinou a discussão no Congresso de 1984 de um relatório,
encomendado ao canadiano Yvon Daneau.
O documento deveria fazer referência aos princípios ideológicos que constituem o
fundamento da cooperação, e sua evolução; devia propor uma reflexão sobre a melhor
maneira de construir uma filosofia cooperativa que atraísse os jovens; devia tratar do
futuro da Aliança, responsabilizando-a pela resposta cabal às necessidades das
organizações membros e cooperativas por elas representadas.
Composto por duas partes, na primeira equacionam-se os fundamentos da política
internacional do movimento cooperativo e a estrutura política da Aliança para actuar
sectorial e regionalmente, e na segunda propõe-se um programa de trabalho para o
período intercongressos, 1985 a 1988, e duas fórmulas de organização para, após opção
dos membros, o secretariado da ACI o poder desenvolver.
Sobre princípios cooperativos, Daneau escreve:
“A realidade de 1984 interroga o que se convencionou chamar de princípios
cooperativos. Formulados numa época, e num contexto, em que a cooperativa estava
próxima dos seus associados, em que utilizava técnicas de gestão bastante simples para
serem compreendidas por quem quer que seja, eles guardam todo o seu significado em
todos os casos em que a cooperativa não ultrapassa esse nível de desenvolvimento e se
apoia na expressão duma democracia directa.
Aliás, em certos meios, grande é a tentação de considerar que apenas a pequena
cooperativa é uma cooperativa autêntica…. Mas os pioneiros do movimento criaram
cooperativas para que elas vingassem, quer dizer se desenvolvessem….
Nessa evolução, tiveram as cooperativas que enfrentar, e ainda enfrentam sem cessar,
novos desafios. Tornaram-se organizações cada vez mais complexas, submetidas a
imperativos administrativos, técnicos e financeiros cada vez mais confrangedores.
Adoptaram técnicas modernas de gestão de empresas…. E tiveram razões para o fazer.
Contudo, assoberbadas pelas exigências de sobrevivência, esqueceram-se de reflectir
sobre as suas finalidades específicas, sobre as suas novas responsabilidades no novo
contexto. Teria sido preciso elaborar regras de acção apropriadas. Estas teriam
evitado que as práticas tradicionais, tornadas inapropriadas a este nível, constituíssem
travões ao livre desenvolvimento e ao sucesso económico e social que as nossas
empresas cooperativas se esforçam por atingir”.
E, mais adiante, procurando uma terapêutica para oeste diagnóstico, acrescenta:
“O movimento cooperativo, tanto ao nível nacional como internacional não é um fim
em si mesmo. O seu objectivo não é sobreviver, mas sim proporcionar um viver
melhor…
Toda a cooperativa funciona, não num vazio, mas num dado enquadramento económico
e social. Toda a cooperativa deve fazer o que está ao seu alcance para procurar
modificar e melhorar esse enquadramento. Para chegar lá. Deve naturalmente ter-se
em conta os problemas mais importantes à escala regional e nacional, e finalmente à
escala mundial.
Isto quer dizer que estamos todos envolvidos. Não apenas o serviço de investigação da
Aliança, os investigadores dos Institutos cooperativos universitários. Mas sim cada um
dos nosso movimentos, desde o cooperador de base até aos dirigentes das nossas
empresas, passando pelos administradores eleitos.
O melhor passo, em nossa opinião nos nossos dias, consiste em nos apoiarmos sobre a
realidade cooperativa tal qual ela se nos apresenta em cada um dos nossos
movimentos, a fim de destacar as particularidades que caracterizam as nossas
empresas em relação às outras formas de empresa. Trata-se de verificar, em factos
directamente observáveis e verificáveis em quê, exactamente, as cooperativas podem
ser organizações diferentes das outras, devido à sua própria finalidade.
…. o método que preconizamos deveria permitir o pôr a nu de organizações
cooperativas existentes nos diferentes países, a redescoberta da sua verdadeira
natureza, a fim de melhor identificar, a seguir, o papel que elas podem desempenhar no
interesse da comunidade local, nacional ou internacional”.
Um qualquer outro sector económico e social se abalançaria a efectuar uma tão
aprofundada reflexão sobre a sua história, actualidade, princípios, métodos e resultados.
O movimento cooperativo fê-lo no Congresso seguinte, o de 1988 em Estocolmo, com
base num documento redigido pelo próprio Presidente da ACI, o sueco Lars Marcus,
“encomendado” na sequência de decisão do Comité Central de Basileia de 1986.
Preparámos em Portugal esse Congresso com um debate nacional alargado sobre os
Valores Fundamentais da Cooperação, que decorreu em 1987 e foi concluído em Abril
de 1988 em Viseu, e posteriormente remetido à ACI e a Marcus (8).
O relatório Marcus começa por fazer referência ao “boom da economia capitalista de
mercado”, que se tornou “sedutor” para as cooperativas, que foram “nocivamente
influenciadas”.
Ainda no capítulo introdutório refere-se ao duplo propósito do relatório: por um lado
“fornecer combustível às discussões e planeamento estratégico nas direcções e nos
congressos nacionais”, e por outro verificar se a ACI terá necessidade de “alterar as suas
performances, os seus estatutos e os seus princípios”.
Olhando para a história da cooperação, Marcus recolhe um conjunto de valores que
afirma terem “actual e futura importância para o desenvolvimento cooperativo”, a saber:
- Valores de auto-ajuda (actividade, criatividade, responsabilidade, independência, “faça
você mesmo”);
- Valores de entreajuda (cooperação, unidade, acção colectiva, solidariedade, paz);
- Valores desinteressados (conservação de recursos, eliminação do lucro como força
condutora, responsabilidade social, objectivos utilitários, “não aproveitamento do
trabalho dos outros”);
- Valores democráticos (igualdade, participação, equidade);
- Valores de esforço voluntário (empenhamento, poder criativo, independência,
pluralismo);
- Valores de universalidade (perspectivas globais, abertura);
- Valores educacionais (conhecimento, compreensão, discernimento);
- Valores propositados (benefício aos membros, etc).
E explica-se:
“Destas oito categorias de valores, as primeiras sete considero-as conceptualmente
determinadas: aplicam-se (ou deveriam aplicar-se) a todas as espécies de experiências
cooperativas. A última depende do tipo específico de cooperação, se é de consumo,
agrícola, etc”.
Marcus, que defende terem sido “as ideias que criaram as nossas empresas, e não o
contrário”, não impôs a sua formulação de valores, reconhecendo poder haver outras
(9), apenas a utiliza para a partir dela “olharmos de novo as nossas raízes ideológicas”.
Inicia a partir daí um caminho que titula sucessivamente: “Importância de uma
Ideologia” – “A Identidade dos nossos Valores Fundamentais” – “Os Valores
Fundamentais” – “Mudanças”, para enfim falar dos “Problemas Cooperativos à nossa
Frente”.
Estes ainda os separa consoante os países vivam em economia de mercado, “em
economia socialista”, ou sejam países em desenvolvimento (10).
E não conclui sem antes regressar aos valores fundamentais que considera mais
importantes: participação, democracia, integridade e preocupação.
O Congresso aprovou a moção apresentada pelo Comité Executivo sobre o relatório
Marcus. Nela se fazia referência à designação de um comité de peritos independente e
internacional para “analisar os princípios à luz dos novos desafios que cooperadores e
organizações cooperativas enfrentam hoje e nos próximos anos”.
O Comité de peritos foi chefiado pelo sueco Sven Ake Böök, que coordenava o comité
de investigadores cooperativos, parte da estrutura de trabalho da ACI (11). Foi
assessorado por um comité consultivo de 11 membros e pela OIT.
O relatório Böök deixou-nos um sentimento de semi-frustração. Sendo o primeiro
relatório a um Congresso da ACI após a queda do Muro de Berlim, não soube, ou não
quis, visionar o cooperativismo no novo mundo criado. Por outro lado, continuava
demasiado vinculado ao cooperativismo de consumo, não se abrindo aos outros tipos de
cooperativas. Sendo um relatório saído da experiência nórdica, não conseguiu ser
universal. Colocava também demasiadas questões, quando a três anos do Congresso do
Centenário da ACI, 1995, já deveria dar respostas.
Não se pode, porém, minimizar a sua importância para o que em Manchester viria a
acontecer. Intitulado “Valores Cooperativos num Mundo em Mudança”, o relatório
parte de uma análise dos valores fundamentais da cooperação passados, para verificar se
poderão ser pontos de partida para o futuro. Aborda depois as problemáticas da
“democracia, participação e mobilização”, da “formação de capital para a democracia
económica”, e da “eficiência e eficácia cooperativa no futuro”, para depois analisar os
“futuros valores” e fazer uma proposta de revisão dos princípios cooperativos.
Böök, a exemplo de Laidlaw e Daneau, quis também elencar um conjunto de questões
de actualidade, por cuja resposta passaria o futuro da cooperação:
- Qual o significado cooperativo da eficiência económica?
- A forma cooperativa de organização continua a ser viável?
- Que novos métodos de formação de capital estão mais próximos da essência
cooperativa?
- Podem as cooperativas ter ambições sociais?
- A gestão vê os membros como sujeitos ou objectos da gestão?
- Que lugar para os “empregados” na democracia cooperativa?
- As cooperativas são por natureza locais?
- Princípios cooperativos para a universalidade ou para a selectividade?
- Como podem as cooperativas encorajar a mobilização e a emancipação humanas?
Transcrevem-se, pela sua importância, as conclusões e recomendações de Böök:
“…… este relatório propõe uma base de discussão das linhas valorativas de orientação
de longo prazo para o futuro. É minha convicção que o Movimento cooperativo de todo
o mundo necessita tê-las em conta mais do que nunca, especialmente porque o ponto de
partida está marcado pela transição para um mais do que nunca “imprevisível” futuro.
Nessa base o relatório avança com:
 Conclusões sobre os tradicionais valores cooperativos fundamentais e a sua
relevância para o futuro.
 Recomendações sobre os valores fundamentais globais para o futuro.
 Recomendações sobre algumas abordagens da revisão dos Princípios da ACI.
…. Identifiquei três tipos de valores cooperativos fundamentais tradicionais: ideias
fundamentais, ética fundamental e princípios fundamentais.
Seria de esperar das recentes experiências, particularmente entre as organizações
cooperativas dos modernos países industrializados, que os cooperadores e as
organizações cooperativas estivessem prontos para mudar os seus valores
fundamentais tradicionais, ou pelo menos reinterpretá-los extensamente. A prática tem
“questionado” os valores tradicionais e tem-se desviado deles. Além disso, alguns dos
valores tradicionais têm sido mais ou menos aceites pela sociedade em geral. Antes de
iniciar o meu trabalho ouvi declarações sobre “renovações” e “valores antiquados”,
significando que a revitalização das organizações cooperativas deveria implicar
“novos valores”.
Todavia, não encontrei provas de qualquer movimento para o abandono ou mudança
radical dos valores tradicionais quando chegar o momento de identificar os valores
fundamentais para o futuro. Noutras palavras, aqueles valores que os cooperadores
querem usar como linhas básicas de orientação para as suas ofertas de serviço a longo
prazo. Pelo contrário, os cooperadores parecem querer manter os valores originais,
mesmo que possam ser expressos de maneira diferente. Certamente que as minhas
impressões são limitadas. Até nova ordem, contudo, tomo-o como sinal de que a
tendência para o desvio dos valores tradicionais nas recentes décadas reflecte,
sobretudo, adaptações pragmáticas a meios difíceis, mais do que uma intenção de
permanente mudança dos valores fundamentais.
Não é fácil, nem provavelmente significativo, estabelecer prioridades nos valores
fundamentais que identifiquei, porque tais prioridades devem, por natureza, ser feitas
nos vários contextos em que se aplicam. Todavia, alguns valores parecem receber
maior ênfase que outros. Entre as ideias fundamentais isso é verdadeiro para:
 Igualdade (democracia) e Equidade.
 Auto-ajuda voluntária e Mútua.
 Emancipação social e económica.
Tal não é surpreendente já que elas foram sempre vistas como as ideias essenciais e
valores eternos do verdadeiro conceito de Cooperação no contexto da ACI. Por outro
lado, tal como anteriormente afirmado, a sua interpretação variará certamente em
diferentes partes do mundo atentas as pré-condições culturais, políticas e económicas.
A elas ligada, e em parte dependendo delas, surge-nos a ética fundamental. Esta é
menos discutida, porque mais conexa com corações e mentes dos cooperadores
militantes. Não obstante, tenho a impressão que os valores mais importantes são:




Honestidade
Preocupação por
Pluralismo (abordagem democrática)
Constructividade (fé na via cooperativa).
Podemos interpretá-los como qualidades pessoais. Mas é mais relevante identificá-los
como parte do “espírito cooperativo” e da “cultura cooperativa” do conjunto das
organizações cooperativas. Noutros termos, como valores que deviam ser encorajados
para caracterizar a relação entre os membros, entre estes e a comunidade no seu
conjunto.
Finalmente deparamos com os valores mais instrumentais, a que chamei princípios
fundamentais e características da organização cooperativa. Dizem respeito à
edificação de organizações cooperativas viáveis do ponto de vista dos membros. Em
certa medida baseiam-se também num misto de experiências e ideias. Tenho a
impressão de que são estes os valores a que mais frequentemente se referem os
cooperadores quando discutem os “valores fundamentais”. De entre eles os mais
importantes parecem ser:








Associações de pessoas
Promoção eficiente dos membros
Gestão democrática e participação dos membros
Autonomia e independência
Identidade e unidade
Educação
Distribuição justa dos benefícios
Intercooperação a nível nacional e internacional
São estes os mais relevantes princípios fundamentais e características quando lidamos
com a revisão dos Princípios cooperativos”.
Passa depois Böök às recomendações, primeiro sobre os valores fundamentais globais,
depois para os Princípios que a ACI deveria adoptar para o virar do século, procurando
traçar o caminho do colega a quem competiria a redacção concreta dos Princípios de
1995, o canadiano Ian MacPherson, nomeado para tal pelos congressistas em Tóquio.
“A nível planetário a forma mais relevante de expressar os valores fundamentais é darlhes um contexto de aplicação orientado para a acção. Por essa razão, identifiquei
algumas perspectivas comuns e cruciais para as próximas décadas, a que chamei
“valores fundamentais globais”. Reflectem os valores fundamentais no seu todo, dão
algumas prioridades gerais aos valores individuais a nível global, e podem ser
consideradas como base de desenvolvimento de um perfil cooperativo global. Podem
também servir de base para o desenvolvimento de um programa de longo prazo ao
nível da ACI. Com essas intenções, recomendei que as organizações cooperativas
deviam considerar-se a si próprias como organizações para:

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


Actividades económicas para responder a necessidades
Democracia participativa
Desenvolvimento de recursos humanos
Responsabilidade social
Intercooperação nacional e internacional.
Eis a essência da via cooperativa, na sua organização básica, seus propósitos e
relações comunitárias. Reflectem também as ideias fundamentais de paz e
solidariedade global, bem como de movimento em favor das democracia económica.
Alguns comentários breves sobre elas:
- Actividades económicas para responder a necessidades quer dizer que o Movimento
cooperativo de todo o mundo deve continuar a planear as suas actividades para
satisfazer as necessidades da gente comum como agricultores, operários,
consumidores, produtores, pescadores, aforradores, etc… Foi esta sempre a orientação
principal, e a ênfase nas necessidades torna significativa a via cooperativa. Inclui
também a responsabilidade de economizar os escassos recursos humanos, económicos
e ambientais, o que é particularmente influenciado pelo facto de as cooperativas serem
principalmente financiadas pelas poupanças de gente relativamente pobre. Enfatiza
também o princípio objectivo a nível planetário: ajudar a melhorar os níveis de vida
dos menos poderosos.
- A Democracia participativa faz parte do papel do Movimento cooperativo mundial ao
contribuir para as relações democráticas entre as populações e desenvolvimento dos
papéis de “escola democrática” e “instrumento de democracia económica”. O papel
começa a realizar-se, em alguns lugares ainda tenuemente, e a tarefa é cada vez mais
importante. Em muitos contextos cooperativos tais papéis deveriam ser aperfeiçoados,
dando maior atenção aos aspectos participativos da democracia, e ao fazê-lo atenção
especial deverá ser dada a encontrar novas formas de organização e ao envolvimento
de mulheres, jovens e empregados cooperativos.
- O desenvolvimento de recursos humanos é fundamental para o Movimento
cooperativo planetário, e é mais do que nunca importante para o futuro. O movimento
cooperativo está na infância em muitas partes do mundo, e a necessidade de
emancipação social e económica é urgente: elevar pessoas à dignidade humana e darlhes voz, individual e colectivamente, influenciar as condições de vida e a comunidade
em geral. Isso, entre outras coisas implica que a via cooperativa procure mobilizar a
economia humana assente na cooperação e não na exploração pelo capital.
- A responsabilidade social está implícita na via cooperativa. Grupos de pessoas
criaram as suas sociedades cooperativas para assumirem a responsabilidade pela sua
própria condição e pela da comunidade no seu conjunto. A responsabilidade social
reflectiu-se sempre nas políticas cooperativas básicas, no quadro das organizações
cooperativas, bem como no das suas relações com a sociedade em geral, e deverá
continuar a caracterizar o futuro cooperativo. A ênfase corrente no individualismo e na
economia de mercado parece querer subsistir por algumas décadas. Em tais
circunstâncias é vital que tenhamos organizações capazes de expressar os pontos de
vista dos membros mais fracos da sociedade e agir no seu interesse.
- A intercooperação económica nacional e internacional é a via principal pela qual o
Movimento cooperativo se pode expandir e se tornar mais influente. Tal tornou-se
ainda mais importante num mundo “que se encolhe”. As possibilidades são numerosas
e nos próximos anos o Movimento cooperativo planetário pode tornar-se uma
alternativa, assente nas pessoas, à via de internacionalização capital-associativa.
…. Os princípios da ACI são as orientações fundamentais para a aplicação prática
destes valores. A minha tarefa foi restrita a recomendar algumas linhas de orientação
para a revisão dos Princípios da AC, que se seguirá ao Congresso de Tóquio. Por isso
decidi não entrar em detalhes, nem recomendar reformulações definitivas dos
Princípios, já que eles poderiam reduzir as nossas discussões nas bases. Considerei
duas abordagens, uma modesta e outra mais ambiciosa ao tratar das revisões.
Na abordagem mais modesta recomendo que os Princípios existentes sejam alterados
da seguinte forma:
 O Princípio do juro limitado sobre o capital deveria ser formulado de modo
mais flexível. Não deveria ser visto como um princípio separado; pelo contrário,
deveria ser integrado num novo Princípio sobre a formação de capital.
 O Princípio principal deveria ser a formação de capital. Deveria frisar a
necessidade de contar com o capital dos membros (individual ou colectivo)
tanto quanto possível, e garantir um razoável grau de independência na
constituição e gestão do capital.
 O Princípio da democracia deveria ser acrescido de uma declaração sobre a
participação do pessoal na administração das cooperativas.
 Um novo princípio deveria enfatizar um razoável grau de autonomia e
independência da organização cooperativa, e poderia ser combinado com o
novo Princípio sobre a formação de capital.
….. No que diz respeito à revisão mais ambiciosa, recomendo que a ACI deveria
desenvolver dois tipos de Princípios: Princípios Cooperativos Fundamentais e (regras
respeitantes a) Práticas Cooperativas Fundamentais:
 Os Princípios Cooperativos Fundamentais deveriam expressar a essência
universal da cooperação de forma mais explícita e ser formulados nos termos
dos valores fundamentais referidos.
 As Práticas Cooperativas Fundamentais (ou regras para as práticas) deveriam
ter em conta os diversos tipos de cooperativas e dar exemplos mais concretos de
práticas e regras para tais práticas.
O primeiro tipo de Princípios tem um carácter mais eterno. O segundo tipo subordinase ao primeiro e é mais de curto prazo. Deveria ser revisto para ser útil à sociedade
contemporânea, e poderia subsequentemente ser desenvolvido de acordo com as
necessidades pelos comités especializados da ACI.”
Chegamos assim a Manchester e ao texto de MacPherson, sem antes referir que a
exemplo do debate sobre os valores de 1987/1988, também em 1993 se ensaiou, e de
novo com relativo sucesso, um debate nacional sobre as recomendações de Böök, do
qual se queria que saísse uma posição nacional a submeter a MacPherson por forma a
ser considerada no seu trabalho.
(1) William Pascoe Watkins – “The International Co-operative Alliance 1895 –
1970”, edição ACI, 1970
(2) Johnston Birchall – “The International co-operative movement”, edição
Manchester University Press, 1997
(3) Leia-se sobre a cooperativa “Pioneers of Co-operation – 160th Anniversary
Reflection on the Opening of the Toad Lane Store”, de Ian MacPherson e
Stephen Yeo.
(4) Alexander Fraser Laidlaw foi secretário geral da União Cooperativa canadiana, a
partir de 1958 e membro do Comité Central da ACI durante os anos de 60.
Faleceu pouco depois do Congresso de Moscovo.
(5) “As Cooperativas no Ano 2000” foi traduzido pelo Inscoop e publicado em
Maio de 1983.
(6) Ver Birchall, pág.64
(7) Ver Laidlaw, pág.54
(8) O debate nacional assentou na discussão dos seguintes temas, sendo que havia
perguntas previamente organizadas sobre cada um, por forma a estimular um
debate que permitisse tirar conclusões: Modos de participação na vida
cooperativa; Ser dirigente numa cooperativa; Fortalecer a cooperativa pela
educação; Fronteiras entre a administração e a gestão; Um melhor serviço –
igualitário ou equitativo?; Concorrer –como?; Novas formas de financiamento;
Que estratégia? Isolacionista ou pelo sector cooperativo?
(9) É expressamente referida a formulação de W.P.Watkins constante do seu livro
“Co-operative Principles Today and Tomorrow”: Associação e unidade;
Economia; Democracia; Equidade; Liberdade; Responsabilidade; Educação.
Tóquio veio a ser o primeiro Congresso da história da ACI em que se não
verificaram discussões ideológicas com posições políticas subjacentes, graças à
queda do “Muro de Berlim”.
(10)
Böök fez do comité de investigadores um auxiliar do seu trabalho,
propondo que em cada reunião as intervenções dos participantes se centrassem
em temas pré-definidos.
PRINCÍPIOS E VALORES
Antes de passar a analisar a formulação de princípios saída de Manchester, terei de
transmitir as minhas próprias reflexões na matéria, situando-as no tempo.
Quando escrevi em 1993 o meu livro “Enquadramento Histórico-Social do Movimento
Cooperativo”, editado pelo Inscoop em 1994, vigorava entre nós uma lei cooperativa
que não identificava expressamente os princípios cooperativos (artigo 3º da Lei 1/83, de
10 de Janeiro) como sendo os da Aliança Cooperativa Internacional.
Ao contrário da maioria dos que sobre a matéria escreveram, e indo buscar inspiração à
Constituição da República Portuguesa, mormente à liberdade de constituição de
cooperativas (artigo 61º,2), por um lado, e à proibição de funcionamento entre nós de
cooperativas de poupança e crédito ao arrepio dessa liberdade, por outro - tipo de
cooperativas que não obedeciam aos ditames da ACI, mas se abrigavam no WOCCU
(Conselho Mundial das Cooperativas de Poupança e Crédito), e possuíam uma listagem
não totalmente sobreponível de princípios cooperativos (1) - defendi que a não
identificação directa dos princípios pelo legislador com os da ACI era intencional.
Acrescentava a esta teoria as próprias posições da ACI, que estatuía que os princípios só
eram obrigatórios para quem dela quisesse fazer parte.
Com a publicação da Lei 51/96, de 7 de Setembro, o legislador põe ponto final nesta
divergência de posições, ao copiar os próprios princípios, tal como redigidos em
Manchester, para o novo artigo 3º, e referindo a declaração sobre a identidade
cooperativa da Aliança expressamente. Embora consideremos que não fica resolvido o
problema das cooperativas de poupança e crédito, e que a solução encontrada é de um
ponto de vista de técnica legislativa incorrecta, já que obriga a alterar o Código sempre
que a ACI decidir alterar os princípios, as cooperativas nacionais devem obediência
doravante aos princípios da ACI, e devem-lhes obediência mesmo se nenhuma
organização portuguesa for membro dessa Aliança Cooperativa Internacional.
Mas, se os princípios são hoje obrigatórios entre nós, nem por isso devem ser tomados
como verdade absoluta, verdade universal. É a actuação prática cooperativa em cada
contexto que decide os contornos do que é e não é uma cooperativa. A ACI inspira,
orienta, encaminha, mas não impõe a sua visão em termos de dogma absoluto.
Por isso recupero o que escrevi: “a cooperativa, que a si própria se traçou objectivos
finais, terá de alcançá-los de acordo com certas regras ideais, não vinculativas, mas
universalmente, consensualmente, aceites”. “Tais regras, a que outros chamam de
postulados morais, relevando de um costume cooperativo ou de uma ética cooperativa,
são comummente aceites por princípios cooperativos”. Estes são, pois, “as regras ideais
de actuação prática da cooperativa, enquanto organização social e económica, definidas
por consenso entre todos os cooperadores mundiais representados na Aliança
Cooperativa Internacional”.
Isto dito, continuo a sentir, quase vinte anos depois desses escritos, que se baralha
princípios e valores, práticas e ideias, regras de orientação e regras éticas. Por isso quis
continuar a suscitar a reflexão sobre esta problemática, nos mesmos termos do que nessa
época pretendi fazer junto dos alunos que eram os destinatários principais do livro
citado. Fá-lo-ei mesmo que reconheça que Ian MacPherson contribuiu em muito para
que de Manchester tenham saído muito mais clarificados os conceitos.
Como dizia Marcus, serão os “valores que fundam ou fundamentam os princípios” ou,
ao invés, serão os valores que decorrem dos princípios?”
Em Fauquet (2) lê-se: “Por princípios entendo não as regras fixadas pelo costume
cooperativo, mas os postulados morais donde derivam essas regras”. Ou seja, princípios
para Fauquet são aquilo a que se chama valores? E as regras são ou não o que se chama
princípios?
O que quis o comité de redacção de 1966 esclarecer quando defendeu por princípios
cooperativos “as práticas que são essenciais, que são absolutamente indispensáveis para
alcançar os fins do Movimento cooperativo?” Não veio ao invés confundir princípios
com práticas?
O já citado Watkins (3) complica de novo a situação quando escreve: “as regras e
práticas, que podem ser convenções e usos, bem como formulações estritas e precisas
nos estatutos da sociedade, são os métodos pelos quais os princípios são levados à
prática. Poderão variar consoante os tempos e as circunstâncias….em contraste com as
regras práticas, contudo, os princípios que as informam e justificam mantêm-se
inalteráveis”. Ou seja, regressamos a Fauquet. Mas estes “princípios”, que são para nós
“valores”, serão mesmo inalteráveis? Serão “ideias universais” permanentes? São
mesmo “elementos na cooperação que se mantêm constantes em todos os tempos e
lugares”?
É-me fácil defender que tudo é mutável, mesmo estes “princípios”(valores). Constato,
porém, que a caminho dos dois séculos de cooperação moderna, os valores da
cooperação não se perdem, antes são acrescentados a cada nova reflexão.
Cite-se Arnold Bonner (4): “o movimento cooperativo tende para fins, em si mesmos
estados de perfeição inalcançáveis, mas que operam como um verdadeiro norte para a
sua actividade (estes seriam os valores). Por sua vez existem pautas ou guias para a
acção, que se observados asseguram orientação para os fins prosseguidos (tais pautas
seriam os princípios)”. Os valores orientam e atraem, são fins ou ideais; os princípios
marcam o caminho, revestem carácter eminentemente normativo.
Mas será que não há cooperativas verdadeiras nos países que não têm legislação
cooperativa, a ser verdadeira a ligação entre princípios e lei? O caminho não regressa aí
ao costume, ao contrário do que quis Fauquet?
Recupere-se o homem de leis que Münkner é (5): “princípios cooperativos são linhas de
orientação para dirigir com sucesso as cooperativas em conformidade com os valores
fundamentais da cooperação. Servem também de base à legislação cooperativa”.
Mas se assim fosse, as legislações cooperativas não deveriam tender para a
uniformização? Pelo menos não deveriam sê-lo nos países cujos movimentos
cooperativos estão filiados na ACI?
Chega a vez dos portugueses Reto e Lopes (6): a distinção de Fauquet só é inteligível a
partir da ideia de que o modelo cooperativo se deve estruturar em torno de “postulados
morais” (valores na moderna linguagem) e não em princípios entendidos como regras
intocáveis. É esta distinção que está na base da interpretação flexível dos princípios
cooperativos realizada pelo 23º Congresso”.
Demasiadas questões que reflectem uma não uniformidade de pontos de vista.
Experimente perguntar a um membro da sua cooperativa o que entende por valores e
por princípios cooperativos que verá não ser fácil um entendimento unívoco.
Antes de terminar com outras considerações pessoais, recupere-se esquematicamente
Böök (7).
Para ele valores fundamentais da cooperação são os “personificados no próprio conceito
de cooperação”.
Esses valores fundamentais são as “ideias fundamentais”, por um lado, e a “ética
fundamental”, por outro.
As “ideias fundamentais” podem ser descritas como crenças e convicções cooperativas
sobre o modo de alcançar uma sociedade melhor e a forma que tal sociedade deve
assumir”.
A “ética fundamental” é aquilo que se designa por “cultura cooperativa”. Inclui “os
valores éticos e morais, os conceitos de ideais humanos, do “homem cooperativo”, do
“espírito cooperativo” e da “comunidade cooperativa””.
E acrescenta Böök que, “por forma a funcionarem como veículos dos valores, as
organizações cooperativas têm de ser eficientes; assim, as ideias e ética fundamental
têm sido complementadas pelas experiências práticas para formar os valores
instrumentais. A eles me referirei como “princípios fundamentais””.
De entre os valores instrumentais os mais conhecidos serão os Princípios da ACI,
reconhecendo Böök que “desde que eles sejam interpretados a partir de orientações
ideológicas o carácter universal desaparece”.
E acrescenta: “Cheguei à conclusão de que devemos dar um passo mais na direcção
tomada pelo comité de 1966 e levar os princípios explicitamente até mais perto dos
valores. Isto, todavia, pressupõe um complemento com regras e práticas essenciais. A
este complemento deveria também ser dado o estatuto de princípios”.
Propôs, por isso aos Congressistas que distinguissem dois tipos de princípios: os
Princípios cooperativos fundamentais, “suficientemente universais para abarcar todas as
verdadeiras cooperativas, mas ao mesmo tempo suficientemente selectivos para
identificar a via cooperativa e servir de linhas fundamentais de orientação da prática”,
que estariam próximos dos valores fundamentais iniciais; e as Práticas (Regras)
cooperativas fundamentais, princípios que “deveriam exprimir as práticas fundamentais
e regras para as práticas que são apropriadas à, e cooperativamente aceites pela,
sociedade contemporânea”, práticas que poderiam ser diferentes por ramo cooperativo.
MacPherson não o seguiu na totalidade, matéria exposta a seguir.
Finalizo com as ideias que defendia nos inícios dos anos 90 (8).
Em matéria de princípios considerava que se deveriam manter da formulação de 1966
os da livre adesão, igualdade, educação e intercooperação. Já tinha dúvidas sobre os
princípios ligados à economia cooperativa. Aceitaria recuperar de 1937 a neutralidade
política e religiosa, sobretudo visando a não partidarização da política cooperativa, e
afirmando a independência da cooperação; e das regras dos pioneiros a “pureza e
qualidade dos produtos”, entendida agora como “produtos não nocivos ao ambiente, ao
desenvolvimento saudável e equilibrado do homem”. Dizia que “fazer da defesa do
ambiente, do meio, um ideal de toda e qualquer cooperativa a criar” deveria passar a
princípio.
E terminava: “o cooperativismo deve ser saída para a resolução de desequilíbrios
regionais de desenvolvimento, de pressões migratórias, de fundamentalismos os mais
diversos. Gera empregos. Porque emana do homem, por ele é entendido em todas as
latitudes”(9).
(1) Os princípios operacionais das cooperativas de poupança e crédito associadas da
WOCCU “derivam parte das práticas internas às caixas de poupança e crédito, e
parte dos princípios cooperativos articulados pela Aliança Cooperativa
Internacional em 1937, 1966 e 1995.”
São dez os princípios operacionais:
- Adesão livre e voluntária;
- Controlo democrático;
- Depósitos limitados em matéria de capital equitativo;
- Interesse sobre os depósitos a taxa justa;
- Retorno dos excedentes em função da participação dos membros;
- Não discriminação em função de raça, religião ou políticas;
- Fornecimento de serviços de alta qualidade aos membros;
- Apoio a educação contínua;
- Intercooperação;
- Responsabilidade social.
“Os princípios agrupam-se em três categorias: estruturas democráticas (1, 2 e 6);
serviço aos membros (3, 4, 5 e 7); e fins sociais ( 8, 9 e 10)”.
(2) Ver Leite, João Salazar – “Cooperação e Intercooperação”, Livros Horizonte,
1982
(3) Watkins, W.P. – “Co-operative Principles – Today and Tomorrow, Holyoake
Books, 1986
(4) Citado por Dante Cracogna em “Reflexiones sobre los Valores y los Principios
Cooperativos en la Alianza Cooperativa Internacional”, Universidade de Deusto,
1991
(5) Membro do comité que acolitou Böök, Hans Münkner, jurista e especialista em
desenvolvimento da Universidade de Marburg, foi autor de “Possível Estratégia
de Desenvolvimento da ACI para as próximas décadas”, ACI, 1992
(6) Reto, Luís e Lopes, Albino – “Cooperativismo e Sindicalismo”, Inscoop, 1992
(7) Böök, Sven Ake – “Co-operative Values in a Changing World”, ACI, 1992
(8) Ver Leite, João Salazar – “Sobre o Código Cooperativo e da Necessidade da sua
revisão”, in Anuario de Estudios Cooperativos da Universidade de Deusto 1992,
editado em Janeiro de 1993
(9) Ver Leite, João Salazar – “Por um Manifesto Cooperativo”, in Revista de
Estudos da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, Dezembro de
1991
PRINCÍPIOS COOPERATIVOS – A FORMULAÇÃO DE MANCHESTER
O Congresso de Manchester foi antecipado de um ano em relação à data em que se
deveria realizar, por forma a coincidir com o Centenário da Aliança Cooperativa
Internacional. Realizou-se em Manchester, cidade de que hoje Rochdale é parte
integrante.
Após discussão do relatório de actividades da Aliança 1994-1995 os congressistas
seguiram atentamente o discurso de Ian MacPherson, canadiano responsável pela
proposta de novos “Princípios da ACI para o século XXI”.
MacPherson começou por distribuir um questionário às organizações membros da ACI
para que comentassem os princípios de 1966. Reuniu depois por quatro vezes com cinco
colegas (Itkonen, finlandesa; Paz, israelita; Wülker, alemão, representante da
International Raiffeisen Union; Shiraishi, japonês da Universidade de Tóquio; e
Münkner, alemão, da Universidade de Marburgo) para elaborar uma versão preliminar
do seu trabalho, que foi distribuída a um painel consultivo de 50 pessoas. Houve mais
quatro versões do texto que foram circuladas e o Comité Executivo da ACI pode
pronunciar-se em duas ocasiões sobre essas versões preliminares. Uma versão final para
alterações e nova reunião, já em Manchester do Comité executivo para apreciar essas
alterações ainda se realizaram antes da aprovação pelo Congresso. Em suma, o
movimento que faz da participação uma das suas bandeiras, teve múltiplas ocasiões de
dizer de sua justiça na matéria (1).
O trabalho final de MacPherson continha duas partes (2): a Declaração sobre a
Identidade cooperativa e sua justificação; e a Declaração para o século XXI, em que se
examinava o “Papel das cooperativas - Ontem, Hoje e Amanhã”.
Reproduzo a Declaração sobre a Identidade Cooperativa, que inclui uma definição de
cooperativa e o elenco de valores e de princípios cooperativos:
DECLARAÇÃO SOBRE A IDENTIDADE COOPERATIVA

DEFINIÇÃO DE COOPERATIVA
Uma cooperativa é uma associação autónoma de pessoas que se unem,
voluntariamente, para satisfazer aspirações e necessidades económicas, sociais e
culturais comuns, através de uma empresa de propriedade comum e democraticamente
gerida.

VALORES COOPERATIVOS
As cooperativas baseiam-se em valores de ajuda e responsabilidade próprias,
democracia, igualdade, equidade e solidariedade. Na tradição dos seus fundadores,
os membros das cooperativas acreditam nos valores éticos da honestidade,
transparência, responsabilidade social e preocupação pelos outros.

PRINCÍPIOS COOPERATIVOS
Os princípios cooperativos são as linhas orientadoras através das quais as cooperativas
levam à prática os seus valores.
1º PRINCÍPIO: ADESÃO VOLUNTÁRIA E LIVRE
As cooperativas são organizações voluntárias, abertas a todas as pessoas aptas a utilizar
os seus serviços e dispostas a assumir as responsabilidades de membro, sem
discriminações de sexo, sociais, políticas, raciais ou religiosas.
2º PRINCÍPIO: GESTÃO DEMOCRÁTICA PELOS MEMBROS
As cooperativas são organizações democráticas geridas pelos seus membros, os quais
participam activamente na formulação das suas políticas e na tomada de decisões. Os
homens e as mulheres que exerçam funções como representantes eleitos são
responsáveis perante o conjunto dos membros que os elegeram. Nas cooperativas do
primeiro grau, os membros têm iguais direitos de voto (um membro, um voto), estando
as cooperativas de outros graus organizadas também de uma forma democrática.
3º PRINCÍPIO: PARTICIPAÇÃO ECONÓMICA DOS MEMBROS
Os membros contribuem equitativamente para o capital das suas cooperativas e
controlam-no democraticamente. Pelo menos parte desse capital é, normalmente,
propriedade comum da cooperativa. Os cooperadores, habitualmente, recebem, se for
caso disso, uma remuneração limitada, pelo capital subscrito como condição para serem
membros. Os cooperadores destinam os excedentes a um ou mais dos objectivos
seguintes: desenvolvimento das suas cooperativas, eventualmente através da criação de
reservas, parte das quais, pelo menos, será indivisível; beneficio dos membros na
proporção das suas transacções com a cooperativa; apoio a outras actividades aprovadas
pelos membros.
4º PRINCÍPIO: AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA
As cooperativas são organizações autónomas de entreajuda, controladas pelos seus
membros. No caso de entrarem em acordos com outras organizações, incluindo os
governos, ou de recorrerem a capitais externos, devem fazê-lo de modo a que fique
assegurado o controle democrático pelos seus membros e se mantenha a sua autonomia
como cooperativas.
5º PRINCÍPIO: EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO E INFORMAÇÃO
As cooperativas promovem a educação e a formação dos seus membros, dos
representantes eleitos, dos dirigentes e dos trabalhadores, de modo a que possam
contribuir eficazmente para o desenvolvimento das suas cooperativas. Elas devem
informar o grande público particularmente, os jovens e os líderes de opinião, sobre a
natureza e as vantagens da cooperação.
6º PRINCÍPIO: INTERCOOPERAÇÃO
As cooperativas servem os seus membros mais eficazmente e dão mais força ao
movimento cooperativo, trabalhando em conjunto, através de estruturas locais,
regionais, nacionais e internacionais.
7º PRINCÍPIO: INTERESSE PELA COMUNIDADE
As cooperativas trabalham para o desenvolvimento sustentável das suas comunidades,
através de políticas aprovadas pelos membros.
Haverá agora que dissecar o seu conteúdo dela recorrendo à exposição de motivos de
MacPherson, após o que, um a um, procurarei falar do conteúdo e aplicação dos
princípios cooperativos entre nós.
Considera que “um dos problemas com as duas prévias formulações dos princípios,
creio, foi o de não darem de si próprios uma compreensão das suas raízes intelectuais e
filosóficas. Tal omissão foi infeliz porque contribuiu sem intenção para a tendência de
ver os princípios como um conjunto de normativos organizacionais e não como parte
integrante de uma filosofia coerente”.
MacPherson, todavia, diz-nos depois que “as revisões periódicas de princípios são fonte
de vigor do movimento cooperativo”, demonstrando “como o pensamento cooperativo
pode ser aplicado num mundo em mudança”.
Rever os princípios não é, pois, sinal de fraqueza do movimento, antes o que poderei
chamar de periódico toque a reunir dos dirigentes cooperativos reflectindo sobre os
diferentes tipos de cooperativas e as diferentes experiências cooperativas concretas nos
diferentes continentes.
MacPherson di-lo também. Primeiro referindo que “não há uma nascente única de que
brotaram todas as espécies de cooperativas”; depois escrevendo que “a Declaração
pretendeu bem servir igualmente cooperativas em todas as conjunturas económicas,
sociais e políticas”. E acrescentou que ela “forneceu um quadro global no qual todos os
tipos de cooperativas poderiam funcionar”.
Embarca de seguida numa análise, que podemos enquadrar na tradição da ACI iniciada
em Laidlaw, e continuada por Daneau, Marcus e Böök, que refere a influência da
globalização sobre a empresa e o homem cooperativo.
Passa depois a referir que a definição de cooperativa que propõe “deve ser vista como
declaração mínima: não pretende ser uma declaração de cooperativa perfeita”.
A definição enfatiza: a autonomia da cooperativa, a sua independência face aos poderes
públicos e empresas privadas; o ser uma associação de pessoas, não essencialmente,
mas sobretudo indivíduos; a voluntariedade, a não obrigatoriedade da filiação; o serviço
aos membros, como resposta às necessidades deles; o controle e propriedade dos
membros exercido de forma democrática.
Em matéria de valores, começa por frisar a longa discussão tida no seio da ACI e a ética
que lhes está subjacente, referindo que a sua proposta entronca nas de Böök e Watkins.
Enumera-os (“há tantos que foi difícil sumarizá-los”) em duas partes, cabendo um
período a cada uma delas: os primeiros seriam operacionais; os segundos éticos.
Valores operacionais elenca: a auto-ajuda, já que “todas as pessoas podem e devem
controlar o seu destino” associando-se mutuamente; auto-responsabilidade, entendida
como responsabilidade nos membros na criação, vitalidade e independência da
cooperativa, e sua promoção junto do público; igualdade entre membros; equidade de
tratamento dos membros pela sua cooperativa; solidariedade, luta pelo interesse
colectivo e não apenas pelo individual da cada membro.
Uma palavra especial para a referência de MacPherson em matéria de solidariedade
quando diz que” o conceito de auto-ajuda e ajuda mútua tem sido ignorado pelos
governos, e as cooperativas têm sido organizadas por iniciativa, patrocínio e assistência
financeira governamental”, facto que conduz à gestão e controle governamental do
movimento cooperativo nalguns países. Cada vez mais tenuemente, mas ainda presente
nalgumas cabeças dos nossos dirigentes de algumas cooperativas mais antigas,
sobretudo agrícolas, subsiste a palavra pronta quando a situação é de crise: “foi o
governo que criou a cooperativa, ele agora que venha cá resolver o problema”.
Em matéria de valores éticos são referidos, “na tradição dos fundadores”, e com
especial chamada de atenção para a cópia desses valores por organizações não
cooperativas: honestidade, quer com os membros, quer com o mercado; transparência,
isto é, municiamento de informação regular aos membros; responsabilidade social; e
preocupação com os outros, mormente com a comunidade de vida e trabalho em que se
inserem.
Termina a primeira parte do trabalho de MacPherson como uma introdução aos
princípios. Chama desde logo a atenção: “muitas pessoas vêem nos princípios
mandamentos couraçados que devem ser seguidos literalmente. Por um lado isso é
verdadeiro já que os princípios devem fornecer padrões de medida. Por outro lado,
devem restringir, até proibir, certo tipo de acções enquanto encorajam outras. Os
princípios, porém, são mais do que mandamentos: são também linhas de orientação para
julgar o comportamento e para tomar decisões”.
Os princípios são “letra e espírito”, pelo que “não são uma lista gasta para ser periódica
e ritualistamente revista; são quadros capacitadores – agentes energéticos – com os
quais as cooperativas podem alcançar o futuro”.
São intrinsecamente flexíveis (“penso que cada princípio exige um mínimo
comportamental de cada cooperativa”) e estão profundamente relacionados entre si. Por
isso há necessidade de cumprir todos os princípios, já que eles “não são independentes
uns dos outros”.
E, depois de se referir a cada um dos sete princípios que propõe em particular, termina
dizendo que eles “são o sangue do movimento. Derivados dos valores que inspiraram o
movimento desde os primórdios, moldam as estruturas e determinam as atitudes que
levam às perspectivas distintas do movimento”.
Muito mais simples que Böök, refere que os princípios são “práticos, moldados por
gerações de experiência, bem como de pensamento filosófico”, são “elásticos,
aplicáveis em vários graus nos diferentes tipos de cooperativas e nas diferentes
situações”, e são “qualidades essenciais que tornam os cooperadores efectivos, as
cooperativas distintas, e o movimento valioso”.
A segunda parte do relatório é herdeira dos grandes diagnósticos de reflexão e
prospectivos que a ACI produziu desde 1980. É um texto de leitura fácil e educativo,
que se mantém válido hoje, uma década passada.
MacPherson escreve que “o maior desafio que as cooperativas enfrentam não veio do
mundo exterior. Tal como no passado (e também no futuro assim será), a mais séria
ameaça não foi a concorrência. Nem sequer a alterada ordem política. Foi no coração
dos cooperadores desencorajados. Foi uma questão de determinação, uma incerteza
sobre o que o movimento podia oferecer no mundo contemporâneo”.
Passa depois a analisar um conjunto de desafios: aumentar a eficácia cooperativa;
acentuar a vantagem da filiação; celebrar a diferença cooperativa; capacitar as pessoas;
combinar prudentemente os recursos; criar músculo financeiro; dotar-se de uma
estratégia a prazo.
E volto a citá-lo: “o movimento cooperativo é um movimento de perpétua promessa, um
movimento do devir, não do passado. Nunca atingirá um estado de perfeição; e nunca
fica satisfeito com o que conseguiu realizar”.
Resta analisar os princípios um a um, com base nos documentos preparatórios da sua
formulação e nas actas dos Congressos e reuniões de trabalho dos diferentes comités
que sobre eles se debruçaram no seio da Aliança Cooperativa Internacional. Procurarei
fazê-lo, tendo a experiência e o normativo nacional e internacional como referência.
1º PRINCÍPIO
ADESÃO VOLUNTÁRIA E LIVRE
AS COOPERATIVAS SÃO ORGANIZAÇÕES VOLUNTÁRIAS, ABERTAS A
TODAS AS PESSOAS APTAS A UTILIZAR OS SEUS SERVIÇOS E DISPOSTAS
A
ASSUMIR
AS
RESPONSABILIDADES
DE
MEMBRO,
SEM
DISCRIMINAÇÕES DE SEXO, SOCIAIS, POLÍTICAS, RACIAIS OU
RELIGIOSAS.
O primeiro princípio cooperativo tem sempre sido aquele que o vulgo interiorizou como
“princípio da porta aberta”. Desde Rochdale há mais de século e meio, passando pela
primeira tabulação dos princípios cooperativos pela Aliança Cooperativa Internacional
em 1937 e pelas revisões feitas pela referida organização mundial em 1966 e 1995 que,
entrar para, e sair livremente de uma cooperativa, constitui uma característica
diferenciadora deste modelo organizacional no cotejo com os modelos associativo e
societário.
Muitos são aqueles que contactam os serviços públicos cooperativos queixando-se de
que, querendo entrar para uma cooperativa, essa entrada lhes foi negada. Muitos outros
ainda percorrem a mesma via dando nota de que a cooperativa lhes negou ou pôs
condições à sua saída uma vez manifestado o desejo de a abandonar.
A Comissão de Revisão dos Princípios Cooperativos escreveu ser “falsa a interpretação
do princípio da “livre adesão” como querendo significar que todas as cooperativas
devam ser obrigadas a aceitar todos os pedidos de filiação”.
Procurarei passar a explicar as razões que fundamentam tal posição, que mais não são
que o resultado de uma procura do justo equilíbrio entre a liberdade individual e o
interesse da cooperativa na prestação do “melhor” serviço aos seus membros.
O primeiro traço marcante no texto do Princípio é o da “voluntariedade”. O indivíduo
que queira aderir a uma cooperativa tem de, pela forma convencionada pelos
fundadores, manifestar o desejo de aderir a ela. Não basta reunir as condições
automáticas para a adesão, há que manifestar claramente a vontade de aderir, sendo que
no nosso País se exige um “requerimento de admissão” (art. 31º do Código
Cooperativo).
Muito gostaríamos que essa manifestação de vontade decorresse do pleno conhecimento
da especificidade do modelo de organização cooperativo, isto é, que o indivíduo
candidato à adesão (seja fundador, seja aderente posterior) esteja plenamente consciente
dos seus direitos e deveres enquanto cooperador, esteja totalmente disponível para uma
participação activa na cooperativa, e para ser um divulgador da “mensagem”
cooperativa no meio envolvente dela. Com efeito, quantas cooperativas não
desapareceram por não existir aquela participação efectiva. E quantas outras não foram
organizações impostas pelo poder público, não necessariamente em regimes totalitários
diga-se, às quais os indivíduos aderiram por não terem alternativas, surgindo o fim delas
uma vez criadas essas alternativas.
Há, de facto, casos em que se força a adesão a uma cooperativa, quer com base numa
obrigação jurídica, quer numa imposição social, atentos os prejuízos causados a
terceiros que uma não adesão de um indivíduo causaria. Por exemplo, o caso da
cooperativa de rega, em que o canal construído com fundos públicos, mas de exploração
cedida à cooperativa contra uma renda, atravessa terras que inviabilizariam a sua
utilização por todos os potenciais utentes se o respectivo dono manifestasse uma
vontade de não aderir à cooperativa, não se responsabilizando pela limpeza do canal,
pelos tempos de rega, ou em caso extremo desviasse águas em proveito próprio.
À voluntariedade está intimamente ligada a referida liberdade de adesão. Como refere o
Princípio, as cooperativas devem ser “abertas a todas as pessoas aptas a utilizar os seus
serviços”.
Olhado do lado do indivíduo que expressa a vontade de adesão, dificilmente se aceitam
limitações na concretização dessa vontade. Só que, quem sabe se pode aceitar o pedido
de adesão é a cooperativa, entidade que planifica os seus serviços para um determinado
número de aderentes, ou que deve recusar os pedidos de adesão quando o candidato não
preenche os requisitos estatutários para que a adesão possa ser aceite. Já escrevi que foi
assim em Rochdale.
Poder-se-iam multiplicar exemplos de possíveis recusas dos pedidos de adesão. Há
cooperativas que laboram com um determinado produto apenas, seja agrícola ou
industrial, logo não deverão aceitar como membros quem solicite a adesão mas não
trabalhe com esse produto (exemplo, uma adega cooperativa pode recusar a filiação do
que não produz e entrega uva, ou daquele que, no caso de a entregar, dessa entrega
resulte a incapacidade técnica dela ser objecto de transformação por, por exemplo, não
haver capacidade de stockagem do vinho; ou, uma cooperativa de serralharia pode
recusar o que produz cestos de vime).
Há também cooperativas ligadas a determinada profissão (taxistas, professores,
funcionários públicos, profissionais liberais, cabeleireiros, etc), que obviamente poderão
recusar a adesão doutro tipo de profissionais; ou cooperativas para determinadas
categorias de pessoas (deficientes, idosos, jovens, etc), que por si mesmas limitam o
universo de aderentes.
Há cooperativas de habitação que, por só possuírem um determinado programa de
construção num espaço limitado, poderão recusar os pedidos de filiação quando
reconhecem nunca poder vir a satisfazer as legítimas aspirações a uma casa dos que
solicitam a adesão.
E há cooperativas de produção operária, de produtores de serviços, de pesca ou
artesanais que estão dimensionadas para uma determinada força de trabalho, não
possuindo espaço físico (oficina, escritório, barco, armazém) para eventuais candidatos
a um posto de trabalho nelas; ou há cooperativas de consumo cujas instalações
poderiam ficar “intransitáveis” caso a pressão de aderentes motivasse uma
indiscriminada emissão de cartões de membros.
Limitações, pois, ao acto voluntário de adesão. Mas sempre, a admissibilidade de
recurso da decisão de indeferimento das adesões pelas direcções das cooperativas,
primeiro para a primeira Assembleia geral delas que se seguir à recusa (art.31º,2 do
Código Cooperativo) e, eventualmente, depois, para os tribunais, uma vez na posse de
cópia da acta da reunião.
Terceira componente do Princípio é a da disposição para “assumir as responsabilidades
de membro”. Não basta bater à porta por livre e espontânea vontade, há que estar
disposto a exercer os direitos e deveres que este modelo de organização tem como seus,
aquilo a que se chama de participação social (a cooperativa é específica porque é ao
mesmo tempo associação de pessoas e empresa).
Ir às reuniões, eleger e estar disponível para exercer os cargos para que seja eleito,
preocupar-se em acompanhar o dia a dia da cooperativa, zelar pelo seu bom nome e
inserção no meio ambiente envolvente, observar os estatutos e regulamentos, propor
caminhos, discuti-los e aceitar as decisões da maioria, participar nas actividades de
formação que lhe forem propostas, tudo deverá resultar do simples acto de assinatura e
deposição do pedido de adesão.
É este, mesmo que não pareça, o ponto fulcral do princípio da adesão voluntária e livre
a uma cooperativa. Para quê pedir para entrar se depois não se assumem os
comportamentos plenos de membro efectivo? Para quê transmitir um sinal de
fidelidade, se a mesma é quebrada no curto prazo, numa altura em que a cooperativa já
adaptou estratégias e planos de actividade a contar com aquela participação? A
responsabilidade do acto de adesão é, de facto, o que irá permitir o sucesso da
cooperativa. Uma cooperativa de membros amorfos rapidamente se desviará para uma
estrutura que de cooperativa só possui o nome, sendo “tomada” por uns poucos em
proveito próprio.
Derradeiro elemento do Princípio é o das discriminações, de “sexo, sociais, políticas,
raciais ou religiosas”. Poderá ser difícil compreender esta preocupação nesta parte do
mundo em que nos inserimos, mas haverá que pensar que o cooperativismo é um
movimento universal, havendo territórios onde essas discriminações são praticadas,
quer por imposição política, quer por ancestrais usos e costumes. Nestas situações os
cooperadores assumem-se como verdadeiros lutadores pelos seus ideais, valores e
princípios sendo, por isso, merecedores do apoio e solidariedade dos seus companheiros
do mundo em que tais discriminações são menos visíveis.
Entre nós não existem aparentes discriminações por qualquer destes motivos. Já
existirão, porém, discriminações de carácter económico, matéria que não foi tocada pela
Comissão de Revisão dos Princípios da ACI, por exemplo no caso das cooperativas que
exigem aos seus aderentes um capital individual de tal modo elevado, que inviabiliza a
tendencial imagem de que as cooperativas são para todos, nomeadamente para os mais
débeis em termos económicos. Que fazer nestas situações?
Parece-nos que num mundo concorrencial como aquele em que hoje nos movemos, as
cooperativas devem, tal como as restantes empresas procurar dotar-se de um capital
social que lhes permita facilmente aceder a créditos, dar garantias se exigidas, penetrar
investindo noutros sectores económicos que permitam o maior retorno possível ao
investimento em capital dos seus membros. Parece-nos, também, que as uniões e
federações de cooperativas deverão desempenhar um papel mais activo em defesa de
abusos que sejam praticados, procurando fazer ver que, tendencialmente, quem não
possuir o necessário capital para aderir a essas cooperativas deve, por uma qualquer
forma, ser ajudado a aderir quando a cooperativa puder servi-lo.
O reforço do capital cooperativo, a criação referida de músculo financeiro, é uma das
principais preocupações das cooperativas actuais. Por isso, para lá do que poderíamos
chamar de membros “normais”, muitas cooperativas têm recorrido aos chamados
“membros investidores”, uma categoria que vai muito para lá das tradicionais categorias
de membros beneméritos ou honorários. Trata-se de pessoas individuais ou colectivas,
não produtoras ou utilizadoras dos serviços das cooperativas, que nelas investem as suas
poupanças, contra uma remuneração do capital investido em termos que a cooperativa
estabelece quando lança o apelo à colocação de fundos nela. Admite-se que tais
investidores possam ter acesso prioritário aos resultados do exercício anual, na
consciência, porém, de que sem o capital desses membros investidores a cooperativa
não poderia ter-se dedicado a determinadas áreas de actuação, logo fazendo beneficiar
mais os membros “normais”, quer distribuindo-lhes mais dividendos, quer permitindo
reinvestir mais na própria cooperativa.
Poderão igualmente as cooperativas aceitar que passem a ser seus membros
determinadas pessoas que beneficiem da cooperativa indirectamente (os stakeholders do
modelo anglo-saxónico). Situados quer a montante, quer a jusante da actividade
desenvolvida pela cooperativa, como fornecedores ou compradores dos produtos dela,
tais pessoas têm um interesse directo no sucesso da cooperativa. Por isso, a cooperativa
poderá pensar em acolhê-los no seu seio pela via que legalmente seja possível. Porque
não envolver nas cooperativas agrícolas de distribuição de factores de produção os
produtores dos mesmos? Porque não aceitar como membros das cooperativas de
educação de crianças inadaptadas os utilizadores dos serviços de uma lavandaria,
pastelaria ou serralharia que a cooperativa possua?
É verdade que a legislação sectorial aplicável aos diferentes ramos cooperativos (art. 4º
do Código Cooperativo e diplomas complementares decorrentes (3) parece querer
impedir uma total abertura das cooperativas a uma adesão indiscriminada por parte
deste tipo de novos aderentes. Parece-nos, porém, que haverá que permitir às
cooperativas, numa altura em que se diluem muitos dos regimes especiais que o
legislador lhes atribuiu, atento o papel social e económico que constitucionalmente lhes
foi reconhecido, desenvolver sem peias a sua actividade de angariação de capital social,
por forma a poderem competir com armas iguais no mundo globalizado.
Tudo estará dependente de uns estatutos convenientemente pensados e elaborados,
claramente redigidos e submetidos a quem a elas queira aderir, e obtendo destes uma
aceitação expressa do que lhes é permitido e exigido. Em qualquer caso, porém, sempre
tornando aplicáveis a totalidade dos princípios cooperativos, nomeadamente o da
administração democrática, vulgarmente reconhecido como um homem, um voto.
Uma palavra ainda sobre os chamados “candidatos a membro”. Trata-se de indivíduos
que, ao abrigo de um contrato de trabalho, trabalharam nas cooperativas de produção
durante mais de um ano (pesca) ou dois anos (artesanato, produção operária e produção
de serviços), e que após tal período podem requerer a sua admissão enquanto membros
efectivos, nos termos dos diplomas sectoriais desses ramos de cooperativas de
produtores.
O pedido não lhes pode ser recusado, mas se o for aplica-se o disposto no nº 3 do artigo
31º do Código Cooperativo e, em último caso, uma imposição judicial da admissão, se
persistir o não cumprimento da lei pela direcção da cooperativa.
Tal como a adesão, também a saída, a desvinculação de um membro deve ser voluntária
e tendencialmente livre. O Principio, porém, admite que a cooperativa coloque
restrições quanto a timings e efeitos da vontade de sair. E, claro, há os casos de saída
forçada decorrentes de exclusão por prática de violações estatutárias e legais, de que não
falaremos aqui em pormenor.
Normalmente, um membro só pode recuperar o capital individual no final de cada
exercício. Assim, ele pode pedir para sair a meio de um ano, por essa forma não
podendo ser responsabilizado por eventuais actos de má gestão acontecidos entre a data
do pedido formal de saída e o final do exercício, mas a cooperativa pode diferir a
recuperação pelo membro do capital individual até à aprovação das contas pela
assembleia geral ordinária para o efeito convocada. Nos casos em que essa má gestão
não exista, e em que o membro candidato à saída tenha aprovado um plano de
actividades em que riscos foram aceites, é natural que ele possa ser levado a assumir a
sua quota parte de responsabilidade nesses riscos, medido no fecho das contas anuais.
São, porém, admitidas restrições à saída voluntária dos membros. Por exemplo, no caso
de investimentos cooperativos com fundos estatais ou privados não cooperativos, é
admissível a prática da imposição pela cooperativa de uma vinculação obrigatória pelo
número de anos predefinido, calculado com base nos anos suficientes para o reembolso
do empréstimo. Obviamente que as condições, nestes casos, devem ser claramente
assumidas por todos os membros, sendo para o efeito muito importante a forma como as
assembleias gerais que tomam este tipo de decisão levam a mesma ao conhecimento dos
que nelas não participaram, nomeadamente fazendo-os optar entre assinarem um
qualquer termo de aceitação da decisão colectiva, ou convidando-os a sair da
cooperativa, num prazo preestabelecido, caso não concordem com as decisões
maioritariamente tomadas.
A prática cooperativa entre nós é a da redução ao mínimo exigido pelo Código
Cooperativo (art.15º) no que aos estatutos constitutivos respeita. Para que o Princípio da
adesão livre e voluntária possa atingir plenamente os seus efeitos, necessário se torna,
pois, que sejam elaborados um ou vários regulamentos internos da cooperativa, em que
as condições de entrada e saída venham claramente explicitadas (o Código Cooperativo
é direito subsidiário em qualquer caso, mas se o que nele se estatui não for violado
aquando da manifestação de vontade do grupo de fundadores, consubstanciada no dito
regulamento interno, é preferível que uma tal manifestação de vontade exista). E,
principalmente, que um qualquer regulamento interno seja presente ao candidato à
adesão antes deste assinar o respectivo termo de adesão. Não basta aderir apenas com
base no estatuto da cooperativa, há que fazê-lo completamente consciente daquilo que a
cooperativa é, de como funciona, e de quais são os seus planos de actividade para o
futuro.
Para terminar sumariando, com palavras escritas noutro tempo e local, diríamos que
todos podem aderir ou sair livremente da cooperativa, salvo se a função social dela se
sobrepuser ao pleno exercício dos direitos individuais. Procurar o justo equilíbrio, tal é a
função dos fundadores e dos dirigentes eleitos à data em que a situação é colocada.
2º PRINCÍPIO
GESTÃO DEMOCRÁTICA PELOS MEMBROS
AS COOPERATIVAS SÃO ORGANIZAÇÕES DEMOCRÁTICAS GERIDAS
PELOS SEUS MEMBROS, OS QUAIS PARTICIPAM ACTIVAMENTE NA
FORMULAÇÃO DAS SUAS POLÍTICAS E NA TOMADA DE DECISÕES. OS
HOMENS E AS MULHERES QUE EXERÇAM FUNÇÕES COMO
REPRESENTANTES ELEITOS SÃO RESPONSÁVEIS PERANTE O CONJUNTO
DOS MEMBROS QUE OS ELEGERAM. NAS COOPERATIVAS DO PRIMEIRO
GRAU, OS MEMBROS TÊM IGUAIS DIREITOS DE VOTO (UM MEMBRO, UM
VOTO), ESTANDO AS COOPERATIVAS DE OUTROS GRAUS ORGANIZADAS
TAMBÉM DE FORMA DEMOCRÁTICA.
Democracia, controlo democrático ou administração democrática, eis as designações
históricas dadas a este princípio de Rochdale nas sucessivas tabulações a que a Aliança
Cooperativa Internacional deu estampa.
As cooperativas são agrupamentos de pessoas que procuram satisfazer interesses
próprios por forma conjunta, sejam tais interesses fundamentais à vida ou meramente
complementares, caso da habitação, da cultura ou do crédito. Mas tal satisfação implica
uma qualquer estratégia, uma orientação, uma liderança. Por isso, os membros da
cooperativa devem de entre eles escolher quem dirige e quem gere o dia a dia da
cooperativa, sendo que os escolhidos devem, por sua vez, observar escrupulosamente na
sua actuação os interesses do colectivo. Há, por isso, que prever ab initio a forma como
os dirigentes e gestores são controlados, devendo esse controlo ser democrático e estar
corporizado nos estatutos ou no regulamento interno da cooperativa.
A corporização de que falamos deve ser por todos assumida e os fundadores devem-na
ter discutido com a necessária profundidade para obviar a que, uma vez entrada a
cooperativa em funcionamento, o controlo não obstaculize uma direcção e gestão
fluidas. Controlo não significa ingerência, não implica um julgamento.
O controlo é feito quer na Assembleia-geral, quer através da consulta periódica aos
documentos da cooperativa nos termos e datas definidas pelo regulamento interno. A
cooperativa deve encontrar o equilíbrio entre a transparência dos seus actos e sua
acessibilidade por todos os membros, e o prejuízo que a ela adviria se, um membro
menos cooperante ou dissidente, a toda a hora quisesse aceder à referida documentação
da cooperativa. O controlo é feito participando, mas não abusando dos direitos que a
participação confere ao membro. Mesmo que um membro não concorde, por exemplo
com um acto de gestão, a crítica tem lugar e tempo próprio para ser feita, ou fórmula
jurídica à qual recorrer em caso desse acto poder ter consequências para um membro
individual, que este considere serem violação de preceito legal. E a direcção não deve
consultar, por seu lado, todos os membros sobre todos os actos que tome em função do
mandato que lhe foi cometido pela Assembleia-geral. Uma vez concedido o mandato a
sua concretização pode passar pela informação regular mútua, mas nunca por pear as
tomadas das necessárias decisões.
A formulação de políticas e a tomada de decisões de que fala o princípio, passa por
todos terem na cooperativa uma voz igual, um poder de expressão e manifestação de
vontade igual; e isso, mesmo que a participação efectiva na cooperativa seja desigual.
Tem a mesma voz o que subscreve mais capital inicial que um qualquer outro, tal como
a tem quem trabalha mais dias para a cooperativa que um outro trabalhador, ou o que
utiliza os serviços da cooperativa ao longo do ano em comparação com o que o faz
episodicamente.
O público interiorizou como imagem de marca do cooperativismo este poder e direito.
Exprime-se comummente como “um homem, um voto”, regra que a nível das
cooperativas de base, em Portugal, ainda é a regra. Mas toda a regra tem a sua excepção,
seja decorrente da própria abertura de desvios legais, seja incubada em teorias ou
práticas de outras latitudes.
Comecemos por Portugal, onde nas cooperativas agrícolas polivalentes (por secções) é
admitido um desvio à igualdade plena, derivado ao facto de um agricultor poder
participar em mais de uma secção, logo votando em cada uma delas de acordo com o
seu regulamento próprio (que até pode admitir voto plural em função do volume de
utilização da cooperativa) e, consequentemente, ter por forma indirecta na assembleiageral da cooperativa, somatório das secções, mais de um voto.
Esta situação estava expressamente prevista na anterior redacção do artigo 3º do Código
Cooperativo. O facto de na Lei 51/96 se ter optado por incorporar o princípio na
redacção dada ao mesmo pela ACI, deixando expressamente cair a excepção, não
significa que a mesma não continue a ser possibilitada pela legislação específica das
cooperativas agrícolas (Decreto Lei 335/99 de 20 de Agosto).
Também nas cooperativas de grau superior (uniões, federações e confederações) é
admitido o voto plural (artigos 83º, 85º,5 e 86º,2 do Código Cooperativo), quer em
função do número de cooperadores de cada cooperativa aderente, quer de outro critério
aceite pelos filiados.
Terceiro tipo de cooperativa onde o voto plural é aceita é a denominada cooperativa de
interesse público (4). Não cabendo aqui escalpelizar se a cooperativa de interesse
público, quando teoricamente analisada, é uma cooperativa verdadeira, apenas haverá a
constatar que o artigo 12º do diploma expressamente refere que o número de votos dos
membros das cooperativas de interesse público nas assembleias gerais é proporcional ao
capital que tiverem realizado.
Noutras latitudes, mormente na América do Norte, o princípio da igualdade de voto tem
sido matizado por considerações derivadas dos valores de justiça e equidade. Da
doutrina à prática têm vindo a ser aceites desvios à igualdade pura com argumentos
como, deve ter mais votos quem mais utiliza a cooperativa, ou trabalha mais para que
ela tenha melhores resultados no final do exercício; deve ter mais votos quem nela
subscrever mais capital, e mesmo, deve ter mais votos quem for filiado há mais tempo
na cooperativa. Em qualquer dos casos, porém, há sempre um limite máximo ao voto
plural, estabelecido pela assembleia-geral por forma a que um membro por si próprio
não possa dominar a cooperativa.
A própria Aliança Cooperativa Internacional, embora seja uma associação e não uma
cooperativa, também aceita a regra do voto plural em função da quotização de cada
membro, e tem um tecto máximo de votos por membro.
E, o recente estatuto da Sociedade cooperativa europeia (5) prevê no seu artigo 59º, 2,
derrogações à regra um homem, um voto prevista no nº 1 do mesmo artigo, tal como
prevê também regras de voto específicas para membros investidores e representantes
dos trabalhadores das cooperativas nas assembleias gerais. Em qualquer caso o voto
plural tem também um limite máximo.
A desigualdade entre membros é normalmente assumida em termos do princípio da
distribuição equitativa dos excedentes e não no da gestão democrática. Todavia,
entrando em pura especulação assente no jogo de forças internacional que perpassa pela
ACI, poderá ser uma questão de tempo até a que a própria ACI aceite desvirtuar a plena
igualdade de voto dos membros das cooperativas enquanto regra universal nas
cooperativas de base, passando a democracia a seguir o exemplo do que o próprio
princípio prevê para as cooperativas de grau superior.
Voto consciente é o do membro que participa regularmente na vida da cooperativa.
Qualquer membro não absentista certamente influirá mais na orientação da cooperativa
para satisfazer as suas necessidades, tornando o voto formalidade menos premente.
Estar presente, discutir o plano de actividades e estratégias de actuação com os
membros eleitos, tornará o momento do voto menos “dramático”. É a educação
cooperativa que permite aceitar os diferentes papéis de cada um na vida da cooperativa.
Um cooperador “cooperativamente educado” sabe que a vida da cooperativa não se
resume ao depósito de um voto uma vez no ano numa urna. Tal como sabe que deve
estar preparado para aceitar ser dirigente cooperativo, se os seus pares o entenderem
dever designar para exercer essas funções. Por isso a palavra-chave é participação, no
voto, no controlo, no dia a dia da organização.
A participação social é hoje muito diferente nas grandes cooperativas de milhares de
membros, ou de vasta dimensão geográfica, quando comparada com a das pequenas
cooperativas em que todos se conhecem. Por isso, a votação igualitária, o controlo
democrático, assume formas indirectas de concretização. Nas grandes cooperativas
muitas vezes limitamo-nos a, em assembleias sectoriais ou regionais, eleger
representantes nossos, que por sua vez irão eleger os representantes máximos da
cooperativa, seres cada vez mais distantes do cooperador de base.
A Comissão de redacção dos princípios, reconhecendo a situação, não obstante estatui
que nada obsta, o que é verdadeiro, a que o membro de base controle a actividade da
cooperativa consultando, por exemplo, numa sua deslocação à sede da cooperativa os
documentos comprovativos dos seus actos, ou aí interpelando os seus dirigentes.
A tensão entre democracia de participação e democracia de delegação é um preço a
pagar pelo sucesso cooperativo. Longe vai o tempo em que o dirigente dedicava à
cooperativa algumas horas vagas. Hoje é cada vez mais necessário o exercício
permanente, remunerado, dos lugares da administração. Animar a cooperativa é tarefa
para profissional e não para o membro benévolo. Tal como necessário se torna muitas
vezes, em função da dimensão ou especialização da cooperativa, que ela recorra aos
serviços de gestor ou gestores profissionais.
A tecnoestrutura criada, a relação com os trabalhadores da cooperativa, com
fornecedores e clientes, a presença na vida da comunidade em que está inserida a
cooperativa, eis realidades que numa cooperativa em que a participação é menor podem
ser sinais do seu fim ou do seu domínio por forças externas aos membros, seus
verdadeiros detentores. É por isto que participação e controlo são tão importantes para a
cooperativa ser bem sucedida enquanto cooperativa verdadeira.
Duas pequenas notas finais sobre o 2º princípio.
Uma primeira para a referência à igualdade de género que o redactor quis fazer incluir
na formulação adoptada, reflexo incontestável do século que vivemos, reflexo
importante da faceta educativa e formativa assumida pelas cooperativas em vastas áreas
do mundo em que tal igualdade ainda não está consciencializada. Igualdade para
participar e para dirigir, e não apenas para ser membro nominativo.
Uma segunda para a interferência governamental nas cooperativas, geralmente com a
nomeação de seus representantes para a direcção ou gestão das mesmas, por vezes sob
forma de comissões administrativas. Argumentos usados, os maiores ou menores
capitais públicos nelas investidos para acudir a problemas de gestão, ou por as
cooperativas serem usadas para alcançar objectivos estratégicos no âmbito de planos
estatais de desenvolvimento.
Reconhecendo a Comissão de Princípios cooperativos da ACI a situação, e as áreas
geográficas do mundo em que tais fenómenos surgem, ela estatui ser “importante que
eles (representantes dos governos) não lá fiquem nem mais um dia que o necessário”. A
autonomia da cooperativa deve ser sagrada, já que é “corolário da democracia”.
Sou mais radical neste pormenor, já que considero simplesmente como não sendo
cooperativas verdadeiras as que por alguma forma são intervencionadas pelo Estado,
pelo que deveriam sair do sector cooperativo e não possuírem qualquer tipo de
benefícios financeiros ou fiscais.
3º PRINCÍPIO
PARTICIPAÇÃO ECONÓMICA DOS MEMBROS
OS MEMBROS CONTRIBUEM EQUITATIVAMENTE PARA O CAPITAL DAS
SUAS COOPERATIVAS E CONTROLAM-NAS DEMOCRATICAMENTE. PELO
MENOS PARTE DESSE CAPITAL É, NORMALMENTE, PROPRIEDADE
COMUM DA COOPERATIVA. OS COOPERADORES, HABITUALMENTE,
RECEBEM, SE FOR CASO DISSO, UMA REMUNERAÇÃO LIMITADA, PELO
CAPITAL SUBSCRITO COMO CONDIÇÃO PARA SEREM MEMBROS. OS
COOPERADORES DESTINAM OS EXCEDENTES A UM OU MAIS DOS
OBJECTIVOS
SEGUINTES:
DESENVOLVIMENTO
DAS
SUAS
COOPERATIVAS, EVENTUALMENTE ATRAVÉS DA CRIAÇÃO DE
RESERVAS, PARTE DAS QUAIS, PELO MENOS, SERÁ INDIVISÍVEL;
BENEFÍCIO DOS MEMBROS NA PROPORÇÃO DAS TRANSACÇÕES COM A
COOPERATIVA; APOIO A OUTRAS ACTIVIDADES APROVADAS PELOS
MEMBROS.
Este novo princípio da formulação de 1995, mais não é do que a junção num texto único
dos princípios ligados à cooperativa enquanto empresa, o do juro limitado ao capital
(1937), depois interesse sobre o capital (1966), e o da repartição dos excedentes na
proporção das transacções efectuadas (1937), depois distribuição equitativa dos
excedentes (1966).
Pretendeu a Aliança Cooperativa Internacional fazer deste princípio um todo com os da
adesão livre e gestão democrática, numa óptica de dinâmica interna da forma
cooperativa de organização, recorrendo a uma redacção que fizesse sobressair os
diferentes papéis que os membros das cooperativas devem assumir.
A redacção escolhida, ao mesmo tempo que introduz considerações equitativas a par das
tradicionais concepções igualitárias, não elimina, porém, a “herança owenita” que fez o
sucesso das cooperativas iniciais, reflectida na distribuição de um juro fixo sobre o
capital investido, devendo o restante resultado do exercício ser destinado a obras
sociais.
Primeiro ponto a referir no princípio é a necessária contribuição dos membros para o
capital da cooperativa.
Relembrando que as cooperativas têm um capital variável, haverá que referir que essa
variabilidade pode decorrer da livre adesão de novos membros, mas também de reforço
da subscrição de capital pelos membros existentes, com a preocupação última de que
garantir a independência da cooperativa passa também pelo seu auto-financiamento.
Mas para que este seja equacionado nas opções de todo e qualquer membro, necessário
se torna dotar de atractividade esse financiamento suplementar, como se verá.
A necessária contribuição dos membros para o capital não é sinónima de contribuição
por uma só forma, normalmente o dinheiro. Os membros podem realizar o seu capital
em dinheiro, mas também em bens ou direitos, ou em trabalho ou serviços, aos quais
contabilisticamente depois é dado um valor. Nem sequer é a contribuição dos membros
para o capital sinónima de contribuição em data certa, isto é, pode ser dado um prazo
maior ou menor, normalmente definido pelo legislador nacional, para que o capital
individual seja totalmente realizado (na actual legislação portuguesa esse prazo é de 5
anos).
Refere o princípio dever a contribuição ser equitativa.
Há vários tipos de equidade que se reflectem nos princípios e práticas cooperativas: a
equidade em matéria de distribuição de resultados, em matéria de juro ao capital, mas
também em termos de votação, na facturação dos serviços aos membros ou nos preços
que lhes são pagos, e mesmo no acesso à cooperativa.
Para o caso interessam-nos aqui os dois primeiros tipos.
Quando o membro subscreve o capital individual mínimo exigido para fazer parte da
cooperativa, não lhe deve ser pago qualquer juro.
Já a situação se altera quando as cooperativas recorrem aos membros para aumentar o
capital inicialmente subscrito, ou para fazer determinados investimentos, situações em
que um juro pode ser pago, mas um juro à taxa de mercado, não um juro especulativo.
O princípio admite, assim, quatro tipos de situação.
As duas primeiras estão expressamente referidas no terceiro período do princípio, a
saber: o não pagamento de qualquer juro; e o pagamento de um interesse limitado, a
taxa baixa.
Mas pode aceitar-se o pagamento de um rendimento equitativo ligado às taxas de juro
de longo prazo; e o pagamento de um prémio suplementar que premeie o autofinanciamento.
Este último caso é visto pela comissão de revisão dos princípios de 1966 como sendo
uma prática duvidosa, mas é praticado por muitas cooperativas.
Levar as economias por colocar para dentro das cooperativas pode ir para lá do simples
auto-financiamento. Pode ser feito pelo recurso a títulos de investimento, e não são já
poucas, também, as cooperativas que emitem obrigações cotadas em bolsa.
Aquando da discussão - recupero aqui o que já mencionei na análise ao primeiro
princípio - vai quase para duas décadas, do estatuto da sociedade cooperativa europeia,
por exemplo, era amplamente discutida nos encontros cooperativos a figura dos
membros investidores não utilizadores, isto é, uma categoria de membros que podiam
participar nas assembleias gerais das cooperativas, intervir mas sem direito a votar, e
que investiam nas cooperativas por nelas terem um qualquer interesse, por exemplo por
dela serem fornecedores ou utilizadores, e para dela retirarem interesses financeiros. A
cooperativa aceitava-os por necessitar de capital para investir, capital que a banca lhe
não fornecia por ter capital social baixo e poucas garantias a fornecer. Mas a solução
nem sempre era bem aceite, porque havia uma preferência, estabelecida aquando da
emissão dos títulos, desses membros investidores não utilizadores na distribuição dos
resultados do exercício, o que em algumas situações gerava o risco de o dinheiro a
distribuir não chegar para os membros ordinários.
Sem ter desaparecido, diga-se, a figura acabou por ser pouco utilizada.
Convém referir agora os tipos de capital nas cooperativas: o subscrito pelos membros,
designado por capital social, que acima vimos poder ser alvo de juro limitado; o capital
possuído pela própria cooperativa, muitas vezes chamado de capital cooperativo, e que
resulta designadamente das reservas obrigatórias (já as reservas facultativas podem ou
não ser objecto de repartição em função do que, aquando da sua constituição, tiver sido
decidido pelos membros constando dos estatutos da cooperativa e regulamentos
internos); e o capital emprestado, quer de fora da cooperativa, quer de dentro, como se
viu.
Ao capital cooperativo, que é irrepartível pelos membros em caso de saída da
cooperativa ou de dissolução desta, não é pago um interesse, o que não quer dizer que
não lhe possa ser contabilisticamente calculado um. Este capital colectivo é, no caso de
a cooperativa se dissolver, distribuído por outras cooperativas do mesmo tipo.
A direcção da cooperativa pode equacionar outros destinos para os excedentes de
exercício, como se lê no próprio princípio. Há que olhar para o tipo de cooperativa com
que nos deparamos, seja de produtores ou de consumidores (6), para melhor
compreender esta situação.
Numa cooperativa de consumidores, ou se opta por colocar os produtos à venda aos
preços de mercado, e poderá então haver lugar à distribuição de excedentes - quer uma
distribuição igual para todos, quer em função das compras de cada um - ou se pratica
uma política activa de preços, que leva a que o retorno seja à partida incorporado nos
preços.
Esta solução que incorpora a equidade, pois dela só beneficiam os que utilizando
regularmente a cooperativa, vêem desse modo premiada a sua fidelidade e participação.
Nas cooperativas de consumidores abertas a membros e ao público em geral, esse
retorno pode ser reflectido na caixa, através de uma percentagem a descontar aos
membros sobre o preço final dos produtos (esta solução implica a existência de
contabilidades separadas para efeitos fiscais, uma para membros e outra para não
membros, e o correspondente sistema informático de destrinça entre membros e público
nos terminais de caixa), enquanto que o público paga esses mesmos produtos ao preço
tabelado.
Esta solução serve de chamariz à adesão cooperativa de novos membros, mas também
está na origem de ataques às cooperativas que vivem cada vez mais de não membros, e
que depois repercutem sobre a forma de excedentes a distribuir pelos poucos membros a
totalidade dos resultados de exercício.
Já nas cooperativas em que os membros se agrupam para trabalhar, em que o resultado
desse trabalho é a principal fonte de rendimento do agregado familiar ou do indivíduo,
pode não se esperar pelo fecho do exercício para calcular a distribuição dos excedentes.
A interferência do conceito de salário, visto como retribuição regular, tem de ser
equacionada pelas direcções das cooperativas, e os membros devem estar conscientes
das suas implicações, mormente poupando parte dos adiantamentos por conta dos
resultados finais, o tal salário cooperativo, não vá a cooperativa ter errado nos cálculos
obrigando a uma reposição do que tiver sido incorrectamente adiantado. O inverso
também pode acontecer, isto é, os resultados podem ser superiores aos inicialmente
previstos, e nesse caso pode haver um prémio suplementar a distribuir aos membros
trabalhadores no final do exercício.
Em qualquer dos casos, problemas ocorrerão nas cooperativas de produtores em que o
ideal cooperativo não tiver sido totalmente apreendido. A dupla qualidade
patrão/trabalhador dos membros das cooperativas (que vai de par com a de
proprietário/utilizador nas cooperativas de consumidores) nem sempre é plenamente
entendida, quer dentro, quer fora das cooperativas, mormente pelo Estado e seu braço
fiscal, ou pelos sindicatos que das cooperativas se afastaram há mais de um século
precisamente devido a não compreenderem as implicações dessa dupla qualidade do
modelo cooperativo.
A liberdade de saída dos membros coloca também problemas à distribuição de
excedentes – e de novo se regressa ao que acima ficou escrito. Será que um membro que
pede para sair a meio do exercício tem direito a uma quota-parte dos excedentes a
distribuir uma vez as contas anuais fechadas?
Na ausência de disposição estatutária expressa que regule esta matéria as soluções
podem ser diversas.
Poder-se-á dizer, que tal como as propostas de adesão aceites pelas direcções devem ser
ratificadas pela Assembleia geral seguinte, as propostas de saída só produzem efeitos
nos mesmos termos. Se essa assembleia não for a do fecho de contas poderão surgir
querelas entre as partes, sobretudo se até ao pedido de saída do membro a cooperativa
estiver a ter bons resultados, logo gerando expectativas, e depois do pedido de saída ter
passado a gerar prejuízos.
Outros dirão, não poder haver direitos adquiridos por conta de resultados a distribuir,
precisamente porque não é obrigatória uma distribuição pelos membros, logo o membro
de saída não pode esperar ver proporcionalmente recompensado o seu uso da
cooperativa até ao pedido de saída.
A ser assim, a direcção tem também de aceitar que o membro deixe de ser
responsabilizado por eventuais decisões que a cooperativa tenha tomado desde o pedido
de saída até à ratificação da mesma pela assembleia geral, o que nem sempre quer fazer.
Outra situação ocorre nas cooperativas de produção em que por força dos estatutos o
membro que se reforma tem de deixar a cooperativa. Nestes casos, ele deve claramente
ter direito à sua quota-parte dos excedentes que a direcção decidir distribuir.
Resta referir a forma vaga como o autor dos princípios redigiu a derradeira forma
possível de distribuição de excedentes, o “apoio a outra actividades decididas pelos
membros”. Cabe aqui praticamente tudo, mas atrevo-me a dizer que a orientação que
deve estar presente nos dirigentes ao decidir essa distribuição deve ser sempre o
benefício da cooperativa, através do cumprimento dos restantes princípios,
designadamente os princípios da educação, da cooperação com outras cooperativas e do
interesse pela comunidade.
4º PRINCÍPIO
AUTONOMIA E INDEPENDÊNCIA
AS COOPERATIVAS SÃO ORGANIZAÇÕES AUTÓNOMAS DE ENTREAJUDA,
CONTROLADAS PELOS SEUS MEMBROS. NO CASO DE ENTRAREM EM ACORDOS COM
OUTRAS ORGANIZAÇÕES, INCLUINDO OS GOVERNOS, OU DE RECORREREM A
CAPITAIS EXTERNOS, DEVEM FAZÊ-LO DE MODO A QUE FIQUE ASSEGURADO O
CONTROLE DEMOCRÁTICO PELOS SEUS MEMBROS E SE MANTENHA A SUA
AUTONOMIA COMO COOPERATIVAS.
A introdução deste princípio no novo elenco aprovado pela Aliança Cooperativa
internacional em 1995 tem o seu quê de surpreendente.
Não por ser matéria nova nas preocupações dos cooperativistas o marcar da sua
distância face a outras realidades económicas e sociais, ou face aos diferentes tipos de
doutrinas, religiões e poderes, mas por se pensar que essa autonomia e independência
cooperativa era já uma realidade que não carecia de afirmação ou demonstração, era já
reconhecida pelos restantes actores.
Se voltarmos aos primórdios, os rochdaleanos quiseram deixar bem claro que eram
política e religiosamente neutrais. À época pretendiam transmitir aos seus potenciais
aderentes e à sociedade que não deveriam ser obrigatoriamente socialistas, ou cartistas,
nem deveriam pertencer a movimentos abstencionistas (por exemplo o dos “teetotalers”,
os bebedores de chá, logo não alcoólicos) ou de protesto (por exemplo o dos opositores
da lei sobre o trigo). A cooperativa de Rochdale, e as que seguiram o seu legado, eram
abertas a todos e todas.
O princípio da neutralidade política e religiosa manteve-se até à formulação da Aliança
de 1937, já não como obrigatório, tendo desaparecido na de 1966.
Em 1937 ainda se pôde assistir à delegação russa sustentar que ele deveria ser
substituído pelo princípio obrigatório da solidariedade proletária internacional, que
obviamente não teve vencimento, mas que significava já uma inflexão no entendimento
inicial de Rochdale sobre o princípio, favorecendo um “engolir” do modelo cooperativo
pelos regimes e doutrinas políticas que se iriam confrontar no mundo até à queda do
Muro de Berlim.
Em 1966, e nos anos seguintes, mesmo que o princípio já não estivesse em aplicação, os
Congressos da ACI invariavelmente incluíam debates ideológicos sob a capa do tema da
Paz e do internacionalismo, gerando uma imagem que hipotecou o desenvolvimento do
modelo cooperativo em muitos continentes uma vez caído o Muro, por as pessoas
verem nas cooperativas uma realidade enfeudada a um regime político desaparecido ou
desacreditado.
Terá sido esse motivo que esteve na origem da reintrodução das preocupações de
neutralidade em 1995, agora sob o lema autonomia e independência?
Cremos que em parte sim. Mas, também, o princípio já reflecte algumas preocupações
ligadas à globalização e ao novo papel que aos Estados passou a ser reconhecido ou
pedido.
Interpretemos então o princípio, recordando que ele faz parte de um conjunto, como que
uma teia perfeita que deve ser totalmente cumprida pelas cooperativas de hoje.
Saímos com este princípio da óptica dos que focavam os papéis desempenhados pelos
membros na organização, e iniciamos os princípios mais vocacionados para as
preocupações que esses membros devem ter pela consolidação e desenvolvimento das
suas cooperativas.
A palavra-chave do princípio é controle.
O controle a fazer pelos membros decorre da participação social na cooperativa, como
se viu nos três primeiros princípios.
Só essa participação permite, mormente em épocas de tomada de decisões importantes
em assembleia-geral, que interesses externos aos dos membros não interfiram no
prosseguir do projecto cooperativo.
Foi o que no princípio da participação económica dos membros se aflorou aquando da
referência às implicações para a cooperativa da aceitação de membros investidores não
utilizadores enquanto municiadores de capital.
Vai, porém, o princípio mais além ao referir que o controle se deve observar, também,
nas relações da cooperativa com outras entidades, isto é, há que controlar a vida interna
da cooperativa, mas também a externa, seja com o Estado, seja com outras organizações
socioeconómicas.
O Estado continua a influir na vida cooperativa pelas mais diversas formas. Trata-se de
situação que temos de aceitar, porque ele o faz em relação a todos os outros actores
económicos e sociais, logo as cooperativas não devem ser vistas como ilhas isoladas.
A sua intervenção, decorrente das grandes definições em matérias de política fiscal,
económica ou social, resulta na elaboração de leis que, porém, não devem prejudicar o
desenvolvimento e actuação das cooperativas, tal como não as devem beneficiar em
relação aos restantes actores. Devem ser elaboradas em diálogo com os representantes
cooperativos, numa relação de confiança e abertura, sem esquecer o enquadramento
doutrinário, o tratamento constitucional, e as especificidades próprias ao modelo
cooperativo, que poderá justificar este ou aquele tratamento diferente do concedido
àqueles actores não cooperativos. Tratamento não de favor, mas de reconhecimento da
democracia cooperativa e seu papel muitas vezes único em diversos domínios da sua
actividade.
A intervenção do Estado não deve, como em muitos casos no passado, quer nos regimes
de tipo socialista, quer mesmo nos capitalistas, passar pela nomeação de representantes
seus para dentro das cooperativas como garantes da ortodoxia do modelo político e
económico seguido, em cumprimento de um qualquer plano nacional a curto ou médio
prazo. Uma cooperativa administrativamente intervencionada pode continuar a ter o
nome de cooperativa, mas na realidade não o será por não ser nem autónoma, nem
independente do Estado, já o disse.
Não compete mais aos Estados criar cooperativas, como sabemos ter acontecido no
passado, compete aos Estados criar as condições para que os indivíduos as possam criar
sem entraves, e facilitar-lhes na medida do possível o seu desenvolvimento e actuação
autónoma.
Com as outras organizações socioeconómicas o que o princípio parece querer dizer é
que, as cooperativas no seu relacionamento com elas, devem sempre procurar que ele
seja democrático, que as regras que enformam o cooperativismo devam ser observadas
nesse relacionamento. Assim, se uma cooperativa quiser legalizar uma qualquer forma
de relacionamento com uma empresa privada, societária ou associativa na forma, ela
deve procurar fazê-lo pelo recurso à forma cooperativa para a estrutura a criar, ou se o
não puder ser, que pelo menos a nova pessoa colectiva possa funcionar
democraticamente enquanto organização, e na tomada de decisões.
Infelizmente, escudadas no falso argumento de que a forma cooperativa de
funcionamento é menos célere que a forma societária, muitas são as cooperativas que ao
associarem-se com empresas privadas criam sociedades anónimas ou por quotas. E não
poucos são já os casos em que, a prazo, por falta designadamente de controlo pelos seus
membros, desaparecem as cooperativas e ficam as sociedades à margem delas criadas.
Alguns deles foram suficientemente públicos para que o Inscoop devesse ter pedido ao
Ministério Público, ao abrigo do artigo 99º do Código Cooperativo, que actuasse, mas
outros foram feitos pela “calada”, e eram irreversíveis quando foram descobertos,
irreversibilidade essa que, não obstante, deveria poder suscitar uma qualquer actuação
estatal, mormente através do braço fiscal.
5º PRINCÍPIO
EDUCAÇÃO, FORMAÇÃO E INFORMAÇÃO
AS COOPERATIVAS PROMOVEM A EDUCAÇÃO E A FORMAÇÃO DOS SEUS MEMBROS,
DOS REPRESENTANTES ELEITOS, DOS DIRIGENTES E DOS TRABALHADORES, DE
MODO A QUE POSSAM CONTRIBUIR EFICAZMENTE PARA O DESENVOLVIMENTO DAS
SUAS COOPERATIVAS. ELAS DEVEM INFORMAR O GRANDE PÚBLICO
PARTICULARMENTE, OS JOVENS E OS LÍDERES DE OPINIÃO, SOBRE A NATUREZA E
AS VANTAGENS DA COOPERAÇÃO.
Princípio fundamental no elenco adoptado pela ACI em 1995, com importantes
alterações se comparado com a formulação de 1966, sem que seja posto em prática não
é possível aos membros e dirigentes cooperativos conhecerem e interpretarem os
restantes princípios e os valores cooperativos.
Já no tempo dos Pioneiros de Rochdale a cooperativa era vista como instrumento de
educação dos “sócios”. O owenismo, absorvido e para ela carreado por alguns dos
fundadores, era em parte um movimento educativo, que procurava fornecer uma nova
visão dos problemas cívicos e das novas forças geradas pela Revolução Industrial.
Se bem que mais tarde o princípio tivesse como que descido de nível, se contrapostos os
princípios obrigatórios de 1937 com os não obrigatórios, em que estava inserido, nunca
a ACI deixou de o incluir nas listagens que fez aprovar em Congresso.
A entreajuda entre os membros, a disciplina associativa e participativa que se deseja
cultivada, a abertura a novas ideias, às novas maneiras de pensar e agir, são valores que
os membros da cooperativa, pela educação, devem prosseguir.
A educação cooperativa, em sentido lato, deverá utilizar as formas escolares ou
universitárias do ensino, mas também socorrer-se das lições do saber fazer, da
experiência do trabalho em comum, dos ensinamentos decorrentes do esforço colectivo.
A formulação de 1995 é clara sobre quem devem ser os destinatários da formação e
educação cooperativa, os membros, mas também os dirigentes eleitos e os
trabalhadores, desde os quadros até ao trabalhador indiferenciado.
A educação a receber por cada um pode depender do lugar que ocupam na cooperativa,
mas também do tipo de cooperativa que criaram, e até do meio em que a cooperativa
actua. Mas deve estar sempre presente na mente e na acção de todos os que à
cooperativa estão ligados, esperando-se, por isso, que regularmente seja debatida e
tomadas decisões que a ponham em prática.
Atentas preocupações idênticas às que motivam a inserção no elenco de princípios do
novo princípio do Interesse pela Comunidade, mas que as ultrapassam em larga medida,
a ACI preocupou-se em tocar num assunto que é uma das maiores fraquezas das
cooperativas nos tempos que correm, fraqueza conhecida como o seu “low profile”, a
falta de divulgação do que a cooperativa representa, faz e defende.
A educação cooperativa deverá ser levada ao público, para que seja informado,
sensibilizado, sobre a doutrina e prática cooperativas, para que passe a conhecer as
especificidades da forma sócio-empresarial distinta que a cooperativa adopta, para que
conheça a história e percurso universal do cooperativismo.
Só com um público plenamente informado se suscitarão novas adesões, adesões
conscientes, como se referiu.
De entre o grande público é feita menção específica aos jovens e líderes de opinião,
sejam estes políticos, funcionários do aparelho estatal ou autárquico, membros dos
Média ou educadores.
Como disse Ian MacPherson, “as pessoas não apreciarão, não apoiarão, o que não
compreendem”.
Lutar por um lobby cooperativo parlamentar, a exemplo do que existe informalmente no
Parlamento Europeu e em parlamentos de muitos países, por exemplo a Espanha ou o
Brasil, fomentar a escrita sobre a problemática cooperativa municiando os jornalistas
com informação sobre o que as cooperativas realizam, mas também, por que não, sobre
os problemas que enfrentam para poderem realizar todo o seu potencial enquanto
agentes sociais e económicos, devem ser preocupações presentes na mente dos
dirigentes cooperativos.
A estes compete também estar permanentemente de ouvido aberto aos membros que os
elegeram, às suas necessidades e projectos, de forma a poderem melhor desenhar as
acções de educação e formação teórica e técnica, utilizando os fundos disponíveis.
O Código Cooperativo português de 1980 prevê uma reserva obrigatória em todas as
cooperativas para educação e formação cooperativa.
Essa reserva, muitas vezes meramente contabilística, infelizmente, deveria ser uma mais
valia do cooperativismo português, já que não existe em todos os sistemas jurídicos
cooperativos de todos os países.
A Comissão de revisão dos princípios da ACI de Viena (1966) propunha que se
constituísse um “fundo para o ensino”, mas a resolução aprovada em Congresso limitase a propor que se tomem “medidas para a educação”. Em 1995 também se não propõe
uma forma clara de garantir o financiamento das acções de educação, formação e
informação que se quer que as cooperativas executem.
Por isso, o que as cooperativas portuguesas têm deve ser melhor saudado e acarinhado
pelos actores cooperativos nacionais. E isso, mesmo quando a dimensão micro de
muitas das nossas cooperativas inviabiliza a preparação regular de acções de formação e
educação.
Daí o papel que as organizações cooperativas de grau superior poderiam desempenhar
na preparação de acções para grupos de cooperativas, sendo que defendo também que se
deveria prever serem elas a gerir as reservas que, a existirem, e a não serem utilizadas
durante um período de tempo a discutir, reverteriam automaticamente para essas
estruturas de 2º e 3º graus cooperativo e empregues para esse fim.
As uniões, federações e confederações de cooperativas têm um papel importante a
desempenhar na elaboração de programas educativos e formativos adequados aos
tempos que correm, na edição e envio de publicações, no recurso a meios audiovisuais
para ensino à distância, assim evitando que o trabalhador da cooperativa tenha que
abandonar o seu local de trabalho para beneficiar da acção formativa, ou no
aconselhamento teórico às cooperativas que se queiram abalançar, por si próprias a
desenvolver acções de formação e educação.
O movimento cooperativo, velho de quase dois séculos, só continuará a desempenhar o
seu papel se for sustentado por membros educados e informados, se gerar novas
fornadas de dirigentes em permanência, se fizer passar para o público com regularidade
a sua palavra, se fizer ouvir a sua voz, se conseguir estar sempre actualizado, activo e
aberto à mudança.
6º PRINCÍPIO
INTERCOOPERAÇÃO
AS COOPERATIVAS SERVEM OS SEUS MEMBROS MAIS EFICAZMENTE E DÃO MAIS
FORÇA AO MOVIMENTO COOPERATIVO, TRABALHANDO EM CONJUNTO, ATRAVÉS
DE ESTRUTURAS LOCAIS, REGIONAIS, NACIONAIS E INTERNACIONAIS.
Introduzido pela primeira vez na listagem da ACI de 1966, mas já subjacente à prática
cooperativa desde os tempos de Rochdale, o Princípio da Intercooperação, tal como
agora redigido, parece ter perdido muito da sua força cooperativa.
Vai para 15 décadas que o grupo de tecelões de Rochdale, reflectindo as influências de
Robert Owen, se propuseram, numa perfeita análise do potencial da cooperação no
futuro, pugnar por ideias hoje espelhadas no princípio.
Na sua Fisrt Law podia ler-se: “Logo que possível esta sociedade deverá voltar-se para a
produção, distribuição, educação e governo, ou por outras palavras, estabelecer uma
colónia independente, de interesses convergentes, suportando-se a si própria, ou assistir
outras sociedades no estabelecimento dessas colónias”.
Esta ideia de que as cooperativas poderão espraiar-se por todos os sectores que
interessem à vida dos seus membros, apoiando outras cooperativas, formando novas
cooperativas ou tornando multisectorial a cooperativa original, inspirou certamente
Fauquet e a Organização Internacional do Trabalho quando fizeram disseminar a sua
ideia de que as cooperativas ocupam um sector económico específico, ideia que a
Constituição da República Portuguesa, na esteira de António Sérgio, veio a acolher, e
que é hoje sinal individualizador a nível mundial do cooperativismo português.
Verdadeiro princípio de desenvolvimento e afirmação cooperativa, a intercooperação
defendida em 1966 assentava na cooperação “activa com outras cooperativas”. Hoje a
ACI limita-se a propor o trabalho em conjunto através de estruturas a vários níveis, sem
mencionar expressamente se essas estruturas assumem a forma cooperativa de
organização e funcionamento.
Com efeito, a globalização gerou nos dirigentes internacionais cooperativos um dilema.
Se, por um lado, devem defender a sua forma cooperativa de organização, por outro
parece terem aceite que, para competirem eficazmente no mercado, as cooperativas
podem recorrer a formas societárias de organização que lhes são antinaturais. O
argumento é duplo: estas formas societárias, especialmente a de sociedade anónima,
serão mais eficazes numa sociedade globalizada, mais rápidas em função do processo e
tempo necessários a uma decisão comercial; essas formas só deverão ser aplicadas se
for garantido o controle cooperativo (entenda-se por parte da cooperativa ou
cooperativas que estão na sua origem) na gestão, mas isso nem sempre tem acontecido
ou têm-no conseguido.
Actuando dessa forma, esses dirigentes nem sempre conseguem manter o traço
cooperativo da proximidade com os actores locais e, em muitos casos, a própria
propriedade cooperativa.
Está assim aberto, pela redacção menos clara de 1995, um campo intercooperativo
novo, no qual as cooperativas se podem relacionar com outras estruturas não
cooperativas, desde que os interesses dos seus membros sejam ”mais eficazmente
servidos”.
Para a ACI o que parece essencial é “dar mais força ao movimento cooperativo”.
Entendo, porém, que mesmo que na prática isso se verifique pela forma descrita, em
termos doutrinais os cooperativistas verdadeiros sairão a perder. Dão o flanco a quem os
critica pelo oportunismo e desvio teórico.
Regressando ao princípio dir-se-á que, se a cooperação mútua entre os membros deverá
ser uma condição necessária ao desenvolvimento da cooperativa, à prossecução comum
dos interesses estabelecidos no pacto social constitutivo, a cooperação mútua entre as
cooperativas deverá ser uma condição constituinte do Sector cooperativo, na formulação
de Fauquet, transposta para a Constituição da República Portuguesa de 1976, e
reflectida no Código Cooperativo Português de 1980.
Já se disse que as cooperativas são empresas que lutam no mercado com outro tipo de
organizações, sobretudo as societárias. Mas se olharmos para a realidade no terreno,
elas lutam muitas vezes também com outras cooperativas, quer por falta de
conhecimento recíproco, quer por questões de política, bairrismo ou regionalismo, ou
ainda por influência de considerações presas a caprichos pessoais dos seus dirigentes.
Nada disto deveria acontecer, não deveria ser essa a postura das cooperativas se
quisessem cumprir aquilo que está subjacente ao princípio. Os dirigentes cooperativos
deveriam procurar conhecer-se, estudar hipóteses de colaboração, recorrer a serviços
comuns, criar fileiras comerciais ou iniciar processos de fusão, constituir estruturas de
grau superior que melhor defendessem alguns interesses entendidos como comuns, quer
económicos, quer representativos.
A intercooperação é, pois, horizontal, entre cooperativas do mesmo ramo, mas também
entre os ramos, por um lado; e vertical, no seio de Uniões, Federações e Confederações,
por outro. A primeira pode ser informal ou formal, esta implica um formalismo
claramente definido na legislação cooperativa (7).
Se os dirigentes a não quiserem pôr em prática, deveriam a isso ser forçados pelos
membros das cooperativas, que em Assembleia-geral os vinculariam a esse
compromisso. É que, se educados cooperativamente, os membros reconhecerão
rapidamente através da participação social activa as vantagens na criação de economias
de escala, na defesa e prossecução mútua dos seus interesses, na justificação do sector
autónomo de propriedade dos meios de produção, na representação comum sempre que
se torne necessário abordar Governos e demais autoridades, ou sempre que seja
necessário falar com uma voz única, na contribuição das cooperativas coligadas para o
desenvolvimento da sociedade aos níveis local, regional ou nacional.
Exemplos de iniciativas intercooperativas são hoje por todo o mundo demonstráveis,
local, regional (aqui uma adenda útil de 1995 face à formulação de 1966), nacional e
internacionalmente. Infelizmente, porém, nem todas as cooperativas estão plenamente
conscientes da sua vantagem, e devê-lo-iam estar se cumprissem o princípio.
Recordando as palavras inspiradoras de Albert Thomas, da OIT, nos idos de 20 do
passado século: “É pela articulação das diferentes formas de cooperação que o
movimento cooperativo se mostrará capaz de conciliar a dignidade humana, a actividade
livre e a autonomia no trabalho, com o progresso técnico e a acção colectiva”.
Acrescentaria, que a intercooperação também tornará mais efectiva a plena participação
do sector cooperativo na aplicação do último e novo princípio de 1995, o do Interesse
pela comunidade.
7º PRINCÍPIO
INTERESSE PELA COMUNIDADE
AS COOPERATIVAS TRABALHAM PARA O DESENVOLVIMENTO SUSTENTÁVEL DAS
SUAS COMUNIDADES, ATRAVÉS DE POLÍTICAS APROVADAS PELOS MEMBROS.
Cada Comissão de redacção de Princípios na ACI sempre quis deixar uma marca de
inovação no elenco dos princípios a cumprir pelas cooperativas verdadeiras a nível
mundial.
Desta vez, como que para contrabalançar as derivas globalizantes presentes noutros
princípios, quis-se recordar a necessidade de as cooperativas não se esquecerem de que
nasceram localmente, inseridas em comunidades bem definidas, e que uma vez em
actividade, não se devem esquecer dessa pertença ao seu local de nascença ou sede
actual.
Servir os membros num espaço geográfico específico é, portanto, um traço que se quer
fazer realçar com este novo princípio.
A inserção das cooperativas nas comunidades quer-se sustentável, palavra de contornos
nem sempre claros, mas que está na moda.
Se considerarmos a dissolução de uma cooperativa, veremos que o seu fecho poderá
originar repercussões que na comunidade vão mais além do simples fecho de umas
instalações físicas. Haverá perda de emprego, negócios na envolvente cooperativa que
serão afectados, haverá fornecedores e clientes que terão de procurar outros locais para
se aprovisionarem ou fornecer os seus produtos, haverá impactos sociais dos mais
diversos que serão localmente sentidos.
A dimensão local das cooperativas tem tudo a ver com a forma como elas têm sofrido
menos a crise actual quando comparadas com as grandes multinacionais. O emprego
não foi deslocalizado, a cooperativa permite manter na comunidade local um pólo de
actividade que “puxa” por todo um colectivo económico e social.
Os autarcas locais devem interiorizar este fenómeno, mais, devem ser pacientemente
levados a trabalhar sobre ele, com informação e com formação sempre que necessário.
Poderão ser eles que, depois, permitirão sentar os actores cooperativos a uma mesma
mesa e sugerir redimensionar as estruturas existentes, complementá-las com estruturas
novas em áreas menos cobertas, gerar fenómenos de intercooperação que transformem
as organizações cooperativas, e de economia social - conceito que junta às cooperativas
as mutualidades e as associações - em âncoras económicas no seio das respectivas
comunidades.
Por exemplo, ligar as cooperativas dos diferentes sectores às mutualidades existentes,
aproveitando as instituições de crédito na dependência das mutualidades como
substituto à impossibilidade de criação plena de instituições cooperativas bancárias no
crédito urbano, as caixas de poupança. Ou as cooperativas de solidariedade social e
associações com fins idênticos em organizações complementares e não concorrenciais,
por exemplo suscitando que façam compras em comum ou que utilizem cooperativas de
consumo ou de serviços diversos a preços mais favoráveis.
Devem, porém, fazê-lo não impondo a sua vontade, mas escutando o que os actores
locais querem, e depois procurando mediar uma solução.
O actual desenvolvimento comunitário, tal como o reconhece a OCDE, não é mais uma
política de cima para baixo, mas sempre de baixo para cima. É nas comunidades que
estão as ideias, capacidades e experiências. Comunidades entendidas por agregados
geográficos, com identidade própria e viradas para realizações concretas nos campos,
económico, social e cultural.
É claro que o envolvimento comunitário será maior ou menor de acordo com a vontade
dos membros da cooperativa, como diz o princípio insertas em políticas aprovadas, mas
a responsabilidade desse envolvimento não deve ser esquecida.
Uma das áreas para esse envolvimento é a da protecção ambiental. Fica esta menção
especial, uma vez que se perspectiva já a passagem desse desiderato a princípio
cooperativo numa próxima revisão dos Princípios. Já o tentaram antes, mesmo os
Pioneiros de Rochdale quando falavam na pureza e qualidade dos produtos à venda na
loja cooperativas inicial tinham preocupações similares, e ainda agora no último
Congresso de 2009 da ACI, o assunto foi abordado.
.............................................................................................................................................
(1) Podem ser consultadas as obras: “Revision of Co-operative Principles and the
Role of Cooperatives in the 21st Century, de Han Münkner, na Revista da ACI,
Vol.88, nº2, que reproduz uma sua conferência de 1994 no Japão; ou Cooperative Markets, Co-operative Principles, de Monzon Campos, Roger Spears;
Alasn Thomas e Alberto Zevi, editada pelo CIRIEC em 1996.
(2) “Princípios Cooperativos para o Século XXI”, edição Inscoop, 1996
(3) Cooperativas agrícolas – Art 7º do Decreto-Lei 335/99, de 20 de Agosto
Cooperativas de artesanato – Art 6º do Decreto-Lei 303/81 de 12 de Novembro
Cooperativas de comercialização – Art 7º,1 do Decreto-Lei 523/99 de 10 de
Dezembro
Cooperativas de consumo – Art.5º do Decreto-Lei 522/99 de 10 de Dezembro
(4)
(5)
(6)
(7)
Caixas de crédito agrícola mútuo – Art 19º,1 do Regime jurídico do CAM, na
redacção do Decreto-Lei 320/97, de 25 de Novembro
Cooperativas culturais – Art 5º do Decreto-Lei 313/81 de 19 de Novembro
Cooperativas de ensino superior – Arts. 10º e 13º do Decreto-Lei 441-A/82, de 6
de Novembro
Cooperativas de habitação – Arts 7º,2 e 8º do Decreto-Lei 502/99 de 19 de
Novembro
Cooperativas de pesca – Art.5º do Decreto-Lei 312/81 de 18 de Novembro
Cooperativas de solidariedade social – Art.4º do Decreto-Lei 7/98 de 15 de
Janeiro.
Decreto-Lei 31/84, de 21 de Janeiro.
Regulamento (CE) nº 1435/2003, de 22 de Junho.
Ver em Leite, João Salazar – Cooperação e Intercooperação”, Livros Horizonte,
1982, o capítulo II sobre Tipologia Cooperativa
Ib. Capítulos IV e VII.
PRINCÍPIOS COOPERATIVOS E ECONOMIA SOCIAL
Saber se os princípios cooperativos se podem estender às organizações de economia
social, ou se estas têm princípios específicos, é o objectivo deste capítulo.
Não podemos, porém, atingir o objectivo proposto sem prévia explicação do que se
entende por economia social, e sem recorrer à história e às actividades desenvolvidas,
sobretudo a nível europeu.
Se quiser ser simplista, por economia social deve-se entender a soma das actividades
económicas das empresas cooperativas, mutualistas e associativas, estas em sentido lato
abrangendo fundações e algumas ONG’s (organizações não governamentais).
Se quiser ser um tudo nada mais exigente, a essa mera soma dever-se-ia exigir que
desenvolvessem uma actividade conjunta, coligada, interpenetrada, uma teia de relações
económicas entre as suas componentes, um sector (1).
O conceito de economia social é de facto algo mais que uma operação aritmética ou
estatística.
Começa por ser um conceito com mais de um século de história, se bem que reconheça
a razão dos que dizem que esteve, então, hibernado.
Já dele falavam os cristãos-sociais (2) e os socialistas do século XIX. Obras sobre a
matéria foram publicadas em Portugal (3). Realizações práticas de sucesso ou
fracassadas multiplicaram-se por toda a Europa.
Charles Gide, na sua obra “Économie Sociale”, redigida para a 5ª Exposição Universal,
de 1900, e publicada em 1905, diz-nos que: “A economia social estuda
preferencialmente as relações voluntárias, contratuais, quasi-contratuais ou legais, que
os homens estabelecem entre si, visando assegurar uma vida mais fácil, um futuro mais
certo, uma justiça mais bem intencionada e mais alta que a que tem por emblema a
balança do mercador” (4).
E acrescentou que “a economia social crê na necessidade e eficácia da organização
querida, reflectida e racional”, faltando-lhe, diz agora Desroche, apenas “triunfar para se
compreender, compreender-se para triunfar, parafraseando Jean Piaget.
Foi Le Play que “baptizou a Economia social dando a esse vocábulo o seu significado
especial” (5). Remonta a 1830, porém, um texto intitulado Traité d’Économie sociale,
de Charles Dunoyer, que defendia um enfoque moral da economia, uma economia
circunscrita ao homem e não à riqueza, na expressão de Sismondi, e terão existido
menções anteriores à expressão em Villeneuve-Bargemont. Le Play, tal como Gide e
Philippe Buchez (6), fez parte da corrente social-cristã de pensamento, que se opôs à
corrente socialista de Proudhon ou Jean Jaurés (7).
Na origem a economia social visava organizar o trabalho e a previdência social a partir
da associação dos trabalhadores, por oposição à economia liberal assente na apropriação
individual do capital e exploração do trabalho de outrem. Inscrevia-se, assim, no
prolongamento das abolidas corporações, visando construir uma sociedade humanista e
solidária. Assentou originariamente em associações operárias, sociedades de socorros
mútuos e cooperativas de produção e consumo. A ruptura entre as suas componentes fez
a economia social desaparecer de cena entre a teorização de Gide e os anos setenta do
passado século. A ruptura com o movimento operário esvaziou-a de forças vivas. As
guerras mundiais – o conceito poderia ter facilmente sido recuperado após a
participação da economia social na reconstrução europeia do após 2ª Grande Guerra conduziram a uma aceleração do intervencionismo estatal com a criação do sector
público encarregue da planificação e constituído por empresas públicas.
No fim do século XIX, economia social era uma disciplina que, pelo domínio e objecto,
se pretendia diferenciar de economia política.
Daí que sob o título de economia social se pudessem acoitar quatro escolas: a clássica,
da liberdade (economia liberal); a socialista, da igualdade (economia socialista); a
conservadora, da autoridade (economia cristã); e a nova, da solidariedade (economia
solidária).
Foi esta que Gide (8) representou num colóquio em Genebra, em 1890, promovido por
uma Sociedade Cristã de Economia Social. A economia social é para Gide uma
economia solidária por ser uma economia de intervenção, de evolução (o método
histórico), de implicação (da teoria à prática) e de cooperação (criação de serviços
mútuos).
É também uma economia de trabalho, visando salários mais altos; uma economia de
serviços, visando o conforto; uma economia de previdência, procurando a segurança no
futuro; e uma economia de independência, visando a não dependência económica.
Gide foi ressuscitado pelos que em França, na década de setenta do passado século,
influenciados pela reaproximação entre mutualidades e cooperativas, fizeram reemergir
o conceito de economia social. De França passou o conceito aos países latinos, por
impulso do mercado único comunitário, e pela língua comum deixada pelo
colonialismo.
Citemos de um trabalho de Monzón e outros (9):
“É a partir da crise do Estado do Bem-estar e dos sistemas de economia mista, do último
quarto do século XX, que se produz em diversos países europeus um renovado interesse
pelas organizações típicas da economia social, tanto por fórmulas empresariais
alternativas às capitalistas e às do sector público, como podem ser as cooperativas e as
mútuas, como pelas entidades de não mercado, maioritariamente constituídas por
associações e fundações. Um interesse que deriva das dificuldades que as economias de
mercado têm para encontrar soluções satisfatórias para problemas tão relevantes como o
desemprego massivo de longo prazo, a exclusão social, o bem estar no mundo rural e
zonas urbanas degradadas, a saúde, a educação, a qualidade de vida dos reformados, o
crescimento sustentado e outros. Trata-se de necessidades sociais que não encontram
oferta suficiente, ou adequada por parte dos agentes privados de natureza capitalista,
nem pelo sector público, nem sequer solução fácil através dos mecanismos autoreguladores do mercado, nem das políticas macroeconómicas tradicionais.”
As cooperativas, mutualidades e associações estiveram fora das preocupações dos
implantadores do mercado único comunitário, pelo que urgia incluí-las nos
regulamentos transnacionais que o corporizavam.
Por outro lado, vários teóricos pretenderam preencher o vazio resultante da falência da
alternativa colectivista na esfera económica, propondo esta realidade centrada no
homem como alternativa ao capitalismo opressor.
Como dizem Thierry Jeantet e Roger Verdier (10) a economia social é feita de homens e
mulheres que livremente se agrupam em torno de princípios:
 Vontade espontânea de adesão;
 Partilha democrática do poder (um homem, um voto) qualquer que seja a
contribuição de cada um em ideias, força de trabalho, meios materiais ou
financeiros;
 Solidariedade no interior do grupo, e face ao exterior;
 Fim não lucrativo e não acumulação individual dos ganhos (o que nas
cooperativas significa não repartição das reservas, limitação da taxa
remuneratória das partes sociais; nas associações, não redistribuição dos
excedentes; nas mutualidades, procura do melhor produto ou serviço ao preço
mais baixo);
 Vontade de desabrochar moral e intelectual no interior do grupo, mas também
face ao exterior (pela formação dos assalariados, utilizadores, dirigentes).
E adiante:
“A justaposição dos dois vocábulos, “economia” e “social”, não quer dizer que
estejamos perante “grupos” ou “empresas” com carácter social intervindo no sector
mercantil. Trata-se antes de agrupamentos democráticos de mulheres e de homens que
avançaram com um projecto humano, um projecto”social”, não passando o económico
de um meio, um dos meios postos à sua disposição para levar a bom termo o projecto
social.
A economia social desconfia das “fronteiras” entre os mundos mercantil e não mercantil
perpetuados pelo produtivismo, particularmente capitalista; ela situa-se para além dessas
clivagens e quer impor as suas próprias regras sem se deixar fechar nos esquemas
contestáveis e flutuantes do mercantil”.
Nesta óptica, mais do que alternativa, os “militantes” da economia social preferem
perspectivar uma cultura.
Henri Desroche (11) escreve: “Quer se trate de “organismos”, de “organizações”, de
“empresas”, de “instituições”, um movimento social não é um movimento vivo sem
uma cultura, que não se satisfaça com uma situação estabelecida, mas se inquiete em
fazer-se ou refazer-se em situações novas e inovadoras”.
E propõe que essa cultura de economia social assente num tronco comum, baseado no
voluntariado, na criatividade, na equidade, no serviço, na promoção, na solidariedade e
na autonomia. Para ele esta enumeração não é exaustiva e deve destinar-se à formação,
mais social que profissional ou tecnológica.
A formação social para Desroche “não se improvisa. Para ser verdadeiramente cultural,
ela deve “cultivar” a memória, a consciência, a imaginação de um movimento e das suas
diferentes populações”.
Ao tronco comum de valores e à formação social deverá ainda ser acrescida, para
Desroche, uma investigação permanente, aliando o estudo à acção, a reflexão à
experiência.
De tudo o que fica dito se conclui que a economia social é um edifício em construção,
um caminho iniciado e não concluído, trilhado por homens e mulheres dotados de
ideias, de objectivos comuns que, neste momento poderão ser concretizados
economicamente por cooperativas, mutualidades e associações, mas que no futuro o
poderão vir a ser por outras formas organizativas que a vontade, a argúcia, o espírito
humano vier a criar para servi-los.
Sendo um edifício em construção, uma “fronteira permeável”, – adiante se criticarão as
propostas de “fecho” da economia social a determinado tipo de organizações hoje
existentes - o conceito de economia social funciona em duas vertentes, na expressão de
Desroche: no económico do social (fileira operacional) e no social do económico (fileira
científica). Nesta última, que justificará o uso de expressões como direito social,
assistência social, segurança social, planificação social, desenvolvimento social, se
entronca a visão anglo-saxónica de economia social (social economy). Ela designa,
então, a economia da saúde, da segurança social, da educação, um conceito instalado já
quando o comunitário surgiu, e que podemos ir buscar a Leon Walras.
Na Alemanha prevalece a noção de “Gemeinwirtschaft”, a economia de interesse geral,
sobre o “terceiro sector”, o de economia social (chegou a convencer-se a tutela
cooperativa nacional de que os interesses cooperativos seriam, em Bruxelas, melhor
defendidos pelo lobby do interesse geral, que pelo das cooperativas). Para os alemães as
cooperativas e mutualidades enquanto organizações de autopromoção dos seus
aderentes fazem parte do sector privado. As novas cooperativas de trabalho associado,
os bancos alternativos e empresas autogeridas, a que chamam de “sectores marginais”,
essas sim pertencem à economia social (12).
Em Junho de 1970 é criado em França um Comité de Ligação das actividades
cooperativas, mutualistas e associativas (CNLAMCA). Do seu trabalho resulta a
publicação, a 2 de Junho de 1980, da Carta da Economia Social, cuja observância se
transforma em condição para a admissão das novas organizações federativas que a ele
queiram aderir.
A ideia de Carta da Economia Social foi importada por nós, tendo o 5º Congresso
Nacional do Mutualismo, em 1987, nas suas conclusões finais, adoptado e preconizado
a adopção pelas cooperativas e associações de uma Carta Portuguesa.
O artigo 1º da Carta Portuguesa de Economia Social diz-nos que a economia social “é a
forma de produção e distribuição de bens e serviços efectuada a partir de unidades de
produção e de outras estruturas, associativas, cooperativas e mutualistas que, não
prosseguindo o lucro nem sendo dominada por interesses meramente individualistas,
visa o serviço e o desenvolvimento da comunidade”.
Referem-se as três famílias, a não prossecução de lucro e o serviço aos membros e à
comunidade. E porque nos interessa neste trabalho os princípios, completa-se o quadro
idealizado, com uma remissão no artigo 4º da Carta para os princípios cooperativos,
embora se diga que devem ser usados “com as devidas adaptações “.
Adesão voluntária e livre e gestão democrática são princípios mencionados sem o
desenvolvimento que o Congresso de Viena em 1966 adoptou, constituindo as alíneas a)
e b) do referido artigo. Já as alíneas c) e d) seguem lógica oposta, uma vez que a Carta
se alonga por um conjunto de ideias entre princípios e valores, como se pode ler:
“c) Ausência de fins lucrativos visando, outrossim, através da noção de serviço, a
criação e distribuição de riqueza sem relação com a participação no capital social;
d) Autonomia face ao Estado e demais entidades de direito público, centrais ou locais,
eventualmente intervenientes em projectos comuns ou participados.”
Sobre educação nada é dito; sobre intercooperação surge uma cláusula V, fora da
cláusula dos princípios. Redigida antes de 1995, a Carta aponta já para duas ideias que
se tornariam princípios cooperativos nessa data, a autonomia face ao Estado e o
interesse pela comunidade.
Duas décadas depois do reinício das movimentações em torno da economia social,
esperaria o leitor menos ligado ao sector ver já o conceito consolidado e, sobretudo,
apreendido pelos seus actores. Nada disso se passou, embora os mais tenazes não
tenham ficado parados. Mantém-se a ligação do conceito à latinidade, embora setas
tenham sido espetadas, por exemplo, na Suécia, ou nas comunidades latinas de países
como o Canadá, no Québec, de onde passou via intelectualidade universitária, para
outras regiões do Canadá anglófono, e dizem também que no Japão. Mas o conceito está
muito longe de ser aceite em muitos locais do mundo, sobretudo em muitos países em
desenvolvimento que dele tanto poderiam beneficiar.
Em 1978, o Comité Económico e Social organiza um colóquio, seguido de estudos
exaustivos sobre o universo cooperativo, mutualista e associativo europeu, bases de
novo colóquio em 1986.
Roger Louet, que presidia ao Comité Económico e Social, referiu que “a conferência
teve como principal mérito uma tomada de consciência, na Europa, de um importante
terceiro sector, tanto pela sua capacidade económica, número de empregos criados,
diversidade de actividades exercidas, como pelo espírito de solidariedade social que
sustém essas empresas”.
Na Comunidade Europeia as iniciativas visando fazer reconhecer o conceito foram
despoletadas pelos “Rendez-vous Européens de l’Économie Sociale”, de Novembro de
1989, organizados no quadro da Presidência francesa das Comunidades Europeias.
A Comissão Europeia, sob a batuta de Jacques Delors, em consonância com o Governo
francês de François Mitterand, cria nesse mesmo ano uma Divisão de economia social
na nova DG 23, para apoiar o processo de reconhecimento, que se pensava imparável. O
seu primeiro comissário foi o português Cardoso e Cunha.
Foi aliás a este que coube apresentar ao Conselho Europeu uma comunicação sobre o
contributo cooperativo para a constituição do mercado europeu sem fronteiras, e na qual
se introduzia pela primeira vez um reconhecimento da economia social, seu significado
no terreno, e modo como se deveria processar o seu desenvolvimento.
Uma das primeiras preocupações da estrutura europeia criada, foi tentar separar trigo do
joio, isto é, foi perceber quem é quem e solicitar que o sector se lhes dirigisse com uma
“voz única”. Os grupos de pressão cooperativos sedeados em Bruxelas, reunidos no
Comité de Coordenação das Associações Cooperativas da Comunidade Europeia
(CCACC), por uma lado, o Comité de Ligação Intersectorial das Cooperativas
Europeias (CLICE) criado por Ramaekers na Bélgica e o italiano Foschi, membro do
Conselho da Europa, por outro, cavalgando o relatório Mihr ao Parlamento Europeu,
posicionam-se para ser essa voz. Após ter perdido fôlego, o CLICE viria a ressurgir em
1991 como Clube Europeu da Economia Social, do qual participavam a União das
Instituições Particulares de Solidariedade Social e o Inscoop, este como vice-presidente.
Sucederam-se Conferências europeias de economia social (Paris, Roma, Lisboa,
Bruxelas, Sevilha, Gävle, Gand, Atenas, Luxemburgo, Salamanca, Tours, Cracóvia,
Estrasburgo e Praga), ligadas ás presidências rotativas da Comunidade, depois União
Europeia, mas em nítida perda de potência, já que eram várias centenas os assistentes ás
primeiras e poucas dezenas os que compareceram às últimas. A última em Praga falava
de economia social e empresas sociais, estas mais conhecidas”a leste” que aquele
conceito.
O Parlamento Europeu esteve também muito activo, com sucessivos relatórios sobre
cooperativas e a economia social entre 1983 e 1990 (13). Um Intergrupo Parlamentar,
criado em 1990, foi desactivado por longo período, e só reapareceu em 2005.
Apresentaram-se propostas de Estatutos europeus para as cooperativas, mutualidades,
associações e fundações, mas só o das cooperativas foi aprovado, e mesmo assim viu só
a luz do dia mais de 10 anos depois de estar pronto, já que a Comissão parou os
trabalhos até que tivesse concluído os trabalhos da sociedade anónima europeia, que
esses decorreram por mais de 30 longos anos, e sintoma de menorização do sector, fez
quase corresponder a estrutura e conteúdo do diploma cooperativo ao das sociedades
anónimas, destruindo o texto que estava acordado nos idos de 1993.
À escassa base legal acrescia a insuficiente precisão de conceitos. Os próprios Tratados
de Roma e Maastricht não referiam explicitamente a economia social. O recentemente
assinado Tratado de Lisboa (2009) segue o mesmo caminho.
Um Programa Plurianual de acções comunitárias para as mútuas, fundações e
associações da Comunidade europeia (1995-1997), que visava através de linha
orçamental própria, aprovada pelo Parlamento Europeu por resolução de 2 de Julho de
1998, promover acções transnacionais de economia social e sua inclusão nas políticas
estatística, de formação, investigação e desenvolvimento comunitário, foi vetado pelo
Conselho Europeu.
Aos poucos a Comissão Europeia deixou de dar a devida atenção ao sector, empurrando
as suas componentes para um tratamento como pequenas e médias empresas, saco em
que são meramente residuais. Foi extinta em 2000 a Divisão que criara, trocando-a por
dois serviços, um para as cooperativas e mútuas, insertas num pote com artesanato e
pequenas empresas, e outro para as associações e fundações. Ao mesmo tempo dava
ouvidos às pressões das grandes organizações privadas e das empresas públicas, aquelas
argumentando poderem ser produzidas distorções de concorrência no mercado interno
por força do alegado tratamento mais favorável, por exemplo a nível fiscal, de que
gozavam sobretudo as cooperativas, estas defendendo uma nova política de ajudas de
Estado direccionada para o financiamento dos serviços de interesse geral. Assistiu-se a
progressivo diminuir das iniciativas europeias ao sector dirigidas, e mesmo a um
diminuir das reuniões organizadas pela própria economia social com repercussão
plurinacional.
A nível de alguns países, porém, o processo de reconhecimento seguiu o seu caminho,
com propostas de leis em França (regula as “uniões de economia social”, Itália
(aprovadas em 2005 as “empresas sociais”) e Espanha (que será a primeira lei nacional
de economia social se aprovada em 2010), e na região francófona da Bélgica (já
adoptada em Novembro de 2008), com a criação de Confederações Nacionais da
Economia Social, ainda em França e Espanha, com a criação de redes diversas e,
sobretudo, com o trabalho académico e literário em torno de organizações ligadas a
universidades, como o CIRIEC.
E os frutos da produção teórica acabaram por dar resultado. O conceito renasceu com
nova consistência e visibilidade.
Na Bélgica, o Conselho Valão da Economia Social propôs a seguinte delimitação do
sector: “é aquela parte da economia integrada por organizações privadas que
compartilham entre si quatro características: a) fim é servir os membros e a
colectividade, e não o lucro; b) autonomia de gestão; c)processos democráticos de
decisão; d) primado da pessoa e do trabalho sobre o capital e repartição dos
rendimentos.
Mais recentemente, a Conferência Europeia Permanente das Cooperativas,
Mutualidades, Associações e Fundações (CEP-CMAF), criada em 2000 no lugar do
Comité Consultivo das Cooperativas, Mutualidades, Associações e Fundações (CMAF),
que viveu apenas dois anos, e substituída em 2008 pelo Social Economy Europe,
defendeu os seguintes princípios na sua “Carta de Princípios da Economia Social”:
- Primado da pessoa e do objecto social sobre o capital;
- Adesão voluntária e livre;
- Controlo democrático pelos seus membros (excepto no caso das fundações que não
têm sócios);
- Conjugação dos interesses dos membros utilizadores com o interesse geral;
- Defesa e aplicação dos princípios da solidariedade e responsabilidade;
- Autonomia de gestão e independência face aos poderes públicos;
- Destino da maioria dos excedentes para objectivos como o desenvolvimento
sustentável, melhoria dos serviços aos membros e interesse geral.
Uma mescla de princípios e valores cooperativos com regras práticas de actuação, sinal
de que não é tempo ainda de ser muito exigente na matéria.
Como consequência o processo retornou ao Parlamento Europeu e ao Comité
Económico e Social (este publicara a coincidir com a progressiva menor atenção da
Comissão pelo sector um relatório, em 2000, intitulado “Economia Social e Mercado
Único”), muito graças aos trabalhos dos grupos de pressão (Cooperatives Europe e
Social Economy Europe, como hoje se designam; o primeiro é hoje a secção europeia
da Aliança Cooperativa Internacional, isto é, acabou-se por aceitar duas décadas depois
a proposta de Roger Ramaekers que propunha uma Aliança Cooperativa Europeia).
A Comissão Europeia começou também a reagir, utilizando a discussão em torno da
Estratégia de Lisboa e o contributo para o emprego que o sector poderia dar. Depois de
uma acção piloto plurianual em torno do “Terceiro sector e Emprego”, que decorreu até
2001, do aproveitamento do Programa EQUAL, do Livro Verde sobre a
responsabilidade social das empresas, da nomeação de representantes da economia
social para o Grupo consultivo sobre política da Empresa, fez aprovar em 2006 um
Manual das Contas Satélite de Economia Social (14), que quando aplicado pelos
sistemas estatísticos nacionais dará, finalmente, a perspectiva do peso e
representatividade do sector.
Acresce que, em matéria de cooperativas, a Comissão necessita de rever a sua estratégia
de Promoção cooperativa, datada de 2004, tornar mais atractivo o Estatuto da sociedade
cooperativa europeia, de 2003, e preparar 2012, recentemente designado pelas Nações
Unidas como Ano Internacional das Cooperativas.
Por isso, hoje trabalha-se no sector com mais entusiasmo, partindo sobretudo de dois
documentos recentes: o relatório Toia, sobre a economia social, aprovado pelo
Parlamento Europeu em 2009, e o trabalho encomendado pelo Comité Económico e
Social Europeu ao CIRIEC, elaborado por Monzón e Campos (15) em 2007.
Em Toia podem encontrar-se oito recomendações, votadas por larga maioria no plenário
do Parlamento Europeu: reconhecimento do conceito; reconhecimento jurídico;
reconhecimento estatístico; parceiro no diálogo social; compatibilização entre o bemestar dos membros e a participação no mercado competitivo moderno; intercooperação e
troca de experiências; plena participação no modelo social europeu; avaliação regular de
resultados.
Em Monzón e Campos colhe-se a seguinte definição de Economia social:
“Conjunto de empresas privadas formalmente organizadas, com autonomia de decisão e
liberdade de filiação, criadas para satisfazer as necessidades dos seus sócios através do
mercado, fornecendo bens e serviços, incluindo seguros e financiamento, e em que uma
eventual distribuição de benefícios ou excedentes entre os sócios, bem como a tomada
de decisões, não estão directamente ligadas ao capital ou às quotizações de cada sócio,
correspondendo um voto a cada um deles. A economia social também agrupa as
entidades privadas organizadas formalmente, com autonomia de decisão e liberdade de
filiação, que prestam serviços de não mercado a agregados familiares, cujos eventuais
excedentes, não podem ser apropriados pelos agentes económicos que os criam,
controlam ou financiam”.
Disse acima que não podia concordar com esta definição. Ela não se adequa com a
nossa individualidade de base constitucional. Temos um sector cooperativo e social, de
que decorre para o sector cooperativo a existência de legislação específica tendo por
corpo básico o Código Cooperativo, do qual resulta não serem as cooperativas entre nós
nem públicas, nem privadas, e sim cooperativas; nem sociedades, nem associações, e
sim cooperativas. Para nós o “terceiro sector” é de lei, tem nome próprio.
Assim sendo, só podemos aceitar o termo “empresas privadas” da definição se o critério
classificativo for dual: privado versus público. De acordo com essa dualidade, onde se
inserem, por exemplo, as mui lusas cooperativas de interesse público (Decreto-Lei
31/84, de 21 de Janeiro), em que o Estado se associa com empresas privadas, ou
cooperativas e sociais, mas mantendo a maioria do capital? No privado, logo dentro da
definição, ou no público, logo fora dela?
Por isso, prefiro recordar MacPherson a propósito dos Princípios de Manchester,
quando diz que “mesmo dentro da ACI nunca houve uma visão única do que devia ou
não devia ser considerado como cooperativa”, e que isso foi um elemento importante no
que considerou ser a “agonizante procura pela Identidade cooperativa”.
Assim, também na procura pela Identidade da economia social, a porta não se deve
fechar a novos tipos de organizações. Um pouco à imagem do texto que em 1978
escrevi intitulado Sistema solar cooperativo, e em que referia que, consideradas as
cooperativas como “sol”, na sua órbita circulavam outro tipo de realidades que com elas
tinham algumas similitudes (agricultura de grupo, pré-cooperativas agrícolas,
associações de socorros mútuos, mútuas de seguro de gado, experiências associativas
tradicionais espontâneas, utilização de baldios, etc), e que mais cedo ou mais tarde
poderiam, e algumas foram, incorporadas no sector cooperativo.
Propus, por isso, uma outra definição num projecto de lei que me foi solicitado que
elaborasse. Quis que, para estabelecer pontes, fosse próxima dela, e com ela resolvo o
dilema interrogativo que coloquei:
Por economia social entende-se o conjunto das empresas de livre adesão e autonomia de
decisão, democraticamente organizadas, com personalidade jurídica própria, criadas
para satisfazer as necessidades dos seus membros no mercado, produzindo bens e
serviços, e nas quais a eventual distribuição dos excedentes de exercício e a tomada de
decisões não estão ligadas ao capital individual dos membros, que terão um voto cada.
Nela se incluem, designadamente, as cooperativas, as mutualidades, as associações e as
fundações, bem como empresas sociais (16) e entidades voluntárias não lucrativas que
produzam serviços de não mercado para as famílias, e cujos eventuais excedentes não
podem ser apropriados pelos agentes económicos que as criaram, controlam ou
financiam.
E porque, como disse, ainda se procura a Identidade, também seria prematuro pensar em
Princípios de economia social. Aceitem-se as características indicativas referidas, e
aguarde-se pelo trabalho de intercooperação entre as componentes aceites como fazendo
parte da família, trabalho que poderá conduzir ou não a um quadro futuro de princípios,
a fazer parte de uma Carta Portuguesa revista.
(1) Muita da dificuldade em fazer passar a mensagem da economia social tem a ver
com a pouca clareza com que são usados conceitos como sector cooperativo e
social, terceiro sector, sector de economia social. O primeiro está plasmado na
Constituição da República Portuguesa (artigos 80º e 82º) e inclui expressamente
cooperativas e mutualidades, e indirectamente entidades associativas que sejam
pessoas colectivas não lucrativas. O terceiro sector é, para o vulgo, identificado
por tudo aquilo que não seja público, nem lucrativo no privado. Mas não existe
uma completa sobreposição entre o não lucrativo e a economia social. Entre nós,
muitas vezes sector cooperativo é o terceiro sector assumido.
(2) Cristãos-sociais é designação que usamos para cobrir tanto a intervenção de
católicos como de protestantes. Ver o meu “Enquadramento Histórico – Social
do Movimento Cooperativo”, página 92.
(3) Ver “Contributo para uma Ideação da Economia Social”, de Fernando Ferreira
da Costa, edição Inscoop, 1991.
(4) Ver “Pour un Traité d’Économie Sociale” de Henri Desroche, edição
Coopérative d’Information et d’Édition Mutualiste, 1983, página 231.
(5) Ibidem, página 71.
(6) Philippe Joseph Benjamin Buchez (1796-1865) foi discípulo de Saint-Simon e
responsável pelo lançamento em França das cooperativas de produção operária,
para isso usando o Jornal L’Européen que publicou a partir de 1831.
(7) Pierre Joseph Proudhon (1809-1865) e Jean Jaurès (1859-1914) foram expoentes
da corrente de pensamento socialista em épocas diferentes, o primeiro
defendendo a emancipação operária pela justiça e liberdade, o último uma
revolução social e democrática não violenta.
(8) Sobre Charles Gide (1847-1932) existe muita bibliografia, sendo possível
encontrar traduções portuguesas de algumas obras suas. Na Revue d’Études
Coopératives pode consultar-se o estudo fundamental « Trois étapes d’une
créativité : coopérative, sociale, universitaire», Coopérative d’information et
d’édition mutualiste, 1982.
(9) “Informe para la Elaboracion de una Ley de Fomento de la Economia Social”,
de Jose Luis Monzon, Rafael Calvo Ortega, Rafael Chaves Ávila, Isabel Gemma
Fajardo Garcia e Fernado Valdés Dal-Re, edição CIRIEC España, Dezembro
2009.
(10)“L’Économie Sociale”, edição Coopérative d’Information et d’Édition
Mutualiste, 1984.
(11)Ver Desroche, Henri, obra citada, página 189
(12)”Aspects Juridiques de l’Économie Sociale en Europe”, de Hans Münkner, in
Revue d’Études Coopératives, Mutualistes et Associatives, nº 27, 1988.
(13)Relatórios Mihr, sobre o papel das cooperativas na construção europeia,
Avgerinos, sobre a contribuição das cooperativas para o desenvolvimento
regional, Trivelli, sobre as cooperativas e a cooperação para o desenvolvimento,
Hoff, sobre o papel das mulheres nas cooperativas e iniciativas locais de criação
de emprego, Vayssade, sobre o estatuto da sociedade cooperativa europeia e
outras empresas de economia social em geral.
(14)Ver Barea, J e Monzon Campos, J.L, Manual para as Contas Satélite das
Cooperativas e Sociedades Mútuas, 2007, relatório para a Comissão Europeia,
DG Empresa.
(15)A Economia Social na União Europeia, de José Luís Monzón e Rafael Chaves,
assisitidos por Danièle Demoustier (França), Lisa Froebel (Suécia) e Roger
Spear (Grã-Bretanha).
(16)A OCDE define empresa social como “toda a actividade privada, de interesse
geral, organizada a partir de uma gestão empresarial que não tenha por principal
objectivo a maximização dos benefícios, mas sim a satisfação de determinados
objectivos económicos e sociais, bem como a capacidade de gerar, através da
produção de bens e serviços, novas soluções para problemas de exclusão e
desemprego”.
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