o ferreiro e a morte

Transcrição

o ferreiro e a morte
O
FERREIRO
E A MORTE
Texto de Mercedes Rein & Jorge Curi
Tradução de Patrícia Riet
PERSONAGENS
CORO
MISÉRIA
PERALTONA
SÃO PEDRO
NOSSO SENHOR
COMPADRE I
COMPADRE II
DONA JESUSA
COMPADRE III
MAGNATA
GOVERNADOR
CAPANGA I
CAPANGA II
LACAIO
MARUCHENGA
JOGADOR I
JOGADOR II
JOGADOR III
O FULEIRO
A MORTE
VIZINHA
O FINADO
ADVOGADO
MATA-SÃO
PAPA-DEFUNTO
LILITH
ODALISCA I
ODALISCA II
POLICIAL I
POLICIAL II
SENTINELA
CENA 1 – CONTO DO FOGO DE CHÃO
Ouve-se um violão. Miséria, de cócoras, junto à forqueta de
uma árvore muito velha e seca, inicia seu relato, cercado
pelo Coro de Pobres, ainda mais miseráveis do que ele. Os
seus rostos não se vêem. Este Coro ficará constantemente
rondando a cena, à espreita, suplicando, festejando e
inclusive ameaçando, conforme o caso. Também pode
encarnar os diversos papéis secundários.
MISÉRIA – Vou-lhes contar um conto, que é pra repetir pra
algum amigo na pior. Aconteceu já faz algum tempo, num lugar
que chamavam Terra Santa. Lá morava, então, um paisano de
sobrenome Peralta, mais conhecido pela alcunha de Miséria.
Era um gaúcho meio manhoso, que morava numa triste tapera,
junto com sua irmã, a quem alguns chamavam de “A Peraltona”,
e outros, simplesmente de Pobreza. O homem era ferreiro e
muito habilidoso pra fazer o corpo mole no trabalho.
PERALTONA – Miséria! Onde será que anda esse vagabundo?
(Atravessa o Coro sem vê-lo, em outro tempo e espaço. um
do Coro levanta-se. Segue-a. vira-se para o público. Usa
máscara de caveira.).
MISÉRIA – Dizem as más línguas, que o homem era um vadio,
amigo do trago, do baralho, dos dados e de todos os
vagabundos como ele. Mas também conta-se que era uma
alminha de Deus, que tirava o pão da boca e a roupa do corpo
para dar aos pobres e que, por isso, vivia na pior pobreza. E sua
irmã ficava furiosa vento a pachorra de seu irmão Miséria.
PERALTONA (Vê Miséria sentado ao pé da forqueta) –
Estavas aí? Levanta - homem de Deus: vai trabalhar, acende a
forja, faz alguma coisa, te esforça um pouco para ganhar
dinheiro, irmão, que estou me consumindo com esta vida
miserável que me fazes levar.
MISÉRIA – Pois vai embora pra vila e casa, Pobreza, assim tu
paras de amolar! (O Coro se movimenta. Vêem-se seus
rostos de caveira.).
PERALTONA – Como é que tu queres que eu case se não
tenho nem para um mísero enxoval? O que fizeste com o
dinheiro que recebeste ontem, infeliz?
MISÉRIA – Emprestei ao meu compadre, que andava meio
necessitado.
PERALTONA – Mas, quem mais necessitado que tu, Miséria?
Aí estás: mais esfarrapado e piolhento que todos os vagabundos
que ajudas! Bem que tu podias comprar uma muda de roupas
ou comprar pra mim, que ando quase nua e morta de fome...
Mas tu só pensas no teu compadre fulano ou comadre cicrana...
Queres me dizer de onde tiras tanto compadre e tanta comadre?
(Tenta afugentar o Coro de Infelizes, à espreita.) Fora! Fora,
mendigos!
MISÉRIA – É que são tantos os que querem que eu apadrinhe
os filhos!
PERALTONA – E os teus, infeliz? Não pensas neles?
MISÉRIA – Os meus? Da onde?
PERALTONA – Como da onde, gaúcho sem-vergonha? Já não
te lembras das coisas que andaste fazendo por aí?
MISÉRIA – Não sei nada disso. Pra mim todos são filhos de
Deus e a todos dou o que tenho.
PERALTONA – O que é que tu vais dar Miséria? Se tu fosses
um homem, te esforçarias um pouco pela tua família! Mas tu, aí
jogado, todo o santo dia, sem fazer nada... Tu tens sangue de
lagarto!
MISÉRIA (Relatando) – E assim vivia a Peraltona,
resmungando o dia inteiro. Mas, certo dia: chegaram à tapera
dois peregrinos. Contam que Nosso Senhor Jesus Cristo, que foi
o criador da bondade, tinha descido à Terra Santa, com seu
assistente São Pedro, e andava pregando de rancho em rancho
e de vila em vila.
CENA 2 – SÃO PEDRO E NOSSO SENHOR
SÃO PEDRO – Poxa que tá esquentando um solaço!
NOSSO SENHOR – Não use essa linguagem, São Pedro: não
fica nada bem num santo como tu.
SÃO PEDRO – Desculpe Nosso Senhor: mas a verdade é que
está fazendo um calor dos diabos – com o perdão de Sua
Divindade -, e já estamos perto de um povoado. A gente podia
parar um pouco para descansar e se refrescar.
NOSSO SENHOR – Estou vendo um rancho onde podemos
parar.
SÃO PEDRO – Mas olhe Nosso Senhor, que essa gente deve
ser muito pobre, e não deve ter nem pra eles...
NOSSO SENHOR – Algo poderão nos oferecer, mesmo que
seja só um pouco de sombra e uma palavra boa. Vai e bate na
porta: vê se sai alguém. (O Coro está ao redor, suplicante. Ele
os olha com dor, e os abençoa em silêncio.).
SÃO PEDRO – Ave Maria! Não tem ninguém aqui? Ave Maria
Puríssima!
MISÉRIA – Sem pecado concebida! Entre!
NOSSO SENHOR – Buenas e santas! Buscamos um pouco de
sombra e agüinha fresca, porque viemos a pé de muito longe.
MISÉRIA – Irmã! (Aos forasteiros.) Entrem e fiquem à vontade.
Pobreza!
PERALTONA – O que há?
MISÉRIA – Traz vinho e comida para estes forasteiros, que vêm
de muito longe.
PERALTONA – E onde queres que eu ache vinho e comida
nesta tapera pulguenta?
MISÉRIA – Vai e traz o que tiver! Alguma coisa tu deves ter
guardado! (Aos forasteiros.) Está um pouco azeda, a coitada,
pela muita necessidade. Mas não vai faltar neste rancho alguma
coisa para oferecer aos forasteiros. Tira o garrafãozinho que
escondeste: não me deixe mal, irmã velha! (A ação se detém.
Miséria dirige-se ao público.) Comeram, beberam - Nosso
Senhor e São Pedro - e, depois que descansaram, despediramse do dono da casa.
NOSSO SENHOR – Quanto te devemos, bom homem?
MISÉRIA – Pelo que vejo vocês são tão pobres quanto eu.
Como vou cobrar? Vão em paz pelo mundo, que algum dia,
talvez, Deus se lembre disto.
CENA 3 – AS TRÊS RECOMPENSAS
NOSSO SENHOR – Assim seja. (Afastam-se. Miséria retorna
à sua posição habitual junto à forqueta.) Não tens nada a
dizer, São Pedro?
SÃO PEDRO – A verdade, Nosso Senhor, é que somos uns
desagradecidos. Este pobre homem tirou o pão da boca e não
nos cobrou nada por ele, mesmo sendo muito pobre, e nós
vamos embora assim: sem deixar sequer uma prenda de
amizade.
NOSSO SENHOR – Era isso mesmo que eu queria ouvir de ti,
que por algo és santo. Vamos voltar à casa dele e conceder-lhe
uma graça, e assim, demonstrar nossa gratidão.
PERALTONA – Acorda Miséria, que os forasteiros voltaram e
querem dizer-te algo.
MISÉRIA – O quê? O que há?
PERALTONA – Os senhores aqui querem falar-te.
NOSSO SENHOR – Foste um homem bom, Miséria, e por isso
quero recompensar-te. Vai pedindo o que quiseres e será
concedido.
MISÉRIA – Não diga? Qualquer coisa?
NOSSO SENHOR – Três pedidos vou-te conceder.
MISÉRIA – Tá Bueno! Não é que era bruxo, o homem? Ou será
o próprio Mandinga fantasiado de cristão?
SÃO PEDRO – Fale com mais respeito, companheiro, que está
perante o mesmíssimo Senhor Jesus Cristo! E saiba que eu sou
São Pedro, o Porteiro do Céu!
MISÉRIA – Olha que eu tenho boca grande para contar casos,
mas o companheiro me ganha de longe! Então é o Senhor
Jesus Cristo em pessoa? Não é que era piadista o homem?
PERALTONA – Cala a boca, irmão, que se por acaso é
verdade, nos azaramos pelo resto da vida.
MISÉRIA – Não seja zonza, irmã! Como vai ser verdade
tamanho embuste?
SÃO PEDRO – Estás me tratando de mentiroso? Agorinha
mesmo vais aprender a respeitar a Divindade. Deixa ele para
mim, Nosso Senhor, que eu sozinho dou conta deste aqui! Me
enfrenta se tens coragem, que aqui tem um homem!
NOSSO SENHOR – Sossega São Pedro, e guarda o facão, que
quem a ferro fere, a ferro morre. (À Miséria.) E tu não te
importes com ele. É um velho briguento, mas no fundo é bom.
MISÉRIA – Então era o mesmíssimo São Pedro?
SÃO PEDRO – Te convenceste afinal?
MISÉRIA – E este jovem é Sua Divina Majestade, o filho de
Deus Pai que está no céu?
SÃO PEDRO – O próprio.
MISÉRIA – Desculpem, mas tem uma coisa que não entendo.
Se são gente tão distinta, como é que andam a pé como
gaúchos pobres, que não têm nem pra um miserável matungo?
Ainda mais vindos de tão longe, não é?
SÃO PEDRO – Mas o gaúcho é herege e desconfiado!
NOSSO SENHOR – Não sabias que vim pregar a humildade?
MISÉRIA – Ouvi isso, mas faz muito tempo.
NOSSO SENHOR – Se não acreditas... paciência! Vamos São
Pedro!
PERALTONA – Pede Miséria, não sejas bobo! O que perdes
pedindo? Esperem: não vão embora, que o meu irmão é meio
moscão, mas já está se arrependendo de sua incredulidade.
NOSSO SENHOR – O que achas, Miséria?
MISÉRIA – Então o Senhor quer me conceder tudo o que eu
pedir?
SÃO PEDRO – Devagar! Três coisas no más te ofereceu Nosso
Senhor.
MISÉRIA – Três coisas? Olha só!
NOSSO SENHOR – Vai pedindo.
SÃO PEDRO – Mas pensa direitinho o que vais dizer.
PERALTONA – Pede dinheiro pra melhorar nossa situação,
Miséria. De repente, te dão alguma coisa, não seja zonzo.
MISÉRIA – Sai daqui, irmã, que isto não é assunto teu!
(Afugenta-a.).
PERALTONA – Pede dinheiro!
MISÉRIA – Não me tira do sério, mulher, porque vou te sacudir
o rebenque até te moer os ossos. (Peraltona esconde-se.
Miséria retorna à sua posição habitual, junto à forqueta.).
SÃO PEDRO – Te apressa homem: não faças a Divina
Majestade esperar tanto. (Encosta-se na forqueta.).
NOSSO SENHOR – Deixa ele pensar.
MISÉRIA – Bueno! A primeira coisa que vou pedir é...
SÃO PEDRO – Olha bem o que vais dizer: não vem com
bobagem. (Em atitude de subir na forqueta.).
MISÉRIA – Quero pedir que quem subir nesta forqueta não
possa descer até que eu mande. (São Pedro afasta-se da
árvore, rapidamente.).
NOSSO SENHOR – Concedido.
PERALTONA (Espiando) – Mas é bobo o meu irmão! Pede
dinheiro, Miséria!
MISÉRIA – Se não fores embora agora, peço que caiam todos
os teus dentes e todos os teus cabelos, até ficares careca como
a Morte!
PERALTONA – Cruz, credo! (Sai.).
SÃO PEDRO – Pensa o que vais dizer. Olha que se pedes
alguma coisa ruim, te perdes, porque aquilo que Deus concede,
tem que ser cumprido.
MISÉRIA – Fica calado velho, que não me deixas pensar. (Ao
Nosso Senhor.) Posso continuar?
NOSSO SENHOR – Pode.
SÃO PEDRO – Este gaúcho tá maluco! Com certeza vai pedir
outra bobagem!
NOSSO SENHOR – Deixa ele pensar.
SÃO PEDRO (Estourando) – Pede o Paraíso: não seja zonzo!
Pede o Paraíso!
MISÉRIA – Te cala! A segunda coisa que peço é ganhar no jogo
sempre que eu quiser.
SÃO PEDRO – Mas o homem era jogador, então?
NOSSO SENHOR – Assim seja: como pediste. Agora só resta
uma graça. Pensa bem o que vais dizer.
SÃO PEDRO – Pede o Paraíso! Velho cabeça-dura: pede o
Paraíso!
MISÉRIA – Cala a boca, velho idiota! E ouça bem, Nosso
Senhor, que vou fazer meu último pedido. Quero mais meia hora
de prazo quando a Morte vier me buscar.
SÃO PEDRO – Pra quê? Pra que pedir isso?
MISÉRIA – Pra tomar um trago, que nessa hora vou precisar.
NOSSO SENHOR – Se essa é tua vontade...
SÃO PEDRO – Mas Nosso Senhor: não tá vendo que este
homem tá louco? Bêbado ou louco!
MISÉRIA – Não me arrependo daquilo que pedi! O que foi dito,
dito está!
NOSSO SENHOR – Concedido, então!
SÃO PEDRO – Uma horinha! Bêbado! Bêbado até o bigode!
NOSSO SENHOR – Não pediste o Paraíso: agora vais ter que
conquistá-lo. E, como teste: vamos deixar-te este saco cheio de
moedas de ouro.
CENA 4 – MISÉRIA E SEUS VIZINHOS
PERALTONA – O que aconteceu?
MISÉRIA – Foram embora.
PERALTONA – E esse saco?
MISÉRIA – Não sei. Caiu lá de cima. Dinheiro parece...
PERALTONA – Bem que eu desconfiava que esses
estrangeiros tinham alguma coisa milagreira.
MISÉRIA – Não disse que ele era Nosso Senhor acompanhado
pelo São Pedro?
PERALTONA – Mas tu não acreditaste.
MISÉRIA – Eu nem acreditei nem deixei de acreditar.
PERALTONA – Então, pra quê pediste tanta besteira?
MISÉRIA – Não é besteira, irmã. São coisas que não entendes.
PERALTONA – Pelo menos te deixaram este monte de
dinheiro! Vamos contar as moedas!
MISÉRIA – Deixa disso: não é teu! Ouça vizinha: venha ver! Sou
rico! Dona Jesusa: sou milionário!
PERALTONA – Cala-te louco! Que as pessoas não fiquem
sabendo! Olha que eles vêm esmolar! Esconde o saco! (Os
vizinhos aproximam-se.).
COMPADRE I – Te felicito, compadre. Então a fortuna caiu do
céu?
COMPADRE II – Foi no jogo?
JESUSA – Ganhou na loteria, né?
MISÉRIA (Se gabando) – Sorte que a gente tem, no más.
OUTRO COMPADRE – Dizem que recebeu uma herança.
JESUSA – Uma herança? Quem morreu?
MISÉRIA – Ninguém morreu Dona Jesusa.
COMPADRE I – Lembre-se, compadre, que eu já tinha lhe
pedido para pagar essa dívida eu tá me matando.
COMPADRE II – Se me ajudasse a pagar o aluguel, vizinho...
COMPADRE III – Lembre-se do teto da minha casa...
JESUSA – Lembre-se que fiquei viúva e não posso sustentar
meus sete filhos.
COMPADRE I - Não se esqueça de mim, compadre.
(Encurralam Miséria.).
MISÉRIA – Não empurrem que tem pra todo mundo.
COMPADRE III – A gente podia tomar um trago pra comemorar.
Que acha?
MISÉRIA – Boa idéia! Irmã: vai comprar um barril de vinho pra
comemorar com os vizinhos.
PERALTONA – Um momento! Antes de jogar fora todo esse
dinheiro, tira algum proveito dele. A única coisa sensata que
pediste foi a virtude de ganhar no jogo. Pensa um pouco, irmão,
aposta bem alto e se a graça se cumpre, vai ter pra todos e
ainda vai sobrar.
COMPADRE I – E se ele perde?
COMPADRE II – Quem não aposta não ganha.
MISÉRIA – Pela primeira vez falaste certo, irmã. Vamos ver
quem segura esse gaúcho!
TODOS – Viva! (Começa o fandango.).
CENA 5 – O MAGNATA
MISÉRIA – E foram para a vila, e Miséria começou a jogar aos
poucos. Ganhava aqui, ganhava lá. O homem não acreditava,
mas apostava e ganhava. Assim, ele foi juntando confiança e
suas apostas foram crescendo e chegou a desafiar os homens
mais ricos do pago.
PERALTONA – Cuida o dinheiro, Miséria. Quanto ganhaste?
MISÉRIA – Me deixa em paz, irmã.
PERALTONA – Te cuida dos ladrões... Tem muito semvergonha por aqui... (Entra o Magnata, um gaúcho rico e
grandalhão. Usa máscara.).
MAGNATA – Vão apostando, no más!
MISÉRIA – Eu vou dez mil patacões!
MAGNATA – Quem disse isso?
MISÉRIA – Eu, patrão.
MAGNATA – Quem é esse gaúcho miserável com ares de galo?
COMPADRE I – É o crioulo Miséria, patrão!
MAGNATA – Então queres jogar? Mostra o dinheiro! Aqui
jogamos aberto!
MISÉRIA – Aqui está!
MAGNATA – Tá bueno, o crioulo!
PERALTONA (Muito nervosa) – Não jogues tanto, Miséria!
Prudência!
MAGNATA – Que sejam vinte mil.
MISÉRIA – Que sejam cem mil.
PERALTONA – Cuidado, Miséria, se por acaso perdes...
MISÉRIA – Que perder coisa nenhuma! Sinto a sorte aqui, na
ponta dos dedos.
MAGNATA – Pago!
COMPADRE I – Eu saio.
COMPADRE II – Eu também. (Jogam o osso. Joga Miséria.).
CORO – Sorte: ganhou o Miséria!
MAGNATA – Como?
MISÉRIA – Se retira?
MAGNATA – Venha o osso. Vou jogar o resto.
MISÉRIA – E onde está o resto?
MAGNATA – Como “onde está o resto?”, gaúcho atrevido? Aqui
está o resto. Jogo tudo. (Tira o cinto com medalhas e começa
a tirar a roupa.).
MISÉRIA – Pare, pare, pare!... (Joga o Magnata, depois de
todo um ritual.).
PERALTONA – Sorte, no más!
MAGNATA – Não pode ser!
CORO – Ganhou o Miséria! Viva Miséria! (Música. Baile.).
MISÉRIA – Será verdade o que me disseram aqueles dois?
(Narrando.) Aos poucos ele foi se convencendo da dádiva que o
céu tinha lhe concedido. Continuou jogando e ganhando até
fazer uma fortuna tão grande, que nem sabia o que fazer com
ela. Muitos andavam atrás de sua fortuna e, entre eles, o
Governador, que estava cheio de dívidas e sem crédito. Porque
já não tinha um homem rico em Terra Santa. Todos eles tinham
perdido seu dinheiro para Miséria, no jogo.
CENA 6 – O GOVERNADOR
PERALTONA – Miséria! Miséria! (Entrando.).
MISÉRIA – Vem, irmã! Vamos para o rancho comer um
churrasco com os vizinhos, para comemorar a boa sorte!
PERALTONA – Vem cá! Aonde vai Miséria, gaúcho infeliz? Não
sejas louco! Aqui vem o Governador em pessoa te propor
alguma coisa. Não vais desprezar ele!
MISÉRIA – Está bem, irmã. Não se deve desprezar ninguém.
Mas, o que quer conosco Vossa Excelência, o Governador?
PERALTONA – Já vais ver. Mas vai trocar essa roupa e te lavar
um pouco, que agora tu és um gaúcho rico.
MISÉRIA – O que tem esta roupa de errado?
PERALTONA – Pareces um mendigo, todo esfarrapado. O que
vai dizer Vossa Excelência?
MISÉRIA – Por mim, ele que diga o que quiser!
PERALTONA – Psiu! Te cala que ele vem aí! (Entra o
Governador. Usa máscara. Dois capangas armados
precedem-no.).
GOVERNADOR – Me abrace: cunhado!
MISÉRIA – Cunhado?
GOVERNADOR – Por que não?
MISÉRIA – Quer casar com esta aqui?
GOVERNADOR – Se o chefe da família não se opõe, tenho a
honra de pedir esta branca mão.
MISÉRIA – Mas, Vossa Excelência: ficou louco? Não pode ser!
PERALTONA – Como não pode ser?
MISÉRIA – Imagine se Vossa Excelência, o Governador, vai
querer casar com a Pobreza!
PERALTONA – Pobreza é a mãe! Somos ricos: te esqueceu? E
eu já expliquei a Vossa Excelência que se não tem casório não
tem trato. Porque tu não vais emprestar o dinheiro a um
estranho, não é?
MISÉRIA – Então este quer que eu lhe empreste dinheiro?
(Desconfiado.).
PERALTONA – Faz isso por mim! Não seja cabeça-dura,
Peraltinha! Bueno: agora vou deixar vocês...
GOVERNADOR – Venha cá, cunhado... Temos que prosear um
pouco, nós dois! Então o senhor vai jogar todo esse dinheiro,
sem pensar na necessidade dos pobres necessitados? Valha a
redundância...
MISÉRIA – Mas olhe Vossa Excelência, eu prometi esse
dinheiro à gente muito necessitada, como a minha comadre,
Dona Jesusa, que ficou viúva com sete filhos...
GOVERNADOR – O que vai conseguir é arrastar essa pobre
mãe à corrupção e ao vício. O que vai fazer essa gente que está
lhe esperando aí fora, pronta para lhe tirar até o último tostão?
Sabe o que eles farão se lhes der o dinheiro? Vão se
embebedar; deixarão de trabalhar e vão se afundar na mais
negra miséria, com o seu perdão. Não cunhado: o senhor não
pode fazer isso! Deixe esse dinheirinho comigo e pode estar
certo que haverá felicidade para todos! Haverá pontes de prata
e caminhos em descida, pra que ninguém se canse; e trabalho
fácil para todos; e escolas com muitos recreios para os guris e
comida sobrando; e não vai ter nem pobres, nem velhos, nem
doentes. Todos serão felizes! Porque é preciso saber
administrar o dinheiro, viu? Pode confiar em mim, que eu estou
aqui para cuidar da felicidade de todos! O que me diz?
MISÉRIA – Tá bom, cunhado. Me convenceu, e a verdade é que
tira um peso de mim. Porque estou um pouco cansado desta
vida de rico, com tanta cerimônia e complicação à toa.
GOVERNADOR (Solene, enquanto os capangas juntam o
dinheiro) – Este é um momento histórico, cunhado! Saiba que
eu saberei suportar o peso desta fortuna! E vou me sacrificar,
sim senhor! Não dormirei se for preciso! Porque é pra isso que a
gente tá aqui! O dever é o dever! Aperte aqui essa mão!
MISÉRIA – A verdade é que Miséria tinha achado seu cunhado
simpático: homem bajulador, de muitas artes, quando se tratava
de prosear bonito. Além do mais, assim o ferreiro matava dois
pássaros de uma cajadada só: se livrava dos pedinchões e da
irmã, a Peraltona, de quem já estava farto, por causa de seus
trejeitos e ares de nova-rica. Vocês vão dizer que ninguém
despreza uma fortuna com tanta facilidade. Mas o crioulo
Peralta era assim: gostava da vida simples, tranqüila, do trago,
da jogatina, e, principalmente, da sua liberdade. (Aproximamse os vizinhos, vagarosamente.).
CENA 7 – OS VIZINHOS
COMPADRE I – Então, Miséria: onde está o dinheiro? Já te
esqueceste dos amigos?
COMPADRE II – O que fez com o dinheiro, compadre?
JESUSA – Então, já não pensa em ajudar seus vizinhos? Muito
cacarejar, mas quando chega a hora, ele nem nos conhece.
COMPADRE III – Foi promessa...
JESUSA – Não se preocupe vizinho: agora ele é muito amigo do
Governador, já não quer saber nada de nós.
MISÉRIA – Não se preocupem que já está tudo arranjado.
JESUSA – Mas o senhor não cumpriu Miséria! Pra que
prometeu?
MISÉRIA – Cumpri! Agora sou pobre de novo. Dei todo o
dinheiro para Vossa Excelência, o Governador, pra que ele
ajude os pobres. Podem ir pras suas casas, que já não haverá
mais pobreza. E eu vou sestear um pouco, que me faz muita
falta.
CENA 8 – A GOVERNADORA
LACAIO – Passagem para a Governadora! Fora do caminho!
(Os lacaios empurram as pessoas. Entra Peraltona, com
peruca, máscara e roupas de Governadora, em uma liteira.).
PERALTONA – Maruchenga! Abre o guarda-sol que faz sol! Ai,
que calor! Maruchenga: me abana um pouco que estou
sufocando!
MISÉRIA – Mas é minha irmã Pobreza. Quem diria? Pobreza:
sou eu, teu irmão Miséria!
PERALTONA – Quem te conhece, gaúcho infeliz? Eu sou
Vossa Excelência, a Governadora! Não falo com gaúchos
esfarrapados! Vamos, vamos: sempre distraído, tu! (Bate no
lacaio.) Maruchenga: limpa a bainha do vestido, que sujou!
LACAIO – Passagem para a Governadora!
MISÉRIA – Que Governadora, coisa nenhuma! É minha irmã
Pobreza, mais conhecida como a Peraltona! Era velha e pobre:
agora acha que é uma rainha! Acho que está gastando todo o
dinheiro que dei a Vossa Excelência, para que desse aos
pobres.
PERALTONA – Te afasta: gaúcho safado! Não quero pegar
piolhos!
MISÉRIA – Então me enganaste para casar com o Governador?
Vocês dois vão pagar por essa!
PERALTONA – Estás me ameaçando?
MISÉRIA (Fazendo uma reverência hipócrita) – Não, senhora!
Que esperança! Uma esmola pra este pobre velho, por caridade!
PERALTONA – Maruchenga: o saco das esmolas! (Para
Miséria.) Toma: e cuida bem! Maruchenga: arruma a cauda do
vestido e põe um pouco de perfume, que isso aqui tá fedendo a
pobre!
CENA 9 – OUTRO JOGO
Vê-se um grupo de paisanos agachados, jogando baralho, à
meia-luz, num canto.
MISÉRIA – Miséria pegou a moeda e pensou: “com esta moeda
para apostar, tenho minha fortuna feita de novo”. Aí, no más, ele
foi e entrou num jogo. Aquilo foi uma debandada. Ninguém
queria jogar com ele. “Tem trato com Mandinga”, diziam para
ele. “Nunca perde, parece coisa do Diabo”, diziam, porque tinha
se espalhado a notícia de sua boa sorte e ninguém queria
arriscar. A verdade é que ele tinha abusado do poder que Nosso
Senhor tinha lhe dado, e nunca se deve abusar de um poder,
porque, cedo ou tarde, se paga.
JOGADOR I – Alto aí: é o paisano Peralta?
MISÉRIA – O próprio.
JOGADOR I – Eu não jogo com quem tem trato com Mandinga.
MISÉRIA – Mentira!
JOGADOR II – Eu vou embora.
JOGADOR III – Parece coisa do Diabo.
MISÉRIA – É que já não tem mais guapos nesta terra? Ninguém
se atreve a me enfrentar?
CENA 10 – O FULEIRO
Entra um paisano de bombacha e aparência esfarrapada.
FULEIRO – Quem disse que não têm guapos?
MISÉRIA – Aqui estou lhe esperando.
FULEIRO – Baralho ou dado?
MISÉRIA – O que quiser.
FULEIRO – Vamos com os dados, então.
JOGADOR I (Para Miséria) – Te cuida que esse não joga limpo.
FULEIRO – Se desconfia, ponha o amigo a ferramenta.
MISÉRIA – Não: mostre primeiro a bijuja.
FULEIRO – Vou dez mil.
MISÉRIA – Pago.
JOGADOR I (Para Miséria) – Cuidado com os dados! (Jogam.)
Tirou quatro.
MISÉRIA – Jogue de novo, compadre. (Volta a jogar o
Fuleiro.).
JOGADOR I – Sete: ganhou Peralta!
JOGADOR II – Viva Miséria!
FULEIRO – Não é possível: trocou os dados!
JOGADOR I – Então os teus estavam carregados?
FULEIRO – Os dele! Ele trapaceou: não pode ser!
MISÉRIA – Perdeu paisano! Jogo é jogo: pague!
FULEIRO – Eu não pago coisa nenhuma! Foi trapaça, mutreta,
e quem trapaceia comigo, paga com a vida. (Tira uma faca e
ataca Miséria. Debandada geral. Miséria cai ferido. Arrastase até a forqueta e aí espera a Morte.).
CENA 11 - A MORTE
Aparece a Morte: figura alta, curvada, esfarrapada, envolta
em girões de sombra. Máscara de caveira. Apóia-se numa
gadanha, que afia com a chaira. Avança com passos
desconjuntados. Sua voz, oca, destemperada, parece surgir
de abismos, onde sopra um vento gelado.
MORTE – Chegou a tua hora, Miséria!
MISÉRIA – Não se cumprimenta mais?
MORTE – Como estás?
MISÉRIA – Como é que vou estar? Segurando as tripas.
MORTE – É um prazer te ver.
MISÉRIA – Não posso dizer a mesma coisa.
MORTE – Venho te buscar.
MISÉRIA – Espera um pouco. Me dá a horinha de vida que me
deves.
MORTE – Pra que uma horinha de vida, se já estás
praticamente defunto?
MISÉRIA – Tenho que tomar um trago com meu compadre: a
saideira.
MORTE – Está bem: levanta!
MISÉRIA – Me espera aqui. Sobe na forqueta e vais ver o que
se enxerga dessa altura.
MORTE – O que é?
MISÉRIA – Se eu te disser, não vai ter graça. Vai subindo no
más: que vai valer a pena. (A Morte sobe na forqueta.) Aí vais
ficar até que eu quiser.
MORTE – O quê?
MISÉRIA – Nada. Falo sozinho às vezes.
MORTE – Podes me dizer o que se enxerga daqui? Puro campo
pelado e uma ou outra tapera...
MISÉRIA – Não gostas? Pois vais ter que ficar um bom tempo
nessa forqueta.
MORTE – Que? O que aconteceu? Me deixa descer! Me
enfeitiçaram! Socorro!
MISÉRIA – Te cala, Morte, que não vai adiantar nada!
(Narrando.) A mortiça guinchou, esperneou, ameaçou, suplicou,
até que, de tão cansada, foi ficando calada. Mas a notícia se
espalhou.
CENA 12 – A MORTE NA FORQUETA
COMPADRE I – Buenas!
JESUSA – Licença!
VIZINHA I – Onde está?
COMPADRE I – Viemos para ver a Morte.
MISÉRIA – Aí está: mas não alvorotem ela, que é muito
barulhenta!
JESUSA – Olhem: olhem só! Sabe: compadre Miséria, que eu
estava no velório do meu vizinho Fagundes, quando chegou um
chasque com a notícia? “Morreu a Morte”, gritou! E todos saíram
em disparada para comemorar, deixando o finado sozinho, que
disse: “se a Morte morreu, pra que vou continuar esperando?
Vou me levantar”. E levantou, no más.
MISÉRIA – Isso não é verdade.
JESUSA – Como não é verdade, se quem tá lhe contando sou
eu?
MISÉRIA – É que a Morte não morreu: lhe digo. Aí está: na
forqueta. Mas posso fazê-la descer.
COMPADRE I – Cuidado!
MISÉRIA – Não se preocupem; que está bem presa.
JESUSA – Lhe contei o que aconteceu, compadre. Mas olhe: aí
vem o Finado e veja só que boa aparência ele tem.
FINADO – Onde está a Ossuda, que queria me levar com ela
pro outro mundo?
COMPADRE I – Aí está!
FINADO – Vem me buscar! Aposto que não me levas!
COMPADRE II – Te fode, Morte!
MISÉRIA – Não a desrespeite que a Morte é coisa séria!
JESUSA – E a quem ela respeitava? Nem aos anjinhos!
COMPADRE I – Morra a Esquelética!
COMPADRE II – Morre Morte!
MISÉRIA – Já alvorotaram ela!
MORTE – Fora daqui, insolentes! Quero descer! Socorro!
Mandinga!
MISÉRIA – Fora daqui todos! Fora! (Acalma a Morte.
Narrando.) Mas, enquanto os pobres comemoravam, alguns
começaram a notar que as coisas não andavam bem. Tinha
tente demais, ninguém morria, ninguém tinha medo. E os que
sempre levam vantagem começaram a ficar preocupados.
CENA 13 – AFLIÇÃO NO PALÁCIO
ADVOGADO – Isto é um desastre, Vossa Excelência! Já não
morre ninguém!
GOVERNADOR – E daí?
ADVOGADO – É que os herdeiros andam desesperados, já
contávamos com várias heranças... e nada!
GOVERNADOR – Não se queixe, advogado! Quanto mais
vivente, mais litígios vão ter!
MATA-SÃO – Pior é o caso de nossa profissão, Vossa
Excelência!
GOVERNADOR – E qual é a sua profissão, amigo?
MATA-SÃO – A mais importante: a Medicina.
GOVERNADOR – E do que se queixa? Já não pode mais matar
sãos.
MATA-SÃO – No começo, ganhei prestígio porque não morria
mais ninguém: nem os desenganados. Depois, os doentes se
deram conta, captaram a situação, e agora riem da minha cara.
É uma falta de respeito à ciência!
PAPA-DEFUNTOS – E o que me diz de nós, os empresários de
Pompas Fúnebres? Para nós é um verdadeiro desastre.
ADVOGADO – É uma catástrofe coletiva, senhores! Uma
comoção pública! Se não tomarmos alguma medida agora, logo
seremos tantos sobre a Terra, que não haverá comida
suficiente, nem lugar, nem respeito, Vossa Excelência!
GOVERNADOR – Boto todo o mundo num curral e vamos ver
se respeitam ou não respeitam!
ADVOGADO – Mas não pode fazer isso!
GOVERNADOR – Como não? Pra que é que estou eu, afinal?
ADVOGADO – São muitos, Vossa Excelência: e não obedecem!
GOVERNADOR – Não obedecem? Mando fuzilar!
ADVOGADO – Mas é que eles não morrem!
GOVERNADOR – Como?
MATA-SÃO – Não morrem: é uma tragédia!
PAPA-DEFUNTOS – Uma tragédia!
GOVERNADOR – De verdade? Isso é grave!
ADVOGADO – A culpa é desse paisano Miséria, que tem a
Morte presa numa forqueta.
GOVERNADOR – Ah, não se preocupem: eu conserto isso fácil!
Peraltona! Podem ir preparando os enterros, no más! (Saem.)
Peraltona!
PERALTONA – Maruchenga! Meu marido me chama. Vai ver o
que ele quer?
GOVERNADOR – Quero falar contigo, caramba!
PERALTONA – Aqui estou. Não era preciso gritar tanto. E não
me chame de Peraltona. Eu não gosto.
GOVERNADOR – Me informaram que teu irmão Miséria tem a
Morte presa numa forqueta: não deixa que ela cumpra suas
funções.
MORTE – É verdade!
PERALTONA – O coitado é biruta, sempre foi. Pra que ele quer
a Morte na forqueta?
GOVERNADOR – Vais vê-lo já e não voltes sem a Ossuda!
PERALTONA – Eu sou a Governadora! Não posso me rebaixar
a ponto de falar com esse gaúcho piolhento!
GOVERNADOR – Que Governadora coisa nenhuma! Já estou
cansado de tanto melindre e tanta pretensão! Faz o que eu
mando e basta!
PERALTONA – Mas eu sou tua mulher legítima: não podes me
tratar como se eu fosse uma qualquer!
GOVERNADOR – Se tu não prestas nem para me trazer a
Morte, vou me divorciar, que, caramba! (Peraltona ri.) Ah, não
acreditas? Advogado! Traga essa lei de divórcio, que vou
aprovar agorinha mesmo!
ADVOGADO – Às suas ordens, Vossa Excelência!
GOVERNADOR – E tu: vai logo falar como teu irmão!
PERALTONA – Tu sabes que ele é muito bruto! Fico toda
arrepiada só de pensar em voltar àquele rancho.
GOVERNADOR – Então é lá que vais ficar se não me trouxerem
a Morte, para que cumpra suas funções! Sem ela, não há
governo, que, caramba! Vai lá: te digo! E já sabes: não voltes
sem a Ossuda!
PERALTONA – Maruchenga: traz o guarda-sol, que vou sair.
CENA 14 – O RETORNO DE POBREZA
Sai o Governador. Peraltona dirige-se à árvore de Miséria.
PERALTONA (Para Maruchenga) – Tu me esperas aqui fora.
(Maruchenga sai com ar divagante. Peraltona enfrenta-se
com a Morte.) Então esta é a Ossuda? Ela é feia mesmo!
MISÉRIA – Está um pouco estropiada, a coitada...
PERALTONA – Olha irmão: por mim podias ficar com ela pra
sempre, se gostas dela...
MISÉRIA – Que gostar coisa nenhuma!
PERALTONA – Bueno: então por que não soltar ela? Venho te
pedir para soltar ela. O superior governo está interessado nela e
por alguma razão será... (Transição. Perante a negativa de
Miséria, decide suplicar.) Não sejas assim, Miséria. Solta ela,
vai! Deixa ela descer da forqueta só um pouquinho! Sem a
Morte, eu não posso voltar ao Palácio!
MORTE – Não sejas desalmado, Peralta! Pensa na tua pobre
irmã!
PERALTONA – Isso! Pensa um pouco na tua irmã que te criou
como uma mãe!
MISÉRIA – Então agora me conheces, fajuta? Então agora não
é a Governadora que desprezava esse gaúcho infeliz?
PERALTONA – Não sejas bobo, não digas asneira! O que custa
soltar ela só um pouquinho?
MISÉRIA – O que custa? A vida: nem mais nem menos! Essa
maldita quer me levar com ela. Sabe quando vou soltar ela?
Nunca!
PERALTONA (Falando com a Morte) – E tu, o que fazes aí,
abichada, como ninho de aranha? Vou tirar isso para ver melhor
teu rosto. (Com o guarda-sol tira as teias de aranha.) Puxa,
que tu juntou porcaria! Mas, colabora um pouco, né? Como é
que não podes descer daí? Faz um pouco de força!
MORTE (Desfalecendo) – É que não posso mais!
PERALTONA – Claro que podes! Falta força de vontade! Se de
verdade fores a Morte, tens que poder, ou não me chamo
Eduviges Peralta, que, caramba!
MISÉRIA – Peraltona...
PERALTONA (Para Miséria) – Te cala, tu. (Para a Morte.) Me
dá a mão, digo, os ossos, que vou te ajudar.
MORTE – Não consigo me mexer! Tenho câimbra no corpo
todo!
PERALTONA – Mas tu estás uma verdadeira calamidade!
MISÉRIA – Te cuida... Olha que esta, quando pega, não solta
mais.
PERALTONA (Afastando-se assustada) – Puxa! (Arruma o
penteado.) Maruchenga!
MARUCHENGA (Entrando) – Chamou?
PERALTONA – Que estás dizendo?
MARUCHENGA – Chamou Vossa Excelência?
PERALTONA – Assim está melhor. Que estavas fazendo, tu?
Sempre bobeando por aí!
MARUCHENGA – Vossa Excelência me disse que era pra
esperar lá fora!
PERALTONA – Não retruques! (Bate nela.) Vem pra cá: dá
uma mão à Ossuda, pra ela descer da forqueta!
MARUCHENGA – Quem?
PERALTONA – À Ossuda! À Ossuda!
MARUCHENGA (Sem entender) – A quem?
MORTE – A mim! (Maruchenga a vê; dá um grito, e sai
correndo.).
PERALTONA – Não sejas covarde! Vem cá! Me espera! (Para
Miséria.) Tu ainda vais pagar! Todo o mundo vai ficar sabendo
que seqüestrastes a Morte. (Sai.) Maruchenga!...
MISÉRIA – A Peraltona não pôde voltar ao Palácio, e também
não quis ficar no rancho. Andava pelos caminhos, cada vez mais
pobre e esfarrapada, espalhando o boato de que seu irmão tinha
a Morte presa na forqueta. (Passa a Peraltona mancando,
com a peruca torta e a roupa em girões. É cercada pelo
Coro de Pobres, ao som de uma música dissonante, que vai
passando um murmúrio de boca em boca. Numa sacada,
sobre o palco, São Pedro e Nosso Senhor tomam
chimarrão.) A notícia chegou até o Paraíso, onde estava São
Pedro proseando com Nosso Senhor.
CENA 15 – NO PARAÍSO
SÃO PEDRO – Isto não pode ser! Nem uma alminha aparece
por estes pagos! É a desocupêz mais triste! Veja Nosso
Senhor... Isto não pode continuar assim.
NOSSO SENHOR – O que propões tu, São Pedro?
SÃO PEDRO – Olhe Nosso Senhor: eu lhe servi a vida inteira
com todo gosto, mas aqui lhe entrego a minha demissão. Já não
posso agüentar isso. Me coloque em outro ofício, no qual eu
possa fazer alguma coisa, porque a Portaria do Céu é um tédio.
NOSSO SENHOR – Então o nosso amigo Miséria tem a Morte
presa na forqueta? É um problema sério, São Pedro.
MORTE – É uma calamidade!
SÃO PEDRO – Nosso Senhor pode resolver a situação. Ou
senão pode falar com seu Pai, que é Deus Todo-Poderoso, e
Ele saberá...
NOSSO SENHOR – Espera um pouco: quem está vindo aí?
SÃO PEDRO – Será uma alminha? Mas cheira mal. Este tem
um cheiro a enxofre que eu garanto: não pode vir para o céu!
LILITH – Buenas! (É um malandro de óculos escuros e terno
vermelho.).
SÃO PEDRO – Cruz, credo! O que faz o cavalheiro Lilith por
estes pagos?
LILITH – Mandou-me Satanás, para averiguar o que se passa
por aqui. Lá embaixo estão todos os diabos irritados, porque não
chega nem uma alminha para torturar. É que agora todo mundo
está se salvando? Não pode ser!
SÃO PEDRO – Salvação coisa nenhuma! Isto aqui está se
acabando. Estávamos pensando em fechar as portas e declarar
a falência do Paraíso!
LILITH – Olha só: e lá diziam que os pecadores estavam se
infiltrando no céu, de contrabando!
SÃO PEDRO – Aqui não entra ninguém de contrabando!
LILITH – E aí, o que pensam fazer? Isto já está ficando demais!
Por que não falas com Ele (assinala Nosso Senhor.), que eu
não me dou?
SÃO PEDRO – É precisamente o que eu estava fazendo. O que
vamos fazer Nosso Senhor? Não podemos ficar assim, de
braços cruzados.
NOSSO SENHOR – Eu não posso desfazer meu pacto com
Miséria. O dito, dito está: e nem Deus pode mudar isso.
LILITH (À parte) – Imagina se não pode!
SÃO PEDRO – Um milagrezinho! O que custa: Nosso Senhor?
Um milagrezinho pequenino e tiramos a Morte da forqueta!
MORTE – Isso: um milagrezinho pra me tirar deste desconforto!
NOSSO SENHOR – A lei é a lei, e nem Deus pode violá-la. Mas,
podemos tentar convencer Miséria. Vai tu, São Pedro, e fala
com ele.
SÃO PEDRO – Eu? Não, Mestre: por que não manda o São
João, que nunca faz nada, e vive enchendo por aí?
NOSSO SENHOR – Vai tu, digo! O homem é racional e vai
entender.
SÃO PEDRO – Muito bem, Nosso Senhor, se é assim que
deseja... Ah, estava esquecendo: as chaves! O Senhor fecha!
(Entrega o chaveiro a Nosso Senhor e começa a descer.).
LILITH – Lhe acompanho colega!
SÃO PEDRO – Colega é a mãe!
LILITH – Não te faz de delicado, que eu posso te ajudar a sair
desta encrenca. Vamos ter que agir com diplomacia. Savoir
faire, dizem.
SÃO PEDRO – Saber o quê?
MISÉRIA – E aí se foram os dois, São Pedro e o Cavalheiro
Lilith, enviado de Satanás, para parlamentar com Miséria.
CENA 16 – A TENTAÇÃO DE MISÉRIA
MISÉRIA – Então vocês querem que eu solte a Morte? Não
posso!
SÃO PEDRO – Se soltares ela, te ofereço o Paraíso! Não podes
perder!
MISÉRIA – Tudo bem, mas tenho que ir com ela.
SÃO PEDRO – Pois é: é a lei... A Ossuda é feiosa, mas... Não
olhes pra cara dela! Pensa no Paraíso!
MISÉRIA – Desculpe, mas não posso! Tenho que cobrar uma
dívida de jogo. Não posso lhe soltar a Morte.
SÃO PEDRO – Como que não podes: gaúcho atrevido? Eu vou
te ensinar um pouco de respeito à lei divina. Me segure,
compadre, digo cavalheiro Lilith, filho de Mandinga: me segure
porque senão vou esquartejar esse crioulo. Onde se escondeu
esse gaúcho sem-vergonha, que não estou vendo ele?
LILITH – Tranqüilo: velho! Não se ofusque nem perca as
estribeiras!
SÃO PEDRO – É que é preciso uma paciência de santo!
LILITH – E a categoria de um diabo! Deixa comigo: veja amigo
Miséria...
MISÉRIA – Amigo? Nem lhe conheço. E tá cheirando mal!
LILITH (Perfumando-se) – Sou o Cavalheiro Lilith, filho de
Mandinga, enviado de Satanás.
MISÉRIA – Não diga?
LILITH – Sou o diabo mais famoso que já pisou Terra Santa.
MORTE – Como estás? (Dá a mão ao cavalheiro Lilith, desde
a forqueta.).
LILITH – Como estás? (Para Miséria.) Onde estávamos? Ah,
venho lhe fazer uma oferta, paisano. O amigo larga a Ossuda...
MISÉRIA (Interrompendo) – Não lhe disse que não posso? Se
largar ela, tô frito. Ela quer me levar pro outro mundo.
MORTE – Que mais queres? Isso aqui não é vida mesmo! Ai,
meus ossos!
LILITH – Pois eu posso lhe oferecer um contrato em regra,
assinado com sangue e tudo, que lhe assegure mais vinte anos
de boa vida, juventude, fama de guapo, money!
MISÉRIA – O quê?
LILITH – Gaita, tutu, bijuja, capim. Grana! A única coisa que
interessa na vida, paisano!
MORTE – Aproveita Miséria! Não percas a oportunidade!
LILITH – O que me dizes?
SÃO PEDRO – Não faças isso!
LILITH – Qual é a tua? Como é? É boicote, agora?
SÃO PEDRO – Eu sinto muito, mas não posso ficar calado. É o
Diabo, Miséria: é o Diabo que está te tentando!
MISÉRIA – O Diabo em pessoa? Olha só: com essa pinta?
LILITH – O quê? Não acreditas que eu sou enviado de
Satanás?
MISÉRIA – Nem acredito, nem deixo de acreditar.
LILITH – Então, aceitas?
MORTE – Aceita, Miséria!
MISÉRIA – Te cala, Esquelética! (Olha o Lilith de cima a
baixo.) Que Diabo coisa nenhuma! Tu?
LILITH – Então não acreditas? Olha: olha o que eu posso te dar!
(Com um passe de mágica, aparece uma odalisca.) E o que
achas?
MISÉRIA – Mulher tá sobrando por aí.
MORTE – Este aqui é um atrofiado!
LILITH – Desconfiado, né? (Faz outro gesto, aparece a
segunda odalisca.).
SÃO PEDRO – Isto é uma indecência! Basta de bagunça:
protesto!
LILITH – Te ofereço vinte anos de farra corrida. Que tal?
SÃO PEDRO – Não posso permitir isso! Não te deixes enganar,
Miséria! É o Diabo que está te tentando!
MISÉRIA – O Diabo?
MORTE – Ai!
MISÉRIA – Que se passa?
MORTE – Estou com câimbra.
MISÉRIA – Te agüenta!
LILITH – Então ainda duvidas? Eu sou o amo do fogo. Olha!
(Com um passe de mágica provoca grandes chamas.).
MISÉRIA (Imperturbável) – Isso é mágica.
LILITH – Posso te encher de ouro!
SÃO PEDRO – Não ouça ele, Miséria! Me escuta: ele é o Diabo!
LILITH – É verdade. É ele quem diz, e ele é um santo: não pode
mentir. Eu sou o Diabo!
MISÉRIA – Diabo nada!
LILITH – Vai pra puta que te pariu!
SÃO PEDRO – Não se ofusque compadre!
MORTE – Deixa eu ir com Mandinga, Miséria!
MISÉRIA – Te cala, Morte. (Para a Odalisca I.) Baila, morocha!
SÃO PEDRO – Já se entregou!
LILITH – Alto aí! Assina primeiro. Depois podes dançar vinte
anos corridos.
MISÉRIA – Ai, minhas costas: já não estou para estas lides!
LILITH – Eu posso-te dar juventude, Miséria.
MISÉRIA – Pra me amargar por causa de prendas traidoras?
Não, obrigado: já tive demais disso.
LILITH – Olha... Vamos jogar por ela! Jogar a Morte no truco.
MISÉRIA – Disso eu gosto. Vamos, pela Ossuda!
LILITH – Tu cortas.
SÃO PEDRO (Para Lilith) – Olha que esse aí não pode perder.
Eu sei o que digo...
LILITH – Não te preocupes que eu tenho os meus recursos.
MISÉRIA – Envido.
LILITH – Disse envido?
MISÉRIA – Tá louco? Eu disse envido, no más.
LILITH – Olhe só: e eu tinha achado que ele disse envido!
MISÉRIA – Pois achou errado. Eu disse envido.
LILITH – Mas quantos envidos vão?
MISÉRIA – Envido é tu.
LILITH – Envido e vais pro maço.
MISÉRIA – Falta envido!
LILITH – Não quero.
MISÉRIA – Truco, sem-vergonha, que tu não tens nada!
LILITH – Vai pro inferno! (Atira as cartas.).
SÃO PEDRO – Eu disse que ele não pode perder.
MISÉRIA – Sai daqui, velho chato!
MORTE – Te cuida Lilith! Olha que este é muito matreiro!
LILITH – Eu passo.
MISÉRIA – Nem faz falta: só eu basto neste truco.
LILITH – Quero! E quero ver como vais te arranjar com o
retruco!
MISÉRIA – Quero. Por ser contigo. Pra mim tão sobrando os
vale quatro.
LILITH – O que disseste?
MISÉRIA – Que é vale quatro ou vais pro maço.
LILITH – Não posso! Não tenho jogo, São Pedro!
SÃO PEDRO – Aqui tá fazendo falta um milagrezinho. Um
milagrezinho, Senhor. O que custa? Puxa: tô rezando pro Diabo
ganhar!
MISÉRIA – Vindo de Miraflores / Nas ancas de um zebu / Fiquei
com uma flor na orelha / E um baita calo no...
LILITH – Diga! Diga sem medo, no más.
MISÉRIA (Com ar travesso) – Tenho flor.
LILITH – Contraflor o resto e truco, vagabundo: e que te ajude o
mulo, se for mago!
MISÉRIA – Quem?
LILITH – O mulo!
MISÉRIA – Ah... Quero! Quarenta e quatro! E vai chupar o rabo
do gato!
CENA 17 – A AUTORIDADE
GOVERNADOR (Entrando com dois policiais) – Onde está
esse gaúcho malandro, que tem a Morte na forqueta? (Observa
o ambiente.) Mas, o que está acontecendo por aqui? Quem
autorizou esta zona, jogatina, exploração de menores, (cheira.)
drogas, espetáculo pornográfico? Não dá pra acreditar! Vamos:
levem estas gurias para o Palácio, que eu mesmo vou
interrogar. Que barbaridade! (Prendem São Pedro e Lilith.).
POLICIAL I – O que fazemos com estes dois?
GOVERNADOR – Pela via das dúvidas, estão presos.
SÃO PEDRO – Sou acusado de quê?
LILITH – Ele é o patrão do puteiro.
GOVERNADOR – Jogo ilegal, espetáculo indecente!...
SÃO PEDRO – Sou inocente, protesto! Eu sou São Pedro!
(Risos generalizados. Vão prender Lilith, mas ele imobilizaos com um gesto e passa entre eles.).
LILITH – Com licença. (Faz outro gesto e tornam a se mexer.
Correm atrás dele.).
GOVERNADOR – Peguem este aí antes que fuja! (Para
Miséria.) E agora vamos prosear com este paisano. Vais ter que
soltar a Ossuda, Miséria. Já não é possível viver neste mundo.
Estamos ficando só com os ossos.
MORTE – É verdade, Miséria.
MISÉRIA – Então não é possível viver sem a Morte? Coisa
estranha, né?
GOVERNADOR – Pois é: é assim mesmo! Como querem que
eu governe se ninguém morre?
MORTE – É claro. Tenha um critério e uma conduta, Peralta!
GOVERNADOR – Já não tem lugar na Terra para tanta gente!
Entram até no Palácio do Governo e, como vou mandá-los
embora, se não existe mais respeito? Tens que soltar a Morte,
Miséria!
MORTE – Obedece!
MISÉRIA – Não posso.
GOVERNADOR – Não podes? Agora vais ver: peguem ele! Se
não soltares ela, vou te fuzilar!
MISÉRIA – Fuzile, no más! O que importa, se a Morte não pode
me levar pro outro mundo?
MORTE – Já vais ver quando eu te pegar.
GOVERNADOR – Mas não vais passar bem. Vou te meter bala
e depois te colocar no cepo.
MISÉRIA – Sou capaz de desmaiar com o susto, e aí, não vou
poder soltar a Morte mesmo. Conheço um paisano da minha
terra, que ficou cinco anos, desmaiado.
MORTE – Cinco anos? Aí vou ficar com a forqueta embutida!
GOVERNADOR – Será que não entendes que é pelo bem de
todos?
MISÉRIA – Sinto muito, Vossa Excelência, mas não posso.
GOVERNADOR – Vou mandar te estaquear e vais ver o que é
bom! Sargento: proceda!
MORTE – Isso: bem esticado, que é para ele aprender! Vais ver
agora!
CENA 18 – INTERVENÇÃO DIVINA
NOSSO SENHOR (Entrando) – Que vergonha, São Pedro! Te
mando à Terra, em missão especial e acabo tendo que te
resgatar da cadeia, acusado de cafetinagem, jogo clandestino,
tráfico de drogas, espetáculo indecente!... Como é que tu, na tua
idade, te metes nessa encrenca toda?
SÃO PEDRO – São calúnias, Nosso Senhor. Puras calúnias.
NOSSO SENHOR – Mas tem testemunhas, tchê!
SÃO PEDRO – Não acredite Nosso Senhor! Sou inocente. O
Senhor me conhece faz um tempão. Foi tudo culpa do
Cavalheiro Lilith.
NOSSO SENHOR – Mas olha como está o nosso amigo Miséria!
SÃO PEDRO – Mereceu: por cabeça-dura!
NOSSO SENHOR – A caridade, São Pedro: não esqueça a
caridade cristã!
MORTE – E de mim, quem se lembra?
SENTINELA – Quem está aí?
NOSSO SENHOR – Gente de paz! Continua dormindo no más,
meu filho! (Sentinela dorme.).
SÃO PEDRO – Finalmente um milagre, Mestre! Era o mínimo
que esperava do Senhor!
NOSSO SENHOR – Eu não trapaceio. Dormiu porque estava
cansado. Mas vamos soltar o coitado do Miséria. (Solta Miséria
com gestos milagrosos.).
SÃO PEDRO – Outro! E vão dois!
MISÉRIA – Obrigado, Nosso Senhor! Muito obrigado! (Levantase.).
MORTE – Agora soltam ele! E eu? (Nosso Senhor, com outro
gesto, faz sair os policiais, como sonâmbulos.).
NOSSO SENHOR – Tenho que te pedir um favor, Miséria.
SÃO PEDRO (Vendo sair os policiais) – Desandou a
milagração! Bem feito, Mestre!
NOSSO SENHOR – Solta a Morte da forqueta, para que todos
possam cumprir seu destino.
MORTE – Isso mesmo!
MISÉRIA – Nosso Senhor: eu queria prosear um pouco sobre
esse assunto. Não poderia arranjar as coisas para que vivamos
em paz, sem necessidade da Morte? Tudo seria mais bonito,
não acha?
MORTE – Cruz, credo! Herege!
NOSSO SENHOR – Não é possível, Miséria. O meu reino não é
deste mundo.
MISÉRIA – Não entendo...
SÃO PEDRO – Mesmo que não entendas – animal - tens que
ter respeito e gratidão pela bondade divina! Pra que ter a Morte
prisioneira, se as pessoas vivem mal e este mundo parece um
inferno?
MORTE – Isso! Pra que me deixar na forqueta? (Entra o Coro
do começo, com máscaras de morte e movimentos
desfalecentes.).
CORO – É, Miséria, já não podemos mais.
MISÉRIA – Vocês querem morrer?
CORO – Alguém tem que morrer! Já não se agüenta mais essa
vida!
MISÉRIA – De verdade vocês querem que eu solte a Morte?
MORTE – E ele ainda pergunta: é surdo?
MISÉRIA – Mas olhem: ela deve ter uma fome atrasada que
nem lhes conto! É só soltar ela, que na horinha arrasta todo
mundo.
CORO – Pra que queremos uma vida que é uma desgraça
pura? Ela não vai conseguir levar todos nós...
MISÉRIA – Pois olhe compadre, se o senhor pensa assim, se
assim pensa todo o povo e é o parecer de Nosso Senhor, a
quem devo tantos favores, vou ter que lhes soltar a Ossuda... (A
Morte emite um grasnido triunfal.) Mas não é pra se queixar
depois.
SÃO PEDRO – Pára de falar e solta ela de uma vez.
MISÉRIA (Solene) – Desce Morte! E cumpra teu ofício!
MORTE – Lá vou eu! Ai, que dor nos ossos!
CORO – Está descendo: pegou a gadanha!
CENA 19 – DANÇA DA MORTE
Giram luzes de pesadelo. Ouve-se algo parecido a um
ranger de ossos e dentes. A Morte vai ceifando os
miseráveis com o fio da sua gadanha. Alguns fogem. Outros
caem. Miséria tenta escapar. Por um lado é detido pela
aparição, em meio a uma luz avermelhada, do Cavalheiro
Lilith. Procura outra saída, mas é detido pela figura
imponente do Governador.
MORTE – Não foge Miséria. Chegou a tua hora.
MISÉRIA (Quando a Morte avança com sua gadanha, Miséria
corre e sobe na forqueta) – Vem me buscar.
MORTE – Desce daí!
MISÉRIA – Não posso. Não posso descer enquanto eu não
quiser.
MORTE – Mas pra que continuar apestando nesta terra? Vem
comigo pro outro mundo. Olha que essa forqueta é muito
incômoda.
MISÉRIA – Não me importo. Enquanto há vida, há esperança.
Tu continuas fazendo maldade por aí: eu daqui não me mexo.
MORTE (Aos defuntos que caíram em volta dela) – Mexam
as tavas, defuntos! Agora é a hora de dançar comigo! Vamos!
SÃO PEDRO (Desde o Paraíso) – Fica firme, gaúcho, que
enquanto há vida há esperança!
CORO – Viva Miséria! Não desistas, Miséria!
MORTE – Mexam as tavas! (Para Miséria.) E tu, me espera aí,
que eu vou voltar pra te buscar! De mim não escapa ninguém.
MISÉRIA – Aqui te espero. (Ouve-se o violão do começo,
melancólico, distante.).
FIM

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