Prefácio ao Tratado do sublime - Viso · Cadernos de estética aplicada

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Prefácio ao Tratado do sublime - Viso · Cadernos de estética aplicada
Viso · Cadernos de estética aplicada
Revista eletrônica de estética
ISSN 1981-4062
Nº 14, jul-dez/2013
http://www.revistaviso.com.br/
Prefácio ao Tratado do sublime
Nicolas Boileau-Despréaux
RESUMO
Prefácio ao Tratado do sublime
O prefácio à tradução de Nicolas Boileau-Despréaux para o Peri Hupsous, de Longino, é
considerado um dos marcos da discussão filosófica sobre a categoria do sublime, a qual
ocupou posição de destaque no debate estético contemporâneo. A tradução é de
Vladimir Vieira.
Palavras-chave:
estética – sublime – Boileau – classicismo
ABSTRACT
Preface to the Treatise On the Sublime
The preface to Boileau's translation of Longinus Peri Hupsous is considered one of the
key texts of philosophical discussion about the sublime, a topic which has dominated
contemporary investigations on aesthetics. Translation and notes by Vladimir Vieira.
Keywords: Aesthetics – Sublime – Boileau – Classicism
BOILEAU-DESPRÉAUX, N. “Prefácio ao Tratado do
sublime”. Tradução de Vladimir Vieira. In: Viso:
Cadernos de estética aplicada, v. VII, n. 14 (juldez/2013), pp. 18-27.
Aprovado: 25.09.2013. Publicado: 15.07.2014.
© 2013 Vladimir Vieira (tradução). Esse documento é distribuído nos termos da licença
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Jamais um homem, em seu próprio tempo, foi também mais estimado que Longino. O
Filósofo Porfírio5, que tinha sido seu discípulo, fala dele como de um prodígio. A crer em
Porfírio, seu julgamento era a regra de bom senso, suas decisões em matéria de obras
valiam como sentenças soberanas, e nada era bom ou ruim a não ser que Longino o
tivesse aprovado ou censurado. Eunápio 6, na Vida dos Sofistas, vai ainda mais longe.
Para exprimir a estima que tem por Longino, deixa-se levar a hipérboles extravagantes, e
não se permite falar em um estilo razoável de um mérito tão extraordinário quanto o
desse Autor. Mas Longino não foi apenas um Crítico hábil, foi também um Ministro de
Estado digno de consideração; e basta, para fazer o seu elogio, dizer que tinha a
consideração de Zenóbia, aquela famosa Rainha de Palmira que ousou declarar-se
Rainha do Oriente após a morte de seu marido Odenato. Ela chamara inicialmente
Longino para instruir-se na língua Grega. Mas terminou fazendo de seu Mestre de Grego
um de seus principais Ministros. Foi ele que a encorajou a manter a dignidade de Rainha
do Oriente, que lhe alçava o coração na adversidade, e que lhe forneceu as palavras
altivas que escreveu a Aureliano quando o Imperador intimou-a a render-se. Isso custou
a nosso Autor a vida; mas sua morte foi tão gloriosa para ele quanto vergonhosa para
Aureliano, cuja memória, pode-se dizer, foi aviltada para sempre por ela. Como essa
morte é um dos mais célebres incidentes daquele tempo, não irritará provavelmente o
Leitor que eu reproduza aqui o que escreveu sobre ela Flavio Vopisco. 7 Esse Autor conta
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Esse pequeno Tratado, do qual dou ao Público a tradução, é uma peça que escapou ao
naufrágio de diversos outros livros que Longino tinha composto. Mesmo ela não veio a
nós totalmente completa. Pois embora o volume não seja muito grande, há diversas
passagens defeituosas e perdemos o Tratado das Paixões, do qual o Autor fizera um
livro à parte que era como uma continuação natural deste aqui. Entretanto, desfigurado
tal como está, ainda nos resta o suficiente dele para nos fazer conceber uma grande
ideia de seu Autor, e para nos fazer lamentar verdadeiramente a perda de suas outras
obras. O número delas não é pequeno. O Suidas 1 dá conta de nove, das quais não nos
restam senão títulos bastante confusos. Eram todas obras de crítica. E certamente não
poderíamos lastimar suficientemente a perda desses excelentes originais que, a julgar
por esse, deveriam ser do mesmo modo obras primas de bom senso, erudição e de
eloquência. Digo eloquência porque Longino não se contentou, como Aristóteles e
Hermógenes2, a nos dar preceitos secos e despojados de ornamentos. Não desejou cair
no erro que critica em Cecílio 3 que, diz ele, escreveu sobre o Sublime em estilo vulgar
[bas]. Tratanto das belezas da Elocução, empregou todas as finuras da Elocução.
Frequentemente produziu a figura que ensina; e, falando do Sublime, é ele mesmo muito
sublime. Entretanto, fê-lo tão a propósito e com tanta arte que não poderíamos acusá-lo,
em nenhuma passagem, de ter fugido ao estilo didático. É isso que deu a seu livro essa
alta reputação que adquiriu entre os Sábios, que o tomaram, todos, como um dos mais
preciosos restos da Antiguidade sobre as matérias da Retórica. Casaubon 4 chama-o um
Livro de ouro, desejando marcar desse modo o peso dessa pequena obra que, malgrado
sua pequenez, equilibra-se na balança com os maiores volumes.
“Zenóbia, Rainha do Oriente: ao Imperador Aureliano
Ninguém até agora fez uma exigência semelhante à sua. É a virtude, Aureliano, que
deve tudo fazer na guerra. Você exige que me coloque em suas mãos: como se não
soubesse que Cleópatra preferia morrer com o título de Rainha do que viver sob outra
dignidade. Esperamos o auxílio dos Persas. Os Sarracenos se armam por nós. Os
Armênios declararam-se a nosso favor. Um bando de ladrões da Síria venceu seu
exército. Julgue o que você deve esperar quando todas essas forças forem unidas. Você
rebaixará desse orgulho com o qual, como mestre absoluto de todas as coisas, me
ordena a render-me.”
Essa Carta, acrescenta Vopisco, produziu mais cólera do que vergonha em Aureliano. A
cidade de Palmira foi tomada poucas dias depois e Zenóbia foi presa quando fugia
buscando os Persas. Todo o exército exigia sua morte. Mas Aureliano não desejava
desonrar sua vitória com a morte de uma mulher. Reservou, portanto, Zenóbia para o
triunfo, e contentou-se em fazer morrer aqueles que a haviam auxiliado com seus
conselhos. Entre eles, continua esse Historiador, foi extremamente lamentado o Filósofo
Longino. Ele havia sido chamado para junto da Princesa para ensinar-lhe o Grego.
Aureliano fê-lo morrer por ter escrito a Carta precedente; pois embora tivesse sido escrito
na língua Síria, suspeitava-se que ele fosse seu Autor. O Historiador Zósimo 9 testemunha
que foi a própria Zenóbia que o acusou: “Zenóbia”, diz ele, “vendo-se presa, jogou toda a
sua culpa sobre seus Ministros, que haviam, disse ela, abusado da fraqueza de seu
espírito. Ela indicou entre outros Longino, aquele de que ainda temos diversos escritos
tão úteis. Aureliano ordenou que o enviassem ao suplício. Esse grande personagem”,
prossegue Zósimo, “suportou a morte com uma admirável constância, chegando a
consolar, ao morrer, aqueles que sua infelicidade tocava com a piedade e a indignação”.
Desse modo, pode-se ver que Longino não era apenas um hábil Retórico, como
Quintiliano e como Hermógenes, mas um filósofo digno de ser colocado ao lado dos
Sócrates e dos Catões. Seu livro não possui nada que desminta o que estou dizendo. O
caráter de homem honesto aparece aí em todo lugar; e seus sentimentos possuem um
não-sei-que que marca não apenas um espírito sublime mas uma alma grandemente
elevada acima do comum. Não tenho, portanto, nada a lamentar de ter empregado
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que, posto em fuga próximo à cidade de Emesa 8 o exército de Zenóbia e de seus
aliados, Aureliano fora fazer sítio a Palmira, para onde a Princesa se retirara. Encontrou
ali maior resistência do que imaginara, e do que se deveria verossimilmente esperar da
resolução de uma mulher. Incomodado com a longa duração do sítio, tentou conquistá-la
pela composição. Escreveu uma carta a Zenóbia na qual lhe oferecia a vida e um lugar
para se retirar, contanto que se rendesse em um determinado tempo. Zenóbia,
acrescenta Vopisco, respondeu a essa carta com soberba maior do que lhe permitia seu
estado de coisas. Ela acreditava, desse modo, fazer terror a Aureliano. Eis a sua
resposta:
Por menor que seja, portanto, o volume de Longino, não creio ter dado ao público um
presente medíocre se tiver lhe dado uma boa tradução desse texto em nossa língua. Não
lhe poupei, de modo algum, meus cuidados ou meus esforços. Que não se espere,
contudo, encontrar aqui uma versão tímida e escrupulosa das palavras de Longino.
Ainda que me tenha esforçado para não me afastar em uma só passagem das regras da
autêntica tradução, concedi-me entretanto uma honesta liberdade, especialmente nas
passagens que ele reproduz. Preocupei-me, aqui, que não se tratasse simplesmente de
traduzir Longino, mas de dar ao Público um Tratado do Sublime que pudesse ser útil.
Com isso tudo, entretanto, encontrar-se-ão talvez pessoas que não apenas não
aprovarão minha tradução, mas que não pouparão nem mesmo o Original. Espero
mesmo que haverá diversos que declinarão da jurisdição de Longino, que condenarão
aquilo que ele aprova, e que louvarão aquilo que ele censura. É o tratamento que ele
deve esperar da maior parte dos Juízes do nosso século. Esses Homens acostumados
com as devassidões e os excessos dos Poetas modernos, e que não admiram senão
aquilo que absolutamente não entendem, não pensam que um Autor seja elevado se não
o perderem completamente de vista; esses Espíritos pequenos, digo, não ficarão muito
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algumas de minhas vigílias a desembaraçar uma obra tão excelente, que, posso dizer,
não foi apreendida até agora senão por um número bem pequeno que sábios. Muret foi o
primeiro a empreender a tradução para o Latim, a pedido de Manuce 10; mas não concluiu
essa obra, seja porque as dificuldades o impediram, seja porque a morte o surpreendeu
antes. Gabriel de Petra, algum tempo depois, foi mais corajoso, e é a ele que devemos a
tradução Latina que dela temos. Há ainda duas outras, mas tão informes e grosseiras
que faria mais honra a seus Autores se não os mencionasse. E mesmo a de Petra, que é
infinitamente a melhor, não foi bem realizada. 11 Pois, além de frequentemente falar Grego
em Latim, há muitas passagens em que pode-se dizer que ele não compreendeu muito
bem seu Autor. Não é que queira acusar esse Homem tão sábio de ignorância, nem
estabelecer a minha reputação sobre as ruínas da sua. Eu sei o que significa
desembaraçar um Autor pela primeira vez; e confesso, além disso, que sua obra me
serviu de muito, bem como as pequenas notas de Langbaine e do Senhor Le Fèvre. 12
Mas estou bem satisfeito em desculpar por meio dos erros da tradução Latina aqueles
que podem ter me escapado na tradução Francesa. Tentei, entretanto, fazer todos os
meus esforços para torná-la tão precisa quanto poderia sê-lo. A bem dizer, não encontrei
dificuldades pequenas. É cômodo para o Tradutor Latino subtrair-se ao seu ofício nas
passagens que ele próprio não compreende. Basta traduzir o Grego palavra por palavra
e recitar palavras [paroles] de modo que possamos ao menos suspeitar que sejam
inteligíveis. Na verdade, o Leitor, que bem frequentemente não concebe nada disso,
relaciona-o antes à sua própria ignorância do que à do Tradutor. Não é assim com as
traduções na língua comum. Tudo aquilo que o Leitor não entende se chama uma
galimatias, da qual o Tradutor é unicamente responsável. Imputam-lhe até mesmo os
erros de seu Autor; e é necessário em muitas passagens que ele as retifique sem ousar,
entretanto, descartá-las.
Não resta mais para encerrar esse Prefácio do que dizer aquilo que Longino entende por
Sublime. Pois, como ele escreve sobre essa matéria a partir de Cecílio, que havia
empregado quase todo o seu livro para mostrar o que é o Sublime, não acreditou que
devia repisar uma coisa que já havia sido muito discutida por um outro. É preciso,
portanto, saber que por Sublime Longino não entende aquilo que os Oradores chamam o
estilo sublime: mas esse extraordinário e esse maravilhoso que impressiona no discurso,
e que faz com que uma obra enleve, arrebate, transporte. O estilo sublime deseja
sempre grandes palavras; mas o Sublime pode ser encontrado em apenas um
pensamento, em apenas uma figura, em apenas um jogo de palavras. Uma coisa pode
estar no estilo Sublime e não ser, entretanto, Sublime, quer dizer, não possuir nada de
extraordinário nem de surpreendente. Por exemplo, O Árbitro soberano da natureza com
uma só palavra formou a luz. Eis algo que está no estilo sublime, e que não é contudo
Sublime, pois não nada nisso de bem maravilhoso que não se pudesse encontrar sem
dificuldades. Mas Deus disse: Que se faça a luz; e a luz se fez. Esse modo extraordinário
de expressão que marca tão bem a obediência da Criatura às ordens do Criador é
verdadeiramente sublime, e possui algo de divino. É preciso portanto entender por
Sublime em Longino o Extraordinário, o Surpreendente e, como traduzi, o Maravilhoso
no discurso.
Reproduzi essas palavras da Gênese como expressão mais própria a trazer a claro meu
pensamento, e me servi delas de bom grado porque essa expressão é citada
elogiosamente pelo próprio Longino, o qual, em meio às trevas do Paganismo, não
deixou de reconhecer o divino que existe nessas palavras da Escritura. Mas o que
diríamos de um dos Homens mais sábios de nosso século, o qual, esclarecido a respeito
das luzes do Evangelho, não se apercebeu da beleza dessa passagem; que ousou
sugerir, digo eu, em um Livro que fez para demonstrar a Religião Cristã, que Longino
teria se enganado ao crer que essas palavras fossem sublimes? 13 Tenho ao menos a
satisfação de que pessoas não menos consideráveis pela sua piedade do que pela sua
profunda erudição, as quais nos deram há pouco uma tradução do livro da Gênese 14, não
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impressionados pelas audácias judiciosas dos Homeros, Platões e Demóstenes.
Procurarão frequentemente o Sublime no Sublime, e talvez debochem das exclamações
que Longino faz, certas vezes, acerca de passagens que embora muito sublimes, não
deixam de ser simples e naturais, e que antes tomam a alma do que saltam aos olhos.
Qualquer que seja a segurança que esses Senhores tenham da clareza de suas luzes,
rogo a eles, contudo, que considerem que o que lhes ofereço aqui não é a obra de um
Aprendiz, mas a obra prima de um dos mais sábios Críticos da antiguidade. Que se eles
não veem a beleza dessas passagens, isso pode tanto advir da fraqueza de suas vistas
quanto da pouca intensidade com que elas brilham. Na falta de melhor, aconselho-os a
acusar a tradução, uma vez que é bem verdade que nem atingi, nem poderia atingir a
perfeição desses excelentes Originais. E declaro a eles de antemão que, se há alguns
defeitos, eles só poderiam vir de mim.
Ademais, durante o tempo em que se trabalhava nessa última edição de meu Livro, o
senhor Dacier15 – aquele que há pouco nos deu as Odes de Horácio em Francês –
comunicou-me pequenas notas bastante sábias que fez sobre Longino, nas quais
buscou novos sentidos, desconhecidos até agora para os Intérpretes. Eu o segui em
algumas; mas, como naquelas em que não sou de seu sentimento poderia ter-me
enganado, é bom nesse caso fazer dos Leitores juízes. Nesse sentido, eu as incluí em
seguida às minhas Observações – o senhor Dacier sendo não apenas um homem de
muito grande erudição, e de crítica bem fina, mas de uma polidez ainda mais estimável
porque raramente acompanha uma grande sabedoria. Ele foi discípulo do célebre
Senhor Le Fèvre, pai dessa sábia filha a quem devemos a primeira tradução já publicada
de Anacreonte em Francês, e que trabalha agora para nos fazer ver Aristófanes,
Sófocles e Eurípedes nessa mesma língua.16
Em todas as minhas outras edições, deixei esse Prefácio tal como estava quando a fiz
imprimir pela primeira vez, há mais de vinte anos, e nada acrescentei. Mas hoje, ao rever
as provas que iria reenviar ao Impressor, pareceu-me que não seria talvez ruim ainda
acrescentar à passagem que reproduzi da Bíblia algum outro exemplo, tomado de outro
lugar, para fazer conhecer melhor aquilo que Longino entende por essa palavra: Sublime.
Eis um que se apresentou de modo bastante feliz à minha memória. Ele é tirado do
Horácio do Senhor De Corneille.17 Nessa Tragédia, cujos três primeiros Atos são, de meu
ponto de vista, a obra prima deste ilustre Escritor, uma Mulher que estivera presente ao
combate dos três Horácios, mas que se retirara um pouco cedo demais, sem ver seu
final, vem anunciar, de modo inapropriado, ao velho Horácio, o Pai, que dois de seus
Filhos haviam sido mortos e que o terceiro, não se vendo mais em condição de resistir,
fugira. Então esse velho Romano, possuído do amor por sua pátria e sem se preocupar
em chorar a perda de seus dois Filhos mortos tão gloriosamente, não se aflige senão
pela fuga vergonhosa do último, o qual, diz ele, imprimira com uma ação tão covarde
opróbrio eterno ao nome de Horácio. E à Irmã deles, que estivera lá presente e que lhe
diz Que desejaria o senhor que ele fizesse contra três?, responde bruscamente: Que ele
morresse! Eis palavras bem pequenas. E, contudo, não há ninguém que não sinta a
grandeza heroica contida nessas palavras, Que ele morresse!, ainda mais sublime
porque simples e natural, e porque vemos que, por meio dela, é do fundo do coração que
fala esse velho Herói, e nos transportes de uma cólera verdadeiramente Romana. De
modo que a coisa teria perdido muito de sua força se, em lugar de Que ele morresse!,
ele tivesse dito Que ele seguisse o exemplo de seus dois irmãos, ou Que ele
sacrificasse sua vida ao interesse e à glória de seu país. Assim, é a simplicidade mesma
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tenham sido da opinião desse homem sábio. E de que em seu Prefácio, entre diversas
provas excelentes que trouxeram para fazer ver que foi o Espírito santo que ditou esse
livro, tenham invocado a passagem de Longino para mostrar o quanto os Cristãos devem
ser persuadidos por uma verdade tão clara, que mesmo um Pagão percebeu apenas
pelas luzes da razão.
* Vladimir Vieira é professor adjunto do Departamento de Filosofia da UFF.
1
Autor do Suda, enciclopédia bizantina do século X.
Hermógenes de Tarso, retórico grego do século II, autor de cinco tratados bastante populares no
período renascentista. Boileau refere-se também possivelmente à Poética ou à Retórica de
Aristóteles.
2
Cecílio de Calate (hoje Caronia), retórico grego que viveu em Roma durante o período do
imperador Augusto (69 a.C.-14 d.C.) e que redigiu um tratado sobre o sublime (Peri Hupsous), hoje
perdido, a que Longino se refere de modo polêmico em seu texto.
3
4
Isaac Casaubon (1559-1614), filólogo e acadêmico suiço.
Porfírio de Tiro (c. 234 d.C. – c. 305 d.C.), filósofo neo-platônico e discípulo de Cássio Longino, a
quem Boileau atribui a autoria do tratado.
5
Historiador e biógrafo grego dos séculos IV-V. A Vida dos filósofos e sofistas é considerada uma
das principais fontes acerca da história do neoplatonismo.
6
Flavio Vopisco, historiador romano do século III a quem é atribuída a autoria de parte da História
Augusta, incluindo os capítulos acerca de Aureliano onde se encontra a narrativa a que Boileau se
refere.
7
8
Hoje Homs, na Síria.
Historiador bizantino dos séculos V-VI, autor da História nova, onde tem lugar a passagem citada
por Boileau (Livro I).
9
Marc Antoine Muret (1526-1585), literato francês; Paul Manuce, ou Paolo Manuzio (1512-1574),
editor e humanista veneziano.
10
Boileau refere-se, possivelmente, às traduções latinas de Domenico Pizzimenti e Pietro Pagani,
de 1566 e 1572, respectivamente. A tradução de Gabrielle dalla Petra é de 1612.
11
Gerard Langbaine (1609-1658), clérigo e acadêmico inglês; Tanneguy Le Fèvre (1615-1672),
acadêmico protestante vinculado à Academia de Saumur. As traduções foram publicadas,
respectivamente, em 1636 e 1663.
12
Boileau refere-se a Pierre Daniel Huet (1630-1721), acadêmico francês que discute a referência
de Longino em sua obra Demonstratio Evangelica (1679).
13
Boileau alude possivelmente à Bíblia de Port-Royal, versão vernacular do texto católico
produzida por eruditos ligado ao monastério de Port-Royal des Champs. O Novo Testamento foi
publicado em 1667, e o Velho Testamento entre os anos de 1672 e 1696.
14
15
André Dacier (1651-1722), literato francês.
Anne Le Fèvre Dacier (1654-1720), ou Madame Dacier, acadêmica francesa, filha de Tanneguy
Le Fèvre e esposa de seu discípulo, André Dacier.
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dessas palavras que faz a sua grandeza. São essas as coisas que Longino chama
Sublimes, que teria admirado muito mais em Corneille, se tivesse vivido no tempo de
Corneille, do que essas grandes palavras que enchem a boca de Ptolomeu no começo
da Morte de Pompeu para exagerar as circunstâncias vãs de uma derrota que ele não
viu.18
18
A morte de Pompeu, de Corneille.
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Na peça de Pierre Corneille (1606-1684), a disputa entre as cidades de Roma e Alba Longa
determina um combate entre três irmãos Horácios e três irmãos Curiáceos, embora as duas
famílias fossem unidas por laços matrimoniais e de amizade. Dois Horácios são rapidamente
mortos e o terceiro termina vencendo a luta fingindo inicialmente fugir.
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