Nicola Abbagnano – Dicionário de Filosofia – parte III

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Nicola Abbagnano – Dicionário de Filosofia – parte III
EVIDÊNCIA
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expressos em termos de coincidências espácio-temporais. Nesse sentido observa, p. ex., que a diferença entre um
elétron negativo e um positivo não é contemplada na especificação das coordenadas (Logic of Modem Physics, 1927,
cap. III; trad. it., p. 153). Mas, apesar dessas reservas, o conceito de evento continua tendo uma importância
fundamental na física contemporânea e continua sendo considerado pelos físicos como a melhor caracterização do
seu objeto.
EVIDÊNCIA (gr. èvápTEioc, lat. Evidentia-, in. Evidence, fr. Evidence, ai. Evidenz; it. Evi-denzd). Apresentação ou
manifestação de um objeto qualquer como tal. Era assim que os antigos entendiam a E., especialmente epi-curistas e
estóicos, que a assumiam como critério de verdade. Os epicuristas identificavam a E. com a própria ação dos objetos
sobre os órgãos dos sentidos (DIÓG. L., X, 52). Os estóicos entendiam por E. o apresentar-se ou dar-se das coisas aos
sentidos ou à inteligência, de tal modo que estas resultem "compreendidas" (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 7). A
representação cataléptica (v.) é justamente a representação evidente. Desse ponto de vista, a E. não é um fato
subjetivo, mas objetivo: não está ligada à clareza e distinção das idéias, mas ao apresentar-se e manifestar-se do
objeto (qualquer que seja). Assim, nem mesmo os céticos recusam o que se apresenta como evidente, embora evitem
a asserção correspondente (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 10).
Descartes, porém, deu um conceito subjetivo de evidência. A "norma da E.", que ele expõe no Discurso, prescreve
"nunca aceitar alguma coisa como verdadeira a menos que seja reconhecida evidentemente como tal; isso significa
evitar diligentemente a precipitação e a prevenção e só incluir nos juízos o que se apresenta tão clara e distintamente
ao espírito, que não haja motivo algum para ser posto em dúvida" (Discours, II). Nessa regra a E. foi reduzida à
clareza e distinção (v.) das idéias, e os problemas correlativos se deslocaram do domínio do objeto para o da idéia,
reapresentando-se neste último como problemas objetivos. O próprio Descartes (sobretudo em Regras para a direção
do espírito) vinculara a E. à faculdade da intuição, não entendendo com essa palavra o testemunho dos sentidos ou o
juízo da imaginação, mas "a concepção firme de um espírito puro e atento que nasce apenas da luz da razão e que,
sendo mais simples, é também mais
segura que a dedução" (Regulae ad directionem ingenii, III). A E. seria, assim, o caráter da intuição e constituiria a
certeza própria desta última, assim como a necessidade racional constitui a certeza da dedução. Esses conceitos
dominaram grande parte da filosofia moderna, mesmo porque foram aceitos tanto por Locke, para quem "a certeza e a
E. do nosso conhecimento provêm da intuição da concordância ou da discordância entre as idéias" (Ensaio, IV, 2, 1),
quanto por Leibniz (Nouv. ess., IV, 11, 10). O caráter subjetivo da E. e sua conexão com uma faculdade humana mais
ou menos misteriosa chamada intuição permaneceram em toda a filosofia moderna; só a filosofia contemporânea
entendeu retornar ao antigo conceito de E. objetiva.
A crítica da E. como "uma voz mística que de um mundo melhor nos grite: aqui está a verdade!" foi feita por Husserl,
que encontrou para a E. a definição de "preenchimento da intenção". Significa que há E. quando a intenção da
consciência, voltada para um objeto, é preenchida pelas determinações graças às quais o objeto se individualiza, se
define e finalmente se apresenta à consciência em carne e osso (Logische Untersuchungen, II, § 39; Ideen, I, § 145;
Erfahrung und Urteil, p. 12). Portanto, em toda a filosofia contemporânea que se inspira na fenomenologia, a E.
readquiriu caráter objetivo, voltando a designar a apresentação ou manifestação de um objeto como tal, qualquer que
seja o objeto e quaisquer que sejam os métodos com os quais se pretende certificar ou garantir sua presença ou
manifestação. Nesse sentido, Scheler falou de "E. preferencial" para indicar as inter-relações hierárquicas e objetivas
dos valores que guiam e sugerem as escolhas humanas (Formalismus, p. 87). No mesmo sentido, às vezes são
qualificadas de evidentes as proposições analíticas ou tauto-lógicas cuja verdade resulta dos seus próprios termos,
como, p. ex., "O triângulo tem três lados".
EVOLUÇÃO (in. Evolution; fr. Evolution; ai. Evolution; it. Evoluzioné). Essa palavra ainda conserva o sentido
genérico de desenvolvimento (v.), mas, com mais freqüência, é usada para designar uma doutrina particular que se
chama "teoria da E.". Ora, por essa expressão podem ser entendidas duas coisas diferentes: Ia teoria biológica da
transformação das espécies vivas umas nas outras, que é a hipótese fundamental das disciplinas biológicas de um
século a esta par-
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te; 2- teoria metafísica do desenvolvimento progressivo do universo em sua totalidade, que é uma hipótese admitida
ou pressuposta por muitas doutrinas filosóficas modernas e contemporâneas. Embora esses dois significados tenham
interagido ao longo da história da filosofia, é oportuno mantê-los separados. (Para o segundo v. EVOLUCIONISMO.)
O termo E. foi introduzido provavelmente por Spencer no seu ensaio sobre o Progresso, de 1857, mas essa palavra,
assim como o conceito, não teriam gozado de tanto sucesso sem o êxito do transformismo biológico, que teve início
com Origem das espécies, de Charles Darwin (1859). A obra de Darwin era, de um certo ponto de vista, mais uma
conclusão que um princípio (o que é demonstrado pelo êxito sem precedente): conclusão de um longo trabalho de
pesquisas e de várias tentativas de generalização. A doutrina tradicional da imutabilidade (ou fixidez) das espécies
vivas fora reflexo, no domínio biológico, da doutrina da substância (v.), ou seja, da necessidade da estrutura
ontológica do mundo, que prevalecera graças a Aristóteles na filosofia e na ciência antiga e medieval; isso explica por
que a hipótese de transformação das espécies apresentada por Anaximandro (Ps. PLUT., Strom., 2) e por Empédocles
(Fr. 56-61, Diels), ainda que de forma fantástica,: não deixou vestígios. Segundo a metafísica aristotélica, todas as
formas substanciais são imutáveis porque necessárias; isso significa que não podem ser criadas nem destruídas. Como
formas substanciais, as espécies vivas compartilham de tais características. Esse princípio aristotélico, cuja única
exceção é a criação de Deus, durante muitos séculos constituiu o arcabouço da pesquisa filosófica e científica. Foi só
a partir do início do séc. XVIII que alguns naturalistas começaram a considerar a possibilidade da transformação das
espécies biológicas. Buffon admitia essa hipótese, mas declarava-se explicitamente partidário da fixidez das espécies
{Histoire naturelle, YIA9-1804). É provável que Kant se tenha inspirado nele quando, em 1790, levantou a hipótese
de "parentesco real" entre as formas vivas, que proviriam de uma "mãe comum", e de desenvolvimento contínuo da
natureza desde a nebulosa primitiva até os homens (Crít. do Juízo, § 80). Mas essas eram apenas intuições genéricas,
não confirmadas por nenhum sistema coordenado de observações. O primeiro a apresentar cientificamente a doutrina
do transformismo biológico foi Jean-Baptiste Lamarck, em Philosophie zoologique (1809), para quem todavia a E. dos
organismos devia-se às diferenças neles produzidas pelo maior ou menor uso dos órgãos, e que depois teriam sido
fixadas pela hereditariedade. Sabe-se hoje que as mudanças nascidas dos hábitos não podem ser herdadas; portanto, o
mérito de Lamarck não é o de ter descoberto o princípio da E., mas o de ter insistido na doutrina geral e em alguns
aspectos importantes dela, como o da adaptação ao ambiente. Foi só com Origem das espécies (1859), de Charles
Darwin, que se iniciou a moderna teoria da E. biológica. A teoria de Darwin admite duas ordens de fatos: Ia existência
de pequenas variações orgânicas que se verificam nos seres vivos em intervalos irregulares de tempo e que, pela lei
da probabilidade, podem ser vantajosas para os indivíduos que as apresentam; 2- luta pela vida entre os indivíduos
vivos, que se deve à tendência de cada espécie a multiplicar-se segundo uma progressão geométrica. Este último
pressuposto foi sugerido a Darwin pela doutrina de Malthus (.Essay on Population, 1798). Dessas duas ordens de
fatos resulta que os indivíduos nos quais se manifestem mudanças orgânicas vantajosas têm maiores probabilidades
de sobreviver na luta pela vida, e, em virtude do princípio de hereditariedade, haverá neles acentuada tendência a
deixar os caracteres acidentais como herança aos seus descendentes. Essa é a lei da seleção natural, que Darwin
considerou o esteio da doutrina da E. {Or. das espécies, IV, 18).
Enquanto a doutrina de Darwin sofria, por um lado, os ataques dos partidários da velha metafísica e, por outro, era
estendida e generalizada como teoria da E. cósmica, eram apresentadas novas hipóteses, em conflito com o princípio
da seleção natural, que procuravam esclarecer como ocorreria a E. Por um lado, os neolamarckianos (entre os quais,
especialmente, o francês Giard [1846-1908] e o americano Cope [1840-97]) insistiam na relação do organismo com o
ambiente, atribuindo a essa relação a capacidade de produzir as novidades orgânicas que depois seriam transmitidas
por herança. Por outro lado, os neodarwinianos, que se agruparam especialmente em torno do biólogo alemão
Weissmann (1834-1914), insistiam na importância da seleção natural como único princípio da evolução. Ambas essas
correntes, no esforço de demonstrar suas próprias
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teses, produziram fatos e observações novos em favor da teoria geral da E., mas pode-se dizer que
nenhuma delas logrou demonstrar a falsidade das teses da outra. Hoje se sabe que tanto a adaptação ao
ambiente (tese dos lamarckianos) quanto a seleção natural (tese dos darwinianos) exercem funções
importantíssimas na E. da vida e que uma coisa não exclui a outra. Nessa incerteza, inseriram-se as novas
formas do vitalismo (v.), doutrina que, considerando que a vida não é explicável, em princípio, por fatores
físico-químicos, reconhece como fundamento dela um princípio espiritual que age de modo finalista. O
vitalismo dá ênfase àquilo que parece ser um dos caracteres fundamentais da E. biológica: o finalismo.
Este, que está estreitamente vinculado à doutrina da estrutura substancial do mundo, ou seja, à metafísica
aristotélica, é a parte dessa metafísica que mais resiste à morte. Como já notava Kant, seu campo
privilegiado é o dos fenômenos vitais. Esses fenômenos não parecem ocorrer por acaso. Ainda que De
Vries tenha observado o súbito e casual surgimento de novas variedades de plantas e tenha assumido esse
fato como base real da E. {Teoria das mutações, 1901), sempre pareceu difícil defender o caráter casual e
arbitrário de todo o processo evolutivo. Foi graças a essa dificuldade que as teorias vitalistas ganharam
força. A mais famosa delas, no mundo contemporâneo, é a de Bergson, que atribui a E. ao élan vital, isto
é, a uma grande corrente de consciência que é lançada na matéria e tende a dominá-la, tendo mais sucesso
numa direção, menos em outra, e progredindo sobretudo nas duas direções fundamentais: do instinto nos
artrópodes e da inteligência no homem (Évol. créatr., 1907). Mas, mesmo rejeitando a idéia de um plano
total previamente disposto ou predeterminado (que, segundo Bergson, seria "um mecanicis-mo às
avessas"), a teoria bergsoniana da E. ainda é finalista e passível das mesmas obje-ções que Bergson faz ao
vitalismo: assumir como princípio de explicação a ignorância da explicação. Como observou Huxley,
atribuir a E. a um élan vital explica a história da vida tanto quanto atribuir o movimento de uma máquina
a vapor a um élan locomotif explica o funcionamento dessa máquina. O recurso a um termo metafísico,
que só faz cobrir uma zona de ignorância, mascarando-a como saber e, portanto, afastando ou
desencorajando a pesquisa positiva tendente a diminuí-la, também é evidente nas outras formas de vitalismo contemporâneo. Assim, Driesch recorre à enteléquia, velho
conceito aristotélico, à qual atribui a função diretiva na construção do organismo {Philosophie des
Organischen, 1908-09).
Os estudos de genética (v.) encaminharam a teoria da E. para um terreno positivo de pesquisas,
transformando-a num quadro que abrange os instrumentos e as possíveis direções da pesquisa biológica e
evitando a dogmatização de princípios parcialmente provados, que fora a característica da fase
precedente. Os fundamentos da moderna teoria da E. podem ser assim resumidos:
1Q Separação da idéia de E. da idéia de progresso. E. não é necessariamente progresso, e muito menos
progresso unilinear, necessário e constante. Seja qual for o critério escolhido para julgar o curso da E.,
ver-se-á que a história da vida oferece exemplos não só de progressos, em relação a esse critério, mas
também de retrocessos e degenerações. Huxley sugeriu como critério objetivo de progresso o da
dominação sucessiva de um grupo biológico: critério que levaria a constituir uma sucessão de idades:
"Idade dos invertebrados", "Idade dos peixes", "Idade dos anfíbios", "Idade dos répteis", "Idade dos
mamíferos" e "Idade do homem" (£., The Modern Synthesis, 1942). Mas também essa sucessão de idades
tampouco é objetiva, porque obviamente é sugerida pelo critério de aproximação ao homem. Podem ser
definidas outras linhas de progresso com base na expansão vital ou na adaptação ao ambiente, critérios
que sugerem a organização das espécies animais segundo o grau de sucesso na realização de alguma
dessas duas coisas. Outro critério que os biólogos utilizam com freqüência é a chamada lei de Willinston,
segundo a qual "o número de partes de um organismo tende a reduzir-se e sua função tende a especializarse", ou seja, há uma tendência à simplificação mais do que à complicação. Outros indicam como critério a
energia geral do organismo ou o nível do processo vital (SEWERTZOFF, Mor-phologische
Gesetzmassigleeiten der E, 1931). Cada um desses critérios leva a organizar as espécies vivas ou seus
maiores grupos de um modo que coincide apenas parcial e ocasionalmente com a organização resultante
dos outros critérios.
2S Exigência de que os fatores invocados para explicar a E. não só expliquem o que ocorre segundo um
plano na organização da vida, mas
EVOLUCIONISMO
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EVOLUCIONISMO
lha das hipóteses e dos resultados da teoria biológica da evolução, sua tese vai muito além de tudo o que
qualquer possível teoria científica possa legitimamente atestar. Nesse sentido, o E. foi assumido como
esquema fundamental de muitas metafísicas, tanto materialistas quanto espiritualistas. A característica
fundamental que essas metafísicas distinguem na evolução é o progresso. Para elas, evolução significa
essencialmente progresso. Certamente essa foi a visão de Spencer, que deu início à série de metafísicas
evolucionistas com um ensaio publicado em 1857 e intitulado Progresso. Segundo Spencer, o progresso
reveste todos os aspectos da realidade. No ensaio citado, escreve "Quer se trate do desenvolvimento da
Terra, quer se trate do desenvolvimento da vida sobre sua superfície, do desenvolvimento da sociedade,
do governo, da indústria, do comércio, da língua, da literatura, da ciência, da arte, no fundo de todo
progresso está sempre a mesma evolução que vai do simples ao complexo, através de diferenciações
sucessivas." Nos Primeiros princípios, Spencer definia assim a evolução: "é uma integração de matéria e
a dissipação concomitante de movimento, durante a qual a matéria passa da homogeneidade indefinida e
incoerente à heteroge-neidade definida e coerente, e o movimento conservado sofre transformação
paralela" (First Principies, § 145). Essa determinação da evolução como passagem do homogêneo indiferenciado para o heterogêneo diferenciado sem dúvida era sugerida a Spencer pela evolução biológica,
que parece ir da ameba aos organismos superiores. Segundo Spencer, o sentido geral da evolução é
otimista. A evolução é progresso e, ademais, progresso necessário, que, no que se refere ao homem, só
terminará com "a máxima perfeição e a mais completa felicidade" (Ibid., § 176). Ao contrário do que
ocorreu na teoria da evolução biológica, que logo desvinculou a noção de evolução da de progresso, no E.
filosófico o sentido otimista e necessarista da noção de progresso continua constituindo por muito tempo
a característica fundamental da evolução. O E. materialista e o E. espiritualista têm isso em comum.
Nenhuma dessas correntes chega a reela-borar o conceito em exame. Quando Ardigó define a evolução
como "a passagem do indistinto ao distinto" (Opere, 1884, II, p. 350), assumindo portanto como modelo
evolutivo
o desenvolvimento psíquico e não o biológico, as características formais da evolução não mudam: ela
continua sendo apenas progresso universal necessário. O maior representante do E. materialista foi o
biólogo alemão Ernst Haeckel. Sua obra Enigmas do mundo (1899), nos primeiros decênios do séc. XX,
foi o catecismo desse materialismo, que via em todas as formas da realidade graus de evolução da
matéria, organizados de modo progressista. Por outro lado, o E. espiritualista, que vê nas várias formas da
realidade graus de desenvolvimento de um princípio espiritual, teve início com Wilhelm Wundt, que
reconheceu esse princípio espiritual na vontade (System der Phil, 1889). Pensamento análogo inspirava a
obra do francês Alfred Fouillée, que via na idéia-força o substrato da evolução (L 'É. des idées-forces,
1890). Mas sem dúvida a mais notável manifestação do E. espiritualista é a doutrina de Bergson, que viu
na evolução o produto de um elã vital, que é consciência, liberdade e criação (Évol. créatr., 1907). Em
sentido análogo^. Lloyd Morgan falou de Evolução emergente (1923), entendendo que as fases da
evolução não são simples resultantes mecânicas das fases precedentes, mas contêm um elemento novo
que denuncia o caráter progressista e criativo da evolução.
Mas o conceito de evolução como progresso constitui ainda o fundo ou o pressuposto de outras doutrinas
que, no entanto, não tomam a evolução por tema fundamental das suas elaborações. Assim a noção de
evolução emergente é assumida por Alexander em seu livro Espaço, tempo e deidade (1920) para explicar
o desenvolvimento global da realidade, cuja substância seriam espaço e tempo (que estão entre si como
matéria e espírito). Outrossim, o conceito de processo, considerado fundamental por White-head (Process
and Reality, 1929), outra coisa não é senão o mesmo conceito de evolução contaminado pelo conceito
hegeliano de devir, ao mesmo tempo que a evolução em sentido naturalista fundamenta toda a obra de
Santayana (cf. especialmente o Realm ofMind, 1940). Essas citações devem ser consideradas apenas
exemplos da vastíssima difusão do E. na filosofia contemporânea, e portanto em todas as formas da vida
intelectual. A crença de que a realidade é um processo único, contínuo e necessariamente progressista está
nas entrelinhas de doutrinas filosóficas díspares e influenciou poderosamente a postura de certas
pesquisas
EXATO
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EXEMPIIFICAÇÂO
históricas, sociológicas, morais, etc. Essa crença, porém, não é corroborada por nada, e no único domínio em que a
teoria da evolução é corroborada por provas de fato, o biológico, a evolução perdeu justamente os caracteres que os
filósofos mais demonstraram apreciar: unidade, continuidade, necessidade e progresso. Nenhum desses caracteres é
hoje aceito no contexto da evolução biológica. Portanto, a hipótese de que a realidade constitui um processo integrado
por esses caracteres não é confirmada pelos conhecimentos científicos e deve ser considerada simples hipótese
metafísica, não possível de verificação, ainda que indireta. No entanto, essa hipótese continua a gozar de certo
prestígio junto a cientistas-filósofos. Assim, Teilhard de Char-din reconheceu na evolução o postulado geral ao qual
devem adequar-se teorias, hipóteses ou sistemas; conseqüentemente, considerou a evolução da substância viva
espalhada pela terra como a de um único organismo gigantesco. O termo final da evolução seria um "Ponto Ôme-ga",
uma "Superconsciência Universal" formada pela pluralidade unificada de pensamentos individuais que se combinam
e reforçam no ato do Pensamento unânime (Le phenomène humain, 1955). Em especulações semelhantes é evidente o
caráter metafísico da evolução
EXATO (in. Exact; fr. Exact; ai. Exakt; it. Esattó). Assim é qualificado o procedimento (ou operação) no qual se
reduza ao mínimo a probabilidade ou margem de erro que a situação comporta. Nesse sentido, diz-se que é E. a
medida que tem um grau suficiente de aproximação (isto é, um mínimo de erro) ou uma previsão que tenha sido
suficientemente verificada pelos fatos. Em geral, a exatidão nesse sentido é garantida pela observância das normas
técnicas que orientam o uso dos procedimentos válidos em dado campo: assim, diz-se que é E. todo procedimento
realizado em conformidade com sua própria técnica. As ciências "E." são as que se valem exclusivamente de tais
procedimentos.
EXCEÇÃO (in. Exception; fr. Exception; ai. Ausnahme, it. Eccezioné). 1. Apesar de se encontrarem na Antigüidade
alguns vestígios de uma ética da E., como a expressa por Cálicles em Gôrgias e por Trasímaco em A República de
Platão, ou seja, de uma ética que não vale para "a maioria" (oi pollot), é só na filosofia contemporânea que o caráter
da "excepcio-nalidade" assume não só importância moral ou religiosa, mas também ontológica e metafísica.
Esse foi um tema introduzido por Kierkegaard e por Nietzsche; em Temor e tremor, o primeiro insistiu no caráter de
"E. justificada" que o eleito de Deus representa em relação à lei moral (como é o caso de Abraão); o segundo insistiu
no caráter de excepcionalidade do super-homem, a quem a "vontade de potência" confere um destino que foge a
qualquer regra. Dos existencialistas, foi Jaspers quem insistiu na "excepcionalidade da existência", que é sempre
individual, singular, inconfundível e, por isso, não pode tornar-se objetiva e submeter-se a limites ou normas (Phil, II,
1932, p. 360). 2. Em significado lógico, v. QUANTIFICAÇÃO
DO PREDICADO.
EXCEPTIVA, PROPOSIÇÃO (fr. Propo-sition exceptive, it. Proposizione eccettuativd). A Lógica de Port-Royal
deu esse nome à proposição "que afirma uma coisa sobre um sujeito, salvo de uma parte dele"; p. ex.: "Segundo os
estóicos, todos os homens são loucos, salvo os sábios" (ARNAULD, Log., II, 10, 2).
EXCLUSIVA, PROPOSIÇÃO (fr Proposi-tion exclusive). A Lógica de Port-Royal deu esse nome à proposição que
afirma que um atributo convém a um e a um só sujeito; p. ex. "A virtude é a única nobreza" (ARNAULD, Log., II, 10,
1).
EXEMPLAR (in. Exemplary, fr. Exemplaire, ai. Exemplarisch; it. Esemplaré). O que funciona como modelo ou
arquétipo, no sentido de ser objeto de imitação e, portanto, causa formal ou ideal daquilo que a imitação produz.
Algumas vezes as idéias de Platão foram chamadas de causas exemplares, pela forma de causalidade que lhes é
atribuída enquanto modelos. Kant observou que alguns produtos do gosto valem como exemplares. "Por aí se vê que
o modelo supremo, o protótipo do gosto, é uma simples idéia que cada um deve extrair de si mesmo e segundo a qual
deve julgar tudo o que é objeto de gosto" (Crit. do Juízo, § 17).
EXEMPLARISMO (in. Exemplarism; fr. Exemplarisme, ai. Exemplarismus; it. Esem-plarismó). Doutrina segundo a
qual as coisas e os seres do mundo são imagens ou cópias de exemplares ou arquétipos que constituem o "mundo
inteligível" ou que subsistem na mente divina. É uma doutrina que se acha no pla-tonismo, no neoplatonismo, em S.
Agostinho e na Escolástica.
EXEMPLIFICAÇÃO (in. Exemplification; ai. Exemplifizierung; it. Esemplificazione), Em
EXEMPLO
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EXISTÊNCIA
geral, a referência de um objeto qualquer a um conceito (significado, essência, classe, etc).
EXEMPLO (in. Example, fr. Exemple, ai. Beispiel; it. Esempió). Em Aristóteles, o napcc-8ei7Jiaé uma indução
aparente ou retórica, que parte de um enunciado particular e passa por um enunciado geral em que a primeira
premissa é generalizada. Na Lógica medieval, por simetria com o entimema (v.), "E." foi usado para designar uma
generalização indutiva que parte do particular e termina no particular, omitindo a premissa universal.
EXISTÊNCIA (gr. TO Ú7iápxevv; lat. Existen-tia; in. Existence, fr. Existence, ai. Existenz; it. Esistenzd). Em geral,
qualquer delimitação ou definição do ser, ou seja, um modo de ser de algum modo delimitado e definido. Este, que é
o significado mais geral, também pode ser considerado um dos significados particulares do termo, do qual é possível,
então, enunciar três significados: le o modo de ser determinado ou determinavel; 2Q o modo de ser real ou de fato; 39
o modo de ser próprio do homem.
le Como modo de ser determinado ou definido de certo modo, esse termo costuma ser usado na linguagem comum e
nas diversas linguagens científicas. Fala-se, com efeito, da E. de entes matemáticos e há, em matemática, um
"teorema de E.". Analogamente, fala-se de E. "lógica" ou "conceituai" ou ainda de E. "fantástica", do mesmo modo
que os escolásticos falavam da E. "no intelecto" ou da E. "na realidade"; fala-se também de E. "em si" (da substância)
ou de E. "em outra coisa" (das qualidades ou acidentes da substância). Todos esses casos só não têm em comum certa
delimitação do significado de ser que, nas ciências exatas, baseia-se em definições precisas. Assim, no campo da
matemática, a partir de Hilbert, E. é entendida como ausência de contradição; quando se afirma que a solução de um
problema existe, pretende-se dizer simplesmente que nenhuma contradição impede admitir a E. da solução. Um
teorema de E. é a prova rigorosa de que a solução existe (nesse sentido), mesmo que ainda não tenha sido descoberta.
Esse é, pelo menos, o critério ao qual continua ligada certa escola de matemáticos contemporâneos, a dos formalistas,
encabeçados por Hilbert. A outra escola, a dos intuicionistas, que tem à frente Brouwer e Heyting, assume como
critério de E. em matemática a possibilidade da construção e julga que não se pode falar de entes matemáticos que
não possam ser
construídos. Em um sentido ou em outro, porém, o conceito de E. é definido com precisão em matemática e não se
fala de E. em sentido diferente, nessa disciplina. Por outro lado, é fácil ver que esse mesmo conceito de E. não tem
sentido fora da matemática e, portanto, não pode ser estendido a campos diferentes. Se passarmos da matemática à
física logo veremos que a E. dos entes de que ela fala é sempre implicitamente definida pelas operações de medida ou
verificação que servem para estabelecer a observação desses entes. Analogamente, ainda, a E. de que se pode falar no
domínio da lógica é a definida pelas operações a que o objeto lógico pode ser submetido e se reduz, em última
análise, à ausência de contradição. As chamadas ciências "morais" também se fundam em definições implícitas ou
explícitas da E. Em direito, uma lei "existe" se foi formulada, aprovada e promulgada nos modos e nas formas
previstos na Constituição do Estado. E um fato existe do ponto de vista jurídico se pode ser "provado" nas formas ou
nos modos de lei, e qualificado em conformidade com as próprias leis. De forma semelhante, em economia, a E. de
um evento consiste na possibilidade de ele ser observado como uniformidade estatística ou quase estatística. Em
geral, toda ciência ou disciplina define de algum modo, explícita ou implicitamente, o significado a ser dado à palavra
"existência" em seu âmbito.
Carnap distinguiu o problema interno da E. (interno a determinado campo, p. ex., à matemática, à física ou à lógica) e
o problema externo da mesma E. O problema interno sempre pode ser resolvido empiricamente (quando se refere à
realidade de fato) ou logicamente, quando se refere a proposições analíticas. O problema externo é, ao contrário, o
que se refere à "E. ou realidade do sistema total das entidades". Assim, p. ex., existir ou não dado número primo é um
problema interno da aritmética. Mas se existe ou não o sistema dos números ou qual é a realidade dos números em
seu conjunto são problemas externos que não têm resposta, sendo, por isso, pseudo-problemas, semelhantes ao da
realidade do mundo externo ou à disputa entre nomina-lismo e realismo, que o Círculo de Viena já declarara
desprovidos de sentido {Meaning and Necessity, A 3). O caráter inevitável do compromisso antológico, ou seja, da
decisão acerca do significado ou dos significados que devem ser atribuídos à E. nos diferentes campos de inda-
EXISTÊNCIA
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EXISTÊNCIA
gação, foi evidenciado por Quine, que também ressaltou o fato de esse compromisso ontoló-gico não ser meramente
lingüístico, mas se assemelhar à aceitação de uma teoria científica {From a Logical Point ofView, 1). A exigência
desse compromisso obviamente é maior no domínio da pesquisa científica. A linguagem comum é muito menos
precisa ao definir o modo de ser dos objetos aos quais atribui alguma espécie de existência. Seria por certo
embaraçoso explicar com precisão o que se pretende dizer quando se afirma, p. ex., que o objeto x tem E. "puramente
fantástica" ou "puramente ideal", assim como é difícil dizer que tipo de E. cabe a um valor qualquer, como, p. ex., à
beleza. Mas o que interessa aqui destacar é que, mesmo quando falta determinação precisa, como muitas vezes ocorre
na linguagem comum, sempre está presente no uso da palavra "E." a referência a uma esfera limitada do ser ou à
possibilidade de delimitá-la. Em geral, podemos dizer: à) a palavra "E." possui significado próprio no âmbito de cada
disciplina, que é explicitamente expresso ou implicitamente definido pelas operações ou pelos procedimentos
peculiares à disciplina; b) tal significado em geral só é válido no âmbito a que se estendem os instrumentos ou
procedimentos da disciplina, ou seja, no campo específico dos objetos dessa disciplina, mas não tem significado fora
desse campo e não pode ser estendido a campos diferentes, que não tenham relações defi-níveis com o campo em
questão.
2e O significado de E. como E. de fato, vale dizer, aquilo que na realidade é ou subsiste, é o mais freqüente na história
da filosofia. Aristóteles usava essa palavra com esse sentido ao dizer: "A ciência dá a razão de ser tanto de uma coisa
quanto da sua privação, embora de modo diferente; a razão de ser é de ambas as coisas, mas especialmente daquilo
que existe" {Met., IX, 2, 1046 b 6; cf. De cael, II, 14, 247 b 22). Do mesmo modo, a palavra é usada por S. Tomás
com o fim de definir a subsistência {subsis-tentid) própria da substância, porquanto esta "existe não em outra coisa,
mas em si mesma" (5. Th., I, q. 29, a. 2), ou de definir "o que é existente por si", quer dizer, o que é real sem ser
qualidade ou acidente de outro real {Ibid., I, q. 75, a. 2). Obviamente, para S. Tomás, mesmo aquilo que não é "por
si" pode ser considerado existente, como p. ex. um acidente real. A esfera da E. como realidade de fato é definida
mais explicitamente por Henrique de Gand,
que introduz a distinção entre esse essentiae e esse existentiae. O ser da essência é o grau ou modo de ser que cabe à
essência como tal, independentemente do ser da E.; o ser da E. é a realidade efetiva que pode sobrevir ou não ao ser
da essência. Uso análogo dessa palavra encontra-se em Spinoza {Et., 1,7), e em Leibniz {Nouv. ess., II, 7), além de
Locke, que, para evitar equívocos, fala de "E. real" {Ensaio, II, 3, 21). E. também é realidade para Berkeley
{Principies of Knowledge, 3) e Hume {Treatise, I, 3, 7). Justamente por considerar a E. como realidade de fato, Kant
nega que ela possa ser reduzida a um predicado conceituai {Crít. R. Pura, Analítica, II, cap. 2, seç. 3, 4). Na filosofia
contemporânea, a palavra é usada no mesmo sentido. Quando Dewey define a metafísica como "conhecimento das
características genéricas da E." e fala da pretensão dos filósofos "de lidar com o conhecimento da E. e não com a
imaginação", entende por esse termo a realidade de fato, independentemente do embelezamento e da deformação que
ela sofre na descrição dos filósofos {Experience and Nature, cap. II). Para mais detalhes sobre esse significado, v.
SER; FATO; REALIDADE.
3a O terceiro significado específico desse termo é o que restringe ao modo de ser do homem no mundo. Esse
significado encontra-se no existencialismo (v.) como filosofia, cujo tema é a análise desse modo de ser. Já nos séculos
XVIII e XIX a alguns filósofos ocorreu insistir no significado específico da E. como modo de ser das criaturas finitas,
dos entes criados. Viço observou que Descartes não deveria ter dito "Penso, logo sou", mas "Penso, logo existo"; a E.
é o modo de ser próprio da criatura, porquanto significa estar embaixo ou em cima, e supõe substância, ou seja, o Ser
divino que a sustem e a cria {Prima Risp. ai Giorn. dei Lett., § 3). Essa distinção foi aceita e adotada por Gioberti
{Intr. alio studio delia fil., 1840, II, cap. 4), mas não era suficiente para fazer da E. o tema de uma nova especulação.
Outro passo nessa direção pode ser visto na chamada "filosofia da fé" de Hamann e Jacobi, que insistiu na
irredutibilidade da E. à razão. Para Jacobi, a filosofia de Spinoza era o protótipo de toda filosofia que identifica E.
com razão e, portanto, não deixa lugar à fé. Contra Spinoza, recorre a Hume, que identificou a E. com a fé, ou
melhor, com a crença {Hume, über den Glauben, 1787). Schelling aderiu a essa tese na última fase de sua filosofia,
que ele chamou de
EXISTÊNCIA
400
EXISTÊNCIA
filosofia positiva e expôs nas obras intituladas Filosofia da mitologia e Filosofia da revelação. Para Schelling, a
razão só consegue determinar as condições negativas da E., as condições que determinam o modo em que a E. deve
ser pensada, dado que o seja. Mas a condição positiva, graças à qual o ser existe, extrapola a filosofia negativa ou
racional porque é criação, vontade de Deus de revelar-se; só essa diz respeito ao quodsit, à E. (Werke, II, III, pp. 57
ss.). A polêmica de Schelling dirigia-se contra Hegel, assim como a de Jacobi visava a Spinoza. Mas mesmo nessas
polêmicas a E., conquanto não fosse considerada solúvel pela razão ou pelo conceito, não é identificada com o modo
de ser específico do homem e própria dele apenas. Esse passo foi dado por Kierkegaard, que também preparou o
instrumento fundamental para a análise da E.: o conceito de possibilidade. Kierkegaard remete-se explicitamente à
polêmica, a que já aludimos, contra a redução de E, a conceito: "A E. corresponde à realidade individual, ao
indivíduo (o que Aristóteles já ensinou); está fora do conceito, que, de qualquer forma, não coincide com ela. Para um
animal, uma planta, um homem, a E. (ser ou não ser) é algo de muito decisivo; o indivíduo por certo não tem uma E.
conceituai" {Diário, X2, A 328). Mas a E. como individualidade é apenas a E. humana. No mundo animal, é mais
importante a espécie do que o indivíduo; no mundo humano o indivíduo não pode ser sacrificado à espécie. Nesse
sentido, a singularidade da E. torna-a o modo de ser fundamental do homem. Tal modo de ser foi analisado por
Kierkegaard no seu tríplice aspecto de relacionar-se com o mundo, consigo mesmo e com Deus. Mas nesses três
aspectos o relacionar-se nada tem de necessário: é instável e precário. Em todo caso, não é constituído por laços
fortes e imutáveis, mas por simples possibilidades que até podem ser perdidas. Aos olhos de Kierkegaard, portanto, a
E. como modo de ser constituído pelas relações do homem consigo mesmo, com o mundo e com Deus é analisável
em um conjunto de possibilidades cujo caráter é justamente não possuir, por si mesmo, nenhuma garantia de
realização. Certamente Deus pode conferir segurança e infalibilidade a tais possibilidades (porque para Ele "tudo é
possível"), mas até mesmo o relacionar-se do homem com Deus é apenas possível, e não necessário. Dessa
interpretação da E. em termos de possibilidade nascem as características fundamentais da
E., que são a angústia, como relacionamento do homem com o mundo, desesperação, como relacionamento do
homem consigo mesmo, e paradoxo, como relacionamento do homem com Deus (v. EXISTENCIALISMO).
Com isso, são estabelecidas as características da noção de E., no significado em que geralmente é empregada pela
corrente existencialista da filosofia contemporânea. A E. é: 1B) o modo de ser próprio do homem; 2e) o
relacionamento do homem consigo mesmo e com o outro (mundo e Deus); 3 B) relacionamento que se resolve em
termos de possibilidade. Essas características constituem a inspiração fundamental e comum das teorias da E. na
filosofia contemporânea. Em virtude da segunda delas, diz-se que a E. é um modo de ser em situação, entendendo-se
por situação o conjunto de relações analisáveis que vinculam o homem às coisas do mundo e aos outros homens. Na
filosofia contemporânea, foi Heidegger o primeiro a formular uma análise da E. com bases nessas características. Em
primeiro- lugar, ele restringiu rigorosamente o significado de E. ao modo de ser do homem, empregando, para indicar
o ser dos outros entes finitos, o termo "presença" (Vorhandenheii): "A natureza do Ser-aí consiste na sua E. As
características que podem ser extraídas desse ente nada têm a ver portanto com as 'propriedades' de um ente presente
'que tem este ou aquele aspecto', mas são sempre e somente possíveis modos de ser. Toda modalidade de ser desse
ente é primordialmente ser. Por isso, o termo Ser-aí [Dasein], pelo qual indicamos tal ente, exprime o ser, e não a
qüididade, como ocorre quando se diz pão, casa, árvore" {Sein und Zeü, § 9). Heidegger afirmava com igual clareza a
resolubilidade da E., assim entendida em suas possibilidades. "O Ser-aí", diz ele, "é sempre a sua possibilidade, e ele
não a 'tem' do mesmo modo como um ente presente [isto é, uma coisa] possui uma propriedade. Por ser
essencialmente possibilidade, o Ser-aí pode, em sendo, 'escolher-se' e conquistar-se, ou então perder-se, ou seja, não
se conquistar, ou só se conquistar aparentemente. Ele só pode perder-se ou não se ter ainda conquistado porque, em
seu modo de ser, comporta uma possibilidade de autenticidade, ou seja, de apropriar-se de si mesmo" {Ibid., § 9). Da
natureza possível da E. deriva, portanto, para a E. a alternativa entre o modo de ser inautêntico, que é o da E.
cotidiana e impessoal, dominada pela tagarelice, pela
EXISTÊNCIA
401
EXISTÊNCIA
curiosidade e pelo equívoco (v.), e a E. autêntica, que é a de quem reconhece e escolhe a possibilidade mais própria
do seu ser. Essa possibilidade própria é a da morte: essa conclusão constitui a característica da filosofia de Hei-degger
(v. EXISTENCIALISMO). Mas as análises de Heidegger evidenciaram algumas características da E. que se mostraram
válidas para compreendê-la e interpretá-la, mesmo fora dos compromissos ontológicos ou metafísicos de que partiam
aquelas análises. A E. como possibilidade é transcendência para o mundo e, como tal, é ato de projetar. Mas o ato de
projetar é, ao mesmo tempo, inclusão do ser-aí pro-jetante no mundo e sua submissão às condições do mundo. "O
projeto de possibilidades, em conformidade com sua essência, vai ficando cada vez mais rico do que a posse em que
o projetante se achava anteriormente. Mas semelhante posse só pode pertencer ao ser-aí porque este, enquanto
projetante, sente-se imerso no meio do ente. Mas, com isso, e em conseqüência de sua efetividade, o ser-aí já perde
outras possibilidades. Mas é justamente essa perda de determinadas possibilidades do po-der-ser-no-mundo, implícita
na inclusão no ente, que põe adiante do ser-aí com seu mundo as possibilidades realmente alcançáveis no projeto do
mundo" (Wesen des Grundes, III; trad. it., p. 68). Para quem observa não só outras formas de existencialismo, mas
também outras doutrinas contemporâneas (instrumen-talismo, naturalismo, neo-empirismo) e a postura das ciências
modernas em suas pesquisas sobre o homem (biologia, psicologia, sociologia), parece extremamente importante e
fecunda essa interpretação da E. como ato de projetar, em que o projetante já está condicionado pelas coisas ou pelos
entes de cujas relações parte seu projeto, encontrando-se por isso diante de possibilidades limitadas. Essa
interpretação também serve de base para entender a liberdade finita do homem. Heidegger diz: "prova transcendental
da finitude da liberdade do ser-aí é que o projeto concreto do mundo, em seu impulso, ganha força e só se torna posse
com a perda [de possibilidades determinadas], Será que nisso não se mostra com clareza a essência finita da liberdade
em geral?" (Ibid., III; trad. it., p. 69).
Essas características da E. são reconhecidas, ainda que com tônicas diferentes, pelas outras formas do existencialismo
contemporâneo. Para Jaspers, também a E. é E. possível, definida pelas relações consigo mesma e com a Transcendência (Phil., I, p. 13). Mas são as relações com a Transcendência que
dominam a E. na filosofia de Jaspers: as relações do homem consigo mesmo e com o mundo são consideradas apenas
formas imperfeitas, aproximadas e, em última análise, ilusórias e desastrosas do relacionamento do homem com a
Transcendência. Mas o relacionamento com a Transcendência não se inclui entre as possibilidades humanas: desse
modo, essas possibilidades são examinadas e avaliadas com base naquilo que, para o homem, é uma impossibilidade
efetiva e suprema (Jbid., III, pp. 4 ss.). Possibilidade, transcendência, projeto são também os termos com que a E. é
analisada por Sartre, que, romanticamen-te, vê nela a aspiração para o infinito, definindo o homem como 'o ser que
projeta ser Deus" {Eêtreetlenéant, 1943, p. 653). Embora a possibilidade existencial tenha sido o tema dominante do
existencialismo contemporâneo, com muita freqüência suas características específicas foram esquecidas ou negadas.
Tais características podem ser assim expostas-, Ia Uma possibilidade sempre tem dois aspectos inseparáveis, em
virtude dos quais é, simultaneamente, possibilida-de-de-sim e possibilidade-de-não. Nada garante a realização
infalível de uma possibilidade, mas tampouco nada exclui infalivelmente a sua realização. Reduzir uma possibilidade
ao seu aspecto positivo significa transformá-la em determinação necessitante, em alguma coisa que não pode não ser.
Reduzir a possibilidade ao seu aspecto negativo significa transformá-la em uma determinação negativa igualmente
necessitante, ou seja, em alguma coisa que não pode ser. Em ambos os casos, abandona-se o terreno da possibilidade
para entrar no da necessidade (v.). 2- A possibilidade é uma determinação finita, sujeita a limites e condições que, ao
mesmo tempo em que a efetivam e validam, delimitam seu âmbito. Portanto, a frase "possibilidade infinita" deve ser
considerada contraditória: uma possibilidade infinita é, na verdade, possibilidade de nada porque não comporta
definição nem delimitação. Analogamente, a frase "todas as possibilidades" deve ser considerada sem sentido, se
tomada sem outras determinações (do tipo, p. ex., "de que xdispõe" ou "que a situação ^comporta"), visto que a
totalidade absoluta das possibilidades constituiria a garantia infalível da realização de cada uma delas, privando-as
precisamente do caráter de possibilidade. 3â Com os procedimentos disponíveis identifica-se um
EXISTENCIAL e EXISTENCIÁRIO
402
EXISTENCIALISMO
campo de possibilidades para estabelecer a distinção entre as possibilidades efetivas ou autênticas e as fictícias. Os
domínios da indagação científica e da atividade humana em geral podem ser considerados campos de possibilidades
nesse sentido (cf. ABBAGNANO, Struttura delVE., 1939; Introduzione alVesistenzialismo, 1942, 4a ed., 1956;
Possibilita e liberta, 1957).
EXISTENCIAL e EXISTENCIÁRIO (ai. Exis-tential, existentielt). A diferença entre esses dois termos foi
estabelecida por Heidegger, no sentido de que o primeiro significa uma determinação constitutiva da existência, uma
característica ou um caráter essencial dela (correspondente à categoria para as coisas), cuja determinação cabe à
ontologia, ao passo que o segundo designa a compreensão que cada homem tem de sua própria existência ao decidir
sobre as possibilidades que a constituem ou escolhê-las (Sein undZeit, §§ 4, 9). A análise de Heidegger é existencial
porque tende a rastrear as características essenciais e peculiares à existência, ou seja, a construir uma ontologia cujo
objeto é o ser da existência. A análise de Jaspers, ao contrário, mantém-se, e quer manter-se, no plano existenciãrio.
Jaspers, com efeito, repudia a ontologia no sentido de ciência objetiva que considera os caracteres essenciais da
existência iPhil., I, 24) e julga que a única análise possível da existência é ao mesmo tempo escolha e decisão, ou
seja, pensamento existenciário ilbid., I, 13 ss.; II, 1 ss., etc).
EXISTENCIALISMO (in. Existentialism; fr. Existentialisme, ai. Existentialismus; it. Esisten-zialismó). Costuma-se
indicar por esse termo, desde 1930 aproximadamente, um conjunto de filosofias ou de correntes filosóficas cuja
marca comum não são os pressupostos e as conclusões (que são diferentes), mas o instrumento de que se valemia
análise da existência. Essas correntes entendem a palavra existência (v.) no significado 39, vale dizer, como o modo
de ser próprio do homem enquanto e um modo de ser nojnundQ, em deterrnTnada situação, analisâveí em termos de
possibilidade. A análise existencial é, portanto, a análise das situações mais comuns ou fundamentais em que o
homem vem a encontrar-se. Nessas situações, obviamente, o homem nuncaf éj& nunca encerra pm sj a totalidade
infinita, o mundo, o ser ou a natureza. Portanto, para o E., q,termo existência tem significado completamente
diferente do de outros termos como consciência, espírito, pensamento, etc, que servem para interiorizar ou, como se diz, tornar "imanente" no homem a realidade ou o
mundo em sua totalidade. Existir significa relacionar-se com o mundo, ou seja, com as coisas e com os outros
homens, e como se trata de relações não-necessárias em suas várias modalidades, as situações em que elas se
configuram só podem ser analisadas em termos de possibilidades (v.). Esse tipo de análise foi possibilitada pela
fenomenologia (v.) de Husserl, que elaborou o conceitó~de transcendência (v.). Segundo esse conceito, nas relações
entre sujeito cognoscente e objeto conhecido ou, em geral, entre sujeito e objeto (não só no conhecimento, mas
também no desejo, na vo-lição, etc), o objeto não está dentnido_sujei-tjc^_majS_]2e£manece fora, e dá-se a ele "em
carne e osso" (Ideen, í, § 43). Esse conceito manteve-se rigoroso na filosofia de Husserl, ^ mas exerceu grande
influência no E., para o $ qual as relações entre o ser-aí (isto é, o ente <,j_que existe, o homem) e o mundo sempre se
configuraram como transcendência.
Essa formulação do problema filosófico opõe o E. a todas as formas, positivistas ou idealistas, do romantismo
oitocentista. O romantismo afirma que no homem age uma força infinita (Humanidade, Razão, Absoluto, Espírito,
etc.) de que ele é apenas manifestação. Oji^ afirma que o homem é uma realidade finita. que existe e age por sua
própria conta e risco. CTrómantismo afirma que o mundo em que o homem se encontra, como manifestação da .força
infinita que age no homem, tem uma ? ordem que garante necessariamente o êxito L final das ações humanas. Q„E^
afirma que o 'L homem_gstá "lançado no mundo",lxTsejãreRIre~ í> Sue ao determinismo do mundo, qjjepodetor-■S
nar
vãs ou impossíveis, as suas iniciativas. O ^ romantismo afirma que a liberdade, como ação v do princípio
infinito, é infinita, absoluta, criadora e capaz de produções novas e originais a cada momento. O E^ajirma que a
liberdade do homem é condicionada, finita e õbstada por mlflfásTImitações qüe a todõjmõrnento_pqdem torná-la
estéril e fazê-la reincidir no que já foi oujáToi feito. O romantismo afirma o progresso contínuo e fatal da
humanidade. O E. desconhece ou ignora a noção de progresso porque não pode entrever nenhuma garantia dele. O
romantismo tem sempre certa tendência espiritualista, tende a exaltar a importância da inte-rioridade, da
espiritualidade e dos valores ditos
EXISTENCIAUSMO
403
espirituais, em detrimento do que é terrestre, material, mundano, etc. O E. reconhece, sem pudores^ a
importância e o peso guie têm para ,i
o homem a çytenrtrtffãrfp ^"materialidade, a/j
''mundanidade" em geral, donde as condições dá realidade humana que estão compreendidas sob esses
termos-, necessidades, uso e produção das coisas, sexo, etc. O romantismo considera insignificantes
certos aspectos negativos da experiência humana, como a dor, o fracasso, a doença, a morte, porque não
dizem respeito ao princípio infinito que se manifesta no homem e, portanto, "não existem" para ele. O E.
considera tais aspectos particularmente significativos para a realidade humana e insiste neles ao
interpretá-la. ; A antítese^ entre os_tema^un^rnentais do v IL_£jos^ojrQjnarjJtisjno. é ín^rejiasjüferentes
c
Sí§§2ÍIÍíLSÍ£--^.£--^^
mãojpara interpretar a realidade, entendendosé por categonâ~um instrumento de análise^õu sejajjamjnstjmnentode descnpü51;Thre~rpreta-~ ção da
realidade. Dissemos que a análise existencial é analise de relações: estas se acentuam em torno do
homem, mas imediatamente vão para além dele, porque o vinculam (de diversos modos, que é preciso
determinar) à realidade e ao mundo de que faz parte ou, em outras palavras, aos outros homens ou às
coisas. Ora, essas relações não têm natureza estática, não são, p. ex., apenas relações de identidade,
semelhança, etc. As relações do homem com as coisas são constituídas pelas possibilidades de que o
homem dispõe (em maior medida ou menor grau, conforme as diversas situações naturais e históricas)
para usãFã£5iz_ sãlTêTnanlpüIa-lãsTcorn o trabalho), a fim_de proverias suas^nécêssidades. E as
relações com oslxitros hõmèhsT consistem em possibilidades de colaboração, solidariedade,
comunicação, amizade, etc, que têm também graus e formas diferentes, conforme as diversas condições
naturais, sociais e históricas. Ora, dizer que alguma coisa é possível significa prever e projetar ativamente.
Portanto as possibilidades humanas geralmente têm mesmo um caráter de antecipação (porque voltado
para o futuro) das expectativas ou dos projetos, e as normas que as disciplinam — desde as normas da
ciência e da técnica até as dos costumes, da moral, do direito, da religião, etc. — servem para dar certo
fundamento e certa garantia de êxito às expectativas e aos projetos. Assim, p. ex., as normas técnicas
servem para garantir que ce"ftõ~õt5jeTõ
EXISTENCIAUSMO
(uma casa, uma máquina) possa ser construído ou produzido de modo a satisfazer determinada
necessidade; as normas morais servem para garantir que as relações humanas possam desenrolar-se da
forma mais pacifica e orde-nada possível^ etc. As~êxpectativas óu""prõ]ê"-tos, porém, continuam sendo
o que são: possibilidades cuja realização é mais ou menos segura, mas nunca infalível (uma casa pode
cair, sua comodidade pode ser maior ou menor; uma máquina pode sair com defeito ou inútil; as relações
humanas podem passar da ordem à desordem, da paz à hostilidade, etc). Por isso, a categoria descritiva e
interpretativa fundamental de que o E. se vale é a da possibilidade.
As várias tendências do E. podem ser reconhecidas e distinguidas a partir do significado que dão
à(cãtégõn|>da possibilidade e dõ~uso que dela fazem. Assim, é possível distinguir três tendências
principais, cujos fundamentos são, respectiva mente-Q0) impossihiljdade Ho possívek2gi3e£ej5sidade do
possível! 3Q.f>ossibj-lidade do possível.
1Q Já em meados do séc XIX, Kierkegaard insistira na importância da categoria da possibi-lidade, e por
isso é a ele que os filósofos da existência costumam reportar-se. Mas Kierkegaard também insistira no
agfjecto nadificante jdçvpcKsíyel, que torna problemáticas e negativas tanto as relações do homem com o
mundo quanto as relações do homem consigo mesmo ê com Deus. De fato, segundo Kierkegaard^ as
relações do homem com o_mundo são domina-dag_peja angúsHãJque leva o homem a perceber que a
possibilidade corrói e destrói as expectativas ou capacidades humanas além de destroçar cálculos e
habilidades com a ação do acaso e das possibilidades insuspeitas (Conceito da angústia, 1844). A relação
do homem consigo mesmo, que constitui o eu, é dominada pela desesperação, ou seja, pela condição na
qual o homem desencontra porque percorreu uma possibilidade após outra sem deter-se ou porque
esgotou suas limitadas possibilidades, e o futuro se fecha diante dele (A doença mortal, 1849). A própria
relação com Deus — que parece oferecer ao homem um caminho de salvação da angústia e do desespero
(porque "para Deus tudo é possível") —, por não ter garantias absolutas e por ser dominada pelo
paradoxo, não pode oferecer certeza nem repouso (Temor e tremor, 1843; Diário, passim). Desse modo,
ao analisar a existência humana com
EXISTENCIAUSMO
404
EXISTENCIAUSMO
base na lratégoria_do_gossível, Kierfcegaardj entendia o possível exclusivamente em seu aspecto
ameaçador^ negativo, vendo nele "aquilo que é impossível realizar-se", mais do que "aquilo que pode não
se realizar". A filosofia de Heidegger adota essa mesma interpreta-NO ção. Não há dúvida de que, em
análises que se 5 tornaram clássicas, Heidegger deixouj:laro que l a existência é
s
Ltrãnsç.endência[i!Èr9JâOÍ .njas_ ^ também mostrou quelranscendência e projejo .- sãou afinal,
impossíveis, porque a_ transcendi' dência fica aquérn_ do que deveria transcender ' e o projeto é
dominado e. anulado por aquilo qu£Já_é_ou jájlão.é mais. O caráter da existên-""^ cia que acaba
prevalecendo na filosofia de Hei-, J deg^gx^jjg^€^55^1pu(factualidãoSjdj3_s^rraX_ ^t
/awffldojTÕjnundpTem meio aos outros entes, no mesmo nível deles e por isso à mercê de ser o que de
fato é. Desse modo, a existência só pode ser aquilo que já passou. Suas possibilidades não são' aberturas
para o futuro, mas reincidência no passado e só fazem reapre-sentar o passado como futuro. Por isso,_o (/
J ítranscender, o projetar, é uma impossibilida-{Í -, ■' I de~rã7Jicairurn"fTãdã~nádíBcanie, Não resta
ou-e w''tra aTtenTãtiva autêntica anão ser antecipar ou .(y projetar esse mesmo nada. Isso é o "viverpa-,A. ^rarâzinorte", ou seja, para "a possibilidade da \. ■ s -' impossibilidadeda^existêncía" XSein und
Zeit, x •'
§ 53). A "possibilidade da impossibilidade" seria uma contradição em termos, se
possibilidade não sjgjiiji^s^e^j^ui^compreensãò"/^ existência é essencial e radicalmente impossí-vel;
õque é possível é a çonipreensão^dessiL impossíbilidaderviver para a mor£e_Ê^precisaj_ mente7tal
compreensão.
ComcTsê viu, acaíacterística da filosofia de Heidegger (ao menos na sua primeira fase, a única que pode
ser chamada de existencialista) /éjjr^sjormação do conceito dejjossibilidaX [ de^como instrumento de
análise da exlstenciay no de impossíblTidade. Ó mesmo fato verifica-se na fiíosofTãlÜê^Tãspers. De um
extremo a outro de sua FilosõJícÇJãspers fala da existên-çia__gossível e sua análise é, explicitamente,
análisè~cIãs~possibilidades da existência. Mas, assim como para Heidegger, rio fundo tais possibilidades
não são mais do que outras tan^ tãslmpossibilidãdes. Eu não posso ser senão o que sou (JPhil., II, p. 182),
não posso tornar-me senão o que sou; não posso querer senão o que sou; e o que sou é a situação em que
me encontro e sobre a qual nada posso ilbid. I, p. 145). Jaspers diz explicitamente que as expressões "eu escolho", "eu quero" significam na realidade "eu devo" ilch muss; Phil, II, p. 186), o que
significa que a possibilidade de ser, de agir, de querer, de escolher, na realidade é a impossibilidade de
agir, escolher e querer de modo diferente daquilo que se é, isto é, das condições de fato implícitas na
situação que nos constitui.
O mesmo predomínio do conceito de possibilidade e a mesma transformação final em impossibilidade
podem ser encontrados no E. de Sartre, Para esse E., a possibilidade última da realidade humanaTa sua
escolha originaria, é~õ~ projeto fundamental em que se inserem todos os" atos e as volições de um ser
humano. Tal projeto ê fruto de uma liberdade sem limites, absoluta e incondicionada: de uma liberdade
que faz do homem uma espécie de Deus criador do seu mundo e o torna responsável pelo mundo. O
homem é, de fato, definido por Sartre como "g_ser qujjjjrojejtjysejJDejas" (L'être et le néant, p.
653),_ina^jrata;s^_d^jm2Deus_ felid^^e^i^irojetoj^sojve-seeíi^ftacasso. Aquilo que na doutrina de
Heidegger e de Jaspers é obra da necessidade factual que limita e destrói qualquer possibilidade de
transcender o fato, na doutrina de Sartre é obra da infinidade de possibilidades que se eliminam e se
destroem reciprocamente, num jogo fútil e vão que provoca náusea: pois nenhuma delas possui maior
validade ou solidez que a outra, sendo, pois, impossível escolher uma ou outra, a não ser cegamente. Uma
escolha absoluta ou "absolutamente livre", como a que Sartre atribui ao homem, é perfeitamente idêntica
à "não-escolha" ou à "escolha da escolha" de Heidegger e Jaspers, no sentido <le que não é uma escolha,
mas a própria impossibilidade de escolher. Mais uma vez, o conceito do possível se transformou subrepticiamente no do impossível.
Dessa tendência deriva a noção de existen-cialismo como "filosofia negativa", "filosofia da angústia" ou
"do fracasso", o que não é de todo exato, pois refere-se a apenas uma das correntes existencialistas e,
ainda assim, apenas a alguns de seus aspectos. Dessa noção comum derivou o uso generalizado desse
termo não só para designar certas correntes literárias e artísticas, mas também certos costumes, atitudes e
até modos de vestir. Esse uso generalizado, apesar de ser ainda mais impróprio do que a noção comum
que lhe deu origem, pode ser explicado observando que, na maior parte dos casos, serve para chamar a
atenção sobre os as-
EXISTENCIALISMO
405
EXISTENCIALISMO
pectos mais desfavoráveis, negativos e des-concertantes da vida humana, ou seja, sobrei os aspectos da vida humana
enquanto é umj _simples poder ser, completamente desprovido de qualquer garantia de estabilidade e certeza. A
chamada literatura existencialista tende, de fato, a dar destaque às vicissitudes humanas menos respeitáveis e mais
tristes, pecaminosas e dolorosas,,bem como à inçerte^a^dosjejngreen-^ dimentoslbqnsi.Qyjmaus e à ambigüidade do
bem, que pode dar origem ao seu contrário. De modo semelhante, atitudes, costumes e modas eram qualificados de
"existencialistas" quando pretendiam ser formas de protesto contra o otimismo superficial e a respeitabilidade
burguesa da sociedade contemporânea. Seja qual for o julgamento que se faça sobre essas manifestações, cujo caráter
superficial e grotesco muitas vezes é evidente, mas cuja responsabilidade não deve recair sobre a corrente filosófica
de que estamos falando, está claro que, dessa forma, o E. representou uma poderosajorça de destruição
dg^i3grjaaJásjxio_a.bsolutista do seç. XIX, dos seus mitos otimistas e do seu falso sentimento de segurança, aliás tão
duramente desmentidos pelas vicissitudes dos últimos decênios. Não pairam dúvidas, pois, quanto à função resolutiva
e libertadora que essa forma de E. exerceu nos últimos vinte anos, mas tampouco pairam dúvidas quanto à sua
incapacidade de preparar instrumentos válidos que contribuam para a solução positiva dos problemas humanos.
2- Se a primeira interpretação reduz as possibilidades humanas a reais impossibilidades, a segunda interpretação as
considera, no extremo oposto, como potencialidades, no sentido aristotélico do termo. Assim entendidoTcvpõssívêTpeKlê~séTr aspecto negativo e preocupante, já que uma potencialidade está sempre "destinada a realizar-se"
(LAVELLE, DU temps et de Véternité, 1945, p. 26l). Essa transformação do possível, de categoria de instabilidade e
incerteza problemática para categoria de estabilidade e certeza, é obtida graças à vinculação das possibilidades
existenciais a uma Realidade absoluta da qual elas aufeririam garantia de realização infalível. Para [LaveTIel essa
realidade absoluta é o Ser (De l'êfrê^l928; De 1'acte, 1937; Du temps et de Véternité, 1945), para\GT \^TíTné,'
(Obstacle et valeur, 1934), a realidade "absoluta é entendida como valor infinito. A realidade absoluta também como
Ser é entendida poiflvErcel,: que porém acredita que o ser
só se revela no mistério de que se circunda e que, por isso, a única atitude possível do homem diante dele é a de amor
e fidelidade (Journal Métaphysique, 1927; Être et avoir, 1935; Du refus à 1'invocation, 1940). Mas, qualquer que
seja o modo de entender a realidade absoluta, por se fundarem nela as possibilidades existenciais transformam-se em
ró-seas perspectivas de sucesso, e assim nada do que o homem realmente éjyiejjhjamjdqs seus valores fundamentais
podem perder-se, já que elas têm garantia absoluta e trãm^cêTTclcrP feT 'Essã"corréritè cTó ET, que tem caráter e
finalidade religiosa, do ponto de vista filosófico tem o defeito de constituir um panegírigo da realidade humana, e não
uma tentativa de compreendê-la e de propiciar uma justificação post factum da experiência humana, muito
semelhante à tentada pelas filosofias românticas. A . se admitir que todas as possibilidades existenciais estão
destinadas a realizar-se, porquanto S fundadas no Ser ou no Valor, só se estarão o encobrindo os insucessos e as
misérias do ho-£ mem com um manto verbal. A se admitir, ao ó~ contrário, que nem todas as possibilidades hu-_
manas_estão fundadas no Ser e no Valor, e que nem todas estão destinadas a realizar-se, pro-por-se-á o embaraçoso
problema de fornecer um critério para reconhecer quais são as possibilidades realmente fundadas: problemas para
cuja solução o pressuposto do fundamento transcendente dessas possibilidades em nada contribui.
3e Enfim, para uma terceira interpretação. própria do E. italiano, as possibilidades existenciais devem ser assumidas e
mantidas como tais, sem serem^t£aj^formada^em_irnpossibilidades nem em potencialidades. Nesse caso, a
perspectiva aberta por uma possibilidade não é nem a realização infalível nem a impossibilidade radical, mas a
busca_ tendente a estabelecer os limites e.jjs_çp.ndições da própria,p_os_sibJlida-de_.e, portanto, o grau de garantia
relativa ou parcial que ela pode oferecer. Essa corrente do E. acentua a tendência naturalista e empirista já presente —
ainda que de forma disfarçada ou imperfeita — nas outras correntes (N. ABBAG-NANO, Struttura delVesistenza, 1939;
Introdu-zione alVesistenzialismo, 1942; Filosofia, reli-gione, scienza, 1948; Possibilita e liberta, 1956; E PACI,
Principi di una filosofia deWessere, 1939; Pensiero, esistenza, valore, 1940; Tempo e relazione, 1954). Segundo essa
tendência, a investigação dos limites e das condições a que as
EXOTÊRICO
406
EXPERIÊNCIA
possibilidades humanas estão submetidas só pode ser feita com a utilização de técnicas de verificação e controle de
que a indagação positiva ou científica dispõe em todos os campos. Se uma hipótese, uma teoria ou uma proposição
não passam de um ^poder ser" que abre pers-pectiva para o futuro, sua validade consiste não só em poderem ser
postas à prova, mas também em poderem ser repropostas depois da prova, ainda como um "poder ser" para o futuro.
Por isso, os critérios utilizados pelas ciêjTaas_em_ge^ ^ ral e discipIiriaiT èm parficular,~com o fim de de- p
cidifsõBrê a_validade das suas proposições ..e_da_i<F realidade dos seus objetos, podem ser assumi- '{í dos como
determinações ou especificações do critério da possibilidade; ou, reciprocamente, este último pode ser assumido
como a generali-. zação de critérios específicos. Desj>e_j3ontojíe_ , '/vista, o homemnerné lançado sem defesas_con3^tra a falência„e afracasso, nem estájjestinado ao ji" triimfojinal; contudo, possui as garantias par-,j$i> ciais e
limitadas que lhe são oferecidas por suas £ ^técnicas, por seus modos de vida experimen-è\~tados e pelas
possibilidades, ^jue_jelas_lhe_ r& abrem, de encontrar e experimentar novas j? ^ possibilidades. Cf. Á. SANTUCCI, E.
e filosofia \~italiana, 1959.
EXOTÉMCO. V. ESOTÉRICO. EXPECTATIVA (in. Expectation; fr. Attente-, ai. Erwartung; it. Aspettazioné).
Antecipação de um acontecimento futuro (v. FUTURO). Uma das formas da atenção ou atenção expectante, que é o
preparo para a ação e a disposição das condições mentais capazes de enfrentá-la (v. ATENÇÃO). Quando a E. é
mantida no estágio de excitação, com inibiçâo das disposições à realização da ação, torna-se um estado semipatológico ou patológico, devido à exaltação das emoções. (P. JANET, De Vangoisse à l'êxtase, pp. 1Ó8 ss.).
EXPERIÊNCIA (gr. è|i7ceipí(X; lat. Experien-tia; in. Experience, fr. Experience, ai. Erfah-rung; it. Esperienzà).
Este termo tem dois significados fundamentais: le a participação pessoal em situações repetíveis, como quando se diz:
"x tem E. de S", em que S é entendido como uma situação ou estado de coisas qualquer que se repita com suficiente
uniformidade para dar a x a capacidade de resolver alguns problemas; 2a recurso à possibilidade de repetir certas
situações como meio de verificar as soluções que elas permitem: como quando se diz "a E. confirmou x", ou então: "a
proposição p pode ser confirmada pela E.". No
primeiro desses dois significados, a E. tem sempre caráter pessoal e não há E. onde falta a participação da pessoa que
fala nas situações de que se fala. No segundo significado, a E. tem caráter objetivo ou impessoal: o fato de a
proposição p ser verificável não implica que todos os que fazem tal afirmação devam participar pessoalmente da
situação que permite confirmar a proposição p. O elemento comum dos dois significados é a possibilidade de repetir
as situações, e isso deve ser considerado fundamental na significação geral do termo. Essa determinação implica que:
d) esse termo não é usado com propriedade quando se fala de uma E. "excepcional" ou até mesmo "única", a menos
que esses adjetivos sejam (como de fato muitas vezes são na linguagem comum) exageros retóricos para indicar a
pouca freqüência com que certa situação se repete ou a impro-babilidade de que ela se repita para o mesmo indivíduo;
b) esse termo não se restringe necessariamente a indicar situações "sensíveis", mas pode indicar situações de qualquer
natureza em que se possa contar com suficiente repetibilidade. Além disso, o uso desse termo no significado 2- supõe
uma condição fundamental, sem a qual a E. não pode exercer nenhuma ação de averiguação; qual seja: c) a E. a que
se recorre para a averiguação deve ser independente das crenças que é chamada a averiguar, de tal modo que as
crenças não acabem por determinar a averiguação. Sem essa importante limitação, uma ilusão repetida ou repetível
poderia ser assumida como prova de validade. Portanto, pode-se falar (como muitas vezes se faz na linguagem
contemporânea) de "E. religiosa" ou "E. mística", etc, só no significado 1 Q do termo, mas essas fôrmas de E. não
podem ser utilizadas para verificar as crenças de que partem, pelo fato de que são inteiramente dependentes de tais
crenças e não podem ocorrer sem elas. Dos dois significados enunciados, o 2° é o comum a todas as correntes do
empirismo (v.), ao passo que o le é historicamente anterior e ainda hoje é compartilhado por algumas correntes da
filosofia.
Ia A primeira e mais evidente característica da primeira noção de E. é constituída pela oposição entre, por um lado,
arte, e ciência ou conhecimento racional, por outro. Essa contraposição foi claramente enunciada por Platão a
propósito da medicina. Platão diz que os médicos dos escravos "não averiguam as doenças" e "prescrevem o que lhes
parece melhor pela
EXPERIÊNCIA
407
EXPERIÊNCIA
E. como se tivessem uma ciência perfeita", comportando-se "como um tirano soberbo", O médico dos
homens livres, ao contrário, "estuda as doenças, mantém os doentes desde o princípio em observação,
procura a natureza do mal, estabelece relações estreitas com o doente e com seus familiares e, ao mesmo
tempo, aprende com os doentes e ensina-lhes o que é possível" {Leis, IV, 720 c-d). O empirismo moderno
consideraria compatível com a E. precisamente o comportamento que, nesse trecho, Platão contrapõe à
própria E. Mas essa observação mostra a diferença que separa os dois significados de E. aqui enunciados.
Aristóteles deu forma clássica a essa doutrina no primeiro capítulo de Metafísica e no último de
Analíticos posteriores. Sua tese fundamental é a redução da E. à memória. Aristóteles diz que todos os
animais têm "uma capacidade seletiva inata", que é a sensação. Em alguns deles, a sensação não persiste;
para estes, não há conhecimento fora da sensação. Outros, porém, finda a sensação, podem conservar
alguns vestígios dela na alma. Nesse caso, depois de muitas sensações dessa natureza, determina-se em
alguns animais uma espécie diferente de conhecimento, que é o conhecimento racional. De fato, "a partir
da sensação desenvolve-se aquilo que chamamos de lembrança, e da lembrança repetida de um mesmo
objeto nasce a E., assim, lembranças que são numericamente múltiplas constituem uma experiência.
Dessa E. ou do conceito universal que se fixou na alma como uma unidade que, estando além da
multiplicidade, é una e idêntica em todas as coisas múltiplas, nasce o princípio da arte e da ciência: da
arte, em relação ao devir; da ciência, em relação ao ser" (An. post., II, 19, 100 a 4). Assim entendida, a E.
contrapõe-se à arte e à ciência, ao mesmo tempo em que é condição delas. É condição delas porquanto é
ela que suscita a inteligência dos primeiros princípios da arte, da ciência. "Esses hábitos", diz Aristóteles,
"não subsistem em nós separadamente, nem são produzidos por outros hábitos mais cognoscitivos, mas
pela própria sensação, do mesmo modo como, p. ex., se um exército está fugindo e um soldado pára, pára
também o soldado que o segue e depois o outro, e assim por diante, até o princípio da fila" (An. post., II,
19, 100 a 9). Nessa comparação, a parada do primeiro soldado é a permanência de certa sensação na
memória (p. ex., do homem Cálias), a parada de outro soldado depois de várias filas
já é um conceito (p. ex., homem), e a parada do princípio da fileira corresponde aos conceitos últimos e
simples, que são os princípios da arte e da ciência e intuições pelo intelecto (Ibid., II, 19, 100 a 9). Notese que o próprio uso do verbo "parar" com que Aristóteles expressa a persistência ou a estabilidade da
lembrança — que constitui a E. e por fim leva à inteligência dos princípios — corresponde àquilo que é a
característica objetiva da E.: a possibilidade de repetir as situações. Pela ação condi-cionante que a E.
exerce sobre a inteligência dos princípios, Aristóteles chega a dizer que "conseguimos reconhecer os
princípios primeiros com a indução; e, com efeito, a sensação produz desse modo o universal" (Ibid., 100
b 3 ss.). Mas é claro que entre um soldado qualquer parar e a primeira fila de soldados parar há uma
diferença radical: a parada da primeira fila é a inteligência dos primeiros princípios, que são
necessariamente verdadeiros, independentemente de qualquer confirmação que a E. possa dar. Eles são,
aliás, indiferentes à confirmação ou à refutação e justamente por isso são objeto de um órgão específico,
que é o intelecto. O reconhecimento desse órgão obviamente é sugerido a Aristóteles pela exigência de
fundar a validade necessária dos primeiros princípios, ou seja, de tornar esses princípios independentes de
qualquer confirmação ou refutação empírica. Esta estabelece o quase sempre, não o sempre. Portanto, em
face da inteligência, que apreende os princípios, o processo preparatório que vai das sensações à E. é
puramente acidental e só apresenta a vantagem de ser o mais cômodo e óbvio para o homem. Mas para
Aristóteles a E. permanece o que era para Platão: consiste em conhecer o fato que ocorre repetidamente,
mas não a razão pela qual ocorre: assim, é conhecimento do particular e não do universal, de tal modo que
saber e conhecer cabem à arte e à ciência, não à E. (Met., I, 1, 981 a 24). Portanto, em Aristóteles está
totalmente ausente a noção (própria do significado 2 Q, de E. como possibilidade de verificação e de
averiguação das verdades alcançáveis pelo homem. Aristóteles não pode, portanto, ser chamado
empirista. Para ele, a E. se reduz à repetição freqüente, mas não absolutamente constante de certas
situações memorizáveis.
Ao longo da história da filosofia, esse conceito de E. permanece como uma das alternativas possíveis,
cujas características às vezes também influenciam o outro conceito. Os
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408
EXPERIÊNCIA
escritores medievais, em geral, o repetem (S. TOMÁS, S. Th., I, q. 54, a. 5; II, I, q. 40, a. 5, etc); como o repetem
Spinoza (Et., II, 40, scol. 2) e Leibniz (Théod., Disc, § 65; Monad., §§ 28-29).
2a O recurso à E. como critério ou cânone da validade do conhecimento é característico do empirismo, distinguindo-o
do sensacionis-mo(v.). Este consiste simplesmente em asserir a natureza intuitiva, portanto privilegiada, do
conhecimento sensível, mas sem que tal conhecimento se constitua em guia e controle do conhecimento em geral. Os
estóicos, p. ex., foram sensacionistas, mas não empiristas; os epicuristas, que, ao contrário, elaboraram e defenderam
uma teoria da indução, foram também empiristas. No âmbito desse significado da palavra, é possível distinguir duas
interpretações fundamentais, quais sejam: a) teoria da E. como intuição, b) teoria da E. como método.
a) A teoria da E. como intuição considera a E. como o relacionar-se imediato com o objeto individual, usando como
modelo de E. o sentido da visão. Desse ponto de vista um objeto "conhecido por E." é um objeto presente em pessoa
e na sua individualidade. A tese fundamental dessa concepção é a seguinte: existem unidades empíricas elementares.
A concepção leva a admitir que existem dados elementares originários aos quais é confiada em última análise a
função de verificação do conhecimento. Por sua vez, a existência das unidades empíricas elementares permite
estabelecer uma classe privilegiada de proposições, que são as que exprimem diretamente essas unidades.
O recurso à E., quando formulado pela primeira vez no plano filosófico, no séc. XIII, foi um recurso à intuição. "Sem
a E.", dizia Roger Bacon, "nada se pode conhecer suficientemente. Os modos de conhecer são dois: a argumentação
(argumentum) e a experiência. A demonstração conclui e nos faz concluir a questão, mas não dá certezas e não
remove a dúvida, já que a alma não se aquieta na intuição da verdade se não a encontrar por via da E." (Opus maius,
VI, 1). Essas palavras de Bacon já incluem o recurso à E. como averiguação e norma da verdade humana. Mas
também incluem o conceito intuitivo da experiência. É verdade que, para Bacon, a intuição não é somente sensível:
ao lado da E. sensível, que é fonte ou critério das verdades naturais, Bacon admite uma E. "interna" ou sobrenatural,
devida à iluminação divina e que é a fonte das virtudes sobrenaturais. Mas o caráter intuitivo da E. permaneceria mesmo
depois que a E. sobrenatural foi posta de lado pelo desenvolvimento ulterior do empirismo. Segundo Ock-ham, a E.,
que é "o princípio da arte e da ciência", é o conhecimento intuitivo perfeito, que tem por objeto as coisas presentes,
dife-renciando-se por isso do imperfeito, que tem por objeto as coisas passadas (In Sent., II, q. 15, H; Prol., q. 1, 2).
Intuitivo é o conhecimento "era virtude do qual se pode saber se uma coisa existe ou não. Se existe, imediatamente o
intelecto julga que existe. Além disso, intuitivo é o conhecimento mediante o qual se sabe que uma coisa inere em
outra, que um lugar dista de outro, que uma coisa tem certa relação com a outra ou, em geral, uma verdade
contingente qualquer, especialmente a respeito do que está presente" (Ibid., Prol., q. 1, Z). Ockham considera que se
pode ter conhecimento intuitivo não só das coisas exteriores, mas também dos estados internos do homem, como as
'inte-lecções, as volições, a alegria, a tristeza e semelhantes, de que o homem pode ter E. em si mesmo, mas que não
são sensíveis para nós" (Ibid., Prol. q. 1, HH). Essa segunda espécie de conhecimento intuitivo corresponde
exatamente à reflexão de Locke. No espírito do ockha-mismo, Jean Buridan declarava imperfeita a arte "doutrinai",
ou seja, a que despreza a E.; essa arte, notava ele, não conhece o significado dos seus princípios, nem das suas
conclusões, sendo perfeita apenas a arte que conhece pela E. tanto os princípios, que a arte doutrinai se limita a
pressupor, quanto as conclusões particulares a que eles conduzem (In Met., I, q. 8). A limitação da E. à intuição
sensível foi reforçada, a partir do Renascimento, pelo anti-racionalis-mo. Como as verdades pretensamente válidas,
sem verificação ou averiguação, eram atribuídas à "razão", a exigência de averiguação implícita no recurso à E.
parecia só poder voltar-se para a intuição sensível. Esta aparecia como fonte de verdades ou de procedimentos
independentes da. razão, logo capaz de exercer uma ação de freio ou limite sobre as pretensões da razão. A partir do
séc. XVI, o recurso à E. passa a ter significado claro de limite ou negação das pretensões da razão. Telésio justificava
o sensacionismo identificando "o que a natureza revela" com "o que os sentidos testemunham" (De rer. nat.,
proêmio), argumentando que a natureza se revela à parte do homem que é na-
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tureza, ou seja, à sensibilidade. E Leonardo da Vinci afirmava que "a sabedoria é filha da E." e que a E. nunca
engana, apesar de poder enganar-se o juízo sobre ela {Cod. Ati, foi. 154 r). Mas tanto em Leonardo da Vinci quanto
em Galilei, ao lado da E. sensível aparece outro fundamento ou cânon do conhecimento humano: o raciocínio
matemático. Ao lado da "sensata E.", Galilei colocava explicitamente as "demonstrações necessárias" da matemática
como outra via através da qual a natureza se revela ao homem {Carta à Grand. Cristina, em Op., V, p. 316). Essa já
era uma limitação importante à interpretação da E. como intuição sensível, pois as demonstrações matemáticas não
transcendem o domínio da natureza (que, segundo Galilei e Kepler, está escrita inteiramente em caracteres
matemáticos), sendo portanto constitutivas da E. natural. Aliás, é significativo que o verdadeiro fundador do
empirismo moderno, Francis Bacon, não seja de modo algum sensacionista e que, para ele, o guia do conhecimento
humano não é a simples E., que procede ao acaso e sem diretrizes, mas o experimento, que é a E. guiada e
disciplinada pelo intelecto {Nov. Org., 1,82). A interpretação intuitiva da E. deveria, porém, prevalecer no empirismo
setecentista graças a Locke e Hume. A teoria da E. de Locke pode ser resumida nos seguintes pontos: 1 Q'redução da
E. à intuição das coisas externas (sensação) ou dos atos internos (reflexão); 2S resolução da sensação e da intuição em
elementos simples, entendidos cartesianamente como idéias, 3Q uso da noção de E. como critério ao mesmo tempo
limitativo e fundamentador do conhecimento humano, já que este não pode ir além da E. que lhe fornece as idéias e,
ao mesmo tempo, recebe da E., com o material indispensável e com os nexos que esse material apresenta, o critério
da sua validade {Ensaio, IV, cap. 3-4). Esse último aspecto é enfatizado por Locke inclusive como norma limitativa
das pretensões cognoscitivas do homem porque assumido como limite da possível extensão do conhecimento
humano. Na realidade, se considerarmos o fato de Locke ter imposto esse limite não só ao domínio do conhecimento,
mas também ao da política, da moral e da religião, campos em que o conceito de relação direta com o objeto não tem
sentido, deveremos concluir que, no conjunto de sua filosofia, ele realizou uma atitude empirista que vai além de sua
teoria da experiência. Com Locke, delineou-se a concepção de E.
como totalidade do mundo humano, ou seja, como conjunto de sistemas de averiguação instituíveis nele, que é a
característica da concepção metódica da experiência. Mas está claro que em Locke também se encontra, pela primeira
vez, a definição das unidades empíricas elementares, que são as idéias e as relações imediatas entre as idéias. A
mesma assunção, com outras palavras, encontra-se na teoria de Hume. O ponto de vista deste filósofo está expresso
com toda clareza nas últimas frases de Investigação sobre o intelecto humano: "Se tomarmos um volume qualquer,
como p. ex. de teologia ou de metafísica escolástica, perguntaremos: contém algum raciocínio abstrato sobre
quantidades ou números? Não. Contém algum raciocínio experimental sobre questões de fato ou de existência? Não.
Então, ponha-o no fogo, pois só contém sofismas e ilusões." De fato, para Hume, todos os objetos da investigação
humana dividem-se em duas grandes classes: as relações entre as idéias e as coisas de fato. As relações entre idéias
"podem ser descobertas com uma operação pura do pensamento, sem depender de coisas que existem em algum lugar
do universo. Ainda que não existisse nem sequer um círculo ou um triângulo na natureza, as verdades demonstradas
por Euclides conservariam certeza e evidência" {Inq. Cone. Un-derst., IV, 1). Portanto, as verdades dessa natureza
(que constituem a geometria, a álgebra, a aritmética e, em geral, a matemática) não precisam de averiguação, mas sua
verificação está à disposição do homem a qualquer momento e sem recurso a confirmações experimentais. No que
concerne aos conhecimentos da realidade de fato, ao contrário, o seu único fundamento é a relação entre causa e
efeito. Mas, por sua vez, o fundamento dessa relação é a E., e se perguntarmos qual é o fundamento das conclusões
tiradas da E., a resposta a ser dada, segundo Hume, é que esse fundamento nada tem de racional, mas é simples
instinto. De fato, "todas as nossas conclusões experimentais fundam-se na suposição de que o futuro será conforme ao
passado. Mas buscar a prova desta última suposição com argumentos prováveis ou referentes à existência deve ser,
evidentemente, um círculo vicioso, e tomar por admitido o que é duvidoso" {Inq., cit., IV, 2). Portanto, o que nos
resta é o instinto, a aconselhar-nos a aceitar como boa uma inferência — a do passado para o futuro — que não pode
ter justificação racional nem empírica. O fundamento dessa crítica é a
EXPERIÊNCIA
410
EXPERIÊNCIA
redução da E. às impressões e à relação entre as impressões, relação que também é intuída, ou seja, percebida aqui e
agora, portanto, desprovida de qualquer significado ou referência que transcenda a instantaneidade das impressões.
Hume operou a mais radical redução da . E. à intuição, porque reduziu a intuição a intuição instantânea, que nada
significa fora de si. Desse ponto de vista, a construção de procedimentos ou de esquemas de previsão é impossível:
como censurou Kant, Hume tornava impossível a formação de uma ciência qualquer. Todavia, foi justamente a teoria
da E. de Hume que, através de Mach, tornou-se o pressuposto do neo-empirismo contemporâneo. Mach resolvera o
fato empírico em elementos considerados últimos e originários: as sensações. Um fato físico ou um fato psíquico não
passa de um conjunto relativamente constante de elementos simples: cores, sons, calor, pressão, espaço, tempo, etc.
Desse ponto de vista, a diferença substancial entre o físico e o psíquico desaparece. "Uma cor", diz Mach, "é um
objeto físico enquanto considerarmos, p. ex., sua dependência das fontes luminosas (outras cores, calor, espaço, etc),
mas se a considerarmos em sua dependência da retina é um objeto psíquico, uma sensação" (Die Analyse derEmpfindungen, 9a ed., 1922, p. 14). Essa doutrina conferia à noção de unidade empírica elementar a forma com a qual ela
exerceu e ainda exerce função central no neo-empirismo contemporâneo. Wittgenstein valeu-se dela em Tractatus
logico-philosophicus (1922). Nessa obra, aceitava-se a distinção de Hume entre verdades de razão e verdades de fato,
expri-mindo-a na forma da oposição entre as proposições da matemática e da lógica, que são "analíticas",
"tautológicas", "não dizem nada" {Tractatus, 6,1; 6,11), e as proposições elementares das ciências naturais que
representam os "estados de coisas" (Sachverbalte) ou "fatos atômicos" Ubid., 4, 1), os quais nada mais são do que as
impressões de Hume ou as sensações de Mach: unidades empíricas elementares. Por sua vez, em Visão lógica do
mundo (1928), Carnap tentava reduzir todo o conhecimento científico aos termos da E. intuitiva, e a unidade empírica
elementar a que recorria era a "Vivência elementar" (Elementarerlebnis), considerada como um elemento neutro,
anterior à distinção entre objetivo e subjetivo CAufbau, § 67), segundo o modelo da "sensação" de Mach. Mas essa
concepção de E., precisamente como a de Hume (que, no fundo, era idêntica), impossibilitava a ciência ao impossibilitar a formulação de
regras para a previsão dos fenômenos. Foi essa, justamente, a crítica dirigida a Carnap pelo próprio Círculo de Viena
(cf. K. Popper, Logik der Forschung, 1934; cf. a nova edição inglesa, The Logic of Scientific Discovery, 1959).
Conseqüentemente, Carnap modificou seu conceito de verificabilidade empírica. No texto Testabüity and Meaning
(1936), diz ele: "Os positivistas acreditavam que todo termo descritivo da ciência podia ser definido por termos de
percepção e, portanto, que todo enunciado da linguagem pudesse ser traduzido em um enunciado sobre as percepções.
Essa opinião foi expressa nas primeiras publicações do Círculo de Viena, inclusive na minha, de 1928, mas hoje
penso que não era de todo adequada: a redutibilidade pode ser afirmada, mas não a ilimitada possibilidade de
eliminação e retradução" ("Testabüity and Meaning", em Readings in thePhil. of Science, 1953, p- 67). Esse
reconhecimento eqüivale a uma restrição da tese da verificabilidade empírica dos enunciados científicos, tese que
Carnap exprime dizendo: "Todo predicado descritivo da linguagem da ciência é confirmável com base em
predicados-coisa observáveis" Ubid., p. 70). A confirmabilidade, com efeito, é uma exigência mais fraca e menos
rigorosa do que a experimentabilidade: um enunciado pode ser confirmável sem ser experimenta vel: isso ocorre, por
exemplo, quando sabemos que uma observação x nos daria condições de confirmar ou invalidar o enunciado, mas não
estamos em condições de efetuar a observação x. Mas essa restrição, que sem dúvida amplia o domínio dos
enunciados significativos e dá à ciência o direito de empregar enunciados que não tem condições de pôr à prova, não
constitui uma retificação do conceito de experiência. O complexo aparato que Carnap propõe como instrumento de
redução de qualquer enunciado científico a enunciado experimentável ou, pelo menos, confirmável, apóia-se na
crença de que existe correspondência estreita entre um enunciado verdadeiro e determinada E. intuitiva. O modo
como ele define o predicado observável realmente faz referência à E. imediata, visto que Carnap declara, p. ex., que
um campo elétrico não é absolutamente observável Ubid., pp. 63-64). Em outros termos, nessa segunda fase do
pensamento de Carnap, os "predicados observáveis" constituem as unida-
EXPERIÊNCIA
411
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des empíricas elementares que servem de fundamento aos enunciados sintéticos. Portanto, nessa segunda fase, com a
distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos, permanece ainda a noção intuitiva de E. e, com isso, a
crença na existência de unidades empíricas elementares. O que mudou foi apenas a qualificação de tais unidades
elementares, que deixam de ser experiências subjetivas ou percepções, mas determinações objetivas ou qualidades
sensíveis. Essa fase do pensamento de Carnap pode ser considerada como o desenvolvimento máximo da noção de E.
como intuição. De fato, o reconhecimento, por parte de Quine, dos "dois dogmas do empirismo" (natureza intuitiva
da E. e distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos) constitui a passagem para uma concepção
diferente da experiência. Entrementes, é significativo o fato de a teoria da E. como intuição ser compartilhada não só
por empiristas, mas também por seus adversários, como p. ex. Husserl, que censura no empirismo a ignorância ou o
desconhecimento das "essências" e julga, portanto, que o verdadeiro procedimento cognoscitivo é a "visão essencial"
do matemático. Segundo Husserl, a E. do naturalista, que, para ele, é "um ato fundamentador, que não pode ser
substituído pela simples imaginação", é apenas visão, intuição do individual (Icleen, I, §§ 7, 20). Esse conceito é
confirmado por ele nas obras póstumas, onde se lê que a E., "no seu significado primeiro e mais pregnante", deve ser
considerada "relação direta com o individual" {Erfahrung und Urteil, 1954, § 6).
b) A teoria da E. como método considera-a operação (mais ou menos complexa, nunca elementarmente simples)
capaz de pôr à prova um conhecimento e capaz de orientar sua retificação. Uma operação que atinge esse objetivo é
repetível ou recorre a situações repetíveis, portanto nunca é: l e uma atividade pessoal ou incomunicável (p. ex.,
subjetiva ou mental), que não possa ser repetida por qualquer pessoa; 2Q intenção, imaginação ou anúncio de
operação, mas a operação efetiva. Nesse sentido, "perceber" não é operação empírica quando se refere à sensação que
x tem do vermelho, mas sim quando é operação tendente a confirmar ou averiguar se, p. ex., há um objeto vermelho
nesta sala, desde que essa operação possa ser realizada por qualquer pessoa nas condições adequadas. Portanto, o
objeto empírico não é a "sensação" ou a "impressão" de
vermelho (como Carnap parece crer), mas a coisa vermelha, como p. ex. o livro ou a luz cuja presença pode ser
confirmada nesta sala, seja com operações perceptivas normais (que podem ser praticadas por qualquer pessoa que
tenha visão normal), seja com instrumentos (p. ex., um espectroscópio, etc). A sensação "vermelho" não é levada em
conta; isso porque, mesmo não sendo diretamente acessível a alguns indivíduos (os daltônicos), um objeto vermelho
não deixa de ser um objeto empírico para todos, inclusive para os daltônicos. A empiricidade de um objeto consiste
no fato de ele poder ser verificado ou averiguado por quem quer que esteja na posse dos meios adequados; e o fato de
existirem certos meios capazes de propiciar essa averiguação significa que eles podem ser utilizados tanto por quem
crê quanto por quem não crê na existência do objeto, e que a eficácia dos meios não depende de uma ou de outra
crença. Em sentido negativo, essa noção de E. é caracterizada por: lfi ausência de distinção entre verdades de razão e
verdades de fato, ou entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos, 2° pela ausência de postulação de uma
unidade empírica elementar.
Pode-se dizer que essa noção de E. foi delineada pela própria prática da pesquisa científica desde seus primórdios. A
"sensata E." de Galilei, que nunca estava separada do raciocínio matemático, tem esse caráter prático de averiguação
e não pode ser interpretada como recurso à intuição imediata. O próprio fundador do empirismo moderno, Francis
Bacon, entendeu a E. como campo das verificações e das averiguações intencionalmente executadas. Dizia Bacon:
"Quando a E. vem ao nosso encontro espontaneamente, chama-se acaso; se procurada deliberadamente, tem o nome
de experimento. Mas a E. vulgar outra coisa não é. senão um proceder às apalpadelas como quem vaga à noite de lá
para cá na esperança de topar com o caminho certo, quando seria muito mais útil e prudente esperar o dia ou acender
um candeeiro para achar o caminho. A ordem verdadeira da E. começa com acender o candeeiro, com o que se
ilumina o caminho, co-meçando-se com a E. organizada e madura, e não com uma E. irregular e às avessas; primeiro,
deduz os axiomas, depois procede a novos experimentos" (Nov. Org., I, 82). Em outros termos, para valer como fonte
de aferição dos conhecimentos, a E. deve incluir uma ordem,
EXPERIÊNCIA
412
EXPERIÊNCIA
que, para Bacon, é de natureza intelectual, embora depois deva servir de freio e norma ao próprio intelecto {Ibid., I,
101). A característica fundamental dessa concepção é a ausência de distinção entre verdades de razão e verdades de
fato, ou seja, entre verdades que se fundam unicamente nas inter-relações de idéias e verdades que derivam da
experiência. A ciência moderna, a partir de Galilei, ignora essa distinção, que tampouco é reproduzida pela distinção
kantiana entre juízos analíticos e sintéticos, porque tal distinção não concerne à validade dos juízos, mas à diferença
entre juízos explicativos e juízos extensivos, entre juízos que nada acrescentam ao conhecimento do sujeito e juízos
que lhe acrescentam novas notas {Crit. R. Pura, Intr., 4). De fato, Kant elabora um conceito de E. segundo o qual a E.
é irredutível à simples intuição sensível. Para Kant, a E. é o conhecimento efetivo e, por isso, inclui a totalidade das
suas condições. Kant diz: "Toda E. encerra, além da intuição dos sentidos para a qual algo é dado, o conceito de um
objeto que é dado ou aparece na intuição, por isso, na base de todo conhecimento experimental há conceitos de
objetos em geral como condições a priori; por conseguinte, a validade objetiva das categorias, como conceitos
apriori, dever-se-á ao fato de que só graças a elas é possível a E. (segundo a forma do pensamento)" {Ibid., Analítica,
§ 14). E ainda: "A E. apóia-se na unidade sintética dos fenômenos, numa síntese, segundo conceitos, do objeto dos
fenômenos em geral, sem a qual nunca seria um conhecimento, mas uma rapsódia de percepções que nunca poderiam
adaptar-se umas às outras, no contexto regular de uma (possível) consciência inteiramente unificada, portanto, nem à
unidade transcendental necessária da percepção. A E. tem, pois, como fundamento os princípios da sua forma a
priori, ou seja, as normas universais da unidade da síntese dos fenômenos, normas cuja realidade objetiva sempre
pode ser encontrada na E., como aquela das condições necessárias dela, aliás, da sua própria possibilidade" {Ibid.,
Analítica, II, 2, seç. 2). A E. não é, portanto, a "rapsódia" de percepções sensíveis, mas a ordem e a regularidade do
conhecimento que constituem a contraparte subjetiva (ou "formal") da ordem e da regularidade da natureza.
Justamente como tal, a E., ou melhor, a possibilidade da E., é o critério último da legitimidade de qualquer
conhecimento possível. Para Kant um conhecimento que não
é uma E. possível não é um conhecimento objetivo, ou seja, autêntico {Ibid., Analítica, II, 2, seç. 2). Mas se esse é o
conceito de E. que Kant elabora nem sempre é o que utiliza ao longo de sua obra. Se, de fato, esse significado fosse
rigorosamente observado, Kant não poderia dizer, como diz bem no início da Razão Pura (Intr., 1): "Se bem que
todos os nossos conhecimentos comecem com a E., nem por isso derivam todos da E." O conhecimento não pode
derivar nem deixar de derivar da E., se ele éa experiência. Donde resulta que todo o conceito kantiano do a priori
como o que é "independente da E." deriva do uso ambíguo desse termo, que, ao contrário da definição explícita que
Kant lhe dá, às vezes se limita a indicar a intuição sensível, de tal modo que a ordem, a regularidade, as categorias e
os princípios não se incluem em seu âmbito e devem ser considerados apriori. Está bem claro que, se a E. inclui
ordem, regularidade, etc, os princípios que garantem tal ordem, ou seja, a forma da E., não podem ser chamados de a
priori, "independentes da'E.", tampouco sendo possível assim designar o conteúdo da E., isto é, o seu material
sensível.
O significado dessa doutrina está na tese de que o conhecimento efetivo é o que se organiza segundo o princípio de
causalidade, ou seja, segundo uma ordem necessária. Fichte exprimia com exatidão essa tese kantiana ao dizer: "O
sistema das representações acompanhadas pelo sentimento da necessidade chama-se também E., seja ela interna ou
externa. Por isso, a filosofia tem a função de explicar toda E." {Erste Einleitung in die Wissenschaftslehre, 1797, § 1,
em Werke, I, 1, pp. 419 ss.). Desse ponto de vista, o método de explicação causai é, por excelência, o método
empírico. Por isso, a concepção da E. como método tem sentido restrito em Kant: a E. como método identifica-se
com a explicação causai. Na filosofia contemporânea, o conceito de E. como método foi defendido pelo pragmatismo
e pelo instrumentalismo. Peirce dizia: "cuidamos somente da E. possível, E. na plena acepção do termo, como algo
que não só afete os sentidos, mas seja também o sujeito do pensamento" {Chance, Love and logic, II, 2; trad. it., p.
131). Dewey, por sua vez, nega que a E. seja "um conteúdo objetivo" ou que se identifique com um objeto singular.
"Na E. efetiva, nunca se dá tal objeto singular ou evento isolado; um objeto ou evento é sempre uma parte, um
momento ou um aspecto especial de um
EXPERIÊNCIA
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EXPERIÊNCIA
mundo ambiental experimentado, isto é, de uma situação. O objeto singular tem grande destaque devido à posição
focai e crucial que ocupa em dado momento, quando se visa determinar alguns problemas de uso e fruição que o
ambiente global apresenta. É sempre em certo campo que se verifica a observação deste ou daquele objeto." Por
conseguinte, "os juízos de E. e os juízos formais acerca de objetos ou de eventos não se dão para nós quando isolados,
mas só quando vinculados a um contexto abrangente, que se chama situação" (Logic, III; trad. it., p. 111). As
características que Dewey atribui à E. podem ser assim resumidas: Ia a E. não é consciência, logo não pode ser
reduzida à intuição (Experience andNature, 1925, cap. I); 23 a E. não é somente conhecimento, embora inclua o
conhecimento, mas compreende tudo o que, a qualquer título, pode ser experimentado pelo homem (essa extensão já
fora feita por Peirce, que entendera por E. "o curso da vida" [Coll. Pap., 3, 4351 ou "a história pessoal" [Ibid., 4, 91]);
ò- a E. é o campo de toda pesquisa possível e da projeção racional do futuro: nela, por isso, "a razão tem
necessariamente função construtiva" (Phil. and Civilizatíon, 1931, pp. 24-25). Por importantes que sejam esses
pontos, que exprimem algumas das exigências para uma teoria metodológica, constituem uma abordagem genérica
demais dessa teoria. Para isso, por outro lado, constitui condição preliminar a crítica feita por Quine aos dois
"dogmas" fundamentais do empirismo, quais sejam, à distinção entre enunciados analíticos e enunciados sintéticos e
reducionismo sensacionista. Quanto ao primeiro, Quine distinguiu os enunciados lógicos (p. ex., "Nenhum homem
não casado é casado"), cuja verdade permanece inalterada enquanto permanecer inalterado o uso das partículas
lógicas (não, se, então, etc), e as outras verdades chamadas analíticas (p. ex., "Nenhum solteiro é casado"), que têm
esse nome porque certas palavras são assumidas como sinônimos (nesse caso: "solteiro" e "não casado"). Ora, os
procedimentos para estabelecer a sinonímia são dois: le definição: mas esta, salvo no caso de novas notações
introduzidas com convenções explícitas, não faz mais que esclarecer relações precedentes de sinonímia; 2intercambialidade salva veritate (que é o critério proposto por Leibniz): mas "nada garante que a coincidência
extensiva entre 'solteiro' e 'não casado' se baseie no significado e não em um estado de fato acidental, como ocorre na
coincidência extensiva
de 'criatura com um coração' e 'criatura com rins'" (Prom a Logical Point of View, II, 3). A intercambiabilidacle
pressupõe a sinonímia, mas não a funda, assim como a analiticidade não pode fundar-se nas regras semânticas de uma
linguagem artificial, já que tais regras definem o que é analítico para a linguagem em questão, mas não o significado
de analiticidade, que está pressuposto. A conclusão de Quine é que não foi demarcado "um limite entre enunciados
analíticos e enunciados sintéticos. Que tal distinção deva ser feita é dogma não empírico dos empi-ristas, artigo
metafísico de fé" (Ibid., II, 5). O segundo dogma dos empiristas é a redução dos enunciados empíricos a termos de E.
imediata, ou seja, a dados sensíveis. Quine mostra a relação dessa tese, tanto na forma mais ampla quanto na mais
restrita, correspondentes às duas fases do pensamento de Carnap, com a distinção entre analítico e sintético. "Os dois
dogmas", diz ele, "são idênticos na raiz. Vemos que, em geral, a verdade dos enunciados depende obviamente tanto
da linguagem quanto do fato extralin-güístico e notamos que essa circunstância óbvia acaba produzindo, não lógica
mas naturalmente, o sentimento de que a verdade de um enunciado é analisável em um componente lingüístico e um
componente factual. Se formos empiristas, o componente factual deverá conduzir-nos a um conjunto de E.
verificadoras. No outro extremo, onde o componente lingüístico é o único que interessa, será verdadeiro o enunciado
analítico. Minha opinião é que isso é uma tolice e que a raiz dessa tolice consiste em falar de um componente
lingüístico e de um componente factual na verdade de todos os enunciados individuais. Tomada coletivamente, a
ciência tem dupla dependência, da linguagem e da E., mas essa dualidade não pode ser estendida aos enunciados
isolados da ciência" (Ibid., II, 5). Desse ponto de vista, o saber pode ser comparado a um tecido cinzento, que é preto
para os fatos e branco para as convenções lingüísticas nele entrelaçadas, mas no qual não há fios totalmente brancos
nem fios totalmente pretos (Carnap e a verdade lógica, em "Riv. di Fil.", 1957, ns 1); ou então a um campo de força
cujas condições limítrofes são a experiência. "Um conflito com a E. na periferia", diz Quine, "ocasiona uma
reacomodação no interior do campo. Os valores de verdade devem ser redistribuídos sobre algumas das nossas asserçôes. A reavaliação de umas asserções implica a reavaliação de outras, em virtude das suas cone-
EXPERIÊNCIA
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EXPERIMENTO
xões lógicas, ao mesmo tempo que as leis lógicas são outras tantas asserções do sistema, outros tantos elementos do
campo... Mas o campo total é tão subdeterminado pelas condições limítrofes, ou seja, pela E., que há grande
amplitude na escolha das asserções a serem reavaliadas à luz de uma E. contrária isolada" (From a Logical Point of
View, II, 6). Portanto, mesmo uma afirmação muito próxima da periferia pode ser considerada verdadeira se
comparada a uma E. recalcitrante, considerando esta como ilusória ou reformando algumas das asserções chamadas
de leis lógicas (como ocorreu, p. ex., com o princípio do terceiro excluído). Mas nenhuma asserção está imune à
revisão. É significativo que justamente um dos maiores lógicos contemporâneos tenha liquidado o pressuposto lógico
da doutrina da E. como intuição, e que um dos maiores expoentes do neo-empirismo contemporâneo tenha procurado
liqüidar esse mesmo conceito de experiência. Na realidade, este segundo intento não foi levado a cabo por Quine.
Admitir para o campo total do saber a composição de conceito e sensação que se nega aos componentes individuais
do saber só pode ser considerada uma posição provisória. Quine fala ainda do "fluxo de E." (Ibid., II, 6) no mesmo
sentido em que Hume podia falar do fluxo das impressões, e afirma que os objetos físicos, destacados desse fluxo,
por seu caráter mítico, não são diferentes dos deuses de Homero. Nesse aspecto, ele sofre a influência da obra de
Duhem (La théorie phy-sique, 1906). Mas pelas mesmas observações feitas por Quine o fluxo da E. deve ser
considerado um conceito mítico, pois seria uma sucessão ou corrente de intuições instantâneas, um suceder-se de
unidades empíricas elementares, e suporia, portanto, a existência de tais unidades elementares que a crítica de Quine
contribuiu para eliminar.
Em conclusão, hoje se entrevê a exigência de passar da teoria gnosiológica da E. para uma teoria metodológica. Para
a teoria gnosiológica, a E., como forma, elemento ou categoria em si, é formada por elementos próprios,
característicos e irredutíveis, aos quais, portanto, deve ser reduzido, direta ou indiretamente, todo enunciado empírico.
Uma teoria desse gênero tem como pressuposto uma classificação preliminar e rígida das formas de conhecimento e
também, portanto, das formas de atividade humana (teoria-prática; lógica/linguagem/razão-E.; enunciados empíricosunidades empíricas elementares; lógica centro-E. periferia). Uma teoria metodológica da E. deveria, ao contrário, prescindir de qualquer
classificação preliminar e, em todo caso, de qualquer rigidez classifica-tória das atividades humanas em seu conjunto.
Suas análises deveriam ser aplicadas aos procedimentos efetivos de verificação e averiguação de que o homem
dispõe, seja como organismo, seja como cientista. A análise desses procedimentos deveria determinar as condições e
os limites de validade de cada um. Só desse modo, o exame dos componentes lógico-lingüísticos nunca se separaria
do exame dos componentes factuais, segundo a exigência de Quine. A própria distinção entre tais componentes
deveria ser supérflua em qualquer nível. Infelizmente, embora a psicologia contemporânea esteja bem à frente na
análise dos procedimentos de verificação e confirmação de que o homem dispõe como organismo (pense-se
sobretudo nas contribuições que a psicologia funcional tem dado à análise da percepção), a metodologia científica, ou
seja, o exame dos procedimentos de verificação e confirmação de que o homem dispõe na ciência, ainda não passa de
intenção. Está claro que, do ponto de vista de uma tal metodologia, a E. seria somente o conjunto dos campos em que
as técnicas de verificação ou averiguação de que o homem dispõe se revelassem eficazes.
EXPERIÊNCIA PURA. V. EMPIRIOCRITICISMO.
EXPERIMENTO (lat. Experimentum; in. Experiment; fr. Experiment; ai. Experiment; it. Esperimentó). Embora
essa palavra às vezes seja usada para indicar a experiência em geral, seu valor específico é o de experiência
controlada ou dirigida, ou seja, de observação (v.). Já na Idade Média esse termo foi usado com esse sentido (cf., p.
ex., OCKHAM, In Sent., Prol., q. 2, G), mas esse significado só foi fixado por Bacon, que contrapôs o E. como
experientia litterata, ou seja, guiada e sustentada por uma hipótese, à experiência que vai espontaneamente ao
encontro do homem e é casual (Nov. Org., I, 83, 110). Wolff, por sua vez, dizia: "O E. é uma experiência que diz
respeito a fatos naturais que só acontecem quando intervém nossa ação" (Psychol. Empir., § 456). Kant falava no
mesmo sentido de um "E. da razão pura", que consistia em ver se a hipótese da existência do incon-dicionado conduz
ou não a contradição; se conduz a contradição, o E. demonstra que a razão não pode superar os limites da experiência
EXPERIMENTO CRUCIAL
415
EXPLICAÇÃO2
(Crít. R. Pura, Prefácio à 2- edição). Ainda aqui se trata de uma experiência controlada. Claude Bernard, porém, às
vezes chamava o E. de experiência, entendendo com isso "uma observação provocada com o fim de dar origem a uma
idéia" {lntroduction á Vétude de Ia médecine expérimentale, 1865, I, § 6).
EXPERIMENTO CRUCIAL. V. CRUCIAL
EXPIAÇÃO (gr. 5ÍKr|; lat. Expiatio; in. Atonement; fr. Expiation; ai. Siihne, it. Espia-zioné). Efeito salutar da pena.
Platão considerou a E. como o meio de curar as doenças da alma e acreditou que, assim como a economia liberta da
pobreza e a medicina liberta da doença, também a justiça liberta da intem-perança e da injustiça (Górg., 478 a) (v.
PENA).
EXPLICAÇÃO1 (lat. Explicatio; in. Explication; fr. Explication; ai. Auslegung; it. Espli-cazioné). O contrário de
complicação (v.).
EXPLICAÇÃO2 (in. Explanation, Explication; fr. Explication; ai. Erklãrung; it. Spiega-zioné). Em geral, todo
processo tendente a determinar o porquê de um objeto, a tornar um discurso ou uma situação clara e acessível ao
entendimento ou a eliminar dificuldades e conflitos de uma situação. Esse termo, já usado por Cícero nesse sentido
(Definibus, III, 4, 14; De nat. deor., III, 24, 62, etc), foi retomado por Nicolau de Cusa no sentido de manifestação:
"Deus é a complicação de todas as coisas, porque todas as coisas estão nele; e é a explicação de todas as coisas
porquanto ele está em todas as coisas" {De docta ignor., II, 3). Sob a metáfora do "aplainar", "entender", "tornar
explícito", esse termo oculta uma multiplicidade de significados que podem ser distinguidos segundo as situações a
que fazem referência. Temos, então, que:
le em face de um termo, explicar significa determinar seu significado, interpretá-lo (v. INTERPRETAÇÃO);
2S em face de um enunciado analítico, explicar significa substituir o enunciado em questão por um enunciado menos
vago, mais exato ou, se possível, próprio de uma linguagem formal (CARNAP, Meaning and Necessity, § 2).
3S em face de uma situação humana de conflito, explicar significa eliminar as causas ou os motivos do conflito;
4Q em face de um objeto em geral, seja ele coisa, evento ou pessoa, explicar significa fornecer o porquê de ele ser ou
acontecer.
Desses quatro significados, é ao quarto que se refere o problema específico da natureza da
E. As várias doutrinas que a filosofia e a metodologia da ciência apresentaram sobre a natureza da E. versam todas
sobre o significado do porquê e sobre as possíveis respostas que ele pode ter. Desse ponto de vista, podem ser
distinguidas duas espécies fundamentais de técnicas explicativas: Á) técnica explicativa causai; B) técnicas
explicativas condicionais.
A) Existem dois tipos de E. causai, correspondentes aos dois conceitos fundamentais de causalidade que se alternaram
na tradição filosófica e científica (v. CAUSALIDADE): d) o conceito de causalidade como dedutibilidade, b) o conceito
de causalidade como uniformidade. Como esses dois conceitos de causalidade têm a pretensão de possibilitar uma
previsão infalível, por E. causai pode-se entender, em geral, toda técnica que permita a previsão infalível de um
objeto. Mas como a previsão infalível só é possível quando se trata de objetos necessários, ou seja, que não podem
não ser ou não podem ser diferentemente do que são, a E. causai é, em todos os casos, a demonstração da necessidade
do seu objeto. Desse ponto de vista, afirmar que "x foi explicado" significa afirmar "x foi demonstrado em sua
necessidade" e portanto "x era infalivelmente previsível". Sobre essa base comum, é possível distinguir: d) técnica
explicativa causai que recorre à dedutibilidade; b) técnica explicativa causai que recorre à uniformidade.
d) A técnica explicativa que recorre à dedutibilidade é a da metafísica clássica, sobretudo de Aristóteles. Embora
tenha distinguido quatro espécies de causas, Aristóteles reconhece, para efeito de E., o primado da causa final como
razão de ser, substância ou forma do objeto (Depart. an., I, 1, 639 b, 14; 642 a, 17; cf. CAUSALIDADE) Desse ponto de
vista, a E. finalista é primordial e fundamental, coincidindo com aquela que, em termos modernos, se chama E.
genética, por recorrer à causa eficiente, que, em última análise, coincide com a causa final. Nesse sentido, a E. causai
identifica-se com a demonstração (v.), porquanto é demonstração da necessidade. Nesse aspecto, Hegel só fazia
repetir o ensinamento de Aristóteles, quando afirmava ser tarefa da filosofia especulativa "a demonstração da
necessidade", vendo só nela a satisfação da necessidade própria da razão. Mas esse conceito de E. não se encontra
apenas na metafísica: foi freqüentemente estendido para a ciência. Quando, contra a análise positivista da ciência, E.
Meyerson
EXPLICAÇÃO2
416
EXPLICAÇÃO2
afirmava que a ciência não procura só a previsão, mas a E. dos fenômenos, estava reduzindo a E. à identificação,
porque só a identificação permite a dedução do fenômeno. E diz: "Em virtude da causa ou da razão e com a ajuda de
operação pura de raciocínio, devemos poder concluir no fenômeno. É o que se chama uma dedução. A causa, então,
pode ser definida como ponto de partida de uma dedução de que o fenômeno é o ponto de chegada" (De 1'explication
dans les sciences, 1927, p. 66; cf. Identitéet réalité, 1908). Por outro lado, o próprio positivismo remetera a E. ao
domínio da dedução. Stuart Mill escreve: "Diz-se que determinado fato está explicado quando se indica a sua causa,
ou seja, a lei ou as leis de causação cujo exemplo é sua produção... De modo semelhante, diz-se que uma lei ou
uniformidade de natureza está explicada quando se indica outra lei, ou outras leis, de que aquela lei é um caso e das
quais ela pode ser deduzida" (Logic, III, 12, 1). Além disso, uma das tentativas mais conhecidas da "lógica da E.", no
âmbito do positivismo lógico, que é a de C. G. Hempel e P. Oppenheim, obedece à mesma inspiração. Dando o nome
de explanandum ao enunciado que descreve o fenômeno a ser explicado e de explanam à classe dos enunciados
aduzidos na consideração do fenômeno (a preferência dada ao termo explanation e seus derivados, na literatura
anglo-saxônica atual, é determinada pela exigência de reservar o termo expli-cation à análise dos enunciados),
Hempel e Oppenheim assim descrevem as "condições lógicas da adequação": "(R 1) O explanandum deve ser
conseqüência lógica do explanans, em outras palavras, deve ser logicamente de-dutível da informação contida no
explanans, senão este não constituirá o fundamento adequado para o explanandum. (R 2) O explanans deve conter
leis gerais, e estas devem ser realmente necessárias à derivação do explanandum. (R 3) O explanans deve ter um
conteúdo empírico, ou seja, pelo menos em princípio, deve ser suscetível de comprovação por experimento ou
observação". A essas condições lógicas Hempel e Oppenheim acrescentam uma "condição empírica", que é a
seguinte: "(R 4) Os enunciados que constituem o explanans devera ser verdadeiros" ("The Logic of Explanation",
1948, em Readings in the Philosophy of Science, ed. Feigl e Brodbek, 1953, pp. 321-22). Essa doutrina da E. está em
oposição à concepção que reduz a E. a princípios ou elementos familiares, à qual recorrem os adeptos do segundo tipo de E. causai (Ibid., p. 330). Essa mesma
doutrina foi estendida por Hempel ao campo da história ("The Function of General Laws in History", em Journal of
Philosophy, 1942, pp. 35-48), com a exigência de que a E. causai seja acompanhada pelo prognóstico infalível do
fenômeno explicado (Ibid., p. 38). Observou-se com justiça que toda a sua teoria da E. pode ser adaptada à física
newtoniana, mas é completamente incapaz de dar conta daquilo que se deve entender por E. na física quântica (N. R.
HANSON, "On the Symmetry between Explanation and Predic-tion", em The Philosophical Review, 1959, pp. 349-58).
Com maior razão, esse tipo de E. não pode ser considerado adequado no domínio da história e, em geral, das ciências
(v. mais adiante).
b) O segundo tipo de E. causai é o que recorre ao conceito de causa como uniformidade de interconexão dos
fenômenos. Esse é o conceito introduzido por Hume e utilizado por Comte como fundamento da E. "positiva" dos
fenômenos. Comte contrapôs à tentativa metafísica de descobrir "os modos essenciais de produção" dos fenômenos a
tarefa puramente descritiva da ciência positiva, que se limita a descobrir as leis dos fenômenos, ou seja, suas relações
constantes (Cours dephil. positive, 4a ed., 1887, II, pp. 169, 268, 312, etc). No estágio positivo, dizia Comte, "a E. dos
fatos, reduzida aos seus termos reais, não é mais do que o nexo estabelecido entre os diversos fenômenos particulares
e alguns fatos gerais cujo número o progresso da ciência tende cada vez mais a diminuir" (Ibid., I, p. 5). Esse ponto
de vista herdava a contraposição estabelecida pelos ilu-ministas, especialmente D'Alembert, entre o espírito de
sistema e a descrição científica da natureza. Este é muito menos ambicioso do que o outro, pois não lança mão da
dedu-tibilidade de um fenômeno (ou da sua descrição) a partir de sua causa (ou de um conjunto de leis gerais), mas
recorre à uniformidade ou constância das relações entre fenômenos e, portanto, à redução do fenômeno a ser
explicado a tais relações constantes. É esse o valor dado, p. ex., à técnica explicativa causai por P. W. Bridgman: "A
essência de uma E. causai consiste em reduzir uma situação a elementos de tal modo familiares que possamos aceitálos como coisa óbvia e satisfazer a nossa curiosidade. Reduzir uma situação a elementos significa,
EXPLICAÇÃO2
417
EXPLICAÇÃO2
do ponto de vista operacional, descobrir correlações familiares entre os fenômenos de que a situação se compõe" {The
Logic of Modem Physics, 1927, cap. II; trad. it., p. 50). Em sentido análogo, R. B. Braithwaite disse: "Quando se
pergunta a causa de determinado evento, o que se quer é a especificação do evento precedente ou simultâneo que,
conjugado a alguns fatores causais que têm natureza de condições permanentes, seja suficiente para determinar a
ocorrência do evento a ser explicado, de acordo com uma lei causai, num dos significados habituais de lei causai"
{Scientific Explanation, 1953, p- 320). Como, por leis causais, Braithwaite entende as generalizações empíricas que
afirmam concomitâncias de sucessão ou simul-taneidade (Ibid., cap. IX), uma E. que "esteja de acordo com uma lei
causai" é uma E. que faz referência a uma uniformidade empiri-camente constatada. Esse ponto de vista é repetido de
várias formas na filosofia contemporânea, ainda que nem sempre nitidamente separado do precedente.
B) As técnicas explicativas causais, tanto a fundada na dedução quanto a fundada na conexão uniforme, pretendem
conferir à E. causai um caráter infalível e global que corresponde ao caráter de previsão certa atribuído ao nexo
causai. A técnica explicativa que pode ser chamada de condicional elimina do esquema explicativo justamente essas
características. Os primórdios desse conceito podem ser encontrados na doutrina de Kant, que também empregou em
sentido próprio o conceito de condição (v.). Kant contrapõe a E. científica dos fenômenos à "hipótese transcendental"
da metafísica. Diz: "Para a E. dos fenômenos dados, não podem aduzir coisas e princípios que não se relacionem com
os fenômenos dados, segundo as já conhecidas leis dos fenômenos. Uma hipótese transcendental em que, para a E.
das coisas naturais, se empregasse uma simples idéia da razão não seria absolutamente uma E., porque aquilo que não
é suficientemente entendido com princípios empíricos seria explicado com algo de que não se entende coisa alguma"
(Crít. R. Pura, Doutr. do método, cap. I, seç. 3). Mas foi sobretudo no campo da metodologia histórica que esse tipo
de E. foi elaborado; quem o introduziu de modo explícito foi Max Weber: "A consideração do significado causai de
um fato histórico começará, antes de mais nada, com a seguinte questão: excluindo esse fato do conjunto de fatores
assumidos
como condicionantes, ou mudando-o em determinado sentido, o curso dos acontecimentos, tomando como base as
regras gerais da experiência, poderia ter tomado uma direção de algum modo diferente, nos pontos decisivos para o
nosso interesse?" Se pudermos responder afirmativamente, o fato em questão deverá ser considerado um dos fatores
condicionantes do processo histórico; se a resposta for negativa, deverá ser excluído de tais fatores {Kritische Studien
auf dem Gebiet der kulturwissenschaftlichen Logik, 1906, II; trad. it., em // métododellescienze storico-sociali, p.
223). A moderna metodologia da história é unânime em abandonar os esquemas de E. causai e em aceitar um
esquema condicional que se configura de maneiras diferentes, segundo o metodologista. Quando, na doutrina de S.
Mill sobre a natureza da E., K. Popper observa que "Mill e seus companheiros historicistas não consideram que as
tendências gerais dependem das condições iniciais e tratam tais tendências como se fossem leis absolutas", ao passo
que a explicação deve dar conta, se possível, das "condições nas quais elas persistem" {ThePoverty ofHistoricism,
1944, § 28), está procurando transformar o esquema causai em um esquema condicional. Mas talvez a melhor
formulação do esquema condicional, no que se refere ao seu possível uso nas disciplinas históricas, seja a de W.
Dray. "Em alguns contextos, a exigência de E. estará suficientemente satisfeita se mostrarmos que o ocorrido foi
possível, não havendo necessidade de mostrar, além disso, que era necessário. Embora explicar uma coisa, como diz
o professor Toulmin, significa muitas vezes 'mostrar que ela podia ser esperada' [ThePlace ofReason in Ethics, 1950,
p. 96], o critério apropriado para um importante domínio de casos é mais amplo do que este; para explicar uma coisa
às vezes basta mostrar que ela não devia causar surpresa" {Laws and Explanation in History. 1957, p. 157). Dray
contrapõe esse esquema explicativo, que ele chama de como-possivel-mente (how-possibly) ao causai, do por quenecessariamente (why-necessarily), porquanto os dois esquemas são logicamente diferentes e respondem a duas
espécies diferentes de perguntas, de sorte que, "no caso da explicação como-possivelmente, exigir um conjunto de
condições suficientes seria mudar a questão" {Ibid., p. 169). Esse ponto de vista, apesar de elaborado para as
disciplinas históricas, está igualmente apto a entender a natureza da E.
EXPLÍCITO
418
EXPRESSÃO
que se verifica agora no âmbito das ciências naturais, especialmente da mais avançada delas, que é a física quântica.
Uma vez que nela também falta, além da condição de previsibilidade infalível, a conexão causai necessitante, o único
esquema possível de E. é a E. condicional, que se limita a determinar a possibilidade do explanandum. Nesse sentido,
pode-se dizer que a E. é a determinação da possibilidade determinada e verificável do objeto; onde determinada
significa individualizada e reconhecível com um método ou procedimento apropriado e, às vezes, mensurável
segundo um esquema de probabilidade, e verificável significa repetível em condições adequadas (ABBAGNANO,
Possibilita e liberta, 1957, VI, §§ 4-5; Problemi di sociologia, 1959, VIII, §§ 1-5).
Deve-se observar, por fim, que o próprio procedimento da E. lógica, na forma descrita por Carnap e Reichenbach,
inclui-se na categoria de E. condicional. Segundo Carnap, a E. consiste em substituir um termo originário chamado
explicandum, que é um conceito vago ou familiar, por um novo conceito exato, que Carnap chama de explicatum e
Reichenbach de explicans. Isso posto, a E. consiste, segundo Reichenbach, em determinar o significado do termo, e o
significado se reduz a uma possibilidade lógica, física ou técnica, mas, em todo caso, a uma possibilidade
(REICHENBACH, "Verifiability Theory of Meaning", em Pro-ceedings ofthe American Academy ofArts and Sciences,
1951, pp. 46 ss.; CARNAP, Meaning and Necessity, § 2) (v. POSSÍVEL; SIGNIFICADO; VERIFICAÇÃO).
EXPLÍCITO (in. Explicit; fr. Explicite, ai. Explicit; it. Esplicitó). Expresso ou claramente expresso. "Tornar E." ou
"explicitar" o significado de um termo ou de uma proposição é expressá-lo ou reexpressá-lo com mais clareza. O
termo oposto, "implícito", significa portanto o que não é expresso, mas somente sugerido ou não expresso claramente.
EXPONÍVEL (in. Exponible, fr. Exponible, ai. Exponibel; it. Esponibilé). Na Lógica medieval exponibilia eram
proposições obscuras porque, embora tivessem forma gramatical de proposições simples, na realidade ocultavam uma
composição cuja análise (expositio) resolvia sua obscuridade. Em Kant, "E." tem sentido análogo, porém mais
específico, de proposição constituída por uma afirmação com uma negação disfarçada, que a exposição evidencia
(Lo-gik, § 31).
G. P.
EXPOSIÇÃO (lat. Expositio-, in. Exposition; fr. Exposition; ai. Erôrterung; it. Esposizionè). 1. Análise de um
conceito ou seu esclarecimento. Kant chama de E. transcendental "a definição de um conceito como princípio a partir
do qual se possa ver a possibilidade de conhecimentos sintéticos a priorf (Crít. R. Pura, § 3). Nesse sentido, a E.
transcendental do conceito de espaço mostrará a possibilidade dos conhecimentos a priori que podem provir desse
conceito, isto é, a possibilidade da geometria.
2. Na lógica terminista medieval, é a prova de um silogismo de terceira figura por meio de um silogismo da mesma
figura, no qual um termo médio singular exerce a função que, no primeiro, era exercida por um termo médio comum.
P. ex., o silogismo "Alguns homens são dotados de virtudes, Todo homem é animal, Alguns animais são dotados de
virtudes" pode ser exposto assim: "Sócrates é dotado de virtude, Sócrates é animal, Alguns animais são dotados de
virtude" (OCKHAM, Summa log., III, 1, 13; JUNGIUS, Log., III, 15),
EX PRAECOGNITIS ET PRAECONCES-SIS. Fórmula com que se abrevia o princípio exposto por Aristóteles no
início de Analíticos posteriores. "Toda doutrina e toda disciplina discursiva nascem de um conhecimento
preexistente" (An.post, I, 1, 71 a 1). Boécio ressaltava a importância dessa máxima (P. L., (A- col. 741), que se
tornara lugar-comum da esco-lástica. Locke julgava-a falaz, pois estava convicto de que o fundamento do
conhecimento é o conhecimento intuitivo (Ensaio, IV, 2, 8). Mas Leibniz reivindicava, contra Locke, a validade da
máxima, porquanto expressa o procedimento da matemática (Nouv. ess., IV, 2, 8).
EXPRESSÃO (lat. Expressio; in. Expression; fr. Expression; ai. Ausdruck, it. Espressioné). Em sentido geral e
moderno, manifestação por meio de símbolos ou comportamentos simbólicos. Esse termo foi introduzido no uso
filosófico na segunda metade do séc. XVII, quando começou a substituir o termo aparência para indicar a relação
entre Deus e mundo, graças à qual o mundo é "manifestação" de Deus. Spi-noza e Leibniz usam o termo nesse
sentido. Spinoza diz que um modo da extensão e a idéia desse modo são "uma só e mesma coisa expressa de duas
maneiras; o que parece ter sido vagamente entrevisto, por alguns hebreus, que apresentam Deus, o intelecto divino e
as coisas por ele percebidas como uma e mesma
EXPRESSÃO
419
EXPRESSÃO
coisa" {Et., II, 7, scol). Leibniz, por sua vez, considera as substâncias espirituais ou môna-das como "E. ou
manifestações" de Deus (Disc. de mét., § 9,14; Monad., § 60). Mas com Leibniz começa também a história moderna
desse termo, que do domínio metafísico passa para o domínio antropológico, onde é empregado para designar o
comportamento tipicamente humano de falar por símbolos ou utilizá-los. Leibniz diz: "O modelo de uma máquina
expressa a máquina e, assim, um desenho plano em perspectiva expressa um corpo com três dimensões, uma
proposição exprime um pensamento, um sinal expressa um número e uma equação algébrica expressa um círculo ou
outra figura geométrica: todas essas E. têm em comum o fato de que da simples consideração das relações da E. podese chegar ao conhecimento das propriedades correspondentes da coisa que se quer expressar. Disso resulta que não é
necessário pensar numa semelhança recíproca entre E. e coisa, contanto que seja mantida uma certa analogia de todas
as relações" (Quid sil Idea, Op., ed. Gerhardt, VII, p. 263). Essas considerações de Leibniz marcam a extensão do
termo E. a toda espécie ou forma da relação entre o símbolo e o que ele designa e constituem, portanto, também o
início do uso desse termo para significar "frase", "enunciado", "fórmula", etc. No trecho citado, Leibniz continua
observando que "algumas E. possuem fundamento natural, ao passo que outras, como as palavras da linguagem e os
sinais de qualquer gênero, dependem, ao menos em parte, de uma convenção arbitrária". E acrescenta que a idéia é
uma E. nesse sentido: "Embora a idéia da circunferência não seja semelhante à circunferência tal como esta é, na
natureza da primeira podem ser deduzidas verdades que serão, sem dúvida, confirmadas pela experiência referente à
circunferência real" ijbid., p. 263). Começava a história moderna desse termo; com Kant ele entraria no domínio da
estética. Com efeito, Kant utilizou o conceito de E. para classificar as belas-artes. "Em geral, pode-se dizer que a
beleza (da natureza ou da arte) é a E. das idéias estéticas; a diferença entre natureza e arte é que na arte a idéia pode
ser ocasionada por um conceito, ao passo que na bela natureza basta a reflexão sobre uma intuição dada, sem o
conceito do que deve ser o objeto, para suscitar e comunicar a idéia, cuja E. o objeto é considerado." Portanto, para
classificar as belas-artes, podemos utilizar "a mesma espécie de E.
que os homens utilizam para falar, para comunicar do melhor modo possível não só seus conceitos, mas também suas
sensações". E como essa espécie de E. consiste na palavra, no gesto e no tom, Kant distingue as artes da palavra, as
artes figurativas e as artes musicais. E acrescenta: "Poder-se-ia também conduzir essa divisão dicotomicamente,
distinguindo as belas-artes nas que exprimem o pensamento e nas que exprimem a intuição; e estas últimas, segundo
a forma ou a matéria" iCrít. do Juízo, § 51). Desse modo, a noção de E. servia a Kant para interligar arte e linguagem,
o que se manteria e reforçaria na estética contemporânea.
Por outro lado, o conceito de E. era cada vez mais empregado para designar a relação entre as manifestações
corpóreas das emoções e as próprias emoções: relação que, a partir da obra de Darwin (A E. das emoções no homem e
nos animais, 1872), mostrou-se essencial à teoria das emoções (v. EMOÇÃO). Mas nem esse uso do termo, nem o uso
ainda mais amplo que dele se fez em estética contribuíram muito para determinar o seu significado, que na maioria
das vezes é pressuposto pelas investigações estéticas ou psicológicas, mas não é questionado nem esclarecido em suas
possibilidades constitutivas. P. ex., não esclarece muito o significado de E. a identidade estabelecida por Benedetto
Croce, como fundamento da sua estética, entre intuição e E. {Estética, cap. I). Veremos, aliás, que a tendência a
identificar essas duas coisas constitui a fase primitiva do comportamento expressivo. Tampouco são esclarecedoras as
determinações de Dewey, segundo as quais a E. é "o aclaramento de uma emoção turva", sendo, pois, a "objetivação
da emoção" (Ari asExperience, 1934, cap. IV). É provável que essas características possam ser atribuídas
legitimamente à E. estética, mas ainda não a descrevem suficientemente. Sem dúvida, é fonte de confusão a
observação de Wôlfflin de que "a arte é E., a história da arte é história da alma" (Das Erklãren von Kunst-werken,
1921, § 3). Mais profícua foi a investigação sobre o conceito de E. feita em campo estritamente filosófico. Dilthey já
ressaltava em Construção do mundo histórico (1910) a função da E. e, em primeiro lugar, da linguagem em relação
ao pensamento discursivo do juízo (Aufbau, III, 1). E Husserl via na E. a consecução perfeita dos atos significativos
próprios da consciência teórica. Como tal, a E. não é meio nem instrumento, mas um estado final, uma
EXPRESSÃO
420
ÊXTASE
conclusão. "O estrato da E", diz Husserl, "sem considerar que fornece E. a todos os outros elementos intencionais é
— e isso constitui a sua peculiaridade — improdutivo. Ou, se se quiser, sua produtividade, sua ação normativa,
esgota-se na expressão e na forma do conceituai, que sobrevém nova com ele" (Ideen, I, § 124). Desse modo, Husserl
acolhia em sua filosofia uma das características que hoje são consideradas próprias da E.: ela não se limita a provir
daquilo que expressa, mas, de certo modo, realiza-o e aperfeiçoa-o. Heidegger insistiu nesse caráter afirmando que
"ao falar, o ser-aí se expressa, mas não porque esteja antes de tudo envolto num dentro oposto a um fora, mas porque,
enquanto ser-no-mundo, já está fora, na sua compreensão". Isso eqüivale a definir o homem com base em sua
possibilidade de expressar-se, o que os gregos entreviram ao definir o homem como "animal racional" (em que razão
eqüivale a "discurso") (Sein und Zeit, § 34). Mas os esclarecimentos mais importantes sobre o conceito de E. foram
feitos por Cassirer. Ele mostrou a função constitutiva que as formas simbólicas exercem na construção da vida
espiritual, de que não são aspectos acidentais e derivados, mas fatores condicionan-tes. Cassirer também foi quem
mais contribuiu para esclarecer os caracteres e as condições da expressão. Distinguiu no desenvolvimento das formas
lingüísticas três estágios, que designou, respectivamente, E. mimética, E. analógica e E. simbólica. Na E. mimética
ainda não há tensão entre o signo lingüístico e o conteúdo intuitivo ao qual se refere: as duas coisas tendem a
resolver-se uma na outra e a coincidir. "Só gradualmente encontramos uma distância, uma diferenciação crescente
entre signo e conteúdo, e só então se realiza o fenômeno característico e fundamental da linguagem, a separação entre
som e significado. Só quando essa separação ocorre, a esfera do significado lingüístico constitui-se como tal. No
início, a palavra pertence à esfera da mera existência: o que se aprende não é um significado, mas um ser substancial
ou uma força sua" (Phil. dersym-bolischen Formen; trad. in., I, pp. 186 ss.; II, p. 237). Do mesmo modo, o mito não
aparece, no início, como imagem ou "E. espiritual", mas como uma realidade objetiva ou arte essencial dessa
realidade. Essa característica da E. certamente é fundamental e constitui a confirmação, no plano antropológico, da
diversidade entre a E. e seu conteúdo, já evidenciada por Leibniz.
Podemos então resumir do seguinte modo as características fundamentais da E., tais como esclarecidas pela
investigação moderna:
Ia a E. é uma consecução, um termo final, mais do que um instrumento ou um meio;
2a a E. consiste em manifestar-se por meio de símbolos, sendo, por isso, um comportamento característico e próprio
do homem;
3a a E., ao menos em sua forma madura, implica diversidade, "distância", ou seja, alteri-dade entre símbolo e
conteúdo simbólico (ou, como também se diz, entre símbolo e intuição correspondente) .
Pela primeira característica, a E. se diferencia da comunicação, que tem valor instrumental: a linguagem como E. não
é um simples meio de comunicação, mas um modo de ser ou de realizar-se do homem. Nesse sentido, diz-se que a
arte é E.: nela, com efeito, os instrumentos de comunicação assumem valor final. Nesse sentido, Scheler afirma que o
ato sexual é "um movimento de E., não um movimento com vistas a um objetivo".. De fato, não se quer, no amor, o
ato sexual (querê-lo significa inibi-lo), mas é o ato que exprime o amor, que é o seu modo de realização (Sympatbie,
I, cap. 7; trad. fr., p. 182). Pela segunda característica, a E. é própria de qualquer espécie de comportamento que
consista na produção ou no uso dos símbolos, estando, pois, ligada ao conceito geral de linguagem (v.). Pela terceira
característica, a E. é diferente da intuição e de todas as relações de identificação.
ÊXTASE (gr. EKCJTOCOIÇ; lat. Extasis; in. Ecs-tasy, fr. Êxtase, ai. Ekstase, it. Estasi). Fase su-pra-intelectual da
ascensão mística para Deus, fase em que a busca intelectual de Deus cede lugar a um sentimento de estreita
comunhão ou mesmo de identificação com ele. Essa palavra (que na linguagem comum significa, além de
arrebatamento, pasmo ou exaltação) foi empregada no sentido acima enunciado por várias correntes religiosas da
filosofia alexandrina e especialmente pelos neopla-tônicos. Fílon caracterizava o Ê. como "transformação da
inteligência", uma transformação que não é realizada pela própria inteligência, mas diretamente por Deus (Ali. leg.,
II, 31-32). Ploti-no caracteriza o Ê. como a supressão da alterida-de entre aquele que vê e a coisa vista, e como
identificação total e entusiástica da alma com Deus. "Não é mais uma visão", diz ele, "mas um modo diferente de ver:
Ê. é simplificação e doação de si mesmo, desejo de contato, repou-
EXTENSÃO
421
EXTENSÃO
so e compreensão de conjunção" (Enn., VI, 9, 11). A linguagem do amor, especialmente do amor entendido como
unidade (v. AMOR), é freqüentemente empregada pelos místicos para descrever o estado de êxtase. E o que muitas
vezes faz Plotino (p. ex., Enn., VI, 7, 34), e o que farão os místicos medievais, para quem essa noção foi transmitida
sobretudo graças às obras do pseudo Dionísio Areopagita. Para ele, o grau mais elevado da ascensão mística é a
deificação(v), ou seja, a transformação do homem em Deus (De mystica theol., I, 1). É desse modo que Bernardo de
Clara vai (séc. XI) entende o Ê., chamando-o também de excessus mentise considerando-o supremo grau da
contemplação, em que a alma se une a Deus assim como uma gota d'água que cai no vinho dissolve-se e adquire o
sabor e a cor do vinho (De diligendo Deo, 11, 28). É também dessa maneira que os místicos de S. Vítor consideram o
Ê. Segundo Ricardo de S. Vítor, Ê. é o ápice do último grau da ascensão a Deus, ou seja, da alienação da mente de si
mesma (De prae-paratione ad contemplationem, V, 2). E S. Boaventura, por sua vez, vê no Ê. a elevação acima de si
mesmo, até a fonte do amor supra-intelectual. É um estado de douta ignorância, no qual a obscuridade dos poderes
cog-noscitivos transforma-se em luz sobrenatural (BrevUoquium, V, 6)". Essa noção passou sem mudanças para os
místicos alemães do séc. XIV (Eckhart, Suso, Tauler). Giordano Bruno utilizou a terminologia mística do Ê. (raptus
mentis, excessus mentis) no seu diálogo Degli eroici furori para indicar a conjunção do intelecto "heróico" com "o seu
objeto, que é a primeira verdade ou a verdade absoluta" (I, 4), aliás, a própria natureza.
Na Idade Moderna, o Ê. nesse sentido atraiu sobretudo a atenção dos psicólogos e dos psiquiatras, que não
conseguiram perceber nenhuma diferença, a não ser no conteúdo intelectual, entre o Ê. religioso e o Ê. produzido por
condições anormais da vida psíquica ou por drogas (cf. J. H. LEUBA, The Psychology of Religious Mysticism, 1925,
especialmente cap. IX). Segundo Pierre Janet, em todos os casos o Ê. caracteriza-se por: le supressão quase completa
da atividade motora e disposição à imobilidade; 2- atividade mais ou menos intensa do pensamento interno; 3 e grande
sentimento de alegria (De 1'angoisse ã Vextase, 1928, p. 497).
EXTENSÃO (gr. oiáÇiocoiç;; lat. Extensio; in. Extension; fr. Extension; ai. Ausdehnung; it.
Estensioné). Caráter fundamental dos corpos físicos dotados das três dimensões do espaço. Com base nesse caráter,
Aristóteles definiu o corpo (Fís., III, 5, 204 b 20). Descartes nada mais fez do que exprimir esse mesmo conceito
quando viu na E. "a natureza da substância material, assim como o pensamento constitui a natureza da substância
pensante" (Princ. phil., I, 53) Para Spinoza, E. era um dos atributos fundamentais de Deus, da Natureza (Et, II, 2).
Mas Ockham, no séc. XIV, evidenciava o caráter fundamental da E. como atributo dos corpos: "É impossível que a
matéria não tenha E.: não há matéria que não tenha uma parte distante da outra, donde resulta que, embora as partes
da matéria possam interligar-se como as da água ou do ar, nunca poderão existir no mesmo lugar. Ora, a distância
recíproca das partes da matéria é a E." (Summulaephysicorum, I, 19). Precisamente como característica do corpo, para
Hobbes a E. é o espaço real, ou seja, a grandeza do corpo, diferente do espaço imaginário, que é o espaço puro e
simples, ou espaço vazio (De corp., 8, 4). As considerações de Leibniz não são muito diferentes. Ao lado da antitipia
(v.), a E. é uma das características fundamentais da matéria. É a continuidade no espaço, graças à qual suas
modificações constituem a variedade das dimensões e das configurações (Op., ed. Erdmann, p . 463). Locke
identificava, como já Descartes, a E. com o espaço (Ensaio, II, 13, 3).
Com Berkeley, a E. começa a reduzir-se a fenômeno subjetivo. É definida por ele como uma idéia, que existe
enquanto é percebida (Principies ofKnowledge, I, § 9): afirmação que Hume reforçou dizendo que a E. nada mais é
que uma cópia de alguma impressão (Treatise. I, 2, 3). Essa subjetivação da E., realizada pelo empirismo setecentista
do ponto de vista da intuição sensível, no idealismo romântico parte do ponto de vista da razão especulativa. Schelling pretende demonstrar a priori por que "se deve considerar necessariamente que a matéria se estende segundo três
dimensões", e faz essa suposta demonstração deduzindo as três dimensões do espaço do modo de operar da força de
atração e de repulsão (System des trans-zendentale Idealismus, 1800, III, 2, Dedução da matéria, Cor.). De modo
análogo, Maine de Biran julgava poder deduzir "necessariamente" a idéia de E. da idéia de esforço e resistência que
ele implica, no sentido de que a E. seria uma "continuidade de resistência" (Fond. de Ia
EXTENSÃO e INTENSÃO
422
EXTERIOREDADE, INTEMORIDADE
Psychologie, CEuvres, ed. Naville, II, p. 272). Tentativa semelhante é a de Bergson, que procura entender a E. como
o movimento oposto ao da vida, ou seja, como o movimento em que o eu, entregando-se à fantasia caprichosa,
espalha-se numa multiplicidade de sensações externas umas às outras. A E. seria a distensâo do esforço do eu {Évol.
créatr., 8a ed., 1911, p. 220). Conceitos semelhantes aos expostos por Schelling, Maine de Biran e Bergson são muito
comuns na filosofia da segunda metade do século passado e dos primeiros decênios do séc. XX. Mas esse tipo de
especulação perdeu interesse filosófico ou científico nos últimos decênios, devido às mudanças na noção de corpo
(v.) produzidas pela física relativista. A noção de corpo como intensidade particular de um campo de energia não
precisa mais ser definida em termos de E.; em outras palavras, a E. pode ser entendida só como possibilidade de
medir a intensidade de energia em dado campo.
EXTENSÃO e INTENSÃO. V. INTENSÃO e EXTENSÃO.
EXTENSIONALIDADE, TESE DA (in The-sis of extensionality, fr. Thèse d'extensionalité, it. Tesi delia
estensionalita). Assim foi chamada por Russell {Principia mathematica, I2, XIV, pp. 659 ss.) e por Carnap {Logische
Syntax der Sprache, 1937, § 67, trad. in., pp. 245 ss.) a tese segundo a qual "para cada sistema não ex-tensional há um
sistema extensional no qual o primeiro pode ser traduzido". Como os enunciados intensionais mais importantes são os
modais, a tese em questão afirma a tradutibi-lidade dos enunciados modais em enunciados não-modais. P. ex., os
enunciados "A é possível", "A = não A é impossível", "A ou não A é necessário", "A é contingente" eqüivaleriam
respectivamente aos seguintes enunciados: "'A' não é contraditório", '"A = não A' é contraditório", "'A ou não A' é
analítico", "'A' é sintético" {Logische Syntax der Sprache, § 69; trad. in., pp. 250 ss.) O próprio Carnap, todavia,
apresentava a tese da E. como simples suposição, embora plausível, e a exprimia paradoxalmente, com um enunciado
modal: "Uma linguagem universal da ciência pode ser extensional {Ibid., § 67; trad. in., p. 245). Mesmo depois
Carnap não se pronunciou sobre a validade da tese {Meaning and Necessity, 1957, § 32).
EXTENSIVO e INTENSIVO (in. Extensive and intensive, fr. Extensifet intensif; ai. Exten-siv und intensiv, it.
Estensivo ed intensivo). A distinção entre grandeza E. e grandeza intensiva
foi feita por Kant, para quem E. é "a quantidade na qual a representação das partes possibilita a representação do todo
(portanto, precede-a necessariamente)"; p. ex., as partes do espaço ou do tempo são quantidades E. nesse sentido,
porque as quantidades espaciais ou temporais são sempre intuídas como agregados ou multiplicidade de partes dadas
previamente. A quantidade intensiva, ao contrário, é a "que se apreende somente como unidade e em que a
multiplicidade só pode ser representada por aproximação à negação = O". Quer dizer: a quantidade intensiva é a que
sempre tem graus; p. ex., o vermelho tem um grau que, por pequeno que seja, nunca é mínimo, o mesmo ocorrendo
com o calor, o peso, etc. Essas são as qualidades contínuas ou, como diz Kant com termo newtoniano, fluentes {Crít.
R. Pura, II, 2, seç. 3, Axiomas da intuição).
EXTEMORTOADE, INTEMORIDADE (in. Exteriority, interiority, fr. Exteriorité, intêriorité, ai. Aeusserlichkeit,
Innerlichkeit; it. Esteriorità, interioritã). O tema filosófico da oposição entre interioridade e E. nasce juntamente com
a noção de consciência (v.) e expressa a oposição entre o que é alheio à consciência e o que lhe é próprio. Foi a
pregação popular estóica que explorou pela primeira vez esse tema, o que se repete com freqüência nas páginas de
Epicteto, Marco Aurélio e Sêneca. Epicteto diz: "É estado e marca do homem comum nunca esperar benefício ou
prejuízo de si mesmo, mas das coisas de fora. Estado e marca do filósofo é esperar ou temer de si mesmo toda e
qualquer utilidade ou dano" {Manual, 48). E Marco Aurélio: "As coisas por si mesmas não chegam a tocar a alma, a
ela não têm acesso nem podem mudá-la ou removê-la. Mas é a alma que por si muda e modifica-se, e sejam quais
forem os juízos que ela se julgar digna de fazer sobre as coisas que a rodeiam, do mesmo modo ela fará que para ela
sejam as ditas coisas" {Memórias, V, 19). Sêneca contrapõe "a alegria que nasce do interior" à que deriva das coisas
exteriores {Ep., 23). Neoplatonismo e cristianismo são responsáveis pela identificação da interioridade com a esfera
da consciência e da E. com a esfera do mundo a que pertencem as coisas naturais e os outros seres. O tema da
oposição entre interioridade e E. tornou-se, assim, um tema clássico de toda filosofia que recorre à consciência como
esfera de realidade privilegiada tanto pela sua certeza quanto pelo seu valor. A linguagem comum acolheu os signifi-
EXTRAPOLAÇÃO
423
EXTRÍNSECO, INTRÍNSECO
cados filosóficos das duas palavras, com a significação de contraposição entre o que é consciência e o que não é. A
metafísica do espiritualismo (v.) e o método da introspecção (v.) utilizam igualmente esse lema tradicional. Seria
muito fácil mostrar o caráter puramente metafórico (portanto, a ausência de significado preciso) das expressões em
que aparecem esses termos ou os adjetivos correspondentes. "Realidade interna" e "realidade externa", "mundo
interior" e "mundo exterior", "objetos internos" e "objetos externos" são expressões que, a rigor, não têm sentido, seja
porque não se faz referência ao âmbito fechado em relação ao qual um "externo" e um "interno" possam ser
determinados, seja porque tal âmbito fechado, quando determinado, não é espacial, pois é a própria consciência.
Hegel utilizou abundantemente esses termos que, justamente por meio de sua obra, penetraram na terminologia
filosófica. Ele identificava o interior com a "razão de ser" e o exterior, com sua manifes^ tação (Ene, §§ 138-39). Mas
tinha o bom senso de acrescentar: "Assim como o homem é externamente, ou seja, em suas ações (por certo não na
sua E. somente corpórea), também é interno; e quando ele é só interno — virtuoso, moral, só em intenções,
disposições, etc. — e o seu exterior não é .idêntico a tudo isso, então um é tão vazio quanto o outro" (Ibid., § 140).
EXTRAPOLAÇÃO (in. Extrapolation; fr. Extrapolation; ai. Extrapolation-, it. Estrapola-zionè). 1. Cálculo dos
valores de uma função com argumentos que estão além daqueles para os quais já se conhecem os valores da função.
2. O mesmo que analogia (v.).
EXTREMO (gr. xò êoxaTOV; lat. Extremum, in. Extreme, fr. Extreme, ai. Aeusserste, it. Estremo). O que é primeiro
ou último em qualquer série. Foi assim que Aristóteles entendeu esse termo, notando que os E. não são substâncias,
mas limites (Met., XIV, 3, 1090 b 9). Nesse sentido, diz-se que o ponto é o E. da linha, a linha é o E. do plano e o
plano é o E. do sólido. No mesmo sentido, fala-se de uma espécie E. (última), que é a mais próxima do indivíduo
(Ibid., III, 3, 998 b 15). E. (último) é também o motor imóvel, porque é o primeiro na série dos movimentos (Fís.,
VIII, 2, 244 b 4). E. sâo também os dois termos do silogismo que aparecem na conclusão e cuja relação é estabelecida
pelo termo médio (An.pr., I, 4, 25 b 30). Pode-se dizer que essa palavra conserva o mesmo significado até hoje (v.
ÚLTIMO).
EXTRÍNSECO, INTRÍNSECO (in. Extrin-sical, intrinsical; fr. Extrinsèque, intrinsèque, ai. Aeusserlich, innerlich;
it. Estrinseco, intrínseco). Em geral, diz-se que é intrínseco o que pertence à essência ou à natureza de uma coisa e E.
o que lhe é estranho. Segundo a lógica tradicional, é intrínseco a um objeto o caráter que entra na definição desse
objeto; p. ex., a racionalidade, se o homem é definido como "animal racional". Do ponto de vista de uma lógica que
não se funde na noção de essência necessária ou de substância (v.), as determinações E. ou intrínseco têm um
significado muito mais flexível, porque relativas aos vários significados de um objeto qualquer (v. SIGNIFICADO).
F
F. Na lógica medieval, os silogismos cujos nomes mnemônicos começam com essa letra são redutíveis ao quarto
modo da primeira figura (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 4. 20).
FABRICAÇÃO (fr. Fabricatiori). A atividade própria da inteligência, segundo Bergson. Essa é, com efeito, "a
faculdade de fabricar objetos artificiais, especialmente utensílios para fazer outros utensílios, e de variar
indefinidamente sua F.". Desse ponto de vista, a verdadeira definição do homem não é Homo sapiens, mas
Homofaber(Évol. créatr., 11- ed., 1911, p. 151; Lapensée et le mouvant, 3a ed., 1934, p. 97).
FÁBULA (lat. Fábula, in. Fable, fr. Fable, ai. Fahel; it. Favolà). A partir do Renascimento, a convicção de que as
"F. antigas" tinham valor de sintoma ou revelação indireta da verdade levou a reinterpretar os mitos antigos,
emprestando-lhes por vezes (como se vê nas obras de Bruno) significados filosóficos. Quanto ao valor das F., Bacon
e Viço representam atitudes fundamentais. Bacon achava que as F. estão entre o silêncio e o esquecimento das idades
perdidas e a memória e a evidência das idades mais próximas, de que possuímos documentos escritos. "As F.",
escreveu ele, "não são produto das suas épocas nem fruto da invenção poética, mas uma espécie de relíquia sagrada e
tênue aura de tempos melhores, que da tradição das nações mais antigas chegaram até as trompas e as flautas dos
gregos" (De sapientia veterum, 1609, Pref.). Portanto, Bacon propendia a entrever nas F. um significado alegórico
intencional. Essa tese é negada e combatida, um século depois, por Viço, para quem as F. são tais só do ponto de vista
dos doutos, ao passo que para os povos primitivos que as criaram eram narrações verdadeiras. "Os filósofos", diz
Viço, "atribuíram às F. interpretações físicas, morais, metafísicas ou de outras ciências, segundo lhes animassem a
fantasia o ouro, os
compromissos ou o capricho; assim, com o auxílio das suas alegorias eruditas supuseram-nas como fábulas. Mas os
primeiros autores dessas F. não entenderam tais sentidos doutos, nem, pela sua natureza rústica e ignorante, podiam
entendê-los: antes, por essa mesma natureza, conceberam as F. como narrações verdadeiras... das suas coisas divinas
e humanas" (Sc. nuova, II, Delia* metafísica poética). Essa idéia de VIÇO ficou como fundamento da moderna
filosofia das formas simbólicas (v. MITO).
FABULAÇÃO (fr. Fabulation). Bergson designou desse modo a faculdade ou o ato criador de ficções ou
superstições, em que consiste essencialmente a religião estática, que, mediante ficções mais ou menos consoladoras,
procura defender a vida contra o poder desa-gregador da inteligência (Deuxsources, cap. II).
FACTICIDADE (in. Facticity, fr. Facticité, ai. Faktizitãt; it. Effettivitã). Segundo Heideg-ger, o que caracteriza a
existência como lançada no mundo, ou seja, à mercê dos fatos, ou no nível dos fatos e entregue ao determinismo dos
fatos. O "fato", que é simplesmente a presença das coisas utilizáveis, é objeto de "constatação intuitiva". A F. da
existência, ao contrário, só é acessível através da "compreensão emotiva" (Sein undZeit, § 29). Nesse sentido, a F. é
um modo de ser próprio do homem e diferente da factualidade (v.), que é o modo de ser das coisas. De modo
análogo, Sartre deu o nome de F. ao fato da liberdade, ou seja, ao fato de que a liberdade não pode não ser livre e não
pode não existir: nesse caso, liberdade identifica-se com necessidade do fracasso (Vêtre et le néant, p. 567).
FACTÍCIO (in. Factitious; fr. Factice-, ai. Gemacht; it. Fattizio). Termo que se emprega quase exclusivamente com
referência à classificação cartesiana das idéias em inatas, adventi-
FACTUALTOADE
425
FACULDADE
cias e factícias; as últimas são as idéias "feitas e inventadas" por nós (Méd., III).
FACTUALIDADE (in. Factuality, ai. Tatsách-lichkeit; it. Fatticita). Husserl deu esse nome ao modo de ser do fato,
enquanto essencialmente "casual", ou seja, porquanto pode ser diferente do que é (Ideen, I, § 2). Heidegger fez a
distinção entre a "F. do factum brutum de uma simples presença", de uma coisa, e a facti-cidade(y.) da existência
(Sein und Zeit, § 29).
FACULDADE (gr. v|/t)XnÇ etôoç ou uópiov; lat. Facultas-, in. Faculty, fr. Faculte, ai. Ver-môgen; it. Facoltã). 1.
Entendem-se por esse nome os poderes da alma, ou seja, as espécies ou partes em que é possível classificar e dividir
suas atividades ou princípios aos quais são atribuídas tais atividades. A distinção entre os poderes da alma, bem como
a própria noção de um poder que se refere à alma, nascem da óbvia consideração da diferença entre as operações
atribuídas à alma e do fato de que essas operações podem opor-se entre si. Com esse fundamento, Platão distinguiu
três poderes, que ele chamava de espécies (eYÔT), Rep., IV, 440 e) da alma: poder racional, graças ao qual a alma
raciocina e domina os impulsos corpóreos; poder concupiscível ou irracional, que preside aos impulsos, aos desejos,
às necessidades e concerne ao corpo; poder irascí-vel, que é auxiliar dd princípio racional e indigna-se e luta por
aquilo que a razão julga justo (Rep., IV, 439-40). Já Aristóteles distinguiu: d) parte (Lióptov) vegetativa, que é a
potência nutritiva e reprodutiva própria dos seres vivos, a começar pelo homem; b) parte sensitiva, que compreende a
sensibilidade e o movimento, e é própria do animal; c) parte intelectiva (dia-noética), que é própria do homem. O
princípio mais elevado pode fazer as vezes dos inferiores, mas não vice-versa. Assim, no homem a alma intelectiva
também cumpre as funções que nos animais são realizadas pela alma sensitiva e nas plantas pela vegetativa (Dean.,
II, 2, 413 a 30 ss.). Por sua vez, o princípio dianoético ou alma intelectiva divide-se em duas partes que são,
respectivamente, a parte apetitiva ou prática (a vontade) e a parte intelectiva ou contemplativa (o intelecto) (Ibid., III,
X, 433 a 14; Et. nic. VI, 1, 1139 a 3; Pol., 1133 a). Essa divisão seria aceita e difundida durante muitos séculos. Os
estóicos, todavia, haviam proposto outra, consistente em quatro princípios: a) princípio diretivo ou hegemônico, que é
a razão; b) sentidos; c) princípio seminal ou espermático; d) linguagem (DiÓG. L., VII, 157; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., IX, 102). Na filosofia medieval, a
partição aristotélica, que acaba por prevalecer no fim da Escolástica e é repetida por muitos pensadores (p. ex.,
Alberto Magno, S. Tomás, Duns Scot, Ockham), entrelaça-se com o tipo de partição que fora inaugurado por S.
Agostinho e que consiste em julgar que as partes da alma têm como modelo a Trindade divina. S. Agostinho
distinguira, com efeito, três faculdades da alma: memória, inteligência e vontade, correspondentes às três pessoas da
Trindade, definidas respectivamente como Ser, Verdade e Amor (De Trin., X, 18). Esta divisão e outras análogas
encontram-se freqüentemente na Escolástica (é repetida, p. ex., por S. ANSELMO, MonoL, 67). A partir de Descartes, a
única divisão admitida foi a que Aristóteles considerara própria da alma intelectiva ou dia-noética, entre vontade
(apetição ou desejo) e intelecto propriamente dito, ou seja, a divisão fundada no uso prático e no uso teórico da razão.
Para Descartes, a alma é apenas a alma "racional", já que as funções vegetativa e sensitiva não pertencem à alma
racional nem a outra espécie de alma, porquanto são funções mecânicas, explicadas pelo mecanismo corpóreo
(Discours, V). A divisão entre intelecto e vontade é enunciada por Descartes (Pass. de Vâme, I. 17) como entre as
ações da alma, que compreendem todos os desejos, entre os quais Descartes inclui a vontade (Ibid., 18), e as paixões.
que compreendem "todas as espécies de percepções ou formas de conhecimento". Essa divisão é elucidada pelo modo
como Descartes a utiliza na sua teoria do erro.- este depende do concurso de duas causas, do intelecto e da vontade.
Com o intelecto o homem não afirma nem nega nada, mas concebe tão-somente as idéias que pode afirmar ou negar.
O ato de afirmar ou negar é próprio da vontade. Ora, a vontade é livre e como tal é muito mais ampla que o intelecto
e pode, portanto, afirmar ou negar até o que o intelecto não consegue perceber clara e distintamente (Méd., IV; Princ.
phil, I, 34). Com isso estabelecia-se a distinção entre intelecto e vontade, o que seria aceito até Kant. É bem verdade
que Spinoza negou a existência de F. separadas na alma, aduzindo que elas "são fictícias, entidades metafísicas ou
universais que formamos a partir das coisas particulares" (Et., II, 48). Mas isso significa que para ele "vontade e
intelecto são a mesma coisa" (Ibid., 49, corol.), sendo a distinção pressupôs-
FACULDADE
426
FALIBILISMO
ta com fins polêmicos. O próprio Locke a reconhece quando, a propósito da idéia de força, afirma que a vontade e o
intelecto são as duas forças que explicam as transformações que ocorrem no nosso espírito (Ensaio, II, 21, §§ 5-6).
Leibniz diz que os dois princípios agentes na mônada são a percepção e a apetição (Monad., §§ 14-15). Wolff, por
sua vez, reconhecia no conhecimento e na apetição as duas funções fundamentais do espírito humano e, com base
nessa divisão, modelava a divisão da filosofia nos dois ramos fundamentais, filosofia teórica ou metafísica e filosofia
prática (Log., Disc. Prael, §§ 60-62).
Kant, somando as análises dos empiristas ingleses, interpunha entre o intelecto e a vontade uma terceira F., que
chamava de "sentimento de prazer e desprazer". Com isso, as F. da alma elevaram-se a três (F. de conhecer, F. de
sentir, F. de desejar) (Crít. do Juízo, Introd., IX), numa divisão que se tornaria clássica e freqüentemente seria
apoiada por um suposto testemunho da consciência (v. EMOÇÃO; SENTIMENTO).
Entretanto, nenhuma dessas doutrinas implicava que as F. da alma fossem poderes distintos e independentes. Como já
os antigos, tanto Descartes (Regulae, XII, 79) quanto Locke (Ensaio, II, 21, 6) e Leibniz (Nouv. ess., II, 21, 6)
reconhecem explicitamente que a divisão das F. é uma abstração que não destrói a unidade da atividade mental.
Assim, não representam grandes novidades a crítica de Herbart à doutrina das F. e a sua tese de que essas F.
(intelecto, sentimento e vontade) são simples "conceitos de classe" mediante os quais se ordenam os fenômenos
psíquicos (Einleitung in die Phil, § 159). A psicologia associacionista compartilhava esse ponto de vista, mas
mantinha a mesma tripartição (p. ex., BAIN, Mental and Moral Science, 1868, p. 2; Logic, II, 275), e o Neocri-ticismo
da Escola de Marburgo (Cohen, Natorp) reconhecia só três ciências filosóficas (lógica, estética e ética),
correspondentes às três atividades do espírito.
Foi só na psicologia e na filosofia contemporâneas, especialmente por influência do beha-viorismo e da Gestalt, que a
doutrina das partes da alma, qualquer que fosse o modo de entendê-la, perdeu importância, deixando de constituir
tema de investigação e debates. Como objeto de indagações, de fato, o comportamento implica a prática e a fusão
simultâneas de todos os princípios ou partes distintas ou distinguíveis da atividade da alma, da consciência ou do organismo, de tal modo que tais distinções deixam de ter interesse e fala-se de "comportamento racional" ou
"comportamento emocional", num sentido em que essa distinção não tem mais razão de ser (v. BEHAVIORISMO;
COMPORTAMENTO) .
2. No significado mais geral, o mesmo que Poder (v.).
FALÁCIA (gr. ocxpiana; lat. Fallacia; in. Fallacy, fr. Sophisme, ai. Fallacie, it. Fallacia). Termo com que os
escolásticos indicaram o "silogismo sofistico" de Aristóteles. Pedro Hispano disse: "F. é a idoneidade fazendo crer
que é aquilo que não é, mediante alguma visão fantástica, ou seja, aparência sem existência" (Summ. log., 7.03).
Aristóteles dividira os raciocínios sofísticos em duas grandes classes: os atinentes ao modo de expressar-se, ou, como
dizem os escolásticos, in dictione, e os independentes do modo de expressar-se, ou extra dictionem. Os primeiros são
seis, a saber: equivocação, anfibologia, composição, divisão, acentuação, figura dictj.onis. Os outros são sete:
acidente, secundüm quid, ignorantia elenchit, petição de princípio, non causa pro causa, conseqüente, interrogação
múltipla (El. sof., 4). A doutrina das F. foi uma das partes mais cultivadas da lógica medieval, mas perdeu quase toda
importância na lógica moderna. Cerca de metade das Summulae logicales(séc. XIII) de Pedro Hispano é dedicada à
refutação das falácias. Mas já na Lógica de Port-Royal a ela é dedicado um único capítulo (o XIX da parte III), que
constitui cerca da vigésima parte do tratado. Na lógica contemporânea esse assunto desapareceu de todo, já que não
podem ser reduzidas a sofismas as antinomias (v.) de que ela trata. Nos verbetes referentes a cada um dos sofismas
encontrar-se-á o que a lógica antiga e medieval entendia por eles.
G. P.-N. A.
FALANSTÉRIO (in. Phalanstery, fr. Pha-lanstère, it. Falansterio). Termo empregado por Charles Fourier para
designar a organização social utópica por ele prevista: um grupo de cerca de 1.600 pessoas vivendo em regime
comunista, com liberdade de relações sexuais e regulamentação da produção e do consumo dos bens (Tratado de
associação doméstica e agrícola ou teoria da unidade universal, 1822).
FALIBILISMO (in. Fallibilism). Termo criado por Peirce para indicar a atitude do pesquisador que julga possível o
erro a cada instante
FALSEABEUDADE
427
FANATISMO
da sua pesquisa e, portanto, procura melhorar os seus instrumentos de investigação e de verificação iColl. Pap., 1.13;
1.141-52). Dewey ressaltou a importância dessa atitude (Logic, cap. II; trad. it., p. 79). Esse termo agora é empregado
com freqüência por escritores americanos.
FALSEABILIDADE (in. Falsifiability, fr. Fal-sificabilité, ai. Fãlschungsmõglichkeit; it. Falsifi-cabilitâ). É o
critério sugerido por Karl Popper para acolher as generalizações empíricas. O método empírico, segundo Popper, é o
que "exclui os modos logicamente admissíveis de fugir à falseação". Desse ponto de vista, as asserções empíricas só
podem ser decididas em um sentido, o da falseação, e só podem ser verificadas por tentativas sistemáticas de colhêlas em erro. Desse modo desaparece todo o problema da indução e da validade das leis naturais (Logic ofScientific
Discovery, § 6). Cf. EXPERIÊNCIA; VERIFICAÇÃO).
FALSO (gr. Y|/euôr|Ç; lat. Falsum; in. False, fr. Faux, ai. Falsch; it. Falso). V. FALIBILISMO; VERDADE.
FAMÍLIA (in. Family, fr. Famille, ai. Fami-lie, it. Famiglid) Aqui só nos interessa registrar o uso lógico e
metodológico desse conceito, que é recentíssimo. Uma "F. de conceitos" é um conjunto de conceitos entre os quais se
estabelecem relações diversas que não sejam redutí-veis a um só conceito ou princípio. É precisamente o que ocorre
entre os membros de uma F. humana, os quais nem sempre têm uma única propriedade comum, e, mesmo quando
têm, ela não resume nem esgota toda a semelhança familiar. O uso dessa noção implica, portanto, o esforço de
procurar sempre novas relações entre os conceitos, sem que seja necessário reduzir essas relações a um só tipo. O
primeiro a propor e a empregar essa noção foi WITTGEN-STEIN (PhilosophicalLnvestigations, § 110). Essa obra foi
publicada em 1953, mas alguns anos antes seus conceitos fundamentais já eram conhecidos; o conceito de F. foi
utilizado por Weismann em Introdução ao pensamento matemático (Einführung in das mathematische Denken, 1936;
trad. it., 1939). Cf. sobre o mesmo conceito: ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1956, passim.
FANATISMO (in. Fanaticism-, fr. Fanatis-me, ai. Fanatismus, it. Fanatismo). Esta palavra (defanum = templo) foi
empregada a partir do séc. XVIII com o mesmo valor de entusiasmo (v.) para indicar o estado de exaltação de quem
se crê possuído por Deus e, portanto, imune ao
erro e ao mal. No uso moderno e contemporâneo, "F." acabou prevalecendo sobre "entusiasmo" para indicar a certeza
de quem fala em nome de um princípio absoluto e, portanto, pretende que suas palavras também sejam absolutas. Já
Shaftesbury dizia: "E é esse [entusiasmo] que dá origem à denominação F. no sentido inicial, usado pelos antigos, de
aparição que arrebata o espírito" (Letter on Enthusiasm, 7; trad. it., Garin, pp. 78-79)- Na verdade, Cícero já fala de
"filósofos supersticiosos e quase fanáticos" (Dedivin., 2, 57, 118). Leibniz chamava de fanática a filosofia que atribui
todos os fenômenos a Deus "imediatamente, por milagre" (Nouv. ess., Avant-propos, Op., ed. Erdmann, p. 204). Mas
certamente a melhor definição filosófica do F. foi dada por Kant. No sentido mais geral, F. "é uma transgressão, em
nome de princípios, dos limites da razão humana". Há, além disso, o F. moral, que é "o ultrapassar dos limites que a
razão pura e prática impõe à humanidade, que impede de atribuir o motivo determinante e subjetivo das ações ditadas
pelo dever, ou seja, o móvel moral delas, em qualquer outra coisa que não seja a própria lei". O F. mo-ral consiste na
pretensão de fazer o bem por inspiração, por entusiasmo, por um impulso benéfico da própria natureza, portanto em
substituir a virtude, que é "a intenção moral em luta", pela "pretensa santidade de quem acredita possuir perfeita
pureza de intenções da vontade" (Crít. R. Prática, 1,1, 3). O fanatismo, nesse sentido, sempre foi objeto de polêmica
na obra de Kant, que identificou e combateu suas principais manifestações no esforço de determinar os limites dos
poderes humanos e a validade desses poderes nos seus limites. Num texto de 1786, O que significa orientar-se no
pensar, Kant advertia contra a pretensão de superar os limites da razão recorrendo a faculdades ou poderes
supostamente "superiores". Sua polêmica referia-se a Jacobi e a Mendelssohn, mas ele via a mesma pretensão no
spinozismo, e, contra este e o fanatismo, reafirmava a exigência de determinar com precisão os limites da razão.
Essas observações de Kant, para quem as considere hoje, parecem uma crítica antecipada ao romantismo, que, nesse
aspecto, foi o grande retorno ao spinozismo. Todavia, o próprio Hegel falou de F., restringindo-o, porém, ao campo
político e religioso. No campo político, "o F. quer uma coisa abstrata, não uma organização": seu exemplo é a
Revolução Francesa (Fil. do dir, § 5, Zusatz). No campo
FANTASIA
428
FAPESMO
religioso, o F. consiste em subordinar o Estado à religião, de tal modo que seu lema é: "Aos religiosos não se
imponha nenhuma lei" (Ibid., § 270, Zusatz). Mas Hegel não se dá conta de que a onipotência do Estado, que ele
teorizou, é um fanatismo.
A palavra F. conserva hoje o significado de atitude, ponto de vista ou doutrina que, em qualquer campo ou domínio,
despreze ou ignore as limitações humanas. Nossa época conheceu outra forma de F. mais sinistra: o F. político, que,
embora não sendo uma novidade do ponto de vista doutrinai, aboliu os limites humanos em política e,
conseqüentemente, exaltou ou divinizou certas concepções políticas e os indivíduos que as encarnavam. A própria
palavra F., na terminologia de alguns movimentos políticos, perdeu a conotação negativa que recebera desde a
Antigüidade, passando a ter o valor de fidelidade a toda prova, que ignora objeções ou limites. A experiência mostrou
que essa fidelidade é a mais frágil de todas e, na primeira oportunidade, transforma-se em seu contrário. Como já
dizia Kant, a razoabilidade, com o reconhecimento dos limites que ela implica, é a única garantia de compromisso
autêntico, seja ele teórico ou prático.
FANTASIA (in. Fancy; fr. Fantaisie; ai. Phantasie, it. Fantasia). 1. O mesmo que imaginação.
2. A partir do séc. XVIII o uso simultâneo dos termos F. e imaginação favoreceu a distinção dos significados, e F.
começou a indicar a imaginação desregrada ou desenfreada. Já na Lógica de Port-Royal diz-se que a imaginação é "a
maneira de conceber as coisas mediante a aplicação do nosso espírito às imagens que estão pintadas no nosso
cérebro" (o que é um conceito cartesiano exposto na Regula XII), e essas imagens, que são as idéias das coisas,
distinguem-se das imagens "pintadas na fantasia" (I, 1). Em outros termos, contrapõem-se as imagens que são idéias,
próprias da imaginação, às imagens fictícias, próprias da fantasia. Analogamente, Kant dizia que a F. é "a imaginação
que produz imagens sem querer", donde "fantasista" é a pessoa que se habituou a julgar tais imagens como
experiências internas ou externas (Antr., I, § 28). E observava: "Muitas vezes gostamos de brincar com a imaginação,
mas a imaginação, que é F., freqüentemente também brinca conosco, e às vezes com mau gosto" (Ibid., § 31, a).
Nesse sentido, a F. é a
imaginação desregrada e desenfreada. Este é um dos significados dessa palavra até hoje, sobretudo na linguagem
comum.
3. Ao lado desse significado, o romantismo elaborou um outro, segundo o qual a F. é entendida como imaginação
criadora, diferente, em qualidade mais do que em grau, da imaginação reprodutora comum. Nesse sentido, Hegel via
a F. como "imaginação simbolizadora, alegorizadora e poetante", logo "criadora" (Ene, §§ 456-57). Os românticos
exaltaram a F. assim entendida. Para Novalis, ela é "o máximo bem" (Fragmente, 535). "A F.", dizia ele, "é o sentido
maravilhoso que em nós pode substituir todos os sentidos. Se os sentidos externos parecem submeter-se a leis
mecânicas, a F. evidentemente não está ligada ao presente nem ao contato de estímulos anteriores" (Ibid., 537). Desse
modo, o caráter desordenado ou rebelde da imaginação fantasiosa, em virtude do qual essa forma de imaginação
parecia inferior às outras no séc. XVIII, no séc. XIX passa a ser elemento positivo, um mérito, uma característica da
liberdade criadora. A estética romântica ateve-se a essa valorização da fantasia. Croce diz: "A estética do séc. XIX
forjou a distinção, encontrada em não poucos dos seus filósofos, entre F. (que seria a faculdade artística peculiar) e
imaginação (que seria faculdade extra-artística). Acumular imagens, selecioná-las, esmiuçá-las, combiná-las,
pressupõe a produção e a posse de cada uma das imagens pelo espírito; a F. é produtora, enquanto a imaginação é
estéril, apta a combinações extrínsecas, mas não a gerar o organismo e a vida" (Breviario di estética, 1913, pp. 3536). Em sentido análogo, Gentile chamava de F. a atividade artística como puro sentimento ou "forma subjetiva
inatual" do espírito (Fil. deWarte, § 5). Mas, nesse significado romântico, a F. deixa de ser uma atividade ou uma
operação humana, definivel ou descritível nas suas possibilidades e nos seus limites, para, como manifestação de
atividade infinita, tornar-se ela também infinita, situando-se portanto além de qualquer possibilidade de análise e de
verificação. Trata-se, em outros termos, de conceito mágico-metafísico que não pode ser utilizado fora do clima
romântico que o criou ou privilegiou.
FANTASMA. V. IMAGEM.
FAPESMO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o oitavo dos nove modos do silogismo de
primeira figura, mais precisamente o que tem como premissa uma propo-
FATALIDADE ou FATUM
429
FATO
sição universal afirmativa e uma proposição universal negativa e como conclusão uma particular negativa, como no
exemplo: "Todo animal é substância; nenhuma pedra é animal; logo, algumas substâncias não são pedras" (PEDRO
HISPANO, Summ. log., 4.09; ARNAULD, Log. III, 8)
FATALIDADE ou FATUM (in. Fate, fr. Fata-lité, ai. Fatum; it. Fato). Destino, no significado Ia do termo, como
necessidade desconhecida, portanto cega, que domina os seres do mundo enquanto partes da ordem total. A noção de
fatalidade foi distinguida da noção de destino quando, entre as causas que constituem este último, se quis incluir a
vontade e a ação humana. Nesse sentido, Leibniz contrapôs fatum mahometanum, que considera os acontecimentos
futuros que não dependem do que o homem pode querer ou fazer, à noção de destino (ou de providência), segundo a
qual o que acontecerá no futuro também é determinado, pelo menos em parte, pela ação humana (Théod., I, § 55). Em
sentido análogo, Kant contrapõe a F. à necessidade condicional, logo inteligível, da natureza (Crít. R. Pura,
Postulados do pensamento empírico). Na filosofia moderna, a noção de F. é polêmica, pois quem a emprega não a
considera válida; por isso, pode-se dizer que é espúria em filosofia. Mas não tem esse significado pejorativo na
expressão amor fati, que é a definição moderna de destino (v.). Peirce também procurou isentá-la do significado
pejorativo dizendo: "F. significa simplesmente aquilo que com certeza acontecerá e que não pode ser absolutamente
evitado. É superstição supor que certa espécie de acontecimentos está submetida à F., assim como é superstição supor
que a palavra F. nunca possa livrar-se do caráter supersticioso. É F. que todos nós morreremos" (Chance, Love and
Logic, I, cap. 2, § 4, nota; trad. it., p. 41).
FATALISMO (in. Fatalism-, fr. Fatalisme, ai. Fatalismus, it. Fatalismó). Leibniz já distinguira do fatum estóico e
cristão o 'fatum mahometanum" ou "fatalidade maometana", segundo a qual "os efeitos aconteceriam mesmo se a
causa fosse evitada, pois são dotados de necessidade absoluta" (Op., ed. Erdmann, pp. 660, 764). Wolff empregava,
para indicar essa dou-trina;por ele atribuída a Spinoza, o termo F. no texto De differentia nexus rerum sapientis et
fatalis necessitais(112$), que é justamente dirigido contra Spinoza. Na verdade, porém, todas as concepções de
fatalidade (destino) elaboradas pelos filósofos admitem que dela fazem parte outras causas determinantes, mas que estas são, por sua vez,
determinadas pelas antecedentes, que são as próprias ações humanas, voltadas a evitar ou a alcançar certos resultados.
E é, portanto, um termo polêmico com o qual os filósofos em geral designam a forma de necessitarismo de que não
compartilham. Com mais rigor, esse termo pode ser adotado não para designar uma doutrina filosófica, mas a atitude
de quem se entrega aos acontecimentos sem procurar alterá-los nem reagir.
FATO (in. Fact- fr. Fait; ai. Talsache, it. Fattó). Em geral, uma possibilidade objetiva de verificação, constatação ou
averiguação, portanto também de descrição ou previsão - objetiva no sentido de que todos podem fazê-la nas
condições adequadas. "É F. que x" significa que x pode ser verificado ou confirmado por qualquer um que disponha
dos meios adequados, e que pode ser descrito ou previsto de forma passível de aferição. A noção de F. é moderna,
sendo mais restrita e específica que a de realidade; nasceu sobretudo para indicar os objetos da pesquisa científica,
que devem poder ser reconhecidos por qualquer pesquisador competente. Portanto, no que se refere à sua validade, o
F. é independente de opiniões, preconceitos e mesmo de juízos e valorações que não sejam inerentes ao uso dos
instrumentos capazes de confirmá-lo. Assim, tem duas características fundamentais: d) referência a um método
apropriado de confirmação ou verificação; b) independência em relação a crenças subjetivas ou pessoais de quem
emprega o método. Precisamente em vista dessas duas características, a capacidade de "olhar os fatos", de "considerar
os fatos" ou de "aceitar os fatos" hoje é considerada um dos requisitos fundamentais não só do cientista e do
pesquisador em geral, mas de qualquer cidadão.
Não obstante a importância que assumiu na cultura moderna, essa noção raramente foi alvo da atenção dos filósofos.
A história de suas análises dessa noção é parca, podendo-se dizer que começa no séc. XVII, quando, com a distinção
entre "verdade de razão" e "verdade de F.", também se começa a distinguir — ao menos implicitamente — a esfera
própria do fato. O primeiro a fazer essa distinção foi Hobbes: "Há duas espécies de conhecimento, das quais uma é o
conhecimento de F. e outra é o conhecimento da conseqüência de uma afirmação relativamente a outra. A primeira é
apenas senti-
FATO
430
FATO
do e memória, sendo conhecimento absoluto, como quando vemos um F. acontecer ou o lembramos; esse é o
conhecimento exigido de uma testemunha. A outra tem o nome de ciência e é condicional..." (Leviath., I, 9)- Assim
como Hobbes, Leibniz e Hume concordam em considerar que essa esfera é a experiência. Segundo Leibniz, as
verdades de F. são contingentes, ao passo que as de razão são necessárias porque baseadas no princípio de
contradição, de tal modo que seu contrário é impossível (Nouv. ess., IV, 2, 1). Para Hume, é sempre possível o
contrário das verdades de F., pois nunca implica contradição, sendo concebido pelo espírito com a mesma facilidade
e clareza que há na conformidade à realidade (Inq. Cone. Underst., IV, 1). Tanto Leibniz quanto Hume concordam
em julgar que o fundamento da verdade de F. é o princípio da causalidade. Dessa análise resulta portanto que o fato é:
a) uma realidade contingente, atingida ou testemunhada pela experiência; b) uma realidade fundada em certa conexão
causai. Uma noção de fato assim configurada é a que hoje se chamaria de noção de acontecimento, ou seja, de
realidade contingente que pertence à ordem da natureza. Essa última qualificação é a que se expressa quando se julga
que a verdade de F. baseia-se no princípio causai. Portanto, essa ainda não é uma noção de F. suficientemente ampla,
que possa valer em toda a extensão da pesquisa científica: para ela, as verdades matemáticas não seriam verdades de
fato. A extensão dessa noção foi realizada por Kant, para quem "os fatos são os objetos dos conceitos cuja realidade
objetiva pode ser provada tanto pela razão quanto pela experiência: no primeiro caso, com base em dados teóricos ou
práticos; em qualquer caso, por meio de uma intuição correspondente" {Crít. do Juízo, § 91)-Nesse sentido, segundo
Kant, são fatos: as propriedades geométricas das grandezas, porquanto podem ser demonstradas a priori; as coisas ou
as qualidades das coisas que possam ser provadas pela experiência ou por testemunhas; a idéia da liberdade, cuja
realidade, como uma espécie particular de causalidade, pode ser mostrada a partir da experiência moral ilbid., § 91).
Essa análise de Kant é importante porque: d) permite distinguir nitidamente a noção de F. da noção de acontecimento
como noção mais geral, correlativa à possibilidade de uso de qualquer instrumento de verificação; desse ponto de
vista, o acontecimento é uma espécie
particular de F., mais precisamente um F. natural; b) permite reconhecer o caráter empírico do F. como algo diferente
do seu confinamento à esfera da sensibilidade: a própria razão deve tratar com fatos que não são externos a ela nem
impostos do exterior, mas que encontra em si mesma, como condições do seu funcionamento.
A partir daí, a noção de F. às vezes se aproxima da noção de fenômeno e outras vezes de um elemento ou condição da
razão. Aproxima-se do fenômeno quando se fala de "F. puro", "cru" ou de "simples F.", pois nesse caso alude-se ao
dado imediato, à aparência simples ou grosseira, da forma como ela se apresenta à primeira vista. Mas está claro que
não se pode ir muito longe nessa identificação. F. não é fenômeno: p. ex., o desvio da imagem de um bastão na água é
um fenômeno, mas não um fato. Também é fenômeno o movimento aparente dos céus, que desde o princípio a
astronomia procurou, de vários modos, reduzir a "F". O F. implica uma disposição ou uma interpretação do fenômeno
qüe provoque uma mudança capaz de tornar o fenômeno descritível, previsível e verificável. O próprio Comte, que na
maioria das vezes emprega as duas palavras indiferentemente, parece aludir a uma distinção, como no seguinte
trecho: "Esse F. geral (a gravitação) nos é apresentado como simples extensão de um fenômeno eminentemente
familiar, que portanto consideramos perfeitamente conhecido, o peso dos corpos na superfície da terra" (Phil. Pos., I,
§ 4). Mas no próprio âmbito do positivismo Claude Bernard acentuou a subordinação dos fatos à razão: "Sem dúvida,
admito que os fatos são as únicas realidades que podem dar a fórmula à idéia experimental e, ao mesmo tempo, servir
para aferi-la, mas isso sob a condição de que a razão os aceite... No método experimental, como em tudo, o único
critério real é a razão. Um F. não é nada por si mesmo, mas vale apenas pela idéia a ele ligada ou pela prova que
fornece" (lntr. à 1'étude de Ia médecine experimental, I, 2, 7). Essa interpretação do fato pareceu confirmada quando
se notou o papel preponderante desempenhado pela teoria na construção do "F. científico" (P. DUHEM, La
théoriephysique: son objet e sa strueture, 1906).
A estreita conexão entre F. e atividade racional, expressa de vários modos, em geral é reconhecida pela filosofia
contemporânea. A feno-menologia elaborou a noção de estado de
FATO
431
FÉ
coisas (Sacbverhali) como objeto correspondente de cada juízo válido e considerou como fato o estado de coisas em
que está envolvida uma existência individual. Nesse sentido, uma coisa não é um F., mas é F. que essa coisa existe e
que tem este ou aquele caráter, etc. (HUSSERL, Ideen, I, § 6). A noção de estado de coisas foi retomada por
Wittgenstein em Tractatus logico-philosophicus, mas com uma concepção diferente sobre a relação deste com o fato,
porque viu no "estado de coisas" o elemento simples que entra na composição do fato. O estado de coisas seria,
portanto, o "F. atômico", o componente elementar dos fatos (Tractatus, 2). O que há de característico nessas
concepções é a definição de fato (ou dos seus componentes) como objeto do juízo ou da proposição válida. Segundo
Wittgenstein, o estado de coisas ou F. atômico não é senão o objeto de uma proposição elementar (Ibid., 4, 21).
Entende-se então por que, na linha de desenvolvimento dessa concepção, os fatos chegaram a ser identificados com
proposições. A identificação foi proposta por Ducasse (em "Journal of Philosophy", 1940, pp. 701-11) e aceita por
Carnap, no sentido de que F. seria uma proposição: Ia verdadeira, 2a dotada de certo grau de completitude, ou seja, de
determinação (Meaning and Necessity, § 6, 1). É preciso notar que, para Carnap, o termo proposição não significa
expressão lingüística nem acontecimento mental ou subjetivo, mas algo de objetivo que pode ou não encontrar
exemplo na natureza, sendo portanto comparável a "propriedade" (Ibid., § 6). Portanto, a "proposição verdadeira",
que Carnap identifica com o F., significa simplesmente "objeto válido" ou um "estado de F." real. O esclarecimento
que deriva dessas reduções lingüísticas é puramente verbal e, se chega a ter alguma utilidade num tratamento lógico,
pouco ou nada diz sobre a natureza ou os caracteres do fato. Denuncia, no máximo, a tendência a reportar o F. a
condições conceituais ou lingüísticas. Por outro lado, com De-wey, o pragmatismo insistiu no caráter "operacional"
do F., no sentido de que os F. "são apenas resultados de operações e de observações efetuadas com a ajuda dos
órgãos sensoriais e de instrumentos auxiliares produzidos pela técnica, sendo portanto escolhidos e organizados no
intuito expresso de utilizá-los como dados para uma pesquisa ordenada" (Logic, VI, 5, § 4).
Portanto, a análise que hoje se faz dessa noção ignora a antítese entre fato e razão. A eliminação dessa antítese sem
dúvida também se faz
sentir na elaboração do conceito de razão (v.). No que tange à noção de F. em relação à noção de razão, o F.
configura-se como condição li-mitativa das escolhas racionais. Por exemplo, em física F. é todo objeto passível de
observação, ou seja, todo estado ou situação que pode ser verificada e examinada com os instrumentos de que a física
dispõe. Mas os fatos físicos, nesse sentido, são os limites ou as condições da atividade racional no campo da física, ou
seja, de qualquer construção teórica ou hipótese. Do mesmo modo, no campo da lógica, as implicações analíticas ou
tautológicas valem como fatos, ou seja, como condições ou limites da investigação lógica (ABBAGNANO, Possibilita e
liberta, VI, 7). Em geral, pode-se dizer que, enquanto é uma "possibilidade de verificação" que em cada campo
assume o aspecto específico ditado pelos instrumentos de investigação disponíveis, em relação à razão o F. também é
condição de outras possibilidades, ou seja, de escolhas ou operações que, por sua vez, são determinadas ou
especificadas segundo a natureza de cada campo de indagação.
FAUSTISMO (ai. Faustismus). Segundo Spengler, o caráter da cultura ocidental, em contraposição ao apolinismo da
cultura antiga. A alma fáustica tem como símbolo o espaço puro ilimitado. Fáusticos são, segundo Spengler, a
dinâmica de Galilei, a dogmática católica e a protestante, as grandes dinastias com sua política de gabinete, o destino
de Lear e o ideal de Nossa Senhora, que vai desde a Beatriz de Dante até o fim do segundo Fausto de Goethe
(Untergang desAbendlandes, I, 3, 2, § 6). Trata-se obviamente de uma caracterização arbitrária e fantasiosa.
FÉ (gr. Ttíaxtç; lat. Fides-, in. Faith; fr. Foi; ai. Glaube, it. Fede). Crença religiosa, como confiança na palavra
revelada. Enquanto a crença, em geral, é o compromisso com uma noção qualquer, a F. é o compromisso com uma
noção que se considera revelada ou testemunhada pela divindade. Nesse sentido, essa palavra já era utilizada por
Sexto Empírico, ao falar dos raciocínios que parecem provir "da F. e da memória", tais como o seguinte: "Se um
Deus te disse que esse homem ficará rico, ele ficará rico. Mas este Deus aqui (e indico, suponhamos, Zeus) te disse
que esse homem ficará rico. Logo, ficará rico." Nesses casos, nota Sexto, damos assentimento à conclusão não pela
necessidade das premissas, mas porquanto temos F. na declaração da divindade (Pirr. hyp.,
FÉ
432
FE
II, 141). S. Paulo resumiu as características fundamentais da F. religiosa nas célebres palavras: "F. é a garantia das
coisas esperadas e a prova das que não se vêem" (Hebr, II, I). S. Tomás esclareceu da seguinte forma as palavras de
S. Paulo: "Quando se fala de prova, distingue-se a F. da opinião, da suspeita e da dúvida, coisas em que falta a firme
adesão do intelecto ao seu objeto. Quando se fala de coisas que não se vêem, distingue-se a fé da ciência e do
intelecto, nos quais alguma coisa se faz aparente. E quando se diz garantia das coisas esperadas faz-se a distinção
entre a virtude da F. e a F. no significado comum [isto é, crença em geral], que visa à bem-aventurança esperada" (S.
Th, II, 2, q. 4, a. 1). Os escolásticos ativeram-se, com poucas variantes, a essa descrição da fé. Com o misticismo
alemão do séc. XIV, começou a tomar corpo a doutrina do caráter privilegiado da F. como via de acesso original,
direta e imediata às realidades supremas, especialmente a Deus. Mestre Eckhart vê na F. o meio pelo qual o homem
atinge a realidade última de si e de Deus: a F., diz ele, é o nascimento de Deus no homem. Esse tema retornou na
chamada "filosofia da F." do séc. XVIII: Hamann e Jacobi atribuem à F. o mesmo status privilegiado, a mesma
capacidade de colocar o homem diretamente em contato com as realidades últimas e especialmente com Deus,
transpondo os limites e as incertezas da razão. Embora Jacobi inclua na fé religiosa também a parte que mais
propriamente diz respeito à crença ("Nós cremos que temos corpo; cremos na existência das coisas sensíveis", Werke,
IV, 211; III, 411), para ele é no caráter religioso que se funda a certeza da F.: toda F. é necessariamente F. da
revelação e esta é necessariamente F. em Deus, religião (Ibid., II, 274, 284, ss.). Os românticos reafirmaram amiúde
esse status privilegiado da fé. Foi o que fez Fichte, que exaltou a F. nas obras populares do segundo período, como p.
ex. em Missão do homem (1800), em que afirma que "a F., dando realidade às coisas, impede-as de ser vãs ilusões: é
a sanção da ciência", repetindo as palavras de Jacobi: "Todos nascemos na F." (Werke, II, pp. 254-55). Nos textos de
Schelling muitas vezes o tom é análogo (Werke, I, 10, 183), enquanto Novalis diz que a ciência é somente uma das
metades e que a F. é a outra metade (Fragmente, 391)No último período da Escolástica começou a acentuar-se outro aspecto da F.: seu caráter prático, que não consiste na
sua dependência
da vontade, mas na sua capacidade de dirigir a ação. Duns Scot foi o primeiro a insistir nesse caráter: "A F. não é um
hábito especulativo, assim como crer não é um ato especulativo e a visão que segue a crença não é uma visão
especulativa, mas prática" (Op. Ox., prol., q. 3). Por "prático" Duns Scot entende o que serve para dirigir a conduta;
portanto para ele a teologia é prática, pois as verdades que ela ensina não são teóricas, ou seja, necessárias e demonstráveis, mas servem unicamente para dirigir o homem para a bem-aventurança (Ibid., prol., q. 4, n. 42). A
mesma antítese entre o habitusáà F. e o habitusáà ciência era admitida por Ockham, que reputava os dois hábitos
incompatíveis entre si, observando que não se pode dizer que quem crê em alguma coisa cuja demonstração esqueceu
realmente tem "F.", porque o objeto de sua crença continua sendo a demonstração (In Sent., III, q. 8 R). No mundo
moderno, o caráter prático da F. foi defendido por Spinoza: "A F. consiste em ter, em relação a Deus, os sentimentos
que são eliminados quando se elimina a obediência a Deus, e que estão presentes necessariamente quando está
presente tal obediência" (Tract. theol.-pol, 14). Portanto, a F. é o conjunto de crenças que condicionam a obediência à
divindade, segundo Spinoza. Esse conceito seria retomado por Kant, para quem a crença teoricamente insuficiente
pode, sobretudo em seu aspecto prático, ser chamada de F. Kant generaliza o conceito prático da F., reconhecendo
nela a atitude compromissada que pode dirigir tanto a habilidade, ou seja, a atividade que tem em vista fins arbitrários
e acidentais, quanto a moralidade, que visa a fins absolutamente necessários. A F. que dirige a habilidade é a F.
pragmática, cujo interesse raramente enfrenta desafios. Ao contrário, a F. doutrinai é mais compromissada, mas
tampouco chega à certeza da F. moral. Esta última espécie de fé dá uma certeza que não pode ser comunicada; não é,
pois, de natureza lógica, mas constitui uma "certeza moral" que se baseia em fundamentos subjetivos. "Assim, nunca
devo dizer: é moralmente certo que Deus existe, etc, mas: estou moralmente certo, etc. Ou seja, a fé em Deus e em
outro mundo está tão profundamente entrelaçada com meu sentimento moral que, assim como não corro o risco de
perder este, tampouco temo que aquela me seja retirada" (Crít. R. Pura, Cânone da Razão Pura, seç. 3). Segundo
Kant, a F. religiosa pode ser "F. religiosa pura", que é a própria F.
FÉ
433
FELAPTO
moral, ou "F. histórica", que é fé nas leis estatutárias, que são as que indicam o modo como Deus quer ser honrado e
obedecido. (Religion, III, I, § 6).
Aquilo que os escolásticos chamavam de caráter prático da F., para Kant (e para os modernos) tornou-se o caráter
compromissivo da F., ou seja, o caráter graças ao qual a F. é antes de mais nada um ato existencial, uma orientação
dada à vida do indivíduo, capaz de transformá-la e não isenta de riscos. Estes traços aparecem claros na última grande
teoria da fé que a filosofia elaborou: a de Kierkegaard. Para ele, o cristianismo inverteu a relação entre F. e ciência.
Na Antigüidade clássica, a F. é algo inferior à ciência porque se refere ao verossímil; no cristianismo, a F. é superior
à ciência porque indica a certeza mais elevada, certeza que se refere ao paradoxo, portanto ao inverossímil: ela é "a
consciência da eternidade, a certeza mais apaixonada que impele o homem a sacrificar tudo, mesmo a vida" (Diário,
X4, A 635). O caráter compromissivo da F. consiste em seus laços com a existência: ter fé significa existir de certo
modo: "Para ter F., é preciso que haja uma situação que deve ser produzida com um passo existencial do indivíduo"
(Ibid., X4, A 114). "Esse passo marca a ruptura com o mundo e com seu ideal de inteligibilidade. O que é crer? É
querer (o que se deve e por que se deve), em obediência reverente e absoluta, de fender-se do vão pensamento de
querer compreender e da vã imaginação de poder compreender" (Ibid., X', A 368). Sob este ponto de vista, a F. não é
feita de certezas, mas de decisão e risco. A F., diz Kierkegaard em Temor e tremor, é a certeza angustiante, a angústia
que se torna segura de si e de uma relação oculta com Deus. O homem pode rogar a Deus que lhe conceda a F., mas a
possibilidade de rogar não é em si mesma um dom divino? Assim, há na fé uma inegável contradição, que a torna
paradoxal. O homem é colocado num dilema: crer ou não crer. Por um lado, a ele cabe escolher, e por outro qualquer
iniciativa é impossível, porque Deus é tudo, e dele deriva inclusive a fé. Esse conceito foi substancialmente retomado
por Karl Barth, que interpretou a F. como inserção da Eternidade no tempo, da Transcendência na existência
(Comentário à Epístola aos romanos, 1919). Rudolf Bultmann também atribui a fé à iniciativa divina, apesar de
afirmar a exigência de libertar a F., sobretudo cristã, dos mitos cosmológicos com que ela tradicionalmente aparece unida, procedendo à sua desmitificaçâo (v.). Indo mais longe, Dietrich Bonhoeffer contrapôs a F. à
religião (v.), considerada como expressão mítica e contingente da F., inaceitável nesta época dominada pelo racionalismo, pela ciência e pela tecnologia. Desse ponto de vista, acentua-se o caráter prático da F., que se transforma
em moral natural e humana, fundada na unidade entre mundo e Deus, entre humanidade e Cristo (Ética, 1949;
Resistência e rendição, 1951). É nesse conceito de F., entendida como ação renovadora do mundo humano, que se
inspira o panteísmo humanista dos chamados "novos teólogos" (v. DEUS e DEUS, MORTE DE). Karl Jaspers insistiu na
identidade entre existência e fé sob o aspecto filosófico, mas, na esteira de Kierkegaard, continuou reconhecendo na
F. uma relação direta com a Transcendência (Der phi-losophische Glaube, 1948).
FÉ, FILOSOFIA DA (ai. Glaubensphiloso-phié). Com este nome ou com o de "filosofia do conhecimento imediato"
indica-se a filosofia de um grupo de filósofos alemães da segunda metade do séc. XVIII, que fizeram parte do Sturm
undDrang(y.). As principais figuras desta filosofia foram J. J. Hamann (1730-88), chamado "o mago do Norte", J. G.
Herder (1744-1803) e F. E. Jacobi (1743-1819), a quem se deve a expressão "filosofia da F.". De Kant, essa filosofia
aceitava a doutrina dos limites da razão somente para afirmar a superioridade da fé sobre a razão. Considerava a F.
como uma relação imediata — portanto não sujeita a incertezas ou dúvidas — com as realidades superiores e
especialmente com Deus. Jacobi expressou essas idéias em Cartas sobre a doutrina de Spinoza a Moisés
Mendelssohn (1785), e no ensaio DavidHume eaF. (1787). Na lógica da Enciclopédia, Hegel considerou a doutrina
de Jacobi como "Terceira posição do pensamento sobre a objetividade", e criticou o imediatismo, que considerou o
caráter fundamental da F. de que falava Jacobi (Ene, §§ 6l;74).
FÉ ANIMAL (in. Animal faittí). Assim San-tayana chamou a crença na realidade produzida no homem pelas
experiências animais: fome, sexo, luta, etc. (Scepticism and Animal Faith, 1923) (v. CRENÇA).
FÉ E CIÊNCIA. V. ESCOLÁSTICA.
FELAPTO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o segundo dos seis modos do silogismo de
terceira figura, mais
FELICIDADE
434
FELICIDADE
precisamente o que consiste em uma premissa universal negativa, uma premissa universal afirmativa e uma conclusão
parcial negativa, como no exemplo: "Nenhum homem é pedra; todo homem é animal; logo algum animal não é
pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log. 4. 14).
FELICIDADE (gr. eòôcciuovíoc; lat. Feliciteis, in. Happiness; fr. Bonheur, ai. Glückseligkeit; it. Felicita). Em
geral, estado de satisfação devido à situação no mundo. Por esta relação com a situação, a noção de F. difere de bemaventu-rança{v.), que é o ideal de satisfação independente da relação do homem com o mundo, por isso limitada à
esfera contemplativa ou religiosa. O conceito de F. é humano e mundano. Nasceu na Grécia antiga, onde Tales
julgava feliz "quem tem corpo são e forte, boa sorte e alma bem formada" (DIÓG. L., I, 1, 37). A boa saúde, a boa
sorte na vida e o sucesso da formação individual, que constituem os elementos da F., são inerentes à situação do
homem no mundo e entre os outros homens. Demócrito, de maneira quase análoga, definia a F. como "a medida do
prazer e a proporção da vida", que era manter-se afastado dos defeitos e dos excessos (Fr. 191, Diels). De qualquer
maneira, F. e infelicidade pertencem à alma {Fr., 170, Diels), uma vez que somente a alma "é morada do nosso
destino" {Fr. 171, Diels). A relação que muitas vezes se estabeleceu entre F. e prazer tem o mesmo significado, ou
seja, é a conexão entre o estado definido como F. e a relação com o próprio corpo, com as coisas e com os homens. A
tese segundo a qual a F. é o sistema dos prazeres foi expressa com toda a clareza por Aristipo, que fez a distinção
entre prazer e felicidade. Somente o prazer é bem, porque só ele é desejado por si mesmo, sendo portanto fim em si.
"O fim é o prazer particular, a F. é o sistema dos prazeres particulares, em que se somam também os passados e os
futuros" (DIÓG. L., II, 8, 87). Egesias, que negava a possibilidade de F., negava-a justamente pelo fato de que os
prazeres são demasiado raros e passageiros {Ibid., II, 8, 94). Por outro lado, Platão negava que a felicidade consistisse
no prazer e a julgava, ao contrário, relacionada com a virtude. "Os felizes são felizes por possuírem a justiça e a
temperança; os infelizes são infelizes por possuírem a maldade", diz ele em Górgias(508 b); no Banquete (202 c) são
chamados de felizes "aqueles que possuem bondade e beleza". Mas justiça e temperança são virtudes; "possuir
bondade e beleza" significa ainda ser virtuoso;
e a virtude outra coisa não é, segundo Platão, senão a capacidade da alma de cumprir seu próprio dever, ou seja, de
dirigir o homem da melhor maneira {Rep., I, 353 d. ss.). Portanto, também a noção platônica de F. é relativa à
situação do homem no mundo e aos deveres que aqui lhe cabem. Quanto a Aristóteles, insistiu no caráter
contemplativo da F. em seu grau superior, a bem-aventurança (v.), mas apresentou uma noção mais ampla de F.,
definin-do-a como "certa atividade da alma, realizada em conformidade com a virtude" {Et. nic, I, 13, 1102 b); ela
não exclui, mas inclui a satisfação das necessidades e das aspirações mundanas. As pessoas felizes, segundo
Aristóteles, devem possuir as três espécies de bens que se podem distinguir, quais sejam, os exteriores, os do corpo e
os da alma (Jbid., 1153 b, 17 ss.; Pol., VII, 1, 1323 a 22). É verdade que "os bens exteriores, assim como qualquer
instrumento, têm um limite dentro do qual desempenham sua função utilitária de instrumentos, mas além do qual se
tornam prejudiciais ou inúteis para quem os possui. Os bens espirituais, ao contrário, quanto mais abundantes, mais
úteis". Mas em geral pode-se dizer que "cada qual merece a F., na medida da virtude, do tino e da capacidade de bem
agir que possui, podendo se tomar como exemplo a divindade, que é feliz e bem-aventurada não graças aos bens
exteriores, mas por si mesma, por aquilo que ela é, por natureza" {Pol., VII, 1, 1323 b 8). A F. é portanto mais
acessível ao sábio que mais facilmente se basta a si mesmo {Et. nic, X, 7, 1777, a 25), mas é a isso que devem tender
todos os homens e as cidades.
A ética pós-aristotélica, ao contrário, ocupa-se exclusivamente da F. do sábio; a nítida distinção feita pelos estóicos
entre sábios e loucos torna obviamente inútil preocupar-se com estes últimos. O sábio é aquele que basta a si mesmo
e que acha a F. em si mesmo, o que melhor se chamaria bem-aventurança. Plotino censura na noção aristotélica de F.
o fato de ela consistir em que cada ser desempenhe sua função e atinja seus próprios objetivos, podendo ser
perfeitamente aplicada não só aos homens, mas também aos animais e às plantas {Enn., I, 4,1 ss.). Nos estóicos
Plotino critica a incoerência que consiste em considerar a F. independente das coisas externas ao mesmo tempo que
aponta essas mesmas coisas como objeto da razão. Para Plotino, a F. é a própria vida; por isso, enquanto pertence a
todos os seres vi-
FELICIDADE
435
FELICIDADE
vos, pertence eminentemente à vida mais completa e perfeita, que é a da inteligência pura. O sábio, em
quem tal vida se realiza, é um bem para si mesmo: só tem necessidade de si para ser feliz e não busca as
outras coisas ou então as busca somente porque são indispensáveis às coisas que lhe pertencem (por
exemplo, ao corpo), e não a ele mesmo. A F. do sábio não pode ser destruída pela má sorte, pelas doenças
físicas ou mentais, nem por qualquer circunstância desfavorável, assim como não pode ser aumentada
pelas circunstâncias favoráveis (Ibid., I, 4, 5 ss.): por isso, é a própria bem-aventurança de que gozam os
deuses. A filosofia medieval adotou e enfatizou esses conceitos, adaptando a eles por vezes (como fez S.
Tomás) a própria doutrina aristotélica, mas es-tendendo-os à totalidade dos homens.
A partir do humanismo, a noção de F. começa a ser estritamente ligada à de prazer, como já havia
ocorrido com os cirenaicos e com os epicuristas. A obra De voluptate de Lourenço Valia gira em torno
dessa conexão, que se acentua no mundo moderno. Locke e Leibniz concordam nesse aspecto. Locke diz
que a F. "é o maior prazer de que somos capazes, e a infelicidade o maior sofrimento; o grau ínfimo
daquilo que pode ser chamado de F. é estar tão livre de sofrimentos e ter tanto prazer presente que não é
possível contentar-se com menos" {Ensaio, II, 21, 43). E Leibniz: "Creio que a F. é um prazer durável, o
que não poderia acontecer sem o progresso contínuo em direção a novos prazeres" {Nouv. ess., II, 21, 42).
A noção de F. como prazer ou como soma, ou melhor, "sistema" de prazeres, segundo a expressão do
velho Aristipo, começa a adquirir significado social com Hume: a F. torna-se um prazer que pode ser
difundido, o prazer do maior número, e dessa forma a noção de F. torna-se a base do movimento
reformador inglês do séc. XTX. Entrementes, Kant, que julgava impossível considerar a F. como
fundamento da vida moral, esclarecia eficazmente a noção de F. sem recorrer à de prazer: "A F. é a
condição do ser racional no mundo, para quem, ao longo da vida, tudo acontece de acordo com seu desejo
e vontade" {Crít. R. Prática, Dialética, seç. 5). Trata-se, portanto, de um conceito que o homem não haure
dos instintos e que não deriva daquilo que nele é animalidade, mas que ele constrói para si de maneiras
diferentes, que ele pode alterar com freqüência, muitas vezes arbitrariamente {Crít. do Juízo, § 83). Kant
julga
que a F. é parte integrante do bem supremo, que para o homem é a síntese de virtude e felicidade. Mas
como tal o bem supremo não é realizável no mundo natural, seja porque nada garante neste mundo a
perfeita proporção entre moralidade e F., em que consiste o bem supremo, seja porque nada garante a
satisfação plena de todos os desejos e tendências do ser racional, em que consiste a F. Portanto, para
Kant, a F. é impossível no mundo natural, sendo transferida para um mundo inteligível, que é "o reino da
graça" {Crít. R. Pura, Doutrina do Método, cap. II, seç. 2). Em primeiro lugar, Kant teve o mérito de
enunciar com rigor a noção de F. e, em segundo lugar, de mostrar que essa noção é empiricamente
impossível, irrea-lizável. De fato, não é possível que sejam satisfeitas todas as tendências, inclinações e
voli-ções do homem, porque de um lado a natureza não se preocupa em vir ao encontro do homem, com
vistas a essa satisfação total, e de outro porque as próprias necessidades e inclinações nunca se aquietam
no repouso da satisfação {Crít. do Juízo, § 83). Associada ao conceito de satisfação absoluta e total — em
que Hegel também insiste {Ene, § 479-480) —, a F. torna-se o ideal de um estado ou condição
inatingível, a não ser no mundo sobrenatural e por intervenção de um princípio onipotente. Não é de
admirar, portanto, que toda a parte da filosofia moderna que passou pelo filtro do kan-tismo tenha
desprezado a noção de F. e não a tenha utilizado na análise daquilo que a existência humana é ou deve
ser. Todavia, com Hume, o empirismo inglês havia iniciado (como já foi dito) um novo desenvolvimento
dessa noção em sentido social, o que é próprio do utilitarismo. Hume observara que, "quando se elogia
alguma pessoa bondosa e humana", nunca se deixa de dar destaque "à F. e satisfação da sociedade
humana em poder contar com sua ação e com seus bons serviços" {Inc. Cone. Morais, II, 2). Portanto,
identificara o que é moralmente bom com o que é útil e benéfico. Depois dele, Bentham retomava como
fundamento da moral a fórmula de Beccaria: "A maior felicidade possível, no maior número de pessoas",
fórmula em que também se inspiraram James Mill e Stuart Mill, acentuando cada vez mais o seu caráter
social. Nesses autores não se encontra um conceito rigoroso de F., mas tampouco se encontra neles a
rigidez e o absolutismo que essa noção sofrerá com Kant, o que a tornara impraticável. Eles sabem que a
>
FELICIDADE
436
FENÔMENO
F., por depender de condições e circunstâncias objetivas além das atitudes do homem, não pode pertencer ao homem
em sua individualidade, mas só ao homem enquanto membro de um mundo social. E embora relacionem F. com
prazer, distinguem os vários tipos de prazer, admitindo a identificação apenas com os prazeres socialmente
partilháveis. Na tradição cultural inglesa e americana, a noção de F. permaneceu viva com essa forma e, além do
pensamento filosófico, inspirou o pensamento social e político. O princípio da maior felicidade continuou por muito
tempo sendo a base do liberalismo moderno de cunho anglo-saxônico. A Constituição americana incluiu entre os
direitos naturais e inalienáveis do homem "a busca da F.". A esta tradição liga-se Bertrand Russell, que foi um dos
poucos a defender a noção de F., ainda que numa obra de caráter popular {A conquista da F., 1930). O que Russell
acrescenta de novo à noção tradicional de F. (além de uma convincente análise das situações atuais de "infelicidade")
é uma condição que ele julga indispensável: a multiplicidade dos interesses, das relações do homem com as coisas e
com os outros homens, portanto a eliminação do "egocentrismo", do fechamento em si mesmo e nas paixões pessoais.
Trata-se de uma condição que coloca a F. em posição diametralmente oposta à da auto-suficiência do sábio, que os
antigos consideravam o grau mais elevado de F.
Por outro lado, não conseguindo mais utilizar a noçào de F. como fundamento ou princípio da vida moral, os
filósofos desinteressaram-se dessa noção. Para esse desinteresse também contribuiu a tendência, que nasceu com o
Romantismo e predominou por muito tempo, de exaltar a infelicidade, a dor, os estados de perturbação e insatisfação
como experiências positivas e intrinsecamente regozijadoras. Com efeito, nos graus e nas formas em que pode ser
considerada realizável, a F. é um estado de calma, uma condição de equilíbrio pelo menos relativo, de satisfação
parcial e todavia efetiva, que é exatamente o oposto da inquietude romântica. A filosofia contemporânea ainda não se
deteve para analisar a noção de F. nos limi-~s em que ela pode servir para descrever situações humanas e orientá-las.
Contudo, a importância dessa noção é hoje evidenciada pelo interesse que algumas noções negativas como
"frustração", "insatisfação", etc, têm na psicologia individual e social, normal e patológica. Estas noções e outras análogas indicam, pois, a ausência mais ou menos grave da condição de satisfação pelo
menos relativa que a palavra F. tradicionalmente designa. A importância destas para a análise de estados ou
condições mais ou menos patológicos evidencia a importância que a noção positiva correspondente tem para as
condições normais da vida humana.
FENOMÊNICO, FENOMENOLÓGICO (in. Phenomenal, phenomenological; fr. Phéno-ménal,
phénomenologique-, ai. Phànomenal, Phãnomenologisch; it. Fenomenico, fenomeno-logicó).A distinção entre os dois
adjetivos, que não devem ser confundidos, foi bem exposta por Heidegger: "Por fenomenico entende-se aquilo que é
dado e pode ser explicitado segundo o modo de encontro com os fenômenos, daí falar-se em estruturas fenomênicas.
Fenomenológico é tudo aquilo que é inerente ao modo de demonstrar e de explicitar e tudo aquilo que exprime a
conceituação implícita na presente investigação" (Sein und Zeit, § 7). Em outros termos, pode-se falar de um "objeto
fenomenico" ou "realidade fenomênica", mas deve-se falar em "investigação fenomenológica", em "epoché
fenomenológica", etc. O adjetivo fenomenico qualifica o objeto que se revela no fenômeno, o adjetivo
fenomenológico qualifica a manifestação do objeto em sua "essência", bem como a busca que possibilita essa
manifestação.
FENOMENISMO (in. Phenomenalism; fr. Phénoménisme, ai. Phãnomenalismus; it. Fe-nomenismó). Doutrina
segundo a qual o conhecimento humano limita-se aos fenômenos, no segundo sentido do termo. Essa palavra designa
tanto as filosofias que também admitem a existência de uma realidade diferente do fenômeno (como as de Kant ou
Spencer) quanto as filosofias que negam qualquer realidade que não seja fenômeno (Renouvier, Hodgson). Esse
termo foi cunhado no séc. XIX, mas a filosofia fenomenista nasceu no séc. XVIII; é a filosofia do Iluminismo.
FENÔMENO (gr. xà (pcavóuxva; in. Phe-nomenon; fr. Phénomene-, ai. Phãnomen; it. fenômeno). 1. O mesmo que
aparência (v.). Nesse sentido o F. é a aparência sensível que se contrapõe à realidade, podendo ser considerado
manifestação desta, ou que se contrapõe ao fato, do qual pode ser considerado idêntico (v. FATO). É este o sentido que
essa palavra normalmente assume na linguagem comum
FENÔMENO
437
FENOMENOLOGIA
(mesmo quando esta faz alusão a uma aparência paradoxal e insólita, como por exemplo a monstruosa), sendo
também o significado encontrado em Bacon (no De interpretatione naturaeproemium, 1603), em Descartes iPrinc.
phil., III, 4), em Hobbes (Decorp., 25, § D e em Wolff (Cosm., § 225).
2. A partir do séc. XVIII, em virtude da reabilitação da aparência como manifestação da realidade aos sentidos e ao
intelecto do homem, a palavra F. começa a designar o objeto específico do conhecimento humano que aparece sob
condições particulares, características da estrutura cognoscitiva do homem. Neste sentido, a noção de F. é corre-lativa
com a de coisa em si(y.), a ela remetendo por oposição contrária. À medida que se reconhece que os objetos do
conhecimento se revelam segundo os modos e as formas próprias da estrutura cognoscitiva do homem, e que por isso
eles não são as "coisas em si mesmas", as coisas como são ou poderiam ser fora da relação cognoscitiva com o
homem, o objeto do conhecimento humano configura-se como F., ou seja, como coisa aparente nessas condições, o
que obviamente não significa coisa enganosa ou ilusória. É na filosofia do séc. XVIII que se dá este passo. Hobbes,
que, em princípio, reavaliou o F. como aparência geral (De corp. 25, § 1; V. APARÊNCIA), não atribuiu qualquer
significação limitativa ou corretiva à palavra F., com a qual designa qualquer objeto possível do conhecimento
humano. Mau-pertuis, que nas Cartas de 1752 afirma que a extensão é um fenômeno como todas as coisas corpóreas
(CEuvres, 1756, II, 198 .ss.), exprime contudo a convicção, bastante comum em seu tempo, da limitação do
conhecimento humano, e foi desta convicção que Kant partiu para sua distinção entre F. e númeno. Segundo Kant, o
F. é, em geral, o objeto do conhecimento enquanto condicionado pelas formas da intuição (tempo e espaço) e pelas
categorias do intelecto. Diz: "F. é o que não pertence ao objeto em si mesmo, mas se encontra sempre na relação entre
ele e o sujeito, e é inseparável da representação que este tem dele. Por isso mesmo, os predicados do espaço e do
tempo são atribuídos aos objetos dos sentidos como tais, e nisso não há ilusão. Ao contrário, se atribuo à rosa em si a
cor vermelha, a Saturno os anéis ou a todos os objetos externos em si a extensão, sem levar em conta a relação desses
objetos com o sujeito e sem limitar meu juízo a esta relação, então nasce a ilusão" (Crít. R. Pura, Estética
Transcendental, § 8, Obs. ger., nota). Tal significado, no qual se estabelecia um filosofema muito difundido no séc.
XVIII, permaneceu como um dos significados fundamentais desse termo, mais precisamente aquele com relação ao
qual se fala de fenomenismo. Esse significado caracteriza-se pela limitação de validade do conhecimento humano.
Neste sentido, F. não é o objeto que se manifesta, mas o objeto que se manifesta ao homem nas condições limitativas
específicas que essa relação implica.
3. Todavia, na filosofia contemporânea, a partir das Investigações lógicas (1900-1901) de Husserl, F. começou a
indicar não só o que aparece ou se manifesta ao homem em condições particulares, mas aquilo que aparece ou se
manifesta em si mesmo, como é em si, na sua essência. É verdade que para Husserl o fenômeno neste sentido não é
uma manifestação natural ou espontânea da coisa: exige outras condições, que são impostas pela investigação
filosófica como fenomenologia (v.). O sentido fenomenológico de F. como revelação de essência (HUSSERL, Ideen, I,
Intr.) soma-se portanto ao significado crítico de F., sem contudo eliminá-lo. Nele insistiu Heidegger, considerando o
F. como o aparecer puro e simples do ser em si e distin-guindo-o assim da simples aparência (Erschei-nung ou blosse
Erscheinung), que é indício do ser ou alusão ao ser (que contudo permanece escondido) e que, por isso, é o não
manifestar-se ou o esconder-se do ser (Sein und Zeit, § 7, A). Obviamente neste sentido a noção de F. não se opõe
mais à de coisa em si: o F. é o em si da coisa em sua manifestação, não constituindo, pois, uma aparência da coisa,
mas identificando-se com seu ser.
Podemos agora resumir da seguinte maneira os três significados atualmente em uso da palavra F.: 1) aparência pura e
simples (ou fato puro e simples), considerada ou não como manifestação da realidade ou fato real; 2) objeto do
conhecimento humano, qualificado e delimitado pela relação com o homem; 3) revelação do objeto em si.
FENOMENOLOGIA (in. Phenomenology, fr. Phénoménologie, ai. Phãnomenologie, it. Fenomenologia). Descrição
daquilo que aparece ou ciência que tem como objetivo ou projeto essa descrição. É provável que esse termo tenha
sido cunhado pela escola de Wolff. Lambert uti-
FENOMENOLOGIA
438
FENOMENOLOGIA
liza-o como título da 4a parte do seu Novo Organon (1764) e com ele entende o estudo das fontes de erro. Aqui, a
aparência, cuja descrição é a F., é entendida como aparência ilusória. Kant, porém, utiliza esse termo para indicar a
parte da teoria do movimento que considera o movimento ou o repouso da matéria somente em relação com as
modalidades em que eles aparecem ao sentido externo (Metaphysische Aufangsgründe der Natur wissenschaft, 1786,
Pref.). Por sua vez, Hegel chamou de "F. do espírito" a história romanceada da consciência, que, desde suas primeiras
aparências sensíveis, consegue aparecer para si mesma em sua verdadeira natureza, como Consciência Infinita ou
Universal. Nesse sentido, identifica a F. do espírito com o "devir da ciência ou do saber", e nela descobre o caminho
através do qual o indivíduo repercorre os graus de formação do Espírito Universal, como figuras já abandonadas ou
etapas de um caminho já traçado e aplanado (Phãnomen. des Geistes, Pref., ed. Glockner, p. 31). Hamilton atribuiu
outro significado a esse termo (Lectures on Logic, 1859-1860,1, p. 17), o de psicologia descritiva; foi com tal
significado, de pura descrição da aparência psíquica, preliminar à explicação dos fatos psíquicos, que esse termo foi
usado com freqüência pela cultura filosófica alemã da segunda metade do séc. XIX e nos primeiros anos do séc. XX.
Hartmann intitulou F. da consciência moraKPhânomenologie des sittliche Bewusstseins, 1879) a coletânea de dados
empíricos da consciência moral, independentemente de sua interpretação especulativa. Mas a única noção hoje viva
de F. é a anunciada por Husserl em Investigações lógicas (1900-1901, II, pp. 3 ss.), correlativa ao 3a significado de
fenômeno e depois desenvolvida por ele mesmo nas obras seguintes. O próprio Husserl preocupou-se em eliminar a
confusão entre psicologia e fenomenologia. Esclareceu que psicologia é a ciência de dados de fato; os fenômenos que
ela considera são acontecimentos reais que, juntamente com os sujeitos a que pertencem, inserem-se no mundo
espácio-temporal. A F. (que ele chama de "pura" ou "transcendental") é uma ciência de essências (portanto,
"eidética") e não de dados de fato, possibilitada apenas pela redução eidética, cuja tarefa é expurgar os fenômenos
psicológicos de suas características reais ou empíricas e levá-los para o plano da generalidade essencial. A redução
eidética, vale dizer, a transformação dos fenômenos em essências,
também é redução fenomenológica em sentido estrito, porque transforma esses fenômenos em irrealidadesUdeen, I,
Intr.). Com esse significado, a F. constitui uma corrente filosófica particular, que pratica a filosofia como
investigação fenomenológica, ou seja, valendo-se da redução fenomenológica e da epoché(v.). Os resultados
fundamentais a que esta investigação levou, em Husserl, podem ser resumidos da maneira seguinte: 1Q O
reconhecimento do caráter intencional da consciência (v.), em virtude do qual a consciência é um movimento de
transcendência em direção ao objeto e o objeto se dá ou se apresenta à consciência "em carne e osso" ou
"pessoalmente"; 2a evidência da visão (intuição) do objeto devida à presença efetiva do objeto; 3 S generalização da
noção de objeto, que compreende não somente as coisas materiais, mas também as formas de categorias, as essências
e os "objetos ideais" em geral Qdeen, I, § 15); 4Q caráter privilegiado da "percepção imanente", ou seja, da
consciência que o eu tem das sua,s próprias experiências, porquanto nessa percepção aparecer e ser coincidem
perfeitamente, ao passo que não coincidem na intuição do objeto externo, que nunca se identifica com suas aparições
à consciência, mas permanece além delas (Ibid., §38).
Nem todos estes princípios são aceitos pelos pensadores contemporâneos que se valem da investigação
fenomenológica: apenas o primeiro deles (caráter intencional da consciência, em virtude do qual o objeto é
transcendente em relação a ela e todavia presente "em carne e osso") tem crédito não só entre esses pensadores como
também junto a grande número de filósofos contemporâneos. Foi com base na investigação fenomenológica que
Nicolai Hartmann fundou seu realismo (v.) metafísico; o mesmo fizeram Scheler para a análise das emoções (v.) e
Heidegger (como método para sua ontologia). Este último expressa com toda a clareza o caráter próprio da F. quando
afirma: "A palavra 'F.' significa antes de mais nada um conceito de método. Ela não caracteriza a consistência de fato
do objeto da indagação filosófica, mas seu como... Esse termo expressa um lema que poderia ser assim formulado: às
coisas mesmas! — por oposição às construções soltas no ar e aos achados casuais; em oposição à admissão de
conceitos apenas aparentemente verificados e aos falsos problemas que se impõem de geração em geração como pro-
FENÔMENO ORIGINÁRIO
439
FEncmsMo
blemas verdadeiros" (Sein und Zeit, § 7). Portanto, o que a F. mostra é aquilo que, acima de tudo e na maior parte dos
casos, não se manifesta, o que está escondido, mas que é capaz de expressar o sentido e o fundamento daquilo que,
acima de tudo, e na maior parte dos casos, se manifesta. Nesse sentido, a F. é a única ontologia possível {lbid., § 7 C).
A F. é entendida de maneira análoga por Sartre (Z 'être et le néant, Intr., §§ 1-2) e por Merleau-Ponty
(Pbénoménologie de Ia perception, Pref.). A formulação fenomenológica da filosofia não implica, portanto, a redução
da existência à aparência e não pode ser confundida de maneira nenhuma com o fenomenismo (v:). O próprio
conceito de fenômeno a que se faz referência é diferente neste caso. Por outro lado, tampouco implica a eliminação
da diferença entre parecer e ser, embora esse antigo dualismo seja eliminado. Sartre diz: "O fenômeno de ser exige a
transfenomenalidade do ser, Isto não quer dizer que o ser está escondido atrás dos fenômenos (vimos que o fenômeno
não pode mascarar o ser), nem que o fenômeno é uma aparência que remete a um ser distinto (só enquanto aparência
o fenômeno é, ou seja, ele se indica sobre o fundamento do ser). Segue-se que o ser do fenômeno, conquanto
coextensivo ao fenômeno, deve escapar à condição fenomênica — de só existir na medida em que se nos revela — e,
por conseguinte, excede e fundamenta o conhecimento que se tem dele" (Vêtreetle néant, Intr., § 2). A relação entre
aparência e ser, na ontologia fenomenológica, pode ser definida ou analisada de maneiras diferentes, mas não se
amolda à tradição que relaciona aparência e realidade.
FENÔMENO ORIGINÁRIO. V. URPHÀNO
MENON.
FERIO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o quarto modo da primeira figura do silogismo,
mais precisamente o que consta de uma premissa universal negativa, de uma premissa particular afirmativa e de uma
conclusão particular negativa, como no exemplo "Nenhum animal é pedra; alguns homens são animais; logo, alguns
homens não são pedra" (Pedro Hispano, Summ. log., 4.07).
FERISON. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o sexto dos seis modos do silogismo de terceira
figura, mais precisamente o que consta de uma premissa universal negativa, de uma premissa particular afirmativa e
de uma conclusão particular negativa, como no exemplo: "Nenhum homem é pedra; alguns homens são animais; logo, alguns animais não são
pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4. 15).
FESPAMO. Palavra mnemônica usada pela Lógica de Port-Royal para indicar o oitavo modo do silogismo de
primeira figura (isto é, Fapesmó), com a modificação que consiste em tomar por premissa maior a proposição em que
está contido o predicado da conclusão. O exemplo é o seguinte: "Nenhuma virtude é uma qualidade natural; toda
qualidade natural tem a Deus por primeiro autor; logo, há qualidades naturais que têm Deus por autor e não são
virtudes" (ARNAULD, Log., III, 8).
FESTINO. Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o terceiro dos quatro modos da segunda figura
do silogismo, mais precisamente o que consta de uma premissa universal negativa, de uma premissa particular
afirmativa e de uma conclusão particular negativa, como no exemplo: "Nenhuma pedra é animal; alguns homens são
animais; logo, alguns homens não são pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4.11).
FETICHISMO (in. Fetisbism; fr. Fétichisme, ai. Fetichismus; it. Feticismó). Crença no poder sobrenatural ou
mágico de certos objetos materiais (it. feticci; v. port. feitiço = artificial). Mais geralmente, atitude de quem considera
animados os objetos materiais, e os tipos de religião ou de filosofia baseados nesta crença. Neste segundo sentido,
esse termo não é mais usado, por ter sido substituído por animismo (v.). Em geral, os filósofos empregam essa
palavra em sentido depreciativo; por exemplo, Mach chamou de F. a crença nos conceitos de causa e de vontade
iPopulárwissenschaftliche Vorlesungen, 1896, p. 269). Comte exaltara o F., por encontrar nele alguma afinidade com
o positivismo, porquanto ambos vêem em todos os seres uma atividade análoga ou semelhante à humana, e assim
estabelecem a unidade fundamental do mundo que se expressa na teoria do Grande Ser (Politiquepositive, III, p. 87;
IV, p. 44). Kant, por outro lado, chamou F. a religião mágica, de quem realiza certas ações que por si nada contêm de
agradável a Deus, nada têm de moral, com o fim de obter favores divinos e satisfazer desejos pessoais. Neste sentido,
o sacerdócio é "a constituição de uma igreja em que reina o culto fetichista, onde o fundamento e a essência do culto
não são constituídos por princípios de moralidade, mas por disposições
FICÇÃO
440
FIGURA
estatutárias, regras de fé e observâncias" (Reli-gion, IV, seç. 2, § 3)FICÇÃO (in. Fiction; fr. Fiction; ai. Fiktion; it. Finzioné). Uma filosofia da F., ou ficcionis-mo {Fiktionalismus), é a
"Filosofia do como se" (1911) de Vaihinger, que se propõe demonstrar que todos os conceitos, as categorias, os
princípios e as hipóteses de que lançam mão o saber comum, as ciências e a filosofia são F. destituídas de qualquer
validade teórica, freqüentemente contraditórias, que são aceitas e conservadas enquanto úteis. Vaihinger não acha que
essa situação seja patológica, mas normal, e que a única alternativa viável é utilizar as F. conscienciosamente. Está
claro que, nesse sentido, a F. não é uma hipótese, pois não exige verificação; aproxima-se mais do conceito de
mitoiy). A filosofia da F. é um dos desdobramentos do conceito kantiano do como se (v.) na filosofia contemporânea.
FICHTISMO. V. ROMANTISMO.
FIDEÍSMO (in Fideism, fr. Fidéisme, ai. Fideismus-, it. Fideismó). Designou-se com este termo a concepção
filosófica e religiosa defendida nas primeiras décadas do séc. XIX pelo abade Bautain, por Huet, por Lamennais (este
último especialmente na obra Essais sur l'in-différence en matière de religion, 1817-1823); essa concepção consiste
em opor à razão "individual" uma razão "comum", que seria uma espécie de intuição das verdades fundamentais,
comum a todos os homens. Esta intuição teria origem numa revelação primitiva que se transmitiria através da
tradição eclesiástica; assim, serviria de fundamento da fé católica. Essa doutrina visava justificar o primado da
tradição eclesiástica. Na realidade, negava à Igreja a prerrogativa de ser a única depositária da tradição autêntica e
negava à tradição o apoio da razão. Depois da condenação da Igreja (1834), entre os escritores católicos esse termo
assumiu conotação pejorativa, mas continua sendo usado até hoje para indicar, em geral, quaisquer atitudes que
considerem a fé como instrumento de conhecimento superior à razão e independente dela.
FIGURA (gr. a^riLicc; lat. Figura-, in. Figure, fr. Figure, ai. Figur, Gestalt; it. Figura). 1. Com este termo são
designadas tradicionalmente as formas fundamentais do silogismo, diferentes dos modos (v.), que são especificações
de tais formas. Aristóteles distinguiu as diferentes figuras do silogismo segundo a função do termo médio, que serve
para mostrar a inerência do
predicado ao sujeito da conclusão. Na primeira F., o termo médio serve de sujeito na premissa maior e de predicado
na premissa menor. Na segunda F., serve de predicado em ambas as premissas, uma das quais negativa, e a conclusão
também é negativa. Na terceira F., serve de objeto em ambas as premissas e a conclusão é particular. A tradição
atribui a Galeno, famoso médico e filósofo aristotélico do séc. II d.C, a distinção de uma quarta F., em que o termo
médio serve de predicado na premissa maior e de sujeito na premissa menor: os modos dessa F. haviam sido
incluídos por Aristóteles entre os da primeira. A separação foi feita porque se definiu como premissa maior a que
compreende o predicado da conclusão, e como premissa menor a que compreende o sujeito da conclusão (PRANTL,
Geschichte der Logik, I, pp. 570 ss.). Cada F., por sua vez, divide-se em certo número de modos, conforme a
qualidade e quantidade das proposições que constituem as premissas e a conclusão, ou seja, segundo as premissas e a
conclusão, consideradas individualmente, sejam universais ou particulares, afirmativas ou negativas. Como na
Escolástica se usou a letra A para indicar a proposição universal afirmativa, a letra E para indicar a proposição
universal negativa, a letra /para indicar a proposição particular afirmativa e a letra O para indicar a proposição
particular negativa (daí os versos: A affirmat, negat E, sed uníversalüer amhae, Ifirmat, negat O, sed particulariter
ambaé), formaram-se palavras mnemônicas para indicar os vários modos do silogismo, palavras nas quais as duas
primeiras vogais indicam as premissas e a terceira, a conclusão. Assim, os nove modos da primeira F. foram
indicados pelas palavras Barbara, Cela-rent, Darii, Ferio, Baralipton, Celantes, Debitis, Fapesmo, Frisemorum. Os
quatro modos da segunda F. foram indicados pelas palavras Cesare, Camestres, Festino, Baroco. Os seis modos da
terceira F. foram indicados pelas palavras Darapti, Felapto, Disamis, Datisi, Bocardo, Fe-rison. Os últimos quatro
modos da primeira F. são os que se atribuem à quarta F., quando distinguida. As iniciais das palavras mnemônicas
também têm significado. Todos os modos indicados por uma palavra que comece com B podem ser reduzidos ao
primeiro modo da primeira F.; os indicados por uma palavra que comece com C são redutíveis ao segundo modo da
primeira F.; os indicados por uma palavra com D inicial são redutíveis ao terceiro modo da primeira F.; e os
indicados por uma palavra
FIGURAE DICTIONIS (FALÁCIA)
441
FILOLOGIA
com .F inicial reduzem-se ao quarto modo da primeira F. (cf., sobre o uso das palavras mnemônicas, PEDRO HISPANO,
Summ. log., 4.18 ss.). Para cada modo, ver as palavras relativas.
2. Com esse mesmo termo, que traduz o alemão Gestalt, indicam-se as determinações da fenomenologia do espírito
de Hegel. Tais determinações são "figuras da consciência" (Phãnomen. des Geistes, pref., ed. Glockner, pp. 36 e
passini) ou "graus do caminho já traçado e batido" pelo Espírito Universal, ou seja, etapas através das quais a
consciência chegou à consciência de si como Consciência Infinita e Absoluta. Como se sabe, entre as F. da
fenomenologia Hegel inclui também criações fantasistas, o que estabelece uma diferença entre essas F. e as
categorias, que são objeto da Enciclopédia. Com efeito, as categorias são determinações necessárias e
necessariamente reais.
FIGURAE DICTIONIS (FALÁCIA). Para-logismo in dictione (v. FALÁCIA), que consiste no uso gramatical
errôneo nas premissas, gerando conseqüências paradoxais ou gramaticalmente impossíveis ( "Omnis homo est albus,
mulier est homo, ergo mulier est albus"). Cf. ARISTÓTELES, El. sof., 4, 166 b 10; PEDRO HISPANO, Summ. log., 7.34
ss.; JUNGIUS, Lógica hamb., VI, 7, etc.
G. P.
FILANTROPIA (gí. cpilav6po7tí(X; lat. Phi-tanthropia; in. Philanthropy, fr. Philanthropie, ai. Philanthropie, it.
Filantropia). Amizade do homem para com outro homem. Essa palavra foi assim entendida por ARISTÓTELES (Et. nic,
VIII, 1, 1155, a. 20) e pelos estóicos, que atribuíram essa amizade ao vínculo natural, graças ao qual toda a
humanidade constitui um único organismo. "Daí deriva", diz Cícero, "que também é natural a solidariedade recíproca
entre os homens, graças à qual, necessariamente, um homem não pode ser alheio a outro homem, pelo próprio fato de
ser homem" (Definibus, III, 63). Diógenes Laércio atribui o conceito de F. também a Platão, que o teria dividido em
três aspectos: saudação, ajuda, hospitalidade (DIÓG. L., III, 98). Na linguagem moderna, a significação desse termo
restringiu-se ao segundo dos aspectos distinguidos por Platão. A atitude geral de benevolência para com os outros
homens hoje é freqüentemente chamada de altruísmo (v.).
FILÁUCIA. V. AMOR SUL
FILODOXIA (gr. (piÀoôo^ía; lat. Philodoxia, Philodoxy, fr. Philodoxie, ai. Philodoxie, it. Filodossid). Essa palavra (que significa mais exatamente "amor pela glória") foi usada por Platão para indicar os
"amantes da opinião", em oposição aos "amantes da ciência", que são os filósofos. Os amantes da opinião são aqueles
que gostam de ouvir belas vozes, olhar belas cores, etc, mas que não consideram o belo como um ser em si (Rep., V,
480 a). Kant chamou de F. a atitude daqueles que rejeitam não só o método da crítica, por ele proposto, mas também
o método da fundamentação de Wolff, que consiste em proceder estabelecendo princípios, definindo conceitos e
buscando o rigor das demonstrações (jCrít. R. Pura, Prefácio da 2a edição).
FILOGÊNESE. V. BIOGENÉTICA, LEI.
FILOLOGIA (gr. (piA.OA.07ia; lat. Philologia; in. Philology, fr. Philologie, ai. Philologie, it. Filologia). Para
Platão, essa palavra significava amor aos discursos (Teet., 161 a); na idade moderna, passou a designar a ciência da
palavra, ou melhor, o estudo histórico da língua. Viço opôs F. e filosofia: "A filosofia contempla a razão de onde
parte a ciência do verdadeiro; a F. observa a autoridade, o arbítrio humano, de onde parte a consciência do certo"
(Scienza nuova, dign. 10). Seria tarefa dos filólogos o "conhecimento das línguas e dos feitos dos povos". F. e
filosofia completam-se no sentido de que os filósofos deveriam "conferir" suas razões com a autoridade dos filólogos,
e os filólogos deveriam "confirmar" sua autoridade com a razão dos filósofos. No conceito moderno, F. é a ciência
que tem por objetivo a reconstituição histórica da vida do passado através da língua, portanto dos seus documentos
literários. Por conseguinte, os projetos e os resultados dessa ciência, do modo como ela se formou, sobretudo no séc.
XLX, vão muito além da humilde tarefa à qual desejaram limitá-la os filósofos do idealismo romântico. Hegel já se
opunha aos "filólogos", historiadores que faziam seu trabalho em nome da história filosófica, única história capaz de
descobrir apriorio plano providencial do mundo (Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, pp. 8 ss.). No mesmo
sentido, Croce chamava de história filológica a história dos historiadores, à qual contrapunha a história
"especulativa", que identificava com a filosofia (CROCE, Teoria e storia delia storiografia, 1917; La storia
comepensiero e come azione, 1938).
Na realidade, a história filológica é a história dos historiadores, ao passo que a história especulativa nada mais é que a
concepção providencialista do mundo histórico, que nada
FILOSOFEMA
442
FILOSOFIA
tem a ver com a historiografia científica (v. HISTORIOGRAFIA). O adjetivo filológico não pode sequer ser usado para
designar formas monótonas e mal realizadas de historiografia, pois a F. não é em nada responsável por elas.
Tampouco a função de conservação e recons-tituição do material documentário e das fontes, que Nietzsche chamou
de história arqueológica (v.), é um tipo inferior de história, porque só é possível quando um interesse inteligente guia
as escolhas oportunas e as torna úteis à tarefa da crítica e da reconstituição históricas.
FILOSOFEMA (gr. (piAoGÓ<pr|ua; lat. Phi-losophema; in. Philosopheme, fr. Philosophème, ai. Phüosophem, it.
Filosofemd). Em geral, discurso filosófico. Na lógica de ARISTÓTELES (Top., VIII, 11, 162 a 15) é o "raciocínio
demonstrativo". Fora da lógica: conceito ou lugar-comum filosófico. Neste segundo sentido é usado pelo próprio
ARISTÓTELES (De cael, II, 13, 294 a 19) e pela tradição posterior.
G. P.-N. A.
FILOSOFIA (gr. (piÀ.oooq)í(X; lat. Philosophia; in. Philosophy, fr. Pbilosophie, ai. Philosophie, it. Filosofia). A
disparidade das F. tem por reflexo, obviamente, a disparidade de significações de "F.", o que não impede reconhecer
nelas algumas constantes. Destas, a que mais se presta a relacionar e articular os diferentes significados desse termo é
a definição contida no Eutidemo de Platão: F. é o uso do saber em proveito do homem. Platão observa que de nada
serviria possuir a capacidade de transformar pedras em ouro a quem não soubesse utilizar o ouro, de nada serviria
uma ciência que tornasse imortal a quem não soubesse utilizar a imortalidade, e assim por diante. É necessária,
portanto, uma ciência em que coincidam fazer e saber utilizar o que é feito, e esta ciência é a F. (Eutid., 288 e 290 d).
Segundo esse conceito, a F. implica: ls posse ou aquisição de um conhecimento que seja, ao mesmo tempo, o mais
válido e o mais amplo possível; 2a uso desse conhecimento em benefício do homem. Esses dois elementos recorrem
freqüentemente nas definições de F. em épocas diversas e sob diferentes pontos de vista. São reconhecíveis, por
exemplo, na definição de Descartes, segundo a qual "esta palavra significa o estudo da sabedoria, e por sabedoria não
se entende somente a prudência nas coisas, mas um perfeito conhecimento de todas as coisas que o homem pode
conhecer, tanto para a conduta de sua vida quanto para a conservação de sua saúde e a invenção de todas as artes"
(Princ. phil., Pref.). Encontram-se
igualmente na definição de Hobbes, segundo a qual a F. é, por um lado, o conhecimento causai e, por outro, a
utilização desse conhecimento em benefício do homem (De corp., I, § 2, 6), bem como na de Kant, que define o
conceito cósmico da F. (o conceito que interessa necessariamente a todos os homens) como o de "ciência da relação
do conhecimento à finalidade essencial da razão humana" (Crít. R. Pura, Doutr. transe, do método, cap. III). Essa
finalidade essencial é a "felicidade universal"; portanto, a F. "refere tudo à sabedoria, mas através da ciência" (Ibid.,
infiné). Não tem significação diferente a definição de F. dada por Dewey, como "crítica dos valores", no sentido de
"crítica das crenças, das instituições, dos costumes, das políticas, no que se refere seu alcance sobre os bens"
(Experience and Nature, p. 407). Estas definições (aqui citadas apenas como exemplos) podem ser remetidas à
fórmula de Platão, citada no início, cuja vantagem é nada estabelecer sobre a natureza e os limites do saber acessível
ao homem x>u sobre os objetivos para os quais ele pode ser dirigido. Portanto pode-se entender esse saber tanto
como revelação ou posse quanto como aquisição ou busca, podendo-se entender que seu uso deva orientar-se para a
salvação ultraterrena ou terrena do homem, para a aquisição de bens espirituais ou materiais, ou para a realização de
retificações ou mudanças no mundo. Portanto, essa fórmula revela-se igualmente apta a exprimir as diferentes tarefas
que a F. foi assumindo ao longo de sua história. Por exemplo, exprime igualmente bem tanto a tarefa das F. positivas
ou dogmáticas quanto a das F. negativas ou cépticas. Quando o cepticismo antigo se propõe realizar a
imperturbabilidade da alma pela suspensão do assentimento (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., I, 25-27), não faz senão
entender a F. como uso de determinado conhecimento para conseguir uma vantagem. Analogamente, quando, na F.
contemporânea, Wittgenstein afirma que o propósito da F. é levar ao desaparecimento dos problemas filosóficos,
eliminar a própria F. ou se "curar" dela (Philosophícal Investigations, § 133), não está recorrendo a conceito diferente
de F.: libertar dá F. é a utilidade que o uso do saber (neste caso a retificação lingüística deste) pode proporcionar.
Os dois elementos encontrados na definição de F. considerada apta a constituir o quadro
FILOSOFIA
443
FILOSOFIA
das principais articulações dos significados desse termo constituem por si mesmos a primeira dessas articulações. Em
outras palavras, é possível distinguir os significados historicamente dados desse termo: Ia com relação à natureza e
validade do conhecimento ao qual a F. se refere; 2- com relação à natureza do alvo para o qual a F. pretende dirigir o
uso desse saber; 3Q com relação à natureza do procedimento que se considera próprio da filosofia.
I. A filosofia e o saber— O uso do saber ao qual o homem tem acesso de algum modo é, em primeiro lugar, um juízo
sobre a origem ou a validade desse saber. E a propósito do juízo sobre a validade do saber surgem imediatamente
duas alternativas fundamentais, que estabelecem a distinção entre dois tipos diferentes e opostos de filosofia. A
primeira alternativa estabelece a origem divina do saber: para o homem, ele é uma revelação ou um dom. A segunda
alternativa estabelece a origem humana do saber: ele é uma conquista ou uma produção do homem. A primeira
alternativa é a mais antiga e a mais freqüente no mundo, prevalecendo de há muito nas filosofias orientais. A segunda
alternativa surgiu na Grécia e foi herdada pela civilização ocidental.
A) De acordo com a primeira alternativa, o saber é uma revelação ou iluminação divina, com que se privilegiaram a
um ou mais homens, transmitida por tradição num grupo também privilegiado de homens (casta, seita ou igreja).
Portanto, não é acessível aos mortais comuns, a não ser através daqueles que são seus depositários; tampouco é
possível aos mortais, comuns ou não, aumentar seu patrimônio ou julgar de sua validade. Faz parte integrante dessa
interpretação da origem do saber a crença de que seu uso em benefício do homem — neste caso a "salvação" —
também é ditado ou prescrito pela revelação ou iluminação divina. Portanto, esta interpretação parece eliminar ou
tornar supérfluo o "trabalho" filosófico, que versa precisamente sobre esse uso. Mas na prática isso é raro. A
exigência de aproximar a verdade revelada da compreensão humana comum, de adaptá-la às circunstâncias e de fazer
que ela atenda aos problemas novos ou modificados que os homens se propõem, de defendê-la de negações, desvios,
increduli-dades declaradas ou ocultas, faz que o trabalho fÜosófico encontre nesse conceito do saber um vasto campo
para desenvolver-se e tarefas multiformes para enfrentar. Contudo, esse trabalho é subalterno e ancilar: não é nem pode ser decisivo quando se trata de interpretações fundamentais e de
instâncias últimas. Na revelação e na tradição, encontra limites intransponíveis que vedam qualquer possibilidade de
desenvolvimento em direções diferentes das já determinadas. Não pode combater e destruir as crenças estabelecidas,
opor-se frontalmente à tradição, promover ou planejar transformações radicais. Sua função é conservar as crenças
estabelecidas, e não renová-las ou aperfeiçoá-las, portanto, sua função é subordinada e instrumental, destituída de
autonomia e da dignidade de força diretiva.
Já se disse que quase todas as F. orientais são dessa natureza, o que por vezes levou a duvidar de que pudessem ser
chamadas de filosofias. Mas, na verdade mesmo o mundo ocidental muitas vezes oferece exemplos de F. desse tipo,
ainda que nenhuma delas apresente os caracteres ora expostos em todo o seu rigor. A partir do nome do mais
importante desses exemplos, as formas que esse tipo de F. assumiu no mundo ocidental podem ser chamadas de
escolásticas, Uma escolástica, ao contrário de uma filosofia de puro tipo oriental, pressupõe uma F. autônoma e valese dela para a defesa e a ilustração de uma verdade religiosa para confirmar ou defender crenças cuja validade se
julga estabelecida de antemão, independentemente de confirmações ou defesas. Uma escolástica, como a própria
palavra diz, é essencialmente um instrumento de educação: serve para aproximar o homem, na medida do possível, de
um saber considerado imutável em suas linhas fundamentais, portanto não susceptível de aperfeiçoamento ou
renovação. Entre as tarefas — aliás, múltiplas, assim como são múltiplos os caminhos de acesso do homem à
verdade, bem como os obstáculos encontrados nesse caminho — assumidas por uma F. escolástica, não está o
eventual abandono das crenças de que ela é intérprete. As seitas filosó-fico-religiosas do séc. II a.C. (p. ex., os essênios), as doutrinas de Fílon de Alexandria (séc. I d.C.) e de muitos neoplatônicos, a F. islâmica e judaica, a
Patrística e a Escolástica, bem como, no mundo moderno, o ocasiona-lismo, o imaterialismo, a direita hegeliana e boa
parte do espiritualismo contemporâneo são escolásticos no sentido ora esclarecido: F. que consistem em utilizar
determinada doutrina (platonismo, aristotelismo, cartesianismo, em-pirismo, idealismo, etc.) para a defesa e a inter-
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FILOSOFIA
pretação de crenças que não podem ser postas em dúvida, corrigidas ou negadas por esse trabalho.
Certamente, essas diferentes escolásticas possuem graus diferentes de liberdade e esses graus às vezes
variam, em cada uma delas, de uma época para outra. P. ex., S. Tomás, apesar de conferir à "F. humana"
certa autonomia, na medida em que lhe atribui a consideração e o estudo das coisas criadas como tais, ou
seja, sua natureza e suas próprias causas {Contra Gent., II, 4), considera impossível que ela possa
contradizer as afirmações da fé cristã, que deve ser tomada como norma do procedimento correto da razão
ilbid., I, 7). Ainda que as F. desse tipo possam conseguir resultados importantes, que passam a fazer parte
do patrimônio filosófico comum, seu campo é rigidamente limitado pelo problema em torno do qual elas
giram, de defesa de crenças tradicionais: suas possibilidades não se estendem à correção e renovação de
tais crenças.
J5) Para a segunda alternativa, o saber é uma conquista ou uma produção do homem. O fundamento desta
concepção é que o homem é um "animal racional" e, portanto, como diz Aristóteles no início da
Metafísica (980 a 21), "todos os homens tendem, por natureza, ao saber": "tendem" significa que não
somente desejam o saber, mas também podem obtê-lo. O saber, sob esse ponto de vista, não é privilégio
ou patrimônio reservado a poucos; qualquer um pode contribuir para sua aquisição e para seu
enriquecimento, tendo, por isso, direito de julgá-lo, aprová-lo ou rejeitá-lo. Sob esse ponto de vista, a
tarefa fundamental da F. é a busca e a organização do saber. Quando Tucídides (II, 40) atribui a Péricles a
frase "Amamos o belo com moderação e filosofamos sem timidez", certamente está expressando a atitude
e o espírito grego, do qual nasceu a F. nesta segunda acepção do termo. Péricles não fazia alusão a uma
disciplina específica, mas à busca do saber conduzida sem compromissos preconcebidos ou com um
único compromisso de experimentar e pôr à prova toda crença possível. Neste sentido, a F. é uma criação
original do espírito grego e uma condição permanente da cultura ocidental. É um compromisso no sentido
de que qualquer investigação, em qualquer campo, deve obedecer somente às limitações ou às normas que
ela mesma reconheça como válidas em função de suas possibilidades ou de sua eficácia em descobrir ou
confirmar. Neste sentido, F. opõe-se a tradição, preconceito,
mito e, em geral, à crença infundada que os gregos chamavam de opinião. É na diferença entre opinião e
ciência, entre amor à opinião e amor à sabedoria, que Platão mais insiste ao esclarecer o conceito de F.
(Rep., V, 480 a). A F. como investigação é contraposta por Platão, por um lado, à ignorância e, por outro,
à sabedoria. A ignorância é ilusão de sabedoria e des-trói o incentivo à investigação (O Banq., 204 a). Por
outro lado, a sabedoria, que é a posse da ciência, torna inútil a investigação: os Deuses não filosofam
(Ibid. 204 a; Teet., 278 d). A investigação é o que define o status de F. Já Heráclito dissera: "É necessário
que os homens filósofos sejam bons investigadores de muitas coisas" (Fr. 35, Diels). Enquanto
investigação, a F. é "conquista", como dizia Platão (Eutid., 288 d), ou esforço, como diziam os estóicos
(SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., IX, 13), ou "atividade", como diziam os epicuristas (Ibid., XI, 169).
Mas se a F. é o compromisso de fazer do saber investigação, condiciona o saber efetivo, que é
"conhecimento" ou "ciência". No juízo que a própria filosofia emite sobre ele, esse condicionamento pode
assumir três formas que definem três concepções fundamentais da F., a metafísica, a positivista e a crítica.
Ia Para a primeira delas, a F. é o único saber possível, e as outras ciências, enquanto tais, coincidem com
ela, são partes dela ou preparam para ela. 2-Para a segunda delas, o conhecimento cabe às ciências
particulares, e à F. cabe coordenar e unificar seus resultados. 3 a Para a terceira delas, F. é juízo sobre o
saber, ou seja, avaliação de suas possibilidades e de seus limites, em vista de seu uso pelo homem.
Ia A primeira concepção da F. é a metafísica, que dominou na Antigüidade e na Idade Média, distinguindo
ainda hoje muitas correntes filosóficas. Sua característica principal é a negação de qualquer possibilidade
de investigação autônoma fora da F. Um conhecimento ou é filosófico ou não é conhecimento. Admite-se
muitas vezes que, fora da F., existe um saber imperfeito, provisório e preparatório, mas nega-se que tal
saber possua validade cognos-citiva própria. Assim, Platão, por um lado, chama a geometria e as outras
ciências de F., referindo-se em especial à sua função educativa {Teet., 143 d; Tini., 88 c), e por outro lado
considera tais ciências (aritmética e geometria, astronomia e música) simplesmente propedêuticas para a
F. propriamente dita, ou seja, para
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FILOSOFIA
a dialética, que teria, entre outras, a tarefa de "descobrir a comunhão e o parentesco entre as ciências e de demonstrar
as razões pelas quais estão interligadas" {Rep., VII, 531 d). Aristóteles define a F. como "ciência da verdade" {Met.,
II, 1, 993 b 20), no sentido de que ela compreende todas as ciências teóricas, ou seja, a F. primeira, a matemática e a
física, e exclui somente a atividade prática: mas também esta deve recorrer à F. para esclarecer sua natureza e seus
fundamentos. Tanto Platão quanto Aristóteles admitem como ciência primeira uma disciplina determinada, que para
Platão é a dialética e para Aristóteles a F. primeira ou teologia, mas para eles essa disciplina determinada também é a
mais geral. Com efeito, conforme já se viu, a dialética permitia compreender a ligação e a natureza comum das
ciências, e a F. primeira, como ciência do ser enquanto ser, tem por objetivo específico a essência necessária ou
substância que a cada ciência cabe indagar em seu campo particular {De pari. an., I, 5, 645 a 1). Outras vezes, ao
contrário, a F. resolve-se nas disciplinas particulares, sem privilégio de nenhuma delas. Era o que faziam os
epicuristas, que a dividiam em canônica, física e ética (DIÓG. L, X, 29-30), e os estóicos, que a dividiam em lógica,
física e ética (AÉCio, Plac, I, 2), considerando que essas três partes eram interligadas como os membros de um
animal (DIÓG. L, VII, 40).
Esta concepção, que identifica o saber integral com a F. e se recusa a reconhecer que haja ou possa haver um saber
autêntico fora dela sobreviveu à constituição das ciências particulares como disciplinas autônomas e conservou-se
substancialmente inalterada em certas correntes filosóficas até nossos dias. A definição que Fichte deu da F. como
uma "ciência da ciência em geral" (Überden Begriff der Wissenschaftslehre oder der sogernannten Philosophie,
1794, § 1) não deixa qualquer autonomia às ciências particulares, uma vez que, segundo essa definição, a doutrina da
ciência "deve dar sua forma não só a si mesma, mas também a todas as outras ciências possíveis", e constituir assim o
"sistema acabado e único do espírito humano" {Ibid., § 2). Essa pretensão manteve-se inalterada em todas as
definições que o idealismo romântico deu da filosofia. Não é outro o significado das observações de Schelling, para
quem a tarefa da F. é aclarar a concordância (que finalmente é identidade) entre objetivo e subjetivo, ou seja, entre
natureza
e espírito, cumprindo, assim, a "tendência necessária de todas as ciências naturais" {System des transzendentalen
Idealismus, 1800, Intr., § 1). Hegel afirmaria explicitamente que "as ciências particulares se ocupam dos objetos
finitos e do mundo dos fenômenos" {Geschichte der Philosophie, Intr., A, § 2; trad. it., I, p. 69); e que "uma coisa são
o processo de origem e os trabalhos preparatórios de uma ciência e outra coisa é a própria ciência", na qual eles
desaparecem para serem substituídos pela "necessidade do conceito" {Ene, § 246). Isso significa que só a F., é
ciência, porque só ela demonstra "a necessidade do conceito", utilizando e manipulando a seu modo (como Hegel
realmente fez) o material preparado pelas chamadas ciências empíricas. Portanto, Hegel reservava para a F. o
privilégio de ser a "consideração pensante dos objetos" {Ibid., § 2). O conhecimento preliminar ou preparatório
assenta em representações; tem-se conhecimento propriamente dito quando, com a F., "o espírito pensante através das
representações e trabalhando sobre elas progride para o conhecimento pensante e o conceito" {Ibid., § 1). Está claro
que, expresso desta maneira, o conceito de F. como totalidade do saber é uma manifestação de arrogância filosófica,
inexistente nesse mesmo conceito no período clássico. Naquela época, com efeito, esse conceito agia como
compromisso específico das disciplinas científicas, que graças a ele ingressavam na esfera da investigação
desinteressada, recebendo dele incentivo e sustentação em sua constituição conceituai. Mas na concepção do
idealismo romântico, as ciências específicas eram rebaixadas à função de trabalho braçal destituído de validade
intrínseca. A essa mesma função a ciência é reduzida tanto pelo idealismo quanto pelo espiritualismo. A definição de
F. como "teoria geral do espírito" leva Gentile a considerá-la como a consciência que o Eu absoluto tem de si mesmo:
dessa consciência, os conhecimentos empíricos, baseados na distinção entre objeto e sujeito e entre os próprios
objetos, são uma falsa abstração {Teoria generale dello spirito, 1916, cap. 15, § 2). Outrossim, apesar da formulação
menos berrante, a definição dada por Croce de F. como "metodologia da historiografia" implica a mesma arrogância
filosófica. Para Croce, o conhecimento histórico é o único possível, visto que a história é a única realidade: portanto,
a redução da F. a metodologia desse conhecimento eqüivale a negar que o saber científico seja
FILOSOFIA
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FILOSOFIA
conhecimento; de fato, para CROCE, ele não é um saber, mas um conjunto de expedientes práticos (La storia, 1938, p.
144; Lógica, 1908, I, cap. 2). Por outro lado, o espiritualismo contemporâneo segue, em sua maior parte, esse mesmo
caminho. Para Bergson, a intuição é o órgão da F. por ser a intuição a "visão direta do espírito por parte do espírito"
(La pensée et le mouvant, 3a ed., 1934, p. 51), ou seja, o instrumento para atingir, imediata e infalivelmente, a
"duração real" que é a realidade absoluta. Seu reconhecimento da ciência como conhecimento adequado ao mundo
material ou das "coisas" é puramente fictício: para Bergson, nem a matéria nem as coisas têm realidade como tais,
porque não são senão consciência, e a consciência só pode ser autenticamente conhecida pela própria consciência:
"Ao sondar sua própria profundidade, a consciência não estaria penetrando também no íntimo da matéria, da vida, da
realidade em geral? Isso só poderia ser contestado se a consciência se acrescentasse à matéria como um acidente, mas
nós acreditamos ter demonstrado que essa hipótese é absurda ou falsa, conforme o lado pelo qual é considerada,
contraditória em si mesma e desmentida pelos fatos" (Ibid., pp. 156-57). O conceito de F. como conhecimento
privilegiado (seja qual for o aspecto em que assente o privilégio) nada mais é que uma das tantas expressões do
antigo conceito de F. como saber único e absoluto. As tendências do pensamento moderno que costumam ser
chamadas de "metafísicas" caracterizam-se precisamente por esse conceito de filosofia. Husserl expõe assim o ideal
cartesiano da F. que ele declara adotar: "Lembremos a idéia diretiva das Meditações de Descartes. Ela visa a uma
reforma total da F., para torná-la uma ciência de fundamentos absolutos. Isto implica, para Descartes, uma reforma
paralela de todas as ciências, visto serem estas membros de uma ciência universal que outra não é senão a própria F.
É só na unidade sistemática desta que elas realmente podem tornar-se ciências" (Cart. Med., 1931, § 1). Em sua
última obra, Husserl estabelecia como primeira condição da F. "uma 'epoché' de qualquer pressuposto das ciências
objetivas, de qualquer tomada de posição crítica em torno da verdade ou da falsidade da ciência, uma 'epoché' até da
idéia diretiva da ciência, da idéia do conhecimento objetivo do mundo" (Krisis, § 35).
Não obstante o amplo reconhecimento da validade do método científico, as considerações de Jaspers sobre a natureza
da F. redundam na mesma negação da ciência, uma vez que negam autonomia estrutural e validade às ciências específicas (Phil.,
§ 1, pp. 53 ss.; Existenzphil., 1938, Intr.). Uma desvalorização ainda mais radical das ciências específicas é realizada
por Heidegger, para quem os pressupostos da ciência moderna são o esquecimento do ser, a redução do homem a
sujeito e do mundo a representação (Brief über den "Hu-manismus", em PlatosLebre von der Wahrheit, 1947, p. 88).
2a A segunda concepção de F. como juízo sobre o saber é a que tende a resolvê-la nas ciências específicas,
atribuindo-lhe às vezes a função de unificar as ciências ou de reunir seus resultados numa "visão de mundo". A
origem desta concepção pode ser vista em Bacon, que concebeu a F. como uma ciência que, em primeiro lugar,
dividiria e classificaria as ciências particulares e depois conferiria a tais ciências a posse de seus métodos, do material
de que elas disporiam e das técnicas para a utilização desse material em proveito do homem. Em De dignitate et
augmentis scientiarum (1623), esboçando o plano de uma enciclopédia das ciências em bases experimentais, Bacon
atribuía à "F. primeira", por ele considerada como "ciência universal e mãe das outras ciências", a tarefa de reunir "os
axiomas que não são próprios das ciências particulares, mas comuns a várias ciências" (Deaugm. scient., III, 1). Hobbes, por sua vez, identificava a F. com o conhecimento científico: "A F. é o conhecimento adquirido através do
raciocínio correto, dos efeitos ou fenômenos, a partir de suas causas ou origens; ou, reciprocamente, o conhecimento
adquirido sobre as origens possíveis a partir dos efeitos conhecidos" (Decorp., 1, § 2). Deste conceito de F.
coincidente com o conhecimento científico, e no esforço de esclarecê-la e estendê-la, proveio o sentido do termo em
inglês, para o qual Hegel já chamava a atenção (Ene, § 7 e nota; Geschichte derPhil., Intr., A, 2; trad. it., I, p. 70):
segundo ele, esse termo não se aplicava somente à ciência da natureza, mas ainda a certos instrumentos, como
termômetros, barômetros, etc, além dos princípios gerais da política; este último uso conservou-se nos países anglosaxônicos. Para o próprio Descartes, a F. compreendia "tudo aquilo que o espírito humano pode saber", e assim
coincidia em grande medida com as pesquisas científicas, que, aliás, para Descartes deveriam ser remetidas a certos
princípios fundamentais
FILOSOFIA
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FILOSOFIA
{Princ.phil, Pref.). Todo o Iluminismo participou do conceito de filosofia como conhecimento científico. "Filósofo,
amante da sabedoria, da verdade", dizia Voltaire (Dict. Phil., art. Philosophe). E Wolff mesmo admitia, ao lado das
ciências "racionais" em que dividia a F., ciências empíricas correspondentes, dotadas de um método autônomo, que é
o experimental. P. ex., ao lado da cosmologia geral ou científica, Wolff admite uma cosmologia experimental "que
haure das observações a teoria que é estabelecida ou que deve ser estabelecida na cosmologia científica" (Cosm., § 4),
e reconhece que é possível, embora difícil, que toda a teoria da cosmologia geral derive dessas observações (Ibid, §
5).
Dentro desse significado, o positivismo deu destaque à função da filosofia de reunir e coordenar os resultados das
ciências específicas com vistas a criar um conhecimento unificado e generalíssimo. Esta é a tarefa atribuída à F. por
Comte e Spencer. Comte acha que, ao lado das ciências particulares, deve haver um "estudo das generalidades
científicas", que, para ele, corresponde à "F. primeira" de Bacon. Esse estudo deveria "determinar exatamente o
espírito de cada ciência, descobrir as relações e a concatenação entre as ciências, resumir talvez todos os princípios
dessas ciências no menor número possível de princípios comuns, sempre em conformidade com as máximas
fundamentais do método positivo" (Cours de phil. positive, Ia lição, § 7; 2a lição, § 3). O conceito de F. como ciência
generalizadora e unificadora dos resultados das outras ciências foi e continua sendo corrente na filosofia moderna e
contemporânea. Foi aceito não só por correntes positivistas, mas também por doutrinas espiritualistas; estas últimas
acrescentaram-lhe em certos casos uma determinação ou condição limitadora: a generalização e a unificação devem
corresponder a uma imagem do mundo que satisfaça às necessidades do coração. Essa é precisamente a definição de
F. dada por Wundt, que reconheceu como função sua a "síntese dos conhecimentos específicos em uma intuição do
mundo e da vida que satisfaça as exigências do intelecto e as necessidades do coração" (Syst. der Phil., 4a ed., 1919,
1. p. 1; Einleitung in diePhil., 3a ed., 1904, p. 5). Desse ponto de vista, a F. "é a ciência universal que deve unificar
num sistema coerente os conhecimentos universais fornecidos pelas ciências particulares": conceito muito freqüente
na literatura filosófica das últimas décadas do séc. XTX e das primeiras do séc. XX, porquanto permite que a F. aproveite
amplamente os resultados obtidos pela investigação positiva tanto no campo das ciências naturais quanto no das
ciências do espírito. Por vezes, tende-se a acentuar, nesse sentido, o caráter unitário e totalitário desta ciência
universal; nesse caso, assim como na definição de Wundt, ela é considerada intuição ou visão do mundo. Tal conceito
é uma determinação ulterior do conceito de F. como "ciência universal", unificadora e generalizadora. Mach diz: "O
filósofo tenta orientar-se no conjunto de fatos de um modo universal, o mais completo possível... Somente a fusão das
ciências especiais mostrará a concepção do mundo para a qual tendem todas as especializações" {Erkenntniss und
Irrtum, cap. I, trad. fr., pp. 14-15). Dilthey demonstrou bem esta conexão entre F. e ciências especiais quando
escreveu: "A história da F. transmite ao trabalho filosófico sistemático os três problemas da fundamentação,
justificação e conexão das ciências específicas, juntamente com a tarefa de enfrentar a necessidade inexaurível de
reflexão última sobre o ser, o fundamento, o valor, a finalidade e suas interconexões na intuição do mundo, sejam
quais forem a forma e a direção em que tal tarefa é realizada" {Das Wesen der Philosophie, ao fim; trad. it., em
Critica delia ragione storica, p. 487). Para Simmel, a relação entre fundamentação/unificação das ciências e intuição
do mundo (em que consiste propriamente a metafísica) configura-se como a distinção entre os dois limites que
definem o campo da investigação filosófica. "Um deles compreende as condições, os conceitos fundamentais, os
pressupostos da pesquisa específica, que não podem ser satisfeitos nesta porque, de certo modo, já constituem a sua
base; no outro, essa pesquisa específica é levada a cabo em conexão e em relação com questões e conceitos que não
têm lugar na experiência e no saber objetivo imediato. Aquela é a teoria do conhecimento, esta é a metafísica do
campo específico em questão" (Soziologie, 1910, p. 25; cf. P. Rossi, Lo storicismo tedesco contemporâneo, Torino,
1956, pp. 242 ss.). Ora, a primeira destas tarefas é aquela que a filosofia crítica havia atribuído à F. (v. adiante); a
segunda delas é a que havia sido atribuída à F. pela corrente positivista que remonta a Bacon. A última manifestação
deste conceito de F. no pensamento contemporâneo é a noção de "ciência unificada", pró-
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FILOSOFIA
pria do neo-empirismo, à qual é dedicada a Enciclopédia internacional da ciência uni-flcadaiàe 1938 em diante).
Contudo, nesta obra o próprio conceito de unificação é dúbio, sendo defendido de maneiras diversas pelos diferentes
adeptos. Neurath entende-a como a combinação dos resultados das várias ciências e a axiomatização deles num
sistema único; Dewey, como exigência de estender a posição e a função da ciência à vida humana; Russell, como
unidade de método; Carnap, como unidade formal ou lingüística; Morris, como doutrina geral dos signos (Intern.
Encycl. qf Unified Science, I, 1, pp. 20, 33, 6l, 70). Apesar de tudo, o conceito de filosofia como unificação e
generalização do saber científico continua sendo proposto no mundo contemporâneo; é defendido, p. ex., por
Whitehead (Adventures ofldeas, 1933, IX, § 2).
3a A terceira concepção de F. como juízo do saber pode ser chamada de crítica e consiste em reduzir a F., sob esse
ponto de vista, a doutrina do conhecimento ou a metodologia. Segundo esta concepção, a filosofia não aumenta a
quantidade do saber, portanto, não pode ser chamada propriamente de "conhecimento". Sua tarefa é verificar a
validade do saber, determinando seus limites e condições, suas possibilidades efetivas. O iniciador desse conceito de
F. foi Locke. Todo o Ensaio nasceu — como ele adverte na "Epístola ao Leitor", que o precede — da necessidade de
"examinar a capacidade da mente humana e ver que objetos estão ao seu alcance e quais os que estão acima de sua
compreensão". Mais exatamente ainda, a F. tende a descobrir quais são as possibilidades da inteligência, qual a
magnitude dessas possibilidades, a que tipo de coisas elas se ajustam e onde nos falta seu socorro (Ensaio, Intr., § 4).
Os limites das capacidades humanas são resumidos claramente por Locke no terceiro capítulo do IV livro do Ensaio.
Mas é no último capítulo da obra, dedicado à divisão das ciências, que esses limites ficam mais claros. Distinguem-se
três ciências principais: a F. natural ou física, cuja tarefa é "o conhecimento das coisas como elas são em seu ser
próprio, sua constituição, suas propriedades e operações"; a F. prática ou ética, que é "a arte de bem dirigir nossos
pode-res e nossos atos para a consecução das coisas boas e úteis"; e a doutrina dos sinais, semiótica ou lógica, cuja
tarefa é "considerar a natureza dos signos utilizados pelo espírito para o entendimento das coisas ou para transmitir a
outrem seu conhecimento" (Ibid., IV, 21, §§ 2-4). Nesta divisão das ciências falta a F.: isto quer dizer que, para Locke, a
F. não é uma ciência no mesmo sentido da física, da ética ou da lógica, ou seja, conhecimento de objetos, mas é juízo
sobre a ciência, é crítica. Esse ponto de vista constitui um dos filões principais da filosofia moderna e contemporânea.
Hume identificava a tarefa da F. acadêmica ou cética, por ele professada, com a "limitação de nossas investigações às
matérias que mais se adaptam à limitada capacidade da inteligência humana" (Inq. Cone. Underst., XII, 3). Em Kant,
a limitação do conhecimento é considerada fundamento da validade do próprio conhecimento, segundo conceito já
utilizado por Locke. Com efeito, para Kant, tanto as condições a priori do conhecimento (intuições puras, categorias)
quanto suas condições a posteriori (dado empírico ou intuição) determinam e limitam as possibilidades cognoscitivas
no sentido de que não só excluem certos campos de indagação, mas também fundamentam a validade ou a efetividade
das próprias possibilidades. Kant expressava o campo da F. com as seguintes perguntas: Ia o que posso saber?; 2a que
devo fazer?; 3a o que posso esperar?; 4a o que é o homem? E acrescenta: "A metafísica responde à primeira questão; a
moral, à segunda; a religião, à terceira; a antropologia, à quarta. Mas, no fundo, poder-se-ia reduzir tudo à
antropologia, uma vez que as três primeiras questões remetem à última. Conseqüentemente, o filósofo deve poder
determinar: Ia a fonte do saber humano; 2S o campo de aplicação possível e útil do saber; 3a os limites da razão"
(Logik, Intr., III). A objeção de Hegel a esse ponto de vista — "querer conhecer antes de conhecer é tão absurdo
quanto o prudente propósito de certo aluno, que queria aprender a nadar antes de entrar na água" (Ene, § 10) — é
pura boutade, uma vez que a F. como crítica supõe que já se saiba nadar, que já exista um saber constituído (o da
ciência), a partir do qual se podem investigar as possibilidades de conhecer e determinar seus limites. Na doutrina
kantiana, o neocriticismo contemporâneo modificou o tópico referente à religião e, mantendo inalterado o conceito de
F. como crítica do saber, reconheceu três disciplinas filosóficas, quais sejam, lógica, ética e estética; entendeu, por
lógica, na maioria das vezes, a teoria do conhecimento. Essa doutrina foi defendida pela chamada escola de Marburgo
(Cohen, Natorp,
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FILOSOFIA
Cassirer) e também pelo criticismo francês (Renouvier, Brunschvicg). A posição de destaque de que a gnosiologia ou
teoria do conhecimento tem gozado na filosofia contemporânea (e não só entre as correntes neocriticistas) é
conseqüência do conceito de filosofia como crítica do conhecimento. A gnosiologia ou teoria do conhecimento (v.),
todavia, é caracterizada por pressupostos e problemas particulares; portanto, o conceito de F. como crítica do saber
não implica a identificação da F. com a doutrina do conhecimento ou gnosiologia. De fato, mesmo depois da crise e
do abandono da gnosiologia oitocentista, esse conceito continua na forma da análise dos procedimentos efetivos do
conhecimento científico e de determinação de seus limites e de sua validade. Esta análise é tema característico da
metodologia (v.). Portanto, a metodologia pode ser considerada a última encarnação da F. como crítica do saber.
Como parte da metodologia, ou como restrição de seu objetivo, pode-se entender a definição de F. como "análise da
linguagem", proposta pela primeira vez por Wittgenstein, em Tractatus logico-philosophicus (1922). Atribuindo "a
totalidade das proposições verdadeiras" à ciência natural, Wittgenstein nega que a F. seja uma ciência natural: esta
palavra, diz ele, "deve significar alguma coisa que está acima ou abaixo das ciências da natureza, não ao lado delas"
{Tractatus, § 4, 111). Torna-se então tarefa da F. o aclaramento lógico da linguagem. "A F. não é uma doutrina, mas
uma atividade. Uma obra filosófica consiste essencialmente em elucidações. Os frutos da F. não são proposições
filosóficas, mas o aclaramento das proposições. A F. deve aclarar e delimitar com precisão as idéias que, de outro
modo, seriam turvas e confusas" Ubid., 4, 112).
II. A filosofia e o uso do saber— O segundo ponto de vista sob o qual se podem buscar constantes nos significados
historicamente atribuídos à F., para em seguida realizar divisões ou articulações de tais significados, é o que ficou
expresso na 2- parte da definição usada como ponto de partida deste artigo, qual seja, a F. como uso do saber pelo ser
humano. Ao longo da história têm sido dadas duas interpretações fundamentais desse conceito de F. d) a. F. é
contemplativa e constitui uma forma de vida que é fim em si mesma; b) a F. é ativa e constitui o instrumento de
modificação ou de correção do mundo natural ou humano. Segundo a primeira interpretação, a F. exaure-se no indivíduo que filosofa; para a segunda interpretação, a F. transcende o indivíduo e concerne às relações com a natureza e
com os homens, portanto à vida humana social. Para usar um termo de clara significação histórica, pode-se chamar de
"iluminista" esta segunda interpretação da filosofia.
d) O conceito de F. como contemplação é típico, em primeiro lugar, das F. de tipo oriental, que estabelecem como
objetivo da F. a salvação do homem. Com efeito, a salvação é a libertação de qualquer relação com o mundo, portanto
a realização de um estado em que qualquer atividade é impossível ou sem sentido. No Ocidente, o conceito de F.
como contemplação não foi a primeira forma assumida pelo trabalho filosófico (que foi, ao contrário, o da
"sabedoria", da F. ativa e militante), mas foi a primeira caracterização explícita desse trabalho. Seu fundamento é a
natureza "desinteres-sa'da" da investigação filosófica. Quando em Heródoto (I, 30) o rei Creso diz a Sólon: "Ouvi
falar das viagens que, filosofando, tens empreendido a fim de ver muitos países", obviamente está aludindo ao caráter
desinteressado dessas viagens, que não foram realizadas com objetivos lucrativos ou políticos, mas visando apenas ao
conhecimento. O próprio Platão contrapõe o espírito científico dos gregos ao amor e ao lucro, típico dos egípcios e
dos fenícios (Rep., IV, 435 e). E que a busca do saber não pode ser subordinada ou submetida a finalidades alheias a
ela é fato que resulta da própria noção dessa busca, a maneira como ela se foi configurando na Grécia antiga (cf. I, B).
Mas já na narração atribuída a Pitágoras, que provém de um texto de Heráclides Pôntico (DióG. L., Proemium, 12)
com que se pretende justificar o nome de F., há algo mais que a simples exigência de desinteresse na investigação.
Segundo essa tradição, transmitida por Cícero em Tusculanae (V, 9), Pitágoras comparava a vida com as grandes
festas de Olímpia, aonde alguns se dirigem a negócio, outros para participar das competições, outros para divertir-se
e, finalmente, alguns somente para vero que acontece: estes últimos são os filósofos. Aqui se evidencia a distinção
entre o filósofo, interessado apenas em ver, e o comum dos homens, dedicado a suas ocupações. Portanto, a
superioridade da contemplação sobre a ação está implícita nessa narração, que, provavelmente, tinha o objetivo de
enobrecer, pela alusão a Pitágoras, o conceito de F.
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FILOSOFIA
que se ia formando na escola de Aristóteles. O caráter contemplativo da F. (que nada tem a ver com o caráter
desinteressado da investigação em geral), como uma das possíveis respostas ao problema do uso do saber pelo ser
humano, foi afirmado e justificado pela primeira vez por Aristóteles. Esse caráter funda-se na natureza necessária do
objeto da F., aquilo que "não pode ser senão o que é" (.Et. nic, VI, 3, 1139 b 19). Sob este ponto de vista, a F. é saber
e não sabedoria, já que a sabedoria consiste em bem deliberar, porém nada há que deliberar a respeito de coisas que
não podem ser de outra maneira (Jbid., VI, 5, 1140 a 30). Com base nisso, Aristóteles estabelece uma oposição entre
sabedoria e sapiência (v.). Homens como Anaxágoras e Tales são sapientes, mas não sábios: não indagam acerca do
bem humano, não conhecem o que é útil a eles mesmos, mas apenas coisas excepcionais, maravilhosas, raras e
divinas. "Ninguém", diz Aristóteles, "delibera sobre aquilo que não pode ser de outra maneira ou sobre coisas que não
têm um fim ou cujo fim não é um bem realizável" (Ibid., VI, 7, 1041 b 10). Mas, desse ponto de vista, qual é o uso
possível do saber? Somente um: a realização de uma vida contemplativa, dedicada ao conhecimento do necessário.
Portanto, para Aristóteles, a atividade contemplativa é a mais alta e bea-tífica das atividades: faz do homem algo
superior ao próprio homem porque se conforma ao que de divino existe nele {Ibid., X, 7, 1177 b 26). Assim, a
doutrina de Aristóteles fixou os seguintes pontos no que se refere ao uso do saber pelo ser humano: le a F., tendo
como objeto o necessário, não propicia ao homem nada a fazer; portanto, é contemplação; 2 Q a contemplação é uma
forma de vida individual privilegiada, pois é a bem-aventurança. As duas teses são típicas desta concepção da F., que
aparece com freqüência na história do pensamento ocidental e domina em toda a F. grega pós-aristotélica, que cultiva
o ideal do "sapien-te", ou seja, daquele em quem se realiza a vida contemplativa. Epicuristas, estóicos, cépticos e
neoplatônicos concordam em julgar que só o sapiente pode ser feliz, porque só ele, como contemplador puro, é autosuficiente. A finalidade que esses filósofos atribuem à F. é individual e pessoal: a realização de uma forma de vida
que fecha o sapiente em si mesmo e na sua contemplação solitária. Também desse ponto de vista obviamente a F. é
um esforço de transformação ou de retificação da vida humana; portanto, não se deve tomar ao pé da letra a afirmação de Aristóteles de que ela não dá o que fazer. Essa
afirmação significa apenas que ela não modifica a estrutura do mundo, do conhecimento concernente ao mundo e das
formas de vida social, mas pode modificar a vida do indivíduo, tornando-o sapiente e bem-aventurado.
A partir dessas características, é fácil conhecer a atitude contemplativa em filosofia. Quando Spinoza diz: "O homem
forte considera principalmente que todas as coisas procedem da necessidade da natureza divina e que, portanto, tudo
o que ele julga molesto e ruim e tudo aquilo que aparenta ser ímpio, horrível, injusto e torpe nasce do fato de ele
conceber as coisas de maneira obscura, parcial e confusa" (Et., XIV, 73, scol.), está expressando o conceito
contemplativo da F. em sua forma clássica. E quando Hegel afirma que a F., assim como a coruja de Minerva que
começa a voar ao cair da noite, sempre chega quando tudo já está feito, portanto demasiado tarde para dizer como
deve ser o mundo, está expressando o mesmo conceito (Fil. do dir., Pref.). Com efeito, para Hegel, assim como para
Aristóteles e Spinoza, o objetivo da F. é o necessário; sua tarefa é precisamente mostrar a necessidade do que existe,
ou seja, a racionalidade do real (Ene, § 12). Sob esse ponto de vista, a F. é a justificação racional da realidade,
entendendo-se por realidade não só a da natureza, mas também a das instituições histórico-sociais, a do mundo
humano. Sob esse prisma, não era muito diferente o conceito que Schopenhauer tinha de F.: "Espelhar em conceitos,
de modo abstrato, universal e límpido toda a essência do mundo e assim, qual imagem reflexa, depositá-la nos
conceitos da razão, permanentes e sempre assentados: isso é F., não outra coisa" (Die Welt, I, §68).
Na F. contemporânea, o conceito de F. como contemplação permanece na fenomenologia e no espiritualismo. A
fenomenologia é o esforço de realizar, por meio da "epoché", o ponto de vista do "espectador desinteressado", do
sujeito que não esteja submetido às mesmas condições limitativas que toma em consideração. Husserl diz: "O eu da
meditação fenomenológica pode tornar-se o espectador imparcial de si mesmo, não só nos casos particulares, mas em
geral; esse 'si mesmo' compreende qualquer objetividade que exista para ele, tal qual existe para ele" (Cart. Med., §
15). E na última obra Husserl
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FILOSOFIA
vê a filosofia como "movimento histórico da revelação da razão universal, inata como tal na humanidade" (Krisis, §
6), atribuindo-lhe a tarefa de levar a razão "à autocompreensão, a uma razão que se compreenda concretamen-te a si
mesma, que compreenda que é um mundo, um mundo que é, em sua própria verdade, universal" ilbid., § 73). Por
outro lado Bergson, ao distinguir a F. como intuição ou consciência da duração temporal (do devir da consciência) da
ciência como conhecimento dos fatos, vê a ciência como "auxiliar da ação" e a F. como atividade contemplativa. "A
norma da ciência", diz ele, "é a que foi proposta por Bacon: obedecer para comandar. O filósofo não obedece nem
comanda: procura simpatizar" {La pensée et le mouvant, 3a ed., 1934, p. 158). A idolatria do "sapiente", como
condição humana privilegiada ou perfeita, e da F., como forma final e conclusiva do ser, são dois traços
característicos para se conhecer a concepção da F. como contemplação. A esta concepção pertencem as formas do
cepticismo antigo e moderno. Quando Sexto Empírico aponta como finalidade da F. céptica a imperturbabilidade que
ela permite realizar (Pirr. hyp., I, 25), ou quando Hume reduz o motivo de seu filosofar — que ele julga incapaz de
agir sobre as crenças mais arraigadas no homem — ao prazer que dele extrai ÇTreatise, I, 4, 7; Inq. Cone. Underst.,
XII, 3), ambos estão atribuindo à F. uma função contemplativa que se exaure no âmbito da vida individual. E nesse
mesmo âmbito exaure-se a função da F. como "terapia" da F., isto é, como libertação das dúvidas filosóficas, de que
falam Wittgenstein (Phüosophical Investigations, § 133) e alguns filósofos ingleses, seus seguidores (cf. Revolution
inPhil., 1956, pp. 106, 112 ss.). De fato, não parece que esses filósofos atribuam à terapia filosófica outra função a
não ser a de libertar o indivíduo de suas dúvidas filosóficas permitindo que ele se "sinta melhor", do mesmo modo
que Hume se sentia melhor com suas dúvidas cépticas.
b) O conceito de F. como atividade diretiva ou transformadora já está presente na lenda dos Sete Sábios, que foi
citada pela primeira vez por Platão iProt., 343 a). Os Sete Sábios foram moralistas e políticos, e seus ditados referemse à conduta de vida e às relações com os homens (v. SÁBIOS). Mas o primeiro grande exemplo de F. explicitamente
concebida com a finalidade de transformar o mundo humano é a de Platão, destinada a modificar a forma da vida
social e a
baseá-la na justiça. Para ela, a educação do filósofo não culmina na visão do bem, mas no "retorno à caverna":
porquanto o filósofo deve colocar à disposição da comunidade os resultados de sua especulação e utilizá-los para a
direção e a orientação da mesma. "Cada um de vós", diz Platão, "deve descer para a habitação comum e acostumar-se
a contemplar os objetos nas trevas: porque, acostumando-se a elas, verá bem melhor que aqueles que sempre
estiveram lá e reconhecerá os caracteres e o objeto de cada imagem, porque viu os verdadeiros exemplares da beleza,
da justiça e do bem. Assim, nós e vós constituiremos e governaremos a cidade despertos, e não sonhando, como
acontece agora na maior parte das cidades por culpa daqueles que guerreiam por causa de sombras e disputam o
poder como se fosse um bem" (Rep., VII, 520 c). A F. platônica é totalmente dominada por esse compromisso
educativo e político: para Platão, a tarefa da F. não é dar a certo número de homens a bem-aventurança da
contemplação, mas dar a todos a possibilidade de viver segundo a justiça (Jbid., 519 e). Esta concepção ativa da F.
permaneceu inoperante por muito tempo. Foi só no Renascimento que os humanistas a retomaram, entendendo F.
como sabedoria. Em De nobilitate legum et medicinae, Coluccio Salutati (1331-1406) dizia: "Muito me admira
afirmares que a sabedoria consiste na contemplação, cuja serva seria a prudência, havendo entre elas a mesma relação
que há entre o administrador e o senhor, e dizeres que a sapiência é a maior das virtudes, pertencente à melhor parte
da alma, que é do intelecto, e que a felicidade consiste em agir conforme a sapiência. E acrescentas que, sendo a
metafísica a única ciência livre, o filósofo quer que a especulação preceda em tudo a ação... Mas a verdadeira
sapiência não consiste, como crês, na especulação pura. Se tirares a prudência, não acharás nem sapiente nem
sapiência... Chamarias porventura de sapiente a quem houvesse conhecido coisas celestes e divinas, sem que
houvesse provido a si mesmo, sem que houvesse sido útil aos amigos, à família, aos parentes e à pátria?" No mesmo
espírito, Leonardo Bruni, em Isagogicon moralis disciplinae (1424), afirmava a superioridade da F. moral sobre a F.
teórica. Posteriormente, a consolidação desta concepção ativa da F. caracteriza o início da Idade Moderna. Os
humanistas acreditavam que só a F. moral era ativa; para Bacon também é ativa a F. que tem por objeto a natureza,
porque se
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destina a dominar a natureza. E Bacon não hesitou em chamar de "pastoral" a F. de Telésio, que muito apreciava e em
parte seguia, por parecer-lhe que ela "contemplava o mundo placi-damente e quase por ócio" (Works, III, p. 118).
Hobbes insistia na mesma função da F. (De corp., I, § 6). Descartes, por sua vez, julgava-a apta a obter sabedoria e
ciência de tudo aquilo que é útil e vantajoso para o homem (Princ. phil, Pref.) A mesma finalidade diretiva e corretiva
foi atribuída à F. por Locke e pelos iluministas. Com Locke, a F. torna-se crítica do conhecimento e esforço de
libertação do homem de ignorâncias e preconceitos. A mesma concepção se mantém no Iluminismo do séc. XVIII,
que vê a F. como esforço da razão para assenhorear-se do mundo humano, libertá-lo dos erros e fazê-lo progredir.
D'Alembert descrevia assim a ação que a F. exercia em seu tempo: "Dos princípios das ciências profanas aos
fundamentos da revelação, da metafísica às questões de gosto, da música à moral, das disputas escolásticas dos
teólogos, aos objetos de comércio do direito dos príncipes ao direito dos povos, da lei natural às leis arbitrárias das
nações, numa palavra, das questões que mais nos preocupam às que menos nos interessam, tudo foi discutido e
analisado, ou pelo menos cogitado. Nova luz sobre alguns objetos, nova obscuridade sobre outros foram os frutos ou
o resultado dessa efervescência geral dos espíritos, assim como o efeito do fluxo e do refluxo do oceano é levar para a
margem alguns objetos e dela afastar outros" (CEuvres, ed. Condorcet, p. 218). O conceito iluminista de F. era
compartilhado por Kant, para quem a F., determinando as possibilidades efetivas do homem em todos os campos,
deve iluminar e dirigir o gênero humano em seu obrigatório progresso rumo à felicidade universal (Recensão de
"Idéias sobre a F. da história"'de Herder, 1784-85; cf. Crít. R. Pura, Doutrina transcendental do método, capítulo III
ao final).
Ao insistir no caráter necessário, porque racional, do ser, o Romantismo constituiu, em seu conjunto, um retorno à
concepção contemplativa da F. O próprio positivismo, que pretendia explicitamente remeter-se à doutrina de Bacon,
do saber como possibilidade de domínio da natureza, nem sempre se mantém fiel ao reconhecimento do caráter ativo
da F. Se para o positivismo (v.) de cunho social (St.-Simon, Proudhon, Comte, Stuart Mill) a F. é principalmente um
meio de transformação da sociedade
humana, para o positivismo evolucionista a F. tem mais caráter contemplativo do que ativo. A defesa do mistério, que
Spencer coloca entre as tarefas da F., ou seja, o reconhecimento da insolubilidade dos chamados problemas últimos,
põe a F. no mesmo plano contemplativo da religião. A discussão sobre a solubilidade ou insolubilidade dos chamados
"enigmas do mundo" incide inteiramente no plano da F. contemplativa. O positivismo de Ardigò, o mo-nismo
materialista (Haeckel) e o evolucionismo espiritualista (Wundt, Morgan, etc.) são igualmente contemplativos. Na
realidade, o clima romântico está presente tanto no positivismo quanto no idealismo e orienta tanto àquele como a
este para o conceito de F. como contemplação de uma realidade necessária. Contra tal conceito insurge-se o "novo
materialis-mo" de Marx, que, ao mesmo tempo, opõe-se ao materialismo teórico de Feuerbach. "Os filósofos", dizia
ele, "até agora só fizeram interpre-taro mundo de diversas maneiras: trata-se agora de transformá-lo" (Tese sobre
Feuerbach, 11). Mas por mais que Marx insista no esforço de transformação que deve caracterizar a F. como tal, o
próprio fundamento da F. como contemplação permanece firme em sua doutrina. Esse fundamento é, com efeito, a
necessidade do real; para Marx, a transformação da sociedade, ou seja, a passagem da sociedade capitalista para a
sociedade sem classes, acontecerá "com a mesma fatalidade que caracteriza os fenômenos da natureza" (Capit., I, 24,
§ 7). Desse ponto de vista, a tarefa da F. apresenta-se como a de uma profética Cassandra, não de promover e orientar
a transformação. Nesse aspecto, é o neocriticismo que por vezes escapa ao clima romântico. Em Uchronie, Renouvier propôs-se eliminar "a ilusão da necessidade preliminar, segundo a qual o fato consumado seria o único, entre
todos os outros imagináveis, que poderia realmente acontecer" (Uchronie, 2- ed., 1901, p. 411). Segundo ele, a "F.
analítica da história" tem a tarefa de determinar as concatenações gerais dos fatos históricos para dirigir o
desenvolvimento da história (Intr. à Ia phil. analytique de 1'histoire, 1864, pp. 551-52). Por outro lado, a
determinação de "visão do mundo", imposta à F. na segunda metade do séc. XIX por pensadores de procedência
neocriticista ou positivista, tem claro significado contemplativo. Foi contra a interpretação contemplativa da F. que o
pragmatismo, desde a origem, assestou suas armas, como se
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pode ver no ensaio Como tornar claras nossas idéias (1878) de C. S. Peirce. Nesse ensaio, Peirce afirmava que toda a
função do pensamento é produzir hábitos de ação (ou crenças) e que, portanto, o significado de um conceito consiste
exclusivamente nas possibilidades de ação que ele define. Mas essas afirmações de Peirce são importantes também de
outro ponto de vista. Peirce negava explicitamente o pressuposto da F. como contemplação, vale dizer, o caráter
necessário do real. Mostrava que a regularidade e a ordem dos acontecimentos, bem como suas inter-relações
condicionais, nada têm a ver com a necessidade, o que implicaria a possibilidade de previsão infalível (Chance, Love
and Logic, II, cap. 2). A definição dada por Dewey de F. como "crítica dos valores" (Experience and Nature, p. 407)
expressa, precisamente sobre pressupostos estabelecidos por Peirce, a função diretiva da filosofia. Segundo Dewey, a
tarefa da F. é a antiga, que está inscrita no próprio significado etimológico da palavra: procura da sabedoria, em que
sabedoria difere de conhecimento por ser "a aplicação daquilo que é conhecido pela conduta inteligente das ações da
vida humana" iProblems of Man, 1946, p. 7). Não tem significado diferente a definição dada por Morris: "Uma F. é
uma organização sistemática que compreende as crenças fundamentais: crenças sobre a natureza do mundo e do
homem, sobre o que é bem, sobre os métodos a seguir no conhecimento, sobre o modo como a vida deve ser vivida"
(Signs, Language and Behavior, 1946, VIII, § 6; trad. it., p. 314). Para Morris, assim como para todo o pragmatismo,
crença não passa de norma de comportamento: a F., como organização das crenças fundamentais, constitui por isso
aquilo que Sartre chamou de "projeto fundamental de vida". Na própria obra de Sartre pode-se perceber a passagem
da concepção contemplativa de F., expressa em Vêtre et le néant (1943), para a concepção ativa ou iluminista,
expressa em Critique de Ia raison dialectique (1960). Na primeira obra, Sartre projetava uma investigação chamada
"psicanálise existencial", cuja finalidade era "evidenciar, de maneira rigorosamente objetiva, a escolha subjetiva
graças à qual cada pessoa se faz pessoa, ou seja, se faz anunciar a si mesma aquilo que é" (Vêtre et le néant, p. 662).
O resultado de uma investigação desse gênero deveria ter sido, segundo Sartre, a classificação e a comparação dos
vários tipos possíveis de conduta, portanto o esclarecimento definitivo da realidade humana como tal (Jbid., p. 663). É evidente o caráter contemplativo de
semelhante disciplina. Mas em sua segunda obra Sartre entende por F. a "totalizaçâo do saber, método, idéia
reguladora, arma ofensiva e comunidade de linguagem", e ao mesmo tempo como instrumento que age sobre as
sociedades decadentes para transformá-las, podendo constituir a cultura e até mesmo a natureza de uma classe inteira
(Critique de Ia raison dialectique, p. 17). No primeiro caso, a F. não dava o que fazer ao homem, porque o homem
nada podia fazer: Sartre definia o homem como "paixão inútil" como paixão impossível de ser Deus (L 'être et le
néant, p. 708). No segundo caso, a F. insere-se no mundo como força humana finita mas eficaz, e tende a transformálo. Subtraída ao destino de fracasso e de sucesso, a noção de projeto presta-se a expressar o caráter diretivo e operante
atribuído à F. pelas correntes neo-iluministas contemporâneas. Com efeito, um projeto parte dos conhecimentos
disponíveis e determina seu uso possível, a fim de garantir a existência e a coexistência dos homens. Uma F. que
projete neste sentido (aliás, já esclarecido por Platão) o uso humano do saber obviamente é a determinação de
técnicas de vida que podem ser postas à prova, corrigidas ou rejeitadas .
III. A filosofia e seus procedimentos — O terceiro ponto de vista para identificar constantes de significado que
permitam reconhecer articulações fundamentais nas interpretações do conceito de F., ao longo da história, é o que se
refere ao procedimento ou método atribuído à F. Desse ponto ele vista, as F. podem ser divididas em a) F. sintéticas
ou criativas, que produzem conceptualmente seu objeto, sem impor limites ou condições a esse trabalho de
construção; e b) F. analíticas, que reconhecem a existência de dados, que elas descrevem ou analisam. A
característica das F. analíticas é a limitação a que elas se julgam submetidas por parte do dado, seja qual for a
maneira como o concebem. A característica das F. sintéticas, ao contrário, consiste em não reconhecer essa limitação
e em pretender que seu método seja inteiramente construtivo, capaz de exaurir todo o objeto da filosofia.
d) O procedimento sintético não pode lançar mão da verificação de situações, fatos ou elementos que sejam
independentes dele; sua característica, portanto, é valer como verifica-
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ção de si mesmo. Sempre que uma filosofia pressupõe que a validade de seus resultados depende exclusivamente de
sua própria organização interna, podendo, pois, ser reconhecida e estabelecida de uma vez por todas, sem necessidade
de que esses resultados sejam postos à prova e confirmados por técnicas ou procedimentos independentes dela, seu
método pode ser considerado sintético. Com efeito, neste caso, seu modo de proceder eqüivale à criação ou
composição ex novo de seu objeto, de forma que não exige confirmações nem teme desmentidos. A F. de Hegel
constitui a encarnação mais pura desse tipo. Quando Hegel diz: "A F. não tem a vantagem de que gozam as outras
ciências, de poder pressupor que seus objetos são dados imediatamente pela representação e (de poder pressupor)
como já admitido seu método de conhecer no ponto de partida e no procedimento seguinte" {Ene, § 1), está
afirmando precisamente a exigência de que a F. construa seu objeto e seu método por si mesma e inteiramente. Mas,
produzindo por si mesma tanto o objeto quanto o método, ela não tem de prestar contas de seus resultados, quaisquer
que sejam, a outras ciências ou a outros pontos de vista eventuais. Hegel insiste no caráter absolutamente
independente ou incon-dicionado de seu método. "O método", diz ele, por exemplo, "assim como o conceito na
ciência, desenvolve-se por si mesmo e é apenas uma progressão imanente e uma produção de suas determinações"
{Fil. do dir., § 31). E ainda: "A mais elevada dialética do conceito é produzir e entender a determinação não só como
limite ou posição, mas haurindo dela conteúdo e resultado positivos, pois unicamente com isso ela é desenvolvimento
e progresso imanente. Essa dialética não é um fazer externo do pensamento objetivo, mas a própria alma do conteúdo,
que faz brotar seus ramos e seus frutos or-ganicamente" {Ibid., § 31). A diferença entre esse método produtor, ou
melhor, criador de seu objeto e o método analítico, que Hegel identifica nas ciências depois de Descartes, é expressa
por ele da seguinte maneira: "O método iniciado por Descartes rejeita todos os métodos interessados em conhecer
aquilo que, por natureza, é infinito; entrega-se, portanto, ao desenfreado arbítrio das imaginações e asserções, à
presunção de moralidade, ao orgulho de sentimentos ou ao excesso de opiniões e raciocínios, veementemente
assestados contra a F. e os filosofemas" {Ene, § 77).
Essa concepção atribui ao procedimento filosófico a produção de seu objeto, tomando como objeto o infinito, o
Absoluto ou Deus, que resolve ou anula em si todos os fatos ou todas as coisas finitas. Antes de encontrar em Hegel
sua forma típica, essa concepção havia sido exposta por Fichte como exigência de que a F., como doutrina da ciência,
confira forma sistemática não só a si mesma, mas também a todas as outras ciências possíveis e garanta para todas a
validade dessa forma (Über den Begriffder Wissenschaftslebre [Sobre o conceito da teoria da ciência], 1794, § 1).
Com efeito, Fichte considerava que, juntamente com a forma, a doutrina da ciência deveria produzir também o
conteúdo e que o conteúdo da doutrina da ciência deveria encerrar qualquer possível conteúdo, que seria portanto "o
conteúdo absoluto" {Ibid., § 1). Retrocedendo um pouco mais, vemos que a concepção do método sintético pode ser
encontrada em Spinoza, para quem o procedimento filosófico (que denomina conhecimento intuitivo, terceiro gênero
de conhecimento ou amor intelectual a Deus) é o que tem por objeto a necessidade com que todas as coisas resultam
da natureza divina. O amor intelectual a Deus é o mesmo amor com que Deus se ama a si mesmo {Et., V, 36) e isso
significa que o conhecimento da necessidade com que as coisas provêm de Deus é o conhecimento mesmo que Deus
tem de si. Desse ponto de vista, o procedimento matemático da Ética assume importância fundamental na filosofia de
Spinoza: não é um artifício expositivo, mas a adequação do método da F. ao procedimento necessário com que as
coisas provêm de Deus. Assim considerado, o método sintético revela-se em sua característica mais evidente: a
pretensão de valer como uma vista d'olhos divina sobre o mundo, como o conhecimento que Deus tem de si e dos
seus efeitos criados. E fácil perceber, então, por que essa pretensão foi tão freqüente em F. Aristóteles dizia:
"Somente esta ciência é divina, e em sentido duplo: porque própria de Deus e porque concernente ao divino. Só a ela
couberam esses dois privilégios; Deus aparece como a causa e o princípio de todas as coisas e só uma ciência
semelhante, ou sobretudo ela, pode ser própria de Deus" {Met., I, 2, 983 a 5). Aristóteles chamava de teologia a F.
primeira. Verdade é que a F. primeira é tal por sua universalidade e que ela é universal somente na medida em que é
ciência do ser enquanto ser {Ibid., VI, I,
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FILOSOFIA
1026 a 30). Mas a ciência do ser enquanto ser é teologia porque é a ciência da causa ou razão de ser a esta
causa ou razão de ser é Deus. Por isso, a F. aristotélica possui caráter declaradamente sintético e, aliás,
pode ser considerada o primeiro e clássico exemplo do procedimento sintético. Obviamente, não é
sintética só porque tem Deus como objeto de sua investigação, mas também porque se considera
coincidente com o conhecimento que Deus tem de si. E por essa característica pode-se reconhecer
facilmente uma F. sintética.
b) O procedimento analítico da F. reconhece-se negativamente pela ausência de pretensão de valer como
conhecimento divino do mundo e, positivamente, pelo reconhecimento de limites para suas possibilidades
e de verificação de seus resultados. O procedimento analítico não é, por conseguinte, a construção ex
novo do seu objeto, mas a resolução dele nos elementos que permitem sua compreensão, ou seja, em suas
condições. Nestes termos, a determinação do procedimento filosófico por Kant foi feita primeiramente
num texto de 1764, Sobre a distinção dos princípios da teologia natural e da moral, e depois na segunda
parte principal da Crítica da Razão Pura. No primeiro texto, Kant contrapunha o método analítico da F.
ao método sintético da matemática: "Aos conceitos gerais pode-se chegar por dois caminhos: pela ligação
arbitraria dos conceitos ou isolando os conhecimentos que foram esclarecidos por subdivisão. A
matemática sempre chega às definições seguindo o primeiro caminho... As definições filosóficas, ao
contrário, são completamente diferentes. Nelas, o conceito das coisas já foi dado, mas de maneira confusa
e não suficientemente determinada. É preciso subdividi-lo, comparar nos vários casos as notas que foram
separadas com o conceito dado, para depois determinar e levar a termo a idéia abstrata" iUntersuchung
über die Deu-tlichkeit der Grundsãtze der natürlichen Theo-logie und der Moral, I, I, § 1). Na Crítica da
Razão Pura, Kant distinguiu o conhecimento filosófico, como conhecimento por conceitos, do
conhecimento matemático, que consiste na construção de conceitos. Kant diz que a matemática pode
construir conceitos porque dispõe de uma intuição pura que é a do espaço-tem-po. A F., porém, não
dispõe de uma intuição pura, mas somente de uma intuição sensível: os objetos da F. devem, pois, ser
dados e por isso só podem ser analisados, e não
construídos, pelo procedimento filosófico {Crít. R. Pura, Doutrina do método, cap. I, seç. 1). Kant,
portanto, acautela os filósofos contra a pretensão de querer organizar sua ciência segundo o modelo
matemático. Em F., não há propriamente definições (que sejam construções de conceitos), nem axiomas,
que são verdades evidentes, nem demonstrações, que são provas apodíticas. Em relação a estas últimas
Kant diz: "A experiência nos ensina o que existe, mas não que isso não pode ser de outra maneira.
Princípios empíricos de prova não podem dar-nos nenhuma prova apodítica. De conceitos a priori (no
conhecimento discursivo) nunca pode nascer uma certeza intuitiva, uma evidência, mesmo que o juízo
possa ser apodi-ticamente certo" ilbid., Doutrina do método, cap. 1, seç. 1). Deste ponto de vista, o
procedimento da F. está bem longe da possibilidade de dar ao homem um conhecimento comparável ao
possuído por Deus. "A determinação dos limites de nossa razão só pode ser feita segundo princípios a
priori, mas a limitação da razão, que vem a ser o conhecimento, mesmo que indeterminado, da ignorância
que nunca pode ser completamente eliminada, também pode ser conhecida aposteriori; vale dizer que, em
todo conhecer, sempre nos resta o que conhecer" ilbid., Da impossibilidade da satisfação cética). A F.
nunca é uma ciência perfeita, que se possa ensinar ou aprender. "Pode-se apenas aprender a filosofar, a
exercitar o talento da razão na aplicação dos seus princípios universais a determinadas investigações, mas
sempre com a ressalva de que é direito da razão investigar esses princípios em suas fontes, para confirmálos ou recusá-los" ilbid., Doutrina do método, cap. III).
Essas considerações de Kant constituem um conceito relativamente acabado ou maduro do procedimento
analítico em filosofia. Seu precedente imediato é Locke, que disse: "Não nos cabe neste mundo conhecer
todas as coisas, mas sim as que concernem à nossa conduta de vida. Se pudermos então achar as normas
graças às quais um ser racional como o homem, considerado no estado em que se encontra neste mundo,
possa e deva conduzir suas opiniões e as ações que dela dependam, se pudermos chegar a tanto, não
devemos ficar aflitos se outras coisas escapam ao nosso conhecimento" iEnsaio, Intr., § 6). O conceito de
F. como procedimento analítico, com vistas a determinar as condições e, assim, os limites das
FILOSOFIA
456
FILOSOFIA
atividades humanas, inspirou todo o Iluminismo setecentista. Mas nesse aspecto, ressalvadas as diferenças devidas
aos meios culturais disponíveis, o Iluminismo setecentista retomava o ideal ao Iluminismo antigo dos Sofistas e de
Sócrates, para os quais a F. visava à formação do homem na comunidade. O próprio conceito que Platão tem da F.
pode ser considerado manifestação desse Iluminismo, segundo o qual a F. é instrumento do homem. Platão de fato
negava que a F. pudesse pertencer à divindade. Tanto quanto o amor, ela é falta, porque desejo de sabedoria por parte
de quem não possui a sabedoria pela própria natureza. O homem é filósofo porque "está no meio, entre aquele que
sabe e aquele que ignora", ao passo que a divindade, que já possui o saber, não precisa filosofar (O Banq., 204 a-b).
Por outro lado, a dialética, método da F., é concebida por Platão como análise, como um procedimento que permite
distinguir o discurso verdadeiro do falso, mostrando as coisas que podem combinar-se e as que não podem combinarse (Sof., 252 d-e). Para mostrar quais são as coisas que podem e quais não podem combinar-se, a dialética procede
compondo várias determinações em um único conceito e depois dividindo esse conceito nas suas articulações como
faz um hábil trinchador (Fed., 265 e). Portanto, a cada passo, supõe a escolha oportuna das determinações, a serem
compostas num único conceito, e dos aspectos segundo os quais dividir esse conceito; essa escolha, como qualquer
outra, supõe uma utilização de elementos, pelo que o método platônico foi, com justiça, considerado empírico
(Taylor, Plato, 4a ed., 1937, p. 377).
A concepção analítica tem como característica considerar a F. como atividade humana, ou seja, limitada em termos
de alcance e validade, cuja função é fazer escolhas, e não construir in totó seu objeto. Destas duas características
provém a terceira, talvez a mais óbvia e visível: que consiste em ser esse método, entre outras coisas e em primeiro
lugar, reconhecimento e utilização de dados, ou seja, de fatos, elementos ou condições, que não são produzidos pelo
próprio método. A escolha dos dados e sua elaboração com vistas a uma solução possível constitui o problema (v.).
As F. analíticas são, em geral, marcadas pelo fato de que nelas a noção de problema é fundamental, ao passo que não
existe ou é considerada secundária e negligenciável nas F. sintéticas (como acontece
nas de Aristóteles e Hegel). Outra determinação dessa concepção (que ela só adquire no mundo contemporâneo) é a
que concerne ao campo do qual a F. pode ou deve tirar seus dados e com o qual a interpretação desses elementos
pode e deve ser confrontada. É recente a idéia de que os resultados da F., assim como os de qualquer outra
investigação, não são definitivos, mas precisam ser provados e experimentados. Devido a isso, Dewey chamou a F.
de crítica das críticas. Disse: "A alguns pode parecer uma traição conceber a F. como o método crítico para
desenvolver os métodos da crítica. Mas até esse conceito de F. espera ser provado, e a prova que o confirmará ou
condenará consiste no resultado final. A importância do conhecimento que adquirimos e da experiência que foi
revivificada pelo pensamento consiste em evocar e justificar a prova" {Experience and Nature, p. 437).
Entretanto, essa exigência torna-se operante só quando se determina o campo do qual a F. extrai seus dados e no qual
encontra possibilidades de confirmação. A determinação deste campo constitui a característica da F. analítica dos
nossos tempos. Ora, os campos aos quais podemos referir-nos são apenas dois: ls existência individual; 2- existência
social.
1Q As F. que recorrem à existência individual para a busca de dados e eventual prova das soluções consideram
habitualmente a existência individual como consciência e vêem a consciência como domínio da filosofia. No mundo
contemporâneo, a mais conhecida e típica F. desse tipo é a de Bergson, que se organiza explicitamente como busca
dos "dados imediatos da consciência" e utiliza esses dados para soluções que, por sua vez, só podem ser postas à
prova no âmbito da consciência. A esse tipo de F. liga-se também a fenomenologia concebida por Husserl como "um
retorno radical ao ego cogito puro, para fazer reviverem os valores eternos que dele procedem" (Cart. Med., § 2). O
defeito metodológico desse tipo de F. consiste no fato de que nelas o dado, que deve servir como limitação ou
verificação do procedimento analítico, na verdade não é independente desse procedimento, porque só pode ser
descoberto ou assumido com base nos pressupostos que o inspiram.
2S F. que recorrem à existência social têm como precursora a F. de Platão, que pretendia provar os resultados da F. na
vida social. Ao mesmo gênero pertence a F. de Kant, segundo
FILOSOFIA PRIMEIRA
457
FENAIISMO
a qual os resultados da F. devem ser provados no domínio moral e político, ou seja, no campo das relações humanas
em geral, e devem constituir um instrumento de progresso nesse campo [cf. os textos Se o gênero humano está
progredindo constantemente para o melhor, de 1798, Sobre o Iluminismo, 1784, bem como os citados antes neste
verbete, II, b]. É também à experiência inter-humana que Dewey se refere para submeter à prova resultados da F., ou
seja, propostas que ela formula para a conduta de vida inteligente {Experience and Nature, cap. X). Por outro lado, o
existencialis-mo de Heidegger, embora não planeje pôr à prova os resultados de suas análises, toma os dados desta
análise na existência cotidiana comum, naquilo que acontece entre os homens "acima de tudo e na maioria das vezes"
(Sein undZeit, § 9)- Finalmente, podemos inserir nesse mesmo panorama a F. considerada como análise da
linguagem, que discerne nesta o fato intersubjetivo fundamental e, portanto, na acla-ração e na retificação da
linguagem o instrumento mais apto a eliminar equívocos e a retificar relações intersubjetivas. Esta pelo menos
pareceria a significação mais importante de tal F. Mas não se tem essa significação quando ela é entendida
simplesmente como "terapia", cujo objetivo é livrar das dúvidas (consideradas fictícias) produzidas peía filosofia.
Neste caso, uma vez que ninguém, salvo o interessado, pode julgar se está suficientemente "curado", a prova a que se
submeteria a F. teria como campo a vida privada do indivíduo.
FILOSOFIA PRIMEIRA (gr. jtpÓTT| q>l\o-aoqríct; lat. Prima philosophia; in. First philoso-phy, fr. Philosophie
première, ai. Ersten Phi-losophie, it. Filosofia prima). Foi esse o nome que por vezes Aristóteles deu à F. como
ciência do ser (ou teologia), para distingui-la da física (F. segunda) e da matemática (Fís., I, 9, 191 a 36; Met., VI, 1,
1026 a 16; etc). Bacon usou esse termo para indicar a "ciência universal", que seria uma árvore da qual partem, como
tantos ramos, as ciências específicas, que tem por objeto os princípios comuns às ciências (Deaugm. scient., III, 1) (v.
FILOSOFIA). Na significação aristotélica, esse vocábulo foi substituído por metafísica (v.).
FIM (gr. zékoç, ou êvera; lat. Finis; in. End, Putpose, fr. Fin, But; ai. Zweck, it. Fine). Esta palavra tem as seguintes
significações principais:
Ia limite, no sentido com que Aristóteles diz: "a natureza procura sempre o F.", ou seja,
"foge do infinito" (De gen. an., I, 1, 715 b, 16, 15). Dewey usou essa palavra no mesmo sentido: "Podemos conceber
o F. como devido ao cumprimento, à consecução perfeita, à saciedade, à exaustão, à dissolução, a alguma coisa que
diminuiu ou cedeu"; em outras palavras, os F. são só "termos ou conclusões de episódios temporais" favoráveis ou
desfavoráveis, bons ou ruins (Experience and Nature, pp. 97 ss.);
2a término ou perfeição, com o sentido que freqüentemente tem a palavra grega télos. Neste sentido diz-se que uma
coisa "chegou ao F." sobre uma coisa que foi terminada;
3a motivo ou causa final, no sentido da quarta das quatro causas aristotélicas (v. CAUSALIDADE). Neste sentido a
palavra italiana scopo, a francesa but, a inglesa purpose são mais bem empregadas, pois têm caráter objetivo, quer se
entenda o F. como imanente à natureza, quer se entenda como motivo de um comportamento humano: é o termo final
do projeto ou do plano ao qual se refere;
4a intuito ou alvo, ou seja, F. em seu aspecto subjetivo, como aquilo que tem em mira certa intenção, mas que pode
ser diferente do alvo atingido na realidade.
FINALIDADE (in. Purposiveness, Finality, fr. Finalité, ai. Zweckmãssigkeit; it. Finalita). Correspondência entre um
conjunto de coisas ou de acontecimentos e um fim. Assim, p. ex., a F. de um plano ou de um projeto é a
correspondência ou a adequação desse plano ao fim a que visa. A F. da natureza é a correspondência da natureza com
os seus supostos fins, etc. Essa palavra não se aplica, pois, exclusivamente à causalidade dos fins da natureza (à qual
se aplica a palavra finalismo), mas em geral designa certa forma de organização ou ordem.
FINALISMO (in. Finalism; fr. Finalisme, ai. Finalismus; it. Finalismo). Doutrina que admite a causalidade do fim,
no sentido de que o fim é a causa total da organização do mundo e a causa dos acontecimentos isolados. Essa
doutrina implica duas teses: Ia o mundo está organizado com vistas a um fim; 2a a explicação de qualquer evento do
mundo consiste em aduzir o fim para o qual esse evento se dirige. Essas duas teses freqüentemente estão unidas ou
confundidas, mas às vezes elas são diferentes e procura-se admitir uma sem admitir a outra. Segundo relato de Platão
e de Aristóteles, Anaxágoras foi o primeiro dos antigos a admitir a causalidade do fim (P LATÃO, Fed., 97C;
ARISTÓTELES, Met., I, 3, 984 b 18). Platão apre-
FINAUSMO
458
FINAUSMO
senta sua própria doutrina como uma conseqüência do princípio de Anaxágoras de que a inteligência é a causa
ordenadora do mundo. "Se a inteligência ordena todas as coisas e dispõe cada coisa do modo melhor", diz ele, "achar
a causa graças à qual cada coisa é gerada, destruída ou existe significa descobrir qual é a sua melhor maneira de
existir, modificar-se ou agir" (Fed., 97C). Desse ponto de vista o "melhor" ou o "excelente" é a "verdadeira" causa
das coisas, ao passo que são causas secundárias ou concausas as de natureza física habitualmente aduzidas (Tim., 46
d; Fil., 54 c). Mas a doutrina graças à qual prevaleceu a concepção finalista na metafísica antiga e recente é a
aristotélica. As duas teses próprias do F. são partes integrantes da metafísica aristotélica. Por um lado, Aristóteles
afirma que "tudo aquilo que é por natureza existe para um fim" (De an., III, 12, 434 a 31) e identifica o fim com a
mesma substância, "forma ou razão de ser da coisa" (Met., VIII, 4, 1044 a 31). Por outro lado, julga que o universo
inteiro está subordinado a um único fim, que é Deus, do qual depende a ordem e o movimento do universo (Ibid., XII,
7, 1072 b). Com base nisso, Aristóteles defende a causalidade do fim contra a tese que ele chama de "necessidade",
consistente em admitir que as coisas não acontecem com vistas ao seu resultado melhor, mas que, às vezes, o
resultado melhor é o efeito acidental da necessidade. De fato, assim como se diz que, dadas certas causas,
necessariamente choveu, e que a chuva provocou acidentalmente a perda da colheita, sem que esta fosse a finalidade
da chuva, po-der-se-ia tentar explicar do mesmo modo a forma dos organismos animais (Fís., II, 8, 198 b 17). Contra
esse modo de raciocinar, Aristóteles observa que aquilo que acontece sempre ou geralmente não pode ser explicado
com o acaso, mas supõe a necessidade da ação do fim (Ibid., II, 9, 200 a 5). Não encontramos, porém, em Aristóteles
aquela forma popular da teleo-logia iniciada com os estóicos, que consiste em demonstrar que as coisas do mundo são
feitas pela natureza em proveito do homem. O fundamento desta teleologia foi expresso por Cícero-, "Para quem
então poderíamos dizer que o mundo foi realizado? Evidentemente para os seres vivos dotados de razão, ou seja, para
os deuses e para os homens; nada há de fato que seja mais excelente que eles, em virtude de a razão ser superior a
tudo: assim, é crível que o mundo e tudo o que no mundo existe foi feito
para os deuses e para os homens" (De nat. deor., II, 133). Em vista de sua estreita conexão com a teologia, entende-se
por que o F. sempre serviu de fundamento para a metafísica teológica. Os escolásticos insistem sobre a superioridade
causai do fim, que chamam de "causa das causas". S. Tomás, seguindo as pegadas de Aristóteles, resolve na
causalidade do fim a necessidade própria dos movimentos naturais. "A necessidade natural que inere nas coisas e as
dirige"; escreve ele, "chega às coisas imprimida por Deus, que as destina a um fim, do mesmo modo como a
necessidade com que a flecha se desloca e graças à qual se dirige para o alvo foi-lhe imprimida por quem a lançou e
não pertence à flecha" (S. Th., I, q. 103, a. 1). Este é o pensamento fundamental que domina e torna
extraordinariamente uniformes todas as teorias finalistas, tão abundantes na história da F. até os nossos dias. Hegel
considerou uma grande inovação a sua doutrina do fim como do "próprio conceito em sua existência", e da finalidade
como determinação imanente à natureza; contrapôs essa doutrina a outra que considerava tradicional, para a qual um
intelecto "terreno" impõe, de fora, seus fins à natureza (Wissenschaft der Logik, III, seç. II, cap. III; trad. it., pp. 216
ss.). Mas na realidade, como os textos até agora citados provam na história da F., não existe doutrina de finalidade
extrínseca e imposta por um intelecto extraterreno, visto que, por finalidade do mundo, tanto Aristóteles quanto os
estóicos e S. Tomás entendem a razão de ser do mundo, sua necessidade imanente: S. Tomás identifica
explicitamente a impressio de Deus sobre a natureza com a "necessidade inerente às coisas". Como tal, a necessidade
é sempre imanente à totalidade cuja organização constitui. E como já observava Aristóteles, sob este aspecto o F. não
muda, quer se trate de totalidades naturais, quer se trate de totalida-des artificiais; na construção de uma casa o fim
penetra o material utilizado e não inere a ele de maneira diferente daquele com que inere às partes de um organismo
(Fís., II, 9, 200 a 34). Em todos os casos, para usar a expressão de Hegel, o F. é o próprio conceito na sua existência:
a realização de um conceito que desde o início dirige e governa essa mesma realização. Portanto, a polêmica de Hegel
contra "o intelecto extraterreno" é teológica — contraposição de uma tese panteísta a uma tese teísta —, mas não
concerne ao finalismo. Significação diferente tem a distinção entre finalidade interna e
FINALISMO
459
FINALISMO
finalidade externa feita por Schopenhauer, que no entanto mantém inalterado o conceito tradicional de F., apesar de
sua tese sobre o caráter irracional e desordenado da força que rege o mundo. Para Schopenhauer, finalidade interna é
"a harmonia de todas as partes de um organismo, de tal modo que a conservação deste e de sua espécie seja objetivo
desta harmonia". Finalidade externa é, pelo contrário, a "relação da natureza inorgânica com a orgânica ou de partes
da natureza orgânica entre si, o que possibilita a conservação da natureza orgânica toda e das espécies individuais"
iJJie Welt, I, § 28). Por outro lado, nesse aspecto a doutrina de Bergson não constitui uma inovação do F. tradicional.
No que se refere à finalidade orgânica, Bergson declarou-se contrário ao "mecanismo radical" e ao "F. radical",
reconhecendo em ambos a negação do caráter "imprevisível" ou "criador" da evolução vital. A harmonia — diz ele —
deve encontrar-se atrás e não à frente dessa evolução. "O futuro não está contido no presente sob a forma de um fim
representado. Entretanto, uma vez realizado, explicará o presente assim como o presente o explicava, e ainda melhor;
deverá ser considerado fim, mais que resultado. Nossa inteligência tem o direito de considerá-lo abstratamente do seu
ponto de vista habitual, visto que ela mesma é uma abstração realizada sobre a causa da qual emana" (Évol. créatr., 8a
ed., 1911, cap. I, p. 57). Mas tampouco esta determinação feita por Bergson inova muito o conceito clássico de F.,
cuja natureza não consiste, como julga Bergson, em negar os caracteres imprevisíveis ou novos que emergem durante
a realização do fim, mas unicamente em admitir a causalidade do fim e em considerar essa causalidade como
princípio de explicação. A doutrina de Bergson não contribui para inovar esses dois aspectos, podendo, pois, ser
reintegrada na concepção clássica de F., assim como podem ser reintegradas nessa concepção as doutrinas que, apesar
de admitir o mecanismo, consideram-no compreendido no F. geral da natureza, e a ele subordinado, como fazem
Leibniz (Op., ed. Gerhardt, III, p. 607; IV, p. 284), Lotze {Mikro-kosmus, 1856, I) e, com eles, muitos espiritualistas
contemporâneos.
É só com a interpretação de Kant que o F. se inova significativamente. Essa interpretação nega a 2- tese do F.,
segundo a qual explicar um fenômeno significa aduzir o objetivo. Para Kant, a explicação dos fenômenos só pode ser
causai, e
o juízo teleológico é reflexivo, não determinante, ou seja, não apreende um elemento constitutivo das coisas, mas um
modo subjetivo, porquanto inevitável para o homem representá-las. "Há uma diferença absoluta entre dizer que a
produção de certas coisas da natureza, ou mesmo de toda a natureza, só é possível por meio de uma causa que se
determina a agir segundo fins, e dizer que, segundo a natureza particular de minha faculdade cognoscitiva, só posso
julgar da possibilidade das coisas e de sua produção concebendo uma causa que aja segundo fins, portanto um ser que
produza de modo análogo à causalidade de um intelecto. No primeiro caso quero afirmar alguma coisa do objeto, esou obrigado a demonstrar a realidade objetiva do conceito que admito; no segundo caso a razão só faz determinar o
uso de minhas faculdades cognoscitivas, de acordo com sua natureza e com as condições essenciais de seu alcance e
de seus limites" {Crít. dojuizo, § 75). Do segundo ponto de vista, que é o proposto por Kant, o F. não passa de
conceito regulador do uso do intelecto humano: uso oportuno e necessário pelo fato de que o intelecto humano
encontra limites bem precisos na explicação mecânica do mundo, sendo, pois, levado a recorrer a uma consideração
complementar. Esta, contudo, nunca pode valer como explicação, e sua única função é ajudar a procurar as leis
particulares da natureza (Ibid., § 78). Esse ponto de vista kantiano (recentemente renovado por N. HARTMANN,
Philosophie der Natur, 1950), enquanto nega ao F. qualquer valor cognoscitivo e científico, atribuiu-lhe uma espécie
de validade subjetiva, entre estética e moral, que se deve à limitação inevitável do conhecimento humano.
Obviamente, a interpretação kantiana do F. repousa na tese dos adversários do F., que nega poder explicativo ao F. Só
esta negação constitui, na realidade, o abandono do F. e só as razões que o apoiam constituem uma autêntica crítica a
ele. Na realidade, o F. não é uma generalização empírica a partir da consideração de certo número de exemplos
teleológicos; tampouco uma "disteleologia", ou seja, uma lista de casos contrários ao F., é uma crítica decisiva ao F.
A doutrina de Platão e de Aristóteles a respeito, particularmente a deste último, mostra claramente o fundamento do
F.: a crença em que a única explicação possível dos acontecimentos é a que aduz o objetivo pelo qual aconteceram.
Para Platão e para Aristóteles, o objetivo é a forma ou a razão de ser da coisa, e a
FINALISMO
460
FINALISMO
determinação do objetivo é a explicação causai da coisa. Começou-se a duvidar desse princípio só na idade moderna.
O epicurismo, que, com Lucrécio, negava o F. aduzindo que ele põe antes o que vem depois (p. ex., a visão antes do
olho [LUCRÉCIO, De rer. nat., IV, 829 ss.]), não constitui a negação desse princípio. A primeira crítica a ele pode ser
encontrada na Escolástica do séc. XIV, em G. Ockham, que, em primeiro lugar, mostra que a ação do fim só pode
consistir em impelir a causa eficiente a agir e, em segundo lugar, que essa ação é puramente metafórica (In Sent., II,
q. 3 G). Ockham observa que a ação do fim só poderia consistir em ser desejado ou amado e que isso demonstra o
caráter metafórico dessa ação. Não tem sentido perguntar a causa final das ações naturais, que se verificam com
uniformidade; p. ex., não tem sentido perguntar com que fim o fogo é gerado, pois não é preciso que haja um fim
para que o efeito se produza (Quodl., IV, q. 1). Esta talvez tenha sido a primeira crítica feita ao valor explicativo do F.
Alguns séculos depois, a causa final era completamente desprezada na explicação que Telésio tentava dar do mundo
natural (De rer. nat., 1565). E Bacon excluía explicitamente da investigação experimental a consideração do fim
(Nov. Org., II, 2). Dizia: "A investigação das causas finais é estéril: assim como uma virgem, consagrada a Deus,
nada gera" (Deaugm. scient, III, 5). Por sua vez, Galilei (Op., VII, p. 80) e Descartes (Princ.phil, III, 3) eliminaram
da ciência a consideração da causa final, e Spinoza contrapôs a necessidade com que as coisas provêm da natureza
divina ao F., que considerou um preconceito, contrário à ordem do mundo e à perfeição de Deus (Et., I, 36, Ap.). A
partir dessa época, que marca a origem da ciência moderna, o F. deixou de valer como procedimento de explicação
científica.
Verdade é que sempre se insinuou nas lacunas deixadas pela explicação mecanicista do mundo e sempre foi
considerado complemento desta explicação, além dos limites por ela alcançados. Isso aconteceu principalmente no
domínio das ciências biológicas ou na especulação filosófica sobre os resultados dessas ciências. Apesar dos sucessos
obtidos nesse campo pelo estudo físico-químico dos fenômenos biológicos, freqüentemente se reconheceu o malogro
ou mesmo a impossibilidade de se reduzirem esses fenômenos a princípios mecanicistas. As várias formas de
vitalismo (v.) são caracterizadas por esse reconhecimento, portanto, pelo recurso da uma explicação teleológica dos fenômenos vitais. Esse recurso, todavia, pareceu inevitável só na medida em
que cientistas e filósofos formularam hipóteses globais sobre a origem e a natureza da vida, uma vez que o trabalho
propriamente científico, ao qual se devem os sucessos da biologia e da medicina contemporânea, não empregou
outros instrumentos, materiais ou conceituais, que não pertencessem às ciências naturais. Esse trabalho, portanto,
nunca precisou da hipótese finalista. Por outro lado, a situação hodierna é caracterizada por: l s reconhecimento da
originalidade dos fenômenos orgânicos em relação aos fenômenos físico-químicos, sem que tal originalidade
represente um caráter finalista (v. EVOLUÇÃO; VITALISMO); 2Q abandono do ideal da explicação mecânica, de tal modo
que deixou de existir a diferença radical que, com base no êxito dessa explicação, vinha-se estabelecendo entre
fenômenos físicos de um lado e fenômenos biológicos e antropológicos de outro lado (V. CAUSALIDADE;
EXPLICAÇÃO). Em virtude desta situação, por um lado alijou-se a causalidade do fim do domínio da evolução
orgânica, e por outro lado a ação dessa causalidade, tal qual se admite no homem, pode não ser considerada diferente
da ação da causalidade natural. Sobre a primeira questão, Simpson afirma: "Objetivo e plano não são características
da evolução orgânica e não constituem a chave para nenhuma de suas operações, mas são características da nova
evolução [social ou histórica] porque o homem tem objetivos e planos. Aqui objetivo e plano entram definitivamente
na evolução, como resultado e não como causa dos processos que a longa história da vida nos mostra. Os objetivos e
os planos são nossos, não do universo, que nos apresenta indícios convincentes da ausência deles" (TheMeaning
ofEvolution, 1952, p. 292). Mas, por outro lado, os objetivos e os planos não constituem uma forma de causalidade à
parte, que faça do mundo no qual se verificam um domínio privilegiado ou especial do ser. No mundo humano a
causalidade do fim foi reintegrada na motivação (v.) que não difere formalmente da explicação causai (C. G.
HEMPEL-P. OPPENHEIM, "The logic of explanation", em Readings in the Phil. of Science, 1953, pp. 327-28); ou foi
descrita em termos de comportamento que implicam ainda menos referência a um tipo de explicação específica
(Roseblueth-Wiener-Bigelow, em Philosophy of Science, 1943, pp. 18 ss.).
HNTTISMO
461
FINS, REINO DOS
Em conclusão, o F., hoje considerado inútil em todos os campos de explicação científica, permanece como
característica das correntes metafísicas que consideram modesta demais para a filosofia a tarefa de criticar os valores
para corrigi-los ou conservá-los, propondo-se a tarefa de demonstrar que os valores são garantidos pela própria
estrutura do mundo onde o homem vive e que eles constituem o fim dessa estrutura. O F. perdeu completamente o
caráter científico que possuía originariamente na Grécia antiga e permanece apenas como uma das tantas esperanças
ou ilusões às quais o homem recorre na falta de procedimentos eficazes ou em substituição deles.
FUSinSMO (in. Finitism; fr. Finitisme, ai. Finitismus, it. Finitismó). Com este termo, usado raramente, entende-se
toda doutrina que afirme a finitude do mundo, que adote as teses das antinomias cosmológicas expostas na Crítica da
Razão Pura de Kant.
FINTTO (gr. Tcerapaauévov; lat. Finitus; in. Finite, fr. Fini; ai. Endlich; it. Finitó). Esse termo tem as seguintes
significações principais, das quais as duas primeiras correspondem aos sentidos de infinito:
Ia Como disposição ou qualidade de uma grandeza em sentido matemático, F. é: d) o que está completo ou é
exaurível, ou seja, não tem partes fora de si: o contrário de infinito potencial; b) o conjunto não auto-reflexivo, ou
seja, não equipotente a uma de suas partes ou subconjuntos (no sentido estabelecido pela teoria dos conjuntos de
Cantor e Dedekind).
2a No sentido teológico, aquilo que encontra limites ou obstáculos à sua possibilidade de ser, à sua potência. Esse
conceito de F. remonta a Plotino, que foi o primeiro a entender o infinito como não-limitação da potência (Enn., IV,
3, 8; VI, 6, 18). Mas foi principalmente nesse conceito que o Romantismo se baseou para afirmar a realidade do
infinito. Para Hegel, o infinito é a própria realidade enquanto potência ilimitada de realização, enquanto Absoluto. F.
é aquilo que não tem potência suficiente para realizar-se, o ideal, o dever-ser (Ene, § 95; Wissenschaft der Logik, cap.
II, seç. I; trad. it., I, p. 163). Deste ponto de vista, F. é "irreal" e encontra realidade só no infinito e como infinito.
3a Aquilo que pode ser ou agir em determinadas condições. Esse é o sentida com o qual essa palavra foi entendida por
Kant. Ele chama o homem de "ser pensante F.", porquanto suas
possibilidades cognoscitivas são limitadas pela intuição sensível, ou seja, por uma intuição que depende de objetos
dados (Crít. R. Pura, % 8, IV). Do ponto de vista moral, o homem é um ser F. porquanto sua vontade não se
identifica com a razão e a lei desta vale para a vontade só como imperativo (Crít. R. Prática, § 1, scol.). Enfim, a
faculdade de juízo estético e teleo-lógico funda-se na natureza F. do homem, na limitação de suas possibilidades
cognoscitivas, porquanto não determinam completamente seu objeto, mas apenas a forma deste (Crít. do Juízo, § 77).
Essa significação da palavra permaneceu em expressões como "intelecto F.", "ser F.", "natureza F.", etc.: nas quais F.
não expressa uma limitação espacial ou temporal, mas o caráter condicional de certas possibilidades que não são
aptas a garantir a onisciência, a onipotência e a infalibilidade. Com esta significação, esse termo foi aceito pelo
existencialismo contemporâneo. Heidegger vê o caráter F. do homem no fato de que qualquer projeto seu de mundo
já está dominado pelo próprio mundo, que limita as possibilidades projetáveis. Heidegger diz: "O projeto de
possibilidades, em conformidade com sua essência, está cada vez mais rico da posse na qual o projetante se
encontrava anteriormente. Mas uma posse assim só pode pertencer ao ser-aí porque ele, enquanto projetante, sente-se
imerso no meio do ente. Mas, com isso, já estão sendo subtraídas ao ser-aí outras possibilidades, e isso em
conseqüência de sua facticidade... Prova transcendental da finitude da liberdade do ser-aí é que o projeto concreto do
mundo só adquire força e se torna posse na subtração. Será que nisso não se evidencia a essência F. da liberdade em
geral?" (Vom Wesen des Grundes, III; trad. it., pp. 68-69). Nesse sentido, "F.' é qualidade própria só do homem ou
das possibilidades humanas, e finitude é o termo abstrato correspondente. Toda filosofia da existência é uma filosofia
do F. porque interpretação da existência em termos de possibilidades condicionadas (v. EXISTÊNCIA, 3Q).
FBVS, REINO DOS (ai. Reich der Zwecké). Segundo Kant, é a comunidade ideal dos seres racionais que obedecem
unicamente às leis da razão. O reino dos F. — diz Kant — é "o conceito em virtude do qual todo ser racional deve
considerar-se fundador de uma legislação universal por meio de todas as máximas de sua vontade, de tal modo que
possa julgar-se a si mesmo e às suas ações desse ponto de vista"
FÍSICA
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FÍSICA
(Grundlegung zur Met. der Sitten, II). Nesse reino, entendido como "a união sistemática de vários seres racionais sob
leis comuns", cada membro é, ao mesmo tempo, legislador e súdito, valendo, portanto, como "fim em si mesmo"
(Ibid., II). V. DIGNIDADE.
FÍSICA (gr. (puoiKií; lat. Physica; in. Physics; fr. Physique, ai. Physik, it. Física). Disciplina que tem por objeto o
estudo da natureza; portanto, suas características e seus métodos estão em relação com aquilo que entendemos por
natureza (v.). Como disciplina específica, pode-se dizer que nasceu com Aristóteles, que a considerou a "filosofia
segunda" e, no grupo das ciências teóricas, distinguiu-a da teologia e da matemática (Met., XI, 7, 1064 b 1). Podemos
distinguir três conceitos fundamentais dessa ciência, que se sucederam ao longo da história: l e F. como teoria do
movimento; 2a F. como teoria da ordem necessária; 3a F. como previsão do observável.
1Q Quando nasceu, com Aristóteles, a F. era a teoria do movimento e como tal se manteve até as origens da ciência
moderna. Para Aristóteles, a F. tem por objeto "a substância que tem em si mesma a causa de seu movimento" {Met.,
VI, 1, 1025 b 18); portanto, o modo como a F. considera as substâncias depende da natureza dos movimentos dos
quais elas são dotadas. Dos quatro movimentos distinguidos por Aristóteles (substancial: geração e corrupção;
qualitativo: mudança; quantitativo: aumento ou diminuição; local translação [Fis., VIII, 7, 261 a 26]), o de translação
é o primeiro e fundamental: todos os outros podem ser explicados pela translação dos corpos (Ibid., VIII, 7, 260a-b).
A determinação das várias substâncias físicas deve, por isso, ser feita com base no movimento de translação que é
próprio de cada uma delas. O movimento de translação é de três espécies: do alto para o centro do mundo, do centro
para o alto, em tomo do centro ou circular. Os primeiros dois movimentos são contrários entre si e (como a geração e
a corrupção consistem na passagem de um contrário ao outro) próprios dos corpos sujeitos à geração e à corrupção,
ou seja, dos corpos terrestres ou sublunares, compostos por quatro elementos: água, ar, terra e fogo. O movimento
circular não tem contrários, porque mover-se da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita circularmente
não modifica a atividade circular do movimento (De cael., 1,4); esse movimento é próprio da substância que compõe
os corpos não-geráveis e incorruptíveis,
que são os corpos celestes, e essa substância é o éter. Dos quatro elementos que compõem o mundo sublunar, dois (ar
e fogo) movem-se de baixo para cima; dois (água e terra), de cima para baixo. A F. aristotélica, portanto, é qualitativa
por considerar que determinado movimento é próprio de determinado elemento, estabelecendo assim nítida divisão
qualitativa entre os elementos e entre estes e o éter. Desta postura segue-se o princípio geral da F. aristotélica, que é:
"Todo elemento move-se para a sua esfera, se não for impedido" (Fís., IV, 1, 208 b 10); esse princípio implica ou
estabelece a existência de lugares absolutos, que são sedes naturais dos elementos para as quais os elementos
retornam quando delas são afastados. Esses lugares, segundo Aristóteles, são determinados pelo peso dos elementos.
No centro do mundo está a terra, que é o elemento mais pesado (como se conclui, p. ex.. do fato de a pedra cair na
água ou afundar na água). Em torno da terra está a esfera da água, e em torno da esfera da água está a do ar, que é
mais leve ainda, como demonstra o fato de a bolha de ar que se rompe na água subir à superfície. Em torno da esfera
do ar está a do fogo, que é elemento mais leve, como prova o fato de as chamas que estão na superfície da terra
tenderem para o alto, para a esfera que está acima do ar. Com base nisso, Aristóteles determina os caracteres do
mundo.-único porque os elementos se condensam cada um em sua esfera; finito porque acabado e perfeito; como tal,
ordenado para um único fim, que é Deus. Esta doutrina, que se baseia em pequeno número de experiências comuns e
é admirável por sua elegância e simplicidade, foi a maior expressão, no pensamento antigo, da síntese dos
conhecimentos naturais. Diante dela, a F. atomista dos epicuristas e a F. panteística dos estóicos têm mais caráter de
especulação que de conhecimento científico. Foi realmente isso que os cientistas antigos pensaram, pois deixaramnas completamente de lado remeten-do-se constantemente à F. aristotélica; com ela Ptolomeu (séc. II) elaborou sua
astronomia. A F. aristotélica dominou sem rival durante muitos séculos, e, apesar das dúvidas levantadas por alguns
escolásticos no séc. XIV, só foi abandonada com Leonardo da Vinci, Copérnico, Kepler e Galilei, aos quais se deve a
primeira organização da ciência moderna.
2- O segundo conceito fundamental da F. considera-a como estudo da ordem experimen-tável da natureza. Para esse
conceito contribuí-
FÍSICA
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FÍSICA
ram os aristotélicos do Renascimento, com a defesa da necessidade da ordem natural, os platônicos do Renascimento,
em especial Nicolau de Cusa, com a afirmação do caráter matemático da ordem natural, e a magia, com a pretensão
de atingir e exercer domínio efetivo sobre a natureza. O conceito da natureza, que já está claro em Galilei, é de ordem
objetiva, escrita em caracteres matemáticos, necessária e destituída de finalidade, atingível por meio do experimento.
Sobre este conceito de ordem fundava-se a noção de harmonia, que para Kepler era a base da ciência da natureza
(Harmonices mundi, 1619, IV, I). A obra de Newton conduzia à maturidade o conceito correspondente de F. Passava
a ser tarefa da F., explícita e unicamente, a descrição da ordem natural. A F. aristotélica, como teoria do movimento,
era dirigida ao estudo das causas do movimento, que coincidiam com as substâncias (formas ou causas finais) das
coisas. Newton esclarecia em que sentido a determinação da ordem natural deve ser objeto da ciência, chegando a
negar, em oposição à ciência aristotélica, que a F. fosse ciência das causas (Optice, 1740, III, q. 31). Em 1764 Kant
assim descrevia o conceito newtoniano de ciência: "Com experiências seguras e, no caso, com o auxílio da geometria
também, devem ser procuradas as regras segundo as quais ocorrem certos fenômenos da natureza" (Untersuchung
über die Deutlichkeit der Grundsãtze der na-türlichen Theologie und der Moral, 1763, II). Estas regras são as leis
naturais, que traçam a ordem dos fenômenos naturais, ou seja, o modo necessário, portanto uniforme e constante, de
interconexão entre eles. Descrever essa conexão é tarefa da F. O iluminismo e o positivismo aplicaram esse conceito
de F., que foi enfatizado por D'Alembert (Élements dephil, 1759, § 4) e serve de base para a noção de ciência
expressa por Comte: "O caráter fundamental da F. positiva é considerar todos os fenômenos como submetidos a leis
naturais invariáveis, cuja descoberta exata e cuja redução ao mínimo número possível constituem os objetivos de
todos os nossos esforços, considerando-se absolutamente inacessível e sem sentido a busca daquilo a que se dá o
nome de causas, sejam estas primárias ou finais" (Coursdephil.positive, liç. I, § 4). As leis nada mais são que
expressões da ordem necessária da natureza.
O conceito de F. como teoria da ordem natural contrapõe-se ao conceito de F. como teoria do movimento por pretender limitar-se a descrevera natureza em sua ordem, em vez de explicá-la emí£yas causas.
A partir de Newton a descrição opõe-se à explicação, como tarefa própria da F. Ou então — o que dá no mesmo —,
considera-se que a explicação à qual a F. deve aspirar legitimamente é a determinação da relação entre dois
fenômenos, de acordo com uma lei, o que, sob um outro aspecto, é simples descrição. Portanto, a característica desse
conceito de F. é o reconhecimento das conexões necessárias entre os fenômenos, nas quais se concretiza ou ganha
corpo a ordem natural, bem como a crença na experimentação, na verificação empírica dessa conexão. O conceito de
ordem natural coincide com o da causalidade necessária (V. CAUSALIDADE) e portanto com o de previsibilidade
infalível dos fenômenos naturais. Se a natureza é a ordem necessária, a F. como estudo dessa ordem pode estabelecer
regras que permitam a previsão infalível dos fenômenos. Essa é a crença que serviu de base para a F. clássica até os
primeiros decênios do séc. XX e que também sustentou sua hipótese fundamental: o mecanicismo (v.). Esta hipótese
tinha, entre outras, a vantagem de possibilitar a descrição visual do curso dos fenômenos, descrição que recorria a
imagens visuais com as quais pretendia representar (por meio de partículas em movimento) a estrutura efetiva dos
fenômenos. Mas foi exatamente essa pretensão que deu origem às primeiras dificuldades, quando, com a F.
relativista, o conceito de campo (v.) começou a substituir a representação visual das partículas em movimento. "Era
necessária uma corajosa imaginação científica", observam Einstein e Infeld, "para reconhecer que o essencial para a
ordenação e a compreensão dos acontecimentos pode não ser o comportamento dos corpos, mas o comportamento de
alguma coisa que se interpõe entre eles, vale dizer, o campo" (The Evolution of Physics, IV; trad. it., p. 302). A F.
quântica representava mais um passo para a destruição da possibilidade de uma descrição visualizante. Bohr notava:
"Na adaptação da exigência relativista ao postulado do quantum devemos preparar-nos para uma renúncia à
visualização (no sentido comum do termo) ainda mais radical que a encontrada na formulação das leis quânticas
consideradas até hoje. Encontramo-nos no caminho encetado por Einstein ao adaptarmos nossos modos de percepção,
derivados das sensações, ao conhecimento cada vez mais
FÍSICA
464
FISICALISMO
profundo das leis naturais" (Atomic Theory and the Description ofNature, 1934, p. 90). A renúncia à visualização na
realidade também era renúncia à descrição, uma vez que a impossibilidade de visualizar o curso completo dos
fenômenos é impossibilidade de descrever sua ordem necessária em sua integridade. De fato, essa impossibilidade foi
reconhecida na F. com a introdução do chamado "princípio de indeterminação" de Heisenberg (1927), com o qual a
causalidade rigorosa dos fenômenos físicos era negada pela primeira vez, em virtude da impossibilidade de prever
com exatidão o comportamento das partículas atômicas (v. CAUSALIDADE; INDETERMINAÇÃO). Com a queda da
pretensão à causalidade rigorosa e, por conseguinte, da descrição da ordem total dos fenômenos, a F. não podia mais
ser entendida como teoria da ordem necessária da natureza.
3S O terceiro conceito de F., que começou a ser traçado a partir de 1930, parte de uma determinação já considerada
fundamental pela noção de F. que a precedeu. Na esteira de Bacon, Comte já insistira na exigência de a ciência
estabelecer previsões que permitissem o domínio sobre a natureza: "Ciência, donde previsão; previsão, donde ação"
{Cours de phil. positive, liç. II, § 3). Em 1894, Hertz, em Princípios de mecânica, dá ênfase ao mesmo conceito: "O
mais imediato e, em certo sentido, o mais importante problema que o nosso conhecimento da natureza deve capacitarnos a resolver é a previsão dos acontecimentos futuros, graças à qual poderemos organizar nossas ocupações
presentes". À medida que a tarefa da descrição total da ordem dos acontecimentos ia sendo considerada fora das
possibilidades da F., a tarefa da previsão ia adquirindo maior relevância. A limitação a essa tarefa aumentou
enormemente o poder de ação ou de transformação da F. O princípio de complementaridade expresso por Bohr em
1927 marca o abandono definitivo da pretensão de que a F. pudesse valer como teoria da ordem necessária. Segundo
esse princípio, "não é possível realizar simultaneamente a descrição espácio-temporal rigorosa e a conexão causai
rigorosa dos processos individuais: uma ou outra deve ser sacrificada". Isso significa que a cadeia de causas e efeitos
só poderia ser quantitativamente verificada se o universo inteiro fosse considerado como um sistema único, mas neste
caso a F. desapareceria e ficaria apenas um esquema matemático (HEISENBERG, Diephysikalis-chen Prinzipien der
Quantentheorie, 1930, IV,
§ 1). Deste ponto de vista, embora não se possa descrever todo o curso de um fenômeno, pode-se calcular com
exatidão o resultado de uma observação futura. Heisenberg diz: "Meçam-se, em certo instante, certas grandezas
físicas com a máxima exatidão possível, ter-se-ão então, em cada instante seguinte, grandezas cujo valor pode ser
calculado exatamente, ou seja, para as quais o resultado de uma medição pode ser previsto com exatidão, contanto
que o sistema observado não seja submetido a nenhuma perturbação, exceto à própria medição" (Ibid., TV, § 1). Dirac
enunciou o mesmo conceito dizendo: "O único objeto da F. teórica é o de calcular resultados que possam ser
comparados com a experimentação, sendo completamente inútil fazer uma descrição satisfatória de todo o
desenvolvimento do fenômeno" {Principies qf Quantum Mechanics, 1930, p. 7).
Assim, a F. transforma-se em teoria da previsão dos eventos observáveis e abandona as exigências descritivas de sua
segunda fase, além das explicativas de sua fase anterior. Do ponto de vista filosófico, esse caráter fundamental da F.
contemporânea foi perfeitamente expresso por Heisenberg quando disse que a F. do nosso tempo não nos fornece
mais "uma imagem da natureza, mas uma imagem das nossas relações com a natureza" {Das Natur-bild der heutigen
Physik, 1955, p. 21).
FISICALISMO (in. Physicalism; fr. Physica-lisme, ai. Physikalismus-, it. Pisicalismó). Nome proposto por Neurath
(em Erkenntnis, 1931. p. 393) como denominação do Círculo de Viena, que via na linguagem o campo de indagação
da filosofia, para acentuar o caráter físico da linguagem. Esse termo foi aceito por Car-nap, para indicar o primado da
linguagem física e sua capacidade de valer como linguagem universal: "A linguagem da física", diz Carnap, "é uma
linguagem universal, pois abrange os conteúdos de todas as outras linguagens científicas. Em outras palavras, cada
proposição de um ramo da linguagem científica é eqüipolente a algumas proposições da língua fisicalista e pode,
portanto, ser traduzida para ela sem mudar seu conteúdo" (Philosopby and Logical Syntax, 1935, p. 89). Essa tradutibilidade das proposições significantes para uma proposição da física foi chamada F., que constituiu a idéia diretiva
da Enciclopédia da ciência unificada (v. EMPIRISMO LÓGICO; ENCICLOPÉDIA). Contudo, num segundo momento,
FÍSICA SOCIAL
465
FORÇA
Carnap interpretou o F. como a redutibilidade de todas as expressões lingüísticas à linguagem coisal (v.) e não à
forma particular de linguagem coisal, que é linguagem física ("Testability and Meaning", em Readings in the Phil. of
Science, 1953, pp. 69-70).
FÍSICA SOCIAL (in. Social physics; fr. Phy-sique sociale, ai. Sozial Physik, it. Física so-cialé). Com este nome,
Comte designou o estudo dos fenômenos sociais, a sociologia, cuja autonomia científica ele foi o primeiro a afirmar
(Cours de phil. positive, liç. 46) (v. SOCIOLOGIA).
FÍSICO-TEOLÓGICA, PROVA. V. DEUS, PROVAS DE.
FISIOCRACIA. V. ECONOMIA POLÍTICA.
FISIOGNOMONIA (gr. (pucaoYVCOUÍa; in. Physiognomonics; fr. Physiognomonie, ai. Phy-siognomik-, it.
Fisiognomicà). Arte de julgar o caráter do homem, seu modo de sentir e de pensar, a partir de sua aparência visível,
especialmente a partir dos traços fisionômicos. Aristóteles (seguido por muitos escritores antigos e medievais) já
admitira a possibilidade de julgar a natureza de uma coisa com base em sua forma corpórea (An. pr., II, 27, 70 b 7).
Cícero falava de um fisiognomonista, Zopiro, que se vangloriava de conhecer a natureza e o caráter dos homens pelo
exame de seu corpo, ou seja, de seus olhos, seu rosto e sua testa (De Fato, V, 10). Mas foi principalmente no
Renascimento que essa arte foi cultivada, a começar por Giambattista delia Porta, que, em 1580, publicou o livro
Sulla F. umana. Esse tipo de estudo foi muito difundido no séc. XVIII por Lavater (Fragmentos F., 1775-78). O
próprio Kant reconheceu o valor da F. (Antr., 11, cap. III). Hegel distingue-a das más artes e dos estudos inúteis
porque ela afirma a unidade entre interior e exterior (Phànomen. des Geistes, I, parte 1, cap. V; trad. it., p. 281). Nos
tempos modernos a F. também tem defensores não só entre os psicólogos e caracterologistas, mas também entre
filósofos. Spengler disse: "A mor-fologia do que é mecânico e amplo, ciência que descobre e ordena relações causais,
é chamada de sistemática. A morfologia do que é orgânico, da história e da vida, de tudo aquilo que traz em si direção
e destino, é chamada F." (Untergang des Abendlandes, I, p. 134). R. Kassner afirmou a identidade entre psicologia e
F., alegando que a antiga distinção entre ser e aparecer não tem valor: "A psicologia deve então ser F. e qualquer
outra é tediosa e banal,
pois, como tudo consiste na visão, nada há que precise ser mais investigado ou descoberto, retirando uma camada de
aparência depois da outra" (Dasphysiognomische Weltbild, Intr.; trad. it. em Os elementos da grandeza humana,
1942, pp. 6l ss.).
FISIOGNOSE (in. Physiognosy). Termo usado por Peirce para indicar o conjunto das ciências físicas (Coll. Pap.,
1.242).
FISIOLOGIAün. Physiology, fr. Physiologie, ai. Physiologie-, it. Fisiologid). No sentido com que Aristóteles e
outros escritores antigos empregam essa palavra, estudo da natureza: o mesmo que física. Algumas vezes Kant
também a usou com essa significação (Crít. R. Pura, Doutr. transe, do mét., cap. III).
FISIOLOGIA PSICOLÓGICA ou PSICO-FISIOLOGIA. V. PSICOLOGIA, B.
FISSISMO (it. Fissismó). Termo italiano, que não encontra correspondência nas outras línguas, com o qual se
designa a doutrina da imutabilidade das espécies vivas, em contraposição a evolucionismo (v. EVOLUÇÃO). Sua
tradução literal seria fixismo.
FLECHA (gr. òiOTOÇ; in. Arrow, fr. Flèche, ai. Pfeil; it. Freccid) O terceiro dos quatro argumentos aduzidos por
Zenão de Eléia em oposição ao movimento. O argumento baseia-se em dois pressupostos: 1Q o tempo é formado de
instantes; 2S em cada instante a F. só pode ocupar um espaço igual ao seu comprimento. Por esta segunda tese, a F. é
imóvel no instante, e como todo tempo é formado por instantes, durante todo tempo em que se move a F. está imóvel
(ARISTÓTELES, FÍS., VI, 9, 239 b 29). Aristóteles também indicou corretamente o pressuposto desse argumento, ou
seja, a tese de que o tempo é constituído de instantes. V. DICOTOMIA; AQUILES; ESTÁDIO.
FOGO (gr. 7túp; lat. Ignis; in. Fire, fr. Feu, ai. Fuer, it. Fuocó). Substância que compõe o mundo, segundo
Heráclito. Este considerava o F. dotado de inteligência e causa primeira do governo do universo (Fr. 65, Diels).
Parmênides, nos discursos "segundo a opinião", assumia a dualidade F.-trevas (equivalente à dualidade quente-frio
[v.]) como princípio de explicação da aparência sensível (Fr. 8, Diels). Os estóicos identificaram o F., situado na
extremidade do universo, com o éter, que constitui a primeira esfera imóvel e as esferas móveis dos céus (DióG;. L.,
VII, 137).
FORÇA (lat. Vis; in. Force, fr. Force, ai. Kraft; it. Forzd). Precisamente a ação causai, não no sentido de explicar ou
justificar (como
FORÇA
466
FORÇA
razão de ser), mas de produzir infalivelmente um efeito. Portanto, de forma mais geral, toda técnica apta a garantir
infalivelmente um efeito ou que pretenda garanti-lo. Nesse sentido, diz-se "o direito como F." ou "o Estado como F."
para destacar a infalibilidade da realização do direito ou da vontade do Estado. Em tal sentido Kant dizia que há
quatro espécies de combinações da F. com a liberdade e a lei: a) lei e liberdade sem F.: anarquia; ti) lei e F. sem
liberdade: despotismo; c) F. sem liberdade e sem lei: barbárie; d) F. com liberdade e lei: república (Antr., II,
Delineação do caráter do gênero humano, 2). Em sentido análogo Hegel falou de "F. da existência" no domínio das
relações jurídicas entre os Estados, aludindo à frase de Na-poleão: "A república francesa não tem necessidade de
reconhecimento" (Fil. do dir., 331, Apênd.).
A noção de F. deve ser considerada sob dois aspectos fundamentais, a saber: Ia no seu uso pela ciência; 2S na
interpretação dada pela filosofia.
Ia Consideramos aqui a noção de F. exclusivamente da forma como se veio configurando desde os primórdios da
ciência moderna, excluindo de seu âmbito as noções de potência, de causa eficiente ou formal, de qualidade oculta,
etc, todas de caráter metafísico ou teológico às quais se pode referir, retrospectiva e grosseiramente, o termo F. Todos
esses termos têm uma amplitude histórica e problemática completamente diferente do termo em questão, de tal
maneira que não podem lançar luzes sobre seu significado ou aos problemas a ele atinentes. Portanto, entenderemos
com o termo F. a ação causai infalível considerada como: a) diferente ou independente de qualquer agente ou forma
metafísica; ti) diferente ou independente de qualquer forma ou agente psíquico; c) suscetível de tratamento
matemático. A noção de F. também deve ser distinguida da noção de energia, apesar de os próprios cientistas terem
por vezes confundido os dois termos, ao falarem (como, p. ex., Mayer e Helmholtz) de conservação da F., quando se
trata da conservação da energia.
Neste sentido, pode-se discenir o nascimento da noção de F. nas observações de Kepler, que considerou a virtude
(virtus), à qual se devem os movimentos gravitacionais, como sujeita a todas as "necessidades matemáticas"
(Astronomia nova, III, p. 241), negando que ela pudesse ser identificada com a alma (Mysterium cosmographicum, 1621, em Opera, ed. Frisch, I, p. 176). Mas essa noção só foi definida quando se definiu com precisão
o princípio da inércia como princípio fundamental da física, com Descartes. Galilei utilizou-a com freqüência (p. ex.,
nos Disc. sulle nuovescienze, em Op., VIII, pp. 155, 344, 345, 442, 447, etc), mas não a define, como tampouco
define a noção de inércia, que também utiliza. Em relação direta com esta última, a F. é definida por Descartes, que
diz: "A F. com que um corpo age contra outro corpo ou resiste à sua ação consiste apenas em que toda a coisa
persiste, enquanto pode, no mesmo estado em que se encontra, de acordo com a primeira lei já exposta [lei da
inércia]. De tal maneira, um corpo unido a outro corpo possui F. para impedir que seja dele separado e, quando é
separado, há uma F. que impede a união; assim, quando se encontra em repouso, tem F. para permanecer em repouso
e para resistir àquilo que poderia fazê-lo mudar; assim, se se move, há uma F. para continuar mo vendo-se com a.
mesma velocidade e para o mesmo lado" (Princ. phil., II, 43). Mas foi Newton quem generalizou a noção de F.,
dando-lhe expressão matemática precisa. O segundo princípio da dinâmica newtoniana, ou seja, a proporcionalidade
entre F. e aceleração imprimida (F = ma), faz da F. uma relação entre duas grandezas, sem nenhuma referência às
essências ou qualidades ocultas, cuja inutilidade para a física era declarada pelo próprio Newton: "Pretendo dar
somente uma noção matemática das forças, sem considerar suas causas ou suas sedes físicas" (Philosophiae
naturalisprincipia mathematica, 1760, p. 5). A generalização newtoniana permitia falar de F. da gravidade, de F.
elétrica ou de F. magnética, de tal modo que, na segunda metade do séc XVIII, o conceito de F. tornou-se um dos
mais populares e difundidos. Contudo, despertou a desconfiança dos cientistas, que muitas vezes se recusavam ver
nele algo mais que simples relação causai. D'Alembert observou que, se a relação entre causa e efeito não for
considerada de natureza lógica, mas apenas baseada na experiência, a F. a distância (gravidade) não representa um
enigma maior do que a transmissão do movimento através do choque, e de fato nada mais faz que expressar, assim
como esta última, uma relação confirmada pela experiência (Élements de phil., 1759, § 17). Pelos mesmos motivos
Maupertuis queria que o conceito de F. como "causa da aceleração" fosse eliminado da
FORÇA
467
FORÇA
mecânica e substituído pelas simples determinações da medida da aceleração (Examen phi-losophique de lapreuve de
1'existence de Dieu, 1756, II, §§ 23, 26). Kant não fez mais que expressar o mesmo conceito ao dizer que "F. nada
mais é que a relação entre a substância A e qualquer outra coisa B' e que tal relação só pode ser dada pela experiência
{De mundi sensibilis et inteligibilis forma et principiis, 5 28), ou que a F. não é mais que "a causalidade da
substância", ou seja, "a relação do sujeito da causalidade com o efeito" {Crít. R. Pura, Anal. dos Princípios, cap. II,
seç. III, Segunda analogia da experiência). Deste ponto de vista, a interpretação da F. como agente causai misterioso e
inacessível, tal como se encontra, p. ex., em Spencer (First Principies, § 26), é alijada de ciência.
Contudo, com os significados atribuídos por Galilei ou Newton, a noção de F. também não predominou por muito
tempo na ciência. Leibniz já descobrira e esclarecera o conceito de F. viva, que é o produto da massa pelo quadrado
da velocidade, conceito que constitui o ponto de partida para a moderna noção de energia (Mathematische Schriften,
ed. Gerhardt, VT, pp. 218 ss.). Sua doutrina acerca da superioridade da F. sobre a matéria, que serve de termo médio
para a resolução da matéria em energia espiritual (V. adiante), baseia-se precisamente nesse conceito de energia.
Porém, no século seguinte, a descoberta da conservação da energia (1842) por Robert Mayer e a obra de Helmholtz e
de Hertz conduziram à formulação daquilo que se chamou energismo da mecânica (cf. POINCARÉ, La science et
Vhypothèse, p. 148). O energismo nega que a F. seja a "causa" do movimento e que, portanto, esteja presente antes áo
movimento, e considera a idéia de energia anterior à de F. Esta última é introduzida através de simples definição e
suas propriedades são deduzidas a partir da definição e das leis fundamentais. Portanto, no energismo a idéia de F. já
não implica dificuldade alguma: é um simples conceito convencional. Na mesma linha encontram-se os Princípios de
mecânica (1894) de Hertz, que só consideram como fundamentais as idéias de tempo, espaço e massa, considerando
derivadas as idéias de F. e de energia. Contudo, o conceito de energia continuava sendo importante em física,
sobretudo com referência ao conceito de campo (v.), enquanto o conceito de F. continuava sendo o mesmo
demonstrado pelo energismo: um nome para definir certas relações entre algumas grandezas físicas. A este propósito Russell disse: "Supõe-se que a F.
seja causa da aceleração... Mas a aceleração é uma simples ficção matemática, um número, não um fato físico...
Portanto, se a F. é causa, é causa de um efeito que não se produz" (Principies of Mathematics, 1903, p. 474)
2- As interpretações filosóficas do conceito de F. seguem à distância e com pouca fidelidade o desenvolvimento
científico do seu conceito. Todas elas obedecem a um esquema uniforme e consistem em integrar a noção de F. na
experiência humana. Esta redução pode ter duplo significado. Pode: d) ser entendida como justificação da noção e
transformá-la em conceito metafísico; b) ser entendida como crítica à noção e mostrar, com o caráter antropomórfico,
a falta de fundamento. Leibniz é o iniciador das tentativas no primeiro sentido e Locke, no segundo sentido.
d) Em Système nouveau de Ia nature (1695) Leibniz narra que, depois de se libertar do jugo de Aristóteles, acreditara
no vácuo e nos átomos, mas que, depois de muitas meditações, concluíra que as unidades últimas não podem ser
materiais e que, portanto, não podem ser átomos de matéria, mas de espírito. E acrescenta: "Era necessário, portanto,
reabilitar as formas substanciais tão desacreditadas hoje em dia, mas de tal maneira que fossem inteligíveis e
permitissem uma separação entre o uso que delas se deve fazer e o abuso que delas se tem feito. Descobri, então, que
a natureza delas consiste na F. e que disto resulta algo análogo à consciência e ao apetite, sendo, assim, necessário
concebê-las à imitação da noção que temos das almas" (Systeme, etc, § 3). Isto mostra as bases do primado que
Leibniz sempre concedeu à noção de F. em suas interpretações físicas e metafísicas: a F. é algo análogo à consciência
(sentimeni) e ao apetite, ou seja, a experiências internas do homem. É certo que Leibniz entendeu por F. a vis activa
que, como se disse, é energia. Mas isso não faz diferença do ponto de vista de sua metafísica, que é uma metafísica da
F. espiritual (cf. Nouv. ess., II, 21, § 1). Esta doutrina torna-se arquétipo de toda a corrente filosófica cujo segundo
fundador foi Maine de Biran, no início do séc. XIX. Este considera a percepção interna e imediata, vale dizer, a
consciência que o eu tem de si, como F. volitiva e ativa, como revelação do mesmo caráter originário da realidade,
que, por isso
FORÇA
468
FORMA
mesmo, seria ela mesma F. Diz: "A percepção interna ou imediata é a consciência de uma F. que é meu próprio eu e
que serve de exemplo para todas as noções gerais e universais de causa e de F." (Nouveaux essais d'anthro-pologie,
1823-24, em (Euvres, ed. Naville, III, p. 5). Praticamente na mesma época Schopen-hauer realizava a mesma
passagem da psicologia para a metafísica, reconhecendo como única F. constitutiva da essência do mundo a que o
homem percebe imediatamente em si mesmo, ou seja, a vontade (Die Welt ais Wille und Vorstellung, 1819). Isso
deve ser entendido no sentido de que ao homem mostra-se como vontade a mesma potência ativa que nas outras
partes da natureza se manifesta como F.: "Se, portanto, eu disser que a F. que faz a pedra cair no chão, em sua
essência, em si e fora de qualquer representação, é vontade, não se deverá atribuir a essa afirmação o insensato
significado de que a pedra se move segundo um motivo conhecido pelo fato de que no homem a vontade se manifesta
deste modo" (Ibid., I, § 19). Esta identificação da F. que o homem conhece pela experiência interior com a F. que age
no mundo continua constituindo a base das filosofias espiritualistas. A doutrina de Bergson, segundo a qual um elã
vital, que se revela à consciência humana como duração real, dá origem à vida penetrando e organizando a matéria
(Évol. créatr., cap. I), obedece ao mesmo critério fundamental. Mas essa postura também é assumida pelas doutrinas
materialistas: admitir, a exemplo de Haeckel (Die Wel-tràtsel, 1899), uma única F. que explica todo devir do universo
e é análoga à que se revela na consciência do homem significa obedecer à mesma interpretação da noção de F.
b) Por outro lado, a redução dessa noção a experiência interna por vezes significou uma crítica à própria noção,
porque considerada como sinal do seu caráter arbitrário. A este respeito, Locke evidenciara que a idéia de poder
(Power) derivara da reflexão do espírito sobre suas operações (Ensaio, II, 21, 4). Com o fim de defender sua
concepção do universo como linguagem ou manifestação de Deus, Berkeley foi levado a retirar o caráter realista dos
conceitos da ciência: "F., gravidade, atração e termos semelhantes convém ao fim de raciocinar e de fazer cálculos
sobre o movimento e sobre todos os corpos que se movem, mas não ao fim de compreender a natureza do próprio
movimento" (De motu, § 17; Siris, § 234). Hume por sua
vez demonstrou que nem da experiência interna nem de qualquer outra fonte o espírito pode extrair uma idéia clara e
real de F.: "E certo que ignoramos a maneira como os corpos agem um sobre o outro, e que sua F. ou energia nos é de
todo incompreensível, porém somos igualmente ignorantes sobre a maneira ou F. com que uma mente, conquanto
suprema, age sobre si mesma e sobre os corpos. De qual dessas coisas, pergunto, conseguimos fazer uma idéia?... O
que é mais difícil conceber: que o movimento nasce de um choque ou que nasce de um ato de vontade? Tudo o que
conhecemos é nossa ignorância profunda em ambos os casos" (Inq. Cone. Underst, VII, 1). Essa crítica de Hume é
clássica e, sob certo aspecto, definitiva. Mach considerou "fetichismo" o uso do conceito de F., aliás tanto quanto o de
causa, que desejava substituir pelo conceito de função (Analyse der Empfindungen, 9a ed., 1922, p. 74;
Populãwissenschaftlichen Vorlos-sugen, 1896, p. 259; trad. in., 1943, p. 254). Por outro lado, pelo fato de esse
conceito ter deixado de despertar o interesse da ciência também deixou de ter interesse para a crítica metodológica.
Portanto, hoje se apresenta como conceito científico antiquado, que serve de pretexto (embora cada vez mais
raramente) para especulações metafísicas (cf. MAX JAMMER, Concepts of Force, 1957: obra rica de informações
conquanto dúbia e confusa ao delimitar a noção de que trata).
FORMA (gr. nopípií, eiSoç; lat. Forma; in. Fomi; fr. Forme, ai. Form; it. Forma). Esse termo tem as seguintes
significações principais:
\- Essência necessária ou substância das coisas que têm matéria. Nesse sentido, que está presente em Aristóteles, F.
não só se opõe a matéria, mas a pressupõe. Aristóteles usa, portanto, esse termo com referência às coisas naturais que
são compostas de matéria e F., e observa que a F. é mais "natureza" que a matéria, uma vez que de uma coisa diz-se
aquilo que ela é em ato (a F.), e não o que é em potência (Fís., II, 1, 193 b 28; Met., IV, 1015 a 11). Desse ponto de
vista, não se pode dizer que são F. as substâncias imóveis (Deus e as inteligências motrizes), que são isentas de
matéria, mas são F. as substâncias naturais em movimento. Donde a polêmica de Aristóteles contra o plato-nismo,
com o objetivo de afirmar a insepa-rabilidade entre F. e matéria. Os escolásticos não se ativeram rigorosamente a essa
terminologia aristotélica e estenderam o termo F. a
FORMA
469
FORMA
qualquer substância, falando de "F. separadas" para indicar as idéias existentes na mente de Deus (ALBERTO MAGNO,
S. Th., I, q. 6; S. TOMÁS, S. Th., I, q. 15 a. 1) e de "F. subsistentes" para indicar os anjos que não têm corpo e,
portanto, não têm matéria (S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 50 a. 2). Além disso, falavam de "F. substanciais ou de F.
acidentais" {Ibid., I, q. 76 a. 1), sendo esta última expressão, do ponto de vista aristotélico, no mínimo contraditória.
Gil-' berto Porretano (séc. XII), em Desexprincipiis, separara as F. inerentes, correspondentes às primeiras quatro
categorias de Aristóteles (substância, qualidade, quantidade, relação) das F. assistentes, correspondentes às outras
categorias aristotélicas, de caracteres que não constituem a substância das coisas. Em todos os casos, a F. conserva os
caracteres que Aristóteles lhe havia atribuído: é causa ou razão de ser da coisa, aquilo em virtude do que uma coisa é
o que é; é ato ou atualidade da coisa, por isso o princípio e o fim do seu devir.
O conceito de F. assim entendido foi e continua sendo empregado também fora do aristo-telismo e de seus derivados.
Não possui determinações diferentes das aqui apontadas a F. de que fala Bacon como objeto da ciência natural: essa
F. é ato e causa eficiente, tanto quanto a F. aristotélica {Nov. Org. II, 17), e distingue-se desta apenas porque, como
pensava Aristóteles, não pode ser apreendida pelo procedimento dedutivo ou pelo intelecto intuitivo, mas só pela
indução experimental. Descartes refere-se à significação tradicional da palavra quando nega que existam "as F. ou
qualidades sobre as quais se discute nas escolas" {Discours, V). E é com o mesmo significado que essa palavra é
usada por Bergson, ao afirmar que "F. é um instantâneo de uma transição", ou seja, uma espécie de imagem
intermediária da qual se aproximam as imagens reais em sua mudança e que é pressuposta como "a essência da coisa
ou a coisa mesma" {Évol. créatr., IV ed., 1911, p. 327).
Deste conceito de F. aproxima-se o sentido com que essa palavra é usada por Hegel, como "totalidade das
determinações", que é a essência no seu manifestar-se como fenômeno {Ene, § 129). Nesse sentido, F. é o modo de
manifestar-se da essência ou substância de uma coisa, na medida em que esse modo de manifestar-se coincide com a
própria essência. É nesse sentido que Hegel empregava habitualmente essa palavra, p. ex. quando dizia: "O
conteúdo humano da consciência, produzido pelo pensamento, nâo aparece primeiro em F. de pensamento, mas como
sentimento, intuição, representação, F. que devem ser dis-tinguidas do pensamento como F." {Ene, § 2). Foi
exatamente com esse sentido que Croce e Gentile falaram de "formas do espírito", seja para estabelecer, seja para
negar sua diversidade.
2- Uma relação ou um conjunto de relações (ordem) que pode conservar-se constante com a variação dos termos entre
os quais se situa. P. ex., a relação "Se p, então q" pode ser assumida como a F. da inferência, porque permanece
constante quaisquer que sejam as proposições pe centre as quais se situa. Assim, diz-se habitualmente que a
matemática é uma ciência formal porque o que ela ensina nâo vale apenas para certos conjuntos de coisas, mas para
todos os conjuntos possíveis, já que versa sobre certas relações gerais que constituem o aspecto formal das coisas.
Nesse sentido, a palavra F. foi usada pela primeira vez por Tetens, para indicar as relações estabelecidas pelo
pensamento entre as representações sensíveis que, por sua vez, constituiriam a "matéria" do conhecer {Philosophische Versuche über die menschliche Natur, 1776, I, p. 336). Kant fez distinção análoga na dissertação de 1770: "À
representação pertence, em primeiro lugar, alguma coisa que se pode chamar de matéria, que é a sensação, e, em
segundo lugar, aquilo que se pode chamar de F. ou espécie das coisas sensíveis, que serve para coordenar, por meio
de certa lei natural da alma, as várias coisas que impressionam os sentidos" {De mundi sensibilis et intelligibilis
forma et ratione, § 4). Essa distinção entre matéria e F. foi o ponto de partida de toda a filosofia kantiana, mas Kant
nunca alterou o significado de F., que continuou sendo relação ou conjunto de relações, isto é, ordem. Escreveu em
Prolegômenos (§ 17): "O elemento formal da natureza é a regularidade de todos os objetos da experiência."
Analogamente, a F. dos princípios morais é a simples relação na qual uma lei se encontra com os seres racionais, ou
seja, sua validade para todos esses seres, sua universalidade {Crit. R. Prática, § 4). A partir de Kant o sentido dessa
palavra nunca deixou de ser o de relação generalizável, ordem, coordenação ou, mais simplesmente, universalidade.
Nesse sentido, Kant distinguiu matéria e F. no conceito: "A matéria do conceito é o objeto; a F. dele é a
universalidade" {Logik.,
FORMA
470
FORMAL
Elementarlehre, § 2). É neste sentido que hoje os lógicos utilizam essa palavra para caracterizar o objeto de sua
ciência. Era a ele que Peirce se referia (Coll. Pap., 4.611), e é a ele que, mais recentemente, referem-se Strawson
(Lntr. to Logical Theory, 1952, p. 41), Prior (Formal Logic, 1955, § 1) e Church (Lntroduction to Mathematical
Logic, 1956, § 00). Carnap disse: "Uma teoria, uma regra, uma definição ou coisas semelhantes devem ser chamadas
de formais quando não fazem nenhuma referência ao significado dos símbolos (p. ex., das palavras) ou ao sentido das
expressões (p. ex., dos enunciados), mas unicamente às espécies e à ordem dos símbolos com os quais as expressões
são construídas" (Logische Syntax der Sprache, 1934, § 1).
É a esse significado de ordem ou relação que está ligado o uso da palavra F. (Gestali) na psicologia contemporânea,
ao se ressaltar o fato experimental de que impressões simultâneas não são independentes umas das outras, como se
fossem pedaços de um mosaico, mas constituem uma unidade com ordem definível (v. PSICOLOGIA). NO mesmo
sentido, Born propôs que sejam consideradas como "F. das coisas físicas as invariantes das equações, que têm a
mesma realidade objetiva das coisas que nos são familiares" (Experiments and Theory in Physics, 1943, pp. 12-13).
Na própria estética há pelo menos uma significação na qual a palavra F. pode ser reintegrada na significação de
ordem ou organização das partes; é a significação esclarecida por Dewey: "Só quando as partes constitutivas de um
todo têm o fim único de contribuir para a perfeição de uma experiência consciente é que o desenho e a imagem
perdem o caráter sobreposto e tornam-se F." (Art as Experience, cap. VI; trad. it., p. 140). Aproxima-se dessa mesma
significação o uso da palavra por Focillon: "As relações formais em uma obra e entre as várias obras constituem uma
ordem, uma metáfora do universo" (Viedesformes, 1934, trad. it., p. 53). Em geral, pode-se dizer que, no âmbito desse
significado, passa-se à consideração da F. todas as vezes em que certa relação é generalizada, vale dizer, considerada
válida para certo número de termos ou de casos possíveis, ou quando não são considerados os termos entre os quais
está uma ordem, para atribuir importância ou significado somente a essa ordem.
3a Uma norma de procedimento. Nesse sentido, fala-se de F. em direito, no sentido de que
uma "questão de F." diz respeito à relação entre o caso em exame e as normas de procedimento, e não ao problema
que constitui a substância ou o mérito do caso. Às vezes o recurso à "F." expressa a exigência de autonomia num
procedimento ou numa técnica. Esta é, freqüentemente, a significação da insistência no caráter formal da arte.
Quando, em arte, o recurso à F. não expressa exigência de organização e ordem (que diz respeito ao significado 2 Q),
expressa a exigência de que os procedimentos ou as técnicas da arte sejam independentes dos procedimentos ou das
técnicas de outras atividades, como o conhecimento, a moral, etc. (cf. CROCE, Bre-viãrio de estética, p. 53). Nesse
sentido, passa-se a considerações formais, em certo campo, quando se reconhece a independência entre as técnicas
utilizáveis nesse campo e as empregadas em outros campos.
FORMA, PSICOLOGIA DA. V. PSICOLOGIA
FORMAÇÃO (ai. Bildung). No sentido específico que esta palavra assume em filosofia e em pedagogia, em relação
com o termo alemão correspondente, indica o processo de educação ou de civilização, que se expressa nas duas
significações de cultura, entendida como educação e como sistema de valores simbólicos (v. Cultura).
FORMAIS, CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.
FORMAL (in. Formal; fr. Formei; ai. Formal; it. Formalé). 1. Em correspondência com o 1B significado de forma:
aquilo que pertence à essência ou substância da coisa, por isso essencial, substancial, atual. Nesse sentido essa
palavra foi empregada pelos escolásticos, por Descartes (Méd., III, // Réponses, def. IV) e por Spinoza (Et., II, 8). A
esta significação refere-se também o uso que Duns Scot faz do termo nas expressões "distinção F." ou "razão F.".
Distinção F. é uma distinção de essência ou natureza, mas sem implicar separação numérica: ela intercede, p. ex.,
entre a natureza comum e a individualidade das coisas ou entre as várias perfei-ções de Deus (Op. Ox., I, d. 8, q. 4, n.
17).
2. Em correspondência com o 2- significado de forma: o que pertence a uma relação ge-neralizável ou então à ordem
ou coordenação das partes. Nesse sentido, essa palavra é empregada na lógica, na matemática moderna e na estética.
Em lógica esse termo foi amplamente utilizado num sentido intuitivamente claro, mas nunca
FORMALISMO
471
FORTALEZA
determinado completamente. Na lógica medieval, formalis tem a significação fundamental de "inerente à forma",
portanto "essencial", mas também — por conseguinte — "universal", "válido para todo conteúdo empírico relativo a
certa forma"; por esta razão, como última significação, "independente da natureza empírica dos conteúdos". Foi com
esse sentido que esse termo passou para a lógica moderna e contemporânea: a partir de Leibniz, os termos "forma" (p.
ex., os arguments en forme na terminologia leibniziana) e "F." indicam certos esquemas, fórmulas, etc, em que os
termos descritivos são substituídos por símbolos ("variáveis"), e portanto as propriedades, as relações, as
conseqüências, etc, do esquema ou fórmula vigoram independentemente de qualquer possível designação dos termos
significativos nela presentes.
3. Em correspondência com o 3a significado da palavra "forma": aquilo que pertence ao procedimento, seja legal, de
etiqueta, etc.
G. P.-N. A.
FORMALISMO (in. Formalism; fr. Formalis-me,ai. Formalismus, it. Formalismó).Todadoutrina que recorra à
forma, em qualquer das significações do termo. No fim do séc XIV, foram chamados de "formalistas" os partidários
da metafísica de Duns Scot, que se opunham aos "terministas", partidários de Ockham (GERSON, De conceptibus, p.
806). Foi qualificado de F. o ponto de vista kantiano em ética, por recorrer às formas gerais das máximas, sem
considerar os fins a que se destinam. Em matemática foi chamado de F. o procedimento que pretende prescindir dos
significados dos símbolos matemáticos, especialmente a corrente de Hilbert. Também é considerada F. a grande
importância atribuída aos procedimentos legais ou a certas normas de comportamento nas relações entre os homens.
FORMALIZAÇÃO (in. Formalisation; fr. Formalisation; ai. Formalisation; it. Formaliz-zazioné). Este termo é
característico da lógica e da filosofia da ciência contemporânea. Com "F. de uma teoria" entende-se o procedimento
com que é construído um sistema meramente sintático de símbolos S, regido por alguns axio-mas (e, eventualmente,
por regras práticas de formação e derivação das fórmulas), dos quais, de acordo com as normas sintáticas do próprio
sistema, derivam fórmulas que constituem transformações tautológicas do grupo de axio-mas. Esse sistema sintático
puro S constitui uma F. de dada teoria T (p. ex., da aritmética dos números inteiros, da teoria dos conjuntos, ou do cálculo lógico elementar) sempre que 7 seja uma interpretação
verdadeira e possivelmente Z-verdadeira de S. Em geral, todas as teorias fundamentais das matemáticas puras
contemporâneas foram alvo de F.; ainda não está completamente resolvido o problema da F. da lógica e, em geral,
das metalinguagens empregadas para a F. das teorias matemáticas. Entre outras coisas, uma das maiores dificuldades
para essa formalização de segundo grau é representada por um conhecido teorema (de Gõdel), segundo o qual uma
teoria formalizada não pode conter a prova de sua própria não contradição (v.
AXIOMATIZAÇÃO; MATEMÁTICA).
G. P.
FORMALIZADA, LINGUAGEM. V SISTEMA
LOGÍSTICO.
FORMAS, PLURALIDADE DAS. V AGOS
TINISMO.
FÓRMULA (in. Formula; fr. Formule, ai. Formei; it. Formula). 1. Elemento de um cálculo (v.). Nesse sentido, a F.
distingue-se da proposição, que é o elemento de um sistema semântico (CARNAP, Foundations of Logic and
Mathematics, § 9).
2. O mesmo que enunciado ou proposição.
3. Mais em geral: uma seqüência finita linear de símbolos primitivos. Foi assim que A. Church definiu a F.,
chamando de "F. bem formada" a F. que atende a certas regras fundamentais de uma linguagem ilntr. to Mathematical Logic, 1956, § 7).
FÓRMULA IDEAL. Foi essa denominação dada por Gioberti à "proposição que expressa a Idéia de modo claro,
simples e preciso", como a seguinte: "O Ente cria o existente, o existente retorna ao Ente" (Jntr. ao estudo da
filosofia, 1840, II, pp. 147, 174; III, p. 3). A F. I. expressa o conceito neoplatônico de que o mundo provém de Deus e
voltará a Deus através do homem.
FORO ÍNTIMO (fr. For intérieur). Esta expressão origina-se da antiga frase francesa, ainda usada, e significa o
tribunal da consciência (v.).
FORONOMIA (in. Phoronomics; fr. Pho-ronomie, ai. Phoronomie, it. Foronomid). Palavra criada por Lambert para
indicar a doutrina que estuda as leis do movimento iNeues Or-ganon, 1764), e retomada por Kant com sentido
análogo (Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft, 1786).
FORTALEZA. V. CORAGEM.
FORTUNA
472
FUNÇÃO
FORTUNA. V. SORTE.
FORTUITO. O que é devido à sorte ou ao acaso (v.).
FRENOLOGLA (in. Phrenology, fr. Phréno-logie, ai. Phrenologie, it. Frenologid). Doutrina que estuda as
correspondências entre as disposições espirituais e a forma do crânio, especialmente suas protuberâncias. Essa
doutrina foi sistematizada por F. J. Gall num livro intitulado Anatomia efisiologia do sistema nervoso {Anatomie
etphysiologie du système nerveux, 1810). Hegel deu muita importância a esta pretensa ciência, enquanto dava muito
menos importância a ciências mais sérias, discutindo-a longamente em Fenomenologia do espírito (I, parte 1, cap. V).
Na verdade, esta obra (1807) é anterior à publicação da obra de Gall, mas o conteúdo desta última era conhecido
graças às exposições que Gall fazia durante suas viagens à Europa.
FREUDISMO. V. PSICANÁLISE.
FRISESOM (ORUM). Palavra mnemônica usada pelos escolásticos para indicar o nono modo da primeira figura do
silogismo, precisamente o que consiste em uma premissa particular afirmativa, uma premissa universal negativa e
uma conclusão particular negativa, como no exemplo: "Alguns animais são substância; nenhuma pedra é animal;
logo, algumas substâncias não são pedra" (PEDRO HISPANO, Summ. log., 4. 09)
FRISESOSOM. Palavra mnemônica usada pela Lógica de Port-Royal para indicar o nono modo do silogismo de
primeira figura (Frisesomorum) com a diferença de assumir como premissa maior a proposição em que está o
predicado da conclusão. O exemplo é o seguinte: "Nenhum infeliz está contente; há pessoas contentes que são pobres;
logo, há pobres que não são infelizes" (ARNAULD, Log., III, 8).
FRUIÇÃO (lat. Fruitio-, in. Fruition; fr. Frui-tion; ai. Genus, it. Fruizioné). Na Escolástica medieval foi assim
chamado o usufruto de Deus por parte do homem ou, em geral, por parte das criaturas racionais, na medida em que
Ele constitui o fim último delas (cf. S. TOMÁS, S. Th., II, 1, q. 11, a. 3). A distinção entre a F. de Deus e uso das coisas
já fora considerada fundamental por Pedro Lombardo, servindo de base as seções de seu Livro das sentenças (séc.
XII). Também encontramos a distinção entre uso e F. em Hobbes: "Do bem que desejamos por si mesmo não fazemos
uso, visto que o uso
é das coisas que servem de meios e de instrumentos, mas a fruitio é como o fim da coisa proposta" {De bom., XI, §
5). Às vezes essa palavra é usada em sentido análogo na filosofia contemporânea, p. ex. por Dewey (Experience and
Nature, 1926, cap. 3), outras vezes com significação diferente como em S. Alexander {Space, Time andDeity, 1920),
indicando a percepção imediata que a consciência tem de si mesma (percepção imanente no sentido de Husserl) (v.
CONSCIÊNCIA). Whitehead falou de autofruição {Autofruitiori) como característica da vida, porquanto esta se apropria
dos processos físicos da natureza {Nature and Life, 1934, II).
FUGA (ai. Fluchi). Heidegger chamou de F. de si mesmo o homem entregar-se à banalidade da existência cotidiana.
O retorno dessa F. é a angústia (v.), na qual o homem enfrenta sua maior possibilidade, que é a da morte {Sein
undZeit, §§ 40, 41). Para o conceito de "F. do mundo", cf. ABBAGNANO, Introdução ao exis-tencialismo, 1942, IV, §
4.
FULGURAÇÃO (in. Fulguration; fr. Fulgu-ration; it. Fulgurazioné). Termo com o qual Leibniz indicou o modo
como as mônadas dimanam de Deus, porquanto nascem "por assim dizer por meio de F. contínuas da divindade de
momento em momento" {Monad., § 47). Esse termo pretende ressaltar a continuidade da criação divina.
FUNÇÃO (in. Function; fr. Fonction-, ai. Funktion; it. Funzioné). Esse termo tem duas significações fundamentais:
Ia Operação. Neste significado o termo corresponde à palavra grega ergon, do modo como é empregada por Platão,
quando diz que a F. dos olhos é ver, a F. dos ouvidos é ouvir, que cada virtude é uma F. de determinada parte da alma
e que a F. da alma, em seu conjunto, é comandar e dirigir {Rep., I, 352 ss.). F., nesse sentido, é a operação própria da
coisa, no sentido de ser aquilo que a coisa faz melhor do que as outras coisas {Ibid., 353 a). Aristóteles emprega esse
termo com o mesmo sentido, quando, em Ética a Nicômaco, procura descobrir qual é a F. ou a operação própria do
homem como ser racional {Et. nic, I, 7). Além disso, insiste no caráter finalista e realizador da F.: "a F. é o fim, e o
ato é a F." {Met., IX, I, 1050 a 21). Essa palavra é usada freqüentemente com esta significação tanto na linguagem
científica quanto na comum. Em filosofia, Kant chamou de F. os conceitos que "se baseiam na
FUNÇÃO
473
FUNÇÃO
espontaneidade do pensamento, assim como as intuições sensíveis se baseiam na receptividade das impressões". Em
outras palavras, os conceitos são F. porque são atividade, operações, e não modificações passivas como as impressões
sensíveis. A F. conceptual é definida por Kant como "unidade do ato de ordenar diversas representações sob uma
representação comum" \Crit. R. Pura, Anal. transe, cap. I, seç. 1). Com sentido análogo, Husserl entende por F. a
atividade da consciência que tenha um fim, de tal modo que a consideração funcional substitui a descrição e a
classificação das vivências individuais pela consideração "do ponto de vista teleológico de sua F., que é a de
possibilitar uma unidade sintética" (Ideen, I, § 86). A distinção introduzida por C. Stumpf entre aparições e F.
psíquicas tem o mesmo fundamento: as F. são operações, enquanto as aparições são modificações passivas
(Erscheinungen und psy-chische Funktionen, 1907). Scheler introduziu a mesma distinção entre estados e F.
emotivas: em relação ao estado emotivo, a F. é a reação ativa no sentido, p. ex., de que a simpatia é uma F. que não
pressupõe uma modificação emotiva passiva na pessoa que a sente (Sym-pathie, I, cap. 3; trad. fr., p. 69). O conceito
de operação para um fim ou capaz de realizar um fim também está implícito no uso dessa noção pelas ciências
biológicas e sociais. Em biologia, F. é a operação por meio da qual uma parte ou um processo do organismo contribui
para a conservação do organismo total (cf., p. ex., BERTALANFFY, Modem Theories ofDevelopment, Nova York, 1933,
pp. 9 ss., 184 ss.). Em sociologia a F. foi definida por Durkheim {Règles de Ia méthode sociologique, 1895) como a
correspondência entre uma instituição e as necessidades de um organismo social, vale dizer, como a atividade pela
qual uma instituição contribui para a manutenção do organismo. Com o mesmo espírito, Radcliffe-Brown define a F.
de uma atividade social recorrente (como, p. ex., a punição dos crimes ou uma cerimônia funerária) como "o papel
que ela desempenha na vida social como um todo e, por isso, a contribuição que ela dá para a manutenção da
continuidade estrutural" (Structure and Function in Primitive Society, 1952, p. 180). A significação de operação ou
de ação dirigida para um fim e capaz de realizá-lo predomina em todas essas noções.
2a Relação. No final do séc. XVI, o grupo de matemáticos ao qual pertencia Leibniz — e talvez por iniciativa pessoal deste último (v. Mathematische Schriften, ed. Gerhardt, I, p. 268) — inferiu do significado
acima o conceito matemático de F., mas a primeira tentativa de defini-lo foi feita por Johann Bernouilli em 1718 (cf.
Opera, 1742, II, p. 241). Hoje em dia, as definições que os matemáticos dão desse conceito de F. variam muito, mas
em geral podemos dizer que se trata de uma regra que une as variações de certo termo ou de um grupo de termos com
as variações de outro termo ou grupo de termos. Na F. distingue-se a variável dependente, que é a própria F., e as
variáveis independentes ou argumentos (v.), cujas variações são consideradas dadas ou determináveis
arbitrariamente. Peirce afirma: "Dizer que uma quantidade é a F. dada de certas quantidades que valem como
argumentos significa dizer simplesmente que os valores deles estão em dada relação com os valores dos argumentos,
ou que uma proposição dada é verdadeira em todo o conjunto de valores de sua ordem. Dizer simplesmente que uma
quantidade é uma F. de certas outras significa nada dizer, já que se pode dizer o mesmo de cada conjunto de valores.
Isso todavia não torna inútil a palavra F., assim como dizer que um conjunto de coisas que têm entre si alguma
relação não torna inútil a palavra relação." Desse ponto de vista, F. é a operação de aplicar efetivamente a regra que
interliga as variações de dois conjuntos de quantidades de tal modo que se encontrem os valores de algumas dessas
quantidades quando os outros são dados (Coll. Pap., 4, 253). A lógica contemporânea adotou o conceito matemático
de função; emprega o símbolo matemático de F.,f(x), para indicar proposições da forma "a baleia é um mamífero",
em que o símbolo x representa o argumento, o sujeito do qual se fala (a baleia ou outro mamífero qualquer), ef
corresponde à propriedade que se lhe atribui (mamífero). O sinal/também é chamado de F. proporcional ou
predicado. O objeto ao qual ele corresponde, ou seja, a propriedade denotada, chama-se também F. situacional. Ser
mamífero é, p. ex., a propriedade ou F. situacional denotada pelo predicado ou F. proposicional "mamífero".
O uso do conceito de F. nas ciências tende a suplantar o do conceito de causa, podendo ser considerado eqüipolente
ao uso do conceito de condição. Expressa a interdependência dos fenômenos e permite a determinação quantitativa
dessa interdependência sem pressupor ou
FUNÇÃO PROPOSICIONAL
474
FUNDAMENTO
assumir nada sobre a produção de um fenômeno por parte de outro. Já em 1886 Mach teria sugerido que o conceito
de F. deveria suplantar o conceito tradicional de causalidade, por entender a dependência recíproca dos fenômenos
(Analyse der Empfindungen, 9a ed., 1922, p. 74). Num estudo de 1910 (Substanzbegriff und FunktionsbegrifJ)
Cassirer mostrava a re-dutibilidade de boa parte das noções científicas ao conceito de função. Mais recentemente,
Dewey insistiu na diferença de significado que esse conceito tem em física e em matemática. Quando se diz "o
volume de um gás é F. da temperatura e da pressão", descobre-se e verifica-se esta fórmula com operações de
observação experimental: portanto, a fórmula é contingente, assim como é contingente a relação que ela determina.
Contudo, no caso da proposição y = x2, cada operação que confere um valor a x ouaj) institui necessariamente uma
modificação correspondente no valor do outro membro da equação, e a operação de atribuir um valor é inteiramente
determinada pelo sistema do qual a equação faz parte (Logic, cap. XX, § 5; trad. it., p. 539). Mas obviamente esta
diferença não modifica o próprio conceito de F., cujas características permanecem constantes em todas as ciências
contemporâneas que o utilizam amplamente.
FUNÇÃO PROPOSICIONAL (in. Proposi-tional function-, fr. Fonction propositionnelle, ai. Funktion; it.
Funzioneproposizionalé). Esta noção, introduzida por Frege (1879) e mais tarde amplamente desenvolvida por
Russell e Whitehead em Principia mathematica, hoje é o objeto de um dos capítulos fundamentais da Lógica. A F.
proposicional é uma F. que, conforme o número das variáveis independentes, é chamada de monádica, diádica..., nádica, cuja substituição por símbolos denotados produz proposições que são seus valores. P. ex.: "Sócrates é mortal"
é um valor da F. proposicional monádica, "x é mortal". Se a F. proposicional é monádica, também é chamada de
predicado (Russell) ou de propriedade, de outra maneira, é chamada de relação (diádica, triádica..., n-ádica). A F.
proposicional também é passível de outras operações (e nisso reside seu grande interesse para a Lógica) que a
transformam em símbolos designantes: assim, uma F. "í> x" é transformada pelo operador "todos" [na notação de
Russell, "(x)."] na proposição universal "todos os xsão O" [na notação de Russell, "Ge) O x"]; pelo operador
existencial [na notação de
Russell, "(3x)"], na proposição particular "pelo menos um xé í>" [na notação de Russell, "(3x). Ox"]\ pelo operador
"x" (na notação de Russell) ou X (na notação mais recente) é transformada na descrição abstrata da classe dos x que
são 3> [na notação de Russell, "x í> x" ou "\<S>x"].
FUNCIONAL (in. Functional; fr. Fonction-nel; ai. Funktional; it. Funzionalé). As significações deste adjetivo
correspondem às significações fundamentais do substantivo correspondente. Ao Ia significado correspondem os das
expressões "psicologia F." ou "análise sociológica F.". Ao 2 a significado correspondem os significados das
expressões "correlação F." ou "cálculo F.". A psicologia F., cujos fundamentos foram defendidos especialmente por
Peirce, James, Mead e Dewey, considera os processos mentais como operações através das quais o organismo
biológico adapta-se ao ambiente e o domina (cf. MORRIS, Six Theories o/Mind, Chicago, 1932, cap. VI). A análise F.
em sociologia tende a mostrar "o papel que as instituições, desempenham na totalidade de um sistema cultural", como
afirma Malinowski, ou, em outros termos, a contribuição que uma instituição dá para a manutenção do conjunto
social de que faz parte (MERTON, Social Theory and Social Structure, 1957, pp. 20 ss.). Por outro lado, "correlação
F." é uma relação de dependência recíproca, de acordo com o 2 a significado de função. "Cálculo F." é aquela parte da
lógica que analisa a estrutura interna das proposições, indicadas pelo símbolo f (x).
FUNCIONALISMO. V. PSICOLOGIA, F.
FUNCTOR (in. Functor, fr. Functor, ai. Funktor, it. Funtoré). Com esse termo os lógicos indicam o sinal de uma
função não proposicional, isto é, numérica (REICHENBACH, Elements ofSymbolic Logic, 1947, p. 312; CAR-NAP,
Meaning and Necessity, § 2).
FUNDAMENTO (gr. aixía, Kójoç, lat. Ratio, in. Foundation; fr. Fondement; ai. Grund; it. Fondamentó), Causa, no
sentido de razão de ser. Esta é uma das significações principais do termo "causa", graças à qual contém a explicação e
justificação racional da coisa da qual é causa. Aristóteles diz: "Acreditamos conhecer um objeto de maneira absoluta
— não acidentalmente ou de modo sofistico — quando acreditamos conhecer a causa por que a coisa é e acreditamos
conhecer que ela é causa da coisa e que esta não pode ser de outra maneira" (An. post., I, 2, 71b 8). Nesse senti-
FUNDAMENTO
475
FUNDAMENTO
do, causa é razão, logos {De part an., I, 1, 639 b 15), pois não só permite compreender a ocorrência de fato da coisa,
mas também o seu "não poder ser de outra maneira", sua necessidade racional. Na doutrina aristotélica, portanto,
assim como em todas as que dela provêm, a causa-razão é um conceito ontológico que expressa a necessidade do ser
enquanto substância. É nesse sentido que Hegel usa esse conceito: "O F. é a essência que é em si e esta é
essencialmente F.; e F. só é como F. de alguma coisa, de um outro" {Ene, § 121). De fato, nesse sentido F. é "a
essência posta como totalidade" {Ibid., % 121), a razão da necessidade de uma coisa, como julgava Aristóteles.
Em Leibniz, todavia, essa noção adquiriu sentido diferente e específico, distinguindo-se nitidamente da noção de
causa essencial ou substância necessária: passa a designar uma conexão falha de necessidade, mas capaz de
possibilitar o entendimento ou a justificação da coisa; o princípio desta conexão é chamado de princípio de razão
suficiente (Princi-pium rationis sufficientis, Satz vom zureí-chenden Grunde). Leibniz chega à formulação desse
princípio através da contraposição entre a conexão livre mas determinante e a conexão necessitante. Ele diz: "A
conexão ou concate-nação é de duas espécies: uma é absolutamente necessária, de tal modo que seu contrário implica
contradição, e tal conexão verifica-se nas verdades eternas, como as da geometria; a segunda só é necessária ex
hypothesi e, por assim dizer, por acidente, sendo contingente em si mesma, uma vez que o seu contrário não implica
contradição." Esta segunda conexão verifica-se na relação entre uma substância individual e suas ações: p. ex., o
fundamento do fato de César ter atravessado o Rubicão está, sem dúvida, na própria natureza de César, mas isso não
indica que esse acontecimento seja necessário em si mesmo ou que o seu contrário implique contradição. Da mesma
maneira, Deus sempre escolhe o melhor, mas escolhe-o livremente, e o contrário do que escolhe não implica
contradição. "Toda verdade fundada nesses tipos de decretos é contingente, conquanto certa, porque esses decretos
não mudam a possibilidade das coisas; e apesar de Deus, como já disse, sempre escolher indubitavelmente o melhor,
isso não impede que o que é menos perfeito não seja e continue possível em si mesmo, ainda que não aconteça,
porque não é sua impossibilidade que o faz repelir, mas sua
imperfeição. Ora, nada é necessário cujo oposto seja possível" {Disc. de mét., 1686, § 13). Como mostram os textos
de Leibniz, o F. ou razão suficiente tem uma capacidade explicativa diferente da causa ou razão de ser de Aristóteles.
Esta última explica a necessidade das coisas, por que a coisa não pode ser diferente do que é. O fundamento ou razão
suficiente explica a possibilidade da coisa, explica por que a coisa pode ser ou comportar-se de certa maneira. Foi
exatamente por isso que Leibniz destinou o princípio de razão suficiente a servir de fundamento das verdades
contingentes, continuando a admitir, como fizera Aristóteles, o princípio de contradição como base das verdades
necessárias {De scientia universali, em Opera, ed. Erdmann, p. 83). Todavia, foi só Kristian Wolff que atribuiu ao
princípio do F. (ou princípio da razão suficiente) a condição de princípio de toda a filosofia e do seu método. Foi com
base nele que Wolff definiu a filosofia como "ciência das coisas possíveis e enquanto podem existir" {Log., Disc.
prael., § 29) e considerou como tarefa fundamental dela dar a "razão pela qual as coisas possíveis podem chegar a
ser" (Jbid., § 31). Desse ponto de vista, toda a atividade filosófica consiste na determinação do F. {ratio, Grund),
entendendo por F. "a razão pela qual alguma coisa é ou acontece" {Ibid., § 4). Wolff, todavia, reintegrava o princípio
de razão suficiente na significação necessarista. Dis-tinguia o principium essendi, que contém a razão da
possibilidade da coisa, do principium fiendi (ou do acontecer) que contém a razão da realidade {Ont., § 874), bem
como o principium cognoscendi, com o qual entendia "a proposição por meio da qual se conhece a verdade de outra
proposição" {Ibid., § 876). Está claro que tanto o principium fiendi (que é o princípio da causalidade) quanto o
principium cognoscendi (que é a demonstração) têm caráter necessitante, aliás também presente na obra de
Baumgarten, que tende a integrá-lo no de contradição {Met., § 20). Esta tendência era predominante na escola
wolfiana (cf. CASSIRER. Erkenntnissproblem, VII, cap. 3; trad. it., II, pp. 596 ss.) e só sofreu a oposição de Crusius,
que insistia na distinção do princípio de razão suficiente do princípio de causalidade, justamente para excluir do
primeiro o caráter necessitante {De usu et limitibusprincipii rationis determi-nantis, 1743, § 4), correção que Kant
aceitou numa de suas primeiras obras {Principionim primorum cognitionis metaphysicae nova
FUNDAMENTO
476
FUTUROLOGIA
dilucidatio, 1755). Depois de Crusius, todavia, o caráter não necessitante do princípio de razão suficiente — caráter
que convencera Leibniz de admiti-lo como um princípio em si — desapareceu completamente. A mesma distinção
estabelecida por Crusius entre princípio de razão suficiente e princípio de causalidade serviu para considerar os dois
princípios como duas expressões do princípio de necessidade. Esse foi justamente o caminho seguido por Schopenhauer em sua obra Die vierfache Wurzel des Satzes vom zureichenden Grunde (1813). Schopenhauer enumerava
quatro formas do princípio de razão suficiente, ou seja, ao lado das duas distinguidas por Crusius, punha o princípio
de razão suficiente do ser, que rege as relações entre os entes matemáticos, e o princípio de razão suficiente do agir,
que rege as relações entre as ações e seus motivos. Contudo, o caráter não necessitante do F. é confu-samente
reconhecido nos seus usos metafísicos. Schelling, em Untersuchungen überdas Wesen der menschlichen
Freiheit(\809), entendeu por F. o desejo ou a vontade de viver, de que depende tanto a existência do homem quanto a
de Deus. Neste sentido, F. não é, obviamente, uma causa necessitante. Com sentido análogo, Heidegger disse: "a
liberdade é o F. do F.". Explica: "A liberdade, por ser o fundo deste F., também é o abismo (sem fundo) do ser-aí.
Não que seja infundado o relacionamento individual e livre, mas no sentido de que a liberdade, em sua natureza
essencial de transcendência, põe o ser-aí, como poder-ser em possibilidades que se estendem diante de sua escolha
finita, ou seja, em seu destino" (Vom Wesen des Grundes, 1928, III; trad. it., pp. 77-78). Em outras palavras, para a
existência humana o F. é o enraizamento no mundo, em virtude do que possibilidades projetadas são limitadas e
comandadas pelo próprio mundo. O F. expressa o condicionamento que o mundo exerce sobre o homem em virtude
do seu enraizamento no mundo.
Emerge claramente desses textos o traço característico da noção em exame, que é expressar um condicionamento não
necessitante. Essa é de fato a significação mais comum e geral do termo tanto na linguagem comum quanto na
filosófica. F. é o que explica uma preferência, uma escolha, a realização de uma alternativa e não de outra. Fala-se em
F. todas as vezes em que a preferência ou a escolha é justificada ou quando a realização da alternativa é explicável.
Do mesmo modo, princípio "fundamental" é o que estabelece a condição primeira e mais geral pela qual alguma coisa
possa existir, e ciência fundamental é a que contém as condições que tornam possíveis as outras ciências (nesse
sentido Wolff chamava a ontologia de Grundwissenschafi). Pode-se dizer, portanto, que no uso moderno essa palavra
não tem significação diferente de condição (v.).
O iluminismo alemão do séc. XVIII, que elaborou o conceito de F., também elaborou a noção de método do F. (ai.
Grundlichkeii), cujas regras foram ditadas por Wolff no IV capítulo do Discurso preliminar de Philosophia rationalis,
e assim resumidas por Kant no prefácio da segunda edição da Crítica da Razão Pura: "Algum dia, no sistema futuro
da metafísica, cumprirá seguir o método do célebre Wolff, o maior dos filósofos dogmáticos, o primeiro a dar
exemplo (graças ao qual se tornou, na Alemanha, o criador do espírito de Grundlichkeit que ainda persiste) de como
se pode tomar o caminho seguro da ciência estabelecendo os princípios com regularidade, determinando os conceitos
com clareza, procurando o rigor das demonstrações e negando-se a dar saltos na dedução das conseqüências." O
método da fundamentação consiste em aduzir o F., ou seja, a razão justificativa, a cada passo do filosofar, e dele a
filosofia ainda pode esperar uma salvaguarda do arbítrio.
FUROR HERÓICO. V. ENTUSIASMO.
FUSÃO (in. Fusion; fr. Fusion; ai. Fusion; it. Fusioné). Termo usado em psicologia para indicar uma forma de
associação. Scheler vê na F. afetiva uma indicação da unidade metafísica do mundo da vida; essa unidade, porém, não
elimina a diversidade das pessoas, mas sim exige-as (Sympathie, I, cap. 4, §§ 3-5; trad. fr. pp. 108 ss.).
FUTURIÇÃO (in. Futurition; fr. Futurition; it. Futurizionè). Leibniz designa assim a determinação dos
acontecimentos futuros, possibilitando a Deus a sua previsão infalível (Théod., I, § 37) (v. PREDETERMINAÇÃO).
Ortega y Gasset usa esse termo para indicar a orientação da vida humana em direção ao futuro.
FUTURO (in. Future, fr. Avenir, ai. Zukunft; it. Aweniré). Quanto ao primado do F. sobre as outras determinações do
tempo em algumas formas de filosofia contemporânea, v. TEMPO.
FUTUROLOGIA (in. Futurology, fr. Futu-rólogie, a\ Futunim\ogVe,\\. PuturoVogYri)."temo empregado por O. K.
Flechtheim, a partir de 1943, para designar a ciência das perspecti-
FUTUROLOGIA
477
FUTUROLOGIA
vas prováveis do futuro destino do homem, da sociedade e da cultura. Essa ciência não pretende tomar
como base apenas os dados das ciências exatas, mas introduzir "hipóteses de
grande alcance e teorias referentes às perspectivas do universo, à futura evolução da Terra e do clima, da
flora e da fauna" (History and Futurology, 1966).
G
GARANTIA (in. Security; fr. Assurance; ai. Assecuranz, it. Assicurazioné). Royce sugeriu um sistema de G. para
realizar o que ele chamava a "Grande comunidade" humana. A G. é, com efeito, uma associação baseada no princípio
triádico da interpretação: assim como nesta há o intérprete que interpreta alguma coisa para alguém, assim na G.
existem, na relação, o que é garantido, o garantidor e o beneficiário {A esperança na Grande comunidade, 1916).
Royce também sugeriu a G. contra a guerra (Guerra e G., 1914).
GEGENSTANDSTHEORIE. Teoria dos objetos, especialmente na forma que assumiu na obra de A. Meinong (v.
OBJETO).
GENERALIZAÇÃO (in. Generalization; fr. Généralisation; ai. Verallgemeinerung; it. Ge-neralizzazione).
Operação de abstração que dá ensejo a um termo ou uma proposição geral. Algumas vezes também se dá o nome de
G. à indução (v.) ou à construção de uma hipótese (v.) que com mais propriedade deveriam ser chamadas de
operações de universalização. Fala-se de G. principalmente em matemática. "Ampliar um domínio com a introdução
de novos símbolos, de tal modo que as leis válidas no domínio originário continuem valendo no domínio mais amplo,
é um dos aspectos do característico procedimento matemático de G. A G. a partir dos números naturais para os
racionais satisfaz tanto a necessidade teórica de remover as restrições para a subtração e a divisão, quanto a
necessidade prática de que os números expressem os resultados de certas medidas. Essa ampliação do conceito de
número tornou-se possível com a criação de novos números sob forma de símbolos abstratos, como 0, - 2, 3/4"
(COURANT-ROBBINS, What is Mathematics?, II, § 2; trad. it., p. 109).
GÊNERO (gr. "/évoç; lat. Genus; in. Genus; fr. Genre; ai. Gattung; it. Genere). Aristóteles distinguiu três
significações desse termo: Ia geração, particularmente "a geração contínua de seres que têm a mesma espécie", e neste
sentido diz-se "G. humano"; 2- estirpe ou raça como "primeiro motor" ou "aquilo que deu ser às coisas de uma
mesma espécie"; neste sentido fala-se do G. dos helenos porque descendem de Heleno ou do G. dos jônios porque
descendem de Jônio; 3a o sujeito ao qual se atribuem as oposições ou as diferenças específicas, e neste sentido o G. é
o primeiro constituinte da definição (Met., V, 28, 1024 a 30 ss.). Essas três significações já haviam sido usadas
ocasionalmente por Platão (para a primeira delas, v., p. ex., O Banq., 190 c; para a segunda, OBanq., 191 c; Ale. I.,
120 e). Platão deu maiores explicações sobre o terceiro sentido, que é o mais estritamente filosófico, dizendo: "Cada
figura é semelhante a outra figura, porque no gênero todas as figuras formam um todo. No entanto, as partes do
gênero ou são contrárias umas às outras ou são diferentíssimas entre si" (Fil., 12 e). Para Aristóteles essa significação
também é a mais importante e, em vista disso, pode-se dizer que o G. (juntamente com a espécie) é substância
segunda. Aristóteles diz: "Só as espécies e os G., além das substâncias primeiras, são chamadas substâncias segundas:
só eles manifestam a substância primeira das coisas às quais se atribuem predicados. Será possível explicar o que é
um homem só aduzindo a espécie ou o G.; e dizendo-se que é um homem, estaremos explicando melhor do que se o
chamássemos simplesmente animal? No caso de se aduzir algum outro predicado, dizendo, p. ex., que ele é branco ou
que corre, estar-se-á dizendo alguma coisa que é alheia ao objeto em questão" (Cat., 5, 2 6 28 ss.). Em outros termos,
os G. e as
GENÉTICA
479
GENÉTICA
espécies são "substâncias segundas" porque entram na composição da definição da "substância primeira",
ou seja, da essência necessária (v. SUBSTÂNCIA). "Como a substância é a essência necessária e a
expressão desta é a definição (...) e como a definição é um discurso e um discurso tem partes, foi
necessário distinguir quais são as partes da substância e quais não são, e se estas também são partes da
definição; assim vemos que nem o universal nem o G. é substância" (Met., VIII, I, 1042 a 16 ss.). O G.
não é substância, mas componente necessário da essência necessária, que é a substância.
Dessa formulação de Aristóteles nasceu a contenda medieval dos universais (v.). Os universais são de
fato o G. e a espécie. A outra alternativa fundamental para a solução da discussão foi proposta pelos
estóicos, que definiram o G., de modo nominalista, como "a conjunção de noções diferentes e
permanentes, como p. ex. animal, que abrange como suas espécies todos os animais" (DIÓG. L. VII, 60).
Na filosofia moderna e contemporânea a palavra G., assim como a palavra espécie, ainda é
esporadicamente empregada, mas sem as implicações ontológicas que possuía em Platão e Aristóteles.
Além disso, em lógica, foi completamente suplantada pelo conceito de classe (v.).
GENÉTICA (in. Genetics; fr. Génétique; ai. Genetik; it. Genética). Uma das ciências biológicas mais
recentes e mais bem organizadas, que contribuiu decisivamente para o progresso dos estudos biológicos.
Seu objeto específico é a transmissão das características hereditárias dos organismos de uma geração para
outra e, por conseguinte, a mutação que os organismos sofrem em suas características hereditárias. O
fundador da G. moderna foi o abade austríaco Gregor Mendel, que em 1866 publicou os resultados de
algumas de suas experiências sobre a hibridação de diferentes espécies de ervilhas e formulou as leis que
até hoje recebem seu nome. Essas leis exprimem um fato experimental que desmentia as crenças
universalmente aceitas até aquele momento. Acreditava-se, p. ex., que dois indivíduos, um genitor de pele
branca e um outro de pele negra, gerassem filhos de pele morena, e que estes indivíduos, unidos com
outros de pele morena, gerassem filhos morenos, como se os dois caracteres ou tipos de "sangue" se
houvessem misturado para sempre, assim como o leite se mistura ao café e não podem mais ser separados. As leis de Mendel afirmam que os filhos provenientes da união de indivíduos que têm caracteres
diferentes apresentam, pois, uma mistura de tais caracteres, mas não os transmitem a seus descendentes,
nos quais esses caracteres vão se separando em proporções estatísticas bem definidas. A G. moderna
indica com o nome de gene o corpúsculo germinal portador de determinada característica física. O gene é
uma unidade, ou seja, não se mescla. As características herdadas de um organismo representam o
resultado da ação recíproca de seus genes. Habitualmente um ou dois pares de genes são os principais
responsáveis pelas variações que se observam em determinados caracteres do organismo. Os genes
dispõem-se em ordem definida nas partes da célula chamadas cromossomos.
Nem todas as características de um organismo apto são determinadas pelos genes; por outro lado, em
decorrência da ação recíproca entre os genes alguns caracteres tendem a desaparecer (são chamados
recessivos) e outros a fortalecer-se (são chamados dominantes). Portanto, um único gene pode exercer
efeitos díspares sobre o organismo, e o mesmo efeito pode ser produzido por combinações díspares de
genes. Estas duas verificações privam a transmissão das características orgânicas do caráter de
necessidade. Os geneticistas usam a palavra expressividade para indicar a medida em que o efeito de
determinado gene se manifesta no indivíduo que o possui, e a palavra penetração do gene para indicar a
porcentagem de indivíduos que, possuindo o gene, manifestam seus efeitos. O emprego desses termos
demonstra que, entre a posse do gene e seu efeito (uma característica física), não há relação de
necessidade, mas só uma relação estatística, cujas condições podem ser determinadas em cada caso. O
gene não age como causa infalível, como força que produz necessariamente determinados efeitos. As
condições que delimitam seus efeitos são: Ia interação de todos os genes; 2a ambiente.
Esses conceitos da G. foram confirmados e desenvolvidos decisivamente pela bioquímica. Hoje se sabe
que o principal componente dos cromossomos é o ácido desoxirribonu-clêico (DNA), cuja estrutura
molecular foi definida por Watson e Crick em 1953 como um par de espirais que, quando separadas,
podem, individualmente, reunir em torno de si os resíduos moleculares necessários à reconstrução
GENÉTICA
480
GEMO
da espiral dupla original. O DNA é composto por quatro bases nucleotídicas que costumam ser indicadas com as
letras C, T, G e A, consideradas um alfabeto genético. Assim como as formas, poucas das quais constituem palavras e
frases significantes (capazes de comunicar informações), os elementos do alfabeto genético podem combinar-se em
numerosas formas, algumas das quais transmitem a mensagem genética, ou seja, determinam com certa probabilidade
a transmissão de caráter hereditário. Portanto, o material genético é semelhante a uma mensagem escrita que, uma vez
recebida pelo organismo, dirige e controla seu desenvolvimento. Viu-se também que cada palavra do código genético
é constituída por uma série de três de suas bases (.tripletó); o gene é então concebido como uma seqüência de
tripletos no DNA, e a mutação consiste na substituição de uma das letras do tripletó por outra. Essas substituições
ocorrem aleatoriamente e constituem a única origem possível das modificações do texto genético e, portanto, das
estruturas hereditárias do organismo. Quando tais modificações são nocivas à adaptação do organismo ao ambiente,
produzem em escala macroscópica a senescência ou a morte do organismo.
Contra a disseminação da G. moderna, um grupo de cientistas russos sustentou durante certo tempo a doutrina de
Michurin, que, graças ao apoio de Lysenko, teve aprovação oficial da ciência soviética durante os anos de
estalinismo. A doutrina de Michurin é uma forma de lamarckismo, pois parte da crença no poder criativo do ambiente
biológico. "A herança", diz Lysenko, "é efeito da concentração das condições externas, assimiladas pelo organismo
durante uma série de gerações anteriores." Isso nada mais é que o postulado da rigorosa causalidade do ambiente. A
doutrina de Michurin nega, portanto, todos os instrumentos conceptuais do probabilismo mendeliano: a nãohereditariedade dos caracteres adquiridos e até a existência do gene. Contra a tese fundamental de Michurin, J.
Huxley observou: "Os lamarckianos e os partidários de Michurin têm razão quando sustentam que há uma relação
entre o ambiente e os caracteres da adaptação do organismo. Enganam-se, porém, quando supõem que essa relação é
simples e direta. Ela é complexa e indireta: as mutações ocorrem aleatoriamente e a seleção conserva as poucas
mutações que favorecem os indivíduos naquele ambiente específico. Este é um dado de fato
científico, que nenhuma consideração apriori pode alterar" (Soviet Genetics and World Science, trad. it., p. 151). Os
conceitos de mutação aleatória e de seleção continuam sendo fundamentais na G. moderna. Monod escreveu: "As
alterações genéticas são acidentais, ocorrem aleatoriamente. E como constituem a única origem possível das
modificações do texto genético, que, por sua vez, é o único depositário das estruturas hereditárias do organismo,
segue-se necessariamente que o acaso é a única origem de qualquer novidade e de qualquer criação na biosfera" (Le
hasard et Ia necessite, 1970, p. 127).^
GENÉTICO (in. Genetio, fr. Génétique; ai. Genetiscb, it. Genético). Aquilo que pertence à geração ou efetua-se
através da geração. Neste último sentido, Hobbes falou de definição genética ou por generationem: "A razão pela
qual as coisas que têm causa e geração devem ser definidas através da causa e da geração é esta: o fim da
demonstração é a ciência das causas e da geração das coisas, e, se não se tiver essa ciência na definição, não se
poderá tê-la tampouco na conclusão do silogismo que dela parte" {De corp., VI, § 13). Essa noção passou mais tarde
para a lógica de Wolff, que entendeu por definição genética "a definição que expõe a gênese de uma coisa, ou seja, a
maneira como ela pode realizar-se" (Log., § 195). O conceito desta definição está ligado ao princípio exposto por
Hobbes em De homineQí, § 5), qual seja: só se pode ter ciência demonstrativa das coisas que podem ser produzidas
(como os entes matemáticos e os entes morais ou jurídicos), porque delas se conhece seguramente a causa. A partir da
segunda metade do séc. XIX esse adjetivo, particularmente quando se referia a ciências ou a partes de ciências,
passou a ter significado ligado ao de evolução (v.); uma teoria genética geralmente é a consideração do
desenvolvimento evolutivo da coisa à qual a teoria se refere (p. ex., "psicologia genética" = estudo da evolução
psíquica).
GÊNIO (in. Genius-, fr. Génie; ai. Genie; it. Genió). A partir da segunda metade do séc. XVII passou-se a indicar
com esse termo (que, segundo Varrão, na origem indicava "a divindade que é preposta a cada uma das coisas geradas
e que tem a capacidade de gerá-las", S. AGOSTINHO, De civ. Dei, VII, 13) o talento inventivo ou criativo nas suas
manifestações superiores. Pascal já usa essa palavra com esse sentido: "Os grandes gênios têm seu império,
GÊNIO
481
GÊNIO
seu esplendor, sua grandeza, suas vitórias e não precisam das grandezas carnais, que não têm relação com
o que eles procuram" {Pensées, 793). E La Bruyère dizia: "E menos difícil para os grandes gênios topar
com coisas grandes e sublimes do que evitar qualquer espécie de erro" {Caracteres, 1687, cap. 1). A
estética do séc. XVIII reduziu a noção de G. ao domínio da arte. Kant (provavelmente inspirado numa
obra inglesa de GERARD, Essay on Genius, 1774) defende este ponto de vista: "O talento de descobrir
chama-se gênio. Mas esse nome só se dá ao artista, àquele que sabe fazer alguma coisa, não àquele que
conhece e sabe muito; e não se dá ao artista que imita apenas, mas àquele que é capaz de produzir sua
obra com originalidade; enfim, só se dá quando seu produto é magistral, quando, por mérito, merece ser
imitado" (Antr., § 57). Esse é o sentido da definição de G. que Kant dá na Crítica do Juízo como de
"talento (dom natural) que dita regras à arte". Gomo talento, o G. foge a qualquer regra; mas como criador
de exemplares distingue-se de qualquer extravagância. É natureza porque não age racionalmente; e é
natureza que dita regras à arte. Kant observa que, justamente devido a estas últimas características, "a
palavra G. derivou de genius, que significa o próprio espírito do homem, o que lhe foi dado ao nascer, que
o protege e o dirige, dé cuja sugestões provêm as idéias originais" {Crítica do Juízo, § 46). Esse ponto de
vista era aceito por Schopenhauer, que, considerando a arte como a visão das idéias platônicas, que são a
primeira "objeti-vação" da vontade de viver, vê na arte a "contemplação pura" e, por isso, a essência do
G. na preponderante aptidão para tal contemplação. "Visto que esta", diz ele, "requer esquecimento total
de si mesmo e de suas relações, decorre daí que a genialidade é a mais completa objetividade, ou seja, a
direção objetiva do espírito, que se opõe à direção subjetiva tendente à própria pessoa, à vontade." Por
conseguinte, enquanto para o homem comum o patrimônio cognoscitivo é "a lanterna que ilumina o
caminho", para o G. ele é "o sol que revela o mundo" {Die Welt, I, § 36). Essas observações de
Schopenhauer constituem uma contribuição para aquilo que poderíamos chamar de culto romântico do
gênio. Obviamente, esse culto não se limita ao G. artístico. Fichte mostrava já a conexão do G. com a
filosofia. A inventividade do filósofo requer "um obscuro sentimento da verdade" e esse sentimento é
exatamente o gênio. Para Fichte, mesmo que um dia a filosofia progredisse a ponto de conter uma "teoria
da invenção, não seria possível chegar a isso a não ser por meio do G." {Werke, ed. Medicus, I, p. 203).
Fichte reconheceu no G. as mesmas características que Kant lhe atribuíra: inventividade e naturalidade. O
G. "é um favor especial da natureza, que não se pode explicar ulteriormente" {Ibid., ed. Medicus, III, p.
92; cf. PAREYSON, A estética do idealismo alemão, I, pp. 333 ss.). O obscuro sentimento da verdade, que
Fichte atribui ao G., transforma-o naquilo que Schlegel chamava de "mediador entre o Infinito e o finito",
aquele que "percebe em si o divino e, anulando-se, dedica-se a anunciar esse divino a todos os homens, a
participar dele e a representá-lo nos costumes e nas ações, nas palavras e nas obras" {Ideen, 1800, § 44).
É verdade que, assim como Kant, Schelling afirmava que o G. é sempre e somente estético, mas ao
mesmo tempo considerava a intuição estética o órgão da filosofia e, em geral, da ciência. O G. é, pois, o
absoluto que se revela no homem e não pertence só a uma parte do homem {Werke, I, III, pp. 618 ss.).
Hegel, por sua vez, dizia que a palavra G. era empregada para designar não só os artistas, mas também os
grandes líderes e os heróis da ciência {Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glockner, I, p. 378), mas
pessoalmente reservava esse vocábulo para os artistas, definindo o G. como "a capacidade geral de
produzir autênticas obras de arte, acompanhada pela energia necessária à sua realização" {Ibid., p. 381).
Na realidade, aqueles que Fichte chamava de "doutos" ou de "videntes" (cf. Vorlesungen über die
Bestimmung des Gelehrten, 1794), Hegel de "indivíduos da história cósmica" e outros de heróis (v.) são
simplesmente expressões diferentes do mesmo conceito que, no domínio da arte, o Romantismo designou
com o termo G., ou seja, encarnação do Infinito no mundo, mediadores entre o finito e o Infinito (como
dizia Schlegel), instrumentos da realização ou da revelação do Absoluto. O próprio Kierkegaard, que por
muitos aspectos pode ser considerado antagonista do Romantismo, partilhou esse conceito de G. Disse:
"O G. é um An-sich onipotente que, como tal, gostaria de sacudir o mundo inteiro. Por isso, para salvar a
ordem, nasce com ele outra figura: o destino. Mas o destino é nulo, porque é ele mesmo que o descobre, e
quanto mais profundo for o G., mais profundamente o descobre; por-
GENTES, DIREITO DAS
482
GEOMETRIA
que o destino nada mais é que a antecipação da providência" (Der Begriff der Angst, III, § 2; trad. Fabro, p. 123).
Na cultura contemporânea, o conceito do G. se manteve com essas características românticas, que não desapareceram
nem com a aproximação entre G. e loucura, tentada por alguns antropólogos, particularmente por Cesare Lom-broso.
Essa aproximação baseava-se na consideração dos chamados "fenômenos regressivos da evolução", em virtude dos
quais os grandes avanços em uma certa direção são acompanhados, na maioria das vezes, por uma parada nas outras
direções. Por isso, Lombroso julgava encontrar formas mais ou menos atenuadas de loucura ou perversão nos
indivíduos geniais (G. e degeneração, 1897), mas com isso não punha em dúvida a realidade do conceito, sem dúvida
pressuposta. Por outro lado, quando, no fim de Duas fontes da moral e da religião (1932), Bergson auspicia o
advento de um "G. místico", que possa "arrastar atrás de si uma humanidade imensamente encorpada", vê nesse G. a
encarnação ou a realização do elã vital que é o princípio do mundo (Deux sources, IV; trad. it., pp. 343 ss.). Como
todo G. romântico, o G. preconizado por Bergson também é a encarnação do Absoluto e destina-se a realizar o
Absoluto no mundo. Todavia, Kant já havia advertido para o perigo inerente ao uso desse conceito, que parece
dispensar alguns homens da aprendizagem, da pesquisa e dos deveres comuns, e propusera a questão sobre quem
contribui mais para o progresso efetivo do homem: os grandes gênios ou "os cérebros mecânicos" que se apoiam na
bengala da experiência (Antr., § 58).
GENTES, DIREITO DAS (lat. Ius gentium; in. Law qfnations-, fr. Droit des gens; ai. Vól-kerrecht; it. Diritto delle
gentf). 1. Identificado por Gaio (séc. II) com o direito natural, o direito das G. foi distinguido deste por Ulpiano (séc.
III); para ele, o direito das gentes é "aquele que todos os seres humanos utilizam e só estes", enquanto o direito
natural é aquele que a natureza ensinou a todos os animais e por isso não é próprio só do gênero humano (Di-gesto,
1,1,1-4). Essa distinção permaneceu substancialmente a mesma até o jusnaturalismo moderno.
2. A partir de Grócio, entende-se por direito das G. a norma não escrita que regulamenta as relações entre os Estados
ou entre cidadãos de
Estados diferentes, ou seja, o direito natural internacional (v. DIREITO).
GEOMETRIA (gr. 7E(0U.etpía; lat. Geometria; in. Geometry, fr. Géométrie; ai. Geometrie; it. Geometria). Em
geral, a ciência que estuda as possibilidades métricas dos conjuntos. A estrutura métrica dos conjuntos pode ser
considerada: \- única e necessária, como foi considerada até a descoberta das geometrias não-euclidianas: nesse caso,
a G. será a descrição das determinações necessárias de tal estrutura (o espaço euclidiano) e assumirá a forma de um
sistema dedutivo único e perfeito; 2a multíplice ou indefinidamente variável: nesse caso serão possíveis G. diferentes,
cujo objeto serão estruturas métricas espaciais diferentes ou dotadas de graus diferentes de generalidade. A primeira
forma da G. iniciou-se com Pitágoras e com Platão, tornando-se modelo das ciências dedutivas. A segunda iniciou-se
com a descoberta das G. não-euclidianas e sua expressão mais clara foi o "programa de Erlangen".
;
le Segundo relato de Proclo (In Eucl., 65, 11, Friedlein), foi Pitágoras quem "deu forma de educação liberal ao estudo
da G., procurando seus princípios primeiros e investigando seus teoremas do ponto de vista conceptual e teórico".
Mas sabemos que é sobretudo a Platão que se deve a guinada conceptual e teórica da geometria. Platão contrapõe
explicitamente ao uso prático da G., ou seja, ao uso que a subordina às necessidades cotidianas e portanto às
exigências de construtores, estrategistas, etc, seu fim teorético, em virtude do qual ela tende a conhecer "aquilo que
sempre é e não o que nasce e perece" (Rep., VII, 527b). Como todas as outras ciências propedêuticas, pertencentes à
esfera do conhecimento racional ou dianóia, a G. vale-se de "hipóteses" que sabe justificar; tudo o que ela fáz é
entrelaçar coerentemente "conclusões e proposições intermediárias" (Ibid., VII, 533c). Aristóteles também insistiu no
procedimento abstrativo utilizado pela geometria. Disse: "O matemático constrói sua teoria eliminando todos os
caracteres sensíveis, como o peso e a leveza, a dureza e seu contrário, o calor e o frio, bem como os outros contrários
sensíveis, e fica apenas com a quantidade e a continuidade, às vezes em uma só dimensão, às vezes em duas, outras
em três, bem como com os atributos dessas entidades que sejam quantitativos e contínuos; e não os considera
GEOMETRIA
483
GEOMETRIA
sob nenhum outro aspecto" (Met., XI, 1061 a 29). Mas foi também graças a Aristóteles que a G. ganhou organização
lógica; de fato, essa organização, que se realizou plenamente nos Elementos de Euclides, no séc. III a.C, tem como
modelo a ordem que, no Organon, Aristóteles considerara própria de toda ciência, qual seja: o ponto de partida são os
primeiros princípios (definições, axiomas e postulados), passando-se à dedução rigorosa a partir desses princípios,
sem recorrer à experiência ou a qualquer intuição. Mas essa mesma formulação lógica da G. antiga esclarece a
natureza de seu objeto. Como dizia Aristóteles, esse objeto é a quantidade contínua; e como dissera Platão, é "alguma
coisa que é sempre", ou, na terminologia de Aristóteles, é uma substância ou essência substancial que, justamente por
ser tal, pode ser definida, e cujas propriedades fundamentais o intelecto pode intuir, expressando-as nos axiomas. É
preciso lembrar que, segundo Aristóteles, o procedimento dedutivo ou silo-gístico deve partir de premissas evidentes,
intuídas pelo intelecto, e que essa intuição só pode existir com relação a propriedades ou a determinações necessárias
da substância. O caráter substancial do objeto da G., no sentido exato e técnico que a palavra "substancial" tem em
Aristóteles (v. SUBSTÂNCIA), é o pressuposto fundamental dessa fase conceptual da geometria. Isto quer dizer que o
contínuo espacial, que é o objeto da G., é pressuposto, em seu modo de existência específica e em suas determinações
necessárias, a partir das operações geométricas que a tomam como objeto. Esse contínuo é independente de tais
operações porque é uma substância, porque é necessariamente o que é e não pode ser diferente. A necessidade
intrínseca das definições e dos axiomas e o caráter indispensável dos postulados (que tampouco podem ser mudados)
expressam, no âmbito desta fase conceptual, a necessidade do objeto da G., ou seja, do espaço. Este tem essência
necessária, cujos princípios expressam as determinações imutáveis e cuja dedução silogística põe em evidência as
determinações implícitas (mas igualmente necessárias). A interpretação do espaço feita por Kant, como "forma da
intuição" ou "intuição pura", não constitui (e nem Kant teve essa intenção) uma inovação do conceito de geometria.
Segundo Kant, o espaço como intuição pura devia exatamente servir para garantir à G. seu papel de ciência que
determina as propriedades
do espaço apriori, ou seja, independentemente da experiência, e para garantir a tais propriedades seu caráter
apoditico, ou seja, sua necessidade (Crít. R. Pura, § 3).
2- A segunda fase conceptual da G. só começou quando se realizou plenamente o significado da descoberta das G.
não-euclidianas. O V postulado de Euclides provocara discussões desde a Antigüidade. No séc. XVIII, especialmente
graças a Saccheri e de Lambert, e nos primeiros decênios do séc. XIX, graças a Legendre, essas discussões se
acirraram, mas não levaram a conclusões, porque se achou absurdo admitir a possibilidade de uma G. diferente da de
Euclides. Só Gauss, Lobacevskij e Bolyai reconheceram e puseram em prática essa possibilidade. Em 1855, uma
dissertação de RIEMANN, Sobre as hipóteses que fundamentam a G., mostrava como, com mudanças oportunas no V
postulado, seria possível obter não só a G. de Euclides e a G. de Lobacevskij e Bolyai, mas também uma terceira G.
(que mais tarde foi chamada de Riemann). O V postulado de Euclides exige que só haja uma paralela para uma reta
dada; a G. de Lobacevskij e Bolyai exige que haja infinitas paralelas para uma reta dada. Riemann supôs que não
houvesse paralela nenhuma para uma reta dada, o que produz uma G. simetricamente oposta à de Lobacevskij e de
Bolyai. A G. euclidiana é válida para o espaço de curvatura constante nula. A G. de Lobacevskij vale para o espaço
de curvatura constante negativa. A G. de Riemann vale para o espaço de curvatura constante positiva. Nesta última
G., uma reta não pode ser prolongada até o infinito, mas é finita e fechada, e é a G. que vigora na superfície da esfera
(supondo-se que se considerem somente duas dimensões), portanto o modo mais natural de um navegador descrever o
mundo. Assim, a G. euclidiana tornava-se um caso particular de uma G. bem mais ampla e geral, mas a verdadeira
significação dessa descoberta só ficou clara alguns anos depois, em virtude do emprego de um conceito que fora
utilizado desde o início pela chamada G. projetiva. o conceito de transformação. A G. projetiva, cujas primeiras
menções se encontram nos trabalhos de Gas-pard Monge (1746-1818), introduzia uma nova operação — a projeção
—, que permite transformar uma figura em outra, cujas propriedades podem ser deduzidas das propriedades da
primeira. O caráter peculiar dessas propriedades, como foi mostrado por Poncelet (.Tratado
GEOMETRIA
484
GERAL
das propriedades projetivas das figuras, 1822), consistia em sua invariância, ou seja, em permanecerem
as mesmas ao longo das transformações que as figuras sofriam com a projeção. Em 1847, a G. de posição
de Staudt, realizando uma exposição rigorosa da G. descritiva, mostrava que ela podia absorver em si toda
a ciência geométrica. Nessa mesma linha, o passo decisivo foi dado por Felice Klein com seu programa
de Erlangen, que constituiu a aula inaugural dada nessa Universidade em 1872. Segundo Klein, a G. nada
mais é que o estudo das propriedades invariáveis em relação a um grupo de transformações, entendendo
por grupo de transformações um conjunto de transformações em que, ao lado de cada transformação
também está a transformação inversa (a que destrói o efeito da primeira). Desse ponto de vista, as
propriedades a serem consideradas "geométricas" dependem do grupo de operações considerado
fundamental. Quando este último varia, também varia o significado do termo geometria. Cayley
demonstrou que o grupo fundamental da G. projetiva é mais amplo do que o das G. métricas. Outra
ampliação realiza-se quando se passa da G. descritiva à topologia (ou anafysissitusW.]), que estuda as
propriedades invariantes em relação ao grupo generalíssimo das transformações contínuas.
É fácil, portanto, perceber a diferença de postura conceptual da G. contemporânea em relação à clássica.
Ao contrário desta última, a G. contemporânea não pressupõe o objeto de seu estudo (o espaço), ou seja,
não pressupõe que tal objeto tenha propriedades necessárias, expressáveis em definições unívocas, em
axio-mas evidentes e em postulados inevitáveis. São consideradas objeto da G. as propriedades que se
mostrem invariantes por meio dos grupos de transformações, mas ao mesmo tempo procuram-se realizar
tipos de transformações sempre diferentes e considerar, portanto, invariâncias cada vez mais gerais. A
estrutura lógica dessa G. obviamente nada mais tem a ver com a lógica aristotélica e com a estrutura da G.
euclidiana. Poincaré descreveu essa estrutura como de sistemas hipotético-dedutivos (v. CONVENCIONALISMO). Ao mesmo tempo em que a forma lógica de tais sistemas é extremamente rigorosa e evita
recorrer a elementos ou a operações intuitivas, essa G. perdeu o caráter de necessidade racional que
caracterizava a G. clássica: seu objeto não é uma substância racional, mas
as invariâncias que podem ser obtidas por meio de operações oportunas livremente escolhidas.
GERAÇÃO (gr. TÉveciÇ; lat. Generatio-, in. Generation; fr. Génération; ai. Erzeugung; it.
Generazioné). Segundo Aristóteles, "a mudança que vai do nâo-ser ao ser do sujeito, segundo a
contradição": a passagem da negação da coisa à coisa. A G. pode ser absoluta, e nesse caso é a passagem
do não-ser ao ser da substância, ou qualificada, e nesse caso é a passagem do não-ser ao ser de uma
qualidade da substância (Fís., V, I225al2ss.).0 oposto de G. é corrupção (v.). G. e corrupção constituem a
primeira das quatro espécies de mudança, mais precisamente a mudança substancial Clbid, 225 a 1) (v.
DEVIR).
GERAL (in. General; fr. General; ai. Ge-meingültig; it. Generale). Essa palavra foi introduzida no uso
moderno pelo empirismo inglês que, por meio dela, designou o resultado de uma operação de abstração;
por isso, é algo diferente de universal, interpretado como natureza originária ou forma substancial. "As
palavras", diz Locke, "tornam-se G. pelo fato de fazermos delas signos de idéias G.; e as idéias tornam-se
G. quando delas são afastadas as circunstâncias de tempo e de lugar, bem como de qualquer outra idéia
que possa determiná-las no sentido desta ou daquela existência particular. Com esse meio da abstração,
elas adquirem a capacidade de representar mais indivíduos, cada um dos quais, tendo em si conformidade
com aquela idéia abstrata, é (como dizemos) daquela espécie" {Ensaio, III, 3, § 6). A idéia é G., então,
quando é o resultado da abstração; a generalidade é obra do intelecto, embora a ela corresponda a
semelhança das coisas naturais. Como não existem naturezas ou formas universais, o universal reduz-se
ao G., e às vezes Locke emprega os dois termos como sinônimos {Ibid., III, 3, § 11)- Esse termo era
aceito com este sentido por Berkeley {Principies of Knowledge, Intr., § 12) e por Hume {Treatise, I, 1,7).
Leibniz aceitava essa palavra e seu conceito, apesar de afirmar que desse conceito não derivava a negação
das essências universais. Dizia: "A generalidade consiste na semelhança das coisas individuais entre si, e
essa semelhança é uma realidade" {Nouv. ess., III, 3, 11). Stuart Mill aceitava essa terminologia,
distinguindo substantivos individuais ou singulares e substantivos G.: estes últimos possibilitariam
afirmar proposições G., ou seja, "afirmar ou negar alguns predicados de um número indefini-
GESTALTPSYCHOLOGIE
485
GNOSTICISMO
do de coisas ao mesmo tempo" {Logic, I, 2, § 3). Essa significação não prevaleceu na lógica contemporânea, que
considera singular o termo cuja conotação impede sua aplicação a mais de uma coisa real, sendo G. o termo que não é
singular nesse sentido. Lewis diz: "Saber se um termo concreto é singular ou geral é questão de conotação, não de
denotação, ainda que um termo singular não possa denotar mais de uma coisa. 'O objeto vermelho da minha mesa' é
um termo singular, e 'Objeto vermelho sobre minha mesa' é um termo G., independentemente dos objetos vermelhos
que se encontram em cima da minha mesa" {Analysis of Knowledge and Valuation, p. 45). Nesse sentido, o G. nada
tem a ver com o universal: este é obtido com o uso do operador todos e refere-se à denotação, não à conotação de um
termo. Por conseguinte, proposição G. é a que se chama função pro-posicional (v. FUNÇÃO), na qual o sujeito fica
indeterminado. Dewey também insistiu na diferença entre G. e universal, negando que a proposição "se humano,
então mortal" seja equivalente à proposição "todo homem é mortal". "São coisas radicalmente diferentes", disse
Dewey, "formular proposições sobre traços ou características que descrevem uma espécie fazendo abstração de cada
exemplar da espécie e formular proposições abstratas sobre abstrações" {Logic, XIX, § 2; trad. it., p. 497-98).
GESTALTPSYCHOLOGIE. V. PSICOLOGIA.
GIMNOSOFISTAS (gr. Yuuvoaoípiatí; lat. Gymnosophistae; in. gymnosophists, fr. Gymno-sophistes-, ai.
Gymnosophisten; it. Gimnosofisti). Os "sábios nus" da índia; assim foram chamados os faquires pelos escritores
gregos (ARISTÓTELES, Fragm., 35; ESTRABÃO, 16, 2, 39; PLU-TARCO, Alex., 64, etc). Pirro, o fundador do
cepticismo, visitou os G. na índia e imitou seus costumes (DiÓG. L., IX, 61).
GIOBERTISMO. V. ONTOLOGISMO.
GLÓRIA (lat. Gloria; in. Glory; fr. Gloire; ai. Glorie; it. Gloria). Na terminologia bíblica e escolástica, G. é, por um
lado, a homenagem que o homem faz a Deus e, por outro, a recompensa que Deus dá ao homem, acolhendo-o em Sua
fruição. Com esta última significação S. Tomás diz que a G. é "a perfeita fruição de Deus" {S. Th., III, q. 53, a. 3). Foi
com esse sentido que Spinoza identificou o amor intelectual de Deus com a G. da qual fala a Bíblia: "Esse amor ou
beatitude é chamado de G. nos livros sagrados, não sem razão. Pois tal amor, refira-se ele a Deus, ou à mente, pode
ser chamado
de satisfação da alma, que na realidade não se distingue da G." {Et., V, 36, Schol.). Descartes atribuíra significado
puramente mundano a esse termo, considerando a G. como "uma espécie de G. fundada no amor que se sente por si
mesmo e deriva da impressão da esperança de louvor por parte dos outros" {Pass. de Vâme, art. 204).
GNÔMICO (in. Gnomical; fr. Gnomique; ai. Gnomiscb, it. Gnomicó). Quem se expressa por meio de breves
sentenças morais, como fizeram os Sete Sábios (v. SÁBIOS), que, por isso, foram chamados de Gnômicos.
GNOSIOLOGIA. V. TEORIA DO CONHECIMENTO.
GNOSTiaSMO (gr. YVãxnç; in. Gnosticism; fr. Gnosticisme; ai. Gnosticismus, it. Gnosticis-mò). Foram assim
designadas algumas correntes filosóficas que se difundiram nos primeiros séculos depois de Cristo no Oriente e no
Ocidente. A literatura que produziram era rica e variada, mas perdeu-se, à exceção de poucos textos conservados em
traduções coptas, chegando até nós apenas através dos trechos mencionados e, ao mesmo tempo, refutados pelos
Padres Apologistas. O G. é uma primeira tentativa de filosofia cristã, feita sem rigor sistemático, com a mistura de
elementos cristãos míticos, neoplatônicos e orientais. Em geral, para os gnósticos o conhecimento era condição para a
salvação, donde esse nome, que foi adotado pela primeira vez pelos Ofitas ou Sociedade da Serpente, que mais tarde
se dividiram em numerosas seitas. Estas utilizavam textos religiosos atribuídos a personalidades bíblicas, tal como o
Evangelho de Judas, mencionado por Irineu {Adv. haer., I, 31, !)• Outros textos dessa espécie foram encontrados em
traduções coptas; entre eles, o mais importante é Pistis Sophia (publicado em 1851), que expõe em forma de diálogo
entre o Salvador ressuscitado e seus discípulos, especialmente Maria Madalena, a queda e a redenção de Pistis
Sophia, ser pertencente ao mundo dos Eons (v.), bem como o caminho da purificação do homem por meio da
penitência. Os principais gnósticos dos quais temos notícia são: Basílides, Carpó-crates, Valentim e Bardesane, cujas
doutrinas são conhecidas pelas refutações feitas por Clemente de Alexandria, Irineu e Hipólito. Uma das teorias mais
típicas do G. é o dualismo dos princípios supremos (admitido, p. ex., por Basilides), ligado a concepções orientais. A
tentativa de união entre os dois princípios,
GNOSTOLOGIA
486
GOVERNO, FORMAS DE
bem e mal, tem como resultado o mundo, no qual as trevas e a luz se unem, mas com predomínio das trevas.
GNOSTOLOGIA (lat. Gnostologià). Termo cunhado por Calov em Scripta Philosophica (1650), para designar uma
das duas disciplinas auxiliares da metafísica (a outra é a Noologia, [v.]), mais precisamente a que tem por objeto "o
cognoscível enquanto tal". Foram chamados de gnostólogos alguns aristotélicos protestantes que ensinaram nas
universidades alemãs na primeira metade do séc. XVII. Sobre eles, cf. PETERSEN, Geschichte der aristotelischen
Philo-sophie im protestantischen Deutschland, Leip-zig, 1921; CAMPO, Cristiano Wolff, Milão, 1939, I, pp. 144 ss.
GOSTO (in. Taste; fr. Goüt; ai. Geschmack; it. Gustó). Critério ou cânon para julgar os objetos do sentimento. Visto
que só a partir do séc. XVIII o sentimento (v.) começou a ser reconhecido como faculdade autônoma, distinta da
faculdade teorética e da prática, a noção de G. foi-se determinando, no mesmo período, em correlação com a noção
do critério ao qual essa faculdade, em suas valorações, está adequada ou deve adequar-se. A faculdade do sentimento
logo recebeu como atribuição a atividade estética: assim, entende-se por G. sobretudo o critério do juízo estético, e
foi com esse sentido que essa palavra se incorporou no uso corrente. Em seu sentido mais geral, o G. é definido por
Vauvenargues como "disposição para julgar corretamente os objetos do sentimento" (Intr. ã Ia connaissance de
1'esprit humain, 1746, 12); e por Kant, que declara, em Antropologia (§ 69): "O G. (enquanto uma espécie de sentido
formal) leva a compartilhar com outros os sentimentos de prazer e dor e implica a capacidade — agradável, graças a
esse mesmo compartilhar — de sentir satisfação (complacen-tid) em comum com outrem". Em alguns de seus
Ensaios morais e políticos (1741), Hume entendeu o G. em sentido mais estritamente estético, conquanto também
ligue o G. estreitamente com o sentimento em geral. A beleza é de fato um sentimento, e, como todo sentimento é
justo, não se referindo a nada além de si mesmo, cada espírito percebe uma beleza diferente. Isso, porém, não impede
que haja um critério do G., pois existe uma espécie de senso comum que restringe o valor do velho ditado "Gosto não
se discute". Pode-se determinar um critério do G. recorrendo às experiências e às observações dos sentimentos
comuns da natureza humana, sem pretender que em todas as ocasiões os sentimentos dos homens se conformem a esse critério. "Em
cada criatura", diz Hume, "há um estado são e um estado de doença; só o primeiro nos dá o verdadeiro critério de G. e
de sentimento. Se no estado de saúde do organismo houver uniformidade completa ou considerável de sentimentos
entre os homens, poderemos daí inferir uma idéia da beleza perfeita, do mesmo modo como a aparência dos objetos, à
luz do dia e aos olhos de um homem em bom estado de saúde, é considerada a cor verdadeira e real dos objetos, ainda
que tanto durante o dia quanto durante a noite a cor seja apenas um fantasma dos sentidos" (Essays, I, p. 272). Por sua
vez, E. Burke dizia: "Pela palavra G. entendo apenas a faculdade, ou faculdades, da mente que são impressionadas
pelas obras da imaginação e pelas belas-artes, formulando um juízo sobre elas" 04 Phi-losophical Inquiry into the
Origin ofOurldeas qfthe Sublime and Beautiful, 1756, Intr.; trad. it., p. 47). Para Kant, o G. é uma espécie de senso
comum (v.), aliás o senso comum em seu significado mais exato, porque pode ser definido como "a faculdade de
julgar aquilo que torna universalmente comunicável o sentimento suscitado por dada representação, sem a mediação
do conceito" (Crít. do Juízo, § 40). Portanto, a universalidade do juízo de G. não é a mesma do juízo intelectual, pois
não se baseia no objeto, mas na possibilidade de comunicação com os outros. Em outros termos, o juízo de G. só é
universal porque se fundamenta na co-municabilidade do sentimento (Crít. do Juízo, § 39). Kant também fez a
distinção entre o G. como faculdade de julgar e o gênio como faculdade de produzir (Ibid., § 48). Croce identifica
essas duas faculdades, considerando idênticos o processo de criação e o de reprodução de uma obra de arte (Estética,
cap. 16). Mas com isso o conceito de G. não muda; na realidade, a estética moderna e contemporânea conservou ou
reproduziu, com modificações irrelevantes (do ponto de vista conceptual), a noção de G. elaborada pelos tratadistas
do séc. XVIII, cujas características fundamentais expusemos.
GOVERNO, FORMAS DE (gr. o%T)iiaza nokiTEÍaç; lat. Reipublicae formae, in. Forms qf govemment; fr. Formes
de gouvemement; ai. Staatsverfassung; it. Forme di governo). Uma das mais antigas doutrinas políticas, talvez a mais
antiga, é a distinção das três formas de G.
GOVERNO, FORMAS DE
487
GOVERNO, FORMAS DE
(de um só, de poucos, de todos), enunciadas porHeródoto por meio da discussão de sete personagens persas, mas na
realidade expondo noções populares de sabedoria grega. Heró-doto pergunta: "Como poderia ser um G. bem
instituído o domínio de um só homem, se ele pode fazer o que quer sem dar satisfação a ninguém? O monarca tende a
tornar-se tirano. Por outro lado, o G. do povo é com certeza o melhor, porque nele todos são iguais, mas também
tende a degenerar e a tornar-se desenfreada demagogia. Por isso, a melhor forma de G. é uma boa monarquia" (III,
80-82). Em República, Platão punha acima dessa classificação o Estado idealmente perfeito, a aristocracia ou G. dos
filósofos. A primeira degeneração da aristocracia é a timocracia, ou seja, o G. fundado na honra que nasce quando os
governantes se apropriam de terras e de casas. A segunda é a oligarquia, governo baseado no patrimônio, no qual os
ricos mandam. A terceira forma é a democracia, na qual a todo cidadão é lícito fazer o que quer. Finalmente, a forma
extrema de degeneração política é a tirania, que muitas vezes nasce da excessiva liberdade da democracia {Rep.,
VHI-IX). De modo mais sistemático, em O Político, Platão distinguiu três formas de regime político: G. de um só, G.
de poucos e G. de muitos; essas formas, segundo sejam regidas por leis ou desprovidas de leis, motivam
respectivamente o G. régio ou tirania, a aristocracia ou oligarquia e as duas formas da democracia, a regida por leis e
a demagógica (Pol., 291 d-e). Essa classificação foi repetida por Aristóteles iPol., III, 7, 1279 a 27), que, no entanto,
alude a outra divisão, na qual as formas fundamentais seriam duas: "democracia, quando os livres governam, e
oligarquia, quando os ricos governam e, em geral, os livres são muitos e os ricos poucos" (Ibid., IV, 4, 1290b, I):
classificação que seria simétrica a outras classificações diádicas, cuja autoria Aristóteles declara. Contudo a
classificação triádica veio a ser tradicional e a ela os escritores políticos da Idade Média, do Renascimento e da Idade
Moderna se referem constantemente. A Bodin deve-se a observação de que as diversas formas de ordenamento estatal
são diversas formas de G., não formas diferentes de Estado (donde a permanência da expressão "formas de G." em
francês, italiano e inglês). A soberania, que é o caráter fundamental do Estado, é una e indivisível: o Estado consiste
na posse da soberania. O G., ao contrário, consiste no aparato por meio do qual esse poder é exercido. Na monarquia, a soberania reside no rei, mas este pode delegar
amplamente seu poder e governar de modo democrático, ao mesmo tempo que, numa democracia, o governo pode ser
despótico (Six livres de Ia Republique, 1576). Hobbes parte do mesmo princípio: a diferença das formas de G.
depende da diversidade das pessoas às quais é confiado o poder soberano. Têm-se democracia, aristocracia ou
monarquia, segundo o poder soberano seja confiado ao povo, aos nobres ou ao rei. Quanto às chamadas degenerações
das formas de G., elas são apenas "três denominações diferentes dadas por quem odiava o governo ou os
governantes" {De eive, 7, §§ 1-2). Montesquieu modificou a divisão tradicional, afirmando que o G. pode ser
republicano (um conjunto de democracia e aristocracia), monárquico e despótico. Cada uma dessas três formas é
regida por um "princípio" que, portanto, condiciona sua conservação e seu funcionamento. O G. popular baseia-se na
virtude cívica e no espírito público do povo; a monarquia no sentimento de honra da classe militar; o despotismo, no
temor (Esprit des lois, 1748, III). Com base nessa mesma doutrina de Montesquieu, a antiga tripartição das formas de
G. começa a perder importância. Montesquieu viu claramente que a liberdade da qual os cidadãos gozam num Estado
não depende da forma de G. desse Estado, mas da limitação dos poderes garantida pela ordenação do Estado. Disse:
"A democracia e a aristocracia não são Estados livres por natureza. A liberdade política encontra-se nos G.
moderados. Mas nem sempre existe nos Estados moderados: permanece só quando não há abuso de poder... Para que
não seja possível abusar do poder, é preciso que, pela disposição das coisas, o poder refreie o poder. Uma
constituição pode ser de tal forma que ninguém seja obrigado a cumprir as ações às quais a lei não obrigue nem a
deixar de cumprir as que a lei permite" (Ibid., XI, 6). Essas palavras são verdadeiras ainda hoje, assim como eram
verdadeiras no tempo de Montesquieu. A experiência histórica do mundo moderno e contemporâneo mostrou que a
liberdade e o bem-estar dos cidadãos não dependem da forma de G., mas da participação que os G. oferecem aos
cidadãos na formação da vontade estatal e da presteza com que eles são capazes de modificar e de retificar suas
diretrizes políticas e suas técnicas administrativas. Por esses motivos, na moderna teoria po-
GRAÇA1
488
GRAÇA2
lítica geral, a distinção ou classificação das formas de G. não tem grande relevância; pode-se dizer que é a mesma de
Heródoto, mas que deixou de expressar um problema efetivo da teoria e da prática da política.
GRAÇA1 (in. Grace, fr. Grâce; ai. Anmut; it. Grazid). Uma espécie particular de beleza distinguida pela estética do
séc. XVIII: a beleza em movimento. Edmund Burke dizia: "A G. é uma idéia não muito diferente da beleza,
constituída pelos mesmos elementos. A G. é uma idéia relativa à postura e ao movimento: para serem graciosos, não
devem dar a impressão de dificuldade; bastam a leve flexão do corpo e a harmonia das partes, de tal maneira que não
se estorvem reciprocamente e que não se mostrem separadas por ângulos bruscos e distintos. Nesta facilidade,
harmonia e delicadeza de postura e de movimento consiste todo o encanto da G., o seu não-sei-quê'" 04 Philosophical
Inquiry into the Origin of our Ideas of the Sublime and Beautiful, 1756, II, 22). Essas idéias eram repetidas com
freqüência pelos tratadistas do séc. XVIII. Num Ensaio sobre a beleza (1765), ao caráter da G. descrito por Burke,
Giuseppe Spalletti acrescentava outro: a expressividade. "Já grandes autores observaram que essas qualidades
(agilidade e robustez) consistem nas flexões, nas curvas e na mistura delas, que, se forem acompanhadas por
transparência que indique a conformidade com os movimentos internos causados pelos afetos da alma, parecerão
graciosas: prerrogativa cuja importância o feliz possuidor do gosto natural entende com tanta facilidade quanto lhe
parece difícil explicar" (Op. cit., 37). Mas o maior teórico da G. foi certamente Schiller, que viu nesse conceito a mais
consumada harmonia entre a liberdade moral e a necessidade natural. Schiller começa distinguindo a beleza imóvel
ou arquitetônica, que é produzida pelas forças plásticas da natureza por meio da lei da necessidade, da beleza em
movimento, que é produzida por um espírito segundo condições de liberdade. A beleza arquitetônica honra o criador
da natureza; a beleza em movimento honra quem a possui. A beleza em movimento assim é chamada porque uma
modificação da alma só pode manifestar-se como movimento no mundo sensível (Über Anmut und Würde, 1793;
Werke, ed. Karpeles, XI, p. 183). Esta segunda espécie de beleza é justamente a G., definida por Schiller como "a
beleza de uma figura movida pela liberdade" (Ibid., XI, p. 184; cf. L. PAREYSON, Vestetica deli'idealismo tedesco, Turim, 1950, 1, pp. 227 ss.). Essas
observações tornaram-se clássicas e até hoje são repetidas, mesmo fora do contexto filosófico em que Schiller as
inseria, o qual caiu completamente em desuso.
GRAÇA2 (gr. xápiç; lat. Gratia; in. Grace, fr. Grâce, ai. Gnade; it. Grazid). Em geral, dom gratuito, sem retribuição;
mais especificamente, em sentido teológico, o dom da salvação ou de alguma condição essencial da salvação que
Deus oferece ao homem, independentemente dos méritos (se existirem) do próprio homem. Nesses termos, a G. foi
descrita na Epístola aos romanos, de S. Paulo. O problema da magnitude e dos limites da G. sempre foi fundamental
no cristianismo. Marcou o ponto culminante da atividade filosófica e teológica de S. Agostinho e, depois de inúmeras
discussões medievais, representou um dos maiores conflitos entre a Reforma e o Catolicismo pós-tridentino.
Reduzido a seus termos essenciais, o problema pode ser expresso da seguinte maneira. É doutrina fundamental do
cristianismo que a salvação não é possibilidade humana. A revelação e a encarnação do Cristo são os instrumentos
indispensáveis que, suprindo a deficiência da natureza humana, reduzida ou corrompida pelo pecado original, lhe
retribuem a possibilidade de salvação. Mas a revelação e a participação dos méritos de Cristo podem ser concedidas
e, em princípio, o são a todos os homens enquanto tais; por isso, a admitir-se (como fazem muitos padres da Igreja
oriental) que no fim dos tempos todos os homem serão salvos (doutrina da apocatástase [v.]), a noção de G. não dá
origem a graves problemas. Mas surge o problema quando se admite que nem todos os homens se salvarão e que no
fim dos tempos ainda haverá justos e perversos, portanto, eleitos e condenados. Nesse caso, surge a pergunta: quem
determina a salvação de cada homem, o próprio homem ou Deus? Diante desse problema só há duas respostas
possíveis e, na realidade, são duas as doutrinas típicas da G.: Ia a G. é determinante, ou seja, é Deus mesmo que,
conferindo-a a uns e negando-a a outros, determina os hábitos e as disposições que tornarão o homem justo e o
levarão à salvação; 2a a G. não é determinante, no sentido de que sua concessão por parte de Deus, mesmo sendo
condição necessária da salvação, não determina a própria salvação,
GRAÇA2
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GRAÇA2
que exige a contribuição do homem. Essas duas soluções, ou melhor, esses dois tipos de soluções, permaneceram
substancialmente inalterados ao longo da história dessa controvérsia, apesar da variedade das expressões, atenuações
ou nuanças que receberam durante esse tempo.
Ia A primeira solução é apresentada por S. Agostinho na polêmica contra Pelágio, pela Reforma protestante e pelo
jansenismo. Consiste em julgar que a humanidade toda pecou com Adão e em Adão e que, portanto, o gênero
humano é uma só "massa condenada", a cuja punição nenhum membro pode escapar, a não ser pela misericórdia e
pela G. não obrigatória de Deus (S. AGOSTINHO, De civ. Dei, XIII, 14). O fundamento dessa solução é que a verdadeira liberdade do homem coincide com a ação agraciadora de Deus. Segundo S. Agostinho, a vontade só é livre
quando não dominada pelo vício e pelo pecado e é essa a liberdade que só pode ser devolvida ao homem pela G. de
Deus (Ibid., XTV, 11). Desse ponto de vista, o homem não possui méritos próprios, válidos perante Deus: seus
méritos são dons divinos que devem ser atribuídos a Deus e nào a si mesmo (Degratia et libero arbítrio, 6). O De
servo arbítrio (1525) de Lutero, admitindo esse ponto de vista agostiniano, nega que o homem seja livre. Segundo
Lutero, não se pode admitir ao mesmo tempo a liberdade divina e a humana. A presciência e a predestinação divina
implicam que nada acontece sem a vontade de Deus, e isso exclui que no homem ou em qualquer outra criatura haja
livre-arbítrio. À óbvia objeção que, nesse caso, Deus é o autor do mal, Lutero responde com a doutrina já defendida
pela última Escolástica (p. ex., por OCKHAM, In Sent., I, d. 17, q. 1 M): Deus não se submete a normas: ele não deve
querer uma coisa ou outra porque é justa, mas o que ele quer é justo por si mesmo {De servo arb., 152). Calvino
expressava mais cruamente o mesmo conceito quando afirmava: "Digamos que o Senhor decidiu, em seu parecer
eterno e imutável, a quais homens conceder salvação e quais deixar em ruína. Digamos que os chamados à salvação
são recebidos por sua misericórdia gratuita, sem nenhuma consideração pela dignidade deles. Ao contrário, o ingresso
na vida está fechado para todos os que ele qugr entregar à condenação, e isso acontece em virtude de seu juízo oculto
e incompreensível, embora justo e equânime" {Institution de Ia religion
cbrétienne, 1541, 7). Augustinus (164V) de Jan-sênio contém tese idêntica a esta sobre a G. (v. JANSENISMO).
2a O segundo ponto de vista foi formulado durante a Idade Média e está exposto, p. ex., na obra de Anselmo,
Concordância da presciência da predestinação e da G, de Deus com o livre-arbítrio (1109). Anselmo afirma que a
predestinação de Deus leva em conta a liberdade humana, já que Deus não predestina ninguém violentando sua
vontade, mas deixa sempre a salvação em poder do predestinado. Todavia, em virtude de sua presciência, ele
predestina só aqueles cuja boa vontade conhece antecipadamente (De concórdia prescien-tiae, etc. q. 2, 3). Solução
análoga é dada por S. Tomás: "A preparação do homem para a G. tem Deus como móbil, o livre-arbítrio como
movimento. Ela pode ser considerada sob dois aspectos: no primeiro, depende do livre-arbítrio e não implica a
necessidade de obter a G. porque o dom da G. excede qualquer preparação da virtude humana; no segundo aspecto,
tem Deus como móbil e implica a necessidade de obter a G. que é determinada por Deus, embora não se trate de uma
necessidade proveniente de coação, mas da infalibilidade, porquanto a intenção de Deus não pode deixar de ter
efeito" (S. Th., III, q. 112, a 3). No período da Contra-Reforma, Luís de Molina, no texto Liberi arbitri cum gratiae
donis, divina praes-cientia, providentia, praedestinatione et repro-batione concórdia, voltou a propor a solução
tomista, distinguindo a G. suficiente, dada a todos os homens como condição necessária da salvação, da G. eficaz, que
é infalível e segue a boa vontade humana. Em realidade esta e análogas distinções só servem para justificar o caráter
não rigorosamente determinante da G., no sentido de que, em todo caso, ela deixa a salvo a liberdade humana e, com
isso, também deixa aos réprobos (e somente a eles) a responsabilidade de sua condenação. Toda a disputa gira em
torno do significado de liberdade iy.), e, já que ambas as partes consideram a liberdade como autocausalidade — mas
nenhuma delas considera tal causalidade — primária ou absoluta —, a substância da disputa reduz-se a bem pouco do
ponto de vista conceptual. Para uma ou outra doutrina, a causa primeira de tudo, e, portanto, também da liberdade ou
da salvação humana, é Deus. Contudo, essa disputa não é realmente conceptual, mas religiosa ou eclesiástica. A
defesa de certo grau de liberdade
GRAMÁTICA
490
GRAMÁTICA
humana em relação à G. tende a acentuar a importância da ação mediadora da Igreja, na qual o homem
sempre pode achar, desse ponto de vista, a concessão compreensiva da G., ou seja, a ajuda sobrenatural
para a salvação. Por outro lado, a acentuação do caráter determinante ou necessitante da G. tende a
colocar o homem diretamente diante de Deus e de sua vontade inescrutável, já que o pecado, desse ponto
de vista, não pode ser remido por ação mediadora, mas, ao contrário, é sinal evidente de não-concessão da
G., portanto, da futura condenação. Entende-se por que este segundo ponto de vista, assim como ocorreu
com o janse-nismo, surge no próprio seio do catolicismo quando, em nome de certo rigorismo moral, se
deseja insistir na gravidade do pecado e não se está disposto a considerá-lo um obstáculo fácil à salvação.
GRAMÁTICA (gr. ypa\i\iaxiyd] xéxvt|; lat. Grammatica; in. Grammar-, fr. Grammaire; ai. Grammatik;
it. Grammatica). Segundo uma tradição registrada por Diógenes Laércio (III, 25), Platão foi o primeiro a
"teorizar a possibilidade da G.". De fato, é freqüente nos textos de Platão a referência à G., cuja natureza é
definida com mais precisão no Crãtilo. O fundamento dessa definição é a analogia entre a G. e a arte
figurativa. Assim como um artista procura reproduzir os traços dos objetos com o desenho e as cores, o
gramático procura fazer a mesma coisa com as sílabas e as letras. Seu objetivo é "imitar a substância das
coisas". Se ele chegar a reproduzir tudo o que pertence a essa substância, sua imagem será bela, mas, se
deixar alguma coisa fora ou se acrescentar algo não pertinente, sua imagem não será bela. Nesse aspecto,
o gramático é um "artífice de nomes, portanto um legislador que pode ser bom ou mau" {Crat., 431 b ss.).
Esse é o primeiro conceito de G. formulado, e é normativo porque, segundo ele, o gramático não
descreve, mas prescreve: é um "legislador". Parece ser análogo o conceito de Aristóteles, que define a G.
como "ciência do ler e do escrever" {Top., VI, 5, 142 b 31). Esse conceito praticamente não foi alterado
até a Idade Moderna. No fim da Escolástica começou-se a falar de uma "G. especulativa" (Tomaseu de
Erfurt compôs uma que foi atribuída a Duns Scot), e Campanella incluiu uma G. semelhante em sua
Philosophia rationalis (1638), que inclui Poética, Retórica e Dialética. No século seguinte, Wolff pôs
entre as outras ciências a G. especulativa ou filosofia
da G., "na qual se explicam as regras gerais pertencentes à G. em geral, sem levar em conta os
particularismos das línguas especiais" (Log., Disc. prael., 1735, § 72).
Foi só com Humboldt que surgiu um novo conceito de G., no famoso texto Sobre a diversidade da
constituição da linguagem humana (1836), a partir do qual a G. começou a ser concebida como uma
disciplina não normativa ou legislativa, mas descritiva, sendo seu objetivo investigar, na língua, as
uniformidades que constituem regras ou leis. Por esse conceito moldaram-se todos os estudos modernos
da G., que passaram a utilizar cada vez mais as considerações estatísticas (cf, p. ex., G. HER-DAN,
Language as Choice and Chance, Grõ-ningen, 1956). No campo filosófico, Heidegger encarou a
exigência de libertar a G. da lógica que toma as coisas como modelo, ou seja, o "instrumental
intramundano": "A tarefa de libertar a gramática da lógica exige uma compreensão preliminar e positiva
da estrutura a priori do discurso como existencial. Essa tarefa não pode ser cumprida subsidiariamente
por meio de correções e complementações do que foi legado pela tradição. Nesse propósito, devem-se
questionar as formas fundamentais em que se funda a possibilidade semântica de articulação do que é
suscetível de compreensão e não apenas dos entes intramundanos conhecidos teoricamente e expressos
em frases" iSein undZeit, § 34). Desse ponto de vista, não basta realizar uma "G. geral" baseada na
generalização das regras de todas as línguas, visto que mesmo essa G. geral pode ser restrita demais no
que diz respeito às formas lógicas em que se molda. Heidegger acrescenta: "A semântica tem raízes na
ontologia do ser-aí: sua sorte está ligada ao destino deste" (Jbid., % 34). Em outros termos, Heidegger
desejaria uma G. que levasse em conta não só e não tanto a estrutura das coisas, em que se molda a
estrutura da oração, mas também e sobretudo a estrutura da existência humana, que é específica e
diferente da estrutura das coisas. Esse também parece ser o pressuposto da G. gerativa e transformacional
de que fala Chomsky; com efeito, este se refere freqüentemente a Descartes e, em geral, aos filósofos do
séc. XVII, que ressaltaram o caráter especificamente humano e criativo da linguagem. Essa G. gerativa
deveria solucionar o problema de "construir uma teoria da aquisição lingüística e de explicar as
habilidades inatas específicas que possibilitam essa aquisição"
GRANDEZA
491
GRAU
(Aspects ofthe Theory ofSyntax, 1956, I, § 4). Uma G. desse tipo, por um lado, seria "um modelo explicativo, ou seja,
uma teoria da intuição lingüística do falante nativo" e, por outro, mostraria que "as estruturas profundas são muito
semelhantes de uma língua para outra e as regras que as manipulam e interpretam também parecem derivar de uma
classe muito restrita de operações formais concebíveis" (Ensaios lingüísticos, trad. it., III, 1969, pp. 19 e 272). Essa
G. seria, assim, a matriz de qualquer G. possível e também apresentaria os critérios para a escolha de determinada G.
na constituição de uma linguagem.
GRANDEZA (gr. |ÍÍTE9OÇ; lat. Magnitudo; in. Size, Magnitude; fr. Grandeur, ai. Grôsse, it. Grandezzá). Segundo
Aristóteles, quantidade mensurável, distinta da multiplicidade, que é a quantidade numerável, e a ela correspondente.
Aristóteles acrescenta que, enquanto a multiplicidade é potencialmente divisível em partes não contínuas, a G. é
divisível em partes contínuas. Portanto, são G. o comprimento, a largura, a profundidade (Met., V, 13, 1020 a 7).
Kant fez da G. um princípio da Razão Pura, mais precisamente um "axioma da intuição", mas não mantém imutável
esse conceito. "A percepção de um objeto como fenômeno", diz Kantj "só é possível por meio da unidade sintética da
multiplicidade da intuição sensível dada, graças à qual a unidade da composição da multiplicidade homogênea é
pensada no conceito de uma G.; os fenômenos são todos G., aliás G. extensivas porque devem ser representados
como intui-ções no espaço e no tempo". Segundo Kant, dizer G. extensivas significa que "a representação das partes
torna possível a representação do todo e por isso a precede"; conceito que torna a matemática aplicável aos objetos da
experiência (Crít. R. Pura, Anal. dos princ, cap. II, seç. III, 1). Tudo isso significa que a G. é uma quantidade
empírica que pode ser aplicada à matemática, ou seja, que é mensurável. No pensamento matemático moderno a
relação entre a noção de G. e a de mensurabilidade se mantém, mas às vezes se inverte. É o que ocorre em Russell,
para quem G. é a "propriedade que várias coisas mensuráveis podem possuir em comum". E acrescenta: "A crença de
que haja semelhante propriedade, pertencente a cada um dos termos de dado grupo, eqüivale logicamente à crença de
que haja uma relação simétrica e transitiva entre os
componentes de cada par de termos desse grupo" (Human Knowledge, IV, 6; trad. it., p. 411) (v. QUANTIDADE).
GRAU (lat. Gradus; in. Degree, Grade; fr. Degré; ai. Grad; it. Grado). A importância desta noção se deve à sua
relação com a noção de infinitésimo e, por isso, só começa com Leib-niz, que utiliza essa palavra com sentido
metafísico, e não matemático ou físico. Os escolás-ticos, porém, usavam essa palavra ao falarem de "G. de perfeição"
do universo e, portanto, da "prova dos G." da existência de Deus (v. DEUS, PROVAS DE). Bacon falava de uma "tábua
dos G." (v. TÁBUA), Locke aludia aos G. das idéias simples (Ensaio, IV, 2, 11) e, em sentido mais preciso e moderno,
Galilei observava: "Segue-se que, diminuindo sempre nessa razão a velocidade antecedente, não haverá G. de
velocidade tão pequeno, ou melhor, de lentidão tão grande, no qual não se tenha constituído o mesmo móvel depois
da partida da infinita lentidão, ou seja, do repouso, etc." (Disc. delle nuove scienze, III; Op., VIII, p. 199). Mas foi só
com a lex continui, estabelecida por Leib-niz, que a noção de G. passou a ser conceito fundamental da matemática, da
física e da metafísica. Segundo a lei da continuidade, passa-se por G. do grande ao pequeno, do repouso ao
movimento ou vice-versa, assim como se passa por G. das percepções evidentes às que são pequenas demais para
serem observadas (Nouv. ess., 1703, pref.). A partir de Leibniz o G. passa a ser noção fundamental da metafísica.
Definida por Wolff como "quantidade das quantidades" (Ont., § 747) e por Baumgarten nos mesmos termos (Met., §
246), Kant erigiu essa noção em "princípio da razão pura", expressando-a do seguinte modo: "Em todos os
fenômenos o real, que é objeto da sensação, tem uma grandeza intensiva, ou seja, um G.". Para Kant, é nesse
princípio, que serve de base às "antecipações" da percepção, que se funda o conceito de continuidade tanto em física
quanto em matemática (Crít. R. Pura, Anal. dos princípios, seç. 3, 2fi). Na realidade, a noção de contínuo e a de G.
não são diferentes. Como observava Leibniz, a lex continui leva a considerar, por exemplo, o repouso como um G. do
movimento e, em geral, qualquer qualidade como um G. da qualidade oposta. Hegel expressou essa idéia ao falar da
transformação da quantidade em qualidade ou vice-versa: "À primeira vista, a quantidade aparece como tal
contrapondo-se à qualidade; mas
GROTESCO
492
GUERRA
a quantidade também é uma qualidade, uma determinação que, em geral, se refere a si, distinta de sua
outra determinação, a qualidade como tal. Contudo ela não é apenas qualidade, mas a verdade da
qualidade é a quantidade; aquela mostra-se em transposição nesta (...). Para chegar-se à totalidade, é
necessária a transição dupla, não só a transição de uma determinação para a sua outra determinação, mas
também a transição desta outra, o seu retorno, para a primeira" (Wissenschaft der Logik, I, I, seç. II, cap.
III, C; trad. it., I, p. 391). Engels enumera essa tese de Hegel como a primeira lei fundamental da dialética
(v. DIALÉTICO, MATERIA-LISMO), interpretando-a em sentido materialista: "Lei da conversão da
quantidade em qualidade e vice-versa. No que se refere aos nossos objetivos, podemos expressá-la no fato
de que, na natureza, só podem ocorrer variações qualitativas acrescentando ou subtraindo matéria ou
movimento (a chamada energia), e isso de modo rigorosamente válido para qualquer caso" (Dialektik der
Natur, Dialética-, trad. it., p. 57).
Na filosofia contemporânea, a noção de G. foi absorvida pela noção de continuidade.
GROTESCO (in. Grotesque; fr. Grotesque; ai. Groteske; it. Grottescó). Uma espécie do cômico, distinguida
pelos tratadistas modernos. É caracterizado por Santayana como "um efeito interessante, produzido pela
transformação de um tipo ideal, que exagere um dos seus elementos ou o combine com os de outros
tipos". Nesse caso considera-se "a sua divergência em relação ao tipo natural, e não em relação sua
possibilidade interna" {Sense of Beauty, 1896, § 64).
GRUPO (in. Group-, fr. Groupe; ai. Gruppe; it. Gruppó). 1. No significado matemático, a palavra foi
usada pela primeira vez por Evariste Galois, em 1830. O conceito elaborado posteriormente pela
matemática serviu poderosamente para a unificação das matemáticas e para a sua elucidação conceituai.
Um G. é uma classe ou um conjunto dotado das seguintes características: d) seus elementos podem ser
entidades aritméticas, geométricas, físicas ou indefinidas; b) o número de tais entidades pode ser finito ou
infinito; c) as regras de combinação de tais entidades podem ser as aritméticas ou geométricas ou podem
não ser definidas; d) a regra de combinação deve ser associativa, mas pode ser tanto comutativa ou nãocomutativa; é) todo elemento do conjunto deve ter o seu inverso. A classe dos números inteiros positivos
e negativos, inclusive o zero, constitui um G. nesse sentido. Os dois conceitos fundamentais da teoria dos
G. são os de transformação (v.), que é entendido no sentido mais lato, e o de invariância (v.
INVARIANTE), em virtude do qual se chamam invariantes as propriedades de um objeto que permanecem
as mesmas, por meio da transformação.
2. No significado sociológico, um conjunto de pessoas caracterizadas por uma atitude comum ou
recorrente. É esse o termo mais geral para indicar um objeto qualquer da pesquisa sociológica: de fato, o
grupo pode ser definido dos modos mais diversos, e a diversidade desses modos garante as dimensões de
liberdade da própria pesquisa; cf. R. K. MERTON, Social Theory and Social Structure, 3a ed., 1957, cap.
VHI-LX; ABBAGNANO, Problemi di sociologia, 1959, III, 8.
GUERRA (gr. nóte\ioq; lat. Bellum; in. War; fr. Guerre; ai. Krieg; it. Guerra). Alguns filósofos da
Antigüidade atribuíram um valor cósmico à G., uma função dominante na economia do universo. Foi o
que fez Heráclito, que chamou a G. de "mãe e rainha de todas as coisas" (Fr. 53, Diels), afirmando que "a
G. e a justiça são conflitos e, por meio do conflito, todas as coisas são geradas e chegam à morte" (Fr. 80,
Diels). Foi o que fez também Empédocles, que, ao lado da Amizade (ou Amor), como força que une os
elementos constitutivos do mundo, pôs o Ódio ou a Discórdia que tende a desuni-los (Fr. 17, Diels).
Outros filósofos, como Hobbes, afirmaram que o estado de G. é o estado "natural" da humanidade, no
sentido de que é o estado a que ela seria reduzida sem as normas do direito, ou do qual procura sair
mediante essas regras (Leviath., I, 13). Mas, não obstante essas idéias ou semelhantes, os filósofos
esforçaram-se constantemente por evidenciar e encorajar os esforços dos homens para evitar as G. ou para
diminuir as situações que lhes dão origem. Por vezes, ocuparam-se em formular projetos nesse sentido (v.
PAZ). A exceção a essa regra é representada por Hegel, que considerou a G. como uma espécie de "juízo
de Deus", do qual a providência histórica se vale para dar a vitória à melhor encarnação do Espírito do
mundo. Hegel afirma, por um lado, que, "assim como o movimento dos ventos preserva o mar da
putrefação à qual o reduziria a quietude duradoura, a isso reduziria os povos a paz duradoura ou perpétua"
(Fil. do dir., § 324), e por outro lado julga que, no plano providencial da história do
GUERRA
493
GUIA, PRINCÍPIO
mundo, um povo sucede ao outro no encarnar, realizar ou manifestar o Espírito do mundo, dominando, em nome e
por meio dessa superioridade, todos os outros povos. A G. pode ser um episódio dessa alternância, desse juízo de
Deus proferido pelo "Espírito do mundo", "Em geral", diz Hegel, "a isso está ligada uma força externa que destitui
com violência o povo do domínio e faz que ele deixe de ter primazia. Essa força exterior, porém, só pertence ao
fenômeno; nenhuma força externa ou interna pode impor sua eficácia destruidora em face do Espírito do povo, se este já não estiver exânime, extinto" {Phi-losophie der Geschichte,
ed. Lasson, p. 47). Essas afirmações de Hegel eqüivalem a justificar qualquer G. vitoriosa que, como tal, estaria nos
planos providenciais da Razão. Constituem, portanto, uma monstruosidade filosófica que, entretanto, não deixou de
ter defensores e seguidores, dentro e fora do círculo da filosofia hegeliana.
GUIA, PRINCÍPIO. V PRINCÍPIO.
H
HÁBITO1 (gr. ê9oç; lat. Consuetudo; in. Habit, Custom; fr. Habitude, ai. Gewohnheit; it. Abitudiné). O mesmo que
COSTUME1. Em geral, a repetição constante de um acontecimento ou de um comportamento, devido a um
mecanismo de qualquer gênero (físico, fisiológico, biológico, social, etc.) Na maioria das vezes, esse mecanismo se
forma por meio da repetição dos atos ou dos comportamentos e, portanto, no caso de acontecimentos humanos, por
meio do exercício. Diz-se que "as coisas habitualmente acontecem assim" para indicar qualquer uniformidade nos
acontecimentos, mesmo não humanos, conquanto não seja uma uniformidade rigorosa e absoluta, mas apenas
aproximada e relativa, contudo capaz de permitir uma previsão provável. Nesse sentido Aristóteles disse (Ret., I, 10,
1369b 6): "Faz-se por hábito aquilo que se faz por se ter feito muitas vezes", e acrescenta que "O hábito é, de certa
forma, muito semelhante à natureza, já que 'freqüentemente' e 'sempre' são próximos: a natureza é daquilo que é
sempre; o hábito é daquilo que é freqüentemente" (Ibid., I, 11, 1 370a 7). Com isso Aristóteles viu no hábito uma
espécie de mecanismo análogo aos mecanismos naturais, que garante, de certa forma, a repetição uni-fonne dos fatos,
atos ou comportamentos, eliminando ou reduzindo nestes últimos o esforço e o trabalho, tornando-os, assim,
agradáveis.
Com esse significado esse termo foi e é constantemente usado em várias disciplinas (biologia, psicologia, sociologia)
e, em filosofia moderna, tem sido tomado freqüentemente como princípio de explicação de problemas gnosiológicos
ou metafísicos. O primeiro a usar esse conceito com essa finalidade foi Pascal, que insistiu na influência do hábito na
crença: "É o costume (.coutumé) que torna as nossas provas mais sólidas e dignas de crédito: ele redobra o automatismo, que arrasta o intelecto sem que este se aperceba. É preciso conquistar uma crença
mais fácil, que é a do hábito {habitude) e que, sem violência, sem arte, sem provas, faz-nos crer nas coisas e inclina
todas as nossas forças para essa crença, de tal forma que nossa alma nela incide naturalmente" (Pensées, nQ 252). Foi
esse o ponto de vista que, um século depois, serviu de base à filosofia de Hume. Ele definiu o costume como a
disposição, produzida pela repetição de um ato, a renovar o mesmo ato, sem a intervenção do raciocínio (Inq. Cone.
Underst., V, 1). E valeu-se desse conceito de hábito (costume) para explicar a função das idéias abstratas, que ele
considerou como idéias particulares assumidas como signos de outras idéias particulares semelhantes. O costume de
considerar interligadas idéias designadas por um único nome faz que o nome desperte em nós nem uma nem todas
dessas idéias, mas sim o costume de considerá-las juntas, portanto uma ou outra, delas de acordo com as ocasiões.
(Treatise, I, 1, 7). Hume recorre ao hábito para explicar a conexão causai: por termos visto várias vezes juntos dois
fatos ou objetos, como p. ex. a chama e o calor, o peso e a solidez, somos levados pelo costume a prever um quando o
outro se apresenta. O conjunto de nossa vida diária funda-se no hábito. "Sem o hábito" — diz Hume (Inquiry, cit., V,
I) — "ignoraríamos inteiramente quaisquer questões de fato, além daquelas que se nos apresentam imediatamente à
memória ou aos sentidos. Não saberíamos adaptar os meios aos fins, nem empregar nossos poderes naturais para
produzir qualquer efeito. As ações terminariam, terminando também a parte principal da especulação".
HÁBITO1
495
HÁBITO2
De modo análogo, mas em campo diferente, Bergson (talvez retomando uma idéia de Renouvier, Nouvelle
monadologie, p. 298) utilizou a noção de hábito/costume para explicar as obrigações morais, que não seriam
exigências da razão, mas costumes sociais que garantem a vida e a solidez do corpo social (Deux sources, p. 21).
A interpretação do hábito como ação origi-nariamente espontânea ou livre que depois se fixa com o exercício, de tal
forma que pode ser repetida sem a intervenção do raciocínio e da consciência, portanto mecanicamente, possibilitou o
«50 metafísico dessa noção: uso que aparece com bastante freqüência na filosofia moderna e contemporânea,
especialmente no idealismo e no espiritualismo. O primeiro a tirar proveito desse uso para a construção de uma
metafísica da experiência interior foi Maine de Biran, em sua obra Influência do hábito sobre a faculdade de
pensar(1803) . Enquanto os hábitos passivos, que dizem respeito às sensações, reduzem a consciência, os hábitos
ativos, que dizem respeito às operações, facilitam e aperfeiçoam a consciência, constituindo, por isso, um instrumento
para que o espírito se liberte dos mecanismos que tendem a formar-se mediante a repetição dos seus esforços.
Essa noção de hábito/costume, que, mesmo sendo expressa nos termos da denominada "experiência interior" ou
"sentido interior", já tem alcance metafísico (pois Maine de Biran acredita que os dados dessa experiência revelam a
própria realidade) e encontra correspondência na doutrina de Hegel, que lhe dedicou alguns parágrafos da sua seção
sobre o espírito subjetivo, na parte dedicada à alma senciente {Ene, §§ 409-10). Hegel diz que, graças ao hábito, a
alma "toma posse do seu conteúdo e conserva-o de tal forma que, nessas determinações, ela não está como sensitiva,
não está em relação com elas, mas distingue-se delas, nem está nelas imersa, mas as possui sem sensação e sem
consciência, movendo-se dentro delas. A alma, portanto, está livre delas, porquanto por elas não se interesse e com
elas não se preocupe; e existindo nestas formas como em poder de si, está concomitantemente aberta a qualquer outra
atividade e ocupação (tanto da sensação quanto de consciência espiritual em geral)". Por esta função do hábito, de
oferecer à alma a posse de certo conteúdo, de tal forma que ela possa utilizar esse conteúdo "sem sensação e sem
consciência" (de modo que sensação e consciência tornam-se livres novamente disponíveis para outras operações), Hegel ressaltou a importância do
hábito para a vida espiritual. "O hábito" — disse ele — "é mais essencial para a existência do que qualquer
espiritualidade no indivíduo, para que o sujeito exista como sujeito concreto, como idealidade da alma; para que o
conteúdo religioso, moral, etc, pertença a ele como ele mesmo, a ele como a essa alma; para que não esteja nele
apenas em si (como disposição), nem como sensação e como representação transitória, nem como interiorida-de
abstrata separada do fazer e da realidade. mas no seu ser". Isto quer dizer que o hábito incorpora certo conteúdo no
próprio ser da alma individual, como uma posse efetiva, que se traduz em ação real.
Na esteira de Maine de Biran, Ravaisson propôs uma metafísica do hábito, que expõe num famoso trabalho (Sobre o
hábito, 1838). No hábito, Ravaisson viu uma idéia substancial, ou seja, uma idéia que se transformou em substância,
em realidade, e que age como tal. O hábito não é um mecanismo puro, mas uma "lei de graça", porquanto indica o
predomínio da causa final sobre a causa eficiente. Permite. pois, que se entenda a própria natureza como espírito e
como atividade espiritual, uma vez que demonstra que o espírito pode tornar-se natureza e a natureza, espírito.
Permite organizar todos os seres numa série cujos limites extremos são representados pela natureza e pelo espírito. "O
limite inferior é a necessidade, o destino, se quisermos, mas na espontaneidade da natureza; o limite superior é a
liberdade do intelecto. O hábito desce de um para outro, reaproxima esses contrários e, reaproximando-os, revela sua
essência íntima e sua conexão necessária." A partir de Bergson, esses conceitos foram retomados com freqüência no
espiritualismo contemporâneo, para explicar de certa forma o "mecanismo da matéria" e reintegrá-lo na
espontaneidade espiritual.
HÁBITO2 (gr. e^tç; lat. Habitus, in. Habit; fr. Disposition; ai. Fertigkeit; it. Abito). É preciso distinguir o significado
deste termo do significado de costume (v. HÁBITO1), com o qual é freqüentemente confundido. Significa uma
disposição constante ou relativamente constante para ser ou agir de certo modo. P. ex., o "hábito de dizer a verdade" é
a disposição deliberada, neste caso um compromisso moral de dizer a verdade. É coisa bem diferente do "costume de
dizer a verdade", que implicaria o mecanismo
HARMONIA
496
HECCEIDADE
de repetir freqüentemente essa ação. Assim, "o hábito de levantar-se cedo pela manhã" é uma espécie de
compromisso que pode representar esforço e sofrimento; "o costume de levantar-se cedo pela manhã" não representa
esforço algum, porque é um mecanismo rotineiro.
Essa palavra foi introduzida na linguagem filosófica por Aristóteles (Met., V, 20, 1022b, 10), que a definiu como
"uma disposição para estar bem ou mal disposto em relação a alguma coisa, tanto em relação a si mesmo quanto a
outra coisa; p. ex., a saúde é um hábito, porque é uma dessas disposições". Nesse sentido, Aristóteles julga que a
virtude é um hábito, por não ser "emoção" (como a cupidez, a ira, o medo, etc), nem "potência", como seria a
tendência à ira, do sofrimento, à piedade, etc. A virtude é, antes, a disposição para enfrentar, bem ou mal, emoções e
potências; p. ex., dobrar-se aos impulsos da ira ou moderá-los (Et. nic, II, 5). O mesmo significado é retomado por S.
Tomás, que o expõe da seguinte maneira (Contra Gent, IV, 77): "O hábito difere da potência porque não nos capacita
a fazer alguma coisa, mas torna-nos hábeis ou inábeis para agir bem ou mal".
Esse conceito manteve-se praticamente inalterado até nossos dias. Dewey assim o expõe: "A espécie de atividade
humana que é influenciada pela atividade precedente e, neste sentido, é adquirida; que contém em si certa ordem ou
certa sistematização dos menores elementos da ação; que é projetante, dinâmica em qualidade, pronta para a
manifestação aberta; e que é atuante em qualquer forma subordinada e oculta, mesmo quando não é atividade
obviamente dominante. Hábito, mesmo em seu emprego ordinário, é o termo que denota mais esses fatos do que
qualquer outra palavra" ÇHuman Nature and Conduct, 1921, pp. 40-41). Dewey achava que os termos "atitude" e
"disposição" também eram apropriados a esse conceito; na verdade, estes dois últimos termos são usados com mais
freqüência que hábito e com significados muito semelhantes.
HARMONIA (gr. ápu.oví(X; lat. Harmonia; in. Harmony, fr. Harmonie, ai. Harmonie, it. Armonid). A ordem ou a
disposição finalista das partes de um todo, como p. ex. do mundo, ou da alma, foi denominada "Harmonia", pelos
pitagóricos, por ser proporção ou mescla dos elementos corpóreos (cf. PLATÀO, Fed., 86 c). Empédocles valeu-se
desse conceito para definir a natureza do esfero (Fr. 122, Diels). Esse
termo foi usado por Leibniz na expressão Harmonia preestabelecida, para designar determinado sistema de
comunicação entre as substâncias espirituais (manadas) que compõem o mundo. Leibniz acredita que tais substâncias
não podem influenciar-se reciprocamente, já que cada uma está "fechada em si mesma", e assim exclui a doutrina
comumente aceita, da influência recíproca. Exclui também a doutrina por ele denominada assistência, que é própria
do sistema das causas ocasionais de Guelinx e Malebranche, segundo a qual a comunicação entre as várias mônadas
seria estabelecida cada uma por sua vez diretamente por Deus. A Harmonia preestabelecida é a doutrina segundo a
qual as várias mônadas, como muitos relógios perfeitamente construídos, estão sempre de acordo entre si, mesmo
seguindo cada uma sua própria lei. Assim, a alma e o corpo vivem cada um por conta própria, contudo em harmonia,
porque Deus coordenou as leis de ambos. O corpo segue a lei mecânica, a alma segue sua própria espontaneidade: a
H. entre eles foi predisposta por Deus no ato da criação (Phil. Schriften, ed. Gerhardt, IV, p. 500).
Esse termo encontra-se com freqüência no espiritualismo, especialmente em Ravaisson. Whitehead utilizou-o para
explicar a beleza, a verdade, o bem, assim como a liberdade, a paz e toda "a grande aventura cósmica". "A grande H."
— diz ele (Adv. ofldeas, p. 362) — "é a H. de individualidades duradouras conexas na unidade do fundamento. É por
essa razão que a noção de liberdade nunca abandona as civilizações mais avançadas; a liberdade, em cada um de seus
muitos sentidos, é a exigência de vigorosa auto-afirmação".
HECCEIDADE (lat. Haecceitas; in. Hae-cceity, fr. Heccéité, it. Ecceitã). Termo criado por Duns Scot a partir do
adjetivo haec, com que se indica uma coisa particular, para designar a individualidade-, esta consiste na "realidade
última do ente", que determina e "contrai" a natureza comum (composta de matéria e forma) numa coisa particular,
ad esse hanc rem. Esse princípio é invocado por Duns Scot para explicar de que maneira a coisa individual se origina
da "natureza comum", que é indiferente tanto à universalidade quanto à individualidade. Esse termo não se encontra
em Opus Oxoniense, que é o maior comentário de Duns Scot às Sentenças, de Pietro Lombardo, mas em
Reportataparisiensia (II, d. 12, q. 5, n.
HEDONISMO
497
HERMENÊUTICA
1, 8, 13, 14); foi muito usado pela escola escotíSta (v. INDMDUAÇÃO).
HEDONISMO (in. Hedonism-, fr. Hédonis-me, ai. Hedonismus; it. Edonismó). Termo que indica tanto a procura
indiscriminada do prazer, quanto a doutrina filosófica que considera o prazer como o único bem possível, portanto
como o fundamento de vida moral. Essa doutrina foi sustentada por uma das escolas so-cráticas, a Cirenaica, fundada
por Aristipo; foi retomada por Epicuro, segundo o qual "o prazer é o princípio e o fim da vida feliz" (DIÓG. L, X,
129). O hedonismo distingue-se do utilita-rismo do séc. XVIII porque, para este último, o bem não está no prazer
individual, mas no prazer do "maior número possível de pessoas", ou seja, na utilidade social.
HEGEIIANISMO (in. Hegelianism; fr. Hé-gélianisme, ai. Hegelianismus; it. Hegelismó). Doutrina de Hegel (17701831), na forma como agiu na cultura contemporânea, com maior difusão e profundidade. Pode ser assim resumida:
lfi Identidade entre racional e real, em virtude da qual a realidade é tudo aquilo que deve ser, ou seja, justifica-se
absolutamente em todas as suas manifestações, que, portanto, são "necessárias" no sentido de não poderem ser
diferentes daquilo que são. Desse ponto de vista, contrapor à realidade o "dever ser", uma norma ou um ideal à qual
ela não se adequaria, significa simplesmente erigir em juiz da realidade o intelecto finito (o interesse ou o arbítrio do
indivíduo humano), e não a razão.
2S Interpretação da necessidade racional em termos de processo dialético, entendendo-se por dialética (v.) a síntese
dos opostos.
3Q Reconhecimento, como termo último desse processo, de uma autoconsciência absoluta, que também será chamada
pelos partidários de Hegel de Espírito, Conceito Puro, Consciência Absoluta, Superalma, etc.;
4e Interpretação da história como realização de um plano providencial no qual os povos vencedores encarnam,
altemadamente, o Espírito do mundo, ou seja, a Autoconsciência ou Deus.
5a Interpretação do Estado como encar-nação ou manifestação do Espírito do mundo ou, em outros termos, como
realização de Deus no mundo.
Apesar de esses pontos básicos constituírem o espírito da filosofia hegeliana, nem todos entraram na constituição do
patrimônio
das correntes filosóficas que se inspiraram no hegelianismo. A direita hegeliana insistiu sobretudo nas teses 2 a, 3B e
5a; a esquerda, nas teses 1B e 2.a. O neo-hegelianismo italiano, nas teses ls, 2a e 4e (v. ABSOLUTO; DIREITA HEGELIANA;
IDEALISMO; ESQUERDA HEGELIANA)
HEGEMÔNICO (gr. IÍYELLOVIKÓV; lat. Prín-cipatus-, it. Egemonicó). Segundo os estóicos, a razão que anima e
governa o mundo. "Chamo de parte regedora ou governo aquilo que os gregos denominam H., da qual pode e deve
estar o mais excelente em cada gênero de coisas. Assim, é preciso que também a parte em que está o governo de toda
a natureza seja entre todas a melhor e a mais digna do poder e do domínio sobre todas as coisas" (CÍCERO, De nat.
deor., II, 29).
HELENÍSTICA, FILOSOFIA. Entende-se, com esta expressão, a filosofia da época alexandrina — período
seguinte à morte de Alexandre Magno (323 a.C) —, que compreende as três grandes linhas mestras: Estoicismo,
Epicurismo e Ceticismo — v. os respectivos termos, bem como ALEXANDRINISMO.
HENOTEÍSMO (ai. Henotheismus). Termo cunhado por Max Müller (Lect. on the Ortgin and Growth of Religion,
1878) para indicar a crença segundo a qual, mesmo havendo uma única divindade para o povo ou nação a que se
pertence, existem outras divindades para os outros povos e as outras nações.
HERACLITISMO (in. Heracliteanism-, fr. Héraclitisme, ai. Heraklitismus, it. Eraclitismó). Indica-se, com este
termo, o ponto mais relevante da doutrina de Heráclito de Efeso (séc. V a.C), ou seja, o princípio do devir incessante
das coisas, expresso no famoso fragmento: "Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, nem tocar duas vezes
uma substância mortal no mesmo estado; graças à velocidade do movimento, tudo se dispersa e se recompõe
novamente, tudo vem e vai." {Fr. 91, Diels). Heráclito, todavia, admitia um princípio único, subjacente ao
movimento: o fogo; admitia, outrossim, uma ordem rigorosa nas mudanças, que garantia um retorno constante e
periódico.
HERANÇA SOCIAL. V. TRADIÇÃO.
HERMENÊUTICA (in. Hermeneutics; fr. Herméneutique, ai. Hermeneutik; it. Erme-neutica). Qualquer técnica de
interpretação. Essa palavra é freqüentemente usada para indicar a técnica de interpretação da Bíblia (v.
INTERPRETAÇÃO).
HERMETISMO
498
HETEROGONIA DOS FINS
HERMETISMO (in. Hermetism-, fr. Hermé-tisme, ai. Hermetismus-, it. Ermetismó). Indica-se com este termo a
doutrina filosófica contida em alguns textos místicos que apareceram no séc. I d.C. e chegaram até nós com o nome
de Hermes Trismegisto. Esses escritos tendem a reintegrar a filosofia grega na religião egípcia. Hermes é identificado
com o deus egípcio Theut ou Thot. Esses textos são escritos em tom místico e defendem contra o cristianismo o
paganismo e as religiões orientais. No séc. XV, foram traduzidos para o latim por Marsílio Ficino e impressos pela
primeira vez em 1471 (Mercuri trismegisti liber de potestate et sapientia Dei, Treviso, 1471) .
H. e o adjetivo "hermético" passam, pois, a designar qualquer doutrina abstrusa, difícil ou acessível apenas a quem
possua uma chave para interpretá-la.
HERÓI (gr. fípCOÇ; lat. Heros; in. Hera, fr. Héros; ai. Heros-, it. Eroé). Segundo Platão, os H. são semideuses
nascidos de um deus que se apaixonou por uma mulher mortal ou de um homem mortal que se apaixonou por uma
deusa (Crat., 398c). Obviamente, com essa definição Platão relegava a noção de H. à esfera do mito, assim como
pertence ao mito a "idade dos H." de que falavam Hesíodo e o próprio Platão (v. IDADE); com isso, expungia essa
noção, pelo menos implicitamente, do campo da filosofia. Aristóteles admitia essa expunção, quando observava: "Se
houvesse duas categorias de homens tais que a primeira diferisse da segunda tanto quanto se julgava que os deuses e
os heróis diferiam dos homens, sobretudo pela valentia física e pelas qualidades da alma, então sem dúvida ficaria
evidente a superioridade dos governantes sobre os governados, etc." (Poi, VII, 14, 1332b 17). Foi só com o
Romantismo que se começou a acreditar na existência de indivíduos excepcionais, nos quais se encarna a Providência
Histórica e que, portanto, estão destinados a cumprir tarefas predominantes. Hegel vê nos heróis, ou "indivíduos da
história do mundo", os instrumentos das mais altas realizações da história. São videntes; sabem qual é a verdade do
seu mundo e do seu tempo, qual é o conceito, o universal próximo a surgir; os outros reúnem-se em torno da bandeira
deles, porque eles exprimem aquilo cuja hora é chegada. Aparentemente, tais indivíduos (Alexandre, César,
Napoleão) nada mais fazem que seguir sua própria paixão, sua própria ambição; mas, segundo Hegel, trata-se de
astúcia
da Razão-, esta utiliza os indivíduos e suas paixões como meios para realizar seus próprios fins. O indivíduo, em
certo ponto, perece ou é levado à ruína pelo sucesso: a Idéia Universal, que provocara esse sucesso, já alcançou seu
fim (Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 83). Nos heróis, age a mesma necessidade da história, e por isso resistir a
eles é inútil. "Eles são levados irresistivelmente a cumprir sua obra" (Ibid., p. 77). Em conceito análogo inspirava-se
T. Carlyle em sua obra Os heróis e o culto dos heróis e o heróico na história (1841): "A história universal, a história
daquilo que o homem realizou neste mundo, substancialmente outra coisa não é senão a história dos grandes homens
que aqui agiram. Foram estes grandes homens os líderes da humanidade, os inspiradores, os campeões, e, lato sensu,
os artífices de tudo aquilo que a multidão coletiva dos homens cumpriu e conseguiu" (Heroes, liç. 1). Esse "culto dos
Heróis", como Carlyle denominava, tem dois pressupostos: 1 Q o caráter providencial da história, que, segundo se crê,
destina-se a realizar um plano perfeito e infalível em cada uma de suas partes; 2 Q o privilégio, concedido a alguns
homens, de serem os principais instrumentos da realização desse plano. Estas duas crenças constituem as
características da concepção romântica da história; subsistem e caducam com ela (v. HISTÓRIA).
HERÓICA, IDADE. V. IDADE.
HERÓICO, FUROR. V. ENTUSIASMO.
HETEROGENEIDADE, LEI DE. V. HOMOGENEIDADE.
HETEROGONIA DOS FINS (ai. Hetero-gonie derZwecke). Wundt batizou com o nome solene de "lei da H. dos
fins" a observação não muito original de que os fins que a história realiza não são os mesmos que os indivíduos ou as
comunidades se propõem, mas resultam da combinação, da correlação e do conflito das vontades humanas entre si e
com as condições objetivas (Ethik, 1886, p. 266; System derPhii, 1889, 1, p. 326; II, pp. 221 ss.). Podemos lembrar
que Viço expressara o mesmo conceito numa página famosa: "Porque os homens fizeram este mundo de nações (que
foi o primeiro princípio incontestável desta Ciência, depois do que perdemos a esperança de reencontrá-la em
filósofos e filólogos), mas esse mundo, sem dúvida, saiu de uma mente amiúde diferente e por vezes de todo
contrária, e sempre superior, a esses fins particulares que os homens se haviam proposto; esses fins restritos,
transforma-
HETEROLÓGICO
499
HDLOZOÍSMO
dos em meios para servir a fins mais amplos, foram sempre usados para conservar a geração humana nesta Terra"
{Sc. nuova, 1744, Concl. da obra).
HETEROLÓGICO. V. AUTOLÓGICO.
HETERONOMIA. V. AUTONOMIA.
HETEROZETESE(lat. Heterozetesis). O mesmo que Ignoratio Elenchi (v.).
HEURÍSTICA. Palavra moderna originada do verbo grego eúpíoKO) = acho: pesquisa ou arte de pesquisa. Diferente
de Erística (v.).
HIERARQUIA (gr. íepapxícc; lat. Hyerar-cbia; in. Hierarchy, fr. Hiérarchie, ai. Hierar-cbie, it. Gerarchia). Em
sentido próprio, ordem das coisas sagradas, dos entes e dos valores supremos. O conceito (se não o termo) é neoplatônico (v., p. ex., PLOTINO, Enn., III, 2, 17), mas foi introduzido na filosofia ocidental através dos dois textos do
Pseudo-Dionísio, o Areopagita, que apareceram no começo do séc. VI, intitulados Sobre a H. celeste e Sobre a H.
eclesiástica. O primeiro desses textos contém a organização das inteligências angélicas (v. ANGELOLOGIA); o segundo
estabelece a correspondência entre a H. angélica e a eclesiástica, que também se divide em três ordens. A primeira é
constituída pelos mistérios: Batismo, Eucaristia, Ordem Sacra. A segunda é constituída pelos órgãos que administram
os mistérios: bispo, sacerdote, diácono. A terceira é constituída por aqueles que, através desses órgãos, são levados ao
estado de Graça: catecúmenos, energúmenos, penitentes. Mais genericamente, nos dias de hoje indica-se com esse
termo qualquer organização de valores ou de autoridade: p. ex., "H. de valores", "H. burocrática", "H. partidária", etc.
MLÉTICOS, DADOS (ai. Hyletische Data). Na terminologia de Husserl, dados constituídos pelos conteúdos
sensíveis, que compreendem, além das sensações denominadas externas, também os sentimentos, impulsos, etc.
Nesse sentido, as considerações e as análises feno-menológicas voltadas para esse elemento material são chamadas de
hilético-fenomenológicas, assim como as relativas aos correspondentes momentos noéticos são denominadas noéticofenomenológicas (Ideen, I, § 85).
HILOMORFISMO (in. Hylomorpbism- fr. Hylomorphisme, ai. Hylomorphismus; it. Ilo-morfismo). Termo moderno,
usado para indicar a doutrina do filósofo judeu Avicebron (Ibn-Gebirol, 1020-1069), em Fons vitae. Segundo essa doutrina, aliás haurida em Liber de causis, de inspiração neoplatônica, tudo o que é compõe-se de matéria
e forma. Donde se deduz que a substância espiritual, como p. ex. a alma, também não é forma pura, mas um
composto de matéria e forma. Avicebron, portanto, identificava a matéria com a substância, ou seja, com a primeira
das categorias aristotélicas, que sustem {sustinei) as outras nove categorias {Fons vitae, II, 6).
HILOPATIA (in. Hylopathy). Foi assim que C. S. Peirce denominou o "monismo idealista", doutrina segundo a qual
a matéria é "espírito que se tornou estéril" {Chance, Love and Logic, II, cap. I; trad. it. p. 121) .
HILOZOÍSMO (in. Hylozoism-, fr. Hylozois-me, ai. Hylozoismus; it. Ilozoismo). Crença ou doutrina segundo a qual
a matéria vive por si mesma, ou seja, possui originariamente animação, movimento, sensibilidade ou qualquer grau
de consciência. Essa doutrina não eqüivale à negação da matéria e à sua resolução em forças ou elementos espirituais
(como faz o pampsiquismo[v.]); ao contrário, costuma ser uma expressão do materialismo, doutrina que reconhece a
matéria como única realidade. A expressão "H." já se encontra em Cudworth. Kant definiu o H. como a forma de
"realismo da finalidade da natureza", para o qual "os fins da natureza se fundam no análogo de uma faculdade que
age com intenção, a vida da matéria (que existe na própria natureza, ou é produzida por um princípio animador
interno, uma alma do mundo)" {Kritik der Urteils-kraft, § 72; Metaphysische Anfangsgründe der Naturwissenschaft,
Teor. 3, nota).
Neste sentido, são hilozoístas todos os físicos pré-socráticos (Tales, Anaximandro, Anaxi-menes, Parmênides,
Heráclito, Empédocles), para os quais no princípio ou nos princípios materiais que admitem há alma e sensibilidade.
Hilozoístas são os estóicos, para os quais o princípio constitutivo corpóreo do universo, ou seja, o fogo, é um sopro
ou espírito animador e ordenador (DIÓG. L., VII, 156; CÍCERO, De nat. deor., II, 24). O H. antigo foi retomado pela
filosofia da natureza e pela magia do Renascimento. Segundo Telésio, o calor e o frio, que são os dois princípios que
agem na "massa corpórea" inerte, devem ser providos de sensibilidade porque, se não percebessem suas próprias
impressões e as ações do princípio oposto, não poderiam combater-se; conseqüentemente, todas as coisas da natureza
são
HIPERBÓLICO
500
HIPÓTESE
dotadas de sensibilidade. Essa doutrina é repetida nos mesmos termos por Campanella {Del senso delle cose, I, 1) e
por G. Bruno, em cujos Diálogos latinos, porém, encontra-se uma acentuação no sentido pampsíquico do H. O H. é,
pois, o pressuposto da magia, como tentativa direta para dominar as forças animadas da natureza através de encantos
(v. MAGIA).
As últimas manifestações do H. são observadas no materialismo oitocentista: Haeckel, p. ex., acredita que os átomos
são animados e que a matéria e o éter são dotados de sensibilidade e vontade {Die Weltrãtsel, 1899) . Na filosofia
contemporânea pode-se dizer que o H. desapareceu, permanecendo o pampsiquismo (v.), que é a metafísica do
espiritualismo (v.).
HIPERBÓLICO. V. DÚVIDA.
HIPERORGÂNICO (fr. Hyperorganiqué). Termo com que os escritores positivistas caracterizaram o mundo
propriamente humano, ou seja, psíquico e social.
HTPERURÂNIO (gr. úrcepcupávioç). A região "além do céu", na qual, segundo o mito encontrado em Fedro (247
ss.), residem as substâncias imutáveis que são objeto da ciência. Trata-se de uma região não espacial, já que, para os
antigos, o céu encerrava todo o espaço e além do céu não haveria espaço. Essa expressão, portanto, é puramente
metafórica; em República, o próprio Platão zomba dos que se iludem achando que verão os entes Inteligíveis olhando
para cima: "Não posso atribuir a outra ciência o poder de fazer a alma olhar para cima, senão à ciência que trata do
ser e do invisível; mas se alguém procurar aprender alguma coisa sensível olhando para cima, com a boca aberta ou
fechada, digo que não aprenderá nada porque não há ciência das coisas sensíveis e sua alma não está olhando para
cima, mas para baixo, mesmo que ele estude ficando de costas na terra ou no mar" {Rep., VII, 529 b-c).
HEPOLEMA (in. Hypolemmd). Foi esse o nome dado por W. Hamilton à premissa menor do silogismo, porquanto
está subsumida na premissa maior ou tema {Lectures on Logic, I, p. 283);
HIPÓSTASE (gr. ÚTtócrracnç; in. Hypostasis, fr. Hypostase, ai. Hypostase, it. Ipostast). Com este termo Plotino
denominou as três substâncias principais do mundo inteligível: o Uno, a ' Inteligência e a Alma {Enn., III, 4, 1; V, 1,
10), que ele comparava, respectivamente, à luz, ao sol e à lua (Jbid., V, VI, 4). A transcrição latina desse substantivo
é "substância", que, todavia,
foi usada pela tradição filosófica com significado totalmente diferente (v. SUBSTÂNCIA). Nas discussões trinitárias dos
primeiros séculos, esse termo foi preferido a pessoa (Ttpóaomov), que, por significar propriamente máscara, parecia
evocar a imagem de algo fictício. A partir dessas discussões, o substantivo H. passou a designar a substância
individual, a pessoa. S. Tomás diz: "Para alguns, a substância, na definição de pessoa, eqüivale a substância primeira,
que é a H.; todavia, não é supérfluo acrescentar individual, uma vez que com as palavras H. ou substância primeira se
exclui a relação entre o universal e a parte. De fato, não se diz que o conceito de homem ou a mão são H." (5. Th., I,
q. 29, a. 1).
Na linguagem moderna e contemporânea, esse termo é usado (mas raramente) em sentido pejorativo, para indicar a
transformação fa-laz e sub-reptícia de uma palavra ou um conceito em substância, ou seja, numa coisa ou num ente.
Neste sentido fala-se também de hipostasiar (fr. hypostasier).
HIPÓTESE (gr. Ú7tÓ8éotç; in. Hypothesis- fr. Hypothèse, ai. Hypothese, it. Ipotesí). Em geral, um enunciado (ou
conjunto de enunciados) que só pode ser comprovado, examinado e verificado indiretamente, através das suas
conseqüências. Portanto, a característica da H. é que ela não inclui nem garantia de verdade nem a possibilidade de
verificação direta. Uma premissa evidente não é uma H., mas, no sentido clássico do termo, um axioma. Um
enunciado verificável é uma lei ou uma proposição empírica, não uma hipótese. Uma H. pode ser verdadeira, mas sua
verdade só pode resultar da verificação de suas conseqüências. Era neste sentido que Aristóteles entendia a H., pois
mesmo usando vez por outra esse termo em sentido muito amplo, como premissa de demonstração (compare, p. ex.,
Met., V, 1, 1013 a 16; 1913 b 20; Fts., II, 3, 195 a 18), define-a em seu significado específico, excluindo-a do campo
das premissas necessárias: "Aquilo que é necessário que seja e que é necessário que pareça necessário, não é hipótese
nem postulado" {An. post, 1,10, 76 b 23). Axiomas e definições constituem as premissas necessárias do silogismo; H.
e postulados são as premissas não necessárias. Em particular, as H. estabelecem a existência das coisas definidas. As
definições — diz ele — devem apenas levar-nos a compreender aquilo de que se fala; as H. estabelecem sua
existência, para deduzir as conclusões {Ibid., I,
HIPÓTESE
501
HIPÓTESE
10, 76b 35 ss.). Conseqüentemente, os raciocínios fundados em H. pressupõem uma espécie de convenção
ou acordo preliminar (An.
: pr., I, 44, 50 a 33) e não têm o valor probatório dos que se fundam em definições (Ibid., I, 23,
;
40b 22).
•
Esta determinação da H. como premissa de j
grau ou qualidade inferior, isenta da necessidade
própria das premissas autênticas, é caracte■
rístíca da posição de Aristóteles. Não se encontra em Platão, para quem as premissas devem ser
escolhidas com base no juízo comparativo, :
que se orienta para aquela que é "a mais forte" :
ou "a
melhor" entre elas (Fed., 100a; lOld). Platão observa que a matemática e, em geral, as disciplinas
propedêuticas não partem de H., mas que "deixam-nas intocadas por não serem capazes de explicá-las"
(Rep., VII, 533c). Em Parmênides são chamadas de H. todas as pos-\
síveis vias de investigação, não
se privilegiando í
nenhuma com nome diferente (Parm., 135 e). Platão declara às vezes que "investiga
através da H.", como fazem os geômetras, ou seja, raciocinando assim: "Em certas condições, obter-se-á
determinado resultado, mas se as condições forem outras, o resultado será diferente" :
(Men., 87a). O
uso das H. em filosofia estabelece uma diferença importante entre a filosofia de Platão e a de Aristóteles,
no que concerne
• ao procedimento da própria filosofia e, em :
geral, do saber científico. Essa diferença, porém,
incide nos termos da noção geral de H.,
;. como acima expressa. No âmbito dessa no•
ção, é possível distinguir os seguintes significados específicos:
ls O antecedente de uma proposição hipotética ou condicional, de um raciocínio anapo-dítico ou de um
silogismo hipotético. A lógica estóica, ao contrário da aristotélica, privilegiou as proposições hipotéticas e
os raciocínios anapodíticos, em conformidade com a formulação geral da lógica como dialética (v.
LÓGICA; DIALÉTICA; CONDICIONAL; CONSEQÜÊNCIA; IMPLICAÇÃO).
2a Uma proposição originária assumida
como fundamento de um discurso científico,
[ como p. ex. um postulado ou um axioma de
matemática. Realmente, não se afirma nem se
nega a verdade desses postulados ou axiomas,
mas reconhece-se sua validade se e na medida
'
em que possibilitam o discurso matemático.
Neste sentido, a matemática é denominada
"sistema hipotético-dedutivo". Mas é possíi.
vel encontrar proposições análogas aos postulados ou axiomas da matemática — e como eles assumidos por H. — em todas as ciências que
alcançaram certo grau de elaboração conceituai.
3Q Uma condição qualquer. Este é o significado do termo na expressão ex bipothesi: Aristóteles fala
daquilo que é "necessário por H.", ou seja, em virtude de determinada condição (Fís., II, 9, 199b 34 e ss.).
4S A explicação causai dos fenômenos. Neste sentido, essa palavra foi usada freqüentemente nos sécs.
XVII e XVIII. Locke advertia "para que a palavra princípio não nos engane nem se nos imponha,
fazendo-nos aceitar como verdade incontestável aquilo que, no melhor dos casos, nada mais é que uma
conjectura muito duvidosa, como ocorre com a maioria das H. da filosofia natural, para não dizer todas"
(Ensaio, IV, 12, 13). E óbvio que, para Locke, H. é o que anuncia os "princípios", as causas dos
fenômenos. Ainda mais explicitamente Leibniz dizia: "A arte de descobrir as causas dos fenômenos, ou as
H. verdadeiras, é como a arte de decifrar, na qual muitas vezes uma conjectura engenhosa abrevia em
muito o caminho" (Nouv. ess., IV, 12, 13), onde "H. verdadeiras" e "causas dos fenômenos" são
identificadas. A renúncia de Newton ("hypotheses nonfingo" [não formulo hipóteses]) refere-se
exatamente a esse significado de hipótese. O texto de Newton é o seguinte: "Até agora, não pude deduzir
dos fenômenos as razões dessas propriedades da gravidade, e não formulo hipóteses. Tudo o que não se
deduz dos fenômenos deve ser chamado de H., e as H., tanto metafísicas quanto físicas, sejam elas de
qualidades ocultas ou mecânicas, não têm lugar na filosofia experimental." A essas H. ele contrapõe as
causas verdadeiras, que são as "necessárias para explicar os fenômenos" (Philo-sophiae naturalis
principia mathematica, 1687, ao final). Em Óptica (1704), Newton dizia que formular H. é recorrer às
qualidades ocultas, assumidas como causas da metafísica aristotélica, às quais ele contrapunha os
princípios (gravidade, fermentação, coesão), "que não considero qualidades ocultas, supostamente
resultantes das formas específicas das coisas, mas leis naturais gerais, pelas quais as coisas são formadas
e cuja verdade se nos manifesta pelos fenômenos, mesmo que suas causas não tenham sido descobertas"
(Opticks, III, 1 q. 31). Portanto, a renúncia de Newton às H. nada mais é que a renúncia à explicação em
favor da
HIPÓTESE
502
HISTÓRIA
descrição. Em meados do séc. XIX, a oposição entre descrição e explicação hipotética era reforçada pelo físico inglês
J. Macquorn Rankine: "Segundo o método abstrato, uma classe de objetos e de fenômenos é definida por descrição,
ou seja, mostrando-se que determinado conjunto de propriedades é comum a todos os objetos ou fenômenos da
classe, e considerando-os tais como os sentidos no-los dão a perceber, sem nada introduzir de hipotético e só lhes
atribuindo um nome ou símbolo. Pelo método hipotético, a definição de uma classe de objetos ou de fenômenos é
deduzida de uma concepção conjectural acerca de sua natureza." E Rankine previa o abandono gradativo das teorias
hipotéticas e sua substituição pelas teorias abstratas (Outlines ofthe Science of Energetics, 1865, em Miscellaneous
Scientifics Papers, p. 210; cf. P. DUHEM, La théorie physique, 1906, pp. 80-81) .
5B Um procedimento especial que substitui a indução, para a formulação de princípios a serem verificados
experimentalmente. Para Stuart Mill, o procedimento científico é composto por três partes: indução, raciocínio e
verificação. Ora, "o método hipotético suprime o primeiro desses três passos, a indução, para comprovar a lei, e
limita-se às outras duas operações, raciocínio e verificação: a lei sobre a qual se raciocina é presumida, em vez de ser
provada" (Logic, III, 14, 4). No mesmo sentido, Peirce põe a H. ao lado da dedução e da indução, como um tipo de
raciocínio válido que se distingue da indução porque, enquanto esta "procede como se todos os objetos que têm
determinados caracteres fossem conhecidos", a H. é "a inferência que procede como se todos os caracteres
necessários à determinação de certo objeto ou classe fossem conhecidos". Enquanto a indução pode ser considerada
como a inferência da premissa maior do silogismo, a hipótese pode ser considerada como a inferência da premissa
menor a partir das outras duas ("Some Consequences of Fourlncapacities", em Values in a Universe of Chance, pp.
44 ss.). Este significado do termo tornou-se raro.
6Q O argumento de um discurso, enquanto proposto ou enunciado no início do discurso (ARISTÓTELES, Ret. adAl, 30,
1436 a 36; Ret., II, 18, 1391 b 13).
7^ Uma teoria científica ou parte de uma teoria científica. Nesse sentido, Mach diz: "Chamemos de H. uma
explicação provisória que tem por objetivo fazer compreender mais facilmente os fatos, que foge à prova dos fatos" (Er-kenntniss und Lrrtum, cap. 14; trad. fr., p. 240). Para este significado, v.
TEORIA.
HIPOTÉTICO (gr. Ú7to0exiKÓç; lat. Hypothe-ticus; in. Hypothetical; fr. Hypothétique, ai. Hypothetisch; it.
Lpoteticó). Este termo tem significado correspondente ao do substantivo. Para proposição hipotética, v. CATEGÓRICO;
para silogismo hipotético, v. SILOGISMO. V. também
ANAPODÍTICO; RACIOCÍNIO; CONDICIONAL; CONSEQÜÊNCIA.
HTPOTIPOSE (gr. ÚKOTÚTTCOCIÇ; ai. Hypoty-posé). Este termo, que significa bosquejo ou esboço (neste sentido é
encontrado no título da obra de SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp.), foi usado pelos retóricos para indicar a figura em virtude
da qual um assunto é vividamente descrito em palavras (QUINTILIANO, lnst., IX, 2, 40). Kant utilizou essa palavra em
sentido análogo, para expressar a relação entre a beleza e a moralidade: a beleza, como símbolo da moralidade, é a H.
dela, ou seja, sua vigorosa manifestação intuitiva. Enquanto as palavras e os outros signos são simples expressões dos
conceitos, as H. são exibições ou manifestações do conceito em forma intuitiva (Crít. do Juízo, § 59).
HISTÓRIA (gr. ícrcopía; lat. Historia-, in. History, fr. Histoire, ai. Geschichte, it. Storid). Esse termo, que em geral
significa pesquisa, informação ou narração e que já em grego era usado para indicar a resenha ou a narração dos fatos
humanos, apresenta hoje uma ambigüidade fundamental: significa, por um lado, o conhecimento de tais fatos ou a
ciência que disciplina e dirige esse conhecimento (historia rerum gestaruni) e, por outro, os próprios fatos ou um
conjunto ou a totalidade deles (resgestaê). Essa ambigüidade está presente em todas as atuais línguas cultas (cf. H. I.
MARROU, De Ia connaissance historique, 1954, pp. 38-39). Mas, em vista do maior uso do termo historiografia para
indicar o conhecimento histórico em geral, ou ciência da H. (e não a arte de escrever H.), pode-se colocar no verbete
historiografia o tratamento dos significados atribuídos à H. ao longo do tempo, (como conhecimento) e incluir neste
verbete só os significados que foram dados à realidade histórica como tal. Tais significados são os seguintes: Ia H.
como passado; 2S H. como tradição; 3a H. como mundo histórico; 4- H. como objeto da historiografia.
1B A H. interpretada como passado pode, com boas razões, ser considerada uma tauto-
HISTÓRIA
503
HISTÓRIA
logia, mas o sentido em que Heidegger entendeu essa interpretação (Sein und Zeit, § 73), não parece puramente
tautológico. Quando se diz: "Isto pertence à H.", entende-se que pertence ao passado, a um passado que tem pouca
eficácia sobre o presente. Por outro lado, quando se diz: "Não podemos subtrair-nos à H.", entende-se ainda a H.
como passado, mas como um passado que age inevitavelmente sobre o presente. Assim também, dizer que "algo tem
H." significa afirmar que tem passado e que é fruto desse passado. Nestas e em semelhantes expressões, o significado
desse termo permanece estritamente genérico: remete a uma dimensão do tempo e às relações que podem ser
estabelecidas entre ela e as outras dimensões.
_ 2 Q Em segundo lugar, a H.
pode ser entendi- \ da como tradição, em que crenças e técnicas i são transmitidas e conservadas através do tem-' po,
seja tal legado verificável pela historiografia, seja considerado como "evidente", mesmo permanecendo obscuro e não
verificável. I Ao conceito de tradição pode vincular-se o 7 conceito de Heidegger sobre a historicidade \ autêntica,
que é a escolha, para o futuro, das possibilidades que já foram, sendo, pois, a í transmissão de tais possibilidades da
existência ;' para si mesma, uma repetição decidida, quej Heidegger chama também de destino. "A deci~ são constitui
a fidelidade da existência a si mesma. Enquanto decisão permeada de angústia, a fidelidade é ao mesmo tempo o
possível respeito em face da única autoridade que um existir livre pode reconhecer, ou seja, em face das
possibilidades repetíveis da existência" {Sein und Zeit, § 75) . "Se o ser-aí só é autenticamente^ real na existência, sua
factualidade constitui-se justamente no decidido autoprojetar-se para um poder-ser que já foi escolhido. Mas então o
que foi autenticamente um fato é a possibilidade existenciária em que se determinam efetivamente o destino, a
destinação comum e mundanamente histórica" (Ibid., § 76). Às vezes, porém, a tradição é entendida como
conservação infalível e progressiva de todos os resultados ou conquistas do homem; nesse caso, o conceito identificase com o de H. como plano providencial (v. TRADIÇÃO).
3Q O terceiro significado de H. é o mais relevante filosoficamente; para ele, H. é o mundo histórico, a totalidade dos
modos de ser e das criações humanas no mundo, ou a totalidade da "vida espiritual" ou das culturas. Nesse sentido, a H. contrapõe-se a "natureza", que é a totalidade do que é independente do homem ou que não pode ser
considerado produção ou criação sua, mas permanece aparentado com a natureza pelo seu caráter de totalidade, de
mundo. É no âmbito desse conceito que se podem distinguir as interpretações "filosóficas" da H., que constituem a
chamada "filosofia da H.". Entre estas interpretações podem-se considerar principais as seguintes: d) H. como
decadência; ti) H. como ciclo; c) H. como reino do acaso; d) H. como progresso; ê) H. como ordem providencial.
d) A interpretação da H. como decadência é própria da Antigüidade, que a expressou com a doutrina das idades (v.)
do gênero humano. A sucessão das cinco idades, descrita por He-síodo, vai da idade de ouro, na qual os homens
"viviam como deuses", à idade dos homens, na qual estes estão sujeitos a toda espécie de males, passando pela idade
de prata, de bronze e dos heróis, que assinalam a decadência gradual do estado do gênero humano (Op., 109-79).
Platão reduziu a três as idades, enumerando somente a idade dos deuses, dos heróis e dos homens, mas conservando o
caráter de decadência sucessiva que as idades apresentam quanto às condições materiais e morais dos homens
(Crítias, 109b ss.). Retomada no mundo moderno (Viço, Fichte e outros), essa doutrina perdeu o significado
pessimista e tornou-se otimista: as idades estão em ordem de progresso e não de decadência. Mas não há dúvida de
que, para os gregos, essa doutrina constitui uma interpretação da H. como decadência (v. IDADE).
ti) A noção da H. como ciclo está ligada à de ciclo do mundo, bastante difundida na Antigüidade grega. Para os
estóicos a repetição do ciclo cósmico incluía a repetição da H. humana no seu conjunto. Segundo eles, de fato, em
cada novo ciclo do mundo, "haverá de novo Sócrates de novo Platão e de novo cada um dos homens com os mesmos
amigos e concidadãos, as mesmas crenças, os mesmos assuntos discutidos, e toda cidade, vilarejo ou campo
igualmente retornarão" (NEMÉSIO, De nat. bom., 38). Pode-se ver na obra de Spen-gler uma revivescência moderna
desse conceito de H. Para ele, os ciclos históricos, as culturas, não se repetem de modo idêntico, como julgavam os
estóicos, mas a sua forma repete-se identicamente: nascimento, crescimento e morte. "Toda cultura, todo surgimento,
pro-
HISTÓRIA
504
HISTÓRIA
gresso e declínio, bem como cada um dos seus graus e dos seus períodos inteiramente necessários têm duração
determinada, sempre igual, sempre recorrente, com forma de símbolo" (Der Untergang des Abendlandes, 1932, I, p.
147) (v. CICLO).
c) O conceito da H. como reino do acaso não é freqüente na interpretação filosófica da história. Parece, contudo, que
Aristóteles não estava muito longe dele quando contrapôs o historiador ao poeta, dizendo que a este último cabia
representar o universal, "as coisas tais quais poderiam acontecer segundo a verossimilhança e a necessidade", ao
passo que caberia ao historiador representar as coisas "realmente acontecidas", "o particular" e, como p. ex. "o que
fez Aquiles e o que lhe aconteceu" (Poet., IX, 1451b 2-10). Não se deve esquecer que, para Aristóteles, só o universal
é objeto de conhecimento científico e que o particular não pertence à ciência (Met., III, 6, 1003 a 15). Mais
explicitamente, Schopenhauer dizia: "A H. do gênero humano, a intimidade de acontecimentos, a mudança dos
tempos, os múltiplos aspectos da vida humana em países e séculos diferentes, tudo isso é apenas a forma casual
assumida pela manifestação da Idéia, que não pertence a esta, na qual está apenas a objetividade adequada da
vontade, mas ao fenômeno que fica sendo conhecido pelo indivíduo; e é tão estranha, tão inessencial e indiferente à
Idéia quanto são estranhas às nuvens as figuras que representam, ao rio a forma dos seus sorvedouros e das suas
espumas, e ao gelo suas figuras de árvores e flores" (Die Welt, I, § 35). Não se pode considerar, porém, neste tópico,
o conceito da H. expresso por Maquiavel ao dizer que "a sorte pode ser árbitro da metade das nossas ações, contanto
que nos deixe ainda governar a outra metade, ou quase"; comparando a sorte a um rio que, quando irado, arrasta tudo,
mas cujo ímpeto não é prejudicial ou causa menos danos quando o homem faz, a tempo, reparos e diques (Princ, 25).
De fato, para Maquiavel, a sorte é o conjunto de condições que limitam, impedem ou frustram a ação do homem na
H., mas não é a totalidade da H. No entanto, para A. Cournot o acaso servia para definir o domínio da H., que ele
contrapôs ao da natureza, que é o domínio da ordem e da lei (Essai sur les fondements de Ia con-naissance, 1851).
d) O conceito de H. como progresso tem a característica de afirmar o caráter problemático e não inevitável do progresso, pois, se o progresso é necessário, a H. é sobretudo uma ordem providencial cujos
momentos são todos igualmente perfeitos, porquanto indispensáveis à perfeição ou ao aperfeiçoamento do conjunto.
A H. como progresso problemático é uma idéia iluminista que supõe a medida do progresso, ou seja, uma norma ou
um ideal de que a H. procura aproximar-se, ou que ela procura realizar, mas não encontrando jamais em si uma
adequação perfeita. G. B. Viço expressou esse ideal no conceito de H. ideal eterna "sobre a qual transcorrem no
tempo as H. de todas as nações, com surgimentos, progressos, estados, decadências e fins" {Sc. nuova, De'principi). A
H. ideal eterna é a ordem universal e eterna à qual a H. temporal, ou melhor, as várias H. temporais dos vários tempos
e nações tendem a adequar-se, sem nunca conseguirem por completo, aliás, às vezes precipitando-se na confusão e na
ruína (Ibid., Conclusão da obra). Viço entendia a H. ideal eterna como sucessão progressiva de três idades (dos
deuses, dos heróis, dos homens) e a permanência indefinida na última, que é a conclusão do ciclo. Voltaire, ao
contrário, considerou como norma e medida do progresso histórico a ilustração; a libertação da razão humana dos
preconceitos e a sua posição de guia da vida individual e social do homem (cf. especialmente o Essai sur les moeurs,
1740; Philosophie de 1'histoire, 1765). Kant seguiu o mesmo critério, suge-rindo-o, porém, apenas como "fio
condutor" para orientar-se filosoficamente na H. dos povos. Escreveu: "À medida que as limitações à atividade
pessoal forem sendo abolidas e que a liberdade religiosa for concedida a todos, pro-duzir-se-á gradualmente, ainda
que com intervalos de ilusões e fantasias, a ilustração como um grande bem que a espécie humana poderá fazer
derivar até dos objetivos ambiciosos de poder dos seus dominadores" (Jdeezu einer allgemeinen Geschichte, 1784,
tese VIII). Segundo Jaspers, o único fim projetável da H. é a unidade da humanidade, não alcançável por meio da
ciência ou da uniformidade lingüística ou cultural, mas da "ilimitada comunicação daquilo que é diferente
historicamente, tal como se pode realizar num diálogo incessante, numa luta amorável" (Vom Ursprung und Ziel der
Geschichte, 1949). Certamente é possível propor outros critérios ou normas
«STORIA
505
HISTORIA
como medida do progresso na H., mas as características dessa noção não mudam enquanto se admite a
inevitabilidade do progresso.
e) Com a afirmação da inevitabilidade do progresso', o próprio progresso torna-se inconcebível (como viu
Hegel), porque, se a H. é necessária, cada momento dela é tudo o que deve ser e não pode ser melhor nem
pior do que os outros. A concepção da necessidade da H. é a concepção da H. como plano providencial.
A noção de plano providencial está implícita em todas as formas de milenarismo ou quiliasmo (v.> toda
doutrina desse tipo inclui a idéia de desenvolvimento necessário dos feitos humanos até a consecução de
um estado definitivo de perfeição. Foi esse, p. ex., o conceito de H. em Orígenes: para ele, os mundos
sucedem-se no tempo como escolas nas quais os seres decaídos se reeducam (Deprinc, III, 6, 3), e o ciclo
total da H. é o retorno do mundo a Deus, que culmina na apocatástase, na restituição de todos os seres à
sua perfeição originária (Jnjohann., XX, 7). Mas o primeiro a formular claramente o conceito de plano
providencial foi S. Agostinho, que viu na H. a luta entre a cidade celeste e a cidade terrena-, luta
destinada a acabar com o triunfo da cidade celeste. Para esse triunfo, segundo S. Agostinho, Deus faz que
também contribuam o mal e a má vontade (Deciv. Dei, XI, 17). Os três períodos em que, para S.
Agostinho, a H. se divide não são mais que o desenvolvimento do plano providencial. No primeiro, os
homens vivem sem leise ainda não há luta contra os bens do mundo. No segundo, os homens vivem sob a
lei e por isso combatem contra o mundo, mas são vencidos. O terceiro período é o tempo da graça, em
que os homens combatem e vencem (Ibid., XIX, 15-26). No séc. XII, a profecia de Gioacchino da Fiore
parte do mesmo conceito de H. e tem como modelo a divisão das idades feita por S. Agostinho.
Gioacchino acredita que, depois da idade do Pai, que é a da lei, e da idade do Filho, que é a do Evangelho,
virá a idade do Espírito, que é a da Graça, da inteligência plena da verdade divina (Concórdia novi et
veteris testamento, V, 84, 112).
Todavia, o plano providencial da H., embora infalível e necessário, é, do ponto de vista religioso,
imperscrutável em seus detalhes. O homem religioso crê nele e na sua perfeição, mas sabe que não pode
compreender os caminhos pelos quais se vai realizando. Posto diante do mal, confia em que o mal, em última instância, não triunfará, mas sabe que não pode dizer como
isso acontecerá. Quando, no Romantismo, a doutrina do plano providencial da H. se transforma em
doutrina filosófica, o não-sa-ber religioso transforma-se em certeza racional. Hegel afirmou muitas vezes
que a diferença entre religião e filosofia é que a segunda demonstra, na sua determinação, essa relação
entre Deus e o mundo, esse plano providencial, e a primeira se limita a reconhecê-los (Ene, § 573;
Philosophie der Geschichte, ed. Lasson, I, p. 55). Entretanto, o ingresso dessa noção em filosofia deve-se
sobretudo a Fichte. Em Caracteres da Idade Contemporânea (1806), Fichte afirmava energicamente a
necessidade da H. e a sua redução a um plano providencial: "Qualquer coisa que realmente exista existe
por absoluta necessidade: e existe necessariamente na forma precisa em que existe" (Ibid., EX). E
distinguia dois elementos no processo de civilização da espécie humana: um elemento apriori, que é o
plano do mundo ou ordem providencial, e um elemento a poste-riori, temporal ou empírico, constituído
pelos fatos. A resultante dessa concepção é que "Nada é como é porque Deus queira arbitrariamente
assim, mas porque Deus não pode manifestar-se de outro modo. Reconhecer isso, submeter-se
humildemente e ser feliz, na consciência da nossa identidade com a força divina, é tarefa de todo homem"
(Ibid., IX; trad. it. Cantoni, p. 67). Com essa distinção, Fichte parece atribuir certa autonomia (embora
fictícia) aos "fatos"da H., em face do plano providencial de que devem participar. Mas mesmo essa
autonomia fictícia dos fatos desaparece na doutrina de Hegel: "Deus prevalece, e a H. do mundo não
representa nada além do plano da providência. Deus governa o mundo: o conteúdo do seu governo, a
execução do seu plano é a H. universal... A filosofia quer conhecer o conteúdo, a realidade da idéia divina
e justificar a realidade vilipendiada. Com efeito, a razão é a percepção da obra de Deus" (Philosophie der
Geschichte, ed. Lasson, I, p. 55). Foi esse conceito de H. que Croce retomou e defendeu nos primeiros
decênios do séc. XX. Para ele, o sujeito da H. é o Espírito do Mundo ou a Razão, não o homem (Teoria e
storia delia storiografia, 1917, p. 87). A H. é uma ordem progressiva que não conhece decadência,
interrupção ou morte (La storia come pensiero e come azione, 1938, p. 38). Ela é sempre jus-
HISTÓRIA
506
HISTÓRIA
tificadora, nunca justiceira; e "só poderia tornar-se justiceira tornando-se injusta, ou seja, confundindo o pensamento
com a vida" (Teoria estória delia storiografia, p. 77). Para Hegel e para Croce o caráter necessário e providencial da
H. deriva da crença de que a H. é obra de uma Razão Absoluta cuja perfeição e cuja potência não conhecem limites.
Uma forma levemente atenuada dessa concepção é a que considera a H. como revelação de Deus. Esse conceito não é
estranho ao próprio Hegel, para quem revelação de Deus no mundo e realização de Deus coincidem. Mas ele assinala
a atenuação da relação entre os dois conceitos de revelação e realização. Essa atenuação já estava em Schelling, que
definia a H. como "a revelação do Absoluto que se desenrola contínua e gradualmente", distinguindo três períodos: o
primeiro, em que a providência aparece como destino ou força cega-, o segundo, em que ela aparece como natureza;
o terceiro, em que ela aparece como providência (System des transzendentalen Idealis-mus, seç. PV, Adendos, III, C;
trad. it., p. 283 ss.). O conceito de revelação foi usado freqüentemente no fim do Romantismo do séc. XTX, bem no
Espiritualismo e Idealismo do séc. XX. Nessas suas manifestações, conservou a conexão da idéia de progresso que
Schelling lhe atribuíra. Tal conexão, porém, não é indispensável. A revelação de Deus na H. pode não ser gradual,
mas total e completa em cada ponto da H. Cada época, cada momento seu é, nesse caso, uma revelação completa de
Deus, segundo as palavras de Goethe: "O instante é a eternidade" e, segundo a frase do historiador Ranke, "Cada
época está em relação imediata com Deus". Nesta forma, o conceito romântico da H. como ordem providencial
também foi aceito por alguns historicistas alemães como E. Troeltsch (Der Historismus und seine Probleme, 1922) e
F. Meinecke (Die Entstehung der Historismus, 1936; Vom geschichtlichen Sinn und vom Sinn der Geschichte, 1939),
preocupados em salvar da mobilidade e da relatividade da H. o caráter absoluto dos valores e o caráter divino do
cristianismo (cf. PIETRO Rossi, Lo storicismo tedesco contemporâneo, 1956, parte VI).
Por outro lado, não é indispensável que o conceito da H. como ordem providencial se baseie na crença de uma
providência de natureza divina, imanente ou transcendente. "Ordem providencial" significa "ordem necessária e
perfeita": e uma ordem semelhante também é atribuída à H. por doutrinas que negam o conceito religioso de providência, como o positivismo social e o marxismo.
Comte considerava a H. como o desenvolvimento progressivo da Humanidade ou Grande Ser, que é "o conjunto dos
seres passados, futuros e presentes que concorrem livremente para aperfeiçoar a ordem universal" (Politiquepositive,
1854. IV, p. 30), e reconhecia que De Maistre tivera o mérito de contribuir para preparar a verdadeira teoria do
progresso com a sua revalorização da Idade Média, já que só depois dessa revalorização a continuidade da tradição
providencial foi restabelecida (Ibid., I, p. 64). Por outro lado, o marxismo considera a H. como um processo unilinear
e progressivo que, por meio da luta de classes, necessariamente desembocará na sociedade sem classes, que é a
sociedade perfeita. Marx diz, a propósito, que a passagem para a nova sociedade ocorrerá "com a mesma fatalidade
que preside aos fenômenos da natureza" (DasKapital, I, 24, § 7). Mas fatalidade significa necessidade e trata-se de
uma necessidade providencial porque dela advirá o modo de vida definitivo e perfeito do gênero humano.
4Q As interpretações filosóficas da H. gravitam quase todas em torno da noção da H. como totalidade ou mundo
histórico. Na verdade, só essa noção permite falar da H. como objeto único e simples, avaliável em seu conjunto uma
vez por todas. A noção de mundo histórico, como todas as noções totalitárias e a própria noção de mundo (v.), está
além das capacidades efetivas de investigação e compreensão de que o homem dispõe. A H. como objeto da
historiografia nunca é um mundo nesse sentido, isto é, a totalidade absoluta dos acontecimentos humanos. Por vezes,
um período histórico ou um conjunto de instituições é chamado de mundo (p. ex., "mundo antigo", "mundo oriental",
etc.) apenas no sentido de totalidade relativamente homogênea de culturas, e não em sentido absoluto. A própria
expressão "mundo histórico", se tiver o significado de "objeto geral das disciplinas historio-gráficas", não designa
uma totalidade absoluta, mas o campo relativamente homogêneo no qual atuam e se encontram as técnicas das
disciplinas historiográficas. Por isso, quando se entender por "realidade histórica" simplesmente o objeto do
conhecimento histórico, estar-se-á renunciando ipsofacto ao conceito de mundo histórico como totalidade absoluta e a
qualquer juízo sobre essa totalidade. Estar-se-á re-
HISTÓRIA
507
HISTORIA
iiunciando, também, a considerar todos os fatos corrío fatos históricos, visto que a afirmação de que todos os fatos
são históricos (presente, p. ex., em CROCE, La storia comepensiero e come azione, 1938, p. 19) é apenas outro modo
de expressar a noção de H. como totalidade absoluta. Por outro lado, se a H. não é o mundo histórico, não existe a
história. Toda H., desse ponto de vista, é a H. de alguma coisa (um período, uma instituição, uma personalidade), mas
não é um processo ou uma substância única ou universal que compreenda tudo dentro de si (cf. J. H. RANDAL JR.,
Nature andHistorical Experience, 1958, p. 28). Desse ponto de vista, as expressões "objeto histórico" ou "realidade
histórica" são apenas nomes comuns para indicar qualquer tema de investigação historiográfica. A metodologia
historio-gráfica contemporânea, que historiadores e filósofos (em acordo fundamental) fizeram avançar notavelmente
nestes últimos tempos, permite atribuir no objeto histórico os seguintes caracteres:
le Individualidade ou unicidade, em virtude da qual o fato histórico se apresenta como algo único e não repetível. O
reconhecimento explícito deste caráter deve-se ao historicismo alemão. Já afirmado por Dilthey (Gesammelte
Schriften, V, p. 236), foi ressaltado por Windelband {Pràludien, IP, p. 145) e por Rickert (Die Grenzen der
naturwissens-cbafllichen Begriffsbildung, 1896-1902, pp. 251,420, etc.) como conseqüência da distinção entre o
procedimento generalizador das ciências da natureza e o procedimento indivi-dualizador das ciências do espírito. Este
caráter da H. às vezes suscitou desconfiança nos metodizadores porque pareceu um caráter "metafísico" (cf., p. ex., C.
G. HEMPEL, em Rea-dings in Philosophical Anatysis, ed. Feigl e Sellars, 1949, p. 46l; GARDINER, The Nature of
HistoricalExplanation, 1952, p. 43). Por outro lado, ninguém nega que um acontecimento histórico seja único no
sentido de estar individualizado pelos dois parâmetros fundamentais, a cronologia e a geografia (cf. o mesmo
GARDINER, loc. cit), e além disso muitos reconhecem unicidade no acontecimento histórico, no sentido "de ser
diferente dos outros, com os quais seria naturalmente agrupado sob um termo classificador, sendo também diferente
quanto aos modos pelos quais desperta o interesse dos historiadores que procuram explicá-lo" (W. DRAY, Laws and
Explanation inHistory,
1956, p. 46). O caráter de unicidade do acontecimento provém das próprias técnicas historio-gráficas que servem para
verificá-lo e ilustrá-lo, sendo reflexo dessas técnicas. O acontecimento histórico só se mostra único e não repetível
quando sua abordagem historiográfica é conduzida a bom termo, de tal modo que o ditado "a H. não se repete"
exprime mais o ideal historiográfico (aliás, difícil de ser alcançado) do que um suposto caráter do processo histórico.
2Q A correlação do fato com os outros fatos, graças à qual o fato é "explicado" ou "compreendido". Também quanto
a este segundo caráter, a metodologia histórica contemporânea chegou a um ponto de concordância satisfatória.
Ainda que não falte quem queira interpretar a conexão entre os fatos históricos como conexão causai (cf., p. ex.,
HEMPEL, loc. cit., p. 462 ss.) no intuito de mostrar que tanto a H. quanto as ciências naturais fazem uso de um único
tipo de explicação, hoje já está bem claro que os historiadores rejeitaram a explicação causai tanto quanto os
estudiosos da Física (cf., sobre este ponto, HISTORIOGRAFIA, e também CAUSALIDADE; CONDIÇÃO; EXPLICAÇÃO). Com
a recusa do esquema causai elimina-se também da H. a noção de lei que está ligada a ele, já que uma lei só faz
expressar uma sucessão causai de fatos. E com a eliminação do conceito de lei também se eliminou o conceito de
necessidade az história. Nesse aspecto, é preciso lembrar que Kierkegaard foi o primeiro a reconhecer na H. a
categoria da possibilidade: "O passado não é necessário ao momento em que vem a ser; não veio a ser necessário
vindo a ser (o que seria uma contradição); e vem a sê-lo ainda menos por meio da compreensão que se tem dele (...)
Se o passado viesse a ser necessário por meio da compreensão, ganharia aquilo que a compreensão perderia, pois
então esta última compreenderia uma coisa diferente e seria uma incompreensão" (PhilosophiscbeBrocken, 1844, IV,
§ 4).
39 O significado ou a importância que o acontecimento possui como opção historiográfica. Também este caráter é
quase universalmente reconhecido na metodologia contemporânea. Pode ser considerado conseqüência do caráter
precedente, visto que a importância de um acontecimento consiste na capacidade por ele demonstrada de condicionar
de um modo qualquer os outros acontecimentos, isto é, de produzir, no seu decorrer, variações que podem
HISTÓRIA IDEAL ETERNA
508
HISTORICISMO
ser atribuídas ao acontecimento em questão. Fica suficientemente claro, porém, que o significado de um
acontecimento (no sentido agora esclarecido) não é uma qualidade que lhe seja inerente de modo absoluto e que o
acompanhe em qualquer contexto historiográfico, mas pode variar segundo os contextos ou as escolhas que os regem:
de tal modo que um acontecimento importante em um deles terá menos ou nenhuma importância em outro.
O primeiro dos caracteres acima arrolados, a individualidade, pode ser utilizado para distinguir o objeto
historiográfico do objeto sociológico ou, em geral, do objeto das ciências sociais, que possui o caráter oposto de repetibilidade (cf. ABBAGNANO, Problemi di sociologia, 1959, II, 5). E o conjunto dos três caracteres serve para distinguir
o fato histórico do fato jornalístico comum, que não é individualizado, não tem conexões suficientes com outros fatos
e não é significativo.
HISTÓRIA IDEAL ETERNA. V. HISTÓRIA HISTÓRIA UNIVERSAL. V. HISTORIO
GRAFIA.
HISTÓRICAS, FONTES (in. Historical sour-ces; fr. Sources historiques; ai. Historische Quellen; it. Fonti
storiché). Com esta expressão indica-se comumente o material da pesquisa historiográfica. As fontes H. costumam
ser divididas em restos e tradições. Os restos são: 1) o que ficou das obras produzidas pelo homem (casas, pontes,
teatros, utensílios, etc); 2) os modos de vida das comunidades (usos, costumes, ordenações jurídicas, políticas, etc); 3)
as obras literárias e filosóficas; 4) os documentos em geral.
Os restos da produção humana cujo objetivo seria transmitir a memória de um acontecimento chamam-se
monumento. O mesmo se diz dos documentos, cuja finalidade é transmitir para o futuro a conclusão de um fato, e das
inscrições, medalhas, moedas, etc.
Fontes de tradição são aquelas através das quais se transmitiu a memória dos fatos passados; podem ser orais e
escritas (cf. G. G. DROYSEN, Grundzüge der Historik, 1882, § 20-24).
mSTORICIDADE (in. Historicity, fr. His-toricitè, ai. Geschichtlichkeít; it. Storicitã). 1. O modo de ser do mundo
histórico ou de qualquer realidade histórica.
2. A existência de fato no passado; neste sentido se diz, p. ex., "a H. de Jesus", para
indicar que Jesus foi uma pessoa real, não um mito.
3. A importância histórica que, às vezes, se atribui também a fatos presentes e contemporâneos.
HISTORICISMO (in. Historicism- fr. Histo-ricisme, ai. Historismus-, it. Storicismó). Por esse termo, empregado
pela primeira vez por Novalis (Werke, III, p. 173), podem ser entendidas três linhas de pensamento diferentes, a
saber:
Ia Doutrina segundo a qual a realidade é história (desenvolvimento, racionalidade e necessidade) e que todo
conhecimento é conhecimento histórico; foi expressa por Hegel (cf. especialmente Geschichte der Philosophie, I,
intr.) e por Croce {La storia come pensiero e come azione, 1938, p. 51). Essa é a tese fundamental do idealismo
romântico (v.), que supõe a coincidência entre finito e infinito, entre mundo e Deus, e considera a história como
realização de Deus. Pode chamar-se H. absoluto.
2- Uma variante da doutrina precedente, que vê na história a revelação de Deus no sentido de considerar que cada
momento da história está em relação direta com Deus e é permeado dos valores transcendentes que Ele incluiu na
história. Foi o ponto de vista defendido por E. Troeltsch e F. Meinecke (cf. o verbete HISTÓRIA, 3, e). Pode-se chamar
essa doutrina de H. fidetsta porque a revelação de Deus no H. ocorre substancialmente por meio da fé.
3a A doutrina para a qual as unidades cuja sucessão a história constitui (Épocas ou Civilizações) são organismos
globais cujos elementos, necessariamente vinculados, só podem viver no conjunto; afirma, portanto, a relatividade
entre os valores (que são alguns desses elementos) e a unidade histórica a que pertencem; sendo inevitável a morte
desses elementos com a morte dessa unidade. Esse é o ponto de vista de Spengler e de outros, e pode chamar-se H.
relativista. Existe também, pelo menos em polêmica, uma noção vulgar desse H., segundo a qual a história seria um
movimento incessante que empolga tudo, mesmo a verdade e os valores, imediatamente depois do instante em que
florescem. A doutrina mais próxima dessa concepção é defendida por G. Simmel; para ele, a vida é um fluir
incessante que resolve e concilia todas as coisas dentro de si: "O bem e o mal que fazemos e que recebemos, o belo
que nos deleita e o feio de que fugimos, as séries acabadas e as que foram inter-
HISTORIOGRAFIA
509
HISTORIOGRAFIA
rompidas na nossa vida, todas estas coisas, por mais díspares que sejam, constituem elementos da vida, como cenas
de um destino, na conexão das vivências que continuam incansável e ininterruptamente: em «ma vida, cujo sentido,
justamente como vida, supera todas as oposi-ções que seus conteúdos possam apresentar, segundo outros critérios"
(Hauptprobleme der Philosophie, 1910, IV; trad. it., p. 201) . O mesmo Simmei, porém, admitia alguma coisa que é
mais que vida (v.), é a forma da própria vida que dela emerge e para ela retorna (Lebensans-chauung, 1918, pp. 2223) .
4a A corrente da filosofia alemã que, nos últimos decênios do séc. XIX e nos primeiros do séc. XX, debateu o
problema crítico da história. O fato de, no séc. XIX, as disciplinas históricas terem sido alçadas ao nível de ciência
criava um problema análogo ao que Kant se propusera a respeito das ciências naturais: o problema da possibilidade
da ciência histórica, ou seja, da sua validade. Esse problema foi debatido na Alemanha a partir dos textos de Dilthey,
especialmente Einleitung in die Geisteswissens-chaften (1883), em que ele procura estabelecer a diferença entre as
disciplinas historiográficas e as ciências naturais, indicando como instrumento principal das disciplinas históricas a
"psicologia analítica e descritiva", cujo instrumento fundamental é a vivência (v.). Windelband e Rickert
contribuíram, por sua vez, para delimitar conceitualmente o domínio das disciplinas historiográficas, distinguindo
entre as ciências nomotéticas ou generalizantes, que são as naturais, e as ciências idiogrãficas ou indivi-dualizantes,
que são as históricas (v. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS). OS problemas da explicação (v.) e da compreensão (v.) da
realidade histórica eram também debatidos nessas escolas não só por Dilthey, Windelband e Rickert, mas também por
Simmei, Troeltsch e Meinecke; contudo, a sua contribuição mais substancial veio de Max Weber, que encarou
sobretudo o problema da explicação histórica e da causalidade da história. A herança dessa escola, que iniciou a
elaboração da metodologia histórica, foi recebida pelos modernos metodizadores da história (sobre os quais, V.
HISTORIOGRAFIA) (cf. R. ARON, La philosophie critique de Vhistoire, Essais sur une théorie allemande de Vhistoire,
2- ed., 1950; P. Rossi, Lo storicismo tedesco contemporâneo, 1956).
HISTORIOGRAFIA (lat. Historiographia; in. History, fr. Histoire, ai. Geschichte, às vezes
Historie, it. Storiografid). O termo historiogra-phus aparece em Cornélio Agripa {De in-certitude et vanitate
scientiarum, 1527, Cap. V, em Opera, II, p. 2,27) e o termo historiographie é encontrado num idílio em prosa do
poeta inglês Nicholas Breton (Wits Trenchmour, 1597). Foi adotado por T. Campanella para indicar "a arte de
escrever corretamente a história" {Phi-losophiae Rationalis partes quinque, videlicet Grammatica, Dialectica,
Rethorica, Poética, Historiographia, iuxta própria principia, 1638, p. 243). Permaneceu com esse significado em
inglês e em francês (o alemão usa HistoriM), ao passo que em italiano passou a significar, na esteira de Croce, o
conhecimento histórico em geral ou o conjunto das ciências históricas. Dada a ambigüidade do termo história, é
oportuno dispor de um termo adequado para indicar o conhecimento histórico, na sua distinção da realidade histórica.
As interpretações dadas sobre esse conhecimento são fundamentalmente duas, que podem ser qualificadas como A)
historiografia universal; E) historiografia pluralista. A interpretação do conhecimento histórico como história
universal corresponde à interpretação da realidade histórica como mundo. A interpretação dela como história
pluralista corresponde à interpretação da realidade histórica como objeto definível ou verificável só através dos
instrumentos de pesquisa de que se dispõe.
A) A história universal, ou melhor, cósmica (ai. Weltgeschichtè), é o conhecimento do plano providencial do mundo
histórico (cf. HEGEL, Phil. der Geschichte, ed. Lasson, p. 52). Tem duas características fundamentais:
Ia É tarefa do filósofo, e não do historiador, e a obra do historiador pode servir-lhe apenas como auxílio não
indispensável. Fichte, que a chama "história apriori", afirma: "Compreender com clara inteligência o universal, o
absoluto, o eterno e o imutável que guia a espécie humana é tarefa do filósofo. Fixar de fato a esfera sempre
cambiante e mutável dos fenômenos através dos quais marcha em passo firme a espécie humana, é tarefa do
historiador, cujas descobertas são só casualmente recordadas pelo filósofo" (Grundzüge des gegenwârtigen Zeitalters,
1806, IX; trad. it., Cantoni, p. 67). Hegel, em polêmica com os grandes historiadores do seu tempo, degradados a
"filólogos" (v. FILOLOGIA), afirmava: "Para conhecer o substancial, é preciso ter acesso a ele por meio da razão... A
filosofia, na certeza de que o que impera é a razão, ficará
HISTORIOGRAFIA
510
HISTORIOGRAFIA
convencida de que o ocorrido encontrará lugar no conceito e não alterará a verdade, como hoje é moda
particularmente entre os filólogos que, usando aquilo que chamam de acuidade, introduzem na história elementos
francamente apriorísticos" (Op. cit., p. 8). Era isso que tinham em mente Croce, ao identificar filosofia e história
{Teoria estória delia storiografia, 1917, pp. 71 ss.), e Gentile, ao identificar história e história da filosofia
(Teoriageneraledellospirito, 1920, XIII, 14).
2- É independente das limitações do material historiográfico e dos instrumentos de pesquisa, podendo, pois,
prescindir de qualquer história que tenha sido ou que possa ser escrita. Fichte considerava a história a priori
completamente independente da história a poste-riori, que é do historiador (Op. cit). Hegel afirmava que, para
reconhecer a realidade substancial da história, é preciso "trazer consigo a consciência da razão: não olhos físicos, não
um intelecto finito, mas o olho do conceito, da razão", e portanto confiar no modo de proceder rigorosamente
apriorístico" (Phil. der Geschichte, I, p. 8). Croce falava de uma "anam-nese" do Espírito Universal que teceu a
história e para o qual as fontes da história servem apenas como motivos de recordação (Teoria e storia delia
storiografia, p. 16). O próprio Heidegger compartilha desta concepção da história cósmica; adverte que "história
cósmica" significa em primeiro lugar "o historicizar-se do mundo na sua essencial unidade existencial com o Ser-aí";
em segundo lugar, "o historicizar-se intra-mundano dos instrumentos e das coisas"; em ambos os sentidos, a história
cósmica é independente do conhecimento historiográfico (Sein und Zeit, § 75), de tal sorte que é a escolha implícita
na historicidade do Ser-aí que determina a escolha historiográfica (Ibid., § 76).
B) A H. pluralista caracteriza-se, em primeiro lugar, pelo abandono de conceitos como "mundo histórico" ou
"história universal" e pelo reconhecimento da pluralidade das formas do conhecimento histórico e da sua dependência
em relação ao material documentário disponível e aos princípios que orientam a escolha historiográfica. Deste ponto
de vista, o conhecimento histórico autêntico versa sempre sobre objetos delimitados ou delimitáveis, nunca sobre a
totalidade da história; e nunca é juízo sobre essa totalidade, de sorte que exclui, como desprovidos de sentido, os
conceitos de progresso, decadência, etc, entendidos em
sentido absoluto. Embora a antigüidade grega nos tenha legado exemplos excelentes de H. nesse sentido (p. ex., a
obra de Tucídides e de Políbio), os fundamentos do que hoje se chama metodologia historiográfica começaram a
aclarar-se só a partir do Renascimento e a ser definidos por historiadores e filósofos só nos últimos anos. Tais
fundamentos podem ser resumidos do seguinte modo:
1Q O conhecimento histórico é perspec-tivista- mantém afastamento em relação ao passado e quer entendê-lo no seu
tempo e lugar, sem assimilá-lo ou reduzi-lo ao presente. O reconhecimento da alteridade entre a experiência histórica
e a realidade histórica, entre o sujeito histórico e o objeto histórico, ou entre o presente e o passado, é uma das
condições fundamentais da pesquisa histórica. Constitui a contribuição do Humanismo para a metodologia histórica.
Pois, enquanto a Idade Média ignorava a perspectiva histórica, transformando os fatos e os acontecimentos mais
heterogêneos e distantes em fatos eacontecimentos contemporâneos, o Humanismo procurou entender o passado
como passado, a antigüidade como antigüidade, o outro como outro (cf. E. GARIN, Medioevo e Rinascimento, 1954,
II, 5). A exigência de "reviver" o passado, de fazê-lo "voltar", seria falsificadora da história, se tomada ao pé da letra
(cf. H. 1. MARROU, De Ia connaissance historique, 1954, pp. 43 ss.), assim como seria falsificadora da história, se
tomada ao pé da letra, a exigência apresentada por Croce (Teoria e storia delia storiografia, pp. 3 ss.; La storia
comepensiero e come azione, 1938, p. 5), de que toda história seja entendida como "história contemporânea". Um
corolário da exigência da perspectiva histórica é o afastamento em relação ao passado, que Nietzsche atribuía à
história crítica (ao lado da história arqueológica, que "conserva e venera", e da história monumental, que exalta e
encoraja, Unzeitgemãsse Betrachtungen, 1873, II), afastamento que Nietzsche entendia como abandono do passado e
encaminhamento do presente para novos caminhos, e que certamente é um dos ensinamentos da historiografia. Mas
há também um afastamento em relação ao presente, inerente à atitude historiográfica preconizada sobretudo pelo
Iluminismo, e expressa por P. Bayle em palavras que ficaram famosas: "O historiador deve esquecer que pertence a
certo país, que foi criado em certa comunidade, que seu destino se deve a isto ou àquilo e que fulano e
WTORIOGRAFIA
511
HISTORIO GRAFIA
. ricrano são seus parentes ou seus amigos. Um ' htítoriador, enquanto tal, assim como Mel-=~ quisedeque, não tem
pai, mãe, nem genealogia" '-- {fiktíonnaire, art. Usson, rem. F.). O ideal pro-• posto por Bayle é difícil, para não dizer
impos-Í ^vel, porque, como os historiadores hoje reco-í fhecem (cf., p. ex., MARROU, op. cit., cap. II), a - interferência
ativa dos interesses e das tendências do historiador sempre condiciona, em cer-; femedida, os resultados da sua
investigação e 9Sé mesmo a descoberta dos fatos. Entretanto, a técnica da investigação historiográfica não tende mais
a descarnar ou desumanizar o historiador, como queria Bayle, mas a limitar e a disciplinar a interferência dos seus
interesses na pesquisa.
2fi O conhecimento histórico é individualizante, porque individualizantes são os ins-tfymentos de que se vale. A
individualidade ouunicidade (não-repetibilidade), amiúde atribuída aos fatos históricos, na verdade é reflexo dos
instrumentos que os examinam (v. HISTÓRIA). Em primeiro lugar, todo acontecimento histórico é individualizado
pelos dois parâmetros fundamentais: cronologia e geografia. Em segundo lugar, a documentação da H. tem caráter
individualizante. Um documento, uma moeda, uma inscrição sempre se referem a um único fato; o mesmo ocorre
com o relato. Em terceiro lugar, têm caráter individualizante os critérios de escolha historiográfica, porque tendem a
pôr em evidência um fato entre outros, a ressaltar seu significado ou sua importância, portanto o seu caráter de algum
modo "singular" ou "único". A unicidade do fato histórico às vezes foi criticada como caráter supostamente
metafísico da realidade histórica (cf. os textos citados no verbete HISTÓRIA, 4, 1), mas não poderá suscitar objeções,
se for entendida como resultado do caráter individualizante dos instrumentos historiográficos. Pode-se dizer que o
grau de individualidade do fato histórico deriva do grau de êxito que a investigação historiográfica logra obter. Um
fato se mostra não-repetível quando a investigação historiográfica consegue reconstruí-lo em sua individualidade
completa, mas essa individualidade é ideal historiográfico, mais que fato.
3S O conhecimento histórico é seletivo. Este é um dos pontos pacíficos na metodologia historiográfica (R. ARON,
Introduction à Ia philosophie de 1'histoire, 1948; ed. 1952, pp. 131 ss.; P. GARDINER, The Nature of Histórica! Explanation, 1952, pp. 104 ss.; M. BLOCH, Apologie
pour 1'histoire, 1952, p. 2; H. I. MARROU, De Ia connaissance historique, 1954, pp. 209 ss.; W. DRAY, Laws and
Explanation in History, 1957, pp. 98 ss.; J. H. RANDALL, Nature andHistorical Experience, 1958, pp. 25, 45, etc). O
caráter seletivo da H. também é reconhecido por K. POPPER, The Poverty of Historicism, 1944, § 31, e pelo marxista
L. GOLDMANN, Sciences humaines et philosophie, 1952, p. 4. J. H. Randall ilustrou deste modo a função seletiva da
H.: "O historiador deve fazer uma escolha. Na infinita variedade de relações revelada pelos acontecimentos passados,
deve escolher o que é importante ou fundamental para a sua história. Para que a seleção não seja apenas aquilo que
parece importante para ele, para não ser subjetiva e arbitrária, deve ter um foco objetivo em alguma coisa que deve ser
feita, em alguma coisa que ele considere obrigatória ou imposta aos homens, em algum Aufgabe ou faciendum, em
algum trabalho que deve ser feito" {op. cit., p. 60). A possibilidade da escolha não implica a possibilidade de que o
passado mude. "Não que o passado em si mesmo possa mudar; o que pode mudar é a seleção que o presente faz do
passado. O que é significante e relevante no passado de cada coisa muda à medida que a própria coisa muda e se
desenvolve" {op. cit, p. 36). A escolha historiográfica é feita, em primeiro lugar, em relação aos fatos, mas também, e
simultaneamente, em relação às hipóteses que estão incorporadas na própria verificação dos fatos. A escolha de uma
hipótese não é necessariamente sugerida ao historiador por suas próprias simpatias ou tendências; às vezes, como
ocorre no caso de Tucídides, a hipótese que ele apresenta e acha comprovada pelos fatos é contrária a todos os seus
desejos. O pluralismo das escolhas, isto é, a possibilidade de efetuar opções historiográficas diferentes e de mudar e
corrigir as já efetuadas, é uma das condições do conhecimento histórico. Por vezes, os filósofos tentaram limitar, por
princípio, a pluralidade das escolhas, ou seja, estabelecer um princípio que orientasse unilateralmente, em cada caso,
a seleção historiográfica. Foi o que fez Hegel, ao afirmar que a história é "história do espírito", obrigando assim a
escolha do historiógrafo a deter-se nas idéias e a declarar historicamente inexistente todo o resto. Foi o que fez
também o materíalismo histórico (v.), ao afirmar que a história é, em primeiro lugar, história das "relações de
produção de trabalho", e que todo o resto é "superestrutura", que
HISTORIOGRAFIA
512
HOMEM
não determina, mas decorre. Não há dúvida de que essas tentativas de limitação da escolha historiográfica,
especialmente a marxista, chamaram a atenção para fatos que podiam ser ou que eram negligenciados, aguçando, por
assim dizer, o olhar do historiador para caminhos menos trilhados. Em última análise, porém, e se assumidos como
princípios absolutos para a limitação das escolhas, negariam a pluralidade das escolhas, impediriam a sua retificação,
e acabariam por falsear a história, ocultando esferas de fatos que não são os privilegiados por essa tendência.
4S O conhecimento histórico não visa à explicação causai, mas à explicação condicional. Embora não falte quem
ainda insista no caráter causai da explicação histórica (cf., p. ex. HEM-PEL, em Readings in Philosophical Analysis,
ed. Feigl. e Sellars, 1949, pp. 459 ss.; GARDINER, op cit., pp. 65 ss.), tende a prevalecer entre os metodizadores da
história a opinião de que as noções de causa e de lei têm pouca possibilidade de aplicação no domínio historiográfico
(como também, aliás, no domínio da física). Nesse sentido, a obra citada de W. Dray é particularmente significativa
(v. o verbete EXPLICAÇÃO). A preferência pela explicação condicional reduz a importância da oposição entre
explicação e compreensão, que por certo tempo pareceu expressar a oposição entre ciências da natureza e ciências do
espírito. De fato, tanto a explicação quanto a compreensão consistem na determinação da possibilidade do objeto (v.
COMPREENSÃO).
5a O conhecimento histórico visa à determinação de possibilidades retrospectivas. Esta é uma conseqüência da
renúncia da H. ao esquema causai (que supõe a necessidade do objeto histórico) e do seu recurso ao esquema
condicional. Este esquema consiste na determinação de possibilidades, ou melhor, de probabilidades retrospectivas.
Essa característica já foi atribuída ao conhecimento histórico por Max Weber: "A consideração do significado causai
de um fato histórico começará com a seguinte pergunta: excluindo os acontecimentos do conjunto de fatores
considerados condicio-nantes, ou mudando-os para determinado sentido, e tomando como base regras gerais da
experiência, seu curso teria podido tomar direção de algum modo diferente, nos aspectos decisivos para o nosso
interesse?" (Kritische Studien auf dem Geliet der kulturwissenschaftlichen Logik, 1906; trad. it. em // método delle
scienze
storico-sociali, p. 223). Por certo, qualquer historiador julgaria sem sentido a tentativa feita por Renouvier, em
Uchronie, de imaginar "o desenvolvimento da civilização européia tal com poderia ter sido, mas não foi". Contudo,
como diz R. Aron: "Todo historiador, para explicar o que foi, pergunta-se o que poderia ter sido. A teoria limita-se
dar forma lógica a essa prática espontânea do homem comum" (op. cit., p. 164; cf. MARROU, op. cit., p. 181). Por
mais que os historiadores e os metodizadores da história continuem a falar de "causa", o sentido que dão a essa
palavra nada tem que ver com seu significado tradicional: por isso, seria interessante que, à mudança conceituai já
ocorrida, se seguisse a mudança terminológica (Cf. uma bibliografia selecionada sobre a metodologia historiográfica
em Theory and Practice in Historical Study: a Report ofthe Committee on Historiography, 1942, e cf. sobre os
autores tratados neste verbete: P. Rossi, Storia estoricismo nelIa filosofia contemporânea, 1960).
HOLISMO (in. Holism-ír. Totalisme, ai. Ho-lismys; it. Olismó). 1. Uma variante da doutrina da evolução emergente
(v.), que consiste na inversão da hipótese mecanicista e em considerar que os fenômenos biológicos não dependem
dos fenômenos físico-químicos, mas o contrário. Esta hipótese nada mais é que uma forma mal disfarçada de
vitalismo. Cf. J. C. SMUTS, Holism and Evolution, 1927; J. S. HAL-DANE, The Philosophical Basis of Biology, 1931;
DRIESCH, Zur Kritik des Holismus, 1936.
2. K. Popper denominou H. a tendência dos historicistas em sustentar que o organismo social, assim como o
biológico, é algo mais que a simples soma dos seus membros e é também algo mais que a simples soma das relações
existentes entre os membros (The Poverty of Historicism, 1944, § 7).
HOLOMERIANOS (in. Holomerians; ai. Ho-lomerianer, it. Olomeriant). Henri Moore denominou assim os que
acreditam que a alma reside na totalidade do corpo, e não em parte dele. (Enchiridion metaphysicum, I, 27, 1).
HOMEM (gr. &v8pCú7TOÇ; lat. Homo-, in. Man; fr. Homme, ai. Mench; it. Uomó). As definições de H. podem ser
agrupadas sob os seguintes títulos: ls definições que se valem do confronto entre o H. e Deus; 2Q definições que
expressam uma característica ou uma capacidade própria do H.; 3 B definições que expressam a capacidade de
autoprojetar-se como própria do H.
HOMEM
513
HOMEM
Ia As definições do primeiro grupo são de natureza religiosa e teológica, mas também podem ser
encontradas em doutrinas que nada têm de religioso e teológico. Qualquer definição desse gênero baseiase na expressão do Gênese. "E Deus disse: façamos o H. à nossa imagem e semelhança" (Gên., I, 26).
Esta expressão servia freqüentemente de ponto de partida para especulações sobre a alma, especialmente
sobre suas divisões (v. ALMA): na realidade, ela é a definição explícita do H. e, como tal, foi considerada
pelos teólogos da Reforma. Por outro lado, Aristóteles, ao tratar da vida contemplativa, falou de um
"elemento divino" do H., que, na mesma medida em que excede no todo que constitui o H., torna o H.
virtuoso e bem-aventurado (Et. nic, X, 6, 1177b 26). Mas esse tipo de definição do H. na tradição
filosófica teve como inspiração constante a Bíblia. Viram o H. como imagem de Deus: CAL-VINO
(Institutie, I, 15, 8) e ZWÍNGLIO (Deutsche Schrifter, I, 56). Através das ricas amplificações dejACOB
BOEHME (cf, p. ex., Aurora oder die Morgenrôthe im Aufgang, VI, I), esse conceito passou para a
filosofia romântica alemã. Spinoza dizia que "a essência do H. é constituída por certas modificações dos
atributos de Deus" (Et., II, 10. Corol.). Nas lições sobre a Destinação do douto, em 1794, Fichle apontava
como tarefa do H. adequar-se à unidade e à imutabilidade do Eu absoluto, segundo a máxima "age de tal
forma que possas considerar a máxima da tua vontade uma lei eterna para ti" (Über die Bestimmung des
Gelehrten, 1794, I). Mas o Eu absoluto é o princípio ou a substância do H., e sua unidade e sua
imutabilidade são apenas a unidade e a imutabilidade de Deus, de tal forma que a melhor maneira de
expressar a doutrina de Fichte a esse respeito é que o H., em seu princípio ideal, é Deus e deve esforçar-se
por tornar-se tal. Analogamente, para Hegel o H. é essencialmente Espírito e o Espírito é Deus. Diz:
"Conquanto considerado finito por si mesmo, o H. é também imagem de Deus e fonte da infinidade em si
mesmo, pois é o fim de si mesmo e tem em si mesmo o valor infinito e a destinação para a eternidade"
(Philosophie der Geschichte, ed. Gloekner, p. 427). Hegel define cristianismo como a posição de
"unidade do H. e de Deus" (Ibid., p. 416). Nessas definições de H., a relação do H. com Deus é vista de
forma positiva.
Mas essa relação pode ser vista de modo negativo ou invertido, permanecendo substancialmente a mesma. Feuerbach, p. ex., diz que o H. se revela e se define no seu conceito de Deus. "O ser
absoluto, o Deus do H., é o ser do H.", diz ele (Wesen des Christentum, § 1). Aquilo que o H. pensa de
Deus é a definição de H.: "Pensas o infinito? Então pensas e afirmas a infinidade do poder do
pensamento. Sentes o infinito? Sentes e afirmas a infinidade do poder do sentimento" (Ibid?). As teses de
existência ou inexistência de Deus não influem nessas definições de H., que se ancoram ao confronto
entre o H. e Deus. Assim, em Nietzsche, após a proclamação de que "Deus morreu", Zaratustra anuncia o
Super H., como aquilo que está além do H. "A grandeza do H. está no fato de que ele é ponte e não fim: o
que pode fazê-lo amar é o fato de ser ele uma passagem e um ocaso" (Alsosprach Zarathustra, Prol., § 4).
Em sentido análogo ao de Feuerbach e Nietzsche, mas acrescido do conceito de fracasso ao qual o H. está
destinado, Sartre disse: "Se o H. possui uma compreensão pré-ontológica do ser de Deus, ela não lhe foi
conferida pelos grandes espetáculos da natureza nem pelo poderio da sociedade: mas Deus, valor e
objetivo supremo da transcendência, representa o limite permanente a partir do qual o H. se anuncia
aquilo que ele é. Ser H. é tender para Deus; ou, se assim preferirem, o H. é fundamentalmente desejo de
ser Deus" (Uêtre et le néant, pp. 653-54).
2S As definições que exprimem uma característica ou uma capacidade atribuída ao H. são numerosas; a
primeira e mais famosa é a definição de H. como "animal racional". Essa definição expressa bem o ponto
de vista do Iluminismo grego e o espírito das filosofias de Platão e Aristóteles. Mas não se encontra
explicitamente em Platão, que teria dito somente que o H. é animal "capaz de ciência" (Def., 415a),
determinação que Aristóteles repete, considerando-a como peculiaridade do H. (Top., V, 4, 133 a 20).
Mas em Política Aristóteles afirma que "o H. é o único animal que possui razão", e que a razão serve para
indicar-lhe o útil e o pernicioso, portanto também o justo e o injusto (Pol, I, 2, 1253a 9; cf. VII, 13,
1382b, 5). Aceita pelos estóicos (SEXTO EMPÍRICO, Pirr. hyp., II, 26; J. STOBEO, Ecl, II, 132), essa
definição tornou-se clássica e a ela recorrem habitualmente os escritores medievais (cf, p. ex., S. TOMÁS,
S. Th., II, 1, q. 71, a. 2; II, 2, q. 34, a. 5). É essa a única definição que penetrou na cultura comum, e os
filósofos também se referem a ela
HOMEM
514
HOMEM
para introduzir variações que se coadunem com o sentido específico que dêem à palavra razão. P. ex., a definição de
Rosmini, "o H. é um sujeito animal dotado da intuição do ser ideal indeterminado" (Antropologia, § 23), expressa a
mesma coisa que a definição tradicional, porque, para Rosmini, a "percepção do ser ideal indeterminado" é a razão
(Nuovo saggio, § 396). A definição de De Bonald, famosa por algum tempo, "o H. é uma inteligência servida por
órgãos" (CEuvres, 1864,1, p. 41; III, p. 149), também nada mais é que uma paráfrase da definição tradicional,
porquanto nela o "serviço dos órgãos" é equivalente a "animalidade". É ainda mais famosa a definição de Pascal, "o
H. nada mais é que um junco, o mais frágil da natureza, mas é um junco pensante" (Pensées, 347), que também pode
ser considerada variante da definição tradicional, em que a conotação da fragilidade natural do H. tomou o lugar da
"animalidade". Por outro lado, Descartes dispensara a animalidade e reduzira o H. a pensamento, como consciência
imediata: "Para falar com precisão, sou apenas uma coisa que pensa, um espírito, um intelecto ou uma razão" (Méd.,
II). Mas, na definição tradicional, a animalidade servia, por um lado, para explicar a óbvia limitação da atividade
pensante do H. e, por outro, para reconhecer no H. um ser terrestre ou mundano, que necessita de órgãos. Em sentido
cartesiano, Husserl disse: "Se o H. é um ser racional (.animal rationalé), só o é na medida em que toda a sua
humanidade é uma humanidade racional, na medida em que é la-tentemente orientado para a razão ou abertamente
orientado para a enteléquia que se revelou e guia, conscientemente e por necessidade essencial, o devir humano"
(Krisis, 1954, § 6). A última e mais atualizada versão da antiga definição diz que o H. é um animal simbólico, ou
seja, um animal que fala (CASSIRER, Essay on Man, cap. II). Esta característica, na verdade, estava presente no
mesmo termo grego que significa razão: logos, que é o discurso racional ou a razão que se faz discurso. Na filosofia
contemporânea, essa definição serve para expressar o poder condicionante da linguagem, do comportamento sígnico
em todas as atividades do homem. Esse poder dificilmente poderia ser exagerado, e a definição em pauta está, com
justiça, entre as mais difundidas e aceitas na filosofia contemporânea. Contudo, não pode ser compreendida sem levar
em conta a característica da autoprojetabilidade, que o terceiro grupo de definições atribui ao homem.
Uma segunda e mais específica determinação, que tem servido freqüentemente para definir o H., é sua natureza
política, sociável. Já mencionada por Platão (De/., 415a), esta determinação é estreitamente ligada por Aristóteles à
natureza racional do homem. "Quem não pode fazer parte de uma comunidade ou quem não precisa de nada,
bastando-se a si mesmo, não é parte de uma cidade, mas é fera ou Deus" (Pol., I, 2, 1253 a 27). Obviamente, para
Aristóteles, é estreita a conexão entre racionalidade e política, podendo-se dizer o mesmo de todos aqueles que,
depois dele, adotarem a mesma definição. Hobbes, que combatia essa definição, interpretava-a como se significasse:
"O H. está apto, desde o nascimento, a viver em sociedade"; afirmava que, nesse sentido, ela é falsa, porque o H. só
se torna apto para a vida social graças à educação (De eive, I, 2, e nota). Mas o significado mais óbvio dessa definição
é que o H. não pode deixar de viver em sociedade; nesse sentido, nem mesmo Hobbes duvida de sua fundamental
exatidão. No entanto, essa definição não foi proposta para determinar a natureza do H. em sua totalidade.
Quem tem a pretensão de expressar a totalidade do H. é Bergson: "Se pudéssemos despir-nos do nosso orgulho, se,
para definir nossa espécie, nos ativéssemos estritamente àquilo que a história e a pré-história nos apresentam como
característica constante do H. e da inteligência, talvez não disséssemos Homo sapiens, mas Homofaber. Em
conclusão, a inteligência, considerada naquilo que parece ser a sua tarefa original, é a faculdade de fabricar objetos
artificiais, particularmente utensílios para fazer utensílios, e de variar indefinidamente a fabricação deles" (Évol.
créatr., 8a ed., 1911, p. 151). Na realidade, porém, o próprio Bergson admite que em torno da inteligência há um
"halo de instinto", considerando possível o retorno da inteligência ao instinto, por meio da intuição-. isso deveria
significar que o H. não é apenas Homo faber.
3S O terceiro grupo de definições compreende as que interpretam o homem como possibilidade de autoprojeção.
Quase todas as definições do segundo grupo, mesmo partindo de uma única determinação do H., considerada própria
e fundamental, interpretam-na, explícita ou implicitamente, como possibilidade,
HOMEM
515
HOMEM
como capacidade ou disposição. Ao defender a definição do H. como animal racional, Leibniz observa
que o fato de os idiotas carecerem da razão não é uma objeção contra ela: basta que eles, mesmo que
apenas com seu corpo, mostrem um indício de racionalidade (Nouv. ess., HI, 6, 22). Mas, na realidade, já
em Aristóteles está suficientemente claro que a razão é uma possibilidade ou capacidade de juízo, não
uma determinação necessitante, que somente a esse título constitui a definição do homem. O caráter
indeterminado do H. talvez estivesse disfarçado na expressão de Demócrito: "O H. é aquilo que todos nós
sabemos" (Fr. 165, Diels), mas está claramente expresso nas especulações dos neoplatônicos da
Antigüidade e do Renascimento sobre a "natureza média" ou "central" do homem. Plotino já afirmava a
este propósito: "O lugar do H. é no meio, entre os deuses e os animais; às vezes tende para uns, às vezes
para outros; alguns homens assemelham-se aos deuses; outros, às feras; a maioria fica no meio" (Enn., III,
2, 8). Esse pensamento foi ilustrado no séc. EX por Scotus Erigena: "Não foi sem razão que o H. foi
denominado oficina de todas as criaturas, de fato, todas as criaturas estão nele contidas. Ele entende
como o anjo, raciocina como o H., sente como o animal irracional, vive como um germe, constitui-se de
alma e corpo e não está isento de coisa alguma criada" (De divis. nat., III, 37). Esses pensamentos são
repetidos no Renascimento por Nicolau de Cusa (De visione Dei, 6; Exci-tationes, V; De ludo globi, II) e
por Marsílio Ficino (Theol. Plat, III, 2), e ambos transferem-nos para a alma do H.; Ficino chama a alma
de cópula do mundo. Mas estão expressos de maneira clássica na oração De hominis dig-nitate, de Pico
delia Mirandola, em que Deus diz: "Não te dei, Adão, um lugar determinado, um aspecto próprio, nem
prerrogativa alguma, porque esse lugar, esse aspecto e essas prerrogativas que venhas a desejar, tudo
segundo tua vontade e teu discernimento, deves obter e conservar. A natureza limitada dos outros está
contida em leis por mim prescritas. Tu determi-narás as tuas sem seres impedido por barreiras, segundo o
teu arbítrio, a cujo poder te confiei. — Pus-te no meio do mundo, para que de lá avistasses tudo o que
nele existe. Não te fiz celeste nem terreno, mortal nem imortal, para que, como livre e soberano artífice de
ti mesmo, te plasmasses e esculpisses na forma que melhor te aprouvesse. Poderás degenerar para
as coisas inferiores; poderás, segundo o teu desejo, regenerar-te nas coisas superiores, que são divinas"
(De hom. dign., f. 131 r). Com certeza, a ilimitada capacidade de autoprojeção do H. nunca mais foi
exaltada com tanta eloqüência e com otimismo tão confiante quanto nesta página de Pico delia Mirandola.
Todavia, o conceito iluminista de H. como razão projetante, limitada e impedida, mas eficaz, pode ser
considerado decorrente do conceito renascentista do homem. Kant dizia: "Numa criatura, a razão é o
poder de entender além dos instintos naturais as normas e os fins de uso de todas as suas atividades; ela
não conhece limites para os seus desígnios. No entanto, a razão não age instintivamente, mas por
tentativas, com o exercício e aprendendo, para elevar-se pouco a pouco e passar de um grau de
conhecimento a outro" (Idee zu einer allgemeinen Geschichte in Weltbürgerlicher Absicht, 1784, tese II).
Kant julga, portanto, que só através da história da espécie humana na terra o homem realiza a sua
natureza, que é a liberdade de autopro-jetar-se com a razão, especialmente de projetar para si uma
sociedade civilizada alicerçada totalmente no direito. Essas idéias expressam bem o ponto de vista do
iluminismo, ao qual o próprio Kant as atribuía. Com maior clareza ainda, Kant assim descrevia o caráter
da espécie humana: "Para poder atribuir ao H. o seu lugar no sistema da natureza viva e assim caracterizálo, só resta dizer que ele tem o caráter que ele mesmo faz, porquanto sabe aperfeiçoar-se segundo os fins
por ele mesmo criados; por isso, de animal capaz de raciocinar (animal rationabilé), pode tornar-se
sozinho animal que raciocina (animal rationalé)" (Antr., II, e). Na filosofia contemporânea, esse conceito
de homem foi herdado pelo existencialismo e pelo instrumentalismo americano. Por um lado, eles frisam
que o H. é aquilo que ele mesmo pode e quer tornar-se, e por isso é constantemente problema para si
mesmo e solução para esse problema, que projeta continuamente seu modo de ser ou de viver e que este
projeto passa a constituir, em algum grau ou medida, seu modo de ser ou de viver efetivo. Por outro lado,
ambas as correntes reconhecem as limitações dessa possibilidade de projetar, que agem especialmente no
fato de que, em certa medida, cada projeto já encontra como dados(como relativamente não modificáveis)
os elementos que utiliza, que tudo o que ele pode projetar para o futuro já foi, de qualquer modo ou
HOMEOMERIAS
516
HOMO HOMO
forma, no passado, e que, portanto, o passado condiciona, em certos limites (considerados mais ou menos amplos), o
futuro do homem. É neste sentido que Heidegger disse que o projeto é o modo de ser fundamental do H. {Sein
undZeit, § 31) e Sartre falou de um projeto fundamental do mundo {Vêtreetle néant, p. 540). No mesmo sentido, John
Dewey falou da mu-tabilidade da natureza humana e dos seus chamados instintos ou impulsos fundamentais {Human
Nature and Conduct, pp. 95 ss.; 106 ss.). Heidegger insistiu também sobre a limitação da possibilidade de projetar,
uma vez que todo projeto incidiria e se achataria naquilo que já foi, nisso consistindo a facticidade do H. (v.
PROJETO). Sartre insistiu na liberdade absoluta da possibilidade de projetar e considerou puramente arbitrária ou
gratuita a escolha de um projeto qualquer {L'être et le néant, p. 721). Por outro lado, Dewey retomou o conceito
iluminista de racionalidade (que é ao mesmo tempo condicionamento e liberdade) dos projetos humanos, e o
existencialismo positivo deu ênfase aos mesmos caracteres de auto-projeçâo (cf. ABBAGNANO, Possibilita e liberta,
1956,1, 7; II, 3; etc). Aliás, hoje parece que até os biólogos compartilham dessa concepção. G. G. Simpson diz: "O H.
pode optar por desenvolver suas capacidades como animal superior e tentar erguer-se ainda mais, ou sua escolha pode
ser outra. A escolha é responsabilidade sua e apenas sua. Não existe automatismo que o eleve sem escolha ou esforço,
nem existe uma tendência unilateral na direção certa. A evolução não tem objetivos; o H. deve dar objetivos a si
mesmo" {The Meaning of Evo-lution, 6a ed., 1952, p. 310).
HOMEOMERIAS (gr. ÓLioiOLiépetou; in. Homeomeries; fr. Homéoméries; ai. Homoio-merien; it. Omeomerié).
Com esta palavra, que significa "partes semelhantes", Aristóteles denominou as partículas, ou seja, as partes (que não
são elementos, porque sempre divisíveis) que, segundo Anaxágoras, compõem um corpo e que são semelhantes a esse
corpo. Assim, mesmo que em cada corpo existam partículas ou grãos de todos os outros corpos, em cada um
predomina certa espécie de partículas, que dá nome ao corpo (ARISTÓTELES, De cael., III, 3, 302b 3; Met., I, 3, 984a
14; cf. DIÓG. L., II, 8; LUCRÉCIO, De rer. nat., I, 830; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., X, 25).
HOMINISMO (ai. Hominismus). Termo criado por Windelband para designar o relativismo, doutrina em que o homem é a medida de todas as coisas (v. RELATIVISMO).
HOMO FABER. É a definição de homem feita por Bergson, que viu na inteligência, característica fundamental do
homem, a faculdade de fabricar instrumentos inorganizados {La pensée et le mouvant, 1934, p. 105) (v.
INTELIGÊNCIA).
HOMOGENEIDADE (in. Homogeneity, fr. Homogénéité, ai. Homogeneitàt; it. Omogenei-ta). Relação entre coisas
que pertencem ao mesmo gênero (p. ex., branco e preto), ou que têm a mesma composição (p. ex., as partes de um
objeto composto do mesmo material), ou que têm entre si partes semelhantes, que se correspondem termo a termo (p.
ex., dois relógios construídos da mesma maneira). Spencer usou esse termo no sentido de não diferenciação e definiu
a evolução como a passagem do homogêneo para o heterogêneo, ou seja, do que não é diferenciado para o que é
diferenciado em partes entre si diferentes {First Principies, § 145).
Kant denominou "princípio da H." a norma da razão de procurar unificações conceptuais cada vez mais amplas,
gêneros cada vez mais elevados; essa norma seria a contraposição simétrica da norma de especificação (v.), com esta
confluindo na lei de afinidade (v.) {Crít. R. Pura, Apêndice à dialética transcendental). Hamilton repetiu
substancialmente essas noções de Kant e denominou "lei de H." o enunciado segundo o qual "dois conceitos, por
mais diferentes que sejam um do outro, sempre podem subordinar-se a um conceito superior; em outros termos, as
coisas mais dessemelhantes devem, em alguns aspectos, ser semelhantes". Ao lado desta, Hamilton enunciou também
"a lei de heterogeneidade", segundo a qual "todo conceito contém abaixo de si outros conceitos e por isso, quando
dividido, desce sempre para outros conceitos, nunca para indivíduos; em outros termos, as coisas mais homogêneas
ou semelhantes devem, sob certos aspectos, ser heterogêneas ou dessemelhantes". Segundo Hamilton, essas duas leis
governam toda a classificação das coisas em gêneros e espécies (HAMILTON, Lectures on Logic, § 40; vol. I, 2- ed.,
1865, pp. 209-10).
HOMO HOMO. É a definição de sábio feita pelo humanista francês Charles de Bouelles (1470 ou 1475-1553
aproximadamente) em seu livro De sapiente. O sábio é a perfeição do homem porque é o homem que se formou com
a
HOMOIUSIA OU HOMUSIA
517
HORIZONTE
sua inteligência e adquiriu consciência de si mesmo e do mundo (De sapiente, 22).
HOMOIUSIA ou HOMUSIA (gr. ÓLtoiouaía, ójiouoía). Diz-se que toda a disputa teológica, que culminou com o
Concilio de Nicéia (325), girava em torno de uma semivogal, ou seja, da diferença entre homoiusia, doutrina de Ário
que admitia apenas a semelhança entre a substância de Deus-Pai e a do Logos, e a homusia, doutrina de Atanásio, que
admitia a identidade da substância de Deus-Pai com a do Logos. A decisão do Concilio a favor da homusia
estabeleceu a principal base dogmática da teologia cristã.
HOMOLOGIA (gr. óuota)YÍ(X; in. Homology, ir. Homologie, ai. Homologie, it. Ontologia). 1. Para os estóicos,
este era o termo técnico para designar a conformidade com a natureza como norma fundamental de conduta (J.
STOBEO, Ecl, D, 76, 3); termo que Cícero traduziu por cow-venientia (Definibus, III, 6, 21). 2. Hoje, H. é um conceito
científico que tem várias definições nas diferentes disciplinas. Em geometria denominam-se homólogos os elementos
de duas figuras semelhantes que se correspondem. Em biologia são chamados homólogos os órgãos que se
correspondem pela sua situação em relação ao organismo todo, mesmo não exercendo a mesma função, como se
verifica com os órgãos análogos (v. ANALOGIA).
HOMONIMIA (in. Homonymy, fr. Homony-mte, ai. Homonymie, it. Omonimiá). Aristóteles designa assim a
ambigüidade de um termo, ou seja, o fato de um mesmo termo ser usado para denotar coisas diferentes. A H. de frase
denomina-se anfibolia (v.) (v. EQUÍVOCO; UNÍVOCO). HOMOTEÍSMO (in. Homotheism; ai. Ho-motheismus; it.
Omoteismo). O mesmo que an-tropomorfismo (v.). Termo criado por Ernest Haeckel.
HONRA (gr. mu.r|; in. Honor, fr. Honneur, ai. Ehre, it. Onoré). Toda manifestação de consideração e estima
tributada a um homem por outros homens, assim como a autoridade, o prestígio ou o cargo de que o reconheçam
investido. Os antigos consideravam a H. como um dos bens fundamentais da vida social; Aristóteles reconheceu que
há uma virtude em relação à H. assim como há uma virtude (libe-ralidade) em relação ao dinheiro. Essa virtude é a
magnanimidade (v.), cujo excesso é a ambição e cuja deficiência é a pusilanimidade (Et. nic, II, 7,1107b 20). Essa
grande importância atribuída à H., considerada "o prêmio da
virtude e do bem fazer" (Ibid., VIII, 14, 1163 b 3), provém da ética grega, da qual passou para os costumes e o direito
da tradição ocidental, em sua formulação aristocrática. No mundo moderno, a "respeitabilidade" é o análogo desse
antigo conceito. E óbvio, todavia, que "o bem fazer" (eúepTEOÍa) — cujo prêmio, segundo Aristóteles, deveria ser a
H., além de sê-lo para a virtude — inclui boa dose de conformismo aos preconceitos dominantes no grupo ou na
classe social que confere a H. e ao análogo moderno da H. a respeitabilidade, não incluída uma dose menor de
conformismo. Portanto, não é de surpreender que a H. tenha freqüentemente sugerido e continue sugerindo ações
imorais, maléficas, ou verdadeiros delitos, tanto na vida privada quanto nas relações entre os povos, em que a H.
muitas vezes desempenha papel predominante no nascimento e na perpetuação de conflitos.
HORIZONTE (gr. rcepiéxov; lat. Horizon; in. Horizon; fr. Horizon; ai. Horizont; it. Oriz-zonté). Limite que
circunscreve as possibilidades de uma investigação, de um pensamento ou de uma atividade qualquer: limite que
pode deslocar-se, mas que volta a mostrar-se após cada deslocamento. Esse termo foi introduzido na filosofia por
Anaximandro (séc. VI a.C), que considerou o Princípio (infinito ou apeirorí) como aquilo que "abarca todas as coisas
e as dirige" (ARISTÓTELES, FÍS., III, 4, 203b 11).
No sentido moderno, esse conceito foi elucidado por Kant, que entendeu por horizonte o limite ou a medida de
extensão do conhecimento e distinguiu o horizonte lógico, referente aos poderes cognoscitivos em relação ao
interesse do intelecto, o horizonte estético, referente ao gosto em relação ao interesse do sentimento, e o horizonte
pratico, referente ao útil em relação ao interesse da vontade. Em geral, "o horizonte concerne ao juízo e à
determinação daquilo que o homem pode saber, consegue saber e deve saber"; pode ser objetivo, sendo então
histórico ou racional, ou subjetivo, sendo então universal ou absoluto, particular ou privado (Logik, Einleitung, § VI,
A).
Essa noção foi retomada na filosofia contemporânea primeiramente por Husserl, que entendeu o H. como limite
temporal (compreendido como presente ou agora), no qual estão todas as vivências (Ideen, I, § 82), e depois por
Jaspers, graças a quem passou para o atual uso filosófico. Jaspers diz: "Sempre vivemos e pensamos num H.
circunscrito. Pelo fato
HOMEOMERIAS
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HOMO HOMO
forma, no passado, e que, portanto, o passado condiciona, em certos limites (considerados mais ou menos amplos), o
futuro do homem. É neste sentido que Heidegger disse que o projeto é o modo de ser fundamental do H. (Sein
undZeit, § 31) e Sartre falou de um projeto fundamental do mundo (Lêtreetle néant, p. 540). No mesmo sentido, John
Dewey falou da mu-tabilidade da natureza humana e dos seus chamados instintos ou impulsos fundamentais (Human
Nature and Conduct, pp. 95 ss.; 106 ss.). Heidegger insistiu também sobre a limitação da possibilidade de projetar,
uma vez que todo projeto incidiria e se achataria naquilo que já foi, nisso consistindo a facticidade do H. (v.
PROJETO). Sartre insistiu na liberdade absoluta da possibilidade de projetar e considerou puramente arbitrária ou
gratuita a escolha de um projeto qualquer (Vêtre et le néant, p. 721). Por outro lado, Dewey retomou o conceito
iluminista de racionalidade (que é ao mesmo tempo condicionamento e liberdade) dos projetos humanos, e o
existencialismo positivo deu ênfase aos mesmos caracteres de auto-projeção (cf. ABBAGNANO, Possibilita e liberta,
1956,1, 7; II, 3; etc). Aliás, hoje parece que até os biólogos compartilham dessa concepção. G. G. Simpson diz: "O H.
pode optar por desenvolver suas capacidades como animal superior e tentar erguer-se ainda mais, ou sua escolha pode
ser outra. A escolha é responsabilidade sua e apenas sua. Não existe automatismo que o eleve sem escolha ou esforço,
nem existe uma tendência unilateral na direção certa. A evolução não tem objetivos; o H. deve dar objetivos a si
mesmo" (The Meaning of Evo-lution, 6S ed., 1952, p. 310).
HOMEOMERIAS (gr. ÓLioiouipeiou; in. Homeomeries; fr. Homéoméries; ai. Homoio-meriert; it. Omeomerié).
Com esta palavra, que significa "partes semelhantes", Aristóteles denominou as partículas, ou seja, as partes (que não
são elementos, porque sempre divisíveis) que, segundo Anaxágoras, compõem um corpo e que são semelhantes a esse
corpo. Assim, mesmo que em cada corpo existam partículas ou grãos de todos os outros corpos, em cada um
predomina certa espécie de partículas, que dá nome ao corpo (ARISTÓTELES, De cael., III, 3, 302b 3; Met., I, 3, 984a
14; cf. DiÓG. L., II, 8; LUCRÉCIO, De rer. nat., I, 830; SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., X, 25).
HOMINISMO (ai. Hominismus). Termo criado por Windelband para designar o relativismo, doutrina em que o homem é a medida de todas as coisas (v. RELATIVISMO).
HOMO FABER. É a definição de homem feita por Bergson, que viu na inteligência, característica fundamental do
homem, a faculdade de fabricar instrumentos inorganizados (La pensée et le mouvant, 1934, p. 105) (v.
INTELIGÊNCIA).
HOMOGENEIDADE (in. Homogeneity, fr. Homogénéité, ai. Homogeneitát; it. Omogenei-tã). Relação entre coisas
que pertencem ao mesmo gênero (p. ex., branco e preto), ou que têm a mesma composição (p. ex., as partes de um
objeto composto do mesmo material), ou que têm entre si partes semelhantes, que se correspondem termo a termo (p.
ex., dois relógios construídos da mesma maneira). Spencer usou esse termo no sentido de não diferenciação e definiu
a evolução como a passagem do homogêneo para o heterogêneo, ou seja, do que não é diferenciado para o que é
diferenciado em partes entre si diferentes (First Principies, § 145).
Kant denominou "princípio da H." a norma da razão de procurar unificações conceptuais cada vez mais amplas,
gêneros cada vez mais elevados; essa norma seria a contraposição simétrica da norma de especificação (v.), com esta
confluindo na lei de afinidade (v.) (Crít. R. Pura, Apêndice à dialética transcendental). Hamilton repetiu
substancialmente essas noções de Kant e denominou "lei de H." o enunciado segundo o qual "dois conceitos, por
mais diferentes que sejam um do outro, sempre podem subordinar-se a um conceito superior; em outros termos, as
coisas mais dessemelhantes devem, em alguns aspectos, ser semelhantes". Ao lado desta, Hamilton enunciou também
"a lei de heterogeneidade", segundo a qual "todo conceito contém abaixo de si outros conceitos e por isso, quando
dividido, desce sempre para outros conceitos, nunca para indivíduos; em outros termos, as coisas mais homogêneas
ou semelhantes devem, sob certos aspectos, ser heterogêneas ou dessemelhantes". Segundo Hamilton, essas duas leis
governam toda a classificação das coisas em gêneros e espécies (HAMILTON, Lectures on Logic, § 40; vol. I, 2- ed.,
1865, pp. 209-10).
HOMO HOMO. É a definição de sábio feita pelo humanista francês Charles de Bouelles (1470 ou 1475-1553
aproximadamente) em seu livro De sapiente. O sábio é a perfeição do homem porque é o homem que se formou com
a
H0MOIUSIA ou HOMUSIA
517
HORIZONTE
sua inteligência e adquiriu consciência de si ajesmo e do mundo (De sapiente, 22). . HOMOIUSIA ou HOMUSIA
(gr. ÓLtoiouoía, óüfllKTÍa). Diz-se que toda a disputa teológica, que culminou com o Concilio de Nicéia (325),
prava em torno de uma semivogal, ou seja, da diferença entre homoiusia, doutrina de Ário que admitia apenas a
semelhança entre a substância de Deus-Pai e a do Logos, e a homusia, : doutrina de Atanásio, que admitia a
identidade da substância de Deus-Pai com a do Logos. A decisão do Concilio a favor da homusia estabeleceu a
principal base dogmática da teologia cristã.
HOMOLOGIA (gr. ó|J.oÀ.OYÍ(X; in. Homology, k. Homologie, ai. Homologie, it. Ontologia). 1. Para os estóicos,
este era o termo técnico para ' designar a conformidade com a natureza como norma fundamental de conduta (J.
STOBEO, Ecl, D, 76, 3); termo que Cícero traduziu por con-venientia (Definibus, III, 6, 21). 2. Hoje, H. é um conceito
científico que tem várias definições nas diferentes disciplinas. Em geometria deno-fflinam-se homólogos os
elementos de duas figuras semelhantes que se correspondem. Em biologia são chamados homólogos os órgãos que
se correspondem pela sua situação em relação ao organismo todo, mesmo não exercendo a mesma função, como se
verifica com os órgãos análogos (v. ANALOGIA).
HOMONIMIA (in. Homonymy, fr. Homony-mie, ai. Homonymie, it. Omonimiá). Aristóteles designa assim a
ambigüidade de um termo, ou seja, o fato de um mesmo termo ser usado para denotar coisas diferentes. A H. de
frase denomina-se anfibolia (v.) (v. EQUÍVOCO; UNÍVOCO). HOMOTEÍSMO (in. Homotheism; ai. Ho-motheismus;
it. Omoteismó). O mesmo que an-tropomorfismo (v.). Termo criado por Ernest Haeckel.
HONRA (gr. 7tiuf|; in. Honor, fr. Honneur, ai. Ehre, it. Onoré). Toda manifestação de consideração e estima
tributada a um homem por outros homens, assim como a autoridade, o prestígio ou o cargo de que o reconheçam
investido. Os antigos consideravam a H. como um dos bens fundamentais da vida social; Aristóteles reconheceu que
há uma virtude em relação à H. assim como há uma virtude (libe-ralidade) em relação ao dinheiro. Essa virtude é a
magnanimidade (v.), cujo excesso é a ambição e cuja deficiência é a pusilanimidade (Et. nic, II, 7,1107b 20). Essa
grande importância atribuída à H., considerada "o prêmio da
virtude e do bem fazer" (Ibid., VIII, 14, 1163 b 3), provém da ética grega, da qual passou para os costumes e o direito
da tradição ocidental, em sua formulação aristocrática. No mundo moderno, a "respeitabilidade" é o análogo desse
antigo conceito. É óbvio, todavia, que "o bem fazer" (euepYEaía) — cujo prêmio, segundo Aristóteles, deveria ser a
H., além de sê-lo para a virtude — inclui boa dose de conformismo aos preconceitos dominantes no grupo ou na
classe social que confere a H. e ao análogo moderno da H. a respeitabilidade, não incluída uma dose menor de
conformismo. Portanto, não é de surpreender que a H. tenha freqüentemente sugerido e continue sugerindo ações
imorais, maléficas, ou verdadeiros delitos, tanto na vida privada quanto nas relações entre os povos, em que a H.
muitas vezes desempenha papel predominante no nascimento e na perpetuação de conflitos.
HORIZONTE (gr. Ttepiéjcov; lat. Horizon; in. Horizon; fr. Horizon; ai. Horizont; it. Oriz-zontè). Limite que
circunscreve as possibilidades de uma investigação, de um pensamento ou de uma atividade qualquer: limite que
pode deslocar-se, mas que volta a mostrar-se após cada deslocamento. Esse termo foi introduzido na filosofia por
Anaximandro (séc. VI a.C), que considerou o Princípio (infinito ou apeirori) como aquilo que "abarca todas as coisas
e as dirige" (ARISTÓTELES, Fís., III, 4, 203b 11).
No sentido moderno, esse conceito foi elucidado por Kant, que entendeu por horizonte o limite ou a medida de
extensão do conhecimento e distinguiu o horizonte lógico, referente aos poderes cognoscitivos em relação ao
interesse do intelecto, o horizonte estético, referente ao gosto em relação ao interesse do sentimento, e o horizonte
prático, referente ao útil em relação ao interesse da vontade. Em geral, "o horizonte concerne ao juízo e à
determinação daquilo que o homem pode saber, consegue saber e deve saber"; pode ser objetivo, sendo então
histórico ou racional, ou subjetivo, sendo então universal ou absoluto, particular ou privado (Logik, Einleitung, § VI,
A).
Essa noção foi retomada na filosofia contemporânea primeiramente por Husserl, que entendeu o H. como limite
temporal (compreendido como presente ou agora), no qual estão todas as vivências (Ideen, I, § 82), e depois por
Jaspers, graças a quem passou para o atual uso filosófico. Jaspers diz: "Sempre vivemos e pensamos num H.
circunscrito. Pelo fato
HORMICA, TEORIA
518
HUMANISMO
mesmo de tratar-se de um H., temos o pressentimento de um H. mais vasto, que compreenda, por sua vez, o H.
alcançado: surge assim o problema de um H. que abarque qualquer outro H. (H. conglobante, das Umgreifendè). No
H. conglobante têm-se todos os tipos de realidade e de verdade, mas é também aquilo em que cada H. está
compreendido, como naquele H. que tudo engloba e que não é mais pensável como H." (Vernunft undExistenz, 1935,
p. 29). Enquanto o conceito de H. conglobante, que é o H. de todos os horizontes possíveis, é típico da filosofia de
Jaspers, o conceito de H. pode ser utilmente empregado por qualquer corrente filosófica para designar os limites de
validade de determinada investigação ou o tipo de validade a que aspiram os instrumentos utilizados (cf. C. D.
BURNS, The Horizon of Experience, 1934; ABBAGNANO, Possibilita e liberta, 1956, pp. 95 ss.).
HORMICA, TEORIA (in. Hormic theory, it. Teoria ormicd). Assim é comumente denominada, na literatura anglosaxônica, a teoria segundo a qual as emoções dependem de certos instintos fundamentais (óp(xr| = instinto), que
estariam na base de toda a atividade psíquica. Essa teoria foi defendida por G. F. Stout, J. Dewey, S. Alexander, T. P.
Nunn (o primeiro a empregar essa expressão) e, principalmente, por W. McDougall. Sobre a mesma, v. J. C. FLUGEL, Studies in Feeling and Desire, London, 1955 (v. EMOÇÃO).
HUMANIDADE (lat. Humanitas; in. Hu-manity, fr. Humanité, ai. Humanitãt, Mensch-heit; it. Umanitã). Esse termo
tem os seguintes significados principais:
ls Forma acabada, ideal ou espírito do homem. Era nesse sentido que os antigos usavam a palavra humanitas,
correspondente ao grego paidéia, da qual derivou o substantivo humanismo (v.) e seu conceito. Em sentido análogo,
Humboldt considerava como fim da história "a realização da idéia de H." (Schriften, IV, p. 55).
2° Substância ou essência do homem, no significado aristotélico adotado pela metafísica clássica. Nesse sentido, S.
Tomás dizia: "H. significa os princípios essenciais da espécie, tanto formais quanto materiais, não levando em conta
os princípios individuais. A H. é aquilo em virtude do que o homem é homem; e em homem é homem não porque
tem os princípios individuais, mas porque tem os princípios essenciais da espécie" (.Contra Gent., IV, 81).
3a Gênero humano, espécie humana como entidade biológica. Nesse sentido fala-se, p. ex., da história ou dos feitos
da H. na terra, ou da evolução biológica da humanidade.
4e Síntese hipostasiada da história ou da tradição do homem, segundo o conceito de Comte, que com esse termo
expressa "o conjunto dos seres passados, futuros e presentes, que concorrem livremente para o aperfeiçoamento da
ordem universal" (Politique positive, IV, p. 30). Nesse sentido, para Comte, a H. constitui um Grande Ser, uma
espécie de divindade que nada mais é que o mundo histórico hipostasiado. Comte pretendeu instituir o culto deste
grande ser (v. SER, GRANDE).
5Q Natureza racionalâo homem, dotada de dignidade e, portanto, fim para si mesma. Esse é o significado que essa
palavra assume na segunda fórmula do imperativo categórico de Kant: "Age de tal maneira que trates a H.
(Menschheií), tanto na tua pessoa quanto na pessoa de qualquer outro, sempre também como fim, nunca somente
como meio" (Grund-legung derMet. der Sitten, II). A H. na pessoa dos homens é objeto do respeito(v.), que, para
Kant, é o único sentimento moral (Met. der Sitten, II, § 11).
6° Disposição à compreensão dos outros ou à simpatia para com eles. Nesse sentido, a melhor definição desse termo
foi dada por Kant: "H. (Humanitãf) significa, por um lado, o sentimento universal da simpatia e, por outro, a
faculdade de poder comunicar pessoal e universalmente; essas são duas propriedades que, juntas, constituem a
sociabilidade própria da H. (Menschheií), graças à qual ela se diferencia do isolamento animal" (Crtt. dojuízo, § 60;
cf. Antr., §88).
HUMANISMO (in. Humanism; fr. Huma-nisme, ai. Humanismus; it. Umanesimó). Esse termo é usado para indicar
duas coisas diferentes: I) o movimento literário e filosófico que nasceu na Itália na segunda metade do séc. XIV,
difundindo-se para os demais países da Europa e constituindo a origem da cultura moderna; II) qualquer movimento
filosófico que tome como fundamento a natureza humana ou os limites e interesses do homem.
I) Em seu primeiro significado, que é o histórico, o H. é um aspecto fundamental do Renascimento (v.), mais
precisamente o aspecto em virtude do qual o Renascimento é o reconhecimento do valor do homem em sua totalidade
e a tentativa de compreendê-lo em seu
HUMANISMO
519
HUMILDADE
mundo, que é o da natureza e da história. Nesse sentido, costuma-se dizer que o H. se inicia com a obra de Francesco
Petrarca (1304-74). Os principais humanistas italianos são: Coluccio Salutati (1331-1406), Leonardo Bruni (13741444), Lo-renzo Valia (1407-57), Giannozzo Manetti (1396-1459), Leonbattista Alberti (1404-72), Mario Nizolio
(1498-1576). Entre os humanistas franceses: Charles de Bouelles (1470 ou 75-1553), Petrus Ramus (1515-72),
Michel E. de Montaigne (1533-92), Pierre Charron (1541-1603), Francisco Sanchez (1562-1632), Justo Lipsio (15471606). Entre os espanhóis, lembramos Ludovico Vives (1492-1540) e, entre os alemães, Rodolfo Agrícola (1442-85).
As bases fundamentais do H. podem ser assim expostas:
Ia Reconhecimento da totalidade do homem como ser formado de alma e corpo e destinado a viver no mundo e a
dominá-lo. O curriculum de estudos medieval era elaborado para um anjo ou uma alma desencarnada. O H.
reivindica para o homem o valor do prazer (Raimondi, Filelfo, Valia); afirma a importância do estudo das leis, da
medicina e da ética contra a metafísica (Salutati, Bruni, Valia); nega a superioridade da vida contemplativa sobre a
vida ativa (Valia); exalta a dignidade e a liberdade do homem, reconhece seu lugar central na natureza e o seu destino
de dominador desta (Manetti, Pico delia Mirandola, Ficino).
2a Reconhecimento da historicidade do homem, dos vínculos do homem com o seu passado, que, por um lado,
servem para uni-lo a esse passado e, por outro, para distingui-lo dele. Desse ponto de vista, é parte fundamental do H.
a exigência filológica, que não é apenas a necessidade de descobrir os textos antigos e restituir-lhes a forma autêntica,
estudando e colecionando os códices, mas também é a necessidade de encontrar neles o autêntico significado de
poesia ou de verdade filosófica ou religiosa que contenham. A admiração pela Antigüidade e seu estudo nunca
faltaram na Idade Média; o que caracteriza o H. é a exigência de descobrir a verdadeira cara da antigüidade,
libertando-a dos sedimentos acumulados durante a Idade Média.
3a Reconhecimento do valor humano das letras clássicas. É por esse aspecto que o H. tem esse nome. Já na época de
Cícero e Varrão, a palavra humanitas significava a educação do homem como tal, que os gregos chamavam de
paidéia-, eram chamadas de "boas artes" as disciplinas que formam o homem, por serem próprias do homem e o diferenciarem dos outros animais (AULO GÉLIO, Noct.
Att., XIII, 17). As boas artes, que ainda hoje são denominadas disciplinas humanísticas, não tinham para o H. valor de
fim, mas de meio, para a "formação de uma consciência realmente humana, aberta em todas as direções, por meio da
consciência histórico-crítica da tradição cultural" (GARIN, L 'educazione umanistica in Itália, p. 7) (v. CULTURA).
4- Reconhecimento da naturalidade do homem, do fato de o homem ser um ser natural, para o qual o conhecimento
da natureza não é uma distração imperdoável ou um pecado, mas um elemento indispensável de vida e de sucesso. O
reflorescimento do aristote-lismo, da magia e das especulações naturalistas (graças a Telésio, G. Bruno e Campanella)
constituem o prelúdio da ciência moderna.
II) O segundo significado dessa palavra nem sempre tem estreitas conexões com o primeiro. Pode-se dizer que, com
esse sentido, o H. é toda filosofia que tome o homem como "medida das coisas", segundo antigas palavras de
Protágoras. Exatamente nesse sentido, e com referência à frase de Protágoras, F. C. S. Schiller deu o nome de H. ao
seu pragmatismo (Studies in Humanism, 1902). Foi com o mesmo sentido que Heidegger entendeu o H., mas para
rejeitá-lo; viu nele a tendência filosófica a tomar o homem como medida do ser, e a subordinar o ser ao homem, em
vez de subordinar, como deveria, o homem ao ser, e a ver no homem apenas "o pastor do ser" (Holzwege, 1950, pp.
101-02). Referindo-se a um sentido análogo, Sartre aceitou a qualificação de H. para o seu existencialismo
(L'existencialisme est un hu-manisme, 1949).
Em sentido mais geral, pode-se entender por H. qualquer tendência filosófica que leve em consideração as
possibilidades e, portanto, as limitações do homem, e que, com base nisso, redimensione os problemas filosóficos.
HUMAN1TARISMO (in. Humanitarianism; fr. Humanitarisme, ai. Humanitãt; it. Umani-tarismó). V.
FILANTROPIA.
HUMILDADE (gr. Tocravoíppoaúvri; kt. Hu-militas; in. Humility, fr. Humilité, ai. Demut; it. Umiltã). Atitude de
abjeção voluntária, típica da religiosidade medieval, sugerida pela crença na natureza miserável e pecaminosa do
homem. Neste sentido, a H. é ilustrada e exaltada por Bernard de Clairvaux: "A H. é a virtude graças à
HUMILDADE
520
HYSTERON PROTERON
qual o homem se avilta com verdadeiro reconhecimento de si mesmo" {De gradibus hu-militatis et superbiae, em P.
L., 182B, col. 942). Nesse sentido, a H. era desconhecida do mundo antigo. S. Paulo, que foi o primeiro a empregar
essa palavra, entendeu-a como falta de espírito de competição e de vangloria (Pbilipp., II), vendo seu modelo em
Cristo, que, com a en-carnação, rebaixou-se até o homem (Ibid., II, 3-11). Da mesma forma, S. Agostinho fala da H.
sobretudo a propósito da via humilitatis, que é a encarnação do Verbo para a redenção dos homens: nesse sentido,
contrapõe a H. cristã à soberba dos platônicos, que sabiam tantas coisas, mas ignoravam a encarnação (Conf., VII, 9).
S. Tomás considerava a H. como a parte da virtude "que tempera e freia o ânimo, a fim de que ele não tenda
desmesuradamente às coisas mais altas" e veja nelas o complemento da magnanimidade que "fortalece o ânimo
contra o desespero e impele-o a perseguir as grandes coisas, de acordo com a reta razão" (S. Th., II, 2, q. 161, a. 1).
Mas é óbvio que, neste sentido, a H. nada mais é que a magnanimidade em significado aristotélico (v.
MAGNANIMIDADE) e nada tem a ver com a H. no sentido atribuído por S. Bernardo.
É freqüente a oposição dos filósofos ao significado medieval de H.; outras vezes procuram reconduzi-la a um
significado compatível com a ética clássica. Spinoza negava que a H. fosse uma virtude e julgava-a uma emoção
passiva, porquanto ela nasce do fato de "o homem contemplar sua própria impotência". Entretanto, se ele pensa nessa
impotência em relação a um ser mais perfeito, esse pensamento favorece sua potência de ação e por isso não é H.,
mas virtude {Et., IV, 53). Kant distingue a H. moral, que é "o sentimento da pequenez do nosso valor, comparado
com a lei", da H. espúria, que é "a pretensão de, põt meio da renúncia, adquirir algum valor rhoral de si mesmo, um
valor moral oculto". A pretensão de superar os outros rebaixando-se é uma ambição oposta ao dever para com os
outros; utilizar esse meio para obter o favor dos outros (Deus ou homem que seja) é hipocrisia e adulaçâo (Met.
derSitten, II, § 11). Hegel afirmava que a H. "é a consciência de Deus e da sua essência como amor" (Philosopbische
Propâdeutik, § 207, cf. Philosophie der Religion, ed. Glockner, II, p. 553). Entretanto, por outro lado, o protesto de
Nietzsche, que vê na H. simplesmente um aspecto da "moral dos escravos", obviamente é
dirigido ao típico conceito medieval de H. (cf. Werke, VII, pp. 348 ss.).
HUMOR (in. Mood; fr. Humeur, ai. Stimmung; it. Umoré). Estado emotivo que não tem objeto, ou cujo objeto é
indeterminável, distinguindo-se, assim, da emoção propriamente dita. Esta distinção foi proposta por W. Cerf. ("H. e
emoções na arte", em Rivista diFilosofia, 1954, pp. 363 ss.) e parece oportuna para identificar, na vasta gama dos
estados emocionais, os que recebem o nome de humor. O H. não tem objeto intencional no sentido de que não existe
um H.de..., assim como existe um medo de... ou alegria de... etc. Tem causa ou razão, mas não se refere a um objeto
em particular e não constitui advertência quanto ao valor biológico de uma situação. Nesse sentido, Cerf afirmou que
na arte não existem emoções, mas apenas H.
Heidegger chamou a atenção para o significado existencial dos H.: "O fato de os H. poderem transformar-se ou
deteriorar-se significa somente que o ser-aí está sempre num estado emocional." O H. fundamental é o tédio, "o peso
do ser". Mas, em qualquer caso, oH.é aquilo que torna manifesto "como alguém é e se torna" (Sein und Zeit, § 29).
HYBRIS (gr. íipptç). Com este termo, intra-duzível para as línguas modernas, os gregos entenderam qualquer
violação da norma da medida, ou seja, dos limites que o homem deve encontrar em suas relações com os outros
homens, com a divindade e com a ordem das coisas. A injustiça nada mais é que uma forma de H., porque é a
transgressão dos justos limites em relação aos outros homens. Neste sentido, Hesíodo dizia: "Quando levada a cabo, a
justiça triunfa sobre a H.: o néscio só entende quando sofre" (Op., 216-17). Para Platão, há H. sempre que é superada
"a medida do justo"; portanto, a H. tem muitas faces, muitos lados e muitos nomes iFed., 238 a). Aristóteles deu a
esse termo um significado mais restrito: entendeu tratar-se de ofensa gratuita feita aos outros apenas pelo prazer de
sentir-se superior: o que é insolência (Ret., II, 2, 1378 b 23).
HYSTERON PROTERON. Estes termos, assim como Hysterologia e Protysteron, começaram a ser empregados no
séc. IV a.C. pelos gramáticos gregos e latinos (p. ex., CHEROBOSCO, Trop., 27; SERVIO, Ad Vergi-Hum, A, 9, 816)
para indicar a figura retórica que consiste em dizer antes o que deveria ser dito depois, como quando dizemos:
HYSTERON PROTERON
521
HYSTERON PROTERON
"Está bem e está vivo". Leibniz emprega esse termo no mesmo sentido, considerando-o equivalente a
rebours e contrapondo-o a "círculo vicioso" (Nouv. ess., IV, 2, 1). Mas depois essa expressão foi
freqüentemente usada como sinônimo de círculo vicioso ou de petição de princípio, para indicar uma argumentação que toma como
premissa a própria conclusão, ou que utiliza como elemento de prova aquilo que deveria ser provado.
I
1. 1. Na lógica formal "aristotélica" esta letra é usada como símbolo da proposição particular afirmativa (PEDRO
HISPANO, Summ. log., 1.21).
2. Na Lógica modal tradicional, I designa a proposição modal que nega o modo e afirma a proposição. P. ex., "Não é
possível que p" onde p é uma proposição afirmativa qualquer (ARNAULD, Log., II, 8).
G. P.-N. A.
ID ou ISSO. V. PSICANÁLISE.
IDEAÇÃO (in. Ideation; fr. Ideation; ai. Ideation; it. Ideazioné). Termo usado por Hus-serl em Investigações
Lógicas (1900-01) para designar aquilo que chamou de "intuição eidé-tica" ou "visão das essências" (Ideen, I, § 3).
(v. FE-NOMENOLOGIA).
IDEAL1 (in. Ideal; fr. Ideal; ai. Ideal; it. ldea-le). É a noção de origem setecentista, da encar-nação acabada, mas não
real, da perfeição em determinado campo. Essa noção foi claramente expressa por Kant, que a distinguiu da noção de
idéia: "A virtude e, com ela, o saber humano em toda a sua pureza são idéias. Mas o sábio (do estóico) é um ideal, um
homem que só existe no pensamento, mas corresponde plenamente à idéia de sabedoria. Assim como a idéia dita a
regra, o I. serve de modelo (...). Embora não se possa atribuir realidade objetiva (existência) aos I., nem por isso eles
devem ser considerados quimeras; ao contrário, oferecem um critério à razão, que precisa do conceito do que é
perfeito em seu gênero para, tomando-o como medida, avaliar e estimar o grau e a falta de perfeição" (Crít. R. Pura,
Dialética, cap. III, seç. I). No domínio da estética o I. é a figura humana {Kritik der Urteil, § 17). Esse conceito de I.
como perfeição concretizada num tipo ou numa forma de vida, mas não realizada, passou a ser comum, verificandose toda vez que se acentua a separação entre o dever ser e o ser. Hegel, que negou esta separação, empregou a
noção do I. só no domínio da estética, visto ter concebido a arte como a "intuição concreta e a representação do
Espírito Absoluto em si como do I." {Ene, § 556). A distância da realidade, que é a característica do I., é limitada por
Hegel ao mundo da arte, porque nele a Idéia ou Razão autoconsciente não chega a realizar-se na sua forma própria,
mas transparece, nas formas sensíveis da natureza, como o I. que está de algum modo além dessas formas (
Vorlesungen über die Àsthetik, ed. Glokner, I, pp. 112 ss.). Na religião e na filosofia, entretanto, que são as formas
espirituais em que a Idéia tem realização mais elevada, a noção de I. não tem lugar. Na filosofia contemporânea, que
mesmo restabelecendo a distinção entre dever-ser e ser, própria da filosofia setecentista, recusa-se a considerar o
dever-ser como já encarnado numa forma perfeita e como inatingível na realidade, a noção de I., caracterizada por
esses dois aspectos, deixou de ser usada e foi substituída pela noção de valor(y.). Dewey disse a propósito: "Esta
noção da natureza e da função dos ideais combina num todo contraditório o que há de vicioso na separação entre
desejo e pensamento (...) Segue o curso natural da inteligência ao pedir um objeto que unifique e satisfaça o desejo, e
depois anula a obra do pensamento, ao considerar o objeto inefável e sem relação com a ação e a experiência
presente" {Human Nature and Conduct, II, 8, p. 260).
IDEAL2 (in. Ideal; fr. Ideal; ai. Ideal, Ideellé). Esse adjetivo tem três significados fundamentais, correspondentes: 1 B
ao primeiro significado de Idéia, designando o que é formal ou perfeito no sentido de pertencer à Idéia. como forma,
espécie ou perfeição; 2S ao segundo significado de Idéia, significando o que não é real porque pertence à
representação ou ao pensamento; o próprio Hegel emprega este significa-
IDEALIDADE
523
IDEALISMO
do do termo quando afirma que o idealismo consiste em afirmar que "o infinito é I.", ou seja, não real (Wissenschaft
derLogik, I, I, seç. I, Gap. II, nota 2); 3B ao termo ideal, designando o que é perfeito, mas irreal.
IDEALIDADE (in. Ideality, fr. Idéalité; ai. Idealitàt; it. Idealitã). Termo introduzido por . Kfent para designar a
subjetividade das formas ém intuição e das categorias; neste caso se trata de I. transcendental, no sentido de que tais
famas são condições da consciência (Crít. R. Pura, § 3)- Na primeira edição da Crítica, Kant dissera: "A existência
de todos os objetos dos sentidos externos é duvidosa. A esta incerteza dou o nome de I. dos fenômenos externos e à
doutrina dessa idealidade denomina-se I.".
* (Ibid., 1* ed., Paralogismos da Razão Pura, IV). Hegel inverteu esse conceito de I., afirmando que ela não deve ser
entendida como negação do que é real, mas como sua conservação {Ene., % 403): "A I. pode ser chamada de
qualidade da infinidade", ou seja, a qualidade do Ital porque, segundo Hegel, só o infinito é real
- eofinito não é real (Wissenschaft derLogik, I, 1> cap. 2, A Passagem). Nicolai Hartmann empregou esse termo num
sentido mais próximo IO de Kant. Ele fez a distinção entre: I. independente, pertencente a objetos irreais, mas
subsistentes em si, como os objetos da Lógica e da Matemática, bem como os valores; e I. aderente, pertencente às
formas ideais que constituem a essência do real (as leis ou relações ideais que o constituem) (Metaphysik der Erkenntniss, 1921, cap. 62).
• IDEALISMO (in. Idealism; fr. Idéalisme; ai. tdealismus; it. Idealismo). Este termo foi introduzido na linguagem
filosófica em meados do séc. XVII, inicialmente com referência à doutri-" na platônica das idéias. Leibniz diz: "O
que há de bom nas hipóteses de Epicuro e de Platão, dos maiores materialistas e dos maiores idealistas, reúne-se aqui
[na doutrina da harmonia preestabelecida]" (Op., ed. Erdmann, p. 186). Contudo, esse significado do termo, que por
vezes é indicado como "I. metafísico", no sentido de ser uma hipótese acerca da natureza da realidade (que consiste
em afirmar o caráter espiritual da própria realidade) não teve longa vida. Essa palavra foi usada principalmente nos
dois significados seguintes: 1Q I. gnosiológico ou epistemológico, por várias correntes da filosofia moderna e
contemporânea. 2B I. romântico, que é uma corrente bem determinada da filosofia moderna e contemporânea.
Ia No sentido gnosiológico (ou epistemológico) esse termo foi empregado pela primeira vez por Wolff: "Denomina-se
idealista quem admite que os corpos têm somente existência ideal em nosso espírito, negando assim a existência real
dos próprios corpos e do mundo" iPsychol. ratíonalis, § 36). No mesmo sentido, Baumgartem diz: "Aquele que
admite neste mundo somente espíritos é um idealista" (Met., § 402). Kant introduziu definitivamente em filosofia esse
significado do termo: "I. é a teoria que declara que os objetos existem fora do espaço ou simplesmente que sua
existência é duvidosa e indemonstrável, ou falsa e impossível; o primeiro é o I. problemático de Descartes, que
declara indubitável somente uma afirmação (assertio) empírica, 'Eu sou', o segundo é o I. dogmático de Berkeley, que
considera o espaço, com todas as coisas a que ele adere como condição imprescindível, como algo em si mesmo
impossível e declara por isso que as coisas no espaço são simples imaginações" (Crít. R. Pura, Analítica dos
princípios, refutação do I.). Kant denomina esse I. de material, para distingui-lo do I. transcendental ou formal {Prol,
§ 49), que é a sua própria doutrina da "idealidade transcendental" do espaço, do tempo e das categorias; essa doutrina
permite justificar o realismo e refutar o idealismo. Mas, apesar dessa tomada de posição (mais explícita na segunda
edição da Crítica do que na primeira, na qual falta a "Refutação"), a doutrina kantiana já esteve voltada para um
significado idealista, sobretudo graças à interpretação feita por Reinhold, em Letras sobre a filosofia kantiana (178687); segundo este último, o fenômeno, ou seja, o objeto do conhecimento empírico, como representação.
Schopenhauer acreditava expressar a essência do kantismo ao iniciar sua obra O mundo como vontade e
representação (1819) com a tese: "O mundo é a minha representação." Esta tese, aceita como um princípio evidente
do I. romântico, foi compartilhada na filosofia moderna e contemporânea, não só pelas formas desse I. como também
pelas várias correntes do criticismo e por algumas correntes do espiritualismo. São idealistas, neste sentido, as
doutrinas de Renouvier, Cohen, Natorp, Windelband, Rickert, assim como as de Lotze, Eduard Hartmann, Ravaisson,
Hamelin, Marti-netti e outros: pensadores que, mesmo se opondo ao I. romântico, têm em comum com ele o
pressuposto gnosiológico fundamental: a redu-
IDEALISMO
524
IDÉIA
ção do objeto de conhecimento a representação ou idéia.
2Q No segundo sentido, o I. constitui o nome da grande corrente filosófica romântica que se originou na
Alemanha no período pós-kan-tiano e que teve numerosas ramificações na filosofia moderna e
contemporânea de todos os países. Por seus próprios fundadores, Fichte e Schelling, esse I. foi
denominado "transcendental", "subjetivo" ou "absoluto". O adjetivo transcendental tende a ligá-lo ao
ponto de vista kantiano, que fizera do "eu penso" o princípio fundamental do conhecimento. A
qualificação subjetivo tende a contrapor esse I. ao ponto de vista de Spinoza, que reduzira toda a realidade
a um único princípio, a Substância, mas entendera a própria substância como objeto. Por fim, o adjetivo
absoluto tem por finalidade frisar a tese de que o Eu ou Espírito é o princípio único de tudo, e que fora
dele não existe nada. Schelling diz, ao traçar a gênese histórica do I. romântico: "Fichte libertou o eu dos
revestimentos que em parte ainda o obscureciam em Kant, e colocou-o como único princípio à testa da
filosofia; tornou-se assim o criador do I. transcendental... O I. de Fichte é o oposto perfeito do
espinosismo ou um espinosismo invertido, pois Fichte opôs ao objeto absoluto de Spinoza, que aniquilava
qualquer sujeito, o Sujeito em sua absolutidade, o Ato ao ser absolutamente imóvel de Spinoza; para
Fichte, o eu não é, como para Descartes, um eu admitido só com o objetivo de poder filosofar, mas é o eu
real, o verdadeiro princípio, o prius absoluto de tudo" (Münchener Vorlesungen.- zur Ges-chichte der
neueren Philosophie, 1834, Kant, Fichte; trad. it., pp. 108-09). Hegel, que também chama de subjetivo ou
absoluto o seu I., esclarece seu princípio desta forma: "A proposição de que o finito é o ideal constitui o
idealismo. O I. da filosofia consiste apenas nisto: em não reconhecer o finito como verdadeiro ser. Toda
filosofia é essencialmente I., ou pelo menos tem o I. como princípio; trata-se apenas de saber até que
ponto esse princípio está efetivamente realizado. A filosofia é I. tanto quanto religião" (Wissenschaft der
Logik, I, seç. I, cap. III, nota 2, trad. it., pp. 169-70). Também receberam os nomes de I. subjetivo ou I.
absoluto as derivações contemporâneas do I. romântico, que são substancialmente duas: a angloamericana (Green, Bradley, McTaggart, Royce, etc.) e a italiana (Gentile, Croce). Ambas as derivações
mantiveram aquilo que, para
Hegel, era a principal característica do I.: a não-realidade do finito e a sua resolução no infinito. Mas,
enquanto o I. italiano seguiu mais de perto a corrente hegeliana, procurando estabelecer essa identidade
por via positiva, mostrando na estrutura do finito, na sua intrínseca e necessária racionalidade, a presença
e a realidade do infinito, o I. anglo-americano tratou de demonstrar a identidade por via negativa,
mostrando que o finito, devido à sua intrínseca irracionalidade, não é real, ou é real na medida em que
revela e manifesta o infinito. O título de uma das obras fundamentais do I. inglês, Aparência e
realidade'(1893), de F. H. Bradley, revela já o tema dominante do I. anglo-saxão, enquanto o título da
obra fundamental de Gentile, Teoria do espírito como ato puro (1916), revela a inspiração fichteana e a
trilha subjetivista do I. italiano. Quanto às principais características de todas as formas do I. romântico, v.
ABSOLUTO; ROMANTISMO.
IDEALISMO DA LIBERDADE (ai Idealis-mus der Freiheii). Um dos três tipos fundamentais de
filosofia, isto é, de intuição do mundo, segundo Dilthey, mais precisamente o que é representado por
Platão, pela filosofia hele-nístico-romana, por Cícero, pela especulação cristã, por Kant, Fichte, Maine de
Biran, pelos pensadores franceses a este ligados e por Carlyle (Das Wesen der Philosophie, 1907, III, 2;
trad. it., em Critica delia ragionestorica, p. 469).
IDEATO (lat. Ideatum). O objeto da idéia (no 2S sentido). Spinoza, que entende por idéia adequada
aquela que tem "as notas intrínsecas da idéia verdadeira", adverte: "Digo intrínsecas para excluir a nota
que é extrínseca, ou seja, a correspondência da idéia com o seu I." (Et., II, def. 4).
IDÉIA (gr. iSécc; lat. Idea; in. Idea; fr. Idée; ai. Idee; it. Idea). Este termo foi empregado com dois
significados fundamentais diferentes: ls como a espécie única intuível numa multiplicidade de objetos; 2a
como um objeto qualquer do pensamento humano, ou seja, como representação em geral. No primeiro
significado, essa palavra é empregada por Platão e Aristóteles, pelos escolásticos, por Kant e outros. No
segundo significado, foi empregada por Descartes, pelos empiristas, por boa parte dos filósofos modernos
e é comumente usada nas línguas modernas.
1Q No primeiro significado, a I., como unidade visível na multiplicidade, tem caráter privile-
B>ÉM
525
IDÉIA
gfado em relação à multiplicidade, pelo que é freqüentemente considerada a essência ou a âüibêtância do
que é multíplice e, por vezes, ODmo o ideal ou o modelo dele. Este é, clara-fliente, o ponto de vista de
Platão, que, em Parmênides, atribui a Sócrates o conceito de que a I. é a unidade visível na
multiplicidade (tos objetos e, por isso, também a sua espécie {tidos). "Creio que acreditas haver uma
espécie única toda vez que muitas coisas te pare-; ten, p. ex., grandes e tu podes abrangê-las ' com um
só olhar: parece-te então que uma i útlica e mesma I. está em todas aquelas coisas e por isso julgas que o
grande é uno" (Parm., 132 a). Como unidade, a I. se mostra, em Platão, o exemplar das coisas naturais:
"Essas espécies" — diz ele — "estão como exemplares na natureza e as outras coisas se assemelham a
elas e são imagens delas; a participação dessas outras coisas na espécie consiste apenas «n serem imagens
da espécie" (Ibid., 132 d). No mesmo diálogo, Platão diz quais as coisas de que admitia L, quais as coisas
de que não admitia e quais as coisas de que tinha dúvida, quanto a admiti-las. "Parece-te que há uma
semelhança em si, separada da semelhança que ftós temos, e um uno e muitos em si, bem como outras
coisas deste tipo? — Parece-me que sim, disse Sócrates. — E admites que haja — continuou Parmênides
— a espécie do justo em si, do belo em si, do bem em si e outras coisas assim? — Sim, respondeu
Sócrates. — E admites que haja uma espécie do tornem separada de nós e de todos os nossos
semelhantes, uma espécie em si do homem, do fogo, da água? — Sempre tive dúvida — respondeu
Sócrates — se convinha ou não reconhecer essas espécies assim como as outras. — E das coisas que
pareceriam até ridículas, como chapéu, lama, imundície e todas as outras destituídas de valor ou vis,
também duvidas que haja ou não uma espécie de cada uma delas, separada das coisas correspondentes
que podemos manipular? — Certamente não — respondeu Sócrates —, essas coisas são tais e quais nós
as vemos, e seria absurdo acreditar que há uma espécie delas" (Ibid., 130 b-d). Deste trecho do
Parmênides resulta que existem três classes de objetos: Ia Objetos dos quais com certeza existem idéias,
que são: d) os objetos matemáticos: igualdade, um, muitos, etc; b) os valores: o belo, o justo, o bem, etc;
2a Objetos dos quais é duvidoso que existam I.: as coisas naturais, o fogo, a água ou o homem; 3S Objetos dos quais com certeza não há I., que são as coisas vis ou geralmente as que não têm
valor. Ora, pode-se tomar ao pé da letra essa espécie de confissão platônica, pois um olhar nos demais
diálogos demonstra que ele sempre falou de I. nos sentidos constantes das letras d) e b), que ele admitiu,
ou melhor, introduziu, com o fim de chegar a certas demonstrações, formas naturais como o calor, o frio,
a doença e a febre (Fed, 105 b e ss.) ou formas artificiais, como a da cama (Rep., X, 597 b), mas nunca
falou, a não ser para excluí-las, de formas correspondentes à terceira classe de objetos. Disso pode-se
deduzir o que Platão entendia ao afirmar (como ainda o fazia na fase crítica [Parm., 135 b]) a existência
das I. "em separado das demais coisas", da multiplicidade das coisas. Existem I. de conceitos matemáticos
ou de valores: portanto, como já reconhecera Natorp (Platos Ideenlehre, 1903), as I. não são supracoisas,
ou seja, objetos transcendentes cuja existência tem como modelo a existência das coisas, mesmo
constituindo uma esfera à parte, mas normas, regras ou leis. Desse ponto de vista, o fato de estarem
"separadas" das outras coisas significa simplesmente a independência da regra das coisas que serve para
julgar. E por regra entende-se: Ia que são critérios para julgar as outras coisas no sentido que, por
exemplo, a igualdade permite julgar se duas coisas são iguais ou não, e assim o belo por meio das coisas
belas, etc. (Fed., 74 ss.); 2a que são causas das coisas no sentido de serem as razões pelas quais as coisas
"geram-se, des-troem-se e existem", porquanto constituem "a melhor maneira de existir, de modificar-se
ou de agir" (Ibid., 97 c). Por fim, em correspondência com as duas classes de I. (as I. matemáticas e as I.valores), Platão admitia duas ordens de conhecimento científico: o conhecimento dia-noético, próprio das
ciências propedêuticas (ciências matemáticas), e o conhecimento intelectual ou filosófico, próprio da
dialética (Rep., VII, 531 e ss.).
A reiterada crítica de Aristóteles a essa doutrina (Met., I, 9, 990 b ss.; XIII e XIV passim) tem como alvo
o ponto central dela: as I. não são princípios de explicação nem causas. Só a substância ou essência
necessária é causa e princípio de explicação, e isso vale para o bem e para aquilo que Platão denominava
I., assim como para todas as outras coisas. Aristóteles diz: "A ciência de uma coisa consiste em conhecer
a essência necessária da coisa. Isso é
IDÉIA
526
i
IDÉIA
verdadeiro no que se refere ao bem, assim como a todas as outras coisas, de tal modo que, se o bem não tivesse a
essência necessária do bem, não teria ser e não seria uno. O mesmo pode ser dito sobre todas as outras coisas, que são
o que são com base em sua essência necessária ou não são nada; portanto, se a sua essência não é, nada delas é"
(Ibid., VII, 6, 1031 b 6). Em outros termos, o status onto-lógico das I., se é que possuem algum, é o de todas as outras
coisas: são reais porque são substâncias, não porque são unidades ou valores. Portanto, as I., como formas ou
espécies, são certamente reais, segundo Aristóteles, mas são reais apenas na medida em que as formas ou espécies são
a substância das coisas compostas (v. FORMA). A teoria da substância (v.) possibilitou a Aristóteles retirar das duas
determinações, unidade e valor, o primado ontológico que Platão lhes atribuíra nas primeiras fases de sua filosofia. A
teoria das I. não tem mais validade para Aristóteles, no sentido de as idéias não constituírem substâncias privilegiadas
e muito menos exemplares ou modelos das coisas. Contudo, atribui à palavra I. o mesmo significado que Platão lhe
dera: unidade que é ao mesmo tempo perfeição ou valor. Em seguida, ao longo de sua história, acabam prevalecendo
as determinações míticas ou popularescas que esse termo recebera na filosofia platônica: modelo, arquétipo,
perfeição, etc. Na Escolástica judaica e neoplatônica, as I. são consideradas objetos da Inteligência divina e
identificadas com essa Inteligência. Fílon já as considerava como "potências incorpóreas", das quais Deus se serve
para formar a matéria (De sacrif., II, 126). E Plotino as identificava com a própria Inteligência, mais precisamente
com a inteligência "em estado de repouso, unidade e calma, que é distinta mas não separada da Inteligência que
contempla e pensa" (Enn., III, 9, 1). Neste sentido a I. é o objeto "interno" da inteligência divina, e como a
inteligência não se distingue do ser e do ato do ser, a I., a forma do ser e o ato do ser são a mesma coisa (Ibid., V, 9,
8). Essa doutrina tornou-se lugar-comum da Patrística e da Escolástica. S. Agostinho reproduziu-a ao afirmar que o
Logos ou Filho tem em si as I., ou seja, as formas ou razões imutáveis das coisas, que são eternas, assim como ele
mesmo é eterno, em conformidade com tais razões ou formas, são formadas todas as coisas que nascem e morrem
(De diversis quaest., 83, q. 46). A partir de S. Agostinho,
inúmeras vezes os escolásticos repetem essa doutrina quase nos mesmos termos. Anselmo considera a I. como uma
espécie de "palavra interior": Deus exprime-se nas I. como o artífice em seu conceito, mas essa expressão não é uma
palavra externa, um enunciado; é a coisa para a qual se volta a acuidade da mente criadora (Monol., 10). S. Tomás
dizia: "O termo grego idea diz-se em latim forma-, por idéia entendem-se as formas de algumas coisas, existentes
fora das próprias coisas. Essa forma pode servir para duas coisas: ou como exemplar daquilo cuja forma é, ou como
princípio de conhecimento e, neste segundo sentido, diz que a forma das coisas cognoscíveis está no cognoscente" (S.
Th., I, q. 15, a. 1). Ockham, que nega o caráter universal das L, não nega, todavia, que as I. existem em Deus, como
"as coisas produzíveis por Deus" (In Sent., I, d, 35, q. 5). O emprego desse conceito continuou mesmo fora da
tradição platônica (NICOLAU DE CUSA, De coniecturis, II, 14; FICINO, em Par-menid., 23) O Renascimento repete-o
sem variantes: p. ex., Bacon (Nov. org., I, 23). E quando o segundo significado desse termo já havia sido introduzido
por Descares e difundido por cartesianos e empiristas, Kant restituiu-lhe seu significado platônico, entendendo por I.
uma perfeição não real, "que supera a possibilidade da experiência". "As I." — diz Kant — "são conceitos racionais
dos quais não pode existir na experiência nenhum objeto adequado. Não são intuições (como espaço e tempo) nem
sentimentos (que pertencem à sensibilidade), mas conceitos de perfeições, dos quais é sempre possível aproximar-se,
mas que nunca se alcança completamente" (Antr, § 4.3). As três I. que Kant enumera como "objetos necessários da
razão" (alma, mundo e Deus) são desprovidas de realidade exatamente porque estão além da experiência possível; no
entanto, são regras para estender e unificar a experiência. Assim, para Kant, a I. conserva de alguma forma o caráter
regulativo que Platão lhes atribuíra. Em todo caso, Kant julga "intolerável ouvir chamar de I. algo como, p. ex., a
representação da cor vermelha" (Crít. R. Pura, Dialética, seç. I). No idealismo pós-romântico a noção de I. recuperou
todo o alcance metafísico e teológico que já tivera no neopla-tonismo tradicional. Schelling considera as L, por um
lado, como as determinações da razão de Deus e, por outro, como as formas da obje-tivação corpórea: em outros
termos, são o pon-
MIA
527
IDÉIA
Iode encontro e de identificação entre a infinidade divina e o finito corpóreo (Werke, I, II, p. 497). Para
Goethe, a I. é a força divina formadora (fe natureza (Werke, ed. Hempel, XIX. pp. 63, 158).
Schopenhauer considera a I. como a pri•' Oleira e imediata objetivação da vontade de Viver, portanto como "forma eterna" ou "o
5. modelo" das coisas (Die Welt, I, § 25). Hegel, Jorfim, vê na I. "o verdadeiro em si e para si, a unidade
absoluta do conceito e da objetividade". Nesse sentido, ela não é representação
',. nem conceito determinado. "O absoluto é a I. \iniversal e única que, com o julgar, se especifica no
sistema das I. determinadas, que no entanto voltam para a I. única, sua verdade. Por força desse juízo, a I.
é, em primeiro lugar, ape-aas a única e universal substância, mas, na forma verdadeira e desenvolvida, ela
é como sujeito, por isso como espírito" (Ene, § 213). Nesta forma verdadeira e desenvolvida ela é I.
absoluta, ou seja, Razão Autoconsciente, que se manifesta nas três determinações do espírito absoluto
(arte, religião, filosofia) e se realiza no estado, também denominado por Hegel" realidade da I." (Fil. do
dir., § 258, comentário). Isso não passava de uma tradução para termos modernos da identidade que o
antigo platonismo estabelecera entre a I. como objeto inteligível e a Inteligência. O idealismo
contemporâneo, mesmo se inspirando em Hegel, não adotou a terminologia hegeliana nesse aspecto: deu
à razão autoconsciente os nomes de Espírito, Absoluto ou Consciência, e não o de Idéia. Em todos os
demais aspectos, a noção de I. permanece ligada à noção platônica de exemplar ou arquétipo eterno, e
isso tanto para os que a aceitam quanto para os que a negam.
2fi No segundo significado, I. significa representação em geral. Esse significado já se encontra na tradição
literária (p. ex., em MON-TAIGNE, Essais, II, 4), mas Descartes introduziu-o na linguagem filosófica,
entendendo por I. o objeto interno do pensamento em geral. Nesse sentido, afirma que por I. se entende "a
forma de um pensamento, para cuja imediata percepção estou ciente desse pensamento" (Resp. II, def. 2).
Isso significa que a I. expressa aquele caráter fundamental do pensamento graças ao qual ele fica
imediatamente ciente de si mesmo. Para Descartes, toda I. tem, em primeiro lugar, uma realidade como
ato do pensamento e essa realidade é puramente subjetiva ou mental. Mas, em segundo lugar, tem
também uma realidade que Descartes denominou escol^sticamente de
objetiva, porquanto representa um objeto: neste sentido as I. são "quadros" ou "imagens" das coisas
(Méd., III). Esta terminologia era amplamente aceita pela filosofia pós-cartesiana. A Lógica de Port-Royal
adotou-a, entendendo por I. "tudo o que está em nosso espírito quando podemos dizer com verdade que
concebemos uma coisa, seja qual for a maneira como a concebemos" (ARNAULD, Log., I, 1). Também foi
aceita por Malebranche (Rech. de Ia ver., II, 1) e Leibniz, que considera as I. como "os objetos internos"
da alma (Nouv. ess. II, 10, § 2). Este último, porém, pretendia reservar o termo I. apenas para o
conhecimento claro, distinto e adequado, passível de ser analisado em seus constituintes últimos e isento
de contradições (Phil. Schriften, ed. Gerhardt, IV, pp. 422 ss.) Spinoza, por sua vez, entendia por I. "o
conceito formado pela mente enquanto pensa" e preferia a palavra "conceito" a "percepção" porque a
percepção parece indicar a passividade da mente diante do objeto, enquanto o conceito exprime sua
atividade (Et., II, def. 3). Por outro lado, Hobbes já definira a I. como "a memória e a imaginação das
grandezas, dos movimentos, dos sons, etc, bem como da ordem e das partes deles, coisas estas que, apesar
de serem apenas I. ou imagens, ou seja, qualidades internas da alma, aparecem como externas e
independentes da alma" (Decorp., 7, § 1). Mas, sem dúvida, foi Locke quem difundiu esse significado
(Ensaio, I, 1, 8) e o impôs ao em-pirismo inglês e ao iluminismo, através dos quais entrou para o uso
comum. Para Locke, assim como para Descartes, a I. é o objeto imediato do pensamento: I. é "aquilo que
o homem encontra em seu espírito quando pensa" (Ibid., II, 1,1). No prefácio da IV edição do Ensaio,
Locke insistia na conexão da I. com a palavra. "Escolhi esse termo" — dizia ele — "para designar, em
primeiro lugar, todo objeto imediato do espírito, que ele percebe, tem à sua frente e é distinto do som que
ele emprega para servir-lhe de signo; em segundo lugar, para mostrar que essa I. assim determinada, que
o espírito tem em si mesmo, conhece e vê em si mesmo, deve estar ligada sem mudanças àquele nome, e
aquele nome deve estar ligado exatamente àquela idéia" (lbid., trad. it, I, p. 23). Estas observações
permaneceram como fundamento dessa noção que, nesse aspecto, acabou por identificar-se com a noção
de representação. Wolff dizia: "A representação de uma coisa denomina-se I. quando se refere à coisa, ou
seja, quan-
IDÉIA GERAL
528
IDENTIDADE
do é considerada objetivamente {Psychol. empírica, § 48). O iluminismo alemão aceitou esse significado atribuído
por Wolff ao termo, mas este, como dissemos, depois seria impugnado por Kant. Nesse segundo significado, esse
termo não se distingue de representação, e os problemas a ele relativos são os mesmos relativos a consciência em
geral. Contudo, há um significado no qual a palavra I. (aliás, a única usada na linguagem comum) continua distinguindo-se de "representação": é aquele graças ao qual, tanto na linguagem comum quanto na filosófica, ela indica o
aspecto de antecipação e projeção da atividade humana, ou, como diz Dewey, uma possibilidade. "Uma I. é, acima de
tudo, uma antecipação de alguma coisa que pode acontecer: ela marca uma possibilidade" {Logic, II, 6; trad. it., p.
164). Com este significado, esse termo conserva ainda hoje uma utilidade específica.
IDÉIA GERAL. V. GERAL.
IDÉIAS, VARIEDADE DE (in. Variety ofLdeas-, fr. Varieté d'idées\ ai. Ideensmanmigfültigkeit; it. Varietà di ideé).
Só se admite variedade de I. no âmbito do 29 significado de idéia, entendida como representação. Descartes distingue
três espécies de I.: inatas, que parecem congênitas no sujeito pensante, adventícias, que lhe parecem estranhas ou
vindas de fora; e factícias, que são formadas ou encontradas por ele mesmo. À primeira classe de I. pertencem a
capacidade de pensar e de compreender as essências verdadeiras, imutáveis e eternas das coisas; à segunda classe
pertencem as I. das coisas naturais; à terceira, as I. das coisas quiméricas ou inventadas {Méd., III; Lettres ã
Mersenne, 16 de junho de 1641, em (Euvres, III, 383). Esta classificação parece moldada à que Bacon fizera sobre os
ídolos, dividindo-os em adventícios {adscititid) e inatos. "Os ídolos adventícios são introduzidos na mente humana
por meio das doutrinas das seitas filosóficas ou através de demonstrações feitas com método errado. Os ídolos inatos
pertencem à própria natureza do intelecto, que é propenso ao erro muito mais do que o sentido" {Nov. Org., Pref). Os
cartesianos e os wolffianos denominaram I. material os movimentos que, segundo Descartes, são levados para o
cérebro pelos nervos estimulados pela ação dos objetos externos que sensibilizam as diferentes panes do corpo (cf.
Descartes, Princ.phil., IV, 196). Essa doutrina foi acatada pelos ocasionalistas, mas também por Wolff {Psychol.
rationalis, § 118,
374), por Baumgarten (Met., § 560) e por Kant {Trâume eines Geistersehers, erlãutert durch Trãiime der Metaphysik,
1766, I, 3). Fouillée deu o nome de Idéia-força "ao encontro do interno e do externo, uma forma que o interno toma
pela ação do externo e pela reação própria da consciência" (Z 'evolutionisme des idées-forces, 1890, p. XV), ou seja a
unidade psicofísica que realiza o postulado do monismo psicofísico (v. MONISMO).
IDENTIAL(al. Ldential). Adjetivo criado por Avenarius para designar o conjunto de dois dos caracteres (y),
identidade e alteridade {Kritik der reinen Erfahrung, 1890, II, pp. 28 ss.).
IDENTIDADE (gr. ToròTOTnç; lat. Ldentitas; in. Identity; fr. Identité; ai. Identitãt; it. Identitã). Este conceito tem
três definições fundamentais: Ia I. como unidade de substância; 2a I. como possibilidade de substituição; 3a I. como
convenção.
Ia A primeira definição é de Aristóteles, que diz: "Em sentido essencial, as coisas são idênticas no mesmo sentido em
que são unas, já que são idênticas quando é uma só sua matéria (em espécie ou em número) ou quando sua substância
é una. Portanto, é evidente que a I. é, de algum modo, uma unidade, quer a unidade se refira a mais de uma coisa,
quer se refira a uma única coisa, considerada como duas, como acontece quando se diz que a coisa é idêntica a si
mesma" {Met., V, 9,1018 a 7). Em outros termos, como diz ainda Aristóteles, as coisas só são idênticas "se é idêntica
a definição da substância delas" {Lbid., X, 3, 1054 a 34). A unidade da substância, portanto da definição que a
expressa é, desse ponto de vista, o significado da identidade. Como nota Aristóteles, pode haver uma I. acidental,
como quando dois atributos acidentais ("branco" e "músico", p. ex.) se referem à mesma coisa, ao mesmo homem;
contudo, essa I. acidental não significa de modo algum que o homem (em geral) seja branco ou músico {Lbid., V, 9,
1017 b 27). Esse conceito de I. como unidade de substância ou (o que dá no mesmo) de definição da substância foi
conservado e ainda está presente em muitas doutrinas. Foi adotado por Hegel, que definiu a essência como "I. consigo
mesma" e, conseqüentemente, I. como coincidência ou unidade da essência consigo mesma {Ene, §§ 115-116). Tal
conceito de I. é, pois, análogo e correspondente à interpretação do ser predicativo como inerência (v. SER) e da
essência como essência necessária (v. ESSÊNCIA).
«M1MIIMDE, FILOSOFIA DA
529
IDENTIDADE, PRINCÍPIO DE
■í,( 2a A segunda definição é de Leibniz, que ; aproxima o conceito de I. ao de igualdade(v.): 'Idênticas são as
coisas que se podem substi-' |uir uma à outra salva veritate. Se A estiver con-! $& numa proposição verdadeira e se,
pondo-•C B no lugar de A, 2L proposição resultante '■ continuar sendo verdadeira, e se o mesmo . acontecer em
qualquer outra proposição, diz-se (pie A e B são idênticos; reciprocamente, se A e B são idênticos, a substituição a
que nos referi-nsospode acontecer" ÍSpecimenDemonstrandi, Qp., ed. Erdmann, p. 94). Definição análoga foi aceita
por Wolff, que definia como idênticas "as coisas que se podem substituir uma à outra, salvaguardando quaisquer de
seus predicados" ÍOnt., § 181). Com base neste sentido da palavra, começou-se a falar de proposições idênticas, que
Leibniz distinguiu em: afirmativas, do tipo "Cada coisa é aquilo que é"; negativas, que são regidas pelo princípio de
contradição (v.); díspares, que afirmam que "o objeto de uma idéia não é o objeto de outra idéia" (Nouv. ess., IV, 2,
§ 1). Estas observações de Leibniz sào repetidas com poucas alterações pela lógica contemporânea (CARNAP,
DerLogischeAufbau der Welt, § 159; QUINE, From a Logical Point of View, 1953, VIII, 1).
3a A terceira concepção diz que pode ser estabelecida ou reconhecida com base em qualquer critério convencional.
De acordo com essa concepção, não é possível estabelecer em definitivo o significado da I. ou o critério para
reconhecê-la, mas, dentro de determinado sistema lingüístico, é possível determinar esse critério de forma
convencional, mas oportuna. Esta concepção foi apresentada por F. Wais-mann num artigo de 1936 ("Über den
Begriff der Identitãt", em Erkenntniss, VI, pp. 56 ss.), em polêmica aberta contra a definição car-napiana de I.; foi
representada por P.T. Geach (em oposição a Quine), segundo o qual, quando se diz "xé idêntico a y", tem-se uma
expressão incompleta, abreviativa de. "xé o mesmo A de y", onde "A" é um nome cujo significado resulta do contexto
("Identity", em Rev. ofMet., 1967, pp. 2-12). Esta é a concepção menos dogmática e mais ajustada às exigências do
pensamento lógico-filosófico.
IDENTIDADE, FILOSOFIA DA (in. Iden-tity-philosophy; fr. Philosophie de Videntité; ai. Identitãtsphilosophie;
it. Filosofia delia identitã). Assim Schelling denominou sua filosofia, porquanto define o Absoluto como I. do objeto
com o sujeito, da natureza com o
espírito, do inconsciente com o consciente (Werke, II, pp. 371 ss.) (v. NATUREZA, FILOSOFIA DA).
IDENTIDADE, PRINCÍPIO DE (lat. Prin-cipium identitatis, in. Law of identity; fr. Príncipe d'identité; ai. Satz der
Identitãt; it. Principio di identitã). O reconhecimento explícito deste princípio como um dos princípios lógicos ou
ontológicos fundamentais, ao lado dos princípios de contradição e do terceiro excluído, é coisa recente porque não
passa da época de Wolff. Aristóteles ignora o princípio da I., o mesmo ocorrendo com toda a tradição medieval. O
próprio Leibniz considera o enunciado: "Tudo é aquilo que é" como tipo das verdades idênticas afirmativas, sem
atribuir-lhe a posição de princípio, que atribui apenas ao de contradição e ao de razão suficiente (Théod., I, § 44;
Monad., §§ 31-32, 35). Ele afirma: "As verdades primitivas de razão são aquelas a que dou o nome geral de idênticas
porque parece que elas não fazem mais que repetir a mesma coisa sem dizer nada de novo. As verdades idênticas
podem ser afirmativas ou negativas. As afirmativas são como as seguintes: Cada coisa é aquilo que é, e outros tantos
exemplos nos quais A é A, B é B" (Nouv. ess, IV, 2, § 1). Por outro lado, o reconhecimento da certeza das proposições
idênticas era muito antigo: encontrando-se já em S. Tomás, que dizia: "Devem ser notórias por si mesmas as
proposições nas quais se afirma a identidade de uma coisa consigo mesma, como em homem é homem ou nas quais o
predicado está incluído na definição do sujeito como em homem é anima? (Contra Gent, I, 10).
Por outro lado, Leibniz também conhecia a fórmula geral das I., como ocorria com Locke, que a enumerava entre as
máximas cujo caráter inato se reconhece, graças ao consenso universal que suscitam: "Aí estão dois dos célebres
princípios, aos quais, mais que a qualquer outro, se atribui a qualidade dos princípios inatos: Tudo aquilo que é é, e: É
impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo" (Ensaio, I, 1, 4). Tanto Locke quanto Leibniz parecem
referir-se à fórmula da I. como máxima bem conhecida e reconhecida, mas que ainda não foi alçada ao nível de
princípio ontológico ou lógico.
Ora, essa fórmula começara a circular na Escolástica do séc. XIV, sobretudo entre os partidários de Scot e Ockham,
na tentativa de reduzir o princípio de contradição (que conti-
IDENTIDADE, PRINCIPIO DE
530
IDENTIDADE, PRINCÍPIO DE
nuava sendo reconhecido como o primeiro princípio ontológico) à sua expressão mais simples e econômica. Esta
tentativa é uma manifestação característica do uso do princípio de economia (v.), que era considerado guia
metodológico por Ockham e por muitos esco-tistas. Antônio Andréa (morto em 1320) diz: "Digo que o princípio 'É
impossível que a mesma coisa simultaneamente seja e não seja' não é absolutamente primário, ou seja, primariamente
primeiro (...) Se perguntarem qual é absolutamente o primeiro complexo e o primariamente primeiro, direi que é este:
'O ente é ente.' Este princípio de fato tem termos primariamente primeiros e ultimamente últimos, que não são
portanto resolúveis em termos precedentes; aliás toda resolução de conceitos diz respeito ao conceito do ente, como o
é absolutamente primeiro entre os conceitos essenciais" (In Met., IV, q. 5). Buridan aludia a esta ou a semelhantes
tentativas de reduzir o princípio de contradição a uma fórmula mais simples, que seria a da L: "Alguns, entendendo
que tem mais prioridade a simplicidade que a evidência e a certeza, dizem que as proposições categóricas precedem
as hipotéticas e que as asser-tórias precedem as modais, etc; conseqüentemente, propõem uma única grande ordem de
princípios indemonstráveis. O primeiro princípio seria 'O ente é', donde se seguiria que 'o não-ente não é'. Depois
viria 'O ente é ente', donde 'o não-ente não é ente', etc." (In Met., IV, q. 13). Do ponto de vista da simplicidade e da
economia, a fórmula da I. parecia então mais primitiva que a da contradição; assim, os lógicos do séc. XIV
começaram a atribuir a essa fórmula a posição tradicionalmente atribuída apenas ao princípio de contradição.
Contudo, como dissemos, foi só com Wolff que se começou a reconhecer explicitamente no enunciado da I. o valor
de princípio. Wolff o expôs com a denominação de "Princípio da certeza", que derivava do princípio de contradição.
Em Ontologia (1729), disse: "Como é impossível que uma mesma coisa seja e não seja ao mesmo tempo, toda coisa,
enquanto é, ê; ou seja: se A é, também é verdadeiro que A é. Se negares que A é, enquanto é, deveras então concordar
que A é e não é ao mesmo tempo: o que se opõe ao princípio de contradição e por isso não pode ser admitido, por
força desse princípio" (Ont, § 55). Wolff ligava o princípio à noção de necessidade (Ibid., § 288) e não lhe
atribuía o caráter originário que atribuía ao princípio de contradição e ao de razão suficiente. Em Baumgarten, o
princípio de I. deu mais um passo ao ser posto após o de contradição (que para ele continuava sendo "o absolutamente
primeiro"), mas no mesmo nível dele, como "Princípio de oposição ou de I.". Expressou-o da seguinte forma: "Todo
possível A é A; ou seja, tudo o que é, é; ou então, todo sujeito é predicado de si mesmo" (Met., § 11). Por sua vez
Kant, em Nova elucidação dos primeiros princípios do conhecimento metafísico (1755), dizia: "Dois são os
princípios absolutamente primeiros de todas as verdades: um das verdades afirmativas, a proposição 'O que é, é'; o
outro das verdades negativas, a proposição 'aquilo que não é não é'. Ambas essas proposições denominam-se
comumente princípio de I. (Nova dilucidatio, prop. II).
Com isto, o princípio de I. ingressava oficialmente no rol dos princípios fundamentais da lógica (apesar de na origem,
com Wolff e Baumgarten, ele ter sido um princípio ontológico). Fichte valia-se dele como de uma proposição
absolutamente "certa e indubitável" (Wissenschaftslehre, 1794, § 1). E como princípio indubitável do pensamento
também era visto por Schelling (Werke, I, IV, p. 116). Tudo isto dava a Hegel o direito de dizer que "o princípio de I.,
em vez de ser uma verdadeira lei do pensamento, nada mais é que a lei do intelecto abstrato. A forma da proposição a
contradiz, senão porque a proposição também promete uma distinção entre sujeito e predicado e essa proposição não
cumpre o que sua forma promete. Mas deve notar, em especial, que ela é negada pelas outras chamadas leis do
pensamento, para as quais é lei o contrário dessa lei" (Ene, § 115). Hegel, naturalmente, tinha razão, mas lutava
contra um moinho de vento, pois os filósofos haviam admitido explicitamente esse princípio com o objetivo de dar
fundamento de necessidade às verdades idênticas. A lógica filosófica do séc. XIX continuou incluindo o princípio da
I. entre as leis universais do pensamento (cf. HAMILTON, Lectures on
LogiC, I, pp. 79 SS.; DROBISCH, Logik, § 58; ÜBERWEG, System der Logik, p. 183; WUNDT, Logik, I, pp. 504 ss.; B. HERDMANN, Logik, I, pp. 172 ss., etc.) embora não
faltasse quem lhe negasse qualquer significado (cf. P. HERMANT e A. VAN DE WAELE, Les principales théories de Ia
logique contemporaine, Paris, 1909, pp. 116 ss.). Para Boutroux, no princípio de I. estava expresso o
INOTIDADE DOS INDISCERNÍVEIS
531
IDEOLOGIA
jdeal da necessidade racional (Vidée de loi WOturelle, 1895. cap. 2). Meyerson, obedecen-P<b a conceito análogo,
reduzia a identificação qpalquer processo racional, ou seja, qualquer 'jpepcesso que consiga compreender ou
explicar <$B) objeto qualquer (Identité et realité, 1908; ' Ifacplication dans les sciences, 1927). Por ou-HD lado, a
lógica matemática logo percebeu a ÍBUtilidade desse princípio para a validade de 'tjm raciocínio qualquer, e Peirce
podia reduzir . «Significado dele ao dizer que "continuamos a <Ç(er naquilo que acreditamos até hoje, na ■ gusência
de qualquer razão em contrário" • (jCeU. Pap., 3, 182). Na lógica contemporânea, .. 4fK princípio não existe, pelo
menos na forma àe "princípio". Por vezes os lógicos fazem-no ÉÓincidir com este ou aquele teorema que «cpresse
um dos significados da cópula (v. SER, Í). Outras vezes, fora de lógica, consideram-no Um postulado semântico, de
que todo símbolo deve ter sempre o mesmo termo de referência, toda vez que ocorre no mesmo contexto (DE-WEY,
Logic, XVII, § 3). Neste sentido, obviamente, o princípio de I. não é lógico nem onto-lôgico, e a rigor nem princípio
é, mas apenas uma regra para o uso dos símbolos.
IDENTIDADE DOS INDISCERNÍVEIS (lat. Identitas indiscernibilium-, in. Identity of indiscernibles; fr. Identité
des indiscerna-bks; ai. Identitãt der Ununterscheidbaren-, it. ÜHentitàdegUindiscernibili). Princípio metafísico que
exclui a existência na natureza de duas coisas absolutamente iguais. Já conhecido pelos estóicos (cf. Cícero, Acad.,
III, 17, 18) e retomado no Renascimento ("Duas coisas no universo não podem ser absolutamente iguais"; NICOLAU
DE CUSA, De docta ignor., II, 11), foi defendido e ilustrado por Leibniz, que se vangloriou de ter descoberto este
princípio e o princípio de razão suficiente, como sendo os dois princípios que "mudam o estado da metafísica,
tornando-a real e demonstrativa" (IV Lett. a Clarke, Op., ed. Erdmann, pp. 755-56). Leibniz expressou-o dizendo
simplesmente: "Não existem indivíduos indiscerníveis", ou "Pôr duas coisas indiscerníveis significa pôr a mesma
coisa sob dois nomes" (Ibid., ed. Erdmann, pp. 755-56). E afirma: "Se dois indivíduos fossem perfeitamente
semelhantes e iguais, enfim indistinguíveis por si mesmos, não haveria princípio de individualizaçâo e nem haveria,
ouso dizer, distinção entre diferentes indivíduos" (Nouv. ess., II, 27, § 3). Para Leibniz esse é um argumento contra a
existência dos átomos (dos átomos materiais, evidentemente), que seriam idênticos por definição. Aceito e defendido por Wolff
(Cosm., §§ 246-48) e por toda a escola wolffiana, bem também — a seu modo — por Hegel (Ene, § 117), esse
princípio foi rejeitado por Kant: "Em duas gotas de água é possível abstrair totalmente de qualquer diferença interna
(de qualidade e dé quantidade), mas basta que elas sejam intuídas simultaneamente em lugares diferentes para
considerá-las numericamente diferentes. Leibniz confundiu fenômenos com coisas em si mesmas, portanto confundiu
com intelligibilia, ou seja, objetos do intelecto puro (conquanto as designasse com o nome de fenômenos porque as
considerava representações confusas) e assim o seu princípio dos indiscerníveis tornava-se inatacável" (Crít. R. Pura,
Analítica dos Princípios, Apêndice). Em outros termos, o princípio da I. dos indiscerníveis valeria para objetos do
intelecto puro, não para fenômenos, que já são bastante individualizados por sua posição no tempo e no espaço. Na
filosofia contemporânea há poucos vestígios desse princípio. Alguns lógicos o admitem, mas interpretam-no a seu
modo. Quine, p. ex., o expõe com o nome de "máxima da identificação dos indiscerníveis" desta forma: "Objetos
indiscerníveis um do outro dentro dos termos de dado discurso devem ser considerados idênticos para esse discurso"
(From a Logical Point ofVietv, IV, 2). Outros o consideram inde-monstrável e admitem que é logicamente possível
que duas coisas tenham em comum todas as suas propriedades (BLACK, Problems of Analysis, 1954, I, 5).
IDEOGRÁFICAS, CIÊNCIAS. V. CIÊNCIAS, CLASSIFICAÇÃO DAS.
IDEOLOGIA (in. Ideology; fr. Idéologie; ai. Ideologie; it. Ideologia). Esse termo foi criado por Destut de Tracy
(Idéologie, 1801) para designar "a análise das sensações e das idéias", segundo o modelo de Condillac. AI. constituiu
a corrente filosófica que marca a transição do empirismo iluminista para o espiritualismo tradicionalista e que
floresceu na primeira metade do séc. XIX (v. ESPIRITUALISMO). Como alguns ideologistas franceses fossem hostis a
Napoleão, este empregou o termo em sentido depreciativo, pretendendo com isso identificá-los com "sectários" ou
"dogmáticos", pessoas carecedoras de senso político e, em geral, sem contato com a realidade (PICAVET, Les
idéologues, Paris, 1891). Aí começa a história do significado moderno desse termo, não
IDEOLOGIA
53/
IDEOLOGIA
mais empregado para indicar qualquer espécie de análise filosófica, mas uma doutrina mais ou menos destituída de
validade objetiva, porém mantida pelos interesses claros ou ocultos daqueles que a utilizam.
Nesse sentido, em meados do séc. XIX, a noção de I. passou a ser fundamental no marxismo, sendo um dos seus
maiores instrumentos na luta contra a chamada cultura "burguesa". Marx de fato (cf. Sagrada família, 1845; Miséria
da filosofia, 1847) afirmara que as crenças religiosas, filosóficas, políticas e morais dependiam das relações de
produção e de trabalho, na forma como estas se constituem em cada fase da história econômica. Essa era a tese que
posteriormente foi denominada materia-lismo histórico (v.). Hoje, por I. entende-se o conjunto dessas crenças,
porquanto só têm a validade de expressar certa fase das relações econômicas e, portanto, de servir à defesa dos
interesses que prevalecem em cada fase desta relação. Foi exatamente com esse sentido que a I. foi estudada pela
primeira vez em Trattato di sociologia generale (1916) de Vilfredo Pa-reto, apesar de, nesta obra, não ser usado o
termo I. (que fora empregado em Sistemi so-cialisti, 1902, pp. 525-26). Em Pareto, a noção de I. corresponde à noção
de teoria não-cien-tífica, entendendo-se por esta última qualquer teoria que não seja lógico-experimental. Segundo
Pareto, uma teoria pode ser considerada: Ia em seu aspecto objetivo, em confronto com a experiência; 2B em seu
aspecto subjetivo, em sua força de persuasão, 3g em sua utilidade social, para quem a produz ou a acata {Trattato, §
14). As teorias científicas ou lógico-ex-perimentais são avaliáveis objetivamente, mas não nos outros modos, porque
seu objetivo não é o de persuadir (Jbid., § 76). Portanto, só as teorias não científicas são avaliáveis com base nos
outros dois aspectos. Ciência e I. pertencem, assim, a dois campos separados, que nada têm em comum: a primeira ao
campo da observação e do raciocínio; a segunda ao campo do sentimento e da fé {Jbid., % Aí). Com justeza foi
frisada a importância dessa distinção, que, por um lado, torna impossível considerar verdadeira uma teoria persuasiva
(ou útil) ou persuasiva (ou útil) uma teoria verdadeira e, por outro, permite "compreender antes de condenar e fazer a
distinção entre o estudioso dos fatos sociais e o propagandista ou apóstolo" (BOBBIO, "Vilfredo Pareto e Ia critica
delle I.", Riv. diFil, 1957, p. 374). Do ponto de vista da
análise da I., a doutrina de Pareto estabeleceu um ponto importante: a função da I. é em primeiro lugar persuadir,
dirigir a ação. Esse aspecto foi desprezado pelo outro teórico da ideologia, Mannheim. Este distinguiu um conceito
particular e um conceito universal de ideologia. Em sentido particular, entende-se por I. "o conjunto de contrafações
mais ou menos deliberadas de uma situação real cujo exato conhecimento contraria os interesses de quem sustenta a
I.". Em sentido mais geral, entende-se por I. a "visão do mundo" de um grupo humano, p. ex., de uma classe social.
Segundo Mannheim, a análise de I. no primeiro sentido deve ser feita no plano psicológico; a análise da I. no segundo
sentido deve ser feita no plano sociológico (Ideology and Utopia, 1953 [Ia ed. 19291, II, 1). Num e noutro caso ai. é a
idéia incapaz de inserir-se na situação, dominá-la e adequá-la a si mesma. Mannheim diz: "As I. são idéias
situacionalmente transcendentes que nunca conseguem de fato atualizar os projetos nelas implícitos. Apesar de
freqüentemente se apresentarem como justas aspirações da conduta pessoal do indivíduo, quando levadas à prática,
seu significado muitas vezes é deformado. A idéia do amor fraterno cristão, p. ex. numa sociedade fundada na
servidão, é irreali-zável e por isso ideológica, mesmo quando, para quem o entenda em boa fé, seu significado
constitui um fim para a conduta individual." (Jbid., IV, 1). Nisto a I. seria diferente da utopia, que chega a realizar-se.
Como foi freqüentemente observado (cf. MERTON, Social Theory and Social Structure, 1957, pp. 489 ss.), o critério
assim sugerido por Mannheim para a distinção (a ser estabelecida somente postfactum) entre I. e utopia, ou seja, a
realização, inclui um círculo vicioso, pois o juízo sobre a adequação da realização, a avaliação dessa adequação só
poderia ser feito com base numa distinção prévia entre I. e utopia.
A característica de ambas as doutrinas lembradas é a contraposição entre a I. e as teorias positivas, entre I. e ciência
segundo Pareto, e entre I. e utopia (a teoria que se realiza), segundo Mannheim. Conquanto Pareto tenha feito a
distinção entre juízo sobre a validade objetiva de uma teoria de juízo sobre sua força de persuasão e sobre sua
utilidade social, a contraposição feita entre I. e teoria científica levou-o a constituir duas classes nitidamente distintas
de teorias. Hoje está bem claro que, se uma teoria cientificamente verdadeira não tem, por isso
PIA
533
IGNORABIMUS
, força persuasiva (fora do campo dos as competentes), também está claro que teoria evidentemente falsa do ponto de
: científico não pode ter força de persuasão muito tempo. Hoje, p. ex., ninguém faria ~uer forma de propaganda com
base na "tência dos antípodas. A força de persuade uma teoria não está presa de modo vel à própria teoria, mas
depende do con-social em que ela atua ou é utilizada. A ade ou não-verdade científica da teoria nente é um elemento
do contexto, que, como os demais elementos, entra na itituição da força de persuasão da teoria. Drtanto, deve-se frisar
que o significado de 11. não consiste, como achavam os escrito-t marxistas, no fato de ela expressar os inte-. Uesses
ou as necessidades de um grupo social, i í&sm na sua verificabilidade empírica, nem em ' IDâ validade ou ausência
de validade objetiva, Tftas simplesmente em sua capacidade de consolar e dirigir o comportamento dos homens Cm
determinada situação. O alcance ideológico do princípio citado por Mannheim como çjtemplo, o amor fraterno, não
reside no fato negativo de que esse princípio não se realize numa sociedade fundada na escravidão, mas no fato de,
mesmo numa sociedade fundada na escravidão, esse princípio permitir controlar e dirigir a conduta de grande número
de pessoas.
Em geral, portanto, pode-se denominar I. toda crença usada para o controle dos comportamentos coletivos,
entendendo-se o termo crença (v.), em seu significado mais amplo, como noção de compromisso da conduta, que
pode ter ou não validade objetiva. Entendido nesse sentido, o conceito de I. é puramente formal, uma vez que pode
ser vista como I. tanto uma crença fundada em elementos objetivos quanto uma crença totalmente infundada, tanto
uma crença realizável quanto uma crença irrealizável. O que transforma uma crença em I. não é sua validade ou falta
de validade, mas unicamente sua capacidade de controlar os comportamentos em determinada situação.
IDEOSCOPIA (in. Ideoscopy). Foi assim que Peirce denominou "a descrição e a classificação das idéias que
pertencem à experiência comum ou surgem naturalmente em conexão com a vida comum, independentemente de sua
validade ou não-validade, ou de sua psicologia" (Coll. Pap., 8.328).
IDOLOLOGIA (ai. Eidologiê). Doutrina que estuda os ídolos, ou seja, as aparições na consciência: uma parte da
metafísica, juntamente com a metodologia, a ontologia e a sinecolo-gia, segundo Herbart (Allgemeine Metaphysik,
1828, 1, 71).
ÍDOLOS (gr. EiSootax; lat. Idola, Simulacra; in. Idols; fr. Idoles; ai. Idole; it. Idoli). A doutrina dos I. foi exposta na
antigüidade por Demócrito; segundo ela, a sensação e o pensamento são produzidas por imagens corpóreas
provenientes de fora 0- STOBEO, IV, 233). Essa doutrina foi retomada e adotada pelos epicuristas (Ep. a Herod., 4650; cf. LUCRÉCIO, De rer. nat., IV, 99, etc). Em sentido diferente, foi retomada por Francis Bacon, para quem os I.
não são instrumentos de conhecimento, mas obstáculos ao conhecimento; são "falsas noções" ou "antecipações", ou
seja, preconceitos. Para Bacon, são quatro as espécies de ídolos. Duas delas têm raízes na natureza humana e Bacon
denomina-as idola tribuse idola specus. Os I. tribus (da tribo) são comuns a todo o gênero humano e consistem, p.
ex., em supor que na natureza há uma harmonia muito maior que a existente, em dar importância a determinados
conceitos mais que a outros, etc. Os I. specus (da caverna) provêm da educação, dos costumes e dos casos fortuitos
em que cada um venha a encontrar-se. Assim, a importância que Aristóteles atribuiu à lógica, após havê-la inventado,
é um I. dessa espécie. Os I. provenientes do exterior também são de duas espécies: idolaforie idola theatri. Os I. fori
(da praça) derivam da linguagem freqüentemente usada ou de nomes de coisas que não existem (como sorte, primeiro
móvel, órbitas dos planetas, etc.) ou de nomes de coisas que existem, mas são confusas (como gerar, corromper,
grave, leve, etc). Os I. theatri (do teatro) derivam das doutrinas filosóficas ou de demonstrações errôneas e Bacon as
denomina assim porque compara os sistemas filosóficos a fábulas que são como mundos fictícios ou cenas de teatro.
A este propósito distingue três falsas filosofias: a sofistica, cujo maior exemplo é Aristóteles; a empírica, cujo maior
exemplo é a alquimia; a supersticiosa, que se mistura à teologia e cujo maior exemplo é Platão (Nov. Org., I, 38-45).
Recentemente, essa teoria de Bacon sobre os I. foi considerada antecessora do conceito moderno de ideologia
(MANNHEIM, Ideology and Utopia, 1929, II, 2).
IGNAVA RATIO. V. RAZÃO PREGUIÇOSA.
IGNORABIMUS. V ENIGMAS
IGNORÂNCIA
534
ILUMINISMO2
IGNORÂNCIA (lat. Ignorantia; in. Ignoran-ce; fr. Ignorance; ai. Unwissenheit; it. Igno-ranzà).Imperfeição do
conhecimento, mais precisamente a deficiência, inseparável do saber humano e devida às limitações do homem. Kant
distinguiu a I. em objetiva e subjetiva. AI. objetiva consiste na deficiência de conhecimentos de fato (I. material) ou
na deficiência de conhecimentos racionais(I. formal). A I. subjetiva é I. douta ou científica (de quem conhece os
limites do conhecimento) [V. DOUTA IGNORÂNCIA] ou I. comum, que é a I. do ignorante. Kant acrescenta que a I. é
inculpãvelnas coisas cujo conhecimento ultrapassa o horizonte comum, mas é culpávelnas coisas cujo saber é
necessário e atingível (Logik, Intr., VI). Esta observação de Kant ainda hoje é válida.
IGNORATIO ELENCHI (gr. èXéyiov ây-vota). Uma das falácias extra dictionem enumeradas por Aristóteles (El.
sof, 6, 168 a 18), mais precisamente a que consiste na ignorância daquilo que se deve provar contra o adversário (cf.
também PEDRO HISPANO, Summ. log., 7. 54; e ARNAULD, Log., III, 19, D (V. FALÁCIA).
IGUALDADE (gr. ioóxnç; lat. Aequalitas; in. Equality; fr. Égalité; ai. Gleichheit; it. Egua-glianzd). Relação entre
dois termos, em que um pode substituir o outro. Geralmente, dois termos são considerados iguais quando podem ser
substituídos um pelo outro no mesmo contexto, sem que mude o valor do contexto. Esse significado foi estabelecido
por Leibniz (Op., ed. Gerhardt, VII, p. 228), mas Aristóteles limitava o significado dessa palavra ao âmbito da
categoria de quantidade, e que dizia eram iguais as coisas "que têm em comum a quantidade" (Met., IV, 15, 1021 a
11).
A noção de I. assim generalizada (como possibilidade de substituição) presta-se tanto para as relações puramente
formais de equivalência ou de equipolência quanto às relações políticas, morais e jurídicas que se denominam de
igualdade. P. ex., a I. dos cidadãos perante a lei pode ser reduzida à possibilidade de substituição dos cidadãos nas
situações previstas pela lei sem que mude o procedimento da lei, de tal forma que, p. ex., o réu por um crime d nas
circunstâncias c pode ser substituído por qualquer outro réu do mesmo crime na mesma circunstância, sem que o
procedimento legal seja alterado. Do mesmo modo, pode-se descrever a I. moral ou jurídica dizendo que, nela, x, que
se encontre em determinadas condições, possui prerrogativas
ou possibilidades não diferentes das possuídas por qualquer outro x nas mesmas condições. Esta claro que o juízo de
I. só pode ser pronunciado com base em determinado contexto, com base na determinação das condições às quais os
termos devem satisfazer para serem considerados substituíveis (cf. PEIRCE, Coll. Pap., 3 42-44).
ILAÇÃO (lat. lllatio-, in. Illation; fr. Illation; it. Illazione). Em Apuleio e Boécio, esse termo traduz o estóico
èjn<popá; indica a proposição na qual se conclui um silogismo. Esse termo desaparece na lógica medieval, sendo
substituído por conclusio, para reaparecer na idade moderna indicando a complexa operação men-tal-discursiva
graças à qual se chega a estabelecer determinada proposição, ou essa mesma proposição.
G. P.
ILIACE. V. PURPUREA.
ILIMITADO (in. Boundless; fr. Illimité; ai. Unbegrenzi; it. Illimitató). A distinção entre infinito e ilimitado foi feita
por Aristóteles, que denominava o ilimitado de "infinito por semelhança". Enquanto no infinito é sempre possível
tomar uma nova parte, mas essa parte é sempre nova, no I. a parte que se pode tomar nem sempre é nova. Um anel
sem engaste é um exemplo de I.: é possível ir sempre além, ao longo de sua circunferência, mas estar-se-á passando
sempre pelos mesmos pontos (Fís., III, 6, 207 a 2). Essa distinção, que ficou esquecida durante séculos, foi retomada
por Einstein quando este afirmou que o mundo é finito e ao mesmo tempo I., exatamente no sentido aristotélico (
Über die spezielle und die allgemeine Relativitátstheorie, 1921, § 31; cf. EDDINGTON, The Nature ofthe Physical
World, 1928, pp. 80-81)
ILOCUÇÃO. V. PERFORMATIVO.
ILUMINISMO1 (in. llluminism; fr. Illumi-nisme; ai. Illuminatism; it. Illuminatismó). Pretensão de ter visão pessoal e
direta de Deus ou das realidades transcendentes. Esse termo foi definido por Kant como "uma espécie de democracia
baseada em inspirações pessoais que podem diferir, de acordo com a cabeça de cada um" (Religion, III, V; B 143).
ILUMINISMO2 (in. Enlightenment; fr. Phi-losophiedes lumières, ai. Aufklàrung; it. Illumi-nismó). Linha filosófica
caracterizada pelo empenho em estender a razão como crítica e guia a todos os campos da experiência humana. Nesse
sentido, Kant escreveu: "O I. é a saída dos homens do estado de minoridade devido a
ILUMINISMO2
535
ILUMINISMO2
tíes mesmos. Minoridade é a incapacidade de Utilizar o próprio intelecto sem a orientação de outro. Essa minoridade
será devida a eles mesmos se não for causada por deficiência intelectual, mas por falta de decisão e coragem para
Utilizar o intelecto como guia. 'Sapere aude! Tem coragem de usar teu intelecto!' é o lema do I." (Was ist
Aufklàrung?, em Op., ed. Cas-sirer, IV, p. 169). O I. compreende três aspectos diferentes e conexos: Ia extensão da
crítica a toda e qualquer crença e conhecimento, sem exceção; 2 e realização de um conhecimento que, por estar aberto
à crítica, inclua e organize os instrumentos para sua própria correção; 3 e uso efetivo, em todos os campos, do
conhecimento assim atingido, com o fim de melhorar a vida privada e social dos homens. Esses três aspectos, ou
melhor, compromissos fundamentais, constituem um dos modos recorrentes de entender e praticar a filosofia, cuja
expressão já se encontra no período clássico da Grécia antiga (v. FILOSOFIA). O discurso de Péricles em Tucídides (II,
35-46) é a melhor e mais autêntica descrição do I. antigo. Por I. moderno entende-se comumente o período que vai
dos últimos decênios do séc. XVII aos últimos decênios do séc. XVIII: esse período muitas vezes é designado
simplesmente I. ou século das luzes.
Ia OI., por um lado, adota aygcartesiana na razão e, por outro lado, acha que é bem mais limitado o poder da razão. A
lição da modéstia que o empirismo inglês, sobretudo em Locke, dera às pretensões cognoscitivas do homem não é
esquecida: o empirismo, aliás, passa a fazer parte integrante do I. A expressão típica desta limitação dos poderes da
razão é a doutrina da coisa em si (v.), lugar-comum do I. e como tal compartilhado por Kant. Essa doutrina significa
que os poderes cognoscitivos humanos, tanto sensíveis quanto racionais, vão até onde vai o fenômeno, mas não além.
Assim, o I. é caracterizado, em primeiro lugar, pela extensão da crítica racional aos poderes cognoscitivos, portanto
pelo reconhecimento dos limites entre a validade efetiva desses poderes e suas pretensões fictícias. O criticismo
kantiano, que, como Kant afirma, pretende levar a razão ao tribunal da razão (Crít. R. Pura, Pref. à Ia edição), nada
mais é que a realização sistemática de uma tarefa que todo o I. assumiu.
Ao lado desta limitação dos poderes cognoscitivos, primeira característica do I. por ser o primeiro efeito do
compromisso de estender
a crítica racional a qualquer campo, há outro aspecto fundamental desse mesmo compromisso: não existem campos
privilegiados, dos quais a crítica racional deva ser excluída. Sob este segundo aspecto, o I., mais que extensão, é
correção fundamental do cartesianismo. De fato, para Descartes a crítica racional não tinha direitos fora do campo da
ciência e da metafísica. Os campos da política e da religião deveriam continuar sendo tabus, e no próprio campo da
moral Descartes acha que a razão não tenha a sugerir outra coisa a não ser a reverência às normas tradicionais. O I.
não aceita estas renúncias cartesianas; seu primeiro ato, aliás, foi estender a indagação racional ao domínio da religião
e da política. O deísmoQv.) inglês é de fato a primeira manifestação do I.; consiste na tentativa de determinar a
validade da religião "nos limites da razão" (como dirá Kant), mas de uma razão cujas possibilidades já foram
delimitadas previamente pela experiência. Por outro lado, os Tratados sobre o governo de Locke iniciam a crítica
política iluminista, depois retomada e levada a termo por Montesquieu, Turgot, Voltaire e pelos escritores da
Revolução. No domínio moral, a Teoria dos sentimentos morais (1759) de Adam Smith, as obras dos moralistas
franceses (La Rochefoucauld, La Bruyère, Vauvenargues), que punham em evidência a importância do sentimento e
das paixões na conduta do homem, bem como as doutrinas morais de Hume, marcam a abertura deste campo de
indagação à crítica racional e à busca de novos fundamentos para a vida moral do homem. Ao mesmo tempo, a obra
de BEC-CARIA, Dei diritti e delle pene (1764), abria à indagação racional o domínio do direito penal. Obviamente, os
resultados obtidos em todos esses campos são diferentes e sua importância varia. Mas o significado do I. não consiste
na soma de seus resultados, mas no fato de haver aberto à crítica domínios até então fechados e por haver iniciado em
tais domínios um trabalho eficaz que desde então não foi interrompido.
A atitude crítica própria do I. está bem expressa em sua resoluta hostilidade à tradição. Na tradição, o I. vê uma força
hostil que mantém vivas crenças e preconceitos que é sua obrigação destruir. Aquilo que impropriamente tem-se
denominado anti-historicismo iluminista na realidade é antitradicionalismo: a recusa em aceitar a autoridade de
tradição e de reconhecer nela qualquer valor independente da
ILUMINISMO2
536
ILUMINISMO2
razão. O Dicionário histórico e crítico (1697) de Bayle, concebido como coletânea e refuta-ção dos erros da tradição,
é o maior documento da atitude constante dos iluministas de todos os países. Tradição e erro para eles coincidiam. E
embora hoje essa tese possa parecer extremista e tão dogmática quanto a tese que identifica tradição e verdade, não se
deve esquecer que só ela, graças a um esforço hercúleo, possibilitou a libertação dos fortes entraves que a tradição
impunha à livre pesquisa, permitindo chegar aos novos conceitos (de que ainda hoje dispomos) de história e de
historiografia. Esta última vinha constituindo, nesse período, os cânones que lhe garantiam, na medida do possível, a
Independência em relação a crenças e preconceitos no reconhecimento e na avaliação dos fatos. Por outro lado, a
história vinha-se configurando como o progresso possível (v. adiante).
2Q Já se disse que o empirismo fez parte do I. De fato, só a atitude empirista garante a abertura do domínio da ciência
e, em geral, do conhecimento, à crítica da razão, pois consiste em admitir que toda verdade pode e deve ser colocada
à prova, eventualmente modificada, corrigida ou abandonada (v. EMPIRISMO). Isso explica por que o I. sempre esteve
estritamente unido à atitude empirista. O empirismo é o ponto de partida e o pressuposto de muitos deístas; é a
filosofia defendida por Voltaire, Diderot, D'Alembert e que, através da obra de Wolff, domina os rumos do I. alemão
até Kant. Em estreita ligação com essa atitude está a importância que o I. atribui à ciência. Com o I., a ciência, esta
filha mais nova da cultura ocidental, candidata-se ao primeiro lugar na hierarquia das atividades humanas. A física,
cuja primeira sistematização se encontra na obra de NEWTON {Princípios matemáticos de filosofia natural, 1687), é
acatada pelos iluministas como a ciência mãe ou como a "verdadeira" filosofia. As pesquisas de Boyle encaminham a
química para a guinada decisiva, que levou à sua organização como ciência positiva; a obra de Buffon e de outros
naturalistas assinala, também para as ciências biológicas, etapas fundamentais de desenvolvimento. Mas, também aí,
o mais importante não são os resultados obtidos, mas sim a direção do caminho tomado. Tudo o que esses resultados
têm de dogmático, incompleto, provisório, pode ser corrigido pelo próprio compromisso fundamental do I., de não
bloquear a obra da razão em nenhum campo e em nenhum nível.
3a O I. não é somente uso crítico da razão; é também o compromisso de utilizar a razão e os resultados que ela pode
obter nos vários campos de pesquisa para melhorar a vida individual e social do homem. Esse compromisso não é
compartilhado igualmente por todos os iluministas. Alguns deles, que contribuíram de forma eminente para o
desenvolvimento da crítica racional do mundo humano, não o aceitam. Isso ocorre, p. ex., com Hume, que declara
filosofar para seu próprio deleite. Mas, por outro lado, ele constitui a substância da personalidade de muitos
pensadores iluministas e também de empreendimentos como a Enciclopédia, que tomaram para si a tarefa da luta
contra o preconceito e a ignorância. Essa luta, assim como a luta contra os privilégios empreendida pela Revolução
Francesa com base nos compromissos e nas concepções iluministas, tem como objetivo declarado a felicidade ou o
bem-estar do gênero humano. Nesse aspecto, o I. é responsável por duas concepções de fundamental importância para
a cultura moderna e contemporânea: a concepção de tolerância e a de progresso. O princípio da tolerância religiosa,
que não só exige a convivência pacífica das várias confissões religiosas, mas também impede que a religião se torne
um instrumento de governo, encontra no I. a primeira defesa no sentido de defini-lo como elemento da cultura
ocidental, não suscetível de negação no âmbito dessa mesma cultura (v. TOLERÂNCIA). Por outro lado, o compromisso
de transformação, próprio do I., leva à concepção da história como progresso, ou seja, como possibilidade de
melhoria do ponto de vista do saber e dos modos de vida do homem. Voltaire, Condorcet e Turgot são os que mais
contribuem para formular a noção de um devir histórico aberto à obra do homem, suscetível de receber as marcas que
o homem lhe quer imprimir. Essa noção serviu para apagar o sentimento de fatalidade histórica que impedia qualquer
iniciativa de transformação. Mais tarde, o Romantismo dirá que a história é a própria Razão Absoluta, que nela, em
cada um de seus momentos, tudo aquilo que deve ser é e o progresso é fatal ou inevitável; e verá no I., que contrapôs
a história à tradição e negou esta última, uma concepção "abstrata" ou "anti-histórica". Mas na realidade o que o
Romantismo visava era apenas declarar inútil ou impossível o compromisso de transformação: confiando na força da
Razão Histórica, pretendia imprimir o selo da eternidade nas
537
IMAGINAÇÃO
tlições em que a via encarnada. Isso con-que, se e quando a filosofia quiser as-a tarefa (que Platão já lhe atribuía) de
'òrmar o mundo humano, a atitude ilu-. e seus pressupostos fundamentais são neiras condições dessa tarefa. ILUSÃO
(in. Illusion; fr. Illusion; ai. Illusion; sionè). Aparência errônea, que não cessa 'o quando reconhecida como tal; p. ex.,
,Como quebrado o bastão imerso na água. É a antiga, que remonta aos epicuristas . L., X, 51) e se repete com
freqüência em recentes, que as I. não pertencem aos dos, mas ao juízo feito sobre o dado sen-Contudo, essas
considerações hoje têm os importância, pois nem a filosofia nem a ologia acham útil fazer uma distinção nítida dados
sensíveis e funções intelectuais. Kant !u a I. como "o jogo que persiste mesmo "do se sabe que o objeto pressuposto
não real" (Antr., § 13). E nesse sentido, considerou atividade dialéticada razão como I. "Em nos-tazão (considerada
subjetivamente como facul-jggde cognoscitiva humana) existem normas e típios de uso que têm todo o aspecto de
prin-ígtpios objetivos: por isso acontece que a neces-íltóade subjetiva de que haja certa conexão dos aossos
conceitos, em virtude do intelecto, seja (Considerada necessidade objetiva de determi-' tfaras coisas em si mesmas. I.
que não pode ser sfvitada, assim como não é possível evitar que «meio do mar pareça mais alto que na praia iporque
nós o vemos lá através de raios que são ■ pais elevados que os daqui; assim como o as-, itrônomo não pode impedir
que a lua lhe pareça maior ao surgir, mesmo que não se deixe çnganar por esta aparência" (Crít. R. Pura, Dialética,
Intr., I). As qualificações "natural" e 'inevitável" que Kant atribui à I. transcendental, mas que são atribuíveis a
qualquer ilusão, só fazem expressar o caráter fundamental da I.: ao edntrário do erro, não deixa de existir mesmo ao
ser identificada como I.
IMAGEM (gr. (pávtaou.a, cpavxaaía; lat. Jmago; in. Image; fr. Image; ai. Einbildung; it. Immaginé). Semelhança ou
sinal das coisas, que pode conservar-se independentemente das coisas. Aristóteles dizia que as I. são como as coisas
sensíveis, só que não têm matéria {De W-, III, 8, 432 a 9). Neste sentido a I. é: Ia produto da imaginação (v.); 2B
sensação ou percepção, vista por quem a recebe. Neste segundo significado, esse termo é usado constantemente tanto
pelos antigos quanto pelos
modernos. Os estóicos distinguiam os dois significados empregando duas palavras diferentes: denominavam
imaginação (cpávTao"|J.a) a I. que o pensamento forma por sua conta, como acontece nos sonhos, e I. (cpavxaoía) a
marca que a coisa deixa na alma, marca que é uma mudança da própria alma. A I. propriamente dita é "aquilo que é
impresso, formado e distinto do objeto existente, que se conforma à sua existência e por isso é o que não seria se o
objeto não existisse" (DIÓG. L., VII, 50). Desse ponto de vista, as I. podem ser sensíveis e não sensíveis (como as das
coisas incorpóreas); racionais ou irracionais (como as dos animais) e artificiais ou não artificiais (DIÓG. L., VII, 51).
Conceito igualmente geral da I. era o dos epicuristas, que admitiam a verdade de todas as I. porquanto produzidas
pelas coisas: pois o que não existe não pode produzir nada (DIÓG. L., X 32).
Esses conceitos passaram para a Idade Média e foram utilizados com fins teológicos, para esclarecer a relação entre a
natureza divina e a humana (cf., p. ex., S. Thomás, S. Th., I. q. 95). Na filosofia moderna, foram retomados por Bacon
{De augm. scient., II, 1, § 5) e Hobbes; para este, a I. "é ato de sentir e só difere da sensação assim como o fazer
difere do fato" {De corp., 25, § 3). Mas, em filosofia, o termo L, em seu significado geral, começou a perder terreno
para idéia (v.), em Descartes, e representação^.), em Wolff. A preferência por esses dois termos persiste na filosofia
contemporânea, que só lança mão do termo I., em seu 2° significado, quando quer acentuar o caráter ou a origem
sensível das idéias ou representações de que o homem dispõe. É o que faz, p. ex., Bergson: "Vamos fazer de conta,
por um instante, que nada sabemos das teorias sobre a matéria e sobre o espírito, que nada sabemos sobre as
discussões acerca da realidade ou da idealidade do mundo externo. Estaremos então em presença da I. no sentido
mais vago em que se possa tomar essa palavra, I. percebidas quando abro meus sentidos, não percebidas quando os
fecho" {Matière et mémoire, cap. 1).
IMAGINAÇÃO (gr. cpavtaaía; lat. Imagi-natio, Phantasia; in. Imagination; fr. Imagination; ai. Eínbildungskraft; it.
Immaginazioné). Em geral, a possibilidade de evocar ou produzir imagens, independentemente da presença do objeto
a que se referem. Aristóteles definiu a I. nesses termos, sendo o primeiro a analisá-la, em De anima (III, 3).
Aristóteles distinguiu a
IMAGINAÇÃO
538
IMAGINAÇÃO
I. em primeiro lugar da sensação, em segundo lugar da opinião. I. não é sensação porque uma imagem pode existir
mesmo quando não há sensação; p. ex., no sono. I. não é opinião porque a opinião exige que se acredite naquilo que
se opina, enquanto isso não acontece com a I., que, portanto, também pode pertencer aos animais. O caráter que
aproxima a I. da opinião é que ela, assim como a opinião, também pode ser falaz. Aristóteles considerou a
imaginação como uma mudança {kinesis) gerada pela sensação, semelhante a esta, embora não ligada a ela. {De an.,
III, 428 b 26). Nesse sentido, a I. é condição da apetição, que tende para alguma coisa que não está presente e da qual
não se tem sensação atual {Ibid., 433 b 29). Esse conceito de I. permaneceu inalterado por muito tempo. Como
Aristóteles já observara, a I. confere à alma possibilidades várias, ativas ou passivas, que são enfatizadas por muitos
filósofos. S. Agostinho diz: "As imagens são originadas por coisas corpóreas e por meio das sensações: estas, uma
vez recebidas, podem ser facilmente lembradas, distinguidas, multiplicadas, reduzidas, ampliadas, organizadas,
invertidas, recompostas do modo que mais agrade ao pensamento" {De vera rei, 10, § 18). Todas essas são
possibilidades próprias da imaginação. E S. Tomás, que pouca ou nenhuma importância atribui à I., que, assim como
a sensibilidade, se limita a captar a semelhança e não a essência das coisas (5. Th., I, q. 57, a. I), atribui entretanto
múltiplas funções ao seu produto, que é a imagem {Ibid., q. 93, a. 9). A definição de I. não muda muito nas fases
posteriores da história desse termo, mas as funções a ela atribuídas tendem a ser cada vez mais numerosas e
complexas. Francis Bacon, em De augmentis scientiarum {1623), o elaborar o plano de uma nova enciclopédia das
ciências, colocava a I. ao lado da memória e da razão, como uma das faculdades fundamentais, a que serve de base
para a poesia. Ainda mais radicalmente, Descartes, em Regulae ad directionen ingenii, reconhecia na I. a condição de
atividades espirituais diversas: "Essa mesma força, se aplicada com a I. ao senso comum, denomina-se ver, tocar, etc;
se aplicada à I. apenas, coberta de figuras diversas, denomina-se lembrança; se aplicada à I. para criar novas figuras,
denomina-se I. ou representação; se por fim age sozinha, chama-se compreender" {Regulae, XII). Hobbes também
via na I. uma condição fundamental das atividades mentais. Ele a vinculava estreitamente à
sensação: "Na realidade, a I. nada mais é que uma sensação enfraquecida ou langorosa por estar distante do seu
objeto" {De corp., 25, § 7). E via ná I. a inércia do espírito. Assim como um corpo em movimento se moverá
eternamente se não surgir obstáculo, nós conservamos a imagem, ainda que mais confusa, de um objeto que não está
mais presente ou diante do qual fechamos os olhos. É isso que os latinos chamavam de I. e os gregos, de fantasia.
Trata-se de uma sensação atenuada, comum aos homens e a outras criaturas, no sono e na vigília" {leviath., I, 2).
Hobbes relaciona com a I. a memória, a experiência e, por intermédio destas, também o intelecto e o juízo {Ibid., I,
12).
Essa função da I. na organização geral das faculdades humanas torna-se dado comum da filosofia dos sécs. XVII e
XVIII. Spinoza, que é propenso a atribuir à I. todos os erros da mente humana, diz que a mente não erra porque
imagina, mas apenas porque acredita na presença das coisas imaginadas, que, por definição, não estão presentes. {Et.,
II, 17, Scol). Hume, que concorda com Hobbes quanto à função fundamental da I., acredita que o que distingue a I.
propriamente dita da memória e que portanto está na base da crença, que acompanha a própria memória assim como
acompanha a sensibilidade, é unicamente o fato de as idéias da memória serem mais fortes e vivas que as da I.
{Treatise, I, III, § 5). Obviamente, a função geral atribuída à I. em relação às outras atividades do espírito implica que
se diferenciem essas funções da outra específica, que leva o nome de I.; e isso leva à distinção de vários tipos de I.,
que foram enumerados no séc. XVIII. Wolff distinguia a I. ("faculdade de produzir as percepções das coisas sensíveis
ausentes" [Psychol. empírica, § 92]) da facultas fingendi, que consiste "em, através da divisão e da composição das
imagens, produzir a imagem de uma coisa nunca percebida pelos sentidos" {Ibid., § 138). Análoga a esta foi a
distinção estabelecida por Kant, que vê na I. "a faculdade das intuições, mesmo sem a presença do objeto", dividindoa em produtiva, que é "o poder de representação originária do objeto {exhibitio originaria) e precede a experiência", e
reprodutiva {exhibitio derivativa), que "traz de volta ao espírito uma intuição empírica anterior". Só as intuições
puras de espaço e de tempo são produtos da I. produtiva. A I. reprodutiva, mesmo quando é denominada poéti-
ÜAGINAÇÃO
539
IMANÊNCIA
, ÇO, nunca é criadora, porque não pode criar
' çfna representação sensível que não tenha sido
Mnca antes dada à sensibilidade, mas dela
iRijipre extrai seu material (Antr., I, § 28). O
ceito de I. produtiva — que para Kant é feiamente formal, pois só produz as condi-'■Çpes da intuição (espaço-tempo)
— fora utili-' i mais amplamente na primeira edição de
fica da Razão Pura, onde se falava de uma ntese da produção na I.", considerada como '.^condição da síntese
conceituai da apercepçâo. :4 partir de Fichte, o idealismo romântico atribui à I. um alcance bem maior que o atribuído
jgpr Kant, que a confinara aos limites das con-$ções formais. Para Fichte, a I. é a ação recí-groca e a luta entre o
aspecto finito e o aspecto Itofinito do Eu, ou seja, o aspecto graças ao qual ,0?u impõe um limite à sua atividade
produtiva ,^o aspecto graças ao qual o supera e o distancia. 4| oscilação desse limite (que é a representa-■ ç9o) do
produto faz da I. algo de flutuante Ôltre realidade e irrealidade. Fichte diz: "A I. produz a realidade, mas nela não há
realidade; ;*& depois de concebida e compreendida no ÉBtelecto, seu produto se torna algo de real"
QVissenschaftslehre, 1794, II. Dedução da re-•^(fesentação, III). Essa função criadora da I. tornou-se lugar-comum
do Romantismo. Sobre efa, Hegel implantou a distinção entre I. e fan-Bsia. Ambas são determinações da inteligência,
ipas a inteligência como I. é simplesmente íéprodutiva, ao passo que como fantasia é criadora, é "I. simbolizante,
alegorizante ou poe-tante" {Ene, §§ 455-57). Sobre o poder criador da fantasia, Hegel fundou seu conceito de gê-lúo
(Vorlesungen überdieÀsthetik, ed. Glockner, I, pp. 378 ss.). Tais observações constituíram o ponto de partida para a
distinção entre fantasia ç.1., utilizada sobretudo pela estética romântica e por suas ramificações, até Croce (v.
FANTASIA). Afora essa estética, hoje nem a filosofia nem a psicologia estabelecem mais, entre I. e fantasia ou entre I.
reprodutiva e I. produtiva, a mesma diferença radical (de qualidade mais <pje de grau) que a estética romântica
supunha. A fenomenologia, em particular, atribuiu uma função especial à I., pois a ela é confiada a representação das
vivências como puros objetos de contemplação, o que constitui a própria possibilidade da fenomenologia. Por isso,
Husserl diz: "Na fenomenologia, como em todas as ciências eidéticas, as representações, mais precisamente as
fantasias livres, têm posição privilegiada em relação às percepções" ildeen, I, § 70). Isso
acontece porque, ao representar-se como "livres fantasias", as experiências humanas revelam sua verdadeira natureza,
porquanto se tornam puros objetos de contemplação desinteressada. Deste ponto de vista Husserl afirma
paradoxalmente que "aficçãoé o elemento vital da fenomenologia" ilbid., § 70). Mas, sem levar em conta essa função
vital que a I. reprodutiva desempenha na fenomenologia, as tarefas que ela parece cumprir nas análises filosóficas e
psicológicas contemporâneas não são diferentes das que ela parecia cumprir nas análises dos filósofos do séc. XVIII.
Por vezes se põe em relevo a função que a I. desempenha nas ciências, especialmente na matemática (cf. p. ex.,
PEIRCE, Coll. Pap., 4232), mas nem por isso se lhe atribui o poder criativo mágico que a estética romântica via nela.
IMAGINAÇÃO TRANSCENDENTAL. V IMAGINAÇÃO.
IMANÊNCIA (in. Immanence-, fr. Immanence; ai. Immanenz; it. lmmanenzà). Esse termo pode significar: le presença
da finalidade da ação na ação ou do resultado de uma operação qualquer na operação; 2 Q limitação do uso de certos
princípios à experiência possível e recusa em admitir conhecimentos autênticos que superem os limites de semelhante
experiência; 3B resolução da realidade na consciência.
ls Era com o primeiro significado que os escolásticos falavam de ação imanente, que "permanece no agente", como
entender, sentir, querer, porquanto distinta da ação transitiva (transiens), que passa para uma matéria externa, como
serrar, esquentar, etc. (cf. por todos S. TOMÁS, 5. Tb., I, q. 14, a. 2; q. 18, a. 3; q. 23, a. 2; q. 27, a. I etc). Essa
distinção só fazia expressar a distinção feita por Aristóteles entre movimento (KÍvr|criç) e atividade (èvépYEta) no IX
livro da Metafísica (6, 1048 b 18), considerando como movimento a ação que tem fim fora de si, e atividade as ações
que têm fim em si mesmas. Aristóteles empregara a esse propósito o verbo èvimáp%£iv, que significa inerir como
parte essencial ou constitutiva. Spinoza empregou o adjetivo no mesmo sentido, afirmando que "Deus é causa
imanente, não transitiva, de todas as coisas" querendo com isso dizer que "Deus é causa das coisas que estão nele", e
que nada há fora de Deus (Et., I, 18). A distinção aristotélica foi retomada pelos wolf-fianos (cf. BAUMGARTEN, Met.,
§ 211). É evidente que, neste sentido, I. significa permanência do fim, do resultado ou do efeito de uma ação no seu
agente.
IMANÊNCIA, FILOSOFIA DA
540
IMATERIALISMO
2S O segundo significado desse termo corresponde ao emprego que Kant faz do adjetivo, chamando de imanentes "os
princípios cuja "aplicação se tem em tudo e por tudo dentro dos limites da experiência possível", contrapon-do-se,
portanto, aos princípios "transcendentes". que ultrapassam esses limites iCrít. R. Pura, Dialética, Intr., I; Prol, § 40).
Nesse sentido, I. significa limitação do emprego de certos princípios ao domínio da experiência possível, e renúncia a
estendê-los além dele.
3B O terceiro significado de I. foi estabelecido pelo idealismo pós-kantiano. Fichte diz: "No sistema crítico, a coisa é
aquilo que está posto no Eu; no dogmático, aquilo em que o Eu é posto; assim, o criticismo é imanente porque põe
tudo no Eu; o dogmatismo é transcendente porque vai além do Eu" (Wissenschaftslehre, 1794, I, § 3, D; trad. it., p.
77). Essa terminologia, que é seguida por Schelling, atribui ao adjetivo "imanente" a característica do idealismo
absoluto, para o qual nada existe fora do Eu. Contudo, é evidente a analogia desse significado com o de Spinoza, para
quem a ação de Deus é imanente porque não vai além de Deus. Nesse sentido, a I. é a inclusão de toda a realidade no
Eu (ou Absoluto ou Consciência) e a negação de qualquer realidade fora do Eu. No mesmo sentido, Gioberti falava
de "pensamento imanente" (Protologia, I, p. 173) e insistia na imanência o idealismo italiano entre as duas guerras.
Comum a esses três significados do termo é o conceito de imanente como tudo que, fazendo parte da substância de
uma coisa, não subsiste fora dessa coisa.
IMANÊNCIA, FILOSOFIA DA (In. Imma-nence Philosophy, fr. Philosophie de Vimma-nence; ai.
Immanenzphilosophie; it. Filosofia delia immanenzà). Com esta expressão Guilherme Shuppe (1836-1913) designou
o ponto de vista fundamental de sua filosofia, segundo o qual" o mundo está na consciência", porém não na
consciência individual, mas na "consciência em geral", que é o conteúdo comum das consciências individuais
(Grundriss der Erkenntnistheorie und Logik, 1894, 2a ed., 1910, § 31).
IMANÊNCIA, MÉTODO DA (in. Method of Immanence-, fr. Méthode d'immanence; ai. Im-manenzmethode-, it.
Método delia immanenzà). Assim foi denominado por Blondel, Laberthon-nière e outros o método de apologética
religiosa, que tende a mostrar que o divino é, de
alguma maneira, imanente no homem, pelo menos sob forma de necessidade, aspiração ou exigência (BLONDEL,
Lettre sur les exigences de Ia pensée contemporaine en matière d'Apolo-gétique, 1896; LABERTHONNIÈRE, Essais de
philosophie religeuse, 1903). Le Roy deu a esse método uma expressão ainda mais generalizada, denominando-o
"princípio de I." e expressan-do-o da seguinte forma: "tudo é interno a tudo, e no mínimo detalhe da natureza ou da
ciência a análise encontra toda a natureza e toda a ciência" (Dogme et critique, 1907, p. 9) (v. AÇÃO, FILOSOFIA DA).
LMANENTISMO (in. Immanentism-, fr. Im-manentisme, ai. Immanentismus; it. Immanen-tismò). 1. Indica-se com
esse termo a doutrina que admite a imanência no 3S significado, negando qualquer realidade ou ser fora da
consciência ou da autoconsciência. Neste sentido são doutrinas imanentistas o idealismo romântico, o idealismo
gnosiológico e todas as formas do consciencialismo.
2. Esse termo também é usado para indicar a doutrina da imanência no 1 Q significado, em que eqüivale a panteísmo
(v.).
3. Algumas vezes, especialmente em francês, esse termo é empregado para designar o método da imanência (v.).
IMATERIALISMO (in. Immaterialism; fr. Im-matérialisme, ai. Immaterialismus; it. Imma-terialismo). Termo
criado por Berkeley para indicar a doutrina da negação de existência da realidade corpórea e da redução desta a idéias
impressas nos espíritos finitos diretamente por Deus {Dialogues between Hylas andPhilonous, III; Works, ed. Jessop,
II, pp. 259 ss.). Essa doutrina foi denominada e denomina-se mais co-mumente idealismo (no ls sentido). O
argumento fundamental adotado por Berkeley em favor do I. é que as coisas e suas propriedades não são mais que
idéias que, para existirem, precisam ser percebidas (esse estpercipt), portanto pensar coisas que não sejam percebidas
eqüivale a defini-las como "não pensadas" mesmo enquanto são pensadas. A diferença entre as idéias reais, que são
as coisas, e as idéias simplesmente imaginadas, que são co-mumente chamadas de idéias, consiste, segundo Berkeley,
no fato de que as primeiras são produzidas no nosso espírito por Deus e as outras são produzidas por nós mesmos.
Portanto, a mais simples percepção de uma coisa na realidade é a percepção de uma ação de Deus sobre nós e implica
a existência de Deus, ao
TO
541
IMEDIATO
que, a admitir-se a matéria, deve-se atri-' a ela a causalidade das próprias idéias e ~-se dispensar Deus. O
materialismo é por o fundamento do ateísmo e da irreligião, como o I. é o fundamento da religião ciples ofHuman
Knowledge, I, 92 ss.). IMEDIATO (gr. aueooç; in. Immediate; fr. iiat; ai. Unmittelbar, it. Immediató). Qua->se
geralmente com este termo todo obje-que pode ser reconhecido ou proposto sem de qualquer outro objeto: p. ex., uma
que pode ser percebida sem ajuda de idéia, um fato que pode ser constatado i ajuda de outros fatos, uma proposição
que ie ser considerada verdadeira sem recorrer -outras proposições, etc. Assim, Aristóteles gamava de I. a premissa
"à qual nenhuma é anterior" {An. post., I, 2, 72 a 7), ou ,^pja, a premissa cuja verdade é obtida sem recorrer à
verdade de outras premissas. Em sentido análogo, Descartes afirmava entender por "Ipnsamento "tudo aquilo que
está de tal forma ; nós que nós o percebemos imediatamen-sfjpem nós mesmos" {URép., def. 1), onde ime-0atamente
lhe servia "para excluir as coisas gue se seguem e provêm do nosso pensamento". Slínda analogamente Locke
entendia por co-.ahecimento intuitivo a percepção da concor-ncia e da discordância entre as idéias por si giesmas e
imediatamente, ou seja, sem ajuda (fe idéias intermediárias {Ensaio, IV, 2, 1).
Faz parte do conceito de imediação, assim entendido, a pretensão de que o I. não precisa , de outra coisa para exigir o
reconhecimento de Sua validade. Assim, para Descartes a ime-ção do pensamento constitui a própria vali-rfade da
proposição Eu sou, e para Locke a feiediação da relação entre as idéias torna esta relação mais segura do que a
relação mediata, ou seja, demonstrativa {Ibid., IV, 2, 4). É, pois, Supérfluo lembrar que as premissas imediatas de
Aristóteles têm validade necessária como princípios primeiros da demonstração. Privilé-gio análogo geralmente é
atribuído às formas de conhecimento I., como p. ex. a intuição. Kant atribuía à intuição o privilégio de ser "o I.
presença do objeto" {Prol., § 8), mas ao mesmo tempo negava que existisse uma intuição "não sensível", algo mais
que uma modificação passiva, que uma afeição. Mas a filosofia moderna e contemporânea falou com freqüência de
intuição não sensível: basta lembrar, por um kdo, a intuição eidética de que fala Husserl e,
por outro, a intuição simpática de que fala Bergson: a primeira tem por objeto as essências-, a segunda tem por objeto
a consciência em sua duração (v. INTUIÇÃO). Ambas essas intuições são caracterizadas pelo caráter L: captam os
respectivos objetos sem necessidade de intermediários.
Hegel, provavelmente o crítico mais radical do privilégio da imediação, denominou "filosofia do saber I." a filosofia
da fé de Jacobi. Kant já se manifestara contrário a essa filosofia, recusando-se a admitir que a fé ou qualquer outra
atividade sentimental ou I. do homem pudesse ir além dos limites da razão, que são enfim os mesmos da experiência
possível {Was heisst: Sich inDenken orientieren?, 1786). Mas a crítica de Kant é especialmente dirigida contra o
fanatismo (v.) que ele vê implícito nessa posição, ao passo que a crítica de Hegel é dirigida contra a imediação. Para
Hegel, a forma da imediação "dá ao universal a unilateralidade de uma abstração, de tal forma que Deus se torna a
essência indeterminada, mas Deus só pode ser chamado de espírito na medida em que se sabe, mediando-se em si
consigo mesmo. Só assim é concreto, vivo, espírito: a saber de Deus, como espírito, exatamente por isso contém em
si a mediação" {Ene, § 74). Para Hegel, a mediação (v.) é o retorno da consciência sobre si mesma, a autoconsciência,
que é a forma última e suprema da realidade e, por isso, identificada por Hegel com Deus. Negar a mediação
significa, portanto, negar a superioridade da autoconsciência sobre a consciência. O I. é a forma mais simples da
consciência, é "o intuir abstrato", que é o intuir no qual aquilo que intui (a consciência) se considera diferente daquilo
que é intuído (o objeto da consciência). Esta crítica, como se vê, é típica da filosofia hegeliana: faz parte integrante
dela, mas não é utilizável fora dela. No mundo contemporâneo, em que o domínio do saber tende a ser coberto pelas
várias disciplinas científicas, o I. perdeu seus privilégios, mas por razões que nada têm a ver com as aduzidas por
Hegel. O objeto de uma investigação científica nunca é I., pois sua validade só pode ser estabelecida com o auxílio de
instrumentos ou procedimentos mais ou menos complicados, portanto de forma indireta e mediata. Até os objetos da
visão, que tradicionalmente constituíam o modelo dos objetos I., perderam esse caráter para a psicologia
contemporânea, que tende a
IMITAÇÃO
542
IMORTALIDADE
evidenciar as complexas estruturas e os procedimentos mediatos da percepção (v.). Contudo, muitos filósofos ainda
privilegiam alguma forma de conhecimento imediato. E o que fez Russell, ao admitir como ponto de partida de todo
conhecimento o conhecimento imediato {acquaintancé), de cujos objetos "ficamos cientes diretamente, sem
intermediários" (Human Knowledge, 1948, p. 196 e pas-sirrí). Para Russell, qualquer conhecimento, em última
análise, deve ser reintegrado nesses "dados egocêntricos". Ao mesmo tempo, Carnap considerou como elementos
originários, que fazem parte da construção lógica dos objetos da ciência, as vivências elementares {Elementarerlebnisse [Der Logische Aufbau der Welt, § 65]). Mas nesses pressupostos e em outros semelhantes, a filosofia da
ciência afasta-se das análises e das conclusões da própria ciência.
IMITAÇÃO. V. ESTÉTICA.
EVtORALISMO (in. Immoralism-, fr. Imtno-ralisme, ai. Immoralismus; it. Immoralismó). Expressão adotada por
Nietzsche para expressar sua posição de antagonismo à moral tradicional e sua tentativa de efetuar uma "reviravolta
dos valores". Nietzsche dizia: "Sabe-se qual é a palavra que preparei para esta luta, a palavra imoralista; minha
fórmula também é conhecida: além do bem e do mal" (Wille zur Macht, 1901, § 167, c).
IMORTALIDADE (in. Immortality, fr. Im-mortalité; ai. Unsterblichkeit; it. Immortalita). Uma das crenças mais
difundidas nas filosofias e nas religiões do Oriente e do Ocidente. Do ponto de vista filosófico, pode assumir duas
formas diferentes: Ia a crença na I. da pessoa individual, ou seja, da alma humana em sua totalidade; 2- a crença na I.
daquilo que a pessoa individual tem em comum com um princípio eterno e divino, só da parte impessoal da alma. É
necessário, pois, considerar em terceiro lugar as provas aduzidas pelos filósofos em favor da imortalidade.
Ia A I. da alma individual foi admitida por órficos, pitagóricos e por Platão. Os ecléticos (v. p. ex. CÍCERO, Tusc, I, 2635) também a admitiram, bem como Plotino {Enn., III, 4, 6). Na Patrística e na Escolástica, a I. da alma individual é
lugar-comum, e fora das disputas dos aristotélicos ela também se mantém como lugar-comum no Renascimento. Os
naturalistas do Renascimento admitem a I. (CAMPANELLA, De sensu rerum, II, 24; BRUNO, Detriplici minimo,
I, 3). Ao lado da alma material, que é a única que preside às operações humanas (inclusive a moralidade) e é mortal,
Telésio admite uma alma divina, que é o sujeito da aspiração do homem à transcendência e é imortal {De rer. nat., V,
2). A demonstração da I. é uma das finalidades declaradas da filosofia de Descartes e um aspecto importante da
filosofia de Leibniz {Teod., I, 89) e da filosofia alemã pré-kantiana (BAUMGARTEN, Met., § 776). A I. da alma
continua fazendo parte de todas as formas mona-dológicas do espiritualismo moderno e contemporâneo, visto estar
claro que a mônada, seja ela criada ou incriada, é em qualquer caso imortal.
2- A teoria da I. parcial tem origem em Aristóteles. Após distinguir o intelecto ativo do passivo, Aristóteles diz que "o
intelecto ativo" é se-parável, impassível e sem mistura porque, por sua substância, é ato; e que só ele "é imortal e
eterno" {De an., III, 5. 430 a 17). Por sua "impassibilidade", o intelecto ativo não conserva as determinações
particulares, por isso não se identifica com a totalidade da alma humana, que também compreende o intelecto
passivo. Essa doutrina foi incorporada pelos estóicos em sua metafísica, segundo a qual a alma do homem é uma
parte do Espírito Cósmico e, como este, é imortal (DIÓG. L., VII. 156). Clean-tes afirmava que todas as almas durarão
até a conflagração final; Crisipo acreditava que somente as almas dos sábios durarão até esse momento (DIÓG. L.,
VII, 157).
Na Idade Média, o aristotelismo árabe retomou doutrina semelhante a esta. Averróis dava um passo a mais que
Aristóteles no que se refere à relação entre o intelecto e o restante da alma humana: não só o intelecto ativo, como
julgava Aristóteles, mas também o intelecto passivo (ou material ou Mico) estão separados da alma humana, à qual
só pertence o intelecto aquisitivo ou especulativo, que é a disposição essencial para participar das operações do
intelecto. Este é, portanto, único, separado e divino, e a alma humana nada tem de verdadeiramente imortal {De an.,
III, 1). Esse ponto de vista, seguido pelos averroístas latinos, que reduziam a I. da alma a pura questão de fé (p. ex.,
MANDONNET, Siger deBrabante, II, p. 167), também foi adotado pelos averroístas e pelos alexandristas do
Renascimento. Pomponazzi afirmava a respeito que a diferença entre intelecto ativo ou separado e o intelecto humano
MORTALIDADE
543
IMORTALIDADE
consiste no fato de o intelecto humano necessitar <Jo órgão físico (De immortalitate animae, 9). I. parcial ou
impessoal também é a que Spinoza atribui à alma humana, ao dizer que "a mente humana não pode ser destruída
totalmente com o corpo, mas que dela fica alguma coisa que é eterna" (Et., V, 23); em outros termos, a alma é eterna
enquanto modo ou manifestação da Substância Divina. O Romantismo não esteve mais interessado que Spinoza na I.
da alma individual. Hegel dizia: "Para nós, o essencial da crença na I. é que a alma tem em si um fim eterno,
totalmente diferente de seu objetivo finito e portanto um valor infinito. É essa superioridade que confere interesse à fé
na sobrevivência da alma". (Phil. der Ges-cbichte, ed. Lasson, p. 494; trad. it., II, pp. 267-68). Realmente, para Hegel
o que é imortal, aliás eterno, é o Espírito do Mundo, que se encarna nos povos e nos Estados, que se alternam como
seus portadores. Por outro lado, todas as formas de panteísmo (v.), antigas ou modernas, admitiram uma I. parcial ou
partilhada, que na realidade significa a eternidade de um princípio que só parcial ou temporariamente se encarna no
homem. O próprio Berg-son parece sugerir tal forma de L, ao considerar o corpo como um simples "instrumento de
ação" e ao identificar a alma com a corrente da "lembrança pura", que não tem mais individualidade alguma (Matière
et ménioire, Résumé et conclusion).
3a A maior parte das provas aduzidas pelos ; filósofos em favor da I. não são suficientemente precisas para poderem
ser invocadas em apoio a qualquer uma das crenças acima. As provas mais concludentes, pelo menos à primeira vista,
são as que partem dos dois conceitos que tradicionalmente definem a natureza da alma: a causalidade e a
substancialidade. Mas estas também são as provas mais radicalmente criticadas.
I. Uma das provas mais antigas é a deduzida do movimento. Aristóteles relata que Alcméon de Cróton julgava a alma
imortal e divina porque ela está sempre em movimento, assim como as coisas divinas, ou seja, a lua, o sol, etc. (De
an., I, 2, 405 a 30). Platão adotava essa argumentação: "Toda alma é imortal porque o que se move incessantemente é
imortal. Aquilo que move outra coisa e é movido por outra coisa, ao parar de mover-se, pára de viver. Só o que se
move por si, pelo
que nunca falta a si mesmo, nunca deixa de mover-se, mas é também fonte e princípio de movimento para todas as
coisas que se movem" (Fed., 245 d). A crítitica a esse argumento foi feita por Aristóteles, para quem era impossível
que a alma fosse movida, portanto que pudesse ser movida por outra coisa ou por si mesma (De an., I, 3).
II. O segundo argumento é deduzido da definição de alma como substância-, como substância, a alma é ser em ato e,
como ser em ato, é imorredoura (ARISTÓTELES, De an., III, 5, 430 a 17). Platão expôs este argumento no Fédon, em
sua forma mais popular, asseverando que a alma, por participar necessariamente da idéia de vida, não pode deixar de
viver, do mesmo modo como o número três, que participa necessariamente da idéia de ímpar, não pode deixar de ser
ímpar (Fed., 104-07). S. Tomás expressou o argumento de Aristóteles ao afirmar que "aquilo que tem ser por si não
pode ser gerado e corrompido", pois "o ser por si é próprio da forma enquanto ato" (S. Th., I. q. 75, a. 6). Este
argumento foi criticado por Duns Scot: para este, a alma não tem ser por si no sentido de subsistir por conta própria e
de não poder ser a título algum separada do ser: isto significaria que nem Deus pode criá-la e destruí-la, o que é falso
(Rep. Par, IV, d. 43, q. 2, nQS 18-19). Esse argumento foi ainda mais radicalmente criticado por Kant, que
demonstrou o caráter sofista da afirmação da substancialidade da alma, porquanto tal afirmação só faz transformar
sub-repticiamente em substância a simples relação funcional que o sujeito pensante tem consigo mesmo, ou seja, o Eu
penso (Crít. R. Pura, Dialética, cap. I).
III. O terceiro argumento é deduzido de um corolário da tese de substancialidade da alma, ou seja, da simplicidade da
substância alma. Em vista dessa simplicidade, a alma não pode corromper-se, pois que a corrupção (como passagem
de um contrário a outro) implica composição, donde os corpos, também se forem simples (como os celestes), serão
incorruptíveis. Platão afirmava que a alma, por ser invisível como as idéias, deve ser imutável e inde-componível
com elas (Fed., 78c ss.). S. Tomás expõe argumento análogo com outra forma, (cf. especialmente Contra Gent, II,
55). Uma variante dele foi dada por Mendelssohn, em Fédon (1766), com a tese de que a alma, em vista de sua
simplicidade, não pode morrer por
IMORTALIDADE
544
IMORTALIDADE
decomposição, mas nem por extinção. De fato, não podendo ela ser diminuída pouco a pouco e depois reduzida ao
nada (já que não tem partes), não deveria haver espaço de tempo entre o instante em que ela é e aquele em que ela
não é mais. Kant notava a propósito que, mesmo não tendo quantidade extensiva, a alma poderia e deveria ter, assim
como a consciência, uma quantidade intensiva, ou seja, um grau (Crít. R. Pura, Confutação do argumento de
Mendelssohn).
IV. O quarto argumento é deduzido da presença da verdade na alma (PLATÃO, Mên., 86a). S. Agostinho diz: "Se
aquilo que está num sujeito (subiectum) dura para sempre, necessariamente o sujeito também dura para sempre. Ora,
toda ciência (disciplina) existe na alma como em seu sujeito; conclui-se necessariamente que a alma dura para
sempre, se a ciência dura para sempre. Mas a ciência é verdade e a verdade dura para sempre; portanto, a alma dura
para sempre também e nunca pode ser considerada morta" (Solil, II, 13). Esse argumento foi repetido por S. Tomás
(Contra Gent., II, 55): "Sendo incorruptível o objeto do intelecto, o próprio intelecto será incorruptível." Foi criticado
pelos alexandristas do Renascimento, particularmente por Pomponazzi. "Para o intelecto é essencial entender, através
de imagens, como resulta claro da definição de alma como ato de um corpo físico-orgânico. Por isso o intelecto, em
cada uma de suas funções, necessita de um órgão. Mas aquilo que assim entende é necessariamente inseparável do
corpo. Portanto o intelecto humano é mortal" (De imm. animae, 9). Argumento semelhante ao de Agostinho algumas
vezes foi repetido por filósofos modernos com referência à presença de valores ideais na alma humana, ou seja, da
Verdade, da Beleza e do Bem (p. ex., C. H. HOWISON, The Limits of Evolution, 1901, cap. 6).
V. Argumento análogo a este foi deduzido por S. Anselmo da presença do amor por Deus na alma. A alma humana,
como criatura racional, "foi criada para amar sem cessar a Substância Suprema. Mas não poderia fazê-lo se não
vivesse para sempre; portanto, a alma é feita para viver sempre, conquanto queira fazer sempre aquilo para que foi
feita. Além disso, não estaria de acordo com a suprema bondade, sabedoria e onipotência do Criador reduzir a nada
uma criatura por ele criada para amá-lo, até que ela o ame" (Monologion, 69).
VI. O sexto argumento é extraído do desejo natural de imortalidade. S. Tomás diz: "Qualquer um que tenha
inteligência naturalmente deseja existir para sempre. Mas um desejo natural não pode ser vão. Portanto, toda
substância intelectual é incorruptível" (S. Th., I. q. 75, a. 6). Conquanto S. Tomás aduza esse argumento como
simples signum da I., ele foi repetido com freqüência.
VII. O sétimo argumento apresenta a I. como exigência da vida moral do homem. Esse argumento não teve muita
aceitação na Antigüidade: valeu mais como motivo, freqüentemente inconfesso, para que os filósofos procurassem
provas demonstrativas da imortalidade. Duns Scot negava que fossem conclusivas as razões extraídas da aspiração da
alma à bem-aventurança eterna e à justiça capaz de retribuir o bem e o mal. A razão natural deveria pelo menos darnos a conhecer que a bem-aventurança eterna é o fim adequado à nossa natureza, o que não acontece; quanto à
necessidade de prêmio ou de castigo, pode-se dizer que cada um encontra retribuição suficiente em sua própria ação
boa e que o primeiro castigo do pecado é o próprio pecado (Op. Ox., IV, d. 43, q. 2, n2 27, 32). Portanto, para Duns
Scot, a I. da alma era pura verdade de fé, não susceptível de tratamento demonstrativo. Pomponazzi retomou esse
ponto de vista em sua critica ao argumento moral (De imm. animae, 14). Na filosofia moderna, contudo, esse foi o
argumento que obteve maior receptividade, o que se explica com facilidade, visto que, com o declínio da metafísica
antiga, as provas deduzidas da causalidade e da substan-cialidade da alma perderam valor. Na "Profissão de fé do
Vigário saboiano" (Emílio, IV), Rousseau chegava a afirmar a imaterialidade, portanto a I. da alma, exatamente com
base na exigência de uma justiça que nem sempre se vê realizada no mundo: "Mesmo que não houvesse outra prova
da imaterialidade da alma, além do triunfo do mau e da opressão do justo neste mundo, só isso bastaria para que eu
não duvidasse dela. Contradição tão manifesta, dissonância tão estridente na harmonia do universo, levar-me-ia a
refletir que nem tudo termina para nós na vida, mas que, com a morte, tudo retorna à ordem". Nesse aspecto,
Rousseau constituía a voz eloqüente de grande parte do iluminismo e do deísmo do séc. XVIII, ainda que outra parte
desse iluminismo pensasse,
ALIDADE
545
IMPERATIVO
Vdtaire, que "a mortalidade da alma não é "ria ao bem da sociedade, como provam antigos hebreus, que acreditavam
na alma .erial e mortal" {Traité de métaphysique, 6). t só fez reexpor a tese de Rousseau, pres-o a I. como um dos
postulados da razão 'ca. Segundo Kant, a I. da alma e a existên-de Deus são condições para a realização do supremo,
que é a união de virtude e felici-Ade. Sem a continuação indefinida da vida hu-ütema além da morte, a realização da
santidade ílÉfediante o progresso ao infinito não seria pos-,#/e\, portanto o homem nunca se tornaria dig-itb de
felicidade. Mas para Kant esse postulado ■ lÈto é uma verdade teorética, mas uma neces-Ütlade do ser moral finito:
as considerações . morais, em outros termos, não demonstram a f., mas mostram que ela é uma aspiração legítima de
quem age moralmente (cf. Postulados da Razão Prática).
VIII. Por fim um argumento antigo, mas que sempre reaparece, é extraído do con-Sensus gentium. Cícero assim o
expressava: "Se o consenso universal é voz natural e se todos, em todos os lugares, estão de acordo em julgar que
existe algo no que se refere aos que já morreram, também nós devemos ser do mesmo parecer e, se julgarmos que os
dotados de espírito superior por engenho ou virtude estão em melhores condições para reconhecer a força da natureza
porque são perfeitos por natureza, é verossímil — visto que os melhores se preocupam muitíssimo com a posteridade
— que exista algo cuja sensação estão destinados a ter depois da morte" (Tusc, 1,15, 35). O problema da I. há muito
deixou de existir em filosofia. Isto nem tanto porque a solução positiva dele estivesse ligada a determinada filosofia, a
metafísica da substância, mas também e sobretudo por outras duas razões. A primeira delas é que a ética moderna
desvinculou a moral de qualquer sanção ultraterrena, eliminando assim o primeiro e mais imediato interesse na
solução positiva do problema da imortalidade. A segunda é que a moderna tendência da filosofia, que considera
ilegítimo ou sem significado estender a análise filosófica além da espera de existência ou da experiência detec-tável
com os instrumentos que o homem possui, negou, em princípio, a legitimidade e a conclusividade do próprio debate
sobre a imortalidade. Não causa portanto estranheza o fato de serem escassos e pobres os trabalhos
sobre esse problema na filosofia moderna e contemporânea, principalmente depois de Kant. Seu interesse por ele
acabou por limitar-se à esfera da religião e da apologética religiosa.
IMPENETRABILIDADE. V ANTITIPIA IMPERATIVO (in. Imperative, fr. Impératif, ai. Imperatiu, it. Imperativo).
Termo criado por Kant, talvez por analogia com o termo bíblico "mandamento", para indicar a fórmula que expressa
uma norma da razão. Kant diz: "A representação de um princípio objetivo, porquanto coage a vontade, denomina-se
comando da razão, e a fórmula do comando denomina-se I." (Grundlegung zurMet. derSitten, II). Para o homem,
norma da razão é uma ordem, pois a vontade humana não é a faculdade de escolher apenas o que a razão reconhece
como praticamente necessário, ou seja, como bom. Se assim fosse, a norma da razão não teria caráter coativo e não
seria uma ordem. Isso acontece com os seres dotados de vontade santa, de uma vontade que está necessariamente de
acordo com a razão e que só pode escolher o que é racional. Mas, como o homem pode escolher também segundo a
inclinação sensível, a lei da razão assume para ele a forma de ordem e por isso sua expressão é um I. (Crít. R.
Prática, I, cap. III). Portanto, a palavra I. não passa de outro nome para a palavra dever (v.). Kant distinguiu os I. em
hipotéticos e categóricos. O I. hipotético ordena uma ação que é boa relativamente a um objetivo possível ou real. No
primeiro caso, ele é um princípio problematica-menteprático; no segundo caso, é um princípio assertivamente
prático. O I. categórico ordena uma ação que é boa em si mesma, por si mesma objetivamente necessária, sendo
portanto um princípio apoditicamente prático. Os I. problematicamente práticos são os de habilidade (p. ex., as
prescrições de um médico). Os I. assertivamente práticos são os da prudência: seu objetivo é a felicidade. Os I.
categóricos são os da moralidade. Os primeiros poderiam denominar-se I. técnicos ou regras, os segundos, I. pragmáticosou conselhos-, os terceiros são I. morais ou leis da moralidade (Grundlegung, cit., II). Essas observações de
Kant foram sobejamente aceitas na filosofia moderna e contemporânea. Isto não quer dizer que a ética kan-tiana do
dever também tenha sido tão aceita, sobretudo na forma proposta por Kant (v. ÉTICA). O problema de poder ou não
considerar as
IMPERSONALISMO
546
IMPLICAÇÃO
normas morais como imperativos é fundamental e muitas vezes teve resposta negativa. Toda a tradição utilitarista
constitui um exemplo de semelhante solução negativa. A ética de Berg-son é outro exemplo. Conceber a norma moral
como I. (ou dever) significa julgar, como Kant, que ela seja um "fato da razão" um sic volo sic íubeo (Crít. R.
Pratica, cap. I, § 7, Escol.): coisa que nem todos se mostram dispostos a admitir.
A partir da obra de OGDEN e RICHARDS, The Meaning ofMeaning (1923), o I., sobretudo o I. moral, foi
freqüentemente considerado uma "proposição emotiva", ou seja, destinada a produzir ação, mas desprovida de
significado cog-noscitivo. Essa teoria, cuja melhor forma se encontra em Ayer (Language Truth and Logic, 2- ed.,
1948) e Stevenson (Ethics and Lan-guage, 1944), após breve sucesso deixou de ter defensores (STROLL, The Emotive
Theory of Ethics, Berkeley, 1954).
IMPERSONALISMO (in. Impersonalism). Termo muito pouco usado, é oposto de personalismo (v): significa
simplesmente materia-lismo (v.).
IMPERTURBABILIDADE. V. ATARAXIA.
IMPESSOAL (ai. Man; it. Anonimià). Segundo Heidegger, é o modo de ser nivelado da existência quotidiana, na
sua "mediania" pública, isto é, nas formas que acaba assumindo na vida de todo dia. Em tal modo de ser, "cada um é
os outros e ninguém é ele mesmo. O Se, onde está a resposta ao problema do Quem do Ser-aí quotidiano, é o ninguém
ao qual cada Ser-aí se entregou na indiferença do seu ser-junto" (Sein und Zeit, § 27) (v. MEDIANIA).
IMPLICAÇÃO (in. Implication; fr. Implication; ai. Implication; it. Implicazione). Na lógica contemporânea, este
termo substituiu outros mais antigos, como condicional (v.) e conseqüência (v.), permitindo generalizar esses
significados. AI. é a composição de duas proposições por meio do conectivo se... então, em que a primeira se chama
antecedente e a segunda conseqüente. Tanto a linguagem comum quanto a científica oferecem exemplos de I. bem
distintos. Consideraremos os seguintes:
(1) Se x é solteiro, então x não é casado.
(2) Se x é triângulo, então x tem os ângulos internos iguais a dois retos.
(3) Se x é metal, então x é maleável.
(4) Se x comete uma ação indigna, então x perde a estima dos amigos.
(5) Se x cometer um crime, então x irá para a cadeia.
(6) Se x me insulta, eu esbofeteio x.
(7) Se x me fizer um favor, então x será recompensado por mim.
(8) Se x é um gênio filosófico, então eu sou o imperador da China.
Se considerarmos esses diversos exemplos de I. (e outros que poderão ser enumerados), logo perceberemos que a
conexão entre antecedente e conseqüente é diferente em cada caso: o fundamento é diferente ou, como se poderia
dizer, sua validade provém de contextos diferentes. No exemplo (1), a validade decorre do fato de, no dicionário,
verificar-se que "solteiro" eqüivale a "não casado"; em (2), do contexto da geometria euclidiana e de seus postulados;
em (3), das observações empíricas ou da ciência; em (4) e (5), respectivamente, das normas morais e jurídicas
vigentes em determinado país; em (6) e (7), de minha decisão de reagir a certo tipo de comportamento de x, em (8)
está apenas um modo de expressar minha convicção de que x não é um gênio filosófico.
Diante dessa variedade de tipos de I., os lógicos procuraram identificar a condição mais simples, geral e abstrata que
torna válida uma I. qualquer, sem levar em conta o contexto a que ela se refere nem o fundamento apresentado por
seu conteúdo específico; identificaram essa condição na fórmula que Fílon de Mégara já defendera contra Diodoro
Cronos, sobre a validade das proposições condicionais (SEXTO EMPÍRICO, Adv. math., VIII, 113-14: cf. CONDIÇÃO):
uma I. é válida sempre que não tenha antecedente verdadeiro e conseqüente falso. Assim, também vale quando o
antecedente e o conseqüente são falsos. Essa condição generalís-sima e abstrata foi chamada de I. material e foi
expressa por Russell (Principia mathematica, I, 1.01) com a fórmula:
pz> q=~pv qDf que se lê: "p implica q" eqüivale por definição a "não-jt> ou q"; onde p e q representam,
respectivamente, o antecedente e o conseqüente e o sinal 3 representa a I. material. De modo correspondente,
chamou-se de formal a I. que, além de preencher a condição de validade da I. material, para ser válida exige outras
condições. Nos exemplos antes enumerados, apenas o (8) é I. material pura porque pode ser expressa dizendo-se "ou
x não é um gênio filosófico ou eu sou o imperador da China". As outras, mesmo respeitando essa condição, exi-
í IMPLICAÇÃO
547
IMPREDICATTVA, DEFINIÇÃO
' gem outras (como vimos) que constituam seu i fundamento. Assim, pode-se dizer que todas as
I. formais são materiais, mas que nem todas as ■ I. materiais são formais. Por isso, a I. será defi-• nida pela seguinte
tábua de verdade (na qual p
e #representam proposições quaisquer e Ve F,
verdadeiro e falso):
1
p
pz>q
V
V
V
V
F
F
F
V
V
F
F
V
(v. TÁBUA DE VERDADES)
A I. material pode parecer paradoxal do ponto de vista do senso comum e das ciências empíricas. Por exemplo, ela
permite reconhecer como verdadeira a I. "Se 2x2 = 5, então Nova York é uma cidade pequena"; e como falsa esta
outra: "Se 2x2=4, então Nova York é uma cidade pequena"(cf. TARSKI, Introduction toLogic, 1941, § 8), nas quais
não há nenhuma conexão causai ou contextual entre o antecedente e o conseqüente, mas a primeira significa "ou 2x2
não são = 5 ou Nova York é uma cidade pequena", e a segunda: "ou 2x2 não sào = 4 ou Nova York é uma cidade
pequena". A I. material é sobretudo usada em matemática; nela Hilbert baseou os axiomas da lógica das proposições
("Die Logischen Grund-lagen der Mathematik", em Mathematische Annalen, 1923, pp. 151-65). Em forma de axioma, a I. material significa que "a verdade decorre de qualquer coisa" porque, se qé verdadeiro por si mesmo, decorre
de qualquer p, não importa se verdadeiro ou falso, e que "tudo decorre do falso" porque, se p é falso, dele pode
decorrer qualquer q, seja ele verdadeiro ou falso. Na realidade, a I. material abstrai completamente de qualquer
conexão causai ou contextual entre o antecedente e o conseqüente (que pode ter fundamento bem diferente) e
constitui apenas a condição mínima suficiente para a validade de todas as implicações. Contudo, alguns lógicos
procuraram tornar menos abstrato o conceito de I., aproximando-o mais do seu significado comum. Assim, o
americano C. I. Lewis (cf. LEWIS AND LANGDORF, Sym-bolicLogic, 1932, pp. 174 ss., 248 e ss.) falou de uma I.
estrita, segundo a qual "p implica q" seria sinônimo de "qé dedutível dep", no sentido de que seria contraditório
afirmar o antecedente p e negar o conseqüente q. Esse conceito recorre ao conceito de possibilidade lógica e por isso
seria expresso pela fórmula ~ M{p~ q), em que M significa "possível", lendo-se assim: "não é possível que p seja
verdade e q não o seja". Uma relação análoga de I. foi chamada de entailment [decorrência necessária] por muitos
escritores ingleses, a partir de Moore; este a ilustrou da seguinte forma: "p entails [implica necessariamente] q"
quando e só quando tivermos condições de dizer realmente que 'g decorre de p ou 'é dedutível de p no mesmo sentido
em que a conclusão de um silogismo em Bárbara decorre das duas premissas tomadas como proposição conjuntiva"
(Philosophical Studies, 1922, cap. IX; ed. 1960, p. 291). Carnap distinguiu a C-implicação, ou I. sintática, que é a
material de que falamos, e a L-implicação ou I. semântica, que corresponde à I. estrita de Lewis {Introduction to
Semantics, §§ 9, 14).
Na lógica medieval, o termo I. era usado apenas para indicar uma forma da restrição (v.): como no exemplo "o
homem que é branco corre", em que a I. é constituída pela proposição "que é branco", que restringe aos brancos os
homens que correm. Nos manuais de lógica do séc. XVI a palavra implicatíoi utilizada como abreviação de
implicaicontradictionem, e esse uso também reaparece em De intellectus emen-datione (1662) e em Cogitata
metaphysica (1663) de Spinoza (cf. W. KNEALE AND M. KNEALE, The Development of Logic, 1962, p. 300).
IMPLÍCITO (in. Implicit; fr. Implicite, ai. Verflechten; it. Implícito). Esse adjetivo tem três significados principais:
l2 I., no sentido lógico de implicação (v.), referindo-se exclusivamente a enunciados, proposições ou asserções; 2a não
explícito, ou" seja, sugerido por certo contexto do discurso, como quando se diz "x implicitamente admitiu que..."; 3S
potencial ou virtual. Este último emprego é impróprio.
IMPOSIÇÃO (lat. Impositio; in. Imposition; fr. Imposition; it. Imposizioné). Na Lógica medieval é o ato pelo qual
um nome é destinado a significar uma coisa (cf. PEDRO HISPANO, Summ. log., 6.03).
IMPOSSÍVEL. V. POSSÍVEL.
IMPREDICATTVA, DEFINIÇÃO (in Im-predicative definition; fr. definition imprédi-cative, it. Definizione
impredicativá). Poin-caré indicou com esta expressão a definição do membro de uma classe que faz referência à
totalidade dos membros da classe e que, portanto, contém um círculo vicioso. Destas
IMPRESSÃO
548
INATISMO
definições surgem as antinomias lógicas que Poincaré queria evitar estabelecendo o princípio que não permite tais
definições (POINCARÉ, em Revue de Métaphysique et de Morale, 1906, pp. 294-317; cf. também Dernières Pen-sées,
1913, IV) (v. ANTINOMIA).
IMPRESSÃO (gr. Timcoaiç; lat. Impressio; in. Impression-, fr. Impression; ai. Eindruck, it. Impressione). A teoria
segundo a qual o conhecimento consiste numa marca ou impressão feita pelas coisas sobre a alma nasce com os estóicos. Estes diziam que "a imagem é um sinete na alma", tomando o nome da figura que o selo imprime na cera (DIÓG.
L., VII, 45). Cícero procurou eliminar o caráter físico da I. (Tusc, I, 61). Esse termo foi difundido na filosofia e na
linguagem moderna por Hume, que entendeu por I. "todas as nossas sensações, paixões e emoções, em sua primeira
aparição na alma" (Treatise, 1,1,1). E distinguiu as I. das idéias, que são cópias empalidecidas delas (Ibid., I, 1, 2).
IMPRÓPRIO, SÍMBOLO. V. SINCATEGOREMÁTICO.
IMPULSÃO. V. INÉRCIA.
IMPULSO (in. Impulse, Urge-, fr. Impulsion-, ai. Impuls; it. Impulso). Incitamento súbito, momentâneo e difícil de
controlar para determinada ação. Chama-se de "impulsivo" quem está sujeito a freqüentes ímpetos desse tipo. Esse
termo não deve ser confundido com "instinto" (v.) nem com "tendência", que corresponde ao termo tradicional
apetição (v.).
IMPUTABILIDADE (gr. odxía; lat. Impu-tatia, in. Imputability, fr. Imputabilitê, ai. Zu-rechenbarkeit; it.
Imputabilitã). Possibilidade de atribuir uma ação a um agente, como causador; é diferente da responsabilidade (v.).
INATISMO (in. Innatism; fr. Innatisme, ai. Nativismus; it. Innatismó). Doutrina segundo a qual no homem existem
conhecimentos ou princípios práticos inatos, ou seja, não adquiridos com a experiência ou pela experiência e
anteriores a ela. O modelo de todo I. é a doutrina platônica da anamnese (v.): "Como a alma é imortal e nasceu muitas
vezes e viu todas as coisas, tanto aqui como no Hades, nada há que ela não tenha aprendido: de modo que não espanta
o fato de que possa recordar, seja em relação à virtude, seja em relação a outras coisas, o que antes sabia" (Men., 81
c). Mas a forma com que o I. passou para a tradição filosófica foi dada pelos estóicos. Estes admitiam como critério
da verdade, ao lado da representação cataléptica, a antecipação, que é "a noção natural do universal" (DIÓG. L., VII, 54). Cícero assim expunha o
ponto de vista estói-co: "A Natureza deu-nos minúsculas centelhas, e nós, cedo estragados por maus costumes e por
falsas opiniões, apagamo-las todas, de tal modo que fazemos desaparecer a luz da natureza. Na verdade, em nossa
índole, são inatas as sementes da virtude, e se lhes fosse possível desenvolver-se, a própria natureza nos guiaria para
uma vida feliz" {Tusc, III, 1, 2). Essa espécie de I. vincula-se à teoria do instinto (v.), própria dos estóicos, que é
retomada por doutrinas cuja intenção é proteger da dúvida certas crenças fundamentais de natureza teórica ou prática.
Nesse sentido, o I. foi retomado pelo pla-tonismo renascentista, cuja continuação pode ser vista no platonismo inglês
do séc. XVII, contra cujas teses fundamentais se dirige a crítica do primeiro livro do Ensaio de Locke. O I. é depois
retomado na Inglaterra, no século seguinte pela escola escocesa do senso comum (v.), ou seja, por Reid e Dügald
Stewart. Mas já Descartes e Leibniz tinham dado ao I. um significado novo. Para Descartes algumas idéias são inatas
como "capacidade de pensar e de compreender as essências verdadeiras, imutáveis e eternas das coisas" (Méd., III;
Lettre à Mer-senne, 16-VI-1641, CEuvr., III, 383). E Leibniz, de modo semelhante, considerava inatas as verdades
que se revelam imediatamente como tais à luz natural, sem ter necessidade de outra verificação (Nouv. ess., I, 1, 21).
Neste sentido, o inatismo não era mais uma espécie de escultura que a alma traz consigo ao nascer, segundo a
imagem que Cícero empregara (De nat. deor., II, 4, 12). Ao velho adágio escolástico, "Nihilest in intellectu,
quodprius nonfuerit in sensu", Leibniz acrescentava a restrição "nisi ipse intellectus", entendendo dizer com isso que
a alma dispõe, por sua conta, de categorias como o ser, a substância, o uno, o mesmo, a causa, a percepção, o
raciocínio, etc, que os sentidos não poderiam fornecer-lhe (Nouv. ess. II, 1, § 2).
Não é grande a distância entre essa forma de inatismo e a doutrina kantiana (que, todavia, não se costuma designar
com esse termo), segundo a qual as formas a priori do conhecimento não derivam da experiência. O inatismo
pertence, hoje, ao número das doutrinas não mais discutidas, porque já não são mais discutidos os problemas cujas
soluções elas consti-
CO
549
INCONCEPTIBILIDADE
. Na filosofia moderna, quando se admialguma coisa precede a experiência (como
, p. ex., o idealismo hegeliano), esse algo
é um complexo de idéias ou de virtualidades,
toda a razão ou todo o espírito (cf. A PRIORI).
íJNAirrÊNUCO. V. AUTÊNTICO.
t INCEPTTVA, PROPOSIÇÃO (fr. Proposition
tive ou désistivé). A Lógica de Port-Royal
ninou assim a proposição que afirma que
! coisa começou a ser ou deixou de ser; p.
"A língua latina deixou de ser vulgar na
ia há muitos séculos." (ARNAULD, Lóg., II,
4).
INCLINAÇÃO. V. TENDÊNCIA. & INCLUSÃO (in. Inclusion; fr. Inclusion; ai. 0nschliessung; it. Inclusioné). Na
Lógica das es, a relação de I. entre duas classes a e p" .^Símbolo "a z> P") subsiste quando todos os 'elementos da
classe a pertencem também à P, mas não necessariamente o inverso fy I. é reflexiva e transitiva, mas não simétri-:
•$»). À relação de I. corresponde a relação de ; jtynplicação entre os conceitos-classe correspondentes. P. ex., a classe
homem está incluída na «lasse mortal porque todos os homens são 'ioortais.
G. P.
INCOERÊNCIA. V. COERÊNCIA. INCOGNOSCÍVEL (in. Unknowable, In-cognizable; fr. Inconnaissable; ai.
Unerkennbar; it. Incognoscibile). Termo empregado por Hamilton para designar o Absoluto ou Infinito, considerado
além de qualquer possibilidade de conhecimento e objeto somente de fé. "Pensar é condicionar" — dizia Hamilton
(Discussions on Philosophy, 1852, p. 13) — "e a limitação condicional é lei fundamental das possibilidades do
pensamento... O absoluto só é concebí-vel como negação da conceptibilidade". Contudo, a esfera da crença é mais
ampla que a do conhecimento: assim, conquanto não se possa conhecer o Infinito, pode-se e deve-se crer nele.
(LecturesonMetaph., II, pp. 530-31). Essa noção foi retomada por Spencer, que também afirmou a incognoscibilidade
do absoluto e, ao mesmo tempo, a necessidade de admiti-lo para tomar possível o relativo (First Principies, 1862, S
26). A noção do I. tornou-se então correlativa de agnosticismo (v.) e, assim como esta última, foi estendida até
designar a doutrina de Kant da coisa em si e da sua incognoscibilidade. Kant todavia não admitia a inconceptibilidade da coisa em si, como fazia Hamilton relativamente ao Absoluto, assim como não admitia aquela espécie de correspondência hipotética entre o I. e o fenômeno que Spencer denominava realismo
transfigurado (Ibid., § 50). O conceito de I. nunca ultrapassou os limites do positivismo evolucionista de cunho spenceriano (v. COISA EM SI).
INCOMPATIBILIDADE. V. COMPATIBILIDADE.
INCOMPLETO, SÍMBOLO (in. Incomplete symbot). Em lógica matemática dá-se esse nome ao símbolo que não tem
significado próprio, mas só num contexto, para cujo significado por sua vez contribui.
INCOMPLEXUM. V. COMPLEXO.
INCONCEPTIBILIDADE (in. Inconceiva-bility, fr. Inconcevabilité, ai. Unbegreiflichkeit; it. Inconcepibilitã). O
critério cartesiano de aceitar como verdadeiro tudo o que é evidente para a razão tem como correlativo negativo o
critério de rejeitar o que não parece evidente para a razão ou o que, em geral, é incompatível com a razão. Esse é
propriamente o critério das inconceptibilidades. Foi utilizado sobretudo por Leibniz, que o defendeu explicitamente:
"Em verdade reconheço que não é lícito negar o que não se entende, mas acrescento que se tem o direito de negar
(pelo menos na ordem natural) aquilo que não é absolutamente inteligível nem explicável... A concepção das criaturas
não é a medida do poder de Deus, mas a conceptibilidade ou força de concepção delas é a medida do poder da
natureza, pois que tudo o que se conforma à ordem natural pode ser concebido ou entendido por alguma criatura"
(Nouv. ess., Avant-Propos., Op., ed. Erdmann, p. 202). Em outros termos, pode-se admitir ser real na natureza aquilo
que não se entende (que não se saiba explicar), mas não o que é inconcebível, ou seja, "incompatível com a razão".
Mas Leibniz não explicou o que deve ser entendido por incompatibilidade com a razão, o que tampouco fizeram
todos os (muitíssimos) que se referiram a esse critério; a primeira crítica a esse critério encontra-se em Lógica de
Stuart MUI, com referência ao emprego que dele fizeram Hamilton (Lectures on Metaphysics and Logic, 1859-60) e
Spencer (Principies of ■ Psychology, 1855). Stuart Mill notava como os antípodas eram declarados impossíveis pelos
antigos, que achavam inconcebível que existissem pessoas cuja cabeça estivesse na direção dos nossos pés, e que um
dos argumentos mais difundidos contra o sistema copernicano havia sido a I. do imenso espaço vazio que aquele
INCONDICIONADO
550
INCONSCIENTE
sistema pressupunha (Lóg., V, 3, § 3; cf. II, 5, § 6; 7, §§ 1-3).
Realmente, a incompatibilidade com a razão, que é a definição de I., não pode ter outro significado exato senão o de
incompatibilidade com o sistema de crenças a que se faz referência. Obviamente semelhante incompatibilidade não
pode valer como critério de juízo para a fidedignidade de uma noção qualquer. Se porém por I. se entende a
contraditoriedade (como por vezes acontece), é preciso lembrar que o juízo sobre a contraditoriedade ou não de duas
asserções deve referir-se a um campo determinado, no qual estejam implícita ou explicitamente definidas as regras da
coerência ou da compatibilidade. Pode acontecer, p. ex., que não seja contraditório em física aquilo que seria
contraditório em matemática ou vice-versa; p. ex., a física não julga contraditório conceber os fenômenos
eletromagnéticos ao mesmo tempo como corpusculares e como ondulatórios. Mas para estes significados restritos e
específicos de contraditoriedade, a palavra I., em seu significado absoluto, é totalmente imprópria. Portanto, a
filosofia contemporânea deixou de usá-la, não insistindo mais na antítese racional-inconcebível, mas na antítese
significância-in-significância (v. SIGNIFICADO).
INCONDICIONADO (in. Unconditioned; fr. Inconditionné, ai. Unbedingt; it. Incondizio-nató). Hamilton
(Discussions on Philosophy, 1852) e Mansel (The Philosophy of the Con-ditioned, 1866) denominaram I. o Infinito
ou o Absoluto, ou seja, Deus, porquanto escapa a todas as limitações do pensamento humano e por isso é
inconcebível.
Para o significado genérico do termo, v. CONDIÇÃO.
INCONSCIENTE (in. Unconscious, fr. Incons-cient; ai. Unbewusst; it. Inconsció). O ingresso dessa noção em
filosofia deve-se a Leibniz, que frisou a importância das "percepções insensíveis" ou "pequenas percepções", de que
não se toma ciência e sobre as quais não se reflete. Para Leibniz, são essas percepções que "formam o não-sei-quê, os
gostos, as imagens das qualidades sensíveis, claras no conjunto mas confusas nos detalhes, as impressões que os
corpos que nos rodeiam exercem sobre nós e que envolvem o infinito, os vínculos que cada ser tem com o restante do
universo" (Nouv. ess., Avant-propos, op., ed. Erdmann, p. 197). A existência dessa zona inconsciente tornou-se lugarcomum na escola wolffiana (cf.
WOLFF, Psychol. rationalis, §§ 58 ss.) e foi admitida por Kant, que respondeu à objeção de Locke de que não se pode
ter representações das quais não se tenha consciência, porque as ter significa exatamente estar consciente delas (Ens.,
I, 1, 5), afirmando que "podemos estar conscientes mediatamente de uma representação da qual não estejamos
conscientes imediatamente' (Antr., § 5). Mas foi só com Schelling que o I. tornou-se elemento fundamental das
concepções metafísicas, ou seja, um dos aspectos essenciais do Absoluto como Identidade entre natureza e espírito
(entre I. e consciência). "Esse eterno I.", dizia Schelling, "que, como o sol eterno do reino dos espíritos, esconde-se
em sua própria luz serena e, apesar de nunca se tornar objeto, imprime sua identidade às ações livres, é o mesmo para
toda a inteligência e é ao mesmo tempo a raiz invisível de que todas as inteligências são apenas potências; é o eterno
intermediário entre o subjetivo, que se autodetermina em nós, e o objetivo ou intuinte e é o fundamento da
uniformidade na liberdade e da liberdade na uniformidade objetiva" (System der transzendentalen Idealismus, IV, F;
trad. it., p. 280). Ainda mais radicalmente, Scho-penhauer considerava I. a vontade que constitui o númeno do
mundo: "A vontade considerada em si mesma é I.: é um impulso cego e irresistível o qual vemos aparecer na natureza
inorgânica e vegetal, bem como na parte vegetativa da nossa vida" (Die Welt, I, § 54). E como síntese do Espírito
Absoluto de Hegel, da Vontade de Schopenhauer e do I. de Schelling, Edward Hartmann apresentava o princípio de
sua filosofia: um princípio que ele denominava precisamente I. e do qual o espírito e a matéria teriam sido duas
diferentes manifestações (Phi-losophiedes Unbewussten, 1869). Pode-se considerar que a filosofia de Bergson
pertence a essa mesma linha; ele defendia o I. ao observar que a repugnância em conceber estados psicológicos
inconscientes vem do fato de se considerar a consciência como propriedade essencial dos estados psíquicos. "Mas" —
observava ele — "se a consciência é somente o sinal característico do presente, daquilo que está sendo vivido,
daquilo que está agindo, então o que não está agindo poderá deixar de pertencer à consciência sem deixar
necessariamente de existir de qualquer modo" (Matière et mémoire, cap. III, p. 147). Para Bergson, o I. assim
entendido identifica-se com a recordação pura, ou
NTE
551
INDEMONSTRÁVEL
a corrente da consciência que é o próprio iritaJ.
enquanto o I. era assim utilizado pela sica e enquanto a psicologia o admitia, a contragosto, como um dado de fato,
ateúdo era completamente renovado por que apresentava as duas teses fundada psicanálise da seguinte forma: "A
dessas premissas é que os processos icos são em si mesmos inconscientes e «s processos conscientes são apenas atos
s, frações da vida psíquica total." A se-proposição que a psicanálise proclama uma de suas descobertas é a afirmação
"tendências que podem ser classifica-' apenas como sexuais, em sentido estrito ilo da palavra, agem como causas
deter-ites de doenças nervosas ou psíquicas e ; essas emoções sexuais desempenham pa-! importante nas criações do
espírito humanos campos da cultura, da arte e da vida 1" (Einführung in die Psychoanalyse, 1917, ., trad. fr., pp. 3233). Desta forma, na psi-lise o I. deixava de ter o caráter indeter-ado ou amorfo que tivera até aquele mo-tfpnto nas
interpretações dos filósofos e dos í|jtfc61ogos, para adquirir um conteúdo preciso •.^identificar-se com as tendências
sexuais inibi-s, negadas, camufladas ou ocultas. O grande Jweesso inicial da psicanálise e a importância (científica de
que ela se revestiu no mundo con-, tçmporâneo (v. PSICANÁLISE) relegaram para se-gjmdo plano a dificuldade teórica
associada ao próprio reconhecimento da existência do inconsciente. Obviamente, a objeção de Locke, tantas vezes
repetida, de que "existir", para um estado mental, significa "ser percebido" ou "ser objeto de consciência", e que
portanto um estado mental inconsciente é uma contradição em seus próprios termos, deixou de ter valor. Um estado
mental (p. ex. uma emoção, uma tendência, uma volição) pode "existir" mesmo sem ser "percebido", no sentido de
que oportunamente pode ser evidenciado e reconhecido, com procedimentos apropriados (que são os empregados
pela psicanálise), como condição de uma situação psíquica normal ou patológica. O próprio Freud insistiu na noção
de sintoma: "Um sintoma forma-se para substituir alguma coisa que não conseguiu manifestar-se exteriormente.
Certos processos psíquicos, não podendo desenvolver-se normalmente, e chegar até a consciência, dão origem a um
sintoma neurótico" (Ibid., trad. fr., p. 303). Portanto, o I.
existe em primeiro lugar como sintoma. Trata-se da mesma solução teórica que Kant vira ao dizer que o I., mesmo
não sendo percebido imediatamente, pode ser percebido mediata-mente, mas esta solução teórica foi bem melhorada,
pois em Freud o L, como sintoma, nem precisa ser "percebido": é um fato que a observação clínica pode constatar.
INCONSEQÜÊNCIA (in. Inconsistency; fr. Inconséquence, ai. Folgewidrigkeit.; it. Incon-seguenzd). Ausência de
compatibilidade (v.) das proposições que constituem um sistema simbólico. P. ex., um conjunto de proposições é
inconseqüente quando implica uma contradição, quando dele deriva formalmente certa proposição p ou a negação de
p. Em geral, pode-se dizer que a I. de um sistema qualquer é a possibilidade de contradição no próprio sistema.
INCONSISTÊNCIA. V. COMPATIBILIDADE.
INDAGAÇÃO. V. INVESTIGAÇÃO.
INDEFINIDO (in. Indefinite; fr. Indéfini; ai. Unbegrenzi; it. Indefinitó). Aquilo que não tem limite no espaço ou no
tempo, que portanto é infinito no sentido negativo do termo. Este pelo menos é o significado da palavra estabelecido
por Descartes, que assim fazia a distinção entre a indefinição das coisas e a infinidade de Deus, que "não tem limites
em suas perfei-ções" e é por isso o único ser infinito (Princ. phil., I, 27; IRésp., § X). Portanto, essa palavra eqüivale
a ilimitado (v.), mas não é usada com o sentido de "não definido", ou seja, não expresso por uma definição.
INDEMONSTRÁVEL (in. Undemonstrable, fr. Indémontrable, ai. Unenveislictí). it. Indimos-trabile). Aquilo que
não necessita de demonstração porque sua verdade é evidente. Neste sentido, são I. os primeiros princípios da lógica
de Aristóteles (v. AXIOMAS) e os anapodíticos dos estóicos (v. ANAPODÍTICO).
2. As proposições primitivas ou em geral os antecedentes de um sistema simbólico qualquer que sirvam de
fundamento das regras de demonstração próprias do sistema. Neste sentido, são indemonstráveis os axiomas, as
definições e as regras de transformação de todo sistema simbólico.
3. As proposições indecidíveis, isto é, as proposições que não podem ser consideradas verdadeiras ou falsas em dado
sistema simbólico, mas que podem ser decididas num sistema mais amplo, onde porém se apresentam com outra
forma. Neste sentido, são indemonstrá-
INDEPENDENTE
552
INDETERMINISMO
veis as proposições que constituem as antinomias lógicas (v.); é I. a não-contradição em matemática e em geral dos
sistemas simbólicos
(v. ANTINOMIA; MATEMÁTICA; SISTEMA).
4. Toda crença ou pretensão que não possa ser apoiada por provas. Este é o significado mais geral e indeterminado
com que esse termo é usado freqüentemente na linguagem comum. Assim, denominam-se I. certas crenças religiosas,
bem como a pretensão de crédito não apoiada em documentos ou testemunhas. Asserções concernentes a fatos muitas
vezes são declaradas I. pela mesma razão.
INDEPENDENTE (in. Independent; fr. Independam-, ai. Unabhãngig; it. Indipendenté). Aquilo cujo ser, cuja
validade ou cuja capacidade de ação não derivem de outro. Assim, diz-se que um homem ou um Estado é I. quando
sua vida ou sua conduta não depende da vida ou da conduta de outro homem ou de outro Estado. Diz-se que um
acontecimento é I. de outro quando não mantém relação de causalidade com ele. Uma proposição qualquer é I. de
uma outra proposição ou de um sistema de proposições se entre eles não houver relação de derivação.
A determinação dos axiomas de um sistema simbólico tem como requisito a independência recíproca. De fato, seria
inútil aceitar como axioma uma proposição que pudesse ser derivada dos outros axiomas do sistema (v. AXIOMA).
INDETERMINAÇÃO (in. Indetermination; fr. Indetermination; ai. Unbestimmtheit; it. In-determinazioné). 1.
Ausência da determinação lógica (v. DETERMINAÇÃO). Às vezes, o mesmo que indecisão (v. VAGO).
2. Ausência da determinação causai (v. INDETERMINISMO).
INDETERMINAÇÃO, RELAÇÕES DE (in. Uncertainty relations; fr. Relations dHndéter-mination; ai.
Unbestimmtheitsrelationen-, it. Relazioni di indeterminazione). Em física subatômica essa expressão ou a expressão
"princípio de I." designa desde 1927 o reconhecimento da ação recíproca entre o objeto e o observador, portanto a
perturbação que a observação produz sobre o objeto observado. Foi Heisenberg quem mostrou esse aspecto essencial
da física quântica, expressando-o assim: "Nas teorias clássicas a interação entre o objeto e o observador era
considerada desprezível ou controlável, de tal modo que se poderia eliminar a influência por meio de cálculos. Na física atômica, essa admissão não é possível porque, em vista da
descontinuidade dos acontecimentos atômicos, qualquer interação pode produzir variações parcialmente
incontroláveis e relativamente grandes. Essa circunstância tem como conseqüência o fato de que, em geral, as
experiências realizadas com o fim de determinar uma grandeza física tornam ilusório o conhecimento de outras
grandezas obtidas antes; na verdade, influenciam de maneira incontro-lável o sistema sobre o qual se opera, portanto
os valores das grandezas anteriormente conhecidas são por elas alterados. Se tratarmos essa perturbação de modo
quantitativo, veremos que em muitos casos o conhecimento simultâneo de diversas variáveis tem um limite de
exatidão finito, que não pode ser ultrapassado" (Die physikalischen Prinzipien der Quanten-theorie, 1930, I, § 1).
Quanto à influência que a descoberta das relações de I. exerceu no campo científico-filosófico, v. CAUSALIDADE;
CONDIÇÃO).
INDETERMINADO. V. DETERMINAÇÃO.
INDETERMINISMO (in. Indeterminism; fr. Indéterminisme, ai. Indeterminismus-, it. Inde-terminismò). Termo
introduzido na linguagem filosófica na segunda metade do séc. XVIII para designar a doutrina que nega o
determinismo dos motivos, ou seja, a determinação da vontade humana por parte dos motivos (v. DETERMINISMO).
Leibniz dizia: "Quando se afirma que um acontecimento livre não pode ser previsto, confunde-se liberdade com
indeterminação ou com indiferença plena ou de equilíbrio; e quando se quer dizer que a falta de liberdade impediria
que o homem fosse culpado, faz-se referência a uma liberdade destituída de necessidade e de coação, e não de
determinação ou certeza" {Théod., III, 369). Kant afirmava: "Não há dificuldade em conciliar o conceito de liberdade
com a idéia de Deus como ser necessário, porque a liberdade não consiste na contingência da ação (no fato de a ação
não ser determinada por nenhum motivo, ou seja, no I.), mas na absoluta espontaneidade que só é ameaçada pelo
predeterminismo, uma vez que para ele o motivo determinante da ação é antecedente no tempo; portanto, a ação não
está mais atualmente em meu poder, mas nas mãos da natureza e, por esse motivo, sou irresistivel-mente
determinado" (Religion, I. Observação Geral, Nota). OI. compreendido nesse sentido, como negação do determinismo
dos moti-
ÍNDICE
553
INDIVIDUAÇÃO
vos, é uma das características do espiritualismo francês (Ravaisson, Lachelier, Boutroux, Ha-meiin, Bergson etc.
Compare A. LEVI, Vindeter-minismo nella filosofia francese contemporânea, Firenze, 1904) (V. LIBERDADE).
ÍNDICE (in. Index). Termo usado por Peir-ce para indicar a relação objetiva (não mental) entre o signo e seu objeto.
índices neste sentido são todos os signos naturais e os sintomas físicos. "Chamo de I. um desses signos" — diz Peirce
— "porque um I. designado é o tipo de uma classe" (Coll. Pap., 3-361).
INDIFERENÇA, LIBERDADE DE. V LIBERDADE.
INDIFERENÇA, PRINCÍPIO DE (in. Principie of indifference, fr. Príncipe dHndifférence, ai. Indifferenzprinzip;
it. Principio di indiffe-renzd). Com este nome ou com os nomes de "princípio de equiprobabilidade" ou "princípio de
nenhuma razão em contrário" indica-se o enunciado de que os acontecimentos têm a mesma probabilidade quando
não há razão para se presumir que um dele deva acontecer preferivelmente ao outro. Esse princípio foi exposto em
Essai philosophi-que sur les probabilités (1814) de Laplace como segundo princípio do cálculo das probabilidades
(cap. 2); fundamenta a teoria a priori da probabilidade, que procura definir a probabilidade independentemente da
freqüência dos acontecimentos aos quais se refere. Esse princípio foi abandonado por algumas teorias modernas sobre
a probabilidade (LE-WIS, Analysis of Knowledge, 1946, cap. X; REI-CHENBACH, Theory ofProbability, 1949, § 68)
(v. PROBABILIDADE).
INDIFERENTES. V. ADIÁFORA. INDISCERNÍVEIS. V. IDENTIDADE DOS. INDISTINTO. Termo usado por
Ardigó para definir a evolução, em substituição a "homogêneo", de Spencer. A evolução seria a passagem do I. ao
distinto: termos extraídos da experiência psíquica, enquanto os de Spencer foram extraídos da biologia (ARDIGÓ,
Opere, II, pp. 189 e passim).
INDIVIDUAÇÃO (lat. Individuatio; in. In-dividuation; fr. Individuation; ai. Individuation; it. Individuazionè).
Problema da constituição da individualidade a partir de uma substância ou natureza comum: p. ex., constituição deste
homem ou deste animal a partir da substância "homem" ou substância "animal". O primeiro a formular esse problema
foi Avi-cenna (v. ÁRABE, FILOSOFIA), por quem foi transmitido à Escolástica cristã. O pressuposto de
origem é o princípio da necessidade da substância, que Avicenna expressa dizendo: "Tudo o que é tem uma
substância graças à qual é o que é e graças à qual é a necessidade e o ser daquilo que é" {Lógica, I. ed. Veneza, 1508,
fl. 3) (v.). Com base nesse princípio, "o animal é em si alguma coisa e é a mesma coisa, quer seja percebido, quer seja
apreendido pelo intelecto; e em si não é nem universal nem particular" (Ibid., III. fl. 12 r.). Mas se é assim, o que o
torna individual, o que faz da substância "animal" este ou aquele animal? Segundo Avicenna, esse é o problema da
individuação. E Avicenna encontrava em Aristóteles a resposta ao problema: a individualidade depende da matéria.
Aristóteles de fato dissera: "Todas as coisas que são numericamente muitas têm matéria, visto que o conceito dessas
coisas, como p. ex. homem, é uno e idêntico para todas, ao passo que Sócrates (que tem matéria) é único" (Met., XII,
8, 1074 a 33). Essa solução é aceita por Avicena (In Met., XI, 1) e, através deste, por Alberto Magno (In Met., III, 3,
10) e por muitos outros escolásticos. S. Tomás apresentou uma variante dessa solução ao afirmar que o princípio de I.
não é a matéria comum (já que todos os homens têm carne e rosto e portanto não se diversificam nisso), mas a matéria
signata ou, como ele diz, "a matéria considerada sob determinadas dimensões" (De ente et essentia, 2). Em outros
termos, um homem é diferente de outro porque unido a determinado corpo, diferente pelas dimensões, ou seja, por
sua situação no espaço e no tempo, dos corpos dos demais homens (S. Th., III, q. 77, a. 2). Esse mesmo tipo de
solução é reproduzido na Idade Moderna por Schopenhauer, que, considerando a vontade como a substância única e
comum de todos os seres, viu o princípio da I. no espaço e no tempo: "De fato, por meio do espaço e do tempo, aquilo
que é uno na essência e no conceito mostra-se diversificado, como pluralidade justaposta e sucessiva" (Die Welt, I,
§23).
Por outro lado, a corrente agostiniana da escolástica foi levada a reconhecer o princípio da I. na forma das coisas,
mais que na matéria. Boaventura julgava que a forma é a essência que restringe e define a matéria em determinado
ser, e situava o princípio da I. na comunicação (communicatió) entre a matéria e a forma, porquanto o indivíduo é um
hoc aliquid, em que o hoc é constituído pela matéria e o aliquid pela forma (In Sent., III, d, 10, a 1, q. 3).
INDIVIDUAÇÃO
554
INDIVIDUALISMO
Ao mesmo tipo de soluções pertence a interpretação que muitos discípulos de Duns Scot deram à haecceitas
[ecceidade] como de uma forma final que completa e integra uma série de formas constitutivas do objeto natural (cf.
HERVEUS NATALIS, Depluralitateformaram, 5).
Finalmente, uma terceira solução do problema é autenticamente escotista. Duns Scot nega que a matéria ou a forma
possam valer como princípios de individuaçâo. A matéria, que é o sujeito indistinto, não pode ser o princípio da
distinção e da diversidade {Op. Ox., II, d. 3, q. 5, n. 1). A forma é a própria substância ou natureza comum, que é
antecedente (e indiferente) tanto à universalidade quanto à individualidade. A individualidade consiste numa "última
realidade do ente" que determina e restringe a natureza comum à individualidade, ad esse bane rem. Esta última
realidade ou, como ele também chama, "entidade positiva" {Ibid., II, d. 3, q. 2) é a determinação última e acabada da
matéria, da forma e do composto delas. Desse ponto de vista, o indivíduo não é caracterizado pela simplicidade de
sua constituição, mas pela complexidade e riqueza de suas determinações.
Como já dissemos, o problema da I. nasce do caráter privilegiado atribuído à substância comum, que existiria de
qualquer maneira antes e independentemente dos indivíduos. Portanto, desaparece quando se nega o caráter
privilegiado da substância comum, o que acontece com o nominalismo empirista da última escolástica. Ockham
reconhece na substância comum uma forma do universal e o comprometimento na negação resoluta de toda realidade
universal: "Nada que esteja fora da alma, nem por si, nem por algo real ou mental que se lhe acrescente, seja de que
forma se considere ou compreenda, é universal, pois é tão grande a impossibilidade de que algo fora da alma seja de
qualquer maneira universal (a não ser por convenção arbitrária, do mesmo modo como a palavra 'homem', que é
particular, se torna universal) quão grande é a impossibilidade de que o homem, por qualquer consideração ou
segundo qualquer ser, seja o asno" {In Sent., I, d. 2, q. 7, S-T). Desse ponto de vista o problema da I. desaparece.
Ockham diz ainda: "Deve-se ter em mente, sem sombra de dúvida, que qualquer coisa existente imaginável, por si,
sem que nada lhe seja acrescentado, é uma coisa singular e uma coisa de número: pois nada que se imagine é singular
devido a alguma
coisa que se lhe acrescente, mas a singularidade é uma propriedade que pertence imediatamente a tudo, porque cada
coisa é, por si, idêntica ou diferente de outra" {Expositio áurea, liberpredicabilium, Proemium). Quando, numa de
suas primeiras obras, Leibniz afirmou que "cada indivíduo é individualizado por sua entidade total", só fazia
expressar em termos escotistas a mesma posição de Ockham, como ele mesmo reconhecia. {De principio individui,
1663, § 4), pois a entidade total não passa da coisa existente enquanto tal. A mesma negação implícita do problema
da individuaçâo pode ser vista na solução aparente dada por Wolff: "O princípio da I. é a determinação completa de
todas as coisas inerentes a um ente em ato" {Ont., § 229). Por outro lado, Locke dissera: "Do que se disse é fácil
descobrir o que é principium individuationis, sobre o qual tanto se indagou; está claro que ele é a própria existência,
que determina um ser de qualquer espécie, num tempo particular e num lugar particular, incomunicáveis a dois seres
da mesma espécie" {An Essay Concerning Human Understanding, II, 27, 4).
Estas supostas "soluções" na realidade são negações do problema, que desaparece completamente (salvo raras
exceções) da filosofia moderna, devido à dissolução do seu pressuposto: a prioridade ontológica da substância
comum.
INDIVIDUAL, PSICOLOGIA. V. PSICOLOGIA, e).
INDIVIDUALIDADE (lat. Individualitas; in. Individuality, fr. Individualité, ai. Individualüüt; it. Individualitcí).
Termo de origem medieval: o modo de ser do indivíduo.
INDIVIDUALISMO (in. Individualism; fr. Individualisme; ai. Individualismus; it. Individualismo). Toda doutrina
moral ou política que atribua ao indivíduo humano um preponderante valor de fim em relação às comunidades de que
faz parte. O extremo desta doutrina é, obviamente, a tese de que o indivíduo tem valor infinito, e a comunidade tem
valor nulo; essa é a tese do anarquismo (v.). Contudo o termo I. é habitualmente utilizado na acepção mais moderada,
sendo, nesse sentido, o fundamento teórico assumido pelo liberalismo assim que surgiu no mundo moderno. É de fato
o pressuposto comum do jusnaturalismo, do contratualismo, do liberalismo econômico e da luta contra o Estado, que
constituem os as-
fttDIVIDUALISMO
555
INDIVTOUO
ipectos fundamentais da primeira fase do libe-mtlismo (v.).
ti" l9 O jusnaturalismo consiste em atribuir ao .Indivíduo direitos originários e inalienáveis que . 4de conserva,
mesmo que de maneira diferente •'■•• Hmitada, em todos os corpos sociais de que faz parte (v. JUSNATURALISMO).
*"• 2a O contratualismo consiste em considerar <pie a sociedade humana e o Estado são resul. luites de convenção entre os indivíduos; na
■ ftiade Moderna a partir de Vindiciae contra
tyrannos (1579) dos calvinistas de Genebra,
' üsa doutrina foi freqüentemente usada como Éegação do absolutismo estatal ou como instru-«Knto para limitá-lo
(v. CONTRATUALISMO).
3a O liberalismo econômico, próprio dos feiocratas e da escola clássica de economia •política, é a luta contra a
ingerência do Estado
• »os assuntos econômicos e a reivindicação da
r Iniciativa econômica para o indivíduo. Este é um aspecto característico do liberalismo indivi■• dualista (v. ECONOMIA; LIBERALISMO).
■
4° A luta contra o Estado e a tendência a
, «Stabelecer limites à sua ação é o caráter global do individualismo. Neste sentido, um dos mais lignificativos
documentos do liberalismo moderno é a obra de SPENCER, O homem contra o &stado{1884), na qual se combate a
ingerência do Estado (portanto também do Parlamento) até no campo da saúde e do ensino público, além do campo
econômico.
O postulado subjacente a todos estes diferentes aspectos do I. é a coincidência entre o interesse do indivíduo e o
interesse comum ou coletivo. A ordem natural que, em Riqueza das nações (1776), Adam Smith considerava
característica dos fatos econômicos, servia como garantia dessa coincidência. Nisso também acreditavam Benthan e
James Mill. Quando foram observadas as anomalias da ordem econômica e se reconheceu que a simples limitação
dos poderes do Estado não elimina essas anomalias, nem a desordem ou as desigualdades sociais, essa crença
começou a ficar abalada, a fase individualista do liberalismo chegou ao fim e teve início a fase que recorria à ação do
Estado e tendia a exaltar seu papel. Esse novo ponto de vista tachou o I. de "atomismo" porque pretendia que a
sociedade nascesse de um conjunto de átomos sociais, os indivíduos; de "anarquismo" porque pretendia que o
indivíduo não se submetesse à ação do Estado; de "egoísmo" porque desejava que as atividades
econômicas se desenvolvessem segundo as diretrizes do interesse privado. Desse modo, porém, eram negligenciados os motivos históricos que haviam provocado
o surgimento da corrente individualista no liberalismo, preparando-se assim, inadvertidamente, o caminho para novas
vitórias do absolutismo estatal.
INDIVÍDUO (gr. õrtouov; lat. Individuum, in. Individual; fr. Individu; ai. Individuum; it. Indivíduo). Em sentido
físico: o indivisível, o que não pode ser mais reduzido pelo procedimento de análise. Em sentido lógico: o que não
pode servir de predicado. Para Aristóteles, o I., no primeiro sentido, é a espécie, porquanto, sendo resultado da
divisão do gênero, não pode ser dividida (An.post., II, 13, 96b 15; Met., V, 10,1018 b 5). À determinação da
indivisibili-dade os lógicos do séc. V acrescentaram a impossibilidade de servir de predicado. Boécio diz: "Chama-se
de I. aquilo que não pode ser dividido por nada, assim como a unidade ou a mente, ou o que não pode ser dividido
devido à sua solidez, como o diamante; ou o que não pode servir de predicado a outras coisas semelhantes, como
Sócrates" ÇAd Isag., II em P. L, 64, col. 97). Esse reparo tornou-se fundamental na lógica medieval, que o utilizou
para definir o I.: "I. é aquilo de que se diz uma única coisa, como Sócrates e Platão" (Pedro Hispano, Summ. log.,
209). S. Tomás fala de um I. vago (vagum), que corresponde à individualidade da espécie e de um I. único: "O I.
vago, p. ex. o homem, significa uma natureza comum com determinado modo de ser que compete às coisas
singulares, que subsistem por si e são distintas das demais. Mas o I. único significa algo determinado que distingue;
assim, o nome Sócrates significa este corpo e este rosto" (S. Th., I, q. 30; a. 4). OI. vago obviamente é apenas a
unidade só numericamente distinguível de outras unidades. Era assim definido por Duns Scot: "Chama-se de I., ou
seja, o que é numericamente uno, aquilo que não é divisível em muitas coisas e se distingue numericamente de
qualquer outra" Un Met., VII, q. 13, n. 17).
Contudo, em Duns Scot mesmo encontram-se as premissas de um conceito diferente de indivíduo: este, em seu modo
de ser, em sua singularidade, é caracterizado por uma determinação última ou "realidade última" da natureza que o
constitui (v. INDIVIDUAÇÃO), de tal forma que inclui um conjunto ilimitado de determinações, em virtude das quais a
natureza comum se restringe até se tornar este determi-
INDIVÍDUO
556
INDUÇÃO
nado ente. Desse ponto de vista, o I. não é caracterizado pela indivisibilidade, mas pela infinidade de suas
determinações. Esse conceito foi expresso claramente por Leibniz: "Embora possa parecer paradoxal, é impossível ter
conhecimento dos I. e encontrar o meio de determinar exatamente a individualidade de uma coisa, a menos que não
se a considere em si mesma. De fato, todas as circunstâncias podem repetir-se; as diferenças mínimas são
imperceptíveis; o lugar e o tempo, em vez de serem determinantes, precisam eles mesmos ser determinados pelas
coisas que contêm. O que existe de mais considerável nisto é que a individualidade envolve o infinito e que só quem
é capaz de compreendê-lo pode ter conhecimento do princípio de individuação desta ou daquela coisa; se
entendermos isso corretamente, veremos que se deve à influência que todas as coisas do universo exercem umas
sobre as outras. É verdade que não seria assim, se existissem os átomos de Demócrito, mas nesse caso não existiria
sequer diferença entre dois I. diferentes de mesmo aspecto e mesmas dimensões" (Nouv. ess., III, 3, § 6). O
pressuposto desta doutrina é que, na natureza, só existem I., ou seja, coisas singulares: pressuposto que, juntamente
com os outros pontos principais, foi expresso com toda a clareza por Wolff. Este começa por afirmar que o I. é
"aquilo que percebemos com o sentido interno ou com o sentido externo ou o que podemos imaginar enquanto coisa
única" (Log., § 43), e continua definindo o I. como "o ente que é determinado sob todos os aspectos (ens omnimode
deter-minatum), no qual são determinadas todas as coisas que lhe são inerentes" (Ibid., § 74). Essa noção do I. como
o que é absoluta ou infinitamente determinado foi utilizada com freqüência pela metafísica moderna. Foi essa noção
que permitiu a Hegel (e a muitos que seguiram seu exemplo) falar de "I. universal" sem incidir numa contradição de
termos: "A tarefa de acompanhar o I. desse seu estado inculto até o saber devia ser entendida em seu sentido geral e
consistia em considerar o I. universal, o Espírito autoconsciente, em seu processo de formação. No que concerne à
relação desses dois modos de individualidade, no I. universal cada momento se mostra no ato em que ganha a forma
concreta e seu aspecto próprio. OI. particular é o espírito não acabado: uma figura concreta em tudo, cujo ser
determinado domina uma só determinação, estando as demais presentes apenas em escorço" (Phánomen. des Geistes, Pref, II, § 3; trad. it., p. 24). Do ponto de vista do conceito de I.
como infinidade de determinações, Hegel certamente podia falar de I. universal, pois uma infinidade de
determinações só pode ser atribuída a um I. absoluto ou infinito. Diante disso, como diz Hegel, o I. finito caracterizase por uma única determinação, estando as demais presentes apenas aces-soriamente. Bergson faz referência ao
mesmo conceito de I. quando afirma que "a individualidade comporta uma infinidade de graus e em parte alguma,
nem mesmo no homem, ela se realiza plenamente" (Évol. créatr., cap. I, ed. 1911, p. 13). Obviamente, esse conceito
de indivíduo leva ou a hipostasiar a individualidade de um I. absoluto, como fez Hegel, ou a declará-la inatingível,
como fez Bergson. Mas exatamente isso demonstra que se trata de um conceito inútil.
Na filosofia contemporânea, o I. (assim como a noção análoga de elemento [v.]) é definido em relação com as
exigências predominantes nos vários campos de indagação, ou melhor, em relação com as várias exigências
analíticas. No campo moral ou político o I. é a pessoa. No campo biológico, o I. pode ser, para certos fins, o
organismo; para outros, a célula. Mas foi sobretudo no campo das ciências históricas que a filosofia e a metodologia
contemporâneas utilizaram a noção de I. Windelband (Práludien, II, p. 145) e Rickert (Grenzen der
naturwissenschaftlichen Begriffs-bildung, p. 420) evidenciaram o caráter indi-vidualizante das ciências do espírito,
diante do caráter generalizante das ciências naturais. O conhecimento histórico visa a representar o I. em seu caráter
singular e irrepetível, ou seja, não como o caso particular de uma lei, mas como irredutível aos outros I. com os quais
está em conexão causai. O I., neste caso o evento histórico (fato, pessoa, instituição etc), tem duas características: a
singularidade e a não-repetibilidade (v. HISTÓRIA).
INDUÇÃO (gr. èrcaycoYií; lat. Inductio, in. Induction; fr. Induction; ai. Induktion; it. Indu-zioné). "A I. é o
procedimento que leva do particular ao universal": com esta definição de Aristóteles (Top., I, 12, 105 a 11)
concordaram todos os filósofos. O próprio Aristóteles vê na I. um dos dois caminhos pelos quais conseguimos formar
nossas crenças; a outra é a dedução (silogismo) (An. pr., II, 23, 68 b 30). Além disso, atribuiu a Sócrates o mérito de
ha-
INDUÇÃO
557
INDUÇÃO
ver descoberto os "raciocínios indutivos" (Met., Mu, 4,1078 b 28). Entre a I. e o silogismo, Aristóteles estabelece
todavia uma grande diferença de valor. No silogismo dedutivo ("Todos os homens são animais; todos os animais são
mortais; logo, todos os homens são mortais") o termo médio (animal) constitui a substância ou a razão de ser da
conexão necessária entre os dois extremos: os homens são mortais porque Sãosubstancialmente animais. No
raciocínio indutivo, entretanto ("O homem, o cavalo e o mulo «fio duradouros; o homem, o cavalo e o mulo são
animais sem fel; logo, os animais sem fel são duradouros"), o termo médio (ser sem fel) aparece na conclusão, o que
significa que ele não é um porquê substancial, mas um simples feto (An. pr., II, 23, 68 b 15). Portanto, a I. não lem
valor necessário ou demonstrativo, conquanto seja mais clara que o silogismo; seu âmbito de validade é o mesmo do
fato, ou seja, da totalidade dos casos em que sua validade foi efetivamente constatada. Pode, portanto, ser usada ' para
fins de exercício, em dialética, ou com objetivos persuasivos em retórica (Rhet., I, 2, 1356 b 13), mas não constitui
ciência porque a ciência é necessariamente demonstrativa (An. post., I, 2, 71 b 19). Na filosofia pós-aristotélica, os
epicuristas julgaram que a I. era o único procedimento de inferência legítima, enquanto os estóicos negaram esáe
valor. Em De signis, de Füodemo, encontramos um relato preciso da polêmica que esse assunto provocou entre as
duas escolas. Os estóicos diziam que não basta constatar que os homens que estão ao nosso redor são mortais para
dizer que em qualquer lugar os homens são mortais; seria necessário estabelecer que os homens são mortais
exatamente enquanto homens, para conferir necessidade a essa inferência (De signis, III, 35; IV, 10; DE LACY,
Philodemus on Metbods oflnfe-rence, 1941, p. 31). O problema da I. já se apresentava nessa dificuldade proposta
pelos estóicos. A eles os epicuristas objetavam que, desde que nada se oponha à conclusão, a generalização indutiva é
válida (Ibid., VI, 1-14; XK, 25-36; DE LACY, pp. 34, 66). Sexto Empírico só fazia reexpor de forma mais radical a
crítica dos estóicos, partindo da distinção entre I. completa e I. incompleta. "Uma vez que, partindo do particular,
desejam confirmar o universal por meio da I., farão isso percorrendo todos os particulares ou apenas alguns. Se
alguns somente, a I. será incerta, sendo possível que ao universal se oponha algum dos particulares
omitidos na indução. Se todos, estarão empreendendo um trabalho impossível, porque os particulares são infinitos e
ilimitados" (Pirr. hyp., II, 204). Fora Aristóteles quem afirmara que a I. era feita a partir de todos os casos
particulares possíveis (An. pr., II, 23, 68 b 29), enquanto os epicuristas haviam afirmado o valor da I. incompleta.
Bacon, portanto, só fez retomar a alternativa epicurista quando declarou pueril a I. completa ou per enumerationem
simplicem-. "Esta I. pode ser derrubada por qualquer instância contrária; além disso, considera sempre as mesmas
coisas e não atinge seu fim. Para as ciências, entretanto, é necessária uma forma de I. que escolha bem as experiências
e conclua necessariamente, após as devidas ex clusões e eliminações" (Nov. Org., Distrib. Op.). Esta forma de I., que
Bacon (embora com dúvidas) atribui a Platão (Ibid., 105), deve inverter a ordem da demonstração. Bacon diz.-"Até
agora era costume passar de chofre dos dados do sentido e das coisas particulares para as coisas gerais, como a pólos
fixos da disputa, inferindo depois todas as outras coisas destas, através das coisas intermédias. Esse é um atalho,
excessivamente íngreme, pelo qual nunca se encontra a natureza, mas apenas questões. Ao contrário, os axiomas
devem ser inferidos por graus sucessivos, chegando só no fim aos axiomas generalíssimos, que não são simples
noções mas fatos bem determinados, sendo tais que a natureza os reconhece realmente como seus e inerentes à
essência das coisas" (Ibid., Distrib. Op.). Em outros termos, para Bacon a certeza da I. consiste no fato de que, por
fim, a I. redunda na determinação da forma da coisa natural, entendendo-se por forma "a diferença verdadeira, a
natureza naturante ou fonte de emanação" que explique o processo latente e o esquematismo oculto dos corpos
(Ibid., II, 1). Nesse sentido, a forma não passa da "substância" aristotélica: princípio ou razão de ser da coisa.
Aristóteles achava que essa substância podia ser apreendida pelo procedimento silogístico, intuitivo-demonstrativo;
Bacon acha que ela pode ser apreendida pelo procedimento indutivo que selecione e organize as experiências.
Portanto, a verdadeira diferença entre Bacon e Aristóteles é que, para Bacon, a nova disciplina do procedimento
indutivo por ele proposta (disciplina que consiste na formação de tábuas que selecionem e classifiquem as
experiências e na instituição de experiências de verificação) permite atingir
INDUÇÃO
558
INDUÇÃO
com certeza a substância, de que, segundo Aristóteles, a I. só pode aproximar-se de maneira incerta ou imprecisa e
cuja necessidade só pode ser atingida pelo processo dedutivo. Graças a essa interpretação do procedimento empirista
nos termos da metafísica aristotélica, Bacon pôde atribuir à I. incompleta a mesma "necessidade" que Aristóteles
atribuía ao procedimento silogístico. Desse ponto de vista, o problema da I., nos termos formulados pela crítica dos
estóicos e de Sexto Empírico, nem sequer se apresentava. Por outro lado, o carte-sianismo não estava interessado em
propor o problema da I., vendo nela a mesma função preparatória e subordinada que Aristóteles lhe atribuíra. A
Lógica de Port-Royal diz: "A indução apenas nunca é um meio certo para se chegar à ciência perfeita porque a
consideração das coisas particulares é apenas uma oportunidade para o nosso espírito prestar atenção às suas idéias
naturais, segundo as quais julga sobre a verdade das coisas em geral. O que é verdade porque, p. ex., eu nunca teria
tomado em consideração a natureza do triângulo, se não houvesse visto um triângulo que me deu ensejo de pensar no
assunto; todavia não foi o exame particular desses triângulos que me levou a concluir de modo geral e certo que a
área de todos os triângulos é igual à área do retân-gulo construído sobre sua base dividida por dois (visto que este
exame é impossível), mas apenas a consideração do que está incluído na idéia de triângulo, que encontro no meu
espírito" (ARNAULD, Log., III, 19, § 9). Portanto, foi só depois que as ciências começaram a usar amplamente o
procedimento indutivo, como aconteceu na segunda metade do séc. XVII, que o problema da I. como problema da
validade do procedimento indutivo e do direito de usá-lo voltou a apresentar-se, sendo claramente exposto pela
dúvida cética de Hume: "Todas as inferências extraídas da experiência supõem, como fundamento, que o futuro se
assemelhará ao passado e que poderes semelhantes estarão unidos a qualidades sensíveis semelhantes. Se houvesse
alguma suspeita de que o curso da natureza pudesse mudar e de que o passado não servisse de regra para o futuro,
toda a experiência se tornaria inútil e não poderia dar origem a nenhuma inferência ou conclusão. É impossível,
portanto, que argumentos extraídos da experiência possam provar a semelhança entre o passado e o futuro, visto que
todos os argumentos desse tipo
fundam-se na suposição dessa semelhança. Mesmo se admitindo que o curso das coisas sempre regular foi, só isso,
sem nenhum argumento ou inferência nova, não prova que no futuro continuará assim" (Inq. Cone. Underst., IV, 2).
Foi nesses termos que se propôs com freqüência o problema da I. no mundo moderno. Foram-lhe dadas três soluções
fundamentais: Ia objetivista; 2a subjetivista; 3a pragmática. Esta última marca a passagem da concepção neces-sitarista
(pressuposta pelas outras duas) para a concepção probabilista da indução.
Ia A solução objetivista consiste em considerar a existência de uma uniformidade àa. natureza que admite a
generalização das experiências uniformes. Esta solução é muito antiga, tendo sido sustentada por Filodemo em sua
polêmica contra os estóicos: "Do fato de todos os homens que conhecemos serem semelhantes também no que se
refere à mortalidade, inferimos que todos os homens, universalmente, estão sujeitos à morte, visto que nada se opõe a
essa inferência ou nos mostra que os homens não são suscetíveis de morrer. Recorrendo a essa semelhança,
declaramos que, com relação à mortalidade, os homens que não conhecemos pessoalmente são semelhantes aos que
conhecemos por experiência". (De signis, XVI, 16-29; DE LACY, Ibid., pp. 58 ss.). Neste trecho, obviamente o direito
à inferência indutiva fundamenta-se na uniformidade revelada pelas semelhanças. De modo análogo, no fim da
Escolástica, Duns Scot e Ockham baseavam a I. no princípio de causalidade. Duns Scot dizia: "Das coisas conhecidas
por experiência digo que, embora não se tenha sempre experiência de todas as coisas particulares, mas apenas na
maioria das vezes, quem experimenta sabe infalivelmente que assim é, sempre e em todos os casos, com base na
seguinte proposição existente na alma: tudo o que deriva na maioria das vezes de uma causa não livre é o efeito
natural dessa causa" (Op. Ox., I, d. 3, q. 4, n. 9); nesse trecho, efeito natural significa efeito uniforme porque
necessário. Para Ockham, o fundamento da I. era o princípio: "Causas da mesma natureza (ratió) têm efeitos da
mesma natureza" (In Sent., Prol, q. 2 G), e essa mesma solução era proposta no séc. XIX por Stuart Mill. O
fundamento da I. é o princípio das uniformidades das leis naturais, e esse princípio é o mesmo de causalidade. Este,
por sua vez, não podendo ser reduzido a um instin-
INDUÇÃO
559
INDUÇÃO
to infalível do gênero humano ou a uma intuição imediata, só pode ser produto de indução. "Chegamos a essa lei
geral" — diz Stuart Mill — "através da generalização das muitas leis de generalidade inferior. Nunca teríamos
chegado à noção de causação (no significado filosófico do termo) como condição de todos os fenômenos, se muitos
casos de causação ou, em outras palavras, muitas uniformidades parciais de suces-i. são não se tivessem tornado
familiares antes. A mais óbvia das uniformidades particulares sugere e torna evidente a uniformidade geral, e a
uniformidade geral, uma vez estabelecida, permite-nos demonstrar as outras uniformidades ?' particulares das quais
resulta" {Logic, III, 21, ; j 2). A uniformidade da natureza, portanto, é j «ma simples I. per enumerationem simplicem.
Ocírculo vicioso é evidente, e nele incide qualquer solução análoga para esse problema.
21 A segunda solução do problema da I. é subjetivista ou crítica, encontrando-se no kan-tismo. Foi proposta pelo
próprio Kant como íesposta à dúvida de Hume sobre a possibilidade da generalização científica; consiste em «imitir a
uniformidade da estrutura categorial do intelecto e, por isso, da forma geral da natureza que dele depende. Kant diz:
"Toda percepção possível, portanto tudo aquilo que pode chegar à consciência empírica — isto é, todos os fenômenos
"da natureza quanto à sua unificação —, está sotoposta às categorias, das {juais depende a natureza, considerada sim; plesmente como natureza em geral, assim co-í mo ao princípio originário de sua necessária conformidade a leis
{qual natura formaliter spectatà). Mas nem a faculdade pura do intelecto chega a prescrever, apenas mediante
categorias, mais leis além daquelas sobre as quais repousa uma natureza em geral como regularidade dos fenômenos
no espaço e no tempo." Portanto, as leis particulares devem ser extraídas da experiência {Crít. da R. Pura, § 26). Isso
significa que, em sua conformidade às leis, em . sua uniformidade, a natureza depende das ca-í tegorias, ou seja, da
estrutura uniforme do intelecto, e que, portanto, a uniformidade ou leis que podem ser encontradas na experiência
estão garantidas pela uniformidade da forma comum (intelecto-natureza). Esta doutrina é simetricamente oposta à da
uniformidade natural, mas seu significado é o mesmo. Em Lacheli'er encontra-se uma transcrição em termos
espiritualistas da mesma tese fundamental {Fundamento da L, 1871): a possibilidade da I. apóia-se na organização finalista do universo, ou seja, no fato de que a ordem da natureza é
estabelecida pelo espírito {Fon-dement de 1'induction, Paris, 1907, p. 12). A este tipo de solução reduzem-se todas as
justificativas espiritualistas ou idealistas.
3a A justificação pragmática foi proposta na filosofia contemporânea quando se reconheceu a impossibilidade de uma
justificação teorética, mas não se chegou a negar a legitimidade do problema, ou seja, da procura de justificação. A
justificação foi buscada na interpretação probabilista da I. A mais simples expressão da regra da I. probabilista talvez
seja a de Kneale: "Depois de observarmos certo número de coisas a e de descobrirmos que a freqüência das coisas (3
entre elas é f concluímos que P (a, p) = f ou seja, que a probabilidade de uma coisa a ser (3 deve ser /" {Pro-bability
and Induction, Oxford, 1949, p. 230). Expressões mais complicadas que a própria regra são encontradas em Lewis
{Analysis ofKnow-ledge, 1946, p. 272) e em Reichenbach {Theory ofProbability, 1949, p. 446; cf. Experience and
Prediction, Chicago, 1938, pp. 339 ss.). Mas todos eqüivalem a dizer que, quando determinado caráter recorre em
certa proporção das amostras examinadas, pode-se supor que essa proporção vale para todos os outros exemplos do
caso, salvo prova em contrário. Quando a proporção é igual a cem por cento das amostras examinadas, quando o
caráter em questão ocorre em todas, tem-se a generalização uniforme ou completa. É o que acontece quando se afirma
que "todos os homens são mortais" porque o fato de ser mortal esteve constantemente unido ao fato de ser homem.
Por outro lado, quando o valor numérico dessa proporção é tomado como medida da possibilidade de que o caráter
em questão reapareça em novo exemplo, tem-se um juízo de probabilidade (v.). Obviamente, a generalização
completa e o juízo de probabilidade são aspectos da generalização estatística. Em vista disso, a justificação da I., do
ponto de vista pragmático, pode ser feita asseverando-se: d) que a I. é o único meio de obter previsões; b) que ela é o
único meio suscetível de autocorreção.
d) Kneale diz: "A I. primária é uma diretriz racional não por ser certo que ela leve ao sucesso, mas porque é a única
maneira de tentarmos fazer aquilo de que necessitamos: previsões exatas" {Op. cit., p. 235). Contra esse
INDUÇÃO
560
INDUÇÃO
argumento, que é aceito por muitos (cf., p. ex., REICHENBACH, op. cit., p. 475), Black observa que, se a I. é o único
meio de obter previsões, o sucesso dessas mesmas previsões não a confirma, assim como o seu insucesso não a refuta
(Problems of Analysis, 1954, pp. 174 ss.). E Black observa que esse argumento, assim como o outro análogo, de que a
I. é o único método para verificar os outros métodos de previsão, tem a pretensão de justificar dedutivamente a I., de
justificá-la com base em argumentos que, como seus próprios proponentes reconhecem (REICHENBACH, op. cit., p.
479; J. O. WISDOM, Foundations oflnference in Natural Science, 1953, P- 229), têm caráter analítico ou tautológico.
Os argumentos genuinamente práticos — observa ainda Black — não são dedutivos. Na vida quotidiana, numa
situação que exige decisão, os indícios indicam com certo grau de segurança a ação que será mais adequada, mas ela
não é dedutível daquela indicação e tampouco a conduta contrária implica contradição (Problems ofAnalysis, p. 185).
Portanto, esse tipo de argumentação não tem valor como justificativa do procedimento indutivo.
b) O segundo argumento fundamental para a justificação prática da I. é sua capacidade de autocorreção. Peirce foi o
primeiro a falar nesse caráter, discernindo nele a própria essência da I. (Coll. Pap., 2729). E Reichenbach disse: "O
procedimento indutivo tem o caráter de um método de tentativa e erro projetado de tal forma que, nas séries que
tenham um limite de freqüências, ele leva automaticamente ao sucesso num número finito de etapas. Pode ser
denominado um método autocorretivo ou assintótico" {Op. cit., p. 446, § 87; cf. KNEALE, op. cit., p. 235). Contra
esse argumento Black observou que o termo autocorretivo não é exato, visto ser verdadeiro que a I. inclui a
possibilidade constante de revisão, mas, para dizer que as revisões são correções, seria necessário que elas fossem
progressivas, ou seja, dirigidas para uma única direção e na direção apropriada. Mas é exatamente essa segurança que
falta (Problems of Analysis, p. 170). Pode-se admitir, com Black, que nem esse argumento é realmente uma
"justificação" da I. no sentido universal ou dedutivo da palavra "justificação", mas que a possibilidade de
autocorreção é caráter do procedimento indutivo, assim como de todo procedimento científico, é coisa que não se
pode pôr em dúvida; ademais, é o caráter a
que o próprio Black recorre para caracterizar o método científico (Op. cit., p. 23). A revisão, que a I. possibilita e à
qual, aliás, todo o seu procedimento está intrinsecamente subordinado, é correção no sentido preciso do termo, ou
seja, eliminação dos erros revelados pelo próprio procedimento. Uma modificação que não fosse revisão ou correção
nesse sentido não seria exigida e realizada pela indução. Com tudo isso, o estado atual do problema da I. parece bem
expresso pela conclusão de Black, de que não só é impossível justificar a I., mas também que seu problema carece de
sentido, se por justificação se entende a demonstração da validade infalível do procedimento indutivo. "Insistir em
que deve haver uma conclusão seria como dizer que, se um bom jogador de xadrez conhece os movimentos a serem
feitos numa partida de xadrez, ele também deve ser capaz de conhecer os movimentos a serem feitos num tabuleiro
com uma só peça. Mas este não é um problema de xadrez e nada há que o jogador de xadrez possa resolver. O
problema daquilo que devemos inferir quando sabemos apenas que alguns A são B não é um problema indutivo
genuíno e não há modo de resolvê-lo a não ser reconhecendo que seria inoportuno tentá-lo" (Op. cit., pp. 188-89; cf.
Language and Philosophy, 1952, cap. II). Em outros termos, o problema da I. em geral, assim como o problema de
inferir o futuro do passado ou os casos não observados dos casos observados, não têm sentido por falta de dados. Se
esses dados forem fornecidos, não haverá mais problema de I., mas problemas pertencentes aos domínios de cada
ciência. Deve-se acrescentar, todavia, que a eliminação do problema da I. em sua forma clássica não exime o filósofo
de analisar os procedimentos indutivos empregados por cada ciência, de confrontar tais procedimentos e de fazer as
generalizações que possam surgir desse confronto. Está claro, porém, que essa ordem de investigação, não
empreendida até hoje, nunca levará à justificação da indução, que, se fosse alcançada, teria como efeito imediato a
eliminação de todos os riscos dos procedimentos indutivos e a redução destes procedimentos à certeza e à
necessidade dos procedimentos dedutivos. Na realidade, os procedimentos científicos e, em geral, os comportamentos
e as diretrizes racionais do homem consistem em limitar o risco, em torná-lo calculável, não em eliminá-lo. Portanto,
os problemas filosóficos não po-
INCONSCIENTE
551
INDEMONSTRÁVEL
seja, a corrente da consciência que é o próprio elã vital.
Mas enquanto o I. era assim utilizado pela metafísica e enquanto a psicologia o admitia, mesmo a contragosto, como
um dado de fato, seu conteúdo era completamente renovado por Freud, que apresentava as duas teses fundamentais
da psicanálise da seguinte forma: "A primeira dessas premissas é que os processos psíquicos são em si mesmos
inconscientes e que os processos conscientes são apenas atos isolados, frações da vida psíquica total." A segunda
proposição que a psicanálise proclama como uma de suas descobertas é a afirmação de que "tendências que podem
ser classificadas apenas como sexuais, em sentido estrito ou amplo da palavra, agem como causas determinantes de
doenças nervosas ou psíquicas e que essas emoções sexuais desempenham papel importante nas criações do espírito
humano nos campos da cultura, da arte e da vida social" (Einführung in die Psychoanalyse, 1917, Intr., trad. ir., pp.
32-33). Desta forma, na psicanálise o I. deixava de ter o caráter indeterl minado ou amorfo que tivera até aquele momento nas interpretações dos filósofos e dos psicólogos, para adquirir
um conteúdo preciso e identificar-se com as tendências sexuais inibidas, negadas, camufladas ou ocultas. O grande
sucesso inicial da psicanálise e a importância científica de que ela se revestiu no mundo contemporâneo (v.
PSICANÁLISE) relegaram para se;' gundo plano a dificuldade teórica associada ao próprio reconhecimento da existência do inconsciente. Obviamente,
a objeção de Locke, tantas vezes repetida, de que "existir", para um estado mental, significa "ser percebido" ou "ser
objeto de consciência", e que portanto um estado mental inconsciente é uma contradição em seus próprios termos,
deixou de ter valor. Um esta■i do mental (p. ex. uma emoção, uma tendência, uma volição) pode "existir" mesmo sem ser "percebido", no sentido
de que oportunamente pode ser evidenciado e reconhecido, com procedimentos apropriados (que são os empregados
pela psicanálise), como condição de uma situação psíquica normal ou patológica. O próprio Freud insistiu na noção
de sintoma: "Um sintoma forma-se para substituir alguma coisa que não conseguiu manifestar-se exteriormente.
Certos processos psíquicos, não podendo desenvolver-se normalmente, e chegar até a consciência, dão origem a um
sintoma neurótico" Ubid., trad. fr., p. 303). Portanto, o I.
existe em primeiro lugar como sintoma. Trata-se da mesma solução teórica que Kant vira ao dizer que o I., mesmo
não sendo percebido imediatamente, pode ser percebido mediata-mente, mas esta solução teórica foi bem melhorada,
pois em Freud o I., como sintoma, nem precisa ser "percebido": é um fato que a observação clínica pode constatar.
INCONSEQÜÊNCIA (in. Inconsistency; fr. Inconséquence, ai. Folgewidrigkeit.; it. Incon-seguenzd). Ausência de
compatibilidade (v.) das proposições que constituem um sistema simbólico. P. ex., um conjunto de proposições é
inconseqüente quando implica uma contradição, quando dele deriva formalmente certa proposição p ou a negação de
p. Em geral, pode-se dizer que a I. de um sistema qualquer é a possibilidade de contradição no próprio sistema.
INCONSISTÊNCIA. V. COMPATIBILIDADE.
INDAGAÇÃO. V. INVESTIGAÇÃO.
INDEFINIDO (in. Indefinite; fr. Indéfini; ai. Unbegrenzi; it. Indefinitó). Aquilo que não tem limite no espaço ou no
tempo, que portanto é infinito no sentido negativo do termo. Este pelo menos é o significado da palavra estabelecido
por Descartes, que assim fazia a distinção entre a indefinição das coisas e a infinidade de Deus, que "não tem limites
em suas perfei-ções" e é por isso o único ser infinito {Princ. phil., I, 27; IRésp., § X). Portanto, essa palavra eqüivale
a ilimitado (v.), mas não é usada com o sentido de "não definido", ou seja, não expresso por uma definição.
INDEMONSTRÁVEL (in. Undemonstrable, fr. Indémontrable, ai. Unerweislictí). it. Indimos-trabilé). Aquilo que
não necessita de demonstração porque sua verdade é evidente. Neste sentido, são I. os primeiros princípios da lógica
de Aristóteles (v. AXIOMAS) e os anapodíticos dos estóicos (v. ANAPODÍTICO).
2. As proposições primitivas ou em geral os antecedentes de um sistema simbólico qualquer que sirvam de
fundamento das regras de demonstração próprias do sistema. Neste sentido, são indemonstráveis os axiomas, as
definições e as regras de transformação de todo sistema simbólico.
3. As proposições indecidíveis, isto é, as proposições que não podem ser consideradas verdadeiras ou falsas em dado
sistema simbólico, mas que podem ser decididas num sistema mais amplo, onde porém se apresentam com outra
forma. Neste sentido, são indemonstrá-
INERÊNCIA
562
INFINITO
modo explícito o princípio correspondente; o primeiro a formulá-lo foi Descartes, que estabeleceu como "primeira lei
da natureza" o princípio de que "cada coisa continua no mesmo estado enquanto pode e só o muda quando se
encontra com outras coisas" (Princ. phil., II, § 37). Alguns decênios depois, ao ser aceito por Newton como primeiro
princípio da dinâmica em Princípios matemáticos da filosofia natural (1687), o princípio da I. ingressava
definitivamente na ciência moderna, onde foi e continua sendo, mais que uma "lei natural" (no sentido cartesiano do
termo) ou uma verdade experimental, um postulado ou princípio instrumental que permite o cálculo da força (v.) ou
da energia (v.). Sobre a teoria do impetus, cf. DUHEM, Études sur Léonard de Vinci, Paris, 1909.
INERÊNCIA. V. SER, I. A.
INFERÊNCIA (in. Inference; fr. Infêrence; ai. Inferiren; it. Inferenzà). No latim medieval, encontra-se em muitos
lógicos o termo inferre, que designa o fato de, numa conexão (ou consequentid) de duas proposições, a primeira
(antecedente) implica (ou melhor, contém por "implicação estrita") a segunda (conseqüente). Na filosofia moderna, o
termo "I." é preferido pelos anglo-saxões, ao passo que, em língua italiana, se prefere illazione (ilação). Na língua
inglesa, esse uso é muito amplo, significando desde implicação (v.), como p. ex. emjevons e, em geral, nos lógicos
ingleses do séc. XIX, até o processo mental através do qual, partindo de determinados dados, se chega a uma
conclusão por implicação ou mesmo por indução (Stebbing, Dewey), Stuart Mill diz: "Inferir uma proposição de uma
ou mais proposições antecedentes, assentir ou crer nela como conclusão de qualquer outra coisa, isso é raciocinar no
mais amplo significado do termo" (Logic, II, 1, 1). Essa palavra é empregada com o mesmo sentido generalíssimo por
Peirce (Chance, Love and Logic, cap. VI) e por muitos lógicos contemporâneos (Lewis, Reichenbach, etc). Dewey
distinguiu a I., como relação entre signo e coisa significada, da implicação, que seria a relação entre os significados
que constituem as proposições (Logic, Introdução; trad. it., p. 96), mas essa proposta não teve seguidores. G. P.
INFINITESIMAL (lat. Infinitesimus; in. Infi-nitesimal; fr. Infinitésimal; ai. Infinitesimal; it. Infinitesimalè). Uma
grandeza que pode vir a ser menor que qualquer grandeza determiná-vel, ou, em termos menos apropriados, uma
grandeza tendente a zero. Este conceito foi conhecido pelos gregos, que o empregaram com freqüência; é pressuposto
nas argumentações de Zenâo de Eléia contra o movimento (v. AQUILES; DICOTOMIA; FLECHA; ESTÁDIO) e foi
claramente expresso por Anaxágoras, que disse: "Com relação ao pequeno, não há mínimo, mas há sempre um
menor, porque o que existe não pode ser anulado" (Fr. 3, Diels). Esse conceito foi exposto por Aristóteles (Fís., III, 7,
207b 35), retomado pelos últimos escolásticos (cf. por todos OCKHAM, In Sent., I, d. 17, q. 8) e utilizado por Leibniz
como fundamento do cálculo I., cujo primeiro documento importante é o texto Novo método para os máximos e os
mínimos (1682).
INFINITO (gr. òmeipov; lat. Infinitum; in. Infinite, fr. Infini; ai. Unendlich; it. Infinito). Este termo tem os seguintes
significados principais, entre os quais existem algumas semelhanças: 1Q I. matemático, que é a disposição ou a
qualidade de uma grandeza; 2S I. teológico, que é a nâo-limitação da potência; 3a I. metafísico, que é a nàocompletude.
ls A concepção matemática do I. elaborou dois conceitos diferentes: d) I. potencialcomo limite de certas operações
sobre as grandezas; b) I. atual como uma espécie particular de grandeza.
d) O conceito de I. potencial foi elaborado por Aristóteles, que negava que o I. pudesse ser atual, ou seja, real, tanto
como realidade em si (substância) quanto como atributo de uma realidade (Fís., III, 5, 204 a 7 ss.). Isto quer dizer que
o I. não é substância nem propriedade ou determinação substancial, mas que "existe somente de modo acidental"
(Ibid., 204a 28), como disposição de grandezas. Que disposição? Aristóteles dá dois significados fundamentais de I.:
no primeiro, I. é "aquilo que, por natureza, não pode ser percorrido", no sentido de que não pode ser visto. No
segundo, I. é aquilo que pode ser percorrido, mas não todo, pois não tem fim; nesse sentido, é I. por composição, por
divisão ou por ambas (Ibid., III, 4, 204 a 3). Ora, o I. em sentido matemático é só este último, ou seja, o I. que pode
ser percorrido, mas nunca de modo exaustivo ou completo. Neste sentido, o I. é tal "que sempre se pode tomar algo
de novo, e o que se toma é sempre finito, mas sempre diferente. Assim, não se deve tomar o I. como um ser singular,
como p. ex. um homem ou uma coisa, mas no sentido em que se fala de um dia ou de uma
INFINITO
563
INFINITO
kjta, cujo modo de ser não é uma substância, mas um processo que, apesar de finito, é sempre, diferente"
{Md., III, 6, 206 a 27). Portanto, não é I. aquilo fora do qual não há nada, como , je acredita comumente,
mas sim aquilo fora do qual sempre há alguma coisa; conseqüentemente o I. participa mais do conceito
de parte ' que do conceito de todo {Ibid., III, 6, 206 b 32; 3D7 a 27). Esse conceito aristotélico era
utilizado por Lucrécio para defender a doutrina flpicurista da infinidade do espaço, expresso com a
imagem de uma flecha lançada a partir ' do limite extremo do universo, admitido por ' hipótese; quer a
flecha encontre um obstáculo, ' quer continue além, o limite extremo do universo não é mais o mesmo
porque é apenas o ponto de partida da flecha {De rer. nat., I, 967-■ J82). Também nesta imagem I. é
aquilo de que se pode sempre tomar uma parte, e aquilo que se toma é sempre finito mas sempre
diferente. Este conceito de I. é essencialmente negativo: consiste na não-exauribilidade de determinadas
grandezas submetidas a certas operações, que são a composição (acréscimo de partes sempre novas) e a
divisão em partes sempre novas. A primeira operação tende ao infinitamente grande; a segunda, ao
infinitamente pequeno (Jnfinitésimo [v.]): ambas definem o conceito de I. como inexauribilidade de partes
dentro de partes. Mas assim entendido o conceito é obviamente negativo: caracteriza a inexauribilidade
ou incompletitude de uma série. Justamente a esse respeito Plotino observou que I. é aquilo que não pode
ser exaurido em termos de grandeza ou de número de suas partes (Enn., VI, 9, 6). E Kant, do mesmo
ponto de vista, dizia: "O conceito verdadeiro (transcendental) de infinidade é que a síntese seqüencial da
unidade na medição de um quantum nunca pode ser acabada" {Crít. R. Pura, Dialética, cap. 2, seç. 2).
Essa espécie de I. foi denominada pelos lógicos da Idade Média I. sincatego-remático
{syncategorematicum), que é o I. entendido como disposição (não qualidade) de um sujeito, distinto do I.
categoremático, que seria o I. como qualidade ou como substância (PEDRO HISPANO, Summ. log., 12, 57;
OCKHAM, InSent., I, d. 17, q. 8). Esse mesmo I. foi definido pela matemática do séc. XVIII e da primeira
metade do séc. XIX mediante o conceito de limite (como o campo das séries, das sucessões, etc), mas os
matemáticos daquela época não lhe atribuíram a posição de tipo de grandeza em si. Gauss dizia numa
carta de 1831: "Protesto contra o emprego de grandeza I. como algo completo, emprego que nunca foi admitido em matemática.
O I. é só uma façon de parler, a rigor, fala-se de limites, dos quais algumas relações são aproximadas
quando se quer, enquanto a outras relações é permitido crescer além de qualquer medida", (cf. GEYMONAT, História e filosofia da análise infini-tesimal, 1947, pp. 174-75). Iparadossi dell'1. (1851) de
Bernardo Bolzano é uma obra que marca a primeira abordagem decisiva de um novo conceito do infinito.
b) O segundo é o de I. categórico ou (menos propriamente se diz) atual, ao qual só a matemática moderna
deu forma rigorosa. Contudo, a matemática chegou a esse conceito através das discussões tradicionais
sobre os denominados paradoxos do infinito. Já R. Bacon, para refutar a infinidade do mundo, fazia notar
que, a admitir-se o I., deve-se concluir que a parte é maior que o todo a que pertence {Opus tertium, ed.
Brewer, 41, pp. 141-42). Argumentos semelhantes foram repetidos freqüentemente na Escolástica do séc.
XIV, que no entanto, com Ockham, deu a tais argumentos uma resposta que indica o caminho a ser depois
seguido pela matemática da segunda metade do séc. XIX. De fato Ockham afirma: "Não é incompatível
que a parte seja igual e não menor que seu todo porque isso acontece toda vez que uma parte do todo é I.
(...) Isso também acontece na quantidade descontínua ou em qualquer multiplicidade, em que uma das
partes tenha unidades não menores que as contidas no todo. Assim, em todo o universo não existe um
número maior de partes que numa fava, porque numa fava há infinitas partes. Portanto, o princípio de que
o todo é maior que a parte vale somente para todos os compostos de partes integrantes finitas" {Cent.
Theol, 17 C; Quodl, I, q. 9). Essa corajosa limitação do valor de um axioma, que então parecia evidente,
não teve seguidores durante muito tempo. O próprio Galilei, para evitar a possibilidade de igualdade entre
a parte e o todo (a propósito da relação entre os quadrados e a série natural dos números), afirmou que "os
atributos 'igual', maior' e 'menor' não têm lugar nos I., mas só nas quantidades finitas" {Scienze nuove, op.,
VIII, p. 79), deixando assim inalterada a verdade do pretenso axioma. Este acabaria por ser derrubado,
sendo declarado fruto de uma generalização falaz (cf. RUSSELL, Principies of Mathe-matics, 1903, p.
360), só quando G. Cantor
INFINITO
564
INFINITO
{Mathematische Annalen, entre 1878 e 1883) e Dedekind {Continuidade e números irracionais, 1872; O que são e o
que devem ser os números, 1888) enunciaram um novo conceito de infinito, que consiste em tomar como definição de
I. o que até então parecera ser o "paradoxo" do próprio I.: a equivalência da parte e do todo. Pode-se ilustrar essa
concepção recorrendo ao exemplo dado por Royce {The World and the Individual, 1900-01; cf. o Ensaio
complementar "O um, os muitos e o I." anexo ao vol. 1 da obra). Suponhamos que exista um mapa idealmente
perfeito, de tal forma que, se A é o objeto reproduzido e A o mapa, este esteja em correspondência com A de tal modo
que para cada elemento particular de A {a, b, c) possa ser determinado em A' algum elemento correspondente {a', tí,
cf), em conformidade com o sistema de projeção escolhido. Suponhamos além disso que esse mapa seja desenhado
dentro e em cima de uma parte da superfície da região reproduzida, como p. ex. a Inglaterra. Se este mapa é — como
deve ser por hipótese — idealmente perfeito, deve representar tudo o que existe sobre a superfície da Inglaterra, logo
o próprio mapa. A representação deste último, sendo por sua vez perfeita, deverá conter a representação dele mesmo,
e assim por diante, sem limite. Um sistema dessa espécie é claramente I., não por ser inexau-rível, mas por ser autorepresentativo, ou melhor, auto-reflexivo. Em termos matemáticos, um conjunto auto-reflexivo é aquele que pode ser
posto em correspondência biunívoca com algum subconjunto seu. Esse é o caso da série natural dos números, que
pode ser posta em correspondência biunívoca com seus subconjuntos, como p. ex. os quadrados, os números primos,
etc.
Segundo Cantor a potência comum de dois conjuntos entre os quais exista uma correspondência biunívoca é o
"número cardinal" dos dois conjuntos. Esse número é chamado de transfinito quando o conjunto é eqüipotente a uma
de suas partes ou de seus subconjuntos. Dessa forma, o conceito de número cardinal I., que fora sempre negado como
contraditório, ingressava na matemática. Mas logo deveria revelar-se fonte de novas dificuldades e problemas, que
constituem os "paradoxos" da lógica moderna, conquanto não fossem de todo desconhecidos da lógica antiga (v.
ANTINOMIA). Mas o conceito de I. matemático não foi modificado pelo estudo desses paradoxos e pelas soluções para eles propostas.
2- O segundo conceito de I. é de natureza teológica e surgiu no último período da filosofia grega, com Fílon e
Plotino. Este último distinguira a infinidade do número, que é "ine-xauribilidade" {Enn., VI, 6, 17), da infinidade do
Uno, que é entretanto "a não-limitação da potência" {Ibid., VI. 9, 6). Com menor precisão de linguagem, esse
conceito é expresso freqüentemente pela Escolástica da Idade Média. S. Tomás, após observar que os primeiros
filósofos tiveram razão em julgar I. o princípio das coisas "considerando que as coisas derivam do primeiro princípio
ao I.", distingue o I. da matéria, que é imperfeição porque a matéria sem forma é incompleta, e o I. da forma, que é
perfeição porque é da forma que não recebe o ser de outrem, mas de si mesmo, ou seja, de Deus (S. Th., I, q. 7, a. 1).
Chamar a forma subsistente por si só de I. parece querer significar que o I. é aquilo que, para ser, não precisa de outra
coisa, sendo portanto a ilimitada potência de ser. Não muito diferente é o sentido que parece ter a tese de Duns Scot
sobre a infinidade como modo de ser de Deus. Duns observa que, se dissermos que Deus é supremo, estaremos
conferindo a ele uma determinação que lhe cabe em relação às coisas que são diferentes dele: é supremo entre todas
as coisas existentes. Mas se dissermos que é I., estaremos dizendo que é supremo em sua natureza intrínseca, isto é,
que transcende todo e qualquer grau possível de perfeição {Op. Ox, I, d. 2, q. 2, n. 17). A infinidade parece expressar
aqui o . "quo maius cogitari nequit" de S. Anselmo, ou seja, as perfeições de Deus estão além de qualquer grau
alcançável pelas perfeições finitas. A distinção cartesiana entre I. e indefinido (v.), que atribui apenas a Deus o
atributo da infinidade, parece coincidir mais com a distinção , entre o I. teológico e o I. matemático: distinção
também encontrada em Locke {An Essay Conceming Human Understanding, II, 17,1) e Leibniz {Nouv. ess., II, 17,
2). Mas na filosofia moderna o conceito de I. como não-limitação da potência é realmente introduzido por Fichte,
para quem o Eu é I. "suposto a partir de sua absoluta atividade", porquanto sua atividade não encontra limites ou
obstáculos. Supondo-se, ao mesmo tempo, um não-Eu, o Eu limi-; ta-se e torna-se finito. Mas por fim "a finidade f
deve ser anulada: todos os limites devem desaparecer e ficar apenas o Eu I., como Um e;
INFINITO
565
INGENUIDADE
como Todo" {Wissenschaftslehre, 1794, 11, § 4, D). A contraposição hegeliana entre "falso I." e "verdadeiro I."
constitui a melhor ilustração dessa noção de I. na filosofia moderna. A falsa infinidade é a infinidade matemática do
progresso ao I., pois este "pára na declaração da contradição, contida no finito, de que este é tanto uma coisa quanto a
outra coisa" {Ene, $94). O progresso ao I. remete ao além do finito, mas nunca alcança esse além; por isso, sua
negação do finito é um "dever-ser" que nunca é um "ser". O verdadeiro I. desfaz essa contradição: nega a realidade do
finito como tal e resolve-o em si. O verdadeiro I., em outros termos, é aquilo que é, é a realidade. Ele "é e é
determinadamente, existe, está presente. Só o falso I. está no além, sendo apenas a negação do finito como tal... A
verdadeira infinidade tomada assim em geral, qual um existir colocado como afirmativo contra a abstrata negação, é a
realidade em sentido mais elevado, não aquela anteriormente determinada como simples realidade. A realidade
adquiriu aqui um conteúdo concreto. Real não é o finito, mas o I." (Wis-sensebaft der Logik, I, I, seç. I, cap. II, C,
trad. it., pp. 161-62). Nesse sentido, para usar uma frase do próprio Hegel, o I. é a "força da existência" (Fil. do
direito, § 331, Zusatz), ou seja, a força graças à qual a razão habita o mundo e domina-o, sendo, portanto, nãolimitaçâo de potência {Ene, § 6). É bem conhecido o emprego que o próprio Hegel e toda a filosofia romântica do
séc. XIX fizeram desse conceito de I.: ele serviu para justificar a realidade enquanto tal, o fato, e a repelir a pretensão
de o intelecto "abstrato" julgar a realidade, de opor-se a ela e de nela inserisse com o compromisso de transformação.
Segundo a noção de infinidade de potência, a realidade, toda a realidade em qualquer momento, é tudo aquilo que
deve ser, uma vez que ao princípio que a rege não falta a potência necessária para a realização integral. 3 e O terceiro
conceito de I. é o correspondente metafísico do conceito matemático tradicional. Já vimos que, para Aristóteles, o I.
nunca pode ser acabado, portanto nunca pode ser um todo, ele é parte, incompletitude e inexauri-bilidade. Aristóteles,
portanto, não concordava com Melisso, que denominara o todo de I., e concordava com o pensamento de Parmênides,
que o considerara finito {Eis., 6, 207 a 15). Mas essas determinações já haviam sido atribuídas ao I. por Platão: I. é
aquilo que carece de número ou de medida, que é suscetível ao mais
ou ao menos e portanto exclui a ordem e a determinação {Fil., 24 a 25 b). É este o conceito metafísico de I.,
encontrado entre os gregos porque estreitamente ligado ao seu ideal moral de ordem e de medida. Historicamente
falando, esse conceito não ultrapassou os limites da Grécia da idade clássica.
INFINITO, JUÍZO (ai. Unendlich Urteil). Kant denominou assim as proposições nas quais o predicado é
constituído por uma negação, como, p. ex., "a alma é não-mortal" {Logik, § 22, Crít. R. Pura, § 9). O termo I. já era
empregado pela lógica medieval para indicar os substantivos negativos, como p. ex. não-homem (cf. PEDRO HISPANO,
Summ. log., 1.04).
INFLUXO (lat. Influxus, Influentia; in. In-flux; fr. Influence; ai. Einfluss, it. Influssó). Ação exercida por aquilo que
é incorpóreo sobre o que é corpóreo. Nesse sentido, Cardano distin-guia o I. da mudança, que é a ação de um corpo
sobre um outro corpo, e do alento, que é a ação do incorpóreo sobre o incorpóreo e dá-se exclusivamente na alma {De
subtilitate, XXI, em Opera, 1663, III, p. 669 b-670 a). Esse termo tem sido empregado para indicar:
1B A ação determinante dos astros sobre o destino e a vida dos homens, como mediadora da ação divina (cf. p. ex.:
NICOLAU DE CUSA, De doctaignor., II, 12; Pico DELIA MIRANDOLA, Adv. astralogiam, VI, 2 e passim);
2S A ação do governo de Deus sobre o mundo. Neste sentido, Campannela fala dos três "grandes I." nos quais se
concretiza a ação de Deus, que são a necessidade, o destino e a harmonia {Met., IX, I; Theol, I, 17, a. 1);
3Q A ação da alma sobre o corpo. Neste sentido, essa palavra foi empregada nos sécs. XVII e XVIII. Leibniz diz: "ao
se querer fundamentar a opinião vulgar do I. da alma sobre o corpo com o exemplo de Deus, que atua de fora de si
mesmo, tem-se uma semelhança excessiva de Deus com a alma do mundo" {IV Lettre à Clarke, § 34). Baumgarten
chama essa doutrina de "Sistema do I. físico" {Met., § 761). Kant cita essa mesma "opinião vulgar," rejeitando-a {De
mundi sensibilis, etc, IV, § 17).
INFORMAÇÃO. V. CIBERNÉTICA.
INGENUIDADE (in. Naivete; fr. Naiveté; ai. Naivetàt; it. Ingenuitã). No séc. XVIII, este termo começou a ser
empregado para indicar certo modo de expressão estética. Kant dizia: "A I. é a expressão da originária sinceridade
natural da humanidade contra a arte de fingir, que se
ININTELIGÍVEL
566
INSTANTE
tornou uma segunda natureza" (Crít. do Juízo, § 54). A I. não deve ser confundida com a simplicidade franca, que não
dissimula a natureza só porque não compreende o que é a arte de viver em sociedade. É antes uma natureza que se faz
presente ou se revela na própria arte (Ibid., § 54). Schiller inspirou-se nesses conceitos no ensaio Sobre a poesia
ingênua e sentimental (1795-96): "O ingênuo é a representação da nossa infância perdida, que fica em nós como o
que há de mais querido, e por isso nos enche de certa tristeza e é, ao mesmo tempo, a representação da suprema
perfeição do ideal, que suscita em nós sublime emoção" (Werke, ed. Karpeles, XII, p. 108). A poesia ingênua nesse
sentido contrapõe-se à poesia sentimental: o poeta ingênuo é natureza; o poeta sentimental procura a natureza (Ibid.,
p. 125).
Fora do domínio da estética, esse termo por vezes é usado para caracterizar as crenças filosóficas do homem comum.
Deu-se o nome de "Realismo ingênuo" à crença comum na realidade das coisas. Embora, assim usado, esse adjetivo
tenha certo tom depreciativo, a crítica mais recente tem demonstrado que nem sempre as crenças ingênuas são as
mais fracas (v. REALISMO).
ININTELIGÍVEL (lat. Inexplicabilis, in. Unin-telligible, fr. Ininteligible, ai. Unverstandlich; it. Inintelligibilé). 1.
Propriamente, aquilo de que não se consegue apreender o porquê e o como, ou seja, aquilo cuja causa, condição ou
significado é inapreensível, o inexplicável (cf. CÍCERO, Acad., III, 29, 95). Este termo, portanto, tem significado
diferente e mais preciso que incon-cebweKy.), que indica apenas uma incompatibilidade genérica com a razão. O
próprio Leibniz estabelecia a diferença entre o que não se entende e o que é inconcebível (Nouv. ess., Avant propôs,
op., ed. Erdmann, p. 202). Diferença análoga é estabelecida entre esses dois termos por Peirce (Chance, Love and
Logic, II, 2, trad. it., p. 137).
2. A propósito de discursos escritos ou falados: obscuro, confuso, mal exposto, incapaz de comunicar.
INQUIETUDE (in. Uneasiness; fr. Inquietude; ai. Unruhe; it. Inquietudiné). Locke definiu esse termo dizendo que é
o mal-estar da necessidade insatisfeita (An Essay Concer., II, 20, 6). Na segunda edição de Ensaio, Locke viu na I.
assim entendida o móvel principal da vontade humana. Locke dizia: "Depois de refletir, sou levado a pensar que, ao contrário do que se acredita, o que determina a vontade não é ter os olhos voltados
para um bem superior, mas sim algum mal-estar (geralmente, o mais grave dos que atualmente afligem o homem) (...)
Esse mal-estar também pode ser denominado desejo, que é um mal-estar do espírito pela falta de algum bem" (Ibid.,
II, 21, 31). Leibniz acatava com bons olhos essa tese de Locke (Nouv. ess., II, 20, § 6), que também foi acolhida e
utilizada por Condillac (Traité des sensations, I, 3, § 2).
EVSOLUBILIA. Na lógica medieval, a partir do séc. XIV, receberam este nome e o nome de Impossibilia os
raciocínios que a lógica me-gárico-estóica chamava de ambíguos ou conversíveis, também chamados de dilemas (v.)
e, mais tarde, de antinomias (v.).
INSTABILIDADE (in. Instability). Precariedade. Um dos traços fundamentais da existência, segundo algumas
correntes contemporâneas. Dewey diz: "O homem vive num mundo aleatório; pode-se dizer, cruamente, que sua
existência implica risco. O mundo é o palco do risco: incerto, instável, terrivelmente instável. Seus perigos são
irregulares, inconstantes, não podem ser associados a um tempo ou a uma situação determinada" (Experience
andNature, cap. 2).
INSTÂNCIA (gr. evcracuç; lat. Instantia; in. Instance, fr. Instance, ai. Instanz; it. Istanza). 1. Na lógica aristotélica,
I. é "uma premissa contrária a outra premissa" (An.pr., II, 26, 69 a 36). Aristóteles enumera quatro I. fundamentais: o
ataque à premissa do adversário; uma nova premissa; uma premissa contrária à do adversário; recurso a decisões
precedentes (Top., VIII, 10, l6la 1; Ret., II, 25, 1402 a 34).
2. Bacon chamou de I. os casos experimentais particulares de determinado fenômeno, como p. ex. do calor;
denominou "tábuas das I." a relação de tais casos (Nov. Org., II, pp. 10 ss.) (v. TÁBUAS). Stuart Mill por vezes adotou
essa terminologia (Logic, III, 9, 1, passim).
INSTANTE (gr. TO èÇaíípvriÇ; lat. Momen-tum, in. Instant; fr. Instant; ai. Augenblick, it. Attimo) 1. De acordo com
o significado específico, próprio de certa tradição filosófica, o I. é diferente do agora (v.), sendo o limite ou a
condição do tempo, porque representa uma espécie de encontro ou de compromisso entre o tempo e a eternidade.
Essa noção remonta a Platão, que dizia: "O I. parece indicar o que ; serve de transição entre duas mudanças inver-
i-ANTE
567
INSTINTO
, A passagem do movimento ao repouso e ;-versa não ocorre a partir da imobilidade ainda está imota nem do
movimento que ! se está movendo. A natureza um pouco tia do I. está no fato de ser o ponto mé-«ntre repouso e
movimento, mesmo não do ele no tempo, o que o torna ponto de "da e de partida do que se está movendo uireção ao
estar parado, e do que está pa-: em direção ao mover-se" (Parm., 156 d). outros termos, para Platão o I. não é nem o
nem a eternidade, nem o movimento o repouso, mas está entre eles e constitui ponto de encontro. Essa noção foi retopor Kierkegaard, que viu no I. a inserção *nea da eternidade no tempo e, portanto, inserção subitânea da verdade
divina no ho-isto é, o nascimento da fé (Philoso-beBrocken, cap. IV; cf. Werke, II, pp. 108, ss.). O caráter instantâneo
da fé exclui que possa ser suscitada ou produzida por "essos de demonstração ou de persuasão. a polêmica de
Kierkegaard contra a igreja ai dinamarquesa, travada no jornal, e que denominou precisamente O Instante. O aceito
de I. volta no existencialismo ale-3, mas sem a ressonância religiosa que tinha ütaa Kierkegaard. Jaspers diz: "O I.
vivido é o Í»to supremo, calor de sangue, imediação, presente corpófeo, totalidade do real, émca coisa verdadeira e
concreta. Em vez de 'fartir do presente para perder-se no passado "<3U no futuro, o homem encontra a existência e
>è absoluto no I., único que os pode propor-ftonar. Passado e futuro são abismos obscuros informes, tempo
indefinido, ao passo que o I. ftode ser a abolição do tempo, a presença do eterno" (Psychologie der
Weltanschauungen, ' 1925, I, 3; trad. it., p. 132). O mesmo Jaspers relacionaa noção de I. com a atitude ética ■
caracterizada pela máxima "vive oi.", expressa na Antigüidade por Aristipo (séc. IV a.C). Este prescrevia "ter a mente
no hoje, ou melhor, naquele I. em que cada um faz e pensa alguma coisa, pois só o presente é nosso, não o I. que
passou nem o que está sendo esperado: um já está destruído, o outro não sabemos se há de vir" (ELIANO, Var.
historiae, XIV, 6). Essa atitude, que Kierkegaard chamava de "Vida estética", às vezes é contraposta à outra que,
sacrificando continuamente o presente em favor do futuro, acaba tornando insignificante e instrumental toda a
duração da vida. No séc. XVIII, Lessing e Rousseau discordaram
dessa última atitude, convidando a dar a cada período da vida, a cada dia e a cada instante um valor autônomo e
acabado. Essa atitude não coincide, porém, com a chamada atitude estética, pois, ao contrário, supõe que aos instantes
da vida não se atribua o valor que por acaso tenham, mas o valor atribuído a todo um projeto de vida. Heidegger
retomou ainda, em sentido análogo, a noção de I., considerando-o como "o presente autêntico" e contrapondo-o ao
agora, que é o presente inautêntico da vida cotidiana. O agora é a apresentação das coisas para as quais se voltam os
cuidados cotidianos do homem; o I. é a decisão antecipadora da morte, isto é, do nada da existência: a mesma
situação que, do ponto de vista emocional, é a angústia (Sem undZeit, § 68, 81).
2. O mesmo que instante ou agora (v.).
INSTINTO (gr. ópu.tí; lat. Instinctus; in. Instinct; ai. Instinkt; it. Istintó). Um guia natural da conduta animal e
humana não é adquirido, não é escolhido e é pouco modificãvel. O I. distingue-se da tendência (v.) pelo caráter
biológico, porquanto se destina à conservação do indivíduo e da espécie e vincula-se a uma estrutura orgânica
determinada; distingue-se do impulso por seu caráter estável. Existem duas concepções fundamentais de I.: Ia a
metafísica, segundo a qual o I. é a força que assegura a concordância entre a conduta animal e a ordem do mundo; 2 a
a científica, segundo a qual o I. é um tipo de disposição biológica.
Ia A teoria metafísica dos I. foi fundada pelos estóicos. Para eles, a ordem providencial do mundo, que todos os seres
estão destinados a manter, dirige a conduta animal por meio do instinto. Crisipo diz: "O I. primário do animal, por ser
este desde o princípio dirigido pela natureza, é de cuidar de si mesmo (Dosfins, Livro I). Diz também que o que está
no mais íntimo de cada animal é a sua própria constituição e a consciência dessa constituição. Não é verossímil que o
animal se alheie de si ou que de algum modo aja de tal forma que se alheie de si ou não cuide de si mesmo. É preciso,
pois, que a própria natureza o constitua de tal modo que ele cuide de si, fugindo às coisas nocivas e perseguindo as
favoráveis. Donde se evidencia como falso o que dizem alguns, de o prazer ser o I. primário dos animais" (DIÓG. L.,
VII, 85). Através do I. a natureza leva o animal a cuidar de si e a conservar-se, contribuindo para manter a ordem do
todo. Cícero exprimia o concei-
INSTINTO
568
INSTINTO
to estóico nos seguintes termos: "Para conservar-se, para conservar sua vida e seu corpo, toda espécie animal evita
por natureza tudo o que parece nocivo, deseja e trata de arranjar tudo o que é necessário à vida, como alimento,
abrigo e todo o resto. Também é comum a todos os seres animais o I. sexual com vistas à procriação e certo cuidado
para com suas crias" (Tusc, I, 4, 11; Defin., III, 7, 23; De off, I, 28, 101). Algumas vezes o direito natural foi
equiparado ao instinto assim entendido, por ser comum não só aos homens mas também aos animais. No séc. III,
Ulpiano fazia a distinção entre o direito das gentes, que é só dos homens, e o direito natural, que "a natureza ensinou
a todos os animais e por isso pertence não só ao gênero humano, mas é comum a todos os animais que vivem na terra,
no mar e no céu. Desse direito decorrem o casamento, a procriação e a educação dos filhos, coisas estas de que os
animais também têm experiência" {Dig, I, 1, 1-4). Essa concepção sempre ligada esteve ao pressuposto metafísico da
existência de uma ordem providencial cuja manifestação nos animais e nos homens seria o I. S. Tomás aduzia como
prova dessa tese que a providência se ocupa também das coisas individuais contingentes, o I. natural de que os
animais são dotados e que se manifesta nas abelhas e em muitos outros animais {Contra Gent., III, 75). "Em nós
semeado e infundido pelo princípio da nossa geração, nasce um rebento, que os gregos chamavam de homem e que é
o apetite natural do espírito (...). E assim parece que é, pois todo animal, assim que nasce, seja ele racional ou bruto,
ama-se a si mesmo e teme e evita as coisas que lhe são contrárias e que ele detesta" (Conv., IV, 22; cf. Par., 1,11214). Kant ainda falava do I. como da "voz de Deus à qual todos os animais obedecem" e que "na origem deve ter
guiado os primeiros tempos do homem primitivo" (Mutmasslicher Anfang der Menschengeschichte, 1786).
Segundo essa concepção, as características do I. são as seguintes: \° providencialidade, 2-infalibilidade, que deriva do
caráter jinterior e graças à qual o I. estaria sempre apto a garantir a vida do animal e a continuação da espécie; 3 a
imutabilidade, que deriva das duas características precedentes e que consiste na imperfecti-bilidade do I.; 4a cegueira,
no sentido de que o I. foge ao controle do animal e o guia sem nenhuma iniciativa direta de sua parte. Algumas dessas
características por vezes foram pressupostas e mantidas na concepção científica do I. Contudo, são típicas da concepção metafísica, sendo caracteres
presumidos, deduzidos da função atribuída ao I. no cosmo, todos em oposição aos dados da observação. Essas
características também são admitidas e defendidas habitualmente pelos filósofos que têm uma concepção
providencialista do mundo biológico, como p. ex. os espiritualistas. Hegel também falou de um "I. da razão"
(Phánom. des Geistes, I, cap. V, "A observação da natureza"; trad. it, I, pp. 222, 225, etc), atribuindo a esse I. as
características gerais mencionadas antes.
Também é metafísica a teoria freudiana do I., especialmente do modo como é formulada em seus últimos textos. Os
instintos são "a última causa de toda atividade e sua natureza é conservadora: de cada estado atingido por um ser
surge a tendência a restabelecer esse estado quando ele foi abandonado."
Os I. podem ser múltiplos, podem mudar de alvo e uns podem substituir os outros, mas em última análise é possível
reconhecer dois instintos fundamentais em luta: Eros, ou I. de vida, e Thanatos, ou I. de destruição (Abriss der
Psychoanalyse, 1940, cap. II). Ver PSICANÁLISE.
2a As teorias científicas do I. são de duas espécies: A) explicativas; B) descritivas.
A) Existem três teorias explicativas fundamentais, que recorrem respectivamente: a) à ação reflexa; b) ao intelecto; c)
ao sentimento (simpatia).
a) A doutrina que explica o I. recorrendo à ação reflexa é a mais antiga. Foi defendida por SPENCER em Princípios de
psicologia (1855): "Enquanto nas formas primitivas da ação reflexa uma única impressão é seguida por uma única
contração, e enquanto nas formas mais desenvolvidas da ação reflexa uma única impressão é seguida por uma
combinação de contrações, nesta, que distinguimos como I., uma combinação de impressões é seguida por uma
combinação de contrações; e quanto mais superior for o I., tanto mais complexas serão as coordenações de direção e
de execução" {Princ. of Psychology, § 194). Essa tese foi substancialmente aceita por Darwin, que a modificou no
sentido de que o desenvolvimento dos I. seria devido à seleção natural dos atos reflexos que constituem os I. mais
simples. Darwin diz: "A maior parte dos I. mais complexos parece ter sido adquirida mediante a seleção natural das
variações de atos mais simples. Tais variações
BKITNTO
569
INSTINTO
• parecem resultar das mesmas causas desco-Bhecidas que ocasionam as variações ligeiras OU as
diferenças individuais nas outras partes do corpo, que agem sobre a organização cere-bial e determinam
mudanças que, na nossa
; ignorância, consideramos espontâneas" (Descent qfMan, 1871, I, cap. 3; trad. fr., p. 69). Essa
■ explicação do I. foi aceita não só por darwinistas eoeodarwinistas, mas também pelos que ela• boraram a teoria dos reflexos condicionados, que consideraram o I. como um reflexo condi„ CJonado complexo (cf. PAVLOV, OS reflexos condicionados; trad. it., p. 273). O defeito dessa teoria é
que as variações casuais dificilmente - poderiam explicar a formação de I. tão aperfei-• coados e
complexos como os dos insetos. ti) A segunda teoria explicativa tem em vista justamente a formação
desses I. mais complexos e considera o I. como inteligência degradada ou mecanizada. Essa doutrina,
apresentada por Romanes {Mental Evolution in Animais, 1883), foi amplamente aceita pela psicologia do
ftn do século passado. Eqüivale a ver o I. como um hábito que se formou e se aprefeiçoou através do
desenvolvimento de uma espécie animal. Wundt, especialmente, contribuiu para a difusão dessa doutrina.
Diz: "Os I. são movimentos oriundos de atos de vontade simples ou compostos que depois, durante a vida
individual ou ao longo de "um desenvolvimento geral, acabam mecanizados no todo ou em parte"
(Grundzüge derphysiologischen Psych., 4a ed., 1893, II, pp. 510 ss.; cf. System derPhil., 2a ed., 1897, p.
590). Essa concepção algumas vezes foi utilizada pelos filósofos, com vistas a uma metafísica
espiritualista (cf, p. ex., RENOUVIER, Nouvelle monadologie, 1899, p. 83), mas contra ela existe o fato
bem verificado de que os hábitos adquiridos não são transmissíveis por herança (v. HEREDITARIEDADE),
constatando-se ademais que, para explicar a formação de I. aperfeiçoados, não basta a hereditariedade da
disposição para contrair hábitos mais facilmente, que parece provada em alguns casos (Mac-Dougall).
c) A terceira teoria explicativa é a que relaciona o I. com os sentimentos, em particular com a simpatia. "I.
é simpatia", diz Bergson. "Nos fenômenos do sentimento, nas simpatias e antipatias irrefletidas, sentimos
em nós mesmos, de forma bem mais vaga e ainda demasiado penetrada de inteligência, algo do que deve
acontecer na consciência de um inseto que age por instinto. Para desenvolvê-los em profundidade, a evolução distanciou elementos que na origem se interpenetravam" (Évol. créatr., 1911, 8a ed., pp.
190-91). A evolução vital distanciou a inteligência do I., especializando o I. na tarefa de utilizar ou
mesmo de construir instrumentos organizados, e a inteligência, na de fabricar e utilizar instrumentos
inorganizados (Jbid., p. 152). Segundo Bergson, a especialização do I. depende do fato de o I. ser
utilização de um instrumento determinado para um fim determinado: de um instrumento que, além do
mais, é de enorme complexidade de detalhes, embora de funcionamento simplíssimo. Os instrumentos
fabricados pela inteligência, ao contrário, são muito menos perfeitos, mas podem mudar continuamente
de forma e adaptar-se às novas circunstâncias. Isso explica também por que o I. não é consciente ou o é
minimamente: a consciência mede a distância entre a representação e a ação (entre as diversas
possibilidades de agir e a ação efetiva); no I. essa distância é mínima porque é mínima a parte passível de
escolha (Jbid., p. 157). Scheler, fazendo referência a essa doutrina de Bergson, como capaz de explicar os
I. mais complicados (p. ex., o dos himenópteros, que paralisam, mas não matam escaravelhos ou aranhas
para pôr seus ovos, cf. FABRE, Souvenirs entomologiques, I, 3a ed., 1894, pp. 93 ss.), declara considerar
provável que "nos atos instintivos dessa espécie, que nos põem em presença de uma concatenação
finalista, lógica, das fases de atividade de muitos seres, estejamos apenas diante de um exagero anormal
daquilo que é a verdadeira fusão afetiva na esfera da atividade humana" (Sym-pathie, cap. I; trad. fr., p.
50). Essa é uma aceitação substancial do ponto de vista de Bergson, mas corrigindo aquilo que Bergson
chama de simpatia para fusão afetiva (quanto à diferença entre as duas, v. SIMPATIA). A doutrina de
Bergson foi amplamente aceita pelos filósofos, mas encontrou pouca acolhida junto aos fisiologistas e
psicólogos. Continua sendo uma das alternativas possíveis para uma explicação do instinto. Este, com
efeito, pode ser relacionado com qualquer uma das duas atividades que supostamente dirigirem a conduta
humana: a inteligência e o sentimento. A interpretação (£>) procura vincular o I. à inteligência; a
interpretação (c), ao sentimento.
B) Na psicologia contemporânea, a influência do gestaltismo, em sua concepção de abandono definitivo
da teoria dos reflexos que ten-
INSTINTO
570
INSTITUIÇÃO
dia a resolver o I. em atividades elementares (as ações reflexas), favoreceu também o abandono de qualquer teoria
explicativa e o recurso a teorias descritivas, fundadas em ampla base de observações. Desse ponto de vista, a
descrição do I. mais comumente adotada é a de G. E. Müller, que modificou oportunamente uma definição de
MacDougall: "O I. é uma disposição psicofísica, dependente da hereditariedade, muitas vezes completamente
formada logo depois do nascimento, outras vezes só depois de certo período de desenvolvimento, que orienta o
animal a dar atenção especial a objetos de certa espécie ou de certo modo, e a sentir, depois de perceber esses objetos,
um impulso para determinada atividade, em conexão com eles" (cf. D. KATZ, Mensch und Tier, 1948; trad. in., p. 1
71). Definições desse tipo tornam inútil até mesmo o nome I., que, de fato, alguns psicólogos tendem a substituir por
outros termos, menos comprometidos pelo uso secular (propensão, tendência). Às vezes, insiste-se no caráter
totalitário da disposição instintiva, considerando-a como um "esquema unitário" que cresce e diminui como um todo
(cf. R. B. CATTELL, Personality, Nova York, 1950, p. 195). A etologia comparada distingue no I. aquilo que Konrad
Lorenz chamou de mecanismo desencadeante, conjunto de condições que servem de estímulo para a conduta
instintiva, e o ato consumador, constituído por um esquema ou plano de movimentos, hierarquicamente organizado,
que é o comportamento instintivo propriamente dito. Essa organização hierárquica do comportamento instintivo
torna-se menos flexível à medida que nos aproximamos da conduta em ato. Para Tinbergen, essa flexibilidade
depende das mudanças no mundo externo ( The Study oflnstinct, 1951, p. 110). Para Lorenz, o desencadeamento da
conduta instintiva também pode ser provocado por um acúmulo de energia endógena (de natureza
predominantemente físico-química) que, tanto no animal quanto no homem, constitui um /. de agressão-, este
instinto, se entregue a si mesmo, leva os homens à destruição recíproca, mas pode ser disciplinado e canalizado para
alvos que não ponham em risco a convivência humana. A descarga da agressão sobre objetos constituídos seria o
privilégio do homem, que pode mudar a direção de seu impulso instintivo (Das sogenannte Bóse, 1963, cap. XII).
Essa doutrina continua atribuindo ao I. o papel principal na determinação do comportamento humano e animal, mas,
por outro lado, chegou-se a duvidar que, para explicar esse comportamento, fosse possível utilizar o conceito de I. (cf.
o simpósio sobre esse assunto no British Journal of Educacional Psychol, nov. 1941). Também se propõe uma
concepção "estatística" do L, segundo a qual ele é apenas "o fator de um grupo inato e conativo" (BURT, "The Case for
Human Instincts" na Rev., cit., 3a parte; cf. J. FLUGEL, Studies in Feeling andDesire, Londres, 1955). Essa negação do
I. diz respeito sobretudo ao homem. Katz dissera: "No homem, os I. determinam apenas a força de um impulso à ação
e seu esquema geral. Esse esquema é indefinido e varia segundo a ocasião e o indivíduo. P. ex., em todas as crianças
o I. lúdico desenvolve-se e floresce em certo período e depois morre. Mas o modo como as crianças realmente
brincam varia muito. Além isso, é na infância que o homem está mais sujeito à influência dos instintos. Mais tarde, a
conduta de vida é tão controlada pelas forças externas que é difícil distinguir sua base instintiva. Ao contrário dos
animais, ele não passa a vida dentro da segurança dos L, mas tem a capacidade de formá-los" (Animais and Men, cit.,
p. 173). Em sociologia, às vezes se fala em I. como fator dominante da cultura ou dos seus aspectos fundamentais. Ao
I. Pareto atribuía as ações "não lógicas" (Sociologia generale, 1923, § 157). Thorstein Veblen, em suas explicações
sociológicas, freqüentemente recorria ao L: I. de eficiência, ao I. animista, etc. (cf. The Instinct of Workmanship and
the State of Business Enterprise, 1904). Hoje em dia esse ponto de vista é freqüentemente contestado. "A cultura não
é instintiva sob nenhum aspecto: ela é exclusivamente aprendida. A partir da publicação de /, de Bernard, em 1924,
foi impossível aceitar qualquer teoria do I. como a explicação do esquema cultural universal ou como a solução de
certos problemas culturais" (G. P. MURDOCK, em R. LINTON, The Science of Man in the World Crisis, Nova York, 7*
ed., 1952, pp. 126-27).
INSTITUIÇÃO (lat. Institutio; in. Institution; fr. Institution; ai. Anstalt; it. Istituzioné). 1. Na lógica terminista
medieval, é a adoção de um novo vocábulo durante a discussão, pelo tempo que ela dura (cf. OCKHAM, Summa log.,
III, 3, 38). A finalidade dessa adoção é tornar a linguagem mais concisa, discutir uma coisa desço-
INSTRUMENTALISMO
571
INTELECTO
nhecida ou enganar o interlocutor ou permitir-lhe responder mais facilmente às objeções. Neste último sentido é uma
das obrigações (v.).
2. Na sociologia contemporânea, esse termo éde uso freqüente e foi empregado, p. ex., por Durkheim como objeto
específico da sociologia, definida precisamente como "ciências das instituições" (Règles de Ia méthode sociologique,
2a ed., p. XXIII). A instituição por vezes foi entendida como um conjunto de normas que regulam a ação social
(exatamente como faz Durkheim); outras vezes, em sentido mais geral, como "qualquer atitude suficientemente
recorrente num grupo social" (cf. ABBAGNANO, Problemi di sociologia, 1959, IV, 2). . INSTRUMENTALISMO. V.
PRAGMATISMO.
INSTRUMENTO (in. Instrument; fr. Instrument; ai. Werkzeug; it. Strumentó). Essa palavra foi ampliada por
Dewey, designando todos os meios capazes de obter um resultado em qualquer campo da atividade humana, prático
ou teórico. Dewey diz: "Como termo geral, instrumental significa a relação meios-resultados como categoria
fundamental para a interpretação das formas lógicas, enquanto operacional exprime as condições graças às quais a
matéria: Ia se torna apta a servir como meio e 2° efetivamente funciona como meio para a transformação objetiva, que
é o objetivo da indagação" {Logic, I, § 2, nota; trad. it., pp. 47-48).
INTEGRAÇÃO (in. Integration; fr. Integration; ai. Integration; it. Integrazione). Este termo tem significados
diversos em diferentes ramos do saber. Em matemática, é o processo com o qual se determina o valor de uma
grandeza como soma de partes infinitesimais tomadas em número sempre crescente. Em biologia, significa o grau de
unidade ou de solidariedade entre as várias partes de um organismo, ou seja, o grau de interdependência dessas
partes. Analogamente, em psicologia significa o grau de unidade ou de organização da personalidade; em sociologia,
o grau de organização de um grupo social.
Spencer, em Primeiros princípios(1862), via na I. uma das características fundamentais da evolução cósmica
enquanto passagem de um estado indiferenciado, amorfo e indistinto para um estado diferenciado, formado e
unificado (First Principies, § 94).
LNTELECTÍVEL (lat. Intellectibilis). O que não é sensível e não tem relação com o que é sensível; nisto, é
diferente de inteligível (v.),
que pode assemelhar-se ao sensível ou ser compreendido nele (InPorphirium, I, P. L., 64, col. II). Essa distinção,
estabelecida porBoécio, foi retomada por Hugo de São Vítor. O I. é o divino ou aquilo que de divino há no homem, p.
ex., a alma (Didascalion, II, 3, 4).
INTELECTO (gr. voOç; lat. Intellectus, in. Understanding; fr. Intelligence, ai. Verstand; it. Intellettó). Este termo
foi constantemente usado pelos filósofos com dois sentidos: lfi genérico, como faculdade de pensar em geral e 2específico, como uma atividade ou técnica particular de pensar. Com este segundo significado, esse termo é entendido
de três maneiras diferentes: d) como I. intuitivo; b) como I. operante; c) como entendimento, inteligência ou
intelecção.
le Platão e Aristóteles definem em geral o I. como faculdade de pensar. Platão de fato dá o nome de I. à atividade que
pensa (Sof., 248e-249a) e, portanto, confere limites, ordem e medida às coisas (Fil., 30c; Tim., 48a); denomina
pensamento (vóncriç) o conjunto da ciência e da dianóia, ou seja, as atividades superiores da alma contrapostas à
conjectura e à crença, reunidas sob o nome de opinião (Rep., VII, 534a). Por sua vez, Aristóteles declara entender por
I. "aquilo graças a que a alma raciocina e compreende" (Dean., III, 4,429a 23), significado genérico que já fora dado
por Parmênides (Fr. 16, Diels) e por Anaxágoras (Fr. 12, Diels). É óbvio que todos aqueles que, como Anaxágoras,
Platão e Aristóteles, atribuíram ao I. a função de ordenar o universo não o entenderam como atividade ou técnica
específica, mas no significado mais genérico de atividade pensante, capaz de escolher, coordenar e subordinar.
Mesmo a contraposição — tão freqüente nos antigos e já presente em sua forma extrema em Parmênides (Fr. 8,
Diels) — entre I. e sentidos implica atribuir ao I. o significado genérico de faculdade de pensar. Analogamente, a
substancialização que o I. sofre no neoplatonismo é a da faculdade de pensar em geral, em todas as suas múltiplas
formas (cf. p. ex., PLOTINO, Enn. III, 8, 9-10).
Esse significado genérico foi conservado na tradição filosófica até o Romantismo. S. Tomás expressava-o
contrapondo o I. aos sentidos: "O substantivo I. implica certo conhecimento íntimo; intelligere é como 'ler dentro'
(intus legere). Isso é evidente a quem considera a diferença entre o I. e os sentidos: o conhecimento sensível concerne
às qualidades sensíveis
INTELECTO
572
INTELECTO
externas; o conhecimento intelectivo penetra até a essência da coisa" (S. Th., II, 2, q. 8, a. 1). Por outro
lado, tem-se o mesmo significado genérico quando esse termo é contraposto à vontade, como acontece, p.
ex., em Locke: "A capacidade de pensar é que se denomina I., e a capacidade de querer é o que se
denomina vontade: duas capacidades ou disposições da alma às quais se dá o nome de faculdade" (Ens.,
II, 6, 2). Leibniz, por sua vez, entendia por I. "a percepção distinta unida à faculdade de refletir, que não
existe na alma dos animais" (Nouv. ess., II, 21, 5). Essa noção foi depois tomada por Wolff (Psychol.
empírica, § 275). A definição de I. como "faculdade de pensar" é lugar comum no séc. XVIII; Kant só faz
repeti-lo: "I. é a faculdade de pensar o objeto da intuição sensível" (Crít. R. Pura, Lógica, Intr., I) ou "o
poder de conhecer em geral" (Antr., 1, § 6, 40).
Mas de repente, com o Romantismo, o I. deixa de ter valor de faculdade de conhecer em geral e descobrese a "imobilidade" do intelecto. Essa descoberta é feita por Fichte: "O I. é I. só quando alguma coisa está
fixada nele; e tudo o que se fixa fixa-se apenas no intelecto. OI. pode ser definido como a imaginação
fixada pela razão, ou como a razão provida de objetos da imaginação. O I. é uma faculdade espiritual em
repouso, inativa, é o puro recep-táculo do que foi produzido pela imaginação e que a razão determinou ou
ainda está para determinar" (Wissenschaftslebre, 1794, II, Dedução da representação, III, trad. it., p. 184).
Mas foi por meio de Hegel que acabou prevalecendo em filosofia a noção de I. "imóvel", "rígido",
"abstrato": "Como I., o pensamento detém-se na determinação rígida e na diferença entre ela e as outras;
para o I., esse produto abstrato e limitado é autônomo e existente" {Ene, § 80). O I. é caracterizado pela
imobilidade de suas determinações: ele "determina e fixa suas determinações" (Wissenschaft der Logik,
Pref. à Ia edição, trad. it., p. 5). Essa imobilização é um falseamento, como se vê pela forma como o I.
entende a relação entre infinito e finito, originando o "falso infinito". "O falseamento em que o I. incorre
em relação ao finito e o infinito, que consiste em fixar como diversidade qualitativa a relação entre
ambos, em afirmar, ao determiná-los, que são separados, e separados em absoluto, tem como base o
esquecimento daquilo que para o próprio I. é o conceito desses momentos" (Ibid., I, I, seç. I, cap. 2, C, c, trad. it., I, p. 157). Dessa forma, "fixar"
"imobilizar", "determinar em absoluto" são as operações que descrevem a atividade do I., em
contraposição à razão, atividade autêntica do pensamento que elimina a fixidez e a rigidez das
determinações intelectuais, sendo capaz de fluidificá-las e relativizá-las. Essa contraposição torna-se
lugar-comum em grande parte da filosofia do séc. XIX: o I., portanto, desce de sua posição de faculdade
de pensar e passa para a situação secundária ou subordinada de faculdade de pensamento abstrato, ou
seja, de falso pensamento. A persistência desse lugar-comum, sem qualquer justificação séria, pode ser
verificada pelo fato de que, no início do séc. XX, Bergson propôs (Evolução criadora, 1907) a crítica do
I. considerado, segundo o esquema hegeliano, faculdade que tem por objeto específico o que é imóvel,
inerte, rígido e morto, sendo, portanto, radicalmente incapaz de compreender o movimento e a vida.
Dessa forma, substituía-se a contraposição hegeliana I.-razão pela contraposição I.-vida ou I.-consciência,
que inspirou e ainda hoje inspira algumas manifestações da filosofia contemporânea. Todavia, mesmo
fora dessas antíteses estereotipadas, a noção do I. como faculdade de pensar em geral não está presente na
filosofia contemporânea, tendo sido substituída pela noção de pensamento ou razão (v.).
2B O reconhecimento do significado genérico de I. pode ocorrer ou não em conjunto com o
reconhecimento de um significado específico. Podem ser distinguidas três interpretações fundamentais da
função específica do I.: à) intuitiva; b) operante, c) de entendimento ou inteligência.
a) A noção de I. intuitivo foi elaborada por Aristóteles. Para ele, além de ser geralmente a faculdade
"graças à qual a alma raciocina e compreende", o I. é também uma virtude dianoética, ou seja, um hábito
racional específico. Como tal, é a faculdade de intuir os princípios das demonstrações, que não podem ser
apreendidos pela ciência — que é apenas um hábito demonstrativo — nem pela arte e pela sabedoria, que
dizem respeito "às coisas que podem ser de outra forma", desprovidas de necessidade (Et. nic, VI, 6,
1140b 31 ss.). Além dessas "definições primeiras", o I. também tem a tarefa de intuir "os termos últimos",
ou seja, os fins aos quais deve subordinar-se a
CTO
573
INTELECTO
o (Jbid., VI, 11, 1143b). Ao lado da ciêno I. constitui a sabedoria, "que é ao mestempo ciência e intuição das coisas mais
ílsas por natureza" (Jbid., VI, 7, 1151b 2),
o por isso a mais alta realização do ho■Essa função específica do I., de intuir os cípios comuns do raciocínio, foi admitida S. Tomás (S. Th., I, q. 8, a. 1) e
por muitos os escolásticos, ao lado da função genérica "pensar". Kant, por sua vez, fazia a distinção lícita entre I. no
sentido genérico e I. como Idade específica que está ao lado do juízo razão. Dizia: "A palavra I. também é enten-em
sentido mais particular quando o I. é rdinado, como membro de uma divisão, JK) I. entendido em sentido mais geral,
como ffcculdade superior de conhecer constituída por ,i> juízo e razão" (Antr., I, § 40). Nesse sentido ÀBpecífico, o
I. é a faculdade de julgar, e o juízo que lhe compete é o juízo determinante, cujas jleis constituem o objeto natural em
geral (mais -precisamente, a forma de tal objeto). Essas leis láo "prescritas apriori" ao I., ou seja, dadas em seu
funcionamento (Crít. R. Pura, Analítica dos conceitos, seç. I; Crít. do Juízo, Intr., § IV). Nesse sentido específico,
como faculdade de - julgar, o I. não é intuitivo no sentido de estar em relação direta com o objeto; aliás, é uma
relação mediata com o objeto porque, enquan-tojuízo sobre uma representação, é, segundo a expressão de Kant, "a
representação de uma representação". Mas é intuitivo no mesmo sentido em que é intuitivo o I. específico de
Aristóteles: está em relação imediata com leis ou princípios fundamentais que entram na constituição e na
organização da ciência e da estrutura de seus objetos. A diferença entre o ponto de vista de Aristóteles e o de Kant é
que, para Aristóteles, o I. tem a função de formular os princípios primeiros utilizados pela ciência demonstrativa e de
perceber a evidência deles; para Kant, ao cumprir a função de julgar, o I. põe em funcionamento os princípios que o
constituem, mesmo sem necessidade de formulá-los explicitamente. Essas duas alternativas são as únicas
historicamente presentes na interpretação do I. como faculdade intuitiva específica.
b) A concepção operante do I. foi apresentada por Bergson, que a enxertou no conceito romântico do I. entendido
como faculdade de imobilizar. Deste ponto de vista, o I. é "a faculdade de fabricar objetos artificiais, em especial
para fazer utensílios, e de variar indefinidamente sua fabricação" (Évol. créatr., 1911, 8a ed., p. 151). Portanto, é a
solução de um problema que, numa outra linha evolutiva, levou ao instinto entendido como faculdade de utilizar
instrumentos organizados. Devido à sua função operante, a inteligência tende a captar as relações entre as coisas, e
não as próprias coisas; portanto, sua forma, e não a sua matéira; tem por objeto principal o sólido inorgânico, imóvel,
e é caracterizada por uma incompreensão natural do movimento e da vida (Jbid., p. 179). Essa análise de Bergson
influenciou muito a filosofia contemporânea, cujas correntes espiritualistas e idealistas utilizaram freqüentemente
suas conclusões para afirmar que "o I. abstrato" é, quando muito, eficaz no domínio da ciência, que também é
conhecimento "abstrato", mas que pouco ou nada vale no domínio da consciência efetiva, que seria o filosófico. Mas
também fora do âmbito dessas intenções denegridoras que envolvem o I. e a ciência, a função operante do I., graças à
qual ele é a capacidade de enfrentar com sucesso as situações biológicas, sociais, etc. nas quais o homem se encontre,
acabou caracterizando o próprio I., sendo, portanto, difícil ver nele, hoje, um órgão de funções puramente teóricas. O
pragmatismo certamente contribuiu para a formação deste ponto de vista, que se tomou lugar-comum da filosofia
contemporânea.
c) No terceiro significado específico de I., ele significa entendimento, sendo mais apropriadas, além de
"entendimento", as palavras inteligência e intelecção (em italiano, intelli-genza; em francês, entendement; em
alemão, Versteheri). Essa acepção do termo, por sua vez, pode ser articulada em dois significados:
a) Um significado comum e genérico, em que "entender" significa apreender o significado de um símbolo, a força de
um argumento, o valor de uma ação, etc. Em todos estes casos, a palavra exprime a possibilidade de efetuar
corretamente determinada operação. P. ex., o entendimento de um signo consiste na possibilidade de estabelecer
corretamente (com base no uso ou em regras devidas) a referência entre o sinal e seu referente. O entendimento de
um argumento consiste na possibilidade de interligar suas partes de tal forma que o argumento se torne probante, etc.
Nestes casos, há tanta diversidade entre os vários significados de entendimento quanto entre os objetos e as situações
às quais se faz referência. Em geral,
INTELECTO ATIVO
574
INTELECTO ATIVO
tudo o que pode ser dito desse ponto é que o entendimento designa certa capacidade de inserir-se no contexto de tais
situações e de orientar-se nele.
P) Um significado mais restrito e específico, no qual entendimento significa a compreensão de certo tipo de objetos,
como p. ex. de um homem ou de uma situação histórica. Para tal significado do termo, v. COMPREENDER.
INTELECTO ATIVO (gr. voüÇ7tovnTixóç; lat. Intellectus agens; in. Active intellect; fr. Intellect actif, ai. Active
Intellekt; it. Intellettoattivó). Noção de origem aristotélica que deu lugar a um problema longamente debatido pelos
antigos comentadores de Aristóteles, pela escolástica árabe, pela escolástica cristã e pelo aristote-lismo renascentista.
O problema nasce da distinção feita entre I. potencial e I. atual. "Assim como, em toda a natureza" — diz Aristóteles
—, "existe alguma coisa que serve de matéria a cada gênero e alguma coisa que é causalidade e atividade, também na
alma deve necessariamente haver estas duas coisas diferentes. De fato, de um lado está o I. que tem a potencialidade
de ser todos os objetos e do outro lado está o I. que os produz, que se comporta como a luz: esta também permite que
passem ao ato as cores que estão apenas em potência. Esse I. é isolado, impassível e sem mescla, pois sua substância
é a própria ação" {Dean., III, 5, 430 a 10). Aristóteles acrescenta que só este I. atual e ativo é "imortal e eterno".
Donde o problema: ele pertenceria à alma humana ou, graças à sua incorruptibilidade, faria parte da eternidade e da
atualidade perfeita, da divindade? Foram três as principais soluções para esse problema:
Ia Separação entre I. ativo e alma humana. Esta é a solução defendida na Antigüidade pelo comentador de Aristóteles,
Alexandre de Afro-dísia (séc. II), que identificou o I. ativo com a causa primeira, com Deus. Assim, pertenceriam à
alma humana: d) I. físico ou material {ílico), que é o I. potencial, semelhante ao homem que é capaz de aprender uma
arte mas que ainda não a domina; tí) I. adquirido (èniK-TnTUÓç, adeptus), que é o aperfeiçoamento ou a
completitude do anterior, o conjunto das habilidades próprias no homem educado, semelhante ao artista que chegou a
dominar sua arte {Dean., I, ed. Bruns., p. 138-39). Essa solução, negando à alma humana o único I. imortal e eterno
que é o ativo, por um lado nega a imortalidade da alma e por outro acentua a dependência da atividade intelectual humana em relação aos sentidos. Reaparece com freqüência na história da filosofia. É
retomada pelo neo-platonismo árabe, com Al Kindi (séc. IX), Al Farabi (séc. IX) e Avicena (séc. XI); este último,
todavia, não achava que essa solução contrariasse a imortalidade da alma, pois admitia que a dependência da alma em
relação ao I. ativo, logo em relação a Deus, se mantivesse mesmo depois da separação entre alma e corpo, bastando
isso para conferir a imortalidade à alma {De an., 10). Essa doutrina também era aceita por Ib Bagia (séc. XII), Moisés
Ben Maimon (Maimônides, séc. XII), o mais famoso dos filósofos judaicos da Idade Média {Cuide des égarés, I, 5052) e por Roger Bacon {Opus maius, ed. Bridges, p. 143). No Renascimento, essa solução foi defendida por Pietro
Pompo-nazzi, que insistia nas condições sensíveis do funcionamento do I. humano e considerava impossível a
demonstração da imortalidade {De immortalitate animae, 9).
2- A separação entre I. ativo e I. passivo na alma humana. Esta foi a solução proposta por Averróis. O I. material ou
ílico, que os defensores da solução anterior atribuíam ao homem, também é considerado por Averróis separado da
alma humana. Na alma humana, o I. material nada mais é que uma simples disposição transmitida pelo I. ativo, e
mais exatamente uma disposição a abstrair conceitos e verdades universais de imagens sensíveis. Portanto, ao homem
só resta o I. adquirido, que Averróis denomina também especulativo e que consiste no conhecimento das verdades
universais {Dean., foi. l65a). Essa doutrina é típica do averroísmo medieval: foi defendida por Siger de Brabante (séc.
XIII) na obra De anima intellectiva (editado em Mandonnet, Siger de Brabant et 1'aver-roisme latin au XIIF siècle,
II, Lovaina, 1908). Essa solução teve numerosos seguidores no aristotelismo do Renascimento (cf. BRUNO NAR-DI,
Sigieri di Brabante nel pensiero dei Rinas-cimento italiano, 1945).
3a Unidade do I. ativo e passivo com a alma humana. Esta tese foi sustentada no séc. IV pelo comentador de
Aristóteles Temísio {De an., 103, 6; trad. it. p. 233), em polêmica com Alexandre, e mais tarde (séc. IV) pelo outro
comentador Simplício, também neoplatônico. Foi retomada no séc. XIII, durante a polêmica contra o averroísmo que
se deu na escolástica latina daquele tempo. Alberto Magno e S. Tomás opõem-se à separação entre I. de alma,
INTELECTUALISMO
575
INTENÇÃO
defendida por Averróis e Alexandre. Admitem que, acima da alma humana, está o I. separado de Deus, mas acham
que o homem participa desse I. e que o I. ativo faz parte da sua alma como uma luz acesa pelo I. divino (ALBERTO, De
intellectu et intelligibili, II, 1-2; S. TOMÁS, S. Tb., I, q. 79, a. 4). Provavelmente foi contra uma obra de Siger que S.
Tomás escreveu De unitate intellectus contra Averroistas, cuja resposta se encontra em De anima intellectiva, de
Siger. A principal objeção de S. Tomás é que, se o I. fosse uma substância separada, quem entenderia não seria o
homem, mas essa substância, ao que Siger responde que o I. não age no homem como um motor, mas operans in
operando, ou seja, como princípio diretivo de sua atividade. No Renascimento, foi sobretudo Marsílio Ficino quem
defendeu a unidade do I, com a alma humana (Theologia platônica, XV, 14).
O problema do I. ativo é específico do aristotelismo e não tem sentido fora dele. Portanto, deixa de ser debatido
quando o aristotelismo deixa de determinar os rumos gerais da filosofia. Já entre o fim do séc. XIII e o início do séc.
XIV existem filósofos que negam explicitamente o I. ativo e evitam, portanto, propor-se esse problema. Durand de S.
Pourçain diz que, assim como não se supõe um "sentido ativo", é inútil supor um I. ativo (In Sent., I, d. 3, q. 5 26), e
Ockham afirma que a função de abstrair, atribuída ao I. ativo, desenrola-se na-turaliter, como efeito das noções
sensíveis e não exige o I. ativo, cuja noção, portanto, só tem apoio na autoridade de santos e filósofos (In Sent., II, q.
25). Esse ponto de vista prevaleceu desde os primórdios da filosofia moderna, que abandona completamente essa
questão.
INTELECTUALISMO (in. Intellectualism; fr. Intellectualisme, ai. Intellektualismus-, it. Inte-llettualismó). Com
este termo Hegel designava a filosofia de Plotino, interpretando o êxtase como ato de sair da consciência sensível e
"puro pensar". "A idéia da filosofia plotiniana" — dizia ele — "é portanto um I. ou um idealismo superior que,
certamente do lado do conceito, não é ainda idealismo perfeito" (Ges-cbicbte derPhilosophie, I, seç. III, Plotino; trad.
it., p. 41). Esse termo agora é usado pelas filosofias da vida e da ação para tachar a corrente contrária, para a qual o
intelecto (ou pensamento ou razão) tem função dominante na consciência e na conduta do homem. Esse termo foi
freqüentemente empregado pelo
intuicionismo bergsoniano, pela filosofia da ação, pelo modernismo, pelo pragmatismo, ou seja, por todas as
filosofias que tendem a depreciar o valor do intelecto como via de acesso à verdade e como guia da conduta e a julgar
muito mais importante a intuição, a simpatia, o instinto, a vida, a vontade, etc. Por vezes esse termo foi contraposto a
voluntarismo (v.) para indicar a primazia atribuída ao intelecto sobre a vontade; nesse sentido, também foi empregado
com a finalidade de caracterizar historicamente certos pontos de vista. Assim, falou-se do I. de S. Tomás e do
voluntarismo de Duns Scot, aludindo ao peso diferente que nesses filósofos têm as duas atividades humanas
fundamentais. Trata-se, porém, de significados e caracterizações pouco precisos.
INTELIGÍVEL (gr. VOT)TÓÇ; lat. Intelligibilis, in. Intelligible, fr. Intelligible, ai. Intelligibel; it. Intelligibilé). Em
geral, o objeto do intelecto. Aristóteles dissera: "todos os entes são sensíveis ou I." (De an., III, 8, 431b 21). O I. é o
objeto do intelecto assim como o sensível é o objeto dos sentidos. Essa simetria é mantida por todos os filósofos que
admitem a distinção entre sensibilidade e intelecto. Platão denominou I. a esfera do conhecimento que compreende a
dianôia e a ciência, distinta da esfera da opinião, que compreende a conjectura e a crença (Rep., VII, 534a). Para o
neoplatonis-mo, o mundo I. compreende as três primeiras hipóstases: o Uno, o Intelecto e a Alma do Mundo
(PLOTINO, Enn., II, 9, 1). Para Kant, o mundo I. é o mundo de que o homem faz parte como "atividade pura", ou seja,
não sendo influenciado pela sensibilidade, mas agindo com base na espontaneidade da razão. "Por um lado" — diz
Kant —, "o homem, por pertencer ao mundo sensível, está submetido às leis da natureza; por outro, por pertencer ao
mundo I., está submetido às leis que não dependem da natureza, portanto não empíricas, mas fundadas unicamente na
razão" (Grundle-gung zurMetaphysik der Sitten, III). Nesse sentido, o mundo I. é o mundo moral.
Em sentido mais específico, diz-se que é I. o que pode ser entendido ou compreendido, em correspondência com os
significados 2Q, c, de Intelecto (v.).
INTENÇÃO (lat. Intentia, in. Intention, fr. Intention; ai. Gesinnung; it. Intenzioné). Propriamente, a intencionalidade
no domínio prático, ou seja, a referência de uma atividade prática (desejo, aspiração, vontade) ao seu pró-
INTENÇÃO
576
INTENCIONALIDADE
prio objeto. Nesse significado, a intenciona-lidade do ato moral pode ser reconhecida por qualquer doutrina moral.
Todavia, a insistência no valor da I. como condição da moral é uma das características da ética do fim, distinta da
ética do móbil (v. ÉTICA). Na ética do móbil, a moralidade da ação é julgada em termos de eficiência em produzir o
bem-estar, a felicidade, etc. Na ética do fim, entretanto, a ação é julgada em termos da direção que o sujeito imprime
à ação, que é exatamente a intenção. A esse respeito, S. Tomás diz com justiça que "a I. é o nome do ato da vontade,
estando pressuposto o ordenamento da razão, que ordena alguma coisa para um fim"; é que "a I. pertence primordial e
principalmente àquilo que se move para um fim", sendo por isso "o ato da vontade" (S. Th., II, 1, q. 12, a. 1). Nesse
sentido, a I. é própria da ética do fim. Portanto, sua noção não se encontra na ética aristotélica, em que a análise do
ato moral é feita com base na ética do móbil; não se encontra nenhuma ética do mesmo gênero, como p. ex. o
utilitarismo. Por outro lado, a moral teológica tende a insistir no valor da intenção. Abelardo dizia: "Deus não toma
em consideração as coisas feitas, mas o espírito com que são feitas, e o mérito e o valor de quem age não consiste na
ação, mas na I." (Scito te ipsum, 3). A própria moral kantiana, sobretudo em seus aspectos de pregação leiga e
edificante, insiste muito no valor da I.: a exaltação da "boa vontade" com a qual se inicia a Fundamentação da
metafísica dos costumes na realidade é uma exaltação da intenção. E a primeira parte da Crítica da Razão Prática
conclui-se com a exaltação da "I. realmente moral e consagrada à lei". Ao contrário, a diferença entre a ética da I. e a
ética objetiva foi bem expressa por Max Weber: "Na esfera da conduta pessoal existem problemas éticos específicos
que a ética não pode resolver com base em seus próprios pressupostos. Antes de mais nada há a questão fundamental
de saber se: d) o valor intrínseco da conduta ética — a 'vontade pura' ou a 'I.', como se costuma denominar — basta
para a sua justificação, segundo a máxima cristã: 'o cristão age bem e deixa por conta de Deus as conseqüências de
sua ação' ou b) a responsabilidade das conseqüências previsíveis da ação deve ser tomada em consideração. Toda
atitude politicamente revolucionária, em especial o sindicalismo revolucionário, partem do primeiro postulado; toda
política realista, do segundo. Ambas invocam princípios éticos. Mas esses princípios estão em eterno conflito, o que não pode ser resolvido só por meio da ética" ("Der
Sinn der Wert-freiheit der soziologischen und õkonomischen Wissenschaften", 1917; trad. in., em The Me-thodology
ofthe Social Sciences, p. 16). A ética moderna e contemporânea, por ser predominantemente uma ética do móbil (v.
ÉTICA) dá primazia àquilo que Weber denominou segundo postulado. Por outro lado, o ceticismo tão difundido na
filosofia contemporânea, quanto à possibilidade de conhecer com probabilidade suficiente o que acontece no âmago
da consciência individual, levou o behaviorismo a considerar a I. como operação (ou como parte de uma operação)
que constitui a execução de um plano ou projeto de conduta. Nesse caso, a frase "tenho a intenção de ver João"
significa simplesmente que estou empenhado na execução de um plano de que faz parte encontrar com João (MILLER,
GALANTER, PRIBBAN, Plans and the Structure of Behavior, 1960, p. 61).
INTENCIONALIDADE (lat. Intentionalitas; in. Intentionality, fr. Intentionnalité, ai. Inten-tionalitãt; it.
Intenzionalitã). Referência de qualquer ato humano a um objeto diferente dele: p. ex., de uma idéia ou representação
à coisa pensada ou representada, de um ato de vontade ou de amor à coisa querida ou amada, etc. Essa noção foi
inicialmente empregada com relação à atividade prática, donde o significado, ainda hoje predominante, da palavra
intenção (v.) que designa exatamente a referência da atividade prática ao seu objeto. O neoplatonismo árabe estendeu
pela primeira vez seu sentido, para designar a relação entre o conhecimento e seu objeto, chamando os conceitos de
intenções. Ao determinar a diferença entre a lógica e as ciências reais, Avicena afirmou que, enquanto estas últimas
têm por objeto as primeiras intenções (intensiones primo intellectaé), ou seja, conceitos que se referem a coisas reais,
a lógica tem por objeto as segundas intenções (intensionessecundo intellectaé), ou seja, conceitos que se referem a
outros conceitos (Mel, I, 2). Alberto Magno reproduziu esta distinção (InMet., I, 1, 1), que se tornaria familiar aos
filósofos do séc. XIII. S. Tomás, por sua vez, considerava a intenção como "a semelhança da coisa pensada" (Contra
Gent., IV, 11), distinguindo-a por vezes da espécie inteligível pela sua indiferença à ausência ou à presença do objeto
e pelo fato de abstrair das condições materiais sem as quais esta última não
INTENCIONALIDADE
577
INTENSÂO e EXTENSÃO
existe na natureza {Ibid., I, 53), e outras vezes identificando-a com a espécie inteligível (S. Th., I, q. 85, a. 1, ad 42).
Mas o conceito de I. só ganhou destaque quando, entre o fim do séc. XIII e o começo do séc. XIV, começou-se a
duvidar da doutrina da espécie (v.) como intermediária do conhecimento e deixou-se de ver no ato cognitivo uma
"semelhança", uma cópia ou imagem da coisa. Durand de S. Pourçain afirmava que é o próprio objeto, e não a
espécie, que se apresenta ao sentido e ao intelecto {In Sent., II, d. 3, q. 6, n. 10) e Pedro Auréolo observava, a
respeito, que, se a espécie fosse o objeto do conhecimento, este não diria respeito à realidade, mas apenas à imagem
dela. Auréolo, portanto, julgava que o objeto do conhecimento era a coisa em seu ser intencional ou objetivo, ou seja,
assumida como termo da I. do conhecimento {Ibid., I, d. 23, a. 2). O esse intentionale ou esse apparens, como
também o denominava Auréolo, é a manifestação da coisa à I. cognoscitiva da mente {Ibid., I, d. 9, a. 1). Para
Ockham, isso se afigurava como um anteparo inútil entre o intelecto e a coisa {Ibid., I, d. 27, q. 3 CC). Para ele, o ato
cognitivo é uma intentio, no sentido de referir-se diretamente à coisa significada. Como intenção, o conceito não
passa de signo que está no lugar de uma classe de objetos, qualquer um dos quais pode substituir o conceito nos
juízos e raciocínios em que aparece {Ibid., I, d. 23, q. 1, D; Quodl, IV, q. 35; Summa log., I, 12).
A I., como referência ao objeto, fora assim reduzida pela escolástica medieval à referência do signo ao seu designato,
e por muito tempo deixa de ser utilizada como noção autônoma. Foi só no séc. XIX que Brentano redescobriu essa
noção para torná-la como característica dos fenômenos psíquicos {Psichologie vom empirischen Standpunkt, 1874).
Estes podem ser classificados, segundo as características de sua I., de sua referência ao objeto, em representação (o
objeto está simplesmente presente), em juízo (é afirmado ou negado), em sentimento (é amado ou odiado). Esses três
atos se referem a um "objeto imanente" e são atos intencionais, mas sua I., ou seja, sua referência ao objeto, é
diferente para cada um deles. Inicialmente Brentano julgou que o objeto da I. pudesse ser indiferentemente real ou
irreal; depois, em Klassification derpsychischen Phüno-mene{\9\\), afirmou que o objeto da I. é sempre real e que a
referência a um objeto irreal é indireta, ocorrendo através de um sujeito que
afirme ou negue o objeto. Husserl inspirou-se nessas idéias de Brentano ao assumir a noção de I. não mais como
característica dos fenômenos psíquicos entendidos como um grupo de fenômenos que coexistam com outros fenômemos chamados físicos, mas como a definição da própria relação entre o sujeito e o objeto da consciência em geral.
Husserl diz a este propósito: "A característica das vivências {Erlebnissê), que pode ser indicada como o tema geral da
fenomenologia orientada objetivamente, é a intencionalidade. Representa uma característica essencial da esfera das
vivências, porquanto todas as experiências, de uma forma ou de outra, têm intencionalidade... A I. é aquilo que
caracteriza a consciência em sentido pregnante, permitindo indicar a corrente da vivência como corrente de
consciência e como unidade de consciência" {Ideen, I, § 84). Posteriormente, o próprio Husserl falou de
"intencionalidade atuante", no sentido de que a vivência não se refere somente ao seu objeto, mas também a si
mesma e é por isso ciência de si (v. ATUANTE). Seja como for, no âmbito da fenomenologia a I. era assumida como
característica fundamental da consciência, e como tal ficou em boa parte na filosofia contemporânea, especialmente
na fenomenologia e no existencialismo (v. CONSCIÊNCIA). O conceito de transcendência (v.), mediante o qual
Heidegger definiu a relação entre o homem e o mundo, outra coisa não é senão uma generalização da
intencionalidade. Heidegger diz: "Se considerarmos qualquer relação com o ente como intencional, então a I. é
possível apenas com base na transcendência, mas é preciso atentar: I. e transcendência não se' identificam e esta não
se funda naquela" {Vom Wesen des Grundes, I; trad. it., p. 24).
INTENSÃOe EXTENSÃO (in. Intensionand extension; fr. Intension et extension-, ai. Sinn und Bedeutung; it.
Intensione e estensioné). Este par de termos foi introduzido por Leibniz, para expressar a distinção que a lógica de
Port-Royal expressara com o par compreensão-extensão (v.) e a lógica de Stuart Mill expressara com o par
conotação-denotação (v.). Leibniz diz.- "Animal compreende mais indivíduos que homem, mas homem compreende
mais idéias e mais formas; um tem mais exemplos, o outro mais graus de realidade; um tem mais extensão, o outro
tem mais I." {Nouv. ess., IV, 17, § 9). O emprego destes dois termos foi adotado por Hamilton: "A quantidade interna
de uma no-
BNTENSÃO e EXTENSÃO
578
INTERESSE
ção, sua I. ou compreensão, é constituída por diferentes atributos cuja soma é o conceito, no sentido de que este reúne
os vários caracteres conexos num todo pensado. A quantidade externa de uma noção, ou a sua extensão, é constituída
pelo número de objetos que são pensados mediatamente através do conceito" {Lectures on Logic, 2- ed., 1866, 1, p.
142). O uso desses dois termos ainda prevalece na lógica contemporânea, que os associou à distinção estabelecida por
Frege entre sentido e significado. Frege disse: "Ao pensarmos num signo, deveremos ligar a ele duas coisas distintas:
não só o objeto designado, que será denominado significado daquele signo, mas também o sentidoào signo, que
denota a maneira como esse objeto nos é dado" ("Über Sinn und Bedeutung", 1892, § 1, trad. it., em Aritmética e
lógica, p. 218). Obviamenfe, o objeto é a extensão; o sentido é a intensão. Essa distinção é repetida ou pressuposta
por quase toda a lógica contemporânea.
AI. de um termo é definida por Lewis como "a conjunção de todos os outros termos, cada um dos quais deve ser
aplicável àquilo a que o termo é corretamente aplicável". Nesse sentido, a I. (ou conotação) é delimitada por toda
definição correta do termo e representa a intenção de quem o emprega, por isso o significado primeiro de
"significado". A extensão ou deno-taçâo de um termo, porém, é a classe das coisas reais às quais o termo se aplica
(LEWIS, Analysis ofKnowledge and Valuation, 1950, p. 39-41). As mesmas determinações são feitas por Quine: a I. é
o significado; a extensão é a classe das entidades às quais o termo pode ser atribuído com verdade {From a Logical
Point of View, II, 1).
Analogamente são usados os adjetivos in-tensional e extensional. este último é aplicado a pontos de vista que tomam
em consideração a denotação das proposições, sem levar em conta, sempre que possível, seus significados
intensionais. Por outro lado, o adjetivo inten-sional, sobretudo se aplicado ao cálculo das proposições ou das funções
proposicionais{v.), significa que se toma em consideração a modalidade das proposições, que não são levadas em
conta pela consideração extensional, que se limita a examinar as funções de verdade das próprias proposições
(CARNAP, Logical Syntax ofLanguage, § 67; RUSSELL, Inquiry into Meaning and Truth, 1940, cap. 19) (v.
ESTENSIONALIDADE, TESE DA).
INTERAÇÃO. V. AÇÃO RECÍPROCA; TRANSAÇÃO.
INTERESSANTE (in. Lnteresting; fr. Inté-ressant; ai. Interessant; it. Interessante). Kierkegaard frisou a
importância desse conceito, que ele considerou "uma categoria situada no limite entre a estética e a ética, portanto a
categoria do ponto crítico". Sócrates foi, p. ex., o mais I. dos homens que já viveram e sua vida foi a mais I. das vidas
vividas. Mas aquela existência foi-lhe destinada pela divindade e, na medida em que precisou conquistá-la por si,
precisou conhecer dificuldades e dores {Furcht und Zittern, em Werke, III, 131).
INTERESSE (in. Interest; fr. Intérêt; ai. Interesse, it. Interesse). Participação pessoal numa situação qualquer e a
dependência que dela resulta para a pessoa interessada. Trata-se de um conceito moderno que Kant utiliza no domínio
da estética, com a finalidade de afirmar o caráter "desinteressado" do prazer estético: "Chama-se de I. o prazer que
associamos à representação da existência de um objeto. Esse prazer tem sempre relação com a faculdade de desejar,
seja como causa determinante dele, seja como necessariamente atinente a tal causa. Mas quando se trata de julgar se
uma coisa é bela, não queremos saber se sua existência importa ou pode vir a importar para nós ou para qualquer
pessoa; só queremos saber como julgá-la ao contemplá-la" {Crít. do Juízo, § 2). Hegel, por sua vez, ao definir o I.
como "o momento da individualidade subjetiva e de sua atividade", entendia com isso a presença do sujeito na ação
{Ene, § 475). A noção de I. foi utilizada sobretudo em pedagogia, como participação do educando no saber, graças à
qual o saber se lhe afigura útil. Essa foi uma das regras propostas para a educação em Emílio de Rousseau. Mas foi
Herbart quem utilizou sistematicamente a noção de I., indicando como fim da educação a plurilateralidade dos
interesses. Segundo Herbart, o I. está no meio, entre ser espectador dos fatos e neles intervir; em outros termos, é uma
participação ainda não totalmente ativa ou engajada. O I. também se distingue do desejo porque, enquanto o objeto
deste último ainda não existe, o objeto do I. já está presente e real {AllgemeinePàdagogik, 1873, II, 1, 2, § 3). Dos
pedagogos contemporâneos foi Dewey quem mais insistiu na valor do I., definindo-o como "o acompanhamento da
identificação, através da ação, do eu com algum objeto ou idéia, através da necessidade de tal
INTERFENÔMENO
579
INTERPRETAÇÃO
objeto ou idéia para a manutenção da auto-expressão" {Educational Essays, ed. por J. J. Findlay, p. 89). Desse ponto
de vista, o esforço, que, em pedagogia, às vezes se costuma contrapor ao I., implica uma separação entre o eu e o
objeto que deve se aprendido ou dominado. Segundo Dewey, os caracteres do I. são a atividade, a projetividade e a
propulsividade. Pelo primeiro, o I. é dinâmico, impele à ação. Pelo segundo, o I. tem objetivo fora de si, em algum
objeto ou finalidade à qual se apega. Pelo terceiro, I. significa realização interna ou sentimento de valor {Ibid., pp. 9091). Essa concepção do I., que é um dos pontos focais da pedagogia de Dewey, exerceu forte influência sobre a teoria
e a prática da educação em todos os países do Ocidente.
INTERFENÔMENO (in. Interphenomenori). Termo criado por H. Reichenbach para indicar os eventos
subatômicos não observáveis, ou seja, não imediatamente inferíveis pela observação, como p. ex. o movimento de um
elétron ou de um raio luminoso da fonte até o encontro com outra matéria. "Eventos dessa espécie são apresentados
por meio de cadeias de inferências de tipo muito mais complicado. São construídos na forma de interpolação dentro
do mundo dos fenômenos, e na mecânica quântica a distinção 1 entre fenômenos e I. é análoga à distinção entre coisas
observadas e não observadas" {Philosophic Foundations of Quantum Mechanics, I, 6).
INTERIORIDADE. V. EXTERIORIDADE.
ENTERMUNDOS (gr. (i,etaKÓO(i.va; lat. Inter-mundid). Espaços entre os mundos, onde, segundo Epicuro,
habitam os deuses (DIÓG. L., X, 89; CÍCERO, De divin., II, 17, 40; De nat. deor., 16-19).
INTERPRETAÇÃO (gr. épUT|veía; lat. Inter-pretatio; in. Interpretation-, fr. Interprétation; ai. Interpretation,
Auslegung, it. Interpretazionê). Em geral, possibilidade de referência de um signo ao que ela designa, ou também a
operação através da qual um sujeito (intérprete) estabelece a referência de um signo ao seu objeto (designado).
Aristóteles denominou I. o livro em que estudou a relação entre os signos lingüísticos e os pensamentos e entre os
pensamentos e as coisas. Ele de fato considerava as palavras como "sinais das afeições da alma, que são as mesmas
para todos e constituem as imagens dos objetos que são idênticos para todos", considerando ademais como sujeito ativo dessa referência a alma ou o intelecto {De interpr., 1, 16a, 1 ss.).
Boécio, graças a quem essa doutrina passou para a Escolástica latina, entendia por I. "qualquer termo que significa
alguma coisa por si mesmo", incluindo entre as I. os substantivos, os verbos e as proposições, e excluindo as
conjunções, as preposições e em geral os termos gramaticais que não significam nada por si mesmos. Para ele,
referência do signo ao que ele designa era o essencial da interpretação {In librum de interpr. editio prima, I, em P. L,
64, col. 295).
Nesta concepção, a I. é a referência dos signos verbais aos conceitos (as "afeições da mente") e dos conceitos às
coisas. As características dessa doutrina podem ser assim fixadas: Ia a I. é um evento que acontece "na alma", um
evento mental; 2- o signo verbal ou escrito é diferente da afeição da mente ou do conceito e se refere a este; 3 a a
relação entre signo verbal e conceito é arbitrária e convencional, ao passo que a relação entre o conceito e o objeto é
universal e necessária.
Esses princípios permaneceram inalterados por longo tempo. Apesar do desenvolvimento ocorrido na teoria dos
signos graças à lógica estóica, medieval e moderna, a doutrina da I. continuou considerando por muito tempo que o
processo interpretativo tinha sede na alma ou na mente, que era um processo mental. Foi só na filosofia
contemporânea que se propôs outra alternativa, qual seja, de hábito ou comportamento. Conquanto não falte hoje
quem considere a I. um processo mental (C. K. ODGEN-I. A. RICHARDS, The Meaning of Meaning, 1952 [Ia ed.,
19231, p. 57; Du-CASSE, em Journal ofSymbolic Logic, 1939, n. 4), a semiótica americana apresentou outra doutrina
fundamental da I., que toma como base o comportamento. Os pressupostos dessa doutrina são encontrados na obra de
Peirce, que entendeu a I. como um processo triádico que se dá entre um signo, seu objeto e seu interpretante,
constituindo este último a relação entre o primeiro e o segundo termo {Coll. Pap., 5.484). Conquanto em Peirce
restem ainda muitos pressupostos da antiga doutrina, ele não entendeu a I. como um ato simplesmente mental, mas
como um hábito de ação, como a resposta habitual e constante que o intérprete dá ao signo {Ibid., 5.475 ss.). Esse é o
ponto de vista de Morris, que prevalece na semiótica contemporânea {Foundations of a Theory of Signs,
INTERPRETAÇÃO
580
INTROSPECÇÃO
1938; Signs, Language and Behavior, 1946). Desse ponto de vista, a I. tem as seguintes características: 1Q não é (ou
não é apenas) um hábito mental, mas um comportamento(v.), uma resposta objetivamente observável e constante de
um organismo a um estímulo; 2Q não existe diferença entre sinais mentais e sinais verbais, no sentido de os primeiros
serem suscetíveis de I. necessária e os outros não; 3Q a referência dos signos aos seus objetos não é nem necessária
nem arbitrária, mas determinada pelo uso (nas linguagens comuns) ou por convenções cabíveis (nas linguagens
especiais).
As observações anteriores dizem respeito à teoria da I. na semiótica (v.). É necessário porém observar que, na
linguagem científica e filosófica hodierna, essa palavra tem usos específicos diversos, que só indiretamente podem
ser relacionados com o emprego a que aludimos. Fala-se de I. na ciência quando se estabelece a correspondência
entre um sistema axiomático e determinado modelo (v. AXIOMÁTICA; MODELO), ou seja, um exemplo concreto ou um
conjunto de entidades que satisfaça às condições enunciadas pelo sistema axiomático. Nesse sentido, a geometria
comum pode ser a I. de determinado sistema axiomático, como p. ex. da axiomática de Hilbert. Um outro uso do
termo é o que se encontra nas disciplinas históricas, quando se fala da I. de determinado acontecimento, de um
conjunto de acontecimentos ou de um período. Nesse caso, a I. é um aspecto da escolha historio-gráfica, e consiste na
escolha das caraterísticas históricas consideradas dominantes e centrais, em relação às quais as outras se situam num
plano subordinado e secundário. Nesse sentido, fala-se, p. ex., de I. materialista da história, quando os aspectos
materiais (ou econômicos) são considerados primordiais e fundamentais (v. HISTORIOGRAFIA). A I. pode ter outros
sentidos específicos e em outros campos de pesquisa e também pode ter o sentido de explicação (como quando se
fala, p. ex., da I. de um fenômeno físico) ou, como fazia Bacon (Nov. Org., I, 26), da natureza em geral.
Independentemente de todos os significados mencionados, Heidegger definiu-a como o desenvolvimento e a
realização efetiva da compreensão: "A I. não é tomar conhecimento de que se compreendeu, mas a elaboração das
possibilidades projetadas na compreensão" {Sein undZeit, § 32). Este conceito não é utilizável para a análise do uso
desse termo nos vários campos.
INTERPRETANTE e INTÉRPRETE (in. Inter-pretant, Interpreter). Na semiótica contemporânea, os dois termos
significam respectivamente: a disposição em responder a um signo e aquele (em geral o organismo) que emprega o
signo ou se expressa com ele (MORRIS, Foun-dationsofa Theoryof Signs, § 3) (v. SEMIÓTICA).
INTERROGAÇÃO MÚLTIPLA (gr xó xà 7tA£íco épcoTiíuata êv rcoteív; KoXvfyí]xr\aiç, lat. Plurium
interrogationum fallacia; ai. Hetero-zetesis). Uma das falácias extra dictionem enumeradas por Aristóteles, mais
precisamente a que consiste na redução de várias perguntas a uma só, apostando assim na unicidade da resposta que o
adversário é tentado a dar (ARISTÓTELES, El. Sof., 30, 181 a 30; PEDRO HISPANO, Summ. log., 7. 62-7. 64; JUNGIUS,
Lógica hamburgensis, VI, 12, 16; GENOVESI, Ars logico-critica, V, 11, 12; etc.) (v. FALÁCIA).
INTERSUBJETIVO (in. Intersubjective, fr. Intersubjectif, ai. Intersubjektiu, it. Intersog-gettivó). Termo usado na
filosofia contemporânea para designar: ls o que se refere às relações entre os vários sujeitos humanos, como quando
se diz "experiência I."; 2S o que é válido para um sujeito qualquer, como quando se diz "conceito I." ou "verificação
I." (v. UNIVERSAL, 2).
INTlMISMO (fr. Intimismé). Atitude que consiste em concentrar-se nas experiências interiores. Diz-se
especialmente de poetas e literatos; em sentido ligeiramente depreciativo, de correntes que entendem a filosofia como
uma espécie de autobiografia mascarada (v. EGOCENTRISMO; EGOTISMO).
INTRÍNSECO. V. EXTRÍNSECO.
INTROJEÇÂO (in. Introjection; ai. Introjek-tiorí). Termo introduzido por Avenarius (Kritik der reinen Erfahrung,
1888-90) para designar o processo de falsear a experiência e reduzir o objeto a uma representação interna do eu, admitindo-se que os outros indivíduos também possuem semelhante representação interna. Dito processo, que é uma
interiorização do objeto, dá origem à divisão ilusória entre experiência interna e experiência externa, enquanto a
experiência, segundo Avenarius, é uma só, sendo sempre uma relação direta entre um objeto e um organismo.
INTROSPECÇÃO (in. Introspection; fr. In-trospection; ai. Introspektion; it. Introspezioné). Auto-observação
interior, observação que o eu faz dos próprios estados internos. Esse termo foi introduzido pela psicologia do séc.
XIX para
EWUIÇÃO
581
INTUIÇÃO
designar o método psicológico fundamental, considerado insubstituível até o advento do behaviorismo
(v.). Contra a I. Comte opôs uma objeção de princípio: "O indivíduo pensante não pode dividir-se em
dois, um que raciocina e outro que o vê raciocinar. Nesse caso, sendo idênticos o órgão observado e o
órgão observador, como poderá ocorrer a observação?" (Cours de phil. positive, 1830, I, seç. 1, $ 8).
Comte concluíra, por isso, pela impossibilidade da psicologia e a suprimira da sua enciclopédia das
ciências. Em 1868, Peirce respondia negativamente à pergunta "possuímos uma faculdade de I.?" e
concluía que "a única maneira de investigar uma questão psicológica é a inferência a partir de fatos
externos" (Coll. Pap., 5.244-249; 7.418 ss.). Essa conclusão de Peirce é o primeiro indicador do
encaminhamento da indagação psicológica para o behaviorismo (v.).
INTUIÇÃO (gr. È7n.poW|; lat. Intuitus, Intui-Ho, in. Intuition; fr. Intuition; ai. Anschauung; it. Intuizioné).
Relação direta (sem intermediários) com um objeto qualquer; por isso, implica a presença efetiva do
objeto. A intuição foi entendida desse modo ao longo da história da filosofia, a começar por Plotino, que
emprega esse termo para designar o conhecimento imediato e total que o Intelecto Divino tem de si e de
seus próprios objetos (Enn., IV, 4, 1; IV, 4, 2). Nesse sentido, a I. é uma forma de conhecimento superior
e privilegiado, pois para ela, assim como para a visão sensível em que se molda, o objeto está
imediatamente presente. Boécio falava da "intuição divina", que é o golpe de vista com que Deus abrange
as coisas sem mudá-las {Phil. cons., V, 6). E S. Tomás dizia, referindo-se a Deus: "A sua intuição versa
sobre todas as coisas que estão diante dele em sua presencialidade" (S. Th., I. q. 14, a. 13, cf. q. 14, a. 9).
Por esse caráter, o conhecimento divino distingue-se do humano, que age compondo e dividindo, por
meio de atos sucessivos de afirmação e de negação (Ibid., I, q. 85, a. 5). O caráter intuitivo do
conhecimento divino contrapõe-se aqui ao caráter de discurso do conhecimento humano (v. DIANÓIA;
DISCURSIVO). Mas a filosofia medieval empregou esse termo para indicar uma forma particular e
privilegiada da consciência humana, em primeiro lugar o conhecimento empírico. Bacon dizia que "a
alma não se acalma na intuição da verdade se não a encontrar por força da experiência"
{Opus maius, VI, 1). Duns Scot privilegiava como intuitivo (cognitio intuitiva) o conhecimento que "se
refere àquilo que existe ou àquilo que está presente em determinada existência atual", distinguindo-o do
conhecimento abstrativo (v. ABSTRATTVO), que abstrai da existência atual (Op. Ox., II, d. 3, q. 9, n. 6).
Essa noção foi aceita por Durand de S. Pourçain (In Sent., Prol., q. 3 F) e por Ockham, que, tal como
Bacon, identificava o conhecimento intuitivo com a experiência (In Sent., Prol., q. 1 Z). A partir de então,
até Kant, o significado específico desse termo é experiência (v.).
Mas, ao mesmo tempo, conserva-se o significado genérico de relação imediata com um objeto qualquer.
Nesse sentido, Descartes falava da intuição evidente (evidens intuitus), como um dos dois caminhos que
levam ao conhecimento certo (o outro é o da "dedução necessária"), entendendo com ela a apreensão de
qualquer objeto mental: "A intuição da mente estende-se às coisas, ao conhecimento de suas
interconexões necessárias e a tudo o que o intelecto experimenta com precisão em si mesmo ou na
imaginação" (Regulae ad directio-nem ingenii, 12). No mesmo sentido, Locke chamava de intuitivo o
conhecimento que percebe a concordância ou a discordância entre duas idéias imediatamente, ou seja,
sem a intervenção de outras idéias (An Essay Concer., IV, 2, 1), e chamava de I., exatamente pela sua
imediação, o conhecimento que temos de nossa própria existência (Ibid., IV, 9, 3). Ainda no mesmo
sentido, Leibniz dizia que são conhecidas por I. as "verdades primitivas" tanto de razão quanto de fato
(Nouv. ess., IV, 2, 1), ou seja, as verdades que o intelecto apreende ou possui sem a mediação de outras.
Este significado era aceito por Stuart Mill: "As verdades são conhecidas de duas maneiras: algumas
diretamente ou por si mesmas, outras através da mediação de outras verdades. As primeiras são objeto da
I. õu consciência; as segundas, da inferência" (Logic, Intr., § 4). Kant, por sua vez, referia-se ao sentido
tradicional desse termo ao afirmar que "a I. é a representação tal qual seria pela sua decorrência da
imediata presença do objeto" (Prol., § 8). Por isso, para Kant, a I. geralmente é o conhecimento para o
qual o objeto apresenta-se diretamente. Mas Kant distingue a I. senstvele a I. intelectual. Sensível é a I. de
todo ser pensante finito, ao qual o objeto é dado: ela é, portanto, passividade, afeição (Crít. R. Pura,
INTUIÇÃO
582
INTUIÇÃO
Anal. dos conceitos, seç. 1). A I. intelectual é originária e criativa: nela o objeto é posto ou criado,
portanto só se encontra no Ser criador, de Deus (Ibid., § 8, ao final; passirrí). Em outros termos,
intelectual é a intuição divina da filosofia tradicional: a presença do objeto a esta intuição é inevitável e
necessária porque o objeto é criado pela própria intuição.
Essa distinção kantiana foi conservada pelo Romantismo, mas só com a finalidade de reivindicar para o
homem a I. intelectual ou criativa que Kant e os antigos reservavam para Deus. Isso é compreensível,
visto que, para os românticos, o conhecimento humano é o mesmo conhecimento com que o Espírito
Absoluto ou criador se conhece a si mesmo, ou pelo menos é um aspecto ou um momento dela. Assim,
Fichte entende por I. intelectual "a consciência imediata de que eu ajo e daquilo que faço, sendo aquilo
graças a que o Eu sabe enquanto faz" (Werke, I, p. 463). Por sua vez, Schelling afirma que "a filosofia
transcendental deve ser constantemente acompanhada pela I. intelectual" e que o eu é "uma I. intelectual
contínua", porquanto "se auto-produz". E acrescenta: "Assim como, sem a I. do espaço, a geometria seria
absolutamente incompreensível, porque todas as suas construções são apenas formas e maneiras variadas
de limitar essa I., também sem a I. intelectual a filosofia seria impossível porque todos os seus conceitos
não passam de limitações diversas do produzir que se tem por objeto, em outras palavras, a I. intelectual"
{System ler transzen-dentalen Idealismus, seç. I, cap. I, trad. it., p. 39). Hegel, por sua vez, identificava I.
e pensamento: "O puro intuir é o mesmo que o puro pensar... Fé e I. devem ser tomadas em sentido mais
elevado, como fé em Deus, como I. intelectual de Deus.- vale dizer que se deve abstrair exatamente
daquilo que constitui a diferença entre I. e fé, de um lado, e pensamento, de outro. Não se pode afirmar
que fé e I., transportadas para essa região mais alta, ainda sejam diferentes de pensamento" (Ene, § 63). A
mesma tese é sustentada por Schopenhauer, que identifica intelecto e I., e pretende que até as conexões
lógicas sejam reduzidas a elementos intuitivos (Die Welt, I, § 15). À mesma linha de conceitos pertence a
noção de I. encontrada em Rosmini: como apreensão imediata da idéia do ser em geral (Nuovo saggio, §
1.159; Antropologia, § 40, 505; Psicologia, § 13). E, apesar de opor-se a Rosmini quanto ao caráter indeterminado e vazio da idéia de ser, Gioberti aceitava a noção de intuição como relação imediata, total e
necessária da mente humana com Deus e com sua ação criadora (Intr. alio studio delia fil., II, p. 46). Esta
continuava sendo uma "I. intelectual", mas também é intelectual a I. de que fala Bergson, conquanto
carregada de polêmica antiintelectualista ou anti-racionalista. De fato, como órgão próprio da filosofia,
ela possui as características da I. intelectual romântica: relação imediata ou direta com a realidade
absoluta, ou seja, com a duração da consciência ou com o impulso criativo da vida. Bergson afirma: "A I.
é a visão do espírito por parte do espírito." "I. significa principalmente consciência, mas consciência
imediata, visão que mal se distingue do objeto visto, conhecimento que é contato e até coincidência" (La
pensée et le mouvant, 3a ed., 1934, pp. 35-36). As mesmas características formais encontram-se na I. eidética ou I. da essência da qual fala Husseri: "A essência é um objeto de nova espécie. Assim como o dado
da I. individual empírica é um objeto indidual, também o dado da I. eidética é uma essência pura. Não se
trata de uma analogia externa, mas sim de uma afinidade radical. Também a I. eidética é uma I., assim
como o objeto eidético é um objeto. A generalização dos conceitos correlativos 'I.' e 'objeto' não é
arbitrária, mas exigida necessariamente pela natureza das coisas" (Ideen, I, § 3). Por fim, a I. que Croce
identifica com a arte tem as mesmas características formais: é conhecimento originário e imediato, que
por isso não distingue entre real e irreal; tem caráter ou fisionomia individual e expressa diretamente o
objeto (Estética, cap. 1).
Recapitulando as características comuns e as diferenciais da I. ao longo da história da filosofia, podemos
dizer sobre as primeiras que a I. é uma relação com o objeto, caracterizada: ls pela imediação e 2- pela
presença efetiva do objeto. Constantemente, com base nessas características, a I. é considerada uma forma
de conhecimento privilegiado. Por outro lado, suas características diferenciais podem ser assim distintas:
1Q a I. pode ser exclusiva de Deus e considerada o conhecimento que o criador tem das coisas criadas; 2pode ser atribuída ao homem e considerada a experiência como conhecimento de um objeto presente,
sendo, nesse sentido, percepção (v.); 39 pode ser atribuída ao homem e considerada conhecimento
originário e criativo no sentido
INTUIÇÃO
583
INTUICIONISMO
romântico. As três alternativas deixaram, em grande parte, de despertar o interesse da filosofia
contemporânea. A primeira de fato pertence à esfera das especulações teológicas. A segunda tende a ser
substituída pelo conceito de experiência como método ou como conjunto de métodos (v. EXPERIÊNCIA). A
terceira está estritamente ligada à metafísica do Romantismo (velho e novo): ascende e declina com ele.
Em 1868 Peirce fez uma crítica do conceito de L, negando: Ia que ela pudesse servir para garantir a
referência imediata de um conhecimento ao seu objeto; 2 a que ela pudesse constituir o conhecimento
evidente que o Eu tem de si mesmo; 3a que pudesse capacitar a distinguir os elementos subjetivos de
conhecimentos diferentes. Ao mesmo tempo, Peirce afirmava a impossibilidade de pensar sem signos e de
conhecer sem recorrer ao vínculo recíproco dos conhecimentos (Coll. Pap., 5.213-263). Essas negações e
afirmações de Peirce foram e são amplamente aceitas pela filosofia contemporânea.
Hoje, mais que aos filósofos, a I. serve aos cientistas, particularmente a matemáticos e lógicos, quando
estes querem frisar o caráter inventivo de sua ciência. Claude Bernard dizia: "A I. ou sentimento gera a
idéia ou a hipótese experimental, ou seja, a interpretação antecipada dos fenômenos da natureza. Toda a
iniciativa experimental está na idéia, pois só ela provoca a experiência. A razão ou o raciocínio servem
apenas para deduzir as conseqüências dessa idéia e para submetê-las à experiência" (Intr. ã 1'étude de Ia
médecine expérimentale, 1865,1, 2, § 2). Poincaré repetia, com referência à matemática, o que Bernard
dissera a propósito das ciências experimentais: "Demonstra-se com a lógica, mas só se inventa com a I.
(...) A faculdade que nos ensina a ver é a intuição. Sem ela, o geômetra seria como o escritor bom de
gramática, mas vazio de idéias" {Science et méthode, 1909, p. 137). Ainda segundo Poincaré, na
matemática a exigência lógica leva à formulação analítica; a exigência intuitiva, à formulação geométrica.
"Assim, a lógica e a I. têm cada uma sua missão. Ambas são indispensáveis. A lógica, a única que pode
dar certezas, é o instrumento da demonstração: a I. é o instrumento da invenção" {La valeur de Ia science,
1905, p. 29). Nesse sentido, como já se observou algumas vezes, a I. tem caráter mais negativo que
positivo: ela antecipa o que não decorre da observação empírica ou não pode ser deduzido dos conhecimentos já possuídos. Portanto, parece
designar apenas certo grau de liberdade do pesquisador e nada tem a ver com o significado filosófico
tradicional do termo, no qual se insere o emprego que dele fazem os matemáticos intuicionistas (v. INTUICIONISMO, 4a).
INTUIÇÃO DO MUNDO (ai. Weltanschau-ung). Sobre a filosofia como "I." ou "visão do mundo" v.
FILOSOFIA. K. Jaspers escreveu Psicologia da cosmovisão, distinguindo a imagem espácio-sensorial do
mundo, a psicocultural e a metafísica (Psychologie der Weltanschauun-gen, 1925; trad. it, Roma, 1950).
INTUICIONISMO (in. Intuitionism, fr. In-tuitionnisme-, ai. Intuitionismus-, it. Intuizio-nismó). Com
este termo são indicadas atitudes filosóficas ou científicas diversas, que têm em comum o recurso à
intuição no sentido mais geral do termo. Em particular, relacionam-se sob o nome de I. as seguintes
correntes:
1Q a filosofia escocesa do senso comum, por admitir que a filosofia se fundamenta em certas verdades
primitivas e indubitáveis, conhecidas por intuição (v. SENSO COMUM);
2a a doutrina de Bergson, segundo a qual a intuição é o órgão próprio da filosofia;
3a a doutrina de N. Hartmann e de Scheler, segundo a qual os valores são objeto de uma intuição que se
identifica com o sentimento (v. VALOR);
4a a corrente matemática fundada por L. E. J. Brouwer, inspirada nas idéias de L. Kronecker (1923-91),
para quem o conceito de número natural fora dado à intuição humana, afirmando que os números naturais
foram feitos por Deus e os outros pelo homem. As teses típicas do I. de Brouwer são as seguintes: Ia a
existência dos objetos matemáticos é definida pela sua possibilidade de construção: por isso, só "existem"
entes matemáticos que possam ser construídos; 2S o princípio do terceiro excluído não é válido para
proposições em que haja referência a grandezas infinitas; 3 a as definições impre-dicativas não são válidas.
A rejeição do princípio do terceiro excluído implica a rejeição da dupla negação, portanto do método da
prova indireta. Este método, entretanto, fundamenta a corrente formalista da matemática, patrocinada por
Hilbert; segundo essa concepção, para estabelecer a existência de uma entidade matemática basta a
demonstração de que ela não implica contradição (cf. A. HEYTING, Mathe-
INVARIANTE
584
IRONIA
matische Grundlagenforschung, Intuitionismus und Beweistheorie, Berlim, 1934).
INVARIANTE (in. Invariant; fr. Lnvariant; ai. Lnvariante, it. Invariantè). Uma propriedade constante, mais
precisamente, na teoria dos grupos, uma propriedade que permanece a mesma sob um grupo de transformações (v.
GRUPO; TRANSFORMAÇÃO).
INVENÇÃO (in. Invention; fr. Lnvention; ai. Erfindung; it. Invenzioné). "Inventar alguma coisa" — disse Kant — "é
totalmente diferente de descobrir. A coisa que se descobre admite-se como já preexistente, apesar de ainda não
conhecida, como a América antes de Colombo; contudo, o que se inventa, como a pólvora, não existia em absoluto
antes de quem a inventou" {Antr, I, § 57). Tradicionalmente, a capacidade inventiva denomina-se gênio (v.). Os
problemas relativos à I. assumem aspectos diferentes nos vários campos: na lógica, têm sido por vezes debatidos a
propósito da tópica (v.) ou da intuição (v.); na arte, a propósito do gênio (v.).
INVESTIGAÇÃO (gr. Çr)Tr\cnç; lat. Lnvesti-gatio, Lnquisitio; in. Inquiry, fr. Recherche; ai. Untersuchung; it.
Ricerca). Ainda que o conceito de I. se ligue estreitamente ao de filosofia (como acontece em PLATÃO, cf., p. ex.,
Teet., 196 d; Men., 81 e), dificilmente foi objeto da indagação filosófica. No mundo moderno, De-wey considerou a
lógica como teoria da I.: "Todas as formas lógicas, com suas propriedades características, nascem do trabalho de I., e
referem-se à sua aferição, no que concerne à confiabilidade das asserções produzidas." Nesse sentido, "a I. da I. é
causa cognoscendidas formas lógicas, ao passo que a indagação primitiva é causa essendi das formas reveladas por
essa indagação" {Logic, 1939, 1: trad. it., p. 34). A P. é definida por Dewey como "a transformação controlada ou
dirigida de uma situação indeterminada em outra, determinada, nas distinções e relações que a constituem, de tal
maneira que os elementos da situação originária sejam convertidos numa totalidade unificada" {Logic, VI, trad it., p.
157).
INVOLUÇÃO (lat. Lnvolutio; in. Lnvolution; fr. lnvolution; ai. Lnvolution; it. Lnvoluzioné). 1. O oposto de
evolução. Essa palavra foi empregada por Kant para indicar a teoria biológica oposta à teoria da pré-formação
individual, que ele denominava evolução {Crít. do Juízo, § 81). Hoje, com o nome de I. designam-se os fenômenos
opostos aos da evolução, ou seja, os
fenômenos regressivos da evolução. A. Lalande defendeu a tese de que o progresso em qualquer campo não depende
da passagem do homogêneo para o heterogêneo, como queria Spencer, mas da passagem do heterogêneo para o
homogêneo, que é a dissolução ou I. {Vidée directrice de Ia dissolution opposée ã celle de Vévolution dans Ia
méthode des scien-ces physiques et morales, 1898, 2- ed., com o título Les illusions évolutionnistes, 1931).
2. Na lógica simbólica, o procedimento que corresponde à pontenciação aritmética (cf. PEIR-CE, Coll. Pap., 3.614-15).
IOGA. Um dos principais sistemas filosóficos indianos, que consiste essencialmente numa técnica de ascetismo. O
texto fundamental deste sistema são os Iogassutra de Patanjali, obra provavelmente composta entre os sécs. V e o VI
d.C, talvez com base em fragmentos ou documentos mais antigos. A I., cujas doutrinas coincidem substancialmente
com as do sistema sanquia, mas com tônica teísta, consiste essencialmente na descrição de exercícios graduais para
obter a perfeita libertação da alma. Os graus fundamentais são oito: l s restrição moral; 2- cultura da alma com o
estudo dos textos sagrados; 3S posições convenientes à meditação; 4a controle da respiração; 5e controle dos sentidos;
6B concentração; 1° atenção contínua; 8e recolhimento absoluto {samãdí), no qual desaparece a dualidade entre quem
contempla e o objeto contemplado. D I. distingue-se a Hatha-ioga ou I. violenta, que sugere os exercícios voltados
para afrouxar os vínculos entre alma e corpo (v. G. Tucci, Storia delia filosofia indiana, pp. 98 ss.).
IPSE DIXIT (gr. oráxòç E<pa). Frase com que os pitagóricos costumavam responder aos pedidos de elucidações
sobre sua doutrina: "Ele disse." Ele era Pitágoras. Cícero aduz esse costume como exemplo do predomínio da
autoridade sobre a razão {De nat. deor.. I, 5, 10).
IPSEIDADE (lat. Lpseitas; fr. Lpséité). Termo usado por Duns Scot para indicar a singularidade da coisa individual
(v. ECCEIDADE).
IRASCÍVEL. V. FACULDADE.
IRONIA (gr. eipcDveíoc; lat. Lronia; in. Lrony; fr. Lronie; ai. Lronie; it. Lronia). Em geral, a atitude de quem dá
importância muito menor que a devida (ou que se julga devida) a si mesmo, à sua própria condição ou a situações,
coisas ou pessoas com que tenha estreitas relações. A história da filosofia co-
IRONIA
585
IRONIA
nhece duas formas fundamentais de I.: 1* socrática; 2- romântica.
Ia AI. socrática é o modo como Sócrates se subestima em relação aos adversários com quem discute. Quando, na
discussão sobre a justiça, Sócrates declara: "Acho que essa investigação está além das nossas possibilidades e vós,
que sois inteligentes, deveis ter piedade de nós, em vez de zangar-vos conosco." Trasí-maco responde: "Eis a
costumeira I. de Sócrates" (Rep., I, 336 e 337 a). Aristóteles só faz enunciar genericamente esta atitude socrática
quando vê na I. um dos extremos na atitude diante da verdade. O verdadeiro está no justo meio; quem exagera a
verdade é jactancioso e quem entretanto procura diminuí-la é irônico. E diz que, nesse aspecto, I. é simulação (Et. nic,
II, 7, 1108 a 22). Cícero referia-se a esse conceito ao afirmar que "Na discussão, Sócrates freqüentemente se diminuía
e elevava aqueles que desejava refutar; assim, dizendo o contrário do que pensava, empregava de bom grado a
simulação que os gregos denominam I." (Acad., IV, 5, 15). S. Tomás referia-se a este conceito do termo, como uma
forma (lícita) de mentira (S. Th., II, 2, q. 113, a. 1).
2a A I. romântica baseia-se no pressuposto da atividade criadora do Eu absoluto. Identificando-se com o Eu absoluto,
o filósofo ou o poeta (que com muita freqüência coincidem, para os românticos) é levado a considerar a realidade
mais concreta como uma sombra ou um jogo do Eu, a subestimar a importância da realidade, não tomá-la a sério.
Segundo Schlegel, a I. é a liberdade absoluta diante de qualquer realidade ou fato. "Transferir-se arbitrariamente ora
para esta, ora para aquela esfera, como para outro mundo, não só com o intelecto e com a imaginação, mas com toda
a alma; renunciar livremente ora a esta, ora àquela parte do próprio ser, e limitar-se completamente a uma outra;
procurar e encontrar a sua unidade e o todo, ora neste, ora naquele indivíduo, e esquecer voluntariamente todos os
demais: de tudo isso só é capaz um espírito que contenha em si como uma pluralidade de espíritos e todo um sistema
de pessoas, e em cujo íntimo o universo que — como se diz — está em germe em todos os mundos, desabro-chou,
amadureceu" (Fragm., 1798, § 121). Estas observações sobre a I. foram conceitualmente sistematizadas na obra de C.
G. F. Solger, Erwin (1815), na qual a I. era interpretada do ponto
de vista da subjetividade, que se compreende como coisa suprema e que, por isso, rebaixa a zero todas as demais
coisas, mesmo o que há de mais elevado. Apesar de se opor a alguns pormenores da doutrina de Solger, que definiu
como "platônicos", Hegel a adotava ao descrever a I. da seguinte maneira: "Considerem uma lei, singelamente tal
qual é em si e por si: eu estou além e posso fazer isto e aquilo. Superior não é coisa, eu sou superior e senhor; acima
da lei e da coisa, brinco com elas a meu bel-prazer e, nessa consciência irônica, em que permito que o supremo
pereça, fruo-me a mim mesmo" (Fil. do dir., § 140). Para Hegel, a assim entendida como consciência da
Subjetividade Absoluta que, como tal, é tudo, e diante da qual todas as outras coisas são nada, portanto como
consciência do absoluto arbítrio de tal subjetividade, a I. é resultado da filosofia de Fichte, tal como foi entendida e
interpretada por Schlegel (Fil. do dir., § 140, Zusatz). "Aqui o sujeito sabe-se em si mesmo como o Absoluto e não dá
peso algum ao resto: sabe destruir constantemente todas as sua próprias determinações do justo e do bem. Pode dar a
entender a si mesmo todas as coisas, mas só demonstra vaidade. hipocrisia, imprudência. A I. sabe que domina
qualquer conteúdo: não toma nada a sério, brinca com todas as formas" (Geschichte derPhil., III, seç. 3, C, 3; trad. it.,
III, 2, pp. 370 71).
Esse conceito caracterizou um dos aspectos fundamentais do Romantismo alemão. Kierkegaard deu-lhe uma
interpretação atenuada ou metafórica, por um lado concebendo a I. socrática como superioridade de Sócrates à
iniqüidade do mundo {Diário, X3, A, 254), por outro lado entendendo a I. em geral como "a infinitização da
interioridade do eu", mas como infinitização "interior", num significado que não tem mais a magnitude que Fichte
atribuía à infinidade. "O que é a I.?" escreve ele. "A unidade de paixão ética, que acentua o eu infinitamente em
interioridade, e a unidade de educação que, em seu exterior (no comércio com os homens) abstrai infinitamente do
próprio eu. A abstração faz que ninguém se aperceba da primeira unidade vivida e nisto está a arte da verdadeira
infinitização da interioridade" (.Diário, VI, A, 38, trad. Fabro). Como aqui a infinidade do eu é somente uma
infinidade "interior", ou seja, a acentuação ao infinito do valor do eu na consciência, mas não é a infinidade efetiva e
criadora do Eu
IRRACIONALISMO
586
ISOMORFISMO
absoluto dos românticos, a I. não tem mais o significado romântico: é apenas a oposição entre a consciência exaltada
que o eu tem de si e a modéstia das suas manifestações externas.
IRRACIONALISMO (ai. Irrationalismus). Termo com que, em italiano e alemão, são designadas as filosofias da
vida ou da ação, que, como p. ex a de Schopenhauer, consideram o mundo como manifestação de um princípio não
racional (v. AÇÃO, FILOSOFIA DA; VIDA, FILOSOFIA DA).
IRREVERSÍVEL (in. Irreversible, fr. Irréver-stble-, ai. Irreversibel; it. Irreversibilé). Caráter das relações
simétricas e dos processos que têm sentido determinado. Platão, no mito do Político, afirmou a reversibilidade do
devir cósmico, declarando que o mundo, uma vez atingindo o termo do tempo que lhe foi designado, "recomeça a
girar em sentido contrário", ou seja, inverte a ordem do tempo. Isto acontece porque o mundo é, por um lado, a coisa
mais perfeita possível, mas, por outro, é um corpo e, como tal, sujeito a mudanças. "Por isso, seu destino é refazer seu
giro em sentido inverso, sendo essa 'a mínima mudança possível do seu movimento'" (Pol., 269 c-e). Esse conceito,
de que a reversibilidade do processo cósmico se deve à exigência de realizar a maior identidade possível consigo
mesmo, era expresso por Leibniz nos termos da ciência do seu tempo. Leibniz dizia: "A sabedoria suprema de Deus
levou-o escolher sobretudo as leis do movimento mais aptas e mais convenientes às razões abstratas ou metafísicas.
No universo, conserva-se a mesma quantidade de força total absoluta ou de ação, a mesma quantidade de força
respectiva ou de reação; a mesma quantidade de força diretiva. Além disso, a ação é sempre igual à reação e o efeito
inteiro é sempre equivalente à sua causa plena" (Princ. de Ia nature et de Ia grâce, 1714, Op., ed. Erdmann, p. 716).
Essa equivalência perfeita entre a causa e o efeito significa a reversibilidade do processo causai. A mecânica clássica
admite essa reversibilidade. As equações que exprimem o comportamento dos fenômenos mecânicos não dão
indicação alguma sobre o sentido em que o tempo transcorre. O t dessas equações é uma variável contínua que não
tem sentido determinado, e isso significa que todo fenômeno mecânico é reversível. A irreversibilidade dos
fenômenos foi introduzida com a descoberta do segundo princípio da termodinâmica (chamado de Princípio de Carnot, 1824), segundo o qual o calor passa apenas do
corpo mais quente para o corpo mais frio. Nesse caso, quando com essa passagem se alcança o equilíbrio da
temperatura, é impossível voltar atrás. Do sistema em equilíbrio não é possível voltar ao sistema do desequilíbrio
térmico, que só possibilita a passagem do calor e, portanto, o trabalho mecânico. Um sistema em equilíbrio térmico
não pode fornecer trabalho mecânico. Com isso estabelece-se a irreversibilidade dos fenômenos naturais que, sob
certo aspecto, são todos fenômenos térmicos. O Princípio de Carnot excluiu, assim, a imagem do devir do mundo que
os antigos acreditavam realizar-se ciclicamente, retornando sobre si mesmo.
A irreversibilidade dos fenômenos naturais levou a pensar na morte inevitável do universo, quando fosse atingido o
equilíbrio térmico que impossibilitasse qualquer transformação e, portanto, a vida. Foram numerosas as doutrinas que
aventaram hipóteses que tentavam entrever sorte diferente para o nosso universo (cf. sobre elas MEYERSON, De
1'explication dans les sciences, 1927, pp. 203 ss.). Mas na verdade tanto a previsão da catástrofe quanto a das
possíveis vias de salvação vão muito além do que é permitido pelo alcance do princípio de Carnot e, em geral, por um
princípio científico. Este de fato vale somente para sistemas fechados ou pelo menos relativamente isolados, sendo
um instrumento de previsão para esses sistemas, e não para o universo ou o mundo, que são uma totalidade aberta ou
infinita. Em sentido diferente e positivo, o significado filosófico de irreversibilidade foi ilustrado por E. PACI, Tempo
e relazione, 1954, cap. VI e passim (v. ENTROPIA).
ISOLAR (ai. Isoliereri). No sentido de abstrair, como empregado por Kant, v. ABSTRAÇÃO. Wundt distingue a
abstração isolante, que consiste em separar determinada parte de uma aparência complexa, da abstração
generalizante, que consiste em pôr de lado, intencionalmente, algumas notas conceituais (Logik, II, pp. 11 ss.).
ISOMORFISMO (in. Isomorphism; fr. Iso-morphisme; ai. Isomorphie; it. Isomofismo). Termo empregado em lógica
e em matemática para indicar a relação entre relações homogêneas de dois ou mais termos, que consiste na
correspondência de termo a termo entre os ter-
ISONOMIA
587
ISSO
mos das relações (cf. R. CARNAP, Logical Syntax ofLanguage, § 71 c; A. CHURCH, Introduction to Mathematical
Logic, § 55).
ISONOMIA (gr. iaovoníot; lat. Isonomia). Segundo Alcméon de Cróton, é o perfeito equilíbrio das propriedades que
constituem o corpo: a saúde; seu contrário é a monarquia, que é o predomínio de uma propriedade sobre a outra, o
que constitui a doença (Fr. 4, Diels).
Segundo Epicuro, o perfeito equilíbrio e a perfeita correspondência de todas as partes ou os elementos do todo no
infinito. "Conseqüentemente, apesar de ser tão grande a multidão dos mortais, não menor é a dos imortais, e se os
elementos de distribuição são inúmeros, os de conservação devem ser infinitos" (CÍCERO, De nat. deor, I, 19, 50).
ISSO. V. ID; PSICANÁLISE.
J
JAINISMO (in. Jainism). Uma das seitas filosóficas da antiga índia, cujo nome provém de seu fundador
Mahavira (séc. V a.C), denominado Jina, que significa "o Vitorioso". Admite uma pluralidade de
realidades ou substâncias, divididas em dois grupos antagonistas: as substâncias vivas e as materiais (cf.
Tucci, Storia delia fil. indiana, 1957, pp. 55 ss.).
JANSENISMO (in. Jansenism-, fr. Jansénis-me, ai. Jansenismus, it. Giansenismó). Doutrina do bispo
Cornélio Jansênio (1585-1638), exposta na obra Augustinus. Trata-se de uma tentativa de reforma
católica através do retorno às teses de S. Agostinho sobre a graça. Segundo Jansênio, a doutrina
agostiniana implica que o pecado original tirou do homem a liberdade de querer, tornou-o incapaz para o
bem e inclinado necessariamente ao mal. Deus só concede aos eleitos, pelos merecimentos de Cristo, a
graça da salvação. Jansênio confrontava essas teses com o relaxamento da moral eclesiástica,
especialmente jesuítica, segundo a qual a salvação está sempre ao alcance do homem que, vivendo no
seio da Igreja, possui uma graça suficiente, que o salvará se for favorecida pela boa vontade. Esta era a
tese do jesuíta espanhol Molina (1535-1600), em que os jesuítas basearam o seu proselitismo, que visava
a conservar no seio da Igreja o maior número possível de pessoas. No dia 31 de maio de 1653 uma bula
do papa Inocêncio X condenou cinco proposições nas quais a Faculdade Teológica de Paris condensara a
doutrina do Augustinus de Jansênio. A favor de Jansênio estavam Antoine Arnauld e os denominados
"solitários de Port-Royal". Estes julgaram que as cinco proposições condenadas não expressavam o
pensamento de Jansênio e que, portanto, condenação não dizia respeito ao jansenismo. Em favor disto
Pascal publicou, em 1656, as Cartas provinciais. O J. continuou circulando por algum tempo em ambientes religiosos italianos e franceses (cf. F.
RUFFINI, Studi sul giansenismó, Firenze, 1947).
JOGO (gr. Ttcaõiá; lat. Jocus; in. Play, Game, fr. Jeu; ai. Spiel; it. Giocó) Atividade ou operação que se
exerce ou se executa por si mesma, e não pela finalidade à qual tende ou pelo resultado que produz. Por
este caráter Aristóteles aproximou o J. à felicidade e à virtude, pois essas atividades também são
escolhidas por si mesmas e não são "necessárias", como as que constituem o trabalho (Et. nic, X, 6, 1176
b 6). Esse conceito permaneceu substancialmente inalterado. O próprio Kant não faz outra coisa senão
reproduzi-lo ao dizer que o J. é "uma ocupação por si só agradável e não necessita de outro objetivo",
contrapondo-o ao trabalho, que é "uma ocupação por si desagradável (penosa) que atrai apenas pelo
resultado que promete (p. ex., a remuneração)" (Crít. do Juízo, % 43). Mas Kant foi também o primeiro a
empregar filosoficamente o conceito de J. assim entendido, ligando-o estreitamente à atividade estética.
Ele escreveu: "Todo J. variado e livre das sensações (que não vise a um objetivo) produz prazer porque
favorece a sensação de saúde, haja ou não em nosso juízo racional prazer pelo objeto ou mesmo fruição"
(Ibid., % 54). Os J. podem ser divididos em J. de sorte, que exige um interesse, J. musical, que supõe
apenas a variação das sensações, e J. de pensamentos, que é o J. propriamente estético (Ibid., § 54). Kant
ressaltou a função biológica do J., que serve para manter desperta e reforçar a energia vital na competição
com as demais energias do mundo. Diz.- "Dois jogadores pensam estar jogando um com o outro; na
realidade, é a natureza que joga com ambos; e a razão
JOGO
589
JOGO
pode convencer-se quando refletimos em como os meios escolhidos dificilmente se adaptam ao objetivo"
{Antr., § 86). Essas observações foram freqüentemente difundidas e ampliadas pelo pensamento moderno.
Schiller diz.- "O animal trabalha se o móbil de sua atividade é a falta de alguma coisa; e brinca se o móbil
é a plenitude de sua força, se é estimulado à atividade pela exuberância de vida" {Über die aesthetische
Erziehung des Menschen, 27). O ivertimento não é estranho nem à natureza inanimada: a
superabundância de raízes, ramos, folhas, flores e frutos de uma árvore, em comparação com o que é
necessário para a conservação da própria árvore e de sua espécie, é o divertimento da natureza vegetal.
"Da pressão da necessidade ou da seriedade física, através da pressão da exuberância, ou seja, do J. físico,
a natureza passa ao J. estético e, antes de elevar-se, acima dos vínculos das finalidades, à sublime
liberdade do belo, aproxima-se pelo menos um pouco dessa independência no livre movimento, que é fim
e meio para si mesmo" (Ibid., 27). O conceito, já expresso por Kant, de que o J. tem a função biológica de
adestrar para as atividades vitais, que garantem a conservação do organismo, torna-se lugar-comum na
filosofia e na pedagogia do séc. XIX. Para a formação desse lugar-comum contribuiu muito aquela
espécie de metafísica do J. de inspiração romântica, mais precisamente em Schelling, que Froebel usou
como base para a sua teoria da educação. Para Froebel, o J. está para a criança assim como o trabalho está
para o homem e a criação está para Deus: é a manifestação necessária da atividade da criança assim como
o trabalho é para o homem e a criação, para Deus {Die Menschenerziehung, 1826, § 23). Portanto o J.
infantil não é um passatempo: as disposições futuras do homem, tanto com relação às coisas quanto com
relação aos outros homens, formam-se na primeira infância, através do J. E Froebel propõe que toda a
educação da primeira infância se desenvolva através do J., do qual deu minuciosa regulamentação.
Mesmo sem levar em conta os pressupostos metafísicos da doutrina de Froebel, a pedagogia moderna e
contemporânea atribuiu ao J. um caráter privilegiado de condição ou instrumento da formação humana
básica, enquanto a psicologia e a antropologia lhe atribuíram função biológica e social, ou seja, utilidade
para a conservação do homem e da sua adaptação à sociedade, ao mesmo tempo em
que a estética reconheceu nele analogia com a atividade artística. As análises de Groos sobre o J.
basearam-se nesses conceitos {Die Spiele der Menschen, 1889; Die Spiele der Tiere, 1896). Groos
também utilizou esse conceito de J. para definir a atividade estética {Einleitung in die Aesthetik, 1892),
mas a definição de J. continuava sendo a de Aristóteles: a atividade que tem em vista apenas o prazer pela
atividade {Spiele der Menschen, p. 7). Desse ponto de vista, o J. foi freqüentemente considerado uma
espécie de tendência inata ou de instinto vital, que é outra maneira de expressar a função que cumpre de
adestrar o homem ou, em geral, o organismo vivo, para as atividades que garantam sua conservação no
mundo. Ao reconhecimento da função biológica, educativa e estética do J. acresceu nos últimos tempos o
reconhecimento da função social. Tanto o J. como atividade direta quanto o J. como espetáculo
constituem hoje duas das principais maneiras de emprego do tempo livre para grandes massas de
trabalhadores, exercendo, portanto, a função de corrigir e equilibrar as atividades sociais, o que ainda
precisa ser mais bem estudado.
Como já se disse, a importância crescente atribuída à atividade lúdica e a multiplicidade de funções a ela
atribuídas em vários campos não modificaram seu conceito, que continuou sendo substancialmente o
mesmo formulado por Aristóteles: atividade que tem fim em si mesma e que é procurada e exercida pelo
prazer intrínseco, e não pelo efeito ou pelo resultado que dela deriva. Contudo, mesmo esse conceito hoje
deve sofrer algumas retificações. Em primeiro lugar, deve ser retificada a contraposição, que ele implica,
entre atividade lúdica e trabalho. Essa contraposição nem sempre se verifica e nunca é tão radical. Muitos
trabalhos podem ser (ou tornar-se) interessantes, e, se isso acontece, passam a ser fins em si mesmos e
adquirem, no todo ou em parte, um caráter lúdico. É certamente difícil supor que todas as infinitas formas
que o trabalho assumiu ou assumirá possam vir a tornar-se intessantes e lúdicas, mas o fato de algumas
deles serem ou poderem vir a ser elimina em princípio essa contraposição, definindo o ludismo como uma
possibilidade em algumas atividades humanas, mais que como expressão da natureza de um grupo de
atividades. Em muitos autores, porém, essa contraposição persiste, especialmente no que se refere ao
trabalho alienado da sociedade industrial, e o jogo é considerado

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