Vivências da Psicose, do Crime e da Internação no Hospital de

Transcrição

Vivências da Psicose, do Crime e da Internação no Hospital de
1
Universidade Federal da Bahia
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
Vivências da Psicose, do Crime e da Internação no Hospital de
Custódia e Tratamento da Bahia
Márcia Cristina Maciel de Aguiar
Salvador-BA
2011.2
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Márcia Cristina Maciel de Aguiar
Vivências da Psicose, do Crime e da Internação no Hospital de
Custódia e Tratamento da Bahia
Dissertação a ser apresentada ao curso de
Mestrado em Ciências Sociais da
Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal da
Bahia, sob a orientação do professor Luiz
Claudio Lourenço, como requisito parcial à
obtenção do grau de mestre.
Salvador-BA
2011.2
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___________________________________________________________________________
A282
Aguiar, Márcia Cristina Maciel de
Vivências da psicose, do crime e da internação no hospital de custódia e
tratamento da Bahia / Márcia Cristina Maciel de Aguiar. – Salvador, 2011.
166f.: il.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Claudio Lourenço.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal da Bahia. Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas, 2011.
1. Hospitais psiquiátricos. 2. Psicoses. 3. Crimes. 4. Prisão. I. Lourenço,
Luiz Claudio. II. Universidade Federal da Bahia, Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas. III. Título.
CDD – 365
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AGRADECIMENTOS
Agradeço ao professor Mark Andrew Cravalho pela confiança e incentivo que me
ajudaram a iniciar esta empreitada de pesquisa, e em especial ao professor Luiz Claudio
Lourenço por me auxiliar de forma tão competente em toda esta caminhada até chegar à sua
conclusão. Agradeço também ao professor Eduardo Paes Machado por ter me iniciado nos
estudos da sociologia do crime, além de ter me recomendado ao professor Luiz Lourenço,
certamente com elogios acima dos que eu merecia.
Agradeço à minha irmã Liliane, pela força e estímulo nas horas difíceis desta jornada,
e a Paulo Maciel por sua ajuda generosa, que me possibilitou ingressar no mestrado em
momento particular tão complicado. Agradeço aos meus filhos Nello e João Vitor e ao meu
marido Nelo, pela paciência, amor e colaboração.
Agradeço em particular a Paulo Barreto Guimarães, colega e diretor do Hospital de
Custódia e Tratamento da Bahia, pela sua extrema disponibilidade em facilitar-me todos os
acessos necessários para este trabalho e pela paciência em se colocar sempre pronto a
responder tantas de minhas perguntas.
Como não poderia deixar de ser, aos pacientes do HCT/BA, símbolo de todos os
pacientes que venho cuidando ao longo de mais de 26 anos de carreira, razão de tanto estudo e
dedicação, é para eles este trabalho e também para mim como o meu presente de 50 anos,
significando a constatação de que apenas posso ser mestre de mim mesma.
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“Dizem que eu sou louco por pensar assim
Se eu sou muito louco por eu ser feliz
Mas louco é quem me diz
E não é feliz, não é feliz
...Eu juro que é melhor,
Não ser o normal
Se eu posso pensar que Deus sou eu...”.
Balada do louco - Os Mutantes
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RESUMO
Esta é uma pesquisa qualitativa, que adotou uma perspectiva próxima do
interacionismo simbólico, com recursos metodológicos da teoria fundamentada, e objetivou
compreender como os pacientes psicóticos e homicidas internos no Hospital de Custódia e
Tratamento da Bahia – HCT/BA pensam e representam sua doença, seu crime e a internação e
de modo complementar, objetivou também compreender como os funcionários do HCT/BA
pensam e representam a sua experiência institucional. Neste trabalho os pacientes do HCT/BA
foram nominados internos-pacientes (IPs), desígnio que já aponta para a duplicidade do seu
lugar na instituição, como preso (interno) e o como doente (paciente). Por observar que os
funcionários passam grande parte de suas vidas dentro do HCT/BA e absorvem uma série de
mazelas do contexto manicomial, estes foram designados de internos-funcionários (IFs).
Como técnica de estudo foi adotada a observação participante e entrevistas semi-abertas
individuais e grupais. Foram entrevistados 32 internos-funcionários e 54 internos-pacientes,
destes últimos, selecionou-se 08 para a amostra central da pesquisa. O aspecto abordado na
metodologia devido ao perfil da clientela e a sua interação com uma pesquisadora psiquiatra
„naturalizada‟ em hospício foi extremamente relevante e trouxe dados que dificilmente seriam
colhidos por um pesquisador de outra área. Os resultados obtidos revelaram o HCT/BA como
uma instituição manicomial, ambígua e paradoxal, por unir num mesmo espaço as lógicas da
prisão e do hospício, sendo nele prioritárias as suas características de cadeia; ele serve para
punir e conter a loucura e não para tratá-la, reforça o estigma, a exclusão e promove o
abandono. Os internos-pacientes do HCT/BA sofrem além da privação de liberdade, inúmeras
outras, o ambiente é insalubre, não tem direito à atividade, nem ao trabalho, nem à
privacidade; a educação e o tratamento a eles oferecido são de qualidade ruim; a presença da
família se dá na minoria dos casos, a morosidade do sistema penal lhes propicia mais tensão e
incertezas quanto ao seu futuro. Com o tempo, IPs e IFs tornam-se institucionalizados. O
crime cometido pelos IPs da amostra central da pesquisa, na maioria deles foi cometido em
estado de franca loucura ou de falta de consciência. Os internos-pacientes têm sentimentos
ambivalentes sobre seu crime, que ocorreu segundo sua representação, em função da doença,
da falta de tratamento ou do uso de drogas. A interação no HCT/BA é difícil entre seus atores,
rituais de evitação e de auto-proteção se estabelecem facilmente dos IFs para com os IPs, mas
também nos IPs entre si. No entanto, estar no HCT/BA para uns pode significar o inferno,
para outros pode ser bom. O manicômio tem servido como o local onde ainda podem
permanecer indefinidamente, doentes mentais cada vez mais adoecidos, precariamente
assistidos, e em regime de internação asilar. Necessário uma mudança de atitude, relações,
mentalidades e sentimentos possibilitando a construção de uma alteração na representação
coletiva sobre a loucura e a criminalidade nos portadores de transtornos mentais. Pela riqueza
do campo e suas particularidades, necessário que outros estudos sejam feitos possibilitando
uma análise comparativa de dados e um maior aprofundamento das inúmeras questões que o
próprio campo pode gerar.
Palavras chaves: Hospitais Psiquiátricos. Psicoses. Crimes. Prisão.
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ABSTRACT
This is a qualitative research, which adopted an approach closer to symbolic
interactionism, using a grounded theory methodology, aiming to understand how homicide
and psychotic patients at “Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia” (HCT/BA) think and
represent their illness, their crime and custody hospital admission in a complementary
manner, also aimed at understanding how the employees of HCT/BA think and represent the
their institutional experience. In this work HCT/BA patients were named Inmate-patients
(IPs), terminology that shows their dual role at the institution as inmate (criminal), and as ill
person (patient). Noting that the employees spend a large portion of their lives inside
HCT/BA, and are tainted by judicial mental health hospital‟s context, they were named
Inmate-employees (IFs). Participative observation and semi-open individual and group
interviews were adopted in this study. Thirty-two IFs and 54 IPs, of which 8 were included in
the main sample, were interviewed. The aspect emphasized in the methodology resulting from
the sample‟s profile and its interaction with a psychiatrist-researcher “acclimated” to mental
health settings, yielded data that would hardly be obtained if collected by a researcher with a
different background. The results showed that HCT/BA, as an ambiguous and paradoxal
mental health institution, unifying in the same setting the logistics of a jailhouse and
psychiatric hospital, where the jailhouse priorities are higher, serves both to punish and to
constrain mental illness, not to treat it. It reinforces the stigma, the exclusion, and promotes
abandonment. The IPs at HCT/BA, in addition to the freedom restraint, suffer numerous other
limitations: the environment is unhealthy, there are no rights to activities, work, privacy, or
education; furthermore, the treatment offered is of poor quality, family visitation happens in
only a minority of cases, the bureaucracy in the system contributes to more tension and
uncertainty about the future. In time, the IPs and IFs become institutionalized. The crime
committed by the IPs from the main sample, happened, in most cases, when they were fully
psychotic or in lack of consciousness. The IPs have an ambivalent feeling towards their crime,
which occurred, according to their representation, as a function of the illness, lack of
treatment, or drug use. Admission to HCT/BA is hard. Among its actors, avoidance rituals
and self-protection are easily established from IFs to IPs, and among IPs themselves.
Although being at HCT/BA could mean hell for some, for others it can be good. The judicial
mental health hospital has served as a place where mental health patients can remain
indefinitely, gradually sicker, precariously treated, and under an asylum-like care. A change
in attitude, relations, mentalities and feelings that will promote an alteration in the collective
representation of mental illness and of the criminality of mental health patients is needed. The
richness of the field and its peculiarities present a need for further research, making
comparative data analysis and a greater deepening of questions the field itself poses possible.
Keywords: Psychiatric Hospital. Psychoses. Crimes. Jail.
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Foto 1. Fachada lateral do prédio do Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia.....43
Foto 2. Casa de Arquimedes.....148
Foto 3. Casa de Arquimedes.....148
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LISTA DE TABELAS
Tabela 1. Sexo dos internos-pacientes.....45
Tabela 2. Tipos de crimes.....46
Tabela 3. Situação legal dos internos-pacientes.....46
Tabela 4. Cor da pele dos internos-pacientes.....47
Tabela 5. Estado civil dos internos-pacientes.....47
Tabela 6. Grau de instrução dos internos-pacientes.....47
Tabela 7. Faixa etária dos internos-pacientes.....47
Tabela 8. Procedência dos internos-pacientes.....48
Tabela 9. Funcionários do setor clínico, educacional e de segurança do HCT/BA.....48
Tabela 10. Temas mais comuns encontrados nas narrativas dos informantes.....58
Tabela 11. HCT, paradoxo e ambivalência.....67
Tabela 12. HCT, hospício e prisão – controle social.....67
Tabela 13. HCT, hospício e prisão.....68
Tabela 14. Pedidos pessoais mais freqüentes dos IPs.....91
Tabela 15. Custódia no HCT/BA.....96
Tabela 16. Características básicas do percurso psicose/crime I.....135
Tabela 17. Características básicas do percurso psicose/crime II.....137
11
SUMÁRIO
Capítulo I – INTRODUÇÃO.....13
1.1. Memorial.....13
1.2. Introdução.....14
Capítulo II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA.....17
2.1. A psicose e a criminalidade.....17
2.2. Crimes e penas: a prisão.....20
2.3. O surgimento dos manicômios e a psiquiatria no Brasil.....25
2.4. Loucura, internamento e exclusão.....28
2.5. Instituições totais.....32
2.6. Face institucional da doença mental.....35
2.7. Exame psiquiátrico e a penalização da loucura.....37
Capítulo III – HOSPITAL DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO DA BAHIA –
HCT/BA.....41
3.1. A rotina do HCT/BA.....44
3.2. Perfil dos internos-pacientes do HCT/BA.....45
3.3. Perfil dos internos-funcionários do HCT/BA.....48
Capítulo IV – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS.....49
4.1. O método e técnicas de coleta: etapas e procedimentos.....49
4.2. A dinâmica do campo e a análise da pesquisa.....54
4.3. O background, a técnica e o campo de pesquisa.....59
Capítulo V – HOSPÍCIO E PRISÃO: paradoxo e ambivalência.....63
Capítulo VI - INTERNOS-FUNCIONÁRIOS: o serviço e suas narrativas.....69
6.1. Conflitos entre internos-funcionários.....77
6.2. Empreendedores morais, mas também internos: „aqui todo mundo é doido‟.....79
12
Capítulo VII – PERICULOSIDADES DOS INTERNOS-PACIENTES E O QUARTOINDIVIDUAL: „aqui eles matam e ainda dizem que fizeram oração pro morto‟.....81
Capítulo VIII – INTERNOS-PACIENTES: vivências e sentidos.....88
8.1. Pedidos, necessidades e queixas.....89
8.2. Atividade e trabalho.....91
8.3. Classificação dos internos-pacientes do HCT/BA: „aqui tem doido, lúcido, doente mental,
foco‟.....94
8.4. Custódia e tratamento: „aqui quem não é doido, fica doido‟.....94
8.5. Psicose e crime: „tenho loucura de mandar matar ou morrer‟.....96
Capítulo IX - MANUSCRITO DE ARQUIMEDES: „carta à minha filha Samaria‟...138
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....148
REFERÊNCIAS.....154
ANEXOS.....160
13
Capítulo I – INTRODUÇÃO
1.1. Memorial
Graduei-me em medicina pela Faculdade de Medicina da UFBA em 1984. Cursei
residência médica em psiquiatria nos anos de 1985 e 1986. Desde então, dedico-me à
profissão de médica psiquiatra. Atuei na área clínica em instituições psiquiátricas públicas e
privadas, exerci funções administrativas tanto no serviço público como no privado, tendo
ocupado os cargos de vice-diretora do Hospital Juliano Moreira, diretora clínica do Sanatório
Bahia, diretora técnica do Instituto de Convivência Estudo e Pesquisa Nise da Silveira e
supervisora técnica dos CAPS dos municípios de Iguaí e Itapetinga ambos no interior da
Bahia. Atualmente exerço as funções de presidente da Associação de Pesquisa e Assistência
Integral ao Ser, de diretora técnica e psiquiatra do Centro de Saúde do Psiquismo Inácio
Ferreira e de professora auxiliar do Departamento de Neurociências e Saúde Mental da
Faculdade de Medicina da UFBA.
Sempre fui apaixonada pela minha profissão, costumando dizer que cada ser humano
tem a sua „cachaça‟, o estudo da loucura é a minha „cachaça‟. Serviços psiquiátricos de
caráter asilar sempre me mobilizaram muito, motivo pelo qual fiz inúmeras tentativas de
interferir de algum modo para que o hospício deixasse de sê-lo um dia, para tornar-se hospital.
Foi partindo deste lugar entusiasta, apaixonado e crítico, que cheguei até aqui.
Em 2008, talvez pela decepção com as minhas experiências administrativas em
serviços psiquiátricos, resolvi investir na área acadêmica optando pelo mestrado em ciências
sociais por entender que a sociologia e a antropologia serviriam para a ampliação dos meus
conhecimentos, acrescentando valores importantes à minha prática psiquiátrica. Iniciei
cursando disciplinas optativas do programa de pós-graduação em ciências sociais na
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA. Em 2010, ingressei no programa como
aluna regular do mestrado. Elaborei um projeto de pesquisa para trabalhar com psicóticos
internados em uma instituição psiquiátrica pública em busca da compreensão de seus
símbolos e significados. A minha escolha por este projeto deveu-se ao meu forte interesse
pela psicose e a possibilidade de estudá-la sobre o olhar sócio-antropológico. Investi no
estudo da antropologia psicológica e busquei a orientação do antropólogo e professor Mark
Andrew Cravalho que de pronto interessou-se pelo meu anteprojeto me passando referências
importantes para o meu aprofundamento no tema. Optei por realizar a minha pesquisa no
Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia – HCT/BA, por não ter com esta instituição,
14
vínculo anterior de trabalho. Com esta escolha, por ser o HCT/BA integrante do sistema penal
baiano, precisei acrescer no anteprojeto aspectos da sociologia do crime e do sistema
prisional, motivo pelo qual busquei a co-orientação do sociólogo e professor Luiz Claudio
Lourenço, estudioso e pesquisador do sistema prisional, que também de pronto
disponibilizou-se para esta empreitada. Decidi trabalhar com pacientes psicóticos do sexo
masculino e que estavam no HCT/BA em função de homicídio, por ser este o grupo mais
numeroso da instituição com se pode ver nas tabelas 1 e 2 das p. 45 e 46.
Após a aprovação do projeto de pesquisa “Símbolos Culturais e Símbolos Pessoais nos
Significados de Experiências na Psicose” no Comitê de ética em pesquisa da FFCH – UFBA,
eu iniciei em setembro de 2010 o trabalho de campo no HCT/BA. Por razões de ordem
familiar, no final do segundo semestre de 2010, o meu orientador transferiu-se para outro
estado do Brasil, motivo pelo qual o professor Luiz Claudio Lourenço assumiu a orientação
da minha pesquisa que precisou sofrer alterações: o estudo dos símbolos sob a ótica da
antropologia psicológica foi abandonado e o trabalho mudou um pouco sua direção; decidi
por focar nas vivências da psicose, do crime e da internação no HCT/BA, mantendo os
pacientes psicóticos e homicidas como o interesse central, complementadas pelas vivências
dos demais internos e pela observação da realidade institucional.
Achei importante registrar que todo este trabalho foi extremamente rico me trazendo
inúmeras reflexões e questionamentos para além do conhecimento técnico. Difícil para mim
foi manter o trabalho em seu foco, já tão amplo, e não derivar para outros pontos tão ricos
quanto aquele que optei por estudar. O campo Hospital de Custódia e Tratamento se mostrou
extremamente fértil e instigante, para não dizer desafiador. Quase no final desta dissertação
trago trechos de um manuscrito de um interno-paciente, apenas pincelando e ensaiando, a
partir de uma leitura simbólica, o que poderia ter sido um estudo de antropologia psicológica
que certamente farei algum dia.
1.2. Introdução
O estudo no campo da saúde mental é vasto de possibilidades, abarcando aspectos
biológicos, psicológicos e socioculturais dos seres humanos enquanto indivíduos e seres
sociais. A doença mental se mostra sob a perspectiva sociológica, como um distúrbio de
comportamento que foge à norma, ela reflete o que um determinado grupo estabelece como
normal ou desviante, variando de acordo com a sociedade em que vive com a sua cultura e o
momento histórico que atravessa. Considero importante ampliar o foco de atenção sobre a
15
saúde mental, que será mais eficaz na medida em que possa incluir outros conhecimentos
além do biomédico, favorecendo uma melhor compreensão do que seja o processo saúdedoença. Assim, as dimensões psicológica, social e cultural, como dimensões do indivíduo,
devem ser levadas em conta.
O tema deste estudo abarca aspectos sociológicos em saúde mental, e em se tratando
de uma pesquisa num Hospital de Custódia e Tratamento - HCT, ela acaba necessariamente
mobilizando diferentes campos de conhecimento. Neste desafio nos vimos diante de várias
possibilidades para construir questões com referências na sociologia do desvio e da
transgressão, centrando na sociologia do crime e dos estudos prisionais, além do campo da
saúde mental e da psiquiatria forense 1.
Em minha experiência clínica de mais de 26 anos prestando assistência psiquiátrica a
pacientes psicóticos, grande parte destes em hospitais psiquiátricos (de 1985 a 2001 e no ano
de 2006), entendo que as instituições de caráter asilar não cumprem o papel terapêutico,
estando mais a serviço da sociedade ao exilar os seus loucos, do que a serviço dos mesmos
que, rotulados, são destituídos de seus direitos de cidadãos, deixando de ser sujeitos e
tornando-se objetos de poder. Acredito ser importante a construção de sentido que os
portadores de transtornos psicóticos fazem de suas vivências, e como lidam com isto no seu
cotidiano. Optei por estudar a psicose, o crime e a internação, a partir das vivências narradas
pelos pacientes em estudo, psicóticos e homicidas internados no HCT/BA, e das observações
diretas feitas no campo. O objetivo é compreender como estes pensam e representam a sua
doença, o crime, e a internação no HCT/BA. Como objetivo complementar a este, me
interessa também compreender como os funcionários do HCT/BA pensam e representam a
sua experiência institucional. Como estes sujeitos compreendem seu lugar dentro desta
instituição? Como constroem suas redes de sociabilidade? Como dão sentido e entendem suas
vivências, sejam enquanto pacientes ou enquanto funcionários?
Neste trabalho os pacientes do HCT/BA foram nominados internos-pacientes (IPs),
uma vez que este desígnio já aponta para a duplicidade do seu lugar na instituição, como
presos (internos) e o como doentes (pacientes). Por outro lado, por observar que geralmente
os funcionários assim como os internos-pacientes, passam grande parte de suas vidas dentro
do HCT e nesta experiência cotidiana há a absorção e a internalização de uma série de
mazelas do contexto manicomial; os designei de internos-funcionários (IFs). Entendi com
este trabalho que os internos, de uma maneira geral, tanto pacientes quanto funcionários,
1
Subespecialidade da psiquiatria que lida com a interface entre lei e psiquiatria.
16
compartilham, cada qual ao seu modo, vivências, conflitos e códigos de sociabilidade dentro
da instituição.
Sabe-se que sempre houve uma lacuna entre o ideal para qual a instituição HCT foi
pensada e como ela de fato opera em nosso país. O que me chama atenção é a ambigüidade
decorrente de uma instituição que na prática mais pune do que trata; um lugar que no dia-adia armazena dentro de si seres humanos indesejáveis ao convívio social. Esta foi a mola
propulsora que me impulsionou a esta empreitada de pesquisa.
Justifica-se este estudo, pela necessidade de uma melhor compreensão de como
pessoas duplamente estigmatizadas, doentes mentais e criminosas, percebem a sua doença, o
seu delito e as formas de tratamento e punição que lhe são impostas, além de buscar
compreender as vivências institucionais daqueles que nela trabalham. Optei pelo Hospital de
Custódia e Tratamento como campo de estudo por tratar-se de uma instituição pública, que
acolhe pessoas portadoras de transtornos mentais que cometeram delitos, sendo um campo
social e culturalmente rico, em função de ser uma instituição segregadora e vinculada aos
primórdios da psiquiatria. Entendi estar diante de um vastíssimo e pouco explorado campo de
pesquisa, fomentador de muitas perguntas, muitas das quais certamente não conseguirei
responder. A despeito disso, acredito que o que importa como fomentador de mudanças
sociais, não é exatamente responder a questões e sim, apresentá-las e discuti-las. É com esta
intenção que me disponho a esta tarefa de levantar reflexões sobre a prática psiquiátrica e
manicomial, podendo de algum modo contribuir em favor da melhor qualidade e efetividade
da assistência em saúde mental para os portadores de transtornos psicóticos que cometem
delitos, e para repensar a pertinência ou não da manutenção de instituições de custódia e
tratamento.
O presente trabalho é dividido em nove capítulos. No presente, o número I, iniciei com
o item Memorial onde tratei sobre a minha trajetória até chegar a esta pesquisa, seguiu-se o
item referente à introdução propriamente dita. O capítulo II é dedicado à Fundamentação
Teórica que foi dividida em itens: “A Psicose e a criminalidade”, “Crimes e penas: a prisão”,
“O surgimento dos manicômios e a psiquiatria no Brasil”, “Loucura, internamento e
exclusão”, “Instituições totais”, “Face institucional da doença mental”, “Exame psiquiátrico e
a penalização da loucura”. Segue-se o capítulo III, “Hospital de Custódia e Tratamento da
Bahia- HCT/BA”, onde descrevo as características principais do campo de pesquisa, incluindo
nele os itens “A rotina do HCT/BA”, “Perfil dos internos-pacientes do HCT/BA” e o “Perfil
dos internos-funcionários do HCT/BA”. No capítulo IV “Procedimentos Metodológicos”,
coloco as etapas da pesquisa enfatizando os aspectos peculiares deste trabalho, observados
17
principalmente em razão dos atores estudados na sua interação com uma pesquisadora
psiquiatra. Este capítulo é descrito em três itens: “O método e técnicas de coleta: etapas e
procedimentos”, “A dinâmica do campo e a análise da pesquisa”, “O background, a técnica e
o campo de pesquisa”.
Intitulo o capítulo V de “Hospício e Prisão: paradoxo e ambivalência”, onde abordo o
contexto ambivalente e paradoxal do HCT/BA, surgido logo de imediato no campo, resultado
da junção numa mesma instituição de duas mazelas sociais, o hospício e a prisão. No Capítulo
VI, trago descrições do serviço dos internos-funcionários e suas vivências na instituição,
abordando os itens “Conflitos entre internos-funcionários” e “Empreendedores morais, mas
também internos” na tentativa de explicitar algumas semelhanças entre pacientes do HCT/BA
e seus funcionários. No capítulo VII “Periculosidade dos internos-pacientes e o Quartoindividual”, trato sobre a periculosidade esperada na clientela sob custódia e tratamento no
HCT/BA, razão da representação coletiva sobre o louco em nossa sociedade, e abordo sobre a
permanência na instituição do Quarto-individual, para dar conta de como a instituição pensa e
representa a doença mental e a periculosidade. Prossigo com o capítulo VIII, “Internospacientes: vivências e sentidos”, onde descrevo as narrativas dos internos-pacientes
sistematizadas em diferentes itens: “Pedidos, necessidades e queixas”, “Atividade e trabalho”,
“Classificação dos internos-pacientes”, “Custódia e tratamento”, “Psicose e crime”, aspectos
estes considerados relevantes a partir das falas do campo. Optei por concluir a explanação do
trabalho de campo, com o capítulo IX “Manuscrito de Arquimedes”, onde coloco trechos de
uma narrativa escrita por um dos internos-pacientes de nossa amostra central de pesquisa,
para sua filha, que mostra os seus significados e sentidos, entrelaçados com seus símbolos e o
seu crime. Termino com as considerações finais, onde refiro aspectos da análise dos dados,
levanto questionamentos frutos deste trabalho e coloco sugestões para o campo.
Capítulo II – FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA
2.1. A psicose e a criminalidade
O diagnóstico médico é um dos pilares de sustentação da prática da medicina e se
revela como definidor do modelo médico de intervenção da realidade. Diagnóstico médico se
refere ao reconhecimento de uma doença ou de qualquer outra condição patológica através de
seus sinais, sintomas, curso, outras características clínicas resultadas de exame clínico e/ou
complementares. Em medicina, diagnosticar é reconhecer uma patologia em um indivíduo
18
doente, com um objetivo terapêutico, de pesquisa ou outros, como perícia médico trabalhista
ou forense, por exemplo (DUNNINGHAM, 1999).
Atualmente, a medicina ocidental lança mão de duas classificações de transtornos
mentais como norteadoras do diagnóstico médico, a CID-10 e o DSM-IV. O termo psicose é
um diagnóstico sindrômico, sendo que cada síndrome pode abarcar diversos transtornos. De
acordo com Dunningham (1999), síndrome equivale a um conjunto de sinais e sintomas que
costumam se apresentar correlacionados, podendo derivar de múltiplas causas. As síndromes
psicóticas vão abarcar a esquizofrenia, o transtorno esquizotípico, os transtornos delirantes
persistentes, os transtornos psicóticos agudos e transitórios, o transtorno delirante induzido, os
transtornos esquizoafetivos, outros transtornos psicóticos não-orgânicos e a psicose não
orgânica não especificada, na CID-10, que correspondem às categorias de F20 a F29. Na
CID-10, o termo psicótico indica a presença de alucinações, delírios ou de um número
limitado de várias anormalidades de comportamento, tais como excitação e hiperatividade
grosseiras, retardo psicomotor marcante e comportamento catatônico. No DSM-IV-TR, as
síndromes psicóticas vão abarcar a esquizofrenia, o transtorno esquizofreniforme, o transtorno
esquizoafetivo, o transtorno delirante, o transtorno psicótico breve, o transtorno psicótico
induzido, o transtorno psicótico devido a uma condição médica geral, o transtorno psicótico
induzido por substância, e o transtorno psicótico sem outra especificação.
O termo psicose é usado em psiquiatria para designar um subconjunto de transtornos
mentais que apresentam tipos de comprometimento cognitivo relevante e distúrbios
acentuados do comportamento global do indivíduo. As psicoses acarretam falseamento da
noção de realidade, com subjetivismo excessivo e incapacidade de retificação das noções a
partir das evidências. Há alheamento da realidade, porém quase sempre parcial e seletivo
(MENDES FILHO, 2004).
As síndromes psicóticas caracterizam-se por sintomas típicos como alucinações,
delírios, pensamento desorganizado e comportamento bizarro. Em alguns casos, observa-se
uma desorganização profunda da vida mental e do comportamento. Autores de orientação
psicodinâmica dão ênfase à perda de contato com a realidade como dimensão central da
psicose, nesta perspectiva, o psicótico é regido pelo princípio do prazer e do narcisismo. É
marcante na psicose, a perda de contato com a realidade, havendo uma precária consciência
da doença. A esquizofrenia é a principal forma de psicose, os seus sintomas de primeira
ordem, segundo a classificação clássica de Kurt Schneider (percepção delirante, alucinações
auditivas que comandam ou comentam a ação do paciente, eco do pensamento, difusão do
pensamento, roubo do pensamento, vivências de influência corporal ou sobre o pensamento)
19
indicam uma profunda alteração da relação eu - mundo, uma perda de controle sobre si
mesmo, a invasão do mundo sobre seu íntimo, com um avançar do mundo público sobre o
privado (DALGALARRONDO, 2008).
Na perspectiva da antropologia da saúde, Rabelo (2005) coloca que os trabalhos
produzidos por cientistas e profissionais da área de saúde, aplicando categorias da medicina
ocidental, em geral, buscam ressaltar o fundamento biológico comum aos processos de
doença e cura, apontam um fundamento patológico intrínseco a tais processos e
desconsideram seu fundamento cultural. Segundo a mesma autora (1994, p.47) “a passagem
da doença à saúde pode vir a corresponder a uma reorientação mais completa do
comportamento do doente, na medida em que transforma a perspectiva pela qual este percebe
seu mundo e se relaciona com outros”. Alves (1994) vai dizer que a construção de
significados atribuídos ao problema da enfermidade mental, não pode ser totalmente reduzida
a asserções lógicas ou a conjunto de modelos explicativos; as expressões diretas do
sofrimento precisam ser organizadas em uma totalidade dotada de sentido, e a enfermidade
existe quando se atribui a uma dada experiência sensível um conjunto de significados.
Alienado é alguém „de fora‟, estrangeiro, alienígena, podendo significar aquele que
está fora da realidade, fora de si. Na medida em que alguém nesta condição poderia
representar um sério perigo à sociedade, por perder o juízo, o conceito de alienação nasce
associado à idéia de „periculosidade‟ (AMARANTE, 2007).
Na interrelação entre criminalidade e transtorno mental, Hodgins e Janson (2002)
referem que as pessoas que sofrem de transtornos mentais maiores não são mais propensas a
cometer crimes do que as pessoas sem esses transtornos, no entanto, a maior taxa de
criminalidade entre estas pessoas do que entre as não doentes pode ser explicada pois estas
geralmente permanecem na cena do crime ou entregam-se à polícia.
Há também uma maior proporção de doentes mentais que se envolvem em
comportamentos anti-sociais e/ou agressivos do que os não doentes, sendo o tratamento
inadequado muitas vezes o responsável por este resultado. A falta de cuidados em saúde
mental também está associada com a prática de atos ilícitos e a um maior uso e abuso de
álcool e drogas nas pessoas com transtornos mentais maiores. No entanto, o abuso de
substâncias está associada a atividade criminal entre doentes mentais e entre não doentes.
Observa-se que quando se implementam programas especializados combinados, incluindo
supervisão intensiva, medicamentos para os sintomas do distúrbio mental maior,
monitoramento de álcool e drogas e o tratamento para abuso destas substâncias, a
criminalidade nesta população pode ser prevenida. Dado que a prevalência de álcool e drogas
20
em portadores de transtornos mentais maiores é maior do que entre pessoas do mesmo sexo e
idade sem esses transtornos, e que o álcool e transtornos por uso de drogas aumentam o risco
de criminalidade violenta e de homicídios, o abuso de substâncias é uma parte importante na
explicação da criminalidade nos doentes mentais (HODGINS e JANSON, 2002).
Pondé (2004) fazendo uma leitura de Lacan coloca que na psicose falta o elemento
que faz uma amarração entre o Real, o Simbólico e o Imaginário; o delírio aparece como uma
tentativa de reconstrução, de atamento de nós; a sua construção pode funcionar como uma
espécie de barreira, mesmo que precária, contra a intrusão abusiva e avassaladora do Outro.
Segundo a autora, na psicose é frequente o apelo à lei, se esta falha, dá-se a passagem ao ato
como uma tentativa de fazer justiça. Coelho (1999) em seu estudo de caso „Um Crime de
Morte e de Corte‟, analisou o crime de José, que matou a sua mulher com uma facada e diz:
“logo após o crime, José ficou em pé, parado, sem entender o que havia acontecido, não fugiu,
nem correu”. Coelho na perspectiva Lacaniana coloca o crime de José como uma passagem ao
ato, a partir daí algo em José se perdeu e ele se modificou.
Pondé (2011) analisando a metáfora sobre a culpa e a expiação, no estudo de caso do
crime de Milu, concorda com a concepção Freudiana, de que o crime expia uma culpa
original, é em si mesmo uma autopunição por uma falta primária inconsciente. A autora cita
Nassio (1988) que diz que a ação criminosa expia e nomeia a falta, torna consciente e
detectável, uma falta antes sem representação, desconhecida, original.
2.2. Crimes e penas: a prisão
O HCT/BA é parte do sistema prisional baiano, o considero uma prisão, o que se
confirma no campo como veremos mais adiante, motivo pelo qual introduzi este item na
minha dissertação onde abordo sobre o crime, o criminoso, as penas, especificamente a pena
de prisão, e algumas das suas mazelas.
Durkheim (1966) nos diz que o crime é um fato social, que aparece em todas as
sociedades de todos os tipos, no entanto, ele muda de forma, pois não é o mesmo em todo
lugar. Ele é um fenômeno de sociologia normal, mas não se pode deduzir disto, que o
criminoso seja normal do ponto de vista biológico e psicológico. O crime é um fenômeno
inevitável, ainda que lastimável, porém necessário e útil. Durkheim (1989) considera um ato
criminoso, aquele que ofende os estados fortes e definidos da consciência coletiva. A pena por
sua vez, consiste essencialmente numa reação passional, que a sociedade exerce sobre os seus
membros que violaram certas normas de conduta.
21
Segundo Misse (2003) “o crime não é um acontecimento individual, mas social. Não
está no evento, mas na relação social que o interpreta”. Novais (2009) diz que todo crime tem
sua abjeção, porque atenta contra o Estado e a sociedade; há crimes, no entanto, como o
homicídio, que vão além, pois violam além das leis humanas, as divinas (“Não matarás” –
Êxodo 20:13). Segundo o autor, o homicídio consiste no ato de uma pessoa matar outra; em
termos topográficos, está inserido no capítulo relativo aos crimes contra a vida do Código
Penal, constituindo o primeiro delito por ele tipificado. Silva (2007) cita em seu trabalho
diversos autores que tratam da tipologia de homicídios, e coloca que não há um crime de
homicídio, mas vários crimes de homicídios que podem ser qualitativamente distinguíveis
através da relação existente entre vítima e agressor, o que observaremos mais a frente neste
texto, quando tratarei sobre os crimes cometidos pelos atores da nossa amostra central de
pesquisa.
Carrara (1998) aborda o crime como uma das formas de doença mental, objeto da
psiquiatria, ou o coloca como ataque à sociedade, se transfigurando em “erro” ou
irracionalidade. Delito segundo Beccaria (2006) é uma ação que se opõe ao bem público. Já
para Foucault (2009) o criminoso rompeu o pacto social, é inimigo da sociedade. Em sua
leitura, o menor crime ataca toda sociedade, e toda sociedade, inclusive o criminoso, está
presente na menor punição. Sendo assim, de acordo com Foucault, o castigo penal é uma
função generalizada, o infrator torna-se inimigo comum, traidor, “monstro”; o direito de punir
torna-se então, a defesa da sociedade.
Becker (2008) coloca o criminoso e o louco na categoria de desviantes e diz que esta
rotulação, como qualquer outra, põe o ator do desvio em circunstâncias que tornam mais
difícil para ele levar adiante as rotinas normais da vida cotidiana, incitando-o a ações
“anormais”. Para o mesmo autor, todos os grupos sociais fazem regras e tentam impô-las; a
pessoa que infringiu uma regra é considerada um outsider, um desviante, fora do círculo dos
membros “normais” do grupo. Importa aqui dizer, seguindo o raciocínio de Becker (2008),
que o desvio é criado pela sociedade, na medida em que é ela quem faz as regras cuja infração
constitui desvio, e ao aplicar suas regras a estas pessoas rotulando-as como desviantes. Desvio
é então, para Becker (2008) o produto de um processo que envolve reações de pessoas ao
comportamento de outras, não é uma qualidade que reside no próprio comportamento, mas na
interação entre a pessoa que comete um ato e aqueles que reagem a ele.
Em se tratando de penas, as penas aplicadas, para serem eficientes, devem ser
proporcionais ao delito. A finalidade da pena é impedir que o acusado cometa novos crimes e
que outros façam o mesmo, causando uma impressão eficaz e durável na índole dos homens.
22
As penas, ainda que produzam um bem, não são sempre justas; e para serem justas, precisam
ser necessárias. É a duração das penas, e não sua intensidade, que causa um maior efeito sobre
as almas humanas (BECCARIA, 2006).
O castigo, vai nos dizer Garland (1999, p.17 e 19) é um aspecto problemático e pouco
compreendido da vida social, cuja razão de ser não está clara. Assim como o delito, o castigo
em nossos dias é um problema social crônico. Para Foucault (2009, p.89 e 94) o castigo para
ser útil, deve ter como objetivo as consequências do crime, sendo a punição uma arte dos
efeitos; o castigo quer impedir a reincidência, e para isto, tem que levar em conta a natureza
profunda do criminoso, o grau presumível de sua maldade e a qualidade intrínseca de sua
vontade.
Fazendo uma rápida retrospectiva histórica sobre a pena de prisão, segundo
Lemgruber (1999, p.146) na Antiguidade e na Idade Média não se conhecia a privação de
liberdade como sanção autônoma, apesar de haverem referências de prisões na Grécia e Roma
antigas, no Egito, na Mesopotâmia e na Assíria. A prisão como forma de pena surgirá com o
capitalismo; na época do feudalismo, existia a prisão preventiva e a prisão por dívidas. Tanto
Foucault (2009), quanto Beccaria (2006), quanto Lemgruber (1999) vão nos dizer que antes
da prisão corresponder à própria pena, ela era apenas o lugar onde o indivíduo criminoso
aguardava o momento de execução de sua pena, lugar de passagem entre o crime e o suplício.
No fim do século XVIII e princípio do XIX, desapareceu o corpo supliciado,
esquartejado, amputado, marcado simbolicamente, exposto vivo ou morto e dado como
espetáculo. A punição deixa de ser uma cena, para dar lugar a instituição-prisão, a reclusão, o
trabalho e a servidão forçados, a interdição de domicílios, a deportação. O castigo passa de
uma arte das sensações insuportáveis a uma economia de bens e direitos suspensos. A punição
irá se exercer sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições, ou seja, a alma. É o
“homem” descoberto no criminoso que será o alvo da intervenção penal, o objeto que se
pretende corrigir e transformar (FOUCAULT, 2009, p. 13, 14, 16, 20, 21 e 72).
Foucault (2009, p. 132, 133) vai nos falar da descoberta na época clássica, do corpo
como objeto e alvo de poder. No decorrer dos séculos XVII e XVIII, nasce uma “mecânica do
poder” que define o domínio sobre o corpo dos outros a partir da disciplina que fabrica corpos
submissos e exercitados, corpos “dóceis”. Ao corpo são impostas limitações, proibições ou
obrigações. Para Foucault (2009, p. 79) a estratégia do poder de castigar, no século XVIII,
não visa punir menos, mas punir melhor, punir com uma severidade atenuada, mas punir com
mais universalidade e necessidade, inserindo mais profundamente no corpo social o poder de
punir.
23
É no final do século XVIII que surgem nos Estados Unidos, os sistemas da Pensilvânia
e de Auburn, modelos das prisões da época. Ambos implicavam a impossibilidade de
comunicação entre os detentos; o sistema da Pensilvânia mantinha os presos isolados dia e
noite, e o de Auburn permitia o trabalho coletivo durante o dia, motivado pela necessidade
econômica de explorar o trabalho dos presos (LEMGRUBER, 1999, p. 148 e 149).
A pena de prisão caracteriza-se por distribuir o tempo de duração da condenação em
períodos, ampliando-se em cada um os privilégios de acordo com a boa conduta, chegando à
possibilidade da liberdade condicional. Os sistemas progressivos baseiam-se na possibilidade
da privação de liberdade como instrumento de “ressocialização”, fato impossível de acontecer
por trazer em si a contradição de se esperar que alguém aprenda a viver em liberdade, a partir
da sua privação. A prisão deveria retribuir, oferecendo educação e trabalho com qualidades
que fossem aproveitados quando do retorno do ex-preso à sociedade, assim como incapacitálo a cometer novos crimes ao ser liberto. A única tarefa, no entanto, que consegue cumprir a
prisão é a de punir (LEMGRUBER, 1999, p.149 e 150).
As estruturas modernas do castigo criaram um sentimento de sua própria
inevitabilidade e da justiça do status quo. Não questionamos o castigo e a razão de sua
utilização como se não houvesse respostas. Instituições penais, no entanto, não são imovíveis
ou inquestionáveis, principalmente porque não satisfazem as necessidades e não controlam os
conflitos (GARLAND, 1999, p.17 e 18).
Há um cepticismo sobre a racionalidade e eficácia do sistema penitenciário moderno,
consequência dos crescentes índices de criminalidade, das frequentes desordens nas prisões e
da perda de fé na reabilitação. O sistema penitenciário parece cada vez mais irracional,
disfuncional e contraproducente. Apesar da sensação de que no sistema penal nada funciona,
isto explica apenas em parte, porque o castigo se torna cada vez mais problemático,
originando mais problemas do que os resolvendo (GARLAND, 1999, p.19).
O que atualmente parece questionável é o princípio básico do castigo moderno,
especificamente a suposição de que o crime e a delinquência são problemas sociais aos quais
se podem dar uma solução institucional. Desde a criação dos cárceres no início do século
XIX, e desde que surgiu a profissão penitenciária, tem existido a exigência implícita de que
um aparelho técnico se encarregue da tarefa de castigar e controlar os delinquentes de maneira
positiva. Não importam o ajuste e as reformas institucionais, sim questionar se os processos
sociais e as ramificações do castigo podem ser contidos dentro de instituições especializadas
de qualquer índole (GARLAND, p.22).
24
A prisão tem o papel, suposto ou exigido, de aparelho para transformar os indivíduos;
apesar de perigosa, quando não inútil, não “vemos” o que por em seu lugar (FOUCAULT,
2009, p. 217, 218 e 219). Segundo Foucault (2009, p. 251, 252) as prisões não diminuem a
taxa de criminalidade, muitas vezes, a aumenta, provocando reincidência; a prisão, em vez de
devolver à liberdade indivíduos corrigidos, espalha na população, delinqüentes perigosos.
Para Foucault (2009, p.257) o sistema carcerário, junta regulamentos coercitivos e
proposições científicas, efeitos sociais reais e utopias invencíveis, programas para corrigir a
delinquência e mecanismos que a solidificam. O autor (2009, p.257, 258 e 263) questiona se
este pretenso fracasso não faria parte do funcionamento da prisão. Para ele deveríamos supor
que a prisão e os castigos, não se destinam a suprimir as infrações; mas antes a distingui-las,
distribuí-las e utilizá-las.
Como essencial em toda esta problemática, Foucault (2009, p. 286) vai referir que o
sistema carcerário “naturaliza” o poder legal de punir e “legaliza” o poder técnico de
disciplinar; apaga o que possa haver de violento em um e de arbitrário em outro. Julita
Lemgruber (1999, p. 151) vai dizer que as violentações do dia-a-dia e a imposição de muitas
privações que não fazem parte da pena, levam o preso a duvidar da própria justiça e a
revoltar-se contra a sociedade.
Em relação às privações que não fazem parte da pena, Coelho (2005) coloca que como
o Estado não atende, ou atende mal às necessidades básicas dos internos, desenvolve-se
dentro de cada estabelecimento prisional um tipo de economia, a economia delinquente, em
parte destinada a proporcionar ao interno algumas poucas comodidades. Além de suprir
necessidades básicas dos internos, continua o autor, a economia delinqüente movimenta nas
cadeias o tráfico de drogas e o jogo. Para que esta economia irregular e ilegal se mantenha,
existe uma rede de cumplicidade entre presos e setores da administração prisional.
Sykes (1999) a partir do seu estudo numa prisão de segurança máxima coloca sobre as
dores do aprisionamento impostas aos encarcerados, citando como privações principais a
privação de liberdade, a de bens e serviço, a de relações heterossexuais, a de autonomia e a
privação de segurança. Na tentativa de resumir as consequências da prisão para o interno, vai
nos dizer Lemgruber (1999, p. 153):
O ex-presidiário volta à sociedade, marcado por um estigma irreversível;
despreparado, porque nada lhe foi ensinado durante seus dias de confinamento;
experiente, porque o meio prisional forneceu-lhe subsídios para aprimorar suas
técnicas e talvez, quem sabe, evitar a ação da justiça quando novamente infringir
alguma regra; revoltado, porque sua detenção serviu para lhe mostrar que a lei
protege, tão-somente, os mais abastados.
25
Diante de tudo isto, para Lemgruber (1999) enquanto não pudermos nos livrar do
equívoco histórico chamado pena de prisão, não podemos simplesmente ficar de braços
cruzados. Concordo com a autora, pois somos todos responsáveis pela manutenção das
prisões, de todas as suas mazelas e incoerências, que são reflexos das incoerências da nossa
sociedade, povoada de desigualdades e perversões.
2.3. O surgimento dos manicômios e a psiquiatria no Brasil
O Manicômio Criminal surgiu, de acordo com Carrara (1998), em vários países ao
mesmo tempo, na passagem do século XIX para o século XX, a partir do momento em que,
nos tribunais se observou que nem os asilos, nem as prisões mostravam-se adequados à
segregação de alguns criminosos classificados como degenerados. O decreto 1.132 de 1903,
no Brasil, organizou a assistência médico-legal aos alienados, e propôs a construção de
manicômios criminais, também conhecidos como manicômios judiciários, para os alienados
criminosos, e enquanto estes não existissem, a construção de anexos nos asilos públicos para
abrigá-los. No século XX, vamos encontrar os semi-hospícios ou semi-prisões, para receber
os doentes mentais criminosos (CARRARA, 1998). A Lei Federal de 1903 marcou a
consolidação da hegemonia médico-psiquiátrica no cuidado à loucura, legitimou a
competência médica na intervenção sobre a alienação mental, e explicitou a responsabilidade
do Estado na organização dos serviços de assistência aos alienados (JACOBINA, 2001, p.
103, 104).
Apesar da lei de 1903, os “manicômios criminais” só surgiram quase 20 anos depois.
Em 1921 foi criado o Manicômio Judiciário do Distrito Federal; seguiram-se o Manicômio de
S. Paulo em 1923, o de Barbacena em 1929, e posteriormente em outros Estados. Na sua
direção, a psiquiatria deveria ser dominante, mas na prática acabou subordinada pelo poder
jurídico (JACOBINA, 2001, p. 110, 111). Na Bahia, informalmente, o pavilhão Manoel
Vitorino do Hospital Juliano Moreira, antigo hospício S. João de Deus, sempre fora, desde a
sua construção (1874), reservado para alienados criminosos e psicopatas perigosos. Havia
nele, uma força policial que garantia a vigilância do pavilhão (JACOBINA, 2001, p. 337, 338,
357). O Manicômio Judiciário da Bahia só veio a funcionar em 1967 num prédio construído
desde 1937 para presídio de segurança máxima. A partir de 1991, passa a ser chamado de
Hospital de Custódia e Tratamento - HCT/BA (RELATÓRIO DE INSPEÇÃO DO HCT/BA,
2003). A trajetória dos manicômios judiciários até os hospitais de custódia e tratamento é toda
marcada por idas e vindas em um caminho que vai da punição a tentativa de tratamento.
26
O Manicômio Judiciário é uma instituição ambígua, pois há nela duas definições
diferentes e em certo nível contraditórias, num mesmo espaço social encontra-se o hospício e
a prisão. O que transforma o Manicômio Judiciário em um espaço social paradoxal é
justamente o fato de combinar dois conjuntos de representações e de práticas sociais que se
fundam em concepções distintas e opostas sobre a pessoa humana sem que nenhuma
prevaleça plenamente (CARRARA, 1998, p. 44, 46). Pessoas internadas num manicômio
carregam no mínimo três estigmas: criminosas, loucas e perigosas (RELATÓRIO DE
INSPEÇÃO DO HCT/BA, 2003).
O termo manicômio se origina do grego mania = loucura e Kómeo = lugar onde se
cuida, se trata; o termo hospício deriva do latim hospitiu = lugar onde se hospedam os loucos;
o termo asilo do grego ásilos = casa de recolhimento de pessoas pobres ou desabonadas como
os mendigos, órfãos, loucos, etc (JACOBINA, 2001).
O manicômio, historicamente criticado, reformado ou negado, permanece como
espaço predominantemente de exclusão social. A história do manicômio é pelo menos no
primeiro momento, a história da própria psiquiatria. O primeiro hospício no Brasil, o Hospício
D. Pedro II, foi inaugurado em 1852, marca o nascimento da psiquiatria no país, fortalecendo
a estratégia de confinamento da loucura (JACOBINA, 2001). Importante observarmos que
Jacobina ao falar de manicômio, neste trecho, não trata do manicômio judiciário, sim do
hospício, ou asilo psiquiátrico.
A história da psiquiatria brasileira é uma história de um processo de asilamento e de
medicalização social (AMARANTE, 1994). No país existem atualmente 33 Hospitais de
Custódia e Tratamento – HCTs com 3370 presos por medida de segurança (Infopen dez.
2010). Há ainda poucas reflexões sobre os HCTs e a maioria deles aborda questões do Direito
ou questões institucionais.
Na literatura nacional, encontramos alguns trabalhos que tratam de aspectos legais e
aspectos da saúde na realidade dos Hospitais de Custódia e Tratamento no Brasil. Dantas e
Chaves (2003) tratam das representações sociais dos guardas do Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico de Sergipe a respeito do tratamento da saúde mental dos internos.
Como resultado verificou que, embora grande parte dos entrevistados mantivesse visões e
crenças sobre uma loucura perigosa e apontassem a manutenção do seu papel como meio de
controle, revelaram discursos e práticas mais sensíveis à condição do louco infrator.
Observou-se que a instituição está longe de ser um hospital, não tem funcionalidade enquanto
tal, dado o modelo de aprisionamento do sujeito.
27
Bravo (2007) analisa a associação do discurso psiquiátrico com o jurídico a partir do
laudo psiquiátrico, aponta a deterioração individual e social e a cronificação institucional dos
sujeitos considerados portadores de doença mental e declarados legalmente inimputáveis.
Propõe a discussão de um modelo de justiça penal e de sociedade, que permita resolver os
conflitos por meio de outros caminhos que não os da punição e da violência institucional. Os
sujeitos que cumprem medidas de segurança nos hospitais de custódia e tratamento e alas
especiais dentro dos presídios representam o setor mais castigado do sistema penal, punidos
em forma dupla: pela sua condição de loucos e criminosos e por dois discursos e aparelhos de
poder que se articulam: o da psiquiatria e o do direito penal.
Moscatello (2001) verifica a ocorrência de comportamento criminal recidivo em uma
população de internos do Manicômio Judiciário de Franco da Rocha. Dos 100 internos por ele
avaliados 41% cometeram um crime, e 59% cometeram mais de um crime e as psicoses
esquizofrênicas predominaram; crimes contra a vida foram mais comuns entre os que
cometeram um crime, enquanto crimes contra o patrimônio predominaram entre os que
cometeram mais de um crime. O autor identificou como fatores predisponentes à recidiva
criminal a ausência de suporte psiquiátrico adequado em rede ambulatorial e hospitalar, a
rejeição familiar, e o abuso de álcool e drogas.
O artigo de Correia et. al. (2007) discute o direito à Saúde nos Hospitais de Custódia e
Tratamento na perspectiva dos Direitos Humanos. Coloca que a Reforma Psiquiátrica não tem
contemplado a reorientação das práticas assistenciais nas instituições psiquiátricas custodiais.
Propõe que o Estado em co-responsabilidade com a sociedade promova a efetiva reorientação
do modelo de atenção à saúde dos portadores de transtornos mentais que cometem crimes, em
respeito aos Direitos Humanos, que não implica a inimputabilidade, reconhecendo a
responsabilidade penal dos mesmos e lhes propiciando tratamento especializado.
Santana, Chianca e Cardoso (2009) investigaram a qualidade de vida (QV) de
pacientes com diagnóstico de esquizofrenia que cumprem medida de segurança em regime
fechado e evidenciou uma baixa QV associada à maior duração da doença, ter cometido
homicídio e a idade superior a 40 anos. Os autores propõem a mudança de paradigma em
relação à periculosidade e à inimputabilidade de portadores de transtornos psiquiátricos e a
viabilização de mudanças nas políticas brasileiras.
Cordioli (2006) aborda as vivências dos internos no Hospital de Custódia e
Tratamento Psiquiátrico (HCTP) e conclui que a temática da medida de segurança foi pouco
aprofundada na Reforma Psiquiátrica Brasileira e o HCTP, como os demais hospitais dessa
natureza, ficou à margem das mudanças preconizadas pelos novos paradigmas no atendimento
28
ao portador de transtorno mental. O HCTP é uma instituição predominantemente custodial,
um misto de hospital e presídio, na qual o tratamento e suas condições de funcionamento são
questionados pelos pacientes.
Entre os trabalhos científicos já realizados no HCT/BA, citamos os artigos de Peres
(1997) e de Lorenzo (2006). Este último analisa quem são os doentes mentais no sistema
penal brasileiro assim como a medida de segurança não considerada como pena. Aponta que
os loucos que cometem crime não são tratados como doentes mentais, mas sim como
verdadeiros criminosos. Segundo a autora, o HCT/BA, ao invés de evitar que o doente mental
que praticou crime volte a cometer novas infrações penais, torna o doente mental um
criminoso. O descaso das autoridades públicas que acabam permitindo o prolongamento do
prazo das medidas de segurança é um dos responsáveis por esta realidade. De acordo com
Peres (1998), o tratamento psiquiátrico no HCT/BA parece ocupar um lugar secundário na
dinâmica institucional, evidenciando-se o privilégio do setor de segurança; a atuação
psiquiátrica vincula-se a procedimentos punitivos. No HCT/BA, a medida de segurança, por
basear-se no estado perigoso pode possibilitar em alguns casos, uma segregação
indeterminada. A estratégia da periculosidade, segundo a autora, torna urgente uma discussão
acerca da instituição e do procedimento jurídico que a envolve, tanto pelos profissionais de
saúde quanto por toda a sociedade.
2.4. Loucura, internamento e exclusão
Vai nos dizer Basaglia: “o louco tem duas faces: a experiência psicopatológica e a
condição de exclusão. De um lado o universo psíquico do sujeito. De outro, o universo social
do cidadão” (BEZERRA, B. Jr., 1992, p. 115).
No século XVII, na Europa ocidental, a loucura substituiu a lepra num espaço moral
de exclusão. Para Foucault, a loucura fascina porque é um saber. Toda loucura tem sua razão
que a julga e controla e toda razão, sua loucura na qual ela encontra sua verdade irrisória;
cada uma é a medida da outra e nesse movimento de referência recíproca, elas se recusam,
mas uma fundamenta a outra. Sendo assim, a loucura a partir da era clássica torna-se uma
forma relativa à razão, só tem sentido e valor no próprio campo da razão (FOUCAULT, 2008,
p. 20, 30 e 33).
Bezerra (1992, p.118) partindo da interpretação de Foucault, diz que a psiquiatria ao
fundar-se numa descrição racionalista e universal do ser humano, é levada a postular a razão
como comum a todos os homens, tornando-se impossível pensar a experiência da loucura fora
29
da oposição razão/desrazão, que desemboca na inclusão/exclusão. Condena-se assim o louco à
condição de excluído daquilo que define a própria humanidade do homem, e excluído do
corpo social.
Segundo Foucault (2008, p. 49), a internação é uma criação institucional própria ao
século XVII, sendo seu marco, o decreto de fundação, em Paris, do Hospital Geral, em 1656.
A Instituição atribuía-se a tarefa de impedir a “mendicância e a ociosidade, bem como a fonte
de todas as desordens”. A internação assume desde o início uma amplitude distinta da prisão
como era praticada na Idade Média, surge como medida econômica e de precaução social.
A partir do século XVII, nas casas de internamento misturam-se os pobres,
vagabundos, marginais, desempregados, libertinos, doentes venéreos e os doentes mentais,
que perturbam a ordem do espaço social. Encontra-se aí o desejo de ajudar e a necessidade de
reprimir, o dever de caridade e a vontade de punir. O internamento é ao mesmo tempo
recompensa e castigo, conforme o valor moral daqueles sobre quem é imposto (FOUCAULT,
2008, p. 53, 73, 87).
O século XVII iniciou o parentesco entre as penas da loucura e a punição da
devassidão. O espaço do internamento constituía uma pátria e um lugar de redenção comum
aos pecados contra a carne e às faltas contra a razão. A loucura se avizinha do pecado, e é
talvez aí que se estabelecerá por séculos, esse parentesco entre o desatino e a culpabilidade
que o alienado experimenta ainda hoje. Foi justamente o racionalismo quem autorizou essa
confusão entre o castigo e o remédio, esta quase identidade entre o gesto que pune e o gesto
que cura (FOUCAULT, 2008, p. 87). As casas de internamento como centros de recepção de
indigentes e prisão da miséria, desaparecem em toda a Europa no começo do século XIX e a
partir daí, tornam-se alojamento exclusivo dos loucos (FOUCAULT, 2008, p. 70).
Para Carrara (1998, p. 78) o internamento asilar é prática terapêutica humanitária, mas
é ao mesmo tempo prática de contenção relativa a uma loucura, que é a loucura moral, que se
tornou incurável e perigosa. É esta ambivalência do internamento asilar, entre a terapia e a
contenção, que parece explicar porque este sistema ainda resiste após dois séculos.
Segundo Birman (1992) ao mesmo tempo em que foi conferido ao louco o estatuto de
enfermo, com direito à assistência e tratamento, sob a proteção do Estado, se autorizou a
exclusão social dos doentes mentais e a destituição de seus demais direitos sociais. O universo
da loucura foi excluído do espaço social por representar uma ameaça à ordem social. A
instituição psiquiátrica e o Estado passaram a definir os destinos sociais dos doentes mentais
no lugar da instituição familiar. Como os loucos não reconheciam as regras básicas do
contrato social, deveriam passar pela pedagogia da sociabilidade dentro das instituições, que
30
visava controlar os seus atos e discurso, para aprenderem as regras das relações interpessoais
do espaço social.
Nesta perspectiva, só resta ao louco buscar igualar-se aos normais, já que a sociedade
não encontrou uma maneira de conviver com a diferença. Ou consegue aproximar-se dos
“normais”, ou será invariavelmente excluído, rejeitado, já que a sua presença incomoda e gera
ansiedade e medo nos socialmente adaptados.
Doentes mentais são estigmatizados por comportarem-se diferente dos indivíduos
ditos normais. Para Goffman (2008, p.12, 13, 15 e 68) o estigma, como atributo
profundamente depreciativo, tem como efeito o descrédito, pode ser considerado um defeito,
uma fraqueza, uma desvantagem; alguém com um estigma parece não ser completamente
humano. Os que saem de prisões ou hospitais para doentes mentais, em função do estigma,
vão fazer um esforço para esconder o seu passado e tentar “disfarçar-se”.
Continua o autor (2008, p. 46):
Nos muitos casos em que a estigmatização do indivíduo está associada com a sua
admissão numa instituição de custódia, como uma prisão, um sanatório ou um
orfanato, a maior parte do que ele aprende sobre o seu estigma lhe será transmitido
durante o prolongado contato íntimo com aqueles que irão se transformar em seus
companheiros de infortúnio.
Os doentes mentais são pessoas que, no mundo externo, provocaram o tipo de
perturbação que fez com que as pessoas próximas a elas as obrigassem, física se não
socialmente, à ação psiquiátrica. A estigmatização como doente mental e a hospitalização
involuntária são os meios pelos quais respondemos a essas ofensas contra a adequação
(GOFFMAN, 1999, p.247).
Parte do mandato oficial do hospital psiquiátrico público é proteger a comunidade do
perigo e dos aborrecimentos de certos tipos de má conduta. Apesar desta função de “custódia”
ter uma importância básica, dentro da instituição, há pequenas referências a ela, focalizandose muito mais os serviços terapêuticos médicos que o hospital dá aos pacientes. Se
considerarmos os doentes mentais como pessoas com que os outros têm dificuldade, o papel
de custódia do hospital, assim como o da prisão, é compreensível e justificável. Assim, o
hospital psiquiátrico corresponde a uma entre várias instituições destinadas a servir de
residência para várias categorias de pessoas socialmente perturbadoras (GOFFMAN, 1999, p.
286 e 287).
Uma vez que tenha um registro de ter estado num hospital para doentes mentais, o
público em geral, o considera como um ser à parte; o doente é estigmatizado. Como resposta à
sua estigmatização e à privação que ocorre quando entra no hospital, um internado
31
frequentemente desenvolve certa alienação com relação à sociedade civil, o que às vezes se
exprime pelo fato de não desejar sair do hospital. Esta alienação constitui um efeito
secundário da hospitalização (GOFFMAN, 1999, p. 288 e 289).
Se hoje, em determinada região, fossem eliminados todos os hospitais psiquiátricos,
amanhã os parentes, a polícia e os juízes pediriam a criação de outros hospitais; os
verdadeiros clientes do hospital psiquiátrico exigiriam uma instituição para atender às suas
necessidades (GOFFMAN, 1999, p.311). De acordo com esta abordagem, talvez pudéssemos
concluir que o verdadeiro cliente da psiquiatria até então é a sociedade excludente. Caberia à
psiquiatria sair do seu ponto cego, e de fato tratar o doente mental buscando em primeiro
lugar beneficiá-lo e não como ocorre, prioritariamente beneficiando a terceiros.
Interessante observarmos que a função primordial da psiquiatria e do hospital
psiquiátrico, segundo os autores citados, tende a ser encoberta pelos psiquiatras e pela
sociedade. A possibilidade do terapêutico dará a estes um conforto e justificativa ética para o
ato de violência da custódia e de toda aquela que se exerce sobre o doente mental como
integrante do seu tratamento e da proposta de reabilitação. Assim, para Goffman e Foucault, a
psiquiatria poderá exercer a sua função de controle social sem rever os seus métodos.
Necessário então, seguindo o pensamento de Basaglia como diz Amarante (1996) construir
outras culturas, outro conceito de saúde e de doença, de normalidade e de loucura. Importa,
vai colocar Amarante (1996), responder a esta problemática, com estruturas e serviços que
consintam formas de cura e de assistência que sejam conjuntamente espaços de vida, de
estímulo, de confronto, de oportunidades, de relações interpessoais e coletivas diferentes, que
vislumbrem uma mudança de cultura e de política mais social que sanitária. Como solução
para esta problemática, vai ainda nos dizer Amarante (2007), é preciso mudar mentalidades,
mudar atitudes, mudar relações sociais.
Mas, a psiquiatria não é só vista como veículo de controle social e de exclusão, ela é
especialidade médica, ou melhor, a primeira especialidade médica, que nasce com o gesto de
Pinel de desacorrentar os loucos, porém os mantendo internados, não mais com a perspectiva
de excluí-los, sim de tratá-los. Gama (2008), em seu estudo histórico da Reforma Psiquiátrica
no Brasil, nos diz que com Pinel cria-se uma clínica da loucura, e a necessidade de resgatar
um cidadão cuja razão está temporariamente afetada, mas não perdida; a instituição asilar e o
tratamento moral ganham então outra possibilidade de entendimento. A psiquiatria pode a
partir daí, continua o autor, ser vista não mais como veículo da violência e da exclusão, é
instrumento de inclusão social e responsabilização de um sujeito visto como igual.
32
No desenvolvimento da ciência psiquiátrica, houve uma evolução histórica no trato
com a loucura, de uma psiquiatria fundamentalmente organicista durante o século XIX para,
no início do século XX com o advento da psicanálise, uma psiquiatria “dinâmica”, que
buscava sua aplicação em instituições. Portanto, de uma psiquiatria que dava ênfase à
observação do comportamento e sua classificação, para uma psiquiatria que procurava escutar
as histórias que eram proferidas pelos sujeitos. A psiquiatria, que antes só contava com
procedimentos físicos invasivos e relativamente mal-sucedidos, como os choques elétricos,
insulínicos e cardiozólicos indiscriminados, chegando à década de 30 à lobotomia, a partir de
1950 com a descoberta da clorpromazina, inicia uma nova etapa (GAMA, 2008).
Resta-nos dizer que o hospital é um local onde a medicina reserva para o tratamento de
situações de maior gravidade, que não podem obter resolutividade em instâncias de atenção
primária, com prevenção e promoção à saúde, ou de atenção secundária, com cuidados de
média complexidade. O hospital por si só é um local não desejado, e todo indivíduo tende a
reagir de algum modo à hospitalização, que lhe levará invariavelmente a lidar de modo mais
intenso e direto com o seu adoecimento, seja ele físico ou psíquico. O Hospital psiquiátrico
faz parte do modelo biomédico, está inserido numa cultura que por si só tende a estabelecer
diferenças, classificar, marginalizar, estigmatizar. A psiquiatria tem o hospital como o local
apropriado ao tratamento de portadores de transtornos mentais graves, infelizmente, ao longo
da história, ainda não foi possível oferecer ao louco, um hospital, a psiquiatria e a sociedade,
apenas tem oferecido aos loucos, em seus momentos de crise, os asilos, os hospícios, os
manicômios, e as prisões.
2.5. Instituições totais
Goffman (1999, p. 11, 17, 18) classifica o manicômio como instituição total, que pode
ser definida como um local de residência e trabalho onde indivíduos separados da sociedade
mais ampla por um período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.
Nas instituições totais, todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e sob uma
única autoridade. Cada fase da atividade diária do participante é realizada na companhia de
um grupo grande de outras pessoas, todas tratadas da mesma forma e obrigadas a fazer as
mesmas coisas em conjunto. Todas as atividades diárias são estabelecidas em horários,
seguem um sistema de regras; há uma divisão entre um grande grupo controlado, o grupo dos
internados, e uma pequena equipe de supervisão.
33
Ao entrar numa instituição total, começa para o novato uma série de rebaixamentos,
degradações, humilhações e profanações do eu. O eu é sistematicamente mortificado. É muito
provável que o indivíduo seja despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos e
serviços com os quais a mantém, o que gera desfiguração pessoal. A primeira mutilação do eu
ocorre em função da barreira que a instituição coloca entre o internado e o mundo externo, e
quando este voltar para o mundo, vai então descobrir que perdeu alguns de seus papéis por
esta razão (GOFFMAN, 1999, p. 24, 25, 28, 32).
Nas instituições totais, territórios do eu são violados; a fronteira que o indivíduo
estabelece entre seu ser e o ambiente é invadida. Ocorre exposição contaminadora do tipo
físico, que se reflete em queixas a respeito de alimento sujo, locais em desordem, privadas
sem assentos, toalhas e banheiros sujos. Dá-se ainda contaminação por contato interpessoal
imposto com companheiros indesejáveis e, consequentemente, uma relação social imposta
(GOFFMAN, 1999, p 31, 33, 34 e 35).
Observa-se então, baseado em Goffman, que em instituições totais, não há
privacidade, intimidade, há uma rotina que descaracteriza o sujeito, tira toda a sua
singularidade, torna-o um objeto. Para conseguir viver aí, o internado irá criar táticas de
adaptação. De acordo com Goffman (1999, p.59, 60, 61 e 62) cada tática representa uma
forma de enfrentar a tensão entre o mundo original e o mundo institucional. São táticas de
adaptação: o “afastamento da situação quando o internado deixa de dar atenção a tudo, exceto
aos acontecimentos que cercam o seu corpo; a “tática da intransigência”, quando o internado
desafia a instituição ao negar-se a cooperar com a equipe dirigente; a “colonização”, quando
uma existência estável, é construída com o máximo de satisfações possíveis na instituição; e a
tática da “conversão” quando o internado parece aceitar a situação e tenta representar o papel
do internado perfeito.
Em função das restrições sofridas, os internos tendem a criar meios para superá-las.
Goffman (1999) aborda também sobre os ajustamentos primários e os secundários
apresentados pelos indivíduos em instituições totais; os ajustamentos primários, são os
permitidos e oficiais, ocorrem quando o indivíduo contribui, com a atividade exigida por uma
organização se transformando num colaborador; ajustamentos secundários ocorrem quando o
participante da organização emprega meios ilícitos, ou consegue fins não autorizados, para
escapar daquilo que a organização supõe que deve fazer, obter e ser. Ajustamentos
secundários podem representar maneiras de fugir de um local sem sair dele; tais práticas
parecem demonstrar – pelo menos para o praticante – que ele tem individualidade e
34
autonomia pessoal que escapam às garras da organização, servem para preservar o eu
(GOFFMAN, 1999, p. 160, 217, 249 e 254).
Instituições manicomiais são “instituições da violência”, espaço onde mortificações,
humilhações e arbitrariedade são regras. A sociedade, para não expor abertamente sua face de
violência, para não criar em seu seio contradições demasiado evidentes, estende a concessão
do poder aos técnicos, que o exercerão em seu nome e que continuarão a criar, através da
violência técnica, novos rejeitados. Os técnicos devem então mistificar a violência através do
seu ato, que têm o único significado de ajudar o doente a se adaptar à sua condição de “objeto
de violência”, sem sequer chegar a ter consciência dela e sem poder, com isso, a ela reagir.
Pelo próprio fato de estar internado num hospital psiquiátrico, o doente se torna um cidadão
sem direitos. Cada um dos atos do doente mental passa a ser limitado e definido pela doença.
A couraça de apatia, desinteresse e insensibilidade do doente mental internado, não são a pura
expressão de um estado mórbido, mas antes um ato de defesa contra um mundo que primeiro
o exclui e depois o aniquila, um produto da ação destruidora de uma instituição cuja
finalidade é proteger os sãos dos assaltos da loucura (BASAGLIA, 1985, p. 101, 102, 105,
107, 112, 113 e 120).
Ongaro (1985, p. 273 e 279) diz que fazer parte de uma instituição total significa estar
à mercê do controle, do julgamento e dos planos de outros, sem que o interessado possa
modificar o andamento e o sentido da instituição; os internados são obrigados a considerar as
medidas de proteção contra eles tomadas como único significado de sua existência e devem
colaborar eles próprios para a sua total desumanização.
O espaço do internamento é criado para tornar o doente mental inofensivo e curá-lo ao
mesmo tempo, mas na prática aparece como um local construído para o completo
aniquilamento de sua individualidade e como palco de sua total objetivação. Aqui, a noção de
tutela (no sentido das medidas de segurança necessárias para prevenir e conter a
periculosidade) está em contradição com a noção de cura que deveria tender para uma
expansão espontânea e pessoal do doente. Dentro de uma instituição psiquiátrica existe uma
razão psicopatológica para cada acontecimento e uma explicação científica para cada ato
(BASAGLIA, 1985, p. 114, 119 e 122).
Em Basaglia (1985, p. 121), encontramos:
Se no início o doente sofre com a perda de sua identidade, a instituição e os
parâmetros psiquiátricos lhe confeccionaram uma nova segundo o tipo de relação
objetivante que estabeleceram com ele e os estereótipos culturais com que o
rodearam.
35
Talvez seja a partir desta objetivização, que o doente mental irá atuar para voltar para
o hospital, já que não consegue mais ser sujeito social fora dele. Agora, muitas vezes torna-se
mais fácil, o lugar que lhe foi dado de alienado, onde todas as suas atitudes são interpretadas
como reflexo da sua loucura e não mais será responsabilizado pelas mesmas, apenas,
socialmente punido, como já está acostumado a ser.
Os psiquiatras costumam dizer que há um ganho secundário com a doença, se é que
possamos chamar de ganho, não trabalhar, ser considerado inválido e inútil, não ser
reconhecido como cidadão de fato, fazer dos hospitais psiquiátricos uma espécie de
hospedaria. Mesmo obtendo sua alta hospitalar, o doente mental estará sob “liberdade
condicional vigiada”, quando não mais lhe será permitido qualquer expressão de contestação,
logo rotulada de crise psíquica. O paciente não mais poderá ingerir bebida alcoólica, gritar,
exaltar-se, contestar, demonstrar sua irritação, ou abandonar o tratamento que lhe é imposto.
2.6. Face institucional da doença mental
A categoria de doente mental entendida em um sentido sociológico, só se torna
significativa na medida em que a interpretação psiquiátrica altera o seu destino social, ou seja,
quando a pessoa passa pelo processo de hospitalização. Uma vez iniciados nesse caminho, as
pessoas enfrentam circunstâncias semelhantes e a elas respondem de modo semelhante. O
“comportamento doentio” atribuído ao doente mental é em grande parte, resultante da
distância social entre quem lhes atribui isso e a situação em que o paciente está colocado, e
não um produto da sua doença (GOFFMAN, 1999, p. 112 e 113).
Segundo Goffman (1999, p. 111, 116 e 143) carreira indica qualquer trajetória
percorrida por uma pessoa durante sua vida. O início da carreira social de doente mental
inicia-se com a internação num hospital psiquiátrico, independente do ponto em que possa ser
localizado o início psicológico de sua doença mental. Esta carreira pode exemplificar a
possibilidade de que, ao tirar as vestimentas do antigo eu – ou ter suas vestes arrancadas – a
pessoa possa não sentir a necessidade de uma nova roupa e uma nova audiência diante da qual
se vista.
Entende-se por “duplo da doença mental” tudo aquilo que se constrói em termos
institucionais em torno do internado: é a face institucional da doença mental, construída
tomando-se por base a negação da subjetividade do louco e das identidades, a partir da
objetivação extrema da pessoa como objeto de saber. “O duplo” da doença encobre, junto
com o próprio sofrimento, o sujeito, a pessoa. No hospício, todas as pessoas tornam-se iguais,
36
são objetivadas; não importam suas histórias, culturas, sofrimentos. O doente recluso,
submetido a variadas espécies de violência, passa a incorporar em seu comportamento, por
força dessas mesmas violências, tudo aquilo que a instituição deseja que se torne: violento,
anti-social, melancólico, enfim, alienado (AMARANTE, 1996, p.80 e 81).
O doente mental faz da instituição o seu próprio corpo incorporando a imagem de si
que a instituição lhe impõe, assim negando cada desejo, cada ação e cada aspiração
autônomos que fariam com que se sentisse ainda vivo e ainda ele próprio. Torna-se um corpo
vivido na instituição, pela instituição, ao ponto de ser considerado como parte de sua estrutura
física. O doente mental tornar-se-á um corpo institucionalizado que vive como objeto e que,
quando não está totalmente domado, através de acting outs tenta reconquistar as
características de um corpo próprio, de um corpo vivido, recusando-se identificar-se com a
instituição (BASAGLIA, 1985, P 121).
Aqueles que sugerem a possibilidade de outra pessoa entrar num hospital para doentes
mentais e tornar-se um paciente, tendem a não dar uma visão realista da maneira pela qual
isso pode atingi-la. Quaisquer que sejam as intenções dos que participaram de sua transição de
pessoa a paciente, este, ao chegar ao hospital, pode sentir que o tapearam para colocá-lo nesta
situação. O pré-paciente começa com parte dos direitos, liberdade e satisfação civil, e termina
numa enfermaria psiquiátrica, despojado de quase tudo (GOFFMAN, 1999, p.120 e 121).
Sobretudo na primeira admissão, ao entrar no hospital, o paciente pode sentir um
desejo de não ser conhecido como pessoa que poderia ser reduzida às condições daquele
momento. Pode evitar falar com quem quer que seja, pode ficar sozinho sempre que puder,
pode recusar receber as visitas ou recebê-las com mutismo. Posteriormente o paciente irá
desistir desse comportamento e buscará se adaptar à comunidade hospitalar. Ao aceitar a sua
nova posição, o novo internado percebe que está despojado de suas defesas, satisfações e
afirmações usuais, e está sujeito a um conjunto relativamente completo de experiências de
mortificação: retirada do ambiente usual de apoio, restrição de movimento livre, vida
comunitária, autoridade difusa de toda uma escala de pessoas, etc (GOFFMAN, 1999, p.125,
126 e 127).
Segundo Goffman (1999, p 127 e 128) ao desobedecer às normas da instituição, o
internado receberá castigos severos que se traduzem pela perda de privilégios. Pela
obediência, será autorizado a readquirir algumas das satisfações secundárias. Uma vez alojado
em determinada enfermaria, o paciente é informado de que as restrições e privações que
encontra são partes do seu tratamento, e, por isso, expressão do estado a que foi reduzido o
seu eu. O hospital recorda ao paciente que ele é um caso de doença mental, lhe diz que seu
37
passado foi um fracasso, que sua atitude diante da vida é errada, e que, se desejar ser uma
pessoa, precisa mudar sua maneira de lidar com as pessoas e suas concepções de si mesmo.
Tempo passado numa instituição total é sentido como tempo perdido, destituído ou
tirado da vida da pessoa. Apesar dos internados desejarem a sua saída, os que se aproximam
desta, tendem frequentemente a sentir-se angustiados e alguns criam um problema. O exinterno irá descobrir que quando sai, a sua posição social no mundo externo nunca mais será
igual à que era (GOFFMAN, 1999, p. 64, 66).
De acordo com o mesmo autor (1999, p. 115 e 116) para a pessoa que passa a ver-se
como mentalmente desequilibrada, a entrada no hospital pode às vezes trazer alívio. Em
outros casos, a hospitalização pode piorar a situação do paciente conformado com a
internação, pois a situação objetiva confirma o que até então fora um problema da experiência
íntima do eu.
Em instituições totais reconhece-se a necessidade de dar “incentivos”, ou seja, prêmios
ou pagamentos indiretos, em determinadas situações. Também, os participantes podem ser
induzidos a cooperar por ameaças de castigo se não o fizerem. Num hospital psiquiátrico, a
incapacidade para ser um paciente facilmente controlável, tende a ser considerada como prova
de que a pessoa ainda não está “preparada” para a liberdade e precisa submeter-se a
tratamento. O fundamental aqui, não é o fato de o hospital ser um lugar odioso para os
pacientes, mas que o fato de o paciente exprimir ódio é dar prova de que seu lugar está
justificado e que ainda não está preparado para sair (GOFFMAN, 1999, p. 152, 311 e 312).
A partir dos autores citados, podemos apreender o quanto é para o doente mental,
lesivo e verdadeiramente alienante o modo como são vistos e tratados, o quanto é infeliz o
produto da hospitalização e o rótulo que lhe é consequente. O antigo eu sofre feridas jamais
cicatrizáveis. É preciso então, que a sociedade se modifique e consequentemente a psiquiatria,
para que possam ser criados dispositivos de efetivo tratamento para os doentes mentais, a
partir de um olhar ampliado e inclusivo, este sim, verdadeiramente eficaz para aquele que
psiquicamente sofre.
2.7. Exame psiquiátrico e a penalização da loucura
Como esta pesquisa se insere num campo específico da psiquiatria forense e como
veremos mais a frente, na descrição do campo, o laudo psiquiátrico, a medida de segurança, o
laudo de cessação de verificação de periculosidade, são parte importante na narrativa dos
38
atores da pesquisa, achamos fundamental tratarmos destas questões em nossa fundamentação
teórica.
Desde o século XIX, o perigo social será codificado, no interior da psiquiatria, como
doença. A partir daí, a psiquiatria vem procurando encontrar o segredo dos crimes que podem
habitar toda loucura, ou o núcleo da loucura que devem habitar todos os que podem ser
perigosos para a sociedade (FOUCAULT, 2001, p.149 e 150).
No século XIX a psiquiatria se torna um instrumento efetivo de sanção e de exclusão.
Observa-se na teoria psiquiátrica da época, um grande esforço para reunificar a loucura, que
deixa de ser parcial, e para mostrar que, mesmo quando a loucura só se manifesta num
sintoma muito particular, a doença mental sempre se produz num indivíduo que é profunda e
globalmente louco. A partir de então, o que vai permitir que uma forma de conduta figure
como sintoma de uma doença possível, vai ser a discrepância que essa conduta tem em
relação às regras de ordem. A psiquiatria tornou-se, a ciência e a técnica dos anormais, dos
indivíduos anormais e das condutas anormais (FOUCAULT, 2001).
Hoje quando o delito é um sintoma da doença, guardando nexo causal com a mesma,
o sujeito que o praticou é considerado inimputável pela lei. Diante desta inimputabilidade se
dá o encaminhamento do doente ao manicômio judiciário. Sabe-se, no entanto, que os
tratamentos manicomiais, não têm sido bem sucedidos ao longo da história e o louco infrator
não tem benefícios previstos na Lei de Execução Penal2 (RELATÓRIO DE INSPEÇÃO DO
HCT, 2003). Todo indivíduo que comete um crime, deve responder perante a justiça por
aquilo que praticou. A responsabilidade penal significa a obrigação ou o direito de responder
perante a Lei por um fato cometido, considerado pela lei como crime ou contravenção.
Imputabilidade é a faculdade que a justiça tem de chamar à responsabilidade o agente de um
delito (TABORDA, 2004).
Segundo Foucault (2001), a partir do exame psiquiátrico, o juiz pune não o crime ou
delito, sim suas condutas irregulares apontadas no exame como o lugar de formação do crime.
A criminalidade é apreciada então do ponto de vista psicológico-moral, onde a doença já não
é uma doença, é um defeito moral. O psiquiatra vai definir, com o exame psiquiátrico, se
existem anomalias mentais que podem ser relacionadas com a infração em questão; deve
responder se o indivíduo é perigoso, se é sensível a uma sanção penal, se é curável ou
readaptável. O exame psiquiátrico deve realizar uma demarcação entre doença e
responsabilidade, entre causalidade patológica e livre-arbítrio do sujeito jurídico, entre
2
LEP: adotou o sistema progressivo que consiste na passagem por regimes de cumprimento de pena, em ordem decrescente
de severidade, desde que presentes os requisitos legais (http://pt.scribd.com/doc/15036963/Apostila-Lei-de-Execucao-Penal).
39
terapêutica e punição, entre hospital e prisão. Quando o patológico entra em cena, a
instituição médica deve (ou deveria 3) tomar o lugar da instituição penal (FOUCAULT, 2001).
O exame permite passar do ato à conduta, do delito à maneira de ser, e de fazer da
maneira de ser se mostrar como não sendo outra coisa que o próprio delito, mas de certo
modo, no estado de generalidade na conduta de um indivíduo (FOUCAULT, 2001, p. 20). O
exame médico-legal cumpre a função de costura entre o judiciário e o médico, se dirige a
gradação do normal ao anormal. Ele pertence a um poder que se constitui como instância de
controle do anormal; rejeita, exclui e marginaliza (FOULCAULT, 2001, p. 51 e 54). A
medida de segurança visa ao controle do indivíduo, a neutralizar sua periculosidade, a
modificar suas disposições criminosas. O laudo psiquiátrico dá aos mecanismos da punição
legal um poder justificável, não mais sobre as infrações, sim sobre os indivíduos, não sobre o
que fizeram sim sobre o que eles são, serão, ou possam ser (FOUCAULT, 2009, p. 22 e 23).
A determinação de anormalidade psicopatológica pode ter importantes implicações
legais, criminais e éticas, podendo definir o destino social, institucional e legal de uma pessoa
(DALGALARRONDO, 2008). O exame pericial psiquiátrico é uma espécie de avaliação
psiquiátrica com a finalidade de elucidar fatos do interesse jurídico, policial, administrativo
ou, eventualmente, de particular, constituindo-se em meio de prova. Ele consiste numa
avaliação médica acurada, no registro fiel do observado, na resposta aos quesitos formulados
pelo juiz e na formulação de comentários médico-legais (TABORDA, 2004, p.58).
Diz o artigo 26 do Código Penal brasileiro: “é isento de pena o agente que, por
doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardado, era, ao tempo da ação ou
da omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou de determinar-se de
acordo com esse entendimento”.
Toda ação é resultante de escolhas e decisões tomadas pelos próprios indivíduos na
reciprocidade que envolve a relação uns com os outros. De acordo com a teoria do
conhecimento de Kant no tocante ao entendimento, ou seja, à capacidade racional do
indivíduo escolher e decidir suas ações a partir da interpretação lógica de uma realidade
determinada, os indivíduos antes de escolherem suas ações, sabem se estão decidindo pelo
certo ou pelo errado, seja do ponto de vista da razão ou das leis. Por isso os indivíduos podem
ser plenamente responsabilizados pelo que fazem desde que tenham capacidade intelectual de
entendimento para tanto (BECCARIA, 2006).
3
Esta observação é de minha autoria.
40
Em muitos casos um psicótico pode cometer um crime e, apesar do transtorno mental,
ter capacidade de entendimento de que sua ação é reprovável. Do ponto de vista legal, é
preciso que o delito seja expressão do distúrbio para que o sujeito seja considerado
inimputável. A medida de segurança é um procedimento jurídico aplicado às pessoas que
cometeram algum delito e que, em decorrência de motivos psiquiátricos, não podem
responder criminalmente por ele. Ao fim do prazo da medida de segurança, necessário seja
feito o exame de verificação de cessação de periculosidade (EVCP) para averiguar se foi
debelada ou não a condição perigosa do indivíduo (TABORA, 2004).
Observa-se que o exame psiquiátrico vai cumprir o papel de oferecer ao doente mental
um novo rótulo, um novo estigma, agora além de louco, perigoso. Aqueles considerados
doentes e consequentemente não responsáveis pelo ato criminoso, não deveriam ser
culpabilizados ou punidos. Infelizmente o doente mental interno no Manicômio, fica no meio
da linha entre o psiquiatra e o juiz, alvo de mais malefícios que de benefícios. Parece-nos que
as necessidades da sociedade são atendidas, jamais as do louco, que é sempre vítima de
exclusão e/ou punição. O louco é penalizado em sua patologia e por sua patologia, como se
fosse ele, no lugar de irresponsável, o único responsabilizado e duplamente penalizado, pelo
seu adoecimento e pelos atos advindos de sua loucura.
No trecho que se segue, claro fica, a penalização da loucura, sobre a ótica de Foucault:
“qualquer causa que, como determinação, só pode diminuir a responsabilidade, marca o autor
da infração com uma criminalidade ainda mais temível e que exige medidas penitenciárias
ainda mais estritas (FOUCAULT, 2009, p.239).
Importa nesta dinâmica de poder, encontrar uma medida entre o crime e o castigo, que
é o interesse, ou ainda, a razão do crime. São a razão do crime, ou o interesse do crime que a
teoria penal e a legislação do século XVIII, vão definir como o elemento comum ao crime e à
punição, ao invés daqueles rituais de atrocidade da punição que repetia a atrocidade do crime.
A partir daí importa não mais as circunstâncias do crime ou a intenção do criminoso, sim a
mecânica e o jogo de interesses que tornou criminoso o agora acusado de ter cometido um
crime (FOULCAULT, 2001, p. 111).
Enquanto sujeito de direito, o homem se liberta de suas responsabilidades na própria
medida em que é alienado; como ser social, a loucura o compromete nas vizinhanças
da culpabilidade. O direito apurará cada vez mais sua análise da loucura; e, num
sentido, é justo dizer que é sobre o fundo de uma experiência jurídica da alienação
que se constitui a ciência médica das doenças mentais (FOULCAULT, 2008, p. 130).
Posso concluir com o que foi trazido, que o corpo de psiquiatras, interessado em
instituir a sua prática como prática médica, assume o cuidado dos loucos institucionalizando-
41
os sobre a justificativa de curá-los. Há aqui o interesse na legitimação de uma prática, pois o
hospício legitima a ação técnica dos psiquiatras. Encontramos uma afinidade eletiva entre o
interesse da sociedade de livrar-se dos loucos e o interesse do corpo de psiquiatras de ver
legitimado seu saber e seu poder. O psiquiatra justifica eticamente a sua ação, por ser ela
curativa; a ocorrência da exclusão passa a ser um meio para atingir um fim, a cura. Para
Carrara (1998, p. 79) os psiquiatras na realidade “criminalizavam” o louco, no sentido de
incorporarem à sua figura um novo perfil marcado pela crueldade, indisciplina, amoralidade e
periculosidade.
Capítulo III – HOSPITAL DE CUSTÓDIA E TRATAMENTO DA BAHIA – HCT/BA
O Hospital de Custódia e Tratamento de Bahia - HCT/BA era uma instituição
vinculada à Secretaria de Justiça e Direitos Humanos, a partir da Lei nº 12.212 de 04.05.11
passou a ser vinculada à Secretaria da Administração Penitenciária e Ressocialização –
SEAP. O HCT/BA é conceituado pelo Estado como uma unidade prisional. Entendo que ele é
um campo vasto, lugar de muitas histórias, experiências, símbolos e significados. Ao adentrar
no HCT/BA é perceptível que há muros físicos e não físicos, que separam a sociedade dos
cativos, que incluem internos e funcionários do HCT/BA, da “sociedade dos libertos”. Ali é
outro mundo, com uma lógica própria, suas normas, e mecanismos de adaptação.
A segregação é a forma terapêutica para uma associação que liga a loucura à
periculosidade. Em função do estigma da loucura e da infração, existe um acúmulo de
descuidos de natureza jurídica e sanitária com os internos do HCT/BA e com as pessoas que
deles cuidam. O HCT/BA tem como objetivo custodiar e tratar doentes mentais que
cometeram crimes e estão sob a guarda da Justiça (CENSO CLÍNICO E PSICOSSOCIAL DO
HCT, 2004).
A instituição que ingressei para pesquisar tem capacidade oficial de 280 leitos. No
entanto, recentemente foi determinada pela ANVISA a ocupação máxima de 140 leitos, sendo
20 femininos e 120 masculinos. A maioria dos internos-pacientes é do sexo masculino, e o
crime de homicídio supera numericamente todos os demais (vide tabelas 1 e 2, p. 45 e 46).
Ao chegar ao HCT/BA, pela primeira vez, me deparei com um muro alto e branco, um
grande portão de ferro. Há um prédio antigo, que corresponde ao local onde ficam os
internos-pacientes, um prédio ao lado que corresponde ao refeitório, cozinha, lavanderia,
rouparia e terapia ocupacional, outro prédio, mais distante, de construção mais recente, que
constitui a parte administrativa da instituição, e um anexo ao lado do pátio externo, para a
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equipe de segurança. Há um pátio grande, externo, com bancos e árvores, um campo de
futebol. Outra área corresponde ao estacionamento. No pavilhão administrativo temos as salas
da diretoria geral e administrativa, a sala da chefia de segurança, a sala da Defensoria pública,
o arquivo, a farmácia, o setor de pessoal, uma sala de reunião, sanitários para funcionários e
visitantes, copa, e as salas dos setores de psicologia, serviço social e terapia ocupacional. No
prédio do HCT/BA destinado aos internos-pacientes, encontramos duas salas para a escola, a
sala do setor de enfermagem, a sala do setor de higienização. Nas alas, além das enfermarias
com os leitos, encontram-se o Posto de enfermagem, a sala de atendimento e um sanitário
coletivo. Na ala „E‟ há um quarto individual, assim como no térreo, na ala „A‟. Faltam as
regras sociais de privacidade, para os internos-pacientes, pois elas parecem não valer em
instituições psiquiátricas como o HCT/BA; os banheiros e sanitários das alas não têm porta,
os dormitórios são coletivos, não há um lugar individualizado para guardar os pertences.
O pátio é um lugar do HCT/BA amplo, agradável e bastante interessante. Parece ser o
lugar de eleição da maioria dos internos-pacientes do sexo masculino. No pátio, eles passam a
maior parte do dia. Lá podemos observar padrões de comportamento dos IPs, de longe os
vemos sentados em bancos, ou no chão, sem nada fazer ou conversar. Alguns se deitam no
chão, poucos jogam dominó ou interagem de algum modo uns com os outros. Ao me
aproximar, alguns se acercavam de mim, cada um falando por vez, ou estabelecia-se uma
conversa grupal. Podemos ver internos-pacientes com alguns objetos de uso pessoal e
adereços, que assumem o papel de identificadores e diferenciadores, segundo Goffman
(2011), como o relógio dourado em um dos braços e a corrente dourada no pescoço de
Lemuel, e Saturnino sempre usando um relógio, carregando um rádio com fone de ouvido, e
usando diferentes pares de tênis.
As paredes do HCT/BA, seus muros altos e seus grandes portões, as grades em todas
as alas, remontam à prisão de segurança máxima da primeira metade do século XX. Toda esta
construção carrega em si a lógica dos cárceres do século XIX. Com as alas gradeadas, o
aspecto do prédio lembra mais um presídio do que um hospital. A instituição une em si
enfermeiras, psiquiatras, médicos e agentes penitenciários, celas e medidas características de
segurança prisional. Os mecanismos de controle da instituição também unem, por um lado, o
uso de medicamentos e controle químico dos pacientes, e por outro, instrumentos de força
para inibir algumas ações dos internos.
Na área do HCT/BA propriamente dito, a estrutura física é antiga e deteriorada, as
escadas são estreitas, as paredes úmidas, ao ambiente de pouca luminosidade e ventilação,
soma-se o odor próprio dos antigos hospícios. As camas estão em precário estado de
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conservação, assim como os sanitários; a higiene destes e das enfermarias é deficiente. Há
uma grade trancada, que separa o posto de enfermagem, do corredor das alas. A entrada de
todas as alas é gradeada, assim como o são todas as janelas. Os internos-pacientes vestem
roupas do hospital. A rotina da instituição não permite o encontro dos internos-pacientes
masculinos com os femininos; os horários para refeições e passeio no pátio são distintos, para
dar conta desta norma.
Foto 1. Fachada lateral do prédio do Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia
No prédio do HCT/BA há 05 alas:
1. Ala A: onde estão os internos-pacientes masculinos com problemas clínicos, os
deficientes mentais, idosos, e aqueles que precisam ser protegidos do abuso sexual
ou de atos agressivos.
2. Ala B: ala feminina.
3. Ala C: ala masculina.
4. Ala D: ala masculina.
5. Ala E: ala dos internos-pacientes mais lúcidos e dos dependentes químicos.
O HCT/BA é um durante o dia, outro, durante a noite. Durante o dia nota-se muito
movimento nas alas, no pátio, na administração. Dependendo do horário, há muitos internospacientes no pátio, todos com farda amarela. Por volta das 17 horas, após a entrada deles nas
alas, o pátio é ocupado pelos pombos, cães vira-latas, internos-funcionários da higienização
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que fazem a limpeza do pátio, ou sentam-se próximo à sala do seu setor para descansar, e
agentes prisionais sentados nos bancos ou cadeiras. A brisa é agradável, e melhor vai ficando
à medida que escurece. Há um silêncio no ar e certa tranquilidade aparente. Sentada ali,
parece até que estou num banco de uma praça, esperando o tempo passar.
3.1. A rotina do HCT/BA
No HCT/BA, como em toda Instituição Total segundo Goffman (1999), há horários
pré-estabelecidos, regras e normas rígidas, que não podem ser descumpridas. Pela manhã, as
mulheres tomam café primeiro, depois os homens. No almoço e jantar, os homens vão
primeiro ao refeitório. Os internos-pacientes almoçam e depois se dirigem para as suas alas,
que são trancadas, para que as internas-pacientes saiam de sua ala e sigam para o refeitório.
Disse-me o IP Saturnino: “nós somos trancados de 11 horas da manhã até 02 e meia”. As
mulheres permanecem mais tempo confinadas, só têm direito ao pátio externo, 1 hora por dia,
após o almoço, e geralmente ao longo do dia, elas ficam muito tempo deitadas em suas
camas. Quando estão nas alas, os internos-pacientes do sexo masculino estão deitados em
suas camas ou no chão, alguns ficam encostados na grade de entrada das alas, outros ficam
caminhando pelo corredor ou sentados no chão, poucos assistem TV. Contou-me o IP
Rochester: “tem uns que assiste TV, outros não”.
Refeições:
1. Café da manhã: 8 horas.
2. Cafezinho às 10 horas.
3. Almoço: 11 horas.
4. Cafezinho às 15 horas.
5. Jantar masculino: 16 horas.
6. Mingau: 20 horas, nas alas.
Informou-me Rochester: “1º, de manhã as mulher toma café, depois os homens.
Almoço e janta, os homens 1º. O jantar dos homens é 16 horas, depois vai pra ala. De noite, 8
horas, serve mingau junto com remédio”.
Visitas: nas terças e sextas à tarde, visitas de familiares da capital; de segunda a
domingo, dos familiares do interior. Poucos internos-pacientes têm visitas por residirem no
interior e a família não possuir renda suficiente para visitá-los. As visitas passam por revista
feita pelos agentes prisionais, permanecem no pátio, são atendidos pelo serviço social, e se
estão vindo do interior e chegam pela manhã, almoçam junto com os agentes. Não é
45
permitida no HCT, visita íntima, diferentemente de outras unidades prisionais. Disse-me o IP
Chamus: “a visita é terça e sexta, devia ter sábado e domingo, a família trabalha, não pode
vir”.
Banho: ás 6 horas da manhã. Os internos-pacientes banham-se sozinhos, ou quando
têm alguma limitação, são acompanhados por algum interno-funcionário do setor de
enfermagem e/ou de segurança.
Medicação: geralmente administrada pela enfermagem às 7h40, antes do café da
manhã, às 11h40, após o almoço, às 20 horas, juntamente com a oferta do mingau.
Horário de telefonemas para os internos-pacientes: nas segundas e quintas-feiras.
Telefonam do orelhão na área externa, fazendo fila para tal, ou ligam para suas famílias, do
serviço social.
Atividades: ir para a escola, cortar cabelo e fazer barba, oficinas da terapia
ocupacional, jogar dominó ou futebol.
Entrega de dinheiro aos IPs: informou-me Chamus: “a família manda dinheiro, eles só
dão de 05 em 05, uma vez por semana, nas quartas-feiras”.
Escola: de segunda à quinta-feira, no turno da manhã, das 9 às 11 horas, no turno da
tarde, das 14 às 16 horas. Contou-me Rochester: “todo mundo pode ir pra escola, mas
ninguém quer ir, às vezes a aula é de manhã, às vezes, de tarde”.
3.2. Perfil dos internos-pacientes do HCT/BA
Na tentativa de delinear o perfil dos internos-pacientes do HCT/BA, coloco abaixo a
estatística adquirida no setor de arquivo do HCT/BA.
Tabela 1 - Sexo dos internos-pacientes
Sexo dos internospacientes
N
Homens
159
Mulheres
13
172
TOTAL
2009*
2010**
%
92,4
7,6
100,0
N
153
19
172
2011***
%
89,0
11,0
100,0
N
135
9
144
Fonte: elaboração própria a partir dos dados fornecidos pela administração do HCT/BA
*11.11.2009 **11.11.2010 ***12.07.2011
%
93,75
6,25
100,0
46
Tabela 2 – Tipos de crimes
Tipos de crimes
Ameaça
Atentado violento ao pudor
Ato obsceno
Dano
Entorpecente
Estupro
Furto
Homicídio
Ignorado
Incêndio
Latrocínio
Lesão corporal
Roubo
Tentativa de estupro
Tentativa de furto
Tentativa de homicídio
Tentativa de roubo
Violência em domicílio
Outros
TOTAL
2009*
2010**
N
%
N
11
6,4
10
8
4,7
14
1
0,6
0
5
2,9
1
3
1,7
6
5
2,9
8
6
3,5
9
67 39,0 62
7
4,1
6
2
1,2
1
0
0,0
1
12
7,0
10
12
7,0
10
3
1,7
2
2
1,2
1
24 14,0 19
0
0,0
3
0
0,0
0
4
2,3
9
172 100,0 172
%
5,8
8,1
0,0
0,6
3,5
4,7
5,2
36,0
3,5
0,6
0,6
5,8
5,8
1,2
0,6
11,0
1,7
0,0
5,2
100,0
2011***
N
%
8
5,5
7
4,9
0
0,0
1
0,7
4
2,8
13
9,0
10
6,9
46 31,9
8
5,5
0
0,0
1
0,7
9
6,2
08
5,5
2
1,4
1
0,7
19 13,2
2
1,4
0
0,0
5
3,5
144 100,0
Fonte: elaboração própria a partir dos dados fornecidos pela administração do HCT/BA
*11.11.2009 **11.11.2010 ***12.07.2011
Pode-se observar que na data de 11.11.09, em relação aos delitos cometidos, 38,95%
correspondiam a homicídio, e 92,44% dos internos-pacientes eram do sexo masculino. Na
data de 11.11.10, 36,04% correspondiam a homicídio, e 88,95% eram do sexo masculino. Na
data de 12.07.11, 31,9% correspondiam a homicídio e 93,75% eram do sexo masculino.
Tabela 3 – Situação legal dos internos-pacientes em 12.07.2011
Situação legal
Alvará de soltura
Carta desinternação
Com laudo
Medida de Segurança
Para laudo
Problema social
Para tratamento
Total
N
1
3
49
35
29
9
18
144
%
0,7
2,1
34,0
24,3
20,1
6,2
12,5
100,0
Fonte: elaboração própria a partir dos dados fornecidos pela administração do HCT/BA
47
Tabela 4 – Cor da pele dos internos-pacientes em 12.07.2011
Cor da pele
Branca
Negra
Parda
Outras
Total
N
30
15
99
0
144
%
20,8
10,4
68,8
0,0
100,0
Fonte: elaboração própria a partir dos dados fornecidos pela administração do HCT/BA
Tabela 5 – Estado civil dos internos-pacientes em 12.07.2011
Estado civil
Casado
Desquitado
Solteiro
Viúvo
Total
N
6
1
134
3
144
%
4,2
0,7
93,0
2,1
100,0
Fonte: elaboração própria a partir dos dados fornecidos pela administração do HCT/BA
Tabela 6 – Grau de instrução dos internos-pacientes em 12.07.2011
Grau de instrução
Analfabeto
Alfabetizado
Ens. Fundamantal I
Ens. Fundamental II
Ens. Médio incompleto
Ens. Médio completo
Ens. Superior incompleto
Ens. Superior completo
Outros
Total
N
31
39
40
9
4
3
3
1
14
144
%
21,5
27,1
27,8
6,2
2,8
2,1
2,1
0,7
9,7
100,0
Fonte: elaboração própria a partir dos dados fornecidos pela administração do HCT/BA
Tabela 7 – Faixa etária dos internos- pacientes em 12.07.2011
Faixa etária
18 a 24 anos
25 a 29 anos
30 a 34 anos
35 a 45 anos
46 a 60 anos
+ de 60 anos
Outros (não sabe a idade)
Total
N
25
19
28
31
29
5
7
144
%
17,4
13,2
19,4
21,5
20,1
3,5
4,9
100,0
Fonte: elaboração própria a partir dos dados fornecidos pela administração do HCT/BA
48
Tabela 8 – Procedência dos internos-pacientes em 12.07.2011
Procedência dos internos
Municípios em região metropolitana
Municípios do interior da Bahia
Zona rural
Total
N
24
94
26
144
%
16,7
65,3
18,0
100,0
Fonte: elaboração própria a partir dos dados fornecidos pela administração do HCT/BA
De acordo com as tabelas acima de 12.07.2011, pode-se observar: 34% dos internospacientes estavam com laudo pronto e 24,3% estavam no HCT/BA cumprindo medida de
segurança (MS). 68,6% eram pardos, 93% eram solteiros, 65,3% eram do interior do Estado
da Bahia, 21,5% eram analfabetos e 54,9% eram alfabetizados ou tinham curso fundamental I,
71,5% estavam na faixa de idade de 18 a 45 anos.
3.3. Perfil dos internos-funcionários do HCT/BA
Em 28 de junho de 2011, a diretora administrativa do HCT/BA gentilmente me
forneceu o quantitativo de parte do staff do HCT/BA, o que registrei na tabela abaixo:
Tabela 9 – Funcionários do setor clínico, educacional e de segurança do HCT/BA
Funcionários por setor
Psiquiatras
Médico clínico
Psicólogas
Enfermeiras
Assistentes sociais
Terapeutas ocupacionais
Nutricionista
Farmacêutica
Odontólogos
Técnico de enfermagem
Professoras
Agentes penitenciários
Número
10
1
3
11
4
2
1
1
2
39
2
83
Fonte: elaboração própria a partir dos dados fornecidos pela administração do HCT/BA
Observa-se que o HCT/BA possui 50 IFs do setor de enfermagem e 83 IFs do setor
de segurança, o que já fala sobre o predomínio da função custódia sobre a função tratamento,
já que são estes dois setores que permanecem por mais tempo em contato com os IPs. Há no
geral, um quantitativo insuficiente dos IFs de diferentes setores da área clínica.
Falando dos psiquiatras e de suas funções, um deles é o diretor, que além desta
função, faz muitos dos laudos psiquiátricos da instituição e é também plantonista sempre que
49
há um déficit na equipe médica; dois psiquiatras fazem laudos psiquiátricos e são
plantonistas; três são plantonistas e assistentes, dois são apenas plantonistas, dois fazem
apenas laudos. Como o visto, a maioria acumula funções. Há vagas para psiquiatra no
HCT/BA, porém o diretor encontra dificuldades em encontrar profissionais que queiram
trabalhar na unidade, e se faz necessário concurso público para que cheguem novos
profissionais.
Para cada ala do HCT/BA, antigamente, havia pela manhã, uma enfermeira
responsável, e mais uma enfermeira na coordenação. Atualmente as enfermeiras trabalham
em regime de plantão, havendo uma enfermeira responsável por cada ala, o que impossibilita
reunião regular do setor. Além das 05 enfermeiras que respondem pelas alas, há 03
enfermeiras no plantão noturno, 01 no final de semana, 01 responsável pelos exames, e 01 na
coordenação. Apesar da maioria dos internos-pacientes do HCT/BA serem do sexo
masculino como mostra a Tabela 1 na página 45, os técnicos de enfermagem são na maioria
do sexo feminino. Geralmente, em função da distribuição da escala, permanece apenas um
técnico por ala. Há apenas uma médica clínica na instituição, mas anteriormente existiam
duas médicas que dividiam a assistência às alas, cada uma atendendo em dois turnos por
semana.
As assistentes sociais queixam de sobrecarga de trabalho, pouco pessoal no setor,
diminuição progressiva do número de assistentes sociais na instituição. Falando da terapia
ocupacional (TO), uma terapeuta assume a coordenação do serviço, a outra se responsabiliza
pelas oficinas e pela supervisão dos oficineiros, que são em número de 04. Terapeutas
ocupacionais, oficineiros e professoras da escola, se reúnem uma vez por semana para
discutir a sua prática, segundo me informou Cidália. Existem duas professoras no HCT/BA
que assumem cada uma, uma turma de alunos pela manhã e uma à tarde na „escola‟ da
instituição. As professoras são contratadas pela secretaria de educação e fazem parte do
programa de gestão de educação especial em unidades prisionais.
Na lavanderia e rouparia o quantitativo de funcionários é deficiente. A comida para os
internos é feita no próprio HCT/BA, por funcionários de uma empresa terceirizada. A única
nutricionista que atua no HCT/BA, não é exclusiva desta instituição, ela responde pela
nutrição de todas as unidades do sistema prisional baiano.
Capítulo IV – PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
4.1. O método e técnicas de coleta: etapas e procedimentos
50
Neste trabalho de pesquisa, me inspirei no interacionismo simbólico, que tem sido
amplamente utilizado em pesquisas na área da saúde mental e ciências sociais (ANDRADE;
TANAKA, 2000). A escola interacionista de pensamento parte do pressuposto de que o
comportamento e a experiência humana são mediados pela interpretação. A atribuição de
significados às relações entre indivíduos se dá através da interação dos mesmos. Assim, um
fenômeno social precisa ser compreendido através da vivência dos participantes, dos
significados atribuídos por eles, e decorrente das interações por eles constituídas (CHARON,
1989). Interação ocorre em qualquer ocasião em que um conjunto de indivíduos encontra-se
na presença imediata de outros (GOFFMAN, 2007).
O interacionismo simbólico como método de estudo sociológico, situa-se numa
perspectiva fenomenológica, adquire maior importância a partir da década de 70 do século
XX, privilegia as ações do indivíduo como objeto de discurso e investigação em detrimento
da objetividade e contingência absoluta da estrutura social. Este método analisa sujeitos
particulares inseridos em seus cotidianos específicos, mas referidos a contextos globais de
natureza cultural. O núcleo de objeto de análise mais apropriado ao interacionismo simbólico
é o estudo de grupos ou de relações institucionais específicos. São fundamentais os
significados que os sujeitos individuais e coletivos atribuem às suas ações-interações
(ANDRADE; TANAKA, 2001).
Como parte da abordagem interacionista, lancei mão de recursos da metodologia
conhecida como „teoria fundamentada‟ (grounded theory), desenvolvida pelos sociólogos
Barney Glaser e Anselm Strauss na década de 1960, que significa teoria derivada de dados,
reunidos e analisados por meio de processo de pesquisa (GLASER; STRAUSS, 1967). Esta
metodologia é amplamente usada em pesquisas na área da saúde que vão desde enfermagem
até a psicologia (MOREIRA; DUPAS, 2006; PAULI; BOUSSO, 2003). Esta amplitude se
deve justamente porque este tipo de metodologia possibilita uma flexibilidade grande na
construção do conhecimento de questões que muitas vezes constituem uma intersecção
disciplinar. Na teoria fundamentada importa a descrição do objeto de estudo e da cognição e
ações dos atores retratados, além de organizar e algumas vezes classificar os dados segundo
suas propriedades, e finalmente, teorizar a partir dos dados (STRAUSS; CORBIN, 2008).
Importante deixar claro que o ponto de vista adotado neste trabalho de pesquisa foi a
visão de realidade apresentada pelas pessoas alvo deste estudo, os internos-pacientes,
complementados com a dos internos-funcionários, observando como elas se enredam ou se
deixam enredar, na linha dos estudos de Becker (2008) sobre desviantes.
51
Adotei como técnica de estudo, a observação participante e entrevistas semi-abertas.
De acordo com Minayo (2007) na observação participante, o observador fica em relação
direta com os seus interlocutores no espaço social da pesquisa, participando da vida social
deles, na medida do possível, com a finalidade de colher dados e compreender o contexto. O
pesquisador faz parte do contexto que observa, modifica, e também é por ele modificado.
A fundamentação teórica com base em estudos sobre saúde mental com ênfase em
psicose, sociologia do crime e do sistema prisional, e psiquiatria forense, se deu ao longo de
todo o processo da pesquisa. O trabalho de campo foi assim dividido: a. etapa de exploração e
adaptação ao campo de pesquisa: observação geral da instituição, suas rotinas, e a
familiarização com o seu funcionamento e com os que ali vivem ou trabalham; posteriormente
parti para conversas informais com os internos-pacientes e os internos-funcionários; b.
pesquisa de campo: realização de entrevistas semi-abertas com internos-pacientes
selecionados para a amostra central de pesquisa. Como recurso complementar, usei registros
de prontuários clínicos e criminais, e uma narrativa escrita por um informante. Utilizei um
diário de campo para registrar o observado e os conteúdos das conversas e entrevistas. Esta
multiplicidade de fontes e técnicas de obtenção de informações me garantiu mais e melhores
referências para a compreensão, beneficiando a qualidade dos achados (FLICK, 2009).
A prática do campo logo apontou muito mais a proximidade que a distância entre as
mazelas vivenciadas por funcionários e pacientes. Foi fácil notar que todos que estão ali,
pacientes e funcionários, compõem o mesmo universo simbólico, de sociabilidade e de
interação. Os funcionários definem e lidam com o crime, passam no HCT/BA parte
significativa de suas vidas e absorvem a cultura e as mazelas da instituição, por isso como
registrei na introdução, adotei as designações de internos-pacientes (IPs) e internosfuncionários (IFs), considerando a ambos como internos, e inclui as vivências destes últimos,
assim como o impacto neles ocorrido a partir do seu trabalho e da rotina institucional, como
uma preocupação analítica.
O critério de seleção da amostra central da pesquisa consistiu na inclusão de internospacientes psicóticos voluntários, do sexo masculino (em função do maior número de homens
internos no HCT/BA, como se pode ver na tabela 1, p. 45), sem limite de idade, reclusos em
função de homicídio. Escolhi os portadores de transtornos psicóticos, em função do meu
interesse no estudo da psicose na perspectiva sociológica, como já referido no memorial, e
também por sua riqueza simbólica, o que facilitou o estudo, possibilitando também, a
observação das interferências da cultura de segregação. Selecionei o crime de homicídio, por
representar o mais frequentemente encontrado no Hospital alvo deste estudo, como pode
52
atestar a estatística anteriormente aqui registrada, na tabela 2, p. 46. A seleção da amostra
central se deu a partir de demanda espontânea, como ocorreu com Saturnino que me disse:
“eu me candidato a ser o primeiro, sou esquizofrênico e já matei dois”, através de sugestões
dadas por parte do diretor da unidade, e ainda a partir da identificação de internos-pacientes
possíveis de fazerem parte da amostra, observados a partir das conversas informais com os
mesmos, no pátio do HCT/BA.
O trabalho de campo foi iniciado em setembro de 2010 e finalizado em agosto de
2011, com idas ao HC/BA em distintos dias e horários. Foram entrevistados 54 internospacientes, entre esses 08 integraram a amostra central, além de 32 internos-funcionários. Com
os internos-pacientes da amostra central, realizei duas entrevistas individuais formais com 01
deles, três entrevistas com 02, quatro entrevistas com 03, seis entrevistas com 01 e sete com
outro interno-paciente. Além destas entrevistas formais em sala, que ocorreram sempre em
uma das salas disponíveis da área administrativa da instituição, tive diversas conversas
rápidas com os mesmos, nos vários espaços do HCT/BA, em momentos distintos. Realizar
mais ou menos entrevistas formais com os IPs da amostra deveu-se à disponibilidade do
entrevistado, à maior ou menor riqueza de sua narrativa, e ao meu maior ou menor interesse
no caso em questão; claro está que minha subjetividade foi marcante neste ponto, como em
muitos outros deste trabalho, como será possível ver no decorrer deste texto. Com a maioria
dos demais internos-pacientes não integrantes da amostra central, tive uma ou duas
conversas informais no pátio ou em outro espaço institucional, e com alguns deles diversos
momentos de bate-papo, que sempre ocorriam espontaneamente, por solicitação dos mesmos.
Estas entrevistas informais foram fundamentais para o conhecimento do campo e trouxeram
aspectos importantes da instituição. Com os internos-funcionários em sua grande maioria,
ocorreu um momento de conversa individual ou em grupo, geralmente em seu setor, e com 08
deles, tive mais de um momento de conversa. Com o diretor da unidade, conversei inúmeras
vezes pessoalmente, e uma vez por telefone.
Aos poucos me tornei “familiar” entre os internos-pacientes e os internosfuncionários. Comecei a acompanhar a rotina institucional, realizando observação participante
a partir de momentos que considerei chaves como refeições, tomada de medicações, visitas de
familiares, horário livre no pátio, e a hora da tranca4. Quando das conversas informais com
alguns internos-pacientes, no início do trabalho de campo fazia uma explicação inicial e
sucinta sobre a minha identidade e sobre o que estava fazendo ali naquele lugar. Após
4
Por volta das 16h30 após o jantar no refeitório, os internos-pacientes se dirigem para as alas e de lá só saem no dia
seguinte, para o café da manhã.
53
determinado tempo, isto se tornou desnecessário, pois fiquei conhecida na instituição e os
seus internos já sabiam por informação direta, ou por comunicação interna „boca a boca‟,
quem eu era e o que estava fazendo ali. Apesar disto, com os IPs da amostra central, esta
apresentação formal, sempre foi feita no momento da primeira entrevista. Percebi que sempre
que estava no pátio, numa ala, ou no refeitório, alguns internos-pacientes se aproximavam,
acercavam-se em pequenos grupos e faziam queixas, pedidos, contavam os motivos pelos
quais ali estavam. Interessante foi notar que as queixas tomaram conta das conversas iniciais
do campo, seguidas pelos diversos pedidos; contar suas histórias veio em terceiro lugar.
Observei que para os IPs, de uma maneira geral, este momento de conversa livre representava
um meio de expressar suas identidades, manifestar suas crenças e também colocar suas
principais demandas e angústias.
Passado alguns momentos depois do contato inicial o procedimento adotado no início
do campo, foi o de colocar algumas perguntas mais gerais em uma linguagem simples: o que
você pensa sobre este lugar aqui, o HCT/BA? O HCT/BA é hospital ou é prisão? O que aqui
(HCT/BA) tem de bom e o que tem de ruim? Como se sente estando internado aqui no
HCT/BA? Qual o motivo que lhe trouxe para cá (HCT/BA)? Você se considera doente? Caso
positivo, qual é mesmo a sua doença? Sobre o que mais você quer falar? Vale ressaltar que
muitos dos dados foram coletados na presença de terceiros, o que para os internos-pacientes
não faz muita diferença, já que a maioria deles não omite os seus crimes nem o seu histórico
de vida ou os seus sintomas psicopatológicos. Com o decorrer do trabalho de campo e da
minha maior familiaridade com a instituição e com os discursos de seus internos, deixei o
campo falar mais livremente, permiti que o entrevistado determinasse o tom de sua narrativa,
e busquei, quando necessário, colher os informes considerados relevantes, em outra ocasião.
Da mesma maneira também comecei conversas com os agentes prisionais e demais internosfuncionários. Quanto às perguntas iniciais, adaptei boa parte das feitas com os IPs referentes à
instituição HCT/BA e acrescentei duas: como se sente trabalhando aqui? O que pensa sobre
os IPs? Outras perguntas surgiram naturalmente, de acordo com a demanda do campo.
A aproximação com os internos-funcionários começou a ocorrer após as primeiras
observações e conversas com os internos-pacientes. Sozinhos, em dupla ou em grupo estas
conversas e discussões foram muito frutíferas. As conversas em dupla ou em grupo foram
ricas, com debates, controvérsias e lembranças complementares nas falas dos companheiros.
Geralmente elas se deram no próprio setor ou sala de trabalho, mas também ocorreram no
pátio, quando este não estava ocupado por internos-pacientes. Essas discussões em grupo
embora tenham características muito particulares trazem também proximidades das vantagens
54
obtidas através da técnica dos chamados grupos-de-discussão (BOHNSACK; WELLER,
2006). Segundo Weller: “as opiniões de grupo (Gruppenmeinungen) não são formuladas, mas
apenas atualizadas no momento da entrevista”. Em outras palavras:
As opiniões trazidas pelo grupo não podem ser vistas como tentativa de ordenação ou
como resultado de uma influência mútua no momento da entrevista, essas posições
refletem acima de tudo as orientações coletivas ou as visões de mundo do grupo
social ao qual o entrevistado pertence (WELLER, 2006, p. 245).
4.2. A dinâmica do campo e análise da pesquisa
Optei por não usar o gravador em nenhuma etapa do trabalho de campo, por considerálo um instrumento que pudesse despertar inibição ou até mesmo algo de persecutório nos
internos-pacientes. Esta expectativa fez sentido quando num determinado dia, no início de
uma entrevista individual com um interno-paciente da amostra central, eu peguei o celular
para por no modo silencioso, e ele perguntou se eu iria gravar a entrevista. Esclareci que
gravar não, mas que eu iria anotar. Ele, Saturnino, falou: “ah! bom, assim está bem”. Sobre
este aspecto colocou Lemgruber (1999) referindo-se à sua experiência de pesquisa numa
penitenciária feminina: “o gravador em inúmeros casos inibe o informante de tal maneira que
seu depoimento fica bastante prejudicado”.
Na ausência do gravador, registrei os relatos das observações, conversas, discussões e
entrevistas manualmente no decorrer da fala dos informantes. O hábito profissional de ouvir
longas histórias de pacientes e de registrá-las em prontuário, me favoreceu escutar as
narrativas dos informantes da instituição pesquisada, anotar ao mesmo tempo e depois, no
mesmo dia, contando com os recursos mnemônicos, organizar a escrita, preenchendo
porventura as falhas nas anotações. Na maioria das vezes não observei resistência por parte
dos informantes, às minhas constantes anotações. Aurino, no entanto, integrante da amostra
central, durante uma das nossas entrevistas em sala, disse:
- [...] a senhora tá escrevendo muito, o que a senhora tá escrevendo vai me brocar, a
senhora manda ofício pro juiz e vai me ferrar!
- Não se preocupe Aurino, nada do que eu estou escrevendo aqui vai para o juiz [...].
(Neste momento aproveitei para novamente falar sobre o meu trabalho e digo-lhe que
caso não se sinta à vontade, pode se negar a participar). Ele, após ouvir minhas
explicações falou:
- Pode continuar [...].
Em nossa entrevista seguinte, retornei ao assunto:
- [...] eu queria conversar um pouco com você, pois eu notei que às vezes você se
preocupa com o que eu escrevo, é isso mesmo?
- Não.
- Mas no outro dia você disse assim: vai me ferrar! (Aurino sorriu).
55
- O que você conversa comigo não vai interferir no seu laudo ou na decisão do juiz,
vou lhe explicar novamente sobre a pesquisa [...]. (Após me ouvir com atenção, ele
diz que quer continuar e que nós podemos conversar. Eu então volto a ouvi-lo e a
fazer as minhas anotações).
Este aspecto surgido no campo, remonta à situação legal dos IPs, pois ali estão para
fazer laudo de sanidade mental ou para cumprir medida de segurança, é natural que fiquem
temerosos sobre o que falam, para quem falam e para que falam.
Quanto aos requisitos éticos, o presente estudo foi submetido ao Comitê de Ética da
FFCH da UFBA, em função de tratar-se de uma investigação com seres humanos no campo
da saúde, obtendo aprovação em 07 de junho de 2010. Os pacientes internados no HCT alvo
deste estudo estão sob a tutela do Estado, sendo necessária a autorização do dirigente da
referida Instituição. Com isto, solicitei do diretor autorização para coleta de dados, através do
Termo de Autorização para Realização da Pesquisa (Anexo 01), associado ao Termo de
Responsabilidade do Pesquisador (Anexo 02). Os participantes integrantes da pesquisa foram
convidados a lerem e, no caso de anuência, a assinarem o Termo de Consentimento Livre e
Esclarecido – TCLE (Anexo 03), onde foram expostos os objetivos da pesquisa, em
observância aos requisitos éticos da Resolução 196/96 (BRASIL1996).
Em função do quadro patológico da clientela, foi preciso ter bastante cuidado quanto à
aplicação do TCLE. Observei que alguns dos internos-pacientes selecionados para a amostra
central da pesquisa assinaram o termo com muita tranquilidade, outros ficaram bastante
temerosos ou persecutórios, e um se recusou a assinar. Libório, que se encontra no HCT/BA
aguardando laudo de sanidade mental para tentar converter sua pena em medida de segurança,
me disse: “eu não quero participar da amostra não, pode prejudicar o meu laudo”, neste caso,
precisei abandonar os dados mais específicos sobre o mesmo. Um dos nossos primeiros
entrevistados, Saturnino, sem titubear, assinou de pronto o TCLE, tão logo acabamos de ler o
mesmo: “me dê, que eu assino”, disse ele. Foi preciso avaliar bem o momento de aplicar o
TCLE em cada situação específica. Encontrei um interno-paciente, Ferdinando, com um nível
de confusão mental e de produção psicótica tão intensa, que foi prudente aguardar a evolução
do quadro e um momento de maior lucidez para a sua assinatura. Em todas as situações,
importou aguardar o tempo necessário para se estabelecer um vínculo de maior confiança
entre informante e pesquisador, exceto com Saturnino, pois já nos conhecíamos de outra
unidade de internação psiquiátrica da Bahia. Arquimedes, antes de assinar o termo falou: “se
seu trabalho for dessa forma, eu aceito colaborar e assinar; a senhora garante que não vai
causar nenhum problema pra mim nem pro outro?”. Após a minha resposta ratificando que
não causaria problema algum, Arquimedes levantou-se, botou a mão na cabeça, depois fechou
56
os olhos, juntou as mãos próximas ao peito, parecendo pensar um pouco e em seguida
decidiu: “vou assinar agora, já decidi!”. O perfil dos internos-pacientes, em sua maioria de
baixa escolaridade, (ver tabela 6, p. 47), me obrigou após a leitura do termo, a uma explicação
com palavras mais simples sobre o conteúdo do mesmo, e o consentimento verbal de que eles
haviam compreendido o seu conteúdo antes de assinarem. Nestas ocasiões sempre frisei que
não haveria vantagem de ordem material ou de qualquer outra, para aqueles que participassem
da pesquisa.
Apesar deste esclarecimento dito acima, em algumas falas de internos-pacientes, da
amostra central ou não, eles colocaram suas expectativas em relação à pesquisa que eu estava
realizando: “espero que a senhora termine logo essa pesquisa e possa ajudar a gente
melhorando alguma coisa aqui, essa é a hora mais triste, a hora da tranca, agora só sai
amanhã”, me disse Áulus. Falou Arquimedes: “essa pesquisa da senhora vai ajudar a eu sair
daqui?”.
A percepção de carência de atenção por parte dos internos-pacientes foi algo que logo
me chamou atenção. A fala geral de sofrimento causado pela instituição também foi patente e
se expressou claramente, “aqui é tudo ruim”, disse Hermenegildo. Mas a fala mais marcante
neste sentido foi a de Arquimedes: “eu fiz uma vítima, mas sou uma vítima, aqui sofro
demais”. Quando estavam conversando em grupo, contavam suas histórias abertamente, às
vezes brincando com sua própria desgraça, suavizando o peso dos assuntos abordados. Àulus
um dia falou: “a senhora vir conversar com a gente é bom, a gente distrai, e a senhora parece
que não tem medo de doido”. Senti que muitos notaram a minha familiaridade com o campo,
e que as nossas conversas acabavam sendo de algum modo, terapêuticas. Algumas das falas
dos mesmos expressaram este particular: “você conversar a respeito do caso depois que
passou é bom que a gente desabafa”, registrou Arquimedes. Em outra ocasião me disse
Abelardo: “doutora, a senhora pode conversar comigo, preciso desabafar, já pedi pra o agente
me levar na psicóloga, ele não leva”. O fato deles sempre me chamarem de doutora, me fez
pensar que na maioria das vezes não me viam como pesquisadora e sim como psiquiatra5.
Os internos-funcionários acessados para conversas, no geral, se mostraram
disponíveis, receptivos, colaboradores. Encontrei uma resistência inicial por parte de uma
interna-funcionária de nível universitário, que logo foi sanada após a mesma saber da minha
profissão. Num outro caso, entendi que a resistência se deu exatamente por conta disto. Uma
5
Sobre este aspecto em particular vamos tratar mais a frente neste texto.
57
técnica de enfermagem aproveitou a minha presença e disponibilidade para me entrevistar
sobre o tema depressão, para um trabalho da faculdade.
Assim como com os internos-pacientes, também pude perceber a função terapêutica
das conversas com os internos-funcionários. Certa feita, um agente penitenciário, Ribas, no
final de uma entrevista com um grupo de agentes disse: “a senhora devia ficar no plantão,
ficar por aqui conversando, foi muito bom, a gente troca idéia, desabafa”.
Nas dinâmicas de campo sempre busquei exercer uma escuta muito atenta. De acordo
com Lemgruber (1999) o pesquisador deve estar treinado para saber ouvir mais do que
perguntar. As respostas iniciais ajudaram a formular quase que naturalmente as próximas
perguntas. Como mecanismo de checagem adicional quando elaborei alguma interpretação
sobre o campo, costumei voltar aos entrevistados e perguntar se meu entendimento tinha um
sentido ou se era equivocado. Quando foram apontados problemas, pedi novamente que a
matéria em questão fosse explicada pelos internos (vide nas p. 54 e 55 o diálogo com Aurino).
Sei que apenas o consentimento dos entrevistados, por si só, não valida os achados, mas este
retorno efetivamente contribui para compreensão de sentido naquilo que na literatura sobre
técnicas de pesquisa é conhecido como validação comunicativa (FLICK, 2009).
A análise das informações coletadas foi para mim uma etapa que ocorreu paralela ao
curso do trabalho de campo, e não apenas no seu final (STRAUSS; CORBIN, 2008). Os
trabalhos de construção de um objeto de pesquisa e de sua observação e registro são processos
que se articulam, exigindo um exercício de reflexão por parte do pesquisador (ALVES, 2003).
Partindo deste pressuposto produzi frutos do campo, dois artigos surgidos da aparente
confusão gerada na cognição dos internos, da mistura de duas instituições totais numa só, no
dizer de Goffman (1999), gerando uma terceira, absolutamente ambivalente, às vezes
paradoxal: “O Paradoxo da junção Hospício e Prisão”, e “Paradoxo ou Ambivalência?
hospício e prisão – o caso do Hospital de Custódia e Tratamento”, este último escrito
juntamente com Luiz Lourenço, o meu orientador. À medida que avancei a etapa de campo,
escrever sobre o observado e as reflexões já feitas a respeito, me facilitou a organização do
pensar sobre as bases possíveis do trabalho e quais as questões que precisava aprofundar. O
campo apontou as suas problemáticas mais importantes, e foi a partir delas que a pesquisa se
delineou. Acresceu-se aos dois artigos anteriores, o artigo com a co-autoria de Luiz Lourenço
que tem o título „Aqui sofro demais‟: notas de uma pesquisa em um Hospital de Custódia e
Tratamento, que fará parte de uma coletânia sobre metodologia de pesquisa em saúde ainda a
ser publicada. Este artigo citado traz aspectos particulares metodológicos detectados durante o
58
trabalho de campo, advindos da profissão da pesquisadora, do perfil da clientela alvo e da
cultura institucional.
Na análise de dados, selecionei os trechos das narrativas por temas específicos que se
tornaram categorias de análise (Tabela 10). Fiz uma listagem para os IPs, outra para os IFs e
uma terceira de temas encontrados na narrativa de ambos. Em relação às narrativas dos IPs da
amostra central, fiz uma listagem complementar.
Tabela 10 - Temas mais comuns encontrados nas narrativas dos informantes
Internos em geral
HCT Hospital
HCT cadeia
Tratamento no HCT/BA
Entrevistas terapêuticas
Pesquisadora psiquiatra
Quarto-individual
Periculosidades dos IPs
Perfil dos IPs
Receios com a pesquisa
Rotina
IPs
Custódia
Classificação dos IPs
Mortificação do Eu
Conflitos entre IPs
Questões com a Lei
Pedidos e queixas
Táticas de adaptação
Ociosidade
Coisas boas
Interação com IFs
IPs - amostra central
Vínculo com a vítima
Sentimento pelo crime
Motivo do crime
Uso de drogas
Tratamento anterior
Família e religião
Destino após HCT/BA
TCLE
Psicose e crime
Idéia de suicídio
IFs
Serviço de cada setor
HCT/BA para os IFs
Conflitos entre IFs
Percurso dos IFs
IFs como internos
Necessidades
Queixas
Interação com IPs
-----------------
Finda a listagem, tomei por base as orientações de Minayo (2007) em pesquisa
qualitativa, observei os pontos em comum e as singularidades decorrentes da vivência de cada
informante, busquei identificar onde apareceu a diversidade de crença, de opiniões e de
significações em experiências aparentemente semelhantes, tentei relacioná-las com aspectos
vinculados à história do indivíduo e aspectos da cultura, especialmente daquela vinculada à
representação coletiva da loucura e a cultura de segregação. Fui elaborando as características
do campo a partir das falas de seus atores, de suas vivências e significados dados, tentei
construir uma ponte com os autores citados na fundamentação teórica e aproveitei a minha
experiência, os conhecimentos adquiridos na área de saúde mental e minha familiaridade com
instituições totais para interpretar o sentido que os sujeitos deram à sua experiência na
intenção de fazer uma “leitura da leitura” seguindo a lição de Geertz (1989).
Os temas mais recorrentes se tornaram capítulos ou itens desta dissertação. Fiz uma
descrição narrativa das informações obtidas de maneira fidedigna, citando os termos usados
pelos entrevistados, não fiz correções de concordância verbal, ou qualquer outra correção
gramatical por entender que o modo como falavam já dizia um pouco sobre eles mesmos. Nas
narrativas de uma maneira geral e também naquelas da amostra central, omiti dados
identificatórios, trechos muito íntimos, aqueles que já haviam sido citados em outros capítulos
e ainda os considerados de pouca importância. Usei pseudônimos e modifiquei os nomes de
59
cidades ou estados. As narrativas dos IPs da amostra foram registradas em ordem cronológica
no item „Psicose e crime‟, e algumas foram por mim interrompidas, para que eu pudesse fazer
comentários, retornando em seguida com as falas dos informantes, no ponto em que deixei.
Um desafio adicional neste trabalho foi tentar integrar de algum modo, o saber da
saúde mental e da psiquiatria forense, ao da sociologia do crime e do sistema prisional. Tive
um ponto de tensão, pois precisei tentar me descolar da identidade de psiquiatra, para
conseguir o olhar mais socioantropológico. Também precisei lidar com a idéia que os
pacientes têm sobre os psiquiatras, além do fato de estarem sob a custódia da justiça. Isto
significa supostamente, que tudo que falam ou dizem, algumas vezes em seu imaginário, pode
ser usado em seu benefício ou ao contrário, como referido nas páginas 54 e 55 em relação aos
IPs Aurino e Libório. Para Minayo (2007), a metodologia inclui a teoria da abordagem
(método), os instrumentos de operacionalização do conhecimento (técnicas), e a criatividade
do pesquisador (sua experiência, sua sensibilidade, sua capacidade pessoal, seu background).
4.3. O background, a técnica e o campo de pesquisa
Pesquisadores que adotam técnicas qualitativas não temem partir de suas percepções
ao iniciar a análise de seus materiais. É através de suas experiências que o pesquisador muitas
vezes filtra a realidade, decodifica-a, e lhe dá sentido, até torná-la compreensível. Isto não
quer dizer, no entanto, que estas experiências devam prevalecer ao observado em campo; o
campo sempre será soberano, e deverá ter espaço para falar por si (STRAUSS; CORBIN,
2008).
Apesar de exercer a prática psiquiátrica há mais de 26 anos, com vasta experiência de
trabalho nas instituições de internação psiquiátrica em Salvador, já tendo nelas exercido
função administrativa, técnica e de ensino, jamais havia entrado no Hospital de Custódia e
Tratamento da Bahia, até o ano de 2009, ocasião em que iniciei a elaboração deste projeto de
pesquisa. Importante registrar que o HCT/BA para mim é um hospital-prisão, o que foi
confirmado pelo campo, como veremos mais a frente. Concordo com Julita Lemgruber (1999)
quando diz que é impossível passar por uma prisão e sair sem marcas e feridas. Similar à
experiência de pesquisa de Feltran (2011) ao estudar as trajetórias de crimes de adolescentes e
jovens, algumas narrativas dos atores desta pesquisa me causaram forte impressão. Impacteime desde o primeiro momento com velhas e conhecidas imagens, acrescidas de outras
inusitadas. Ali encontrei o odor característico dos hospícios e a nudez de muitos pacientes, tão
lugar comum em todas as instituições asilares que trabalhei por muitos anos. Constatei desde
60
as primeiras visitas, que além de toda a degradação já por mim conhecida e própria dos
hospícios, ali havia algo mais, talvez trazido pela junção em uma única instituição de duas
mazelas sociais, o hospício e a prisão. Coloquei-me na intenção de melhor conhecer um
universo novo e me surpreendi por lá encontrar tantas coisas familiares e características de um
hospício (universo comum à minha vivência), acrescidas das características prisionais ali
materializadas. Diz-nos Lemgruber (1999): “as prisões serão sempre as mesmas, não importa
em que tempo ou lugar”.
Para entrar no HCT/BA como pesquisadora, lancei mão da carteira do CRM e do título
de psiquiatra que me autorizam ao trânsito livre na instituição, em qualquer dia e dia e
horário6, além do fácil acesso aos prontuários clínicos e aos criminais. Nestes dois pontos em
especial é importante lembrar que além da formação e do reconhecimento do título de
“doutora” usamos das relações estabelecidas com alguns internos-funcionários e
especialmente com o diretor da unidade. Contudo, busquei me separar do papel de psiquiatra,
estranhá-lo para tentar ver a partir do olhar do interno, do “louco”, do “perigoso”, do
“homicida”, na perspectiva de uma pesquisadora. Algumas vezes isto não foi possível, o
campo com suas particularidades, naturalmente solicitou o uso da fachada que naturalmente
assumo na interação com pacientes psiquiátricos, e que é pelos mesmos aprovada, como nos
diz Goffman (2011).
Na situação acima descrita, lembrando a experiência da antropóloga Fernanda Eugênio
(2003), numa escola para crianças cegas, acabei por fazer uma observação mais participante
do que se poderia desejar (EUGÊNIO, 2003). Dois momentos foram marcantes: conversando
com internos-pacientes numa enfermaria, um deles, Perácio, que mais tarde faria parte de
minha amostra central de pesquisa, no início do campo, ao saber que eu era psiquiatra, veio
em minha direção e apertando a cabeça com as duas mãos, disse: “tô ouvindo vozes, não tô
aguentando mais, é a voz da minha irmã, ela diz que vai me matar”. Ao perceber a forte
angústia do interno-paciente, solicitei da técnica de enfermagem da ala, que chamasse o
médico de plantão para medicá-lo, esforçando-me para não pegar o prontuário e prescrever de
pronto uma medicação. Numa outra ocasião, uma ambulância do Estado deixou um paciente
do interior para ser internado na instituição, porém, sem ordem judicial. A mãe ficou aflita,
sem saber o que fazer, após o psiquiatra de plantão ter lhe dito que não poderia ficar com o
paciente. Nesta hora, não me contive e apontei possíveis soluções ao colega, para um melhor
6
Certa feita, como narrarei mais à frente, eu conversei com alguns internos-pacientes dentro de uma das alas do HCT/BA,
sem a presença direta de um agente prisional e/ou de um técnico de enfermagem, o que não seria possível se eu não fosse
psiquiatra.
61
desfecho daquela situação. Foi aí que me dei conta, que naquele momento já estava
acumulando outro papel, advindo da minha experiência passada na administração em uma
unidade pública psiquiátrica. Nestas situações, tornou-se quase impossível deixar de acumular
os papéis de pesquisadora, o de gestora de unidade psiquiátrica e o de médica psiquiatra, pois,
as demandas institucionais acabavam por gerar conflitos e necessidades subjetivas de
encontrar uma solução plausível à situação problema.
Gilberto Velho (2003) salienta muito apropriadamente que o pesquisador brasileiro em
seus trabalhos, geralmente vale-se de sua rede de relações previamente existente e anterior à
investigação. Importa colocar aqui, da minha relação anterior com o diretor do HCT/BA em
questão, por já ter trabalhado junto com o mesmo, por alguns anos, em um hospital
psiquiátrico, o que me rendeu uma grande facilidade no trânsito no campo da pesquisa.
Apesar do temor de que as mazelas institucionais sejam expostas ao público, a partir de
estudos realizados na instituição, como apontou Lemgruber (1999) no seu estudo numa prisão
feminina, não encontrei por parte do diretor do HCT/BA, qualquer restrição ao meu estudo;
muito pelo contrário, o mesmo me deu acesso livre à instituição, informando a funcionários
chaves, que atendessem a todas as minhas solicitações. Um dia, ao me apresentar a um dos
internos-funcionários da instituição falou: “[...] se ela quiser arrancar uma árvore de um lugar
e colocar num outro, pode deixar”. Para Goffman (2007) em um lugar limitado por barreiras
estabelecidas à percepção onde se realiza regularmente uma forma particular de atividade, ou
seja, um estabelecimento social evita-se que o auditório veja os bastidores e impede-se que
estranhos participem de uma representação que não lhes é endereçada. Pelas razões já citadas,
estas ressalvas para mim foram diminuídas.
A formação e atuação profissional como médica psiquiatra se mostrou então, um
aspecto incontornável desta pesquisa. Almeida (2011) discute muito bem as dificuldades e
facilidades de ser uma „nativa‟, uma insider na realização de uma pesquisa em ambiente
prisional. As facilidades se dariam quanto ao acesso de informações e sujeitos que jamais
seriam possíveis apenas a um pesquisador, e as dificuldades se concentrariam mais em
conseguir lançar um olhar menos naturalizado, de investigador, num ambiente tão trivial aos
olhos de uma funcionária do sistema (ALMEIDA, 2011). Merton (1972) define insiders e
outsiders da seguinte forma: insiders são membros de grupos específicos e coletividades ou
ocupantes de um status social específico; outsiders por sua vez, são os não membros. Usando
esta definição mais estrita, sou outsider ao HCT/BA, pois, não faço parte do seu grupo de
internos, quer sejam pacientes ou funcionários. No entanto, acabei por ser em parte insider,
em parte „nativa‟ pois, na qualidade de integrante do subgrupo de psiquiatras, acabei inserida
62
neste contexto com naturalidade. Não foi sem propósito o fato de sentir-me imediatamente
familiar com a instituição ao adentrar nela, isso apesar de jamais ter estado no HCT/BA antes.
Desde o primeiro dia, tive um sentimento de pertença, próprio dos naturalizados em hospício,
quando nele ingressam. É importante lembrar, ainda segundo Merton (1972), que o outsider
nunca será socializado ou engajado nas experiências do grupo social a que não pertence.
O intercurso social segundo Goffman (2011) envolve uma dialética constante entre
rituais de apresentação e de evitação. Deferência, para o mesmo autor, é um meio simbólico
pelo qual é comunicada a apreciação que um indivíduo mostra sobre outro para esse outro,
seja através de rituais de evitação ou de apresentação. Parece-me que os IPs assim se
conduziram comigo, ao estarem sempre a me chamar de „doutora‟ e a reconhecer com este
símbolo, a minha autoridade sobre eles, legitimando o meu lugar de pertencimento. IFs
também legitimaram o meu lugar e me permitiram determinados acessos dentro do campo por
conta disto.
Segundo Becker (2008) não há estudos suficientes sobre como os desviantes vivem
suas experiências de desvios, o que fazem ou pensam sobre si mesmo, a sociedade e suas
atividades. Uma das razões para isto aponta Becker, é que não é fácil estudar desviantes; o
estudioso do desvio precisa convencer aqueles a quem estuda de que não haverá perigo para
eles, de que não sofrerão em consequência do que revelarem. Aqueles que cometem atos
desviantes se protegem de várias maneiras contra outsiders intrometidos. Para Goffman
(2011) importa na interação entre indivíduos a preservação da intimidade do outro, evitando
perguntas que podem significar invasão do eu. No entanto, para determinadas pessoas de
determinado estatuto, mudam-se essas regras. No HCT/BA, o meu estatuto de psiquiatra me
conferiu a autorização a fazer perguntas pessoais sem constrangimento para mim ou para o
interno-paciente entrevistado, sem significar violação das fronteiras da personalidade do
outro. Em função da minha posição no campo, um tanto híbrida, nem exatamente insider nem
outsider, o tempo necessário para conquistar a confiança dos estudados, e para me familiarizar
com o campo foram diminuídos, por já ter um conhecimento da cultura psiquiátrica asilar e de
certo modo usar destas expressões no campo do HCT/BA. Assim, pude “queimar etapas”.
Libório, como já citado (p.55), não aceitou fazer parte da amostra central da pesquisa,
por receio de prejudicar o seu processo legal de algum modo. Nas nossas duas primeiras
conversas, disse-me que havia coisas que preferia não falar, que só falaria no dia do laudo. No
entanto, na nossa terceira conversa, narrou-me em detalhes uma trama delirante, que
justificava a sua forte angústia; então lhe perguntei se foi aquele assunto que não poderia me
63
contar. Ele disse: “foi, não sei por que falei, só falei isso pra uma doutora na COP 7, e pra uma
doutora aqui no HCT, mas brevemente, não falei tudo como hoje não”. Já no final do campo,
questionei no pátio a um grupo de internos-pacientes, se eles teriam conversado comigo sem
tanta reserva caso eu não fosse psiquiatra. Disse-me Saturnino: “não, a gente fala tudo com a
senhora porque a senhora é médica, entende as coisas e ajuda a gente; naquele dia que eu tava
mal, a senhora conversou comigo, me ajudou e nem precisou de remédio, a senhora foi como
uma psicóloga”. Falou Lemuel: “a gente fala porque a senhora ajuda e resolve as coisas, veja
eu, a senhora me tirou do QI (Quarto-individual)”. Colocou Arquimedes: “a senhora foi muito
importante pra gente”, continuou Ferdinando: “eu também já tô melhor, a senhora me
ajudou”. Essas narrativas expressam que o que os internos-pacientes falavam tinha uma
relação direta de „para quem falavam‟, como nos coloca Goffman (2011), afinal eu sou uma
psiquiatra e este papel significa em nossa sociedade, e principalmente para o doente mental, o
„doutor‟, o médico, aquele que cuida, aquele que sabe, aquele que trata, que escuta, que
entende.
Em agosto de 2011, pela manhã, já no final do meu trabalho de campo, Aurino,
diferente do trecho citado anteriormente quando ele temia que eu lhe „ferrasse‟ (p.54 e 55),
vendo-me no pátio conversando com um grupo de internos-pacientes me disse:
- Que dia a senhora vai conversar comigo?
- Quando você quiser.
- Quando eu quiser não, que a senhora é doutora!
- Eu estava aqui e vi você jogando dominó, você rasgou a camisa por quê?
- Alegria, ganhei! Eu sou louco doutora, esquizofrênico.
- Então louco pode fazer tudo?
- É, louco, louco!
- Você está elétrico hoje não é?
- É. (sorriu).
Confiei em Anlsem Strauss e Juliet Corbin (2008), quando dizem que a experiência
profissional é uma potencial fonte de sensibilidade; pode bloquear a percepção, mas também
pode permitir ao pesquisador mover-se mais rapidamente para uma área, por já estar
familiarizado com o campo. O campo me mostrou os caminhos a seguir. Entendi que as
interpretações adequadas foram germinadas nele, porém, de certo modo, só nascidas desta
inter-relação frutífera do campo com o pesquisador. Perguntas ficaram sem serem feitas, há
outras que ficaram sem respostas, e houve narrativas que me fizeram silenciar.
Capítulo V – HOSPÍCIO E PRISÃO: paradoxo e ambivalência
7
Cento de Observação Penal.
64
Entendi que as observações e explanações obtidas no campo poderiam ajudar a
compreender aspectos gerais sobre este tipo de instituição que estávamos pesquisando, o
HCT/BA (YIN, 2010). Uma questão de campo se impôs já na etapa exploratória, os aspectos
institucionais do HCT/BA e como estes se relacionavam com as vivências dos seus internos,
que significado tinha a instituição para eles e como esta cognição era partilhada por quem
coabitava aquele espaço; o que o HCT/BA é afinal? Hospital? Manicômio? Presídio? Para que
ele existe, para tratar ou punir seus internos? Como uma instituição pode responder a
expectativas punitivas e curativas ao mesmo tempo para seus internos? Por que punir internos
que deveriam ser inimputáveis diante da lei?
As categorias usadas neste trabalho, internos-pacientes (IPs) e internos-funcionários
(IFs), já apontam para a duplicidade ambivalente dos lugares ora de preso e de doente, ora de
“preso” e de funcionário, apesar de sabermos que os seus regimes de aprisionamento são
distintos. Claro está que mesmo com todo o esforço da equipe que ali trabalha o HCT/BA
jamais será uma instituição terapêutica, pois já traz em si o paradoxo e a ambivalência
hospício e prisão, por si só enlouquecedores. Os internos-pacientes não se recuperam o
ambiente não propicia isto, assim como o seu modo de funcionamento e rotina repetitiva. Para
os técnicos do setor saúde, e para os internos, o HCT/BA é uma prisão, para os agentes
prisionais, é mais um hospital. Há também uma confusão sobre como chamar os IPs, para a
equipe da área de saúde, eles são pacientes, para a da área de segurança, são internos. Porém,
estes mesmos, em determinadas situações, chamam os antes internos, de pacientes. Falou-me
o agente prisional Aniceto:
Aqui eles são pacientes, mas não deixam de serem detentos, há um choque entre
essas duas nomenclaturas; eles são pacientes para os médicos e enfermeiras, pra
gente, são detentos, cometeram crimes, são presos. Aqui é hospital ou é presídio?
Como se comportar dentro desta realidade? Disciplina ou tratamento? Aqui quando o
interno sai da disciplina, diz que é doente.
Nas observações e explorações iniciais do campo com os internos-pacientes,
importantes ambivalências institucionais afloraram. Os IPs mais perigosos, como os
homicidas, falavam dos seus crimes com detalhes, na frente de todos, aparentemente com
poucas ressalvas; uns diziam que “é bom falar para desabafar”, outros diziam que falar sobre
o ato homicida lhes gerava angústia, mas mesmo assim, falavam. Ao contrário das outras
prisões, ali não há tanta preocupação com o segredo, com o não revelar do ato criminoso.
Afinal, no entendimento geral, expresso pela fala do IP Áulus, “aqui é tudo doido, ninguém é
certo”. Isso parece isentar, ou pelo menos minimizar, a preocupação sobre os depoimentos
dados, “aqui todo mundo é doido, o que falar tá falado”, complementou Áulus. De alguma
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maneira, na maioria das vezes, o que prevalece é a ideia de que nada do que vá ser dito possa
trazer piores consequências do que a vida que levam ali. O interno-paciente Gláucus, se refere
à instituição como sendo “a casa dos mortos”, não em referência a obra de Fiódor
Dostoiévski, sim ao seu poema e também título de um documentário feito pela antropóloga
Débora Diniz em 2009 na instituição. O poema de Gláucus ressalta que os que ali vivem estão
fora do mundo social, estão “mortos socialmente”. Estar no HCT/BA é de uma forma muito
particular estar morto e esquecido para o mundo, alguns internos-pacientes não tem nenhuma
comunicação com familiares há anos, “maior sofrimento pro preso doutora, é o abandono da
família”, disse-me Saturnino.
A linguagem dos internos também mistura expressões típicas de um presídio com as
de um hospital. O HCT/BA é concebido, para alguns internos-pacientes quanto por alguns
internos-funcionários, como “o fim da linha” para o interno-paciente e a “geladeira” do
sistema para agentes prisionais, ou o pior lugar para se trabalhar para funcionários do setor
saúde; seria assim, na hierarquia do sistema prisional, o pior lugar para se trabalhar e
concomitantemente para ser colocado sob custódia: “estou aqui por incompatibilidade com a
direção do presídio onde eu estava me convidaram pra eu vim pra cá, eu aceitei”, contou
Astrogildo, agente, “falavam tanta coisa ruim daqui que eu quis conhecer, aí resolvi trabalhar
aqui, o paciente agudo, manicomial, sempre me interessou”, disse-me Gúbio, médico
psiquiatra, “trabalhei em duas cadeias fechadas, vim pra cá por problema de saúde”, contoume Antonina, agente prisional, “eu trabalhava na COP e sofri uma ameaça, a Secretaria não
me deu apoio, eu pedi pra sair, me mandaram pra cá”, disse-me Aniceto. Mas também
encontrei discursos distintos: “já estou aqui há muitos anos, eu larguei o outro trabalho, mas
fiquei na psiquiatria”, narrou-me a enfermeira Ambrosina, “eu amo trabalhar aqui, acho que é
do coração, a gente faz o bem pra eles, é bom”, falou-me Alcione.
São várias as questões no debate das relações entre loucura e crime e entre tratamento
e castigo, que acabam por culminar na existência de uma instituição que pune sem tratar
adequadamente a loucura e criminaliza os doentes. Paradoxal esta inimputabilidade que não
tem data para finalizar o cumprimento da pena. Disseram-me os internos-funcionários do
setor saúde, Cidália, Henrriete e Gúbio, respectivamente: “uma das minhas dificuldades em
dialogar com o manicômio é que aqui não é um hospital, funciona mais com a lógica de
cadeia”, “aqui é um hospital com característica de presídio”, “isto aqui é uma prisão”. Lógica
de cadeia é a lógica da pena, claro está que não é possível unir a função de punir e a função de
cuidar, prevalecendo então aquela mais forte, que atende mais aos interesses da sociedade, ou
seja, a lógica da punição.
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No HCT/BA estão os indivíduos duplamente punidos pela sociedade, por serem
loucos, e por serem criminosos. É impossível não perceber tantas incoerências. Disse-me
Libório:
Eu já não sei mais o que é melhor, tem gente que fala que cumprir pena é melhor,
aqui pode até ser prisão perpétua [...]. Eu tô na mão dos psiquiatras não é? E se eu
pegar prisão perpétua? Nesse caso, melhor é a pena, mas pra eu sair com metade da
pena preciso da liberação do exame, e se eu sou doente, não vão me dar.
O que Libório expressou relaciona-se com o fato de que, vencido o prazo da medida
de segurança (MS), de até no máximo três anos, isso não significa que o indivíduo que se
encontra interno num Hospital de Custódia, poderá dele sair. Isto só ocorrerá caso o seu
Exame de Verificação de Cessação de Periculosidade (EVCP) seja positivo, do contrário, ou
seja, se o perito psiquiatra considerar que ele ainda é perigoso para a sociedade, ele
permanecerá interno. Nesta situação, às vezes pode se configurar como se fosse uma prisão
perpétua. Libório, consciente da gravidade do seu crime e também da sua patologia, sabe que
este risco para ele é real. Na prisão, vencida a pena de no máximo 30 anos, „abre-se o portão‟
e o antes detento ficará em liberdade.
Outros internos-pacientes vão trazer aspectos da sua maior penalização em função da
doença mental: “eu quero ir pra cadeia, lá fica mais perto da minha família”, disse Anacleto.
“Já tenho 04 anos e 04 meses preso de uma tentativa de homicídio, já fez laudo, carta de
desinternação, e nada de eu ir pra casa”, contou-me Bóris. Aqui explícito fica a complexidade
da operacionalização da saída de um interno de um HCT. Nesta situação, é a problemática
social que está a dificultar o processo. Disse-me a assistente social Henrriete: “em muitos
casos, o doente mental já vem pra cá sem família, são andarilhos, ou a família muda de
endereço pra a gente não conseguir encontrar”.
Sobre a identidade do HCT/BA há distintas opiniões, para uns um lugar bom, para
outros, um lugar ruim, às vezes hospital, às vezes cadeia. Disseram-me os internos-pacientes:
“aqui é cadeia maldita”, falou Celestino, “aqui é cadeia, daqui a pouco bota a gente na
tranca”, disse Hilário. Falou Nazaré: “vim pra cá porque eu quis, eu pensei que aqui era casa
de recuperação, mas é detenção”. Contou-me Arquimedes: “considero aqui uma cadeia, se
fosse um hospital, quando você tava bom, o médico dava alta e você ia embora; eu já tô bom,
mas tô com medida de três anos [...] mas, aqui é melhor do que delegacia tem gente que não
acha, mas eu acho, aqui tem mais espaço”. Referiu Teofrasto: “aqui tá bem, tô comendo, tô
dormindo, o ruim é que falta liberdade”.
Vou expor três tabelas, que resumem os questionamentos feitos neste item,
infelizmente até então sem respostas satisfatórias e sem soluções de curto prazo.
67
Tabela 11 – HCT, paradoxo e ambivalência
Paradoxo
Vai de encontro a um pressuposto, ao que se
entende por algo
(hospital deveria tratar e não excluir)
Diante da inimputabilidade, deveria não se cogitar
punição, mas tratamento
Doença deixa de ser doença para ser defeito
moral
HCT que deveria tratar o doente mental, o
aniquila, tendo como finalidade real proteger os
sãos dos assaltos da loucura
Ambivalência
Apresenta dois impulsos opostos e coexistentes
(tratar e punir) em relação à mesma pessoa
Passa uma dupla mensagem, estabelece um duplo
vínculo, punir e tratar
O interno-paciente é ao mesmo tempo doente e
criminoso
O HCT usa dois mecanismos de controle, a
medicação e os instrumentos de força próprios
das unidades prisionais
O paradoxo colocado neste item acaba sendo apenas aparente. Primeiro, o HCT/BA
não é hospital, logo não visa tratar. No aspecto em que diz operar saúde, esta operação se dá
nos moldes de hospício. Segundo, enquanto instituição que recebe inimputáveis, os pune.
Concordo com o que Foucault (2009) e Garland (1999) trazem sobre a prisão, que se aplica
perfeitamente aos HCTs, já que este pretenso fracasso faz parte do funcionamento destas
instituições, que existem para não funcionar.
Em relação à ambivalência, ela repercute nos internos de um modo geral. Os IPs não
sabem de fato se estão sendo tratados ou punidos e os IFs transitam com conflito, entre a
função de punir e a de supostamente tratar. No final, a instituição é confusa, ambígua, passa
sempre uma dupla mensagem, não ressocializa, é enlouquecedora; “aqui quem não é doido,
fica doido”, disse-me Arquimedes. Mas, serve à sociedade, pois até então, a sociedade não
sabe o que por em seu lugar, como colocou Foucault (2009) em relação às prisões. Claro está
que o HCT/BA não é hospital, é hospício e é prisão.
Tabela 12 – HCT, hospício e prisão – controle social
Hospício
Instituição Total
Internos: pacientes
Hospital
Tratamento
Medicação
Autoridade: médico
Alta
Prisão
Instituição Total
Internos: presos
Cadeia
Detenção
Tranca
Autoridade: juiz
Cumprimento da pena
Busca tornar o indivíduo
inofensivo, curado
Aniquila o sujeito, reforça o
estigma de louco
Busca punir e reabilitar o
indivíduo
Aniquila o sujeito, reforça o
estigma de criminoso
HCT
Instituição Total
Internos: pacientes e presos
Hospital e cadeia
Tratamento e detenção
Medicação e tranca
Autoridades: médico e juiz
MS que só findará com o exame de
verificação de cessação de
periculosidade
Busca punir o indivíduo e torná-lo
inofensivo, curado
Aniquila o sujeito, reforça o estigma
de louco, de criminoso e de perigoso
68
O HCT/BA é uma instituição total que produz as mazelas e os aparatos de controle
social de duas outras instituições totais, o hospício e da prisão. Os seus internos são doentes e
presos ao mesmo tempo, um de seus papeis é o de retirar da sociedade indivíduos
indesejáveis, doentes mentais criminosos e perigosos. Para cumprir esta tarefa, a niquila o
sujeito internado sob custódia, reforça o estigma de louco, de criminoso e de perigoso. No dizer de
Goffman (1999) instituição total, lugar de mortificação e violação do território do eu,
produtora de uma exposição contaminadora indesejável, no dizer de Basaglia (1985),
instituição de violência.
Tabela 13 – HCT, hospício e prisão
Hospício
Comida ruim
Prisão
Comida ruim
Ociosidade
Ociosidade
Sem visita íntima
Com visita íntima
Higiene precária
Higiene precária
HCT/BA
Comida ruim
“comida é meia concha de feijão rasa, de noite é água veia
que diz que é sopa, a galinha presta, as outras coisas não,
o café é frio e não é bem feito, aqui é só almoço e janta,
de manhã o café com 02 pão, só às vezes bota manteiga”,
disse Hilário.
Ociosidade
“aqui é entediante”, disse Ferdinando, “a gente fica
andando pra lá e pra cá”, complementou Anacleto, “aqui
não tem nada pra fazer, fica todo mundo aí feito ovo de
aranha acamufado nos cantos, vive amortecido de
remédio, já acorda pra tomar remédio”, narrou Hilário.
Sem visita íntima
“minha mulher tem 17 anos, a gente tem um filho, não
deixam ela entrar, eu tenho que ir pra „Casa Branca‟, e só
fico 20 minutos”, disse Chamus, “cadeia é melhor que tem
visita íntima”, opinou Aurino.
Higiene precária
“aqui é uma porcaria danada”, falou Chamus.
No HCT/BA, assim como no hospício e na prisão, a comida é ruim, a higiene é
precária, impera a ociosidade. Do mesmo modo como no hospício, não é possível no HCT/BA
visita íntima, diferentemente de outras unidades prisionais, o que acresce ao preso-doente,
uma punição a mais se comparado ao preso comum. De qualquer modo, os Hospitais de
Custódia e Tratamento, ou melhor, os manicômios são produto de nossa sociedade, como tal,
somos co-participes neste constructo ambivalente e paradoxal. Como nos diz Amarante (1996,
p. 73 e 77) o manicômio é exatamente o espaço que a sociedade reserva para os loucos, e isso
não quer dizer, que é ela que produz a doença, mas, que esta não deseja, ou não sabe, conviver
com eles; a doença mental, tem sido a justificativa que sustenta a exclusão daqueles que são
considerados enfermos. A realidade manicomial vem demonstrar que o que se exercita sobre a
doença objetivada é mais um ato de violência que um ato de cura ou libertação.
69
Capítulo VI – INTERNOS-FUNCIONÁRIOS: o serviço e suas narrativas
A partir do trabalho de campo, pude observar que há diversas fragmentações no
serviço dos internos-funcionários, próprias da lógica manicomial, ou seja, da lógica do
controle social e exclusão e não do tratamento para reinserção na sociedade. Funcionários de
setores diferentes ou do mesmo setor, geralmente não falam a mesma linguagem, o que
dificulta a assistência em geral. Não há treinamento, reciclagem, reuniões de equipe,
supervisões ou um projeto institucional, consequentemente, os casos dos pacientes não são
discutidos em equipe. Outro dado importante, já citado na p. 42, contribui para piorar a
qualidade da assistência, o fato das salas das terapeutas ocupacionais, psicólogas e a sala das
assistentes sociais, se localizarem na área administrativa; isto explica em parte, porque para os
IPs é tão difícil o acesso a estas profissionais, como exporemos no capítulo referente às
vivências dos internos-pacientes. “Aqui a lógica é fragmentada, há uma completa ausência de
comunicação entre profissionais, entre profissionais e pacientes, não existe reunião técnica,
não existe um coordenador de equipe”, contou a terapeuta ocupacional Cidália, “aqui é tanta
demanda de trabalho que não dá pra gente se reunir”, justificou a assistente social Modesta.
Como não há um espaço formal e regular para que os IFs repensem a sua prática, falar
sobre o HCT/BA, o trabalho e sobre os internos-pacientes, passa a ser algo para eles
importante. Trarei abaixo trechos de suas narrativas, que expressam as suas vivências no
HCT/BA e iniciarei colocando um pouco do funcionamento de alguns setores chaves da
instituição.
De um modo geral, como veremos nas narrativas que se seguem, a assistência
psiquiátrica na instituição, se comparada àquela do século passado, piorou. A norma é que
cada IP seja visto, em média, pelo psiquiatra, de 15 em 15 dias, só deverá ser visto após 08
dias se ocorrer alguma intercorrência. Contudo, de acordo com o levantamento que fiz nos
prontuários nas alas, as prescrições têm periodicidade em sua maioria mensal, sendo que, na
ala „A‟, onde estão internos os pacientes mais dependentes e com problemática social, a
periodicidade geralmente é bimensal, em alguns casos, trimestral. A justificativa dada para
este fato é a carência de psiquiatras na instituição e o acúmulo das funções de assistente e
plantonista pelo mesmo psiquiatra. Os registros em prontuário, em sua maioria, são sucintos e
de baixa qualidade técnica, pouco informando sobre o quadro psicopatológico dos pacientes,
o que também gera um prejuízo na qualidade dos laudos emitidos na instituição.
A colheita da história psiquiátrica é geralmente feita somente com o paciente, já que
na maioria das vezes ele chega ao HCT/BA vindo de outra unidade do sistema penal,
70
desacompanhado de seu familiar. Ao lado do que diz o paciente, o médico conta com os
dados registrados no prontuário relativo ao seu processo criminal. No entanto, depois que o
paciente entra no HCT/BA, só raramente, o seu médico assistente desce para o arquivo para
ver este prontuário, disse-me Malaquias, psiquiatra: “só fazem isso quando há interesse por
algum motivo”. O motivo de interesse geralmente está ligado ao fato do crime ter sido muito
explorado pela mídia, se o crime for muito inusitado, ou ainda se o IP for de nível
universitário e/ou de condição sócio-financeira diferenciada da maioria.
Complementou Malaquias:
A assistência aos pacientes é insuficiente. Os assistentes atendem os pacientes
quinzenal ou mensalmente, os laudos são deficientes, os colegas que fazem laudo
precisam ver os registros dos assistentes no prontuário, mas não tem. Recentemente
perdemos cinco médicos, a Secretaria não mandou substituir [...].
Em entrevista com Gúbio, perguntei-lhe o que pensava sobre a instituição e ele disse:
Quando cheguei, abri um prontuário que estava há oito meses sem um registro
médico, fiquei assustado! Temos muitos problemas. Aqui nós temos todas as
medicações psiquiátricas de alto custo e as outras, mas faltam medicações clínicas, e
os exames demoram [...]. O paciente aqui tem vários prontuários; o prontuário da
assistente social fica na sala do setor, o da psicologia, também, o prontuário lá
dentro, na ala, é só do médico e da enfermagem, ninguém lê, eu escrevo pra mim
mesmo [...] o prontuário do processo criminal fica no arquivo.
Então me perguntei já um pouco admirada com esta situação que é no mínimo
curiosa: “como é possível uma equipe de saúde mental funcionar desta forma”? O internopaciente do HCT/BA não é mesmo uma pessoa, afinal ele é um acúmulo de pedaços: um da
justiça, outro do psiquiatra, outro da enfermeira, há aquele pedaço da terapeuta ocupacional,
outro da assistente social, o da psicóloga, e pra finalizar, a fatia do agente prisional. Pensei
algo indignada e crítica, parafraseando a frase do IP Arquimedes que cito nas p.67 e 95:
“quem não é doido, há de ficar doido com um tratamento deste”.
Contou-me, Urbano, outro psiquiatra do HCT/BA:
A assistência era melhor, hoje, praticamente não existe [...] mas o problema é o tempo
e a quantidade de psiquiatras, hoje aqui não tem nem o número de médico suficiente
para dar os plantões. Antigamente, aqui não saia um laudo sem a equipe discutir, o
laudo era lido na reunião pelo relator e pelo revisor, se era contestado, o diretor
nomeava outros peritos para fazer novo laudo, ou o próprio relator refazia o laudo;
depois, a coisa foi caindo [...]. O problema é a falta de profissionais, também não
somos oficialmente reconhecidos como peritos, isso é um grande erro.
Disse-me Levi, outro colega:
Os políticos não se interessam pela instituição [...]. Tenho pena do manicômio, que
eu me recuso a chamar de HCT, pois isto aqui não é um hospital. Aqui nada
melhorou, apesar de que antes a instituição era mais pobre do ponto de vista material,
hoje empobreceu do ponto de vista de pessoal, não tem reunião, discussão dos
laudos.
71
Falando do serviço do setor de enfermagem, quando um paciente precisa sair para um
exame ou consulta externa, ele sai no carro da instituição, acompanhado de um técnico de
enfermagem e de um agente prisional. Quando tem uma agitação na ala, o agente é chamado
para ajudar a enfermagem. Geralmente, o trabalho conjunto entre agente e técnico de
enfermagem depende da relação pessoal entre ambos já que não há integração ou um
momento de reunião entre os funcionários dos dois setores para discutirem suas práticas,
acordarem sobre o serviço e as atuações de cada setor ou aquelas que devem ocorrer em
parceria.
Narrou a enfermeira Ambrosina:
A assistência no HCT deixa a desejar. Faltam medicações clínicas, há dificuldade
para o paciente fazer um exame ou uma consulta lá fora, pois eles, além de doentes
mentais são também presidiários. A medicação psiquiátrica não falta, mas o quadro
de psiquiatras é baixo. Aqui tudo é mais difícil, há falha na manutenção da
aparelhagem, se quebra um tensiômetro, um autoclave, fica sem consertar.
Sobre o HCT/BA, nos disse a técnica de enfermagem, Narcisa:
Aqui não existe mudança, existe reforma; é o novo chegando e se abraçando com o
velho. A partir da intervenção do Ministério Público no HCT em 2002-2003, a
instituição passou a ter o básico: medicação básica, produto de higiene de 15 em 15
dias e roupa de cama de 08 em 08. Antes disto faltava colchão, produtos de higiene,
medicamentos, havia muitos ratos e imundice.
O serviço da médica clínica não atende às necessidades dos IPs. O serviço dos
odontologistas é precário, com predomínio de extrações. As psicólogas trabalham em dupla
com o serviço social, o que parece ter prejudicado a especificidade do trabalho destas
profissionais. Os internos-pacientes estão constantemente a reclamar do difícil acesso às
psicólogas da instituição, não parece haver uma sistematização nos atendimentos, já que eles
geralmente não sabem quando serão atendidos.
Sobre o serviço social disse-me Henrriete:
Para o paciente sair do HCT é preciso o laudo do psiquiatra e o laudo psicossocial
feito pela psicóloga e pela assistente social, onde o paciente vai morar, com quem,
aonde vai se tratar, se o laudo psicossocial for negativo, o paciente não sai. No
presídio comum, chegou o dia, abre a porta e o interno sai, aqui não, é preciso
contato com a família ou responsável, para o paciente poder sair [...].
Sobre a terapia ocupacional – TO falou-me Cidália:
- Em minha opinião, as oficinas não funcionam como terapêuticas, a lógica
manicomial é muito forte, não permite muitas possibilidades.
- O que você está chamando de lógica manicomial?
- Lógica fragmentada, completa ausência de comunicação entre profissionais, e entre
profissionais e pacientes, não existe uma reunião técnica, não existe um coordenador
de equipe, quando a equipe se reúne, é para falar de questões administrativas.
Como atividades no HCT/BA, existem as oficinas da TO, a escola e a possibilidade
de assistir TV. No passado, a terapia ocupacional realizava passeios terapêuticos, atualmente,
72
não mais, pela dificuldade de agente prisional para acompanhar e/ou da falta de carro.
Quando ocorriam, os passeios terapêuticos destinavam-se aos IPs moradores da instituição,
sem referência familiar. O setor de terapia ocupacional oferece oficina de artes, oficina de
barbearia e autocuidado, oficina de música, oficina de atividades esportivas. Falou-me
Cidália: “aqui eles tem a TO e a escola, não funciona nada além disso, não tem lazer, não tem
educação física, as mulheres só vão pra TO uma vez por semana”.
No setor de terapia ocupacional, atualmente não falta material para a barbearia, ou
outros como papeis, tintas, lápis, cartolina, etc. Entretanto, a frequência às oficinas é instável,
e a produção é prejudicada por esta razão. As oficinas não têm um horário fixo, já que as
mesmas dependem da escala de serviço dos oficineiros, que são agentes prisionais que se
ofereceram para esta função, seguindo deste modo, a escala do setor de segurança. Os
internos-pacientes não são chamados ou levados para o setor; a porta é aberta, e os internospacientes masculinos vão espontaneamente, ou não. A TO só está disponível para as
mulheres, uma tarde por semana, às quintas-feiras, no entanto, na maioria das vezes, elas não
vão. Às quintas-feiras à tarde, uma funcionária do apoio administrativo loca filmes e passa
para as internas-pacientes femininas, incluindo a cada semana, 05 internos-pacientes
masculinos, cada semana de uma determinada ala. Notei que não há por parte do setor de TO,
um trabalho sistemático no sentido de estimular à participação nas atividades oferecidas.
Existe uma „escola‟ que funciona no turno matutino e vespertino, de segunda à
quinta-feira, em duas salas no térreo do prédio do HCT/BA. Na quinta-feira é passado algum
filme para os alunos, não há aula convencional. Em média, comparecem à escola, 10
internos-pacientes por turno, o que significa uma subutilização da mesma. Há uma turma de
alfabetização e uma turma mais avançada. Os alunos não fazem provas, mas passam por
processos avaliativos.
O setor de lavanderia e rouparia troca a roupa de cama nas alas e as toalhas de banho
uma vez por semana; o vestuário dos internos-pacientes, duas vezes por semana. Geralmente
falta tecido para renovar o estoque da rouparia.
A alimentação dos internos-funcionários é distinta da dos internos-pacientes. Os IPs
de modo generalizado queixam da qualidade da alimentação e também da quantidade, falam
da diferenciação entre a comida deles e a dos funcionários, “que o cheiro dá até paladar”.
Apesar disto, a administradora disse que a comida é provada diariamente, “se não está bom,
volta pra panela”. No entanto, ela falou: “eles queixam, mas nunca se agrada a todos”.
A sala dos internos-funcionários da higienização localiza-se na parte traseira do
prédio do HCT/BA, na lateral. Tem uma porta que abre para o pátio, outra que abre para
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dentro do prédio. Quando estão descansando ou batendo papo, geralmente, os IFs da
higienização ficam dentro da sala, ou sentados no passeio que dá para o pátio, lateral à
mesma. Eles trabalham com fardamento que os distingue facilmente dos IPs e dos demais
IFs. Material de limpeza para a higienização da instituição, atualmente, não falta. Colocoume Sumatra, uma interna-funcionária da limpeza: “aqui precisa de uma reforma geral,
precisa ser derrubado e ser feito de novo”. No entanto, disse-me Telésforo, também IF do
setor de limpeza: “trabalhar no HCT é bom”.
Sobre a área administrativa do HCT/BA, disse-me Zaine:
Nesses 04 anos que estou aqui, muitas coisas foram detectadas e resolvidas, dos
empregos que já tive é o que eu gosto mais, e olha que já fiz muita coisa. Trabalhar
aqui é um desafio, parece com meu jeito de ser [...]. O Hospital de Custódia é um
lugar habitável, humano, as pessoas se empenham em sua atividade. Eu tenho uma
equipe de trabalho coesa, comprometida. Aqui é um lugar de difícil gestão, de muita
complexidade, a burocracia é muito grande, eu não sou gestora, não tenho dinheiro
nem pra comprar papel A4 [...]. Faço reuniões das coordenações dos setores de 15
em 15 dias [...]. A gente faz assembléia com os pacientes uma vez por mês, 02
representantes de cada ala, a direção e as coordenações. Eles fazem as queixas e as
solicitações, a gente passa pra eles o que está acontecendo para que fiquem cientes
[...]. Existem 26 unidades prisionais na Bahia, a gente é a única especial. A gente tem
coisas aqui que não tem em outras unidades, temos dois carros, materiais de
consumo, fardamento para internos, medicamento não falta, na secretaria eu disse:
pode deixar meus doidos sujos ou nus, mas não deixem sem remédio [...].
Na narrativa de Zaine, chamou a minha atenção o seu gosto pelo trabalho no Hospital
de Custódia e Tratamento da Bahia e a sua visão positiva sobre alguns aspectos da
instituição. Apesar de algumas dificuldades, na sua perspectiva, a área administrativa no
geral funciona a contento. Interessante no seu discurso que com apenas 04 anos de trabalho
no HCT/BA, ela me pareceu inteiramente identificada com a instituição de tal forma que „os
doidos‟ do HCT/BA, são „seus doidos‟.
O arquivo do HCT/BA é um dos setores da administração. Durante todo o meu
trabalho de campo, estive por lá diversas vezes, seja para ver os prontuários criminais dos
IPs, seja para pedir ao chefe do setor dados estatísticos que precisava. O mesmo, sempre
disponível a me ajudar, muito contribuiu com a pesquisa. O arquivo é organizado, fiz
algumas entrevistas com alguns dos psiquiatras numa salinha dentro do setor, e lá fazia a
leitura dos prontuários. A princípio, chegava ao arquivo e pedia os prontuários que precisava,
com o tempo, eu mesma os pegava e ao término, os colocava no mesmo lugar, sem
problemas ou resistência do chefe ou de qualquer dos outros IFs do setor8. Com o meu gosto
pelo café, se eu ia à sala do arquivo pela manhã, sempre aproveitava para desfrutar do
cafezinho do setor. Com o chefe, que chamarei aqui de Sócrates, tive alguns bate-papos,
8
Complementarei este aspecto neste mesmo capítulo, no item „Conflitos entre IFs‟.
74
sobre assuntos diversos, enquanto eu fazia o meu serviço, e ele o dele. Em função de nunca
encontrá-lo desocupado, nunca o entrevistei formalmente, motivo pelo qual não o inseri na
lista da amostra dos IFs.
Passarei então ao setor de segurança. Os agentes prisionais do HCT/BA trabalham em
regime de plantão, 24/72 horas. Permanecem em pontos chaves da área externa, fazem ronda
interna, acompanham internos nas refeições e atendimentos, fazem revistas nos visitantes,
vigiam, impedem fugas e brigas, zelam pela disciplina e fazem contagem do número de
internos. Eles verbalizam que a realidade da prisão é distinta da do HCT/BA, a revista e a
postura são outras. Referem que não passaram por treinamento quando foram designados ao
trabalho a instituição, ou quando vieram transferidos de outras unidades prisionais.
Aparentemente eles são um grupo coeso, porém heterogêneo em faixa de idade e em tempo
de serviço no Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia. Há aqueles que lá estão há muitos
anos e aqueles que chegaram há pouco tempo. Muitos vieram transferidos de outra unidade
prisional. Os motivos das transferências são diversos: saúde física, incompatibilidade com a
direção da outra unidade, ameaças sofridas por parte de presidiários, alguns estão na
instituição por escolha própria.
Fui muito bem recebida pela maioria dos agentes prisionais do HCT/BA, e apesar dos
conflitos que existem entre eles e a equipe clínica9 e da discordância dos mesmos com
algumas das atitudes dos psiquiatras na instituição, os agentes viram em mim uma
possibilidade de funcionar como interlocutora entre eles e a direção, e pareciam acreditar que
a minha pesquisa poderia ajudá-los de algum modo. Talvez pela receptividade, ou pela
confiança depositada, ou ainda pelo fato de ter ficado mobilizada com algumas das questões
que me foram trazidas, conversar com eles para mim era sempre enriquecedor e agradável.
Os agentes penitenciários vão representar a mão do Estado na aplicação das
sentenças, a sua ocupação é arriscada e estressante, podendo levar a distúrbios físicos e
psicológicos. Agentes penitenciários quando reconhecidos como tal, portam um estigma,
sofrem privação de bens e serviços, não tendo assistência médica e psicológica adequada, e
sofrem privação de segurança, sendo afligidos pelo medo fora dos muros da prisão.
(LOURENÇO, 2010). Foi possível no campo, encontrar concordância com estes achados de
Lourenço como veremos em seguida.
Num determinado dia do mês de fevereiro de 2011, final de tarde até as primeiras
horas da noite, eu e um grupo de agentes, sentados em cadeiras plásticas ou nos bancos fixos
9
Sobre este dado abordarei no item „Conflitos entre IFs‟.
75
do pátio do HCT/BA, desfrutando da brisa agradável do ambiente e da bela imagem de uma
luminosa lua, quase cheia, tivemos uma longa, proveitosa e agradável conversa. Trarei alguns
trechos desta conversa abaixo. Após a minha apresentação formal, disse-lhes que se possível,
gostaria de ouvir deles o que pensavam sobre a instituição e sobre a experiência do trabalho
por eles realizado. Demonstrando interesse, iniciou Áquila: “aqui já vi muita coisa boa e
muita coisa ruim”. Questionei o que era bom e ele disse: “bom os colegas e a direção”. “E o
ruim”? “Quando chove alaga tudo no pátio, na cozinha, no alojamento”.
Astrogildo já perto de se aposentar, trabalhou muitos anos em outra instituição penal.
Eu lhe perguntei sobre esta sua experiência comparada com a do HCT/BA:
- A cadeia fechada é diferente daqui, aqui é muito mais hospital do que cadeia. O
comportamento dos presos é diferente e o dos agentes também. Até 2000, por onde
eu passei, a vigilância era muito perversa, existia retaliação. Depois das religiões e
dos Direitos Humanos dentro das cadeias, o rigor na vigilância foi abandonado.
- Direitos Humanos, na cadeia, possibilitaram melhora ou piora para os agentes?
- Foi pior pro agente, dificultou nosso trabalho.
Interessante que para Astrogildo, os Direitos Humanos protegem o preso, não o
agente. Os colegas ao lado, participando da conversa, pareciam concordar a partir do gestual
corporal com a cabeça e com as expressões faciais.
Continuando com as dificuldades da profissão de agente, referiu Wilde:
Aqui tem usuário e traficante, é fácil entrar droga, a família traz. Nos dias dos
telefonemas eles ligam e jogam o pacote pelo muro, e o dinheiro também. Às vezes a
família já deixa a droga paga lá fora. Aí no fundo, em volta do muro, já é ponto de
droga, quem tiver dinheiro, compra.
Disse Francisco: “eu moro perto de uma boca de fumo e fui ameaçado. Quando saia
da cadeia e ia pro ponto de ônibus, ficava em pé esperando o ônibus junto com o bandido. Se
você vai num bar no seu bairro, você pensa que tá dentro da cadeia”.
Parece que o crescimento do tráfico de drogas na sociedade e a sua continuidade nas
instituições penais, correspondeu para o agente um acréscimo na dificuldade em sua
profissão. O fato do agente prisional geralmente fazer parte da mesma camada social do
traficante, ser reconhecido em seu bairro como tal, corresponderá a um risco.
Astrogildo que certamente foi „penalizado‟ com os Direitos Humanos, lhe gerando a
sua transferência para o HCT/BA, volta ao tema que muito lhe mobiliza: “os Direitos
Humanos dificultou o nosso trabalho. Se você for duro numa cadeia, eles vão ameaçar a sua
família; eles sabem de tudo da sua vida”.
Antonina iniciou outro assunto:
Aqui para mim, interno tem o que a lei dá, tem interna que quer fazer aqui o que
quer. Chamo pro café, não vem, tem que ter disciplina, ordem, norma, se é interna,
tem que cumprir, elas xingam, batem na porta do Posto de enfermagem, querem
76
água, suco, pensam que aqui é hotel. Não dou nada a interna, e também não quero
nada de interna.
Argumentou Ribas: “paciente que não aceitou lei lá fora, vai aceitar aqui? Muitos
chegam do interior não sabem nem que estão vindo pra cá, acham que estão vindo fazer
exame; quando chegam, é pra ficarem internados; eles piram”.
Astrogildo voltou ao tema dos Direitos Humanos, parecendo mortificado com o seu
destino, „vítima do sistema‟. Notei que ele estava mais adaptado à penitenciária do que ao
HCT/BA, e que a sua transferência certamente lhe afetou:
Direitos Humanos entrou só pro interno, não pra nós. Quando a gente tá na rua, por
nós, só Deus se tiver acordado. Na rua a gente não tá armado, eles tão armados. Na
nossa casa eles entram armados. O sistema vê a gente como violento, brutamontes,
não sabe que é o interno quem provoca isto. Nos bairros pobres, todos são violentos,
o problema é que falta educação e família.
Aniceto que está no HCT/BA em função de uma transferência por ter sido ameaçado
quando trabalhava na COP, comentou: “isto eu atribuo ao advento do crack, o crack é uma
droga desgraçada”. Continuou Astrogildo: “quando a estrutura de família acabou, entrou
maconha, crack, e onde vai arrebentar? Na cadeia”! Desabafou Aniceto: “a senhora me
desculpe, mas cadeia é pra negro, pobre e fudido”. Parece-me que nesta fala, Aniceto está
fazendo menção à população carcerária como sendo aquela menos favorecida da sociedade,
ao mesmo tempo em que emite sua crítica a respeito.
Pedi ao grupo que falassem suas sugestões. Colocou Aniceto: “maior integração entre
os funcionários, reciclagem, inclusive em termos de relações humanas; um projeto”. Disse
Antonina:
Na cadeia, o plantão falava a mesma linguagem. Se um diz não na portaria, eu digo
não também. Aqui não é assim, a revista me desgasta. Lá em cima, na cadeia
fechada, não entra maçã, luva, arroz cru, sapato salto plataforma assim como o da
senhora. Aqui deveria ter revista igual à cadeia. Aqui a gente toma uma atitude, vem
o diretor, o chefe de plantão, diz não. Para mim, a única diferença daqui para a cadeia
lá de cima, é que os presos não se organizam pra fazer rebelião. Aqui se a gente
manda tirar a calça, a família fica ofendida, mas a gente sabe que na bainha da calça
pode ter Rohypnol, no salto do sapato pode ter droga [...]. Na cadeia a gente pode ler
o prontuário do interno, aqui não, a gente não tem acesso ao prontuário, não sabe a
ficha do interno.
Antonina, acostumada há muitos anos no que ela chamou de „cadeia fechada‟, parece
não distinguir o detento do doente. Ela veio transferida por motivo de uma doença física, pois
o serviço no HCT/BA é considerado mais leve do que numa „cadeia fechada‟. Nas
entrelinhas de sua fala deixa transparecer a sua preferência pela cadeia, de certa forma, lá os
agentes têm autoridade na revista, o que não acontece no Hospital de Custódia e Tratamento
da Bahia, além do acesso aos prontuários criminais, que deve facilitar o trabalho do agente na
penitenciária.
77
Ribas complementou: “aqui a gente não sabe se o interno é doente, mas tem que tratar
todo mundo como doente. Na cadeia há rigidez com as visitas, aqui facilita muito. A maioria
não tem visita, é do interior, aí dá almoço da visita junto com o agente, gera conflito”.
A noite já se adiantava e eu fiquei mais um tempinho „jogando conversa fora‟ com os
agentes, curtindo o vento do pátio e a lua quase cheia, até que falei em tom de brincadeira:
“eu vou indo que eu não estou no plantão”. Ribas colocou: “a senhora devia ficar no plantão,
ficar por aqui conversando, foi muito bom, a gente troca idéia, desabafa10”. Perguntou
Astrogildo: “vai ter outra conversa”? Então eu disse: “espero que sim”.
6.1. Conflitos entre internos-funcionários
Observei a partir das narrativas que a comunicação entre internos-funcionários de
diferentes setores é escassa, e o serviço não ocorre, em geral, de modo colaborativo. Há entre
eles zonas de conflito, como por exemplo, entre agentes prisionais e o corpo médico e de
enfermagem, entre agentes e a administradora, entre o diretor da unidade e o chefe de
segurança, entre IFs da área administrativa. Coloco abaixo outros trechos da conversa que
tive com os agentes narrada anteriormente que se referem a este tema.
Aniceto narrou:
- No sistema penitenciário, a coluna cervical é o agente, aqui não, quem comanda é o
corpo médico. Na hora de botar um paciente numa determinada ala, eles não olham o
lado da segurança, olham o lado clínico. Na hora que dá um problema, chama o
agente. Agora, o único recurso que se tem para contenção, é a medicação, não pode
isolar, só pode fazer contenção mecânica se o médico mandar. Já houve um caso de
um paciente contido, ser assassinado à noite; com a contenção, o médico tirou a
possibilidade do paciente se defender. Se fosse o agente a decidir, ou transferia de ala,
ou colocava no isolamento; mas o médico não ouve o agente.
- Você pode me esclarecer melhor isso?
- Não tem espaço nem diálogo entre médico e agente, nem com agente e enfermeira.
Aqui existe choque de autoridade, profissionais que trabalham juntos não se unem
[...]. Isto aqui é hospital ou é presídio, quem comanda? Existe sempre um choque.
Comentou Astrogildo:
No sistema nunca ninguém pergunta ao agente se o detento está em condição de ter
benefício, mas nenhum médico tem condição de avaliar isso; ele faz o laudo e pronto,
mas é a gente quem vê o comportamento do interno no pátio, no refeitório. Se
houvesse uma integração, a gente teria condição de fazer uma avaliação melhor.
10
É possível notar aqui a semelhança com a fala de Arquimedes, IP, registrada na p. 56: “você conversar a respeito do caso
depois que passou é bom que a gente desabafa”, denotando a similitude entre IPs e IFs do HCT/BA quanto à necessidade de
serem escutados e de desabafar.
.
78
Disse Aniceto; “o negócio aqui tá sério, pode vir Ministério Público, Sindicância, não
muda nada, não consulta a segurança, não conversa, não pede opinião”.
Contou Ribas:
Aqui tem médico que faz questão de atender o paciente sozinho, esquece que ele é
preso. Antes a ala „A‟ era uma triagem, ficava lá por 15 a 30 dias pra ver depois para
que ala o paciente iria, agora separa pela doença. Pra gente, tinha que separar pelo
crime. Unidade prisional é faculdade do crime, você entra com um artigo, sai com
vários.
Segundo Lourenço (2010) os agentes penitenciários nunca, ou quase nunca, são
ouvidos sobre como a cadeia deveria funcionar, nem sobre o que deveria ser feito para que
ela funcionasse melhor. No HCT/BA, como instituição do sistema penal, é natural que as
coisas se passem do mesmo modo, há algo aqui que remete à cultura prisional.
Falou-me Antonina:
O que me estressa aqui é a revista, não pode entrar comida cozida, eu barrei, depois
lá dentro mandaram liberar. A gente como é que fica? Depois dizem aqui que a
maconha entra com a família, o que é que a gente tem que fazer mais? Tem outro aí
que tão deixando lavar carro, os carros tão perto do portão, qualquer hora ele sai, eles
dizem que é terapêutico, tudo bem, mas a segurança, quem vê?
Disse-me o médico Malaquias: “aqui tem um paciente11 que não faz crítica sobre os
crimes, mas ele tem laudo de esquizofrênico. Os agentes não concordam, acham que ele é
marginal, que não deveria estar aqui”.
No final de maio, num início de noite, novamente vejo alguns agentes sentados, em
uma área do pátio. Ao me verem passar, Astrogildo e Aniceto disseram: “sente-se aqui
doutora, vamos conversar um pouco”. Aquiesci ao convite, apesar do adiantado da hora e do
meu receio com o engarrafamento que pegaria ao sair dali. Astrogildo, Aniceto, Antonina,
que fumava um cigarro, Custódio e mais um agente que eu não conhecia, compunham o
grupo. Observei certa tensão no „ar‟ e perguntei a Aniceto:
- Aconteceu alguma coisa?
- Na hora da contagem, faltaram dois, aí é um problema, vem processo
administrativo, é um estresse. Mas a gente encontrou, estavam escondidos na TO
para depois fugirem.
- Eles fogem por onde?
- Pelo muro, basta subir um no ombro do outro que consegue.
Neste momento, falou Custódio: “aqui tem muita coisa errada, pode registrar aí. A
administração é incompetente, o chefe de segurança não se bate com a administração. A
segurança tem que ser reforçada, ela não entende. Complementou Aniceto: “é como eu disse
a senhora, aqui é hospital ou é prisão?”
11
Malaquias está se referindo à Aurino, IP da amostra central de pesquisa. Sobre ele, abordarei no item „Psicose e crime‟ do
capítulo VIII.
79
Já no mês de junho, em função de uma estadia demorada no Quarto-individual12,
Lemuel ameaçou suicidar-se se enforcando com um lençol. Telefonei para o diretor e ele me
disse: “eu fui a uma reunião na Secretaria, na hora que eu sair, aconteceu dele pegar o lençol.
Eu sair e tinha dito a ele que ele ia ser liberado, o chefe de segurança saiu e não liberou, ele
tem uma richa com o paciente [...]”. Nesta situação ficou clara que em algumas situações, o
chefe de segurança não respeitava a autoridade do diretor. Antes de terminar o meu trabalho
de campo, a chefia do setor de segurança foi trocada.
Numa determinada tarde em que estive na sala do serviço social em busca do
prontuário de um dos IPs da amostra, um IF do setor, que eu ainda não conhecia me disse:
- A senhora chegou aqui, deu boa tarde, disse quem era, pediu um prontuário, se for
outro lugar, a senhora diz logo que é psiquiatra, se não a senhora não vai pegar
prontuário nenhum. Tem uma funcionária aí, que vai criar problema pra senhora
pegar prontuário.
- É no arquivo? (Ele balança positivamente a cabeça). Nunca tive problemas em
pegar prontuários no arquivo.
- Então ela conhece a senhora, ou foi recomendada.
- É talvez.
6.2. Empreendedores morais, mas também internos: „aqui todo mundo é doido‟
Internos-funcionários do Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia na condição de
impositores de regras para uma população de desviantes, como é o caso dos IPs da instituição,
segundo a nomenclatura usada por Becker (2008) em seus estudos sobre a sociologia do
desvio, fazem parte da categoria de empreendedores morais. Empreendedores morais são
pessoas que ocupam posição de poder e autoridade, e cooperam no drama da moralidade pelo
qual a “transgressão” é descoberta e tratada (BECKER, 2008). Sendo assim, internosfuncionários não estão necessariamente, nesta perspectiva sociológica, a serviço do interesse
dos internos-pacientes.
Apesar da pertença à categoria de empreendedores morais no HCT/BA, os internosfuncionários sofrem com as mazelas da instituição, o seu eu é modificado, o que faz deles
também internos, como já foi dito anteriormente. Partindo de suas narrativas, observei os
seus sentimentos de impotência, frustração, adoecimento, desmotivação, apatia, cansaço.
Narraram-me os IFs: “eu falava baixo, hoje falo alto e falo demais, a minha maneira de ser
mudou com o trabalho aqui”, disse a assistente social Henrriete, “a gente aqui no trabalho, se
sente impotente, na maioria das vezes a gente bate com a cabeça na parede, é frustrante”,
complementou Modesta sua colega de setor, “aqui eu peguei uma gastrite e ainda estou com
12
Voltarei a este assunto no próximo capítulo.
80
ela até hoje, aqui eu quase surto com o sofrimento humano”, desabafou Narcisa, técnica de
enfermagem, “o maior problema é o cansaço da equipe, a desmotivação”, falou-me o
psiquiatra Gúbio. Ouvimos do seu colega Malaquias: “aqui só dá pra ficar até 10 anos, se
passar disso fica complicado, adoece, eu mesmo, não estou aguentando mais”. Disse-me
Aniceto, agente prisional: “a gente adoece aqui dentro”.
Levi, psiquiatra, na saída do seu plantão noturno, ao encontrar comigo no
estacionamento me disse: “o que você está fazendo aqui, veio visitar o inferno”? Após esta
abordagem, tivemos uma conversa rápida e Levi me narrou:
Quando eu vim pra cá, eu praticamente morava aqui, era um período duro, mas foi
muito rico, hoje tem um desencantamento, [...] falta o coração no bico da chuteira
[...]. Aqui tem um contágio, é devastador, isso afasta, não tem integração, contato;
antes tinha um movimento aglutinador, interessante, se discutia a perícia, mas isso
foi se perdendo; hoje há um desinteresse total, o médico também é vítima desta
situação.
Levi coloca o médico como uma das vítimas da instituição, e nesta condição se inclui.
Com os anos de trabalho no HCT/BA e com o desencantamento advindo da realidade da
instituição que minou os seus sonhos de jovem psiquiatra à medida que foi envelhecendo ali
dentro, vem sofrendo as dores do aprisionamento, segundo a abordagem de Sykes (1999),
dores estas que o campo de pesquisa nos mostrou, não serem „privilégio‟ apenas dos
internos-pacientes. Parece-me que Levi sofre de „privação de liberdade e de autonomia‟, já
que, apesar do Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia para ele simbolizar o „inferno‟, e
dele ali estar sem o „coração no bico da chuteira‟, ele na condição de psiquiatra competente,
com larga experiência em laudos psiquiátricos, por ser vítima do contágio, não foi capaz de
emitir para si mesmo o seu laudo de saída da instituição e aprisionou-se a ela, apesar de
insatisfeito, desmotivado, desencantado. Sobre o contágio, Goffman (1999) usa o termo
„exposição contaminadora‟ do tipo físico, e aquela resultante do contato interpessoal imposto
com companheiros desagradáveis, que ocorre nas instituições totais, contaminação esta,
perfeitamente pertinente no campo do HCT/BA.
Com a citação de Levi sobre a falta de integração e de contato, amplamente vista com
os IFs, não pude me furtar de ser remetida aos rituais de evitação de Goffman (1999) o que
preferirei abordar no capítulo seguinte. Apenas gostaria de dizer que novamente similar à
conduta de afastamento e evitação de contato, facilmente observável entre a maioria dos
internos-pacientes, internos-funcionários estão reproduzindo comportamentos similares. Não
81
é então sem procedência, a fala do técnico de enfermagem Tebas: “aqui é todo mundo
doido13.”
Sobre o trabalho em instituições penais e seus riscos, colocou Aniceto:
Essa adrenalina lá em cima, nas alas, causa doenças mentais, alcoolismo, ou outras
doenças. Agente penitenciário raramente aposenta; ele morre antes de três coisas: ou
corre maluco, ou de enfarte, ou de alcoolismo. Agente penitenciário é a segunda
profissão mais estressante do mundo. Agente tem até que mudar de endereço por
causa da profissão; muita pressão, trabalho estressante.
É interessante citar que há certa ambivalência na narrativa de alguns internosfuncionários, também similar à encontrada no discurso de internos-pacientes: “aqui eu adoeci,
mas é bom trabalhar aqui”, falou-me Henrriete, “aqui eu trabalho dois turnos, mas tem quem
trabalha um turno só e ganha salário igual, tem cargo, essas coisas [...] a máquina tá quebrada,
água é pouca [...] mas a gente aqui é uma família, aqui é o melhor lugar pra trabalhar dentro
do HCT”, disse-me Nicanor.
IFs como os IPs, lançam mão de táticas de adaptação (GOFFMAN, 1999) como
afastar-se emocionalmente da situação, mesmo com críticas à instituição, representar o papel
de que está satisfeito: “apesar de tudo, quero continuar trabalhando aqui”, nos disse Gúbio.
Ademais, às vezes IFs falam frases que se ditas por IPs, facilmente seriam rotuladas como
algum sintoma psicopatológico, como é o caso da frase do colega Levi: “aqui eu tinha uma
relação boa, de cooperação, mas isso era bombardeado, tinha uma mão invisível que detonava
a situação, aqui tem uma mão invisível, que não deixa que as coisas aconteçam”. Mão
invisível que bombardeia, poderia ser visto como uma frase de conteúdo aparentemente
persecutório, que deixa o seu autor sem saída, sem autonomia, mão esta que existia e ainda
existe, impossibilitando qualquer atividade do eu, deixando o sujeito sem ação.
Lembrei-me então de uma das colocações de Zaine em nossa entrevista: “às vezes
fico triste com situações que eu gostaria de mudar mais não consigo”. “Por exemplo”? “A
gente fez uma horta, mas acabou; eu não tenho quem dê suporte. Eu tenho um jornal, „Jornal
Realidade‟, mas não tenho quem supervisione e isso às vezes me frustra [...]”. Pensei eu com
meus botões, lembrando da fala de Levi e internamente brincando para descontrair com as
questões do campo: “será então a mão invisível”?
Capítulo VII – PERICULOSIDADE DOS INTERNOS-PACIENTES E O QUARTOINDIVIDUAL: „aqui eles matam e ainda dizem que fizeram oração pro morto‟
13
A semelhança desta fala com a do interno-paciente Arquimedes, “aqui quem não é doido fica doido”, citada nas p. 67 e 95
não nos parece mera coincidência, é pura expressão mais uma vez, da similitude entre internos-pacientes e internosfuncionários do HCT/BA.
82
Selecionei alguns trechos de narrativas de internos-funcionários, sobre o que pensam
a respeito do perfil e o modo de ser dos internos-pacientes do Hospital de Custódia e
Tratamento da Bahia. Colocou-me Ambrosina, enfermeira: “a clientela do HCT mudou, antes
existiam muitos crônicos, idosos, a maioria doentes, hoje os pacientes são mais jovens, tem
muito dependente químico e muitos destes, reincidentes. Também tem muita briga e agressão
entre eles, e abuso sexual”. Disseram-me os agentes prisionais Áquila e Astrogildo,
respectivamente: “o perfil dos presos do HCT mudou, antes tinha uns 500 internos, mas era
mais doente mental, hoje é mais lúcido envolvido com drogas”, “os presos tinham mais de
trinta anos, era difícil achar um preso juvenil, hoje em dia, a maioria é jovem; antes o preso
era matador ou ladrão de verdade, hoje é mais traficante e usuário de drogas”. Narcisa,
técnica de enfermagem, disse-me: “na ala „E‟ fica a elite. Os pacientes da ala „E‟ são mais
orientados, formam um poder paralelo, quando querem algo, tem que ser feito, caso contrário
ameaçam os técnicos; eles determinam quem fica na ala deles e quem não pode ficar”.
O tema periculosidade permeia toda a instituição Hospital de Custódia e Tratamento
da Bahia, ele é resultado da representação coletiva sobre o louco, como se pensa e se
representa a loucura em nossa sociedade. Ele é tratado de diversas formas, falado
explicitamente, ou percebido de modo velado. Toda a instituição funciona partindo do
princípio de que os que ali estão internados no lugar de pacientes e de presos, são indivíduos
perigosos e necessitam de medidas de controle sobre eles. Cabe principalmente aos agentes
prisionais, aos psiquiatras e aos internos-funcionários do setor de enfermagem, cumprir esta
função de controle social. No HCT/BA, parece que não é possível você estar tranquilo em
nenhum ambiente onde circulam os internos-pacientes, e precauções devem ser tomadas.
Vamos registrar a seguir as observações do campo.
Há uma grade trancada, que separa o Posto de enfermagem das alas do corredor das
mesmas. No início do meu trabalho de campo, no horário pós-almoço, me dirigi para o Posto
de enfermagem da ala masculina „C‟ e solicitei a uma técnica de enfermagem que abrisse a
grade para que eu pudesse entrar na ala e conversar com os internos-pacientes. Disse
Meliana: “a senhora tem certeza que quer entrar? Aí tem pacientes perigosos”. Disse-lhe que
tinha mais de 25 anos trabalhando como psiquiatra e que não tinha receio dos pacientes. Ela
então telefonou para a enfermeira de plantão, Ambrosina, que já me conhecia, pois já a havia
entrevistado, e a mesma autorizou a minha „ousadia‟ em romper uma regra institucional.
Meliana visivelmente apreensiva abriu a grade e me trancou na ala, juntamente com os
internos-pacientes. Ela permaneceu me observando de dentro do Posto durante certo tempo,
83
até que a minha familiaridade e desenvoltura com a „clientela‟ lhe possibilitou relaxar e
deixar-me à vontade com os IPs.
Seguindo o meu trabalho de campo, questionei ao grupo de agentes, se eles se sentiam
mais seguros na cadeia fechada ou no HCT/BA. Respondeu Aniceto:
- Aqui a gente está mais exposto.
- Como é isso?
- O interno numa cadeia fechada raciocina, mede as consequências, o daqui você
pode ser surpreendido com uma mudança de comportamento, os internos daqui são
mais perigosos, não avaliam a situação, agem por impulso. Auxiliares de
enfermagem já foram agredidos por internos, agentes também são agredidos. Eles
não têm noção de perigo nem de valor de vida, como ele se volta contra o colega de
cela, se volta contra o agente, o interno de cadeia sempre nega o crime, aqui não.
Complementou Ribas:
Aqui eles matam e ainda dizem que fizeram oração pro morto [...] aqui eles não
negam o crime. Às vezes tem briga, o paciente se nega a tomar remédio, ameaça o
funcionário, aí tem que transferir de ala. Alguns crimes daqui são mais bárbaros, tem
uma carga de energia; aqui quem está mais exposto é o agente e o auxiliar de
enfermagem. Aqui tem umas mortes estranhas, cavernosas; pode ser algum vírus, ou
alguma outra coisa [...]. Os pacientes falam com a gente, fulano me bateu e tá
abusando de mim. Aí o que fazer? Eles não podem saber que o paciente falou, se
não, tem retaliação, aí a gente dá um jeito de tirar o abusado da ala e não pune o
estuprador.
Goffman (2011) tratando dos rituais próprios da interação social, fala-nos dos rituais
de evitação, que especificam o que não deve ser feito numa interação, seja por deferência,
seja por auto-proteção. Observei no HCT/BA um ritual de deferência auto-protetora típico
dos internos-funcionários em relação aos internos-pacientes, quer seja em razão da
periculosidade, quer seja em função da higiene precária, ou pela pouca noção de limites por
parte de muitos deles, assim como os IPs vão estabelecer rituais similares entre si. No campo,
foi possível observar tanto a contaminação estudada por Goffman (1999), como os rituais de
auto-proteção ocorrendo de diversos modos e com diversos atores. A Instituição está sempre
promovendo as violações dos territórios do eu, e deixando em seus internos a impressão de
não estarem em segurança, já que não garante a integridade física dos mesmos.
Um agente prisional, Belarmino, me disse num dia em que lhe pedi pra chamar alguns
internos-pacientes para uma entrevista individual: “se a senhora vai conversar com um
interno dentro da sala, a senhora sabe que eu tenho que ficar dentro da sala para a sua
segurança”. Disse-me Ómifer: “a senhora deve evitar ao máximo o contato com eles”. Uma
técnica de enfermagem se dirigiu a um IP que lhe estendeu a mão no Posto de enfermagem
lhe dizendo: “você sabe que aqui não pego na mão de nenhum paciente”. Eu mesma,
identificada com os IFs esquivava o meu corpo ao encontrar no pátio um determinado IP com
visível retardo mental e higiene geralmente precária, que ao ver-me sempre insistia em alisar
84
os meus cabelos com as suas mãos. Também quando no pátio, sentada em um dos bancos
numa roda de conversa com IPs e algum deles chegava, destoando do grupo e se encostando
indevidamente em meu corpo, novamente esquivava-me por auto-proteção, temendo ser
„contaminada‟. Um dos IPs, Saturnino, ao presenciar o fato num determinado dia falou: “saia
rapaz, não fique encostando na doutora não”. Logo em seguida completava: “esse aí é doente
mesmo”!
Disse-me a enfermeira Ambrosina: “aqui quando tem confusão é briga entre eles,
agressão, abuso sexual”. Contou-me Henrriete: “o perfil dos pacientes mudou, tem muito
usuário de droga e traficante, eu não tinha medo, hoje eu tenho, eles ameaçam a clientela hoje
é mais perigosa”. No entanto, disse-me Sumatra: “o medo deles é só no primeiro dia, depois a
gente acostuma, mas não pode facilitar, a gente trabalha com vigilância”.
Narraram os internos-pacientes: “aqui é muita confusão, briga, essas coisas”,
colocou Arquimedes. Disse-me Teofrasto: “às vezes eu fico assustado, aqui já teve confusão
demais, os cara briga por bobagem, aí toma injeção. Eu fico afastado disso, não quero isso
pra mim”. Falou Libório: “aqui é muito difícil, fui agredido três vezes, na cadeia era mais
tranquilo; os pacientes são muito agressivos comigo, aqui não tem controle disciplinar rígido,
não tem castigo”. Falou-me Camargo: “aqui já é a quinta vez, Dra. Felícia manda eu pra cá,
mas eu não sou perigo pra sociedade não”.
Perguntei a Saturnino, que cometeu dois homicídios em diferentes ocasiões, se ele
achava que ainda poderia matar outra pessoa depois que fosse embora do HCT/BA. Ele então
me falou: “não, que a cadeia acabou com minha saúde”. Questionei a Libório, que assassinou
num mesmo dia três pessoas, há alguns anos, se ele se considerava agressivo. Ele disse:
- Não.
- Matar três pessoas não foi um ato agressivo?
- Foi um ato agressivo, mas foi pontual, eu não sou agressivo, aqui eu fui agredido
três vezes e não reagi.
- E você se acha perigoso?
- Não.
- E se você sair daqui e acontecer algo semelhante?
- Acho difícil acontecer de novo, se eu me manter compensado, não voltaria a
cometer esse ato.
Disse-me Arquimedes, que matou sua mãe com faca, pau, telhas e brasa: “eu não
gosto de violência, mas olha o que aconteceu as pessoas me vêem como perigoso, mas eu não
sou isso, gosto de ficar em paz no meu canto, sossegado [...]”.
Antes do movimento da Reforma psiquiátrica Brasileira, iniciada com o Projeto de Lei
do deputado Paulo Delgado em 1989, que propunha a regulamentação dos direitos da pessoa
com transtornos mentais e a extinção progressiva dos manicômios no país, resultando após 12
85
anos na Lei da Reforma Psiquiátrica, a Lei Federal 10.216 de 06 de abril de 2001, existiam
Quartos-fortes em cada ala do Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia. A partir da
Reforma, eles foram extintos, e os que restaram, passaram a ser chamados de Quartosindividuais (QIs).
Os Quartos-individuais servem como uma das medidas de controle social usadas na
instituição. Vão para os QIs os internos-pacientes que tentam fuga, que agridem outros
internos, sejam pacientes ou funcionários, ou que são pegos com drogas. Os Quartosindividuais funcionam no HCT/BA como „a prisão dentro da prisão‟, como colocou
Lemgruber (1999) referindo-se às celas de segurança das prisões; sobre eles, o campo revelou
diferentes posições.
Emitiu sua opinião sobre o QI, o psiquiatra Urbano:
Só mudou o nome de Quarto-forte para Quarto-individual, nunca vai deixar de existir,
é necessário, quando tem risco para o próprio paciente, para os outros ou para os
funcionários. O QI é benéfico para o paciente no caso de surto psicótico agudo. Aqui
já morreram enfermeiros e médicos agredidos pelos pacientes. Hoje a segurança é
melhor, o risco é menor.
Na minha primeira conversa no campo com os agentes prisionais, me disse Áquila:
- Antes tinha Quarto-forte nas alas, cada uma dois, o plantonista botava no Quartoforte quando tinha indisciplina. Hoje, depois do Ministério público, dos Direitos
Humanos e da Reforma Psiquiátrica, o Quarto-forte foi extinto, o Quarto-forte servia
para preservar a integridade física do interno.
- Mas aqui não tem o Quarto-individual?
- Mas não dorme lá não.
Ele me respondeu, naturalmente numa narrativa encobridora, tentando evitar que eu
visse os bastidores da instituição, como nos fala Goffman (2007). Apesar de saber que não
funcionava exatamente assim, calei-me em respeito à sua narrativa. Complementou Ribas,
também agente: “o dependente químico quando fica aqui uns três meses, começa a criar
problema com o doente, agride, manipula, em troca de um cigarro, um biscoito, quando tinha
Quarto-forte, a disciplina era melhor”.
O que disseram os internos-pacientes sobre o QI?
No dia 08 de fevereiro de 2011, pela manhã, sabendo que Saturnino estava no QI por
ter agredido alguns internos-pacientes na ala, me dirigi até o pátio interno, ao lado da janela
do QI em que se encontrava e chamei-lhe pelo nome. Ele apareceu por trás da grade, com
face de sono. Perguntei-lhe até quando ia ficar no QI e ele disse-me que até quando o diretor
lhe liberasse. Disse que no QI estava muito ruim e que não estava conseguindo dormir à
noite. Falou que estava lá para a sua proteção. Contou-me:
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Eu fui me defender, eram 12, eles tavam me devendo no dominó, ameacei um, no
outro dia vieram os 12, se não fosse o parceiro, eu tava morto, agora se eu sair do QI
vão me matar [...]. No QI é péssimo, é ruim demais, não tem televisão, é um quarto
com banheiro, pia, cama, não sai pra nada, só pra tomar sol no sábado ou domingo.
Na ala é melhor do que no QI, tem televisão, pessoa pra conversar, jogar dominó,
mais espaço pra andar e fazer exercício.
No início do mês de março, pedi a um agente que tirasse Saturnino do Quartoindividual para que tivéssemos uma entrevista em sala. Ele disse-me que não estava bem,
estava febril e com desânimo no corpo. Perguntei-lhe se gostaria de deixar a nossa conversa
para outro dia, ele falou que não, pois era bom conversar comigo. Perguntou por seu tênis 14,
quando eu iria lhe dar, e eu disse-lhe que este era assunto proibido, ele sorriu e eu iniciei a
entrevista:
- Como é que está sendo lá no QI?
- Se eu sair de lá, vão me matar, só tá ruim hoje que eu tô doente, mas eu já tô me
acostumando.
- Você fica lá o tempo todo?
- Só sai pro banho de sol no sábado e domingo.
- E você faz o que o dia todo no QI?
- Malho, desenho, ouço música, canto louvor a Deus pra mente não ficar vazia [...].
- Eu não tenho mais razão de viver não, se a gente se matar não fosse pro inferno
eu já tinha me matado.
- Por que você está falando assim agora, eu nunca lhe vi desse jeito?
- É a cadeia doutora.
Em junho de 2011, solicitei de um agente prisional que chamasse Aurino para uma
entrevista. O agente me informou que ele se encontrava no QI por haver tentado fugir. Fui até
o pátio interno ao lado do refeitório para tentar falar com Aurino. A antiga janela que existia
com uma grade externa, estava fechada com tijolos. Em cima da porta de ferro, havia uma
abertura de uns 25 cm. Chamei por Aurino, ele colocou a cabeça neste espaço em cima da
porta para falar comigo.
- Tem Amenophes e eu aqui dentro.
- Há quantos dias você está aí?
- Seis dias hoje.
- O que houve?
- Tentei fugir. Arranquei a barra de ferro da janela da ala „E‟ e tentamos fugir, mas
não deu certo.
- Aqui é ruim demais, quero ir pra ala. Aqui dentro dá vontade de me matar. A
senhora pode falar com o diretor pra me tirar daqui?
- Eu não trabalho aqui não Aurino, você sabe disso.
- Aqui a senhora é vice-diretora, fala com ele que ele me tira.
- Você já ficou no QI antes?
- Já, 03 vezes.
- O que houve com a janela daqui do QI?
- Eu quebrei com chunchu15 pra fugir.
- E você estava com chunchu aí dentro?
- Arranquei da porta, aqui tem chunchu em todo lugar.
- Eu prefiro ir pro QI da ala „E‟, Lemuel tá lá.
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15
Abordarei este aspecto no item „Pedidos, necessidades e queixas‟, do próximo capítulo.
Faca artesanal de presídio.
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Neste momento Amenophes colocou a cabeça no espaço em cima da porta e disse: “eu
não vou fugir mais não, é que eu tava muito tempo preso. Minha família não sabe que eu tô
preso aqui não, eu perdi o telefone [...]. Eu quero sair desse castigo, na ala tem televisão pra
assistir, aqui tô pensando besteira”.
Dirijo-me então para a ala „E‟, e encontro Calvário no isolamento dentro da ala e
Lemuel no QI. Narrou-me Calvário:
Tô aqui no isolamento da ala, eu fico aqui trancado, tem 21 dias, eu fiquei 10 dias no
QI lá de baixo, junto lá e cá, tem 21 dias. Acharam droga no quarto que eu durmo,
como eu sou viciado a suspeita veio pra cima de mim. Mas aqui é cadeia, a gente não
pode dizer não quero isso dentro do meu quarto. A gente deveria tá isolado quando a
gente corre risco de vida, não por este motivo.
No QI ao lado, encontrei Lemuel e ele me disse:
Tô aqui 11 dias no QI pegaram o rapaz lá fora com droga, mas não foi eu, aí botaram
a gente no QI. O rapaz quebrou a janela botaram a culpa em mim, ele arrombou a
janela e me chamou pra fugir. O agente me quebrou no pau, ele veio me interrogar
pra saber quem vende maconha aqui. Aqui não tem chuveiro pra tomar banho,
banheiro entupido, não pode nem defecar.
Após alguns dias, encontro-me no HCT/BA perto do refeitório, Lemuel ainda se
encontra no Quarto-individual, Calvário que estava no isolamento da ala „E‟, mas já havia
saído me disse: “doutora, Lemuel ainda tá preso no QI, ele não tá bem não, vá lá conversar
com ele”. Atendendo ao pedido de Calvário fui ao Quarto-individual da ala „E‟, ao encontro
de Lemuel, ao chegar vi um lençol amarrado na grade, Lemuel falou que ia se matar, e
visivelmente angustiado me disse: “tô quase um mês aqui doutora, não tô aguentando mais
não, não consigo viver num lugar desse, faça alguma coisa por mim doutora, eu não tô
aguentando mais não, não suporto mais, faça alguma coisa”. Diante da gravidade da situação,
não pude deixar de conversar com o diretor, intercedendo para a retirada de Lemuel do QI,
pude perceber que nesta situação específica, havia um conflito de poder entre o diretor e o
chefe de segurança, como registrado anteriormente, no item „Conflitos entre IFs‟. A partir
deste fato, Lemuel me agradecia sempre que me encontrava no pátio, ou me chamando de
„minha mãe‟, ou de „doutora‟.
Quarto-individual é então castigo, para fazer o internado lembrar-se de que o Hospital
de Custódia e Tratamento da Bahia, enquanto Instituição Total tem normas que não devem ser
desafiadas (GOFFMAN, 1999). Para Saturnino, além de castigo, o Quarto-individual
funcionou também como proteção para que não fosse morto por outros internos-pacientes.
Importante registrar que para Saturnino, Aurino, Amenophes e para Lemuel, estar no QI os
fez pensar em suicídio, talvez por significar „a prisão dentro da prisão‟, como já abordei
anteriormente.
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No entanto, nem todos pensam que o Quarto-individual é ruim ou um lugar
insuportável para se ficar, Libório que já ficou um período no QI quando chegou ao
HCT/BA, narrou-me: “o QI é melhor do que a ala, eu achava melhor, é silencioso, podia
dormir, lá eu lia, ouvia música. Na cadeia só não tive cela individual nos primeiros meses,
acho que Hospital de Custódia tinha que ter cela individual, pra não ter tanta ocorrência”.
Libório prefere se isolar, jamais vai ao pátio, permanece em seu leito na enfermaria, sentado
lendo, ou ouvindo música, ou deitado. Também não vai ao refeitório, faz as refeições na ala.
Parte deste comportamento se explica pelo conteúdo do seu delírio, com forte conteúdo
persecutório, para ele, estar no isolamento, é estar em segurança.
Capítulo VIII – INTERNOS-PACIENTES: vivências e sentidos
No HCT/BA, como vimos no capítulo V, encontrei as mazelas referentes tanto ao
hospício, quanto à prisão. Como as falas, as vivências dos internos-pacientes e os sentidos a
elas dados se entrelaçavam uns nos outros, difícil foi para nós estabelecer alguma
sistematização, o que só conseguimos em parte, separando alguns itens mais marcantes.
Amarante (2010) nos trouxe as funções do hospício segundo Esquirol:
a. Garantir a segurança do louco e de suas famílias;
b. Liberá-los das influências externas;
c. Vencer suas resistências pessoais;
d. Submetê-los a um regime médico;
e. Impor-lhes novos hábitos intelectuais e morais.
Ainda em Amarante (2010), encontrei a referência aos meios de „repressão permitidos
para obrigar os alienados à obediência‟, do Art. 32 do Estatuto do Hospício D. Pedro II de
04.12.1852:
a. Privação de visitas, passeios e quaisquer outros recreios;
b. Diminuição de alimentos, reclusão solitária, não excedendo a dois dias, cada vez
que for aplicada;
c. Colete de força, com reclusão ou sem ela;
d. Banhos de emborcação.
No HCT/BA, em 2011 não encontrei muitas mudanças, a partir da observação do
campo, se comparadas ao 1º Hospício do Brasil, o D. Pedro II:
a. Visitas com hora e dia marcados, sem saída e visita íntima, pouquíssimas
atividades ocupacionais e recreativas;
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b. Alimento regrado sem possibilidade de escolha;
c. Quarto-individual por tempo indeterminado em situações de fuga, agressividade ou
indisciplina, como vimos no capítulo VII;
d. Medicação injetável como medida de controle comportamental.
Logo, a psiquiatria pouco avançou na superação do modelo asilar do século XIX, faltanos o colete de força e o banho de emborcação, hoje apenas substituído pelo controle químico,
“se brigar a justiça vem na hora, a injeção, ou se conserta, ou piora logo”, disse-me Bartus.
Quando o tratamento superará a custódia, o controle social, a punição, para torna-se de fato
tratamento do sujeito que sofre e que precisa ser ouvido, respeitado, cuidado e por que não
dizer, ser incluído como integrante de nossa sociedade?
Na perspectiva de analisar a cultura da segregação e as mazelas geradas nos internospacientes do HCT/BA, lembro Goffman (1999) que fala sobre a mortificação do eu dos
internos de Instituições totais, dos mecanismos de adaptação como tentativa de preservação
do eu, assim como Lemgruber (1999) que trata sobre o baixo grau de solidariedade no
ambiente prisional, onde os interesses individuais estão sempre acima dos coletivos, tornando
a interação social dolorosa e aflitiva. A experiência de campo no Hospital de Custódia e
Tratamento da Bahia confirmou os achados destes autores como veremos a seguir.
8.1. Pedidos, necessidades e queixas
Estar numa instituição como o HCT/BA propicia uma série de limitações e de
dificuldades próprias das Instituições totais, no dizer de Goffman (1999). Ao longo da
pesquisa deparei-me com pedidos que dizem das necessidades dos internos-pacientes e de
algumas das privações por quais passam. Os pedidos surgiam na maioria das vezes, como o
ponto inicial de uma aproximação para uma conversa. Eles pediam dinheiro, „pacaia‟16, que
eu telefonasse para suas famílias, ou pediam objetos de uso pessoal, como Saturnino que
estava sempre a me pedir um tênis, ou Ithamar: “eu estou precisando do Almanaque abril
2011 pra melhorar meus conhecimentos, a professora falou, a senhora pode ver isso pra
mim”? Além de me solicitarem uma possível intervenção junto ao Ministério Público, ao
Diretor, ao advogado, ao Serviço Social, etc. Os IPs estavam sempre a perguntar quando iam
sair da instituição, queriam informações sobre sua situação legal. Bartus, sem saber ao certo o
seu destino, se ficar no HCT/BA ou um dia ir embora falou:
16
Fumo artesanal.
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Quando eu sair daqui vou me regenerar, vou trabalhar, arrumar uma namorada; eu
comprei a arma com medo de ladrão, pra proteger a família, depois não quis entregar
a arma por causa do dinheiro que eu investi. Agora, depois da justiça, não vou
conseguir um emprego de carteira assinada, meu estudo é pouco pra eu ter um
emprego fixo, mas agora também eu não tenho lugar pra ir, é melhor ficar aqui
mesmo, ou ir pra um abrigo.
Já em outra ocasião Bartus me perguntou: “quando é que eu vou sair daqui? Já tô aqui
há um tempo, ninguém me fala nada, aqui é tudo segredo”. Numa tarde, logo após o almoço,
do lado de dentro da grade da ala „A‟ e segurando na mesma, me disse com naturalidade,
demonstrando aceitação da sua condição, Mernephtah: “eu aqui sou „residente‟, já vim pra cá
11vezes”.
Pediu-me Arquimedes: “a senhora pode me ajudar pra eu me aposentar”? Em outra
ocasião pediu-me: “eu quero um emprego quando sair daqui, como é que a gente faz? A
senhora tem fazenda? Eu posso trabalhar no campo”. Disse-me Mernephtah: “doutora, eu não
almocei, tô com fome”. Pediu-me Teofrasto: “a senhora fala com o juiz pra diminuir minha
pena”? Pediu-me Seti: “bota meu nome aí no papel, pra ver se vem uma liberança, tô aqui há
um ano e seis meses”.
Os internos-pacientes faziam queixas sobre a qualidade da alimentação. Contou-me
Rochester: “a comida é muito ruim, o frango é só osso, e às vezes vem cru, a comida é sempre
a mesma coisa”. “A comida é péssima, pode provar pra ver”, disse-me Saturnino, “tem gente
aqui que não gosta nem de soja, nem de ovo, eu não como”, queixou Onorino.
Outras queixas também apareceram, disse-me Arquimedes: “eu preferia que me
soltassem e eu pagasse fazendo trabalho”. Falou Hilário: “minha família não liga”. Queixouse Calvário: “eu tô sofrendo aqui de todas as formas, aqui é muito triste, muito ruim, quero ir
pra minha casa”.
Sempre quando eu estava no pátio, cercada por internos-pacientes, questões sobre a
sua situação legal vinham à tona espontaneamente. Disse-me Lorisvaldo: “minha medida tá
vencida, tô esperando fazer o laudo”. Falou Ferdinando: “tô sem resposta do juiz, se quer me
julgar, me julga logo, quer me botar na rua, bota logo”. Queixou-se Libório: “meu laudo tá
demorando demais, tô aqui quase há 01ano, o laudo é pra tentar converter a pena em medida
de segurança, eu fico ansioso com a demora, quero saber meu diagnóstico”. Disse-me Aarão:
“já tem 03 meses que eu fiz o laudo, mas não sei o que foi que deu a senhora pode me dizer”?
Falou-me Rochester: “a gente fica aqui com a cadeia vencida e não solta a gente”.
Num outro dia, Bartus me fez uma interessante observação: “ninguém condena
ninguém, eu mesmo me condenei com a arma, com minha própria mão, agora eu tenho que
ficar aqui o tempo que o juiz determinar, mas também, se a gente não erra o juiz não
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trabalha”. Disse-me Domingas, na saída do refeitório: “minha pena eu já cumpri, preciso que
o juiz me tire daqui, tô aqui há um ano e oito meses, mas já fiz quatro e oito no presídio, tô
aqui por 155, pequenos roubos”.
Pude observar que os pedidos em sua maioria são de ordem pessoal, o que indica a
pouca solidariedade entre os IPs do HCT/BA. Situação diversa desta, eu só encontrei quando
Calvário pediu-me que fosse conversar com Lemuel no QI porque ele não estava bem, ou
quando Saturnino pediu a Hilário que deixasse Ferdinando falar porque ele precisava
desabafar17. As queixas coletivas referem-se à qualidade ruim da alimentação, à higiene
precária, principalmente na ala „A‟, à falta de lazer e atividade e à hora da tranca. Abaixo
coloquei uma tabela com os pedidos pessoais mais freqüentes encontrados em campo.
Tabela 14 - Pedidos pessoais mais frequentes dos IPs
Pedidos pessoais mais frequentes dos IPs
Aposentadoria
Emprego
Telefonar para a família
Objetos de uso pessoal
Pacaia
Dinheiro
Informações sobre sua situação legal
Interceder a seu favor junto às autoridades da justiça
para diminuição da pena
Interceder a seu favor para que seja feito o laudo de
sanidade mental
Informação sobre o resultado do laudo
Ir para casa
8.2. Atividade e trabalho
São poucas as possibilidades de atividade no HCT/BA como colocado no capítulo VI.
A organização e o modo de funcionamento das oficinas de terapia ocupacional, não
correspondem às necessidades dos IPs. Disse-me Saturnino: “aqui é uma cadeia, não tem
lazer. No Juliano18 a gente saia pra passear, aqui não sai não. Não tem tinta boa pra pintar,
pintei uns quadros aí, levaram tudo”. Colocou Ferdinando: “tô abatido, não tem atividade,
aqui não faço nada, só vou pra escola, a escola me dá um conforto”.
17
18
A situação de Lemuel foi falada no capítulo anterior, a de Ferdinando será narrada no item „Psicose e crime‟ deste capítulo.
Hospital Juliano Moreira em Salvador.
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Os IPs são convidados a irem para a „escola‟, mas para necessitam ser encaminhados
pelo diretor. Os que frequentam as aulas recebem merenda que vem da Secretaria de
educação, mas, mesmo assim, há um fraco interesse pela „escola‟. Disse-me Áulus: “aqui tem
escola, todo mundo pode ir, mas ninguém quer ir, não é todo dia que tem aula não”.
Importa-nos observar, o pedido dos internos-pacientes por atividade e trabalho,
denotando claramente que a atividade e o trabalho, amenizariam de algum modo as mazelas
por eles sofridas dentro da instituição. Disse-me Teofrasto: “aqui fico sem fazer nada, de vez
em quando brinco uma bolinha ou jogo dominó”.
Quanto ao trabalho, internos-pacientes podem trabalhar na barbearia, na lavanderia,
no refeitório, em média 10 IPs trabalham no HCT/BA. Para trabalharem na barbearia são
encaminhados pela psicóloga, posteriormente são avaliados pela terapeuta ocupacional. Em
algumas situações, chegam para o serviço por demanda espontânea, mas só iniciam o trabalho
depois de avaliados. Aqueles que trabalham na lavanderia ou refeitório são encaminhados
pela psicóloga, ou chegam também por demanda espontânea. Em todos os casos, só são
encaminhados para os serviços após liberação do diretor da unidade e do chefe de segurança.
Aqueles que trabalham em algum setor, não pegam fila no refeitório, recebem lanche
igual ao dos IFs e podem receber outros privilégios na instituição. Aqui, percebi o
ajustamento primário e as táticas de adaptação, como, por exemplo, a colonização, segundo
Goffman (1999); IPs que trabalham na instituição estão colonizados.
Contou-me Rubino: “alguns pacientes vêm trabalhar na lavanderia pra irem embora
logo”. Falou-me Perácio no refeitório: “eu sou prioridade, não pego fila, é por causa do
trabalho na lavanderia”. Já no final do campo, ao ver-me no pátio, chega um IP para me
mostrar uma escala de frequência dos IPs no futebol, feita por ele, disse-me: “me pediram pra
eu fazer isso e eu tô fazendo, todo mês vai pra Secretaria, aqui eu fico estimulando eles pro
futebol, mas a maioria não quer ir. Quando a gente trabalha aqui é bom que vai embora mais
cedo”.
Também é possível fazer algum comércio no HCT/BA e juntar algum dinheiro para
quando for embora, seja como tática de adaptação, seja como economia delinquente, de
acordo com Coelho (2005). Sobre este assunto, demonstrando compactuar com o comércio na
instituição, claramente fazendo concessões para os IPs em prol da ordem interna, segundo
Sykes (1999) disse-me Malaquias:
O chefe do arquivo guarda o dinheiro dos pacientes, tem um funcionário da
administração que compra as coisas para eles revenderem; quando pacientes vendem
coisas muito caras aqui, aí a gente não permite, também não permitimos funcionários
venderem coisas para os pacientes.
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O interno-paciente Arquimedes chamou esta sua prática comercial de „correria‟,
como aprendeu no presídio, sobre ela, nos narrou: “correria é um meio de ganhar dinheiro na
cadeia, a gente vende as coisas, com o dinheiro que ganha vai investindo, compra outras
coisas pra vender, correria também é pra gente não ficar quieto, parado”. Arquimedes quando
chegou na instituição, ganhou de outro interno-paciente, um pacote de fumo, fumou uma
parte e vendeu outra; com o dinheiro da venda foi „investindo‟, ou seja, comprou mais
„pacaia‟, balas, biscoitos e vendeu tendo lucro, segundo a sua própria explicação. Aonde
Arquimedes vai, dentro do HCT/BA, leva sua mercadoria numa sacola de tecido amarelo
recebida na instituição, que pendura no ombro. Perguntei como faz para guardar as suas
mercadorias e ele disse: “eu guardo tudo comigo, onde eu vou, eu levo, só não no banheiro,
mas ninguém pega não, se pegar, é „rato de cela‟, junta um monte pra bater”. Mas nem todos,
conseguem no HCT/BA, fazer „correria‟, disse-me Aurino: “pra mim, é um sufoco tá aqui, na
cadeia fazia meu „corre‟, ganhava dinheiro, aqui é só tomar remédio, comer e dormir”.
Quando lhe perguntei „corre‟ de que, respondeu: “droga, roupa, tudo”.
Contou-me Saturnino o que ele faz com o dinheiro que sua mãe lhe traz na ocasião da
visita: “compro suco, café”. Perguntei-lhe quem lhe vendia e ele falou: “os jovens internos,
eles trabalham pra bater bandeja, lavar cozinha, os copeiros dá e eles vendem”.
Num outro dia, falou-me Arquimedes: “eu aprendi a ter um pouco mais de paciência
aqui, de educação, também vou ficar atento pra procurar não errar mais”. Será que algo de
ressocialização vem se dando na experiência de Arquimedes no HCT/BA, ou ele usa destes
artifícios como mecanismo de defesa, apenas um meio de „esquecer‟ a sua real condição?
Como ele mesmo me falou um dia referindo-se ao seu trabalho na lavanderia: “trabalhar na
lavanderia é melhor pra mim, eu já fico destacado da multidão, a gente esquece um pouco da
cadeia”. „Destacado da multidão‟ pode significar manter-se indivíduo, manter-se pessoa,
sujeito com o seu eu de algum modo preservado. Ele teve uma atenção especial por parte de
uma das psicólogas da instituição, e também foi eleito por mim como um interno-paciente
„especial‟, talvez pela riqueza de sua história que me tocou logo em sua primeira narrativa;
além das seis entrevistas individuais formais que realizei com ele, nós conversamos tantas
vezes informalmente no pátio, na lavanderia ou na ala, que perdi a conta. Certo dia, como eu
estava com ele no pátio na hora da visita, um IP que não me conhecia lhe perguntou se eu era
sua parenta, ele então disse: “uma amiga”. Parece-me que „destacar-se da multidão‟ foi para
Arquimedes e tem sido o seu grande diferencial.
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8.3. Classificação dos internos-pacientes do HCT/BA: „aqui tem doido, lúcido, doente
mental, foco‟.
Os próprios internos-pacientes estabelecem uma interação pela doença, pois se
agrupam de acordo com a patologia e sua gravidade, assim interagem ou não, nos vários
espaços da instituição. Eles classificam-se entre si e muito do que falam sobre os doentes
mentais assemelha-se ao que a sociedade pensa e representa sobre os mesmos. Alguns, talvez
por mecanismo de defesa e de preservação do seu eu, buscam se diferenciar e separam quem
são os doentes, os „loucos‟, procurando se excluir desta classificação e se incluindo na
categoria dos „lúcidos‟. A ala „E‟ exemplifica um pouco desta classificação, e por que não
dizer, discriminação e estigmatização. Narrou-me Zelote: “na ala „E‟ a higiene é rigorosa, lá a
gente pega no pé, fala, se urinar no chão tem que jogar água. As outras alas são tudo
infectada, lá na ala „E‟ tem higiene pelo próprio interno, por que não tem funcionário não”.
Exemplifica também esta separação, a fala de Lemuel: “aqui fazem reunião com paciente, em
vez de chamar os lúcidos, chamam os doentes”.
Falou-me Áulus sorrindo: “aqui tem doido, lúcido, doente mental, foco, todo mundo
aqui tem um parafuso a menos”. Disse Anacleto: “menos eu, eu não quero atestado de doido
não, que eu não sou doido”. “E como é o doido”? Explicou-me Áulus: “doido é quem fala
coisa sem sentido, quem quer fugir pelo portão”. Complementou Anacleto:
- Precisa saber se a mente tá boa ou não, no falar da pessoa a gente descobre que é
doido; no falar, no sentar, no ficar nu, tem uns que toma remédio demais e fica
babando. Quer ver aquele ali, vou mostrar pra senhora.
Anacleto chamou outro interno-paciente e perguntou:
- Por que você está aqui?
- Por causa de uma caixa de fósforo e um cigarro.
- Tá vendo doutora, esse é doido! (Todos riram).
Eliezer, participando da conversa, perguntou a outro IP que se aproximou: “você
matou, roubou, estuprou, é pedófilo”? Completou então: “aí, esse nem responde”!
Disse-me Bartus, num bate-papo no pátio: “eu ouço voz dizendo que eu vou morrer,
minha doença é anêmico, tô babando, engolindo saliva, é o remédio”. Disse-me numa outra
conversa, já denotando a sua crítica sobre o seu adoecimento, após alguma melhora do seu
estado psíquico:
Eu dei um tiro, quase matava um menino, eu tava agoniado, a doutora mandou eu vim
pra cá pra saber se eu sou doido ou são, mas eu não sou doido não. Eu não sei como
eu fiz isso não, o menino era pequeno, eu tava em agonia, aí as pessoas diziam que eu
tava endemoniado, eu disse que eu ia matar o diabo, que viagem [...].
8.4. Custódia e tratamento: „aqui quem não é doido, fica doido‟
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A fala que dá título a este item é de Arquimedes: “aqui mistura os doido e os são,
quem não é doido, fica doido”, ela traduz em si o papel enlouquecedor da Instituição Hospício
e Prisão, aqui representada pelo HCT/BA alvo do nosso estudo, além de apontar para a
contaminação por contato interpessoal imposto, no dizer de Goffman (1999). Outros aspectos
da custódia e do tratamento como interação social dolorosa, lembrando as dores do
aprisionamento de Sykes (1999), como ausência de privacidade e privação de segurança,
falaram os IPs: “aqui a gente não tem privacidade”, falou Chamus, quase que copiando o
título da tese de Almeida (2011), “Sem lugar pra correr nem se esconder: um estudo de
vitimização no sistema penal baiano”, a fala de Arquimedes claramente expressou a ausência
de segurança e a identidade de prisão do HCT/BA: “esse lugar é muito ruim de ficar, não é só
porque a gente tá preso, a gente corre muito risco, lá fora também tem risco, mas o problema é
que aqui não tem pra onde correr”. Ainda me disse Saturnino: “eu já tô enjoado de salsicha,
galinha, calabresa, melão, melancia, o mingau não vale nada”.
Como a maioria dos internos-pacientes, antes de virem para o HCT/BA passaram por
cadeias ou penitenciárias, perguntei-lhes sobre as suas vivências nestas diferentes unidades
prisionais. Disse-me Bartus: “aqui é melhor que presídio, as pessoas vive em tratamento”.
Disse-me Aurino, como sempre espirituoso: “aqui tá bom, só não tá porque tô preso, ninguém
acostuma com cadeia, caleja”. Um dia perguntei à Savim no pátio, se ele estava bem: “quem
fica bem num lugar deste, lugar de doido, um rango miserável, os médicos bota remédio só
pra dormir, eu acho presídio melhor, no presídio tá preso, mas tem trabalho, aqui não, é só
remédio”. Ouvi de Mernephtah: “na cadeia eu tinha visita de meus parentes, aqui é longe”.
Disse-me Eliezer, „bandejeiro‟ do refeitório: “a cadeia é melhor, por causa da comida, no
presídio também tem visita íntima, aqui não tem”.
A grande maioria dos internos-pacientes não fazia tratamento psiquiátrico regular
antes de vir pro HCT/BA, ou não faziam tratamento algum. Contou-me Bartus: “eu nunca
tinha tomado remédio não, eu não acreditava que existia doido”. Contou-me Lemuel: “os
psiquiatras daqui são bons, mas é uma raridade a gente vê o psiquiatra”, Ariel disse: “o
tratamento aqui é tomar medicação na hora certa, dormir cedo e se alimentar direito”.
Savim explicou-me: “tratamento aqui é só remédio, de vez em quando chama a gente lá
dentro na psicóloga, o doutor me pergunta se eu tô bem, aperta minha mão, aí anota a minha
ficha, pronto, acabou a consulta; na assistente social nunca fui”. Aarão numa tarde quando
estávamos no pátio me disse:
Eu peço pra falar com a assistente social, mas não me levam, a relação já vem lá de
dentro. Como é que eu fico aqui sem saber de nada? A gente fica ansioso,
96
perturbado, aí adoece mais. Se me disser o tempo que eu tenho que ficar aqui, eu fico
calmo, porque aí a gente já sabe.
Disse-me Zelote: “tinham que cuidar melhor do interno, eu tenho problema de
pulmão, tosse, tenho que fazer Raio X do pulmão, não faz, não me dá xarope pra beber, aqui
nós somo jogado as traças, rato, barata, tudo, pode escrever aí no jornal”. Bartus num
encontro comigo no pátio desabafou: “eu quero ficar aqui até morrer, não tem problema não,
tão me tratando bem, minha mãe não quer mais eu em casa não, eu tava na rua. Eu nasci no
dia de hoje, mas não sei a data não”.
Registro na tabela abaixo as características mais citadas sobre a custódia no HCT/BA:
Tabela 15 – Custódia no HCT/BA
Custódia no HCT/BA
A comida é ruim
Não tem privacidade
Corre risco
O lugar é de doido
Não tem trabalho
Fica longe dos parentes
Não tem visita íntima
Tem pouca informação sobre a sua
situação legal
Sofre descuidado
Tratamento é só medicamento na
hora certa, dormir cedo e se
alimentar direito
Mas não são só queixas nem mazelas, há também coisas boas segundo os internospacientes. Disse-me Teofrasto: “aqui é bom, agente trata a gente bem, as enfermeiras
também; tomo remédio, café, mingau, eu fumo um cigarrinho que me dão porque eu não
tenho dinheiro pra comprar, aí vou levando a vida. Aqui é bom, a gente já acostumou, mas
bom mesmo é em casa”. Libório me disse: “com o tempo na cadeia e aqui, eu amadureci”.
Contou-me Perácio: “depois que eu sair da penitenciária e vim pra cá, melhorou, até minha
doença não sinto como antes, as vozes quando vem é bem longe; meu relacionamento aqui
com todos é muito bom”. Disse-me Aarão: “a vida aqui tá tranquila, ruim é que meus
familiares não vieram me visitar por causa das condições que eles não têm”.
8.5. Psicose e crime: „tenho loucura de mandar matar ou morrer‟
97
Neste item, trouxe trechos das narrativas dos oito IPs da amostra central desta
pesquisa, do sexo masculino, psicóticos e homicidas. Optei por separar as falas de cada ator,
fazendo comentários sobre as mesmas paralelos às narrativas, muitas vezes permitindo que a
leitura psiquiátrica complementasse a sociológica. Acrescentei um breve comentário
complementar e finalizei com uma síntese sobre os aspectos mais relevantes encontrados nas
entrevistas, na tentativa de „juntar as peças‟ para dar as mesmas, um sentido.
Narrativas de Saturnino
Saturnino é procedente do interior da Bahia, solteiro, negro, estudou o 1º grau
incompleto, matou seu cunhado e tempos depois outro homem. Saturnino compareceu no
Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia pela 1ª vez em dezembro de 2003 para submeterse a exame de sanidade mental, em março de 2008, foi internado para novo exame, obtendo
alta hospitalar em julho de 2008 e retornando à Comarca de origem. Em outubro de 2008, foi
novamente internado no HCT/BA para exame de sanidade mental, obtendo alta em junho de
2009, retornando ao complexo penal de origem. Em outubro de 2009, foi re-internado para
submeter-se a tratamento, por ordem judicial. Em maio de 2010 obteve alta e retornou ao
presídio de origem. Em julho de 2010, volta ao HCT/BA, re-internado para submeter-se à
tratamento. Saturnino ainda não foi julgado em função do seu último crime, e não há
determinação judicial para medida de segurança.
No meu primeiro dia de campo, em 06.09.2010, quando da minha visita ao pátio do
HCT/BA, encontrei Saturnino. Já nos conhecíamos do Hospital Juliano Moreira, quando eu lá
estava trabalhando como coordenadora da internação no ano de 2006, e Saturnino encontravase internado para tratamento por ordem judicial, algum tempo depois de ter cometido o seu 1º
homicídio. Em função talvez deste conhecimento prévio, Saturnino ao ver-me e
reconhecendo-me, aproximou-se sem ressalvas e ao saber o que eu estava ali fazendo, de
pronto se ofereceu para participar da pesquisa. Conversar com ele foi sempre muito
enriquecedor e agradável.
No dia 09.09.2010, fui para o HCT/BA à tarde, no horário em que os internospacientes estavam nas alas. Dentro da ala „C‟, encontrei Saturnino, e no meio da conversa em
grupo, no corredor da ala, ele falou espontaneamente:
- Eu saio do mundo normal e entro no mundo sobrenatural, vou contar logo pra
senhora. Existe três tipos de mundo: mundo espiritual, mundo normal, que é esse
aqui, e mundo sobrenatural. O mundo sobrenatural divide em duas partes, o lado
bem, o lado mal. Eu fui pregador da Assembléia de Deus, fiz um ano de teologia e
98
um ano de filosofia. Eu parei de pregar que a „Pomba gira‟19 me pegou, me
desgraçou, aí cometi homicídio.
- Meu cunhado tava espancando minha irmã, aí matei o cara com18 tiros. Passei 01
ano em liberdade e 01 ano na Lemos de Brito, lá começou meu dilema, eu tava na
dor, no sofrimento, voltei pra Jesus. Uma bela noite, o Espírito Santo me visitou, o
meu protetor, Ele é onisciente, onipresente, onipotente, aí criei dois jogos do amor e
da liberdade ao preso. Numa noite eu vi dois olhos cor de ouro, olhando meu olho, era
um olho que tinha vida, quando se materializou era um anjo serafim, eu já tinha
sentido a presença de Deus, do Espírito Santo, não tinha sentido do anjo, quando vi,
o anjo tava com uma espada, na espada tava escrito meu nome, quando eu fui pegar
a espada, ele jogou, saiu sangue, aí o anjo me tocou e eu senti a presença do anjo.
Hoje eu sei quando a voz que eu escuto é Espírito, é sobrenatural, ou é a voz do
problema mental.
Neste trecho Saturnino aponta dois motivos para ter assassinado o seu cunhado: a
Pomba gira lhe pegou e também porque seu cunhado espancou a sua irmã. Ele diz reconhecer
quando a voz é de um Espírito ou quando a voz é de sua doença. Seu discurso permeia entre o
Bem e Mal, ele foi pego pela Pomba gira e tem o Espírito Santo como seu protetor. Saturnino
assume sua doença mental, não tem dúvidas de sua existência, mas também tem vivências que
atribui ao mundo sobrenatural. Do ponto de vista psiquiátrico, Saturnino tem alucinações
visuais, „quando vi o anjo tava com uma espada‟ e auditivas, „ a voz do problema mental‟.
No início de fevereiro de 2011, Saturnino foi para o QI por ter tentado furar com
chunchu outros internos-pacientes do HCT/BA. Pedi a um dos agentes que tirasse Saturnino
de lá para que tivéssemos uma entrevista individual em sala, o que ele fez, após autorização
do diretor da unidade. Informei ao agente que já conhecia Saturnino do Hospital Juliano
Moreira e que ele poderia nos deixar a sós, ao que ele aquiesceu. Como em outra ocasião já
havia me narrado o motivo pelo qual foi para o QI (vide narrativa a respeito no capítulo VII),
perguntei-lhe se na ocasião em que agrediu os outros IPs estava ouvindo vozes, ele disse:
- A voz diz que eu sou pregador do Espírito Santo. Tem o mundo normal, esse
mundo aqui que a gente nasce e morre, o sobrenatural se divide entre o bem e o mal.
O Espírito Santo no verbo é Deus. O homem tem três partes: corpo, que é pó, alma é
imortal, Espírito, intelecto de acordo com a massa encefálica. Corpo, olhos, dente, vai
pra terra e a terra come, vira pó. O problema da voz é espiritual.
- E as pessoas que você matou como foi?
- Eu matei dois e aleijei dois. Na minha adolescência dei um tiro de 12 na coluna de
cada um. O meu amigo pegou a mulher de um pistoleiro, ele disse que ia matar meu
amigo, aí resolvi matar ele. Os dois era pistoleiro, meu amigo aleijou um, eu aleijei
dois.
- E você foi preso nesta ocasião?
- Fui pra um lugar pra menor infrator. Fiquei 09 meses, meu irmão gastou cinquenta
mil e me tirou.
- E depois daí?
19
Entidade confundida erroneamente com o diabo, a Pomba gira é um Exu feminino muito cultuado nas religiões afrobrasileiras que desempenha várias funções. É mensageira dos orixás. Quando fazemos um pedido aos deuses, são as Pomba
giras que “traduzem” essas mensagens (http://www.raizesespirituais.com.br/Pombagira-exu-femea).
99
- Voltei a estudar. Dos 16 aos 19 me tornei pregador da palavra de Deus. Jesus me
chamou, eu resolvi aceitar Jesus e pregar.
- Como é isso de tentar matar e depois aceitar Jesus e pregar?
- Se você matou mil, ou matou uma galinha, mas se arrependeu, Deus perdoa.
Mas depois que eu matei meu cunhado, desisti da religião [...].
Saturnino, vinculado à Assembléia de Deus, volta ao seu discurso religioso. A voz,
que é para ele um problema espiritual, lhe diz que ele vai ser pregador do futuro. Iniciou seu
currículo criminal na adolescência cometendo duas tentativas de homicídio para defender um
amigo. Ficou numa instituição para menor infrator e saindo dela, dos 16 aos 19 anos, foi ser
pregador da palavra de Deus.
Parece-me sob uma leitura psiquiátrica que o seu envolvimento religioso de forma
pouco coerente, já denotava, desde sua adolescência, o início do seu adoecimento mental.
Apesar de envolvido com a religião, sua crítica sobre seus atos é prejudicada, afinal, para ele,
matar mil pessoas ou matar uma galinha, dá no mesmo, desde que haja arrependimento .
Deixei Saturnino seguir com a sua narrativa e depois de um tempo questionei:
- Quando você matou seu cunhado você já estava doente?
- Eu acho que já estava doente da cabeça, mas não sabia.
- Qual a sua doença Saturnino?
- Esquizofrenia, F.2020. Ouço voz, vejo visão.
- Quando você matou seu cunhado você foi preso?
- Fui pra Lemos de Brito21. Fiquei um ano ouvindo voz, de normal e sobrenatural.
- E depois da Lemos de Brito?
- Fui pra casa na condicional, não fui julgado.
- Cheguei em casa venderam minha moto e minha barraca de lanche, eu comecei a
quebrar tudo em casa, ouvindo voz, louco, louco, dizendo que eu era o pregador
da Bahia. Aí minha irmã me levou pro Juliano Moreira, fiz lá 06 anos por ordem do
juiz. Minha família tinha dinheiro na época e eu não vim pra cá [...].
- E depois que você saiu do Juliano?
- Matei outro cara. Ele bateu em minha mãe por causa do meu cartão de benefício.
Aí peguei uma barra de ferro, parti a cabeça dele, saiu o cérebro. Furei o
coração; tenho disposição pro mal e pro bem. Aí tomei uma moto de assalto, fugi
e me pegaram. Ele era estuprador e já tinha matado um delegado. Me prenderam,
fiquei na cadeia lá no interior, depois vim pra cá. Já tô aqui 03 anos e 03 meses, só
agora que deu esse problema de ficar no QI [...].
Saturnino diz que sua doença é F.20, pois escuta voz e tem visão. Aparece nesse
trecho o seu descontrole de impulso, expressado pela sua ação de quebrar tudo em casa, ele
reconhece que nesta ocasião estava louco. Levantou um dado interessante, pois, no seu modo
de ver, só se é interno no HCT/BA quando não se tem dinheiro. Trouxe também um motivo
para o seu segundo homicídio, defender a sua mãe.
Chegou o mês de março de 2011. Saturnino ainda se encontrava no QI. Pedi a um
agente que fosse buscá-lo para uma nova entrevista em sala. O agente deixou-nos sozinhos,
20
21
Código da CID – 10 para esquizofrenia.
Penitenciária Lemos de Brito.
100
Saturnino estava adoentado, febril, mas mesmo assim quis fazer a entrevista. (O início desta
narrativa está registrado no capítulo anterior).
- [...] Você já está com medida22?
- Não saiu ainda.
- Sua mãe tem vindo lhe visitar?
- Ontem ela veio e trouxe merenda [...] isso que a senhora escreve depois passa a
limpo tudo é?
- É. Eu escrevo muito rápido, em casa tenho que organizar.
- E sua irmã, o que ela achou quando você matou seu cunhado?
- No começo ela me deu razão, depois me abandonou. Aqui ela nunca veio me ver,
em 2008 disse que vinha, não veio [...].
- Sua família entende que o seu problema é uma doença?
- Entende.
- Você está cansado, quer parar?
- Não, o papo tá agradável, tô até me sentindo melhor.
- E seus outros irmãos não vêm lhe ver?
- Tem dois que vem de mês em mês.
- E sua mãe?
- De mês em mês também.
- Quem recebe seu benefício?
- Minha mãe.
- Ela lhe dá dinheiro?
- Dá. Ela traz roupa, relógio, tênis [...].
- Pra você aqui é um hospital?
- Aqui é cadeia, hospital é o Juliano Moreira.
No mês de maio, pedi a um agente que me trouxesse Saturnino para uma nova
entrevista em sala. Ele já havia saído do QI, mas eu não o estava vendo circulando no pátio,
motivo pelo qual já há um tempo, não conversávamos. Quando ele chegou, lhe falei:
- Você anda sumido.
- Tô mais na ala, não tô confiando de ir no pátio não [...].
- E as vozes?
- As vozes não quer me deixar em paz.
- O que dizem as vozes?
- Voz diz que eu sou pregador do futuro, é voz de criança, de menino, de adulto, de
velho, de pastor, de juíza [...].
- Eu queria mesmo é voltar pro Juliano Moreira, a senhora não tem como vê isso
pra mim não?
- Não posso, pois é o juiz quem determina onde você deve ficar.
- A gente pode encerrar nossa conversa agora? Eu quero ir falar com a assistente
social.
- Está bem.
Parece que Saturnino ainda achava que corria risco de ser agredido, motivo pelo qual
estava evitando circular no pátio. Ele quer voltar para o Hospital Juliano Moreira e pede-me
que interceda a respeito. No Juliano esteve internado por 06 anos, lá para ele é um hospital, o
HCT/BA, uma cadeia. Saturnino aproveitou que estava comigo na área administrativa e
pediu-me para ir falar com a assistente social, o que aquiesci sem problemas, pois já sabia da
dificuldade que era para um IP conseguir este acesso.
22
Medida de segurança.
101
No mês de junho, encontrei Saturnino no pátio e fui com ele até uma sala na área
administrativa, para nova entrevista. Aniceto, agente prisional nos acompanhou, mas ficou do
lado de fora. Disse-me:
- Eu não tenho mais razão de viver, se a gente se matar não fosse pro inferno, eu
já tinha me matado, parece que a cadeia deixa a gente mais doente ainda [...] por que
eu não sou curado das vozes?
- Você está tomando os remédios?
- Geodon, haldol, amplictil. Falei com Dr. Gúbio do meu remédio, ele disse que o
médico era ele.
- Se minha mãe não vem, escuto vozes. Ouço meu irmão apanhando, ouço dizendo
que sou pregador do futuro.
- Minha vida não tem mais sentido. Penso em fazer besteira, já tentei cortar meu
pulso, tiraram, peguei um lençol pra me enforcar e tiraram; a cadeia acaba com a
gente doutora.
Saturnino está cansado da „cadeia‟, pensa em se matar, não o faz por medo do inferno.
Sua vida não tem mais sentido, a cadeia acabou com ele. Claro está nesta narrativa, o
sofrimento de se sentir preso, Saturnino perdeu a alegria, sente-se mortificado (GOFFMAN,
1999).
- Vou contar uma coisa pra senhora, mas não conte pra ninguém não, a senhora tá
sendo pra mim como uma psicóloga. Quando eu matei esse rapaz, o último, eu tava
usando crack e não tava tomando remédio. Eu não posso usar droga nenhuma
que eu escuto vozes e faço bobagem, me descontrolo, fico agressivo, é maconha,
cocaína, crack, qualquer coisa; agora eu tô viciado na porcaria desse cigarro aqui
(pacaia), tem um cheiro horrível, até tenho nojo de mim.
- Eu perdi meu caminho, eu ia ser ganhador de almas, agora com essa doença, não
dá mais não.
- E o que foi que houve pra você perder seu caminho?
- Mulher, mulher foi que desgraçou minha vida.
- A senhora quer fazer alguma pergunta? Pode fazer que eu respondo, naquele dia eu
não pude conversar mais com a senhora, eu aproveitei pra ligar pra minha mãe. A
senhora ficou zangada?
- De forma alguma, eu compreendi.
- A senhora já estudou muito não foi?
- Foi.
- Pode anotar o que a senhora quiser.
- Por hoje está bem, está quase na hora da janta. Vou chamar Aniceto pra ele lhe
levar.
Neste trecho da narrativa de Saturnino, se confirma os achados de Hodgins e Janson
(2002) quanto ao uso de drogas como fator de risco para o crime, em portador de transtorno
mental maior. Parece-me que as drogas juntamente com a doença mental contribuíram para
que Saturnino cometesse homicídio, perdesse o seu caminho de um dia vir a ser „ganhador de
almas‟.
Numa determinada manhã do mês de julho, Saturnino estava sentado comigo em um
dos bancos do pátio, e falou: “que dia eu vou pra minha casa? Que dia eu vou passar por
aquele portão? Eu tô aqui carregando um saco de cimento nas costas”. Repete-se aqui o
discurso de sofrimento e mortificação do eu em função de sua longa estadia na instituição.
102
No início de agosto, eu estava no pátio, no horário do café da manhã, procurei uma
sombra e sentei-me num banco, pensativa. Sabia que estava terminando o meu trabalho de
campo. Eu me sentia tão vinculada ao HCT/BA e principalmente aos internos-pacientes, que
havia um pouco de pesar em meu coração. Ali fiquei refletindo, aguardando a grade abrir e o
pátio ficar repleto dos moradores temporários ou permanentes daquela instituição. Logo eles
foram chegando, Saturnino se aproximou bem disposto:
- Saturnino, eu já estou terminando minha pesquisa.
- A senhora vai trazer meu tênis?
- Já lhe disse que não, já conversamos sobre isso [...] se eu for dar alguma coisa aqui a
algum paciente, há de ser para algum que não tem recursos e não recebe visita da
família. Você que queria ser pastor, não seria isso o mais correto?
- É, a senhora é inteligente.
- Como é que está sendo seu tratamento aqui?
- Eu falo pro psiquiatra a medicação que eu me dou bem, mas ele diz que ele é que
entende de medicação, acho isso errado [...].
Fiquei refletindo sobre qual será o destino de Saturnino. Ficará ele até quando em
tratamento no HCT/BA? Ele já está na Instituição há mais de 01 ano, o juiz não lhe permite
sair de alta e não solicita um laudo de sanidade mental para definir se ele deve cumprir
medida de segurança, ou cumprir pena em penitenciária. Será que o juiz pretende deixá-lo no
HCT/BA para tratamento por 06 anos ou mais, como fez quando esteve no Hospital Juliano
Moreira? Será a „cadeia‟ de Saturnino perpétua?
Narrativas de Arquimedes
Procedente do interior da Bahia, solteiro, pardo, 31 anos, pedreiro, estudou até a 3ª
série do ensino fundamental. Foi internado no Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia em
dezembro de 2009 para realizar exame de sanidade mental, referente ao crime ocorrido no
mesmo mês. Obteve alta hospitalar em maio de 2010 sendo transferido para a Comarca de
origem. Em fevereiro de 2011, é novamente internado no HCT/BA para cumprir medida de
segurança. Consta em seu prontuário criminal:
[...] Assassinou sua mãe por volta de 1 hora da madrugada, a golpe de faca, pau e
pedaços de telhas [...]. Invadiu a casa de sua genitora pelo telhado, lá discutiu com sua
mãe, desferindo um golpe com uma pedra na cabeça da mesma, e logo em seguida
desferiu golpes de faca [...] cruelmente, com socos, pontapés, pauladas, facadas e
golpes com uma brasa, o denunciado agrediu sua mãe causando-lhe intenso
sofrimento e por fim, a morte [...].
Tive o primeiro contato com Arquimedes em 10 de março de 2011, no turno da
manhã, quando estive conversando com os IFs da lavanderia e rouparia. Na sala ao lado da
rouparia, depois de minha conversa com a IF Alcione, e de lhe pedir autorização para retirar
um IP do serviço para uma conversa, encontrei 04 deles dobrando peças de roupas lavadas.
103
Após me apresentar, perguntei se algum deles se disponibilizaria a conversar comigo.
Arquimedes disse: “tá bom, então vamos conversar”. Ali mesmo, de pé, próximo aos outros
IPs, ele começou a falar. Depois de me dizer como foi para a lavanderia e de falar o que
pensava sobre o HCT/BA, já citado anteriormente em outros itens deste texto, perguntei-lhe
por que estava naquela instituição. Ele disse: “eu tava em crise, acabei tirando a vida da
minha própria mãe”. Questionei se gostaria de falar sobre o assunto, ele narrou:
- Eu tomei três tiros de policial. Depois do fato ocorrido, eu fui trabalhar. Aí os
policiais chegaram lá, ficaram com medo e me deram três tiros, dizendo que eu
enfrentei todos eles, mas não é verdade.
- E por que aconteceu isso?
- Eu não tava com minha consciência normal. Eu não tomava remédio direito,
achava que era normal.
- Eu tava trabalhando e morando de aluguel, sozinho, aí deu uma crise, me
internaram. Quando voltei, não me deram mais trabalho na empresa [...] eu tenho
uma filha, acho que tá com 09 anos.
- E depois que você saiu do hospital?
- Não tomei remédio, aí deu a crise de novo [...] o que eu fiz não foi porque eu
quis. Meu plano era comprar uma casa pra minha mãe, aconteceu tudo ao contrário,
eu fiz uma vítima, mas sou uma vítima, aqui eu sofro demais [...].
Arquimedes, segundo ele, só matou a sua mãe por estar em crise. Depois do
homicídio, não fugiu nem se escondeu, foi trabalhar. A sua consciência não estava normal,
motivo pelo qual fez uma vítima. Mas ele, também é vítima de sua crise, o seu ato lhe gerou
sofrimento e o fez estar preso. Apesar de já ter sido internado e já ter tido outras crises,
Arquimedes não fazia um tratamento regular, o que pode, em minha leitura psiquiátrica, ter
favorecido ao crime.
- E seus irmãos, como ficaram com você depois do que aconteceu?
- Eles vieram pro enterro de minha mãe, tem muito irmão que não me tem como
irmão não [...].
- Que história difícil não é Arquimedes?
- Uma história triste. Desde menino, com 09 anos, parei de estudar pra trabalhar.
Quando eu fiz 20 anos, trabalhava de balconista, a namorada engravidou, fui morar
com ela, morei com ela 03 anos. Perdi emprego, as coisa ficou difícil, eu pedia
dinheiro na rua pra comprar leite pra minha filha, me desesperei, pedi uma
arma emprestada de um amigo, pra roubar. Não deu certo, me prenderam [...]
peguei 06 anos, 05 meses e 05 dias, fiquei 02 anos e 07 meses na cadeia, aí mandaram
eu sair. Minha mulher não foi me ver na cadeia. A cadeia foi dura pra mim, foi daí
que eu adoeci, na época disseram que era distúrbio. Eles não devia me soltar pra
eu ir pra rua, devia me botar numa clínica pra eu fazer tratamento.
Neste trecho Arquimedes justifica que só saiu pra roubar por não ter como comprar
leite para a sua filha. Ele foi preso, a cadeia foi dura, lá adoeceu mentalmente. No entanto, ao
lhe liberarem, sabendo que ele tinha um distúrbio não lhe encaminharam a um tratamento.
Claro fica aqui a pouca competência do sistema penal brasileiro, para não dizer
irresponsabilidade, fato lamentável. Arquimedes é vítima não só da sua doença, como da
104
incompetência do sistema de justiça do nosso país. Apesar de também vítima, ele é
considerado pela nossa sociedade, apenas culpado e tem sido o único punido.
- E depois que você saiu da cadeia?
- Fiquei trabalhando de pedreiro e pintura [...] um dia eu me aborreci com meu irmão,
disse que não ia mais trabalhar com ele não. Ele mandou eu sumir, ir pro inferno.
Eu disse também uma palavra feia pra ele, mas não fui embora. Ele juntou meus
irmãos, fez a cabeça deles e mandou eu ir pro Espírito Santo, pra ficar com uma irmã
e me tratar [...] fui embora à força. Cheguei na rodoviária, minha irmã não tava lá,
a mente não tava mais entendendo nada. Peguei o primeiro ônibus e me perdi. Fiquei
com medo de ficar mendigo, andava, andava, carregando uma bolsa pesada, com
minha roupa. Perdi minha RG e o papel da condicional. Aí achei uma avenida larga e
fui andando sem destino. Depois cheguei num Posto e conheci uns caras „andarino‟.
- O que é „andarino‟?
- Que fica andando, andando. Eles perguntou pra onde eu ia, eu disse que queria ir pra
Bahia, eles disseram que naquele destino eu ia pro Rio de Janeiro, aí pedi comida no
Posto e tive que voltar tudo. Sai andando, andando, peguei carona, fiquei sujo,
cabeludo [...] depois que eu consegui chegar na minha cidade fui pra casa de uma
irmã, e fui capinar, aí me deu crise de novo. Eu fiquei dois a três dias no mato, me
internaram. De vez em quando me dava crise, até que veio essa crise terrível que
eu perdi minha mãe.
- Desde 2007 não vejo minha filha, agora não tenho casa pra morar23 [...].
Agradeci e me despedi de Arquimedes. Perguntei-lhe se podíamos conversar outro dia,
ele disse que sim.
Neste último trecho desta narrativa, pude observar o aparente descaso da família de
Arquimedes pela sua doença e necessidade de tratamento. Os seus irmãos não lhe acolhiam,
um deles, mandou que fosse para o „inferno‟. Lembrando a fala do psiquiatra Levi citada no
capítulo VI página 80, parece que foi exatamente para lá que Arquimedes foi.
No dia seguinte, no horário de visita, pedi a um agente que chamasse Arquimedes no
pátio para que pudéssemos ter uma conversa em sala. O agente deixou-nos na sala sem
problemas. Comecei questionando sobre a sua família, Arquimedes disse que tinha um tio
paterno que costumava lhe visitar no tempo em que esteve na cadeia da sua cidade, antes de
vir para o HCT/BA. No Hospital de Custódia, ele nunca recebeu visita. Então lhe perguntei:
- Ontem você me disse que a cadeia foi dura na ocasião em que você foi preso por
roubo. Como é cadeia dura?
- Cadeia dura é quando uma vez que a pessoa nunca foi preso e vai preso, é um
choque. O espaço era pequeno, praticamente a gente não via o sol. Não é como aqui
que a gente sai pro pátio. Lá o pátio era fechado, fica na chamada churrasqueira, aí
só vê o reflexo do sol. Tem aqueles quadradinhos em cima, o sol não passa todo [...].
- Como foi mesmo esta história com sua mãe?
- Eu queria o contrário. A crise levou eu a fazer esse ato contra minha mãe. Foi
uma tragédia, mas eu não sabia que ia acontecer.
- Como você matou sua mãe?
- Com uma pedra.
- Onde foi?
- Foi em casa, foi de repente, algo inexplicável, não sei o motivo.
- É como se você não estivesse consciente?
23
Sobre o seu sentimento por sua filha, e sobre o símbolo casa, abordarei no próximo capítulo.
105
- Naquele momento eu não tava consciente, se tivesse, não tinha acontecido. Eu
simplesmente fiz e fui trabalhar. Foram lá me pegar, eu não sei quantas horas depois
que eu não tenho noção de tempo. Eu tava lá trabalhando na casa que eu tava
construindo.
- Então é uma doença que lhe pega sem você ver?
- É.
- Seus irmãos não entenderam que isso era uma doença?
- Como é que eu posso saber? Só Deus é quem sabe o pensamento deles. Eu lamento
o sofrimento deles porque eles perderam a mãe, mas eu ainda tô sofrendo mais, tô
pagando aquilo.
- E depois que aconteceu, como você ficou?
- Não sei expor com palavras direito, mas eu sei que depois de 03-04 meses que eu
cai na real, foi difícil. Eu entendo que eles perderam a mãe também, mas eles
deviam entender que foi uma doença. Eu queria dar uma vida menos sofrida pra
ela. Sei que aconteceu e eu tô pagando um preço que só Deus é quem sabe. Eu não
queria que ninguém passasse o que eu estou passando. Até uns nove meses eu não
aguentava, chorava, depois fui orando e Deus ajudando, se não, não sei o que seria,
é difícil [...] acho que eu tenho que agradecer a Deus que eu tô vivo. Os policial
chegou lá e dizia, se entrega, se entrega que é melhor, eu dizia, pode entrar, pode
entrar, sem noção. Aí eles ficaram com medo de mim e atiraram.
- E daí o que aconteceu?
- Eles me levaram dentro da viatura pro hospital. Me acordei no HGE24. Aí fiquei um
tempo lá. Depois me levaram em uns lugar, mas não me aceitaram, aí trouxeram pra
cá [...] eu tenho saudade de minha filha, desde 2007 que eu não vejo. Ela não é
culpada não, mas tudo isso aconteceu depois que eu tentei assaltar pra dar leite pra
ela.
- E como foi o assalto?
- Foi num hotel, eu não cheguei a assaltar não, mas eles botaram que eu assaltei.
- E você já cumpriu a pena do assalto?
- Em 2010 venceu a condicional.
- Lá na delegacia de minha cidade eu escrevi 30 folhas de minha história25.
- Você pode me dar para eu ler?
- Posso, mas não sei se a senhora vai entender, a letra é ruim. Eu ainda não terminei
não. Eu gosto de escrever, aprendi a desenhar, mas eu só tenho a 3ª série. Eu antes
mal escrevia o nome, dei uma melhorada, mas escrevo muito errado.
- E por que você não vai pra Escola aqui?
- Eu tava na Escola de manhã, agora que eu entrei na lavanderia, não sei como vai
ficar.
- Converse na lavanderia e tente conciliar as duas coisas.
- É, vou ver [...].
- Que dia a senhora vem aqui pra eu lhe dar o que eu escrevi?
- Na terça à tarde. Eu lhe procuro na lavanderia.
- Está bom.
Comparando o HCT/BA com a cadeia, para Arquimedes, o HCT/BA é melhor, sai
para o pátio, na cadeia pouco se vê o sol. Novamente Arquimedes diz que não havia motivo
para assassinar a sua mãe, o motivo foi então a crise. Ele não estava consciente quando do ato,
apenas fala que a matou com uma pedra, não entra em detalhes, não cita as outras „armas‟ que
usou para o crime, referidas em seu prontuário criminal. Ele só caiu em si, 03 a 04 meses
depois, e então, veio o sofrimento; mas foi orando, e Deus ajudou. Para Arquimedes, os seus
irmãos deveriam entender que o que lhe aconteceu foi resultado de uma doença.
24
25
Hospital Geral do Estado em Salvador.
Trata-se do seu manuscrito tema do próximo capítulo.
106
Na terça à tarde, como combinado, procurei por Arquimedes e lhe encontrei no pátio
interno ao lado do refeitório. Disse-lhe que havia trazido um caderno e uma caneta para que
continuasse escrevendo. Ele me agradeceu e me entregou as folhas de papel ofício escritas
que havia me prometido, pedindo-me que „batesse numa máquina‟, para não ficar com aquela
letra, que estava feia. Prometi-lhe digitar e lhe entregar num outro dia. Pedi-lhe autorização
para usar o material na pesquisa e ele disse-me que tudo bem. Colocou: “depois que a senhora
me devolver, eu vou guardar pra entregar pra minha filha quando eu sair daqui”. Pergunteilhe:
- Onde ela está?
- Acho que no Espírito Santo.
- Eu agora tô na lavanderia só de manhã. De tarde me botaram na escola [...].
- E quando você sair daqui como vai ser? Você vai para onde?
- Não sei, tenho que trabalhar, não tenho mais casa. Eu fazia „correria‟ na cadeia,
aqui também faço26 [...].
- Como era mesmo a sua crise Arquimedes?
- Na crise eu ficava com medo, achando que qualquer um ia me pegar, eu não
ouvia ninguém e ficava sem dormir, quando a crise vinha, eu não entendia mais nada,
um negócio estranho, eu corria pro mato. Um dia eu joguei um celular de trezentos
reais debaixo de um caminhão, achando que era uma bomba, eu joguei fora e nem
olhei pra trás.
- Eu gostaria de sair daqui e continuar minha vida do zero, arranjar uma esposa,
uma mulher especial. A mãe da minha filha não foi especial, me deixou no
momento que eu mais precisei27.
- Você acha que as pessoas vão ter medo de você quando você sair daqui?
- Não sei. As pessoas que não me conheciam antes do problema podem ficar com
medo, mas se pensarem assim, tão erradas, eu sou contrário a tirar a vida do próximo,
não gosto de confusão [...] se houvesse uma possibilidade de me botar na rua, eu já
estava apto. Pode ser que eu fique mais de três anos, ou fique menos, depende do
comportamento, não tem uma data pra sair não.
Neste trecho, psiquiatricamente falando, Arquimedes trouxe o provável delírio
persecutório que foi produzido em sua mente quando em crise, pois achava que iam lhe pegar,
ou que colocaram uma bomba em seu celular. De novo a doença aparece sem controle, sem
tratamento. No final deste trecho ele disse que queria „começar a vida do zero‟, talvez isto
queira significar que ele quer apagar tudo que aconteceu e começar uma nova vida com uma
nova mulher, logo, construir outra família.
Alguns dias depois, fui à lavanderia e pedi a Arquimedes para me esclarecer algumas
palavras de seu manuscrito que não compreendi para que eu pudesse terminar a digitação. Ele
me esclareceu o que eu precisava. Perguntei-lhe se podia mostrar o que havia escrito ao
diretor para ajudar no seu laudo de cessação de periculosidade. Ele pensou um pouco e disse:
“deixe tudo como está, isso eu só falei pra psicóloga e pra senhora, deixa assim mesmo”.
26
27
O restante do trecho desta narrativa foi inserido no item „Atividade e trabalho‟ deste capítulo.
Arquimedes mesmo explicará melhor sobre isto, em seu manuscrito, capítulo IX.
107
Em maio de 2011, solicitei a um dos agentes que me trouxesse Arquimedes para nova
entrevista em sala:
- Boa tarde Arquimedes como você está?
- Tô bem, já fiz o laudo de cessação, tô esperando a resposta. Só não tô melhor
porque não tenho notícia de parente [...].
- Como é que está o trabalho?
- Está bem [...] eu quero agradecer a senhora pelo que a senhora fez por mim, e por
aquilo tudo que a senhora escreveu também (refere-se aqui à digitação da sua carta).
- Eu também lhe agradeço, tenho aprendido muitas coisas com você e você está
ajudando nos meus estudos [...].
- Mas me esclareça um ponto, quando aconteceu o problema, você estava usando
droga?
- Na época do crime, pelo que eu lembro, não.
- Mas você usava droga antes não era?
- Maconha e cocaína.
- E bebia?
- Uma ou duas cervejas por semana.
- Você está lembrado da nossa conversa sobre o que vai ser mais importante quando
você sair daqui? (Refiro-me sobre uma das conversas informais que tivemos
anteriormente e que não está explicitada neste texto).
- É o tratamento.
- Pois é.
- No meu hoje, abaixo de Deus, o que eu puder fazer pra eu não voltar pra cá, eu vou
fazer. Tenho fé em Deus, em nome de Jesus, que eu não quero mais droga
também, quero até parar com o cigarro, jamais vou querer droga pra mim.
- Eu lhe desejo boa sorte quando você sair daqui, e espero que você encontre
Samaria28.
- É com a graça de Deus.
Bom, o laudo de cessação de periculosidade de Arquimedes foi feito. No entanto, é
preciso enviar o laudo ao Juiz. Caso o juiz aceite o laudo, finalizando a sua medida de
segurança de Arquimedes, será necessário saber para onde ele irá quem virá buscá-lo e onde
ele irá morar. E o mais importante, como garantir que Arquimedes continue o tratamento, não
pare com o uso das medicações e não retorne ao uso de drogas? Ele não se lembra se estava
usando drogas na ocasião do crime, no entanto, como era usuário tanto de maconha como de
cocaína, o mais provável, do ponto de vista psíquico, é que as drogas tenham contribuído para
o seu surto psicótico e para o ato homicida. Mais uma vez, o campo trouxe a relação
droga/crime. Deus volta a permear o discurso de Arquimedes como aquele que irá lhe ajudar a
se manter longe das drogas.
No final de julho de 2011, vou à lavanderia à procura de Arquimedes. Lá iniciamos
um bate-papo informal, pergunto-lhe:
- Quando você vai embora?
- Sei não, tô esperando, confiando no Salmo 929.
- Além do trabalho na lavanderia o que você anda fazendo?
28
Nome da filha de Arquimedes.
Retirei do Salmo 9: 4 Pois tu tens sustentado o meu direito e a minha causa; tu te assentaste no tribunal, julgando
justamente; 13 Tem misericórdia de mim, Senhor, olha para a minha aflição, causada por aqueles que me aborrecem; tu que
me levantas das portas da morte.
29
108
-Tô fazendo artesanato também. Fiz uma casa30, queria alguém pra tirar uma foto
[...].
- Eu já estou quase terminando a pesquisa.
- Parabéns! Tudo que começa, termina, não é?
- É isso mesmo.
- Lhe desejo boa sorte.
- Tá bom, até logo.
- Até logo.
Já estamos em agosto. Fui à lavanderia atrás de Arquimedes, conversamos um pouco,
depois lhe perguntei da casa que tinha feito, pois eu gostaria de ver. Ele falou: “eu levo a
senhora lá na ala [...]”. Fomos para a ala, lá ele me mostrou sua casa construída de papel,
elogiei o seu trabalho e me ofereci para levá-la para fotografar, ele me agradeceu. Mostroume os porta-retratos que fez com papel e mandou que eu escolhesse um para mim. Eu escolhi
e lhe agradeci pelo presente. Ele mostrou também as flores de papel feitas por ele, notei que
havia muito material ao lado de sua cama e perguntei se os outros não pegavam, ele disse:
“não, ninguém pega não [...]”. Descemos juntos da ala, ainda conversando, e nos despedimos
próximo à entrada da lavanderia.
Alguns dias depois encontrei Arquimedes no HCT/BA, devolvi-lhe a sua casa e
entreguei-lhe as fotos que tirei. Ele mais uma vez me agradeceu. Conversamos sobre sua
carteira de identidade que o serviço social estava providenciando, assim como uma cópia de
sua certidão de nascimento. Arquimedes ainda não sabia se iriam lhe liberar do HCT/BA sem
família, e mostrou-se preocupado com sua moradia: “eu não tenho pra onde ir, acho que meus
irmãos podia comprar uma casa pra mim”.
Passaram-se mais alguns dias, e Arquimedes me encontrou no pátio conversando com
outros IPs e disse-me: “desculpe aí, mas quando a senhora terminar a conversa, a senhora vai
lá na lavanderia falar comigo?” Digo-lhe que sim. Ao terminar o bate-papo no pátio, vou
procurar Arquimedes na lavanderia como combinado, ele me falou: “eu pensei que eu devo
lhe dar a casa, é bom que fique com a senhora [...]”.
Continuarei a narrativa de Arquimedes no próximo capítulo.
Narrativas de Ferdinando
Procedente de Salvador, solteiro, pardo, 24 anos, vendedor ambulante, estudou até o 2º
ano do 2º grau, matou a mãe e o padrasto no mesmo dia, e depois de estar no HCT/BA, matou
um interno-paciente. Foi internado no Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia em março
de 2010 para realizar exame de sanidade mental referente ao crime cometido em julho de
30
Sobre a casa de Arquimedes, falarei no próximo capítulo.
109
2009. Em maio de 2010 é suspeito de ter praticado homicídio contra outro interno-paciente da
instituição, na ala „D‟, utilizando objeto contundente.
O meu primeiro contato com Ferdinando foi em 02 de outubro de 2010, à tarde,
quando me encontrava no pátio, numa conversa informal com Saturnino, Hilário e Calvário.
Ferdinando se aproximou espontaneamente e disse sem que eu nada houvesse lhe perguntado:
“Eu vim pra cá porque matei meus pais”. Disse Saturnino: “mas ele se arrependeu, ele é
doente mesmo”. A partir daí, ali no pátio mesmo, na presença dos outros IPs, iniciamos uma
conversa:
- Como foi que você matou os seus pais?
- De faca. Tenho loucura de mandar matar ou morrer. Tem 08 meses que cortei
meus pulsos, olhe aqui [...] a voz mandou eu matar, eu também matei um aqui, tem
04 meses.
- Como foi isso?
- A gente era amigo, só andava junto. Ele tava cobrando de um senhor uma revista
pornográfica, foi bater no senhor de 65 anos, aí os outros começou a dar pau nele, aí
ele trocou de ala. A gente discutiu, ele disse me desculpe a palavra, vá enfiar seu pau
no cu filho da puta. Aí a gente entrou em luta corporal. A voz falou, mata ele que ele
é CP.
- O que é CP?
- Comissão da paz, uma facção.
- A voz falou: mata ele que ele é CP e você é „Perna‟.
- E o que é „Perna‟?
- Outra facção.
Neste momento Hilário nos interrompeu e disse: “eu quero falar uma coisa pra senhora
me ajudar”. Falei: “espere um pouco que já converso com você”. Complementou Saturnino:
“deixe ele falar que ele precisa, tá desabafando” (Saturnino tendo classificado Ferdinando
como doente, em função do seu arrependimento, reconheceu a importância do seu desabafo).
Deste modo, Ferdinando retomou sua narrativa:
- Aí eu peguei meu chunchu
- O que é chunchu?
- É um ferro com ponta.
- E onde você achou isso?
- Tem uma viga de ferro na janela, ele pegou pra me agredir. Eu tomei dele, meti
o chunchu no coração, nas pernas, em tudo quanto é lugar. Depois peguei o
corpo dele, meti na pia e deixei ele se afogando.
- Que horas foi isso?
- Umas 12 horas, tava todo mundo dormindo, foi muito rápido. A gente discutiu
pouco e entrou em luta corporal.
- Ninguém viu?
- Ninguém escutou nada.
- E você ficou como depois disso, você me disse que vocês eram amigos?
- Eu fiquei arrependido, oro por ele e por meus pais. Eu digo assim: meu Deus
tira minhas vozes, tira esses pensamentos malignos, peço que leve a alma dele e
dos meus pais pro céu [...].
Após uma interrupção feita pelos outros IPs que estavam presenciando a nossa
conversa, Ferdinando voltou a encontrar um espaço para continuar a sua narrativa:
110
- Foi no ano passado, primeiro matei minha mãe, depois esperei meu padrasto
chegar e matei ele. Eu me arrependo muito, me machuca quando eu falo.
- Você tem religião?
- Sou católico.
- E como fica você e sua religião depois dessa história?
- Eu vou pro inferno.
- Como é pra você estar aqui no HCT?
- Entediante, não tem atividade psicossocial como no CAPS.
- Você já esteve aqui antes?
- É a primeira vez que eu vim pra cá. Fiquei preso 08 meses, depois ganhei a
liberdade. Fui pra casa de minha madrinha, ela ficou com medo. O marido dela me
deu cinco reais pra eu ir pro Centro de Recuperação, mas eu fui pra Igreja Universal.
Depois fui procurar um traficante que é de „Perna‟, ele me deu um baseadão, aí
fiquei com paranóia de conspiração, desmaiei na rua, veio a SAMU31. Depois fui
pra um Posto policial, pedi pra me prender pra eu receber tratamento, não me
prenderam. Aí fui num outro Posto, me levaram pra o Mário Leal32 como
maconheiro, não como esquizofrênico, e aí me transferiram pra cá [...].
- Antes de ter acontecido esses problemas você fazia tratamento?
- Não.
- Mas eu já ouvia vozes.
- E sua mãe não lhe levou ao médico?
- Já me perguntaram isso. Meu relacionamento com ela era conturbado.
- E o seu pai?
- Não conheci.
Em março de 2011, pedi a um agente prisional que chamasse Ferdinando no pátio para
que eu pudesse conversar com ele numa sala. Ferdinando chegou acompanhado do agente,
perguntei se lembrava de mim e da nossa conversa há alguns meses no pátio. Ele disse:
“lembro”. Perguntei se lembrava do que havia me contado: “contei tudo pra senhora”. O
agente permaneceu na sala, por medida de segurança, já que Ferdinando é forte, alto, e
considerado muito perigoso. Tentando não permitir que a presença do IF na sala dificultasse a
entrevista, iniciei nossa conversa: “há quanto tempo mesmo você está aqui”? “Há 11 meses.
Tirei 08 meses de cadeia”. “Que cadeia”? “No anexo do Presídio de Mata Escura. Depois
recebi Habeas Corpus e fiquei em liberdade [...]”. Ferdinando repetiu parte da história que
já havia me contado no pátio. Eu escutei. Num determinado momento, o agente prisional, saiu
da sala, talvez por entender que sua presença não seria mais necessária, pois a conversa se
desenrolava sem problemas. Ferdinando aproveitou para me pedir dinheiro pra comprar
pacaia. Após lhe dizer que eu não poderia lhe dar dinheiro, retomei a nossa conversa.
- Você morava com sua mãe?
- Com minha mãe e meu padrasto. Minha irmã saiu de casa com 09 meses. Minha
mãe fazia vida e levava eu. Eu ficava no Maciel me distraindo, jogando dama,
dominó. Minha irmã era bebezinha de 09 meses, ficava em casa trancada, a vizinha
cagoetou, o juiz deu a guarda dela pra avó paterna. A avó materna era maluca. Minha
mãe também tinha distúrbio mental, eu tenho esquizofrenia.
- Você ainda está ouvindo vozes?
- Tô. Manda eu me matar, antes mandava eu matar os outros. Aqui eu cortei
meus pulsos, com o remédio, a voz amenizou.
31
32
Serviço de atendimento móvel de urgência.
Centro de Saúde Mental Mário Leal.
111
- Tomo toda semana duas ampolas de haldol-decanoato, não tô mais escutando voz
como antes não [...] eu oro 03 vezes ao dia.
- Como é isso?
- Eu não oro católico não, oro cristão.
- Como é orar cristão?
- Católico é porta larga, cristão é porta estreita, leva pra salvação. Mas nem todos
eles leva, só aqueles que têm fé [...].
- E por que a oração 03 vezes ao dia?
- A da manhã e da tarde é uma, rezo „Pai nosso que estais nos céus [...]‟ de noite é
diferente, peço a Deus que perdoe os meus pecados, que me livre de Satanás, que
me cure.
- Você acha que seu problema foi por causa de Satanás?
- Não, foi por causa da doença. Sou doente desde os 12 anos [...] eu ouvia voz pro
mal e pro bem.
- Como é voz pro mal e voz pro bem?
- Uma vez, com 12 anos eu ouvi vozes dizendo que era pra matar meus pais. Em
casa tinha uma arma, eu procurei e não achei.
- E voz pro bem com é?
- Raciocínio lógico.
- Quando você ouviu as vozes mandando você matar sua mãe e seu padrasto, você
pensou em fazer diferente?
- Não.
- Pensou nas conseqüências?
- Não.
- A voz manda, eu obedeço. Agora não tô obedecendo mais não, tô tomando duas
ampolas de haldol-decanoato e uma de fenergan.
- As injeções ajudam a você não obedecer as vozes?
- É [...].
- Sua irmã sabe que você está aqui?
- Ela não me conhece não.
- E seu pai?
- Não conheço não.
- Você gostava de seu padrasto?
- Não, ele me maltratava muito quando eu era pequeno. Minha mãe também não
gostava dele não. Ele tinha transtorno mental também.
- Sua mãe tinha que doença?
- Ela era bipolar33.
- E seu padrasto?
- Ele era nervoso. Ele batia em mim e nela. Ele escarrerou minha mãe e eu com uma
faca, eu tinha uns 10 anos. Depois, com 13 anos eu ameacei ele com uma faca, aí
ele não bateu mais, não fez mais nada, ficou uma seda [...].
- Depois que você matou os dois, você fez o que?
- Joguei amaciante no chão e deslizei os corpos até debaixo do beliche.
- Pra quê?
- Pra não feder.
- Como você matou a sua mãe?
- Com uma faca.
- E o seu padrasto?
- Depois que eu matei, deslizei o corpo dele também até o beliche. Botei a mão
dele em cima da mão dela e a mão dela em cima da mão dele, eles eram um casal.
- O que você sentiu nessa hora?
- Arrependimento.
- Tinha 04 dias que a voz dizia, vai, vai, mata ele, mata ela, eu dizia, eu não,
outro dia, a voz dizia, vai, vai, mata, eu dizia não, eu não, depois, até que eu fiz.
- Depois que os corpos estavam debaixo do beliche, o que você fez?
- Peguei o dinheiro que eu ganhei vendendo CD e DVD e comprei quatro litro de
vinho, botei no freezer e fui jogar vídeo-game e beber vinho, meu plano era
33
Transtorno afetivo bipolar, F.31 na CID-10.
112
enfiar uma faca no meu peito, ligar o gás, acender vela pela casa toda pra
explodir tudo, mas eu não fiz.
- E o que aconteceu depois daí|?
- Fiquei bebendo, bebendo. Isso foi na quarta, no sábado o dono da casa teve lá e
perguntou pelos meus pais, eu disse que tavam viajando.
- Quando eu fumava maconha tinha inspiração, inventei spray de futebol,
cepacol a base de água, ele roubou minhas idéias todas.
- Sim.
- Aí ele desconfiou, chamou a polícia [...].
- Como é o seu relacionamento aqui com os outros pacientes?
- Tenho muita amizade aqui, sou muito querido por umas pessoas.
- E como ficou depois que você matou o seu amigo aqui?
- Ficou normal. Ele queria me matar, xingou minha mãe que eu matei, me
chamou de filho da puta, aí fiquei injuriado. A voz falou: mata ele, mata ele. Ou
era ele, ou era eu, eu não queria morrer [...].
Ferdinando matou sua mãe e seu padrasto usando faca, ele tem loucura de mandar
matar ou morrer, como disse. Depois do duplo homicídio, foi beber vinho e jogar vídeo-game,
tinha a intenção também de se matar, mas não o fez. Ele ficou 04 dias com os corpos dentro
de casa, encharcados de amaciante para que não fedessem. Ferdinando não fugiu, e ainda
manteve os corpos dentro de casa. O vizinho desconfiou, seja pelo odor dos corpos, seja por
não ver há dias os pais de Ferdinando, e chamou a polícia.
Do ponto de vista psiquiátrico, Ferdinando demonstra um claro embotamento afetivo,
ele nada sente após os crimes cometidos em franca loucura, ele matou por conta da sua
doença iniciada quando tinha 12 anos, ocasião em que ouviu vozes lhe mandando que matasse
os seus pais. Como relatou, com 13 anos em função de ser maltratado por seu padrasto, o
ameaçou com uma faca. Na ocasião do duplo homicídio, ele tinha 22 anos, as vozes
mandavam que ele matasse, ele tinha que obedecer. Antes de matar sua mãe e seu padrasto,
levou 04 dias tentando resistir às vozes, depois, obedeceu. Acrescentou ao seu relato, ter
tentado suicídio cortando os pulsos por ordem das vozes.
Ferdinando também matou um amigo no HCT/BA com chunchu por ter sido agredido
pelo mesmo, ele queria lhe matar, xingou sua mãe que ele matou de puta, o que lhe deixou
injuriado, a voz mandou matar, ele matou para não morrer. Aqui o sentido do seu ato
homicida imbrica-se com sua doença.
Ferdinando está arrependido dos homicídios que cometeu. Ora para que suas vítimas
sejam levadas para o céu, e pede para que lhe sejam tiradas „as vozes‟ e os „pensamentos
malignos‟, para ele, os verdadeiros responsáveis pelos homicídios. Ora para que Deus perdoe
seus pecados, lhe livre de Satanás e lhe cure. Ferdinando é católico, por conta disto acredita
que vai para o inferno, no entanto, „ora cristão‟ para ser salvo. Interessante aqui a
ambivalência em seu discurso: „as vozes‟, os „pensamentos malignos‟ e „satanás‟, respondem
pelos seus atos homicidas, mas ao mesmo tempo ele é pecador e deve então ir para o inferno.
113
A doença em Ferdinando aparece colada com o pecado, como colocou Foucault (2008, p.87),
já citado neste texto, na p. 29: “a loucura se avizinha do pecado, e é talvez aí que se
estabelecerá por séculos, esse parentesco entre o desatino e a culpabilidade que o alienado
experimenta ainda hoje”.
Para a psiquiatria, não há dúvida de que Ferdinando é portador de uma esquizofrenia
paranóide grave, ele apresenta roubo do pensamento (o vizinho rouba suas idéias de
invenção), alucinações auditivas imperativas que lhe mandam matar ou se matar, o seu eu é
dominado pelas vozes que interferem nas suas ações. Apesar da clara patologia, de escutar
vozes de longa data, Ferdinando não fazia tratamento e ainda usava drogas, o que lhe gerava
„paranóia de conspiração‟. Está aí a relação ausência de tratamento/droga/crime.
Da mesma forma como ocorreu com Arquimedes, apesar de francamente psicótico,
Ferdinando conseguiu seu Habeas Corpus, e ao invés de ser encaminhado a um tratamento,
foi solto para ir para a rua, onde ficou, já que não havia um familiar que o acolhesse. Só
quando, ele mesmo, tomado da „paranóia de conspiração‟ por conta da esquizofrenia
acrescida do uso de uma quantidade grande de maconha, com medo de suas próprias ações
pede socorro à polícia, que a princípio nada fez, e numa segunda tentativa, finalmente o levou
a um serviço de saúde mental.
No mês seguinte, em abril, numa tarde, eu estava à procura de Arquimedes quando
encontrei Ferdinando no pátio. Perguntei-lhe se gostaria de conversar um pouco, ele me disse:
“tô afim não”. Então eu disse-lhe: “outro dia a gente conversa”. Ele colocou, talvez
significando que não mais tinha interesse em conversar comigo: “eu já contei tudo pra
senhora”.
Em maio de 2011, sabendo eu que no processo de interação social os significados
podem sofrer mudanças ao longo do tempo, resolvi tentar novo contato com Ferdinando. Pedi
a um agente que o trouxesse para a sala em que eu me encontrava para uma nova entrevista.
Desta vez ele aceitou sem problemas. Chegou à sala, sentou-se e já foi falando:
- Tô abatido, não quero mais sair da ala, fui preso 2009, cometi homicídio aqui por
legítima defesa.
- [...] Eu tava brigão, 04-05 meses pra cá tô quieto, eu fico angustiado.
- Você está querendo ir embora, é isto?
- Tô.
- Quando você sair daqui vai pra onde?
- Vou pra casa do irmão da Igreja que vai me adotar, ele tá preso aqui, botaram
droga com ele, a família dele vai me buscar.
- Você não tem parentes?
- Duas tias e uma avó, me abandonaram.
- Eu vim pra cá pra tratamento, tô aqui quieto, na minha.
- Quando você sair daqui vai fazer o que?
- Vou trabalhar de camelô.
- E as drogas?
114
- Já parei de usar maconha, não pretendo usar mais não.
- Tô com tristeza.
- Por quê?
- Falta dos pais.
- Os pais que você matou?
- Sinto tristeza porque matei.
- E as vozes?
- Ouvi voz ontem.
- A voz disse o que?
- Se mate, se mate, mas eu consegui controlar; parei, deitei, elas pararam [...].
- E se a voz mandar você matar?
- Nem se a voz mandar eu mato mais. Se eu tomar remédio, não faço besteira
não.
Nesta entrevista, Ferdinando estava abatido, angustiado, sente falta de seus pais, está
triste porque matou, o que me levou a interpretar a razão pela qual aceitou de pronto a nossa
conversa: „precisava desabafar‟. Se um dia sair do HCT/BA, pretende ir pra casa de um irmão
da Igreja que conheceu lá, já que não tem mais família, e fora abandonado por duas tias e uma
avó. Em seu imaginário, pretende trabalhar como camelô para sobreviver. Quanto ao uso de
drogas, diz já ter parado com o uso da maconha e que não pretende usar mais. Com os
remédios, diz que as vozes amenizaram, agora estão mandando que se mate, mas está
conseguindo controlar. Atualmente, segundo diz, nem se as vozes mandarem que ele mate, ele
matará novamente.
Narrativas de Teofrasto
Procedente do interior da Bahia, solteiro, pardo, 28 anos, lavrador, estudou o 1º grau
incompleto, matou o companheiro da avó de seu filho. Está no HCT/BA desde outubro de
2010 para cumprir medida de segurança referente ao crime cometido em julho de 2009.
Esteve anteriormente internado para realizar laudo de sanidade mental. Retirei do seu
prontuário criminal:
No dia [...] por volta de 01h30, na fazenda [...], Teofrasto foi flagrado por policiais,
após ter desferido diversos golpes de facão que acarretaram o falecimento de
Cleonildo, e produziram lesões corporais em Emiliana. Naquele dia, em razão de
desentendimento com a avó materna, em razão da mesma não permitir que o mesmo
conversasse com o filho, naquele horário, desferiu diversos golpes de facão contra
Cleonildo e Emiliana [...].
Conheci Teofrasto em novembro de 2010, quando me encontrava no pátio do
HCT/BA num bate-papo informal com Anacleto, Saturnino, Eliezer e Áulus. Teofrasto se
aproximou espontaneamente, sentou no banco onde eu estava e ficou observando. De repente,
começou a falar:
- Eu fazia tratamento no CAPS. Eu fiquei uns meses na cadeia de Machador, depois
vim pra cá. Tô com medida de dois anos. A senhora pode falar com o juiz pra
diminuir minha pena?
115
- Isso eu não posso fazer. Quando o juiz determina a medida, tem que cumprir. Eu
conheço sua terra, vou lá de vez em quando, é um lugar bonito.
- A senhora pode telefonar pra Brasilgás de lá pedir pra chamar Leão e falar com ele
pra dizer a dona Mariá, minha mãe de criação pra ela vim me visitar?
- Qual o número do telefone?
- Não sei.
- Se eu for por lá passo na Brasilgás e dou seu recado, mas não posso lhe garantir
nada.
- Tá bom.
- Você veio pra cá por quê?
- Eu vi um rapaz estuprando meu filho, aí puxei o facão.
- Como foi isso?
- Eu só tenho um filho, ele tava com a mãe na roça da avó, eu fui lá visitar ele.
Quando cheguei, de noitezinha, vi o rapaz que morava lá, praticando ato com o
menino, eu até que gostava dele. Eu puxei a porta, ele deu uma pancada na minha
cabeça, aí dei uma facãozada nele. A avó apareceu pra acudir o rapaz, eu dei uma
facãozada nela também [...].
Alguns meses depois do meu primeiro contato com Teofrasto, já na fase do campo em
que estava realizando as entrevistas individuais com os internos-pacientes da amostra central,
procurei por ele no pátio. Ao vê-lo, chamei-o para uma entrevista, e ele veio de pronto.
Informei a um dos agentes que se encontrava no pátio, que iria levá-lo para uma das salas da
administração e que depois o traria de volta. O agente, que já me conhecia, não se opôs.
Iniciei a nossa conversa lhe lembrando da pesquisa que estava realizando, motivo pelo qual o
chamei para a entrevista. Teofrasto mostrou-se interessado e aparentemente satisfeito pela
atenção que eu estava lhe dando. Iniciei fazendo perguntas introdutórias sobre sua
identificação pessoal e aos poucos fui entrando nos temas de meu maior interesse:
- Antes de vir para cá você fazia tratamento na sua cidade?
- Fazia no CAPS.
- Você ia para o CAPS todos os dias?
- Tinha os dias de ir, manhã ou tarde.
- E você fazia o que no CAPS?
- Oficina.
- Tomava remédio?
- Às vezes eu tomava remédio, às vezes não tomava, pra poder tomar uma
cervejinha.
- Que remédio era?
- Sei o nome não.
- Desde quando você está aqui?
- Desde outubro de 2010.
- E quando você vai sair?
- Não sei, eu tô esperando o laudo de cessação.
- Me conte novamente porque você veio pra cá.
- Peguei o cara estuprando meu filho e dei umas facãozada nele.
- Você estava tomando remédio na época?
- Não.
- Seu filho morava lá?
- Ele tava com a avó e com esse homem, ele tava juntado com a avó do menino.
- Como foi mesmo?
- Quando eu vi o ato, ele entrou com o menino pra dentro de casa e fechou a porta. Eu
fui, quebrei a porta, ele me deu uma paulada na cabeça, ela também, aí eu tava com o
facão e comecei a agir.
- Foi um golpe só?
116
- Foi um bocado. Ele saiu andando e morreu.
- Seu filho viu isso?
- Viu não que ele tava no quarto deitado no chão.
- Depois do ocorrido fui pegar meu filho, mas ele não quis vim.
- E a avó do menino, o que fez?
- Quando eu entrei pra dentro de casa pra pegar o meu filho, ela veio me dá outra
paulada, mas não acertou.
- E então?
- Aí fui embora pra cidade andando. Quando cheguei, a viatura encostou, me
algemou, levou pra cadeia. Fiquei um tempo preso, depois me mandaram pra cá. Eu
vim, fiquei três meses, depois fui ficar preso na minha cidade de novo. Fiquei um
tempo lá e depois voltei pra cá.
- Você tem visita?
- Da primeira vez veio meu cunhado. Dessa vez não veio ninguém não, mas minha
mãe de criação mandou dinheiro pra mim [...].
- Você morava com quem em sua cidade?
- Com minha mãe de criação, minha irmã, o cunhado, um sobrinho e uma sobrinha.
- Você estava trabalhando quando do ocorrido?
- Tava sem trabalhar, indo pro CAPS.
- E droga você usava?
- Já usei maconha com 15, 16, 17 anos, mas depois parei [...].
- Qual é sua doença Teofrasto?
- Perguntei aqui, diz que é esquizofrenia.
- Você tem essa doença desde quando?
- Eu desconfio que essa doença começou depois de uma paulada que eu recebi na
cabeça, eu desconfio. Desse tempo pra cá a memória ficou diferente.
- Por que você ia pro CAPS?
- Eu fiquei agitado, fora do normal, parece que tinha um negócio ruim na
cabeça, quando a doença começou eu fiquei dizendo que as coisas eram minhas,
fiquei só andando, todo atrapalhado, eu ficava cismado das pessoas, ligado nas
pessoas [...].
- Aqui às vezes fico assustado, não gosto de conversar com ninguém pra não criar
confusão, fico mais quietinho [...].
- O que você sente sobre o que você fez?
- Ele tava estuprando meu filho, eu matei ele. Antes eu conversava com ele, aí
fiquei meio pensativo [...].
- E como é essa doença que você tem?
- Um tempo atrás eu comecei a ouvir uma voz aqui, mas não me lembro não. Mas era
só aqui dentro, lá fora não [...] eu sempre fui um cara sossegado.
- Você já foi internado?
- Já, uma vez.
- Por quê?
- Fiquei bravo lá em casa.
Um mês depois da nossa última conversa, fiz outra entrevista individual com
Teofrasto. Ele disse que estava bem, estava indo para a escola pela manhã e à tarde ficava no
pátio. Disse-me que estava bom para ir embora e que já tinha feito o seu laudo de cessação.
Perguntei:
- E se acontecer problema de novo com você?
- O remédio neutraliza. Mas o que aconteceu não foi por causa da doença não,
foi pelo que eu vi.
- E você vai voltar pro CAPS?
- Vou, eu gostava, fazia oficina.
- Você vai morar com quem?
- Com minha mãe de criação [...].
117
Teofrasto veio para o HCT/BA por ter matado com golpes de facão, o companheiro da
avó materna de seu filho. O motivo do homicídio foi porque o viu estuprando o seu filho.
Teofrasto, segundo ele mesmo falou, tem esquizofrenia, quando em crise fica agitado, diz que
as coisas lhe pertencem e cisma com as pessoas. Em função de sua doença, fazia tratamento
no CAPS da sua cidade, no entanto, às vezes interrompia o uso da medicação para tomar
cerveja (novamente observei a interferência do uso de droga, causando prejuízo ao
tratamento, neste caso, droga lícita), na ocasião do homicídio não estava em uso de
medicação, porém afirmou que não foi isto que gerou o crime e sim o fato de ter visto o
estupro. Em função de residir no interior, não tem tido visita de familiares, um dado comum
encontrado em campo. Depois do crime não se escondeu ou fugiu, voltou andando para a sua
cidade e foi então pego pela polícia.
Narrativas de Perácio
Procedente do interior da Bahia, solteiro, branco, sem profissão, cursou até o 2º grau
completo, matou a mãe. Foi internado no HCT/BA em agosto de 2010, para submeter-se a
tratamento, em dezembro de 2010 o juiz enviou ofício ao HCT/BA, solicitando laudo de
sanidade mental.
O primeiro contato que tive com Perácio, foi em uma tarde do mês de setembro de
2010, quando estive em uma das alas, conversando com alguns internos-pacientes. Perácio
me abordou espontaneamente queixando de angústia e de estar ouvindo vozes, fato este
narrado na página 60 deste texto. Na ocasião mostrava-se bastante perturbado, confuso, e não
soube me dizer o motivo pelo qual estava no HCT/BA. Por sugestão do diretor da unidade,
por tratar-se segundo ele de um caso interessante, selecionei Perácio para a minha amostra
central de pesquisa. Ele encontrava-se na instituição para fazer laudo de sanidade mental, na
tentativa de converter sua pena em medida de segurança. Em abril de 2011, pedi a um agente
prisional que o buscasse para uma entrevista individual em sala. O agente o trouxe e não se
opôs a que eu permanecesse na sala sozinha com Perácio. Eu me apresentei, expliquei-lhe
sobre a pesquisa e Perácio concordou em fazer a entrevista. Disse que morava no interior da
Bahia com sua mãe de criação e com seu pai. Chegou a fazer vestibular para engenharia da
computação, mas não cursou por causa das drogas e das vozes.
- Que drogas você usou?
- Crack, cocaína, LSD, maconha.
- Desde quando?
- 16 pra 17 anos.
- E as vozes começaram quando?
- Com o uso de drogas.
118
- Como são as vozes?
- Mila, Gil e Jorge. Mila é uma mulher, ela aparece rastejando na parede, com
muito sangue e faca na mão.
- O que ela fala?
- Ela diz que se eu não matar a pessoa, a pessoa vai me matar, que se eu não
matar, vou acabar morrendo, que se eu não fizer aquilo vai ser pior pra mim.
- E Gil?
- Gil me faz fazer brincadeira sem graça, esnobar a pessoa, comer pasta de
dente, comer sabonete, depois ele diz que foi brincadeira.
- Por que você obedece?
- Se eu não obedeço aparece Mila com ele, eles conversam com a pessoa, como eu
tô conversando com você aqui.
- A visão é nítida?
- A visão é nítida, mas só aparece quando eu tô sem uso de remédio.
- E Jorge?
- Jorge é mais amigo, ele aconselha a estudar, a não fazer mal a ninguém.
- Você vê Gil?
- Eu só escuto. Só vejo Mila.
- E o homicídio?
- O que a senhora quer saber?
- O que você quiser falar.
Perácio começou a sua „carreira‟ psiquiátrica com o uso de drogas. Tempos depois,
surgiram as vozes, no entanto, não são apenas vozes, são pessoas, com nomes. As vozes de
Mila e de Gil são imperativas, a voz de Jorge, aconselha. Perácio tem também visões, no
entanto, só quando não está em uso de remédio.
- Acordei por volta das 9 horas, esperei minha mãe sair pra trabalhar, pedi pra minha
irmã sair, aí eu fui usar crack. Daí eu comecei a escutar as vozes pedindo pra eu
fazer um ritual de proteção satânica.
- Como é esse ritual?
- Não sei.
- Que voz lhe pediu isso?
- Foi Mila.
- Sim, continue.
- Logo após minha mãe entrou, viu eu fumando, pegou uma faca e veio atrás de
mim, Mila falou que ela ia me matar, daí eu sai correndo do quarto, ela veio
atrás de mim, eu com medo empurrei ela contra a parede, ela bateu a cabeça, aí
pensei que ela tinha desmaiado, eu queria acordar ela, as vozes falaram pra eu apertar
o pulso, o pescoço, mas ela não acordou. As vozes pediram pra eu fumar mais
crack, mas eu não tinha, eles não entenderam, persistiram fuma mais, fuma mais. Eu
tinha uma moto ninja, um notebook, um rolex, tênis de marca, vendi tudo pra fumar
crack. Eu não suportava mais as humilhações que minha mãe me fazia passar.
- Que humilhações?
- Desde que eu era criança, ela chegava perto de mim e fazia cara de nojo.
- Sim.
Neste trecho, Perácio deixa clara a ação das drogas como fator precipitante do surto
psicótico que culminou com o assassinato de sua mãe.
- As vozes falaram pra eu vender o freezer pra comprar mais droga. Fui pro orelhão
pra falar com um rapaz pra pegar o freezer, pra eu tentar vender na matriz. Ele veio,
eu fui com ele levando o freezer. Na metade do caminho encontrei um rapaz que me
deu um preço bom, eu vendi. Mas antes de sair com o freezer, eu liguei pra vizinha e
disse que tinha acontecido um acidente com minha mãe, pra ela ir prestar
socorro, que eu não tinha ciência do que acontecido. Depois que vendi o freezer, fui
comprar droga. (Parou por uns instantes a narrativa).
- Comprou?
119
- Não, fui assaltado. Aí vi um colega passando de carro, peguei uma carona, fui pra
casa de minha namorada, fiquei lá fumando crack com ela. Só sai de lá na faixa
da novela „Caras e Bocas‟. Quando eu tava voltando pra casa, fui pego pela população
e me levaram pro módulo policial, que eu tinha matado minha mãe, mas eu não
tinha noção do que tinha acontecido.
- E depois daí?
- De lá desci direto pro presídio. As vozes falaram: se enforca, se enforca, eu não
tinha noção do que tinha acontecido.
Perácio após o homicídio pediu à vizinha que socorresse a sua mãe. Depois do
episódio do roubo e venda do freezer, foi fumar mais crack na casa de sua namorada, voltando
em seguida para sua casa sem noção do seu ato. Sendo abordado pela população, tendo
ciência do que havia feito, Mila mandou que se enforcasse.
- Que voz falou isso?
- Mila.
- Quem deu esses nomes às vozes?
- Eles mesmos.
- Quanto tempo você ficou no presídio?
- Fiquei um ano e 06 meses delirando, tendo alucinação. Aí fui pro CAPS, me
passaram haldol, fenergan, tegretol, diazepan. Aí eu melhorei um pouco. Depois,
por questão de segurança, fui pra outro presídio.
- Por que questão de segurança?
- O rapaz que tava comigo queria me matar, porque ele foi preso comigo (aquele que
lhe ajudou no roubo do freezer). No presídio fiquei 01 ano e 02 meses, aqui tenho 0809 meses.
- Aqui você está cumprindo medida?
- Fez o laudo pra converter a pena em medida.
- De quanto tempo é sua pena?
- 21 anos.
- Foi a primeira vez que você foi preso?
- Foi.
- E seus irmãos?
- Me perdoaram.
- Você tem visita?
- Meus irmãos, meu pai, minha mãe de criação, e uma tia. A irmã de minha mãe
falecida já veio também.
- Vem de quanto em quanto tempo?
- Visita semanal ou quinzenal.
- Como é pra você estar aqui no HCT?
- É bom. Tô aqui, tô na lavanderia.
- Que horário você fica na lavanderia?
- De manhã.
- Eu surtei, quase tentei me matar enforcado, quase enforquei um colega de cela
e aí me trouxeram [...].
- Você trabalhava?
- Programador de rede e analista de sistema, mas parei de trabalhar por causa do
crack. Vendi meu notebook pra comprar crack.
- E sua namorada?
- Ficou aterrorizada.
- Então o namoro acabou?
- Acabou.
- Mas eu nunca tive um relacionamento bom com nenhuma mulher, elas falam que eu
sou frio, não tenho coração.
- E você concorda com isso?
- Não.
- E sobre o que aconteceu com sua mãe, o que você sente?
120
- Tenho arrependimento por causa das drogas. Droga nunca mais. As vozes
também é relacionada às drogas [...].
(Notei que os olhos de Perácio se encheram de lágrimas. Ele enxugou com a manga
da camisa).
- Você está triste?
- Tô.
- Foi a nossa conversa?
- Foi.
- Eu fiz você se lembrar de coisas difíceis.
- É.
- Você quer falar mais alguma coisa, ou quer parar?
Aqui aparecem a tentativa de suicídio, dado recorrente, no campo, assim como o
arrependimento e a tristeza após a tomada de consciência do crime cometido.
- Eu tenho umas dúvidas. Era pra eu ir na psicóloga hoje mas eu não fui [...] parece
que eu atrapalho o sonho e a realidade. Quando sonho parece que eu tô vivendo
aquilo ali, é como se eu quisesse ficar no sonho.
- Os sonhos são bons?
- São.
- Talvez seja porque para você, o que se passa no sonho é o que você está desejando
viver. O que você sonha?
- Sonho lá em casa, com minha mãe e minha irmã.
- Eu também sonhei no mar, mas numa tribulação. Minha mãe vinha me pegar,
dizendo que eu tava vivendo muita tribulação.
- Que mãe?
- A verdadeira.
- Era cheio de cenas boas, ao qual eu gostaria de viver. Depois ela me levantou,
colocou num lugar alto e me deixou esperando o navio passar. Não sei o que isso
significa.
- Você deveria conversar sobre isso com a psicóloga.
- Será que esse sonho é alguma revelação divina?
- Não sei.
- Você quer parar agora?
- Quero.
Já estávamos em maio de 2011, quando solicitei a um dos agentes prisionais que
estava no pátio, que trouxesse Perácio na sala para uma nova entrevista. Ele chega parecendo
bem disposto.
- Como estão as coisas Perácio?
- Bem.
- Quando foi mesmo que você fez o seu laudo?
- Em março. Eu tô esperando o resultado pra converter em medida de segurança, o
advogado tá resolvendo.
- Quem é seu advogado?
- Dr. Jonathas Belarmino França.
- Um excelente advogado.
- A senhora conhece ele?
- Conheço. Você está em boas mãos.
- De quanto tempo é a sua pena?
- Vinte e um anos. Três anos e 04 meses eu já cumpri, 09 meses foi aqui [...].
- Você tem feito o que aqui no HCT?
- Artesanato e o trabalho na lavanderia.
- E as vozes?
- Pararam.
- E como vão ficar as drogas?
121
- Não quero nem conta com droga, quero estudar, trabalhar, me casar, quero um filho,
uma família, quero amigos bons, não ruins.
- Como são amigos ruins?
- Os que levam você a usar droga, ou a fazer algo de errado [...].
- Hoje você está mais tranqüilo não é?
- Tô.
- Ok, Perácio, obrigada, até outro dia.
- Tchau.
Pensando no percurso de Perácio no HCT/BA, desde que o vi pela primeira vez,
angustiado e delirando na ala, com as mãos sobre a cabeça, ver Perácio trabalhando na
lavanderia, lúcido, calmo, sem ouvir vozes, denota que, o tratamento recebido na instituição,
mesmo com tantas deficiências, tem lhe sido benéfico. Não posso também deixar de lembrar
na qualidade de psiquiatra, a abstinência do crack, que por si só propiciou o resultado positivo
da terapêutica e a remissão de parte dos seus sintomas.
Em junho, busquei Perácio para uma nova entrevista. Iniciei perguntando com estava,
ele disse que bem.
- Já fiz o laudo, o advogado disse que foi para o Desembargador [...].
- Você está melhor?
- Tô menos angustiado. Nunca mais ouvi Mila, nem Gil, nem Jorge. Eu não tava
dormindo bem, a médica aumentou o remédio [...].
- Você vai ficar com quem quando sair daqui?
- Com meu pai. Eu vou estudar, trabalhar, quero me casar, ter filho.
Narrativas de Aurino
Procedente do interior da Bahia, solteiro, pardo, 38 anos, sem profissão, estudou até o
1º grau, cometeu vários homicídios em distintos momentos, na cadeia e no HCT/BA. Em
setembro de 2005 Aurino foi internado no Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia para
realizar exame de sanidade mental, obtendo alta em fevereiro de 2009, retornando para a
unidade de origem. Em novembro de 2009, compareceu na instituição para avaliação médica,
por solicitação do diretor da Penitenciária Lemos de Brito - PLB. Foi atendido, medicado e
retornou para a penitenciária. Em maio de 2010, foi re-internado para realizar exame de
sanidade mental. Em junho de 2010 é suspeito de ter praticado homicídio contra outro
interno-paciente do HCT/BA, na enfermaria „D‟, utilizando objeto contundente.
Aurino entrou na amostra central desta pesquisa, por sugestão do diretor da unidade,
que me referiu tratar-se de um caso polêmico dentro do HCT/BA, os agentes o classificam
como marginal, os psiquiatras, como psicótico. Meu primeiro contato com Aurino foi numa
entrevista formal em sala, em maio de 2011. Ele chegou alegre, e eu comecei me
apresentando e falando da pesquisa, ele concordou de pronto em participar. Aurino falou sem
122
reservas ou inibição, e apesar do conteúdo do seu discurso, a nossa entrevista pareceu um
bate-papo agradável. Iniciei a entrevista propriamente dita com uma pergunta direta:
- Qual foi o motivo que lhe trouxe até o HCT?
- Eu vim pra cá por causa de homicídio, latrocínio, sequestro, tráfico de drogas,
porte de arma, só por causa disso aí.
Entendi que a lista de crimes para Aurino é a sua identificação, fala de sua identidade
e corresponde mais ou menos como o seu „cartão de visita‟. „Só por causa disso aí‟ parece
demonstrar que para Aurino, o seu currículo criminal não aparece com o valor que tem para a
sociedade em geral. Aqui pude observar o primeiro aspecto interessante do modo de ser de
Aurino, já que, cometer algum delito para ele, faz parte do seu dia-a-dia.
- Há quanto tempo você está aqui?
- Tô aqui há 01 ano e 01 mês. Já tem 02 meses que fiz o laudo, deu esquizofrenia.
- Você fazia tratamento?
- No CAPS, de vez em quando (Aurino aqui refere-se às vezes em que estando na
penitenciária, era levado ao CAPS para atendimento).
- Que remédios você tomava?
- Os mesmos que eu tomo aqui, amplictil, rivotril, tegretol e haldol-decanoato.
- Você usava droga?
- Uso maconha desde os 14 anos, cheirava cola desde os 09, conheci crack na
cadeia, cachaça por natureza.
- E traficava?
- Maconha, crack, cocaína, tudo.
O uso de drogas por Aurino faz parte da sua história de vida e do seu currículo
criminal, provavelmente relaciona-se com sua longa estadia em prisões e com o acesso fácil
às múltiplas drogas no ambiente prisional. Na cadeia, se tornou também traficante, como parte
do seu „corre‟ como vimos no item referente à atividade e trabalho, neste mesmo capítulo.
Pude observar que a mesma relação de pouco caso que tem com os seus crimes de um modo
geral, tem com o uso de drogas e o tráfico. O uso da cachaça, segundo ele, faz parte de sua
natureza, logo, compõe a sua personalidade.
- E o homicídio, como foi?
- O cara partiu pra mim, 20 cara, tive que armar minha defesa, eu tava com
metralhadora, meti bala.
- Você andava armado?
- Se você me vê na rua, eu tô armado, pode ser de canivete, mas eu tô [...].
- Quem você matou?
- Foram 10 homicídio com faca na cadeia, 08 com faca na penitenciária, aqui, 02
com chunchu e tijolada. Arrastei o tijolo pra dentro da ala.
- Você ficou na cadeia quanto tempo?
- 19 anos preso na Lemos de Brito. Homicídio, latrocínio, sequestro, porte de arma,
tráfico de arma, isso que eu falei aí.
- Fui preso no interior, mandaram pra cá.
- O que é que você tem?
- Distúrbio mental, foco na mente.
- Como foi na cadeia?
- Tenebroso.
- Como ficam pra você todos esses homicídios?
123
- Pra mim é mesmo que nada. Se ressuscitasse, matava de novo. Não me
arrependo de nada.
- Pra você aqui é um hospital?
- Hospital de calamidade e tortura.
- Por quê?
- Tiraram meu sangue, deram cacetada.
- Quem?
- Agente [...].
- Você tem visita aqui?
- Só uma vez, veio minha irmã.
- Posso parar agora? Me libere que eu tenho umas coisas pra resolver, pegar roupa,
essas coisas.
- Ok Aurino, obrigada.
Neste trecho observei outro aspecto da identidade de Aurino: se está na rua, está
armado. Aqui parece que a identidade de bandido, sempre andando armado, é algo que
expressa com orgulho. Nos crimes de homicídio que cometeu, não importa a arma, ele usa „o
que estiver à mão‟, metralhadora, faca, chunchu, tijolo.
Estamos no final de maio, solicitei de um agente prisional que me trouxesse Aurino
para nova entrevista em sala. Ele chega novamente alegre, sorridente.
- Boa tarde Aurino.
- Boa tarde.
- Como você está aqui no HCT?
- [...] é um sufoco tá aqui [...] aqui é tomar remédio, comer e dormir.
- Você acha que tem doença mental?
- Acho que não, o laudo deu esquizofrenia, eu escuto vozes, diz se mata, mata ele,
mata ele, é coisa do mal, bruxaria. Eu sou feiticeiro, sou pai xangô34, pai xangô
recebe o Homem.
- Quem é o Homem?
- Ele é meu pai de coração.
- E as mortes que você causou?
- Já matei um bocado, mas não por vozes, por causa justa, por motivos.
- Como assim?
- Cara querer me atacar, cara ameaçar de levar minha televisão, ou se envolver na
cadeia com minha visita.
- O que você sente em relação aos homicídios?
- Emoção democrática, prazer deslumbrante, remorso, a mesma coisa do cara
ganhar um milhão, o remorso é entre aspas, sentir prazer de ter matado.
- Como é o prazer de matar?
- Tenho a doença „cateomania‟, o cara gosta de matar, igual a psicopata.
- E você é um psicopata?
- Sou psicolouco, mistura de psicopata e louco, sou doente e não sou ao mesmo
tempo, sou doente pra quem é doente, são pra quem é são, pro meio ambiente eu
sou doente, por que convivo com os doentes, na cadeia eu sou são aqui eu sou
doente.
Aurino diz que tem doença mental, foco na mente, esquizofrenia, é psicopata e louco
ao mesmo tempo. Se classificando como psicolouco, ele finalmente encontra uma saída para a
discordância entre agentes prisionais e psiquiatras, sobre a sua condição mental, ele é
34
Quem absorve a qualidade de Pai Xangô, torna-se racional, ajuizado, ótimo equilibrador do seu meio e dos que vivem à sua
volta (http://www.seteluzesdivinas.org/index.php?option=com_content&view=article&id=16&Itemid=16). Xangô é o Orixá
da Justiça e seu campo preferencial de atuação é a razão, despertando nos seres o senso de equilibrio e equidade
(http://www.guardioesdaluz.com.br/umbandapaixango.htm).
124
psicopata, marginal, com distúrbio de caráter e também é louco, esquizofrênico, tem doença e
não tem ao mesmo tempo. Já tão acostumado a viver na cadeia, Aurino iguala-se à instituição
em que se encontra, assumindo em cada uma delas a face que lhe cabe, já constituiu uma
identidade incorporando ao seu corpo a imagem que a instituição lhe impõe, seja ela cadeia,
penitenciária ou Hospital de Custódia e Tratamento, corpo institucionalizado, como nos diz
Basaglia (1985).
Aurino coloca outros adjetivos a seu respeito: bruxo, feiticeiro, pai xangô, filho do
Homem, ligado às coisas do mal. Quanto aos seus crimes de homicídio, não sente culpa ou
arrependimento, apesar das vozes imperativas lhe ordenando para matar, todos eles, segundo
ele, em número de 20, foram „com motivos, com causa justa‟ e não por conta das vozes. Ele
então mata por justiça e o faz com prazer, motivo pelo qual, penso eu, os agentes prisionais do
HCT/BA o classificam como marginal.
Entretanto, como psiquiatra eu posso notar a ambivalência em seu discurso, um dos
sintomas chaves da esquizofrenia para Bleuler (DALGALARRONDO, 2008): Aurino é
doente e não, ao mesmo tempo, ele recebe Xangô, o Orixá da justiça, mas também recebe o
Homem e está ligado às coisas do mal; as vozes resultam de bruxaria, ele é também bruxo,
feiticeiro. O bem e o mal atuam dentro de si ao mesmo tempo.
- As vozes começaram quando?
- As vozes começaram com 14 anos, eu tenho uma parceria dialogada.
Nesta frase, não posso deixar de ver, novamente, na minha condição de psiquiatra, um
dos sintomas de 1ª ordem da esquizofrenia, segundo Kurt Shneider, alucinações auditivas que
comentam e ou comandam a ação do paciente (parceria dialogada, ou vozes que lhe mandam
matar),
além
de
vivência
de
influência
corporal,
já
que
recebe
o
Homem
(DALGALARRONDO, 2008). Aurino apresenta então uma ambivalência afetiva, alucinações
auditivas imperativas e que conversam entre si, tem vivência de influência corporal, nas suas
narrativas é claro o seu empobrecimento afetivo, sendo assim, devo concordar com os
psiquiatras e não com os agentes, Aurino é esquizofrênico.
- Você ouvia vozes na cadeia?
- Na cadeia eu tomava remédio, vinha as vozes, mas não todo dia. Eu fiquei preso 19
anos.
- Você tomou remédio nesse tempo todo?
- Oito anos tomando remédio. Aqui já passei 07 anos, depois voltei pra penitenciária.
Aqui já é minha 3ª entrada.
(Aurino tem tatuagens nos braços, nas pernas e nas costas).
- Onde você fez estas tatuagens?
- Na delegacia.
- Fez por quê?
- Por curtição [...].
- Sua pena é até quando?
125
- Até 2023.
- Ok Aurino, podemos parar agora.
- Tá bom.
As tatuagens no corpo de Aurino, mostradas com certo prazer e orgulho, todas feitas
nas prisões por onde passou, também parecem resultar da cultura prisional, e expressam
novamente a sua identidade de bandido.
No final de junho, voltei a solicitar a presença de Aurino para uma entrevista:
- [...] como é que estão as coisas com você aqui?
- Quero conversar com o diretor, tô 01 ano e 03 meses aqui e ele não fala comigo,
quero resolver minha situação.
- Você acha que já tem condição de sair? Você me disse outro dia que você é
psicolouco.
- É, psicolouco. (Sorriu). Mas eu já tenho condição de sair.
- E como fica o seu tratamento?
- Vou tratar no CAPS.
- Na sua cidade tem CAPS?
- Tem. Você já se tratou lá?
- Não, eu vim da penitenciária. Fui julgado, trezentos anos.
- Mas você sabe que só fica 30 anos preso?
- Sei. Já vou fazer 20 anos em agosto.
- E se você sair daqui e for pra penitenciária?
- Antes a penitenciária do que aqui. Lá eu tô no semi-aberto, eu tive saída, mas
ninguém foi me buscar, aí não deixaram eu sair, disseram que eu era doido. Na
penitenciária é melhor.
- Você já teve visita aqui?
- Já veio me visitar 03 vezes, mas não quer vim ninguém me buscar não, quer me
deixar na cadeia. Tenho uma irmã que mora aqui, ela quer ver o diabo, não quer
me ver.
- Por quê?
- Sei não.
Após 19 anos de cadeia e penitenciária, Aurino já faz parte daquele mundo, está a ele
adaptado, prefere o status de criminoso ou psicopata, ao de louco e gosta de dizer que está
ligado ao mal. De alguma maneira, o estigma de louco diminui a sua estima, o de criminoso a
eleva. Para a família de Aurino, certamente já pouco vinculada a ele em função da distância
de 19 anos, melhor que ele fique na cadeia, onde provavelmente, deve ser o seu lugar. Aurino,
apesar de fazer algumas queixas da penitenciária, também quer para lá voltar, razão de lá ser o
„seu mundo‟, o mundo que sabe viver. Se algum dia, um juiz o permitir voltar ao mundo dos
„normais‟, certamente, Aurino providenciará um novo delito para retornar ao lugar a que
parece pertencer. Para Feltran (2011) instituições penais de privação de liberdade, terminam
por agravar a sensação de desvinculação social em relação ao mundo „legítimo‟ e, assim,
reforçam a referência do mundo do crime e suas trajetórias. Aurino tem transitado entre
cadeia, penitenciária e HCT/BA, participam de sua rede social, agentes prisionais, internos do
sistema prisional e os técnicos de saúde mental; a família aparece apenas como uma citação.
- A primeira vez que você foi para a penitenciária, foi mesmo por quê?
126
- Latrocínio, matei pra roubar.
- E lá na penitenciária você matou outras pessoas não foi?
- Lá matei outras pessoas de faca.
- Por quê?
- Oito, porque queria vir contra mim, mas eu já falei tudo isso pra senhora antes.
- Eu sei, estou só tentando complementar.
- Pra ver se entra em contradição não é?
- Não.
- Eu tô um ano tentando conversar com o diretor, eu quero ir embora, ou ir pra
penitenciária.
(De onde estou sentada posso ver o diretor no corredor)
- Ele está aí fora, quer ir lá?
- Vamo.
(Saio da sala com Aurino e logo em frente ele aborda o diretor).
- Doutor eu quero resolver minha situação, já tô esperando muito.
- Rapaz, fique tranquilo, eu vou ver isso, depois converso com você.
(Neste momento, chega o agente para levar Aurino, me trazendo outro IP, Egito para
a entrevista).
Apesar do inusitado de muitas das falas de Aurino, jamais tive medo de estar sozinha
com ele numa sala para as entrevistas que realizamos. O seu discurso é cheio de incoerências
e ambivalências, em alguns pontos chega a ser engraçado, não pelo que ele diz, mas como diz
que jamais me passou perversão, e sim loucura, tamanha a fragilidade em seu discurso. Em
alguns momentos ele parece ingênuo, em outros, expressa em seu olhar um grande sofrimento
que não sabe dizer com as palavras e quando as usa, as usa com pobreza de afeto.
Quem é Aurino? Portador de distúrbio mental, foco na mente, esquizofrenia,
psicopatia e loucura. Ele é psicolouco, mistura de psicopata e louco. Ele é bruxo, feiticeiro,
Pai Xangô, filho do Homem, homem do mal, homicida, traficante, marginal. É doente pra
quem é doente, são pra quem é são. A única emoção que sente é a „emoção democrática‟, o
„prazer de matar‟.
Narrativas de Egito
Procedente do interior da Bahia, solteiro, negro, 36 anos, sem profissão, alfabetizado,
matou o pai. Egito foi internado no HCT/BA em abril de 2009 para exame de sanidade
mental, obteve alta hospitalar em outubro do mesmo ano, sendo transferido para a Comarca
de origem. Em julho de 2010 foi re-internado para cumprir medida de segurança, em função
de homicídio cometido em dezembro de 2008. Trecho do seu prontuário criminal:
[...] o denunciado adentrou na residência do seu genitor, dirigindo-se até a varanda da
casa para beber água, e em seguida, após ser inquerido pelo pai, o qual se encontrava
almoçando, a cerca do que desejava, o acusado, sem motivo aparente, desferiu
inúmeras facadas no pescoço e no tórax do seu genitor, ceifando-lhe a vida [...]. O
denunciado ao se entregar, disse que não tinha sido o mesmo o autor do homicídio,
não apresentou resistência, nem possuía qualquer espécie de arma.
127
Numa tarde do mês de maio, quando eu estava no pátio, em conversa com alguns IPs,
Egito se aproximou e disse:
- A senhora pode me escutar?
- Sim. O que você quer falar?
- Tô com 02 anos e 06 meses de cadeia.
- Que cadeia?
- Aqui.
- Como é o seu nome?
- Egito Santana.
- Eu vim pra cá com medida de segurança.
- Veio pra cá por quê?
- Homicídio.
- Você é de onde?
- De Campo Leve.
- Eu já era doente.
- Que doença você tem?
- Não sei.
- Por que você cometeu homicídio?
- Eu tava com problema na cabeça, tava ouvindo vozes, ouvia a pessoa me
xingar, ele me chamou de trouxa.
- Você matou como?
- De faca.
- Matou quem?
- Pai.
- Você morava com ele?
- Morava na frente da casa dele. Eu não tinha encrenca com ele, confusão, briga, não
tinha motivo, não tinha vontade, nunca tinha passado pela minha cabeça fazer nada
contra ele.
- Você fazia tratamento?
- Não.
- Você morava com quem?
- Sozinho.
- E seu pai?
- Ele tinha uma mulher lá.
- Antes de acontecer eu fiquei correndo pro mato, ficando nu.
- A sua família não percebeu que você estava doente?
- Quando percebeu, eu já tava atacado demais. Eu dizia pra eles, me ajuda, me
ajuda, eu tô doente, eles não ligava.
- Você estava trabalhando?
- Eu não trabalhava mais, vivia de bolsa família.
- Você já tinha sido internado?
- Não.
- Já tinha feito tratamento em CAPS?
- Não.
- Como é que está sendo pra você aqui?
- Aqui é difícil, ruim, fico „engasturado‟, agoniado por causa da prisão.
- Você tem visita?
- Não. Eu tenho uma tia em Minas e uma em Campo Leve.
- E sua mãe?
- Falecida desde que eu tinha 03 anos.
- Você tem irmãos?
- Dois irmãos por parte de pai.
- Moram onde?
- Em Minas.
- O que eles pensam sobre o que você fez?
-Acho que eles deve me culpar, mas quando eu tava doente, eles não me ajudava.
(Neste momento, outro IP interrompe a nossa conversa e Egito sai).
128
Dias depois, pedi a um agente que trouxesse Egito à sala em que me encontrava, para
que tivéssemos uma entrevista. Ele chegou, eu o cumprimentei e perguntei se podíamos
continuar a conversa que iniciamos no pátio dias atrás. Ele falou que sim.
- Você estava aonde antes de vir pra cá?
- Na cadeia de Campo Leve.
- Ficou lá quanto tempo?
- Não sei, acho que foi 01 ano e meio.
- Você fazia algum tratamento antes de vir pra cá?
- Não.
- Qual foi o problema que houve com você?
- Eu tava com problema de ouvir vozes. Eu tava falando com uma pessoa, ouvia
a pessoa me xingar, tinha a impressão que todo mundo tava com raiva de mim.
- Você escuta essas vozes aqui?
- Não, aqui as vozes cortou.
- E quando começaram as vozes?
- Um ano antes do crime.
- Por que você não procurou tratamento?
- Eu não sabia que era doença, achava que era de verdade.
- Você usava droga?
- Não.
- Bebia?
- Bebia cachaça, às vezes todo dia, tinha tempo que parava.
- Desde quando você bebia?
- Desde os 13 anos.
- Você tem que idade?
- Trinta e seis.
- Tem filho?
- Não. Não quis filho não, só mulher [...].
- Por que mesmo você matou seu pai?
- Ouvi ele me xingando, chamando de trouxa, disse que eu ia pro inferno.
- Como você matou ele?
- Não tenho lembrança do que eu fiz, os cara me contaram que ele tava sentado e eu
esfaqueei ele, mas não lembro, quando eu fiquei em si, tava no mato, depois fui
tentar suicídio, me joguei debaixo de um caminhão, mas o caminhão desviou.
- Por que você fez isso?
- A voz mandou. Depois fui pra casa de uma mulher, ela mandou eu me entregar,
aí eu fui. Eu não lembro nem os policiais que me prenderam [...].
- Como é pra você estar aqui no HCT?
- Não é bom tá preso, eu tô meio adoentado, dor de cabeça, mas tá dando pra levar
[...].
- O que você sente pelo crime que cometeu?
- Eu fico arrependido, não sei como aconteceu, nunca fui de briga, foi um
descontrole emocional grande.
- Você estava bebendo?
- Não foi a bebida não, eu tava 15 dias sem beber. Eu gostava do meu pai, mas ele era
grosseiro comigo, estúpido [...].
No início de agosto de 2011, Egito me viu passando pelo pátio e me chamou:
- Eu quero conversar com a senhora.
- O que houve?
- Quero saber sobre o meu laudo. (Refere-se ao laudo de cessação de periculosidade,
já que está cumprindo medida de segurança).
-Vamos sentar ali um pouco, junto àquela mesa.
- Vamos.
- Você fez o laudo quando?
- Eu não tenho certeza se fiz ou não. Tem um ano e mês que eu tô aqui, tenho medida
de 03 anos. Eu tenho 02 anos e 08 meses de cadeia, contando aqui e lá.
129
- E como é que está sendo o seu tratamento aqui, você melhorou?
- Tá sendo bom, tô melhor do que eu estava. Quando eu cheguei aqui não sabia
nem quando era meio-dia, nem quando era de tarde, agora eu sei. Tô querendo ir
embora. Tem um Programa de volta pra casa, a psicóloga falou, a senhora conhece?
- Muito pouco.
- Eu tô abandonado, tem um tempão que eu peço pra botar meu nome pra falar com
a Defensora, não consigo.
- Se eu souber alguma coisa do seu laudo, lhe falo.
- Tá certo.
Egito matou seu pai com golpes de faca. Não tinha motivo para fazer isto, acha que foi
um grande descontrole emocional. Antes de acontecer o crime corria nu para o mato. Tinha
problema na cabeça, ouvia vozes, ouvia a pessoa lhe xingar, tinha a impressão de que todo
mundo sentia raiva dele, o seu pai lhe chamou de trouxa, lhe xingou, disse que ele iria pro
inferno. Não se lembra do momento do crime, quando caiu em si, estava no mato e então
tentou suicídio, a voz mandou. Depois que saiu do mato, foi pra casa de uma mulher, que
mandou que ele se entregasse o que ele fez. Egito, apesar de já ser doente, não fazia
tratamento, chegou a pedir ajuda à sua família, porém, eles não providenciaram para que se
tratasse. Desde que está no HCT/BA, não tem visita, está abandonado. Egito bebia cachaça
diariamente, apesar de dizer que na ocasião do homicídio não estava bebendo. Mesmo não se
lembrando do fato, responsabilizando a sua doença pelo crime, arrependeu-se do ato. Egito
quer ir embora, mas para onde ele irá e com quem, já que a sua família o abandonou?
Narrativas de Alfeu
Procedente do interior da Bahia, solteiro, pardo, 24 anos, sem profissão, estudou o 1º
grau completo. Alfeu foi internado no HCT/BA em julho de 2010 para submeter-se a exame
de sanidade mental, obteve alta em dezembro de 2010, retornando à Comarca de origem. Em
março de 2011 foi re-internado por determinação do juiz, para realizar novo exame de
sanidade mental. Alfeu foi inserido na amostra central por solicitação do diretor, disse ele: “é
um caso interessante, o juiz mandou refazer o laudo, isso raramente acontece, deve ser porque
ele matou 03 pessoas no mesmo dia”.
Retirei do prontuário criminal de Alfeu:
O denunciado tendo problemas com sua tia Gertrudes de Aliança, vez que esta não
concordava com a exploração econômica que vinham sofrendo os avós do
denunciado, já que o imputado sacava mensalmente os proventos dos benefícios
previdenciários, apropriando-se indevidamente de parte dos valores. Assim, o
denunciado resolveu matar a tia e adquiriu um revólver. Antes de matar a sua tia,
resolveu matar a sua companheira Amarília, pois afirma que praticaria suicídio após o
delito arquitetado, entendendo que não deveria deixar a sua companheira viúva.
Assim, portando uma faca tipo peixeira, desferiu sete golpes contra Amarília. Em
seguida, o denunciado de forma fria e calculada, se dirigiu até a residência de sua tia e
buscando atraí-la para fora de casa, informou ao seu filho de nome Antonino, que
havia uma ligação para a mesma. Tão logo Gertrudes se dirigiu para o telefone
130
público visando atender o dito telefonema foi atacada pelo imputado com nove
facadas. No mesmo contexto, o denunciado desferiu duas facadas nas costas de sua
prima Anaís, que acompanhara sua genitora ao telefone público, pelo simples motivo
desta ter tentado impedir o assassinato de sua genitora. Alertado por gritos vindos das
proximidades do orelhão, Antonino, filho de Gertrudes, dirigiu-se até o local, quando
foi atacado pelo denunciado com um golpe no abdome. Graciliano, também se dirigiu
até o local para saber o que estava acontecendo, quando foi atacado brutalmente pelo
denunciado [...] que se defendeu de várias formas, tendo sido lesionado no braço
direito. Em seguida, o denunciado retornou para o seu quarto, onde se encontrava
o corpo de sua companheira, passando a se auto-lesionar na região do abdome e
portar o revólver que tinha anteriormente adquirido, quando foi abordado por
policiais, que determinaram que largasse as armas.
Neste trecho do seu prontuário, chamou-me a atenção, o motivo pelo qual matara a sua
companheira, além do fato de que, após a conclusão dos assassinatos de sua tia e de sua
prima, ter voltado ao local do seu primeiro homicídio, para suicidar-se e morrer ali, ao lado de
sua companheira, que antes assassinara.
No nosso primeiro contato, Alfeu pereceu-me assustado, comecei como sempre me
apresentando e falando rapidamente de minha pesquisa, colocando que o chamei por sugestão
do diretor. Abaixo o registro de nossa entrevista, realizada em sala, no início de julho de
2011:
- Por que você veio pro HCT?
- Eu tava passando por problemas, cometi homicídios. Eu tava estudando o 4º ano de
magistério, tentei suicídio me furando com faca.
- Que problemas você tinha?
- Problema de ouvir vozes, as vozes me deixava perturbado, não conseguia
dormir, tenho até medo desse negócio me perturbar novamente; tô aqui
controlado pelos remédios.
Interessante observar que Alfeu parece ter medo da sua própria doença, caso a
perturbação lhe tome novamente, o que será capaz de fazer? Aqui está explícito que existe
algo ou alguém superior ao seu eu, e que responde, quando está em crise, por suas ações.
- Você fazia tratamento?
- Eu nunca tinha feito tratamento, não pensava que esse problema fosse me afetar
tanto.
De volta o dado recorrente do campo: não tratamento, parece-me já um lugar comum.
Este dado deve servir como um alerta de que psicose é uma doença, não necessariamente que
deve tornar perigoso aquele que a porta, no entanto, isto poderá ocorrer caso a psicose siga o
seu fluxo natural, sem intervenção terapêutica. Prevenir criminalidade em portadores de
transtornos psicóticos é efetuar tratamento adequado e contínuo.
- Você ouvia vozes desde quando?
- Uns três meses antes do fato.
- As vozes diziam o que?
- Me fazia ter visões, chamava pelo meu nome, mandava eu comprar arma, tinha
hora que eu controlava, hora que não dava pra controlar.
- Quem você matou?
- Minha tia, minha prima e minha namorada.
131
- Como foi?
- Não lembro.
- As mortes foram em dias diferentes?
- Foi tudo no mesmo dia.
- Que arma você usou?
- Foi faca.
- As pessoas depois lhe falaram como foi?
- Não.
- As vozes mandaram você matar?
- Mandava matar as pessoas, qualquer pessoa.
- A partir de que momento você se lembra?
- Quando eu fui me lembrar, já tava no hospital, todo cortado e tavam cuidando
de mim, dei 15 facadas no meu corpo e dei tiro também. Eu procurei saber o que
tinha acontecido e me falaram que eu matei essas pessoas e tinha tentado me
matar também.
- Quanto tempo você ficou no hospital?
- Sete dias.
- [...] e depois?
- Fui pro presídio.
- Quanto tempo você ficou no presídio?
- Três meses.
- Depois veio pra cá?
- Foi.
- Eu tive aqui em 2010, a juíza aceitou o laudo, a promotora mandou pra eu fazer
novo laudo.
Novamente um psicótico em franca crise, com vivências de alucinações visuais
imperativas. Cometeu três homicídios num mesmo dia em sequência, possivelmente em
estado alterado de consciência, acting out. A promotora, entretanto, teve dúvidas quanto à sua
loucura, mandando refazer o laudo de sanidade mental.
- No presídio você tomava remédio?
- Não. Voltou as crises, tanto que eu falei que quando eu tivesse as crises me
amarrasse pra eu não agredir. Aqui eu tô controlado pelo remédio. Às vezes ouço
voz à noite, mas é controlado. Às vezes vejo gente conversando, assoviando, mas na
verdade não tem ninguém.
Novamente Alfeu expressa o pavor que tem de sua crise. Ele parece ciente de que, sem
medicamento, corre o risco de repetir uma ação homicida.
- Você tem visita?
- Do meu irmão. Eu sendo liberado dessa cadeia, vou morar aqui em Salvador com
meu irmão e meu pai.
- Você já usou droga?
- Só vim conhecer droga no presídio.
- Que droga?
- Maconha, pó.
- Você usou?
- Fui insultado pra usar, mas não usei.
- Você bebia?
- Não.
Alfeu não usava droga, no entanto, em função da exposição contaminadora do presídio
(GOFFMAN,1999), foi „insultado‟ a usar, sendo o uso de droga um dos aprendizados que
132
pode ser adquirido na „faculdade do crime‟. Neste caso, Alfeu, de posse do controle do seu eu,
não usou.
- E sua mãe onde está?
- Ela mora com dois irmãos em outro local.
- Quem lhe criou?
- Fui mais criado por meus avós.
- Quantos irmãos você tem?
- Quatro.
- [...] como está sendo pra você estar aqui no HCT?
- Na vista do presídio, aqui é melhor, tem mais liberdade, mais tempo pra
descansar. Lá não tinha cama, era colchão no chão, ficava sem banco pra sentar.
Aqui tô me controlando graças aos remédios, lá não tinha remédio.
- Meu pai e também minha mãe já vieram me ver.
- Eles falam o que sobre o que aconteceu?
- Eles não comentam nada.
- O que você sentiu quando lhe falaram o que você fez?
- Fiquei pensando por que eu fiz aquilo, fiquei sem entender, é como se fosse um
sonho, e quando acordei vi que era realidade.
Na semana seguinte, solicitei de um agente que me trouxesse Alfeu novamente, para
que eu pudesse dar continuidade à nossa entrevista. Comecei lhe perguntando se já havia feito
seu laudo de sanidade, ele disse-me que sim. Questionei se estava preocupado com o
resultado, ele disse que não. Alfeu neste contato pareceu-me menos tenso.
- Você ainda está escutando as vozes?
- Estou.
- Direto?
- Eu deito, durmo, acordo não sei que hora da noite, aí vem as vozes.
- Como são?
- Chama pelo meu nome, manda eu fazer coisa errada, vejo vulto, aí eu levanto e
para.
- A voz fala o que?
- A voz manda matar.
- São várias vozes?
- Não. Uma voz só.
- Eu fico com medo de ficar louco, medo do que pode acontecer comigo. Eu já
tentei suicídio, dei 15 facadas no meu corpo. Eu também tinha visões, tipo coisa
que não existe [...].
- Como é que vai ser a sua vida daqui pra frente?
- Não sei nem explicar.
- Você tinha algum motivo para matar as pessoas que você matou?
- Não. A voz mandou matar, é como se eu tivesse sonhado e foi uma realidade
[...].
- O que você sente pelo que aconteceu?
- Sofro muito, não gosto de pensar no que aconteceu, eu não lembro nada, apagou
da minha mente, poderia ser meu pai, minha mãe, ou qualquer outra pessoa da
minha família.
- Você sente culpa?
- A culpa tá em mim, segundo o meu problema me levou a praticar essas coisas, eu
saindo daqui dessa prisão, meu irmão vai cuidar de mim e vou fazer tratamento.
Outros comentários
Libório, portador de um transtorno psicótico já há alguns anos, cometeu mais de um
homicídio no mesmo dia. Como narrado no trecho deste texto referente aos procedimentos
133
metodológicos, ele não me autorizou a colocá-lo na amostra central de pesquisa, para não
sofrer prejuízo no seu processo legal. No entanto, tivemos inúmeras conversas. Por solicitação
do diretor da unidade, li todo o seu processo penal, bastante extenso, e emiti informalmente o
meu parecer sobre o seu diagnóstico. Tive três conversas iniciais com ele, a sua narrativa foi
bastante rica, mas infelizmente não posso registrá-la aqui, por razões éticas. Em nossa terceira
conversa, Libório narrou-me seu crime com detalhes, e contou-me uma trama delirante de
caráter fortemente persecutório, desenvolvida depois que estava na cadeia.
Na minha identidade de psiquiatra, aprendi com Libório que em se tratando de doentes
mentais psicóticos, principalmente quando em ambientes de controle social, como é o caso de
penitenciárias e Hospitais de Custódia e Tratamento, o seu comportamento muitas vezes
inadequadamente interpretado, pode esconder uma forte produção patológica. Em psiquiatria
forense, o vínculo de confiança, profissional/detento, é fundamental para uma boa avaliação
psíquica e uma conclusão acertada sobre a inimputabilidade ou não do sujeito. Deste modo,
raramente será possível que apenas um profissional possa avaliar uma pessoa e tirar
conclusões tecnicamente corretas sobre o seu estado mental, muito menos que o faça, em
apenas uma ou duas rápidas avaliações, sem antes dar o tempo que permita ao avaliado, falar
de si, sendo ele doente, ou não, narrativa esta, que poderá definir o seu destino quanto a uma
pena ou uma medida de segurança. Pessoas podem ser erradamente julgadas ou punidas, se
profissionais do poder, neste caso, psiquiatras e juízes, não tiverem a noção clara de que têm
em suas mãos vidas, pessoas, quer sejam criminosas ou loucas. Libório, em função do seu
forte conteúdo delirante do qual hoje já fazem parte os profissionais do cárcere, em consultas,
depoimentos e avaliações, por muitas vezes, omitiu a parte mais importante de sua história, ou
seja, o delírio e os motivos que o conduziram ao crime, gerado por sua loucura. Antes de
terminar o meu trabalho de campo, após ter aguardado por quase um ano, finalmente o laudo
de sanidade mental de Libório fora realizado.
Em uma manhã, no pátio, já finalizando a colheita de dados da minha pesquisa,
plenamente familiarizada e identificada com o campo, cercada por internos-pacientes bastante
conhecidos, estabelecemos uma conversa interessante. Contou-me Ferdinando, na presença de
outros: “eu tô melhor, mas as vozes agora tá mandando eu me matar”. Opinou Lemuel: “aí
você não obedece a voz, você não sabe que é da doença”? Disse Saturnino: “mas não é fácil
assim não, que perturba a gente, incomoda”. Complementou Ferdinando: “você fala assim
porque você não é esquizofrênico, não sabe como é, é ruim”. Neste momento me calei algo
emocionada, me dando conta que os avanços da ciência, qualquer que seja ela, ainda são
insuficientes diante da loucura.
134
„Juntando as peças‟
A psicose e o crime nos internos-pacientes da amostra central estão enredados, não
sendo possível separar o que se deve a um aspecto e ao outro, não há fronteiras perceptíveis, o
crime surge como mais um sintoma da psicose e imbricado em seu contexto. Como registrado
no capítulo metodológico, pincei os temas mais relevantes das narrativas na tentativa de
compará-los, observando as diferenças e semelhanças. Fiz uma ponte com alguns dos autores
citados na fundamentação teórica, „juntando as peças‟ para chegar a alguma compreensão das
vivências e dos significados dados pelos informantes. Desta forma irei referir em seguida, as
considerações sobre os dados colhidos nas entrevistas:
Observei uma possível alteração do nível de consciência, ocorrida com quatro dos IPs
da amostra (Arquimedes, Perácio, Egito e Alfeu), expressa pelo “não lembro nada não”; “não
lembro, quando eu fiquei em si, tava no mato”; “quando eu fui me lembrar, já tava no
hospital”, como nós vimos nas narrativas referidas, talvez significando o ato do homicídio
como uma passagem ao ato, ou acting out, como nos narrou em seu estudo de caso, Coelho
(1999), e ainda uma dissociação da consciência com consequente perda da memória no que se
refere ao ato criminoso.
Corroborando com os achados da pesquisa de Hodgnis e Janson (2002) que afirmam
que pessoas que sofrem de transtornos mentais maiores, como é o caso da nossa amostra de
pesquisa, geralmente permanecem na cena do crime ou se entregam à polícia, Arquimedes
após o crime foi para o trabalho, local onde facilmente poderia ser encontrado; Ferdinando
permaneceu no local do crime, sua residência; Teofrasto foi andando até a sua cidade, logo,
não fugiu; Perácio avisou a vizinha de que algo de errado acontecera com sua mãe para que a
socorresse; Egito se entregou para a polícia; Alfeu voltou para o local do primeiro crime, o
quarto de sua companheira; Saturnino foi o único que fugiu, após o 2º homicídio, com uma
moto. Aurino, que cometeu diversos homicídios dentro do sistema penal, não os omite.
O pensamento de suicídio, ou tentativa de suicídio pós-tomada de consciência do
crime, ou em função da prisão, foi um aspecto relevante encontrado na amostra que aparece
nos casos de Saturnino, Ferdinando, Perácio, Egito e Alfeu.
O abandono da família foi comum, quer seja pela qualidade do crime cometido pelo
IP, pela distância da cidade de origem e falta de recursos, ou pelo descuido e descaso. Dos IPs
da amostra, apenas Saturnino e Perácio, recebem visita e suporte familiar.
Observei que aspectos do tema religião às vezes surgiam no discurso dos IPs, quer
mesclado no delírio, como na narrativa da doença e crime de Saturnino, quer apontado como
veículo de ajuda para que suportassem com alguma tranquilidade e esperança, o tempo que
135
deveriam passar no HCT/BA ou a culpa advinda da consciência do crime, como vimos com
Arquimedes e Ferdinando. No pátio, à tarde, no horário de visita, sempre é possível ver
integrantes de alguma instituição religiosa, pregando sua crença a um grupo pequeno de IPs
que se aproximam dos mesmos para escutar a pregação. No início do trabalho de campo,
Arquimedes parecia não se interessar pelas pregações no pátio, sempre ocupado em fazer sua
„correria‟, já no final do campo, algo mudou. Numa tarde, ele me disse: “tô aqui pela
misericórdia de Deus”, em outra oportunidade me falou: “agora eu também já conheci a
verdade, a verdade é Jesus, Ele é o caminho, a verdade e a vida; agora eu já conheço a
Bíblia”. Perguntei-lhe: “você agora é Evangélico”? “Eu já era, mas agora eu tô conhecendo
mais, quando vêm os problemas eu oro, sei que isso é bom pra mim, afasta as coisa ruim”.
Seguindo com a tarefa de „juntar as peças‟ seguem outros dados colhidos no campo,
nas tabelas 16 e 17:
Tabela 16 – Características básicas do percurso psicose/crime I
Saturnino
Nº de
homicídios
02
Vínculo com
a vítima
1. Cunhado
2. Um cara
Arquimedes
01
Mãe
Ferdinando
03
Teofrasto
01
1. Mãe
2. Padrasto
3. Amigo
Marido da
ex-sogra
Perácio
01
Mãe
Aurino
20
Não
Egito
01
Pai
Alfeu
03
1. Namorada
2. Tia
3. Prima
Sentimento
pós-crime
?
„Fiz uma
vítima e sou
uma vítima‟
Arrependeuse
?
Arrependeuse
„emoção
democrática‟
prazer
Arrependeuse
„A culpa está
em mim‟
Motivo para
o crime
1. Foi pego
pela „Pomba
gira‟, seu
cunhado
espancava a
sua irmã
2. Cara bateu
em sua mãe
Crise
Armas
usadas
1. Revólver
2. Barra de
ferro
Uso de
drogas
Crack
Faca, pau,
pedra, brasa
Maconha
e cocaína
Vozes
mandando
matar
Estupro do
seu filho
1. Faca
2. Faca
3. Chunchu
Facão
Maconha
e álcool
Drogas,
vozes
Causas justas
--------
Descontrole
emocional,
vozes
Problema de
ouvir vozes
Uso não
contínuo
de cerveja
Crack
Faca, tijolo,
chunchu,
metralhadora
Faca
Diversas
drogas
1. Faca
2. Faca
3. Faca
Não
Cachaça
136
A partir dos dados apresentados na tabela 16, observei que aparece em 50% dos
internos-pacientes da amostra, o fato de terem cometido múltiplos homicídios, quer seja no
mesmo dia ou não. Saturnino, Ferdinando, Aurino e Alfeu, cometeram mais de um homicídio.
Beccaria (2006) coloca que a finalidade da pena é impedir que o acusado cometa novos
crimes, Foucault (2009) diz que o castigo quer impedir a reincidência. Estar no HCT/BA para
Ferdinando e para Aurino não exerceu este poder, ambos mataram outro IP na instituição.
Numa situação assim, parece-me que para quem já está preso, não há mais nada a perder, um
crime a mais, não fará muita diferença em seus destinos.
Exceto no caso de Aurino e de Teofrasto, observa-se uma relação de muita
proximidade, entre o IP psicótico e sua vítima. Isto me fez crer existir um sentido no crime,
vinculado provavelmente à relação com essas pessoas e a inserção do significado desta
relação na estrutura de adoecimento do sujeito. Os crimes aqui tipificados por estes aspectos
observados são facilmente vistos como formas de uma doença mental, lembrando Carrara
(1998), talvez por não serem considerados crimes comuns, causando na sociedade forte
repulsa; matou mãe, matou pai, matou namorada sem ser por adultério comprovado,
pensamos logo que deve haver algo de muito errado com a mente ou com o caráter deste
sujeito.
Os sentimentos sobre os homicídios cometidos, em Ferdinando, Arquimedes, Perácio,
Egito e Alfeu, são ambivalentes, eles se sentem arrependidos ou culpados, num momento
seguinte não demonstram qualquer sentimento sobre o fato, ou se isentam de qualquer
responsabilidade, responsabilizando pelo seu ato, a doença e/ou o uso de drogas; apesar de
dizer que seu cunhado espancava a sua irmã, Saturnino culpa por este crime, a „Pomba gira‟.
Arquimedes, Ferdinando, Perácio, Egito e Alfeu, apontam dentro de suas significações, os
motivos que os levaram a matar: a „crise‟, „vozes mandando matar‟, „drogas e vozes‟,
„descontrole emocional e vozes‟ ou „problema de ouvir vozes‟. Ausência de crítica ou
arrependimento vinculado ao ato homicida eu observei nos casos de Saturnino, Teofrasto e
Aurino.
Quanto ao tipo de arma usada, notei que parece não haver uma seletividade nesta
escolha. Os pacientes psicóticos de nossa amostra usaram as armas que lhe foram disponíveis,
variando de arma branca a objetos mais grosseiros, como pedra, facão e chunchu, por
exemplo.
Confirmando os achados de Hodgins e Janson (2002) observei no campo, o uso de
drogas lícitas e ilícitas, como fatores de risco para o crime. Apenas Alfeu, não referiu uso de
drogas.
137
Tabela 17 – Características básicas do percurso psicose/crime II
Saturnino
Nº de
internações no
HCT/BA
04
Arquimedes
02
Ferdinando
01
Teofrasto
01
Perácio
Situação legal
no HCT/BA
Procedência
Tratamento
Destino
Tratamento
Cadeia de sua
cidade
Não
Medida de
segurança
Laudo de
sanidade
mental
Medida de
segurança
Cadeia
Não
Centro de
Saúde Mental
Mário Leal
Cadeia de sua
cidade
Não
Casa do irmão
da Igreja
Não
01
Laudo de
sanidade
mental
Presídio
Não
Aurino
02
Penitenciária
Lemos de
Brito - PLB
Usava
remédios na
PLB
Egito
02
02
Cadeia de sua
cidade
Presídio
Não
Alfeu
Laudo de
sanidade
mental
concluído
Medida de
segurança
Refazer laudo
de sanidade
mental
Sua cidade, se
tratar no
CAPS
Casa do pai,
estudar,
trabalhar,
casar, ter filho
Ir para casa ou
para a cadeia
Não
Ir para o
Hospital
Juliano
Moreira ou pra
casa
Ir para casa
Quer ir
embora
Morar com pai
e irmão e fazer
tratamento
Como expresso na tabela 17, Saturnino foi interno no HCT/BA para ser submetido a
tratamento, não tem pena a cumprir e não lhe foi determinado uma medida de segurança. Com
isso, ele poderá permanecer indefinidamente no HCT/BA. Arquimedes, Teofrasto e Egito,
estão cumprindo medida de segurança. Os demais IPs da amostra, estão no HCT/BA para
realizarem laudo de sanidade mental. Exceto Ferdinando, todos vieram de outras unidades do
sistema prisional baiano.
Novamente confirmando os achados de Hodgins e Janson (2002) sobre a relação entre
crime e transtorno mental, notei que a ausência de tratamento na ocasião do crime, apareceu
como uma variante importante para o aumento do risco de criminalidade. Apenas Aurino
estava em uso de medicamentos quando detido na Penitenciária Lemos de Brito.
Quanto ao imaginário dos IPs da amostra sobre o seu destino após a saída do
HCT/BA, chamou a minha atenção a escolha de Aurino por voltar para a cadeia ou para a sua
casa. Saturnino por sua vez, mais adaptado ao Hospital Juliano Moreira, prefere estar lá ou em
138
sua casa. Para Aurino cadeia pode simbolizar casa, para Saturnino, casa pode ser o Hospital
Juliano Moreira.
Capítulo IX – MANUSCRITO DE ARQUIMEDES: „carta à minha filha Samaria‟
Pierre Rivière, considerado um monstro do século XIX, assassinou cruelmente em 03
de junho de 1835, a sua mãe, sua irmã e seu irmão. Depois de ter cometido o crime, não se
apressou em fugir. A sua mãe, grávida, teve o pescoço e parte posterior do crânio cortados e
feridos a cutelo, ficando a sua cabeça quase separada do tronco, o seu irmão, de sete anos teve
a cabeça fendida por trás, e a sua irmã teve o lado direito do rosto e o pescoço, também
feridos a cutelo. No dia seguinte ao seu segundo interrogatório, em 21 de julho de 1835,
enviou ao juiz, um manuscrito de aproximadamente 50 páginas, no qual trabalhara desde a
sua chegada à casa de detenção. Em seu manuscrito, prova de razão ou sinal de loucura, expôs
seus motivos. Termina assim Rivière, o seu manuscrito:
[...] Agora que dei a conhecer toda a minha monstruosidade, e que foram dadas todas
as explicações do meu crime, eu aguardo o destino que me é reservado, conheço o
artigo do Código Penal referente ao parricídio, eu o aceito para expiação de minhas
culpas [...]. Desta forma, aguardo a pena que mereço e o dia que deve por fim a todos
os meus remorsos. (FOUCAULT, 1977).
Pierre Rivière foi condenado à prisão perpétua por crime de parricídio em 12.11.1836,
em 22.10.1840 enforcou-se na prisão de Beaulieu (FOUCAULT, 1977). Lembrando o recurso
à escrita do manuscrito de Pierre Rivière, Arquimedes deu-me uma carta que algum dia irá
entregar à sua filha, Samaria, e pediu-me que a “datilografasse”, o que fiz. A carta talvez tente
explicar para ele mesmo e para a sua filha, o seu crime monstruoso e a sua não
responsabilidade pelo ato aparentemente sem razão, sem consciência, de matar sua mãe a
pedradas. Parece-me que o texto e a possibilidade de um dia entregá-lo à sua filha e explicar o
seu ato, cumpre a tarefa de organizar o seu psiquismo e lhe possibilitar continuar vivendo e
querendo viver, após tomar consciência do seu crime e estabelecer um juízo de valor sobre o
mesmo.
O texto traz uma trama de relações, e conta um pouco da história de Arquimedes. Para
evitar sua identificação, achei por bem omitir trechos, motivo pelo qual, o manuscrito está
incompleto. Chamou-me atenção, ao digitá-lo, a ênfase no tema moradia, que se faz perceber
pelas inúmeras vezes em que Arquimedes usa os termos casa, terreno, onde morar,
coincidentemente lembrando o estudo do caso de Milu no texto de Pondé (2011), que enfatiza
na narrativa o termo casa relacionado ao prazer e à expiação. Caso fosse objeto deste
139
trabalho, poderíamos realizar aqui, uma análise, sob a ótica da antropologia psicológica, na
tentativa de dar algum sentido ao crime de Arquimedes, que foi iniciado, na sua construção de
motivos, desde o ponto em que a sua sogra, tomou-lhe a casa que com esforço construiu para
que fosse o seu lar e lá abrigasse a sua mulher e a sua filha. A falta de uma casa para morar o
enlouqueceu, talvez esta mesma falta o tenha feito assassinar a sua mãe, logo após esta ter lhe
deixado mais uma vez, sem cuidado e sem moradia.
O símbolo pode ser ao mesmo tempo pessoal e cultural, prover uma base para a autoreflexão tanto quanto para a comunicação com outros. Símbolos devem tentar representar o
que não pode ser facilmente descrito na linguagem do discurso cotidiano. Símbolos pessoais
são símbolos culturais que são relacionados com motivação individual e fazem sentido
somente em relação com a história de vida do indivíduo, eles são públicos e privados ao
mesmo tempo. Se símbolos pessoais são articulados com a história de vida, representações
coletivas, de qualquer forma, são atadas com a experiência e a consciência social e histórica
de pessoas em geral (OBEYESEKERE, 1990).
O símbolo casa tem uma representação coletiva de lugar para morar, lar, local onde
ficamos abrigados sozinhos, ou junto à nossa família. Casa, além de significar na vida de
Arquimedes o que significa coletivamente, como um símbolo coletivo, assume um poder de
um símbolo individual, tendo para ele um sentido particular e importante. Ter uma casa onde
morar para Arquimedes, é o que estrutura a sua mente, ficar sem casa, deixa-o a mercê da
loucura, da psicose. Arquimedes atualmente encontrou uma nova casa, o HCT/BA, motivo
pelo qual está bem, mesmo que lhe falte privacidade. No HCT/BA, ele come, ele dorme, ele
trabalha na lavanderia, „se destaca da multidão‟ (vide narrativa na p. 93). Na enfermaria onde
dorme, ele „personalizou‟ o „seu quarto‟ e guarda junto ao seu leito, os seus pertences, além
de caixas de diversos tamanhos onde se encontram papéis e os outros materiais que ele usa
para fazer artesanato, nas „horas de descanso‟. Para ir ao „seu quarto‟ e me mostrar seus
trabalhos de artesanato basta-lhe pedir a chave a uma técnica de enfermagem e abrir a grade
da ala: numa manhã, no meio do serviço, Arquimedes, com o intuito de me mostrar a sua
produção de artesanato, pediu licença na lavanderia para sair um pouco, o que lhe foi
concedido. Nós entramos no prédio do HCT/BA, a sua ala estava trancada e vazia, os
internos-pacientes estavam no pátio, a técnica de enfermagem de plantão não se encontrava
no Posto, a encontramos depois no Posto de outra ala. Arquimedes lhe pediu a chave da ala,
lhe informando que precisava ir lá para me mostrar seu material, a interna-funcionária de
pronto me entregou a chave, subimos, eu abri os cadeados e entramos. Junto ao seu leito,
140
estava o seu material, que ele me mostrou com orgulho, principalmente a casa que construiu
com papel.
Sabemos que Arquimedes conquistou no HCT/BA, algumas regalias: um agente
prisional abre o portão para ele sair para o pátio, após o café da manhã, já que ele precisa
levar as roupas sujas para lavar na lavanderia, ele passa e os outros internos-pacientes
continuam aguardando junto à grade; na lavanderia ele é necessário e importante, “minha
presença na lavanderia tá importante, um saiu de alta, o outro eu não sei”, também faz sua
„correria‟ (como narrado na p. 93), possibilitando fazer dentro do HCT/BA, seus
investimentos, isto tudo atestando a sua adaptação na instituição. Quando pensa em sair do
HCT/BA diz: “acho que meus irmãos podia comprar uma casa pra eu ficar, quando eu sair
daqui”. Vamos então ao manuscrito, que fala por si mesmo:
Deus é fiel, Samaria. Jesus te ama. Abaixo de Deus, pelo que eu me conheço e o que
eu me lembro, eu estou sendo sincero. Obrigado meu Deus por tudo!
De um pai, para uma filha:
[...] Eu saia para trabalhar e voltava, Aleluia, sua mãe, estava bem. Nós morava de
aluguel na casa de um primo [...].
[...] A dona Henaís, sua avó [...], logo depois que ela começou a frequentar a nossa
casa, sua mãe começou a mudar, dizendo pra nós sair da casa que nós estava morando.
Nesta época você estava mais ou menos com seis meses de nascida. Não tinha motivo de nós
sair dali [...]. Eu perguntei pra sua mãe: porque você quer mudar de casa?[...].
[...] Eu não culpo dona Henaís, não culpo Aleluia, não me culpo, tão pouco você,
minha filha. Reconheço que tenho defeitos, e os meus erros, mas, naquele dia em que eu sair
da casa de meu primo, pensando no bem estar da minha família, e fazendo o que eu não
estava com vontade, talvez tenha sido um grande erro meu. Se eu soubesse que tudo que me
aconteceu e nos aconteceu, iria acontecer por motivo de eu fazer a vontade de sua mãe, que
talvez não foi só ela que queria, mas também dona Henaís possa ter feito a cabeça dela pra
ela tomar esta atitude errada de querer sair de um lugar no qual eu e ela estávamos bem e
jamais teria aceitado o que ela queria [...].
[...] Voltamos para morar próximo de dona Henaís de aluguel e depois ela falou pra
mim construir na casa dela para nós juntar um dinheiro e sair do aluguel. Então eu
concordei e comecei a construir. Não foi fácil [...] tive alguma ajuda pra levantar dois
cômodos e banheiro, mas eu não consegui terminar completamente, e já fomos morar dentro.
Mas como eu cobrir de telha, dona Henaís já não gostou, pois queria que eu batesse laje. O
dinheiro não dava, no momento ela ficou com raiva por eu não ter batido laje. Não demorou
141
muito tempo, eu perdi o trabalho. Então as coisas ao invés de melhorar, piorou [...]. Sua vó
já se intrometia nas nossas vidas; antes era por debaixo do pano, porque eu morava longe
dela e ela só falava mal de mim por trás. Depois que eu morava de favor, e ainda por cima
desempregado, aí ela começou demonstrar quem ela era de verdade [...] e eu aguentando
tudo calado [...].
[...] Me perdoe minha filha de estar escrevendo estas palavras que você não é
merecedora de ouvir [...]. Olha Samaria, uma pessoa comete erros e errar é humano, perfeito
é Jesus Cristo, Ele é perfeito, mas, quando uma pessoa é falsa, eu acredito que ela morre
sendo falsa, a sua vó tem esse defeito, porém ela fez tudo isso, mas eu não desejo nada de mal
para ela, mas eu sou sincero para você e para qualquer um [...].
[...] Sei que hoje, agora, para mim é impossível te ver agora, por que eu estou preso
mais uma vez, esta é a segunda vez que me jogam atrás das grades [...] eu estou vivo pela
misericórdia de Deus [...].
[...] Depois que eu fui discuti com sua vó, eu sair de lá, deixei você [...] com a sua
mãe lá na casa que eu tinha construído com tanto esforço para nós morar, até que eu e sua
mãe pudesse comprar o nosso terreno assim como tinha sido combinado [...]. Então, para eu
não fazer algo pior com sua avó35, eu tive que abandonar você e sua mãe [...].
[...] De noite às vezes eu sentia saudade de vocês, na época eu ia dormir com vocês
escondido da sua vó. Um dia ela percebeu e chamou a polícia para mim. Então nós contamos
o que estava acontecendo, e o motivo de eu pular o portão de noite. Então os policial disse
para ela que ela desse para mim o que eu teria gastado na construção. Mas, nada foi
resolvido, ela não me deu, eu estava desempregado e na rua sem onde morar, e o pior de
tudo que eu tinha filha. Tinha vontade de estar ao lado de minha filha e não podia. Fui morar
com um amigo [...]. Com poucos dias sua mãe apareceu e nós conversamos. Ela me chamou
para eu ir para casa e eu recusei, e disse para ela [...]. Então ela quis ficar junto de mim. Eu
falei com meu irmão e ele fez junto comigo e alguns amigos um barraco de madeira no fundo
do quintal do terreno que era da minha mãe, a sua vó, Ilsíres, quando ela era viva. Então
fizemos o barraco, e sua mãe e você veio e nós ficamos morando junto. Estava bom pelo fato
de ter vocês perto de mim, mas por outro lado, estava mal por que eu estava desempregado.
O barraco não tinha banheiro, só tinha mesmo a cama e o fogão e o bujão, mesmo assim, não
tinha o que cozinhar, até o seu leite faltava [...]. Minha filha, eu te amo. Eu sinto saudade
35
O que seria pior, matar Henaís?
142
muito de tudo que eu gostaria de fazer por você e por mim, que eu não pude. Mas, enquanto
há vida, há esperança [...].
[...] Samaria, eu perdi muita coisa com tudo isso. A primeira vez que eu fui preso, fui
roubar. Desculpe pela palavra feia. Nunca toque a sua mão no que não é seu, e onde não te
derem permissão de tocar. Seja lá o que for nunca toque. Por que eu estava passando por
uma situação crítica, eu errei. Porém, paguei um preço muito alto, e fiquei dois anos e sete
meses preso. A sua mãe me abandonou, não levou você para eu ver nem um dia. Eu sofri
muito. Perdi você, perdi sua mãe, perdi minha liberdade [...].
[...] Pra você saber Samaria, eu não aguentei, tive problema mental dentro da cadeia,
quase morro, eu creio que eu não morri primeiramente por causa de Deus, que foi
misericordioso para mim e para você. O segundo motivo de eu não ter morrido, foi você, que
quando eu estava prestes a me entregar, eu estava nas últimas, Deus me fez lembrar de você,
então a partir daí eu comecei a reagi e melhorei um pouquinho, e fui me lembrando e
reagindo36[...].
[...] Tinha saído da cadeia e ido pra casa do meu irmão, não tinha pra onde ir, e eu
não queria vim pra Bahia, onde eu estou agora [...]. O motivo era as condições financeiras,
pois se eu viesse, eu não teria como ficar perto de você, pois pra vim eu até dava um jeito,
mas eu não podia sair de perto de você. Então os meus irmãos se reuniram [...] pegaram e
se livraram de mim. Eles também não pensaram em você, e mandaram eu para o Espírito
Santo, dizendo que tinha gente me esperando na rodoviária [...]. Mas, eu cheguei lá na
rodoviária e não vi ninguém me esperando. Então eu fiquei perdido, não sabia onde era a
casa de minha irmã, eu com problemas mentais e não tava entendendo nada do que estava
acontecendo, então eu fiquei uns quatro dias mais ou menos procurando a casa da minha
irmã, mas era em vão. Perguntava para as pessoas e ninguém podia me ajudar, fiquei
dormindo na rua. Perdi o meu RG, e fiquei sem saber o que fazer. Então eu coloquei na
cabeça e fiquei com medo de virar mendigo, e pensei: eu vou tentar, ou melhor, eu vou pra
Bahia, que lá eu tenho minha mãe e ela pode cuidar de mim e eu dela [...].
[...] Mas eu estava perdido e sem dinheiro da passagem. Eu pensei, vou andando, mas
eu não sabia para onde começar andar. Então fui andando sem saber para onde, mas eu
queria chegar na Bahia, então continuei andando e andando dentro do Espírito Santo e
descia rua, e subia rua, e não chegava em lugar algum. Dormia nas calçadas e nos quintais
das casas. Quando eu já estava desesperado e desanimado, foi que eu encontrei uma avenida
36
Parece-me aqui que Samaria foi para Arquimedes, o seu impulso para continuar vivo.
143
larga e eu olhei para um lado e para outro, eu já estava cansado de tanto andar, perguntar e
ninguém me ajudar [...].
[...] Mas eu queria chegar na Bahia. Porém, andei o dia todo, quando estava
escurecendo eu cheguei num Posto de parada e restaurante [...].
[...] Então eu pedi comida no restaurante. Sei que comi um pouco e descansei. Depois
eu segui voltando o destino pra Bahia. Atravessei umas cidades. O sapato na pista, eu estava
com um Olímpicos novo, mas eu gastei ele quase todo de tanto andar [...].
[...] Mas era necessário que eu lutasse até o fim, não podia abandonar aquilo que eu
precisava. Parava para descansar, mas não tinha jeito, eu olhava pra pista e era como se
fosse impossível de eu chegar. Eu estava lutando com algo que para mim não tem fim, eu
andava mais ou menos 10 horas por dia, quanto mais eu andava, parecia que a pista só
aumentava, por mais que eu andasse, eu sempre me sentia no meio do mundo [...]. Então eu
passei por algumas cidades [...]. Então eu fiquei na estrada esperando passar algum carro
para eu retornar, mas nenhum carro que passou me levou. Eu resolvi vim andando [...].
[...] Voltei para dormir uns três dias nessa cidade, lavei as roupas na praça bem ao
lado da rodoviária e fui pedir dinheiro para as passagens. Consegui uns doze reais mais ou
menos, a passagem era, não me lembro direito, era de trinta e sete abaixo, talvez vinte e sete.
E eu fiquei ali na rodoviária [...] pedindo dinheiro para um e para outro e eu tinha um CD de
Racionais e eu vendi por cinco reais e chegou um jovem com uma bíblia na mão e começou
falar de Deus para mim, e eu fiquei ali dando atenção [...].
[...] Eu acredito em Deus que aquela passagem tinha sido pra mim, ali foi um
presente que Deus tinha preparado para mim. Eu consegui uma quantia que não era o que
valia, nem o que ele queria, mas ele me vendeu e eu embarquei, e cheguei a Salvador pela
misericórdia de Deus [...].
[...] Quando eu cheguei em Salvador, eu dormi ao lado da rodoviária. De manhã eu
sai andando e eu fui procurar um trabalho. Andei muito com intenção de arrumar um
trabalho ou uma passagem para a minha cidade [...].
[...] Dormi alguns dias nas calçadas, mas graças a Deus eu cheguei num galpão que
estava em reforma e falei a minha história para o pedreiro e pedi emprego, e ele mandou eu
esperar do outro lado da rua, eu fui e fiquei sentado na calçada. Logo depois ele me chamou
e me mostrou uma calçada de concreto e disse: o serviço que tenho é pra furar um buraco
aqui, e trouxe com ele um ponteiro e uma marreta e eu peguei e comecei [...].
Trabalhei uma semana e na sexta ele me deu sessenta reais e eu já tinha dito que eu
só queria mesmo arrumar o dinheiro da passagem [...] eu disse que iria comprar a passagem,
144
ele me falava: não vai, você fica mais. Eu já estava com muita saudade da minha mãe e
vontade de chegar, e disse para ele: não, eu vou. Agradeci e fui. Cheguei na minha cidade de
noite, não sabia a casa nem o bairro que minha mãe morava. Dormi na praça, e depois, de
manhã, eu sai a procura de alguém que pudesse me informar a casa de minha mãe. Então,
lembrei a direção da casa de uma mulher que eu conhecia e consegui acertar a casa dela. Eu
cheguei lá e disse para a filha dela: eu sou filho de Rufo você sabe onde minha mãe mora?
Ela não sabia, mas por sorte minha que ela falou: tu é irmão de Felícia? Eu disse sim. Ela
disse: ela trabalhou aqui do lado, na casa de um vizinho, e mostrou a casa [...]. Dias depois
que eu morava com a minha irmã, eu comecei as crises novamente. Pegaram eu e amarraram
e mandaram para um hospital e fiquei internado de 08 a 15 dias. Depois eu retornei, mas já
fui morar com minha mãe e um padrasto que tinha. Fui levando a vida, a minha mãe me
levava no Caps e eu não me lembro qual o motivo que eu não fui mais no Caps. Os remédios
acabaram e eu arrumei um trabalho de capinar rua pela prefeitura. Trabalhei três meses, e
depois passei a trabalhar no caminhão de lixo [...]. Eu estava bem, comecei a fazer os planos
de ajuntar um dinheiro para comprar um terreno, e comprei fogão, bujão, e aluguei uma
casa e sai da casa de minha mãe e fui pagar aluguel. Tava tudo bem, já tinha um celular,
bicicleta, tava recomeçando na medida do possível. Um dia eu acordei, vesti a roupa pra ir
trabalhar e logo em seguida, tirei e não fui trabalhar e comecei a bagunçar tudo dentro de
casa, depois eu abandonei a casa e sai para a rua. Fui para um bairro que chama [...], e lá
fiquei numa casa abandonada. Os meus colegas de trabalho passavam por lá trabalhando e
eles me chamavam: vamos com a gente, e eu não dava ouvidos. Depois de alguns dias eu
voltei para próximo do centro e fiquei nas ruas dormindo nos pontos de ônibus e nas
calçadas, e apareceu a minha irmã e a minha mãe, e dizia: vamos para casa, e eu não queria,
e elas foram embora e eu fui indo atrás e quando eu atravessei a pista do planalto, eu voltei e
evinha um carro e eu com o pensamento de parar o carro para que ele me desse uma carona,
eu fiquei no meio da pista e quase provoquei um terrível acidente, mas graças a Deus que o
carro desviou em cima de mim e os caras que tavam no carro ficaram muito bravo comigo,
mas não chegaram a parar. Então eu retornei para a casa de minha irmã e ali fiquei, mas a
minha irmã já estava para se mudar. Pois a dona já tinha pedido a casa e a minha irmã
Felícia estava procurando casa pra alugar. Passado alguns dias ela achou, mas ela disse pra
mim: eu não quero você atrás de mim não. Então eu fiquei tão chateado que eu cheguei a
falar besteira para ela, eu disse para ela: você não é a minha irmã não, você deve ser irmã
do diabo, que Deus me perdoe por isto, mas eu fiquei triste e com raiva dela, naquele
momento eu não tinha pra onde ir. O meu padrasto não queria eu lá, eu não tinha para onde
145
ir. Então ela se mudou e eu fiquei na casa com a chave. Mas, não passou muitos dias e
chegou a dona pedindo a chave e eu entreguei. Minha mãe colocou as coisas na casa de uma
amiga dela, e eu fiquei sem ter para onde ir37[...].
[...] Então eu fui falar com Nereu e pedi pra ele um terreno, e ele me deu. Eu falei
com meus tios Cornélio e Eustáquio e eles comprou mil alvenaria para mim. Então o meu tio
falou com meu padrasto pra eu ficar lá até que eu construísse um cômodo pra eu ficar. Mas
faltava cimento, fazer o alicerce, faltava praticamente tudo. Então eu fui pra casa de minha
mãe e comecei a fazer frete no carrinho de mão e consegui comprar um saco de cimento. Fui
na fazenda de um conhecido que se chama Júnias e pedi a carroça e o animal emprestado
para eu carregar areia e a carroça estava com defeito, porém o animal ele me emprestou e
me disse que outro conhecido tinha uma carroça e eu fui atrás de Israel e ele me emprestou a
carroça dele e eu pude carregar areia e colocar no local. Fui tentando construir sem ter
material direito38[...].
[...] Sem saber, fui fazendo conforme a necessidade, mas não demorou muito e eu
estava em casa bagunçando o guarda-roupa e a polícia chegou e me levou para a delegacia,
mas não fiquei preso e me levaram para casa e eu não queria ficar lá e eles me levaram para
o meu terreno, mas eles não sabia onde era e me deixaram no meio da estrada e eu fui para o
terreno e fiquei lá. Depois eu retornei para a casa de minha mãe, e dias depois, eu chegando
do trabalho estava a minha irmã Felícia e minha mãe carregando as coisas, a minha mãe
estava saindo de casa e carregando tudo. Então eu não deixei ela levar o bujão e o bujão era
de minha mãe, ela estava indo para a casa da minha irmã e lá tinha bujão, e ela ia me deixar
sem bujão direito39[...]. Eu peguei o bujão e retornei para casa e fiquei lá. De noite me deu
fome, então eu abri o armário e nada tinha para eu fazer para mim comer, só tinha sal grosso
e um pouco de farinha de mandioca. Tinha um pé de abóbora no fundo do quintal e eu fui e
cortei e fui por para cozinhar e cozinhou, mas as abóbora era horrível e com sal grosso e
farinha não desceu, então eu coloquei o colchão no chão dentro do quarto e fui dormir, mas
não sei se eu dormi ou não, só sei que eu levantei, não sei que horas eram da noite, e fui para
a casa da minha irmã. Eu estourei a porta de uma casa abandonada e abri a do fundo e subi
no muro do quintal, e sai em cima da casa da minha irmã, no telhado, e bati os pés e não sei
37
Observo que novamente Arquimedes ficou sem casa para morar, tema recorrente em sua narrativa, ele andou do Espírito
Santo à Bahia atrás de sua mãe, atrás de família, de cuidado, infelizmente, não foi isto que ele lá encontrou, lá recebeu
desprezo e abandono, como já havia acontecido com seus irmãos que residiam em outro Estado.
38
Observo que Arquimedes continuava querendo uma casa para morar.
39
Aqui, novamente a família de Arquimedes não se importou com ele, e com o seu destino.
.
146
como cai dentro da sala e dei de frente com minha mãe, e lembro que eu perguntei para ela
onde estava meu pai e ela disse: não sei. Sei que com a pedra, comecei a bater sobre a
cabeça dela. Só Jesus para ter misericórdia deste fato que nos aconteceu. Sei que isto para
mim foi uma tragédia, eu nunca pensei que eu ia passar pelo que eu passei e estou passando,
mas agradeço a Deus por tudo. Depois que isto aconteceu, eu sai de dentro de casa, do local
do fato, e deitei num monte de ruma de pau que tinha numa esquina. Então, eu ouvi e vi
alguém me xingando e dizia miserável, matou a mãe, e quando eu ouvi isto eu levantei e sai
andando e fui para a casa atual, onde do colchão eu levantei. Chegando lá eu peguei a bolsa
e as roupas e as ferramentas de trabalho e ao lado do terreno tem um pé de umbuzeiro, e lá
eu fiquei. Depois chegou uns caras, o qual não era polícia, perguntando por que você matou
sua mãe? Mas eu não sabia por que, e não sei. Só sei que no dia não falava nada e eles
disseram: vamos matar! Perto de mim estava uma foice que eu trabalhava com ele, e quando
eu ouvi eles dizer: vamos matar! eu estava sentado e levantei e a foice se encontrava no chão.
Eu peguei, e nada falava, e enfinquei a foice no chão e eu escutei eles dizer: vamos chamar
reforço, e eu continuei lá, e depois chegou um monte de polícia e eles dizia com as armas
apontada para mim se entregar que era melhor. Mas eu respondia: entra, pode entrar, e
assim ficou eles mandando eu me entregar e eu não estava entendendo e fiquei quieto
sentado. Então não sei quem foi, mas não estava de farda, jogou um pau em mim e eu peguei
o mesmo e sai de debaixo do umbuzeiro e corri atrás do que jogou o pau em mim e eu joguei
de volta nele. Nisso, pelo lado que eu corri atrás de quem jogou o pau em mim, eu passei
perto dos policiais e eles nada fez, mas quando eu retornei de volta para o umbuzeiro, então
só deu tempo eu me virar de frente para os policiais e eu escutei barulho de tiro e senti dores
e cai no chão. Assim que cai, eles entrou debaixo do umbuzeiro e quando eles chegou perto
de mim, eu levantei e eles me pegaram, e me fizeram eu sem aguentar passar por uma cerca
de arame e do lado por onde todos passaram, tinha um lugar de passar, mas eles me fizeram
eu passar por entre os arame farpado, me jogaram no fundo da viatura e saíram. Quando eu
estava em cima de uma maca, eu acho que foi no Hospital da minha cidade, eles me tiraram
de cima da maca e me levaram para a viatura. Com poucos segundos ou minutos eu
desacordei e quando acordei já estava no HGE, em Salvador. Acordei cortando a minha
roupa, depois dormi de novo, quando eu vim acordar, eu estava sendo levado não sei para
onde, mas estava numa fome. Fiquei alguns dias naquele hospital e depois me tiraram e
levaram não sei para onde, mas foi cadeia. Não me aceitaram e levaram para outra, e eu
fiquei alguns dias só de fraudas, num lugar imundo, os meus ferimentos inflamou, ponto
estourou, eu passei por ato desumano, sentindo dores, o braço quebrado, nervos e tendão
147
estourado, três lugares ferido em meu corpo. Depois de mais ou menos uns oito dias, fizeram
um curativo em mim, e depois levaram eu para outro lugar mais sujo, só barata, água pra
beber era de garrafa que estava lá não sei de quanto tempo. Alguns dias depois tiraram eu de
lá e me colocaram dentro de um bonde e eu fiquei no HCT, Hospital de tratamento e
Custódia de Salvador pra fazer exame de sanidade mental e depois de quatro meses mais ou
menos, eu fiz o exame e constatou um tipo de problema mental, segundo a psicóloga, dona
Lidízia. Dias depois eu fui transferido de volta para a minha cidade e fui no juiz uma vez, e
ele ficou de decidir, e aqui estou até o dia de hoje, 27/01/2011.
Eu estou terminando esta história agora, mas não desejo tudo que passei até aqui
para ninguém na face desta terra.
Dia 27/01/2011, quinta-feira, duas horas e quinze minutos, diz um companheiro que
está na sela ao lado da que eu estou. Ele me informou as horas através de um pequeno
relógio que nós tem.
FIM. FIM. FIM. FIM.
Especial para a minha filha Samaria, o homem que é esse seu pai, Arquimedes.
Casa construída no HCT/BA por Arquimedes
No início do meu trabalho de campo, me disse Arquimedes: “eu agora não tenho
casa pra morar, tô aí pela misericórdia de Deus”, no final, ele construiu com papel, no
HCT/BA, uma casa. Pediu que eu a fotografasse em cima de uma grama, pois aquela casa era
muito importante para ele e queria mostrar para sua filha Samaria. Fiz as fotos e lhe entreguei.
Dias depois, sabendo que eu já estava finalizando a minha pesquisa, Arquimedes me deu a
casa de presente, agradecendo-me por achar que eu interferi de algum modo para que fosse
feito o seu laudo de cessação de periculosidade. A princípio, tentei reagir à sua oferta,
sabendo o quanto aquela casa significava para ele, no entanto, em função de sua insistência,
aceitei emocionada. Desejei que em breve ele saísse do HCT/BA e conseguisse um trabalho, e
principalmente uma casa para morar, para no futuro, ir ao encontro de Samaria. Em
retribuição ao presente recebido, já não mais no papel de pesquisadora, sim de „amiga‟ como
ele me nominou (vide página 94) comprei um sapato e algumas peças de roupas para que ele
usasse quando da sua saída do HCT/BA, além de caderno e caneta, para que continuasse
escrevendo as suas vivências.
A seguir coloquei fotos da casa de Arquimedes, símbolo do seu desejo de em saindo
do HCT/BA, „comece uma vida do zero‟. A casa construída com as suas próprias mãos,
148
símbolo organizador de sua mente, é também um pedido de um dia, quem sabe, ter direito a
morar na cidade, ter uma casa, ser cidadão.
Foto 2. Casa de Arquimedes
Foto 3. Casa de Arquimedes
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Deixando claro que nada pude concluir apenas levantar questões e fomentar
discussões, cito Amarante (1996, p. 28):
O saber científico é parcial e restrito de per se. O real é sempre e necessariamente
complexo, tem vários níveis de existência, de possibilidades e de compreensão, que
não se excluem nem se complementam, mas, são em si, a sua própria complexidade.
149
Este estudo fomentou inúmeras questões, o campo se mostrou extremamente
complexo muitas vezes trazendo respostas distintas sobre a mesma questão, e por que não
dizer, perspectivas ambivalentes sobre o mesmo ponto. O número pequeno de pesquisas
similares na literatura impossibilitou a realização de comparações o que muito teria
enriquecido este trabalho. Necessário que outros estudos sejam feitos possibilitando um maior
aprofundamento das questões que o próprio campo pode gerar. Restou-me trazer o que pode
ser observado com os dados colhidos, sem a intenção de esgotar os questionamentos. Como o
objetivo deste estudo era compreender como os internos do HCT/BA, pensam e representam a
sua doença, o crime e a internação, e como objetivo complementar a este, também
compreender como os funcionários do HCT/BA pensam e representam a sua experiência
institucional, lancei mão da narrativa de suas vivências, registrando os sentidos e significados
dados às mesmas, o que foi feito no decorrer dos capítulos referentes aos dados do campo.
Considerei que o aspecto abordado na metodologia devido ao perfil da clientela e a
sua interação com uma pesquisadora psiquiatra „naturalizada‟ em hospício, foi extremamente
relevante e trouxe alguns dados que dificilmente seriam colhidos por um pesquisador de outra
área. Apesar de minha preocupação inicial com este aspecto, pude relaxar dentro dele e
permitir que ele passasse a ser para mim um facilitador e não um complicador na pesquisa.
Não foi possível, ao longo do trabalho, me furtar de tratar de questões éticas e de algumas
vezes intervir no campo, em função do meu perfil enquanto profissional de saúde mental,
além da própria natureza do campo e dos atores estudados.
O Hospital de Custódia e Tratamento da Bahia – HCT/BA é uma instituição
manicomial, ambígua e paradoxal, pois une num mesmo espaço a lógica da prisão e a lógica
do hospício, não funciona como hospital e prioriza as suas características de cadeia. É uma
instituição que existe com a função de oferecer custódia e tratamento a doentes mentais
inimputáveis, na perspectiva não de puni-los, e sim de tratá-los. No entanto, na prática, ela
exerce outra função, a de retirar do convívio social os loucos, perigosos e criminosos e
proteger a sociedade do risco de sua convivência por representarem uma ameaça social. O
HCT/BA na parte que lhe cabe enquanto hospício oferece um tratamento na maioria das vezes
ineficaz, serve para conter a loucura e não necessariamente para tratá-la, estigmatiza, exclui,
promove o abandono, não ressocializa, propicia mais adoecimento, não diminui a
periculosidade e sim a aumenta, não corrige a delinquência, reforça o parentesco entre a
periculosidade e a loucura na representação coletiva.
O manicômio tem servido então como o local onde ainda podem permanecer
indefinidamente, doentes mentais, cada vez mais adoecidos, precariamente assistidos, e em
150
regime de internação asilar. A ambivalência própria da instituição, desde o seu nascedouro,
vai propiciar àqueles que nela vivem ou trabalham, desenvolver em si discursos, práticas e
sentimentos ambivalentes. Cheguei a conclusão de que a instituição Hospital de Custódia e
Tratamento torna internos, os que nele estão para custódia e tratamento, e os que nele
trabalham. Observar os funcionários como internos, perceber as semelhanças nos discursos
destes quando comparados aos dos pacientes, e captar o sofrimento e a mortificação porque
passam no HCT/BA, foi para mim um dado inesperado e expansivo na minha leitura enquanto
psiquiatra e pesquisadora de ciências sociais.
O manicômio e o que ele produz „contamina‟ aqueles que nele permanecem, que
absorvem, a partir de uma interação baseada em normas massificantes e de controle social,
um modo de ser e de viver adoecido, que ao longo do tempo destrói o eu, seus desejos, suas
fantasias, suas singularidades. De certo modo, a partir e por conta desta produção interativa
manicomial,
os
„indivíduos
manicomiais‟
antes
indivíduos
singulares,
tornam-se
despersonalizados, misturados uns com os outros, absorvendo práticas institucionais e as
incorporando ao seu eu. Com o tempo, o manicômio piora o adoecimento dos já doentes e
adoece os antes sadios; IPs e IFs vão lançar mão de táticas de adaptação para suportarem
permanecer na instituição.
Internos-pacientes mostram alguma individualidade quando se lembram do passado,
ou nos momentos em que pensam em algum dia voltarem a serem pessoas, ao saírem do
Hospital de Custódia e Tratamento. No entanto, se esses indivíduos voltarão ou não a serem
pessoas ao saírem do manicômio, pode ser objeto de outro estudo. Entendo que estudar as
trajetórias dos ex-custodiados no HCT/BA, seguir o percurso de suas vidas a partir de suas
saídas da instituição, poderá trazer dados complementares importantes para o estudo que aqui
fizemos.
A partir da observação do perfil dos internos-pacientes do HCT/BA, ficou claro que
assim como para todo o sistema prisional do nosso país, ele é uma instituição para pessoas
menos favorecidas sócio-cultural e economicamente falando. Ao conhecer a instituição e sua
clientela, logo me perguntei: loucos universitários, brancos e ricos não cometem crimes? Se
cometem, onde estão e como estão sendo tratados? Também esta poderá vir a ser uma
pergunta para um novo estudo.
Internos-pacientes do HCT/BA, ora presos, ora doentes, sofrem além da privação de
liberdade, inúmeras outras privações, vivem num ambiente insalubre, não tem direito à
atividade, nem ao trabalho, nem à privacidade, a educação e o tratamento a eles oferecido são
de qualidade ruim; a presença da família se dá na minoria dos casos, a morosidade do sistema
151
penal e o pouco interesse da família e da sociedade em geral com a situação em que estão lhes
propicia mais tensão e incertezas quanto ao seu futuro.
O crime nos pacientes psicóticos, na maioria deles foi cometido em estado de franca
loucura ou de falta de consciência. Estes internos-pacientes têm sentimentos ambivalentes
sobre seu crime, responsabilizam pelo mesmo a doença, a falta de tratamento ou o uso de
drogas. O crime para eles, não os torna pessoas perigosas, já que ocorreu no momento para
eles pontual, decorrente de um desequilíbrio.
A interação no HCT/BA é difícil, quer entre internos-pacientes, quer entre internosfuncionários, ou entre IPs e IFS. Existe nesta interação, uma comunicação difícil, certa
desconfiança, falta de colaboração. Rituais de evitação e de auto-proteção, se estabelecem
facilmente dos IFs para com os IPs, mas também dos IPs entre si, principalmente na
decorrência da diferenciação lúcidos ou doentes. Estar no HCT/BA para uns pode significar o
inferno, para outros pode ser bom, ele além de prestar o seu serviço à sociedade, pode servir
àqueles que não têm família, não tem onde morar, onde comer, onde se tratar.
Na instituição HCT/BA, o discurso da falta por parte de seus atores é um dado
recorrente. Falta lazer, falta atividade, falta alimento, falta higiene, falta atendimento, falta
funcionário, falta integração, falta reunião técnica, falta comunicação, falta, falta, falta...
Mas, apesar de tantas mazelas encontradas, alguns internos, sejam pacientes ou
funcionários, gostam da instituição, estão a ela adaptados, sentem-se bem estando ali, acham o
HCT/BA um lugar bom de „morar‟ ou de trabalhar. Apesar também da baixa qualidade do
tratamento oferecido aos doentes-presos, com o tempo em função do uso contínuo de
medicamentos psiquiátricos e/ou a abstinência de drogas, a sintomatologia apresentada por
eles pode ser amenizada.
Já que não posso finalizar com respostas, trago algumas perguntas:
a.
Doentes mentais são mesmos perigosos, ou esta periculosidade se relaciona ao
tratamento inadequado, ao contexto social excludente, à rejeição e à estigmatização
social sofrida por eles? A periculosidade pode ser uma resposta ao controle social
sobre eles exercido?
b. O que leva à sociedade a incluir em seus procedimentos „terapêuticos‟ uma série de
privações, já que estas privações geram mais revolta, agressividade e inadequação
social?
c. São as situações sociais insalubres e perversas vividas pelo doente mental antes de
chegar ao manicômio, que o faz algumas vezes preferir permanecer no manicômio, ou
152
aceitar facilmente esta possibilidade como opção de vida? Concluiu Bartus: “tô
comendo, tô dormindo, tão me tratando bem [...], lá fora não tenho onde ficar”.
d. O manicômio enlouquece aquele que antes não era louco, mas „ninguém acostuma
com ele, caleja‟. Assim, pode-se ficar no manicômio até morrer, ser morto ou até se
aposentar. Isto só é possível porque o indivíduo deixou de ser indivíduo e se
institucionalizou?
e. Será que apesar de tudo, é possível em algumas situações, alguma „ressocialização‟,
ou o indivíduo „que se destaca da multidão‟, apenas está aderido à instituição como
forma de sobrevivência?
f. A criminalidade surge no contexto da doença mental geralmente como resposta a um
tratamento inadequado. No entanto, se o crime ocorre, a família se isenta da
responsabilidade, o Estado, e a sociedade excludente. Apenas o doente „inimputável‟ é
punido. Quando será possível fazer diferente?
O manicômio do século XXI, pouco evoluiu se comparado aos hospícios do século
XIX. A psiquiatria atual e as suas práticas, ainda não superaram Esquirol e Pinel, os avanços
ocorridos podem ser atribuídos à indústria farmacêutica que pode trazer melhores recursos
terapêuticos, e também avanços no controle sobre o corpo do outro com práticas mais
refinadas. No entanto, não mudamos mentalidades, apesar da mudança de algumas práticas. O
que a sociedade e a psiquiatria precisam fazer, não é só desmontar a estrutura física do
hospício, pois esta é a parte mais fácil, necessário, como nos diz Amarante (2010) superar o
conjunto de saberes e práticas, científicas, sociais, legislativas e jurídicas, que fundamentam a
existência do manicômio, desmontar aparatos de poder e estabelecer uma relação com os
sujeitos em sofrimento. Urge mudar atitudes, relações, mentalidades, sentimentos, contribuir
para a mudança da representação coletiva sobre o louco e a loucura, construir espaços de
cuidado, acolhimento, produção de subjetividades e sociabilidades. Como possibilitar ao
louco ser cidadão, ou seja, ter direito a viver na cidade e não mais somente nas instituições?
Como psiquiatra posso dizer que fazer psiquiatria em hospício, muito pouco exige de
nós. Difícil é nos tornarmos competentes para realizarmos ações complexas em saúde mental,
ampliando nossa ação para além da doença, chegando ao doente, à sua família, comunidade e
sociedade. Necessário buscar uma atitude epistêmica, na medida em que escutamos os
sujeitos e teorizamos a partir de suas vivências. A questão não é negar a existência da doença
mental e a necessidade de intervir sobre ela, no entanto, o sujeito deve estar à frente de sua
doença nesta intervenção. Nesta intenção optei por ouvir os internos-pacientes no HCT/BA e
153
a partir de suas falas, aprender com eles e teorizar a partir de suas narrativas. Espero que
outros pesquisadores façam o mesmo e que este estudo possa se ampliar com outras questões.
Como grandes mudanças sociais se fazem lentamente ao longo da história, enquanto
não for possível outro modo de tratar os doentes mentais que cometem delitos, a nossa
sociedade poderia tornar instituições manicomiais, de algum modo, a cada dia „menos
manicomiais‟, se aproximando de instituições hospitalares, na medida em que mentalidades
de asilamento possam ser desmontadas, para que a sociedade acolha pessoas para tratamento,
em instituições de fato terapêuticas, em situações pontuais e pelo menor tempo possível, para
logo retornarem ao convívio social.
Para isto, poderíamos iniciar por cumprir a Lei nº 10.216 de 06 de abril de 2001 em
seus artigos 3º e 4º:
Art. 3º - É de responsabilidade do Estado o desenvolvimento da política de saúde
mental, a assistência e a promoção de ações de saúde aos portadores de transtornos mentais,
com a devida participação da sociedade e da família [...].
Art. 4º - A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os
recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.
$ 3º - É vedada a internação de pacientes portadores de transtornos mentais em
instituições com características asilares [...].
Além disso, fazer cumprir a recente resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ)
que aprovou em sessão plenária do dia 5 de julho de 2011, recomendação para que as penas
envolvendo pessoas portadoras de transtorno mental possam, sempre que possível, ser
cumpridas em meio aberto. A recomendação determina a adoção da política antimanicomial
na execução das medidas de segurança dos pacientes judiciários.
Na intenção de amenizar um pouco os sofrimentos dos internos do Hospital de
Custódia e Tratamento da Bahia, de possibilitar alguma melhoria na qualidade do tratamento
oferecido aos internos-pacientes e nas condições de trabalho dos internos-funcionários,
ousamos dar algumas sugestões:
a. Maior investimento da SEAP na Instituição.
b. Aumento do número de psiquiatras no HCT/BA, assim como de outros profissionais
da área clínica, com entrada na instituição a partir de concurso público.
c. Regularização da situação dos peritos que nele trabalham.
d. Buscar que serviços de saúde mental no interior do Estado, participem do tratamento
dos portadores de transtornos mentais cumprindo medida de segurança, evitando que
eles precisem ser transferidos para a capital sendo distanciados de seus familiares.
154
e. Envolver a comunidade nas mudanças da instituição e buscar envolver de algum modo
a sociedade, na reflexão sobre a pertinência da manutenção das instituições de
Custódia e Tratamento.
f. Realizar reforma na área física do prédio do HCT/BA, que se encontra em precário
estado de conservação.
g. Elaborar um projeto institucional.
h. Implantar o prontuário clínico único.
i.
Realizar reunião clínica regular.
j.
Realizar reunião regular com a administração, a equipe técnica e com representantes
dos internos-pacientes eleitos por eles.
k. Transferir salas dos setores clínicos para o prédio das alas do HCT/BA.
l.
Implantar medidas que propiciem maior integração entre funcionários de diversos
setores, integrando área clínica com área de segurança.
m. Promover cursos de reciclagem para funcionários das áreas clínica e de segurança.
n. Buscar uma maior participação dos Direitos Humanos na garantia dos direitos dos
portadores de transtornos mentais que se encontram sob custódia e tratamento no
HCT/BA.
o. Buscar uma maior participação das famílias no tratamento dos internos-pacientes na
instituição.
Finalizo com a fala de Áulus, que talvez expresse a expectativa de todos os atores
deste trabalho: “espero que a senhora termine logo essa pesquisa e possa ajudar a gente
melhorando alguma coisa aqui, essa é a hora mais triste, a hora da tranca, agora só sai
amanhã”, a fala de Aurino: “aqui tá bom, só não tá porque tô preso, ninguém acostuma com
cadeia, caleja” e o desabafo de Malaquias: “aqui só dá pra ficar até 10 anos, se passar disso
fica complicado, adoece, eu mesmo, não estou aguentando mais”.
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teórico-metodológicos e análise de uma experiência com o método. Educação e Pesquisa, São
Paulo, v. 32, p. 241-260, maio - ago. 2006. Disponível em:
http://www.scielo.br/pdf/ep/v32n2/ a03v32n2.pdf.
YIN, R.K.; Estudo de caso. Planejamento e método. Porto Alegre: Artmed Bookman, 2010.
160
ANEXOS
161
ANEXO 01
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Mestrado
Termo de Autorização para Realização de Pesquisa
PAULO BARRETO GUIMARÃES, diretor do Hospital de Custódia e Tratamento /
Bahia, declaro que fui devidamente informado sobre o projeto de pesquisa intitulado
“Vivências da Psicose, do Crime e da Internação no Hospital de Custódia e Tratamento da
Bahia”, que se realizará nesta Instituição, com pacientes psicóticos aqui internados, e que
autorizei a realização do mesmo.
Salvador,
/
/
_________________________________________________
Paulo Barreto Guimarães
RG:
162
ANEXO 02
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Mestrado
Termo de Responsabilidade do Pesquisador
MÁRCIA CRISTINA MACIEL DE AGUIAR, pesquisadora responsável pelo projeto
“Vivências da Psicose, do Crime e da Internação no Hospital de Custódia e Tratamento da
Bahia”, declara que se compromete a utilizar somente para fins acadêmicos os dados
coletados.
Salvador,
/
/
_________________________________________________
Márcia Cristina Maciel de Aguiar
RG: 1.242.507
163
ANEXO 03
UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais - Mestrado
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido
Eu, Márcia Cristina Maciel de Aguiar, estou realizando uma pesquisa intitulada
“Vivências da Psicose, do Crime e da Internação no Hospital de Custódia e Tratamento da
Bahia”, que tem como objetivo estudar as vivências da psicose, do crime e da internação em
pacientes psicóticos, que se encontram internos no HCT/BA em função de homicídio.
Usaremos como técnica de coleta de dados a observação do contexto sociocultural elegido e a
análise de entrevistas com pacientes selecionados para o estudo. As perguntas respondidas nas
entrevistas serão de fundamental importância para o alcance dos objetivos propostos. As
informações coletadas servirão única e exclusivamente para este fim, preservando-se a
identificação dos entrevistados. Assim, comprometo-me de que seu nome não aparecerá em
nenhum relatório, ou qualquer outro documento, sendo que toda a informação fornecida
permanecerá como de caráter estritamente confidencial. Os dados publicados serão
apresentados de forma que a sua identidade jamais seja identificada. Asseguramos que a
pesquisa não apresenta qualquer risco para você.
Sua participação é de fundamental importância para o esclarecimento do tema em
estudo, porém é inteiramente voluntária. A qualquer momento você poderá desistir de
continuar e só responderá as perguntas que desejar. Caso tenha alguma dúvida, poderá ser
esclarecida pela pesquisadora através do telefone (71) 3346-4333.
Eu,_______________________________________________declaro estar ciente de
que compreendo os objetivos e condições de participação na pesquisa e aceito nela participar.
___________________________________________ Entrevistador
___________________________________________ Entrevistado
164
ANEXO 04
Detalhamento da Amostra – Internos-pacientes
IP1- Hilário
IP2 - Chamus
IP3 - Camargo
IP4 - Celestino
IP5 - Ubino
IP6 - Hermenegildo
IP7 - Anacleto
IP8 - Matusalém
IP9 - Onífer
IP10 - Calvário
IP11 - Lorisvaldo
IP12 - Hebreu
IP13 - Rubino
IP14 - Bóris
IP15 - Domingas
IP16 - Loureiro
IP17 - Rhadamés
IP18 - Glaucus
IP19 - Menephtah
IP20 - Nazaré
IP21 - Abelardo
IP22 - Eliezer
IP23 - Áulus
IP24 - Pinehas
IP25 – Bartus
IP26 - Libório
IP27 - Rochester
IP28 - Ramsés
IP29 – Jacobed
IP30 – Ithamar
IP31 – Seti
IP32 - Amenophes
IP33 – Lemuel
IP34 – Hermes
IP35 – Jacó
Sexo
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Feminino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Crime – referido pelo interno-paciente
Não referiu
Não referiu
Não referiu
Não referiu
Não referiu
Não referiu
Homicídio
Pedofilia
Homicídio
Tentativa de homicídio
Homicídio
Ameaça
Não referiu
Tentativa de homicídio
Pequenos roubos
Homicídio
Droga
Lesão corporal
Ameaça
Droga
Não referiu
Não referiu
Não referiu
Tentativa de homicídio
Tentativa de homicídio
Homicídio
Tentativa de homicídio
Incêndio e furto
Tentativa de homicídio
Não referiu
Não sabe o motivo
Não referiu
Assalto
Não referiu
Não referiu
165
IP36 – Ariovaldo
IP37 - Genário
IP38 – Ariel
IP39 – Zelote
IP40 – Savim
IP41 – Elinelson
IP42 – Sabino
IP43 – Ulias
IP44 - Orivaldo
IP45 - Onorino
IP46 - Aarão
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Homicídio
Não referiu
Não referiu
Não referiu
Homicídio
Não referiu
Não referiu
Homicídio
Não referiu
Não referiu
Homicídio
166
ANEXO 05
Detalhamento da amostra – Internos-pacientes da amostra central
IPA1 - Saturnino
IPA2 - Arquimedes
IPA3 – Ferdinando
IPA4 - Teofrasto
IPA5 - Perácio
IPA6 - Aurino
Sexo
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
IPA7 - Egito
IPA8 - Alfeu
Masculino
Masculino
Crime referido pelo interno-paciente
Homicídio
Homicídio
Homicídio
Homicídio
Homicídio
Homicídio, latrocínio, sequestro,
tráfico de drogas, porte de arma
Homicídio
Homicídio
167
ANEXO 06
Detalhamento da amostra – Internos-funcionários
IF1 - Ambrosina
IF2 - Narcisa
IF3 - Cidália
IF4 - Áquila
IF5 - Astrogildo
IF6 - Ribas
IF7 - Wilde
IF8 - Aniceto
IF9 - Antonina
IF10 - Gúbio
IF11 - Modesta
IF12 - Henrriete
IF13 - Nicanor
IF14 - Alcione
IF15 - Telésforo
IF16 - Sumatra
IF17 - Belarmino
IF18 - Meliana
IF19 - Eleutéria
IF20 - Felizardo
IF21 - Lanira
IF22 - Norberto
IF23 - Lauriana
IF24 - Omífer
IF25 – Malaquias
IF26 - Custódio
IF27 - Alícia
IF28 - Mena
IF29 - Tebas
IF30 - Zaine
IF31 - Urbano
IF32 - Levi
Sexo
Feminino
Feminino
Feminino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Masculino
Feminino
Masculino
Feminino
Feminino
Masculino
Feminino
Masculino
Feminino
Masculino
Feminino
Feminino
Masculino
Feminino
Masculino
Feminino
Masculino
Masculino
Masculino
Feminino
Feminino
Masculino
Feminino
Masculino
Masculino
Setor
Enfermagem
Enfermagem
Terapia ocupacional
Segurança
Segurança
Segurança
Segurança
Segurança
Segurança
Médico
Serviço Social
Serviço Social
Lavanderia/Rouparia
Lavanderia/Rouparia
Higienização
Higienização
Segurança
Enfermagem
Enfermagem
Terapia Ocupacional
Enfermagem
Segurança
Administrativo
Segurança
Médico
Segurança
Serviço Social
Serviço Social
Enfermagem
Administrativo
Médico
Médico

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