OS SALESIANOS E A PARTICIPAÇÃO CATÓLICA NA EDUCAÇÃO

Transcrição

OS SALESIANOS E A PARTICIPAÇÃO CATÓLICA NA EDUCAÇÃO
OS SALESIANOS E A PARTICIPAÇÃO CATÓLICA NA
EDUCAÇÃO PROFISSIONAL DO BRASIL IMPÉRIO
Marco Aurélio Corrêa Martins – UNIRIO ([email protected])
Edna Braga Pereira – IC UNIRIO ([email protected])
Palavras-chave: Educação profissional. Salesianos. Educação católica. Educação no Brasil
Império.
Introdução
Nossa pesquisa procura perseguir os passos de ações católicas com fins de educar os
pobres. Nosso recorte temporal é o final do Império e início da República. A escolha dessa
temporalidade tem justificativa na divisão tradicional da historiografia brasileira a qual marca
tempos em termos de Império e República Velha. Contudo, a historiografia da Igreja tem
indicado um tempo diferenciado a partir da Pastoral de D. Leme em Recife no ano de 1916.
Para nós, a república exigiu da Igreja no Brasil uma readequação significativa. E por isso,
marcamos na carta pastoral de D. Leme uma virada definitiva naquele período. Portanto,
trata-se de buscar fundamentos distintos daqueles já explorados pela historiografia geral, da
Igreja e da educação, ou seja, explorar as ações educativas da Igreja para os pobres já que a
historiografia da educação sempre buscou entender a ação educativa no plano das estratégias
ultramontanas e a ação das escolas religiosas para as elites.
A persecução da obra dos salesianos tem essa característica anunciada no parágrafo
anterior. E como nosso foco geográfico é o Rio de Janeiro, escolhemos a primeira casa
salesiana no Brasil, o Colégio Santa Rosa em Niterói.
Procurando compreender a participação católica na questão educacional no tempo
histórico das duas primeiras décadas da republica no Brasil, intentamos um estudo sobre a
relação estabelecida no final do XIX entre educação profissionalizante e a questão social da
pobreza na obra educacional salesiana. Esse estudo é parte de um projeto ainda em fase
inicial, mas que conta com apoio da UNIRIO através do programa institucional de Iniciação
Científica. Para esse mesmo fim, obtivemos, recentemente, aprovação de um projeto de
auxílio instalação junto à FAPERJ.
Os salesianos no Brasil e a educação profissional
Em 7 de dezembro de 1872 os primeiros salesianos, em viagem para a Argentina,
aportaram no Rio de Janeiro. O bispo do Rio de Janeiro, Dom Pedro Maria de Lacerda, ao
receber a visita dos sacerdotes, conclui ser a obra salesiana um instrumento para fortalecer seu
trabalho pastoral na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Lacerda era um desses padres ordenados
pelo espírito da chamada “reforma” promovida por alguns bispos no Brasil. Esse movimento
procurava reformar as dioceses dentro do espírito tridentino. D. Lacerda foi formado no
Seminário de Mariana – MG, reformado por D. Viçoso, numa das primeiras safras desse
modelo. Empreendendo essa mesma reforma no Rio de Janeiro, agora como bispo, D.
Lacerda contava com o apoio de outras ordens religiosas como a congregação dos Padres da
Missão (ou lazaristas), a Companhia de Jesus e a Ordem dos Frades Capuchinhos.
A característica principal da obra salesiana que teria chamado a atenção do bispo
carioca era a educação da juventude pobre e desamparada. Entusiasta de primeira hora, o
arcebispo do Rio de Janeiro esteve na obra originária dos salesianos em Turim, Itália, e tratou
pessoalmente com o fundador, D. Bosco, da vinda da nova ordem para o Brasil.
A vinda dos salesianos para o Brasil, de forma permanente, em 1883, foi fruto de uma
investida persistente de D. Lacerda, que não poupou esforços para expressar o quanto queria a
presença e o trabalho deles instalados em sua diocese, em Niterói. O Padre Luís Lasagna foi o
encarregado de preparar a instalação dos salesianos no Brasil. Foi ele o responsável pela
compra da propriedade onde se estabeleceram os salesianos, em Niterói a partir de um
investimento feito pelo próprio Arcebispo do Rio de Janeiro.
Os salesianos eram considerados “modernos”, pois não desenvolviam sua obra do
mesmo jeito que outros clérigos, de forma considerada arcaica. Dessa maneira, conquistaram
a simpatia da população do Rio e de Niterói. Porém ao mesmo tempo em que conquistavam
uns de um lado, do outro causava certo incômodo na Igreja tradicional brasileira. “A
modernidade dos salesianos foi certamente uma chave que lhes abriu a porta da sociedade
brasileira, em vias de abandonar um padrão arcaico, patriarcal e escravocrata, rumo a uma
concepção social mais burguesa, progressista e democrática.” (AZZI, 1983a, p. 75).
Porém, apesar dessa roupagem de modernidade, os salesianos eram uma ordem
católica e, portanto, tinham suas limitações. Eles eram, por exemplo, contra a educação mista,
que na época já acontecia nas instituições protestante, eles consideravam uma “perversão
moral”.
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Confrontados com as antigas ordens religiosas atuantes no Brasil, os
salesianos emergiram como educadores modernos, enfatizando o valor do
trabalho, da recreação, da ginástica, do teatro e da música. Mas continuavam
marcados por um rigorosismo moral de sabor quase jansenista, típico da
Igreja no século XIX. (AZZI, 1983a, p. 76)
Essa modernidade apontada por Azzi não era bem vista por alguns tipos de liberais.
Esses viam em toda ação católico as forças do atraso e combatiam veementemente qualquer
iniciativa que indicasse um movimento político da Igreja na sociedade, era o caso de alguns
jornais como a Gazeta de Notícias, A Folha Nova e O Fluminense (cf AZZI, 1982). Tempo
em que o ultramontanismo começava a penetrar na Igreja do Brasil estimulado pelas
“perseguições” anunciadas pela Igreja em todos os continentes desde o Pio IX no exterior, até
aos bispos na “questão religiosai” da década de 1870 no Brasil.
Do ponto de vista educativo, D. Bosco, fundador e mentor dos salesianos indicava,
segundo Azzi (1982 p. 67), um moralismo no qual se evitava um contato direto entre o
educador e o estudante, ao mesmo tempo que requeria uma vigilância estrita sobre o mesmo,
jamais os deixando sozinhos ou desocupados. Essa a marca de um jansenismo, ainda que
combativo, referido acima, nas palavras do próprio Azzi. Outra marca, essa influenciada pela
visão tridentina, realizada pelo ultramontanismo e condenada por alguns liberais como
clericalismo, era a prática sacramental, sobretudo da confissão e da comunhão. Por fim, o
aspecto que Azzi considerou mais moderno, a abertura ao jogo, ao esporte e à música.
Uma das formas que os salesianos utilizavam para atrair os jovens eram os chamados
Oratórios Festivos. Os Oratórios foram organizados em Turim pelo padre João Cochi, que
tinha visto coisa semelhante em Roma. Dom Bosco acresceu o tom festivo aos Oratórios. Nos
domingos e dias festivos eles organizavam ações que envolvessem e divertissem os jovens,
como jogos e música; e após um tempo de entretenimento aproveitavam a oportunidade para
ensinar a eles os preceitos do cristianismo. Seguindo essa lógica, a primeira atividade que
desenvolveram após se instalarem em Niterói, em 1883, foi a implantação de um Oratório
Festivo. Contudo, logo no início de 1884 o Oratório de Niterói começou a declinar. O motivo,
o diretor da comunidade de Niterói explicou em uma carta endereçada a outro padre: havia
cristãos protestantes vizinhos à comunidade e eles acabaram atraindo os meninos que
frequentavam os Oratórios.
Os salesianos criam que os Oratórios Festivos eram um grande meio de difundir sua
obra. Os Oratórios precisavam de poucos recursos e de pouca mão de obra para funcionar, o
que era uma grande vantagem. Eles defendiam, inclusive, que, ao lado de cada colégio ou
escola profissional, deveria haver um Oratório Festivo. Assim, esses Oratórios eram
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organizados junto de escolas profissionais e agrícolas, como as que vieram criar em Niterói.
Por isso poderiam ser considerados pioneiros no desenvolvimento da formação profissional e
agrícola no Brasil. D. Bosco cria que era preciso oferecer aos “meninos carentes e
desamparados” uma oportunidade de aprender um ofício ou uma arte, para assim capacitá-los
para a vida adulta. Eles desenvolviam nos Colégios e Liceus oficinas de carpintaria, sapataria,
pintura, alfaiataria, música, tipografia, etc. Os trabalhos desenvolvidos eram muito
apreciados, e quase todas as iniciativas logravam êxito.
A educação profissional no Brasil, desde o seu inicio no período colonial, adquiriu um
caráter assistencial e moralizador que visava a tirar os homens pobres e marginalizados de sua
condição e transforma-los em “seres dignos” através do trabalho. A capacitação para o
trabalho era vista como um ato de caridade e não um direito social. Sobre esse aspecto,
destacamos a ação caritativa como um modo próprio da hierarquia católica agir, cujos
fundamentos remontam à baixa Idade Média e foram plenamente estabelecidos por Santo
Tomás de Aquino (cf. MOLLAT, 1989 e BIGO, 1969). Outrossim, inspirados por Marshall
(1967)ii podemos afirmar que neste período estamos assistindo à consolidação do direito civil
que vai se estender ainda pelo século XX, no Brasil, e o surgimento do direito social sendo
que a Igreja vai se abrindo a essa nova situação com a Encíclica Rerum Novarum de Leão
XIII, de 1891iii.
Num país de formação escravagista é inerente pensar que a relação entre educação e
trabalho foi permeada por um forte caráter discriminatório. Todo o processo de escolarização
não pode ser bem analisado sem a consideração do fator sociedade. Ele representa muitas
vezes as ideais e objetivos da sociedade vigente. Nagle (2009) disse que
Dessa forma, a escolarização é tida como um dos elementos do subsistema
cultural, portanto, um elemento que deve ser analisado e julgado em
combinação com os demais elementos da cultura brasileira, e com as
condições da existência social definidas na exposição dos setores políticos,
econômico e social. (NAGLE, 2009, p. 115)
Durante o Brasil-colônia começaram a se organizar lugares para o ensino de
profissões. Para se fazer uma divisão entre os trabalhadores manuais marginalizados e as
profissões dos homens brancos e livres foram criadas as Corporações de Ofícios. Como
ressalta Santos (2010), ao contrário do que ocorreu na Europa, onde as Corporações de
Ofícios integravam homens livres e escravos, no Brasil o acesso de negros, mouros e judeus
nas Corporações era dificultada e até mesmo impedida. Todo esse sistema serviu para
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aprofundar ainda mais o caráter pejorativo que caracterizava determinadas
ocupações ao reforçar, de forma subjetiva, o embranquecimento dos ofícios,
na medida em que os homens brancos e livres procuraram preservar para si
algumas das atividades manuais. (SANTOS, 2010, p. 206)
Após o declínio do desenvolvimento industrial intentado no Brasil durante o século
XVIII e obstaculizado por Pombal, em 1808, com a vinda de D. João VI o setor industrial foi
reativado. Porém, nota-se uma falta de mão de obra para exercer determinadas funções nas
indústrias. Como consequência desse cenário deu-se inicio o ensino de ofícios a crianças,
adolescentes e jovens que não tinham amparo familiar e passavam necessidades; tal ensino se
dava inicialmente nos arsenais militares e da Marinha, onde eram internados. Em 1809, D.
João VI criou o Colégio de Fábricas no Rio de Janeiro com o intuito de suprir a necessidade
de mão de obra, o Colégio também serviu de modelo para outras instituições que viriam a se
instalar aqui. A criação de Liceus, que eram geridos por sociedades civis – com a participação
de fazendeiros, comerciantes, burocratas, etc. – serviu para promover a instrução para o
exercício dos ofícios industriais. No Rio de Janeiro os cursos no Liceu de Artes e Ofícios
eram gratuitos, porém vetados a escravos (SANTOS, 2010).
O impedimento da matrícula de escravos pode ser interpretado como uma forma de
desvinculação do ofício com a escravidão. Sobretudo quando já se discutia a necessidade de
extinção da mesma e a consecução de uma nova modalidade de trabalhador urbano e
industrial e o modelo civilizador proposto à época. A proibição de escravos nos liceus e
escolas não deve ser identificada como proibição de negros nelas. Sobre esse tema já alertounos Veiga (2008).
Santos (2010), citando Luiz Antônio Cunha em “Educação e profissão no Brasil”,
procura indicar a influência da escravidão na formação da força de trabalho no Brasil e que,
por isso, houve um afastamento dos indivíduos livres das atividades manuais e que usavam a
força física bruta, o que vai, também, influenciar a educação profissional no país.
Essa versão “moralizadora” ou “civilizatória” parece estar em consonância com a
visão “caritativa” (no sentido tomista) da Igreja, em relação aos pobres, sobretudo aos órfãos
e “desvalidos”. Por exemplo, a política de D. João VI para o setor de mão de obra fabril,
valeu-se da compulsoriedade para ensinar ofícios a crianças enviadas pelas Santas Casas e
juízes nos arsenais de militares. A longa tradição cristã de asilar os pobres e desvalidos,
encontra eco na ação civilizatória do século XIX sobre a sociedade. A justificativa, além de
econômica, por ser mais óbvia, estava na retirada das crianças da rua e acreditar na educação
como forma de eliminar os vícios sociais e a criminalidade. Esses valores parecem mais vivos
numa sociedade urbana: a fórmula eduque a criança e não será necessário castigar o adulto ou
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não haverá custos maiores à sociedade, aparece na segunda metade do século XIX
(OLIVEIRA, 2009). Veja como se referiu a isso um jornal de Paraíba do Sul, província do
Rio de Janeiro, em 1886:
[...] os Salesianos apanham esses pequenos párias e, por meio do ensino
moral e religioso, fazem daquelas imundas crisálidas umas borboletas de
asas doiradas, que assim são as crianças boas. Ainda não é tudo; porque
depois de purificar-lhes as almas, preparam-nos para o futuro, dando-lhes
uma arte ou um ofício, com que poderão ganhar honestamente a
subsistência, sem peso nem gravame para a sociedade.
[...] Quem como ele [D. Bosco] abre as escolas para fechar as cadeias e,
lavrador de corações e de consciências, planta a semente do bem no espírito
da criança para germinar no homem a virtude pelo amor ao trabalho, merece
a gratidão pública e com ela o meais decidio apoio. (Apud AZZI, 1983b,
p76-77)
A independência, não alterou significativamente a situação educacional brasileira se
não pela lei de 1827 que previa escolarização em todas as vilas, incluindo no currículo,
afazeres práticos, conforme cada sexo (BRASIL, 1827). A partir daí, a sociedade civil,
conforme preconizava um liberalismo da época, procura criar escolas de e asilos para acolher
órfãos e ensinar ofícios. Essas sociedades, aos poucos vão ampliando a forma de obtenção de
financiamento, chegando mesmo a lançar mão de subvenções públicas (SANTOS, 2010).
Como se pode notar, a obra salesiana, não destoava das ações empreendidas pela
sociedade civil daquele momento. Uma ordem religiosa, sob o patrocínio da Arquidiocese,
com amparo dos fieis, procurava dar aos pobres e desvalidos uma motivação econômica,
social, moral e, nesse caso específico, religiosa. Uma carta do padre Vespignani a Dom
Bosco, sobre a criação da casa salesiana em Jurujuba, falava da intenção de D. Lacerda em
criar uma segunda casa no bairro da Gamboa. Essa carta denota esse tipo de preocupação:
Lá não há nenhuma igreja: muitos vivem sem batismo e nem preocupam de
recebe-lo; os meninos e as meninas vagam pelas ruas sem que ninguém tome
conta deles, e são na maioria filhos de pobres artífices e operários. Oh! Que
bela messe para os salesianos! (Apud AZZI, 1982, p. 89)
Jurujuba foi a primeira opção oferecida por D. Lacerda aos salesianos por se tratar de
uma casa pertencente à Arquidiocese. Quando se foi concretizar a vinda dos mesmos, o Padre
Lasagna preferiu outro lugar e se chegou a Santa Rosa.
Na mesma tendência acima, O Apóstolo publicava em 5/08/1883, nota em que
apontava o vetor, ou vetores, da ação salesiana pretendida para o Brasil ao defendê-los dos
ataques dos jornais liberais:
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Os grandes serviços que eles têm prestado na Europa inteira, arrancando do
abismo do crime milhares de homens, apesar da modéstia que se reveste, são
respostas a esses artigos publicados contra eles, com o fim de torna-los
odiados.
Tenham os nossos jornalistas sua ideias e as propaguem, mas deixe que os
pobres tenham o direito de aprenderem uma arte, um ofício. Não temam a
concorrência dos salesianos aos colégios ou ao ensino de quem quer que
seja. Seu fim é muito nobre e proveitoso à nossa pátria e à sociedade. (Apud
AZZI, 1982, p. 288)
A partir da República, dá-se mais valor aos ideais de que era necessária a
industrialização como forma a “atingir o progresso, a independência política e a emancipação
econômica” (SANTOS, 2010, p.212). Como forma de viabilizar isso, em 1909 o então
presidente da Republica, Nilo Peçanha, através do Decreto 7.566, de 23 de setembro de 1909,
criou 19 Escolas de Aprendizes e Artífices para que a população tivesse acesso ao ensino
profissional primário e gratuito, inauguradas em 1910. Apesar de se apresentar como uma boa
iniciativa, as Escolas de Aprendizes e Artífices funcionavam de forma precária. A estrutura
dos prédios era inadequada e havia carência de profissionais de ensino qualificados, soma-se
ainda a alta taxa de evasão. Contudo, mesmo com todos esses problemas as Escolas serviram
como modelo de escola profissional, como ressalta Santos (2010), tal modelo se consolidou
ao longo do tempo vindo mais tarde a constituir a rede de Escolas Técnicas do país.
A partir de 1906, o ensino profissional no Brasil passou a ser regulado pelo Ministério
da Agricultura, Indústria e Comércio, assim que este foi criado. Ainda assim, a instituição do
ensino profissional funcionava mais como um “plano assistencial” do que como um programa
educacional, seu objetivo era a “regeneração pelo trabalho” (NAGLE, 2009). É importante
ressaltar que o ensino profissional não se articulava com o ensino secundário, que “preparava”
para o ensino superior, logo já se vê aí a natureza embutida no ensino profissional voltado
somente à capacitação para o trabalho.
Como se pode notar, mesmo na República, essa visão assistencial, moralista, no
sentido de entender a questão do ensino profissional como caritativa e não como direito
social. Nesse sentido, também é interessante apontar a sensação impressa pela escravidão
sobre os missionários italianos e sua forte compreensão moral da situação. Em 1882 em carta
a D. Bosco, Lasagna escreveu sobre sua percepção da situação social dos meninos referindose à escravidão:
Saiba, querido pai, que meninos abandonados existem em numero assustador
em região das quais muitos estão em situação análoga a qualquer cidade
grande, populosa, toda orientada para o comércio, para o lucro e gozos
materiais...
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Oh! Se pudesse dizer-lhe a angustia que senti, quando passando os olhos
sobre um importante jornal do comércio, entre outros anúncios de venda
como casas, cavalos, vacas, bois, descobre também numerosíssimos deles
semelhantes a este que transcrevo ao pé da letra, em toda a sua crueza:
“Rua N. numero N. vende-se um belo negrinho de 11 anos, capaz de todos
os serviços de mesa, etc... Vende-se uma jovem negra apta a cozinhar, lavar
e passar, são, robusta... Vende-se...” (AZZI, 1982, p. 33)
Durante o Império, a Igreja não aderiu ao movimento abolicionista. Tratava-se de um
problema do Estado, ou seja, da esfera secular. Apesar do esforço de abolicionistas uma
manifestação do Papa Leão XIII só aconteceu após o fato consumado da lei áurea de 1888.
Havia ainda uma postura atribuída ao ultramontanismo de não envolvimento da Igreja em
assuntos políticos do Estado e a família real parecia estar cuidando do caso abolição.
O apoio da Casa Imperial
Em maio de 1882, Lasagna teve contato direto com o imperador D. Pedro II, em uma
reunião em Petrópolis. Azzi (1983b) relata que no encontro o imperador se mostrou muito
curioso em conhecer a obra salesiana e interessado em saber como os religiosos conduziam o
trabalho com os meninos pobres e desamparados. Na ocasião, segundo o Pe. Lasagna, D.
Pedro além de prometer apoio moral aos salesianos, também prometera algum apoio
financeiro, como pagar pelo deslocamento dos padres até Cuiabá a partir de Montevidéu.
Após a instalação em Niterói, os padres salesianos ainda mais uma vez, estiveram com o
Imperador e a princesa Isabel.
Apesar do clima liberal que havia no Brasil nas ultimas décadas do Império, os
salesianos se fixaram em nossas terras com a aprovação do imperador D. Pedro II, e
encontraram na sua filha, a Princesa Isabel, e no seu marido, o Conde d’Eu, grandes
apoiadores e entusiastas de suas obras. O apoio da herdeira imperial serviu como uma forma
dos religiosos se estabelecerem bem no país. Em contrapartida, tal apoio resultou em mais
acusações dos liberais ao Império condenando o clericalismo. (AZZI, 1983b).
A Princesa tinha forte intenção de que os salesianos abrissem um colégio na serra, em
Petrópolis ou Friburgo, porém o plano nunca chegou o acontecer. Mas, apesar, disso, o elo
entre os salesianos e a Princesa Isabel era forte. Os religiosos admiravam a benevolência e a
caridade da princesa, e sua fama chegou ao conhecimento de D. Bosco o qual deixou claro
sua gratidão pelo apoio recebido em carta à Princesa.
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De minha parte, considero minha estrita obrigação de invocar na Santa
Missa as benções celestes sobre todos os súditos brasileiros, enquanto com
suma gratidão tinha a elevada honra de poder-me humildemente professar,
Obrmo. servo
Sac. João Bosco” (AZZI, 1983b, p. 119)
Em 15 de novembro de 1886, o Imperador e a Imperatriz chegaram a fazer uma grande
visita ao Liceu Coração de Jesus, em São Paulo; e foram presenteados pelas mãos do Pe.
Giordano com o “diploma de cooperador salesiano”. Já em 1889 foi a vez da princesa Isabel e
do conde d’Eu visitarem o Liceu, onde foram recebidos com grandes aclamações.
Além da Família Real, a Assembleia Provincial do Rio de Janeiro, cuja capital era
Niterói, passou a discutir uma subvenção de 12 contos de réis para o colégio de Santa Rosa.
Mesmo sob forte crítica da imprensa de inspiração de um tipo de liberalismo, a subvenção foi
aprovada em 1886, embora pela metade dessa dotação e com a contrapartida de os Salesianos
atenderem a 20 alunos enviados pelo governo. Segundo as crônicas dos salesianos, eles
passavam das inspeções à subvenção, já que as inúmeras visitas públicas de inspeção por
denúncias diversas contra o colégio, levavam políticos, membros da Assembleia e da
administração a conhecer a obra de educação ali realizada. (AZZI, 1983b, pp. 59-61).
Educação feminina
Paralelo à Congregação Salesiana, D. Bosco fundou uma instituição que prestaria o
mesmo serviço de caridade dos colégios masculinos à juventude feminina, a Instituição das
Filhas de Maria Auxiliadora. Sua implantação no Brasil ocorreu em 1892, quase dez anos
após a chegada dos primeiros salesianos. Desde aquela época era manifestada a vontade de
trazer as irmãs para o nosso país, mas devido à falta de uma boa organização, aos numerosos
casos de febre amarela e ao clima hostil em relação às novas ordens religiosas que chegavam
por aqui, a vinda foi por diversas vezes protelada. Para o Pe. Lasagna, além de prestar auxílio
para as jovens pobres e desamparadas, a vinda das religiosas também serviria para dar inicio a
abertura de colégios católicos para as classes médias, com o intuito de combater o aumento
das instituições de ensino leigo. Segundo (AZZI, 1983a, p. 145), isso coincidia com o projeto
dos bispos reformadores do Brasil.
As primeiras doze religiosas que chegaram ao Brasil em 1892 foram destinadas às três
fundações localizadas no Vale do Paraíba. Preferiu-se alocar as irmãs nas cidades do interior,
onde ainda permanecia o espirito de devoção, a expô-las à hostilidade causada pelo espirito
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liberal que vigoravam nas cidades. As cidades que receberam as Filhas de Maria Auxiliadora
foram Lorena, Guaratinguetá e Pindamonhangaba. Em Guaratinguetá fundaram em março de
1892 o Colégio Nossa Senhora do Carmo. Em Pindamonhangaba a permanência delas foi
rápida, chegaram a assumir a direção de um orfanato, mas devido à má e perigosa localização
logo foi fechado. Já em Lorena a obra não se expandiu muito, pois era próximo ao colégio do
Carmo. Três anos após sua chegada, a obra missionária das irmãs salesianas teve grande
impulso e se expandiu para São Paulo e para o Mato Grosso (AZZI, 1983a).
Em uma carta de Lasagna ao Pe. Cagliero, ele pede que enviem irmãs “instruídas em
piano, em bordado e em língua francesa” (AZZI, 1983a, p. 145). Esse era um perfil adequado
às classes médias do momento, se pode supor, mas a vocação para o trabalho, inspiração
salesiana, parece estar presente, tendo-se em conta o papel feminino naquela sociedade, na
qual a mulher era instruída para o lar e para o casamento.
A Instituição das Filhas de Maria Auxiliadora permaneceu aos cuidados da
Congregação Salesiana até 1906, após se separarem e a Instituição passou a ser independente
(AZZI, 1983b).
O declínio da obra salesiana
Em 1920 há uma remodelação do ensino profissional, promovida pelo Ministério a
partir da contratação do engenheiro João Luderitz. O caráter assistencialista do ensino
profissional começou a perder sua força a partir de uma nova forma de se pensar o ensino, de
acordo com o novo momento que o país estava vivendo. A partir da ultima década da
Primeira República surge no Brasil a necessidade de se repensar a educação, agora como uma
alavanca que impulsionaria o país a alcançar as mais altas potências da época, num
movimento de democratização do ensino e formação moral e cívica do homem, caracterizados
pelo movimento de entusiasmo pela educação e pelo otimismo pedagógico. (NAGLE, 2009).
Neste contexto, a obra salesiana começou a perder o sua motivação inicial e passou a
se adequar as demandas da época. A oficialização do ensino no Brasil causou impacto na
forma de trabalho dos salesianos. A fim de equiparar seus colégios aos de ensino oficial, o
ensino para jovens mais pobres deixou de ser o plano principal. Paralelamente às escolas de
ensino profissional e agrícola os salesianos instalaram colégios de nível primário e secundário
para as classes médias. Os esforços no ensino acadêmico também eram crescentes. Toda essa
mudança é, em parte, devido ao desejo de muito apoiadores da obra salesiana que eram de
classe média, que também desejavam que seus filhos recebessem instrução deles. A renda
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desses colégios tinha como um dos destinos a manutenção da formação sacerdotal salesiana
que a cada dia precisava se aprimorar mais.
Na linha do tempo dos salesianos aqui podemos ainda citar o caráter militarizado que
os colégios passaram a adotar. Nas duas primeiras décadas do século XX havia uma grande
tensão militar não só no Brasil, mas no mundo. Por aqui havia a tensão entre positivistas e
liberais, e ainda grupos militares durante a implantação da república. Os colégios salesianos
foram utilizados para popularizar campanhas militares, com o intuito de atrair jovens para o
serviço militar. No Colégio Santa Rosa (Niterói/RJ), Colégio São Joaquim (Lorena/SP), Liceu
Coração de Jesus (São Paulo/SP) e no Liceu Nossa Senhora Auxiliadora (Campinas/SP) havia
instrução militar. Embora alguns salesianos se preocupassem com a presença militarista nos
colégios, com o crescente número de alunos e da grande estrutura que precisava ter a
organização das turmas e turnos, foi se tornando necessário o enrijecimento do modo de
trabalho para se alcançar maior disciplina. A partir do início do século XX os salesianos
passaram progressivamente a investir com mais afinco nas atividades acadêmicas, e assim as
escolas de artes e ofícios passaram a declinar.
É nítido que os salesianos acreditavam que o modelo de educação tradicional poderia
ser substituído por outro modelo, mais sensível e agradável aos próprios alunos. Seu
comprometimento com a educação dos jovens pobres, carentes e desamparados foi a grande
marca dos discípulos de Dom Bosco, que acreditavam piamente nas ideias de seu líder, e em
cada lugar onde se instalavam seguiam seu modelo de trabalho, e difundiam com êxito os
valores da obra salesiana. Os Oratórios Festivos, as escolas profissionais e as escolas
agrícolas atraiam os jovens, e era nesses locais que eles aprendiam uma função e tentavam
garantir uma ocupação. Através dos ajuntamentos, sempre alegres, os salesianos ministravam
os valores cristãos e encaminhavam aqueles jovens na fé.
Considerações finais
A obra dos salesianos pode ser caracterizada pelo seu aspecto redentor e missionário.
A educação para o trabalho era uma forma de proporcionar aos jovens pobres e desamparados
uma forma de saírem da condição de risco social, moral e econômico e terem oportunidade de
se manter dignamente por seus próprios esforços.
Proporcionar educação a esses jovens era uma forma de caridade, no sentido de uma
obrigação religiosa. Em consonância com as necessidades da época e com a visão
assistencialista do trabalho que também era adotada pelo Estado, podemos dizer que a obra
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dos salesianos no Brasil, e em especifico no Rio de Janeiro serviu como um plano de
moralização da sociedade. O apoio da família Imperial foi um forte beneficio para que os
religiosos pudessem se instalar bem no Brasil e consolidar sua obra. A atenção dada pelos
discípulos de D. Bosco aos desvalidos, inclusive as moças, demostra que a relação entre
Igreja e a educação nem sempre se restringiu ao caráter elitista, mas que o caráter missionário
também estava presente. Ainda assim, a insistência do Bispo Lacerda foi a ação mais efetiva e
constante pela vinda dos salesianos.
O vinculo entre educação e trabalho se deu a partir da necessidade de qualificar parte
da população que não havia quem a sustentasse e que estava à margem da sociedade, ao
mesmo tempo em que, paulatinamente, os interesses da industrialização começaram a
demandar essa necessidade. A Igreja, movida pelo seu chamado à boa obra, também toma a
responsabilidade para si. Tanto o Estado quanto a Igreja prestaram assistência à sociedade
através da educação para o trabalho. Posteriormente, separados Igreja e Estado, sobretudo a
partir da década de 1930, esse assumiu a si a ação formativa profissionalizante, visando ao
desenvolvimento econômico e não mais moral.
O declínio da obra salesiana também aconteceu devido às necessidades da época a
partir da oficialização do ensino. O foco passa a ser o ensino para as classes médias e o
universitário. Apesar dessa mudança, a contribuição dos salesianos para a educação no Brasil
nos ajuda a entender a relação entre educação e trabalho como complementares para a
formação humana ou o seu viés de educação para pobres, tantas vezes atribuída às camadas
populares, em oposição ao ensino secundário destinando as classes médias e altas ao ensino
superior.
Referências
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Bosco, 1983.
AZZI, Riolando. Os salesianos no Rio de Janeiro; Os primórdios da obra salesiana (18751884). São Paulo: Ed Salesiana Dom Bosco, 1982. Vol 1.
AZZI, Riolando. Os Salesianos no Rio de Janeiro. A implantação da obra salesiana (18841894). São Paulo: Salesiana Dom Bosco, 1983. Vol. 2.
BIGO, Pierre. A doutrina social da Igreja. São Paulo: Loyola, 1969.
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BRASIL. Lei de 15 de outubro de 1827. Manda criar escolas de primeiras letras em todas as
cidades, vilas e lugares mais populosos do Império. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LIM/LIM-15-10-1827.htm Acesso em: 07 abr 2015.
MARSHALL, T. H. Cidadania e classe social. In: MARSHALL, T. H. Cidadania, classe
social e status. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1967.
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2009.
OLIVEIRA, Paloma Rezende de. Criança: futuro da nação, célula do vício – políticas de
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Mendes Filho; LOPES, Eliane Marta Teixeira; VEIGA, Cyntia Greive (Orgs.). 500 Anos de
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VEIGA, Cyntia Greive. Escola pública para os negros e os pobres no Brasil: uma invenção
imperial. Revista Brasileira de Educação v. 13 n. 39 set./dez. 2008. pp. 502-516.
i
Questão Religiosa foi como ficou conhecido o episódio no qual os bispos do Pará e de Recife foram
processados e presos por desobedecerem a uma decisão judicial que os mandava empossar mesas
diretoras de irmandades religiosas tidas como maçons pelos prelados.
ii
Não estamos em condições de discutir aqui se nasce a cidadania nos termos em que Marshall
abordou na Inglaterra, como fonte e causa desse novo direito. Mas, no caso dos católicos, a visão
tomista ainda obsta de certa maneira essa visão, uma vez que as relações sociais não são efetivamente
problematizadas nos termos utilizados atualmente e são observadas sob o prisma da moral cristã.
iii
Leão XIII já havia iniciado a restauração da filosofia tomista no princípio de seu pontificado com a
encíclica Aeternis Patris, de 1879. Porém a Rerum Novarum já se coloca frente ao socialismo
crescente e à essa consecução do chamado direito social nascente.
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